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Magia e Feitiçaria no Império do Brasil: o poder da crença no Sudeste e em Salvador
Luiz Alberto Alves Couceiro
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia
PPGSA, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Ciências
Humanas (Antropologia Cultural)
Orientadora: Yvonne Maggie
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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Magia e Feitiçaria no Império do Brasil: o poder da crença no Sudeste e em Salvador
Luiz Alberto Alves Couceiro
Orientadora: Yvonne Maggie
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia – PPGSA, IFCS, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas
(Antropologia Cultural)
Aprovada por:
______________________________
Presidente, Profa. Yvonne Maggie
______________________________
Prof. Peter Fry
______________________________
Prof. Marco Antonio Gonçalves
______________________________
Profa. Lygia Sigaud
______________________________
Prof. José Roberto Góes
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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Ficha Catalográfica
Couceiro, Luiz Alberto Alves.
Magia e Feitiçaria no Império do Brasil: o poder da crença no
Sudeste e em Salvador/Luiz Alberto Alves Couceiro. Rio de Janeiro:
UFRJ, IFCS, PPGSA, 2008.
xii. 240f.
Yvonne Maggie. Tese de Doutorado, UFRJ, IFCS, Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Antropologia, 2008. 12.
1. Acusações de feitiçaria. 2. Antropologia das religiões afro-brasileiras. 3.
Antropologia da escravidão. I. Maggie, Yvonne. II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. III. Magia e Feitiçaria no
Império do Brasil.
4
RESUMO
Magia e Feitiçaria no Império do Brasil: o poder da crença no Sudeste e em Salvador
Luiz Alberto Alves Couceiro
Orientadora: Yvonne Maggie
Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia – PPGSA, IFCS, da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências
Humanas (Antropologia Cultural)
Esta tese é um estudo sobre a crença na feitiçaria no Império do Brasil. A pesquisa que
deu origem à tese mostrou que não existiam leis reguladoras das acusações de feitiçaria
no Império, ao contrário da colônia e do período republicano. Vários tipos de
documentos da época nos ajudaram a demonstrar, no entanto, que a crença no feitiço, no
Império do Brasil, assim como na República, perpassava todas as classes sociais.
Analisamos casos paradigmáticos para desvendar o sistema de crenças gico-
religiosas. Os casos se referem a notícias de jornal sobre terreiros de candomblé em
Salvador e uma argüição de um personagem chamado Pai Gavião, um espírito que
falava através de um escravo africano em São Paulo. Analisamos também um processo
criminal sobre homicídios cometidos por escravos por meio da prática de feitiçaria no
Rio de Janeiro e o processo que condenou Juca Rosa, um renomado pai de santo, no Rio
de Janeiro.
Palavras-Chave: acusações de feitiçaria; antropologia das religiões afro-brasileiras;
antropologia da escravidão.
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
5
ABSTRACT
Magic & Witchcraft in the Brazilian Empire: the power of belief in the Southwest &
Salvador City
Luiz Alberto Alves Couceiro
Orientadora: Yvonne Maggie
Resumo da Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia – PPGSA, IFCS, da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciências
Humanas (Antropologia Cultural)
The main objective of this work is to study the witchcraft belief in Brazil Empire. In this
thesis we discovered that there wasn´t any regulation´s law about the witchcrafts beliefs
and the accusations in the Brazil´s Empire State, just the opposite of Brazilian´s colonial
and republic periods. Considering this fact, many documents were produced during that
period that helped us to demonstrate that the witchcraft belief, in Brazil Empire, passed
by all the social classes. Thereby, we analyzed paradigmatic cases of magic-religious
systems beliefs through some of those documents, like, for example, newspapers notices
about “terreiros de canbomblé” in Salvador city and the inquisition of “Pai Gavião”, a
spirit who possessed an African slave in São Paulo, and a criminal process about
homicides committed by slaves through the witchcraft's practice in Rio de Janeiro.
Keywords: witchcraft accusations; anthropology of afro-Brazilian religious;
anthropology of slavery.
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
6
Agradecimentos
Ao chegar ao fim dessa jornada fico devedor a muitas pessoas. Quero aqui
agradecer a algumas delas que foram especialmente importantes nessa caminhada.
As pesquisas que originaram essa tese contaram com financiamento de bolsas da
CAPES e da FAPERJ, às quais agradeço esse fundamental apoio. Agradeço, também, à
Cláudia de Jesus Vianna e Denise Alves da Silva, secretárias do PPGSA, pela solicitude
às inúmeras dúvidas acerca da burocracia universitária.
Yvonne Maggie vem sendo, alguns anos, minha orientadora e iniciadora na
Antropologia – ensinando conceitos e mostrando os rumos das idéias de diversos
autores. Além disso, e, principalmente, orientando meus trabalhos com generosidade e
amizade. Tornamo-nos amigos durante esses anos.
Peter Fry vem acompanhando, de perto e de longe, minha trajetória profissional.
tenho a agradecer a troca de idéias e a sua generosidade intelectual, bem como
soluções para problemas com a pesquisa e com a bibliografia sobre tema que conhece
muito bem. Marco Antonio Gonçalves foi o meu primeiro professor no PPGSA,
recebendo-me com cordialidade, e com quem comecei a aprender a distinguir as várias
formas de se fazer Antropologia, a colocar as idéias no papel. Já no doutorado,
aventurei-me para os lados da Quinta da Boa Vista, quando cursei a disciplina sobre
magia, religião e feitiçaria oferecida por Lygia Sigaud que, desde então, sempre me
recebeu com paciência e palavras de incentivo no PPGAS-Museu Nacional. Flávio dos
Santos Gomes foi quem, digo como um comentarista esportivo, me “garimpou das
divisões de base”, ao acreditar em minhas insipientes idéias e projetos de pesquisa.
Foram muitas conversas acadêmicas, políticas e futebolísticas que compuseram e ainda
compõem o cenário de nossa amizade e relação profissional. Valeu pela força e por me
ajudar a não desistir nos momentos mais difíceis da profissão de pesquisador acadêmico
que, ao menos para a minha geração, muitas vezes mais parece uma profissão de fé!
Agradeço a José Roberto Góes por ter aceitado participar da banca de avaliação dessa
tese.
Esta tese foi escrita em parte no Rio de Janeiro, em Laranjeiras, e em parte em
Salvador, no Canela. Muitas pessoas participaram dos subterrâneos do trabalho tanto no
Canela quanto em Laranjeiras. Foram eles que deram “apoio logístico”, torceram,
contaram piadas, indicaram filmes e conversaram sobre os mesmos, dividiram mesas de
7
bar e em refeições em suas casas, falando não somente da vida acadêmica, mas do
feitiço e das feitiçarias presentes na vida de todos nós. No Rio, foram: Zílio Teixeira
Tosta, Sátiro Nunes, Carlos Eduardo Moreira de Araújo (companheiro desde os tempos
de graduação!), Maurício Siaines, Gustavo Silvano Batista, Daniel Chomsky, Maurício
Nascentes, Bruno Bar, Silvio Almeida, Els Lagrou, Michel Misse e Emerson Giumbelli.
Mais uma vez, quero deixar registrados os meus agradecimentos aos diversos
funcionários do Arquivo Nacional, do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, da
Biblioteca Nacional e das Bibliotecas da PUC-Rio, da UNICAMP, do IFCS e do Museu
Nacional.
Em Salvador, onde morei e vivi intensamente a cidade por quase dois anos, pude
estreitar mais ainda a amizade e a troca de idéias com João José Reis, que discutiu
pontos centrais dos temas dessa tese, inclusive convidando-me a me juntar à Linha de
Pesquisa Escravidão & Invenção da Liberdade, do Programa de Pós-Graduação em
História Social da UFBA. pude colher valiosas informações sobre a historiografia
acerca da Bahia. Os conterrâneos Carlos Eugênio Líbano Soares e Antonio Luigi Negro
foram essenciais não na amizade, mas em minha chegada a Salvador apoiando a
difícil engenharia familiar de uma mudança interestadual com muito bom humor.
Agradeço os momentos de amizade e agradáveis bate-papos, muitas vezes nas
caminhadas rumo ao Canela, a Cândido da Costa e Silva. Outras pessoas importantes,
em Salvador, a quem gostaria de agradecer são: Rafael Sancho, Liliane Santana, Renato
Souza, Danielle Grim, Saulo Daniel Dantas, Cecília Soares, Washington Cerqueira,
Sérgio Lobo, Reinã Xavier, Aldrin Castellucci, Fabrício Lyrio, Luiz Fernando Saraiva,
Rita Almico, Luiz Antonio Araújo, Samir Mortada, Lygia Viégas, Dom Clemente
Medeiros, Rodrigo Sputter, Luciana Cassini, Messias Bandeira e Alícia Lose. Essas
palavras são poucas, mas registram de algum modo o muito obrigado especial a
Cristiane Leiro (a Cris), Marcelo Curi, e demais membros das famílias Carvalho Leiro e
Curi por serem amigos fundamentais também para compreender as maneiras de viver
em Salvador, suas comidas, e forma de ver o mundo. Com Biaggio Talento venho
construindo amizade em torno do olhar satírico sobre a vida, discutindo temas de
comum interesse de pesquisa e reflexão, além de indicações de importantes livros e
filmes. Maria Cecília Velasco Cruz foi importante incentivadora, também como uma
carioca em Salvador, às pesquisas nos arquivos. Adriana Silva, no Arquivo Histórico
Municipal de Salvador, foi sempre solícita e simpática nas pesquisas para a tese,
ajudando a abrir outras frentes de pesquisa para os próximos anos. Agradeço a
8
dedicação dos funcionários do arquivo e da biblioteca do Instituto Geográfico-Histórico
da Bahia, bem como do Arquivo Público do Estado da Bahia.
Gabriela dos Reis Sampaio foi solidária e generosa trocando idéias sobre o caso
de Juca Rosa, disponibilizando versão digital de sua tese de doutorado, quando o portal
eletrônico da UNICAMP ainda não o havia feito. Estendo esse agradecimento a Dale
Graden no que diz respeito ao seu artigo sobre O Alabama, que gentilmente me enviou
dos Estados Unidos da América. Ainda acerca dos dados desse jornal, bem como alguns
outros relativos à feitiçaria e às religiões de influência africana na Bahia, Nicolau Parés
vem sendo sincero e importante interlocutor. Agradeço, também, aos comentários de
Maria do Rosário e Roger Sansi sobre algumas das idéias preliminares que compõem
esta tese.
Jane de Alencar Valvano Corrêa da Silva, e o ainda muito presente Carlos Térsio
Corrêa da Silva, foram prova de confiança, amizade e apoio incondicional crescente nos
últimos anos que propiciaram grande parte do palco para a feitura dessa tese. Muito
obrigado! Eliane Valvano e demais membros das famílias Valvano e Corrêa da Silva
procuraram ajudar de várias formas a fazer esse trabalho, e isso não pode ser esquecido.
Essa tese é um importante marco na vida compartilhada com Rejane Valvano.
Rejane vem sendo o pilar central na busca das várias maturidades e formas não-
ressentidas de compreensão da vida, mostrando-me como encarar questões as mais
densas sem fugir por tangentes aparentemente mais fáceis. A vida é boa de ser vivida, e
é isso que ela vem me ensinando com sinceridade, amor e carinho. Agradeço o seu amor
e a sua dedicação. Mais do que um agradecimento, que fique nesse trabalho, também, a
minha admiração.
Rio de Janeiro e Salvador, 07 de julho de 2008
9
Sumário
Introdução – A crença na feitiçaria no Império do Brasil .......................
A feitiçaria no Brasil ...............................................................................
Sobre as fontes da pesquisa ....................................................................
Os capítulos ............................................................................................
13-14
14-17
17-21
21-23
Capítulo 1 – Acusações de feitiçaria na Corte: o caso de Juca Rosa....... 24
1.1 O medo dos feitiços de Juca Rosa: uma ameaça às esposas da
boa sociedade imperial ............................................................................
24-28
1.2 – O depoimento de Juca Rosa ........................................................... 28-30
1.3 – As “filhas” de Juca Rosa ................................................................ 30-36
1.4 – Os “filhos” de Juca Rosa ............................................................... 36-37
1.5 – A condenação ................................................................................. 38
1.6 A Tese sobre Juca Rosa e a importância da leitura do processo
jurídico ....................................................................................................
38-40
1.7 – A apelação do advogado de Juca Rosa .......................................... 41-42
1.8 – As leis e a perseguição aos feiticeiros no Brasil ............................ 43-48
1.9 Os elementos que sustavam a crença nos poderes gicos de
Juca Rosa ................................................................................................
48-55
1.10 O ganhar a vida na feitiçaria” nos “mundos do trabalho” da
Corte ........................................................................................................
55-61
Capítulo 2 – Feitiçaria e conflitos entre escravos e libertos:
investigando o feitiço e localizando os feiticeiros em Cunha .................
62
2.1 – A venenosa magia da “Coroa da Salvação” ...................................
62-64
2.2 – O exame dos “objetos de feitiçaria” .............................................. 64-66
2.3 – O depoimento de Pascoal ............................................................... 67-68
2.4 – As prisões dos outros envolvidos ...................................................
68-70
2.5 – Novas informações surgem no julgamento .................................... 70-71
2.6 – Acusações de feitiçaria entre escravos e libertos ........................... 72-75
2.7 – A possibilidade do final da escravidão no Brasil e suas
conseqüências no Rio de Janeiro ............................................................
75-87
2.8 – O medo da insurreição revelou o medo do feitiço em Cunha ........ 88-89
10
Capítulo 3 O medo do feitiço em notícias de um plano de
insurreição: o caso de Pai Gavião ...........................................................
90-91
3.1 – O retorno de Pai Gavião .................................................................
91-93
3.2 – O interrogatório a Pai Gavião ........................................................ 93-95
3.3 – A descoberta do “Vungo” .............................................................. 95-97
3.4 – O planejamento da grande insurreição ...........................................
97-98
3.5 A visita do dr. Roth: a promessa de Pai Gavião quase foi
cumprida .................................................................................................
98-100
3.6 – Mistérios sobre feitiços e insurreições ........................................... 100-105
3.7 – A criminalização dos africanos e o perigo das insurreições para a
boa sociedade ..........................................................................................
105-108
3.8 – A imagem dos africanos nas classificações policiais .....................
108-112
3.9 – A criminalização de quem dizia e acreditava ser africano .............
113-115
3.10 – A eficácia das técnicas mágicas como linguagem insurrecional.. 115-121
Capítulo 4 Feiticeiros como personagens de romances no Segundo
Reinado ...................................................................................................
122
4.1 – “Pedro Gobá”, de Ezequiel Freire ..................................................
122-124
4.2 – O Garimpeiro, de Bernardo Guimarães ......................................... 124-129
4.3 – As Vítimas-Algozes, de Joaquim Manoel de Macedo .................... 129-136
4.4 – A Carne, de Júlio Ribeiro .............................................................. 136-144
4.5 – O Tronco do Ipê, de José de Alencar ............................................. 144-149
4.6 – Feitiçaria como uma acusação moral ............................................. 150
4.7 – Objetos de feitiçaria como provas da ão e da sedução do
feiticeiro ..................................................................................................
151-154
4.8 – A acusação de feitiçaria no conto e nos romances .........................
154-155
4.9 – As falas sobre feitiçaria ..................................................................
155-157
Capítulo 5 Um jornal, vários feitiços, feiticeiros e seus clientes, em
Salvador ..................................................................................................
158
5.1 – Sobre os protocolos rituais ............................................................. 158-167
5.2 – Dando “ventura” e tirando o diabo do corpo ................................. 167-172
5.3 – Observando os corpos .................................................................... 172-184
5.4 – Perturbando a vizinhança ............................................................... 184-186
5.5 – A conivência das autoridades públicas .......................................... 186-194
11
Capítulo 6 Navegando nos mares do candomblé a bordo de O
Alabama: acusações de feitiçaria em Salvador, 1863-1871 ...................
195-196
6.1 – O perfil do jornal O Alabama ........................................................ 196-198
6.2 – Freqüentando terreiros ................................................................... 198-199
6.3 – Agentes civilizadores contra os “candomblés” .............................. 199-202
6.4 – O cheiro da civilização e o da barbárie .......................................... 202-206
6.5 – As ruas de Salvador: a cidade como palco da ação político-
religiosa ...................................................................................................
206-210
6.6 – Os “candomblés” como território do poder feminino .................... 211-213
6.7 Contrariando O Alabama... Candomblé como ação (dos jeje) no
mundo .....................................................................................................
213-217
6.8 – À guisa de conclusão ..................................................................... 217-220
Conclusão – O controle satisfatório do poder da magia e da feitiçaria... 221-224
Fontes ...................................................................................................... 225-227
Referências ..............................................................................................
228-240
12
“Vivemos na dependência do feitiço,
dessa caterva de negros e negras, de
babalorixás e iaôs, somos nós que lhe
asseguramos a existência, como o carinho
de um negociante por uma amante atriz”.
João do Rio (Paulo Barreto) As religiões
no Rio (apresentação, organização e notas
de João Carlos Rodrigues), Rio de Janeiro,
José Olympio, 2006, Col. Sabor Literário,
pp. pp. 50-51
“Nos terreiros, não se recruta sempre nas
negras boçais e ignorantes, senão mesmo na
melhor sociedade da terra. Ninguém
assumia a pasta de ministro, sem antes
consultar o terreiro de sua preferência.
Damas da sociedade iam se consultar nos
terreiros em salas separadas, construídas a
mando das mães-de-santo.”
Nina Rodrigues, O animismo fetichista
dos negros baianos (fac-símile dos artigos
publicados na Revista Brazileira em 1896 e
1897, apresentação e notas de Yvonne
Maggie e Peter Fry), Rio de Janeiro,
Fundação Biblioteca Nacional, Editora
UFRJ, 2006, p. 55.
“O meu mundo é um mundo estranho,
porque nele vivem pessoas estranhas. Mas
não mais estranhas do que você!”
Estranho mundo de Zé do Caixão
(Brasil, Bennio Produções, filme dirigido
por Zé do Caixão – José Mojica Marins,
1968)
13
Introdução
A crença na feitiçaria no Império do Brasil
Nesta tese, buscaremos compreender a crença na feitiçaria, na Corte do Rio de
Janeiro e em Salvador, na segunda metade do século XIX. No Império do Brasil as
acusações de feitiçaria não eram reguladas pelo Código Criminal, de 1830, ao contrário
do que acontecia na colônia, com as Ordenações Filipinas, e na república, com o
Código Penal, de 1890. A pergunta que nos fizemos, então, foi a seguinte: como
entender essa ausência de regras jurídicas e administrativas que regulassem as
acusações e a crença na feitiçaria? O leitor se guiado através de alguns casos de
acusações de feitiçaria, encontrados nos arquivos das cidades do Rio de Janeiro e de
Salvador, e verificará que a sociedade imperial acusava mais freqüentemente os
africanos de feitiçaria. Nossa hipótese é a de que essas acusações revelam que as
relações entre africanos e outras pessoas eram tensas, pois os acusadores eram pessoas
de todas as classes e em muitos casos as acusações se davam entre iguais.
Tal como em nossa dissertação de mestrado, nessa tese analisamos documentos
judiciais e oficiais do Império, nos quais encontramos narrativas sobre um sistema
mágico-religioso, sobre acusações de feitiçaria e sobre os acusados e os seus
acusadores. No tocante a este aspecto, e acerca da construção do problema dessa tese,
temos como inspiração as conclusões de Thompson.
1
O autor fala sobre a importância
de prestar atenção para os aspectos da sociedade que legitimam ideais de justiça e
punição, através ou não da aplicação de leis, para compreendermos as disputas entre os
grupos sociais com diferentes graus de poder político, econômico e jurídico. Devemos
caracterizar o que sustenta as acusações, quem as faz, e quais os cenários em que elas
foram feitas. Nesta tese, seguindo os estudos de Thompson, compreendemos os
ambientes sociais que motivaram as acusações de feitiçaria e a crença na magia, no
Império do Brasil.
A literatura acerca das ditas religiões afro-brasileiras tem a Bahia como um dos
laboratórios mais importantes para suas pesquisas. Por isso, buscamos na literatura
antropológica e na historiografia sobre a cidade de Salvador, bem como nos seus
1
E. P. Thompson, Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987; “A
economia moral da multidão inglesa no século XVIII” e “Economia moral revisitada” in Costumes em
comum: estudos sobre a cultura popular tradicional, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp. 150-202
e 203-266.
14
arquivos, se lá, tal como no Sudeste imperial, também não havia regulação legal das
acusações de feitiçaria, dos acusadores e dos acusados. Se, por um lado, não tenha
havido essa regulação, por outro nossas pesquisas mostram que houve perseguição aos
feiticeiros e acusações de feitiçaria em Salvador, mesmo sem termos encontrado
documento oficial algum sobre todos esses fatos isso. Nesta tese, comparamos as
acusações de feitiçaria ocorridas no mesmo período simultaneamente tanto no Sudeste
quanto em Salvador, suas bases sociais de sustentação, pondo em relevo as semelhanças
e diferenças desse processo.
A feitiçaria no Brasil
Yvonne Maggie afirmou que as autoridades brasileiras imiscuídas nos assuntos
da magia acabaram por criar mecanismos de controle e regulação das acusações, na
república.
2
Maggie explicou como agentes do Estado, juízes, promotores, delegados e
policiais, além dos advogados e dos seus clientes acusados de feitiçaria, estavam
envolvidos na própria crença, separando assim o joio do trigo e legitimando ou
deslegitimando as acusações. O Estado, através de processos criminais constituídos a
partir de inquéritos produzidos pela polícia para investigar acusações de feitiçaria,
regulava o sistema punindo os que eram definidos como praticantes da magia e seus
sortilégios. Esses funcionários do Estado republicano aplicavam os artigos 156, 157 e
158 do Código Penal.
Ao comparar a Lei Supressão à Feitiçaria, de 18 de agosto de 1899, vigente até
2006, na antiga Rodésia, atual Zimbábue, com o Código Penal republicano no Brasil,
Yvonne Maggie descobriu que enquanto na Rodésia do Sul o instrumento legal visava
extirpar a crença com a proibição da acusação a feiticeiros, no Brasil a acusação era
bem-vinda justamente porque se acreditava no poder da magia.
As acusações de feitiçaria foram largamente difundidas e legitimadas na
América Portuguesa. Laura de Mello e Souza escreveu sobre a crença na feitiçaria no
período colonial brasileiro e demonstrou que, apesar de não haver grande surtos de
possessão de espíritos malignos ou acusações de feitiçaria, ela foi uma constante
preocupação de agentes da administração colonial portuguesa.
3
Além disso, fomentou a
repressão da Igreja Católica, através das visitações do Santo Ofício, que aceitava
2
Yvonne Maggie, Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil, Rio de Janeiro, Arquivo
Nacional, 1992.
3
Laura de Mello e Souza, O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
colonial, São Paulo, Companhia das Letras, 1986.
15
acusações de feitiçaria e as investigava. Mello e Souza demonstrou como a crença na
magia e as acusações de feitiçaria não estavam ligadas à perseguição de práticas
místicas trazidas por escravos africanos à colônia, mas sim ao ambiente maior de crença
na magia que havia, há alguns anos, na Península Ibérica e reinos vizinhos. A colônia
era vista pelas autoridades portuguesas como o lugar de morada de hereges, feiticeiros e
demais colonos desviantes da ordem legal. O estudo de Mello e Souza mostra, por meio
de grande número de casos encontrados nos arquivos metropolitanos portugueses, como
a crença na magia e as acusações de feitiçaria mobilizaram todos os tipos de gente no
período colonial brasileiro.
A crença de funcionários do governo no poder da magia e da feitiçaria pode ser
vista em dois estudos de caso realizados por João José Reis, um relativo ao período
colonial e outro ao Império do Brasil. O primeiro caso foi o da repressão das
autoridades coloniais portuguesas ao “calundu” na cidade de Cachoeira, no Recôncavo
baiano, em 1785, e o segundo o assalto ao “terreiro do Candomblé do Accu”, em
Salvador, 1829.
4
No primeiro estudo, o autor não localizou a presença da Igreja nas
investigações, mas somente a de agentes do estado colonial português. Reis demonstra
como essas pessoas conferiram poder aos que participavam dos rituais mágico-
religiosos por eles repreendidos, exercendo controle satisfatório da crença no poder da
magia e da feitiçaria. A devassa foi conduzida por um agente administrativo, o juiz de
forma Marcellino da Silva Pereira. No segundo caso, o autor analisa o “terreiro de
candomblé” invadido por policiais, que roubaram caríssimos panos da Costa, um
chapéu de sol e 20 mil réis em dinheiro. Em ambos os casos, Reis verificou que a crença
no poder dos feitiços era compartilhada por autoridades policiais e políticas, fossem elas
do Estado colonial português, fossem do Império do Brasil, respectivamente. Tais
autoridades reprimiam o que chamavam de “prenúncios de catástrofes”, produzindo
documentação oficial, uma vez que acreditavam no poder da magia e da feitiçaria nas
ações dos escravos e libertos que poderiam lhes causar malefícios. Como vemos, no
segundo estudo de Reis, no Império, curadores, pajés, feiticeiros, jesuítas e benzedores
continuaram a ser figuras proeminentes nas artes de curar pessoas.
O século XIX também foi palco de uma guerra declarada de médicos contra
aqueles que exerciam práticas de cura. Eles organizaram-se institucionalmente,
4
João José Reis “Magia Jeje na Bahia: a invasão do calundu no Pasto de Cachoeira, 1785”, in Revista de
História Escravidão, São Paulo, ANPUH, Marco Zero, v. 8, n. 16, 1988, pp. 57-81 e “Nas malhas do
poder escravista: a invasão do Candomblé do Accú”, in João José Reis & Eduardo Silva, Negociação e
conflito: a resistência negra no Brasil escravista, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, pp. 32-61.
16
defendendo o monopólio da saúde e das práticas de curar com a expedição de diplomas,
habilitando profissionais com o ensino da maneira de tratar doenças. Segundo Paula
Montero, durante todo o século XIX, o controle da profissão médica não foi
suficientemente para extirpar outras formas concorrentes de práticas de cura e definição
de doenças e por isso, a instituição médica não se impôs à sociedade de forma absoluta.
5
Gabriela Sampaio descobriu que no Império grande parte da população da Corte
assistia com certa apatia às lutas internas entre os médicos sobre as práticas médicas e
afirmou como tal situação atrapalhou a formação de um grupo de influência política
forte o bastante para inserir novas leis no Código Criminal, que versassem sobre outras
práticas de cura que não às identificadas como medicina.
6
Freqüentemente, médicos
atacavam uns aos outros através de acusações de imperícia e, até mesmo, ineficácia dos
tratamentos recomendados acusações semelhantes àquelas feitas pelos médicos aos
curandeiros e acusavam-se, publicamente, de “charlatanismo”.
7
O prestígio da
medicina junto à população o conseguia se firmar e reforçava, assim, o
“reconhecimento” das práticas mais antigas de cura pela sociedade.
Maria Lúcia Schritzmeyer afirmou que, mesmo que na década de 1870 tenha
surgido um debate mais organizado entre médicos e jurisconsultos sobre as formas de
legalização das práticas curativas, durante todo o Império eles não conseguiram ter
coesão para ao menos colocar no Código Criminal a feitiçaria como prática curativa não
aprovada pelo Estado.
8
Muitos médicos, através de campanhas de erradicação dos males
físicos e sociais, como a cólera e a prostituição, acreditavam que a “nação” estaria no
caminho da “civilização”.
9
Grande parte dos jurisconsultos, por sua vez, estava
preocupada com as relações entre a criminalidade e as práticas curativas que não fossem
àquelas regulamentadas pelo Estado.
10
Enquanto Sampaio, Monteiro e Schritzmeyer argumentam que a instituição
médica no Brasil demorou a se tornar hegemônica por uma “falha” na repressão aos
falsos médicos e curandeiros, Maggie, analisando o período republicano, desvendou
5
Paula Monteiro, Da doença à desordem: a magia na umbanda, Rio de Janeiro, Graal, 1985, p. 39.
6
Gabriela dos Reis Sampaio, Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro,
Campinas, Editora da UNICAMP, CECULT, 2001.
7
Cf. Sampaio, Nas trincheiras da cura, pp. 31-66.
8
Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Sortilégios de saberes: curandeiros e juízes nos tribunais brasileiros
(1900-1990), São Paulo, IBCCRIM, 2004, p. 70.
9
Cf. Sidney Chalhoub, Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial, São Paulo, Companhia das
Letras, 1996 e Lilia Moritz Schwarcz, O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil, 1870-1930, São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
10
Schritzmeyer, Sortilégios de saberes, pp. 74-75.
17
outra estrutura do mesmo processo. A autora descobriu que a repressão aos falsos
médicos, curandeiros e mágicos seguia uma estrutura que em vez de extirpar a crença na
magia serviu para regulá-la, hierarquizá-la e, assim, discipliná-la.
Guiados por essa segunda perspectiva, nessa tese buscamos analisar tanto
processos judiciais quanto notícias de jornais e documentos oficiais na Corte do Rio de
Janeiro e na cidade de Salvador, onde pessoas foram acusadas de feitiçaria.
Outra questão foi-nos posta pela leitura de Gell que argumentou que os objetos,
em algumas sociedades, podem ter “agência”, isto é, que as pessoas podem reconhecer
em objetos intenções.
11
Estes objetos podem ser vistos por essas pessoas como agentes
de ações específicas, exercendo fascínio e despertando-lhes sentimentos, emoções,
provocando-lhes atitudes. O autor lembra que os dados de Malinowski sobre o kula são
bons exemplos para entendermos sua idéia. Para que houvesse sucesso na troca de
colares, as proas das canoas, esculpidas, deveriam seduzir aqueles que as avistavam das
praias. Caso contrário, a troca não seria sequer realizada. Buscamos descobrir o que
significavam os objetos de magia que eram narrados nos processos e casos descritos.
Sobre as fontes da pesquisa
Nessa tese, analisamos dois processos criminais. O primeiro deles, instaurado na
Corte contra um africano livre, acusado de estelionato, que também foi analisado por
Sampaio. O segundo, na cidade de Cunha, contra escravos africanos e libertos africanos
e nacionais acusados de homicídio. Nesses documentos, lidamos com verdades
construídas pelo aparato policial-jurídico do estado imperial. Esse aparato tinha sua
forma de conseguir as informações, as ocasiões para documentá-las por escrito e as
pessoas autorizadas para isso. Os depoimentos, por exemplo, eram escutados por um
funcionário que os transcrevia segundo forma jurídica determinada. Esse é um dos
critérios da construção das peças processuais através das quais os discursos são
regulados pelo Estado, em um formato uniforme, bem como os critérios de investigação
de um tipo de verdade.
12
11
Alfred Gell, “The technology of enchantment and the enchantment of technology,” in Jeremy Coote &
Anthony Shelton (eds.), Anthropology, art and aesthetics, New York, Clarendon Press, 1994, pp. 40-65.
12
Sobre a construção dos fatos no bojo de um processo criminal, ver Mariza Corrêa, Morte em família:
representações jurídicas e papéis sexuais, Rio de Janeiro, Graal, 1983 e Fabiana Luci de Oliveira &
Virgínia Ferreira da Silva, “Processos judiciais como fonte de dados: poder e interpretação”, in
Sociologias, Porto Alegre, ano 7, n. 13, jan./jun. 2005, pp. 244-259. Para os usos de processos jurídicos
como fontes de pesquisa histórica, ver, dentre outros, Sidney Chalhoub, Trabalho, lar e botequim: o
cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque, São Paulo, Brasiliense, 1986; Rachel
Soihet, Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana (1890-1920), Rio de
18
Os autos dos processos criminais são construídos através de percepções dos fatos
e estratégias de convencimento dos agentes sociais, dentro da forma e dos termos
técnicos legitimados pelo Estado. O objetivo de cada uma das partes envolvidas na
contenda judicial é dar sustentação legal a argumentos de forma convincente aos
julgadores. São eles que detêm a autoridade para considerá-los como verdade jurídica.
O objetivo daqueles que têm autoridade para julgar é outro em relação às partes
envolvidas na disputa da causa que instaurou o processo jurídico. Seu objetivo é
estabelecer o vencedor da disputa das verdades que se desenvolveu durante o processo
jurídico.
13
Essas autoridades analisam as experiências narradas por cada um dos
envolvidos no processo.
O processo criminal delimita historicamente o fato investigado. Aqueles sujeitos
autorizados a conduzirem o processo têm a função de organizar datas e informações,
construindo um todo coerente entre os fatos e suas versões, aparando as arestas da
incoerência fatual. As pessoas são acusadas em juízo, em certo clima de desconfiança, e
suas narrativas são permanentemente filtradas por policiais e jurisconsultos. As normas
legais delimitam o que está sendo julgado, bem como o papel de cada sujeito ao longo
do processo. Mesmo assim, espaço, mesmo que limitado, para os acusados serem
ouvidos e, desta forma, as normas sociais serem debatidas pelos julgadores.
14
O segundo tipo de fonte são notícias de jornal, publicadas em São Paulo e em
Salvador. Em São Paulo, em meados de 1854, O Correio Paulistano publicou uma série
de notícias acerca de encontros noturnos, na cidade de Itu e cercanias, liderados por José
Cabinda, também um africano, que falava em nome de um espírito chamado Pai Gavião.
Em Salvador, durante quase uma década, entre 1863 e 1871, O Alabama publicou várias
notícias sobre feitiçaria, magia e “candomblé”, condenando suas práticas, denunciando
seus freqüentadores e organizadores e exigindo providências das autoridades públicas
Janeiro, Forense-Universitária, 1989; Maria Criastina Cortez Wissenbach, Sonhos africanos, vivências
ladinas: escravos forros em São Paulo (1850-1880), São Paulo, HUCITEC, 1998, pp. 13-59; Maria
Helena Pereira Toledo Machado, Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas,
1820-1888, São Paulo, Brasiliense, 1987, pp. 13-54. Com relação à utilização de fontes processuais para
disputas de poder na sociedade imperial, vale lembrar também do pioneiro trabalho de Maria Sylvia de
Carvalho Franco, Homens livres na ordem escravocrata, São Paulo, IEB/USP, 1969. Para uma crítica às
formas de narrativas policiais e aos modos como podem ser utilizadas por historiadores e antropólogos,
dentro da especificidade da natureza de sua produção, ver Emerson Giumbelli, O cuidado dos mortos:
uma história da condenação e legitimação do espiritismo, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1997 e
Olívia Maria Gomes da Cunha, Intenção e gesto: pessoa, cor e produção cotidiana da (in)diferença no Rio
de Janeiro, 1927-1942, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2002, pp. 17-184.
13
Ver Michel Foucault, Vigiar e punir: história da violência nas prisões, 15ª. Edição, Petrópolis, Vozes,
1997; “O olho do poder”, in Microfísica do poder, 14
ª
. Edição, Rio de Janeiro, Graal, 1999, pp. 209-226 e
A verdade e as formas jurídicas, 2
ª
. Edição, Rio de Janeiro, NAU, Depto. de Letras – PUC/RJ, 1999.
14
Ver Corrêa, Morte em família, pp. 21-29.
19
sobre fatos “contrários à civilização”. O editor do jornal era um “afro-baiano”, segundo
informações colidas, chamado Aristides Ricardo de Santana.
As notícias de jornal não somente nos dizem como também deixam de dizer
muitas coisas. Não lemos as notícias de jornal como narrativas de fatos que “realmente
ocorreram do modo como disseram”, mas como narrativas construídas sob critérios
próprios da sociedade de uma época.
Outro tipo de fonte foi a de “ofícios reservados” e “confidenciais” produzidos
por funcionários do Estado imperial onde encontramos diferentes narrativas sobre
crimes entendidos como sendo “violentos”, planejados por escravos, que podiam ser
investigados de modo a serem evitados. Tratamos tais documentos como cartas nas
quais seus autores narram situações que presenciaram ou souberam de pessoas que as
tivessem presenciado, pessoas estas de sua confiança. Apoiando-nos em estudo de
Davies, buscaremos nestas cartas as percepções que seus autores construíam de fatos
que consideravam relevantes de serem não somente narrados, mas sim investigados pelo
aparato burocrático imperial especializado e competente.
15
Além desses documentos oficiais utilizamos algumas histórias ficcionais da
segunda metade do século XIX, um conto e quatro romances escritos e publicados em
jornais da época: Pedro Gobá (1887), de Ezequiel Freire, As vítimas-algozes (1869), de
Joaquim Manoel de Macedo, O tronco do Ipê (1871), de José de Alencar, O garimpeiro
(1872), de Bernardo Guimarães e A carne (1888), de Julio Ribeiro. Estas narrativas
foram criadas por seus autores segundo a idéia de que versavam sobre situações reais da
vida cotidiana da elite imperial. Tal como as notícias de jornal, são narrativas que
tentam convencer os leitores de que seus autores baseiam-se no conhecimento da
sociedade imperial, desde as suas virtudes, ligadas à civilização, até as suas mazelas,
ligadas à barbárie.
16
Não lidamos, nessa tese, com esses textos de literatura levando em consideração
sua suposta “transcendência” e “autonomia” da vida social, como criações atemporais.
O principal elemento do nosso uso dessas fontes de pesquisa não são o seu caráter
ficcional, mas sim a sua especificidade, as peculiaridades do que e como está sendo
15
Natalie Davies, História de perdão e seus narradores na França do século XVI, São Paulo, Companhia
das Letras, 2001.
16
A presença de feiticeiros nestes romances, com a exceção de Pedro Gobá, à luz de outras questões,
foram analisados por Gabriela dos Reis Sampaio, “Majestades do oculto: imagens de líderes religiosos
negros na literatura dos oitocentos no Brasil,” in Ligia Bellini, Ewergton Sales Souza e Gabriela dos Reis
Sampaio (orgs.), Formas de crer: ensaios de história religiosa no mundo afro-brasileiro, séculos XIV-
XXI, Salvador, Corrupio, EDUFBA, 2006, pp. 249-271.
20
narrado, como o autor está representando a sociedade na qual vive, e como até mesmo
ele se nesta sociedade. Os autores e as obras por nós escolhidas estão inseridas em
contexto histórico determinado, e o analisadas por nós tanto quanto o fizemos com as
outras fontes.
17
Na análise e leitura dessas fontes seguimos de perto a noção de “descrição
densa”, através da qual Geertz ressaltou as múltiplas visões de um acontecimento
passíveis de serem encontradas numa mesma cultura.
18
O autor chama a atenção para a
consciência que o antropólogo deve ter sobre as possibilidades de perceber e anotar
apenas certas coisas que está presenciando, e não a totalidade dos acontecimentos, pois
os mesmos existem através da percepção dos sujeitos. Sempre algo lhe escapa, seja
por não presenciar tudo, seja por presenciar as coisas que segundo suas lentes e as
perguntas que carrega em sua mente, seja porque não consegue, por limitações de
interesse, identificar outros comportamentos. Geertz questiona não a dificuldade de
narrar e analisar comportamentos do outro pelo antropólogo, mas a postura do narrador
frente ao que observou. Guiados por essa perspectiva analisamos o relato jornalístico
como narrativa que revela os múltiplos valores e representações de uma dada sociedade.
Tal como Geertz colocou em outro momento, através de uma etnografia das
fontes documentais, passa-se por um processo de racionalização da relação entre o autor
e o produtor do discurso.
19
Queremos ressaltar que, para além de uma teoria do texto ou
do discurso, tentaremos operar nas bases da proposta de Geertz, principalmente através
da própria criação de nosso estilo de contar histórias que foram contadas por outros
personagens que somente conhecemos através de textos dos arquivos e das bibliotecas.
O “estar lá” desta tese trata-se de estar lá nos arquivos e nas bibliotecas, e não em terras
onde os nativos ou sujeitos que o valham moram ou habitam, como vêm sendo
demonstrado nos trabalhos de Maggie, Schwarcz, Fry, Vogt e Slenes, Giumbelli, dentre
outros.
20
17
Sobre o uso da literatura como fontes de pesquisa em História, ver Sidney Chalhoub & Leonardo
Affonso de M. Pereira (orgs.), A história contada: capítulos de História Social da literatura no Brasil, Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, pp. 8-13.
18
Clifford Geertz, “Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura” e “Um jogo
absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa”, in A interpretação das culturas, Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1978, pp. 13-41 e 278-231.
19
Cf. Clifford Geertz, Obras e vidas: o antropólogo como autor, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2002, pp.
11-39.
20
Maggie, Medo do feitiço; Schwarcz, Retrato em branco e negro; Carlos Vogt e Peter Fry (com a
colaboração de Robert Wayne Slenes), Cafundó, a África no Brasil: linguagem e sociedade, São Paulo,
Campinas, Companhia das Letras, Editora da UNICAMP, 1996, princ. pp. 37-102 e Giumbelli, O
cuidado dos mortos.
21
Os capítulos
No capítulo 1, “Acusações de feitiçaria na Corte: o caso de Juca Rosa”,
analisamos o caso de José Sebastião da Rosa, punido por estelionato em um processo
criminal instaurado na Corte, em 1870. Lendo o processo judicial e seguindo os passos
de Sampaio demonstramos como Juca Rosa, africano e réu conhecido na Corte, teve seu
julgamento movido por uma acusação de feitiçaria.
21
Juca Rosa foi processado porque
seus julgadores acreditavam no poder da magia e da feitiçaria, que ele exerceu de
maneira perigosa para os interesses de pessoas da boa sociedade imperial que moravam
na Corte. Como bem demonstrou Sampaio, as acusações feitas a Juca Rosa ocorreram
em um momento de crise política no Império, nos anos de 1870 e 1871: quando parte
influente da elite política nacional estava na expectativa pelo final definitivo ou gradual
da escravidão no Brasil e quando ocorreu, na Corte, intensa campanha de combate à
prostituição e lenocínio, bem como a perseguição de pessoas envolvidas nessas práticas.
Tratamos no capítulo 2, “Feitiço e conflitos entre escravos e libertos:
investigando o feitiço e localizando os feiticeiros em Cunha”, de uma situação ocorrida
em 1869. Uma série de mortes de escravos de uma senhora da cidade de Cunha,
província do Rio de Janeiro, levou a instauração de um processo em que alguns
escravos e libertos foram acusados de homicídio e tentativa de homicídio. Do início ao
fim do processo, o que os senhores e as autoridades públicas envolvidas queriam saber
era como os acusados praticavam “a feitiçaria” através da qual haviam provocado
mortes e mal estar a escravos das fazendas da cidade. Os acusados afirmaram que
participavam de uma “Escola de Feitiçaria” chamada “Coroa da Salvação”, onde
“aprendiam a fazer feitiços com seus mestres”. Esses feitiços visavam pessoas das
fazendas locais, pessoas essas com as quais já tinham tido alguma rixa. Com esse caso,
pudemos verificar que senhores de escravos se mobilizaram para punir os acusados
porque temiam o poder que os seus escravos adquiriam através da magia e da feitiçaria
e desejavam assim controlar os efeitos dessas práticas.
O assunto do capítulo 3, “O medo do feitiço em notícias de um plano de
insurreição: o caso de Pai Gavião”, fala sobre o medo da classe senhorial em relação às
insurreições escravas e o poder da magia e da feitiçaria. Analisamos notícias de jornal
sobre um grande plano de insurreição liderado por José Cabinda, um liberto africano,
21
Gabriela dos Reis Sampaio, A história do feiticeiro Juca Rosa: cultura e relações sociais no Rio de
Janeiro imperial, Campinas, Depto. de História da UNICAMP, 2000, Tese de Doutorado (Rio de Janeiro,
Arquivo Nacional – Prelo).
22
que dava voz a Pai Gavião, em 1854, na cidade de Itu e cercanias, província de São
Paulo. O subdelegado local levou Pai Gavião para depor na delegacia de Itu, que ficou
apinhada de gente, segundo o jornalista enviado pelo Correio Paulistano para apurar as
notícias acerca daquelas reuniões.
Acusações de feitiçaria também estavam presentes em narrativas literárias do
Império. Mesmo sem estarem relacionadas ao medo senhorial da eclosão de
insurreições, essas narrativas mostram como um discurso produzido para ser lido pela
própria boa sociedade imperial alimentava a crença no poder da magia e do feitiço ao
descrever acusados de feitiçaria e de como eram capazes de atingir a classe senhorial.
Esse é o assunto do capítulo 4, Feiticeiros como personagens de romances no Segundo
Reinado”.
No capítulo 5, “Um jornal, vários feitiços, feiticeiros e seus clientes, em
Salvador” organizamos em subtítulos as notícias acerca da crença no poder da magia e
da feitiçaria na cidade de Salvador, a partir da década de 1860. Tais notícias são
fornecidas pelo jornal soteropolitano O Alabama, e denunciam práticas e praticantes do
“candomblé” a partir de uma série de acusações morais contra estes, entre os anos de
1862 e 1870.
22
Os autores das notícias pediam providências de autoridades públicas
contra os “rituais de negros africanos e escravos”, com seus batuques e suas “crenças
incivilizadas”. Tais como as do jornalista que descreveu as aparições de Pai Gavião,
àquelas narrativas trazem informações diversas acerca do uso de objetos específicos
para fazer “feitiços”, quem procurava os “feiticeiros” e quem seriam estes.
A partir destes dados procuraremos demonstrar como no mesmo período, não
somente no Sudeste, mas também na cidade de Salvador, as acusações de feitiçaria
escaparam da abertura de processos criminais especificamente destinados ao crime da
feitiçaria, mas estavam presentes no cotidiano. Os autores das notícias de O Alabama,
inclusive, fazem uso de vocabulário dos “terreiros” para promover acusações de
feitiçaria, porque acreditavam no poder da magia e da feitiçaria dos acusados.
23
Nos
22
Algumas das referências a O Alabama serão retiradas de material localizado no CEDIG/UFBA,
digitalizados em CD-ROM por Carlos Eugênio Líbano Soares, a quem agradecemos a viabilização deste
processo. As demais estão micro-filmadas, no Instituto Geográfico-Histórico da Bahia, doravante IGHB,
em Salvador. Agradecemos a João José Reis, Luis Nicolau Parés e Dale T. Graden por ter nos dado a
referência de vários exemplares de O Alabama.
23
Referências centrais para analisarmos o perfil da forma de tratamento que O Alabama deu ao
“candomblé” e à crença no poder da “feitiçaria” são: Dale T. Graden, “‘So much superstition among these
people!’: Candomblé and the dilemmas of Afro-Brazilian intellectuals, 1864-1871”, in H. Kraay (org.),
Afro-Brazilian culture and politics, Armonk, London, ME Sharpe, 1998, pp. 57-73; João José Reis,
“Candomblé in nineteenth-century Bahia: priests, followers, clients,” in Slavery & Abolition Special
Issue: Rethinking the African diaspora (The making of a black Atlantic world in the bight of Benin and
23
apoiamos nas diversas discussões historiográficas acerca da crença na magia e na
feitiçaria em Salvador. As análises desses autores nos ajudam a analisar quais eram os
elementos da vida social que sustentaram, em Salvador, a crença no poder da magia e da
feitiçaria narradas por O Alabama. Isso foi o que fizemos no capítulo 6, “Navegando
nos mares do candomblé a bordo de O Alabama: acusações de feitiçaria em Salvador,
1863-1871”.
Brazil), v. 22, n. 1, april 2001, pp. 116-134 e Luis Nicolau Parés, A formação do Candomblé: história e
ritual da nação jeje na Bahia, Campinas, Editora da UNICAMP, 2006.
24
Capítulo 1
Acusações de feitiçaria na Corte: o caso de Juca Rosa
O que se segue é a narrativa da história de José Sebastião da Rosa, mais
conhecido como Juca Rosa, acusado de feitiçaria no início da década de 1870, na Corte.
A partir dessa história, analisaremos como uma conduta não criminalizada pelo Código
Criminal do Império foi julgada pelo Estado. Analisaremos também quais foram as
condições sociais que permitiram a criminalização do caso. Nosso argumento é o de que
o processo criminal foi aceito pelo Estado porque a crença no feitiço, no poder de um
acusado de praticar o mal através de meios mágicos, afetava pessoas de todas as classes
e o próprio aparato judicial. O caso de Juca Rosa mostra ainda que os rituais que ele
praticava exerciam um fascínio sobre a sociedade de um modo geral. Todos os
envolvidos no processo jurídico acreditavam no poder mágico de Juca Rosa.
1.1 O medo dos feitiços de Juca Rosa: uma ameaça às esposas da boa sociedade
imperial
Tomamos conhecimento do caso de Juca Rosa através da tese de Sampaio, na
qual, analisando o processo criminal instaurado contra Juca Rosa, concluiu que as
acusações foram aceitas pela justiça porque a sociedade da época vivia, na Corte, em
um clima de tensão política. Esse clima era determinado pelas discussões acaloradas de
grandes proprietários de escravos sobre o final definitivo ou gradual da escravidão no
Brasil, que vinham fazendo parte da cena política nacional desde 1865, juntamente com
a Guerra do Paraguai. Além disso, autoridades públicas da Corte estavam, a cada dia,
mais intolerantes em relação às pessoas envolvidas com a prostituição e o lenocínio, e
achavam que era necessário destruir tais práticas. Era preciso, assim, perseguir essas
pessoas que praticavam o lenocínio e a prostituição e tirá-las de circulação para ajudar o
país a se civilizar.
24
Muitas pessoas de poder na Corte identificaram em Juca Rosa, supostamente
filho de mãe africana e, com certeza homem livre, segundo Sampaio, um perigo para a
moral social. alguns anos ele liderava uma espécie de “seita”, nas cercanias da
24
Sampaio, A história do feiticeiro Juca Rosa.
25
Secretaria de Polícia, na Corte, da qual faziam parte mulheres de todas as posições
sociais, e alguns poucos homens.
Como uma pessoa ligada à África, de modo tão intenso, poderia ter tanto poder
na sociedade da Corte, e ainda por cima envolver-se com a prostituição não somente
agenciando mulheres mais pobres, como até mesmo relacionando-se intimamente com
outras de melhor posição social? Essa foi a questão central que nos fizemos para
interpretar o fato de Juca Rosa, depois de muitos anos exercendo atividades mágicas e
“praticando feitiçarias” bem conhecidas na Corte, ter sido processado. Sampaio
interpretou o fato de Juca Rosa ter sido processado naquele ano de 1871 porque se
tratava de um momento de crise política. Reforçando a tese de Sampaio, lançamos mão
da interpretação de Douglas, uma das autoras que estabeleceu a relação entre o aumento
do número de acusações de feitiçaria e as crises políticas nas sociedades que nela
acreditam.
25
A autora buscou entender as condições políticas desse fato, que permitiam
o recrudescimento das acusações bem como as suas conseqüências. Além disso,
demonstrou que é necessário, para seguir esse método de pesquisa, saber quem acusa
quem?
Sampaio, não somente na tese, como também em outros artigos sobre o caso de
Juca Rosa, articula dois argumentos sobre o poder que a ele atribuíam pessoas da Corte.
Primeiro, Juca Rosa estaria desenvolvendo ações mágico-religiosas ligadas à África, na
Corte – como o culto aos ancestrais. Depois, ele atenderia às demandas e aos desejos de
pessoas de diversas classes sociais ao garantir um algo a mais para que elas
conseguissem atingir seus objetivos. As pessoas, segundo a autora, procuravam Juca
Rosa porque queriam, por meio de seus “famosos poderes de feitiçaria”, ser curadas,
trazerem de volta um amante, conseguir mais dinheiro, ou vingar-se de alguém.
Seguindo os passos de Sampaio e com a pergunta que não queria calar ao ler as
suas interpretações do caso, voltamos ao Arquivo Nacional e lemos o processo criminal
e o pedido de apelação feito por Jansen Júnior, advogado de Juca Rosa. Nossa idéia era
entender quais eram as artimanhas de Juca Rosa, um alto e atraente “homem de cor
preta”, segundo vários depoimentos, para exercer tamanho fascínio sobre aquelas
pessoas, e como a crença na feitiçaria era socialmente sustentada. Quais eram, ao fim e
25
Mary Douglas, “Introduction: thirty years after Witchcraft, oracles and magic”, in Mary Douglas (ed.).
Witchcraft confessions and accusations, London, Tavistock Publication, 1970, pp. xii-xxxviii. Seguindo
a idéia de que as acusações de feitiçaria ocorrem entre grupos adversários políticos, ver, também, Max G.
Marwick, “The sociology of sorcery in a central African tribe”, in John Middleton (ed.), Magic,
witchcraft and curing, New York, The American Museum of Natural History, 1967, pp. 101-126.
26
ao cabo, os elementos da vida da Corte que explicariam a crença na magia e as
acusações de feitiçaria feitas contra Juca Rosa? Para respondermos a essa questão,
resumiremos o caso e, em seguida, o analisaremos.
26
José Sebastião da Rosa era réu do processo iniciado no dia cinco de julho de
1871, no Tribunal do Júri da Corte. A acusação havia sido feita por um anônimo,
através de carta veiculada no Diário de Notícias, jornal de grande circulação na Corte,
levando à abertura do processo criminal contra José da Rosa, sob a acusação de
estelionato. José, acusado pelo autor daquela carta-denúncia de “nefando feiticeiro”,
dizia, segundo o mesmo e as testemunhas no processo, fazer coisas através de
“feitiçaria”, como curar feridas e moléstias e trazer de volta amantes.
27
Por trás de toda a denúncia havia a clara referência ao envolvimento do réu,
mencionado no processo por ser “notoriamente mais conhecido por Feiticeiro Juca
Rosa”, com mulheres – leiam-se as “esposas” – de importantes figuras do cenário
político da Corte. Por isso mesmo, Juca Rosa afirmou em seu depoimento “ter
testemunhas a apresentar em seu favor (...) mas seria impossível conseguir isso delas”.
28
“Mulheres de espírito fraco” eram as “vítimas de Juca Rosa”, dizia a denúncia anônima.
Elas iam procurá-lo com o fim de curar sentimentos amorosos ou “quando deseja(vam)
o mal de um inimigo”. Juca Rosa, segundo a denúncia, era “feiticeiro capaz de tudo
fazer” e, quando a moça lhe agradava “preferia as brancas e pardas, desprezando em
geral suas parceiras pretas” era inserida em um “ritual” de iniciação para tomar parte
de sua “seita”. Neste “ritual”, Juca Rosa tornava-se “senhor da alma e do corpo da
moça”, e, também, “servia-se com satisfação de sua brutal sensualidade”.
29
Assim, o
“Feiticeiro Juca Rosa” recrutava as moças a quem passava a chamar de “filhas”.
O mesmo jornal passou a noticiar as informações relativas ao processo contra
Juca Rosa um mês depois de ter publicado um folhetim sobre os “perigos dos pretensos
26
Construímos essa narrativa do caso de Juca Rosa consultando o processo jurídico localizado no
Arquivo Nacional (doravante AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu José Sebastião da Rosa, maço
196, caixa 11139, número 1081, galeria C, ano 1871) e os seguintes textos de Sampaio, A história do
feiticeiro Juca Rosa. Da mesma autora, “Pai Quilombo, o chefe das macumbas do Rio de Janeiro
imperial”, in Tempo, n. 11, pp. 157-169 e Tenebrosos mistérios: Juca Rosa e as relações entre crença e
cura no Rio de Janeiro Imperial”, in Sidney Chalhoub e outros, Artes e ofícios de curar no Brasil,
Campinas, Editora da UNICAMP, 2003, pp. 387-426. Outras informações acerca do ambiente social da
Corte na época, envolvendo narrativas da elite letrada sobre magia e feitiçaria”, podem ser encontradas
em outro recente texto da autora: “Majestades do oculto”.
27
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871.
28
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 63.
29
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871.
27
médicos do corpo e do espírito”. O folhetim intitulava-se “Os feiticeiros na Corte”, e
dizia que eles, “já que tinham livre acesso a muitas casas de família”, “profetizavam
desgraças” e “enganavam facilmente as mulheres”.
30
mais informações acerca da vida de Juca Rosa, em fragmentos de
depoimentos ao longo do processo judicial, como o de Felicidade Perpétua de Jesus que,
no dia 26 de novembro, afirmou ter tido um filho com Juca Rosa. Dessa relação nasceu,
em 21 de março de 1864, um menino chamado Bento que fora batizado na Matriz do
Santíssimo Sacramento, tendo como padrinhos Antonio José Severino e Adelaide Joana
da Silva, mãe de Felicidade. A depoente afirmou estar separada de Juca Rosa cinco
anos, pois “era voz geral do povo que não era bonito que ela (...) com a cor que tem ser
casada e viver com homem de cor preta como ele seu marido”. No tempo em que
viveram juntos, Juca era alfaiate, “trabalhando para a loja denominada “Profeta””.
Segundo seu depoimento, soube no dia anterior, “por intermédio de seu amásio pai de
seus filhos”, “que seu marido se achava preso por ser macumbeiro ou feiticeiro”.
31
Continuemos com trechos de outros depoimentos.
O alfaiate Jacinto Luiz Pereira, em três de dezembro, afirmou que ele, Felicidade
e Juca viviam na mesma habitação até 1852, no número 51 da Rua das Flores. Somente
após aquele ano, com 20 anos de idade, é que “Rosa começou na vida de feitiçaria”.
32
Entre os anos de 1853 e 1855, Juca Rosa havia sido criado por certo senhor Mateus da
Cunha, que inclusive forneceu declaração, anexada ao processo, afirmando que o
acusado havia tido “fidelidade, humildade e exemplar comportamento”.
33
Através do
depoimento de João Maria da Conceição, de 19 de novembro, sabemos que Juca exercia
a “feitiçaria” pelo menos desde 1861, e que havia “casado pelo rito católico romano”
com Felicidade, mas depois “casou-se com uma mulher branca portuguesa (...)
conhecida como Mariquinhas da Europa, casamento que se diz ter feito conforme os
termos de que usam no “gongá””.
34
São inúmeras as referências das mais diversas testemunhas sobre o
envolvimento de Juca Rosa com mulheres, principalmente suas “filhas”, nos “rituais”
30
Sampaio, “Tenebrosos mistérios”, pp. 389-390.
31
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 24.
32
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 41.
33
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 76.
34
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 7.
28
por ele organizados. Sobre este assunto, a denúncia anônima citou Juca Rosa pelo crime
de “defloramento” das tais “filhas”.
O Jornal do Commercio, tal como o Diário de Notícias, também de grande
circulação na Corte, publicou notícia sobre esse assunto, no dia 20 de novembro. O
texto dizia que Juca Rosa “soubera criar uma posição importante em um círculo de
mulheres, cujo número aumentava quase diariamente”. Segundo a notícia, ele conseguia
isso “usando práticas sacrílegas, apelando ora para a religião, ora para ridículas e
estúpidas feitiçarias”. A “organização de uma espécie de associação” estruturada por
Juca Rosa girava em torno “da ignorância dessas mulheres, algumas de cor branca,
outras de cor parda, e do exaltamento de seu espírito”. Quando “prestavam juramento de
dedicação e fidelidade”, continuava a notícia, “as filhas” eram “sujeitadas como
escravas” por Juca Rosa, o “cínico aventureiro” que, dentre outros “fatos criminosos”
que supostamente havia cometido, teria “deflorado” algumas delas.
35
1.2 – O depoimento de Juca Rosa
Juca Rosa depôs em 20 de novembro de 1870, interrogado pelo delegado Miguel
José Tavares. Respondeu ter nascido no Rio de Janeiro; estava com 38 anos de idade,
era alfaiate e morava no número 216 da Rua Senhor dos Passos. De saída, Miguel
Tavares lhe perguntou sobre o uso que fazia dos “objetos de feitiçaria” encontrados na
residência de uma de suas “filhas”, Henriqueta Maria de Mello, no número 135 da Rua
Larga de São Joaquim. Juca Rosa afirmou que estavam relacionados à sua “crença”, e
eram utilizados em casos de “enfermidade ou dificuldade no correr da vida (...) em
auxílio a qualquer de seus amigos que lhe iam procurar sem lhe pagarem nada por
isso”.
36
Tal resposta levou Miguel Tavares a emendar a seguinte pergunta: mas, afinal,
quem eram estas pessoas, e para que fim e em que época procuravam Juca Rosa?
Uma delas era Rodrigo Militão de Souza, que com sua mãe foi procurar o
acusado “para ser curado de um inchaço no braço”. Embora não tivesse dito que
“conseguiria curá-lo, posto que não fosse Deus”, mesmo assim Juca Rosa tentou,
utilizando “óleos e ervas socadas”. Mas, como Rodrigo Militão tentara “seduzir
Marcolina, sua amásia”, o combinado havia sido desfeito. Um outro a lhe procurar fora
35
Sampaio, “Tenebrosos mistérios”, pp. 390-392.
36
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 11.
29
um tal Augusto, escravo do dr. Duque Estrada Teixeira que, segundo informações de
Sampaio, era deputado do Partido Conservador, que votou contra a Lei do Ventre Livre.
Havia lhe pedido “remédios para uma quebradura”. O escravo “tentou seduzir
Maximiniana”, outra de suas “amásias”, e nada foi resolvido. Por sua “adoração à Nossa
Senhora de Santa`Ana”, de quem era devoto, “diversas mulheres, de todas as cores”
freqüentam sua casa, “para por meio de feitiçarias responder a consultas”, às quais
“sempre recusou prestar-se”.
37
Segundo Miguel Tavares, Juca Rosa havia viajado para a província da Bahia,
levando consigo “diversas jóias”, que vendeu, “sobrando-lhe somente um relógio”. O
delegado queria saber, então, como estava sobrevivendo, desde a sua volta, “se todos os
seus conhecidos são unânimes em afirmar que muito tempo vive sem emprego, nem
trabalho”?
Juca Rosa afirmou possuir um “padrinho chamado Augusto José de Carvalho
(...) que lhe deu 800 mil réis, com os quais tinha subsistido”. Na Bahia, vendeu os
seguintes objetos: “um anel de topázio, um alfinete de pedra branca, uma pequena
corrente de relógio e duas abotoaduras”. Tudo isto por 35 mil réis.
Seu envolvimento com “mulheres de todas as cores” foi o assunto que dominou
o interrogatório conduzido pelo delegado Miguel Tavares. Este quis saber como
explicaria o fanatismo” destas mulheres por ele, “a ponto de escreverem(-lhe), quase
na mesma data, apaixonadas e revelando certa filiação com espíritos desconhecidos”.
Juca Rosa respondeu, simplesmente, que “não sabia”. O delegado insistiu no tema,
querendo esclarecimentos sobre a sua relação com Maria Rosa de Mello, moradora no
número 226 da Rua do Hospício e esposa do falecido José Feliciano de Mello. Juca lhe
explicou que sempre freqüentou essa casa quando Maria Rosa encontrava-se doente,
“sem nunca ter recebido por isso”. Outras mulheres continuavam a lista de perguntas do
delegado, bem como o grau de envolvimento de Juca Rosa com elas: se “conhecia
Francisca Feliciana de Souza” e se a havia lançado à prostituição”, se “havia deflorado
Maximiniana de Jesus”, bem como “Angélica Lucinda Borges”, “caso as conhecesse”,
se “conhecia Hansina Rosa da Conceição”, se “teve relações com Maria Thereza”,
“conhecida como Mariquinhas da Europa”, tendo “casado com ela em um certo rito
africano”?
37
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 11.
30
Juca Rosa ofereceu respostas para cada um destes supostos envolvimentos.
Afirmou que conhecia Francisca Feliciana de Souza por tê-la “protegido o quanto
pode”, uma vez que houvera conhecido sua mãe. Chegou a morar com Feliciana, mas
sem ter “responsabilidade por qualquer ofensa à sua honra”. Conheceu Maximiniana
Maria de Jesus, tendo “relações com ela quando estava perdida”, o mesmo
acontecendo com Angélica Lucinda Borges. com Hansina Rosa da Conceição, apesar
de conhecê-la, não teve relação alguma. Maria Thereza, Mariquinhas da Europa, era sua
conhecida desde a “ocasião em que foi madrinha de um filho seu”. Com ela, “entreteve
relações”, mas “não se casaram em qualquer tipo de ritual africano”. Certa época
arranjou “algumas pessoas para terem relações com ela”.
Esta última resposta de Juca Rosa fundamentou a suspeita do delegado Miguel
Tavares, durante todo o processo, de seu envolvimento no crime de prostituição de
mulheres. Este tipo de acusação constava da denúncia anônima contra Juca. Sobre
este fato, outros dados foram fornecidos ao longo do processo. Juca Rosa chefiaria uma
“seita”, repleta de “adeptas”. Juca teria “adeptas”, e não adeptos! Das “adeptas” que
eram ainda “filiadas à seita”, cobraria uma espécie de mensalidade no valor de 60 mil
réis. De todos os que o procuravam para “trabalhoscobrava “por volta” de 40 mil réis.
Quando de um sucesso de “cura” ou de “segurar” ou “trazer de volta marido ou
amante”, recebia “presentes” de “suas filhas”, como “jóias”. As “filhas” de Juca Rosa,
principalmente, bem como “outras pessoas que o conheciam”, “pessoalmente ou por
ouvir falar”, chamavam-lhe pelo nome de “Pai Quilombo”.
Vamos aos depoimentos de algumas dessas filhas”, durante o processo-
criminal.
1.3 – As “filhas” de Juca Rosa
A primeira delas, por ordem das que foram interrogadas após a prisão de Juca
Rosa, foi Henriqueta Maria de Mello, também conhecida por Júlia. Natural do Rio de
Janeiro, com 38 anos de idade, solteira, moradora no número 135 da Rua Larga de São
Joaquim, trabalhava como “costureira”. Após ser apresentada a uma “fotografia” de
Juca Rosa, respondeu ao delegado Miguel Tavares, que havia lhe perguntado sobre seu
envolvimento com o acusado, que o “conhecia”. A fotografia era de Juca Rosa, “a quem
em tais trajes os da fotografia viu uma vez numa reunião no Engenho Novo e na
noite de 14 para 15 de agosto do ano corrente, em casa dela interrogada, véspera da
viagem que Juca Rosa fez à Bahia”. Nesta “reunião”, Henriqueta afirmou que também
31
estiveram presentes Mariquinhas, Leocádia, Marcolina, “e uma crioulinha por nome
Maria”. Henriqueta deu ao delegado o endereço de cada uma delas: Mariquinhas
morava no número 73 da Rua de São Diogo, Leocádia morava no 134 da Rua do
Lavradio, Marcolina à Rua das Flores e a “crioulinha Maria” em um dos quartos do
comendador José Luiz Alves.
Henriqueta afirmou que era “filiada da mesa ou reunião da qual é Rei José
Rosa”, com “grande número de mulheres filiadas”. Para ter sua filiação aceita, “prestou
juramento sobre um copo com água de guardar o segredo necessário para tudo quanto se
passava em tal associação”. Ela andou vendo muitas filiadas darem “dinheiro amiúdas
vezes a Rosa”. Além disso, sabe que ele faz casamentos e batizados segundo o rito por
ele inventado, mas que nunca assistiu”. Rosa “se dizia ser casado” com Mariquinhas da
Europa, e que esta lhe obedecia cegamente, devido ao seu poder”. Reconheceu que
“todos os objetos apreendidos pela política pertenciam a Juca Rosa, que lhe pediu para
guardá-los antes de ir para a Bahia”.
38
Ao processo foram anexadas duas cartas suas para Juca Rosa. Abaixo, segue-se
a transcrição de ambas.
Querido Juca. Muito hei de estimar que esta te achar melhor de teus incômodos,
enquanto eu ao escrever-te me acho bastante doente de meus olhos; desde o
momento que daqui partiste tenho lutado com a doença, e com algumas faltas,
razão pela qual não te posso enviar o que desejava. Recebi a tua carta datada de 24
de agosto do passado, onde me comunicas os teus sofrimentos de viagens, e depois
que chegaste, tudo isto eu já previa pelo teu sofrimento, e pela falta de
embarcares, porém, meu amigo, tem paciência e sempre em Deus e nas almas
que eles serão sempre em teu favor; se ansioso estava por ter notícias minhas, eu
não menos por ter tuas. Lalá fica um pouco incomodada (?), Manduca, Justina e
Mariquinhas, e toda a tua gente, ficam bons. Acusa-me, na tua carta, enviar-me
uma encomenda a D. Mariquinhas e outra a Lalá, cujas eu não recebi, não quero
aconselhar-te pois não tenho suficiência para tanto, unicamente dou o meu parecer,
dizendo-te que o melhor era voltar do que ir para frente pois sei o que é estar em
terra estranha sem dinheiro pois como sabes é mola real (?) de todas as coisas
porém como homem de juízo que assim o tem mostrado fará o que quiser (.) desde
que partiste os meus sonhos para contigo tem sido bastante cruéis por isso que eu e
nossos dois filhos temos rogado a Deus para que todos sejam ilusões (.) remeto-te
20 mil réis e talvez se não voltares te possa enviar mais alguma coisa pois como te
disse não tenho dinheiro senão em dezembro e peço que rogues a Deus ao Sr. Do
Bonfim pelos meus olhos tendo cumprido sempre com as tuas ordens e espero
continuar a cumpri-las. Da D. Vicência não recebi senão uma carta a qual remeto-
lhe recomendações do Tenente (,) de D. Mariquinhas(,) de teus dois filhos e de
todos os nossos conhecidos(.) no mais receba o coração saudoso de tua Henriqueta
que ansiosa espera tua volta.
38
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 5.
32
Rio de Janeiro, 1
o
. de setembro de 1870.
39
Querido Juca. Estimo que esta te achar gozando de saúde, enquanto eu estou
quase boa de meus olhos. Recebi a tua carta data de 28 de setembro, e muito
satisfeita fiquei por teres ganho tanta simpatia dos baianos (...). Ainda não me
mandaste dizer se recebestes os 20 mil réis que lhe mandei pelo correio; mandaste-
me pedir notícias de Marcelina, está boa e Angélica está no Andaraí com
Mariquinhas, pois tem passado muito mal, ainda não veio depois que partistes;
nada mais tinha a participar-te. Aceite lembranças de nossos filhos e também de
Juventina, e de mim o coração cheio de saudades, não te posso ser mais extensa,
porque o pequeno está empregado como sabes, não tenho outra pessoa que escreva.
Tua obrigada e amiga
Henriqueta.
40
Maria Thereza Ferreira, conhecida por Mariquinhas da Europa, depôs em 27 de
novembro de 1870, poucos dias após a prisão de Juca Rosa e da apreensão dos “objetos
de feitiçaria”, na casa do mesmo. A seguinte carta lhe foi apresentada pelo delegado:
Corte, 21 de setembro de 1870.
Ilustríssimo Senhor Juca Rosa.
Estimei que ao receber esta, lhe encontrar no gozo de perfeita saúde, e
melhoramento de sua enfermidade, e quanto à nossa é assim como Deus quer, que
eu sofra dos negócios meus. Participo-lhe que eu recebi a sua primeira, com data de
25 de agosto, e logo lhe respondi incontinentemente, e a segunda, escrita de (novo)
de setembro, a 16 do corrente, que é esta que lhe respondo, e me entristece muito
em saber que o senhor ficara doente e também falto de recursos para suas despesas.
Henriqueta mostrou-me uma carta, e a respeito do que pede, eu não tenho que
possa mandar, pois que a ocasião é imprópria por motivos muito fortes, que tenho a
fazer, que o senhor não ignora; e nem precisava mandar lembrar porque negócios
seus eu nunca me esquecerei dos deveres que prometo, fico bastante sentida em
não poder ser, como tenho sido sempre; mas fiada em Deus eu serei ajudada para
outra viagem lhe poderei ser constante; o sentimento que tenho é que o senhor não
lê as cartas, senão lhe mandaria dizer o que tenho passado, e se o senhor mandasse-
me dizer o que devo fazer, ou por outra me ordenasse, eu lhe seria grata, mais do
que tenho merecido; pedi ao senhor Quincas para me escrever, e eu então peço que
me responda assim que receber essas linhas que lhe transporto de coração. No mais
peço que mande dizer o que devo fazer a respeito do nosso negócio pois a preta
ainda não apareceu, nem notícias; participo-lhe que Angélica está um mês
quase comigo, e está doente da espinha dorsal, e sentiu-se bastante em saber dos
seus infortúnios. Senhor Juca eu fiada... Espero que responda-me assim que receber
estas linhas para alívio do meu espírito, e governo do meu coração. (Aceite)
lembranças de Angélica, de Bernarda e de Maria, e de quem lhe é firme, e será até
a existência como sua veneradora, obrigada.
Maria Thereza Ferreira.
41
39
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 22.
40
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fls. 20-21.
41
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 20.
33
Em seguida à leitura dessa carta Mariquinhas afirmou que não a havia
endereçado a Juca Rosa. Mas quem teria sido o autor da “falsificação”, quis saber o
delegado? Mariquinhas respondeu que aquela não era a sua letra e que, ainda, não
atribuía aquela “falsificação” a “pessoa alguma”. Sobre “retratos” seus achados em
posse de Juca, respondeu que “não sabia como estavam com ele”, uma vez que “não o
conhecia”. Apenas “há oito anos tem ouvido falar dele”. “Não queria proteger
ninguém”, mas “não podia impedir que a seu respeito se dissesse tudo quanto
quisessem”. O delegado, então, disparou a pergunta final a Mariquinhas, que,
adiantamos, negou todas as insinuações de que conheceria Juca Rosa: “como é que Juca
Rosa confessou ter relações com ela, ter ido mesmo a sua casa e até ido, no dia 14 de
agosto daquele ano, véspera de sua partida para a Bahia, jantando nessa mesma casa e, à
noite, ter com ela estado toda noite na casa 135 da Rua Larga de São Joaquim?”.
42
Leopoldina Fernandes Cabral prestou depoimento em 22 de novembro de 1870.
Afirmou ser baiana, com 23 anos de idade, e solteira. Disse ao delegado que havia
procurado Juca Rosa pela primeira vez em 1868, pois queria “garantir a exclusividade
sobre certo amante”, pelo qual “estava apaixonada”. Foi procurar Juca seguindo os
conselhos de Mariquinhas da Europa, sua “amiga”. Quando chegou ao sobrado à Rua da
Alfândega, contou sua angústia a Juca Rosa, que lhe “cobrou 30 mil réis pela consulta”.
No dia seguinte, por “ordem” de Juca, deveria participar de uma “cerimônia”, em uma
casa à Rua Larga de São Joaquim conforme lhe indicou sua amiga Mariquinhas.
Possivelmente, tratava-se da casa de Henriqueta, que morava no número 135 daquela
rua.
Após a “cerimônia” na qual Juca deu-lhe “uma raiz para trazer consigo no
pescoço, no seio e na boca” Leopoldina “jantou” com os participantes, e “pagou a
Juca mais 30 mil réis”. Esse lhe disse que “deveria pagar 60 mil réis mensais”, além de
se tornar “uma de suas filhas”, para que conseguisse “atingir os fins que queria”.
Segundo Mariquinhas, Leopoldina “deveria ser amasia de Juca” para, tal como ela, “se
tornar uma de suas filhas”. Neste mesmo quesito, Juca lhe “aconselhou conservar o seu
corpo de modo a atrair todos os homens e fazer que aquele que então era seu amante lhe
desse tudo que quisesse”.
42
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 26. Ver, também, Sampaio, “Pai Quilombo, o chefe das macumbas do Rio
de Janeiro imperial”, pp. 158-159.
34
Após algumas consultas com Juca, Leopoldina deu-lhe o veredicto: “disse a ele
que se seu amante Eduardo, que era oficial da Marinha, não voltasse, não lhe daria mais
nada”. E, como “de fato seu amante não voltou”, “ela não lhe deu mais dinheiro”. Juca,
após Leopoldina ter “rompido” com ele, foi procurá-la “diversas vezes” no Hotel
Bordeuax, onde morava vale ressaltarmos que esse hotel era nome freqüente na lista
dos lugares apontados por médicos da época como sendo moradia de prostitutas. Deste
modo, segundo afirmou a testemunha, Juca Rosa não conseguiu “dinheiro como tudo
quanto quis com a ameaça de reduzi-la à desgraça e fazê-la acabar seus dias em um
hospital, se ela não se prestasse a seus desejos de concupiscência”. Para se resguardar de
possíveis “novas rupturas” de Leopoldina, Juca, segundo ela, havia afirmado que “se o
fizesse ele com o espírito que dominava para o bem assim como para o mal faria com
que ela fosse desgraçada e acabasse no Hospital da Misericórdia”. Assim ela continuou
se relacionando com Juca, “de corpo e espírito”.
Leopoldina afirmou que, no total, “gastou 250 mil réis com as exigências de
Juca Rosa”, incluindo nesta contabilidade “15 mil réis para compra de ervas e raízes
para banhos que deveriam ser tomados em uma casa no Engenho Novo”. Apesar de
afirmar que não havia tomado os banhos de ervas” recomendados por Juca, “deu esses
dinheiros a ele porque receava que lhe fizesse algum mal com o poder que dizia ter”.
Em seu depoimento, afirmou que ouviu de Mariquinhas comentários referentes ao fato
de gastar muitos recursos” financeiros com Juca Rosa; sua amiga “havia empenhado
suas jóias para mandar a José Rosa que se achava na Bahia e sem recursos”. Ouvia dizer
também que ele, “por seus atrativos”, estava “muito bem de fortuna ou dinheiro desde
que havia voltado da Bahia”.
43
Emília Carolina de Mascarenhas, natural do Rio de Janeiro, com 28 anos de
idade, solteira, costureira, moradora no número 9 da Rua de Santo Antonio, depôs em
22 de novembro. Afirmou que conhecia Juca Rosa, mas somente de nome. Apesar de ter
sido convidada” por “Paulina de Tal”, nunca foi à casa de Juca. “Ouviu dizer” que ele
“tinha o poder como Deus”, mas “que nunca acreditou”. Não aceitou os convites
também “porque se dizia que o dito Rosa era amante de todas as mulheres que a ele se
filiavam”.
44
43
Para informações acerca de Leopoldina, ver além do processo criminal, Sampaio, “Pai Quilombo, o
chefe das macumbas do Rio de Janeiro imperial”, pp. 160-165.
44
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 38.
35
O delegado Miguel Tavares informou a Emília que uma “fotografia” sua havia
sido “encontrada pelos policiais com os objetos de feitiçaria” apreendidos onde Juca
Rosa morava. A foto foi “trazida e mostrada à depoente”, que afirmou tê-la “dado de
presente a Mariquinhas, mais ou menos quatro anos”. Em seguida, ela “confessou,
com pesar, que deu o seu retrato a Juca Rosa porque este lhe o pedira”. Após saber dos
“poderes” dele em assuntos amorosos, consultou-se para poder “conservar a estima de
um homem com quem então vivia”. Gastou com as consultas “cerca de 200 mil réis e
algumas jóias”, “sem colher o menor resultado”. Chegou a ser uma de suas “filhas”, das
quais “Rosa queria gozar” e “gostava de receber presentes”. E sobre elas, Emília ainda
afirmou que “Juca Rosa convidava a diversas filhas suas para fins ilícitos, segundo elas
próprias diziam, e que quando elas não cediam a entregar-lhe o corpo ele as ameaçava
com desgraças que dizia poder atrair para elas”. A ela, “não fez Rosa esse convite”.
Após romper com Juca Rosa, foi por ele ameaçada de “ficar abandonada no amor”, fato
que, apesar de “pouco crédula”, não deixou de ficar “impressionada” por “ter sido
abandonada pelo homem com quem vivia”. Disse que foi “consultar” Juca por mais
uma vez, para “tentar recuperar seu amante”. Mas, como aquele “havia pedido uma alta
quantia em dinheiro”, mais uma vez Emília “afastou-se das reuniões”.
45
Generosa Clementina de Campos, 20 anos de idade, costureira, natural do Rio de
Janeiro, depôs em 26 de novembro. Ao “saber por sua amiga Paulina dos poderes de
cura de Juca Rosa”, foi “procurá-lo por causa de um malefício”, “ferida de mau caráter
na canela”, supostamente causada por um “tal Luiz Bento”, “também um feiticeiro”. Foi
à Rua da Alfândega, onde Juca Rosa lhe “pediu 70 mil réis para curar a ferida”. Após
“vender alguns objetos” pessoais, conseguiu entregar a Juca “30 mil réis”. Ele, então,
iniciou o “tratamento”, colocando na ferida “azeite de dendê fervente junto com uma
erva”. Somente numa “segunda consulta” Generosa conseguiu “ficar curada”.
46
Ela “procurou” Juca Rosa “mais uma vez”, para “fazer voltar a sua casa um
moço que dela se tinha retirado, e cuja falta para ela era terrível”. Juca não a “atendeu”,
muito menos pediu quantia alguma em dinheiro”. Não bastando esta recusa, Generosa
“descobriu que o tal Luiz Bento era freqüentador da casa de Juca”.
Em seu depoimento, Generosa ainda afirmou que Juca Rosa e Mariquinhas da
Europa “eram casados segundo os rituais de feitiçaria”. Sabia que José Rosa afirmou
45
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 38.
46
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 46.
36
que “se ela, [Mariquinhas] vivia em mancebia com um homem com quem estava, isso
se devia a seus trabalhos de feitiçarias”. Ela mesma havia ouvido Mariquinhas dizer que
“se ainda vivia com esse indivíduo devia-o a José Rosa porque o tem amarrado”.
47
Vamos, agora, aos depoimentos dos poucos “filhos” de Juca Rosa, que
depuseram no processo criminal.
1.4 – Os “filhos” de Juca Rosa
Henrique D´Azurar, natural do Rio de Janeiro, com 22 anos de idade,
negociante, morador no número 118 da Rua do Riachuelo, depôs em 28 de novembro.
Afirmou que conhecia Juca Rosa, “porque foi ele a causa de abandonar uma amante que
tinha ele por nome Leocádia de tal”. Segundo Henrique, sua amante “vivia
constantemente” na casa de Juca. Como não tolerou “essas relações” entre os dois,
“abandonou-a”. Descobriu que “parte das quantias que dava à dita Leocádia ela dava-as
ao acusado Rosa”. Este era “dado à prática de feitiços e, prometendo o curativo pronto
ou a volta de algum amante que se retirava, percebia dinheiro das pessoas que a tal
respeito o consultavam”. “Descobriu” também que Juca Rosa e Mariquinhas da Europa
eram “padrinhos de um filho ou de uma filha de Leocádia”, “batizado na mesa”, isto é,
“[n]a parte do chão em que estão colocadas as ervas [e os] vidrinhos e mais objetos
necessários para as cerimônias”.
Henrique havia ficado doente e, ao procurar Leocádia na casa de Juca Rosa,
soube que “o que ele tinha não era moléstia e sim trabalho ou coisa feita, o quer dizer
envenenamento”. Mas Henrique “estava convencido de que o que sofria era uma
bronquite proveniente de causas naturais”, embora um conhecido seu, Rodrigo Militão,
e outros “insistem em dizer-lhe também que o que sofria era um envenenamento de que
é autor era acusado, que para esse fim costumava a usar de uns pós e outros líquidos”.
De todo modo, Henrique morreu pouco tempo depois, acumulando dívidas protestadas
na justiça por pessoas incrédulas em sua morte.
48
Rodrigo Militão da Silva, 28 anos de idade, solteiro, natural do Rio de Janeiro,
afirmou “viver do comércio de folhas de flandres”. Em seu depoimento, disse que nas
“cerimônias” de Juca Rosa, compareciam por volta de “vinte e tantas a trinta mulheres”,
as quais Juca “denominava filhas”. Era considerado “filho por cortesia”, uma vez que
47
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 46.
48
Cf. Sampaio, A história do feiticeiro Juca Rosa, p. 88.
37
“não fizera o juramento a Juca”. Em 1868, foi “com sua mãe procurar Juca para curar
uma ferida” que ele tinha “no braço”. Foi “curado”, tendo Juca Rosa “pedido 30 mil réis
pelos preparos do curativo e pelos medicamentos”. Após este encontro, passou a fazer
parte da “irmandade” de Juca Rosa, bem como sua mãe, uma de suas “filhas”. Mas,
após “desentendimento entre Juca e sua mãe”, ficou por ele “proibido de ser recebido”.
Juca Rosa o ameaçava, afirmando que “era preciso que Militão vendesse sua casa de
negócio de funileiro, que havia ter um funesto resultado”. No entanto, Militão afirmou
ter “vendido seu negócio porque a matéria-prima necessária subiu de preço [e] os
fregueses desapareceram, e, para não perder tudo, vendeu-a salvar alguma coisa”.
Miguel Augusto Sarmento, 32 anos de idade, escrivão de paz do Primeiro
Distrito da Freguesia de Santana, solteiro, morador no número 79 da Rua do Sabão,
depôs em 28 de novembro. Afirmou ter sido “amásio de uma das filhas” de Juca Rosa,
Júlia Xavier. Por “força de sua profissão”, coincidiu de ter que “expedir uma intimação
pela quantia de 30 ou 40 mil réis (...) contra uma moça conhecida vulgarmente por
Mariquinhas da Europa, que morava à Rua do Sabão da Cidade Nova, número 99”.
Disse “à Júlia e à Leocádia que falassem para Mariquinhas pagar logo a dívida ao
credor”. Estranhava que “uma moça como ela bonita e requestada por homens de
fortuna que a tratavam com tamanha ostentação” devesse uma quantia pequena. Ambas
essas “filhas” responderam a ele que Mariquinhas era “casada no gongá com o acusado
Rosa e a ela dava o quanto ganhava e tinha”. Miguel ainda afirmou não saber “explicar
o que é casamento feito no gongá, [e] que apenas repetiu estes termos por ouvi-los”.
49
Ainda em seu depoimento, Miguel afirmou que conhecia Juca Rosa:
(...) de nome, já tendo visto uma fotografia igual à que se acha nos autos em poder
de uma moça por nome Júlia, que mora com Leocádia à Rua da Lapa, n. 71, ambas
as quais são dedicadas ao dito Rosa até o fanatismo acreditando-o dotado de um
poder sobre o natural capaz de inspirar paixões, tirar potência de qualquer
indivíduo, fazê-los adoecer e sucumbir a moléstias.
Por suas conversas com Júlia e Leocádia, sabia que “José Rosa exercia a
feitiçaria, prometendo fortuna ou realização de algum desejo e que para isso percebia a
maior soma que lhe poderia dar a pessoa que o consultava”.
50
49
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 24.
50
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 24.
38
1.5 – A condenação
Após apelar da decisão do primeiro julgamento e ao Imperador, Juca Rosa foi
definitivamente condenado em julho de 1871, pelo juiz João Alfredo Correia de
Oliveira, a seis anos de prisão pelo crime de estelionato. “Julga-se crime de estelionato”,
segundo o quarto parágrafo do artigo 264 do Código Criminal do Império, o qual serviu
de base para a sentença, “em geral, todo e qualquer artifício fraudulento pelo qual se
obtenha de outrem toda a sua fortuna ou parte dela, ou quaisquer títulos”.
51
A pena de
quatro anos de prisão era a de grau máximo, “com trabalho”, e mais a “multa de 20% do
valor das coisas sobre que versar o estelionato”.
52
1.6 – A Tese sobre Juca Rosa e a importância da leitura do processo jurídico
Como dissemos no início desse capítulo, nosso primeiro contato com a história
de Juca Rosa foi através da tese de Sampaio. A autora resumiu o caso a partir do
processo criminal, e de outras referências por ela encontradas em jornais da época.
Sampaio deteve-se, principalmente, em narrar como as peças processuais foram
produzidas pelos investigadores, quem eram os encarregados de cada etapa e de que
modo agiam na produção das provas contra o acusado. O processo jurídico foi
instaurado por uma denúncia anônima enviada à justiça, e publicada no Diário de
Notícias. Assim, Sampaio também analisou notícias da imprensa de então sobre a
reação de pessoas diversas acerca de cada etapa do processo, bem como as impressões
daquelas que diziam ter “conhecido” o acusado.
A tese versa sobre o Rio de Janeiro de início dos anos 1870, fundamentalmente o
clima político em relação à aprovação ou não de leis antiescravistas. Sampaio
argumenta que a acusação de estelionato tinha como motivo central o envolvimento de
Juca Rosa com mulheres da elite e com prostitutas bem conhecidas da boa sociedade
imperial. Segundo Sampaio, o juiz do caso de Juca Rosa era João Alfredo Correia de
Oliveira, membro do Partido Conservador que votava contra as leis abolicionistas e
ex-chefe de polícia da Corte, bem como ministro do Império.
53
O delegado responsável,
como vimos, era Miguel Tavares, que naquele início dos anos 1870 havia se destacado
51
Código Criminal do Império do Brazil annotado com os atos dos poderes Legislativo, Executivo e
Judiciário, que têm alterado e interpretado suas disposições desde que foi publicado, e com o cálculo das
penas em todas as suas aplicações por Araújo Figueiras Júnior (Bacharel em Direito), 2ª. Edição
cuidadosamente revista e aumentada com os atos dos Poderes supra-referidos, expedidos depois da 1ª.
Edição, Rio de Janeiro, Eduardo e Henrique Laemmert, 1876, p. 279.
52
Código Criminal do Império do Brazil, p. 281.
53
Sampaio, A história do feiticeiro Juca Rosa, pp. 175-177.
39
em punir senhores da Corte sob a acusação de prostituírem suas escravas. Tal atitude
possibilitou que estas escravas processassem seus senhores por atos imorais e maus
tratos”, uma vez que prostituição e lenocínio o eram condutas criminalizadas pelo
Código Criminal. Muitas destas escravas conseguiram, ao final dos processos, a
liberdade. Em certos casos, ao verem que gastariam muito dinheiro com as custas dos
processos na justiça, e que provavelmente os perderiam, alguns senhores concederam
alforria às escravas que os estavam processando. Miguel Tavares não participava de
campanhas em prol da abolição, para libertar as escravas prostituídas, mas buscava
“prestar um serviço à moralidade pública” assegurando o “direito que toda mulher teria
ao recato e à decência, ainda que escrava fosse”. Seu esforço não era o de debater a
possibilidade de forças mágicas conferidas por diversas pessoas ao acusado interferirem
no rumo da vida de indivíduos que a ele recorriam.
O magistrado dedicou-se, ao longo do processo, em debater as relações de Juca
Rosa com mulheres e pessoas suspeitas pela polícia da Corte de estarem envolvidas
com a prostituição. Ele dava continuidade ao que fazia desde quando havia sido chefe
de polícia da Corte. Ou seja, não se ocupou com a crença dos indivíduos nas “atividades
de feitiçaria” supostamente praticadas por Juca Rosa, e na possibilidade que lhe era
atribuída, inclusive pelo promotor do caso, de interferir no curso da vida das pessoas.
Sampaio afirma que as discussões sobre a relação entre senhores e escravos na
Corte, bem como a forte campanha policial contra a prostituição, foram fundamentais
para a precipitação das acusações feitas a Juca Rosa. A autora procurou localizar e
analisar as preocupações de membros do poder Legislativo e do Judiciário com as idéias
que embasaram a lei 28 de setembro de 1871, também conhecida como “Lei do Ventre
Livre”, através da rede de relações ao redor dos encontros supostamente promovidos
por Juca Rosa, na capital do Império.
Voltamos, assim, à leitura do documento analisado por Sampaio, seguindo o seu
argumento de que as acusações contra Juca Rosa estavam relacionadas com a crise
produzida pela lei do Ventre livre. Decidimos seguir esta pista para analisar como as
acusações a Juca Rosa estavam relacionadas à crença na feitiçaria, observando que
certas peças do processo judicial falam sobre o seu poder de provocar malefícios
mediante a “prática de feitiçaria”. Essa crença era compartilhada por pessoas de
diversas classes sociais que possivelmente não tinham o poder para abrir um processo
criminal como aquele.
40
Nosso argumento é o de que o momento de crise da sociedade imperial analisado
por Sampaio, a partir do caso de Juca Rosa, propiciou justamente as acusações de
feitiçaria, demonstrando que o Estado Imperial, mesmo sem uma lei específica pra
acusar alguém de feitiçaria, interpretava os fatos a partir da crença na feitiçaria.
Acreditamos que a crença no feitiço existia na sociedade imperial brasileira e
talvez tenha se intensificado exatamente por causa da crise política sobre a continuidade
da escravidão no Brasil e da ação do Estado para legislar acerca daquela crença. Os
debates acerca da abolição definitiva ou gradual da escravidão se adensaram de tal
modo que permitiram que dois processos criminais fossem instaurados na província do
Rio de Janeiro: um na Corte, o caso de Juca Rosa, e outro em Cunha, que analisaremos
no próximo capítulo.
A crença no feitiço continuou a existir após o processo de emancipação política
do Brasil, e foi regulada pelo Estado até a República. Juca Rosa foi acusado,
legalmente, de estelionato. Como a lei sobre a regulação da crença na magia e na
feitiçaria foi modificada com o estabelecimento do Código Penal republicano, em
1890, seguindo os passos de Sampaio argumentamos que o clima sobre os novos rumos
políticos do Império acionaram o Estado para controlar os ânimos de membros da boa
sociedade imperial, que sentiam seu poder político de controle social ameaçado com as
perdas legais que poderiam sofrer, ou já estavam sofrendo, durante essa época de
sensíveis mudanças políticas.
Lendo o caso, e, sobretudo a apelação escrita pelo advogado de Juca Rosa,
passamos a nos perguntar o que tinha a ver esse caso com os outros que havíamos
estudado sobre esse período e porque as acusações a Juca Rosa se fizeram na linguagem
da feitiçaria. Assim como os outros casos que analisamos, as crises políticas no império
também eram narradas através da crença na feitiçaria e esse processo poderia ser visto
como mais um caso de regulação das acusações de feitiçaria, que, como se sabe, ao
longo do Império foram feitas, também, a partir do artigo do Código Criminal que
versava sobre o crime de estelionato.
54
54
As acusações de feitiçaria, segundo Evans-Pritchard, se estabelecem com um forte viés político. Essa
tese foi desenvolvida por alguns de seus seguidores, como Mary Douglas. Ver sobre isso Douglas (ed.),
Witchcraft confessions and accusations.
41
1.7 – A apelação do advogado de Juca Rosa
Jansen Júnior, advogado de Juca Rosa, não concordou com a condenação
imposta ao réu. Mais do que um pedido de apelação da sentença, escreveu um texto no
qual mostrou indignação pelo fato de Juca Rosa ter sido condenado por estelionato sem
ser estelionatário, e sim por ser acusado de feitiçaria, sem que isso fosse crime previsto
pelo Código Criminal.
Primeiro, Jansen Júnior afirmou que o delegado de polícia expediu, em 18 de
novembro de 1870, mandado de prisão a Juca Rosa e de busca e apreensão “de objetos
de sua propriedade, destinados a feitiçarias”. Estes objetos estariam na residência do
acusado. Se o delegado estava atrás destes objetos, dizia o advogado, então estava atrás
de “feitiçarias, que nem era denominação jurídica de crime ou delito classificado pelo
Código Criminal, nem constituía crime inafiançável”.
55
Juca Rosa foi acusado e condenado por estelionato, por ser, segundo o delegado
que assumiu o inquérito e o juiz que julgou o caso, “useiro e vezeiro” no “emprego de
artifícios fraudulentos”. Assim, o advogado queria saber quais eram estes tais
“artifícios”. O réu nunca havia sido processado, afirmou seu advogado, por crime de
estelionato, muito menos condenado. Por que, então, aquelas autoridades afirmaram ser
ele “useiro e vezeiro” de “artifícios fraudulentos para obter dinheiro”? Fora as
“suposições” acerca dos “objetos de feitiçaria”, sendo a sua prática não condenável
legalmente, o advogado argumentou que o havia nenhuma prova, no processo inteiro,
de Juca Rosa ter cometido o crime de estelionato uma única vez.
56
Jansen Júnior continuou dizendo que era estranho que as tais “práticas imorais”
de Juca Rosa tenham sido “toleradas por tanto tempo” pelas autoridades, depois de
“tanta devoção aos olhos de todos”. No processo, elas falam “teoricamente em
dissipações, imoralidades, ociosidade, feitiçarias, poder sobrenatural, manejos
depravados, ofensa da moral e da religião”.
57
O advogado escreveu que o juiz do caso
procurou “pintar com cores carregadas a enormidade dos fatos e descrever o horror dos
crimes e o perigo em que este imenso mundo chamado sociedade brasileira, esta grande
arca chamada Brasil no meio do soberbo e enfurecido dilúvio chamado feitiçarias, cujas
55
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fls. 1 e 1v.
56
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 5v.
57
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 6v.
42
águas cresciam e se encapelavam tanto que ameaçavam devorar tudo e todos”.
58
Por
fim, o juiz, ainda segundo o advogado, afirmou durante o processo que existia, na Corte,
“uma classe perigosa de indivíduos, vulgarmente conhecidos pelo nome de feiticeiros, e
que se inculcavam de um poder sobrenatural”.
59
Nessa tal “classe perigosa de indivíduos”, seguiu o advogado, “prosélitos que
formam uma crença, e adeptos, secretários, mestres, apóstolos, discípulos”, que não
foram proibidos de se encontrar, pelas autoridades que sabiam ser o réu “useiro e
vezeiro” das “práticas de feitiçaria”. O artigo 285 do Código Criminal de 1830 tratava
dos casos de ajuntamentos e de reuniões ilícitas.
“Onde está a lei que diz que feitiçaria é crime? Onde está a lei que considera
como criminoso o feiticeiro”, perguntava o advogado. Se o julgamento ocorreu
realmente contra um réu acusado de estelionato, então onde estava a prova do crime? O
advogado argumentou que Juca Rosa não procurava as pessoas que testemunharam no
processo, e mesmo elas jamais disseram, segundo os autos, que ele ia atrás delas. Disse,
então, o advogado:
O crente pensa que o alopata o salva, que o homeopata lhe restitui a saúde, que o
hidropata o restabelece, que o advogado lhe consegue a absolvição, que este ou
aquele sacerdote deste ou daquele culto, desta ou daquela seita, o faz feliz, o enche
de doces e venturas neste ou no outro mundo; procura-o, pede-lhe seu auxílio, sua
proteção, entrega-se-lhe em corpo e alma, dá-lhe dinheiro, dá-lhe bens, aliena o que
tem e despe-se dos seus bens, e as vezes da própria honra. Onde está o
estelionato? Um acredita no poder daquele a que espontaneamente procura. Outro
crê com igual firmeza (suponhamos) no culto, na seita que segue e professa. Onde
está a fraude, esse dolo especial característico do crime de estelionato?
60
Através do texto da apelação, percebemos como legalmente Juca Rosa realmente
não poderia ter sido nem processado por prática de feitiçaria, muito menos por
estelionato. Segundo o advogado, e o próprio texto do Código Criminal, os
comportamentos do réu não eram passíveis, e nunca o foram, de uma acusação judicial.
58
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 7.
59
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 7v.
60
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 9.
43
1.8 – As leis e a perseguição aos feiticeiros no Brasil
As Ordenações Filipinas se constituíam como o conjunto de leis das colônias
portuguesas.
61
No Título 3 do seu Livro 5, denominado “Dos Feiticeiros”, podemos ler
uma série de atitudes consideradas como sendo “feitiçaria”. O acusado de feitiçaria
deveria pagar três mil réis ao acusador, ser açoitado no braço, em plena vila onde
residisse, e degredado para o Brasil.
62
outra situação na qual a acusação de feitiçaria
também aparece, nas Ordenações. No Título 88 do Livro 4, “Das causas porque o pai
ou mãe podem deserdar seus filhos”, o Item 7 fala em deserção no caso de “usar de
feitiçaria ou conversar com feiticeiros”. Em seguida, uma nota intitulada “Feiticeiros”
faz uma longa análise das hipóteses de surgimento da expressão e conclui que não é
possível definir feitiçaria e nem feiticeiro(a).
63
O Código Criminal do Império do Brasil, promulgado em 1830, não previa
como crime a prática de feitiçaria. Esse Código foi o primeiro corpo unitário efetivo de
leis penais vigente no Brasil, e raramente tocava em assuntos religiosos. Estas raras
vezes estão nas suas quarta e última partes: Dos Crimes Policiais, no “Capítulo 1
Ofensa da Religião, da Moral e Bons Costumes”, e em três artigos (do 276 ao 278) dos
quais dois (o 276 e o 277) mais confirmavam a autoridade do Estado sobre as práticas
religiosas no Brasil do que falavam da proteção às mesmas. Não aparecem neste corpo
de leis as palavras “magia” e “sortilégio”, ao contrário do Código Penal republicano,
promulgado em 1890.
64
Schritzmeyer, estudando as leis imperiais, sinalizou o caminho a seguir por ter
analisado o fato do Código Criminal imperial não contemplar a proibição da feitiçaria,
como fizeram as Ordenações Filipinas e, mais tarde, o Código Penal republicano.
Segundo a autora, o Código imperial não conseguiu equilibrar as posições diversas
quanto à questão e acabou por não legislar sobre o tema deixando a questão como
estelionato.
65
61
Dava-se este nome às antigas leis portuguesas compiladas em códigos. As primeiras, ordenadas por D.
João I, foram concluídas em 1446. Em 1514 publicou-se nova coleção das leis do reino com as alterações
introduzidas pelo tempo. Por terem sido impressas por ordem de D. Manuel, receberam o nome de
Ordenações Manuelinas. Em 1603 publicaram-se as Ordenações Filipinas, mandadas compilar por Filipe
I, que em Portugal vigoraram até 1868. No Brasil, as Ordenações Filipinas, por força da lei de 20 de
outubro de 1823, vigoraram até 31 de dezembro de 1916, como subsídio do direito pátrio, e foram,
definitivamente, revogadas pelo Código Civil de 1917.
62
http://www.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1150.htm (acesso em 18/agosto/2007).
63
http://www.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p931.htm (acesso em 14/agosto/2007).
64
Schritzmeyer, Sortilégios de saberes, pp. 74-75.
65
Schritzmeyer, Sortilégios de saberes, pp. 74-75.
44
No Código republicano, tal como nas Ordenações Filipinas, também
encontramos a regulação da crença pelo Estado, em três artigos do Título III Dos
Crimes contra a Tranquilidade Pública Capítulo III Dos Crimes contra a Saúde
Pública. O artigo 156 proibia: “Exercer a medicina em qualquer de seus ramos e a arte
dentária ou farmácia; praticar a homeopatia, a dosimetria, o hipnotismo ou o
magnetismo animal, sem estar habilitado segundo as leis e regulamentos”. O 157
proibia: “Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar talismãs e cartomancia
para despertar sentimentos de ódio e amor, inculcar cura de moléstias curáveis e
incuráveis, enfim, para fascinar a credulidade pública”. Por último, o 158 proibia:
“Ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou
externo e sob qualquer forma preparada, substância de qualquer dos reinos da natureza,
fazendo ou exercendo, assim, o ofício denominado de curandeiro.”
66
No novo Código Penal republicano, promulgado em 1942, o tulo VIII Dos
Crimes contra a Incolumidade Pública, Capítulo III Dos Crimes contra a Saúde
Pública, há três artigos que praticamente repetem, sem grandes alterações, aqueles
outros do Código de 1890. O primeiro trata-se do artigo 282, intitulado Exercício Ilegal
da Medicina, Arte Dentária ou Farmacêutica, que proibia a pessoa de: Exercer, ainda
que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização
legal ou excedendo-lhes os limites”. Charlatanismo era o título do artigo 283, que
também proibia a qualquer sujeito “inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou
infalível, e o seguinte, 284, Curandeirismo, proibia qualquer um de “exercer o
curandeirismo”. Um ano depois, na Lei das Contravenções Penais um artigo, no
Capítulo II Das Contravenções Referentes ao Patrimônio, o de número 27, intitulado
“Exploração da Credulidade Pública”, proibindo a toda pessoa de: “Explorar a
credulidade pública mediante sortilégios, predição do futuro, explicação de sonho, ou
práticas congêneres”.
67
Maggie, analisando processos judiciais sobre práticas de cura e tipos de
espiritismo na república, concluiu que havia três posições quanto a esses delitos, por
parte dos juízes, advogados e criminalistas, constituindo o que o direito chama
“jurisprudência”, até os anos 1940. A primeira posição era a de que toda prática ou arte
de curar deveria ser considerada fora da lei e era prejudicial à saúde pública, a não ser
66
Apud. Maggie, Medo do feitiço, pp. 22-23, nota 3.
67
Schritzmeyer, Sortilégios de saberes, pp. 79-81. Ver tamm Roberto Machado e outros, Danação da
norma: a medicina social e a construção da psiquiatria no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1978.
45
aquela “arte” obtida através da ciência, com diploma e registro legal. A segunda
pretendia limitar e controlar a prática médica e as práticas religiosas. As pessoas que
praticavam religiões verdadeiras deveriam ser protegidas, e aquelas que agiam no
sentido de enganar os incautos deveriam ser perseguidas por serem nocivas à saúde
mental da população. As primeiras práticas eram consideradas “verdadeiro espiritismo”
e as segundas “falso espiritismo”. Por fim, a terceira posição mostrava a necessidade de
os artigos 156, 157 e 158 serem abolidos, porque exigir diploma científico para o
exercício de práticas curativas e perseguir os modos de se exercer espiritismo
significava o Estado propor uma religião e uma ciência oficiais. Em relação aos casos
de religiosos que explorassem incautos, deveria se usar o artigo sobre crime de
estelionato, aplicado a qualquer tipo de falsificação de identidade e exploração com fins
lucrativos. Caso a pessoa acreditasse nos poderes dos curandeiros, eles não poderiam ser
acusados de estelionato porque não estariam iludindo a ninguém.
68
Segundo Maggie, essas três posições foram aplicadas ao longo do período que
foi de 1890 a 1940. Nesse último ano ocorreram os debates finais e a redação do Código
Penal, promulgado em 1942, que mostram a vitória da segunda posição. Os juízes
teriam, assim, que julgar a crença e ver quem utilizava falsos princípios. O novo Código
conciliou posições relacionadas ao direito clássico, liberal, e outras relacionadas ao
direito positivo. A vertente liberal, em resumo, entende o livre arbítrio de forma ampla
para a aplicação da pena, e a positiva postula um constrangimento do livre arbítrio na
responsabilidade penal, defendendo a necessidade da aplicação de mecanismos mais
severos para que sejam definidas a responsabilidade e a pena. Assim o artigo 157 do
Código de 1890 foi transformado no artigo 282 do novo Código, que reza sobre o
charlatanismo propondo o combate a todos os que usam mal os preceitos da crença.
Desta forma, é punido certo modo de exercer o espiritismo, aquele que era considerado
produtor de malefícios. Não é, assim, punido todo espírita, curandeiro ou praticante da
magia.
No Império não havia a introdução do aparato jurídico para combater a magia
maléfica, a feitiçaria, aliás, qualquer tipo de magia. Juca Rosa foi acusado legalmente, e
assim foi condenado, por estelionato. Se esse processo ocorresse na república, antes de
1942, talvez ele não tivesse sido condenado porque algum juiz poderia ter argumentado
que as pessoas, que depuseram e testemunharam, confirmaram que acreditavam nos
68
Maggie, Medo do feitiço, pp. 87-90.
46
poderes do acusado. Elas, inclusive, foram procurá-lo sem que para isso Juca Rosa lhes
tivesse constrangido. Se o processo ocorresse depois de 1942, o juiz do caso julgaria
Juca Rosa conforme os efeitos positivos ou negativos da magia por ele exercida na vida
daqueles que nela acreditavam. Portanto, Juca Rosa foi acusado de feitiçaria e julgado
através do artigo referente a estelionato. Essa era a forma que pessoas ligadas ao Estado
encontraram para que o caso fosse levado à justiça, regulando as acusações com a
abertura do processo criminal. A lógica era a da feitiçaria, e o crime era o de estelionato.
Estas informações demonstram que a crença na magia e no feitiço existia no
Império do Brasil, embora seu Código Criminal não previsse o crime de feitiçaria, ao
contrário das Ordenações Filipinas. No caso de Juca Rosa, o juiz aplicou a pena ao
acusado de feitiçaria através do crime de estelionato. No próximo capítulo, veremos que
os acusados de feitiçaria também poderiam ser condenados através do crime de
homicídio. As pessoas eram punidas não por serem feiticeiras e nem por praticarem a
feitiçaria, mas sim por estelionato, homicídio, e demais crimes prescritos pelo Código
Criminal.
Maggie teve como objetivo principal estudar os mecanismos sociais reguladores
das acusações de feitiçaria e charlatanismo a partir dos três artigos do Código Penal, de
1890, citados anteriormente. A autora demonstrou como o Estado se envolveu nos
assuntos da magia, intervindo no combate aos feiticeiros através da regulação das
acusações de feitiçaria por meio da criação de uma estrutura legal. Essa estrutura
contava com juízos especiais e funcionários especializados. Instituições policiais foram
fundadas, ao longo dos anos, para regular o combate aos acusados de feitiçaria,
identificando-os e punindo-os como produtores dos infortúnios. Uma vez criado, as
pessoas usaram em diversas ocasiões o aparato jurídico do Estado para combater os
feiticeiros.
A autora localizou e analisou processos criminais instaurados segundo os artigos
156, 157 e 158 daquele Código. Estes documentos são os “instrumentos-chave” da
institucionalização das acusações de feitiçaria, de seus mecanismos de regulação. Eles
revelam as tramas nas quais essas acusações eram feitas, os perfis dos agentes sociais
envolvidos e em quais circunstâncias ocorriam os conflitos entre os mesmos. Trazem,
também, relatos de pessoas de classes sociais distintas sobre a crença no poder do
feitiço, bem como posicionamentos acerca da atuação do acusado de ser feiticeiro.
69
69
Maggie, Medo do feitiço, pp. 22-25.
47
Maggie construiu seu argumento tendo como contraponto o contexto da crença
na feitiçaria na Rodésia, atual Zimbábue, ex-colônia britânica na África, a partir de
Crawford. Esse autor demonstrou que os países africanos de colonização britânica
coibiram a acusação de feitiçaria na sua legislação, ao contrário do Código Penal
brasileiro de 1890.
70
Neste, vemos que a acusação de feitiçaria não somente era bem-
vinda como também perpetuava a crença na feitiçaria. Essa crença precisa da delação e
da denúncia públicas para que seja constituído o feiticeiro. O estudo de Crawford parte
do Artigo Terceiro da Lei de Supressão à Feitiçaria, aprovado na Rodésia em 18 de
agosto de 1899. Este Artigo previa a punição da pessoa que fizesse uma acusação de
feitiçaria a outrem, e não ao acusado de ser feiticeiro, como muitas vezes aconteceu no
Brasil:
Quem quer que impute a qualquer outra pessoa o uso de meios não-naturais
ocasionando qualquer doença a qualquer pessoa ou animal ou causando qualquer
injúria a qualquer pessoa ou propriedade, em outras palavras, quem quer que
aponte ou indique qualquer outra pessoa como mago ou feiticeiro deverá ser
culpado de uma ofensa e sujeito a uma multa não superior a 100 pounds ou a prisão
por um período não superior a três anos ou a castigos corporais, não superiores a
três anos ou a castigos corporais, não superiores a vinte chibatadas ou a qualquer
um desses dois ou mais de tais castigos.
71
Maggie lembra que, anos mais tarde à publicação do estudo de Crawford, Fry
voltou a demonstrar, a partir de sua etnografia realizada na mesma região, que os
colonizadores britânicos não compartilhavam da crença no feitiço.
72
Segundo a autora,
ao contrário da lei britânica que imperou na Rodésia, e até 2006 em Zimbábue, mesmo
depois da independência e sob governo do presidente Robert Mugabe, o Código Penal
brasileiro de 1890 privilegiou a acusação.
Foucault nos ajuda a pensar a repressão às crenças. Ele demonstra que a
repressão funda a crença. O poder, exercido cotidianamente nas relações entre agentes
repressores e os que por eles têm reprimidas algumas de suas ações, se impõe por meio
de refinados mecanismos.
73
Essa imposição ocorre através de uma microfísica de atos e
formas comportamentais referentes a todos os participantes da relação de poder, e não
somente aos grupos e pessoas opostas. As relações de poder são construídas no bojo de
70
J. R. Crawford, Witchcraft and sorcery in Rhodesia, London, Oxford University Press, 1967.
71
Apud. Crawford, Witchcraft and sorcery in Rhodesia, p. 297. Tradução nossa.
72
Peter Fry, Spirits of protest: spirit-mediums and the articulation of consensus amongst the Zezuru of
Southern Rhodesia, London, New York, Melbourne, Cambridge University Press, 1976.
73
Michel Foucault, História da sexualidade 1: a vontade de saber, 9ª. Edição, Rio de Janeiro, Graal,
1988.
48
mecanismos de produção do conhecimento. Isso implica em dizer que a dominação
ocorre por meio de critérios de conhecimento do dominador sobre o dominado, o que
acontece com a confissão desse último.
74
Essa confissão é regulada por técnicas que
visam disciplinar e normatizar comportamentos, ações, práticas socialmente difusas e
que passam a ser organizadas, classificadas, através deste mecanismo. O saber sobre
aquilo que se quer reprimir alimenta as técnicas de repressão, a construção do
conhecimento sobre as bases de sua estruturação. Esse saber é o saber do poder, aquele
que permite dominar aquilo que se conhece.
75
No Brasil, diferentemente da antiga Rodésia e até muito recentemente o
Zimbábue, o estado regulou a crença na magia e assim disciplinou-a, ao passo que sob o
domínio da lei britânica os médiuns Shona se tornaram representantes da africanidade e,
por isso, passaram a ser líderes do processo que levou à independência, como
demonstrou Fry.
76
A pergunta, então, é: por que o Império não regulou as acusações à feitiçaria no
seu Código Criminal através do crime de estelionato?
1.9 – Os elementos que sustentavam a crença nos poderes mágicos de Juca Rosa
Nossa argumentação seguirá às indicações de Mauss & Hubert acerca da
proeminência do social nas explicações da crença e das práticas mágicas.
77
Também
seguiremos questões levantadas por Malinowski e de toda a literatura sobre magia que
enfatiza a centralidade da explicação mágica na vida social, garantindo um “algo a
mais” para o sucesso dos empreendimentos das pessoas.
78
O caso de Juca Rosa traz informações sobre infortúnios provocados por alguém
através de poderes gicos. Ele é acusado de “feitiçaria”, isto é, de ter o poder
extraordinário de fazer o mal. Nas sociedades onde a crença na magia e na feitiçaria,
todos acreditam que há pessoas com poderes para fazer o mal. Como demonstrou
Evans-Pritchard, a crença na feitiçaria é regulada por um sistema de acusações, uma vez
74
Foucault, “O olho do poder”.
75
Foucault, A verdade e as formas jurídicas.
76
Fry, Spirits of protest.
77
Marcel Mauss & Henri Hubert, “Esboço de uma teoria geral da magia”, in Marcel Mauss, Sociologia e
Antropologia, São Paulo, Cosac & Naify, 2003 [1902-1903], pp. 47-181.
78
Bronislaw Malinowski, “Capítulo XVII. A magia do kula”, Argonautas do Pacífico Ocidental: um
relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné melanésia,
Malinowski. 3
ª
. Edição, São Paulo, Abril Cultural, 1984, pp. 292-312, Coleção Os Pensadores, v. XLIII e
“Part VI. An ethnographic theory of the magical word”, in Coral Gradens and their magic, v. II.
London, Georde Allen and Unwin Ltd., 1935, pp. 213-248.
49
que eventos que são entendidos como produto da ação do feiticeiro, infortúnios
específicos socialmente legitimados por essa crença. De acordo com o seu contexto,
uma sociedade pode legitimar a crença na feitiçaria através da repetição de um
infortúnio, envolvendo dilemas entre vizinhos e familiares como demonstrou Evans-
Pritchard. Em diversas análises acerca da crença na feitiçaria, são levadas em conta
situações locais para a compreensão dos males que atingem as pessoas, pois o
reconhecimento de que a feitiçaria realmente ocorreu se através do consenso da
opinião pública, opinião essa que sustenta a idéia de que a feitiçaria é uma crença
baseada na gica das acusações. Não é feiticeiro quem quer. O feiticeiro é aquele que é
acusado de feitiçaria independentemente da própria pessoa se reconhecer como tal,
posto que se trata, como dissemos, de um poder socialmente constituído. As crenças
se mantêm se uma crença na força gica. É este cenário de sustentação da crença
na feitiçaria na Corte, em 1870-71, que analisaremos neste capítulo.
A sociedade da Corte era organizada ao redor das categorias senhor, escravo,
livre, liberto e africano livre. Uma lei de sete de novembro de 1831 definia que, após
essa data, todos os africanos que fossem vendidos como escravos para o Brasil seriam
considerados livres.
79
Como filho de africana livre com um livre, Juca Rosa ocupava um
raro lugar na Corte, cidade com a maior densidade de população escrava nas Américas.
Em 1870, ano da prisão de Juca Rosa, do total da população da Corte, 185.289, 81,8%,
eram pessoas livres e 50.092, 18,2%, eram escravos.
80
A população de libertos vinha
crescendo na década de 1860, com o significativo aumento da compra da alforria pelos
escravos, o maior número de alforrias relativas à Guerra do Paraguai, e a alta taxa de
mortalidade dos escravos devida às epidemias de febre amarela e cólera, totalizando
13.246, média de mais de 1.300 manumissões por ano.
81
A imprensa, os romancistas e a
burocracia imperial utilizavam cotidianamente este sistema de classificação das pessoas
em tipos mais ou menos ligados à sua origem africana, ou sua condição de liberdade
79
Em recente estudo, discutimos a formulação e parte da aplicação e da burla destas leis no Brasil: Luiz
Alberto Couceiro, “Acusações atlânticas: o caso dos escravos num navio fantasma Rio de Janeiro,
1861”, in Revista de História/USP Dossiê História Atlântica, n. 152, 1
o
. semestre de 2005, pp. 57-77.
80
Cf. Luiz Felipe de Alencastro, “Escravos e proletários: imigrantes portugueses e cativos africanos no
Rio de Janeiro, 1850-1872”, in Novos Estudos CEBRAP, n. 21, julho, 1988, pp. 30-56, p. 53.
81
Cf. Mary Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850, São Paulo, Companhia das
Letras, 2000, pp. 477-479; sobre as epidemias na Corte, à época do caso de Juca Rosa, e a ação dos
médicos higienistas e demais autoridades públicas em seu combate, ver Chalhoub, Cidade febril.
50
diante da justiça.
82
Esta tipologia era utilizada pelas próprias pessoas nas relações
estabelecidas no mercado de trabalho da Corte, inclusive por Juca Rosa.
83
No ano de 1870, os escravos não eram, na Corte, mais do que 10,2% da
população que trabalhava em estabelecimentos industriais e artesanais, então dominados
pelos imigrantes europeus que haviam chegado em grande número na década de 1860,
compondo 40,0% daquela população – composta, em maioria, por portugueses.
84
Todos estes números nos ajudam a entender a imparidade da figura de Juca Rosa
na sociedade da Corte. Havia múltiplas possibilidades de ganhar dinheiro em uma
cidade que dependia do trabalhado dos escravos para os mais diversos serviços, que iam
desde buscar água no Aqueduto da Carioca, por volta das cinco horas da manhã, até
mesmo trabalhar em lojas de artigos de couro, fábricas, pedreiras, como carregadores,
barqueiros, etc.
85
A cidade do Rio de Janeiro organizava-se ao redor do trabalho dos escravos,
principalmente até a década de 1870, gerando para os senhores uma das principais
formas de ganhar dinheiro: a compra da autorização para “viver sobre si”. Tratava-se de
um acordo entre o senhor e o seu escravo sobre o pagamento de diárias para que
pudesse dormir onde bem entendesse. O que importava era que, no final do período
estipulado, o escravo levasse ao senhor o dinheiro combinado, evitando alguma punição
e o fim do acordo. O que o escravo ganhasse para além do preço de “viver sobre si”
ficava para ele por isso serem chamados de “escravos ao ganho”. O dinheiro poderia
ser conseguido através da remuneração pelas diversas tarefas, muitas delas realizadas no
mesmo dia para diferentes empregadores, ou através da prostituição e da mendicância.
86
Ter escravos era, em suma, fundamental para obter rendas e lucros na Corte. Tanto
assim que havia pessoas, como Frederico Guilherme Torres, que eram especialistas no
crime de seqüestro de escravos. Em 27 de dezembro de 1870, Frederico, brasileiro então
com 25 anos de idade, foi preso por “subtrair a propriedade alheia e acoitar escravos
82
Lilia Moritz Schwarcz, Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final
do século XIX, São Paulo, Companhia das Letras, 1987.
83
Luiz Alberto Couceiro, Bumerangue encapsulado: um estudo sobre a construção social da
subjetividade numa cidade escravista, Rio de Janeiro, c.1860-c.1888, Rio de Janeiro, 7Letras, 2003.
84
Cf. Alencastro, “Escravos e proletários”, p. 38.
85
Cf. Karasch, A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850, pp. 259-291.
86
Cf. Leila Mezan Algranti, O feitor ausente: estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro (1808-
1822), Petrópolis, Vozes, 1988, pp. 49-58; Luiz Carlos Soares, “Os escravos ao ganho no Rio de Janeiro
do século XIX”, Revista brasileira de história: escravidão, v. 8, n. 16, São Paulo, ANPUH, Marco Zero,
1988, pp. 107-142, Povo de Cam na Capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Janeiro do séc.
XIX, Rio de Janeiro, 7Letras, 2007 e Marilene Rosa Nogueira Silva, Negro na rua: a nova face da
escravidão, São Paulo, HUCITEC, 1988, pp. 87-142.
51
fugidos, pedindo dinheiro a seus respectivos senhores para sua condução e soltura”.
87
Muitos escravos que não conseguiam honrar o acordo com os senhores, ou que se
sentiam explorados pelos mesmos para além do acordado, tentavam fugir da Corte para
uma localidade próxima, a fim de conseguir trabalho, para reaparecer quando
obtivessem a quantia estabelecida pelo senhor. Este foi o caso de Fernando Benguela,
escravo de 60 anos de idade, recolhido a mando de seu senhor na Casa de Correção da
Corte, onde trabalhou na enfermaria por um período, antes de fugir daquela prisão, em
12 de agosto de 1870.
88
Juca Rosa não possuía escravos para lhe pagar diárias. Segundo nossas pesquisas
nos ofícios de notas do século XIX, localizados no Arquivo Nacional, o réu não era
dono de nenhum tipo de estabelecimento comercial, nem possuía investimento
econômico reconhecido pelo Estado. Não vivia do aluguel de alguma propriedade,
porque não possuía imóveis – ao menos legalmente registrados. Também não era
“escravo ganhador”, conseguindo dinheiro com o que restasse da quantia que deveria
pagar ao senhor. Era um filho de africana livre com um homem livre, ganhando a vida
como “feiticeiro”, informação que não negou em momento algum do processo, quando
perguntado sobre seu “meio de vida”.
Juca Rosa era envolvido com parte influente da sociedade da Corte, “dando
consultas” a esposas de políticos que tinham sido “vistas saindo de sua casa a altas
horas da madrugada”.
89
Tratava-se, e insistimos nisso, de uma rara figura no Brasil
daquela época, e esse fato confundia autoridades policiais e jurídicas na identificação de
certas pessoas em semelhante situação no sistema de classificação social.
Em 11 de dezembro de 1859, o juiz de direito Francisco Soares Bernardes de
Gouvêa enviou “correspondência confidencial” ao presidente da província do Rio de
Janeiro, Ignácio Francisco Silveira da Mota, informando que, como lhe havia pedido,
suas investigações confirmaram que africanos livres eram utilizados como escravos por
Manoel José Ventura e seu cunhado, um professor público de Niterói. Segundo a carta,
os investigados conseguiam burlar a pouca fiscalização porque as autoridades não
“tinham critérios claros de identificação de africanos livres”.
90
87
AN, Casa de Correção do Distrito, IIIJ7 – 152, n. 312.
88
AN, Casa de Correção do Distrito, IIIJ7 – 151, n. 187.
89
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871.
90
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, doravante APERJ, fundo Presidentes de Província do
Rio de Janeiro, coleção 80.
52
Em 13 de janeiro de 1865, um juiz de direito não identificado escreveu ao então
presidente da província do Rio de Janeiro, José Tito Nabuco de Araújo. Na missiva o
presidente da província dizia que havia remetido cartas de emancipação de africanos
livres encontrados na Corte para que o chefe de polícia da província verificasse se
aquelas pessoas correspondiam aos nomes que constavam naquelas cartas. Depois disso,
as mesmas seriam concedidas.
91
Em 27 de janeiro os africanos livres obtiveram suas
cartas de alforria, segundo ofício dirigido a Nabuco de Araújo.
92
Outros africanos livres, recolhidos desde a cada de 1840 à Casa de Correção
da Corte, acusados de vários tipos de crime, foram reconhecidos como tais somente em
1871, quando autoridades fizeram uma revisão dos casos de cada um dos presos e
identificaram pessoas como Antonio Cabinda, Francisco Corrêa e Matheus Monjolo
cumprindo pena após serem erroneamente julgadas como escravos.
93
Em seu depoimento, Juca Rosa respondeu que, com os “objetos de feitiçaria”,
tinha a capacidade de curar “enfermidade ou dificuldade no correr da vida (...) em
auxílio a qualquer de seus amigos” que lhe iam procurar “sem lhe pagarem nada por
isso”.
94
Era reconhecido e “procurado” por “amigos”, investido de reconhecimento pela
crença que tinham na eficácia de seus poderes.
Segundo Mauss & Hubert, é possível um indivíduo ser mágico através de
uma virtude atribuída que o faça ser visto e representado como mágico.
95
O mágico é
aquele que lida com o mundo das expectativas daqueles que o procuram, é aquele capaz
de mudar o estado das coisas.
96
Mas, por que um filho de africana livre com um homem
livre teria tanta investidura de poder naqueles anos, na Corte? Atitudes de um “meio-
africano”, digamos assim, lidando com pessoas da elite política imperial poderiam ter
impacto sobre as idéias que corriam naquela sociedade sobre o estatuto jurídico das
relações entre “brancos” livres e “negros” escravos, libertos ou africanos livres?
O ano da instauração do processo criminal contra Juca Rosa, 1871, foi marcado
pela aprovação, em 28 de setembro, da chamada Lei do Ventre Livre ou seja, o
processo contra Juca Rosa correu concomitante às discussões que antecederam este fato.
A partir de setembro daquele ano todos os senhores do Império eram obrigados a
91
APERJ, fundo Presidentes de Província do Rio de Janeiro, coleção 80.
92
APERJ, fundo Presidentes de Província do Rio de Janeiro, coleção 80.
93
AN, Casa de Correção do Distrito, IIIJ7 – 152, n. 5.
94
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu JoSebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 11.
95
Cf. Mauss & Hubert, “Esboço de uma teoria geral da magia”, p. 63.
96
Cf. Marcel Mauss & Henri Hubert, “Esboço de uma teoria geral da magia”, p. 99.
53
registrar na Justiça o preço de cada escravo seu, e não mais poderiam recusar a vender-
lhe a alforria caso lhes fosse apresentada a quantia estipulada. Além disso, os ventres
das escravas eram livres das leis escravistas, e quem deles nascesse era considerado
livre.
97
Antes, a compra da alforria por parte dos escravos não tinha validade na lei
positiva no Brasil, mas sim na costumeira. Vários senhores e irmandades religiosas
tinham o costume de vender aos escravos sua liberdade, segundo preço de mercado e
laços de gratidão registrados como obrigação nas cartas de alforria. Uma vez forros por
seus senhores, a “bondade” dos escravos era registrada, muitas vezes, como uma
“graça” recebida pelos bons serviços que lhes prestavam. Caso não cumprissem com os
“bons serviços” aos ex-senhores, sua alforria poderia ser revogada. Relações baseadas
no afeto entre senhor e escravo aparecem ligadas ao valor monetário deste último em
grande número de cartas de alforria, demonstrando a cumplicidade entre as emoções e o
dinheiro nas relações entre senhores e escravos, marcadas pela alforria.
98
A dependência
dos escravos em relação aos senhores era mantida, uma vez que a condição de liberto só
poderia ser atingida mediante a vontade do senhor, e não através da ação do Estado.
99
No caso de Juca Rosa, nos deparamos com uma destas situações controversas,
como veremos, mesmo sem que o réu fosse escravo, liberto ou africano livre como
vimos enfatizando.
Segundo as fontes pesquisadas, a opinião pública estava presente durante o
processo criminal movido contra Juca Rosa. Em momento algum do processo jurídico a
magia e a feitiçaria foram questionadas. Não perguntas sobre o fato de Juca Rosa
pretensamente iludir as pessoas com aquelas práticas, e muito menos se ele acreditava
ou não ter poderes para fazer o bem ou o mal aos outros. Vimos através das testemunhas
97
Para análises acerca das discussões dos políticos e senhores do Império do Brasil em torno da
aprovação desta lei, ver José Murilo de Carvalho, I – A construção da ordem: a elite política imperial; II
Teatro de sombras: a política imperial, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, Relume-Dumará, 1996, pp. 269-
302 e Eduardo Spiller Pena, Pajens da casa imperial: jurisconsultos, escravidão e a Lei de 1871,
Campinas, Editora da UNICAMP, CECULT, 2001. Ao longo da década de 1870, o clima político
continuaria a ser dominado pelos debates de outras leis para o gradual ou o imediato fim legal da
escravidão no Brasil, como as leis Sinimbu e a dos Sexagenários. Ver Maria Lúcia Lamounier, Da
escravidão ao trabalho livre: a Lei de Locação de Serviços de 1879, Campinas, Papirus, 1988 e Joseli
Maria Nunes Mendonça, Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no
Brasil, Campinas, Editora da UNICAMP, CECULT, 1999, para análises da elaboração das respectivas
leis.
98
Cf. Ligia Bellini, “Por amor e por interesse: a relação senhor-escravo em cartas de alforria”, in João
José Reis (org.), Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil, São Paulo,
Brasiliense, 1988, pp. 72-86 e Warren Dean, Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-
1920, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, pp. 81-83.
99
Manuela Carneiro da Cunha, “Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de
escravos no Brasil do século XIX”, in Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade, São Paulo,
Brasiliense, EdUSP, 1986, pp. 123-144.
54
que Juca Rosa era procurado por pessoas que queriam sua intervenção no curso dos
acontecimentos que entendiam como sendo ruins para si, dando-lhes conforto
emocional. Juca Rosa confirmou, ao longo do processo, a informação de que “tinha
poderes de feitiçaria para trazer de volta amantes e curar moléstias”. Várias das
testemunhas, tanto mulheres, quanto homens, também afirmaram ter ele esse poder. Do
início ao fim do processo jurídico, os agentes do Estado não colocaram em dúvida o
fato de o acusado e as testemunhas dizerem ter ele aqueles poderes, conforme os
depoimentos informavam.
Os jornais faziam chacota do réu, mas também o houve notícia que, ao menos
explicitamente, duvidasse do poder gico de Juca Rosa. Tais notícias legitimavam a
figura do acusado como “feiticeiro” e homem bem relacionado com membros da boa
sociedade imperial. A denúncia anônima contra Juca Rosa foi veiculada em um jornal
de grande circulação nas províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo, noticiando fatos
supostamente ocorridos em suas diversas cidades e vilas. Ao que nos parece, o
denunciante acreditava que publicariam sua denúncia, e escolheu um veículo
informativo forte o bastante para que Juca Rosa logo fosse processado uma vez a
Justiça aceitando a notícia e a carta como critério de abertura de processo criminal.
Segundo o denunciante, políticos letrados e suas senhoras freqüentavam a casa
de Juca Rosa. Mesmo quem não soubesse ler poderia ouvir a notícia na qual era acusado
de ser “feiticeiro” e de estar “envolvido com prostituição”, através de pessoas que liam
notícias nas ruas, chamados “ledores”, e através dos boatos que circulavam nas ruas da
Corte. A repercussão da denúncia não parou na construção do inquérito policial, muito
menos na abertura do processo criminal. Durante todo o julgamento, notícias e charges,
publicadas por jornais como o Jornal do Commercio, o Diário de Notícias, o Diário do
Rio de Janeiro, O Mosquito, A Rebeca, A Comédia Social e O Lobisomem davam
versões dos acontecimentos.
100
Repitamos: em momento algum, nestas notícias, os
poderes de Juca Rosa foram postos em dúvida e nem mesmo a própria crença foi
desqualificada.
As pessoas que depuseram no processo criminal, bem como as notícias de jornal,
falavam da figura de Juca Rosa através da descrição de seu poder em lidar com as
emoções das pessoas que iam lhe procurar. A palavra “amor” servia para designar algo
que Juca Rosa podia ajudar às pessoas a reconquistar, pois parte deste amor” estava na
100
Todos localizados à Biblioteca Nacional, doravante BN.
55
“pessoa amada”. Para que o “amor” fosse uma relação completa, a “pessoa amada”
deveria estar com seu “amante”, com aquele que a desejava. Quem procurava por Juca
Rosa tinha como provável pressuposto, segundo vimos nos relatos de algumas das
testemunhas, a esperança de que ele, com seus poderes mágicos, poderia “trazer” um
“amor” perdido, ou mesmo fazer alguém “amar” outra pessoa. Muitos dos depoentes e
das testemunhas disseram que não se sentiam bem, ficando “doentes”, quando eram
“abandonadas” pelo seu “amor”, por quem amava”, e disso queriam ser “curadas” por
Juca Rosa. Ele mesmo agia em torno da idéia de “perda” e “ganho da alma e do corpo”
das pessoas que “iam lhe procurar”, fundamentalmente de suas “filhas”.
Se Juca Rosa fosse escravo, ou liberto, provavelmente teria uma relação de
“obediência” com livres. Mas como filho de africana livre com um livre, não era visto
como livre, ou seja, um “branco”. A maneira de Juca Rosa unia o amante à pessoa que o
queria “de volta” era através dos “objetos de feitiçaria”. Os objetos eram utilizados nas
“consultas” que dava às pessoas que lhes procuravam.
Se “Feitiçaria” não era crime inscrito no Código Criminal, de 1830, então como
julgar Juca Rosa? Como tentamos demonstrar nessa tese, o fato de não ter uma lei que
regulamentasse a crença não impedia as pessoas, inclusive àquelas ligadas ao Estado, de
acreditarem no feitiço e acusarem pessoas de feitiçaria.
1.10 – O “ganhar a vida na feitiçaria” nos “mundos do trabalho” da Corte
Desde a década de 1860, os castigos físicos aos escravos foram cada vez menos
tolerados por autoridades, fosse por motivos humanitários discutidos por juristas dos
territórios do Atlântico –, por debates sobre a prioridade do senhor ou do Estado em
executar as punições, ou mesmo pela manutenção da estrutura física da mão-de-obra.
Escravos, mesmo em número decrescente na Corte, ainda eram solicitados para
trabalhos em anúncios de jornais da Corte durante a década de 1870. Em quatro de
agosto de 1875, por exemplo, a Gazeta de Notícias publicou o seguinte anúncio:
Precisa-se de escravas, escravos, moleques, e negrinhas, paga-se os aluguéis mais
altos 5$ do que em outra parte. o bem tratados, não pancada. E sim muito
respeito e moralidade, os aluguéis pagam-se adiantados. É casa de família e
escritório bem conhecido doze anos, de Ignacio Pinheiro de Souza Gomes,
rua do Senhor dos Passos, n. 153.
101
101
BN, Seção de Obras Raras.
56
Neste pequeno anúncio, podemos identificar várias das informações que
apresentamos sobre a sociedade da Corte à época do processo criminal contra Juca
Rosa: referências à moralidade das relações pessoais, aluguel de escravos como sendo
um bom negócio, compromisso no “bom” tratamento dos mesmos e o endereço
localizado nas imediações onde Juca Rosa vivia, e conseguia sua “clientela”.
Os principais fazendeiros escravistas não moravam em suas fazendas do Vale do
Paraíba, nem nas do Oeste Paulista, mas sim, em sua maioria, na Corte. Fazer política e
negócios era tão ou mais importante para garantir os lucros com as safras de café das
fazendas do que tomar conta pessoalmente da disciplina dos escravos. No meio urbano,
tais senhores lidavam com um ambiente de intensa discussão política, perpassando
todas as “condições de gente”, a partir do momento em que as informações escritas
circulavam de boca em boca nas ruas da Corte, e as interpretações destas informações
compunham o quadro dos seus mundos do trabalho.
102
A mobilização dos escravos era publicamente conhecida na Corte,
principalmente através das maltas de capoeiras como falamos brevemente ao
descrevermos o perfil político de Duque-Estrada, senhor de um escravo envolvido no
processo contra Juca Rosa. Cada uma das maltas de capoeira implementava e controlava
regras de trabalho em cada uma das freguesias da cidade garantindo mercados de
trabalho específicos para escravos e, dependendo da época, portugueses, que dela
participassem. Notícias narrando brigas entre as maltas e perseguições policiais, bem
como “exibicionismos” de capoeiras que “ridicularizavam” policiais em desfiles
públicos, eram publicadas nos diversos jornais da cidade.
103
Mas não são apenas as
maltas de capoeiras que servem de exemplos de mobilização dos escravos em grupos
com interesses específicos na Corte.
Os jornais também noticiavam conflitos entre trabalhadores livres e escravos em
torno de reivindicações de suas condições de trabalho – desde horários entendidos como
“mais adequados” ao serviço realizado, regras de disciplina, a comida servida pelos
patrões e ou senhores, etc. Em cinco de setembro de 1854, pelas dez horas da noite,
escravos entraram na fábrica de velas e sabão de Joaquim da Rocha Paiva, localizada na
freguesia de Santana. Portavam achas de lenhas, e impunham facas, exigindo que seu
102
Para maiores detalhes acerca da construção dessas redes de informações, oriundas de notícias
publicadas na imprensa, na Corte, ver Marco Morel, As transformações dos espaços públicos: imprensa,
atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820 - 1840), São Paulo, Hucitec, 2005.
103
Carlos Eugênio Líbano Soares, A negregada instituição: os capoeiras na corte imperial, 1850-1890,
Rio de Janeiro, ACCESS, 1999.
57
senhor os vendesse, “posto que fosse questão decidida”. Estavam “fartos do trabalho
naquela fábrica”. Rocha Paiva não concordou, dizendo que “deveriam resolver a
situação no dia seguinte, pois era tarde da noite”. No entanto, queria fazer hora com
os escravos a fim de que chegasse a força do Batalhão de Fuzileiros, que havia
chamado. 100 homens chegaram, prenderam os escravos que, amarrados, foram levados
à cadeia. Em 1858, escravos protestaram contra o fechamento de um armazém de café
que funcionava na Rua da Saúde. Tentaram dissuadir o senhor a não mais os vender,
invadindo o estabelecimento. Novamente, força policial foi chamada, sendo os escravos
presos após receberem os policiais a garrafas, tijolos e pedras.
104
Sempre que podiam
escravos também tentavam interferir nas negociações de compra e venda dos
senhores.
105
Diante destas situações, no início da década de 1860, o governo imperial buscou
organizar e regularizar a formação de associações de trabalhadores livres ou libertos.
106
Juca Rosa não fazia, em sua casa, ou Templo”, como consta no processo criminal,
reuniões relativas às causas abolicionistas, e muito menos voltadas para organização de
trabalhadores de um mesmo ofício. As reuniões, segundo todas as testemunhas ouvidas,
eram para que as pessoas que acreditavam em seus poderes de provocar “o mal” ou
produzir “o bem” tivessem seus pedidos aceitos, suas causas resolvidas – cura de
doenças e, principalmente, vingança contra amantes ou reconquista dos mesmos. Caso
tais práticas fossem consideradas parte de algum tipo de religião, Juca Rosa teria
incorrido no artigo 276 do Código Criminal. Neste artigo, lemos ser crime de “ofensa à
religião, à moral e aos bons costumes celebrar em casa ou edifício que tenha forma
exterior de templo, ou publicamente em qualquer lugar, o culto de outra religião que não
seja a do Estado”.
107
Em momento algum do processo as atitudes de Juca Rosa foram
relacionadas ao referido artigo, talvez pelo fato de o mesmo fazer referência ao formato
arquitetônico de um templo religioso ilegal, sobrepujando as descrições dos rituais e das
crenças das pessoas nos poderes do acusado.
104
Cf. Flávio dos Santos Gomes, “História, protesto e cultura política no Brasil escravista”, in Jorge Prata
de Sousa (org.), Escravidão: ofícios e liberdade, Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de
Janeiro, 1998, pp. 65-97, pp. 66-68.
105
Sobre isso, ver os inúmeros casos tratados por Sidney Chalhoub, Visões da liberdade: uma história das
últimas décadas da escravidão na Corte, São Paulo, Companhia das Letras, 1990. Sobre a percepção dos
escravos das possibilidades de luta jurídica, ver Couceiro, Bumerangue encapsulado.
106
Sidney Chalhoub, Machado de Assis, historiador, São Paulo, Companhia das Letras, 2003, pp. 240-
265.
107
Código Criminal do Império do Brazil, p. 298.
58
Mas o réu enfrentou problema por ter cobrado por suas intervenções mágicas... E
ele parecia não fazer questão de esconder sua riqueza, possivelmente conseguida com
dinheiro e objetos de valor vindo de suas “filhas”. Como um homem livre, Juca Rosa
não ganhava dinheiro como senhor de “escravos ganhadores” que “viviam sobre si”,
como dissemos. Ele não mais possuía ofício reconhecido pelo governo uma vez que
havia deixado de ser sapateiro. Rosa não vivia do aluguel de propriedades que
possuísse. Ele vivia do feitiço, da crença das pessoas em seus poderes.
Um vizinho de Juca Rosa, o marceneiro português José da Silva Rafael, afirmou
em seu depoimento que o “feiticeiro estava sempre trajado com luxo, trazendo
brilhantes tanto no peito como nos dedos, com relógio e cadeia e sempre munido de
muito dinheiro”.
108
A denúncia anônima havia chegado ao juiz, como vimos, pelas mãos
do inspetor de quarteirão Ignácio Romualdo Pereira Pinto, que fez o seguinte
comentário, registrado no processo: “com efeito, cheguei ao conhecimento de que esse
crioulo que traja luxo e passa regaladamente não tem meio algum cito de vida”. O
periódico O Mosquito insistia em “denunciar” “famílias ilustres que haviam se
misturado à arraia miúda, se envolvendo em rituais bárbaros, dando-lhe vultosas
quantias”. Por várias vezes referiu-se às “atividades do feiticeiro Juca Rosa” como “um
negócio lucrativo”.
109
O Diário de Notícias, que publicou a denúncia anônima que deu
origem ao processo criminal, afirmava ser “inconcebível o fato de um negro ter
adquirido dinheiro e viver e trajar com luxo”.
110
Já o Jornal do Commercio noticiava
que Juca Rosa vestia “custosas roupas”.
111
Voltamos a perguntar: afinal, do que vivia Juca Rosa, se não daquelas pessoas
que acreditavam em seus poderes e pagavam para, através deles, conseguirem sucesso?
Ele vivia não somente na crença, mas também da crença das pessoas na magia.
Segundo consta no processo criminal, principalmente em seu depoimento, Juca
Rosa “vivia da feitiçaria”, através do que as pessoas queriam lhe pagar”, uma vez que
“nada delas cobrava para ajudá-las”. As pessoas sentiam-se atingidas por algum mal
sobre o qual não tinham poder de controle, nem mesmo o de revertê-lo a seu favor.
Acreditavam que podiam comprar o préstimo deste poder pagando àquele que era
socialmente reconhecido como seu detentor. Desta maneira, Juca Rosa era autorizado
108
AN, Processo-crime, Corte de Apelação, Réu José Sebastião da Rosa, maço 196, caixa 11139, número
1081, galeria C, ano 1871, fl. 26.
109
BN, Seção de Periódicos.
110
BN, Seção de Periódicos.
111
BN, Seção de Periódicos.
59
pelas próprias pessoas a interferir nas suas vidas, bem como na de quem com elas
estivesse envolvido – de acordo com aquilo que lhe fosse pedido.
A magia e a feitiçaria relacionam pessoas que estão em relação em
determinado círculo social. Por isso, como fizemos com o perfil social de Juca Rosa na
Corte dos anos 1870, é fundamental compreendermos a posição e o perfil social de
quem acusa e de quem é acusado de produzir “o mal”. Levando em consideração a
fluidez das relações sociais, é preciso, como procuramos fazer com o processo contra
Juca Rosa, historicizar as acusações, pois o acusado de um momento pode ser o
acusador de outro. Recentemente, Rowlands demonstrou as mudanças do nexo entre a
idade das mulheres acusadas de feitiçaria, na região onde hoje é a Alemanha, nos
séculos XVI e XVII, o perfil dos acusadores e os diferentes estereótipos de mulher
presentes naquela região.
112
Evans-Pritchard, e outros pesquisadores que trabalharam
com diferentes materiais sobre acusações de feitiçaria, demonstraram que as acusações
são feitas entre pessoas de iguais posições, ou de uma pessoa de maior posição para
outra de menor posição, na hierarquia social.
113
No caso de Juca Rosa, podemos observar esta situação em relação ao
denunciante anônimo, um letrado, provável figura de influência política no Império, que
na redação da carta que delatou o acusado demonstrou dominar o linguajar jurídico da
época, bem como a lógica que envolvia os crimes dos quais o acusava. Vimos que Juca
Rosa se furtou de chamar testemunhas que pudessem livrar-lhe das acusações, deixando
claro ao longo de seus depoimentos que se tratavam de “pessoas importantes da Corte”.
Mas, como o processo havia tomado proporções públicas não imaginadas por ele, sendo
acompanhado por jornais de grande circulação, avaliou que “as pessoas importantes”
não iriam aparecer publicamente para dizer que o conheciam a ponto de acharem
absurdas as acusações que contra ele estavam sendo feitas. Na apelação da sentença, seu
advogado, Jansen Júnior, chegou a afirmar que Juca Rosa fora “favorecido por muitos
nomes bem conhecidos nesta Corte, até de influências políticas, de influências
eleitorais”.
112
Alison Rowlands, “Witchcraft and old women in Early Modern German”, in Past & Present, n. 173,
2001, pp. 50-89.
113
Cf. John Middelton & E. H. Winter (dir.), Witchcraft and sorcery in East Africa, London, Routledge
& Kegan Paul, 1963; John Middelton (dir.), Magic, witchcraft and curing, New York, The Natural Press,
1967; Victor W. Turner, “Brujeria y hichicheria: taxonomia versus dinamica”, in La selva de los
simbolos: aspectos del ritual ndembu, Madrid, Siglo Veintiuno, 1967, pp. 124-141 e Douglas, Witchcraft
confessions and accusations.
60
Maggie argumenta que alguns “terreiros” ou “casas de culto ou feitiçaria”,
quando protegidos por membros da elite política e econômica, conseguiram ficar
“invisíveis” à repressão policial. Juca Rosa havia conseguido a proteção de parte elite,
pois tinha como clientes senhoras ricas e de famílias importantes. Mas ele perdeu essa
proteção no momento em que um juiz aceitou a denúncia anônima, levada ao público
por um jornal da Corte. Esta denúncia o impediu de continuar suas “atividades de
feitiçaria”, mas não impediu a crença na feitiçaria porque em momento algum do
processo criminal o juiz, ou qualquer outra autoridade do Estado, negou a existência da
crença de tantas pessoas na feitiçaria. Acreditamos ter dados suficientes para
compreender o jogo de interesses ao redor da figura de Juca Rosa, e o dele mesmo com
as pessoas que lhe iam procurar.
114
O caso de Juca Rosa não era relacionado, como vimos, ao medo senhorial da
insurreição dos escravos. Esse último fato era considerado crime no Código Criminal,
em seu Artigo 113: “julgar-se-á cometido esse crime, reunindo-se vinte ou mais
escravos para haverem a liberdade por meio de força”.
115
As autoridades eram, por lei,
obrigadas a reprimir tal comportamento criminalizado. O caso de Juca Rosa mostra
outra dimensão da ingerência do Estado na investigação de acusações de feitiçaria. Não
se tratava de um escravo, muito menos de um escravo participante de plano de
insurreição ou mesmo de sua execução. Tratava-se de um homem livre, imerso na vida
da Corte, sendo procurado por pessoas que acreditavam em seu poder mágico. Esse
poder era o de mudar os rumos de fatos, de interferir na vida de pessoas, produzindo o
mal a quem estivesse prejudicando seus clientes. Em ambas as situações o Estado
interferiu na crença na magia, buscando controlar as acusações de feitiçaria.
Neste capítulo vimos o caso raro no Império do Brasil, quando o Estado se
envolveu nos assuntos da crença, da magia, e julgou por meio de um processo criminal
um acusado de feitiçaria. O Estado se colocou como uma espécie de oráculo para dizer
se Juca Rosa era ou não feiticeiro, e se ele havia provocado o mal a pessoas diversas
através da magia. No próximo capítulo, veremos outro caso raro que revela a ação do
Estado em um caso de acusação de feitiçaria. Esse caso ocorreu na mesma época do
processo instaurado contra Juca Rosa, anos em que tensões relativas às discussões
114
E. E. Evans-Pritchard, Witchcraft, Oracles and Magic among the Azande, Oxford, Clarendon Press,
1968.
115
Código Criminal do Império do Brazil, p. 119.
61
acerca dos rumos do trabalho escravo no Brasil permitiram a instauração de pelos
menos dois processos criminais, na província do Rio de Janeiro, para julgar pessoas
acusadas de feitiçaria.
62
Capítulo 2
Feitiçaria e conflitos entre escravos e libertos: investigando o feitiço e localizando
os feiticeiros em Cunha
Nesse capítulo novamente analisaremos outro processo criminal por “práticas de
feitiçaria”, ocorridos em Cunha na segunda metade do século XIX.
116
No processo encontramos informações que dizem respeito à sedução que o
feitiço e a feitiçaria provocavam não somente na escravaria, mas em membros da elite
escravista e da boa sociedade imperial. Alguns desses identificavam “objetos de
feitiçaria”, indo procurá-los nas “casas” dos escravos.
A senhora de escravos e seus prepostos conferiam poder a certos tipos de
objetos, o poder de serem usados para “fazer feitiços”, para provocar o mal se
manipulados por feiticeiros. Veremos como os próprios escravos e libertos acusados de
fazerem parte da “Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação” também se sentiam
seduzidos pela prática da magia, e acusaram-se de feitiçaria quando uns acreditavam
que os outros haviam usado poderes mágicos para lhes fazer o mal. A crença no feitiço
e as acusações de feitiçaria envolviam africanos e seus descendentes, escravos ou
libertos. A sociedade reconhecia a capacidade ímpar dessas pessoas manipularem
substâncias e objetos, proferirem certas palavras mágicas e liderarem rituais para causar
o mal. A seguir, resumiremos o caso.
2.1 – A venenosa magia da “Coroa da Salvação”
No dia 12 de janeiro de 1870, dona Geraldina Maria de Campos escreveu ao
Inspetor de Quarteirão, Antonio Pereira Coelho, sobre “um fato criminoso” que havia
acontecido em sua fazenda, localizada na cidade de Cunha, província do Rio de Janeiro.
Alguns de seus escravos haviam morrido “da mesma queixa”, depois de terem “caído
doentes, sofrendo de uma enfermidade”.
117
Ela logo suspeitou de que haviam sido
“envenenados”, uma vez que isso também ocorrera em algumas fazendas próximas. Por
isso, “mandou fazer um exame minucioso em todas as casas” que serviam “de morada
116
Esse processo foi analisado de outro ponto de vista na nossa dissertação de mestrado Pai Gavião e a
Coroa da Salvação: crença e acusações de feitiçaria no Império do Brasil, Rio de Janeiro, Programa de
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia IFCS/UFRJ, 2004, Dissertação de Mestrado
(Concentração em Antropologia).
117
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fl. 3.
63
aos [seus] escravos”. Nesta busca, “na casa que residia seu escravo de nome Pascoal de
Nação”, foram encontrados,
dentro de uma patrona de couro, uma garrafa branca pequena com um
líquido que ele confessou ser de uma raiz muito venenosa, raspada,
misturada com aguardente, e assim mais diversas raízes todas venenosas,
das quais de algumas ele se servia para dar aos seus parceiros. Achou-se na
mesma patrona um canudo contendo dentes de cobra, alfinetes e alcanfor,
tudo reconhecido como material venenoso.
118
Depois de “ter feito o exame no material”, dona Geraldina perguntou ao escravo,
que havia sido trazido por seus homens até a casa de morada da fazenda, “para qual fim
tinha em seu poder aquelas raízes”. Além de reconhecer que todas elas eram
“venenosas”, respondeu que havia dado o “líquido da garrafinha a três escravos” de
dona Geraldina: Jeremias, Benedicto Garcia e Lourenço Crioulo. Havia dado um pouco
da raiz, “misturada ao prato de mingau da crioulinha Maria Rita”, também escrava de
dona Geraldina. Na carta-denúncia, a senhora afirma que esta escrava “veio a falecer
vinte e quatro horas após tomar este veneno”. Mas, como ela queria saber se havia mais
vítimas do uso que Pascoal fazia destes “venenos”, perguntou a ele se outras pessoas
haviam ingerido tais substâncias. O escravo respondeu que, “há poucos dias, havia
matado o crioulo Luís, escravo de Joaquim Augusto da Purificação e Silva, seu genro”.
Para tanto, deu “a esse crioulo duas narigadas de pós de uma raiz, que já está mais gasta,
misturando a um prato de canjiquinha que estava comendo”.
119
Dona Geraldina ainda queria saber “onde Pascoal havia arranjado os venenos”.
A “garrafa branca”, a “raiz venenosa”, os “dentes de cobra”, os “alfinetes”, tudo isso
“dentro de um canudo”, respondeu Pascoal, havia recebido do escravo Luís
Moçambique, do capitão José de Godois Moreira, que residia na região. Este escravo
havia “preparado” o “veneno que enchia a garrafa”. Pascoal afirmou que estava
“aprendendo este ofício” com Moçambique, que disso era “mestre”. Mas, e com relação
aos outros objetos? Quem havia lhe dado? Pascoal afirmou que fora o escravo crioulo
Félix, também um dos seus mestres”. Por esta raiz, havia-lhe “pago mil réis”, uma vez
que Félix afirmou que ela “era para tudo”, “podendo matar muita gente da fazenda, até a
chegada da primeira sexta-feira da Quaresma”.
118
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fls. 3v-4.
119
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fl. 4.
64
Ainda segundo Pascoal, tanto Luís Moçambique quanto Félix “possuíam várias
raízes e outros venenos”, através dos quais “matavam algumas pessoas”. Na fazenda de
dona Geraldina, ele, Pascoal, era o “único mestre”, e que vinha aprendendo a manipular
os venenos com aqueles dois, “conhecidos entre os escravos da região como mestres
neste ofício”. A senhora, então, quis saber como os escravos das várias fazendas tinham
conhecimento disso, sobre o que Pascoal afirmou que era “por também estarem
tomando aulas com Luís e Félix”.
120
2.2 – O exame dos “objetos de feitiçaria”
No dia 15, o tenente Antonio de Andrade Almada, delegado responsável pelo
caso, recolheu todo o material para que, na falta de um médico e de um cirurgião
profissionais na cidade de Cunha, fossem examinados pelo boticário Hygino José de
Santa Ana. O boticário afirmou que
não lhe era possível, conhecendo das preparações e remédios da botica,
conhecer as raízes, e nem tampouco quais os seus efeitos, o que poderia
ser declarado por facultativas proficuidades. Que quanto ao líquido que está
na garrafinha branca, poderia declarar que qualquer composição
venenosa está misturada à aguardente.
121
Em um primeiro depoimento, Pascoal disse ao delegado tudo aquilo que havia
dito à dona Geraldina, à exceção do fato de
outro tanto das raízes lhe terem sido dadas pelo liberto Jacinto Monjolo, que
foi escravo de Nuno da Silva Reis. Ao mesmo Monjolo, essas raízes
venenosas haviam sido dadas por Antonio Carioca, liberto e morador da
região, que estava ensinando a ele e a tantos outros escravos da região a
curar malefícios, do que era muito bom mestre. Outras sete raízes e o
canudinho com os dentes de cobra, mais os alfinetes, lhe haviam sido dados
por Luis Moçambique, mas que a garrafinha com o líquido, antes de tudo,
lhe havia sido remetida por Jacinto Monjolo a Luis.
122
As preocupações de membros da classe senhorial local estavam centradas no uso
que os escravos e alguns libertos faziam de raízes venenosas e dos “objetos de
feitiçaria” encontrados na casa de Pascoal. As autoridades policiais e judiciais também
demonstraram, ao longo do processo, grande preocupação acerca da rede de comércio
120
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fl. 4v.
121
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fl. 6-6v.
122
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fl. 7.
65
de “objetos de feitiçaria”, de “feitiços” e de “ensino de feitiçaria” organizado por estas
pessoas. Neste sentido, os depoimentos continuavam dirigidos para o entendimento do
funcionamento desta relação de troca, através do reconhecimento do poder da
manipulação dos “objetos de feitiçaria” oferecidos pelos “mestres deste ofício”.
O exame dos “objetos de feitiçaria” encontrados na casa de Pascoal continuou
com informações de várias testemunhas. O inspetor de quarteirão Antonio Pereira
Coelho, sobrinho de dona Geraldina, soube da busca nas casas dos escravos, e ouviu do
próprio Pascoal que a finalidade dos objetos era “ganhar dinheiro e matar muita gente”.
Estava “aprendendo” a fazer tudo isso com o escravo Félix.
123
Um negociante volante
português chamado Manuel Pereira de Abro, morador nas terras da fazenda de dona
Geraldina, foi chamado por esta senhora para que, junto com seu filho, Timóteo José
Cesário de Campos, ajudassem na busca às “senzalas” dos escravos.
124
Os “objetos de
feitiçaria” pertencentes a Pascoal foram encontrados na “senzala” da escrava Valeriana,
todos eles “dentro de uma caixa, fechada com chave”. A “patrona de couro de Quati
estava com diversos dentes de cobra, alfinetes, diversas raízes e a garrafinha com um
líquido”. “Após ser castigado”, Pascoal revelou que “pagou dez tostões por algumas das
raízes” ao escravo Félix, parte do material a ser usado para “matar vinte e uma pessoas
até a Quaresma, sendo sete crianças e quatorze grandes”, segundo lhe havia dito Luis
Moçambique, “para receber a Coroa da Salvação”.
Outras quatro testemunhas depuseram especificamente sobre a busca às casas ou
senzalas dos escravos, e sobre os objetos encontrados na caixa de Pascoal: o oficial de
carpinteiro Máximo Campos do Amaral, “compadre de dona Geraldina”, e os três
lavradores Antonio Leite França, José Monteiro dos Santos, “parente em grau remoto de
dona Geraldina”, e Manoel Borges da Silva. Todos confirmaram as informações das
demais testemunhas, bem como as de dona Geraldina, e acrescentaram que, depois de
Pascoal ser “preso na casa de morada da fazenda”, a senhora abriu a patrona de couro
sobre uma mesa, diante de várias testemunhas, espalhou os objetos e pediu para que
Pascoal fizesse o “reconhecimento” dos mesmos.
125
Podemos conhecer mais os procedimentos de busca e esclarecimento dos tais
“objetos de feitiçaria” no depoimento do “senhor moço” de Pascoal, Timóthio José
Cezário de Campos. De início, explicou que sua mãe, proprietária da fazenda Itambé,
123
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fl. 10v.
124
Durante todo o processo-crime, em algumas passagens a moradia dos escravos de dona Geraldina é
chamada de “casas”, em outras de “senzalas”.
125
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fls. 13-21v.
66
desconfiou dos motivos das “mortes violentas de seus escravos Jeremias, Benedicto
Garcia, Lourenço, Maria Rita, e de sua mana Maria Agostinha, casada com Joaquim
Augusto”, “todas com os mesmos sintomas, e em pouco espaço de tempo”. Disse a ela
que acreditava em duas explicações: ou “propinação de veneno ou na colocação da
moradia dos escravos em lugar pestífero”. Foi então que dela recebeu autorização para
dar busca nas senzalas dos seus escravos”. Na senzala de Valeriana, encontrou “uma
caixa fechada, cuja chave estava com Pascoal, então trabalhando na roça”. Arrombando
a caixa, encontrou “uma patrona de couro contendo uma porção de dentes de cobras,
uns alfinetes, uma garrafinha com um líquido, parecendo, pelo cheiro, ser aguardente
misturada com essência de raízes”.
126
No mesmo dia, “prendeu” Pascoal que, após ser “castigado, confessou a origem
dos objetos”, do mesmo modo como vimos na denúncia de dona Geraldina e nos
depoimentos de algumas das testemunhas. A manipulação dos objetos, segundo Pascoal,
começou a ser por ele aprendida com “Félix e Luís Moçambique, este último o
verdadeiro mestre, na Quaresma passada [1869]”.
Na Quaresma deste ano [1870] tinham eles de se reunirem para deliberarem
o que fosse mais conveniente, e para cada um receber graduações, e que
assim como os estudantes aprendem matérias diversas em cada um ano,
assim também os discípulos desta Escola tinham que aprender anos
diversos. Luís Moçambique estava ensinando a outros escravos também no
termo de Guaratinguetá. Se uma das raízes apreendidas com ele fosse dada a
um cão, este nada sofreria. Naquele momento, o senhor moço raspou um
pouco da raiz mais venenosa, misturou com um tanto de água, e deu a um
cão que imediatamente caiu babando e em total desespero, e assim se
conservou pelo espaço de dois dias, tendo sido mister matar o mesmo
cão.
127
O feitor da fazenda deu seu testemunho, em seguida. Chamava-se José Augusto
de Oliveira, era homem livre e afirmou também ser “lavrador”. Além de confirmar tudo
o que o “senhor moço disse, bem como dona Geraldina na sua carta-denúncia,
acrescentou que ela era “senhora muito humana para seus escravos, dando a estes bom
tratamento, não quanto à alimentação, como vestindo-os bem, e curando-os em suas
enfermidades quando doentes”. Disse ainda que os escravos “vivem como se fossem
forros”.
128
126
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fls. 23-24.
127
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fls. 24-24v.
128
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fls. 25-27v
67
2.3 – O depoimento de Pascoal
No dia 26 de janeiro de 1870, Pascoal depôs e, oficialmente, contou sua versão
dos fatos. Disse ser “natural da Costa da África, morador no sítio Itambé e escravo de
dona Geraldina desde a morte de seu primeiro senhor, Luis de Campos Moreira, o que
fazia muito tempo, e desde então era trabalhador de roça”.
129
Quando ocorreram os
tais “crimes, estava no tio de sua senhora”. Disse também que conhecia todas as
testemunhas do processo, e que reconhecia serem seus os objetos encontrados em sua
caixa. A partir de então, seu depoimento centra-se na história e na manipulação de tais
“objetos de feitiçaria”, termo usado por todas as testemunhas e por dona Geraldina e
que, supostamente, também será usado por Pascoal.
As sete raízes e a garrafinha branca com um líquido lhe haviam sido dadas
por Jacintho Monjolo, escravo, hoje liberto, de Nuno da Silva Reis. Essas
raízes foram mandadas por Antonio Carioca, também liberto, e a garrafinha
pelo escravo Luís Moçambique, pertencente ao capitão Godois. Em meados
da Quaresma passada, ele e Jacintho Monjolo principiaram a aprender o
ofício de curar malefício com Luís, e foi nessa ocasião que recebera as
raízes que estão separadas na patrona de couro, e os demais objetos já
citados. Antes disso, Félix lhe dera raízes dizendo que eram para tudo.
Quando eles estavam aprendendo esse ofício, Luís lhes dissera que na
quinta-feira santa deste ano [1870] deveriam reunir-se em sua casa, no Sítio
do Pinheiro, para aprenderem o mais que lhes faltasse e receberem, então, o
grau de ordem.
130
Mas estes objetos não somente eram dados, bem como o conhecimento passado
gratuitamente. Entre todos os escravos e libertos mencionados, havia comércio de todas
estas coisas, incluindo vidas e formação de crédito de uns para com os outros. É tudo
isso que o depoimento de Pascoal passa a narrar.
Ele respondente havia dado a Luís a quantia de três mil réis, a Félix, dez
tostões, e havia prometido a Jacintho Monjolo a quantia de quatro mil réis,
que ainda não tinha pago. Que, tendo Jacintho Monjolo de pagar a Luís
Moçambique, e não tendo feito, contou-lhe o mesmo Jacintho que havia
brigado com Luís, na Lagoinha, e que indo entender-se com Antonio
Carioca, e queixando-se do ocorrido, resultou ir Antonio Carioca à senzala
de Luís, que é no Pinheiro, e lá descobrira objetos de feitiçaria, desde
quando Luís adoecera, e que o Carioca quebrara-lhe a mandinga, sendo
reconhecido como mestre de tais mandingarias. [...] O crioulo Benedicto
Garcia havia-lhe roubado umas galinhas, e seis mil réis em dinheiro. Deu-
129
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fl. 27v.
130
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fls. 28-28v.
68
lhe então um pouco do líquido da garrafinha misturado à aguardente, o que
não o matou imediatamente, pois durou ainda mais três meses. Matou as
outras pessoas para experimentar os efeitos das raízes.
131
2.4 – As prisões dos outros envolvidos
Após tantas informações fornecidas pelo depoimento de Pascoal, as autoridades
locais foram atrás dos envolvidos com a comercialização dos “perigosos objetos de
feitiçaria”, bem como com o “ensinamento de feitiçarias”. O primeiro a ser preso, em 29
de janeiro, na cidade de Guaratinguetá, foi Antonio Carioca. Com ele, em sua “casa”,
foi “apreendida uma bolsa de couro, que estava escondida, um livrinho de Santa
Bárbara, um pequeno embrulho com um bocado de cera, um pedacinho de trapo azul, e
mais um registro de Jesus e Maria, com uma raiz”.
No dia primeiro de fevereiro, Pascoal afirmou ser “natural da Costa da África,
residindo naquela cidade quatro meses”. Negou que tivesse qualquer tipo de relação
com a venda ou a entrega dos “objetos de feitiçaria” a Antonio Carioca, Luís
Moçambique e Jacintho Monjolo e que “há sete anos não ia à Cunha”. Quando
perguntado se “tinha inimizade com Antonio Carioca, respondeu que não, mas que sabe
que este não lhe gosta, e até lhe quis matar por não querer ele consentir que entrasse de
noite na fazenda de seu senhor, uma vez, com todos os escravos da fazenda no terreiro,
isto a meia-noite”.
132
O próximo a ser preso e a depor foi Luís Moçambique. Disse que “veio da Costa
da África aos sete anos de idade, e estava agora com mais ou menos 75 anos; é natural
de Luli, e residia mais ou menos 15 anos no sítio de seu senhor, o capitão José de
Godois Moreira, trabalhando na roça e sendo curador de cobras, pelo que recebia
gratificações”. Também afirmou “conhecer a todos que estavam depondo naquele
processo, menos Antonio Carioca, e que no dia dos crimes estava no Sítio do Pinheiro,
pertencente ao seu senhor”. Quando perguntado se tinha “algum motivo particular ao
qual atribuía este processo”, respondeu que “atribuía” ao fato de “suporem que ele fosse
curador de malefício”.
133
Mas o delegado queria saber como é que ele explicaria que
“todos sabiam de sua ligação com Antonio Carioca” e, naquele momento, ele afirmava
que “se quer o conhecia”. Luis contou que, certa noite, “Antonio Carioca foi ao Sítio do
Pinheiro em sua procura, com alguns companheiros, acometendo-lhe com pancadas, das
131
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fls. 29-30.
132
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fls. 32v-33.
133
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fls. 35v.
69
quais lhe resultaram incômodos de saúde, sofrendo do peito até o presente. Logo depois,
Antonio Carioca se retirou”.
134
Sobre os “objetos de feitiçaria”, e suas relações com os demais envolvidos no
seu comércio e uso, afirmou que realmente
deu a Pascoal uma garrafinha com Losna, e Salsa para curar dor de barriga,
misturada aos remédios em aguardente, e que também dera nessa mesma
ocasião raízes com dentes de cobra, para curar mordeduras da mesma cobra.
As raízes eram aquelas mesmas, mas a garrafinha não. [...] Pascoal deveria
voltar ao Sítio do Pinheiro para comprar um Livrinho de Santa Bárbara, mas
até o momento ele não o havia procurado. [...] Jacintho Monjolo cruzou com
ele, trazendo um animal, e que no dia seguinte voltaria à Festa da Lagoinha,
mas que não fora, e nem por isso ele depoente se zangara, pois não tem
negócio algum com Jacintho. [...] Estando Genovefa, mulher de Jacintho,
doente, sofrendo de inchação na barriga, Monjolo lhe procurou para dar
remédios a ela, e que ele respondente prestando-se a isto aplicara a raiz de
Guiné em aguardente para experimentar, e que ela, tomando-o, melhorou
andando boa por quase dois anos, sem do por ele reconhecida a moléstia
como humores de bobas, dando-lhe Jacintho dez tostões de gratificação.
[Pelos objetos] Pascoal lhe dera dez tostões.
135
No mesmo dia, foi interrogado Jacintho Monjolo, dizendo chamar-se “Jacintho
Nunes da Silva Reis Júnior, Monjolo da Costa da África, nascido em Nategué, tendo
vindo de muito pequeno e há muitos anos”. O delegado queria saber sobre a
procedência e a circulação dos “objetos de feitiçaria”, mais uma vez. De saída, Jacintho
afirmou que
não deu objeto algum a Pascoal, e nem a Luís Moçambique, e que Pascoal
era mestre de feitiçaria há muitos anos, pois Luís ensinava este ofício a ele
muitos anos. Luís era inimigo dele [Jacintho] em conseqüência de haver
procurado Antonio Carioca para curar a sua mulher, tendo-lhe feito mal e
que dera a Carioca 20 mil réis pelo tratamento. [...] Luís prometera que na
Festa da Lagoinha o mataria, e que [após] Pascoal [ser] preso por causa das
desordens e das mortes na casa de dona Geraldina, contaram a ele que Luís
ensinara a Pascoal para comprometer a ele respondente, fazendo declarações
a seu respeito, que não são verdadeiras.
136
134
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fl. 36.
135
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fls. 36v-37.
136
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fl. 39.
70
Em seguida, o delegado perguntou quais eram as suas relações com Félix, e por
qual motivo havia curado a mulher de Antonio Carioca. Jacintho afirmou não conhecer
Félix e explicou a trama que o levou a curar a mulher de Carioca:
Antonio Carioca foi voluntariamente a sua casa e pediu para que ele curasse
sua mulher. Então, trataram o curativo pela quantia de vinte mil réis. Nessa
ocasião, Carioca lhe disse que Luís Moçambique era quem a matava, mas
que ele, o depoente, se comprometia a curá-la, passando a dar-lhe remédios
ocultos, exceto a aplicação de fava de Santo Ignacio, que ele veio dar uma
vez em aguardente, tendo ela melhorado, vivendo sempre doente.
137
Após saber da prisão de Pascoal, e dos motivos que levaram esse escravo a ser
preso, Jacintho afirmou que passou a “vender suas criações, seus animais e suas roças
por medo de ser preso”. Assim, seu depoimento foi encerrado.
2.5 – Novas informações surgem no julgamento
No dia onze de janeiro, Pascoal, Luís Moçambique, Félix, Antonio Carioca e
Jacintho Monjolo foram pronunciados, pelo juiz, por terem incorrido no artigo 192 do
Código Criminal, que estava localizado no Título II Dos crimes contra a segurança
individual, Capítulo I Dos crimes contra a segurança da pessoa e vida, Seção I
Homicídio. Os acusados ficaram detidos na cadeia de Cunha até o dia do julgamento, 28
de março, sendo novamente ouvidos. Desta vez, pelo juiz e não pelo delegado, como
ocorreu no inquérito.
Pascoal foi o primeiro a depor. O juiz deteve-se nas mortes supostamente
cometidas pelo escravo, e nos seus motivos, e não mais, como o delegado, na circulação
dos “objetos de feitiçaria”. Pascoal afirmou que a única pessoa que realmente ele
quisera matar foi Benedito Garcia, “dando-lhe veneno, porque lhe havia furtado umas
galinhas e roupas de seu uso, arrombando sua casa, a ponto de ficar sem elas. No intuito
de “experimentar as substâncias”, dera um pouco a Maria Rita e Luís, pois “como
remédios, também serviam para curar”. Disse, também, que não matara Geremias. Eram
muito “amigos, pois tinham vindo juntos de sua terra e moravam na mesma casa”.
Assim, “era fácil atribuir a ele a morte de Geremias”. Confessou que “não conhecia a
natureza destes remédios, porque quem lhe deu, Jacintho Monjolo, não lhe havia dito”.
O juiz queria saber por que Pascoal aceitou os presentes de Jacintho, sobre o que o
137
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fl. 39v.
71
escravo respondeu que, como este “tratava de seu senhor e dos seus parceiros”,
acreditou que os “remédios eram para fazer o bem”.
138
O juiz pediu para que os “objetos” fossem trazidos para Pascoal fazer o seu
“reconhecimento”. O único que não reconheceu como sendo seu foi uma “bolsinha de
couro” que afirmou pertencer a Ls Moçambique. Esse foi o único momento no qual o
juiz deteve-se no exame dos “objetos de feitiçaria”.
139
Logo em seguida, quis saber por que Pascoal achava que estava sendo julgado.
O escravo então afirmou que achava “estranho” que, fora Manoel Pereira de Abreu e
Timothio José Cezário de Campos, “todas as demais testemunhas não estavam presentes
no momento em que foi preso e castigado, momento no qual reconheceu os objetos, na
casa de dona Geraldina”. Continuando, afirmou que sua “confissão” havia sido feita por
estar “constrangido por castigos na casa de sua senhora”. Em sua “opinião”, seus
senhores o apreciavam suas idas “à casa do capitão José de Godois Moreira, onde os
brancos lhe estimavam” e, por isso, “adquiriram ódio contra ele e assentaram de
processá-lo”.
140
Luís Moçambique foi o próximo interrogado. Afirmou que “tinha o hábito de
curar as pessoas de mordedura de cobra”. “Conhecia Pascoal muito tempo, e tinha-
lhe dado as tais raízes, que eram para curar mordeduras de cobra, e muitas moléstias.”
Pelo quê, afinal de contas, Luís acreditava que estava sendo processado, quis saber o
juiz. Luís afirmou que, no momento em que “estava sendo castigado pelos seus
senhores, Pascoal o envolveu falsamente nos crimes, dizendo que os venenos que foram
por ele [Pascoal] propinados haviam sido ministrados por ele, Luís”.
141
O terceiro e último interrogado, apesar de cinco pessoas terem sido pronunciadas
no processo, foi Jacintho Monjolo. Disse que, fora o fato de que “mandou sua mulher
ter sido curada por Antonio Carioca”, ignorava todo o resto do que foi dito sobre
“objetos de feitiçaria” e seu envolvimento com os outros acusados no processo.
O julgamento terminou, em 21 de agosto de 1870, após a recusa do pedido de
apelação, feito a rogo de dona Geraldina. Pascoal e Luís Moçambique foram
condenados à pena de galés perpétuas e Jacintho Monjolo absolvido.
138
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fl. 54.
139
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fl. 54v.
140
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fls. 55-55v.
141
AN, processo-crime, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870, fls. 56v-57.
72
2.6 – Acusações de feitiçaria entre escravos e libertos
Favret-Saada realizou seu trabalho de campo na região francesa do Bocage, de
1968 a 1971.
142
Sua análise dos dados converge com a de Evans-Pritchard posto que, tal
como o antropólogo inglês, ela também passou por uma “bem sucedida” adaptação às
circunstâncias do campo. Evans-Pritchard produziu sua etnografia sobre os Azande
entre 1924 e 1930, através de três expedições à Zandeland. Seu interesse em estudar a
feitiçaria surgiu a partir do momento em que compreendeu que esse fenômeno era
central na vida social dos Azande. “O antropólogo deve seguir o que encontra na
sociedade que escolheu estudar”.
143
Ambos os autores construíram seus argumentos a
partir das informações coletadas na pesquisa, informações essas que demonstravam no
quê os “nativos” conferiam interesse, e não naquilo que o pesquisador gostaria que os
mesmos se interessassem.
Desde a nossa dissertação de mestrado, convivemos com um dilema: como
estudar uma acusação moral, a qual os documentos que encontramos tratavam como
sendo condutas criminais, sem que as mesmas estivessem inscritas, criminalizadas, no
Código Criminal do Império do Brasil?
A crença na feitiçaria, o medo que as pessoas tinham do feitiço, do que ele
poderia provocar em suas vidas, teriam sido extirpados quando o Império promulgou
seu código único de leis em 1830? Seria possível que os senhores de escravos do
Império, ao contrário dos da colônia, não mais acreditassem no feitiço, simplesmente
pelo Estado não mais legislar sobre a crença e as acusações de feitiçaria?
Não foi bem isso que encontramos nos documentos que descrevemos até aqui,
tanto o processo criminal instaurado para julgar Juca Rosa, acusado de feitiçaria na
Corte, quanto aquele ocorrido em uma fazenda fluminense. Veremos, ainda, no próximo
capítulo, uma série de notícias de jornal descrevendo encontros liderados por Pai
Gavião, um espírito, na região de Itu. A sociedade imperial se interessava pela feitiçaria,
acreditava no feitiço, e em algumas ocasiões queria punir feiticeiros. Para aquela
sociedade, eles existiam.
Segundo Favret-Saada, uma forma de os Azande demonstrarem a existência de
conflitos entre si era afirmarem-se como estando, em certas situações, enfeitiçados. Isso
142
Jeanne Favret-Saada, Les Mots, La Mort, Les Sorts, Paris, Gallimard, 1977.
143
Evans-Pritchard, Witchcraft, oracles and magic among the Azande, p. 202. Para maiores informações
acerca dos trabalhos de campo de Evans-Prichard entre os Azande, ver Malcolm D. McLeod, “Oracles
and accusations among the Azande”, in André Singer & Brian V. Street (eds.), Zande themes: essays
presented to Sir Edward Evans-Pritchard, Oxford, Basil Blackwell, 1972, pp. 158-178.
73
revelava as formas pelas quais os acusados e os acusadores de feitiçaria dominavam e
manipulavam os códigos sociais morais. Os Azande, conforme Evans-Pritchard
demonstrou, falavam sobre a feitiçaria, viviam relações sociais através das acusações de
feitiçaria, perseguiam e condenavam os feiticeiros. Em sua pesquisa no Bocage, Favret-
Saada lidou com uma situação bem diferente dessa: o silêncio sobre a feitiçaria
imperava entre os agentes sociais. Nessa região, ao contrário dos Azande, havia a
concorrência entre sistemas de explicação de infortúnios: as pessoas ora usavam a
medicina, o discurso científico e a religião, os sistemas oficiais de explicação, ora
usavam a feitiçaria. Essa variação ocorria de acordo com o ambiente social no qual os
camponeses, seus informantes, estivessem. Segundo a autora, eles eram vistos por
pessoas de maior prestígio na região como crédulos, ignorantes e ingênuos, e, por isso,
ainda acreditavam na feitiçaria como causadora dos males de vida.
144
Ao conviverem
com esse rotulamento, seus informantes, ao contrário dos Azande, ofereceram muita
resistência para falar sobre a sua crença na feitiçaria.
Para elucidar a questão que lhe era posta pelo seu material de campo, Favret-
Saada seguiu parte do método de pesquisa de Evans-Pritchard ao deixar-se guiar pelos
seus informantes, os camponeses do Bocage.
145
A autora passou a prestar atenção nas
situações nas quais a crença na feitiçaria se manifestava, bem como no discurso dos
agentes sociais sobre a mesma e no que esse discurso exprimia.
146
Com isso, sua
pesquisa etnográfica voltou-se para o entendimento do modo pelo qual seus informantes
entendiam o funcionamento da feitiçaria. Tal como Evans-Pritchard demonstrou a partir
de sua pesquisa entre os Azande, Favret-Saada descobriu como a feitiçaria no Bocage
era um sistema fechado de crença para explicar porque e não como ocorriam os
infortúnios. Ela mesma, em várias situações, foi encarada como estando enfeitiçada. A
partir desse momento, quando aceitou conviver dentro daquele sistema de crença, ela
teve acesso ao modo pelo qual seus informantes identificavam os casos de feitiçaria, e
onde os feiticeiros e os enfeitiçados se encontravam. Favret-Saada não mais se
preocupou com o fato de não conseguir entender aquela lógica de pensamento. Uma vez
que vivenciou situações envolvidas pela crença na feitiçaria no Bocage, ela elaborou um
144
Favret-Saada, Les Mots, La Mort, Les Sorts, pp. 34-35.
145
A própria autora faz referência em nota à mesma passagem de Evans-Pritchard citada anteriormente
neste texto. Cf. Favret-Saada, Les Mots, La Mort, Les Sorts, p. 30.
146
Favret-Saada, Les Mots, La Mort, Les Sorts, p. 43.
74
esquema explicativo do sistema simbólico dessa crença. Esse método de pesquisa a
autora denominou, anos mais tarde, “ser afetado”.
147
Apesar de estarmos lidando com contextos sociais bem distintos, encontramos
entendimentos de feitiçaria entre os Azande, no Bocage, no Império e na República do
Brasil como formas de produção de explicações para infortúnios e insucessos. Evans-
Pritchard e Favret-Saada trabalharam com a “ambigüidade” das crenças na feitiçaria.
Um Azande, segundo Evans-Pritchard, muitas vezes ficava perplexo ante de uma
acusação de feitiçaria, mesmo que esse fato fosse parte do cotidiano de seu sistema de
crenças. No Bocage, Favret-Saada etnografou fatos parecidos, relativos não somente às
práticas rituais de feitiçaria, mas também ao fato de muitas das “fórmulas mágicas” a
que seus informantes tanto se referiam eram aprendidas em livros que não pareciam
existir. Portanto, a autora demontrou como a “ambigüidade” das crenças são necessárias
a qualquer tipo de crença em fórmulas mágicas, posto que sem ela ninguém pode ser
“pego”, ou o sistema de crenças “desmentido”.
148
No Império, o poder de curar e o de
matar dos escravos da “Coroa da Salvação” viviam lado-a-lado: quando aplicavam as
substâncias para matar, mesmo quando não queriam provocar mortes, justificavam seus
atos ou através de contendas anteriores com as vítimas, ou como forma de praticar o
feitiço. Mas o feitiço não era questionado pelos que nele acreditavam, mas sim
explicados por meio de seu sistema de crenças.
Tanto Favret-Saada quanto Evans-Pritchard demonstram a importância de
compreendermos as acusações de feitiçaria, e a magia, reconhecendo o lugar social
ocupado pelos acusadores e pelos acusados. É preciso saber o que está em jogo no
conflito que se através das práticas mágicas. Ambos os autores chamaram atenção
para o fato de que as práticas mágicas e a feitiçaria encontravam respaldo no sistema de
crenças nos lugares nos quais eles realizaram suas pesquisas de campo. A diferença da
crença dos Azande em relação à dos camponeses no Bocage era a de que entre os
Azande a feitiçaria era elemento central para o funcionamento da sociedade, e para os
segundos tratava-se de um sistema de crença silencioso. Na região do Bocage ninguém
queria falar nada sobre a magia, os feitiços e a feitiçaria. O contrário somente ocorria
quando uma pessoa estava ligada a uma acusação de feitiçaria.
147
Cf. Jeanne Favret-Saada, “Être affecté”, in Gradhiva Revue d’Histoire et d’Archives de
l’Anthropologie, 8, 1990, pp. 3-9.
148
Favret-Saada, “Être affecté”, p. 62.
75
Tal como todos aqueles que estudaram a feitiçaria, esses dois autores também
colocaram em relevo a força da opinião pública na acusação de feitiçaria. Somente após
o pronunciamento do oráculo, entre os Azande, ou do anunciante, no Bocage, a figura
do feiticeiro passava a existir. Ela nunca era assumida, mesmo que a suspeita sempre a
fizesse presente, por alguns traços físicos e práticas sociais específicas que poderiam
atestar a presença de força mágica em uma determinada pessoa. Uma vez descoberta a
identidade do acusado de feitiçaria, ela poderia ser combatida por outra força mágica
com maior poder. Em Cunha, o Estado se imiscuiu na crença como um oráculo que
identifica e julga os feiticeiros. O delegado e o juiz tentaram domesticar a crença no
feitiço por meio dos mecanismos jurídicos do Império, conduzindo dentro das
possibilidades legais um processo sobre algo que não estava previsto para ser julgado
pelo Código Criminal: as acusações de feitiçaria.
2.7 A possibilidade do final da escravidão no Brasil e suas conseqüências no Rio
de Janeiro
Por que em 1870 foi instaurado um processo criminal para apurar mortes
aparentemente cometidas por escravos e libertos, na cidade de Cunha? Por que foi
instaurado um processo criminal que tinha como objetivo, como vimos, julgar e
condenar escravos e libertos acusados de terem provocado mortes por meio da
feitiçaria? Qual era o clima, no Sudeste escravista, que reinava entre os senhores para
que aquele caso fosse levado à justiça? Este foi um dos raros processos jurídicos
instaurados para julgar acusados de feitiçaria. Dona Geraldina deveria ter motivos
especiais para pedir a abertura de processo judicial na intenção de apurar a morte dessas
pessoas em sua propriedade. É sobre isso que falaremos agora.
Em 22 de junho de 1876, o presidente da província do Rio de Janeiro, Francisco
Correia Pinto Lima, recebeu um ofício do juiz de Direito da comarca de Barra Mansa,
Ildebrando Pindaíba de Mattos, com notícias diversas sobre crimes cometidos por
escravos. Segundo Ildebrando, a Lei de 28 de setembro de 1871 havia colaborado para a
diminuição dos crimes praticados por escravos em Barra Mansa.
149
Esta lei, mais
conhecida por “Lei do Ventre Livre”, tinha como principal item a obrigatoriedade dos
senhores arbitrarem o preço do escravo e aceitar a compra de sua liberdade, assim que
ele lhe apresentasse o pagamento.
149
APERJ, fundo PP, coleção 82.
76
Chalhoub analisou detalhadamente as primeiras idéias políticas de Dom Pedro II
sobre a lei que deveria acabar definitivamente com a escravidão no Brasil, mas que,
depois de diversos debates, culminou no projeto final da “Lei do Ventre Livre”,
aprovada em 28 de setembro de 1871.
150
Como vimos no Capítulo 1, o ponto central
que os críticos do governo levantavam versava sobre as determinações da Lei acerca do
direito dos escravos constituírem pecúlio e o utilizarem para obterem a alforria por
indenização de preço ao senhor. Muitos políticos e influentes senhores de escravos
temiam o modo pelo qual os cativos interpretariam essa parte da Lei. Não era segredo
de Estado que por várias vezes, em um passado recente a 1871, escravos entenderam
que certas leis os estariam libertando definitivamente do cativeiro foram diversos os
casos durante as guerras provinciais no período de legitimação da independência
política do Brasil. Também não era segredo, como Chalhoub demonstrou em trabalho
anterior, que o Imperador era sensível ao aumento do número de cartas de alforria
compradas pelos escravos na Corte.
151
Esse fato foi visto como elemento de pressão
acerca de, ao menos, o Estado legalizar a compra da alforria, para além do muitas vezes
frágil contrato estabelecido entre o senhor e o liberto.
Segundo Carvalho, desde pelo menos 1855 o Imperador demonstrava seu
posicionamento contrário à manutenção da escravidão no Brasil. Nesse ano, em virtude
de um desembarque ilegal de escravos africanos em Serinhaém, Pernambuco, Dom
Pedro II apoiou as medidas tomadas por seu ministro da Justiça, Nabuco de Araújo, que
mandou: invadir engenhos para localizar alguns daqueles escravos, processar seus
donos e afastar três desembargadores da Relação de Pernambuco que haviam votado
pela absolvição dos acusados. Seu repudio à escravidão também podia ser visto quando
se recusava a conceder títulos de nobreza a traficantes de escravos. A partir de 1864, no
final da Guerra de Secessão, Dom Pedro II começou a tomar atitudes mais enérgicas
para viabilizar o final da escravidão no Brasil, ao solicitar ao senador Pimenta Bueno,
então visconde de São Vicente, projetos de lei abolicionistas. A idéia do imperador era a
de acabar com a escravidão logo após a Guerra do Paraguai. Em 1866, o governo deu
mostras de sua clara disposição ao conceder a liberdade aos escravos da nação
designados para o serviço militar.
152
150
Chalhoub, Machado de Assis, historiador, pp. 131-291.
151
Chalhoub, Visões da liberdade.
152
José Murilo de Carvalho, D. Pedro II: ser ou não ser, o Paulo, Companhia das Letras, 2007, pp.
130-136.
77
O final da Guerra do Paraguai, como demonstrou Schwarcz, radicalizou com a
campanha abolicionista: foram fundadas a Sociedade e Libertação no Rio de Janeiro e a
Sociedade Emancipadora do Elemento Servil, grupos que debatiam intensamente
propostas concretas para o final do trabalho escravo no Brasil. Em 1866, no meio da
Guerra do Paraguai, o imperador recebeu uma mensagem da Junta Francesa de
Emancipação, assinada por abolicionistas franceses, sugerindo que o monarca tomasse
atitudes mais intensas em relação à abolição. Para o Imperador, a opinião de intelectuais
franceses era muito importante, e se tornava mais ainda quando homens que admirava
quase que exigiam, em um documento assinado, ações relativas a um tema que lhes
causava repúdio, sinal de permanência do Brasil entre as nações o-civilizadas.
Respondeu o documento afirmando que a abolição da escravidão no Brasil dependia do
apaziguamento das questões políticas, após o final da Guerra do Paraguai. A vontade do
Imperador em intervir para que a abolição ocorresse o quanto antes foi retardada, como
mostra Schwarcz, pela eclosão daquele conflito bélico. D. Pedro II desejava, também,
que o Estado tomasse as rédeas do final do trabalho escravo para evitar uma guerra
civil, como a que ocorrera recentemente dos Estados Unidos da América e insurreições
de escravos generalizadas como as que aconteceram em colônias européias no Caribe.
153
Mas os proprietários de escravos das províncias do Rio de Janeiro, São Paulo,
Minas Gerais e Espírito Santo, com grande influência na política do Império, e que
possuíam 57% do total de cativos no Brasil, fizeram frente à postura abolicionista do
governo. Muitos dos seus argumentos falavam que não era possível acabar com a
escravidão no Brasil, posto que através do trabalho dos escravos o país conseguia
civilizar-se. A partir do momento em que estivesse civilizado, o regime escravista
naturalmente acabaria. Em torno disso, aqueles proprietários fizeram reuniões para
discutir planos de ação na Câmara e no Senado, e chegaram a fundar o Clube da
Lavoura e do Comércio para se opor ao projeto de abolição, com uma reunião de 600
pessoas no Rio de Janeiro. Mas isso não foi o suficiente para impedir a aprovação do
projeto e a promulgação da Lei de 28 de setembro de 1871.
154
Os senhores de escravos fluminenses estavam com receio das conseqüências das
notícias da aprovação dessa lei entre os cativos, antes e depois de 28 de setembro.
153
Lilia Moritz Schwarcz, As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos, São Paulo,
Companhia das Letras, 1998, pp. 314-319.
154
Carvalho, D. Pedro II, pp. 130-136. Os debates e as idéias de políticos do Império sobre as relações
entre escravidão e civilização são analisados em várias partes de Angela Alonso, Idéias em movimento: a
geração de 1870 na crise do Brasil-Império, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2002.
78
Assim, muitos daqueles senhores mobilizaram-se para melhor fiscalizar os movimentos
dos cativos, tomando atitudes que até então não haviam tomando. Era preciso que os
escravos sentissem o aumento do controle senhorial e que suas ações seriam mais
reprimidas do que estavam sendo. Isso incluía a atitude de dona Geraldina. Ela afirmou
que fatos como aqueles, as mortes de escravos por “envenenamento”, tinham
acontecido naquela região. Entretanto, naquelas circunstâncias políticas ela resolveu
pedir à justiça que investigasse a ação de acusados de feitiçaria, no que foi atendida.
Vejamos exemplos do clima de medo que senhores tinham de ações violentas dos
escravos, naqueles anos em que foram instaurados os processos criminais relativos às
práticas mágicas de Juca Rosa e a dos escravos da Coroa da Salvação. Retomemos o
caso envolvendo o presidente da província do Rio de Janeiro e um juiz de Barra Mansa.
O presidente Francisco Correa Pinto soube, através de informação vinda de
escravos da região, que alguns cativos tinham a “convicção de que não” havia “mais
força para eles, e que quem” matasse “o seu senhor, feitor ou administrador” iria
“trabalhar para o Rei em uma ilha”. Este fato, afirmou o juiz Ildebrando, estava levando
os escravos a tentarem “repetidas vezes matar os senhores e seus empregados”. Isso
ajudava às autoridades a entender porque muitos escravos estavam sendo julgados e
condenados mais de uma vez por seguidas tentativas de homicídio, naquele período.
Segundo o juiz, interpretações que os escravos faziam da lei de 28 de setembro de 1871
estavam levando ao aumento dos assassinatos de senhores, feitores e administradores.
Isso ocorreu seis anos após o caso de Cunha.
As investigações realizadas durante o processo de Cunha envolveram suspeitas
da participação não somente de escravos, como também de libertos. É possível, então,
que dona Geraldina e demais senhores daquela região quisessem mostrar aos escravos e
aos libertos que até mesmo acusações de feitiçaria seriam levadas ao julgamento do
Estado. Não localizamos processo criminal algum que houvesse sido instaurado para
investigar esses outros possíveis crimes relativos a práticas de feitiçaria. Em Cunha, os
senhores, por saberem que o final da escravidão no Brasil estava próximo, discutido na
Corte diariamente desde, pelo menos, 1864, se articulavam para não perder o governo
sobre quaisquer atitudes de seus escravos. Além disso, com as rigorosas investigações,
também mostravam a eles que até mesmo os libertos não escapariam de seu controle. Os
senhores demonstravam como se comportavam diante de ações criminosas de libertos
para seus escravos, antes mesmo de saberem se eles poderiam almejar por lei a essa
condição jurídica.
79
Encontramos várias notícias de assassinatos de senhores e seus empregados por
escravos antes mesmo da lei de 1871, com certa freqüência, nas correspondências entre
autoridades imperiais.
Foi assim que tomamos conhecimento do caso da fazenda Passa-Três,
pertencente a João Luiz Alves, em uma pequena carta datada de 19 de novembro de
1866. Nela, um funcionário do ministério da Justiça escreveu para o ministro, Martim
Francisco Ribeiro de Andrade, sobre o assassinato do feitor daquela fazenda, cometido
pelos escravos entre as 11 horas e o meio-dia do dia 12 daquele mesmo mês, conforme
noticiava o jornal Pharol, de Paraíba do Sul.
155
Na Biblioteca Nacional, conseguimos localizar a notícia na íntegra. Procuramos
o relato no Correio Mercantil, posto que este jornal – como de costume – havia
transcrito a notícia do Pharol. Ela estava impressa na primeira página do exemplar do
Correio Mercantil de segunda-feira, 19 de novembro de 1866.
156
O jornal informava
que seus editores receberam uma carta do Juiz de Fora da cidade de Paraíba do Sul. As
informações dessa carta, pelo que vimos na notícia, conferem com àquelas transcritas
pelo funcionário do ministério da Justiça. Segundo a notícia, dois escravos assumiram a
autoria do crime, indo à cadeia local, onde foram presos. Entretanto, esta última
informação ficou de fora da carta enviada ao ministro da Justiça.
Na mesma página, seguem informações a respeito de outro crime, aparentemente
cometido por escravos. Dizia uma notícia que, entre sete e oito horas da noite do dia 13
de novembro, um “tal sr. Miguel Ribeiro de fora atacado no interior de sua casa e
fazenda por um assassino ousado”. Estava com seu filho no colo, o qual foi ferido
quando o pai tomou um dos dois tiros no peito.
157
O fato chamou a atenção das altas
autoridades policiais e da Justiça do Império. Uma longa prestação de contas foi dirigida
ao chefe de polícia da província do Rio de Janeiro, pelo delegado de polícia de Paraíba
do Sul, em 16 de novembro. Dessa vez, fizemos o caminho inverso ao anterior e fomos
da Biblioteca Nacional para o Arquivo Nacional, onde localizamos o documento entre
os diversos ofícios do presidente daquela província remetidos ao ministro da Justiça.
O documento começa com um pequeno ofício escrito por um funcionário do
ministério da Justiça. O ofício explicava ao ministro Martim Francisco Ribeiro de
Andrada que, conforme noticiou o Correio Mercantil do dia 19 de novembro, ficavam
155
APERJ, fundo PP, coleção 5.
156
BN, Seção de Periódicos.
157
BN, Seção de Periódicos.
80
“feitas as devidas recomendações para que se prosseguisse “com todo o zelo e
solicitude” a “investigação” dos ferimentos no fazendeiro e em seu filho de 11 meses,
com o objetivo de punir “os delinqüentes”.
158
No ofício, o delegado José Januário de Abreu e Silva informava ao ministro que
dois escravos haviam se entregado às autoridades locais: o crioulo Luiz, empregado de
Mariano Antonio do Amaral, e um “preto pertencente ao ofendido”. O fazendeiro
Mariano do Amaral havia prometido vingança ao vizinho Ribeiro de Sá, “depois que
este denunciou seus camaradas Antonio Martins da Costa e Vicente de Tal, por outro
crime pelo qual foram presos e estavam sendo investigados”. Os dois escravos eram
protagonistas dos fatos narrados na notícia e no ofício, homens que atiraram em um pai
tendo seu filho de onze meses no colo. Lembremos que um dos escravos era do próprio
Ribeiro de Sá, contratado pelo fazendeiro, um desafeto seu. Por qualquer que tenha sido
o motivo, fato é que este escravo se dispôs a aceitar a encomenda da morte de seu
senhor.
O delegado insinuou que a morte havia sido encomendada pelo fazendeiro
vizinho, mas não que este estivesse envolvido com as atitudes dos dois escravos que
talvez tivessem desferido o tiro na criança que estava no colo do ferido.
Essas ações demonstram a tensão vivida, naqueles anos, entre os escravos, os
senhores e seus prepostos e as autoridades públicas. O medo das atitudes dos escravos
era constante, bem como de libertos e africanos livres. Enfim, o medo daqueles que
poderiam ver na proximidade do final da escravidão no Brasil um momento no qual
ganhariam força para melhorar suas relações de trabalho, seu estatus, sua condição de
vida.
Vimos que havia redes de informações articuladas entre fazendeiros escravistas,
jornalistas e funcionários do alto escalão do Estado para vigiar ações dos escravos que
viessem a lhes causar prejuízo, como ao praticarem a feitiçaria. Estamos diante de uma
relação de escrita e leitura de textos entre autoridades e jornalistas tendo os mesmos
tipos sociais como protagonistas: escravos potencialmente assassinos e seus senhores e
empregados, temerosos de suas ações e autoridades públicas zelando pela integridade da
boa sociedade imperial. Os jornalistas recebiam as notícias e as publicavam, as
autoridades e demais políticos da Corte as liam, e mandavam investigar algumas delas
geralmente as que tratavam de escravos considerados homicidas. As notícias eram lidas
158
AN, IJ1 – Ofícios dos presidentes da província do Rio de Janeiro ao ministro da Justiça, pacote 470.
81
por funcionários da polícia do Rio de Janeiro, que emitiam um pequeno ofício ao chefe
de polícia da mesma província. O chefe de polícia comunicava os fatos ao ministério da
Justiça para que o ministro tomasse providências sobre a investigação do caso, uma vez
que o chefe de polícia havia tomado atitudes necessárias quanto ao envio ou não de
praças para auxiliar as autoridades locais.
No caso narrado, o ministro da Justiça recebera a informação de um funcionário
do ministério, que tratou de certificar o que havia sabido através do chefe de polícia da
Corte, confirmando o que havia lido no Correio Mercantil, que tradicionalmente
republicava notícias de jornais do interior da província. Por sua vez, o ministro tomou
providência sobre os rumos das investigações, e recebeu informações “Reservadas” ou
“Confidenciais” – conforme está escrito no alto dos documentos – dos rumos das
mesmas. Para o período republicano, Maggie demonstrou como autoridades e setores do
Estado articulavam-se para aceitar a denúncia contra um acusado de feitiçaria, fazer as
buscas no local indicado pelo acusador, apreender objetos supostamente usados para
fins maléficos pelo acusado, abrir o inquérito e proceder ao julgamento.
159
Demonstramos como essas articulações já existiam nas décadas finais do Império,
incluindo dois casos de acusação de feitiçaria: o da Coroa da Salvação e o de Juca Rosa.
O Estado começava a se mobilizar para abafar atitudes de pessoas das camadas mais
baixas da população que lhes pudessem causar ou lhes provocassem dano.
Outro caso é revelador sobre o que estamos dizendo. No dia 19 de outubro de
1866, na página dois do Correio Mercantil, foi noticiado que, na fazenda do
comendador Venancio José Gomes da Costa, localizada em Vassouras, o feitor Manuel
Duarte Simões havia sido assassinado.
160
Indo imediatamente à fazenda, o subdelegado
verificou que havia dois tiros nas costas do feitor. Na parte da frente do corpo, “dez
ferimentos de faca ou instrumento perfurante, e pelo corpo, sinais ou contusões
ocasionadas por pau ou instrumento cortante”. Ao encontrar, junto ao corpo, um “cinto
de preto, um cachimbo e um pouco de cabelos carapinhos”, o subdelegado logo
“presumiu que os escravos da fazenda fossem os assassinos”! Segundo ele, seriam
“objetos ligados à prática de feitiçaria”. Sem maiores investigações, o subdelegado além
de chegar a esta conclusão, não se mostrou confiante na prisão dos escravos, pois o
comendador e sua senhora não se encontravam na fazenda, por estarem em outra
propriedade sua, em Minas Gerais. Além disso, segundo o subdelegado, “não era de
159
Maggie, Medo do feitiço.
160
Ver Correio Mercantil, BN, Seção de Periódicos.
82
esperar do caráter do comendador que muito auxiliasse a Justiça no descobrimento da
verdade e conseqüente punição dos criminosos”.
Como bem vimos anteriormente, alguns senhores sabiam que escravos matavam
os feitores e administradores por não concordarem com seus métodos de trabalho e
identificavam que poderiam, durante os anos em que muitos deles estavam sendo
enviados à Guerra do Paraguai, aproveitar de momentos de afrouxamento dos castigos
para conseguir melhores condições de trabalho e vida. A construção dos códigos de
ética e da moral nas fazendas do Sudeste daqueles anos não era nada simples, mas sim
tumultuada e formulada no seu cotidiano. Por isso, não nos espanta a atitude do
comendador em não querer instaurar processo criminal contra seus próprios escravos
acusados de feitiçaria pelo subdelegado, ao contrário de dona Geraldina. A solução mais
fácil era acatar ao desejo dos escravos e mudar de feitor ou administrador até que eles
novamente sinalizassem que não estavam satisfeitos com a forma destes empregados
agirem. O subdelegado afirmou que havia “objetos de prática de feitiçaria” entre os
escravos, e o comendador se quer se motivou a investigá-los, possivelmente porque o
feitiço não estava contra ele – diferentemente do que ocorreu nos casos que vimos, e nos
que ainda veremos.
Mas, ao ler a notícia do Correio Mercantil, o ministro da Justiça não deixou que
a situação ficasse do jeito que o comendador queria, e talvez nem mesmo seus escravos.
Havia recebido um ofício do chefe de polícia da província do Rio de Janeiro, pedindo a
instauração de processo criminal para apurar o assassinato do feitor.
161
Nesse caso, um
agente do Estado agiu de forma semelhante à dona Geraldina, ao desautorizar a atitude
do senhor. Afinal, os senhores locais poderiam perder o controle sobre o governo dos
escravos, antes mesmo de saberem o que ocorreria após da lei que seria em breve votada
na Corte. Além disso, sem nenhuma forma de ação da elite senhorial, os escravos
poderiam sentir que seus atos haviam ficado impunes. Como os escravos das fazendas
vizinhas entenderiam o fato de aqueles escravos continuarem armados com espingardas
e seus instrumentos de trabalho, e “praticando a feitiçaria”, sem que fossem reprimidos
pelo seu senhor?
Membros da elite senhorial apuravam aquilo que estava ligado aos seus medos,
fosse a ação de feiticeiros, como dona Geraldina, fosse a tomada de uma fazenda por
parte de escravos. As ervas, os dentes de cobra, e um livrinho de Santa Bárbara foram
161
AN, IJ1 – Ofícios dos presidentes da província do Rio de Janeiro ao ministro da Justiça, pacote 470.
83
classificados por dona Geraldina e outros homens livres, como o delegado e o juiz que
relataram o processo criminal, como “objetos de feitiçaria”. Assim, esses objetos foram
identificados como partes da composição de feitiços, usados para causar infortúnio,
mediante a manipulação de feiticeiros, tanto quanto espingardas e foices nas mãos de
escravos insurretos foram identificadas como objetos para fazer o mal a membros da
classe senhorial. No caso que estamos vendo, alguns objetos foram caracterizados como
sendo relativos à “prática de feitiçaria”, na cena do crime, por um subdelegado.
O subdelegado, como pedido pelas autoridades localizadas à Corte, fez um
minucioso relatório sobre o assassinato do feitor. Apesar de todas as dificuldades
impostas pelo comendador Venancio às investigações, o subdelegado havia conseguido
achar a pistola do crime, além dos “objetos de prática de feitiçaria”, mas o a faca com
a qual haviam sido feitos os cortes no feitor. Descobriu que ela havia sido jogada em um
brejo. Os autores desse sumiço da faca seriam os escravos Sebastião Soares e Lúcio,
pertencentes ao comendador e moradores naquela mesma fazenda. O dono da pistola era
outro escravo, Elias. Sebastião “trouxera de Minas Gerais, da outra fazenda do
comendador, pólvora, chumbo, bala e espoleta, sendo a bala de cera feita pelo próprio
escravo por ordem de seu senhor”. Segundo o subdelegado, “os escravos tinham
autorização do comendador Venancio para andar armados quando bem entendessem, e
tinham ordens de fabricar suas próprias balas, com material que ele lhes fornecia”. Mas
ninguém havia lhe revelado a origem dos “objetos de prática de feitiçaria”.
O lavrador de nome Francisco afirmara que o comendador dera ordem aos
escravos que nada falassem sobre o acontecido com ninguém, para que não acabassem
como o escravo Jeremias. O comendador o havia trazido de Minas para o Rio, depois da
morte de outro feitor. Jeremias dera com a língua nos dentes, e as autoridades locais
descobriram que seus escravos Luiz e João foram os assassinos. Assim, não saía de casa
sem Jeremias, humilhando-o na frente dos demais, contando repetidas vezes a mesma
história. O comendador não falava sobre o feitiço encontrado na sua fazenda.
A esposa do comendador, logo que chegaram à fazenda, havia recebido o
subdelegado e seus homens com frieza, deixando-os horas a esperá-la, sem dar-lhes
comida o dia inteiro, nem mesmo assento, nem água”. Ela “tentou impedir que seus
escravos fossem interrogados”, mas o destemido subdelegado fora às senzalas falar com
os mesmos, e dar as devidas buscas nos possíveis objetos do crime assim como
fizeram os homens de confiança e dona Geraldina. Foi desse modo que ele prendeu os
escravos Augusto, Adão e Elias, e, cinco ou sei dias depois, João Moçambique.
84
Dias depois, voltou à fazenda na companhia de Antonio Felix de Oliveira Braga,
do ex-subdelegado Alexandre Bernardino de Moura, de fazendeiros vizinhos, e de uma
escolta policial. Levaram àquela senhora os escravos e mais a pistola e os “objetos de
feitiçaria”. O subdelegado perguntou ao escravo Sebastião: “o que era aquilo?”. Ao que
ele respondeu: “a desgraça!”. Imediatamente, ainda segundo a narrativa do ofício escrito
pelo subdelegado Antonio Pereira Barreto, a senhora virou-se para os presentes e disse:
“quero dar dois tostões a cada um”. Oliveira Barbosa falou à senhora “que, apesar de
suas boas intenções, suas atitudes poderiam ser tomadas noutro sentido”.
No dia seguinte, o subdelegado mandou cercar a fazenda do comendador, para
“garantir que sua visita acabaria bem”. Quando foi recebido pelo mesmo, “ouviu que
este lhe daria, se tivesse uma arma na mão, um tiro na testa”. O subdelegado continuou
a busca pelos outros escravos suspeitos de participar da morte do feitor, bem como por
“mais objetos de feitiçaria”, sob os olhares de muitas pessoas que foram até àquela
fazenda acompanhar mais um episódio da sua luta com o comendador Venancio.
Realizadas as buscas, as prisões foram feitas. Com isso, o comendador deixou de ter
mais alguns escravos trabalhando. Aliás, todos os seus escravos foram recolhidos à
cadeia de Vassouras! O comendador reagiu a esse fato distribuindo aos seus escravos,
e somente a eles, nove mil réis, para que todos vissem, inclusive as autoridades que no
dia anterior recusaram seu dinheiro”. O subdelegado não revelou se havia encontrado
mais “objetos de feitiçaria”, que teriam “ajudado na perpetração do crime da morte do
feitor da fazenda”.
Os “objetos de feitiçaria” tinham preço para serem adquiridos pelos escravos, e
esse preço era expresso em moeda. Seus compradores os adquiriam porque acreditavam
nos poderes de cada um desses objetos. Esse poder havia sido demonstrado em algumas
ocasiões pelas pessoas que os estavam vendendo. Assim, ter dinheiro era ter o poder de
possuir tais objetos. Ter o conhecimento sobre seus usos também era ter o poder para
manipulá-los, e conseguir maior estatus na região como, por exemplo, na Coroa da
Salvação, em Cunha. Ou seja, os escravos e os libertos acusados de “prática da
feitiçaria” conheciam os poderes dos objetos para querer comprá-los, e aceitar o preço
cobrado pelos vendedores para adquiri-los. Os senhores e os juízes acreditavam nos
poderes desses objetos a ponto de reconhecê-los em suas buscas, apreendê-los e de os
terem aceitado como prova do crime.
A mercadoria para produzir feitiços seduzia todos os que estavam envolvidos
para aprendê-los, para se vingar de inimigos próximos, para conseguir mais estatus
85
através de um saber especializado na região. Por seu lado, dona Geraldina se apressou
para localizar os “objetos de feitiçaria”, e os homens que a ela estavam subordinados
para encontrá-los e saber identificá-los. Eles não deixaram de pensar que a causa dos
infortúnios seria o feitiço, e precisaram encontrar o feiticeiro para explicar o porquê, e
não como, aquelas mortes estavam ocorrendo na fazenda. Relembremos parte do caso.
Em 12 de janeiro de 1870, o inspetor de quarteirão Antonio Pereira Coelho
recebeu uma carta de dona Geraldina Maria de Campos, proprietária da fazenda do
Itambé e senhora de escravos na cidade de Cunha, província do Rio de Janeiro.
162
Na
carta, dona Geraldina narrava uma série de mortes que, segundo ela, haviam sido
cometidas pelo seu escravo Pascoal de Nação. Segundo ela, alguns de seus escravos
apareceram com sintomas de uma mesma enfermidade, e dela vieram a falecer. A partir
das reclamações dos escravos, dona Geraldina suspeitava que tivessem sido vítimas de
envenenamento. Relembrou que em algumas fazendas da região isto havia
acontecido, alguns anos antes. Incomodada com a sua suspeita, mandou seu filho
Thimótio com alguns outros homens fazer um exame minucioso em todas as casas dos
escravos, incluindo a abertura das caixas nas quais eles guardavam suas roupas e objetos
pessoais.
Na senzala onde residia o escravo Pascoal, arrombaram o cadeado que trancava
sua caixa e encontraram uma patrona de couro de quati, com uma garrafa branca
pequena, contendo um liquido que ele, Pascoal, confessou ser de uma raiz muito
venenosa raspada e misturada com aguardente e diversas outras raízes, todas também
venenosas. Esta mistura era dada por Pascoal, segundo a carta da senhora, aos seus
parceiros. Na mesma patrona, foram achados dentes de cobra, outras raízes ditas
venenosas, que compunham o líquido dado por Pascoal aos escravos Jeremias,
Benedicto Gama e Lourenço Crioulo. Pascoal confessou ter misturado uma destas raízes
no mingau da crioulinha Maria Rita, que morreu vinte e quatro horas depois de comê-lo.
Dona Geraldina ainda perguntou se Pascoal havia matado outro escravo além daqueles
quatro. O escravo respondeu que alguns dias havia matado Luis, escravo do genro de
sua senhora, Joaquim Augusto da Purificação e Silva. Para Luis, deu algumas
“narigadas do de uma daquelas raízes”, misturando-as em sua canjiquinha.
Rapidamente, Luis faleceu. A senhora, então, quis saber por que ele estava matando
162
AN, processo criminal, Corte de Apelação, número 50, caixa 28, galeria C, ano 1870.
86
tantos escravos. Pascoal respondeu que era a sua sina e desgraça que fizera praticar tais
atos.
A partir de então, Pascoal passou a narrar para sua senhora de quem e como ele
conseguiu cada um dos objetos utilizados para matar os escravos: os dentes de cobra, os
alfinetes dentro de um canudinho, algumas raízes venenosas e a garrafa branca ele
recebeu de Luis Moçambique, escravo do capitão Jose de Godois Moreira, e que
preparou o veneno que veio na garrafa. Pela garrafa com o líquido, havia pagado três
mil réis. A mais venenosa das raízes lhe havia sido dada por Félix, escravo de Lourenço
Pereira Coelho, tendo pagado mil réis. Em outro momento, afirmou que conseguiu
outras sete raízes venenosas do liberto Jacinto Monjolo, que, por sua vez, as havia
recebido do também liberto Antonio Carioca. Afirmou, também, que estava aprendendo
este ofício de curar e matar com os escravos Luis Moçambique e Félix, para, quando
ficasse bem mestre, ganhar dinheiro ensinando aos outros. Seguindo as instruções de
Luis Moçambique, deveria matar, até a Quaresma daquele ano, vinte e uma pessoas,
sendo sete crianças e catorze grandes para receber a Coroa da Salvação, grau maior do
uso das raízes que aprendia aos domingos e dias santos.
Dona Geraldina encerrou a carta informando que esta acompanhava o escravo
Pascoal, entregue ao inspetor de quarteirão como assassino confesso de cinco escravos,
devendo ser por ele encaminhado ao delegado de polícia encarregado de Cunha e alguns
municípios e cidades vizinhas.
Após o resultado do exame das substâncias encontradas na moradia, casa ou
senzala de Pascoal, foi instaurado processo criminal pelo delegado, tenente Antonio de
Andrade Almada. O boticário Hygino Jose de Santa’Ana afirmou que não era possível
conhecer todas aquelas raízes com o material da botica, muito menos seus efeitos, e que,
se tais fossem venenosas estariam todas misturadas à aguardente.
Ao contrário dos dados coletados por Favret-Saada no Bocage, no caso de
Cunha a crença na feitiçaria não foi abafada, silenciada, pela explicação científica. Ao
contrário, somente os acusados de feitiçaria conseguiram explicar o que faziam com os
objetos apreendidos, identificados pelos acusadores como sendo parte de feitiços.
Durante o processo criminal, o Estado aceitou e ratificou essa identificação, imiscuindo-
se na crença, regulando-a e legislando sobre quem era e quem não era feiticeiro. Os
objetos seduziam as pessoas como prova da existência do feitiço, posto que foram
encontrados em meio à situações nas quais o que estava em jogo era a explicação
mágica da feitiçaria para as mortes dos escravos de dona Geraldina.
87
Maggie narrou como foi seu contato com os objetos de feitiçaria apreendidos
pela polícia, no Rio de Janeiro. Esses objetos estavam catalogados na “Coleção de
Magia Negra”, localizada no Museu da Polícia Civil daquela cidade e tombada pelo
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1938, menos de um ano depois da criação
do SPHAN. Foi então transformada em coleção no Museu do Departamento Federal de
Segurança Pública, criado em 1945 para o estudo da criminologia. A coleção havia sido
tombada no livro de tombo número 1 do SPHAN, em cinco de maio de 1938. Apesar
de não ter conseguido descobrir qual a procedência daqueles objetos, Maggie informa
que não faltaram pessoas que atestassem que tais objetos eram perigosos. Eles eram
guardados no Museu de Magia Negra, dentro da delegacia que reprimia os terreiros.
Esses dados demonstram o quanto, durante a República, o Estado construiu um
conhecimento organizado sobre a crença no feitiço, usado para perseguir os acusados de
feitiçaria. A repressão à magia instituiu o Museu, parte constitutiva da crença, que assim
continuou a ser disciplinada e organizada a partir das disputas entre acusadores e
acusados.
163
No Império essa disputa ocorreu em pelo menos dois momentos, através da ação
do Estado, no bojo de dois processos criminais: aquele referente a Juca Rosa e o que
vimos analisando nesse capítulo. Em ambos os casos vimos que objetos da crença eram
identificados por autoridades do Estado como sendo ligadas a “práticas de feitiçaria”.
Agentes do Estado perguntaram sobre os usos que os acusados de feitiçaria deles
faziam, certos de que esse uso provocava o mal a determinadas pessoas. Os acusados
responderam contando como eram vários de seus “procedimentos”, em Cunha, e
testemunhas narraram como Juca Rosa as “manipulava” durante os “rituais” que
chefiava. Para que a sedução exercida pela feitiçaria e pelo poder que o feitiço dava a
pessoas de todas as classes sociais ocorresse, tanto no caso de Juca Rosa como no da
“Coroa da Salvação”, foi fundamental que as pessoas materializassem a crença no
feitiço através dos “objetos de feitiçaria”. Esses objetos ajudavam a conferir o valor dos
feitiços em ambos aqueles casos. Eles foram postos do lado do crime pelo Estado, como
troféus da prova da eficácia da justiça controlar satisfatoriamente, antes mesmo do
Código republicano, de 1890, a magia e a feitiçaria. Os “objetos de feitiçaria” são a
prova material, aceita pelo Estado, da existência do feitiço.
163
Maggie, Medo do feitiço, pp. 259-267.
88
2.8 – O medo da insurreição revelou o medo do feitiço em Cunha
Nesse capítulo, narramos um conjunto de relações de compra e venda de objetos
os mais diversos para a realização de feitiços, na cidade de Cunha. Esses feitiços tinham
objetivos específicos, conferiam poder a quem os sabia fazer, e essas pessoas sabiam
quanto valia ensinar e aprender a feitiçaria, a fazer os feitiços, as técnicas da feitiçaria,
as etapas a serem atingidas dentro da “Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação”. A
senhora de escravos dona Geraldina demonstrou conhecer bem, junto com homens
livres próximos a ela, os poderes dos feitiços, sustentando investigações para localizar
os “objetos de feitiçaria” e os feiticeiros.
O feitiço lhes causava medo. As mortes não foram explicadas pelo farmacêutico,
que se quer conhecia muitas das substâncias a ele apresentadas. Os feitiços eram usados
por escravos e libertos para causar mortes, provocar infortúnio, sofrimento, vingança
conforme vimos em seus depoimentos. Tinham, também, o seu valor monetário ligado à
eficácia no cumprimento da missão para que eles conseguissem atingir o último grau da
“Escola de Feitiçaria Coroa da Salvação”. Os elementos para compor os feitiços” eram
negociados segundo valores estabelecidos pelos escravos das fazendas da região, com
base nas suas experiências durante e após as aulas naquela “Escola”.
Juca Rosa recebia mulheres de diversas classes sociais esposas de políticos,
prostitutas de alta e de baixa clientela, homens, mães de família. Todos iam consultá-lo
para que resolvesse seus problemas através dos poderes mágicos, de sua feitiçaria.
Muitas delas pediam o prejuízo de pessoas que haviam lhes feito mal, ou estavam no
caminho de seu sucesso. Algumas delas tornavam-se adeptas de sua “seita”, suas
“filhas” e seus “filhos”. Todas essas pessoas, segundo o processo criminal, pagavam
pelos “feitiços”, sabiam quanto custavam de acordo com o sucesso que conseguiam com
eles obter. Juca Rosa usava parte do dinheiro para comprar os “objetos de feitiçaria”,
“arrumar o altar”, “adquirir os instrumentos, os tambores” para os “rituais”, ocasiões
preparadas para que as pessoas por ele selecionadas pudessem ver a feitiçaria, participar
do feitiço. Continuar temendo o feitiço, acreditando em seu poder.
No Zimbábue, segundo Fry, certa vez um médium Shona, ao ser surpreendido
por um policial “branco”, vestiu suas roupas negras. Depois disso, entrou em transe e
caminhou em direção ao policial. Mostrou-lhe os diversos objetos de feitiçaria que
havia coletado para serem entregues à polícia. Desta forma, estaria ajudando-a a acabar
com o crime de feitiçaria. O policial havia se espantado com isso, porque sempre havia
pensado que a feitiçaria era algo imaginário, e não materializado. Mesmo com o fato de
89
ter que prender os acusadores de feitiçaria, e não os acusados, o policial compartilhava
da crença no feitiço, mantida no Zimbábue mesmo após a Lei de Supressão à Feitiçaria.
Essa lei não conseguiu destruir a crença na feitiçaria que permeava os Shona,
pesquisados por Fry, não disciplinando os médiuns e as acusações de feitiçaria.
164
Tal como nos casos de Juca Rosa e da Coroa da Salvação, no Zimbábue os
objetos eram usados para provar a existência do feitiço, e o fato de que os feiticeiros
existiam para provocar o mal às pessoas. Mas os ingleses, ao contrário da boa sociedade
imperial e da classe senhorial, não se convenceram da real existência da feitiçaria.
Como no Império do Brasil, que não possuía lei alguma de regulação da crença na
feitiçaria, e nem de controle e punição aos acusadores, no Zimbábue os médiuns
continuaram a se alimentar da crença das pessoas na feitiçaria. A instituição da
mediunidade passou a ser o lugar privilegiado para a rebelião, durante as lutas pela
independência. No Império, as acusações de feitiçaria estavam, muitas vezes, ligadas ao
medo da insurreição dos escravos. A elite escravista temia o poder do feitiço, e o
investigava e o perseguia utilizando o aparato do Estado em momentos de maior
vigilância sobre as ações dos escravos e dos libertos. Os acusados de feitiçaria eram
ligados à África, ao conhecimento pretensamente vindo daquele continente e ao
manuseio mágico de objetos e substâncias ligados aos feitiços. Esses eram os acusados
de feitiçaria, exatamente os que compunham as gotas diversas da “onda negra”,
expressão da época para designar insurreições de escravos de grandes proporções. É
isso que vamos ver mais no próximo capítulo.
164
Fry, Spirits of protest.
90
Capítulo 3
O medo do feitiço em notícias de uma insurreição: o caso de Pai Gavião
Depois de termos tratado de dois casos de feitiçaria ocorridos na província do
Rio de Janeiro, analisando o de Juca Rosa, na Corte imperial, e o da Coroa da Salvação,
em Cunha, passaremos agora a analisar o caso de Pai Gavião, na província de São
Paulo.
165
Segundo a fonte consultada, uma série de notícias escritas in loco por um
jornalista enviado pelo Correio Paulistano, Pai Gavião era o principal articulador de um
grande plano de insurreição dos escravos das fazendas da região de Itu. Pai Gavião
ameaçava os senhores nas ocasiões em que falava através do escravo José Cabinda,
afirmando ser o líder dos Filhos das Trevas. Este grupo seria composto por escravos que
seguiam suas ordens, escondendo-se nas matas daquela região de São Paulo, preparando
a prometida grande insurreição.
Mais uma vez, o acusado era alguém ligado à África e mostrava conhecimentos
mágicos específicos supostamente adquiridos naquele continente ou através de seus
descendentes: ele sabia escolher e manejar os objetos utilizados nos rituais que liderava,
qual era a sua finalidade, como e quem poderia atingir, como iniciar alguém, e quais as
palavras que deveriam ser proferidas em qual tonalidade e altura de voz. Essas palavras,
como veremos, não eram rezas africanas no Brasil, mas palavras mágicas de “origem”
diversa, inclusive ligadas ao catolicismo como “amém”. Os acusadores eram, mais
uma vez, pessoas ligadas à boa sociedade imperial. Eles mostraram conhecimento sobre
as habilidades de José Cabinda, aliás, Pai Gavião, para “praticar feitiçaria” e através
dela poder fazer o mal a “todos os brancos da região”. Pai Gavião ganhou voz através
de José Cabinda, e as fontes a ele se referem nos rituais, fazendo sumir
momentaneamente este último nome.
As ocasiões rituais em que Pai Gavião “falava” foram narradas pelo jornalista
como encontros que reuniam numerosa quantidade de escravos, libertos e livres, sempre
durante a noite. Foi em uma destas reuniões que Pai Gavião teria afirmado que os
escravos matariam todos os brancos da região e que, para isso, possuíam grande número
165
Couceiro, Pai Gavião e a Coroa da Salvação. Em nossa dissertação de mestrado, trechos dessas
notícias sobre Pai Gavião foram analisados como partes de um caso revelador do ambiente vivido por
senhores de escravos em algumas regiões do Sudeste, após o final do tráfico internacional de escravos,
em 1850. Em algumas fazendas, como demonstramos, membros da classe senhorial e seus prepostos
temiam que seus escravos interpretassem a Lei Eusébio de Queiróz como uma lei que abolia a escravidão
no Império do Brasil, e não somente o tráfico internacional de escravos para o Brasil.
91
de espingardas. Rapidamente esta notícia chegou aos ouvidos de autoridades locais, que
convocaram Pai Gavião ou melhor, José Cabinda para um interrogatório na
delegacia de Itu.
3.1 – O retorno de Pai Gavião
Na segunda-feira, 24 de julho de 1854, o jornal Correio Paulistano noticiava, na
página quatro, que havia sido “descoberto” o “plano” de uma “grande insurreição de
escravos” que ocorreria em “São Roque”, com “ramificações para Sorocaba, Una,
Campo Largo, Araçariguama e Itu”.
166
As autoridades policiais haviam feito “prisões”
de diversos escravos suspeitos de participação no plano e “instaurado processo-
criminal”. Da capital da província de São Paulo “marcharam cerca de dez praças,
comandados por um oficial”. Para maiores informações, o jornal esperava pela carta do
“correspondente em São Roque”, que daria as “detalhadas orientações”.
Na terça-feira, primeiro de agosto, os leitores tomaram conhecimento das
notícias enviadas pelo “correspondente”. No dia 23 de julho havia chegado a São Roque
o juiz de direito substituto, o dr. Witaker, especialmente enviado para investigar o
mencionado “plano”. O juiz logo procurou informar-se acerca da projetada “insurreição
de escravos”, instruindo “várias autoridades” a tomarem “medidas preventivas a
respeito”. No dia anterior, o juiz atestou a chegada dos dez praças e do oficial,
solicitados ao chefe de polícia e ao presidente da província de São Paulo. Assim,
segundo o correspondente, “os espíritos femininos e apreensivos se achavam mais
tranqüilos e reanimados”. Com relação aos escravos, o “correspondente” informou que
eram “visíveis traços de terror na fisionomia enegrecida dos Filhos da Etiópia”.
O “correspondente” direcionou sua narrativa para informações acerca da
“associação” de escravos denominada “Filhos das Trevas do Campo Encantado”, que
estaria por trás do “plano de insurreição”. Segue-se, assim, uma enumeração de
características dos “Filhos das Trevas”.
“O Grão-Mestre” da ordem” trata “todos os membros da sociedade” por
“filhos”. O “irmão que entra para a ordem contrai a obrigação de convidar para ela o
maior número possível” de pessoas para se “tornarem novos irmãos”. Por sua vez, os
“irmãos tratam o Grão-Mestre com profundo respeito, e dão-lhe louvores”, não podendo
166
Toda a série de reportagens sobre “Pai Gavião” foi localizada no mesmo microfilme da BN, Seção de
Periódicos.
92
“voltar-lhe as costas”. “Quando ocorre alguma altercação entre os irmãos o Grão-Mestre
emprega a palavra Mabette!, e imediatamente se restabelece o silêncio”.
Sobre “Pai Gavião”, o “Grão-Mestre”, o “correspondente” lembrou que, na
edição anterior, havia dito que “fazia uma cruz com a ponta da faca no peito do irmão
que se iniciava”. Sobre isso, havia conseguido “novas informações”. A “cruz sobre o
peito não é feita com a ponta” da faca, mas sim “com o seu fio”. Pai Gavião dava, “com
um pedaço de pau, três pancadas nas costas da lâmina”. Deste mesmo modo, “fez mais
duas cruzes”, sendo “uma no braço e outra no pé direito”.
Depois disso, Pai Gavião “estendeu a mão sobre a cabeça” de um “irmão-
aprendiz”, que havia “acabado de passar pela prova do ferro”, e “rezou a seguinte
oração”:
Por São João me pego com as ervas encantadas, e Deus Nosso Senhor adianto,
Deus Nosso Senhor atrás; por meu advogado São João, acordai; o inimigo vem,
os pés tem, mas não me alcançarão; braços tem, mas não me pegarão; andarei dia
d´hoje como Deus Nosso Senhor andou pelo mundo no ventre da Virgem Maria.
Pelo Santo do meu nome, filho das ervas do campo encantado, abaixo de Deus
Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém.
Terminada a “oração”, iniciaram-se outras “cerimônias”, narradas pelo
“correspondente”, como veremos, em edições anteriores do Correio Paulistano. Mas as
informações não pararam de chegar à redação do jornal. Segundo o “correspondente”,
“quando um irmão chegava ao grau de encantado, o Grão-Mestre atirava ao mato uma
raiz de guiné, ou uma das figuras” por ele “chamadas” de “Satã” e “Careta”. Em
seguida, “mandava que o irmão encantado adivinhasse onde” tais figuras estavam e,
provando a sua informação, que as “levasse ao Mestre”. Enquanto o “irmão” partia, os
demais “cantavam em coro”, sendo “acompanhados pelo guayá-cayumba”. O coro era o
seguinte: “Quando landa malaio, malaio, malaio.” O “correspondente” escreveu que a
tradução dessas palavras seria “quer dizer”. E prossegue: “Filho! buscar vinho, que
eu quero beber, quero beber, quero beber”.
Caso o “irmão encantado” encontrasse o “objeto que foi procurar”, dava um
“grito” respondido pelos demais “irmãos” com a palavra “Quisa”, isto é, “Venha”. Se
não o encontrasse, “voltava amarrado por braços invisíveis e ainda precisava de outras
lições para ficar encantado”.
Pai Gavião aplicava os lábios ao “Vungo”. “Conversava” com ele “um
solilóquio ininteligível”, “lendo o passado, ou predizendo o futuro”. “Sentia coar-lhe
93
pelas veias um frio glacial, depois um calor febril; ouriçavam-lhe os cabelos, e sua razão
perdia-se no vácuo do infinito”. Após esta descrição das sensações de Pai Gavião, o
“correspondente” escreveu que “um dos mestres puxava os cabelos do topete de Pai
Gavião, dando-lhe uma pancada na testa com a mão”. O “oráculo” do campo encantado
“recuperava”, assim, “o uso de suas faculdades”. Em seguida, o “correspondente”
perguntou: “seria isso uma espécie de magnetismo operado pelo vidro, pelas raízes e por
outras substâncias que compõem o Vungo? Ou seria tudo isso uma ficção, uma farsa
ridícula para extorquir os cobres dos Filhos das Trevas?”.
3.2 – O interrogatório a Pai Gavião
Mas, como prenderam Pai Gavião? Conta-nos o “correspondente” que, na noite
do dia 18, dois escravos estavam sendo procurados por três homens. Esses escravos
haviam fugido do engenho de dona Ana Theresa. Os três homens, em meio a sua
caçada, perto de uma clareira, se depararam com uma “sentinela”, um escravo que
estaria “guardando a porta do Templo onde a Grande Ordem celebrava uma de suas
sessões”. O encontro alertou outros escravos, que correram atrás dos homens, “botando-
os para correr”.
Ao chegarem à cidade, eles narraram ao delegado o pouco que viram sobre a
“reunião”, dizendo o lugar exato para onde o mesmo deveria ir com seus homens, caso
quisesse conferir o que estava ocorrendo em um ajuntamento de tantos escravos de
diversos senhores daquela região. Algumas prisões de escravos supostamente
envolvidos foram realizadas. Um dos presos revelou informações precisas sobre o local
secreto das “reuniões”, que tanto as “autoridades locais” queriam, tempos, saber. O
escravo também revelou a identidade do “grão mestre da Associação: o preto forro de
nome José, morador em Sorocaba”. Desta forma, “dirigiu-se para ali uma escolta, que
conseguiu capturá-lo depois de porfiada e perigosa luta”.
Em 24 de julho, o delegado de polícia passou um “bom tempo” na “sala da
municipalidade interrogando, em particular, pessoal e verbalmente, ao preto José
Cabinda, que recebia o espírito de Pai Gavião”. Após este interrogatório, “quando foi
permitido o ingresso na sala, uma chusma de curiosos, entre os quais” o próprio
“correspondente”, invadiu-a.
Foi nesse instante que “um curioso”, com a permissão do delegado, promoveu
“uma experiência inofensiva”. Perguntou ao “Pai Gavião ou Coroado”:
94
– Sabeis adivinhar?
– Sim, senhor – respondeu Pai Gavião.
E se eu esconder essa caixa de tabaco, poderá adivinhar o lugar em que ela
ficará?
– Sim, senhor.
O curioso saiu do recinto, dando a tal caixa a outra pessoa. Esta se achava ao
lado esquerdo de uma janela, no patamar de uma escada. Quando voltou, pouco tempo
depois, disse ao Pai Gavião que adivinhasse o lugar onde estava a caixa. Foi quando Pai
Gavião afirmou que “precisava do Vungo”. Lembremos que poucas linhas falamos
do “Vungo”, presente em um dos “encontros” narrados pelo “correspondente”. Segundo
este, tratava-se de uma raiz grande, chamada Guinéu Encantado um corno de boi”.
Foi então que:
trouxeram-lhe um dos Vungos apreendidos. Recusando-o por não prestar, Pai
Gavião, então, pediu outro. Este sim disse o adivinho, segurando no Vungo com
ambas as mãos, com a esquerda na extremidade, meio sobreposta sobre o dedo
mínimo da direita; aproximou o Vungo de sua boca, com os olhos semi-fixados.
Pelos movimentos dos lábios, via-se que ele travava com o Vungo um solilóquio
misterioso.
Daí a pouco, algumas gotas de suor rebentaram da fronte do oráculo do Campo
Encantado. Suas feições se contraíram, seus olhos meio cerrados se tornaram
sombrios e ameaçadores; exalou um gemido quase abafado, e um movimento
nervoso, involuntário ou admiravelmente fingido; por três vezes contraiu e puxou
violentamente as mãos e os braços para o lado esquerdo, e todas essas contrações
eram acompanhadas de suor mais copioso e um tremor geral do corpo.
Com o mesmo em total silêncio, o “adivinho disse”:
“– Meu senhor, me perdoe. A boceta está perto da escada, do lado esquerdo da
janela.
O homem, que dirigia a “experiência inofensiva”, assim “lhe ordenou”:
“– Pois vá buscá-la!”
O “oráculo” dirigiu-se ao patamar da escada, olhou atrás da falha da janela do
lado direito, “deu um suspiro e disse”:
“– O Vungo me traiu.”
Para o “correspondente”, “os brancos fizeram isso para enganar Pai Gavião”, uma
vez que a pessoa a quem a caixa fora confiada “passou-a para outra, que estava na
janela do lado direito”. Pai Gavião acreditava, assim, que haviam montado, em plena
sala da municipalidade, na presença de diversas pessoas, inclusive do delegado de
polícia, uma trapaça para tentar desmascarar publicamente os seus poderes.
95
“Transtornado”, o “oráculo consultou novamente o Vungo”. “Cansado de errar”,
declarou que estava “muito atribulado e não podia adivinhar, porque o Vungo estava
profanado e provavelmente havia sido tocado por alguém” que houvesse tido “relações
com mulheres”, porque eles, oráculos, para fazerem adivinhações, não as “tinham que
ter desde a véspera”.
Muitos dos moradores da região sabiam da existência de “objetos de feitiçaria”
supostamente manipulados por Pai Gavião e seus “filhos”, nos “encontros sempre
presenciados por grande número de pessoas”. Por exemplo, o “correspondente” havia
noticiado, antes mesmo do “interrogatório” e da “trapaça” ao espírito,
uma apreensão de curiosa coleção de objetos pertencentes à Grande Ordem, [como]
“caramujos, guiso de cascavel, grande e variado sortimento de raízes, figuras de
pão e de cera da terra, pedras de cevar, cabeças e olhos de cobra, pés e cabeças de
macaco, rabo de serelepe, pontos de chifre betumado de cera coberta com um
fragmento de espelho, patuás contendo raspas de raízes, cabelos e unhas de gente e
outras muitas coisas. [Todos estes] Bizarros objetos exalavam um cheiro
nauseabundo e ativíssimo de aguardente.
Mas e o “Vungo”, que, ao que parece, era um dos objetos centrais das reuniões
conduzidas por Pai Gavião, nós temos mais informações sobre ele?
3.3 – A descoberta do “Vungo”
Ao investigar Pai Gavião e os Filhos das Trevas por conta e risco próprios, sem
aparentemente estar obedecendo a alguma orientação vinda da redação do Correio
Paulistano, o “correspondente” descobriu que existiam “três grupos na região”. Esses
promoveriam as “reuniões noturnas ao redor da figura de Pai Gavião”. Descobriu que
eram chamados de “lojas”, e que o seu conjunto “formava a Ordem inteira: Filhos das
Trevas, Maçonaria Negra e Campo Encantado”. Foi nessas incursões detetivescas que
soube que o grão-mestre da Ordem chamava-se José Cabinda, “figura célebre naquela
região, a quem os irmãos não conheciam se não pelo nome de Pai Gavião, ou Coroado”.
As “reuniões” eram também, e, principalmente, chamadas “sessões”. Quando da
“admissão de novos adeptos, os irmãos formavam um grande círculo”, nos quais alguns
dos “assistentes tocavam um tosco instrumento feito de cabaças com cabo de pão e
chocalhos”. Como mencionamos anteriormente, a reunião possuía o
acompanhamento variado dos tipos de som desse instrumento. Em certo momento,
seguindo um dos tipos de som, “o grão-mestre, dançando e cantando numa linguagem
96
ininteligível”, se dirigia para o centro e ali colocava “uma luz, uma garrafa de
aguardente, uma tigela com diversas raízes, uma figura de pão a meio-corpo e sem
braços”. Em seguida, “informava que a tal figura tinha o nome de Careta”, assim como
outra, “feita de cera”. “O umbigo era formado por um pedaço de vidro.” Colocaram ali
também uma
raiz grande, a qual lhe davam o nome de Guinéu Encantado um corno de boi –,
que tinha o nome de Vungo, um patuá envolto em casca de lagarto, dois Santo
Antonios de nó-de-pinho, sendo um sem cabeça, e, finalmente, uma panelinha,
betumada de cera, coberta por um vidro que é conhecido pelo nome de Galo. Neste
momento, entrou em cena, na grande reunião, o Pai Gavião, entornando a garrafa
sobre a tigela e ordenando que um novo irmão se aproximasse.
A partir daí, o “correspondente” deteve-se na descrição de uma espécie de
iniciação de novo integrante da “Grande Ordem”.
O “novo irmão ajoelhou-se ante o grão-mestre e despiu-se de sua camisa. Pai
Gavião, o grande líder, apontou uma faca sobre o peito do noviço” fezendo-o prestar um
“juramento solene de fidelidade. Segredo inviolável, sob pena de morte, mesmo que
fosse estrangulado ou queimado”. Depois, abriu-lhe uma cruz, com a ponta da faca,
sobre o peito direito. Correram algumas gotas de sangue da epiderme rasgada”. No
corpo do “iniciado” passou, “alternadamente”, um “patuá e uma raiz-de-guiné
encontrada sobre a cissura da cruz” e depois “esfregaram-se uns pós-brancos na ferida”.
Ao final de tudo, o “novo filho bebeu a pinga sagrada”, que estava em uma “tigela que
corria por todos os irmãos”.
Em uma “vasilha de barro com brasas, Pai Gavião deitou um pouco de incenso,
e o irmão iniciado aspirou o perfume que dali exalou”. Depois disso, o “grão-mestre Pai
Gavião” acendeu seu “cachimbo” naquele “fogo sagrado”.
O “iniciado” foi, então, como “irmão”, colocado no centro do “grande círculo,
onde sentou”. “Pai Gavião submergiu a cabeça das figuras na tigela” e ouviu-se
novamente “o som monstruoso” do referido instrumento. “Ordenou que se fizesse
silêncio no Campo Encantado”. Foi “prontamente obedecido. Conversou com as
figuras, aproximando-as do ouvido para escutar suas respostas”. Pai Gavião começava,
então, a “tresvariar, dizendo com uma voz terrível – Não ouvis? Não ouvis uma voz que
me chama?” O “correspondente” afirmou que “não queria ir, mas era obrigado a
obedecer”, porque “essa voz era mais forte e mais poderosa do que a vontade do Deus
no qual cria!”.
97
“Pai Gavião ou Coroado”, correu “desvairado para o mato”, voltando pouco
tempo depois, alisando-se de roldão no meio do círculo, suando e fazendo horríveis
contorções”. Quando parou esses movimentos e levantou-se com “altitude majestosa”:
Seus olhos percorreram desvairados todos os dos Filhos das Trevas. Consultando o
Galo, e, lendo o futuro pelo vidro do Vungo, prometeu aos irmãos que, num futuro
não tão remoto: gozarão de liberdade pela morte de seus senhores; possuirão
grandes riquezas; seus senhores não terão ânimo de castigá-los; nem ferro, nem
balas colarão em seus corpos; gozarão das moças mais bonitas.
3.4 – O planejamento da grande insurreição
As “autoridades da região”, alguns dias antes da prisão e do interrogatório de Pai
Gavião, estavam preocupadas com o boato da eclosão de uma grande insurreição de
escravos. As informações eram de que estes escravos pertenceriam a vários senhores, e
que estariam se comunicando de uma forma que os mesmos e aquelas autoridades ainda
não haviam descoberto. Foi por esse motivo que o Correio Paulistano enviou um
“correspondente”, que acabou descobrindo a existência de Pai Gavião, de seus filhos”,
do tal “plano” e das “reuniões” ou “sessões” comandadas por aquele.
O centro nervoso da insurreição parecia ser a cidade de São Roque, mas
poderiam ser Una, Campo Largo ou Itu, todas com escravos em grande quantidade, e
supostamente envolvidos. Alguns destes haviam sido presos para prestar
esclarecimentos. Eram tantos os escravos que as celas das cadeias destas cidades
encontravam-se lotadas. O cotidiano da região havia sido alterado naqueles dias de
julho e agosto. O carcereiro, por exemplo, confidenciou ao “correspondente” que “quase
não conseguia dar conta de seu, até então, pacato serviço”. Mas o problema maior era o
de que o delegado de São Roque tinha notícias de que não somente os escravos
andavam participando das tais “reuniões”, onde talvez a “grande insurreição” estivesse
sendo planejada. Mas também “homens livres” da região estariam presentes nas
“grandes reuniões misteriosas, em noites e lugares indeterminados”.
No dia três de agosto, o Correio Paulistano noticiou fatos acerca do julgamento
do “escravo, Filho das Trevas, Joaquim”, pertencente a Inácio Alves. O fato ocorreu em
Taubaté, no dia 24, tendo sido o escravo “julgado por tentar matar sua senhora a
foiçadas”, e “condenado a galés perpétuas”. No dia seguinte, outro escravo, conhecido
por Chico Garcia, pertencente a Manoel Vaz de Toledo, foi julgado. Acabou condenado
por ser o “cabeça de uma insurreição, abortada contra a vontade dos seus
companheiros”. Após o pedido de novo julgamento por seu senhor, o escravo, mesmo
98
confessando, “sem a menor cerimônia e frescura, que o plano era matar todos os
brancos, e que para isso os escravos os quais liderava possuíam armas de fogo, além das
do trabalho nas fazendas, e mais todo o armamento que assaltariam das lojas, foi
absolvido por dez votos”. Em oito de agosto, o jornal noticiava que o delegado de Itu
continuava as investigações sobre outros focos dos “Filhos das Trevas” e das possíveis
insurreições que seriam comandadas por Pai Gavião. Havia prendido vários escravos
supostamente membros das mesmas.
Outras notícias acerca das movimentações dos “Filhos das Trevas” continuavam
chegando à redação do jornal. Em 28 de julho, em São Roque, uma “reunião de
escravos da lojafoi debandada pelas autoridades policiais. Houve confronto, tendo um
“escravo [ficado] com o braço quebrado, e outros dois com a cabeça partida”. Na
mesma cidade, um homem vindo de Sorocaba afirmava que lá também havia sido
descoberta uma “patota dos Filhos das Trevas”, tendo “o subdelegado de polícia
ordenado a sua prisão”. Vinte dias depois, em notícia de título “Fogo de Escravos”,
sabemos que estavam acontecendo, para “as bandas do Campo Redondo, nos dias
santificados, grandes reuniões de escravos, onde a primeira distração era o fogo”. Tal
informação gerou grande medo às pessoas da região, pois “era sabido que nas reuniões
dos Filhos das Trevas e do Campo Encantado a ingestão de aguardente por parte de
todos os membros era o prenúncio de uma nova vinda de Pai Gavião”. Segundo a
notícia, tais reuniões, apesar de conhecidas e comuns nas redondezas da cidade, tinham
se tornando mais freqüentes naqueles dias.
Alguns furtos domésticos também eram creditados na conta das ações desses
escravos, motivados para, com a venda do roubo, “poder comprar parte dos materiais
para as reuniões”, e pagar pelos conselhos de Pai Gavião. Também ocorreu o
“espancamento de um alemão, perto do cemitério da cidade, do qual saiu com a cabeça
quebrada”. Ele não sabia que ali estavam reunidos os Filhos das Trevas, para mais uma
de suas “sessões”. A tima contou, segundo a notícia, que um oficial de plantão e
várias outras pessoas que haviam presenciado a cena lhe “viraram a cara”.
3.5 – A visita do dr. Roth: a promessa de Pai Gavião quase foi cumprida
Chegou ao delegado de São Roque a denúncia de que havia, na Serra de São
Francisco, uma “casa secreta, contendo uma provisão de espingardas, lanças, e outras
armas inofensivas”. Tudo isso, supostamente, pertenceria ao arsenal dos Filhos das
Trevas, para promoverem a insurreição prometida e propalada por Pai Gavião. Do alto
99
da Serra, os insurretos poderiam observar toda a “população dos municípios de São
Roque, de mais de dez mil almas disseminadas em três freguesias, com cento e tantos
juízes de fato, um batalhão da Guarda Nacional com cinco numerosas companhias e
quase trezentos guardas de reserva”. Segundo o correspondente, o delegado confirmou a
denúncia ao chegar àquele local, deixando toda a localidade “em estado de alerta”.
Naquele mesmo dia, havia chegado àquela região um certo Dr. Roth, convocado
por “autoridades locais” para pesquisar se “haveria jazidas de carvão mineral, assim
como minas de ferro”. Suas “impressões visuais apontavam para uma vasta riqueza
mineral”. Do alto de uma montanha, “podia-se ver as povoações de Sorocaba, Itu, Araçá
e São Roque”.
Ao mesmo tempo em que ocorria a visita do Dr. Roth, no intuito de proteger a
população local da possível “insurreição dos Filhos das Trevas”, “a região estava
guarnecida pela Guarda Nacional”. Somemos a isso o fato, segundo o autor da notícia,
de “as festas religiosas, que tradicionalmente ocorriam naquela época do ano, de Bom
Jesus de Pirapora, distrito da cidade de Paraíba”, atrair, “como esperado, um grande
número de devotos romeiros naquele ano calculado entre cinco e seis mil almas”.
“Qualquer tipo de ação dos Filhos das Trevas originaria um tumulto de proporções
inestimáveis.”
No cume de uma montanha, “Dr. Roth, escoltado por alguns praças, encontrou
uma pequena construção com mais de 300 espingardas, e alguns objetos estranhos, tais
como dentes de cobra e patuás”. Assim foi “descoberta mais uma parte das armas que os
Filhos das Trevas” diziam possuir e que muitas autoridades locais haviam acreditado
serem imaginárias –, “muito mais do que a própria Guarda Nacional, agentes de polícia,
senhores de escravos e comerciantes somados possuíam” nas redondezas. Além disso,
os patuás poderiam indicar que cada um dos escravos estaria protegido espiritualmente
durante a insurreição, e que Pai Gavião talvez tivesse produzido tais “objetos de
feitiçaria”. A localização do “paiol de armas e dos patuás obedecia”, ao que parecia, “a
uma estratégia de observação de todos os que Pai Gavião havia prometido atacar”, qual
fossem, “todos os brancos” daquela região. Do alto da montanha, os escravos poderiam
observar a movimentação cotidiana dos moradores das cidades, dos grupos armados,
para, enfim, decidir a melhor estratégia de ataque. “Desta forma, poderiam tomar de
assalto toda a região”.
Notícias sobre as intenções dos “Filhos das Trevas” não paravam de chegar à
redação do Correio da Barca, e eram retransmitidas pelo Correio Paulistano. No dia 23
100
de agosto, o mesmo jornal publicou nota afirmando que no dia dez daquele mês, na
fazenda do capitão Joaquim de Souza, havia sido “descoberto mais um projeto de
insurreição ligado à loja Filhos das Trevas”. “Autoridades policiais”, atendendo ao
chamado do fazendeiro, no mesmo dia foram “verificar a veracidade” do tal “projeto”,
mas “não encontraram nada referente à revolta de escravos”.
No dia 25 do mesmo mês, encontramos a última notícia sobre o “plano de
insurreição” pretensamente promovido pelos “Filhos das Trevas”. O autor da notícia
relatava que escravos e pretos livres “continuavam a se reunir no cemitério da cidade
para fogar, especificamente nos dias santificados”. Apesar das denúncias, “as
autoridades locais não tomavam providência alguma e a polícia de São Paulo dizia que
não possuía soldados, nem dinheiro o bastante para dar conta daqueles encontros para
fogos, e mesmo ameaças de insurreição dos escravos, que, para ela, não passavam de
boatos”.
3.6 – Mistérios sobre feitiços e insurreições
Recentemente, Slenes compreendeu o caso de Pai Gavião de maneira diversa da
nossa.
167
Seu argumento parte da idéia de que muitos referenciais culturais “africanos”
sustentaram a crença de escravos e autoridades públicas na eficácia da magia e dos
planos de insurreição feitos por Pai Gavião. Como portos da África Centro-Ocidental
alimentavam a rota do tráfico de escravos para o Sudeste brasileiro, e como esse tráfico
acabou em 1850, com poucas tentativas de burla nos anos seguintes, Slenes afirma que
os escravos das fazendas da região de Itu viviam segundo uma “herança cultural
africana”.
168
O autor explica que essa “herança” teria origem na região do “Congo
Norte, a costa entre a foz do Rio Zaire até o Gabão de hoje”. Os comerciantes de
escravos de Luanda teriam recorrido, também, a fontes comerciais de áreas falantes da
língua kikongo, origem, então, de muitos dos escravos desembarcados no Rio de
Janeiro. Esse panorama do tráfico atlântico de escravos conferiria à escravaria das
províncias do Sudeste, segundo o autor, afinidades culturais.
Slenes vem defendendo esse argumento desde outros trabalhos. Analisando
vocábulos de “origem africana”, transcritos com pequenos “erros de grafia” em fontes
policiais e relatos de viajantes europeus que passaram pelos Sudeste, no século XIX,
167
Robert Slenes, “A árvore de Nsanda transplantada: cultos kongo de aflição e identidade escrava no
Sudeste brasileiro (século XIX)”, in Douglas Cole Libby & Júnia Furtado (orgs.), Trabalho livre,
trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX, São Paulo, Annablume, 2006, pp. 273-314.
168
Slenes, “A árvore de Nsanda transplantada”, p. 280.
101
principalmente o de J. M. Rugendas, o autor demonstrou como existiria uma “proto-
nação banto” nessa região. Como os escravos do Sudeste viriam de uma região africana
de origem cultural semelhante, então eles teriam formado uma “consciência de
comunidade coletiva”.
169
Isso poderia ser observado, segundo dados levantados pelo
autor, nas semelhantes formas arquitetônicas de moradia construídas pelos próprios
escravos em relação às suas regiões africanas de origem, bem como na maneira de
construírem a vida em família.
170
Neste sentido, Slenes viu nas notícias sobre as reuniões lideradas por Pai Gavião
mais indícios e certezas da “proto-nação banto” da África no Sudeste brasileiro, ou de
escravos que nessa região reproduziam a cultura transportada com eles do antigo Reino
do Congo o que o autor denomina “cultura kongo”.
171
Uma vez que, durante os anos
1820 e 1830, o futuro Sudeste ainda era praticamente deserto, escravos vindos daquela
região da África para as primeiras fazendas teriam sido a “geração fundadora” da sua
forma específica de vida em senzala”. Parte dessa “herança cultural” estaria nos cultos
de aflição, evocados pelos africanos escravizados em momentos em que o grupo
procurava a cura através de sociedades secretas. Esses escravos se encontravam para a
realização de rituais onde ganhavam força espiritual para enfrentar os problemas da vida
no cativeiro, em florestas e clareiras. Cada um dos membros seria iniciado, segundo
Slenes, “através de uma cerimônia de morte ritual seguido de renascimento, com o novo
membro em transe, incorporando um espírito-guia individual, cujo nome e identidade
carregava durante o resto da vida”.
172
Muitos desses rituais teriam sido realizados pelos
Kongo, na África, para combaterem as conseqüências do tráfico de escravos voltado
para as rotas oceânicas. Assim, Slenes argumenta que eles possivelmente teriam sido
reproduzidos pelos Kongo nos lugares onde desembarcaram escravizados, como no
Sudeste do Brasil. Todos estes elementos estariam presentes nas reuniões conduzidas
por Pai Gavião.
Nessa tese, tal como fizemos na dissertação de mestrado, continuaremos
construindo nossa argumentação de maneira diferente da de Slenes. Ao invés de
169
Vale ressaltar que Slenes segue a argumentação sobre o uso do conceito de comunidade de Benedict
Anderson, Nação e consciência nacional, São Paulo, Ática, 1989 (São Paulo, Companhia das Letras,
2008).
170
Cf. Robert W. Slenes, “‘Malungu, Ngoma vem!’: África coberta e descoberta do [sic: leia-se “no”]
Brasil”, in Revista USP, n. 12, dez./jan./fev. 1991-92, pp. 48-67 e Na senzala, uma flor: esperanças e
recordações na formação da família escrava – Brasil Sudeste, século XIX, Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999.
171
Slenes, “A árvore de Nsanda transplantada”, p. 284-285.
172
Slenes, “A árvore de Nsanda transplantada”, p. 289.
102
enfatizarmos a possível reprodução cultural da África no Brasil, analisamos as formas
de relação social na sociedade imperial e os contatos entre livres, libertos, africanos
livres e escravos através da crença na magia e no poder da feitiçaria. O que menos nos
importa são as raízes culturais, e mais os critérios socialmente construídos que
sustentavam as ações das pessoas, a crença na magia e as acusações de feitiçaria. Essas
ações não eram exclusivamente praticadas por africanos, mas sim perpassavam pessoas
de várias classes e origens sociais, tanto no Sudeste, como pudemos ver no caso descrito
acima em que homens livres também participavam dos rituais descritos pelo
correspondente do jornal que os descreveu e no caso de Juca Rosa, quanto em Salvador,
nos casos narrados em O Alabama, a serem analisados nos dois últimos capítulos. A
descrição da época mostra também que os escravos usavam orações católicas em meio
ao transe, como vimos acima.
Slenes procurou apoiar-se nas informações de Rugendas acerca dos escravos no
Brasil para falar que aqui havia uma “proto-nação banto”. Mas podemos prestar atenção
noutras características desses relatos, para voltarmos a defender a idéia de que a crença
no poder de Pai Gavião, compartilhada também por livres, foi noticiada porque se
tratava de um plano de insurreição. Desde o levante dos malês a classe senhorial e a boa
sociedade imperial tinham receio que a crença mágico-religiosa de escravos conferisse
maior poder, grau de organização e força a planos de insurreição. Tinham receio,
também, de que os africanos poderiam ser perigosas lideranças de insurreições de
escravos. Eram representantes do marcante traço de “atraso” do Império, da África no
Brasil. Mas a escravidão, para muitos membros da classe senhorial e da boa sociedade,
era o modo que se conseguiria recursos para a nação ser civilizada. Esse era um dos
principais dilemas da sociedade imperial: querer combater os elementos do atraso da
nação, sem deixar de ser escravista e ainda por cima querer cada vez mais chegar ao
topo das nações consideradas civilizadas. O caso de Pai Gavião mostra bem esta
encruzilhada ideológica e de mentalidade.
As narrativas etnográficas do século XIX eram produzidas, em grande parte, por
missionários europeus na África, cientistas e artistas nas Américas. Interessado público
leitor esperava para ler as “aventuras” desses autores. Os missionários, ao revelarem a
palavra de Deus aos “africanos incivilizados”, punham em relevo os seus “costumes
bárbaros”. Os narradores eram membros das igrejas metodistas wesleyanas,
principalmente, pregadores vindos das classes trabalhadoras populares urbanas,
imbuídos de impetuosa vontade de relatar o mundo que, acreditavam, estava sendo
103
conquistado pelos europeus. Havia basicamente duas formas de publicação dos livros de
viagem destes missionários: edições populares, com mapas, adornos e figuras, e outras
mais acadêmicas, com dados a mais do que as anteriores.
Thornton argumentou que uma forma de entender o modo de se fazer
antropologia antes dos “antropólogos acadêmicos” dominarem a cena seria
compreender os ambientes social e intelectual nos quais os missionários produziram
seus relatos, bem como as formas de publicação dos mesmos. Eram religiosos nascidos
na Inglaterra vitoriana ou noutros lugares da Europa Ocidental onde dominava a idéia
de que as sociedades entendidas como mais atrasadas deveriam ser civilizadas com os
costumes e a moral das classes dominantes européias. Assim, muito do seu atraso
poderia ser diminuído.
173
As pressões políticas que o Império do Brasil sofreu para acabar com a
escravidão de africanos ou seus descendentes foram em grande parte fruto dessa
concepção européia de civilização e barbárie. Para tanto, por diversas vezes o governo
inglês pressionou o brasileiro a sair definitivamente da atividade do comércio, fosse
legal ou ilegal, de escravos africanos, chegando ao ponto de vigiar o Atlântico para a
captura dos “tumbeiros”.
174
Intenso debate político fora construído através daquele
oceano, ligando lugares da África, africanos, governo brasileiro, senhores, comerciantes
e traficantes de escravos, assim como diplomatas de diversas nações. As discussões não
se encerravam em seu caráter político e econômico. Parte da sociedade livre temia que a
maior concentração de escravos e mesmo africanos livres aumentasse a chance de
insurreições. Prova disso era o enorme fascínio de autoridades e demais membros da
elite política e econômica pelos boatos de insurreições escravas envolvendo africanos.
Nas portentosas fazendas de café das províncias do Rio de Janeiro e São Paulo
assassinatos cometidos por escravos que se diziam africanos, ou assim classificados
pelas autoridades policiais, recebiam especial atenção das mesmas e, muitas vezes, até
mesmo de ministros do Império. Encontramos um ofício enviado ao ministro da Justiça,
em 1867, narrando situação que bem explicita aquelas representações sobre escravos
africanos ligados ao assassinato de pessoas livres.
Herdeiro da fazenda Lagoa Grande, em Santo Antonio de Sá, província do Rio
de Janeiro, e de grande quantidade de escravos africanos, Joaquim Pires Domingues não
173
Robert Thornton, “Narrative ethnography in Africa, 1850-1920: the creation and capture of an
appropriate domain for Anthropology”, in Man: New Series, v. 18, n. 3, sep., 1983, pp. 502-520.
174
Como eram chamados os navios destinados ao tráfico e ao comércio negreiro.
104
conseguia de modo algum tomar posse de seus bens. Em 28 de junho de 1867, Joaquim
foi à Corte e procurou, pessoalmente, funcionários ligados ao ministro da Justiça.
Explicou que grande “insurreição” de escravos havia se dado em duas fazendas vizinhas
a sua, a Campestre e a São Fidélis, coincidindo com a semana em que receberia a
herança de seu pai. Os dois escravos apontados por Joaquim como mentores da
insurreição, Modesto e Felipe, africanos, se dirigiram para sua fazenda e tiveram pouco
trabalho para convencer os escravos a se rebelarem contra o novo senhor. Temendo que
não honrasse os acordos já estabelecidos com seu recém-falecido pai, os escravos
tomaram o governo da fazenda, decididos a o deixar Joaquim entrar e dela tomar
posse. Este era o motivo de Joaquim ir até a Corte e pedir auxílio policial “reforçado”
para, além de empossar-se de sua herança, impedir que o movimento insurrecional
chegasse às fazendas próximas.
175
Outro caso ocorreu no ano de 1864, em Serro e Diamantina, nas Minas Gerais.
Um plano de insurreição de grande número de escravos, tendo como liderança africanos
arraigados tempos naquelas regiões, foi descoberto por autoridades locais. De
maneira parecida com o plano supostamente elaborado por Pai Gavião, os insurretos
estavam juntando armas para, de um posto de observação, mais alto em relação aos
núcleos urbanos, poder acompanhar a movimentação da classe senhorial e decidir o
melhor momento para matar todas as pessoas. Durante dois meses forças policiais
perseguiram e prenderam os insurretos. No ano seguinte, os escravos finalmente
voltaram ao trabalho nas várias fazendas daquelas regiões.
176
Notícias de jornal, cartas entre autoridades policiais e da Justiça e processos
criminais da Corte de Apelação são documentos nos quais encontramos informações
que fundamentam nossa hipótese. Através destas fontes podemos perceber
manifestações de preocupação de autoridades relativas a explosões de vários tipos de
insurreições, bem como seus modos de ver aqueles que vinham escravizados “da
África” para o Brasil. Muitas vezes a morte de feitores, por exemplo, era motivada por
quebra de acordos ou mesmo por questões morais mais amplas, obedecendo a formas de
relação entre escravos e senhores e seus empregados.
177
Estes dados podem ser
175
AN, IJ1 – Ofícios dos presidentes da província do Rio de Janeiro ao ministro da Justiça, pacote 471.
176
Sobre essa insurreição, ver Isadora Moura Mota, “O vulcão negro da Chapada”: rebelião escrava nos
sertões diamantinos (Minas Gerais, 1864), Campinas, UNICAMP, Depto. de História, 2005, Dissertação
de Mestrado.
177
Para um olhar mais geral sobre assassinatos de feitor e empregados senhoriais cometidos por escravos,
ver Machado, Crime e escravidão. Para uma análise mais específica, a partir de estudos de caso, ver Luiz
Alberto Couceiro, “A disparada do burro e a cartilha do feitor: lógicas morais na construção de redes de
105
encontrados, muitas vezes, nas fontes acima citadas, isto é, em diferentes discursos
sobre uma mesma sociedade, escritos por diferentes pessoas.
3.7 A criminalização dos africanos e o perigo das insurreições para a boa
sociedade
A natureza social do medo da influência mágico-religiosa no planejamento e
execução de insurreições escravas, e parte da mentalidade que o alimentava é, para nós,
o que sustenta o fato de Pai Gavião ter sido interrogado pelo subdelegado de Itu.
Autoridades policiais estavam atentas à combinação bombástica entre africanos,
religiosidade e magia, desde o levante dos malês. Elas criminalizavam os
“comportamentos suspeitos” dos escravos de “nações africanas”, vigiando as várias
redes de relações nas quais eram construídas e reconstruídas as experiências dos
africanos no cotidiano das regiões escravistas traço marcante em toda a América,
como ressaltaram Lovejoy e Barreto, Gomes e Soares em recentes estudos.
178
O medo
dos senhores e das autoridades policiais e jurídicas acerca da influência da religião e da
magia no planejamento e na execução de insurreições escravas e outras formas de
protesto dos escravos era bem conhecido. Exemplos não faltavam, vindos de várias
partes da América escravista.
Na Martinica, em 30 de outubro de 1826, cerca de 30 pessoas foram acusadas de
participarem de uma conspiração que tinha como objetivos: arruinar a plantação de
fazendas, matar seus donos, alguns de seus escravos e trabalhadores livres, bem como
outros nove senhores – donos de alguns dos escravos que constituíam o grupo de
conspiradores. Em suma, foram acusados de feitiçaria e julgados por participarem de
reuniões secretas da “Sociedade dos Envenenadores”, nas quais “aprendiam a fazer e a
usar substâncias venenosas através da feitiçaria”. O caso descrito na Martinica tem
analogias com a estrutura do caso da “Coroa da Salvação”.
179
Os escravos eram
sociabilidade entre escravos e livres em fazendas do sudeste, 1860-1888”, in Revista de Antropologia
USP, n. 46 (1), 2003, pp. 41-83. Quando falamos em “acordos”, estamos utilizando as reflexões de Maria
Helena P. T. Machado, “Em torno da autonomia escrava: uma nova direção para a história social da
escravidão”, in Escravidão Revista Brasileira de História, São Paulo, ANPUH, Marco Zero, v. 8, n. 16,
mar.-ago. 1988, pp. 143-160.
178
Paul Lovejoy, “Identidade e miragem da etnicidade: a jornada de Mahommah Gardo Baquaqua para as
Américas”, in Afro-Ásia, Salvador, CEAO/UFBA, n. 27, 2002, pp. 9-39; Juliana Barreto Farias; Carlos
Eugênio Líbano Soares & Flávio dos Santos Gomes, No labirinto das nações: africanos e identidades no
Rio de Janeiro, século XIX, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2005.
179
John Savage, ““Black magic” and white terror: slave poisoning and colonial society in Early 19th
Century Martinique”, in Journal of Social History, v. 40, n. 3, Spring 2007, pp. 635-662. Para uma
resenha sobre os argumentos centrais de muitos dos autores que tratam do tema da relação entre a crença
106
acusados aqui no Sudeste brasileiro de também terem tanto o poder de curar, como o de
matar, através da magia e de “objetos de feitiçaria” assim reconhecidos por grande parte
da sociedade.
Em certos contextos onde havia o medo de insurreição de escravos no Brasil, as
suspeições eram generalizadas. A categoria “africano” era utilizada para acusar uma
pessoa assim caracterizada como sendo perigosa, ou insurreta em potencial, para além
das “nações” às quais pertencia.
180
Africanos eram reconhecidos em todo o Império do Brasil como perigosas
lideranças de insurreições escravas. Tanto assim que muitos discursos políticos sobre o
final do tráfico internacional de escravos para o Brasil, que viria a acontecer em 1850,
se reportavam ao aumento das insurreições e ao freqüente perigo de um novo levante
malê, que em diversas partes do Império. Volta e meia, policiais prendiam africanos
nas ruas de diferentes cidades brasileiras, acusando-os de ter participado do levante de
1835, ou mesmo de valorizarem a insurreição escrava de São Domingos, rebatizado de
Haiti após a ocorrência da mesma.
181
Advogados baseavam defesas de escravos
acusados de matar livres segundo a lógica de que “homens livres não eram como os
africanos escravos, isto é, não conspiravam para matar brancos”.
182
No Brasil, africanos eram levados à justiça como cabeças de assassinatos de
feitores, planejamento de protestos e até mesmo por liderarem “rituais de feitiçaria” em
lugares onde havia grande quantidade de escravos, alimentando o medo senhorial de um
clima mais propício à eclosão de insurreições. Vejamos alguns exemplos.
Mesmo sem que as oito testemunhas, todas lavradores livres, tivessem
presenciado os três golpes fatais que mataram seu companheiro, também escravo de
no poder mágico-religioso e a maior força dos escravos no planejamento e na execução de insurreições,
ver Walter Rucker, “Conjure, magic and power: the influence of Afro-Atlantic religious practices on
slave resistence and rebellion”, in Journal of Black Studies, v. 32, n. 1 , sep. 2001, pp. 84-103. Para
envenenamentos provocados por escravos e a sua ligação com práticas religiosas cristãs e não somente
africanas, ver Hein Vanhee, “Central African popular christianity and the making Haitian vodou
religion”, in Linda M. Heywood (ed.), Central Africans and cultural transformations in the American
diáspora, Cambridge, Cambridge University Press, 2002, pp. 243-264.
180
Para a Bahia, ver João José Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835
edição revista e ampliada, São Paulo, Companhia das Letras, 2003, pp. 421-435. Para um quadro mais
geral do Império, ver Manuela Carneiro da Cunha, Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à
África, São Paulo, Brasiliense, 1985.
181
Ver Flávio dos Santos Gomes, “Experiências transatlânticas e significados locais: idéias, temores e
narrativas em torno do Haiti no Brasil escravista”, in Revista Tempo. Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, 2002, pp.
209-246 e David Geggus (org.), The impact of Haitian Revolution in the Atlantic World, Columbia,
University of South Carolina Press, 2001.
182
Para todas estas informações, ver Dale T. Graden, “An act even of public security”: slave resistance,
social tensions, and the end of the international slave trade to Brazil, 1835-1856”, in The Hispanic
American Historical Review, v. 76, n. 2, may, 1996, pp. 249-282.
107
dona Maria Joaquina, o africano José fora condenado à pena de seis meses e meio de
prisão. Na noite de 12 para 13 de julho de 1872, “todas as pessoas que estavam na
pensão de Antonio Rangel, em Campanha, província de Minas Gerais, ouviram o
escravo Herculano gritar para que acudissem o ferido José”. Herculano, crioulo, foi o
primeiro a acusar José Africano como autor do crime.
183
Em 20 de abril de 1883, um
contingente de 100 praças fora pedido para conter as insurreições de escravos que as
autoridades de Campinas, província de São Paulo, esperavam acontecer no mês de
junho. Alguns senhores atribuíam a liderança dos “levantamentos de escravos” a
africanos.
184
Segundo visto até o momento parece-nos difícil pensar os grupos definidos
étnica ou racialmente como se fossem classificados através de aspectos fixos da
realidade social.
185
A palavra africano no contexto do Império do Brasil é uma categoria
social e historicamente construída. Essa categoria também era usada em um sentido
acusatório de caráter criminal. E, como vimos noutros capítulos, muitas vezes o acusado
de feitiçaria era africano ou descendente direto de africano. Esse era um dado central
para as autoridades públicas darem maior legitimidade aos poderes mágico-religiosos
dos acusados. A natureza das fontes de investigação com as quais sustentamos nosso
argumento confirma a idéia de que os africanos não eram os seus próprios
classificadores stricto sensu. Membros da elite política imperial classificavam-nos pelo
que entendiam e esperavam de seus comportamentos. Por outro lado, muitas destas
classificações eram utilizadas pelos próprios escravos para atingirem certos objetivos
sociais como se entrosar com tantos outros nas casas de zungu da Corte para melhor
se alimentarem, ou entrar em uma das maltas de capoeira da mesma cidade.
186
As
identidades sociais eram, assim, definidas por sistemas de classificação socialmente
reconhecidos, e em momento algum estáticos.
Entendemos as identidades étnicas e elas não eram poucas no Império do
Brasil! como sendo cambiantes e manipuláveis pelos próprios agentes sociais, nas
mais diversas situações em que os grupos sociais têm de se diferenciar uns dos outros, e
183
AN, Corte de Apelação, Processo Crime, maço 222, número 2161, galeria C.
184
AN, IG1 162, Correspondência do ministro da Guerra com presidente de província de São Paulo,
1880-1884.
185
Estamos adotando as análises sobre a categoria etnia de Fredrick Barth, “Grupos étnicos e suas
fronteiras”, in Philippe Poutignat & Jocelyne Streiff-Fenart, Teorias da etnicidade, São Paulo, Editora da
UNESP, 1998.
186
Cf. Carlos Eugênio Líbano Soares, Zungu: rumor de muitas vozes, Rio de Janeiro, Arquivo público do
Estado do Rio de Janeiro, 1998 e A negregada instituição: os capoeiras na corte imperial, 1850-1890, Rio
de Janeiro, ACCESS, 1999.
108
não como heranças culturais transmigradas da África para outras sociedades escravistas.
Uma parte da identidade poderia ser entendida como individual, e outra como coletiva.
Há um caso que serve de exemplo sobre essas definições.
O marinheiro norte-americano Antonio Frank ficou preso por uma semana na
Casa de Detenção, na Corte, em fins de julho de 1869.
187
As autoridades policiais
suspeitaram que se tratava de um “africano fugido, uma vez que falava uma língua a
qual não entendiam quando o viram nas ruas da Corte”. Frank, segundo as autoridades,
estava no Rio de Janeiro desde 1862, vindo de Baltimore, Estados Unidos da América.
Ele havia conseguido emprego na estiva de navios estrangeiros, estabelecendo
residência na Corte, aprendendo a falar o português. O cônsul dos Estados Unidos no
Brasil, James Mansel, estava empenhado em soltar Frank da Detenção, pois tinha
“convicção de que jamais fora escravo no Brasil”. Nem mesmo norte-americano era,
pois muitas pessoas em Cabo Verde diziam conhecê-lo segundo afirmou Frank, o que
foi confirmado pelas investigações do consulado. Mesmo após esta constatação, James
Mansel não arredou pé da investigação, e conseguiu soltar o suposto compatriota. Todos
estes agentes sociais viveram uma situação na qual identidades internacionais, diríamos
até atlânticas americano, cabo-verdiano e africano foram manipuladas, em relações
intensas de negociação em curtíssimo espaço de tempo.
188
3.8 – A imagem dos africanos nas classificações policiais
Na primeira metade do século XIX, o ideal de Estado-Nação estava impregnado
pela classificação dos cidadãos apenas como nacionais, através do seu nascimento em
um lugar específico politicamente delimitado. À medida que a segunda metade do
mesmo século chegava foi prevalecendo o critério étnico de nação, dando lugar à idéia
de nacionalidade e nacionalismo, tendo como base a crença na ancestralidade do sangue
como elemento definidor da posição social do indivíduo. Como escreveu Ranke na
primeira metade do século XIX, cada nação tinha sua cultura própria, sua origem
comum e um território para uma mesma língua. Mas para povos que não possuíam
187
AN, IJ6 – 517, Série Justiça – Polícia da Corte.
188
Sobre estes pontos de vista sobre o conceito de etnia em relação ao de identidade, podemos ver mais
exemplos nos textos de Max Gluckman, Custom and conflict in África, Oxford, Basil Blackwell, 1970;
Rituais de rebelião no sudeste da África, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1974, Cadernos de
Antropologia 4 e “Análise de uma situação social na Zululândia moderna”, in Bela Feldman-Bianco (org.
e intr.), Antropologia das sociedades contemporâneas, São Paulo, Global, 1987, pp. 227-344, e também
no de Clyde J. Mitchell, The Kalela Dance, Manchester, Manchester University Press, 1956, Rhodes
Livingstone Papers, n. 27. Para uma aplicação deste entendimento de etnia e identidade no Brasil, ver
Roberto Cardoso de Oliveira, Identidade, etnia e estrutura social, São Paulo, Pioneira, 1976.
109
território historicamente definido em suas fronteiras políticas, Herder e Fitche criam o
conceito de “povo”.
189
O sistema de classificação criminal, no Império do Brasil, se misturava a vários
conceitos identitários, como “povo”, “brasileiro”, “africano”, “português”, etc. Através
do sistema de classificação dos grupos em disputa política, podemos compreender como
o Império viveu momentos de quase fragmentação e de lutas pela unificação territorial
nas suas províncias, durante toda a primeira metade do século XIX. Para dar uma
classificação oficial aos legítimos ocupantes de seu território politicamente
independente, a partir de 1822, o governo buscou narrar uma história oficial de seu
“povo”, bancando o projeto apresentado por Francisco Adolfo de Varnhagen.
190
No Brasil, podemos ver as conseqüências do alargamento intelectual do uso
deste conceito, que muito rapidamente havia transposto o Atlântico. Isso aparece em
documentação na qual membros da classe senhorial falam sobre escravos africanos
como tendo seus comportamentos ligados às tradições de seu povo de origem. Alguns
desses documentos relacionam os africanos com ações mágico-religiosas e com o
planejamento e a execução de insurreições escravas. Por isso mais acusáveis de serem
feiticeiros?
Em dez de junho de 1857, o comendador Joaquim José de Sousa Breves, um dos
maiores senhores e traficantes de escravos do Império,
191
enviou ofício ao então
presidente da província do Rio de Janeiro, João Manuel Pereira da Silva. José de Souza
Breves estava muito preocupado com o “indício de sedição entre seus escravos, no
município de São João do Príncipe”.
192
Seu incômodo era devido, em um primeiro
momento, ao fato de ter encontrado mais de 34 latas de pólvora na senzala de um de
suas fazendas. Isso daria para carregar muita munição e provocar explosões de grandes
proporções onde os escravos bem entendessem. Para sua surpresa, descobriu que a
grande quantidade de pólvora servia para fins menos sediciosos.
189
Ver Peter Burke, A cultura popular na idade moderna: Europa, 1500-1800, São Paulo, Companhia das
Letras, 1989, pp. 31-49.
190
Cf. Manoel Luís Salgado Guimarães, “Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional”, in Estudos Históricos, n. 1, 1988, pp. 5-27;
Nilo Odalia, As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira
Vianna, São Paulo, Editora UNESP, 1997, pp. 11-113; Maria Helena P. T. Machado, “Um mitógrafo no
Império: a construção dos mitos da história nacionalista do século XIX”, in Estudos Históricos, n. 25,
2000-2001 e os artigos presentes no livro José Murilo de Carvalho (org.), Nação e cidadania no Império:
novos horizontes, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, que articulam análises acerca das relações
entre membros de todas as classes sociais no Império do Brasil com o Estado, isto é, o conceito de
cidadania, com o de Nação.
191
Cf. Couceiro, Bumerangue encapsulado, pp. 80-83.
192
AN, IJ1 – pacote 867, Ofícios do Presidente da Província do Rio de Janeiro.
110
João da Silva atendeu de pronto à denúncia de Breves, mandando o chefe de
polícia interino da província do Rio de Janeiro, José Caetano de Andrade Pinto,
começar as investigações sobre o grupo de escravos que se reuniam em torno da “seita
Dom Miguel”. Além disso, nomeou um novo subdelegado, Eusébio da Fonseca
Guimarães, que passou imediatamente a dar buscas nas senzalas para encontrar objetos
roubados que pudessem dar algum indício sobre o plano dos escravos matarem os
senhores da região. Eusébio proibiu que os escravos saíssem à noite das fazendas de
seus senhores, para que as “reuniões sinistras fossem interrompidas”. Em suas primeiras
buscas, encontrou “raízes e ervas venenosas, que podem produzir graves incômodos de
saúde”. Os “pretos encontrados com estes objetos foram castigados, evitando mal
maior”. Tais notícias foram comunicadas a João da Silva, em “carta confidencial” de 21
de junho de 1857, pelo próprio Eusébio, que ainda informou “não haver indício algum
de sedição entre os escravos”.
193
Eusébio havia “percebido que entre aqueles escravos havia nações rivais, apesar
da harmonia forçada em que vivem pela sujeição do cativeiro”. Mas, havia uma coisa
que unia tais escravos,
a supersticiosa idéia que sempre domina a raça africana, acreditando em seus
fetiches, patuás, amuletos etc., quando praticam cerimônias e danças grotescas do
seu país, e nesta prática supõem alcançarem absurdas felicidades, regresso à sua
pátria, a bem de algumas doçuras ao cativeiro em que vivem, e mil insignificantes
coisas de sua fantasia.
194
O subdelegado supunha que aqueles escravos estavam externando aquilo que
seria afeito à sua “raça africana”. Assim, o comportamento dos mesmos seria dominado
pela irracionalidade. De todo modo, o subdelegado alegara que, apesar de os escravos
terem motivos de sobra para “manifestar a rivalidade entre suas diferentes nações”, a
crença no feitiço era superior a tais querelas.
O exemplo nos desloca para a articulação, comum ao século XIX, entre os
conceitos de comunidade e nação, além dos de raça e etnia, presentes também nos
missionários etnógrafos estudados por Thornton. Por comunidade, grosso modo, eram
entendidos indivíduos sujeitos ao mesmo todo racial. Os particularismos étnicos se
confundiam, assim, com raças, classes sociais e povos, uma vez que todas estas
definições faziam parte do grande debate sobre as peculiaridades e as desigualdades
193
AN, IJ1 – pacote 867, Ofícios do Presidente da Província do Rio de Janeiro.
194
AN, IJ1 – pacote 867, Ofícios do Presidente da Província do Rio de Janeiro.
111
entre os indivíduos e os povos, determinadas pelas características biológicas.
195
Em
muitos documentos, vemos a ampla caracterização dos africanos como indivíduos que
possuíam etnia, nacionalidade, religião ou crença, comprovando a idéia maior de que a
natureza humana tinha veis biologicamente diferenciados também para as elites
letradas brasileiras, em direto diálogo com viajantes europeus que aqui estiveram para
conhecer as “peculiaridades” da sociedade escravista do Brasil.
Vimos que Slenes teve como base para construir os argumentos acerca do
conceito de “proto-nação banto” no Sudeste os estudos e as pranchas do pintor bávaro
Johann Moritz Rugendas. Podemos fazer outros usos dos mesmos. Rugendas esteve no
Brasil entre o início de 1822 e meados de 1825 para retratar alguns dos costumes mais
característicos dos trópicos escravistas. Terminadas em Paris, no ano de 1826, suas
gravuras são vistas, até os dias de hoje, como registros fidedignos de comportamentos
de escravos e livres em seus hábitos mais cotidianos. Além das gravuras, produziu um
relato escrito, que não goza do mesmo sucesso, sobre sua estada no Brasil, discorrendo
sobre relações sociais entre escravos e livres. Analisando tal texto em relação às
gravuras, podemos perceber que Rugendas estava alicerçado na visão etnocêntrica
européia sobre os africanos e sobre a sociedade escravista brasileira, como todos os
viajantes estrangeiros que apostaram no Brasil. Se, por um lado, ele denunciou a
“desumanização” de escravos e senhores, por outro elogiou a capacidade dos “negros”
saírem do “estado selvagem” de sua “raça”, integrando, assim, a sociedade dominante.
Como outros viajantes e políticos abolicionistas nas Américas, Rugendas louvou o fato
e falou como se o tivesse comprovado em sua experiência transformada em narrativa
dos africanos e seus descendentes mais diretos terem qualidades intelectuais para
alcançar maior esclarecimento espiritual. Rugendas afirmava a possibilidade de os
escravos no Brasil construírem família, uma vez que possuíam capacidade moral o
bastante para sustentar afetividades do tipo amor familiar.
196
Mas ao mesmo tempo
195
Cf. Schwarcz, O espetáculo das raças.
196
Robert W. Slenes, “As provações de um Abraão africano: a nascente nação brasileira na Viagem
Alegórica de Johann Moritz Rugendas”, in Revista de História da Arte e Arqueologia, Campinas, Centro
de Pesquisa da Arte e Arqueologia/IFCH-UNICAMP, n. 2, 1995-1996, pp. 271-294. Sobre as visões de
Rugendas acerca de sua viagem ao Brasil, ver também: Celeste Zenha, “O Brasil de Rugendas nas
edições populares ilustradas”, in Topoi, v. 5, 2002, pp. 134-160 e Pablo Diener, “O catálogo
fundamentado da obra de J. M. Rugendas e algumas idéias para a interpretação de seus trabalhos sobre o
Brasil”, in Revista USP, n. 30, junho-agosto 1996, pp. 46-57. Sobre os discursos dos viajantes europeus
sobre o Brasil escravista no século XIX, ver, ainda, Maria Isaura Pereira de Queiroz, “Viajantes, século
XIX: negras escravas e livres no Rio de Janeiro”, in Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 28,
1988, pp. 53-76; Ilka Boaventura Leite, Antropologia de viajem: escravos e libertos em Minas Gerais no
século XIX, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1996 e Katherine E. Manthorne, “O imaginário brasileiro
112
Rugendas não deixou de ser influenciado por essas idéias das elites brasileiras de acusar
preferencialmente os africanos, por serem eles estrangeiros e assim, feiticeiros em
potencial. Ao africanizar Rugendas, podemos fazer o mesmo que a classe senhorial
fazia em relação aos acusados de feitiçaria, quando identificavam seu gestual, os objetos
que manipulavam, as roupas que porventura vestiam, as palavras que proferiam e os
objetos rituais que encontravam como sendo africanos. No Império, socialmente, os
africanos e seus descendentes representavam a “barbárie” e a “incivilidade”, e seus
costumes eram moralmente condenados pela boa sociedade. Assim como a feitiçaria.
Muitas outras características menos engrandecedoras eram atribuídas aos
escravos, nos municípios do Vale do Paraíba e Oeste Paulista cafeeiros, principalmente
a partir da década de 1860. Aos escravos era atribuída a raiva inata contra seus senhores
e demais homens livres por muitos membros da classe senhorial imperial. Esta raiva
seria sentida com total e definitiva intensidade quando os escravos matassem todos os
brancos que estivesse ao seu redor. O medo de grandes insurreições era o motor de
corações e mentes de muitos senhores e políticos do Império, caracterizando os
comportamentos dos escravos, principalmente os africanos, cada vez mais audaciosos
em suas reivindicações como fortes indícios da formação de enorme “nuvem negra”
sobre as lavouras de café. Mais e mais senhores e autoridades imperiais acreditavam que
a situação nas fazendas do Sudeste estava cada vez mais descontrolada, e exigiam
reforços policiais para conter até mesmo insurreições de escravos que ainda não haviam
saído dos boatos entre moradores locais. Eram a “onda negra e o medo branco em
ação”, através da continuidade da construção da imagem do escravo como mais
próximo do “irracional” e da “raça inferior”, no pensamento predominante na elite
senhorial. Mais próximo da insurreição do que das formas verbalizadas de
negociação.
197
para o público norte-americano do século XIX”, in Revista USP, n. 30, junho-agosto 1996, pp. 58-71.
Sobre os viajantes brasileiros e os relatos de suas andanças pelos territórios do Império, ver Flora
Süssekind, “Palavras loucas, orelhas: os relatos de viajem dos românticos brasileiros”, in Revista USP, n.
30, junho-agosto 1996, pp. 94-107.
197
Sobre a construção social do medo branco da onda negra, ver Célia Maria Marinho de Azevedo, Onda
negra, medo branco: o negro no imaginário das elites, século XIX, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987 e
Vera Malaguti Batista, O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história, Rio de Janeiro,
Revan, 2003. Sobre o processo de construção social da subjetividade do escravo no Sudeste da década de
1860 em diante, ver Couceiro, Bumerangue encapsulado.
113
3.9 – A criminalização de quem dizia e acreditava ser africano
O pós-1848, com algumas casas reais européias tendo recuperado seu poder
político através de acordos com as burguesias nacionais (industriais), donas das novas
formas de se fazer fortuna na Europa, aumentou a propagação das idéias de degeneração
racial da humanidade e o medo das massas em revolta.
198
As casas reais desejavam dar
continuidade a sua diferenciação social através do reforço do caráter bio-moral dos
grupos sociais. Assim, seus referenciais biológicos foram fundados na idéia de “raça”, a
partir da conformação sica das pessoas com a sua “raça”, afetando as mais diferentes
teorias sociais de então.
199
Neste sentido, o conceito de “raça” negava aos
estigmatizados por seus dogmas morais a humanidade, atribuindo inferioridade aos
ditos mestiços ou negros. A história de uma nação ou de um povo poderia ser contada
pela gênese de suas “raças”, que estariam ligadas ao fenótipo e à aparência exterior,
inicialmente atribuída à cor da pele considerando a expansão ao sol hereditária. Na
escala civilizatória, quanto mais claro, melhor, quanto mais escuro, pior. O uso do
conceito de humanidade do Iluminismo francês, pautado na igualdade em potencial dos
homens e na conseqüente igualdade de direitos, foi, no século XIX, matizado com o de
raça para demonstrar a desigualdade entre povos e, até mesmo, classes sociais – ou seja,
como produtos da natureza que escapava ao conceito. Somado a isso o conceito de
comunidade era utilizado cada vez mais pelas autoridades públicas ocidentais para
designar a origem comum de um “todo racial”, e os seus degenerados criminosos e
demais membros das “classes perigosas”. A partir da relação entre criminalidade,
higiene, classe social e “origem racial”, aquelas autoridades comprovavam os diversos
graus de pureza em uma mesma comunidade nacional.
200
Thornton conclui que, entre 1850-1900, a imagem da África na Inglaterra foi
construída por tipos de heróis desbravadores, realçando peculiaridades, exotismos e os
mistérios do continente, de seus costumes e de seus homens. Isso gerou novos
problemas para os pensadores europeus, bem como para os próprios missionários.
198
Cf. Arno J. Mayer, A força da tradição: a persistência do Antigo Regime (1848-1914), São Paulo,
Companhia das Letras, 1987, princ. “Cap. 2: Classes dominantes: a burguesia se inclina” e “Cap. 5:
Concepções de mundo: darwinismo social, Nietzsche, guerra”, pp. 87-132 e 267-317. Para um panorama
da ascensão do capital financeiro em relação direta ao industrial, ver Eric J. Hobsbawm, A era do capital,
1848-1875, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, princ. “Décimo-Terceiro Capítulo: O mundo burguês” e
“Décimo-Quarto Capítulo: Ciência, Religião, Ideologia”, pp. 241-285.
199
Ver Stephen Jay Gould, A falsa medida do homem, 2ª. Edição, São Paulo, Martins Fontes, 1999.
200
Toda esta discussão é feira por Kenan Malik, The meaning of race: race, history and culture in
Western society, London, MacMillan, 1996. Exclusivamente sobre a gênese do conceito de raça, ver
Michael Banton, A idéia de raça, Lisboa, Edições 70, 1979.
114
Dualismos foram construídos por antropólogos de gabinete, colocando os africanos
mais próximos da emoção que da razão acreditar em bruxas ao invés de um Deus,
por exemplo. As descrições etnográficas estavam num plano diferente das construções
teóricas sobre elas, e mesmo da forma discursiva de produzi-las. Os textos eram
“recontextualizados” através dos imperativos moral e ideológico dos pensadores
europeus, utilizando “a África” como um todo, um cenário no qual era construída uma
narrativa romântica acerca do entendimento de categorias universais do homem, que
eram etnocêntricas.
201
No Brasil do século XIX, vimos que as categorias raciais e étnicas estavam,
muitas vezes, associadas às formas de entendimento criminal da vida social. Muitas
destas categorias chegam até nós por documentos produzidos pelas autoridades policiais
ou da Justiça, e o somente pelos ideólogos daquele século, ou pelos debates políticos
da câmara, do senado e dos jornais. Trabalhamos, assim, com narrativas, tais como as
dos missionários etnógrafos europeus, envolvidas pela idéia de progresso e escalas
variadas de comportamentos, indo do pior para o melhor tipo de ser humano. Peças e
mais peças de processos-criminais foram produzidas, revelando parte do universo
mental de seus autores, membros da elite letrada do Império, quando os juízes davam
seu veredicto sobre os africanos acusados de assassinatos.
A mentalidade da classe senhorial que sustentava o medo das insurreições
escravas, e das ações dos africanos, principalmente após a revolta dos malês em janeiro
de 1835, aumentou a desconfiança criminal sobre o efeito da presença de africanos entre
os escravos, e da força que práticas mágico-religiosas por eles divulgadas dariam
àquelas. Não era um medo surgido de visões fantasmagóricas coletivas dos senhores de
escravos e demais autoridades do Estado, mas sim um sentimento baseado no
desbaratamento de planos de insurreições ou mesmo no combate às mesmas.
202
Após
1850, o tráfico internacional de escravos para o Brasil foi proibido por lei, seguido de
um esforço político, policial e jurídico nunca dantes visto para ser eficientemente
201
Para um estudo que demonstra com acuidade a construção da idéia de nação através dos domínios
coloniais europeus, na segunda metade do século XIX, ver Jan Rüger, “Nation, Empire and Navy: identity
politics in the United Kingdom, 1887-1914”, in Past & Present, n. 185, nov. 2004, pp. 159-187.
202
Para um debate sobre as conexões entre o sentimento do medo e suas derivações e o que socialmente
podemos entender como sendo sua motivação, ver Georges Lefebvre, O grande medo de 1879, Rio de
Janeiro: Campus, 1979, e, para um balanço teórico e metodológico mais geral, ver Michel Vovelle, A
mentalidade revolucionária: sociedade e mentalidades na Revolução Francesa, Lisboa, Edições
Salamandra, 1987. Para a relação entre o sentimento de medo e a possibilidade da eclosão de insurreições
e demais tipos de movimentos sociais de protesto político no Ocidente, ver Jean Delumeau, História do
medo no Ocidente (1300-1800): uma cidade sitiada, São Paulo, Companhia das Letras, 2001, pp. 368-
380.
115
fiscalizado.
203
Deste modo, a presença de africanos diminuiu vertiginosamente entre as
escravarias. Nem por isso a classe senhorial deixou de ver aqueles que restavam como
ameaças à ordem, como também outros tantos tipos de escravos que deles se
aproximavam.
3.10 – A eficácia das técnicas mágicas como linguagem insurrecional
Nina Rodrigues disse que, no campo religioso, os escravos exerceram poder
sobre os senhores. A crença no feitiço, segundo ele, não era exclusiva dos escravos e
descendentes de africanos, mas sim de toda a sociedade baiana, como vinha
acontecendo na sociedade brasileira desde o início da colonização portuguesa, usando a
mão-de-obra escrava africana no Novo Mundo. Segundo ele, “com exceção de alguns
espíritos superiores e esclarecidos”, todos na sociedade baiana comungavam das crenças
de origem africana. Isso que Nina Rodrigues demonstrava etnograficamente vinha
sendo narrado por romancistas e pelos homens que escreviam no jornal O Alabama,
como veremos nos próximos capítulos, na segunda metade do século XIX. Mais do que
pela condescendência dos dominadores, a crença no feitiço conferia poder religioso aos
politicamente mais fracos, os escravos, libertos e africanos livres. No seu livro abundam
exemplos da crença dessas pessoas no feitiço.
204
Através do caso de Pai Gavião e os outros narrados neste capítulo, podemos
observar como a crença no poder da magia relacionado ao das insurreições escravas
invertia momentaneamente a relação de poder entre os senhores e os escravos, libertos e
africanos livres.
Entre janeiro e março de 1904, Paulo Barreto, jovem jornalista de 25 anos de
idade, publicou uma série de reportagens sob o pseudônimo João do Rio adotado
desde novembro do ano anterior. Essas reportagens foram intituladas As Religiões no
Rio, e saíram no jornal Gazeta de Notícias. Antes mesmo do final do ano, a prestigiosa
livraria Garnier as publicou em um volume, que logo se tornou sucesso editorial. João
do Rio, através de reportagens e entrevistas, novidade daquela época no jornalismo do
Rio de Janeiro, tratou de rias formas de crença religiosa, principalmente as de caráter
afro-brasileiro – sobre o que dedicou o maior número de páginas.
203
Ver Couceiro, “Acusações atlânticas”.
204
Nina Rodrigues, O animismo fetichista dos negros baianos (Fac-símile dos artigos publicados na
Revista Brazileira em 1896 e 1897. Apresentação e notas de Yvonne Maggie e Peter Fry), Rio de Janeiro,
Fundação Biblioteca Nacional, Editora UFRJ, 2006.
116
João do Rio investigou os personagens principais daquelas religiões, dando-lhes
os seus nomes e descrevendo os lugares onde eram praticas, onde eram realizados seus
rituais peculiares. Suas reportagens demonstraram a um público maior do que os
acadêmicos, para quem Nina Rodrigues havia escrito seu livro, que pessoas das mais
diversas posições e classes sociais acreditavam no feitiço, sendo consulentes de diversos
feiticeiros e feiticeiras.
205
Certa ora, João do Rio narra que viu
senhoras de alta posição social saltando, às escondidas, de carros de praça, como
nos folhetins de romances, para correr, tapando a cara com véus espessos, a essas
casas; eu vi sessões em que mãos enluvadas tiravam das carteiras ricas notas e
notas, aos gritos dos negros malcriados que bradavam:
- Bota dinheiro aqui!
Tive nas mãos, com susto e prazer, fios longos de cabelos de senhoras que eu
respeitava e continuarei a respeitar nas festas e nos bailes, como as deusas do
conforto e da honestidade. Um babalorixá da Costa da Guiné guardou-me dois dias
às suas ordens para acompanhá-lo a lugares onde havia serviço, e eu o vi entrar
misteriosamente, entrar em casas de Botafogo e da Tijuca, onde, durante o inverno
recepções e conversationes às cinco da tarde como em Paris e nos palácios da
Itália. Alguns pretos, bebendo comigo, informavam-me que tudo era embromação
para viver, e, noutro dia, tílburis paravam à porta, cavalheiros saltavam, pelo
corredor estreito desfilavam um resumo da nossa sociedade, desde os homens de
posição às prostitutas derrancadas, com escala pelas criadas particulares.
206
Os relatos de Nina Rodrigues e João do Rio mostram como pessoas de várias
classes sociais eram seduzidas pelos feitiços, pelos acusados de serem feiticeiros ou
feiticeiras, tanto em Salvador, quanto no Rio de Janeiro. Pessoas essas, inclusive,
pertencentes às classes sociais mais poderosas política e economicamente, sabiam onde
procurar os feiticeiros. Esses encontros deveriam ser feitos de maneira misteriosa, posto
que os bem-nascidos não desejavam que outras pessoas soubessem de suas consultas
aos feiticeiro e feiticeiras.
As notícias acerca de Pai Gavião mostram o quanto o jornalista do Correio
Paulistano, e “autoridades locais”, sabiam onde os encontros rituais ocorriam, com
quem deveria conversar na região para obter essas informações, e do interesse do editor,
em São Paulo, nos fatos para os quais ele fora enviado para observar e relatar. As
reportagens do Correio Paulistano não versam somente sobre os planos de insurreição
205
Essas informações foram coletadas da “Apresentação” escrita por João Carlos Rodrigues para a edição
João do Rio (Paulo Barreto), As religiões no Rio, (Apresentação, organização e notas de João Carlos
Rodrigues) Rio de Janeiro, José Olympio, 2006, Col. Sabor Literário, pp. 7-12. Para informações e
análises pormenorizadas acerca da forma pela qual João do Rio construiu essas reportagens, ver Virgínia
Célia Camilotti, João do Rio: idéias sem lugar, Campinas, UNICAMP, Depto. de História, 2004, Tese de
Doutorado.
206
João do Rio (Paulo Barreto), As religiões no Rio, pp. 60-61.
117
que supostamente Pai Gavião liderava, falam das crenças e da organização ritual dos
Filhos das Trevas, demonstrando familiaridade com termos e ações praticadas pelos
acusados, e, mais, mostram que o principal acusados era um africano, José Cabinda, que
passou a ser assim uma das categorias acusatórias.
As notícias trazem informações sobre as ações mágicas de Pai Gavião durante os
encontros noturnos. Nelas, estão transcritas algumas das palavras mágicas que proferia,
com eficácia socialmente reconhecida para os fins que prometia. Pai Gavião manejava
objetos diversos, se lambuzava com substâncias, ingeria aguardente, gritava palavras de
ordem, desenhava símbolos no corpo dos iniciados manuseando um punhal, se
contorcia, manejava corno de boi e outros objetos e dizia palavras inteligíveis para os
ouvidos do jornalista do Correio Paulistano. Ele registrou essas informações, que nada
tinham a ver com a execução em si da prometida grande insurreição dos Filhos das
Trevas, aparentemente planejada e propalada por Pai Gavião. As suas técnicas mágicas
foram entendidas pelo jornalista como relacionadas, sim, com o sucesso do plano. Essas
palavras conferiam eficácia às ações dos Filhos das Trevas, na sua luta contra senhores
que acreditavam naquela magia e nos seus efeitos e possivelmente sentiam-se seduzidos
por estas práticas, envolvidos pela crença nos poderes de Pai Gavião.
Gell argumentou que, no circuito de trocas de colares, analisado por Malinowski
em Argonautas do Pacífico Ocidental, parte do sucesso das relações era devido à
sedução que a proa da canoa provocava nas pessoas que estavam nas praias. As proas,
segundo os próprios dados etnográficos de Malinowski, eram trabalhadas em detalhas
por seus donos.
207
Para compreender melhor esta relação entre sedutor e seduzido, por
intermédio das proas esculpidas, Gell definiu o conceito de encantamento como a
atribuição de um expectador ao poder de criação do objeto, poder este maior que o de
um ser humano comum.
Para Gell, arte pressupõe a existência de alguém que faz um objeto e alguém que
irá observá-lo.
208
A obra de arte é, assim, um mediador entre dois sujeitos. Magia e arte
podem ser entendidas como tendo um mesmo processo de produção técnica, porque
criam objetos perturbadores. Para Gell, o mais importante na relação entre arte e magia
é que as duas são produzidas através de uma “técnica do encantamento” que faz o
objeto construído ser perturbador. A dificuldade embutida na ação de construção do
objeto resulta no que Gell chama de “encantamento da técnica”, ou seja, uma técnica
207
Gell, “The technology of enchantment and the enchantment of technology”.
208
Gell, “The technology of enchantment and the enchantment of technology”.
118
que constrói um objeto deve seduzir os observadores. No kula, as proas esculpidas
“facilitaram” as trocas de colares entre os ilhéus trobriandeses, pelo efeito “perturbador”
que provocavam naqueles que estavam esperando as canoas nas praias. Era desta forma
que os donos das canoas conseguiam, mais facilmente, parceiros para as trocas de
colares.
A partir da idealização do observador diante da dificuldade que ele acredita estar
sendo utilizada na cnica, cada sociedade atribui um valor particular aos objetos
criados. Os objetos da arte e os da magia produzem, assim, formas particulares de
sedução. Cada sociedade tem seus próprios conceitos de objeto da sedução. Cada
sociedade, assim, tem sua eficácia técnica, que está ligada ao objeto. Este é admirado ou
por ser inacessível a grande número de pessoas, ou porque as pessoas não têm tempo
para aprender a fazê-lo, ou porque simplesmente não o sabem. Gell lembra que uma
série de rituais mágicos narrados por Malinowski que acompanhavam a feituras das
esculturas das proas como as canções entoadas pelos proprietários das canoas –, e
sobre essa informação construiu sua argumentação.
Caminhando através dos conceitos de técnica de encantamento e encantamento
da técnica, propostos por Gell, podemos compreender porque as ações de Pai Gavião
seduziram as pessoas, e, desta forma, o que as seduzia. Quais os elementos que aquela
sociedade tinha para que Pai Gavião pudesse ter sucesso em sua sedução? O que diziam
as ações mágicas de Pai Gavião, narradas pelo jornalista, sobre a sociedade?
José Cabinda era um liberto africano, que falava aos escravos sobre insurreições
para matar todos os brancos da região. Falava disso nos encontros mágico-religiosos,
presenciados por membros da elite local. Suas palavras tocavam no maior medo da boa
sociedade imperial na época, isto é, a ocorrência de insurreições nas áreas de grande
concentração de escravos. Essa mesma elite local levou José Cabinda para um
interrogatório, com grande número de expectadores. Permitiu que ele, aliás, Pai Gavião,
como foi chamado, recebesse e manipulasse os “objetos de feitiçaria” para provar seu
poder, publicamente e em um recinto que representava o poder do Estado. Para que ele
não conseguisse isso, segundo o jornalista, uma trapaça foi forjada por pessoas que
estavam no local, de modo que Pai Gavião errasse o lugar onde o objeto escondido
estava. Dessa maneira, membros da própria classe senhorial demonstraram acreditar nos
poderes de Pai Gavião, mas não queriam que eles fossem comprovados para a platéia
que assistia ao interrogatório. Pelo contrário, a idéia era evitar o alastramento da crença
de que ele realmente estaria encorajando os Filhos das Trevas a fazerem a insurreição.
119
Pai Gavião seduzia as pessoas porque elas acreditavam em seus poderes africanos,
poderes esses de manipular objetos específicos para outras finalidades nos rituais
mágicos, conferindo-lhes novos significados corno de boi, espelho, punhal, imagem
de Santo Antonio, ervas, aguardente, etc.
Mauss & Hubert argumentaram que a força mágica torna possível a crença na
magia. Trata-se da idéia de que o objeto de uma crença permite a crença em uma ação
de eficácia gica, prática para os interesses das pessoas. Esses autores demonstraram
que a crença nesta força é uma condição de possibilidade para que certos fenômenos
ocorram; preocuparam-se em compreender as relações entre magia e emoções. Para
eles, o que garante a força da magia é a crença coletiva na eficácia da magia. A palavra
mágica funciona porque se acredita na autoridade daquele que a enuncia, e essa
crença é sustentada por motivos socialmente constituídos. O perfil social de José
Cabinda era formado por duas características centrais para a crença da elite local de que
ele dava voz a Pai Gavião, e aos seus poderes mágicos: ser um africano e planejar
insurreições através do uso de forças mágicas. Mauss & Hubert mostraram como a
magicização do mundo sempre vem acompanhada de uma formalização das situações
como os rituais ao redor dos poderes de Pai Gavião, por exemplo.
Não devemos pensar em Pai Gavião como um charlatão, no sentido de ser um
falso mágico. Como mostraram Mauss & Hubert, a figura do “charlatão”, tal como a do
mágico, também é construída socialmente e o que a caracteriza é o seu não
reconhecimento social para ser mágico – é apenas um candidato falho a mágico. Ele não
consegue agir para produzir magia, ou seja, não é mágico quem quer. Por isso, José
Cabinda não pode ser enquadrado nesta categoria acusatória charlatão. Ele não foi
questionado pelas autoridades locais, mas sim levado preso e testado para que elas
pudessem tranqüilizar parte da população local de que ele não tinha poderes mágicos
eficazes, muito menos forças espirituais capazes de organizar alguma insurreição. José
Cabinda foi posto na condição de charlatão, mas não era um falso-mágico. Ele não
estava prometendo algo em que as pessoas desacreditassem que poderia cumprir.
As notícias acerca de Pai Gavião mostram detalhadamente como ele usava os
objetos rituais de sua magia, o ambiente físico onde ocorriam e as suas sonoridades.
Aqueles objetos eram típicos, pela narrativa, familiares aos cultos e estavam à vista de
todos os que dele participavam. Nesse sentido, podemos dizer que nos deparamos com o
que Leach chamou de “qualidade dual dos tipos simbólicos”, com seus dois aspectos: o
aspecto privado, isto é, o que provoca alterações no estado emocional do ator, e o
120
aspecto público, isto é, aquele que diz algo sobre o estado emocional do ator.
209
Para o
jornalista do Correio Paulistano, os escravos Filhos das Trevas e demais pessoas que
assistiam às reuniões conduzidas por Pai Gavião, suas palavras eram proferidas em um
determinado ambiente, dia, horário, em um clima específico fora da vida cotidiana do
trabalho diário nas fazendas, do comércio local e de alguns serviços públicos. Os
envolvidos nas reuniões e Pai Gavião compartilhavam, em alguma medida, de uma
linguagem simbólica comum, linguagem essa que transbordava dos rituais para um
prédio público – a delegacia de Itu.
Se a essência do simbolismo público é, segundo as definições de Leach, o ato de
ser um meio de comunicação compartilhado entre ator e platéia, por seu lado, a do
simbolismo privado “é o poder psicológico de despertar emoções e alterar o estado do
indivíduo. A emoção não é despertada por qualquer apelo às faculdades racionais, mas
por algum tipo de ação deflagradora nos elementos subconscientes da personalidade
humana”.
210
Como bem concluiu Leach, apenas podemos supor, dentro de uma situação
social analisada, como as emoções privadas são experimentadas pelas pessoas como
nos encontros liderados por José Cabinda, que mobilizaram sentimentos de pessoas de
diferentes classes sociais.
Leach lança mão de situações denominadas “atos mágicos” para sustentar sua
argumentação. Tais atos são conhecidos, de um modo geral, por alterar a situação
material em um sentido místico, com efeitos nos indivíduos provocados pela e na
comunicação simbólica entre o sacerdote e a platéia. Leach argumenta que os elementos
que provocaram a alteração emocional são socialmente legitimados pelos participantes
do culto mágico, composto, portanto, de comportamentos conscientes todos sabem e
acreditam que determinada atitude do sacerdote mudará seu estado social. Em nosso
caso, a crença no poder que Pai Gavião tinha de dar força para os escravos levarem
adiante o ousado plano de insurreição. Isso é passível de ser analisado, mas não o
significado e os porquês íntimos das afeições dos seus participantes.
211
E nem nós e nem
os membros da classe senhorial temos o poder de traduzir e analisar em relação aos
casos narrador nessa tese.
209
Edmund Leach, “Cabelo mágico”, in Edmund Leach (textos selecionados e organizados por Roberto
Da Matta), São Paulo, Ática, 1983, Col. Grandes Cientistas Sociais, n. 38, pp. 139-159. Para tais
definições, cf. p. 140.
210
Leach, “Cabelo mágico”, p. 141.
211
Leach, “Cabelo mágico”, pp. 146-149.
121
No próximo capítulo, resumiremos e analisaremos um conto e quatro romances
nos quais seus autores, membros da boa sociedade imperial, colocaram feiticeiros como
personagens identificados com a África, importantes no desenvolvimento da narrativa.
Eles participam de situações decisivas para os rumos das tramas, situações essas que
poderiam, no sentido prático, serem resolvidas sem a “necessidade” de sua presença.
Mas lá estavam eles, demonstrando como as pessoas acreditavam em seus poderes,
pessoas estas personagens da sociedade Imperial, formadas por características de seu
universo moral, político e gico-religioso, e provocando estados de alteração
emocional em certos personagens, dado o seu envolvimento com a crença na eficácia da
magia.
122
Capítulo 4
Feiticeiros como personagens de romances no Segundo Reinado
Neste capítulo narraremos de maneira resumida um conto e quatro romances
escritos e publicados na segunda metade do século XIX, antes da proclamação da
República, em 15 de novembro de 1889, nos quais acusados de serem “feiticeiros”
aparecem como personagens centrais da trama. Podemos identificar nessas histórias,
como nos casos que narramos nos capítulos anteriores, elementos que demonstram a
relação íntima de membros da elite política e econômica do Império com a magia,
através da crença no poder do “feitiço” e das acusações de “feitiçaria”. Veremos como
esses personagens são caracterizados como pessoas ligadas à África. Posteriormente,
analisaremos esses resumos.
4.1 – “Pedro Gobá”, de Ezequiel Freire
212
“Tecla é a mulata mais bonita da fazenda. Sob os seus precoces treze anos
borbulha o ardente sangue mestiço, inflando-lhes as veias que serpenteiam túmidas
debaixo da pele acobreada, pubescente, de tons quentes como os do gerivá, verdoengo.
“Flor de cafeeiro”, deve ser colhida pelo melhor apanhador de todo o eito.” Assim, o
escritor Ezequiel Freire descreve a mulher desejada pelo escravo Pedro Gobá,
personagem central de seu homônimo conto, publicado em 1887.
A história se passa em uma opulenta fazenda de café, em maio, mês de início da
colheita. Esta fazenda possui tudo o que um cafeicultor do Sudeste do final do século
XIX precisava para obter lucro: cavalos, porcos, galinhas, leitões, carros de boi,
plantações de arroz e feijão, para serem negociados no mercado interno, também visado
por muitos fazendeiros da região, instrumentos para preparar os grãos de café para a
venda. Naquele ano o fazendeiro andava animado com a “safra que prometia”: “20
contos, pelo menos, líquidos”, eram “para reformar a” sua “gente, 12 peças de lei,
molecotes de 15 a 25 anos, na flor da idade, cerne puro”, calculava.
Em início de safra, o feitor Maurício apertava “o serviço”, estalando “o relho
sobre o lombo nu da negrada”. A “negrada”, por sua vez, escorria “em suor incrustado
212
http://www.bibvirt.futuro.usp.br (acesso em 05/julho/2007).
123
de poeira, alternadamente mordido: de manhã, pelo frio orvalho que esborrifa das
árvores, alto dia pela soalheira que mordica a pele como a dentada cáustica da formiga-
monjolo”.
Em um domingo, o feitor fez “distribuição anual da roupa” para os “50 míseros
negros”: “dois parelhos de algodão, japona de baeta, coberta de grosseira”. Tudo isso
porque o dono desta fazenda era “generoso”. No dia seguinte, antes de iniciar a colheita,
“distribuiu aguardente e fumo” para os “negros”. Com “uma canequinha de lata” o
feitor dava um gole de aguardente a cada um deles, que “sorvia com a beatitude de um
padre emborcando o cálice consagrado”. Pedro Gobá foi, em seguida, nomeado
“tarefeiro”, escravo que deveria cuidar para que os demais alcançassem a tarefa de
colher dez alqueires de terras com cafezais, naquela fazenda.
Este fazendeiro, como alguns outros, consentia e promovia o concubinato entre
a escravatura” por ter “interesse na disciplina das senzalas” e para “aparentar alguma
moralidade”. Não deixava que seus escravos “elegessem” suas parceiras. Outro motivo
para esta atitude do fazendeiro era “aparelhar-se a gente”, formando de um negro
diligente e destro com uma crioula morosa e inábil, uma entidade mista, espécie de
trabalhador andrógino cujos constituintes perfeitamente se” equilibravam “para o
exercício desta suprema função agrícola – dar a tarefa marcada”, isto é, ser tarefeiro.
Dentre os escravos desse fazendeiro, Tecla seria a mulher para compor este par.
O outro seria Pedro Gobá, escolhido para ser tarefeiro. Teria ele vindo de “Olinda”, em
um “comboio escolhido a dedo, de gente de primeira ordem”. Tratava-se de um escravo
“moço, atlético, retinto, forte e dócil”, isto é, “a melhor peça dentre toda a escravatura”.
Tocava “uma enxada, cantando uma cantilena triste, morro acima, num eito de mato
bravo”, e manejava a “foice, à roçada de um guaixumal de pasto velho” que “nem o
Peroba, o melhor crioulo da redondeza”, o “acompanhava”. Naquele primeiro dia da
colheita, ele escolheu Tecla, a flor do cafeeiro, bonita e indolente na exuberante
precocidade dos seus treze anos, para ser sua companheira. Houve casamento, feito por
Balbino, velho africano feiticeiro e manhoso, puxador do Terço, que exercia na
fazenda um arremedo de funções sacerdotais. Era ele quem paramentado com uma
sobrepeliz por cima de uma batina de seda feita de um dominó carnavalesco que
lhe dera o senhor moço estudante em São Paulo casava os parceiros, todos os
anos, em véspera da colheita, no oratório da Fazenda, perante um Cristo
envergonhado da sua impotência para aliviar a miséria da raça negra maldita,
condenada pelo Padre Eterno da legenda bíblica a eternamente trabalhar em
benefício nosso, dos que temos pais fazendeiros e contamos por avós históricos
Sem e Jafet.
124
Logo na primeira semana, a tarefa não fora atingida por Tecla. Maurício, o
feitor, diante de toda a escravaria, inclusive de Gobá, e da família do fazendeiro,
levantou o relho para puni-la. Antes que este descesse no corpo da escrava, Gobá, seu
esposo, pediu-lhe que fosse castigado em seu lugar. Pedro Gobá, “Pernambucano de
raça, altivo e nobre no íntimo da sua alma admirável, debalde abafada desde o berço
pela dominação dos senhores”, pegou a faca da cintura do feitor e a cravou no coração
de Tecla. De escravo “manso e bom”, Gobá, “subitamente” transformou-se “em homem
pelo irresistível impulso da nobreza inata”. Em seguida, cravou “a faca ainda rubra e
quente no seu próprio coração”.
4.2 – O Garimpeiro, de Bernardo Guimarães
213
Lúcia era a filha mais velha de um viúvo Major da Guarda Nacional do Império,
fazendeiro em crise financeira. Moravam entre os municípios de Araxá, Patrocínio e
Bagagem, localizados na província de Minas Gerais. Lúcia estava com 18 anos, tinha
“cabelos da cor do jacarandá brunido”. Seus “olhos também eram assim, castanhos bem
escuros”. Sua “tez era o meio termo entre o alvo e o moreno”. “Era bem feita, e de alta e
garbosa estatura”. “Todavia era dotada de certa elegância natural, e de uma delicadeza
de sentimentos que não se esperaria encontrar em uma roceira”.
214
O Major era um
“homem de espírito acanhado, frio, mas de boa alma. “O melhor dote que julgava poder
dar às suas filhas era dinheiro e só dinheiro.”
215
Elias era um jovem pobre, que havia chegado pouco tempo naquela região.
Vinha de Uberaba, e tentava a vida garimpando diamantes junto com seu velho escravo
Simão. Mas não encontrara nada, até aquele momento. Havia feito os “estudos
preparatórios” e, “por amor à leitura possuía variada instrução”. Conheceu o Major e
sua filha Lúcia em meio a um grupo de homens que participariam de uma “cavalhada”,
espécie de equitação que ocorria em festas de municípios do Império, como cavaleiros.
Era apontado como um dos melhores. Aqueles homens todos eram pretendentes à mão
de Lúcia, no entanto nenhum, por conta de sua precária situação econômica, tinha a
aprovação do Major. Mas a moça havia gostado de Elias.
213
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000058.pdf (acesso em 14/julho/2007).
214
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000058.pdf (acesso em 14/julho/2007), pp. 1-5.
Publicado em 1872.
215
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000058.pdf (acesso em 14/julho/2007), p. 7.
125
Sabia que seu pai não deixaria que o rapaz dela se aproximasse. Combinou com
sua velha escrava Joana, que havia sido sua ama-de-leite, de ir às festas relativas ao Sete
de Setembro para ver Elias. Desta forma, seu pai não desconfiaria de seus sentimentos
pelo cavaleiro. Não tinha jeito de o Major, com o posto que possuía na Guarda Nacional
e o conseqüente prestígio do qual gozava naquela região, deixar de ir às comemorações
pela Independência do Brasil.
No início da cavalhada, Elias sofreu uma queda do cavalo. Lúcia desmaiou ao
ver a cena. Em seguida, após convencer os demais cavaleiros de que já havia se
recuperado fisicamente, montou novamente o mesmo cavalo bravo. “Passou entre os
postes” onde havia uma “argolinha”. Ela havia “desaparecido do cordão” que unia os
dois postes. O cavaleiro que retirasse a argola seria declarado o vencedor da
competição.
Como é de estilo, dois cavaleiros vieram escoltá-lo, e ele, ao som de aplausos,
músicas e foguetes, dirigiu-se ao palanque de Lúcia. Esta, com o mais amável dos
sorrisos nos lábios e com a mão trêmula de emoção, como costume, atou-lhe na ponta
da lança um molho de largas e compridas fitas, e ele volteou de novo a arena a toque de
música e estouros de fogos de artifício. Era o herói da festa.
Após as festas, o herói voltou a ser um homem pobre. Mas não deixou de ir um
dia se quer à casa do Major, que ainda demoraria um pouco para voltar a sua fazenda.
Via Lúcia todos os dias. O Major não desconfiara, em um primeiro momento, dos
sentimentos de Elias. Este lhe havia sido muito bem recomendado por pessoas
importantes de Uberaba para participar da cavalhada. Logo, Elias foi convidado a ser
secretário particular do Major, que “aproveitara” a sua boa letra para as
correspondências relativas ao seu cargo de polícia.
Depois de muito relutar, Lúcia foi ao lago onde costurava junto às escravas de
seu pai, que para lá iam lavar roupas. A moça sentia certo medo do que poderia
acontecer caso encontrasse com Elias. Isso acabou ocorrendo, com o jovem se
declarando para ela, que lhe deu uma flor que estava em seus longos cabelos.
Os encontros entre ambos, bem como seus olhares cruzados e os rubores de
Lúcia, fizeram com que mesmo alguém tão pouco atento quanto o Major percebesse a
situação. Deu, então, um jeito de despedir Elias, com educação, de sua fazenda. Depois
de lhe ocupar com mais trabalho do que o de costume, bem como de viagens, disse que
Elias era uma pessoa com “muitos estudos e habilidades”, e que estava sendo “perdido
ali no trabalho em uma roça”. Acreditava que em qualquer região que se estabelecesse
126
poderia ganhar dinheiro e posição”.
216
Elias então se foi, triste por ser pobre. Lúcia
também ficou sentindo a sua falta.
Elias confiava muito em Simão,
um velho e magro, mas robusto e bem constituído, de cor bronzeada, e que parecia
ser de raça mista de índio e africano. Desde menino fora camarada do pai de Elias,
ao qual sempre servira com a maior dedicação e lealdade. O pai de Elias também o
estimava e queria como a um verdadeiro amigo, e tendo falecido quatro ou
cinco anos sem poder deixar àquele seu único filho outra herança mais do que uma
excelente educação, que infelizmente não pôde concluir, em seus últimos
momentos rogou ao velho caboclo, que acompanhasse sempre, que nunca
abandonasse seu filho, que ficava com 17 a 18 anos de idade. Não era preciso que o
velho o rogasse; Simão nunca abandonaria o jovem patrão, a quem na infância
carregara nos braços e a quem votava afeição de pai.
Simão era garimpeiro mestre, muito conhecedor de terrenos diamantinos, de que
tinha adquirido grande prática na Diamantina, de onde seu defunto patrão e ele
mesmo eram naturais, e onde tinham residido nos primeiros tempos de sua vida.
Simão era verdadeiramente um habilíssimo garimpeiro, e parecia que farejava o
diamante; mas, infelizmente para o seu jovem amo, para quem somente trabalhava,
e para quem desejaria descobrir um tesouro, a sua grande habilidade tinha ficado
sempre em falta, o que sumamente o afligia; mas nem assim desesperava.
217
Mas Elias acabou deixando Simão por um tempo. Aceitou o convite de um
“desconhecido baiano” para garimpar em lavras de diamante supostamente descobertas
em Sincorá, localizada na província da Bahia. Conseguiu enriquecer trabalhando
também como uma espécie de secretário do misterioso comerciante baiano de
diamantes. Seu objetivo era voltar rico e conquistar a autorização do Major para casar
com Lúcia. Ela sabia disso. Mas o que ele não sabia era que as notas que havia trazido
da Bahia, referentes ao pagamento pelos seus serviços e pelos diamantes que vendera
independente daquele comerciante, eram falsas. Naqueles meses, havia ocorrido uma
grande falsificação de moeda no Império, fato sabido por vários jornais da Corte, e que
vinha mobilizando a polícia. Mas Elias, em Sincorá, não havia tomado conhecimento
disso.
No dia que voltou para o município mineiro de Bagagem, para onde o Major
havia se mudado, para reencontrar Lúcia, ao fazer uma compra em um comércio local,
soube da falsidade das notas. Estava, novamente, depois de grande esforço, pobre. Em
seguida, soube que Lúcia estava de casamento marcado com um comerciante baiano de
diamantes, chamado Leonel. Leonel, “moço jovem, bonito, rico e simpático”, havia
chegado há pouco em Bagagem no intuito de continuar com sua atividade lucrativa.
216
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000058.pdf (acesso em 14/julho/2007), p. 17.
217
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000058.pdf (acesso em 14/julho/2007), p. 20.
127
Elias fora à casa do Major, ao ver a festança que estava ocorrendo, para
encontrar Lúcia. Soube, então, que seu futuro marido era o tal “comerciante baiano” que
havia lhe enganado com as notas falsas em Sincorá. Denunciou-o publicamente, ao
Major e à Lúcia, pegando-o pelo colarinho, dando-lhe um tapa e desferindo-lhe um
corte com punhal no rosto. Fora preso, uma vez que ninguém havia dado crédito àquela
denúncia.
Ao ser solto colocou-se no caminho das lavras, para tentar encontrar àquelas que
Simão tanto dizia existirem. Resolveu que deveria voltar e tentar provar que estava
certo, e encontrar Lúcia. Quando chegou à casa do Major, este, à porta, flagrou a prisão
de Leonel, efetuada por um policial. A acusação era a de falsificação de moeda. Elias
conseguiu, assim, provar a sua versão dos fatos.
Elias não sabia que Lúcia somente havia aceitado o pedido de casamento do
moedeiro falso para ajudar seu pai, que estava falido. Por isso, sentia-se traído.
Resolveu, então, recolher-se nas lavras, novamente, desta vez sem a companhia de seu
escravo Simão. Recolheu-se em um ranchinho e, ao adoecer, fora cuidado por uma
“velha parda”, sua conhecida de Uberaba. Os medicamentos que trazia consigo a
ajudaram, uma vez que não quisera que ela fosse à Bagagem chamar-lhe um médico.
Estava com “ressentimento do povo de lá”.
Certo dia, quando melhorou, soube que o Major, Lúcia, Joana, sua irmã mais
nova, e suas escravas estavam morando em uma “casa pequena, escondida no mato”, na
vizinhança. O Major havia ficado pobre. Retomou o contato com Lúcia que se encheu
de novas esperanças ao vê-lo. Disse-lhe que havia de procurar as tais lavras tão faladas
por Simão, e que voltaria para casar com ela assim que ficasse rico.
Trabalhou por seis meses, contratou homens, mas não conseguiu encontrar
diamante algum. Abandonou o trabalho e, neste dia, recebeu um bilhete de Lúcia pelas
mãos de um comerciante amigo. Mais uma vez, havia um pretendente supostamente
mais endinheirado do que ele. Se Elias não voltasse logo, Lúcia avisava que não teria
outra escolha a não ser casar-se com aquele moço. Escreveu, então, sob grande
desânimo, uma carta de despedida da qual decidiu ser o portador. Havia escrito que
desistiria de Lúcia, de uma vez por todas.
Quando se pôs a caminho do seu destino,
em certa altura ouviu uns gemidos abafados que pareciam sair de dentro de uma
miserável choupana, quase escondida entre a capoeira, que se avistava a uns
cinqüenta passos da estrada, quase à beira do rio. Parou e escutou por alguns
128
instantes; os gemidos continuaram. Não podia haver dúvida; era algum desgraçado
que sofria, e morria talvez à míngua e à fome naquele miserável casebre.
218
Chegou à janela do casebre, quando, de repente,
a cara encarquilhada de uma velhinha de aspecto repulsivo e sinistro: seus olhos
grandes e redondos, o olhar frouxo mas lôbrego e carregado, o nariz adunco e largo
sobreposto às faces engelhadas, cabelo curto e eriçado em forma de topete davam-
lhe a aparência de uma verdadeira coruja, aninhada naquele pardieiro. Elias quase
teve medo, e se não fosse dia claro teria acreditado na existência de bruxas.
219
Disse-lhe que queria ver a pessoa que estava gemendo, fato que ela vetou
peremptoriamente. Afirmou-lhe, insistindo, que “entendia alguma coisa de medicina”.
Não adiantou muita coisa, pois a senhora lhe disse que “o médico que trata dele não
quer que receba visita nenhuma, nem fale com ninguém”. Mas quem gemia disse:
“Quem está na porta entre cá por caridade; não faça caso do que ela está dizendo; por
caridade! . . . Pelas cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo! Entre. . . Entre. . .
Quanto antes.Elias resolveu derrubar a porta, que logo cedeu, e, sob os xingamentos
da velha senhora, viu “naquela espelunca escura e úmida, sobre um imundo colchão de
palha, estava estirado um velho caboclo, esquálido e macilento, arquejando
convulsivamente e entregue aos mais dolorosos sofrimentos. Espetada à parede, junto à
cabeceira, uma negra candeia de ferro lhe dava sobre o rosto bronzeado um lúgubre
clarão amarelento”.
Logo reconheceu aquela pessoa, exclamando: “És tudo meu pobre Simão!”.
Irritada pelo fato de os dois se conhecerem, a velha senhora saiu irritada, dizendo
para que Elias lá ficasse e cuidasse do velho. Desconfiado, Elias foi dar uma olhada fora
da cabana e viu a velha senhora escutando toda a sua conversa com Simão. Ao ser
flagrada, foi-se, finalmente, embora bradando: “Mau fim tenhas tu, velho feiticeiro, e a
teu louco patrão, rosnava a velha. É esse o pagamento que me dás de te ter agüentado
até aqui com toda a paciência! . . .”. No que Elias respondeu: “Cala-te, velha bruxa! . . .
Se te encontrar aqui mais a espreitar e escutar, atiro-te com um pau a vontade de voltar
mais cá”.
Após a partida de Elias, Simão se ateve a procurar lavras que pudessem fazer de
seu “patrão” um homem rico. Disse a Elias que seu pai, quando morreu, havia deixado a
218
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000058.pdf (acesso em 14/julho/2007), pp. 68-
69.
219
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000058.pdf (acesso em 14/julho/2007), p. 70.
129
ele a incumbência de cuidar de seu filho. Por isso, não poderia “morrer deixando o
rapaz desamparado”. Elias, então, quis saber de Simão como havia parado ali nas mãos
daquelas duas mulheres. Simão explicou que um mês havia caído “entrevado sem
poder se mover”. Assim, “meteu-se” naquele “ranchinho” “onde sempre” tinha
“morado”. Sozinho e sem ter quem lhe tratasse, aceitou a ajuda daquela “velha, sua
única vizinha”. Caso não tivesse aceitado, haveria morrido de fome. E continuou:
O povo daqui, vendo-me assim andar arredado e sozinho e sempre a garimpar pelos
matos, tinha tomado cisma comigo e andava dizendo que eu era feiticeiro, tinha
parte com o diabo, e que neste meu ranchinho eu tinha arrobas de diamante
enterrado. A velha que dava ouvido a estas coisas, e tentada pelo demônio, veio um
dia dar busca em meu pescoço, enquanto eu estava dormindo. . . Eu logo acordei e
bem o percebi; mas ela já tinha descoberto o negócio. . . Foi a minha perdição. . .
Ninguém mais entrou aqui senão ela e uma sua comadre, tão boa como ela, Deus a
perdoe! Que faz as suas vezes e me fica de sentinela, quando a outra tem precisão
de sair. Assim mais de um mês estou aqui no fundo desta cama. . . Elas não me
deixam sozinho um instante e não vejo outras caras senão as delas. . . O certo é que
cada vez vou a pior e desconfio. . . Mas, ah! Patrão, por alma do defunto patrão
velho, não vá dizer a ninguém nem faça mal a essas desgraçadas.
220
O velho escravo revelou onde se encontravam os diamantes. Logo ao revelar
essa informação ao seu patrão”, Simão suspirou e faleceu. Após ter enriquecido com a
venda dos diamantes, Elias voltou à pobre casa do Major ainda com tempo de
convencê-lo de lhe dar a mão de Lúcia em casamento – o que acabou ocorrendo.
4.3 – As Vítimas-Algozes, de Joaquim Manoel de Macedo
221
Não fazendeiro prudente ou ajuizado que tolere dentro de sua fazenda a prática
da feitiçaria: algum, e tem havido exemplos, que apadrinhou essa brutal impostura,
foi desgraçado infecto dessa louca superstição e acabou dela vítima. As casas do
escandaloso culto do feitiço, ou dos candombes isolam-se instintivamente, escapam
as mais das vezes à ação dos proprietários de terras, encantonando-se em lugar ou
refúgio independente, que receia a perseguição da polícia, a qual somente se
lembra da sua existência se o candombeiro é emancipado, ou livre, e como tal pode
votar em eleições: fora desta hipótese, o candombeiro faz prática de feitiçaria, e a
polícia dorme sem jamais sonhar com essa entidade malvada.
222
Pai Raiol poderia ser um desses feiticeiros, um exemplo narrado na segunda das
três histórias que compõem As Vítimas-Algozes, de Joaquim Manuel de Macedo. A
220
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000058.pdf (acesso em 14/julho/2007), p. 73.
221
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000124.pdf (acesso em 02/novembro/2007).
Publicado em 1869.
222
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000124.pdf (acesso em 02/novembro/2007), p.
39.
130
narrativa intitula-se “Pai-Raiol, O Feiticeiro”, e trata de uma família de um senhor de
escravos e alguns de seus escravos, todos moradores em uma fazenda.
Paulo Borges era um rico fazendeiro fluminense, com 46 anos de idade. Era
homem que desejava “quintuplicar seus capitais”, e fazia de tudo para isso – presidindo,
por exemplo, “o governo e a disciplina na fazenda”, “trabalhando sempre e gastando
pouco”. Havia casado há seis anos com Teresa, “mulher simples afeita à vida na
fazenda, que tratava da direção da dispensa, da enfermaria, e da grosseira rouparia dos
escravos.” Tiveram dois filhos, nesses seis primeiros anos de casamento.
Paulo Borges comprava escravos e máquina para lucrar mais, e sua mulher
participava desse processo. No último lote de escravos, Teresa olhou para aquele que
viria a ser Pai Raiol e disse ao marido: Que cara tem esse negro”. Mesmo assim, o
marido adquiriu o escravo.
Mas quem era ele? Era um escravo que, contando Paulo Borges, estava em
seu quinto senhor. Havia nascido na África, tinha 36 anos de idade, com
baixa estatura, tinha o corpo exageradamente maior que as pernas; a cabeça grande,
os olhos vesgos, mas brilhantes e impossíveis de se resistir à fixidade do seu olhar
pela impressão incômoda do estrabismo duplo, e por não sabermos que fluição de
magnetismo infernal; quanto ao mais, mostrava os caracteres físicos da sua raça;
trazia porém nas faces cicatrizes vultuosas de sarjaduras recebidas na infância: um
golpe de azorrague lhe partira pelo meio o lábio superior, e a fenda resultante
deixara a descoberto dois dentes brancos, alvejantes, pontudos, dentes caninos que
pareciam ostentar-se ameaçadores; sua boca era pois como mal fechada por três
lábios; dois superiores e completamente separados, e um inferior perfeito: o rir
aliás muito raro desse negro era hediondo por semelhante deformidade; a barda
retorcida e pobre que ele tinha mal crescida no queixo, como erva mesquinha em
solo árido, em vez de ornar afeiava-lhe o semblante; uma de suas orelhas perdera o
terço da concha na parte superior cortada irregularmente em violência de castigo ou
em furor de desordem; e finalmente braços longos prendendo-se a mãos
descomunais que desciam à altura dos joelhos completavam-lhe o aspecto
repugnante da figura mais antipática.
223
Como dissemos, Pai-Raiol fora vendido três vezes por vários motivos que lhe
forneciam “má-reputação”: “furtos que incorrigivelmente praticava, e por suspeita de
propinação de veneno a uma escrava que resistira a seus desejos impetuosos, e em breve
morrera subitamente logo depois de aceitar e beber um copo de aguardente que ele lhe
oferecera à porta de sua senzala”. Havia resistido aos mais terríveis castigos e “à solidão
no tronco”. Um dos motivos de ter sido recentemente castigado foi sua ida reincidente
223
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000124.pdf (acesso em 02/novembro/2007), p.
44.
131
e teimosa nos candombes de uma negra liberta e famosa feiticeira”. Mas Pai-Raiol
havia, também recentemente, mudado seu comportamento por causa dos “seus felizes
amores com a crioula Esméria, que com ele convivia e o dominava”. Sabendo disso,
como várias pessoas naquela região, Paulo Borges arrematou Esméria no lote de vinte
escravos no qual também estava Pai Raiol.
Teresa e seu marido estavam cientes dessa relação, e também das habilidades
domésticas de Esméria. Por isso, decidiram que ela trabalharia nos serviços da casa,
com Teresa, sem que isso importunasse sua relação com Pai Raiol. Viram, pouco tempo
depois, que haviam acertado na escolha, pois Esméria era “carinhosa e paciente com as
crianças”. A escrava não bebia aguardente e nem fumava cachimbo, mas “compensação
era possessa do demônio da luxúria”. “Amava os amantes de sua raça, preferia-os a
todos os outros; mas em sua vaidade descomunal e egoísta envergonhava-se deles,
desejaria sepultá-los ignotos no mistério de suas noites escandalosas; tomava
precauções, imaginava ridículos e impossíveis segredos, e aspirava à fortuna do amor,
da posse, da paixão delirante de um homem livre e rico.”
224
Mas os senhores haviam cometido um engano. Era Pai Raiol que dominava
Esméria, e não ela quem o dominava. Não mais tinha com ele relação de amor alguma,
mas sim de medo. “Sempre em tom de voz respeitosa, e quando o via perto, acudia-lhe
ao chamado, obedecia-lhe ao aceno, e executava pronta e como escrava a ordem que ela
interpretava cintilando desconcertada nos olhos vesgos.” Sempre fora “infiel” ao
amante, o que ele ouvia dos demais escravos da senzala. Mas ela,
com toda sua viveza acreditava nos prodígios do feitiço, e considerava aquele
africano abalizado feiticeiro; durante sua mais freqüente ligação com ele, pudera
ser testemunha de sinistros processos de feitiçaria pelos quais o mal, o dano
premeditado se realizava infalível; vira em escondido depósito folhas secas, raízes,
pós, penas negras, garras de abutres, ossos humanos e cem outros objetos de
misteriosas e sempre maléficas propriedades, quando a ciência do feitiço os
combinava.
225
Paulo Borges admirava a disposição e a habilidade para os trabalhos,
demonstradas por Pai Raiol. O que ele não sabia era que tudo isso era motivado pela
raiva que o “feiticeiro” nutria pelos senhores. Em momento algum “demonstrava amar o
224
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000124.pdf (acesso em 02/novembro/2007), p.
45.
225
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000124.pdf (acesso em 02/novembro/2007), p.
46.
132
senhor”. Também “desprezava” os outros escravos. Depois do serviço, recolhia-se em
sua “senzala”, distante das dos demais parceiros. Ele cogitava quais eram os “meios
mais eficazes para satisfazer esse ódio” – “a senzala do escravo ameaçava, como
sempre, a casa do senhor”. Nos domingos e nos dias santos passava rapidamente pela
“venda para prover-se de aguardente e fumo”. “Depois pedia em casa a sua ração e
internava-se nas florestas, ou divagava pelos matos novos, e recolhia-se à noite.” Lá,
Esméria sabia o que ele ia fazer: “colher folhas, frutos e raízes que bem conhece, e
brincar com as cobras venenosas, porque é delas o rei”. Afinal, segundo o narrador,
“Pai-Raiol se armava, preparava e enriquecia o seu arsenal: o feiticeiro não passa de
envenenador; é o assassino charlatão. Sobre o misantropo negro pesava a fama antiga de
feiticeiro; mas nas vizinhanças da fazenda de Paulo Borges havia uma casa de
candombes ou de cultos de feitiçaria e o Pai-Raiol nunca se lembrara de visitá-la”.
226
Paulo Borges não dava crédito às feitiçarias e nem ao fato de supostamente Pai
Raiol ser um “feiticeiro”, como diziam e acusavam as pessoas da região, e não somente
aqueles que viviam na sua fazenda. E, como dissemos, ele admirava a presteza do
escravo em seu trabalho de tamanha medida que o designara, por duas vezes, “para
feitorar seus parceiros” – o que ele fazia com “severidade”.
Pai Raiol “nutria rancor” por sua senhora pelo comentário que fizera logo em
sua chegada, e fazia o mesmo por seus dois filhos, Luís, de quatro anos, e Inês, de dois,
porque ambos tinham manifestado terem medo dele. Isso ocorreu na primeira vez que o
viram.
Durante seis meses, Pai Raiol ficou “estudando” a vida na fazenda. Depois, a
mesma começou a passar por infortúnios: morte de animais, incêndio noturno no
canavial e ervas arrebentando o solo. Para acabar com tudo isso, o escravo ofereceu ao
senhor um punhado de “ervas” como exemplo do que estava causando as mortes dos
animais e o estrago do solo. Depois de tirá-la de toda a fazenda, as coisas voltaram ao
seu lugar.
Três meses depois, Teresa deu à luz a mais um menino. Esméria cuidava das
outras duas crianças, enquanto outra escrava cuidava do recém-nascido. Ele era
amamentado pela mãe, e não por alguma das escravas.
Ao observar de longe estas cenas, e ao saber que as estratégias de Esméria para
conquistar o “desejo e o amor físico de seu senhor” o davam resultado, Pai Raiol fez
226
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000124.pdf (acesso em 02/novembro/2007), p.
47.
133
algumas sugestões à escrava que encontrava quase que diariamente em sua senzala.
Disse-lhe que, se queria chegar ao seu objetivo, deveria se insinuar ao senhor. Para isso,
seria necessário ficar mais com o novo filho no colo, aproveitando o olhar do senhor e
desviá-lo para seu corpo. E foi o que ocorreu. Esméria rapidamente conquistou o amor
físico” de Paulo Borges. Sua extravagância de um dia tornou-se o vício, primeiro de
muitos, depois de quase todos os dias”. Assim, “o senhor passou a ser escravo de sua
escrava”.
Teresa não tardou a suspeitar do “adultério”. Esméria provocou o flagrante,
deixando a senhora “com lágrimas de raiva e palavras roucas”, e o senhor “perturbado e
abatido”. A escrava “ficou fria, indiferente” aos sentimentos de ambos, e “satisfeita” por
sua conquista.
227
A senhora pensou em se matar mas, por seus três filhos, não o fez. Resolveu que
era “viúva”, que não tinha mais marido, e passou a viver em outro cômodo da casa,
alimentando-se do essencial, desprezando a escrava e cuidando de seus filhos. Paulo
Borges, mesmo lembrando dos tempos felizes de casado e dos três filhos, continuou a
“entregar-se à escrava, indo à sua senzala durante o dia, e aos olhos de todos”.
Pai Raiol ainda agia não-satisfeito com o resultado de tudo aquilo que havia
planejado. Queria mais. Por isso, disse para Esméria que ela deveria fazer ciúmes ao seu
senhor, informando-lhe que outros escravos, fora Pai Raiol, iam lhe procurar de noite
em sua senzala. Além disso, deveria voltar para a casa da fazenda, para “tornar-se
senhora”. A estratégia adotada fora pedir para o senhor “vendê-la” para um de seus “ex-
senhores moços”, pois agora ela “não trabalhava, vivia como forra”. Depois de um
áspero diálogo com o senhor, “Esméria entrou pela porta da cozinha da casa da família
de Paulo Borges, e teve ali quarto separado e distinto do dormitório das outras escravas
internas”.
228
Teresa insistiu e o marido lhe concedeu morar em um sítio próximo à fazenda.
Nos dias subseqüentes, a casa entrou em desgoverno: “furtos aos armazéns e elevação
das despesas”. Na solidão, em poucos dias Teresa caiu enferma. O marido tratou de
chamar “o famoso curandeiro, um ex-enfermeiro, chamado doutor Bonifácio”. De nada
adiantou. Pouco antes de morrer, disse ao marido: “morro envenenada por Esméria”.
227
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000124.pdf (acesso em 02/novembro/2007), p.
57.
228
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000124.pdf (acesso em 02/novembro/2007), p.
65.
134
Novamente, Pai Raiol queria mais do que havia conseguido sobre a vida de
seu senhor. Queria, e disse isso à escrava, que ela matasse os três filhos do senhor e,
depois, tivesse um filho com ele. Mas Esméria vislumbrava a possibilidade de,
finalmente, se livrar do poder que o “feiticeiro” exercia sobre ela. Quando voltou para
casa pensativa se deparou com outro escravo, que havia observado seu encontro com
Pai Raiol. Esse escravo era conhecido na fazendo por “tio Alberto”.
O tio Alberto representava o contraste mais completo do Pai-Raiol: era um escravo
africano de trinta anos de idade, e de alta estatura; tinha fronte elevada, os olhos
grandes e brilhantes, a cor preta um pouco luzidia, os dentes brancos e perfeitos,
largas espáduas, grossos e bem torneados braços possantes e formas justamente
proporcionais: era bonito para a sua raça, um Hércules negro em suma. Esméria
tivera sempre na fazenda muita predileção pelo tio Alberto; este, porém, se
mostrava erradio e esquivo desde que se haviam tornado ostensivas as relações do
senhor com a escrava.
Tio Alberto lhe disse que, “por maldade”, Pai Raiol matara sua “cachorrinha
coelheira” e que disso queria se “vingar, mas não com o açoite do senhor”. Mas a
escrava conseguiu que ele se acalmasse e esperasse mais um pouco para que eles
combinassem um plano em comum para se livrarem do “feiticeiro”.
Em pouco tempo, ela pariu um filho de Paulo Borges, seguida da morte do filho
mais novo do senhor. Pai Raiol dizia que os outros dois deveriam morrer, tal como o
senhor, para que Esméria, ao herdar toda a sua fortuna, o torna-se “forro” para que ele
também ficasse rico. Esse era o seu plano. Mas ela desconfiava que o “feiticeiro” não
“perdoaria o sangue do senhor em seu filho” e possivelmente tentaria matar essa
criança.
Dias depois, os dois outros filhos de Paulo Borges com Teresa, com mais cinco
“crioulinhos” ingeriram alimento envenenado. Tirando somente dois dos “crioulinhos”,
as crianças faleceram logo ao amanhecer.
Esméria experimentou raízes dadas por Pai Raiol para matar seu senhor e em
dias ele caíra em sono profundo. Ficava acordado durante poucas horas do dia, e voltava
a dormir. A escrava aumentava as doses. Enquanto isso, Tio Alberto perseguia Pai
Raiol, observando suas ações, mesmo com uma escrava tendo-lhe avisado que “o
feiticeiro havia dito que lhe poria feitiço”. Mesmo assim, “matou o gato preto de Pai
Raiol diante dos outros escravos”. Sabia também que o “feiticeiro” tinha conhecimento
de que estava sendo observado.
135
Um dia, de modo repentino, Paulo Borges saiu a cavalo, voltando quase de noite
com duas cartas de alforria e seu testamento: eram as de Esméria e de seu filho. No
outro documento estava a herança que deixaria para ambos.
Em outro dia, encontrou a escrava Lourença, de 80 anos de idade, na estrada.
Disse ao senhor que havia apanhado muito de Esméria, que fiscalizava o trabalho dos
escravos com rigor, e escapara momentaneamente dos mesmos para perto da estrada.
Ao encontrá-lo, sozinha, não resistiu e contou sobre os venenos que Esméria estava
colocando em sua comida, diariamente, e que o estavam deixando sonolento. Em um
primeiro momento, Paulo Borges não acreditou embora um lavrador pobre
houvesse lhe sugerido trocar de cozinheira, sem saber que a esposa-escrava era quem
cuidava de sua comida. Lourença, como forma de provar o que dizia, e se vingar dos
castigos aplicados por Esméria, sugeriu que o senhor fingisse tomar o cada noite e
que, depois, seguisse a escrava para ver onde é que sua esposa-escrava ia quando ele
estava dormindo por horas.
No dia seguinte, Esméria colocou duas raízes, e não uma, no café do senhor. Isso
foi às oito e meia da noite. À meia-noite, Lourença acordou seu senhor, que não havia
tomado o café, dizendo-lhe que se quisesse saber onde é que Esméria estava era ir à
“senzala de Pai Raiol”.
Esméria havia combinado com Tio Alberto de que naquele dia ele mataria Pai
Raiol. Para isso, deveria ficar a postos na porta da senzala do “feiticeiro” e, ao seu sinal,
entraria para matá-lo. Assim a cena era a seguinte: Paulo Borges e Lourença nos fundos
da senzala de Pai Raiol, tentando escutar o que estava sendo conversado entre ele e
Esméria e, sem vê-los e ser visto por eles, Tio Alberto encontrava-se na parte da frente
da senzala.
Quando Pai Raiol afirmou que mataria Tio Alberto, este arrombou a porta e os
dois lutaram fora da senzala. Ambos disputavam o machado que o “feiticeiro”
manejava. Quando conseguiu pegá-lo, Tio Alberto jogou-o em um desfiladeiro, tal
como uma faca que carregava. Queria lutar “braço com braço”. Nesse instante, viu a
fuga desesperada de Esméria e resolveu fazer uma força maior ainda para acabar logo
com aquilo tudo. Tio Alberto caiu sobre o corpo de Pai Raiol e cravou-lhe as unhas no
pescoço. Largou-o, agonizante, no chão. Ergueu seu corpo sobre sua cabeça e jogou-o
no desfiladeiro. Paulo Borges e Lourença observaram tudo, agachados.
136
O eco do baque do corpo do Pai-Raiol, que tombando de ponta de rocha em ponta
de rocha caíra sem dúvida despedaçado no rio que corria embaixo por entre pedras
escalavradas, completou a vingança terrível de Alberto, que enxugando com a
manga da camisa o sangue que lhe saía do pescoço ferido, retirava-se ofegante para
sua senzala, quando o feitor e alguns escravos que chegavam, o cercaram e
prenderam.
229
Paulo Borges e a velha escrava se ergueram e o senhor mandou prender Esméria
por ter sido “cúmplice de Pai Raiol”. Por fim, afirmou diante de todos os presentes:
“Soltem esse negro, que salvou-me do meu assassino: amanhã eu lhe darei carta de
liberdade”.
4.4 – A Carne, de Júlio Ribeiro
230
Helena, ou Lenita, era filha órfã de e e pai rico do Rio de Janeiro. Lopes
Matoso, seu pai, também havia ficado órfão e herdado a fortuna de seus pais. Havia sido
criado por um tutor, o coronel Barbosa, muito amigo de sua família, que o fez continuar
e terminar os estudos e se formar em direito. Quando Lopes Matoso faleceu, este
mesmo amigo recebeu sua filha em sua fazenda para que a moça pudesse se recuperar
da perda do pai.
Lenita estava com 24 anos de idade. Seu pai havia tido muito cuidado com sua
instrução: “leitura escrita, gramática, aritmética, álgebra, geometria, geografia, história,
francês, espanhol, natação, equitação, ginástica, música, ciências; estudou o italiano, o
alemão, o inglês, o latim, o grego; fez cursos muito completos de matemáticas, de
ciências físicas, e não se conservou estranha às mais complexas ciências
sociológicas”.
231
Nos bailes, a moça não se interessava por nenhum dos homens
galanteadores que dela se aproximava, admirando não somente sua educação, mas
também sua beleza. Com a súbita morte do pai, escreveu ao coronel Barbosa pedindo
para passar um tempo em sua fazenda, no que ele consentiu de pronto.
Era uma fazenda onde se plantava café para exportação, e o coronel Barbosa era
um próspero fazendeiro, com bons lucros e grande quantidade de escravos. Em algumas
noites ele sofria de graves crises de reumatismo. Sua esposa era adoentada e quase
surda. Tinha um filho chamado Manuel Barbosa, de apelido Manduca, o qual era
229
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000124.pdf (acesso em 02/novembro/2007), p.
85.
230
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000112.pdf (acesso em 15/novembro/2007).
Publicado em 1888.
231
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000112.pdf (acesso em 15/novembro/2007), p.
2.
137
divorciado e gostava de viajar pelas matas do Brasil a fim de conhecer diversos
espécimes da fauna e da flora do país. O rapaz já havia morado na Europa e, tal como
Lenita, possuída instrução cuidadosa e diversificada. No momento da chegada de Lenita
à fazenda, “estava há meses caçando no Paranapanema”.
Desde a sua chegada na fazenda, Lenita sofria desejos carnais, tendo delírios
com homens atléticos, “apolíneos”, sonhos noturnos dos quais acordava suando,
desmaios que faziam o coronel Barbosa chamar o médico de confiança da família para
diagnosticá-la. “Tinha ímpetos de comer de beijos as formas masculinas estereotipadas.
Queria abraçar-se, queria confundir-se com elas”. Não era doença alguma, no final das
contas, eram “indisposições”. Esses sonhos e delírios haviam sido, a partir de certo
momento, alimentados pela descrição que o coronel fez de seu filho. “Figurava-o em
uma virilidade robusta que, se não era mocidade, ainda não era velhice; emprestava-
lhe uma plástica fortíssima, atlética, a do torso do Belvedere; dava-lhe uns olhos negros,
imperiosos, profundos, dominadores”.
Quando o conheceu, confirmou seus desejos. O espanto provocado por sua
chegada, a caráter das caçadas nas matas e molhado pela intensa chuva que caía, deu
lugar ao interesse imediato e à fascinação. Ao longo dos meses foram se aproximando,
conversando sobre seus interesses, os estudos, a botânica, as línguas que ambos
conheciam. Acreditava que o moço era “casto”. Certo dia, a mando do pai, Manduca
teve que ir à Santos para resolver negócios, e Lenita sentiu saudades enormes, não
conseguindo dormir. Acompanhou a escrava na arrumação do quarto do moço, e sentiu
o cheiro de suas roupas íntimas e de cama. “O cheiro humano masculino que respirara
na travesseira de Barbosa fora realmente um veneno para os seus nervos. Sentia-se de
novo presa do mal-estar do histerismo antigo. Tinha anseios, tinha desejos, mais
anseios, desejos acentuados, visando ao objetivo certo. Ela ansiava por Barbosa. Ela
desejava Barbosa.” Manduca voltou mais cedo do que o esperado, pegando a moça de
susto, e voltando a viver o dia-a-dia da paixão que sentiam um pelo outro naquela
fazenda.
Certo dia, uma escrava chamara a todos para acudirem a outra, chamada Maria
Bugra, que estava muito doente. Manduca examinou a escrava, e viu que sofria dos
efeitos de misturas de ervas daquela região, e que isso realmente a levaria à morte.
Disseram-lhe que, dentre os alimentos que a escrava havia ingerido estava um tanto de
café que “Joaquim Cambinda mandara de sua senzala”. Manduca disse, após um exame
138
mais profundo, que Maria Bugra Morria “do que têm morrido vários escravos aqui na
fazenda”, morria “envenenada”.
Joaquim Cambinda era um
escravo octogenário, inútil para o trabalho, estava sozinho, sentado em um cepo, ao
de um fogo de lenha de peroba, no paiol velho abandonado, que a rogo seu lhe
fora concedido para morada. Era horroroso esse preto: calvo, beiçudo, maxilares
enormes, com as escleróticas amarelas, raiadas de laivos sangüíneos, a destacarem-
se na pele muito preta. Curvado pela idade, tardo, trôpego, quando se erguia e,
envolto na sua coberta de parda, dava alguns passos, similhava uma hiena fusca,
vagarosa, covarde, feroz, repelente. Tinha as mãos secas, aduncas; os dedos dos
pés reviravam-se-lhe para dentro, desunhados, medonhos.
232
E onde morava, naquela fazenda, esse escravo? Era em um “paiol velho”, no
qual recebia a visita de escravos. Uma vez, quando estes haviam recebido um dia de
folga do coronel por terem terminado o serviço antes do previsto, e festejavam
dançando e cantando, o velho escravo recebeu “uma negra ainda moça, magra, baixinha,
de olhos fundos, olhar febril. Estava vestida de cores muito espantadas, saia amarela,
casaco vermelho. Tomou a bênção a Joaquim Cambinda, e foi sentar-se em silêncio
junto do fogo”. Em seguida, vieram outros escravos. “Entravam, davam louvado ao
velho, e, silenciosos, acomodavam-se sobre cepos, ao do fogo: ao todo dez.”
Joaquim Cambinda pediu “àquela negra” que fechasse a porta, e foi prontamente
atendido. “Reinou silêncio por largo espaço. Fora se ouvia o coro retumbando na noite:
Eh! Pomba! eh!”.
Em seguida, Cambinda
acendera um cachimbo de longo canudo, e fumava tranqüilo, sem parecer dar fé
dos circunstantes. Cerca de meia hora levou absorto, com os olhos cerrados
meditando, cochilando, a puxar fumaças, morosamente, preguiçosamente. Quando
se consumiu o carrego do cachimbo, sacudiu as cinzas, bateu-o bem,
cuidadosamente, soprou-lhe o canudo, encostou-o à parede. Ergueu-se e, lento,
titubeante, monstruoso, caminhou para o oratório, chegou, abriu-lhe as folhas da
porta de par em par, tirou para fora duas velas de cera que estavam dentro, em
castiçais de latão, riscou fósforos, acendeu-as, iluminou o interior do nicho,
revestido de papel de prata, mareado.
Dois eram os divos desse mesquinho e sórdido laranjo: um São Miguel de gesso,
cambuto, retaco, muito feio, muito pintado de excretos de moscas; e um
manipanço, tecido inteirinho de cordas finíssimas de embira, hediondo, pavoroso,
mas admirável pelos detalhes anatômicos, estupendo como obra de paciência. Os
negros ergueram-se todos, reverentes.
232
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000112.pdf (acesso em 15/novembro/2007), p.
39.
139
Joaquim Cambinda disse para um daqueles escravos que era importante
“pertencer à irmandade de São Miguel das Almas, mas que também era perigoso”.
Achava que “quem não tinha peito o tomava mandinga”, e que “o branco queria, por
força, saber o segredo dos irmãos de São Miguel”. Esse era o motivo de o surrarem
tanto. Mas ele não “revelava o segredo de São Miguel”.
Depois, fez esse mesmo escravo “neófito beijar os pés de São Miguel”, bem
como “os cornos do Satanás a ele sotoposto” e “as partes genitais do manipanço”. Ainda
“ditou-lhe juramentos solenes, cominou-lhe penas terríveis no caso de infração”. O
escravo lhe deu “dinheiro, trinta mil-réis, seis notas de cinco mil-réis, que estavam no
bolso da calça, muito enleadas em um lenço de chita muito sujo”. Cambinda, então,
“passou à parte doutrinária” e foi “iniciá-lo na arte terrível dos feitiços e dos contras, a
dar-lhe meios de matar, de curar”. Ensinou-lhe propriedades de vários tipos de plantas:
a semente do mamoninho bravo (Datura stramonium), socada, macerada em
aguardente, cega, enlouquece, mata dentro de poucas horas; que osso de defunto,
cuja carne caiu de podre, raspado e posto em uma comida qualquer, produz
amarelão incurável; que o sapo verde do mato virgem, sufocado a fogo lento,
dentro de uma panela nova coberta por testo novo, morre largando uma
espumarada branca, com a qual, diluída em água, se produz uma hidropisia
necessariamente mortal; que as folhas do jaborandi (Pilacarpus pinnatifolius),
pisadas, reduzidas a massa, aplicadas aos sovacos, produzem suares e salivação,
curam muitas moléstias; que a raiz de Guiné (Mappa graveolens) e a nhandirova
(Fieuillea cordifolia) são contras poderosíssimos para todas as coisas feitas.
Ensinou, ainda, ao escravo “mais uma infinidade de superstições, medonhas
umas, outras muito ridículas”:
que a mão ressequida de uma criancinha morta sem batismo é um talismã precioso
para conciliar o amor; que uma lasca de pedra de ara, furtada a uma igreja, fecha o
corpo, toma-o invulnerável a tiros de arma de fogo, a pontaços de arma branca; que
café coado com água de banho por fralda de camisa de mulher, ou por fundilho de
ceroula de homem, sem lavar, capta a simpatia, amansa o gênio bravo; que corda
de enforcado faz ganhar dinheiro ao jogo; que uma figa de raiz de arruda,
arrancada em sexta-feira maior, é remédio soberano de quebranto, de mal de
olhado; que, para inutilizar um mestre feiticeiro, para tirar-lhe o poder, é preciso
surrá-lo com uma vara de fumo e quebrar-lhe na cabeça três ovos chocos.
Deu-se uma nova etapa daquele encontro com o iniciado e os outros nove
escravos.
Passou a curar o neófito, fechar-lhe o corpo, a anestesiá-lo para não sentir castigos
140
físicos: mandou que se despisse, que se pusesse de quatro pés, como uma besta.
Murmurando palavras inconexas, frases de engrimanço, untou-o com uma pomada
rançosa que tirou de uma latinha muito oxidada, borrifou-o com uma água de uma
porunga que desprendeu da parede. Disse-lhe que era preciso repetir a operação em
mais seis sextas-feiras, para que o encanto ficasse completo, e o corpo insensível
de uma vez.
233
Mas era preciso “provar com fatos a eficácia dos seus sortilégios”, e, por isso,
chamou àquela primeira escrava a chegar ao paiol velho. Joaquim Cambinda foi ao
“oratório” e de lá tirou “uma agulha de coser sacos, comprida, acerada”. Tomou o braço
esquerdo da escrava e “atravessou-o de parte a parte, em rios lugares, por várias
vezes, sem que ressumasse uma pinga de sangue: a paciente olhava curiosa para o
braço, sem dar a mínima mostra de dor”. Largou a agulha e “afastou-se um pouco”.
“Baixou-se” e “fitou” a escrava “de modo particular, por sob a pálpebra, com a pupila
brilhante, fixa como a de um réptil”. Ela soltou um grande grito”, levando as os ao
peito, exclamando: “A bola! A bola! Sufoco!”.
Caiu ao solo, “desamparada, com os olhos esbugalhados, em alvo, com a boca
torta, com os membros contorcidos por convulsões tetânicas”.
Estenderam-se-lhe, inteiriçaram-se os braços, os punhos viraram-se para fora; os
dedos fecharam-se, penetrando quase as unhas nas palmas das mãos; a ngua
estava negra e pendente, betada aqui e ali por fios de baba escumosa.
E revolvia no solo, aos saltos, como uma cobra cortada aos pedaços.
De súbito largou um berro entrecortado, gutural, rouco, que nada tinha de humano.
Deu uma estremeção, curvou-se para trás, assumiu a forma de um bodoque
retesado, quedou-se imóvel, dura, firme, em uma posição impossível: por uma
parte tinha o alto da cabeça apoiado ao solo, e, por outra, os dois pés que
assentavam em cheio, um pouco separados; ao todo três pontos de apoio.
Os punhos continuavam cerrados, e os braços tesos, ao longo do corpo. A rigidez
era cadavérica mais ainda, marmórea, metálica.
234
Joaquim Cambinda entrou em ação, novamente, sobre o corpo da escrava, com
os “os assistentes aterrados”.
Com uma agilidade que desmentia o seu vagar, o seu tolhimento costumeiro, e de
que ninguém o teria julgado capaz, trepou de um salto sobre essa esquisita ponte
humana.
Com os olhos reluzentes; como o clarão do fogo a refletires-lhe na calva negra,
polida mostrando os dentes amarelos em esgares diabólicos, ele pulava, tripudiava
233
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000112.pdf (acesso em 15/novembro/2007), pp.
40-41.
234
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000112.pdf (acesso em 15/novembro/2007), p.
41.
141
sobre o estômago, sobre o ventre, sobre o púbis da convulsionada.
Ela não se abalava, não se mexia sob o impulso dos pés, sob a ação do peso do
monstro: semelhava uma ponte de arco, feita de cantaria.
Joaquim Cambinda desceu, foi a um canto buscar um cabo de picareta, e com ele
entrou a bater-lhe duro no peito, no ventre.
Os golpes sucediam-se, crebros, com um som baço, abafado, como se fossem
dados em um saco de trapos.
235
A escrava, “de súbito”, “recaiu no solo pesadamente”. “Inundavam-lhe o rosto
grossas camarinhas de suor”. As “velas tinham sido apagadas”, e o “oratório fechado”.
O ambiente “estava de novo silencioso”, com o velho escravo “sentado em um cepo,
atiçando o fogo”.
Voltemos à cena da escrava envenenada, caída à espera da morte. Sobre as
mortes ocorridas recentemente na fazenda, Manduca disse ao coronel:
Lembra-se da morte do Carlos, da do Chico Carreiro, da do Antônio Mulato, da
Maria Baiana? Não apresentaram eles os mesmos sintomas que apresentou e está
apresentando agora a Maria Bugra? Excitação violenta mas passageira, delírio,
depois paralisia quase completa, face túmida, conjuntivas injetadas, olhos saltados,
dilatação de pupilas, deglutição impossível, queda de pulso, esfriamento geral,
incontinência de urina e de fezes? Pois tudo isso, estou convencido, é conseqüência
da ingestão de um veneno terrível, infelizmente muito comum entre nós, a
atropina.
236
Ao ouvi-lo, o pai então lembrou que havia perdido
vários escravos mortos todos de uma moléstia esquisita, que apresentava
invariavelmente o mesmo cortejo de sintomas. E isso começara depois de que viera
Joaquim Cambinda. Esse preto, tinha-o ele recebido com outros em herança de
uma tia, velho, incapaz de trabalhar. Nunca exigira dele serviço; dera-lhe até
para morar, a pedido seu, um paiol largado, independente, no fundo do terreiro.
Tempos havia, morrera na fazenda um feitor branco: a viúva, lembrava-lhe bem,
tinha feito um berreiro enorme, infernal, dissera que o marido sucumbira a coisa
feita, acusara terminantemente a Joaquim Cambinda. Não dera ele, coronel,
importância à acusação, e essa acusação ressurgia, feita agora por seu filho, homem
inteligente, ilustrado, muito sisudo.
237
Mesmo assim, o coronel ainda não estava convencido e queria saber por
que Manduca estava convicto de que a culpa daquele assassinato era mesmo de
Joaquim Cambinda. Seu filho argumentou em partes:
235
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000112.pdf (acesso em 15/novembro/2007), p.
42.
236
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000112.pdf (acesso em 15/novembro/2007), p.
60.
237
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000112.pdf (acesso em 15/novembro/2007), p.
61.
142
Primeiro, os fatos, os envenenamentos indiscutíveis, e que começaram de dez
anos a esta parte, depois que Joaquim Cambinda veio para a fazenda: eu não
estava, mas por informações acho-me ao corrente de tudo. Em segundo lugar a
fama de mestre feiticeiro que tem ele em todo o município: várias pessoas de
critério têm-se interrogado a esse respeito. Depois, surpreendi-o eu mesmo, outro
dia, a secar cabeças de cobra, raízes de cicuta e de guiné, sementes de datura. E
mais... Ele tinha seus agravos de Maria Bugra.
238
Convencido, o coronel mandou chamar o escravo ao entardecer. Quando chegou
à sala, “olhou com indiferença para a defunta, dirigiu-se ao coronel que, junto com
Barbosa, o esperava”. Logo Manduca lhe perguntou se sabia do que Maria Bugra
havia morrido, bem como Maria Baiana, Antônio, Carlos, Chico Carreiro, todos eles
escravos naquela fazenda. Cambinda respondeu que não sabia de nada. “Se você não
confessar tudo o que tem feito, aqui, direitinho mando-o acabar a bacalhau, seu
feiticeiro do diabo!” gritou manduca, com todos os escravos presenciando aquelas
cenas, amontoados nas janelas da casa. “Ah! Sinhô! Feiticeiro, negro velho, que não
tarda a ir dar contas a Deus do feijão que ele comeu!” – respondeu-lhe o escravo. Diante
de nova resposta negativa Manduca, irritado, mandou pôr o escravo no tronco.
Cambinda mudou sua resposta. “Atirou ele para longe de si a coberta
esfarrapada, endireitou o busto derreado, ergueu a cabeça, cerrou os punhos e encarou o
coronel. Cintilavam-lhe os olhos, os beiços arregaçados deixavam ver os dentes”. O
escravo afirmou: “Ah! Você quer saber, eu digo: fui eu mesmo que matei Maria Bugra,
porque ela comia o meu dinheiro, e me enganava com a crioulada nova”. Também
assumiu a culpa das demais mortes, explicando que matara “Maria Baiana pelo mesmo
motivo de Maria Bugra. Os outros” foram “para fazer mal” ao senhor. O coronel não
compreendeu tais motivos, que Cambinda vivia a vida como se fosse “forro”, sendo
que ainda lhe dava “moradia, roupa e comida”. O escravo afirmou que, apesar de o
senhor ser “bom” para ele, ele era “branco, e obrigação de preto é fazer mal a branco
sempre que pode”. Não havia matado somente aqueles cinco escravos, mas também
“dezessete crioulinhos. Negro grande, nem se fala: Manuel Pedreiro, Tomaz, Simeão,
Liberato, Gervásio, Chico Carapina, José Grande, José Pequeno, Quitéria, Jacinta,
Margarida, de que é que morreram? Fui eu que matei todos”. Seu plano, explicou, era
que seu senhor ficasse pobre e passasse a se “servir por suas mãos”. Não queria matar
o senhor”, mas sim “fazê-lo penar”. Afinal, disse ele: “Esse seu reumatismo, sinhô,
238
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000112.pdf (acesso em 15/novembro/2007), p.
61.
143
então que é? Entrevamento de sinhá velha donde vem? E o negro deu uma gargalhada
feroz”.
Manduca ordenou aos escravos que entrassem na sala: “Levem, levem daqui esta
serpente! Metam-no no tronco, não quero mais vê-lo. Vai para a vila amanhã. Os negros
apoderaram-se de Joaquim Cambinda, que não ofereceu resistência, rodearam-no,
levaram-no a empurrões para o meio do terreiro!”
Alguns escravos “davam-lhe punhadas, outros escarravam-lhe, outros atiravam-
lhe areia nos olhos”. Todos demonstraram grande revolta: “Então foi você que matou
meu pai! Dizia um. Minha mãe! Bradava outro. Meus três filhinhos tão bonitos, que
entraram a inchar de repente, na cabeça e na barriga, a amarelar e que morreram com as
perninhas finas como pernas de rã! Lamuriou uma negra e, tomando do chão um caco
de telha, bateu com ele na cara do feiticeiro.” Xingavam Cambinda veementemente:
“Peste do diabo ! Coisa ruim ! Feiticeiro do inferno!”
239
Os escravos não estavam certos do que iam fazer com o “feiticeiro”:
Enforque-se já este demônio! O melhor é queimar! Que se queime! Que se queime!
Amarraram-no sobre uma mesa. Querosene! Tragam o querosene! Um moleque
correu ao engenho, e de voltou com uma lata quase cheia. Um preto tomou-lha,
subiu à mesa do carro, começou a despejar petróleo sobre Joaquim Cambinda.
Fósforos! Fósforos! Quem tem fósforos? Perguntou o preto, depois que esvaziou a
lata. Eu! Acudiu a negra que dera princípio ao motim, e estende-lhe uma caixa de
fósforos. O preto saltou abaixo, tomou-a, abaixou-se, riscou um fósforo, protegeu-
lhe a chama com a mão em forma de concha, encostou-o ao sapé, junto do chão.
240
Ao final, todos os escravos assistiram o corpo do “feiticeiro” queimar.
Ergueu-se uma fumarada espessa, azul-claro por cima, cor de ferrugem por baixo; a
chama cintilou em compridas línguas gulosas, lambeu, rodeou a mesa do carro,
chegou ao sapé de cima e ao corpo do negro. As roupas deste, embebidas em
petróleo, fizeram uma como explosão, inflamaram-se repentinamente. Ele soltou
um mugido rouco, sufocado, retorceu-se frenético...
Tudo desapareceu num turbilhão crepitante de fogo e de fumo.
As faúlas voavam longe, e o vento carregava a distâncias enormes as moinhas
carbonizadas.
Sentia-se um cheiro acre, nauseabundo de chamusco, de gorduras fritas, de carnes
sapecadas.
241
239
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000112.pdf (acesso em 15/novembro/2007), p.
63.
240
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000112.pdf (acesso em 15/novembro/2007), p.
63.
241
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000112.pdf (acesso em 15/novembro/2007), p.
64.
144
Dias depois da morte de “Pai Joaquim”, Lenita e Manduca não se contiveram e
“tiveram relações carnais”. No dia seguinte, mais uma vez o moço deveria ir à Santos
resolver negócios da família. Mas Lenita encontrou um bilhete nas coisas de Manduca
com insinuações de que encontraria algumas mulheres, com as quais supostamente
estaria se relacionando, naquela cidade.
Esperou sua partida e decidiu ir para São Paulo, já sabendo que esperava um
filho seu. Quando Manduca voltou, não a encontrou em casa e soube da notícia por seu
pai, que não sabia da intensidade da relação entre os dois; caiu doente e indisposto.
Recebeu uma carta de Lenita, endereçada de São Paulo, e a leu.
Na carta, ela lhe explicava, depois de descrever a sua vida vertiginosa na cidade
de São Paulo, que estava grávida de três meses e precisava de um pai para assumir o
filho dos dois. Já que ele não “estava livre”, escreveu para a Corte, e logo o dr. Mendes
Maia chegou à São Paulo. Tratava-se de um bacharel em Direito, antigo pretendente de
Lenita, que estava na Corte esperando por um Juizado de Direito. Era bem relacionado
com o barão de Cotegipe e Samuel Macdowell, afamado político do Partido
Conservador. Há pouco tempo, Lenita havia recebido do dr. Mendes Maia um pedido de
casamento, e ainda não o havia respondido. Ao aceitar o pedido, ambos decidiram que
pegariam o primeiro vapor para a Europa. E foi o que fizeram.
Irritado, Manduca exclamou: “rameira! Prostituta vil!” Mais à noite, quando foi
tomar um banho aromatizado em uma banheira, caindo doente, e morrendo horas
depois.
4.5 – O Tronco do Ipê, de José de Alencar
242
Às margens do Rio Paraíba estava localizada a fazenda de Nossa Senhora do
Boqueirão, próspera, com muitos escravos, organizada por um administrador, pelos
anos 1850. Na década de 1870, estava mudada: “os edifícios arruinaram-se; as
plantações em grande parte ao abandono morreram sufocadas pelo mato; e as terras,
afinal retalhadas, foram reunidas a outras propriedades”. Na região, todos concordavam
que o proprietário havia abandonado o governo de sua propriedade, e que talvez tivesse
cedido aos encantos e às delícias da Corte. Os que o conheciam mais de perto diziam
que havia sido uma questão de família. Mas todos acreditavam, segundo a versão de
quatro beatas do lugar, que a ruína havia se dado por um “feitiço”, e, sempre que diziam
242
Jo de Alencar, O Tronco do Ipê, Prefácio de Gilberto Freyre, 4ª. Edição, José Olympio, 1957.
Publicado em 1871.
145
isso apontavam para a cabana do “Pai Benedito”. Tratava-se de um “bruxo preto que
havia feito pacto com o Tinhoso”, “convidando as almas dos vizinhos para dançarem
embaixo do ipê um samba infernal que durava até o primeiro clarão da madrugada”.
E é a ele que se refere o título do primeiro capítulo: “O Feiticeiro”. O narrador
da trama afirma que, seis anos, ou seja, na década de 1860, tinha visto essa figura:
“um vulto dobrado ao meio, cujos longos braços eram de perfil representados pelo
nodoso bordão em que se arrimavam. As cãs lhe cobriam a cabeça como uma ligeira
pasta de algodão”. Sua cabana era conhecida como “a morada do bruxo, subdelegado de
Satanás”.
243
O narrador aproximou-se do preto-velho para pedir-lhe um pouco de água
fresca, perto do ipê. Ao chegar mais perto da árvore, viu “junto às raízes pequenas
cruzes toscas, enegrecidas pelo tempo ou pelo fogo. Do lado do nascente, numa funda
caverna do tronco, havia uma imagem de Nossa Senhora em barro, um registro de São
Benedito, figas de pau, feitiços de várias espécies, ramos secos de arruda e mentruz,
ossos humanos, caçáveis e dentes de cobras”.
244
Queria saber de Pai Benedito o que
queriam dizer aquelas cruzes. “Boqueirão”, respondeu o “feiticeiro”. Disse ainda:
“Perdoa, perdoa, senhor!” Qual crime misterioso havia ocorrido ali para que, depois de
tantos anos, aquele “negro velho” ainda implorasse “perdão à memória de seu falecido
senhor? – perguntava-se o narrador. E assim começa a história.
Em 1850, Mário, Adélia e Alice eram crianças na fazenda do Boqueirão. Entre o
menino e as duas meninas via-se, pelas roupas, “muita diferença de posição e fortuna”.
Brincavam muito com as mucamas e com Pai Benedito, indo até a sua cabana e
gritando: “Viva Pai Benedito! Viva o rei do Congo!” E o escravo abraçava e beijava o
menino. À época, era um “preto alto e robusto; ordinariamente grave e tristonho, a idade
que já andava pelos sessenta, o natural temperamento, e especialmente sua qualidade de
feiticeiro, o dispunham ao recolhimento e constante preocupação”.
245
O antigo morador da “palhoça” de Pai Benedito era conhecido por “Pai Ignácio”.
Era um escravo de “aspecto disforme”. O fato de viver em “isolamento naquele tio
agreste em meio de ásperos rochedos” fomentava “no espírito da gente da vizinhança a
crença de que o Pai Ignácio era feiticeiro. Realmente ele tinha os traços que a
superstição popular costuma atribuir aos bruxos”. Havia sido uma espécie de protetor de
243
José de Alencar, O Tronco do Ipê, pp. 37-38.
244
José de Alencar, O Tronco do Ipê, p. 38.
245
José de Alencar, O Tronco do Ipê, p. 66.
146
seu senhor. Não havia “catástrofe” ou “transtorno” por aquelas bandas que não
estivessem ligados à “mandinga do negro”, ao feitiço”. “E as vozes se uniam em uma
praga e esconjuro contra o bruxo do inferno que encafifava a todos e a tudo”.
No
boqueirão, “cada alma que o feiticeiro assim entregava em pecado mortal e sem
confissão ao inferno, eram mais dez anos de vida que o diabo lhe deixava. (...) Não
havia santo, nem oração, que o salvasse das manhas do bruxo, fino como um azougue e
capaz de enganar ao próprio diabo, seu mestre”.
246
Certo dia, Pai Ignácio desapareceu.
O avô do menino Mário, Figueira, quando comprou aquelas terras levou consigo
vários escravos, dentre eles “um molecote de nome Benedito”. Vendo a “palhoça”,
pediu ao senhor que o deixasse morar lá, no que ele consentiu. Assim, herdou a
“reputação de feiticeiro do Pai Ignácio”. Fato era que as pessoas do lugar “estavam tão
acostumadas a contar com um mandingueiro para explicar as desgraças e reveses, que
não podia dispensar esse personagem”. Com a fama veio o temor de alguns. Havia
também quem a ele recorria “para a cura de certas enfermidades, para o descobrimento
de coisas perdidas, e realização de ocultos desejos”. “Algumas coisas que disse
aconteceu de saírem certas”. Por isso, houve um “aumento na em sua mandinga” na
região.
247
Mas ele era “um feiticeiro de bom coração”. Usava seu “poder” para
conciliações “em todas as brigas que se dava entre os pretos da fazenda, aconselhava os
parceiros nos casos de aperto por alguma falta e apadrinhava o fujão perante o antigo
senhor que o tinha em grande estima e muitas vezes o ia visitar em sua cabana”.
Sua esposa havia sido escrava do dono seguinte, e pai da menina Alice. Ela
chamava-se Chica, Tia Chica. Se ele sentia-se meio que avô de Mário, por ter sido
escravo de seu pai, essa escrava sentia o mesmo por Alice, por ter sido mucama de sua
mãe.
Alice, certo dia, resolveu ver de perto o Boqueirão, lugar que lhe parecia estar
ligada à história de sua família por tudo o que tinha ouvido do casal de velhos escravos.
Uma das histórias que ouvira era sobre a “Mãe D’Água”, que lhe alimentava a
curiosidade de vê-la no espelho d’água. Debruçada em uma pedra, Alice caiu, fascinada
por uma “alucinação” por àquela figura, nas águas do Boqueirão.
Mário e Pai Benedito ouviram os gritos de Alice e resolveram salvá-la. Ambos,
como extensão do corpo do outro, conseguiram resgatá-la: o menino pulou nas águas e
246
José de Alencar, O Tronco do Ipê, pp. 75-76.
247
José de Alencar, O Tronco do Ipê, p. 77.
147
o escravo o segurou de uma das margens, para que agüentasse a força da correnteza. A
menina, depois de ficar por uns instantes deitada na cama de Tia Chica, foi levada para
a Casa de Morada da fazenda. Lá, Mário aplicou-lhe uma respiração boca-a-boca.
Assim, salvou Alice da morte. O barão era da opinião de que havia contraído uma
“dívida que não se paga” com Mário, porque somente por suas atitudes sua filha ainda
estava viva. Resolveu, então, que bancaria os estudos do menino na Corte. Poucos dias
depois, Mário seguiu esse caminho.
O barão de Espera era o dono da fazenda, em 1850. Joaquim de Freitas era filho
do administrador da mesma e José Figueira, filho do barão. Os rapazes conheceram-se
no colégio, localizado em Vassouras, província do Rio de Janeiro, e logo ficaram muito
ligados. O barão se afeiçoou muito pelo menino, e passou a ser seu protetor. Depois de
terminado os estudos, Freitas apaixonou-se por Dona Júlia, ao vê-la em uma festa. Por
sua vez, o barão Figueira casou-se, após vinte e cindo anos de viuvez, com uma jovem
sobrinha. Chamava-se Dona Alina, e não se dava muito bem com o filho do barão,
agora seu enteado, chegando ao ponto de forçar sua saída da fazendo. Esse fato foi fatal
para o empobrecimento do barão, pois várias pessoas da região, indignadas com sua
atitude, cortaram relações com ele. Por sua vez, José Figueira estava “reduzido à
penúria”, trabalhando somente para sustentar com alguma decência sua mulher e seu
filho, Mário, então com dois anos de idade.
Enquanto ele trabalhava em seu pequeno sítio, Freitas alimentava esperanças de
conquistar o amor de Dona Júlia. Ambos queriam ficar ricos, arranjando um bom
casamento. Em dois dias, José Figueira morrera ao cair do cavalo e o barão da
enfermidade que o consumia há alguns dias. Como ele havia emprestado algum dinheiro
a ambos, ficou com a fazenda como forma de pagamento das dívidas. E assim Freitas e
Dona Júlia casaram-se. Ao doar alta soma de dinheiro ao Hospício de Pedro II, recebeu
o título de barão.
Dona Alina, por sua vez, ficou pobre, mas depois conseguira arranjar-se em um
casamento com um conselheiro do Imperador, Lopes, barão do Socorro.
Mário há anos não estava convencido da versão oficial da morte de seu pai, e Pai
Benedito sabia disso. Sabia também de que o menino insistiria com ele para, mais cedo
ou mais tarde, saber mais detalhes do fato. Isso foi interrompido por alguns anos, com a
saída de Mário para estudar na Corte. Mas o menino, agora já rapaz, voltou.
Mário vinha de Paris, formado em letras e bacharel em engenharia. Era dia de
festa, vésperas de Natal. Alice supervisionava todos os preparativos. Havia vários
148
hóspedes na Casa de Morada, dentre eles o vigário e o subdelegado. Ao invés de ir
direto para a fazenda, Mário visitou Pai Benedito. Chica fora avisar à Alice que o rapaz
havia chegado. Quando chegou, rio apertou a mão de Alice com o braço trêmulo.
E durante dias, inclusive depois do ano novo, ambos passaram a andar juntos,
relembrando de fatos da infância em comum naquela fazenda. Isso incomodava Mário
por trazer à tona suas suspeitas acerca da morte de seu pai. Ele e Alice sentiram algo
bastante forte um pelo outro, o que os estava abalando.
Em um desses encontros, Alice deu a Mário uma caixa a pedido de sua falecida
mãe, morta quando o rapaz ainda estava na Corte, pouco antes de ir para a Europa. Um
dos vários objetos que nela estavam era um brinquedo, no qual Mário encontrou um
manuscrito. A partir de então, Mário isolou-se. Resolveu partir, depois que o barão lhe
ofereceu a mão de sua filha em casamento. No caminho, parou na casa de Pai Benedito.
Disse ao escravo que iria embora, que era preciso, e que não se casaria com
Alice. Alegava que sabia que seu pai havia sido assassinado pelo barão, à época o seu
melhor amigo. Pai Benedito discordou, e resolveu lhe contar a história a qual
presenciara.
Dona Alina havia trabalhado em prol da separação de seu marido e seu filho,
José Figueira, pai de Mário. Começou a escrever em um papel dívidas que
supostamente havia contraído de seus vizinhos. A idéia era a de que essas pessoas
tomassem-lhe seus bens e os repassassem à Dona Alina. Mas ele arrependeu-se da briga
com o filho, e começou a desconfiar das ações da esposa, até mesmo se era o pai do
filho de Dona Alina, Lúcio. Passou os papéis das dívidas de mentira ao Sr. Joaquim de
Freitas, muito amigo de seu filho. Pai Benedito viu, junto com Joaquim de Freitas, o
velho dar o papel da suposta dívida a seu filho. Este caminhou a cavalo e entrou no
Boqueirão, sem perceber. Ao ver aquilo, Joaquim de Freitas entendeu-lhe a mão, mas a
arrancou. Depois, em uma gruta, o escravo encontrou seu senhor morto. Enterrou seu
corpo perto do ipê.
Joaquim Freitas não sabia que ele havia presenciado a cena, porém desconfiava.
Certo dia ele disse a Pai Inácio que restituiria toda a fortuna do falecido José Figueira ao
seu filho, Mário. Para isso, faria o casamento entre ele e sua filha, Alice. Ao longe,
depois de ouvirem um grito, Mário e o escravo viram a imagem de seu pai, sobre seu
cavalo, submergindo no Boqueirão.
O barão então resolveu enviar uma carta e um documento a Mário, ao saber que
ele ainda se encontrava na casa de Pai Benedito. Enviou-os pelas mãos de um escravo.
149
Era uma carta com um pedido de perdão pelo que acontecera com seu pai, e o seu
testamento, lhe deixando tudo o que possuía. O barão, então, foi até o Boqueirão e
lançou seu cavalo para o lago. Aos poucos, as águas cobriam-lhes, e o redemoinho os
engolia. O cavalo, assustado, empinou e conseguiu escapar da morte. Nesse momento, o
barão precipitou-se para um mergulho naquelas águas tortuosas.
Mário o reconhecera e o salvou. Ele estava acompanhando as atitudes do barão,
quem estava observado da casa de Pai Benedito. Ele e Mário o levaram para sua casa,
onde deitaram o corpo do barão, deixando-o aos cuidados de Tia Chica. Em seguida, Pai
Benedito entregou a carta do barão ao rapaz. O barão acordou, viu que Mário acabara de
ler a carta e por ele chamou. Atirou a carta no fogo que aquecia o barão. Na carta, o
barão também oferecia a Mário a mão de sua filha, de quem gostaria que cuidasse e não
deixasse órfã caso contrário, o plano do barão era suicidar. Uma vez aceitando casar-
se com Alice, Mário teria de volta todo o dinheiro de seu pai.
Pai Benedito, “feiticeiro de bom agouro”, dirigiu-se até a gruta na qual Pai
Inácio houvera lhe ensinado suas “bruxarias”. Pediu “à alma de seu senhor que evitasse”
o acontecimento de “tantas desgraças”.
O barão, com muita dificuldade, levantou-se e foi falar com Mário. Pediu-lhe
que aceitasse casar-se com Alice, perdoando-o por não ter salvado seu pai. Ouviram
uma voz rouca dizendo: “perdoa, perdoa!” Mário pensou que fosse a voz de seu pai. Era
a voz de Alice, que havia assistido a partida de seu pai da janela de seu quarto. Quando
o escravo Martinho lhe contou onde ele estava, ela resolveu segui-lo, e acabou
assistindo tudo o que havia se passado, desde a tentativa de suicídio até aquele diálogo
entre o barão e Mário. Nesse momento, apareceu Alice.
Um mês depois do ocorrido, Mário e Alice casaram-se na capela da fazenda.
Com a mudança de toda a família para a Corte, e a indiferença do barão, a fazenda
entrou em franca decadência. No dia do casório, Pai Benedito e Tia Chica tornaram-se
forros e continuaram morando no mesmo lugar. Tia Chica, “em um acesso de delírio,
causado pela febre do reumatismo, atirou-se no Boqueirão. Foi a última vítima que o
negro velho sepultou ao tronco do ipê”.
248
248
José de Alencar, O Tronco do Ipê, p. 311.
150
4.6 – Feitiçaria como uma acusação moral
Evans-Pritchard demonstrou como um zande, ao acionar a noção de bruxaria,
colocava em relação “causas empíricas” e “causas místicas” dos acontecimentos,
gerando uma explicação do infortúnio. É nesse sentido que analisaremos os casos que
acabamos de narrar.
No Império do Brasil, os feiticeiros poderiam aparecer em narrativas policiais e
judiciais, bem como em notícias de jornal. Vimos, pouco, cinco narrativas
produzidas por membros da boa sociedade nas quais feiticeiros ocupam lugar de
destaque. O feiticeiro aparece como um agente social legitimado pela crença que as
pessoas têm em seu poder de produzir o mal, causar o infortúnio. Essa crença no poder
do feitiço era compartilhada, tal como veremos no próximo capítulo, não somente no
Sudeste, mas também em Salvador, em notícias diversas do jornal O Alabama, por
pessoas de diferentes classes sociais, trabalhadores urbanos ou rurais, livres, escravos,
libertos, africanos livres, senhores de diversas quantidades de escravos, profissionais
liberais urbanos e funcionários públicos de vários escalões. E todos os casos deste
capítulo giram ao redor de prescrições morais, que andam ao lado da sedução que o
feitiço produzia na classe senhorial, que vez por outra o perseguia. E essa perseguição,
como demonstramos nos casos de Juca Rosa, da Coroa da Salvação e de Pai Gavião,
ocorria quando membros daquela classe sentiam-se prejudicados pelos feiticeiros. As
acusações de feitiçaria feitas pela classe senhorial estavam associadas a africanos ou
filhos de africanos, e não porque quaisquer atitudes de pessoas acusadas de feitiçaria lhe
repudiassem. Eles acreditavam no poder da magia e da feitiçaria.
O feiticeiro tem o seu poder se ele for, como vimos em outros capítulos,
socialmente reconhecido. As pessoas dizem o que ele é capaz de fazer, quem ele é capaz
de atacar e como são realizados esses ataques. Em geral, os feiticeiros deste capítulo
foram acusados de saber fazer o mal através de um tipo específico de conhecimento
ervas e plantas devidamente manipuladas em doses certas. Na prática, pessoas sentiram-
se atingidas por essa qualidade reconhecida dos feiticeiros, ligando ao feitiço os
infortúnios ocorridos em suas vidas. Na teoria, pessoas criam que os feiticeiros usavam
seus poderes, suas técnicas, para causar o mal, provocando os infortúnios.
No Brasil imperial, tanto nos processos criminais, quanto nas notícias de jornal e
em relatos de jornalistas e escritores, o feiticeiro está sempre associado àquele que traz
nele as marcas da africanidade. Voltaremos a esta questão adiante.
151
4.7 – Objetos de feitiçaria como provas da ação e da sedução do feiticeiro
Tanto entre os Azande quanto no Império do Brasil era preciso descobrir o
feiticeiro através de métodos socialmente confiáveis. Nessas duas sociedades somente
procurava-se identificar o feiticeiro quando o infortúnio fosse grave Pai Raiol era
bem conhecido como feiticeiro pelo seu novo senhor e este somente quando se sentiu
bastante prejudicado identificou os infortúnios com o feitiço. Pai Benedito foi acusado
de dizer que sabia de algo que ninguém mais sabia na região, embora todos quisessem
saber, isto é, onde havia mais lavras de ouro e diamantes nas Minas Gerias do final do
Império. Em A Carne somente com a morte de vários escravos do senhor foi que seu
filho desconfiou das ações do feiticeiro, bem como os próprios escravos que acabaram
assassinando-o. Caso houvesse a prescrição da feitiçaria como crime no Código
Criminal do Império, possivelmente essas histórias seriam contadas de forma diferente.
Os Azande, segundo Evans-Pritchard, acreditavam em seus métodos para
identificar o acusado de feitiçaria. O mais importante deles envolvia o “oráculo do
veneno”, uma pessoa capaz de concretizar satisfatoriamente a investigação sobre a
acusação de feitiçaria ser ou não procedente. Dando a uma galinha uma poção mágica, o
oráculo fazia ao animal uma consulta com o nome do acusado. Caso ela morresse, ele
realmente era um feiticeiro, portanto o culpado pelos infortúnios. Caso a galinha
vivesse, o acusado de feitiçaria era automaticamente inocentado. Como Maggie
demonstrou, na República o método eficaz ocorria através da aplicação dos artigos 156,
157 e 158 do Código Penal, de 1890. Ao se imiscuir nos assuntos da magia, o Estado
republicano agia como uma espécie de oráculo, através de perícia especializada para
analisar objetos apreendidos em batidas policiais prática parecida com as que vimos
no caso da Coroa da Salvação, quando os objetos encontrados nas senzalas e casas de
escravos e libertos demonstraram para senhores e trabalhares livres que eram usados
para feitiçaria, isto é, para provocar o mal.
Após uma denúncia, a polícia invadia terreiros, casas de culto e até mesmo
residências onde poderia encontrar o acusado. Os objetos apreendidos, suspeitos de
serem ligados à magia em uma primeira triagem feita pelos policiais, eram levados ao
exame de uma comissão. Essa era composta por pessoas, peritos, que desenvolveram
técnicas para identificar objetos específicos, apropriados, para provocar o mal ou serem
falsos, isto é, não-eficazes na feitura do mal, usados por charlatães ou mistificadores.
No Império não tínhamos esse sistema oracular para que o Estado soubesse
quem eram os feiticeiros, como poderiam ser identificados. Mas vimos que pessoas
152
acusavam outras de feitiçaria, e buscavam elementos que pudessem comprovar seu
poder para provocar o mal. Como Maggie demonstrou, os objetos carregam o feitiço,
têm o poder de produzir o mal pretendido pelo feiticeiro. Esses objetos materializam a
crença na feitiçaria. O jornalista do Correio Paulistano falou sobre os usos que Pai
Gavião fazia de objetos diversos durante as reuniões dos Filhos das Trevas. Dona
Geraldina, a senhora de escravos do caso ocorrido em Cunha, mandou que homens
dessem batidas nas senzalas e casas de escravos para localizar objetos ligados às mortes
de seus escravos. Esses objetos foram identificados como sendo de “feitiçaria”. No
desenrolar das investigações, a polícia usou da mesma tática, indo à procura de outros
acusados de terem participado dos homicídios. Ao encontrarem essas pessoas, policiais
queriam saber informações sobre objetos de feitiçaria” encontrados em suas moradias.
Juca Rosa teve seus “objetos de feitiçaria” apreendidos pela polícia, narrados no
inquérito e utilizados pelo juiz do processo para que o réu prestasse esclarecimentos
acerca dos usos que fazia dos mesmos. Uma das características descritas era o fato de
todos esses objetos pertencerem a um africano ou filho de africano.
Nas narrativas desse capítulo, não temos objetos de feitiçaria narrados em
detalhes, a não ser em “Pai-Raiol” e O Tronco do Ipê, fruto de buscas policiais. São
objetos que dão materialidade ao seu poder, são socialmente compreendidos como parte
do caminho para provocar o mal, ou mesmo para a produção da magia de um modo
geral. Eles estão lá, compondo o cenário da crença no poder do feiticeiro, sendo parte do
feitiço. Nos dois romances vimos atitudes de personagens movidas pela inveja e pela
ambição. Nestes dois romances, tal como em A Carne, a feitiçaria teria atingido pessoas
virtuosas, símbolos da alta hierarquia social, proeminentes fazendeiros escravistas.
Além disso, nesse romance o senhor moço morreu pouco depois de ter mandado um
acusado de feitiçaria sumir da fazenda de seu pai. Esses personagens representam as
vítimas da vontade de outros lhes fazer o mal. E esses outros usavam a feitiçaria para
lhes causar infortúnios. Mesmo no caso de Pai Benedito, onde a história da feitiçaria foi
desde o início da narrativa desmistificada pelo próprio autor do romance, a história
foi resolvida quando o mistério do feitiço fora desfeito. O acusado de feitiçaria contou a
Mário, depois de muitos anos, como havia sido caracterizado como feiticeiro, como a
opinião das pessoas da região sustentou essa crença.
Os feiticeiros desses romances também eram identificados com a África, tanto
pelos senhores como por seus companheiros de senzala, como no caso do romance A
Carne.
153
Para Mauss & Hubert, o que instaura e motiva a crença coletiva na magia é um
conjunto de necessidades e “estados afetivos, geradores de ilusões, que (...) não são
individuais, mas resultam da mistura dos sentimentos próprios do indivíduo com os
sentimentos de toda a sociedade”.
249
Na raiz de toda crença em uma força mágica
encontra-se um “estado de inquietude e de sensibilidade sociais em que flutuam todas as
idéias vagas, todas as esperanças e os temores vãos” presentes em qualquer lugar da
vida social.
250
Segundo Malinowski, estas emoções, apreensões e esperanças são mais precisas
através de uma descrição do processo por meio do qual os estados emocionais
constróem a crença na força mágica. O autor demonstra como pessoas que passam por
momentos de crise e experiências emocionais fortes puramente subjetivas acreditam
convictamente na eficácia da magia. Malinowski fala em uma espécie de ciclo que tem
início na tomada de consciência, pelo homem, de sua impotência diante do
imponderável. Para ele isso alimenta a imaginação. Soma-se a isso o peso do caráter
tradicional da magia e o renome público dos mágicos, e podemos compreender como
uma pessoa crê em uma força mágica que seria externa a ele.
251
Em todos os romances, vimos como os acusadores da feitiçaria encontravam-se
em alguma situação emocional frágil, e também no meio de pessoas que acreditavam no
feitiço, e temiam os seus efeitos. No Tronco do Ipê, o barão quase se matou em nome da
vergonha que carregava acerca de um fato de seu passado, fato esse que explicava a
crença nos poderes mágicos de Pai Benedito. Em A Carne, o acusado de feitiçaria fora
linchado e assassinado pelos escravos, a mando do senhor moço, que a partir da
acusação conseguia compreender o porquê de ocorrerem mortes de escravos na fazenda
de seu pai. No final do romance, ele veio a falecer ao saber que seu filho seria criado
por outro homem. Seria a vingança do feiticeiro morto sob suas ordens? Nas Vítimas-
Algozes, o senhor caiu em desgraça a partir da trama montada por Pai Raiol, e a crença
nos seus poderes de feiticeiro era atribuída à desgraça de seus quatro antigos senhores.
Em O Garimpeiro, o escravo fora acusado de ser feiticeiro por dizer a algumas pessoas
que era capaz de encontrar lavras de diamantes. Essas pessoas estavam à procura dessa
informação fazia tempo, inclusive desacreditadas de que ainda conseguiriam encontrar
249
Mauss & Hubert, “Ensaio geral sobre a magia”, p. 162.
250
Mauss & Hubert, “Ensaio geral sobre a magia”, p. 171.
251
Cf. Malinowski, “A magia e o kula”; Magic, Science and Religion”, in Magic, Science and Religion
and other essays, New York, Doubleday Anchor Books, 1955, pp. 17-92 e “Part VI. An ethnographic
theory of the magical word”.
154
diamantes naquela região das Minas Gerais. Todos os acusados eram mesmo de alguma
forma identificados com a África e os africanos.
4.8 – A acusação de feitiçaria no conto e nos romances
A feitiçaria é sustentada pelas relações entre as pessoas, e está ligada aos seus
aspectos morais. Trata-se de uma maneira de formular questões do tipo: quem seria
capaz de fazer algo assim, tão condenável? Quem desejaria me prejudicar? Quem quer
que fatos ruins aconteçam comigo? Quem me inveja? E outras tantas questões
formuladas pelas vítimas da ação dos feiticeiros através de comportamentos socialmente
entendidos como sendo moralmente condenáveis e execráveis. Não basta, como vimos,
a condenação do acusado de feitiçaria que tem seu poder de fazer o mal comprovado de
maneira satisfatória para que a sociedade tenha seu desejo de justiça saciado, mas sim a
sua punição exemplar.
A narrativa de “Pedro Gobá” serve como contraponto desse argumento. O conto
não traz um personagem acusado de feitiçaria, alguém que tivesse produzido infortúnio
a outra pessoa. Entretanto, esse conto nos mostra a confiança que um senhor de escravos
tinha em um feiticeiro. O senhor encarregou o feiticeiro de celebrar um casamento em
sua fazenda, a união entre duas pessoas que se unem sob a proteção de alguma força
mágico-religiosa em uma cerimônia. Era encarregado de várias tarefas na fazenda,
inclusive a de celebrar os casamentos entre os escravos, promovidos e incentivados
anualmente pelo senhor. Seria, então, o feiticeiro aquele que concedia a proteção aos
noivos? De toda forma, era pessoa de confiança do senhor, uma vez que celebrando a
união entre os cativos não estava lhe fazendo o mal, ao contrário dos acusados de
feitiçaria dos romances resumidos neste capítulo.
Os acusados de feitiçaria que aparecem nos romances sempre são pessoas que
tinham relações de conflito com os acusadores, e estavam abaixo deles na hierarquia
social. Os denunciados são inimigos do denunciante, nos casos que localizamos. Nesse
sentido, a africanidade dos acusados é um dos elementos de sua periculosidade.
Em O Garimpeiro Simão foi acusado de feitiçaria por pessoas livres da região
porque tinha poderes para encontrar diamantes em uma região na qual elas duvidavam
que isso ainda podia ocorrer. Já em A Carne, um escravo fora descoberto pelo senhor
moço como autor de assassinatos, através da leitura que fez dos sintomas da morte de
uma escrava. Mesmo com sua argumentação científica acerca das substâncias que
haviam causado aquela morte, o senhor moço não deixou de acusar o escravo de
155
feitiçaria, mantendo a idéia de que essa acusação é produzida para identificar pessoas
que produziram o mal através da magia. Pai Raiol, em As vítimas-algozes, fora acusado
de feitiçaria por todos os seus senhores e alguns de seus parceiros de cativeiro. Durante
o romance inteiro ele trama e em parte executa um plano para arruinar a vida de seu
senhor. Em O Tronco do Ipê todas as pessoas acreditavam nos poderes mágicos de Pai
Benedito, e o chamavam de feiticeiro ao lhe atribuírem a capacidade de matar outras
pessoas. Sua figura misteriosa era identificada com a falência da outrora próspera
fazenda, de ter causado o prejuízo de seu antigo dono. Neste romance, quem acusa Pai
Benedito de feitiçaria são pessoas livres, e algumas delas membros de classe senhorial.
Todos estes romances não colocam em questão a crença no feitiço. Eles põem
em relevo o medo que a boa sociedade tinha do feitiço estar contra seus interesses,
provocando-lhe infortúnios. Como vimos em “Pedro Gobá”, um feiticeiro poderia ser
bem-quisto pela classe senhorial se não lhe prejudicasse. Esses romances e o conto
enfatizam a relação dos personagens acusados de feitiçaria com a África, sendo que
somente um deles, Pai Benedito não era diretamente classificado como africano. A
referência mais clara a ele em relação à origem africana era ter sido chamado “rei do
Congo”, quando jovem, o que indicaria ter ele vindo para o Sudeste em época de grande
fluxo de escravos traficados daquela região da África.
Conforme Evans-Pritchard demonstrou, o sistema de crença na bruxaria é
fechado em si, isto é, ele mesmo é capaz de colocar a dúvida e respondê-la de forma
satisfatória. Isso ocorre pela capacidade que esse sistema possui de absorver situações
de evidência contraditórias. A isso aquele antropólogo chamou de “elaboração
secundária da crença”. Nos casos em que a explicação mágica não funcionou, entre os
Azande, o problema estava relacionado à falhas nos procedimentos dos participantes do
sistema. A crença, o sistema, não é posto em dúvida. O que ocorre é a busca dos que
dele participam em localizar a falha e explicá-la, pois se trata de um caso particular e
não uma série de situações que coloquem em cheque o funcionamento do sistema de
crença.
4.9 – As falas sobre feitiçaria
Essas obras de ficção mostram aspectos socialmente construídos da crença no
feitiço, e de ocasiões nas quais acusações de feitiçaria ocorriam nas décadas finais do
Império. Enquanto esses romancistas descreveram o feitiço através de comportamentos
socialmente condenáveis, proibidos, um intelectual maranhense legitimou o universo
156
social que sustentava o medo do feitiço. Ao longo de 1896, Nina Rodrigues publicou
quatro capítulos sob o título de “O animismo fetichista dos negros baianos”, nos quais
apresenta dados etnográficos sobre diversos aspectos das práticas religiosas afro-
brasileiras na Bahia, principalmente em Salvador.
252
Sua narrativa é cheia de ricos
detalhes sobre rituais, feitiços e a linguagem religiosa usada nos terreiros de Salvador.
Nina Rodrigues nos fala também dos tipos de pessoa que freqüentavam os terreiros,
revelando casos concretos envolvendo àqueles ligados às classes mais abastadas de
Salvador. Ele próprio, renomado professor de medicina legal na Faculdade de Medicina
da Bahia, membro da elite letrada desta província, estava envolvido com os terreiros,
protegendo-os das ações policiais mais contundentes.
Nina Rodrigues demonstrou que a crença no feitiço permeava todos os baianos,
com exceção de alguns “espíritos superiores e esclarecidos”. A elite baiana
compartilhava dessa crença porque temia o poder religioso exercido por aqueles que
eram politicamente mais fracos. Segundo ele,
na Bahia, todas as classes, mesmo a dita superior, estão aptas a se tornarem
negras. O número dos brancos, mulatos e indivíduos de todas as cores e
matizes que vão consultar os negros feiticeiros nas suas aflições, suas
desgraças, dos que crêem publicamente no poder sobrenatural dos talismãs e
feitiços, dos que, em muito maior número, zombam deles em público, mas
ocultamente os ouvem, os consultam, esse número seria incalculável se não
fosse mais simples dizer de um modo geral que é a população em massa.
253
A mãe-de-santo Isabel, segundo Nina Rodrigues, instalou uma loja de roupas no
intuito de permitir que suas clientes mais abastadas pudessem lhe fazer consultas, sem
que nelas recaíssem quaisquer suspeitas de freqüentarem o candomblé: “o número em
que elas avultam ali sobre a mesa fatídica da feiticeira, bem indica a riqueza da clientela
e a extensão da crença nas virtudes do feitiço. Mas esta clientela não se recruta nas
negras boçais e ignorantes, senão mesmo na melhor sociedade da terra.
254
Homens
socialmente influentes ocupavam, muitas vezes, o cargo de ogã nos terreiros visitados
por Nina Rodrigues, oferecendo proteção contra as proibições policiais. Políticos, em
troca de votos e proteção espiritual, também faziam parte dessas relações com os
terreiros.
252
Nina Rodrigues, O animismo fetichista dos negros baianos.
253
Nina Rodrigues, O animismo fetichista dos negros baianos, p. 116.
254
Nina Rodrigues, O animismo fetichista dos negros baianos, p. 65.
157
Nina Rodrigues ainda falou sobre os motivos que levavam, desde a colônia,
senhores a represar os feitiços dos escravos. Um dos motivos era o medo que tinham
dos feitiços, posto que os escravos os faziam como represália pelos maus tratos que
recebiam dos senhores. Além disso, por não dominarem com esse tipo de poder
supersticioso, os senhores poderiam persegui-lo, antecipando-se às ações dos
escravos. Ao ouvirem os primeiros batuques fora das horas permitidas, lá iam os
senhores perseguir a crença dos escravos. No século XIX, ainda segundo Nina
Rodrigues, autoridades públicas vez por outra perseguiam as “práticas fetichistas” de
escravos e mesmo de libertos, sob o argumento era o de que os “candomblés eram um
motivo de constantes conflitos e vias de fato, que se convertiam em foco de desenfreada
devassidão”.
255
No próximo capítulo, veremos uma série de notícias que serviram de base para
esse tipo de argumento, que serão por nós analisadas no último capítulo. Ambos tratarão
da crença no poder da magia e do feitiço em Salvador, no mesmo período do caso da
cidade de Cunha e do de Juca Rosa, acontecidos na Corte e suas cercanias. Veremos
através delas informações acerca da freqüência de pessoas de todas as posições sociais
nos lugares onde o feitiço era praticado e podia ser constatado, bem como a
familiaridade dessas pessoas com as festas, os rituais e o seu linguajar específicos.
Veremos como a acusação de feitiçaria era preferencialmente feita aos “bárbaros
africanos” e essas acusações estavam em um jornal que, segundo a lenda, pertencia a
um “negro liberto”.
255
Nina Rodrigues, O animismo fetichista dos negros baianos, p. 78.
158
Capítulo 5
Um jornal, vários feitiços, feiticeiros e seus clientes, em Salvador
Neste capítulo, nos dedicaremos à narrativa de fatos diversos ligados a práticas
mágicas, na cidade de Salvador, entre 1863 e 1871. Durante este período, circulou na
cidade um jornal chamado O Alabama.
256
Pesquisando em várias de suas edições,
encontramos notícias acerca do feitiço, fossem elas ligadas ao Candomblé como um
sistema organizado de crenças e práticas religiosas, fossem elas: ligadas a pessoas que
“davam ventura e tiravam o diabo do corpo”, à proteção de autoridades aos rituais e às
festas nos “terreiros” e “candomblés”, às práticas corporais dos freqüentadores dos
lugares onde se praticava a magia, às práticas curativas não-legítimas aos olhos daquele
jornal. Após lermos atentamente todos os exemplares de O Alabama, classificamos as
notícias segundo subtítulos que pudessem mostrar ao leitor qual era o cerne de
conjuntos específicos de narrativas que versam sobre o feitiço. Algumas notícias
poderiam estar em outro subtítulo, mas não pelo assunto central do qual tratavam, e sim
por tocarem em outros tantos fatos que fazem parte da classificação que construímos a
partir das informações que coletamos. No capítulo seguinte, analisaremos tais notícias.
5.1 – Sobre os protocolos rituais
A primeira notícia sobre a estrutura ritual do candomblé, mesmo que com a
ausência desse termo, mas com outros de sua insipiente estrutura ritual, que
encontramos em O Alabama data de 24 de dezembro de 1863. Na página dois, “Chico
Papae”, o autor da notícia, conta que o “filho” de um “colega” “acha-se habilitado para
o importante mister que deseja exercer”. Tratava-se do “filho do baba-loixa da Cruz do
Cosme” que, mesmo não sendo filho” da “casa” de “Chico Papae”, havia chegado à
“ogam” e demonstrado
sua habilidade rara, tirando sete diabos do corpo da crioula Leopoldina das
Verônicas, curando de quebranto a Bernardina Rebouças, curando de feitiço a
Cunstancinha de S. Miguel, que veio de propósito da Costa para ser por ele
256
Toda a nossa pesquisa em O Alabama foi realizada no acervo do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia, doravante IGHBA. Agradecemos a João José Reis e a Luís Nicolau Parés a troca de informações
valiosas acerca de algumas notícias desse jornal. Alguns poucos, porém importantes, exemplares foram
pesquisados no Centro de Documentação Digitalizada CEDIG-UFBA. Agradecemos a Carlos Eugênio
Líbano Soares, diretor do CEDIG, pelo apoio durante nossas pesquisas no acervo do mesmo.
159
assistida, visto sua grande reputação, devido à proteção de seu marido Oxalá-birim
(Santa Bárbara) e a trazer na cabeça o grande Changô, possuir o verdadeiro santo
lenho e a pena do urubu rei.
Chico Papae não sabia onde, “em que academia”, o rapaz obtivera “os tulos”
que pudessem “garantir tão ousada pretensão”.
em 12 de março do ano seguinte, anúncio foi publicado na página quatro,
também envolvendo um “baba-loixa”, mas versando sobre outro assunto que não a
ascensão de uma pessoa em uma das casas” de culto. Porfírio Sardinha, autor da
notícia, escrevia do “quartel general dos candomblés à Rua da Poeira, em 11 de março
de 1864”, convidando “os amigos, parentes, afilhados e filhas para a “missa” pela
“alma do Baba-loixa Turíbio”, que seria “celebrada no convento de São Francisco”.
O jornal resolveu, “com permissão do Exm. Sr. Capitão”, formar “uma divisão
puxada pelo ogam tirador-mor de diabos, o Exm. Sr. de Granada” para “prestar as
honras devidas a tão ilustre morto”. Por sua vez, dizia o anúncio, “as brigadas” seriam
“comandadas pela Maria Julia, pela Constança, pela Lucinda da Rua das Flores, pela
Maria Theophila e pelos ogam Pedro, filho do finado, e Chico-Papae”. Além disso,
serviriam “de ajudantes João da Saúde, Bonifácio, Pacheco, Andreza, Benedicta R. e
João de Deus”.
Mas quem encomendaria o corpo do finado “baba-loixa” Turíbio? Isso seria
confiado “ao capelão Frederico”. Depois disso, seria “distribuído o competente caruru e
a nunca fastidiosa cachaça”.
Cruz do Cosme voltou a ser falado em outra notícia, envolvendo atitudes de um
dos dois partidos do Império, na narrativa de uma “feijoada dada pelos conservadores
para agradecerem aos seus votantes”, nas páginas um e dois de 23 de setembro de 1864.
No início da notícia, mais uma vez em forma de diálogo entre os jornalistas-
personagens, um deles quis saber informações sobre os “casebres” semelhantes à “casas
e quilombo”. O outro respondeu serem “casinholas de palha, preparadas pelos filhos do
“ogam” da Cruz do Cosme, para receberem os salvadores da pátria!” Membros do
Partido Conservador ficariam bem assentados nestes “palácios”, mostrando que “foram
criados em quilombos, em candomblé!”.
Um de seus membros estaria bancando a “festa”, “o pagode”. Quando o
“tabaque” tocou, avisando sua chegada, a chegada de um “ogam”, a notícia anunciou
que era o “Bigode de Ferro, o rei da festa”. Por tudo isso, a ele cabiam “as honras do
160
dia”. Em seguida, uma risada é dada “ca, ca, ca!” –, com o seguinte comentário: “são
conservadores! Por isso querem conservar: conservadores de candomblé!...”.
O outro lhe advertiu sobre o perigo dessa associação dos conservadores com o
candomblé de Cruz do Cosme: “Olhe o castigo do santo Vodum!” No que foi
respondido com a seguinte explicação: “Homem, eu sou devoto de Santo Antonio”.
O Alabama continuou a fornecer aos seus leitores diversas informações acerca
dos rituais realizados em “casas de candomblé”. No dia oito de novembro, meses após
as notícias sobre os acontecimentos em Cruz do Cosme, nas páginas três e quatro os
personagens-jornalistas denunciaram ao chefe de polícia um “candomblé” localizado no
“Dendezeiro”, nos “limites da armação do finado Francisco Lourenço”. Os “chefes”
seriam “Anna Maria, africana de nação Angola e um negro conhecido por pai
Francisco”.
Segundo a notícia, no “candomblé” os “pequenos recursos” de que dispunham
“os incautos” eram “extorquidos”. Por exemplo:
a uma parda de nome Maria tomaram cordões e argolas de ouro, a pretexto de
curarem-lhe o filho que estava com feitiço; ao português Sebastião, 240$rs para
livrarem sua amasia do diabo que tinha no corpo; a uma crioula Firminiana,
100$rs, para fim idêntico; a Manoel Gregório, crioulo, 120$rs para a salvação de
seu afilhado Vicente; a um português de nome José, 100$rs; a uma moça de nome
Virgínia, 200$rs, para arranjar um casamento, e a muitos, a todos, 1$rs, uma
garrafa de vinho e uma vela para improvisos, mudança de fala, subida de santo à
cabeça e outras patifarias, que bem vê S.S. não deverem continuar.
O texto segue listando os “principais personagens” do “candomblé”, quais
fossem:
Ana Maria, rainha ou mãe do terreiro; Antonia Fernandes da Silva, secretária, que
foi escrava de Francisco Lourenço que a vendeu para o Rio, donde voltou liberta
é a encarregada do Pegí, lugar onde se acham os santos; Balbina, encarregada de
engomar a roupa dos santos e dos devotos dançadores; Maia dos Santos, cabo de
esquadra que avisa às pessoas a cidade; a parda Maria, costureira da casa; o crioulo
Justino, porteiro e que é quem a guia; o pai Francisco, tocador de tabaque; o
africano Lino, escravo que foi de Francisco Lourenço, idem; Henrique Hilário
Lapige, pardo, guarda do 4º. Batalhão, idem; João Lisboa, idem; o africano Thomé,
afilhado da mãe de terreiro, idem; o crioulo Batúla, escravo do Sr. barão do Rio
Vermelho, idem.
Desta vez, ao contrário das duas primeiras notícias, O Alabama pedia a
interferência das autoridades policiais, para “cessar este escândalo quanto antes, visto
ser aquele lugar um verdadeiro abismo a que se arrojam os simplee, além de ser um foco
161
de quanta ladroeira, imoralidade e devassidão que passa pela mente dos sabidos”. O
autor da notícia, assinando Um que não gosta”, ainda promete voltar “para esclarecer
melhor certos pontos”.
Pouco mais de um ano mais tarde, em 27 de fevereiro de 1866, O Alabama
publicou versos que formavam um “enigma” a ser desvendado pelos leitores. Estes
tinham a chance de adivinhar a identidade de uma mulher que freqüentava
“candomblé”. Publicados na página quatro, os versos começam: “A mulher de um
homem do comércio/Vai, quase sempre, à Quinta das Beatas,/A um certo candomblé,
dançar vudum/Com negras gèges, crioulas e mulatas.”
Em seguida, falava-se do modo de ela se comportar no “certo candomblé”:
“Larga-se fechada na cadeira/Conduzida por Jorge e Joaquim: Vai a Loco adorar; tomar
ventura/Comer bobó de inhame, ou de aipim.” A mulher seria familiarizada com os
protocolos de saudação do lugar: chegando, a papai toma a benção,/E nos pés da
mamãe ajoelhando/Recebe obi e colla que matiga/E depois no pegi vai entrando.”
Vestiria roupas adequadas à situação, usaria enfeites corporais e manusearia objetos
rituais com desenvoltura: “Toca cundúm vestida de saêta,/Amarra sobre desta à
toalhinha,/Atupeta o pescoço de missangas,/E pega de Xangô na machadinha.” Não
faria cerimônia para “cair no santo”, mesmo não sendo “preta africana”, ao som dos
“tambores do candomblé”: “Cai na roda e mete pé na porta,/Que uma preta africana não
a ganha;/Quanto mais o ogan toca o tabaque/Mais voltas ela e mais assanha.” Em
seguida, parecendo ser bem conhecida na “casa”, é levada para outro ambiente devido à
nova situação ritual: “Quando o santo lhe sobe pra cabeça,/A levam pra casinha a toda
pressa,/Lá só entra papae e mais ninguém,/Que há proibição pra isso, expressa.”
A charada está no final, com as dicas para o “enigma” ser descoberto, sendo a
anônima senhora denunciada pelo jornal: “Querem saber quem é essa senhora?/Isso
não; é segredo, não se diz./Quem quiser que vá à Fonte Nova,/E ponha-se de espreita,
como eu fiz.”
Alguns meses depois, mais versinhos são publicados, no dia dois de agosto, nas
páginas três e quatro, sobre a ida de uma pessoa livre a um “candomblé”. Desta vez
tratava-se de um homem, um “compadre da cidade” escrevendo sobre a vida que levava
em Salvador a um “compadre da roça”. Mais uma vez, nomes e apelidos de pessoas
foram fornecidos ao leitor, bem como práticas rituais diversas, dentre gestos corporais,
formas de vestir e tipos de comida.
162
A partir do meio da narrativa, o “da cidade” falava que foi ao “candomblé da
Quinta das Beatas/De crioulas mui gaiatas”. Encontrou um amigo, chamado “Sardinha”,
que havia sido “feito papae do Terreiro”, vestindo “camisola e turbante vermelho”. A
fartura da comida foi realçada pelo da cidade”, carneiro com azeite/E bobó enchendo
a pança!” Outro amigo dele, o “Zé-Monturo”, “ogan do terreiro”, não somente estava lá,
“De joelhos e mãos postas”, como também “Nos pés de mamãe Maria”. Já “Nos pés do
papae estava/O Guimarães”. Lopes Quincas, também um seu conhecido, lá estava.
Aliás, disso tudo, o “da cidade” afirma que “Se lá não vou não sabia”.
Observando com muito cuidado as pessoas presentes, reconheceu, “Agachado e
num tabaque/Tocando com arte jeito”, “um padre que uma flor/Ambrozia trazia no
peito”. O padre não estava em sua tarefa no candomblé”. “Estava sendo ajudado”
pela “cabra velha Lucinda”. Outro padre fora encontrado, o “padre Abutre”, “Com
safada hipocrisia/Vendo lá se alcançaria/Aumento na freguesia”.
Outra pessoa, Bebé, não foi, mesmo “Sendo do rito sectário/Porque papae não
lhe deu/O cargo de secretário”. Visto e reconhecido por também fora o “Mané da
Silva Carros”, no momento em que estava “tomando ventura/Para alcançar do
governo/Três meses de sinecura”.
Havia mulheres conhecidas do fazedor de versos no “candomblé”. A primeira
a ser por ele encontrada foi “Simôa/Que de vésp´ra tinha ido/De saêta e toalhinha/E
penacho bem cumprido”. Depois, viu, lá “pela madrugada”, “Constança”, que “
estava, bem mamada, além de “Maria Clementina” que vulcâneos laços atou”. Duas
outras conhecidas estavam “Pulando no candomblé/Que era um Deus nos acuda”:
“Damiana Pipa” e “Paulina Barriguda”. Por fim, o “da cidade” informa que também
estava lá “Henriqueta Olho de Vidro, Bernardina Empenha-Saia, Felicidade Gaguinha, e
Juliana Cambaia”.
Um ano depois desta notícia, relembrando àquela sobre o falecimento de
Turíbio, “baba-loixa” de Cruz do Cosme, os leitores tomaram conhecimento da morte
de “mamãe Aguntessa, do terreiro da Campina”. No dia dois de março de 1867, nas
publicações de notícias “A Pedido”, nas páginas dois e três, O Alabama informou,
novamente através de muitos versinhos, como foi a cerimônia, usando palavras
específicas do “candomblé”, com as devidas notas explicativas. “Houve segun”,
informou o jornal, explicando ao leitor, no da página, na nota um, que se trata de
“cerimônia que se usa nos candomblé, por espaço de 7 dias, quando morre algum
filiado)”. O segun fora “concorrido/Da caterva feminina”. Na segunda-feira, em
163
Pirajá, havia sido a missa, onde o autor da notícia afirma ter visto “crioulas, mulatas/E
muita branca altaneira”.
Em razão dos preparativos para esse evento, “Na cidade não ficou/De chita preta
uma vara;/E agora quem quiser,/Há de comprá-la bem cara”. Roupas específicas para ir
ao mesmo poderiam ser identificas em certas pessoas nas Ruas: “Quem na Rua
encontrar,/Crioula de saia preta,/Com um chumaço de contas,/Saiba que ela é da treta”.
Isso incluía o próprio autor dos versos-notícia: “Eu, que para tais folias,/Não gosto de
perder vasa,/Vesti-me em trajes de ogam/E empurrei-me de casa”.
Quando ele “mal pisou no terreiro, o obacouçú cantou/Trepado na gameleira:
Gente de fora chegou”. Na nota dois o leitor tem a explicação do que seria o obacouçú:
“pássaro que os africanos veneram e cujo canto adverte, quando se aproxima alguém”.
Sabia-se, então, quando “As negras a uma voz/Começaram a gritar”, que era o autor dos
versos, “gente dO Alabama”, e perguntaram-se: “será que veio aqui espiar?” Para
chegar à resposta, as pessoas que estavam “Pediram a papae Dothé/Que fosse Fa
consultar;/Mas ele deitando os búzios/Nada pode enxergar”. Como vimos, o fazedor de
versos e informante de O Alabama havia ido como “ogan”. Ao não ser reconhecido,
teve “entrada na cumbuca”.
A partir de então, ele narrou cenas do ritual envolvendo mulheres. A primeira
delas, “Uma cena extravagante/Tive então de apreciar:/Do corpo todo cabelo/Vi as
mulheres raspar”. Entrou em cena uma sacerdotisa, Izabel, no que logo em seguida
“Principiou a tocata/Invocando a alma da morta,/Cuja sombra, dizem elas,/Viram passar
numa porta”. Tal como nos versinhos que vimos na notícia anterior, o informante de O
Alabama, quando vai encaminhando o final da narrativa, enumerava várias mulheres do
“candomblé” em torno do que via fazerem:
Fiquei de queixo caído/De boca aberta e basbaque/Ao ver Maria Doufona/Como
tocava tabaque; Cosma Pomba Suja Junto com Feliciana/Choramingavam num
canto; Delfina bicho molhado/Delmira do dente podre,/Eduviges S. José,/Estavam
cheias de um odre; Com dois penachos nas mãos/Vigiana da Campina,/Modulava
um canto triste/Com Anastácia Gonina; A Aninnha Sororoca/De carçola e
toalinha,/Ia matar dois êtuns/Que Achará pedido tinha; Quando
repentinamente/Sem se esperar Agueça,/Da Maria do Brocó/Foi se trepar na
cabeça; No meio da confusão/Houve tanta mamadeira/Que a Jesuína
Grande/Trepou numa gameleira; A Maria do Bomfim/Estando muito
exaltada,/Trepou na Taquinerê/Uma grande bofetada; Houve logo aquieta,
aquieta,/Uma a outra segurando,/E eu vendo a coisa feia/Tratei de ir empurrando.
164
Em 28 de julho de 1868, nas páginas um e dois, O Alabama insinuou as
vantagens de se conhecer um “pai-de-santo”, em uma notícia que nada tinha a ver com o
“candomblé”. Em forma de diálogo entre os jornalistas-personagens, iniciava com a
seguinte frase: “- Há certas coisas que se dando com o pai de santo”. O assunto era o
“novo sistema de tapar buraco das Ruas”. A crítica era a de que, por “economia”, esse
novo sistema consistiria em “arrancar uma pedra e meter outra”.
Poucos meses depois, o jornal continuou com o tema das relações entre a
política da cidade de Salvador, os personagens do “candomblé” e o que acontecia em
seus rituais. O autor da notícia, publicada em 19 de setembro de 1868 e intitulada “A
Política”, trata do nascimento e da origem dos “conservadores e dos liberais”. Eles o
seriam, “como diziam os espiritistas”, “reencarnações dos espíritos?” Mas, como
responder a tal questão? Após “parafusar sobre a metempsicose e depois de refletir por
bastante tempo sobre ela”, o autor da notícia entendeu “que devia submeter ao chefe de
polícia do espiritismo”, o qual era “muito seu amigo”, “este pensamento para que
consultasse aos espíritos” e resolvesse essa “confusão” que lhe havia “encasquetado na
mente”.
Mas, os membros dos dois partidos do Império seriam reencarnação de quais
espíritos? Seriam de dois tipos de judeus: os carnais, que “eram aqueles que queriam
ricos tesouros de ouro e prata, grandes manadas de gados e que serviam a Deus com
o interesse de possuírem vasta riqueza, sem importarem-se com os sofrimentos da alma,
e apenas temiam a morte e as enfermidades”, e os espirituais, que, “porém, cuidavam
de purificarem o espírito e desprezavam essas grandezas mundanas, porque
aspiravam à recompensa eterna, e com esse fim somente dedicavam-se ao serviço de
Deus”.
Eis que, então, veio a resposta, demonstrando que o autor “não a elaborava em
engano”: “Os tais judeus carnais estão hoje encarnados em conservadores, segundo o
que decidiu o espírito do lord de uma das possessões da Inglaterra em África, e os
espirituais em liberais”.
Em seguida, a notícia terminava com a publicação da “decisão do tal espírito
evocado, que me remeteu por escrito o chefe do espiritismo”:
Illm. Sr. – Certifico que, evocando o espírito de um lord de uma das possessões da
Inglaterra em África, decidiu este, por suas revelações à médium, que os judeus
carnais acham-se reencarnados nos tais homens chamados no século XIX
conservadores, e os espirituais nos liberais, dando como prova que os liberais, à
165
exceção de um ou outro, não genuíno, são homens pobre, ao passo que os
conservadores quase todos são ricos e titulares.
Passo a declarar debaixo da de chefe da crença espírita que foram estas as
verdadeiras palavras reveladas pelo espírito desse lord médium, as quais lhe as
transmito, já que procurou por meio de revelações dos espíritos saber desse
segredo, que lhe certifico ser verdadeiro; tanto mais quando até o que se figurou
em sua imaginação já era revelação, que lhe fazia esse mesmo espírito, pois assim
o declarou.
Juro-lhe pelo cargo que ocupo de chefe dos espíritas ser verdade tudo quanto
acima fica dito e por isso remeto-lhe esta que vai por mim assinada e por meus
imediato e secretário. Sala das Sessões Espíritas, 14 de setembro de 1869.
Está conforme.
Nemezes – chefe dos espiritualistas.
Alarma – imediato.
Delgado Breu – 1º. Secretário.
Mas o que acabava prevalecendo nas notícias de O Alabama acerca das práticas
rituais do “candomblé” eram as informações acerca da micro-política de Salvador, das
alianças estabelecidas no cotidiano, de pessoas conhecidas dos seus participantes e de
leitores. As duas últimas sessões desse capítulo versarão sobre isso.
Em 24 de dezembro de 1870, na página cinco, um jornalista-personagem
informava ao “Capitão” que “o preto Joaquim, gumbônde (gran-sacerdote) de um dos
terreiros que na Quinta das Beatas, (...) tinha agasalhado na casinha algumas
raparigas” – uma delas era a “filha do barbeiro Joaquim Neném, com tenda ao Gravatá”.
Na tal casinha”, “ninguém tinha permissão para entrar senão o papae”, leia-se “o preto
Joaquim”. O autor comenta: “Admira como gente que não se preste como até
confie suas filhas de negros brutos e viciosos!”. No que o “Capitão” lhe responde: “-
Veja a cegueira e a superstição até onde conduz”.
“A gunçó do terreiro (mulher do sacerdote) um dia amanheceu de cabeça virada
e foi comunicar à autoridade que pae Joaquim passava a vida de Lopes com as
raparigas, pelo que teve o prodigioso oráculo do fetichismo de ir ao xilindró embora por
pouco tempo.”
Mas não foi somente a “filha do barbeiro Joaquim Neném” que, das pessoas
conhecidas e reconhecidas pelos jornalistas-personagens de O Alabama, foi comentada
em sua relação tão próxima com o “candomblé”. Em 23 de fevereiro daquele ano uma
notícia narrava o envolvimento de um “oficial cuja dona da casa é vudunça feita do
terreiro do africano Rolavo, na Quinta das Devotas, e carrega (adora) a Oxalá, que
em língua africana significa santo mais velho (Padre Eterno)”.
166
Certo dia, segundo testemunhas ocultadas pelo autor da notícia, “veio o santo na
cabeça da seguidora das crenças africanas”. Esse “santo” “predisse” ao “oficial” que
“ele estava para ser demitido brevemente”.
Para que isso não ocorresse
“havia de lhe dar um abou (carneiro), meia canada de êpu (azeite), dois acucó
(galos), um kessé (papagaio da costa), obis, colla, alás e orobôs, doze de cada um,
para fazer um ebó (cumprimento de preceito para alcançar qualquer graça) com o
que não só arrendaria o mal que lhe estava iminente, como passaria a capitão”.
Seguindo os pedidos do “industrioso gombono (chefe da seita)”, “o crédulo
melro, mais que depressa, comprou tudo e foi levar”. O próprio “oficial” foi o
sacrificador que imolou o carneiro, de cujo sangue bebeu algumas gotas”. “Seguiu-se a
cerimônia burlesca do forican-abou.” O autor da notícia explicou que a mesma consistia
em “dar leves marradas na cabeça do animal morto, enquanto o preto engrola certas
palavras”. Realizado o von-siçá (sacrifício)”, “seguiu-se uma espécie de dança
chamada bonaduê”, no que “o nosso oficial, muito ancho, enfeitado de gés (contas),
tomou conta do nacucu cuim (tabaque) e começou a bater desmesuradamente, enquanto
as filhas da casa, em desenvoltas e extravagantes posturas, dançavam”.
Findo o relato da parte de um ritual de um “terreiro de candomblé”, o “Capitão”
fala ao autor da notícia a sua opinião sobre o que havia escutado: “- Até os homens
metidos nestas patifarias! E o mais singular é por ser um oficial de permanentes”. E ele
responde: “Eu não sei como se tem duas crenças; acreditam na religião católica, e
rendem cultos a grosseiras superstições transportadas da África; fruto da importação
daqueles povos para nosso país.”
Mas o “Capitão” queria saber quem, afinal de contas, era essa figura que andava
com desenvoltura no meio daquele “candomblé”: “- Quem é esse visionário, homem?
Onde mora?”. O autor, então, respondeu: “- É um cuja casa não tem porta, tem
Portella.” Mora “no declive da fonte do pau.” Quando o “Capitão” diz: “- Ah, sei
quem é. Faz bem de andar se agarrando pelas paredes. Esse meganha, de mais a mais,
gosta de seduzir meninas e enganá-las”. Afinal, diz o autor, havia uma questão central a
ser pensada: - Como os candomblés em Latronópolis se de extinguir, se os mesmos
que são obrigados a persegui-los vão se toca neles?”.
Havia notícias, como veremos agora, através das quais os leitores de O Alabama
se defrontavam com outros tipos de práticas mágicas, relacionadas ou não com os
167
elementos do protocolo ritual dos terreiros de candomblé”: a adivinhação do futuro e a
retirada de maus espíritos, identificados como diabo, do corpo das pessoas.
5.2 – Dando “ventura” e tirando o diabo do corpo
Logo na primeira gina do exemplar do dia 14 de janeiro de 1864, um dos
jornalistas-personagens de O Alabama, o “guarda marinha-pedestre-Guilherme”,
recebeu ordens do “Capitão” para, “acompanhado de seis guardas”, ir “à Rua Direita do
Colégio”, trazer “presas seis mulheres que” estavam “tomando ventura, assim como
duas grandes figuras de pau que se acham colocadas num trono diversos ingredientes e
ornamentos e a respectiva mamãe Maria das Neves”. Pouco mais de dois anos depois,
em nove de abril de 1866, também recebendo destaque de primeira e segunda páginas, o
jornal noticia que havia “na Rua do Bengala uma casa de dar venturas”. Essa casa
pertencia “a um preto de nome Izidoro”, e nesse lugar “se reúnem todos os infelizes que
crêem que mingau é canjica e que depositam seu dinheiro nas mãos do sabido que vive
à custa dos tolos”. Suas atitudes são classificadas pelo autor como “bruxarias de toda a
espécie”, “praticadas com revoltante escândalo, indignando a quem tem cabeça e
coração para lamentar os desvarios da humanidade”.
Tratava-se, afinal, de um “candomblé”, localizado nas imediações das casas do
Sr. Malaquias”. No mesmo, “entrou, no dia 12 a polícia, que, em outro país o teria
descoberto e feito desaparecer”. Foram vistos dois portugueses, acompanhados de dois
guardas de polícia”. penetraram e tiraram duas negrinhas fugidas, que se tinham
acoutado nos domínios do novo ogam”. Ao invés de “dar cabo daquela patifaria”,
“contentaram-se” somente com essa ação, “quando podiam dar cabo daquela patifaria”.
Ao escutar essa história, o “Capitão”, então, exclama: “- Ora bem belo! Você
parece doido; como é que queria que dois portugueses e dois guardas que foram por
ordem da autoridade a um fim especial, ultrapassassem suas atribuições e se metessem a
vasculhar a casa sem a presença da autoridade?!”. Em seguida, o autor da narrativa
responde: “Está bom, Sr; mas agora a autoridade já sabe onde é o covil, deve expelir
dali quanto antes a fera e as vítimas que habitam aquele imundo templo de devassidões
e miséria”. No que o “Capitão” conclui: “- Isto sim; esperemos que a polícia faça o seu
dever”.
Dar ventura, nas notícias de O Alabama, também significava desvendar um
mistério. Algum fato que não batesse com o perfil de um indivíduo nele envolvido, seu
comportamento e suas relações sociais, poderia ser mais bem compreendido através de
168
alguém de “desse ventura”. É disso que se ocupou o autor da notícia da página três, em
19 de agosto de 1868, em forma de diálogo que reproduzimos na íntegra:
-
Miguel não compra açúcar.
- Não, por certo.
- Miguel não recebe açúcar.
- Também é verdade.
- Miguel não tem engenho.
- Só se for de vento.
- Que diabo de ginástica faz Miguel, que tem sempre açúcar barato para vender?
- Enigma, meu rico!
- E enigma tão intrincado é esse de Miguel, que me faz dar com o juízo na contra
costa se continuar a pensar nele!
- Quer decifrar?
- Se me desse a explicação, era favor.
- Vá ao Cais do Ouro, no degrau 81, procure um taverneiro e entenda-se com ele.
- Negócio com taverneiro, fugite!
- Pois ao Cabrito, que um adivinhador, que lhe pode desembaraçar essa
meada.
- Também não me serve.
- Então, meu pássaro bisnau, procure quem lhe assista.
em 12 de dezembro do mesmo ano, na página três, o autor da notícia informa
ao “Capitãoque, em Salvador, vivia “um africano metido a curandeiro, que torna-se
um perigo pelo número de vítimas que tem feito com as suas imprudentes curas”. A
notícia, como veremos, mistura tanto o poder de “dar ventura” como o de “tirar o diabo
do corpo”. Aquele recomenda que o autor se entendesse “com o chefe de polícia e
inspetor da saúde pública”.
Mas havia outra questão que ele ainda não sabia. O tal “africano” exercia “a
nigromancia e inculca-se de saber dar ventura e expelir diabo, por meio de sortilégios,
o que faz com que a turba crédula e ignorante, concorra ao seu casebre, em busca de
melhor sorte”. O autor continua, explicando a situação: “ Especulando com a
credulidade da população supersticiosa, vai o tal bruxo empalmando os tênues recursos
dos imbecis, que lhes cai nas unhas, obrigando-os muitas vezes a desfazer-se do que
possuem, para adquirir dinheiro com que vão saciar a gana desse harpya devorador da
fortuna alheia”.
Tal como na outra notícia, o “Capitão” queria que o autor dissesse “o nome do
tal feiticeiro.” No que o autor responde: “- É o africano Manuel Paulo, atualmente
morador aos Currais Velhos, freguesia de Santo Antonio”. E, novamente, uma pergunta:
“- É que se exerce a nigromancia?”. A resposta foi negativa. O lugar no qual “o
169
africano” exercia a “nigromancia” era “a Rua Torta dos Sanhaços, por baixo da casa do
José, ferreiro, filho do filho”.
Sobre esta figura, “um adivinho”, falava o autor, contava-se latrocínios
tenebrosos, fatos de brutal lascívia praticados por meio de sua artificial e astuciosa
bruxaria”. Havia alguns a serem apontados:
Diz-se que, pouco, fora deflorada por esse monstro a pardinha de 15 anos
Joaquina Flora, levada por sua mãe para ser curada de malefício.
Conta-se também que a africana Maria Sabina morrera em casa desse preto
perigoso, sem se saber de que, e que dois escravos dela, forros, de combinação com
algum, foram cativados, possuindo hoje Manuel Paulo documentos arranjados por
maneira que lhe dão domínio sobre tais escravos.
É claro que dois pretos do trapiche do trapiche Gomes, a quem ele devia uns
300$rs., foram em um domingo do ano de 1859 à sua casa pedir o que lhes devia, e
comeram um pouco de caruru. Quando voltaram, já foram doentes e pouco
depois morreram.
Os parentes africanos encheram por aí tudo que Manuel Paulo tinha carregado a
mão nos dois pretos.
Na gina quatro de 14 de janeiro de 1864, outra notícia tratava sobre alguém
que “tinha o diabo no corpo”. Dizia a notícia que no dia seis de janeiro “apareceu na
ladeira da Ordem Terceira um homem que diziam estar louco”. Isso ocorrera entre “8 e
9 horas da noite”. Como “dizia asneiras e chamava incessantemente por uma Caboré,
disseram que tinha o diabo no corpo”. A tal “Caboré” seria uma “escrava do Sr.
Domingos Pacheco Pereira” e que a mesma, “desde aquele dia” se achava “ausente da
casa de seu senhor”. Noutra ocasião, ocorreu fato semelhante envolvendo a mesma
escrava, que tinha a “conivência com um negro, morador ao Maciel de Baixo”, “visto
não ser pequeno o incômodo que sofre a vizinhança”.
No Rio Vermelho também ocorreram fatos relacionados a alguém que
supostamente estaria com “o diabo no corpo”. Segundo a notícia publicada no dia 21 de
fevereiro de 1865, mais uma vez em forma de diálogo entre o “Capitão” e um jornalista-
personagem. Este afirmava que havia “visto o diabo”.
O “Capitão” quis logo saber “onde o havia encontrado”, no que ouviu a seguinte
resposta: “- Na casa de um preto velho angola, papae Mané, que tira diabos, bota
diabos, vende diabos, empresta diabos, e é o mesmo diabo .” Mas como isso havia se
dado? E o autor da notícia continua a informar que “No casebre de papae Mané, está
uma mulher do Rio Vermelho fazendo o diabo. Quando ele está tirando o diabo, a
170
mulher grita – Papae Mané, ele diz – Bomfim, ela – Papai Mané, ele – Bomfim. E com
isto o tal ladrão angola passa-se galinhas pretas, bodes, vinho, doces e dinheiro, etc.”
O “Capitão” pergunta: “- O que queres que eu faça com este descarado negro
velho?” O jornalista pede, então, que ele tome “providências sobre isso e aporque ele
não respeita as famílias”. “Muxingueiro!”, esbraveja o “Capitão”.
Ele, então, recomenda: “Vão ao casebre deste negro velho feiticeiro, passe-lhe o
calabrote com todo o peso do braço sobre o focinho”. Mas o jornalista-personagem
retruca: Isto não, Capitão.” E ele quer saber, afinal, “por quê?”. “Porque”, diz o outro,
“ele tem um genro que parece-me desertor da antiga cavalaria, tanto que tem um cavalo
que foi desse esquadrão”. Por fim, fala o “Capitão”: “deixe o muxingueiro executar as
ordens e depois continua-se”.
Alguns anos depois, em 18 de fevereiro de 1871, O Alabama publicou na sua
primeira página informações acerca da “vida especulativa” de uma senhora de idade. O
jornal estava “oficiando” fatos ao “Illm. Sr. Subdelegado do Pilar”, sobre a mulher de
“cor preta, de nome Umbelina, conhecida por maman Balunce, moradora aos Coqueiros
dessa freguesia, para viver à custa dos incautos”. O autor cria que tal autoridade, logo
que” tomasse “conhecimento” dos fatos a seguir, procurasse “extinguir esse foco de
vícios e bruxarias.”
Em seguida, temos a descrição as suas atividades:
Arvorada pela superstição em adivinha, curandeira de malefícios, arranjadeira de
ventura, é procurada por imensidade de pessoas, entrando nesse número
embarcadiços, pescadores de baleia, negociantes, etc., que vão consultar a essa
nova Pitonisa sobre o bom sucesso de seus negócios, levando a credulidade e
fanatismo de alguns a nada empreender sem primeiro ouvir a inculcada profetisa.
O autor, então, reconhece que “cada um pode despender seu dinheiro da maneira
que lhe aprouver”, e, “ninguém tem que tomar contas de semelhantes indivíduos”.
Tomar conta dos mesmos, nem em ocasiões da “cegueira da mais grosseira crença”,
quando se prestam “a alimentar a esperteza de quem quer viver à custa dos tolos”.
Os freqüentadores de sua casa era uma das preocupações do autor da notícia. Diz
ele
o que é essencialmente contrário à civilização, à moralidade e à ordem social, é que
a casa dessa mulher seja o valhacouto de um enxame de mulheres mandrionas,
algumas das quais vivem em completa miséria, com uma existência de bruto, semi-
171
nuas, de cabelos horrivelmente crescidos, e até em estado de idiotismo; ou servindo
de pasto a crápula e devassidão dos adeptos da seita.
Quatro meses depois, no dia primeiro de junho, assunto parecido volta a ser
destacado na primeira página do jornal. Desta vez o “ofício” era dirigido “ao Illm. Sr.
Subdelegado da Vitória”. A notícia tratava da “industriosa especulação do indivíduo de
nome Manuel com candomblé ao Caminho do Inferno”. Manuel, segundo as
informações colhidas pelo autor da notícia, metia-se “a dar ventura, curar de feitiço,
realizar e impedir casamentos, reconciliar amantes desavindos”, aproveitando-se para
“iludir aos inexpertos e ignorantes”.
Para O Alabama, o subdelegado da Vitória deveria “ao mesmo tempo fazer
cessar os repetidos toques de tabaque, assim como” verificar “a verdadeira condição de
tal indivíduo”, recolhendo-o “ao poder de sua senhora, a qual” vivia “ausente”.
O jornal não mais apelou para delegados e subdelegados de polícia de Salvador,
para cobrar providências acerca de pessoas que “tiravam diabo do corpo” e que davam
ventura”. Em 21 de novembro do mesmo ano, atendendo a uma denúncia não
publicada, mas somente insinuada de algum integrante do jornal, o mesmo noticiou
que “o Sr. Dr. Chefe de polícia ordenou que fosse à sua presença Maria dos Anjos, a
mulher que tem o diabo no corpo, e seu marido, Antonio José Cardoso”. O casal era de
Valença e vieram a Salvador em definitivo, “para o fim de ser a mulher tratada pelo
africano papae do Terreiro Miguel Augusto, cuja fama corre até lá”.
Em seguida, outro registro da ação do chefe de polícia, atendendo novamente
àquele jornal. Em um zungúhaviam sido “encontradas Efigênia Benta da Conceição,
Juliana Ursulina, Maria das Virgens, Thomazia do Nascimento, as quais foram presas e
depois soltas, a pedido, sendo dispensado André Avelino do Patrocínio, filho do baba-
loixa (pae do terreiro) por se achar com a mulher de parto”. No seu interrogatório, “a
Sra. Maria dos Anjos disse que não podia encarar o rosário da Virgem, nem pronunciar
o nome de Nossa Senhora (mas nessa reunião pronunciou e nada sofreu)”. Então, “a
polícia mandou levá-la à igreja da Piedade para ser exorcizada, sendo encarregado de tal
comissão o nosso aspirante João de Deus”.
A esta informação, o “Capitão”, após alguns meses, reage: “Ora, basta! Não me
esteja a massar com bruxarias. O remédio para isso é a casa de Correção”.
172
A última notícia que encontramos acerca de “dar ventura” e “tirar o diabo do
corpo” em O Alabama data de 19 de dezembro do mesmo ano. Não era somente uma
notícia, mas sim um anúncio, publicado no final da última página.
Baba-louxa, Azomé e Acromece, professores jubilados da extinta escola de Chico-
papae, dão ventura e consultas, e tiram diabo do corpo, a preços cômodos.
Previnem ao respeitável que nos seus estabelecimentos à Rua do Alvo, loja de no.
60 e casas térreas 57 e 92, podem ser procurados a qualquer hora do dia ou da noite
para tudo que pertencer a arte da negromancia.
A seguir, passamos a conhecer as notícias pesquisadas que organizamos sob o
título de observando os corpos.
5.3 – Observando os corpos
Na página três do dia 26 de janeiro de 1864, um diálogo entre jornalistas-
personagens de O Alabama acerca de atividades relativa ao “candomblé”, em certa casa
na Rua do Colégio, foi publicada. Tais atividades envolviam mulheres e nosso tema
anterior, o poder de “dar ventura”.
O “Capitão” recebeu um “marinheiro” que foi até a tal casa, pedindo-lhe que
descrevesse todo o ocorrido.
coisa de oito dias, fui à Rua do Colégio a uma casa e pressenti que por debaixo
tinha um rumor. Como sou curioso, quis saber o que era e fui a um buraco que
no soalho observar e vi uma mulher parda, nua, a dançar enquanto outras duas
tocavam. Ao redor havia bonecos, quartinhas, pombos, golfo em uma bacia, etc.,
etc. Finda a dança, veio uma galinha preta que foi aberta ao meio e passada
diversas vezes em diferentes sentidos pelas costas da mulher, sendo isso
acompanhado de palavras e gestos que não compreendia. Depois foi preparada
posta ao fogo.
Mas as informações acerca do “ritual” observado não pararam por aí. Além do
mais, a notícia, como o título dessa sessão de nosso trabalho versava sobre os detalhes
dos corpos das pessoas no momento em que fatos “ocorriam no candomblé”. Depois,
então, de falar sobre a “mulher parda” e os usos que fazia da “galinha morta”, o autor da
notícia falava de um novo personagem. “Daí a duas horas entrou um velho que terá seus
60 e tantos, porém que aparenta ter menos, gordo, um pouco barrigudo, sobrecasaca
preta, calça e coletes brancos, colarinho em pé, chapéu de pelo e guarda-sol perfilado”.
O velho “sentou-se” iniciou um diálogo com a “mulher parda”:
173
- Que me guardou Umbelita?
- Tem galinha pra você yoyo Julinho.
- Venha lá isso.
- Diga-me, yoyo, quando são as partilhas?
- Deixa estar que muito breve.
Logo depois, o “velho” “saboreava a galinha que tinha servido de friccionar as
costas da mulata e eu saí”.
O “Capitão” exigiu uma intervenção de O Alabama, dizendo ao personagem-
jornalista para ir, junto a outro, chamado “Guilherme, às seis horas, agarrar essas bruxas
e levá-las aos Sr. Subdelegado da Sé que lhes deve dar o conveniente destino”.
Outro subdelegado, o de Brotas, fora acionado pelo jornal em 18 de fevereiro,
para intervir em um outro “candomblé” no Engenho Velho. No dia sete, havia ocorrido,
no “terreiro ou casa de candomblé” onde é “mamãe a crioula Maria Julia”, uma “cena
bárbara e repugnante”. Uma “mulher de nome Theophila” havia sido surrada” “por
haver faltado a certas prescrições” das quais “era obrigada como filha da casa”.
O autor da notícia exige severas providências da autoridade policial de Brotas:
cumpre, portanto, que Vm. que, não só não dê licença para brinquedos, como, empregue
toda diligência para acabar com os imensos terreiros que há nessa freguesia, para evitar-
se a reprodução de fatos desses”.
Meses depois, em 14 de setembro, o subdelegado de Brotas foi, novamente,
citado na primeira página. Uma notícia “participava-lhe que no sítio denominado beco
do Acú, reúnem-se imensas mulheres na roça de uma Sra. Marocas, sob a direção de um
africano de nome Domingos”. As tais reuniões seriam para àquelas pessoas “praticarem
atos torpes, imorais e escandalosos, não só reprovados pela moral como por nossa santa
religião, e que anda neste domingo entre outras práticas esfolarem um boi vivo.”
O jornal não dava trégua aos vários subdelegados das freguesias de Salvador. No
dia 15 de novembro, também na primeira página, uma notícia “chama a atenção” do
subdelegado da “para um candomblé que no Maciel de Baixo numa das lojas do
sobrado do Sr. Paranhos”. Desse “candomblé é papae um preto de nome Jebú”. Esse
“preto” inculcava-se “por grande mestre de deitar e tirar diabos, dar ventura e curar
feitiço, etc.” Por tal motivo, ele reunia “ali, nos domingos, grande número de pessoas de
toda qualidade”.
Na mesma coluna, e ainda na primeira página, o “Capitão” ordenou ao
jornalista-personagem chamado “guarda marinha pedestre Guilherme” que fosse “à Rua
174
onde se fabrica vassouras e visse “uma crioula, de nome Constança”. Haviam
“informado” ao “Capitão” que ela reunia
em sua casa mulheres depravadas e bêbadas as quais não só escandalizam as
famílias com as imoralidades que praticam, como insultam a vizinhança com
descomposturas e palavradas; peço que traga a referida crioula a bordo deste navio
para se lhe dar o conveniente destino. Cumpra.
Três dias depois, O Alabama pede “providências contra o candomblé” localizado
no “Dendezeiro, caminho da Armação”. Desta vez, o jornal dirige-se “ao Illm. Sr. Chefe
de Polícia”, e não mais a algum dos subdelegados. Segundo a notícia, havia “ali
inúmeras mulheres, presas em diversos quartos (a tulo de cumprir certos preceitos),
donde não podiam sair senão depois de seis meses”.
Segundo o autor da notícia, havia ramificações daquele “candomblé”. Em
Salvador, “às portas da Ribeira, uma parda de nome Pacífica” era “a principal agente”.
No “no domingo, uma infeliz de que comeram 300$rs, tem de levar um boi para o
sacrifício em que se tem de consumar o seu restabelecimento do feitiço que lhe
botaram”.
Mesmo dirigindo-se a uma autoridade pública bem mais importante do que os
subdelegados, o jornal continua cobrando providências em relação às atividades dos
“candomblés”. Assim termina a notícias: “estes e outros fatos que escandalizam o
público e depõem contra a moralidade de nossa terra, devem quanto antes desaparecer;
o que se espera da moralidade e energia de S.S.”.
Depois desta série de cobranças publicadas ao longo de 1864 somente no dia
sete de agosto de 1866 encontramos, na primeira gina de O Alabama, uma notícia
sobre “candomblés” tendo como cerne o uso do corpo dos seus freqüentadores.
Novamente, apareceu a figura de um subdelegado, ao qual o jornal lhe pedia que
acabasse “com um candomblé que em casa da africana Julia na Rua da Laranjeira”.
Nesse lugar, “além de muitos atos reprovados que se praticam, é a vizinhança do lado
de S. Miguel incomodada pelo toque do tabaque”. Por exemplo, “na noite de 2 para 3
não pôde ninguém por ali dormir com a infernal zoada que faziam”. Além disso, “nessa
casa vão crioulas, mulatas, etc., e muito homem que passa por sério. Espera-se de S. S. a
costumada providência”.
No ano seguinte, também na primeira página, o jornal tentou acionar o chefe de
polícia para continua sua caça aos “candomblés”. No dia 15 de maio, a notícia
175
começava com o jornal “pedindo-lhe desculpa de se lhe estar todos os dias a massar
com negócios de candomblé”. E justifica, em seguida, que eram “tantos os abusos
praticados, que não se pode prescindir de constantemente chamar a sua atenção para
eles”. Então, o autor da notícia vai direto ao ponto, após a irônica frase: “queira S. S.
atender para o seguinte, uma vez que ainda está disposto a ler gazetilhas”.
“Nas Portas do Carmo, morava uma parda escura, de nome Casimira, a qual
vendia peixe para uma crioula, também ali moradora, conhecida por Delphina do Papo”.
Esta “foi com outras a um terreiro para o lado das Barreiras”. Este mesmo “terreiro”
seria “chamado em língua africana Querebetan – fonte onde todos vão beber”. Lá, “caiu
no santo e, uma vez “caída no santo”, “morreu e até hoje” isso “está em segredo”.
Inclusive, diz a notícia, segredo “até para seus parentes”. Isso ocorrera “há menos de um
mês”.
O autor da notícia colocou a seguinte questão: “quem pode afirmar que essa
morte não esteja revestida de circunstâncias criminosas?” Mesmo não estando, continua
falando ao chefe de polícia, “S.S. não concorda que tal escândalo deve cessar?”.
Para aumentar as pressões sobre aquela autoridade pública a notícia falava de
mais um fato “suspeito”, no mesmo “candomblé”. Naqueles dias, achava-se “encerrada
naquele antro, uma inocente criancinha de três anos, de nome Maria, filha de uma
mulher moradora à Quitandinha do Capim, chamada Anna e de João Honório, que está
no sul”. Dito isso, cabia ao chefe de polícia fazer, “em seu alto critério, o que
entendesse”.
Mais de um ano após esta notícia, ou denúncia, O Alabama “oficiou” ao “Illm.
Sr. delegado do 1º. Distrito” que “na Rua do Bangala, número 37”, morava “uma
africana, cuja casa é um perfeito lupanar de vícios e até de crimes”. Publicada em 26 de
novembro de 1867, a notícia trazia uma série de informações acerca do que ocorria no
tal “lupanar de vícios”.
As informações aparentam um grau muito grande de precisão, com detalhes. No
início, o autor da notícia falava que “o pavimento superior desse casebre” seria
“destinado a toda casta de libidinagem e depravação”. Já o inferior” seria “consagrado
a atos supersticiosos e ao culto de bruxarias”. Ao tal “casebre” ia “gente de toda classe
tomar ventura”. Além disso, praticavam-se certos atos, que repugnam e ofendem a
religião”.
176
No local, um “alcouce”, “não muito tempo foram apreendidas duas negras
fugidas”. Esse “caso” o deveria “ser estranho à polícia”, uma vez que “à sua ordem
foram elas aí presas”.
O lugar também é chamado, pelo autor da notícia, de zungu”, de cujo “nome da
mamãe era Odilia”. Esta teria “dois endiabrados cachorros, que investem e mordem a
todos que por essa Rua passam, sucedendo serem vítimas dos ferinos dentes”. Por
exemplo, “na quinta-feira, um marceneiro e um armador inspetor de quarteirão” foram
por eles atacados, sendo que o segundo “teve de quebra uma bofetada da referida
mamãe”. Esta foi “presa à ordem do chefe”, sendo “logo posta em liberdade”. Isso
ocorreu, segundo o autor da notícia, porque “o amasio” da referida mamãe tinha
“dinheiro” e, quando ia “preso”, sempre era “solto no mesmo instante”.
Mais uma vez, a notícia terminava com um pedido, quase uma exigência, ao
delegado. Este, “que tantas provas tem dado de zelo e aptidão no desempenho do cargo
que dignamente lhe foi confiado”, tinha mais uma oportunidade de confirmar”o juízo
que a seu respeito formamos, fazendo acabar com semelhante espetáculo de
imoralidades”.
No dia dois de setembro de 1868, voltava à cena às páginas de O Alabama um
subdelegado. Também em notícia de primeira gina, o autor da notícia pedia “ao Illm.
Sr. Subdelegado de S. Pedro que” acabasse com “um maldito candomblé nos fundos da
roça da viúva Serva, ao beco dos Barris, para onde são fatalmente atraídas, pela
credulidade, pela credulidade, senhoras casadas”. Estas iam “procurar” rituais
“específicos”, os quais fizessem “com que seus maridos não se” esquecessem “dos
deveres conjugais”.
Além delas, escravos” iam “pedir ingredientes para abrandar o ânimo de seus
senhores”, “mulheres” iam “buscar os meios de fazer felicidade” e “até negociantes para
terem bom andamento em seus negócios!”.
Em tom de indignação, o autor custava “a crer que esta terra ainda esteja em
semelhante estado de barbaria”. Além do mais, também custava a crer que “a polícia”
fosse “tola” “e que” visse “um especulador iludir a boa fé, a credulidade e a ignorância,
com prejuízo dos chefes de família”. Tudo isso, “muitas vezes”, vinha acompanhado de
“doses perniciosas facultadas pelo tal industrioso e administradas inocentemente pelos
seus próprios fâmulos”.
Do subdelegado, terminava a notícia, “não convindo que” continuasse
“semelhante imoralidade”, o jornal esperava “prontas providências”.
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Vinte dias depois, na página dois do jornal, foi publicada uma notícia
descrevendo o que estava ocorrendo em um “candomblé” da cidade. Aos domingos, no
Engenho Velho, havia “uma matança”.
Em forma de diálogo, um dos interlocutores responde o que seria isso:
É um boi, que apresentam coberto de contas e enfeitado de búzios; sobre o dorso
do animal vai montada uma mulher, vestida de vermelho, a qual é a grã-mestra,
com um extenso turbante sobre a cabeça, tendo na mão direita um comprido
penacho e na esquerda um instrumento simbólico, de que não sei o nome; em roda
dela vão muitas mulheres, espécie de bacantes, a que chamam vudunças feitas,
semi-nuas, tendo apenas sobre o corpo uma curta saieta e uma toalhinha na testa.
Em lasciva e desonesta dança, vão caindo uma a uma fatigadas em certa espécie de
torpor, pelo que são conduzidas para a casinha, lugar onde penetra o papae, que
é um preto chamado Antonio.
A narrativa continuava com outros detalhes de ações posteriores às até então
narradas. “Depois de muitas cerimônias praticadas no interior do pegi, onde os profanos
não entram, o ogam mais graduado consuma o sacrifício, que é precedido de um lauto
banquete, cujas iguarias são todas adubadas de azeite de dendê.”
O “Capitão” voltava à cena, depois de algumas notícias de ausência, e esbraveja:
“Homem, basta; eu não quero ouvir mais essa patifaria”. O narrador dos fatos, então, lhe
afiançava
que o Engenho Velho transformou-se, nestes oito dias, numa cidadezinha:
botequins, venda, bancas de jogo e mais de duas mil pessoas de todas as classes, as
quais algumas identificadas com a polícia, estão ali reunidas. Mulheres de todas as
considerações estão ali absorvidas naquelas práticas grosseiras e supersticiosas,
esquecidas de seus deveres e obrigações. O Sr. havia de se admirar, se ali fosse, de
ver as pessoas de consideração tocando tabaque.
O “Capitão”, com ar indignado, como em muitas das vezes, respondia que as
mulheres, então, “por estes oito dias” não teriam “função”. E ainda exclamava: “e
somos um povo civilizado!”. E, mais uma vez, quando não ação policial que
satisfaça ao jornal, a notícia terminava com uma cobrança de atitudes das autoridades:
“E a polícia tolera que se esteja assim impunemente a afrontar a moral e a religião”.
Ainda em setembro, no dia 26, encontramos a maior de todas as reportagens de
nossas pesquisas em O Alabama. O texto tratava da movimentação de pessoas e, claro,
dos usos de seus corpos nas ocasiões rituais do “candomblé”. O autor da notícia inicia o
texto em tom de espanto: “Quem mais vive, mais e aprende. Ora se eu não tivesse
vivido até hoje, não saberia que a política rolava até nos candomblés!”.
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Novamente, vêm à baila os fatos que eram freqüentes no “Engenho Velho, aos
domingos, num terreiro de feitiçarias”. Neste lugar, no último domingo, “houve grande
funçonata, por ter vencido as eleições o partido vermelho”. Novamente, vemos a
política imperial relacionada às relações sociais dos terreiros.
Lá chegando, disse o autor e testemunha ocular dos fatos do “candomblé”:
Vi bonitas crioulas, e como sou apaixonado pela fruta, quase que me torno
vermelho porque, palavra de honra, tive vontade de trazer uma e conservá-la para
mim. Estavam elegantemente vestidas com umas saêtas, umas toalhinhas com uns
chocalhos pela cabeça e uns rabos de cavalos na mão, e no meio delas haviam
algumas pretas africanas que, como vudunças antigas, tomaram parte na folia.
Em seguida, se ocupa em narrar fatos relacionados à lideran
ça ritual do papae de
terreiro”. Este, “acompanhado de um outro preto velho, trouxe para o meio do círculo
um boi todo enfeitado de fitas, contas, búzios e uma capa vermelha, etiqueta do
sacrifício, e deu-se logo princípio ao brinquedo. Bum...bum...bum... Os tabaques
zuniam, e um boi para o terreiro, dois pretos traziam”.
Outra figura aparece na narrativa, o ogam”, que “passa no pescoço do boi, a
espécie dos sacrifícios que faziam no tempo do paganismo, e reúnem-se todas as negras
para beberem o sangue do animal, aos estrepitosos sons dos tabaques. Bum... Bum...
Bum... Os tabaques zuniam, e o sangue do boi. As negras bebiam”.
O autor, então, pôs-se a fazer versos sobre os fatos subseqüentes:
O Leoncio no tabaque,/Com jeito batia,/Com a cabra Bernarda/Fazendo
harmonia;/Anaító fudovum,/As negras cantavam;/Pracatá... pracatá,/Os tabaques
soavam!;/O homem de cara brochada,/Na função também se achou,/E de tabaque
entre as pernas,/Mui habilmente tocou;/Bum... Bum... Bum.../Os tabaques
zuniam,/E no santo as negras,/Quase todas caíam!;/Agô... agô... agô... agô...!/Era
só o quem se ouvia;/Iô... iô... iô... iô...!/Era o Mattos que dizia.
A vida social no entorno do “terreiro” também era narrada, como “os diversos
botequins que haviam”, nos quais “só se via a rapaziada do bom gosto e apreciadora
da fructa creoulal, de copo na mão a virarem pela goela a bela pinga, debaixo de vivas e
hips”. Esta parte era, novamente, completada com mais versos: “Grandes vivas se
dava,/Ao som da folia,/Viva S. Lourenço,/O eco se repetia./Bum... bum... bum.../ Os
copos viravam,/E já nos botequins/ Cachaça não achavam”.
Por seu lado, “os rapazolas amadores da jogatina, retiraram-se para dentro dos
matos e de a seu gosto, gritavam ás de copas, ás de ouro, conde, dama, rei, ás de
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paus; ganhei, perdi!”. Sobre eles, mais versos o compostos: “Bum... bum... bum.../Os
tabaques zuniam,/E no jogo os rapazes,/Os cobres perdiam!”.
O autor perguntava aos leitores: “não acham que nós estamos muito adiantados
e que a política vai em prosperidade no nosso país?”. E, em seguida, mais versos eram
escritos: “Ai quem diria,/Quem até nos candomblés/Política haveria!”. Dando
prosseguimento às afirmativas de que a política partidária do Império, em Salvador,
teria, como já vimos em outra notícia, relação com “candomblés”, o autor faz um
trocadilho político:
as negras vermelhas, isto é, vermelha na cor política e pretas na pele, que caíam no
santo, eram logo levadas para um lugar que os papaes chamam casinha, no qual só
tem entrada o ogam e aquelas pessoas de postos. E à proporção que elas iam caindo
no santo. Com força o Leoncio,/O tabaque tocava,/E o Cali... noutro/O
acompanhava.
Ao que parece, a parte seguinte tratava do recolhimento das pessoas que “caíam
no santo” às suas respectivas casinhas”. Em seu interior, passava-se uma “cena
burlesca”, na opinião do autor. E, lembra ainda, que, nas casinhas”, “os leitores bem
devem saber as patifarias que os tais papaes praticam”. Afinal de contas, ironiza, tudo
isto não seria “uma prova da nossa civilização! Uma prova de que o século XIX é o
século das luzes e que trabalhamos para o adiantamento do nosso país!”. E escreveu os
seguintes versos: “Agora cantará o progresso Viva quem vence, Viva quem venceu;
Quem caiu no santo, Foi o vermelho e não eu! Ocú babá/Ocú gere/Anani vermeio/Já ta
maré”.
Três dias mais tarde, os “candomblés” do Engenho Velho continuaram a ser
notícia em O Alabama. Na página três, uma série de versos, e dessa vez somente versos,
são publicados para informar aos leitores dos fatos que estavam ocorrendo naquele
lugar. Ao invés de tão-somente pedir, ou exigir, de autoridades policiais atitudes para
reprimir os “candomblés”, dessa vez o autor dos versos-notícia denunciava o
envolvimento de uma daquelas autoridades com os mesmos : “Querem saber de uma
coisa/Que deve causar espanto,/Pois um subdelegado/Também não caiu no santo?/Foi
com a família ver/No Engenho Velho a matança,/E ficou tão fascinado/Que deu com os
quartos na dança”.
Como não poderia deixar de ser, mais uma vez, a ênfase no uso do corpo de
quem participava dos rituais do candomblé”. Assim, o tal subdelegado: “no meio das
crioulas,/Com um cumprido timão,/Ei-lo a mecher com o corpo/Com seu penacho na
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mão”. A autoridade também teria ingerido comidas do “candomblé”: “Petiscou seu
afurá,/Comeu azeite fervendo,/E junto do pé de Lôcco/Foi pelo chão se batendo”.
Novamente, a notícia terminou com de forma indignada sobre o envolvimento
de autoridades com os rituais do “candomblé”: “Se até as autoridades,/São deste mal
atacadas,/Não admira que o sejam/Boçais crioulas, coitadas...”.
Ainda sobre os candomblés” existentes no Engenho Velho, no ano seguinte,
1869, em 14 de abril, a primeira página de O Alabama trazia uma notícia endereçada ao
“Illm. Sr. Dr. Chefe de polícia”. O objetivo era “levar ao seu conhecimento” o fato de
que havia, “entre outros, um terreiro de candomblé, conhecido pelo nome de Bogum,
cujo chefe é José Barbeiro, com tenda no Cabeça”.
Neste lugar, havia falecido, “há pouco, uma mulher de cor preta, cuja morte,
pelo que se diz, reclama da polícia a mais severa e perspicaz sindicância”. Segundo a
notícia, o fato andava “envolvido em insondável mistério, recusando-se aqueles que
dele” tinham “conhecimento a darem a menor explicação”. Essas pessoas seriam todas
“prosélitos da seita”. Sobre uma das mulheres que teria “falecido naquele candomblé,
uma dessas infelizes, a quem a ignorância e fanatismo levaram a crer em tais bruxarias”,
porém, seria “mais ou menos comentado pela voz pública” que:
tinha caído no santo e achava-se na casinha do noviciado, em companhia das
outras. No ato de fazer o sapocan, cerimônia que consiste em cortar os cabelos e
poder transpor o limiar da tal casinha, depois de seis meses, a neófita não se
ajeitava a certas danças que o de uso, e para ensiná-la era castigada
quotidianamente pela donunce, espécie de grande mestra da ordem.
E a notícia continuava informando sobre os tais “castigos” e sobre suas
conseqüências para a “vítima”:
Do gênero desses castigos, que consistiam em arrochos sobre os braços e enormes
pedras nas cadeiras resultou que ela viesse a morrer e fosse precipitadamente
enterrada, sendo imediatamente retiradas todas as outras neófitas para uma casa em
S. Miguel, onde se acham, precaução esta tomada com receio de que, se a polícia
tivesse conhecimento, lá fosse e as encontrasse.
uma novidade no desfecho da narrativa, em relação ao das que vimos até o
momento. A novidade é a revelação de que o chefe de polícia havia reclamado, se
“queixado, mais de uma vez, que tem encontrado inexatidão nas comunicações dO
Alabama”. O jornal não desmente o fato, e responde afirmando que “isso era
desculpável, porque ninguém é infalível, e uma outra vez pode-se ser mal informado”.
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Entretanto, daquela vez, “asseverava o jornal”, o “caso era real”: “a morte da mulher
deu-se na aludida casinha; o que cumpre ventilar é, se foi revestida das horríveis cores
com que a pintam, o que espera-se de S. S.”
Dois dias depois, na página dois, o jornal publicou mais uma notícia, desta vez
sem versos, afirmando que, mais uma vez “a polícia andou às voltas com a gente do
candomblé”. A reclamação era de que a polícia andava lenta, “como um carro na lama”,
na “repressão aos candomblés”:
Às duas horas da noite chegavam às Areias da Armação, as chamadas Vudunças, e
todos os acessórios do candomblé, conduzidos da casa da africana Clara, em S.
Miguel, para ali. De manhã, quando tudo estava em salvaguarda, é que a polícia
foi prender pobres raparigas, que moram na loja por baixo da referida africana, e
que nenhuma ingerência têm no candomblé!...
No mesmo dia, na página quatro, uma notícia falava da ida de pessoas, no
domingo anterior, para um “candomblé”. Tratava-se de “duas sujeitas da Ladeira da
Praça com dois capadócios”, indo “para o Engenho da Conceição”. Depois, “de
transportaram-se para as Campinas para o zungú”. O autor na sabia “os nomes dos
capadócios”, mas um deles “parecia chamar-se João Pintor”. A notícia terminava com o
autor esbravejando sobre o assunto: “estão tão enraizadas estas patifarias de candomblé,
que eu não me admiro de ver a gente de cor preta envolvida, quando até os brancos
são os mais encarniçados adeptos da coisa”.
Somente em 17 de dezembro de 1870, na página sete, encontramos novamente
notícias acerca da relação entre os usos dos corpos e o “candomblé”, organizadas nesta
sessão de nosso trabalho. Trata-se da única notícia que encontramos na qual o jornal
narra algum conflito entre seus personagens-jornalistas e alguém que freqüentava os
“candomblés”. A classificamos nesta sessão pelo fato dessa pessoa ter agido sobre o
corpo de uma mulher de modo condenável aos olhos de O Alabama.
A notícia falava de xingamentos, “uma descompostura”, que um sujeito, um
“safado cigano”, teria passado nos “homens de O Alabama”, ao descer a Ladeira da
Conceição: “Negros... mulatos de m...”. Este “cigano” seria um
ladrão de cavalo. Um miserável mouriano, que não gosta de cheirar rosa, por causa
dos espinhos. Um nico a quem o Xico odeia mortalmente, por ter tido a audácia
de meter o chicote do cavalo em uma rapariga livre. O seu arrojo chegou ao ponto
de dizer que era uma negra bêbada, quando ela é até uma mulher casada.
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O autor da notícia estaria disposto a falar ao “Capitão” para que ele mandasse “o
muxingueiro” dar um jeito no tal “cigano”. A conclusão do jornal era a de que, afinal de
contas: “Cigano não tem direito,/Cigano não tem nação,/Cigano vive furtando,/Cigano
morre ladrão.”.
O jornal continuava na página três do dia 29 de dezembro de 1870 a tratar da
relação de pessoas diversas com os “candomblés”. O autor da notícia se ocupava de
narrar a “festa do Moinho”, que teria ocorrido no último domingo. Explicava ao seu
interlocutor que o que era aparentemente “uma devoção particular que em certo dia
soleniza a Imaculada Conceição”, na verdade, “o que se dava era outra coisa”, isto é,
“uma bacanal de todos os anos, um foco de desordens, uma folia orgíaca”.
Continuando, afirmava o autor da notícia que a tal festa era, também, “a
aglomeração da sensualidade, da incontinência, do desregramento, do vício, fora das
vistas da polícia”. Sobre a polícia, o outro diz que ela “é míope, que não de perto,
nem de longe”. No que o autor responde que duvidava que ela não soubesse que “não
houvera ano, desde que a chamada festa do Moinho, que não houvesse desordens,
pancadaria”. “Então acha que deve ser proibida?” pergunta o interlocutor. E o autor
responde: “Não; nesta terra onde todos são responsáveis por seus atos, não se pode
estorvar ninguém de divertir-se como entenda”. O foco da reclamação estava na falta de
ação de polícia que, ao ver “sair para um lugar retirado essa aluvião de gente e todo
calibre”, deveria “ser previdente e achar-se também no pagode para conter os excessos,
evitar os crimes”.
O autor da notícia falava que os fatos a serem narrados foram coletados pela
“companhia do olho vivo”, que “lá fora acampar”, “sem que a polícia de nada disso
soubesse” “ou por motivo de jogos, ou por causa de mulheres, ou por excesso de
bebidas, ou por qualquer coisa”.
O informante do jornal, que não sabemos se era o próprio autor da notícia,
observou “dois sujeitos golpistas sentados à beira da ladeira do Quebra-Bunda”. Estes
sujeitos “faziam a adivinhação das vermelhinhas à espreita de algum incauto”. No que
“passou um cavalheiro”, “eles o chamaram, pedindo-lhe para segurar o dinheiro de uma
aposta que tinham feito”. Além disso, recomendaram “que entregasse ao que
ganhasse”. Na “segunda vez”, “foi ele quem teve de levantar a carta”. Na “terceira”,
como “estava dentro da dança do candomblé”, deixou “100$rs e o relógio em poder dos
dois industriosos”.
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“Se para o ano que vem houver festa do Moinho”, conclui o autor, “a polícia que
seja mais precatada para não haver o que houve neste ano”.
Quase um ano depois, houve nova “festa no Moinho”, também em um domingo.
Desta vez era a “festa do inhame novo”, segundo notícia publicada na página 4 do dia
24 de novembro de 1871, quase um ano após a notícia anterior.
Para o autor da notícia, também dialogando, como na anterior, com um
interlocutor, tratava-se de “uma usança africana, introduzida e adotada pelas massas
ignorantes entre nós”. E explicava: “consiste na congregação dos primeiros frutos da
colheita de cada ano às divindades africanas. Antes da celebração dessa cerimônia é
vedado aos prosélitos das seitas africanas comerem dele”. Identificava a “congregação
dos frutos” como algo que “que era preceito religiosamente observado entre os filhos da
África”, estando “hoje entre imensa parte dos filhos deste país”.
Mas, o que seria o Moinho? Segundo o autor da notícia, era “um candomblé,
cuja mãe de terreiroera “uma africana” chamada “por tia Julia”. E, ao contrário do
ano anterior, “esse ano não houve no Moinho as desordens dos demais anos, e das quais
a polícia tem sido sempre advertida”. Por outro lado, continuavam “o complexo de
incontinências, as cenas e extravagância e deboche que” se passavam “portas adentro,
nessa infrene bacanal”. Descrever tudo isso, diz o autor, “é coisa impossível de fazer”.
Mas ele tentou.
Primeiro falou das mulheres, que estavam “semi-nuas, cobrindo o corpo apenas
com uma curta saêta, e uma tira de pano sobre os seios; tripudiavam em luxuriosos
meneios, em desenvoltos esgares”. Junto com os homens, “em indistinto conluio
constituíam o quadro mais indecente dessa depravada orgia. Os chamados ogans
(mestres) exercendo sua ascendência em rasgos de consumada impudicícia”.
Em seguida, deu mais informações acerca das práticas dos rituais no “Moinho”.
Atos de ímpio sacrilégio, cenas de bárbaro fanatismo, o menoscabo aos preceitos
do Decálogo, a reverência e cega adoração às buxigangas, e figuras ridículas de
pau, a varíola adorada como uma divindade, e como complemento a esse tropel de
desenvolturas, muitas das filiadas caindo em desacordo, por efeito talvez de
alguma droga, para rematar a festa em deleites de impura saciedade.
Depois da descrição destas cenas, o interlocutor exclamou: “Que gente!
Estupidamente embebida num estado de barbarismo supersticioso, prestando-se à
especulação de espertos embusteiros. Não refletem na impossibilidade de a um tempo
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crer num Deus verdadeiro, cumprir os preceitos da religião católica, e adorar à
divindades gentílicas!
Mas ainda havia tempo para que o autor, mais uma vez, informasse o leitor, e
não somente o seu interlocutor, do que ocorrera, domingo, no “Moinho”: certas
“mulheres saíram de casa sem autorização de quem as domina e preferiram perder
vantajosos interesses a faltar à obrigação da festa do inhame novo”.
A seguir, veremos os casos classificados por nós como relativos à “perturbação
da vizinhança”, ocasionada pelas atividades dos “candomblés”.
5.4 – Perturbando a vizinhança
A primeira notícia que localizamos acerca desse assunto data de 18 de março de
1864, e foi publicada na primeira página do jornal. Tal como em várias das notícias da
sessão anterior, o seu autor remetia-se a um subdelegado. Escreveu de modo
direcionado ao que respondia pela freguesia de Santana para que ele mandasse “chamar
à sua presença o preto João, morador contíguo à casa do coronel M. J. de A. Couto”.
A idéia era “mandá-lo para o centro das areias das Armações” com o fim de
“melhor poder desenvolver suas bruxarias”. Desta forma não continuaria “a afrontar a
civilização desta terra com os adjuntos de africanos libertos e escravos, de crioulos,
pardos e brancos, que” viviam “toda noite a incomodar a gente com algazarras e
tabaques, bocas de potes e cuias, etc.”
No dia 19 do mês seguinte, também em destaque na primeira página de O
Alabama, o autor lembrava ao “Sr. subdelegado de Santo Antonio” sobre o assunto do
qual tratava a “postura de n. 59”. Ela proibia “batuques, danças e ajuntamentos de
escravos em qualquer lugar e à qualquer hora.” Assim, pedia-lhe “providências sobre os
escravos do Sr. Comendador Pedroso, que todas as noites” incomodavam “sumamente a
vizinhança”.
Pouco mais de dois anos mais tarde, no dia nove de agosto de 1866, o jornal
tentava acionar o Illm. Sr. Dr. Chefe de Polícia”. Uma notícia na página quatro pedia-
lhe “providências para que nãohouvesse “certos pontos da cidade e seus arrebaldes,
como Cruz do Cosme, Engenho Velho, Campina, Quinta das Beatas, Engenho da
Conceição, Matatú e outros, candomblés, onde se praticam os atos mais ofensivos à
religião e à moral, servindo também de esconderijo a escravos fugidos, que aí se
acoitam por muitos dias”.
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Novamente, quase dois anos depois da notícia anterior, no dia quatro de janeiro
de 1868, um diálogo entre personagens de O Alabama foi publicado na página seis.
O primeiro deles falava: “Temos bando a na estrada do Rio Vermelho! Não
aquela taful caracterizada a macaco, enganchada numa palma de pindoba, na frente
de uma tropilha de raparigas e rapazes, e a música de barbeiros batendo adiante?”. Na
resposta do segundo interlocutor, novamente temos a referência ao “Moinho”: “Isso é a
gente do terreiro de tia Julia, no Moinho, que subiu a pagode; não vê cada uma com sua
insígnia?”. O outro pergunta: “E a polícia consente isso?”. E recebe, em seguida, a
seguinte resposta: “Por que não?”.
Na continuação da notícia, os dois falavam acerca de confusões” que ocorriam,
com certa freqüência, no “Moinho”. Um deles diz: “O pior é que as águas vão se
turvando; e a patuscada vai se tornando em tribusana; vejo facas fora e os cacetes
volteando”. Afinal, diz o outro, com “este sol tão quente, tanta cachaça, havia de dar
nesse resultado”.
Os dois passavam a falar de personagens que freqüentavam o “candomblé do
Moinho”. Um deles perguntava: “Vê aquela desesperada que quer furar o bombo?”. E
ele mesmo responde: “É a Pulcheria, segunda mamãe do terreiro.” Outra das
personagens seria “o mestre Marcos Barbeiro”, que teria levado “horrenda pedrada”.
Indignados pelo fato de “a polícia tolerar semelhantes candomblés, nos quais
sempre um sucesso trágico”, os dois resolvem “tomar os nomes da súcia e levar para
O Alabama”. Um pede para o outro: “você, que os conhece, vá ditando que eu escrevo”.
E o ditado começa: “Pulcheria, Maria da Preguiça, Leopoldina Carrapato, Lourença
Fateira, Joanna Bago Mole, Belmira, Aninha da Rua da Ajuda, Maria Carolina, Valéria,
Maria Mãe de Filho, Juliana, as outras não conheço”. Em seguida, deveriam ser ditados
os nomes “dos homens”. Foi o que ocorreu: “Faustino, Ambrosio, Salomão, Almeida
Carniceiro, Folô, Jorge, Darico, Gregório, Miguel, Manuel Girota e Marcos”.
Uma vez tendo feito as duas listas, um deles conclui a notícia: “Bem, por aqui,
se o chefe de polícia quiser pode mandar chamá-los”.
Meses mais tarde, em 29 de setembro, O Alabama oficiava, na primeira página,
“ao Illm. Sr. subdelegado da Rua do Paço” que “no princípio do Caminho Novo, reúne-
se todas as noites uma chusma de negros cativos e forros”. Nesse local, “em menoscabo
da decência, proferem palavras obscenas”. Em virtude disso, seria “constantemente
perturbado o repouso público”.
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Novamente, o jornal passava as informações para uma autoridade policial,
solicitando que a mesma as levasse em consideração para “dar as mais enérgicas
providências afim de que se não” reproduzisse “semelhantes fatos ofensivos ao decoro e
moral pública”.
A notícia posterior chamava a atenção do “Illm. Sr. subdelegado do distrito dos
Mares”, no sentido de fazer-lhe “sentir a conveniência que” havia “em acabar com um
intolerável e incômodo samba”. Este samba ocorria “nas noites de sábado, no Uruguay,
e rara vez deixa de acabar pela madrugada em cacetadas”. Além do mais, dizia a notícia,
havia “algazarra e amotinada berraria com que” inquietava “os moradores”.
Como não poderia deixar de ser, o jornal falava que “em vista do que, esperava-
se que o subdelegado” levasse “em consideração o” que havia sido “exposto” na notícia.
Três anos depois, foi a vez, na última notícia por nós classificada nessa sessão,
do “Illm. Sr. subdelegado do 2º. Distrito de Santo Antonio” receber informações sobre
“candomblés perturbando a vizinhança”. No dia 21 de novembro de 1871, também na
primeira página do jornal, a notícia contava que existiam “no distrito de jurisdição” da
referida autoridade “dois famosos candomblés pertencentes um ao preto Rodolfo e outro
a Justino e Luiza”. Nestes lugares, ocorriam “cenas retrógradas da civilização e
ofensivas à religião católica romana”. Além disso, eram “focos de depravações”.
O autor da notícia pedia que a autoridade policial proibisse os tais “candomblés
formalmente, não consentindo que a especulação” continuasse “a ter ascendência sobre
a credulidade” pública.
A última sessão das notícias pesquisadas em O Alabama tratará das denúncias de
envolvimento de autoridades públicas com os “candomblés” em Salvador. É ela que
veremos a seguir.
5.5 – A conivência das autoridades públicas
A primeira notícia que enfatizava a conivência de autoridades públicas com as
práticas dos “candomblés” em Salvador, em O Alabama, data de seis de março de 1867.
Publicada nas páginas dois e três desse jornal, a sua narrativa é na forma de diálogo,
como vimos que comumente eram construídas as notícias sobre fatos relativos aos
“candomblés”.
“Essa nossa polícia é boa!... Consente coisas!...”. Diz o principal narrador da
notícia. “O que foi?”, responde o seu interlocutor. O outro explica: “sabe que parte da
gente mais ignorante da nossa população, e principalmente aquela que é oriunda da raça
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africana, dá-se à prática de candomblés, onde toma-se ventura, levanta-se cabeça, e
outras extravagâncias”. Dentre as práticas dos “candomblés”, informa o narrador, “a
cerimônia de fechar o balaio, o que significa o encerramento das festanças da seita
durante as semanas da quaresma”. Esta cerimônia “dura 11 dias, principiando no sábado
anterior ao do entrudo, e acaba na terça-feira posterior à meia-noite”. Nesta época,
“pratica-se” nos “candomblés” “tudo quanto de mais abusivo, grosseiro e reprovado
pela nossa religião”.
Mas, o que tinha a polícia a ver com tudo isso? Fato era, segundo o mesmo
narrador, que naquele “ano a polícia consentiu a folia em larga escala, em diversos
pontos dos arrebaldes desta cidade”. Nestes arrebaldes”, havia terreiros nos quais
“reuniram-se imensidades de africanos, e gente de toda a qualidade e até de alta posição,
a celebrarem o mistério de encerrar o balaio”. Esse acontecimento não teria sido
problemático para a cidade,
se não fossem os escândalos e até crimes que neles se dão: escravos fugidos da
casa de seus senhores, pessoas inexperientes que por outras são levadas; e lá ficam
por muitos meses, a título do santo, tirar o que não é mais nem menos do que o
efeito de certas bebidas que faz a pessoa cair em adormecimento, e ser encerrada
num quarto, defloramentos etc.
No que outro afirmou, completando as informações do narrador principal: “é
preciso notar que caem no santo mulheres; homens não”. E mais, diz o outro, “até
mortes tem havido”.
“O que admiro é a polícia dar licença para isso. A subdelegacia do 2º. distrito de
Santo Antonio deu mais de uma licença para tal divertimento”, indignava-se o narrador
principal. E continuou: “onde é que já se viu uma polícia, que quer ter foros de enérgica
e ilustrada, dar permissão para o exercício de usos grosseiros, que depõem contra a
civilização do povo? a dos Srs. Galeão e Amaral”. Seu interlocutor lhe explicou que
“a polícia atual” tinha “queda para o espiritismo”. E, afinal, havia “espiritismo de
branco”, pois “esse outro é de negro”.
Disso tudo, por exemplo, pessoas diversas bebiam além do seu limite, como
ocorreu com “o carroceiro da empresa do aceio, que varre na Rua do Tijolo”. Ele tinha
ido “ao Engenho Velho apreciar o tal pagode e veio de moqueado de pau, que não se
meche”.
Novamente, no dia dois de maio daquele mesmo ano o jornal iniciou uma
notícia, também em forma de diálogo, com a seguinte exclamação: “ainda não vi polícia
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mais candomblezeira do que esta!”. E o outro cobrava explicações do que acabara de se
indignar: “antes você dissesse espiritista”. O problema não era ter dado essa explicação,
segundo o interrogado. O problema era que “antes, essas práticas supersticiosas e ao
mesmo tempo tenebrosas, tinham lugar em roças, fora da cidade, hoje” eram “são
celebradas com o mais descarado aparato nas ventas da polícia”. E passou a contar os
fatos que tanto o indignavam.
“Ainda ontem, dia 29, na mesma Rua, ao mesmo correr da repartição da polícia,
houve uma dessas festanças”. O mais grave era que “a própria polícia estava envolvida
nela”. Para se ter uma idéia da gravidade dos fatos”, “o ordenança do Sr. delegado
assistiu ao cerimonial, os soldados João de Deus Britto e Agostinho Francisco
comeram, dançaram e tocaram segun!”. Se os candomblés” pediam “licença para tocar
e cantar, e a polícia” concedia, menos mal. Mas... “a polícia”, que “tem obrigação de
velar” pela tranqüilidade pública, “não mandar observar o que se” passava “nesses
antros, os horrores que se” davam “contra a natureza, os sacrilégios que se praticam em
ofensa à religião”, aí já era algo inaceitável.
Seu interlocutor na notícia opinou, em seguida: E, depois, consentir-se dentro
da capital, alta noite, semelhante bacanal, ao passo que a polícia toma o vilão de
qualquer capadócio que ande a delirar na Rua, a pretexto de perturbar o silêncio, e
qualquer divertimento em uma casa, que não seja sobrado, é logo mandado acabar”.
O outro dá prosseguimento ao assunto através de outro fato: “Não há muitos dias
que os moradores do final da Rua da Laranjeira foram vítimas da censurável
condescendência da polícia. Durante nove noites, a começar do dia 18 do mês passado,
tocou-se ali candomblé a valer, por alma de um Machado, dignidade do Bogum, que
faleceu. A orgia principiava às nove horas e acabava às quatro da manhã!”.
“Admira que aquela Rua ficando fronteira à em que mora o Ilm. Sr. Delegado,
ele não desse fé de tão incomodativa vozeria”, responde, com certo espanto, o outro.
Mas havia outro fato a ser narrado, reforçando o argumento de que as
autoridades policiais da cidade eram freqüentadoras e, por isso, coniventes com as festas
dos “candomblés”, envolvendo, pela segunda vez em nossas pesquisas, uma situação de
conflito entre freqüentadores dos “candomblés” e alguém ligado aO Alabama:
Em uma dessas noites, um empregado da tipografia, onde se imprime nossa folha,
passou por acaso por ali, ouvindo tão confuso alarido, aproximou-se por simples
curiosidade para ver o que significava aquilo, e ao chegar, uma tal Juliana, que
estava da parte de fora, foi dar o sinal de rebate, avisando às colegas que
189
estava homem dO Alabama, que veio tomar nota. Depois de alguma agitação e
alvoroço, foi o pobre filho de Adão e Eva atarracado com um chuveiro de insultos
e impropérios, que lhe atirou aquela desenfreada caterva, sobressaindo uma tal
Felismina Tarasca, cuja língua ferina corta mais do que a mais afiada navalha.
A notícia foi concluída com um dos interlocutores afirmando que havia uma
espécie de proteção dos “candomblés” pela polícia: “E -se ele por feliz de não lhe
irem ao pelo, porque a polícia ressonando no leito da indolência pouco se lhe que o
cidadão pacífico seja ultrajado por uma cáfila insolente”.
No dia 25 agosto de 1869, O Alabama publicou, na página dois, uma pequena
notícia sobre o mesmo tema, cuja frase inicial era a seguinte pergunta: “se a polícia não
quer candomblés, como consente-os em suas barbas?”. O interlocutor, seguindo desse
tipo de notícias publicadas por esse o jornal, sugere: “Manda os soldados caçá-los pelos
matos e permite-os aqui dentro da cidade, no Beco do Açouguinho! Esta está bem
boa!”.
O assunto era uma festa, que havia ocorrido no tal beco que, por isso, “ferveu
em brincadeira por sete noites em sufrágio da alma de tia Maria. E hoje, segunda-feira,
principiou desde que apareceu a luz do dia”.
Conclusão do diálogo: “esta polícia tem esquisitices!”.
Um dos jornalistas-personagens do jornal, no dia 23 do mês seguinte, perguntou
ao “Capitão”, em notícia publicada na página sete se havia “abuso de autoridade” no
seguinte “fato”: “O africano Joaquim, pai de terreiro numa Chácara das Devotas,
arrombou a casa de uma pobre mulher de nome Joana Maria, arrancou a fechadura,
substitui-a por outra de que se apossou, assim como de tudo que ela possuía, pelo
motivo de se achar ela devendo as rendas da terra e ter saído a negócio”. A moça
“recorreu à autoridade competente, mas sua queixa foi abafada; reclamou de novo e sua
petição não foi atendida”.
A explicação da atitude de tal autoridade seria o que diziam “as más línguas”,
isto é, “que o africano” tinha “grande privança com” àquela. Porque “quando” queria
“bater o candomblé” mimoseia-va-o com presentes no valor de cem a duzentos mil
réis, além dos intervalos, uma vez por outra”. “Além disso, a tal autoridade” era “cego
apologista do santo vodum, apresentando-se com sua família quando” havia
“brinquedo”. Assim, “por essas razões”, “a pobre mulher não” havia obtido justiça e o
africano ficou fanfando”.
190
O “Capitão”, então, pergunta: “Mas quem” era “essa autoridade? E “de que
lugar”. No que o informante responde que seria “um subdelegado, daqui”. “Daqui de
onde?” volta a querer saber o “Capitão”. “O subdelegado é daqui da Bahia mesmo,
Capitão.” “Uma província com tantos subdelegados como esta, eu adivinhar”,
termina esbravejando o “Capitão”.
No início do ano de 1870, o jornal publicou uma notícia sobre crimes ocorridos
em “candomblés”. Foi nas páginas seis e sete do dia 12 de fevereiro de 1870. Tal como
a narrativa anterior, esta também foi escrita como um diálogo entre um informante,
jornalista-personagem, e o “Capitão”. O primeiro pergunta: “Capitão, não sabe o que
houve na freguesia do Pirajá?”. Ele quer saber. E segue-se a história:
Mataram com um tiro a um rapaz de 17 para 18 anos, pouco além da Campina;
foi realmente por ali sentida a morte dele por ter boa índole e ser prestimoso:
chamava-se Odilio. Não se sabe a quem atribuir esta desgraça, porque não
tinha desarmonia e era de hábitos pacíficos. Deixou uma mãe inconsolável por
ser filho único e seu arrimo.
O “Capitão” lembra de que o “proprietário da Campina, o Sr. Cotia Brandão”,
havia sido, naqueles dias, “ameaçado de morte”. Então, se o “moço não era mau, por
que é” que havia sido morto?
O outro responde que a vítima estava “demandando ao pai Thomaz, do
candomblé, rendeiro dele”. No último “dia de reis, um (gente boa e da cidade,
mesmo, no Terreiro, porque é da gema)” lhe havia proposto “acomodação” e que se ele
não acomodasse, “morreria”.
“E o que disse o Sr. Cotia?” perguntou o “Capitão”. “Que, quando ele era
menino, tinha medo de gente velha, porém nunca teve de caretas” respondeu o outro.
Mas, lembrou-se o “Capitão” de que diziam “que o Sr. Cotia não” queria “candomblé
ali?”. O informante responde que, “pelo contrário, ele” queria que “batessem até feder,
com tanto que pagassem a renda e que não exorbitassem”. Afinal, eram “20$rs. por
tarefa quanto levava a qualquer outro”. O problema era que o tal Thomaz, desde 1847,
pagava aos antecessores da mulher do Sr. Cotia 10$rs. por um mare-magnum de terras,
e ultimamente sua mulher elevou a 15$rs., porque o preto regula-se por um
arrendamento diuturno”. O Sr. Cotia diz “que ele o é mole”, “quer pôr as coisas a seu
jeito e que é seu dono e põe preço” que bem quiser. Além do mais, “diziam que queria
tomar as três casas do preto”. O “Capitão” concerta a informação, dizendo que não eram
três casas, mas sim “duas, porque o mesmo arrendamento o autorizou a fazer uma,
191
ficando para o possessório das terras quaisquer outras benfeitorias que não” fossem
“legumes, etc.”.
A questão era que “o preto, tendo sido de certa casa”, tinha “proteção grátis do
advogado, que” era apologista acérrimo do candomblé”. Por outro lado, o jornal
defenderia o Sr. Cotia, pois “queria ver este candomblé de menos, porque é miséria que
se veja tanta gente pervertida nesta bandalheira, e mais lamentável ainda ver-se gente
fina no meio. Mas, “acabem eles da maneira que for, matar” alguém é que o jornal “não
admitia”.
Mas as ameaças que o Sr. Cotia teria recebido do “preto” deveriam, para
“Capitão”, ser “levadas em consideração pelo Sr. Dr. chefe de polícia, para evitar um
futuro sinistro a um pai de família”. Afinal, “os negros, além de insubordinados, dizem
que têm desmedida proteção de mesmo, e você bem sabe o que é autoridade da roça
para ter esta gente miúda de si”.
No que concluiu o informante que, apesar de concordar com o “Capitão”, o
jornal deveria lembrar que “o Sr. Dr. Chefe de polícia” estava “avisado, e o Sr. Cotia
não” deixaria “de ir à sua fazendo por causa de feiticeiros”.
Em vinte e três de junho do mesmo ano, a página dois de O Alabama publicou
uma notícia cujo início era: “- Quanta superstição neste povo!”. O “povo” convivia com
o “espiritismo de branco” e o “espiritismo de preto”. Segundo o narrador principal da
notícia, esta crença o era “nova nesta terra de cristãos”, pois antes do Luiz Olympio
introduzi-la, já os africanos a praticavam”.
Naquela quarta-feira, haveria uma “sessão magna, em uma roça, para evocar a
alma do Chico Papae, gran-sacerdote do fetichismo, falecido mais de 5 anos, na Rua
da Poeira”. Segundo as informações do jornal, “tudo quanto” fosse “crioula da história
estava “na roça, e muita gente fina também”. “À meia-noite em ponto, tem de aparecer a
alma do morto para falar com papae Domingos e mamãe Mariquinhas Veludinho”.
Depois disso, ela “manifestar-se-á aos prosélitos da seita, para o que irão para um mato
onde não é permitido a nenhum olhar para trás”.
E não era somente essa “cerimônia” que ocorreria naquele dia: “no Engenho
Velho, no Bogum, há grande candomblé no bado, o sacrifício é de um boi; nas
Campinas também há, saem duas vudunças da casinha”.
O interlocutor encerrava a notícia falando ao informante: “homem, você parece
que anda mais enfronhado nesses negócios de candomblés do que a própria polícia”.
192
Pouco menos de um ano depois, houve outra notícia acerca da aparente
cumplicidade das autoridades policiais com as “cerimônias” de candomblé, em
Salvador. No dia 23 de maio de 1871, lia-se na página dois fatos relativos ao dia de
“domingo”, no qual “houve candomblé em um dos chamados terreiros na Quinta das
Beatas”. Além disso, segundo o diálogo entre os dois personagens-jornalistas, até o
outro domingo as pessoas iriam “meter a mão no azeite”.
Tudo isso seria relativo à “saída de quatro filhas da casa que há seis meses
estavam na casinha”. Havia “grande concorrência de gente de toda laia”, em uma
“reunião do vício, do deboche, da embriaguez e do fanatismo”. Segundo o informante,
havia no lugar uma “claque desenfreada, excitada pelos líquidos espirituosos”, pondo
“em cena ali tudo que” havia “de desenvolto e turbulento”.
O interlocutor afirmou que “a polícia que” autorizava “com uma licença essa
série de escândalos” punha-se “na moita” e “deixava os desordeiros livremente”. Ele
tinha conhecimento de terem ocorrido, “nas Quintas”, grandes desordens, muita
pancadaria, cabeças quebradas, facas fora, revolver, etc.”. Até que “o dono das terras
apareceu para acomodar o barulho e foi carregado pelos santos nas cabeças das
vuduns”. Mesmo assim, com tudo isso, afirma ele, a polícia, apesar de tudo, licença
para eles”.
Na conclusão da notícia, o outro dizia que, além das práticas grosseiras e
fanáticas, em que se envolvem criaturas educadas na do catolicismo, além do
menosprezo à religião, além das cenas contra a moral, a decência e a castidade, além de
tudo isso que ocultamente passa, ainda mais contra os candomblés, da parte de fora,
o desenfreamento daqueles que os vão assistir”.
“- Sabe que a polícia há uns dias andou por candomblé?” Assim iniciava o texto
da notícia publicada por O Alabama na página quatro do dia onze de novembro daquele
ano. A polícia havia dia “nas campinas, no terreiro de Agômé”, para “tirar uma rapariga
que estava enclausurada contra a vontade do homem que a” governava, “o qual foi
quem a reclamou à polícia”.
Segundo o narrador principal dos participantes do diálogo, “quando seus agentes
lá chegaram, a mamãe do terreiro (gumbonda) tinha recebido aviso para tomar as
cautelas precisas”. “A crioula Paixão”, que exercia “o cargo de mestra das noviças, e
que na linguagem do fetichismo significa Equêde”, havia retirado “todas as que se
achavam na casinha, ficando apenas a rapariga reclamada”. Disse ainda, sobre essa
193
“rapariga”, que “a vestiram e apresentaram aos soldados e agentes quando se
apresentaram aos quais trataram por nossa gente”.
Em seguida, o outro exclamou: “parece incrível que num país de católicos
romanos se passem essas cenas de barbarias!”. O informante continuou sua narrativa,
dizendo que
Mulheres crédulas e ignorantes entregam-se a crenças supersticiosas, iludidas pelo
embuste de espertos africanos, e por efeitos de bebidas ou o que quer que seja, o
uso da razão se lhes altera, caem em completo idiotismo, tornam-se estúpidas, sem
consciência do próprio ser e nesse estado são enclausuradas em um quarto imundo
por espaço de três a seis meses.
nesse antro, passam vida mais de brutos do que de seres humanos; nuas,
famintas; comem todas as castas de animais imundos que podem apanhar;
sustentam-se em limo da costa e cata-sol; no chão, no lugar onde satisfazem as
necessidades corporais, mesmo se for preciso comem, e não sepor lhes cair
qualquer bocado em tal lugar, que elas deixarão de engoli-lo.
Findo este tempo saem e ainda vão servir como escravas à pessoa que as compra
no santo.
Na primeira página de sete dias mais tarde, O Alabama noticiava a seguinte
avaliação os “candomblés”: “a crença das seitas africanas” estava “tão implantada na
nossa população, que muito tarde de ela desaparecer do seio das massas”. Prova
disso era que “nem as autoridades religiosas” tratavam “de combater tão pernicioso
vício instruindo o povo nos dogmas da religião que professamos”. Mas, “uma vez que
por esse lado nada se” conseguia, “deviam as autoridades policiais” atuar “pela parte
que lhes” tocava, isto é, “cortar o mal como pudessem”.
Seu interlocutor entra na conversa: “há gente que presta inabalável às
divindade fetiches”.
Seria bom “chamar a atenção do Illm. Sr. Dr. Chefe de polícia para o caso” que
estava “ocorrendo” em Salvador, e que seria narrado pelo informante logo em diante.
“No Bom-gosto do Campo Grande” havia “há um preto curador de nome
Augusto”, que morava defronte “ao Sr. Franco Lima”. Um “incauto encasquetou que
sua cara-metade era atormentada pelo espírito maligno, o qual lhe infiltrara no corpo a
enfermidade que sofria, encarnando nele”. Por isso, “consultado o feiticeiro, declarou
que o diabo sairia do corpo dessa senhora se ela fosse para a sua casa para ser
tratada”. Foi o que o marido fez “mudando imediatamente com sua esposa para o
casebre do preto”.
194
Essa “infeliz senhora” passou “por tratos barbados e cruéis”: “de dois em dois
dias” era “açoitada pelas costas, pelos braços e pelas pernas com galhos de murtha,
desmanchando o brutal algoz um feche dessa planta no corpo da lastimável vítima”.
Com “o crédulo marido consentindo em tudo”, “na quinta-feira fez-se o serviço
ao espírito do mal, e aquela” sobre a qual ele supunha “exercer seu poder, foi obrigada a
beber sangue de um bode preto com que se fez a matança (sacrifício)”. O marido estava
“gastando dinheiro” para a realização desta “cerimônia”.
Fosse “por efeito da moléstia, ou pelas bebidas que de propósito o preto” dava a
tal “senhora”, ela tinha “ataques periódicos de convulsões, nos quais” estrebuchava e
fazia “contorções de arrepiar”. Estas situações eram as que diziam que “o capeta vinha
fazer das suas”.
O outro diz: “que cegueira! Que fanatismo!”. Não sabia como havia “gente que
se” deixava “apoderar de tão absurdas e extravagantes idéias”, pois “crer que o diabo
entre no corpo de um humano, fale, faça declarações, preveja o futuro, devasse as
consciências, conheça as intenções íntimas!”. E conclui afirmando que desejava “que o
Sr. Dr. Chefe de polícia mandasse ali de surpresa, agarrasse a todos, para ver se o diabo
os avisava, antes de lá chegar a visita policial.”.
Três dias depois, uma última notícia dessa sessão de nosso trabalho. No dia 21,
o “Capitão” foi informado acerca de algo que ainda não sabia acerca de um fato do qual
ele supostamente teria conhecimento, “o da mulher com o diabo no corpo, que o
africano curandeiro Augusto” estava “tratando”.
Segundo o seu informante, “os cabelos da mulher” haviam sido “cortados rentes
e levados para uma touceira de bananeiras, onde teve lugar com eles uma agreste e
estúpida cerimônia”. O “Capitão” respondeu, então, a ele que “isso nada” adiantava “ao
que se sabia”, porque “o que” havia “de mais novo” era “que o chefe de polícia”
havia mandado “buscar o feiticeiro, sua doente e o marido desta”. E só.
No próximo capítulo, analisaremos o conjunto dessas notícias, mostrando as
características que as perpassa e o que elas nos dizem sobre as crenças na magia, no
poder do feitiço e das acusações de feitiçaria. Veremos, como nos capítulos anteriores,
que há um perfil bem claro daqueles que eram acusados de feitiçaria. Veremos, também,
através de quais elementos os acusadores produziam as acusações de feitiçaria, e como
eles falavam dos acusados.
195
Capítulo 6
Navegando nos mares do candomblé a bordo de O Alabama: acusações de feitiçaria
em Salvador, 1863-1871
O médico maranhense Nina Rodrigues descreveu, nos últimos anos do século
XIX, o candomblé na Bahia como prática de origem iorubá, “africana”. Ora enfatizou a
origem dos seus principais líderes, ora o fato de a cosmologia do candomblé ter
penetrado nos diversos poros da sociedade baiana. Pessoas de várias posições sociais,
mesmo aquelas que praticavam outras formas de religião como o catolicismo e o
espiritismo participavam das atividades dos terreiros, fossem como membros, fossem
como eventuais consulentes.
257
Aquelas duas vertentes de interpretar a cosmologia e as relações sociais
construídas no candomblé tiveram continuidade nas Ciências Sociais. Alguns autores
caminham pela idéia de que essa religião tem como base a “africanidade”, ou seja, que
as origens de suas práticas estão ligadas a formas de pensar o mundo oriundas de certas
regiões da África.
258
Outros autores, embora reconheçam que o tráfico atlântico de
escravos tenha sido a origem primeira das práticas do candomblé, dedicaram-se a
estudar essa religião através da sua “brasilidade”. Esses estudiosos enfatizaram as
relações sociais estabelecidas nas rias regiões do Brasil por meio de práticas aqui
produzidas, e o sincretismo com os mais diferentes tipos de referenciais que não
somente os africanos.
259
Nossa tese vem caminhando por esta última vertente para mostrar que na
sociedade brasileira a crença no feitiço e o próprio candomblé não se restringiam apenas
aos africanos e seus descendentes. Vimos nas notícias publicadas em O Alabama que,
embora os líderes religiosos pertencessem àquele perfil sócio-jurídico, os
freqüentadores dos terreiros pertenciam a várias posições e perfis sociais. O jornal O
257
Nina Rodrigues, O animismo fetichista dos negros baianos.
258
Roger Bastide, O candomblé da Bahia: rito nagô, São Paulo, Companhia das Letras, 2001; Marco
Aurélio Luz, Cultura negra e ideologia do recalque, Rio de Janeiro, Achiamé,1983 e Agadá: dinâmica da
civilização africana-brasileira, Salvador, UFBA, 1995; Juana Elbein dos Santos, Os na e a morte,
Petrópolis, Vozes, 1993; Renato Silveira, O candomblé da Barroquinha: processo de construção do
primeiro terreiro de keto, Salvador, Maianga, 2006; Pierre Fatumbi Verger, Ewé: uso de plantas na
sociedade ioruba, São Paulo, Odebrecht, 1995 e Notas sobre o culto aos orixás e voduns, São Paulo,
EdUSP, 1999.
259
Peter Fry, “Feijoada e Soul Food: notas sobre a manipulação de símbolos étnicos e nacionais”, in Para
inglês ver: identidade e política na cultura brasileira, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982, pp. 47-53;
Beatriz Góis Dantas, Vovó nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil, Rio de Janeiro, Graal,
1988; Maggie, Medo do feitiço e Guerra de orixá: um estudo de ritual e conflito, 3
a
. edição revista, Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001.
196
Alabama tratou as comunidades religiosas lideradas por africanos e seus descendentes a
partir da categoria “terreiro” como lugares de culto e descreveu sua hierarquia, sua
estrutura organizacional, seu calendário e suas cerimônias bem definidas afirmando que
elas eram socialmente reconhecidas em Salvador. Os terreiros eram protegidos por
policiais e políticos de diversos escalões na burocracia do Estado, como denunciava
aquele jornal. Pensamos que esta participação de todos nos candomblés se dava porque
todos partilhavam a crença, freqüentando uma série de seus rituais e festas.
Neste capítulo, tal como naqueles relativos aos casos de Juca Rosa, da Coroa da
Salvação e de Pai Gavião, veremos parte dos eventos que ajudavam a compor o campo
de tensões sociais descritas por esse jornal.
Quais são as características da sociedade escravista de Salvador, no século XIX,
que podem nos ajudar a entender em parte as notícias de O Alabama que selecionamos e
expomos no capítulo anterior? Como este jornal nos fala da crença no feitiço? Quais são
as informações que dispomos para compreender alguns dos elementos que sustentavam
a crença coletiva no feitiço que marcava aquela sociedade? São essas questões que
responderemos nesse capítulo. Para tanto, seguiremos o método usado no Capítulo 1
que teve como base o caso de Juca Rosa, ou seja, buscaremos outras fontes e dados
produzidos por membros daquela sociedade para montarmos o cenário das crenças
mágico-religiosas narradas por O Alabama. Também neste capítulo, veremos que, como
os agentes do Estado que participaram do julgamento de Juca Rosa no processo
criminal, as pessoas que escreveram as notícias publicadas por O Alabama participavam
da crença na magia através das acusações de feitiçaria feitas a alguns dos terreiros de
candomblé da cidade de Salvador, e não a todos eles.
6.1 – O perfil do jornal O Alabama
Afirmando ser “um periódico crítico e chistoso bissemanal” em seu subtítulo, o
jornal O Alabama foi um dos periódicos brasileiros de maior duração no século XIX.
Foi publicado, ininterruptamente, entre 1863 e 1900, em Salvador, entretanto, parece
que foram preservados os exemplares completos relativos à seqüência que vai de
1863 a 1871, e mais alguns poucos dos anos seguintes que estão guardados no Instituto
Geográfico-Histórico da Bahia, em Salvador. O jornal dizia ser feito a bordo de um
homônimo navio mítico, cujo desenho sempre vinha estampado na primeira página, ao
lado do título. É possível que o seu nome tenha sido inspirado no de um navio norte-
americano que na Guerra de Secessão havia visitado Brasil com o fim de comprar
197
gêneros e matérias-primas, como o algodão, cuja cultura havia sido, naqueles anos,
bastante reduzida no Sul dos Estados Unidos da América.
260
O tal navio imaginário “navegava em terra”, tendo no seu comando um severo e
zeloso censor dos costumes morais da cidade, defensor das pessoas menos favorecidas,
antiescravista e republicano. Estas características ficam claras nos comentários feitos
pelo comandante nos seus editoriais, muitas vezes escritos em forma de diálogos
satíricos com outros tripulantes. Esses homens sempre vinham trazer-lhe notícias da
Cidade de Latronópolis, fatos por eles presenciados nas ruas da cidade. As notícias não
poupavam pessoas de nenhum grupo político da cidade e nem classe social.
Logo no primeiro número, de 21 de dezembro de 1863, em seu editorial O
Alabama afirmava “... que não é ladrão; é inimigo acérrimo dos ladrões! Cosmopolita,
não tem, portanto contemplação com nacionalidade nem com partidos políticos ou de
qualquer natureza; onde houver ladrões, achar-se-á”. E ainda ameaçava: “Não a
escolher na cidade de Latronópolis. Preparem-se, pois, que O Alabama anda em viagem
por terra. Infeliz de quem com ele se abalroar”.
Esse jornal noticiava assuntos diversos da cidade de Salvador, para além de
denunciar tudo àquilo que acreditava ser moralmente condenável, como, por exemplo,
as festividades do Dois de Julho.
261
O Alabama cumpria à risca os propósitos de seu
comandante:
(...) intrometia-se geralmente com base em cartas e recados de terceiros na vida
pessoal de ricos e pobres, denunciando caloteiros, frades libidinosos, abusos de
autoridade. Indignava-se com o espancamento de escravos, condenava o
candomblé, o jogo, a derrubada de árvores do Terreiro de Jesus. Mantinha estreito
relacionamento com a comunidade; recebia para publicação queixas e ameaças
contra terceiros, anônimas ou assinadas por nítidos pseudônimos, tendo como
ponto comum a ironia elegante e inteligente.
262
Seus editores produziram uma campanha sistemática contra o candomblé, como
vimos no capítulo anterior, caracterizando-o, geralmente, com as expressões
moralmente degradantes “barbarismo, superstição e promiscuidade sexual”. Essa
campanha era realizada através de notícias que denunciavam aos leitores os endereços
260
Ver Vivaldo da Costa Lima, “Um boicote de africanas na Bahia do século XIX”, in
http://www.tropicologia.org.br/conferencia/1988boicotes_africanos.html, acesso em 26/dez/2007. Para
recentes análises das idéias deste, ver os artigos contidos em Jeferson Bacelar & Cláudio Pereira (orgs.),
Vivaldo da Costa Lima: intérprete do afro-Brasil, Salvador, EdUFBA, CEAO, 2007.
261
Muitas dessas notícias foram analisadas por Hendrik Kraay, “Entre o Brasil e a Bahia: as
comemorações do Dois de Julho em Salvador, século XIX”, in Afro-Ásia, n. 23, 1999, pp. 9-44.
262
Lima, “Um boicote de africanas na Bahia do século XIX”.
198
onde eram realizadas as cerimônias e as festas de candomblé, e os nomes dos seus
líderes e freqüentadores. A complacência de policiais e autoridades não era tolerada por
O Alabama. Seus informantes descreviam as cenas que supostamente viam nos terreiros
e nas suas cercanias, colhendo outras informações de conhecidos seus que tivessem ido
aos mesmos. Algumas vezes, as notícias eram escritas a partir de fatos vividos pelos
autores dentro dos terreiros de candomblé de Salvador. Os membros e freqüentadores
assíduos dos terreiros conheciam as pessoas ligadas a O Alabama, que não se rogava em
incluir na narrativa os momentos em que esse reconhecimento ocorria.
Seus líderes eram acusados de estarem envolvidos com práticas divinatórias,
sacrifício de animais, defloramentos e maus-tratos de mulheres e feitiçaria. Essa última
acusação será explorada mais adiante.
6.2 – Freqüentando terreiros
Segundo pesquisas realizadas por Harding, Reis e Parés, as notícias de O
Alabama demonstram que os candomblés de Salvador, ao menos entre 1863 e 1871,
reuniam pessoas de vários estatus jurídicos, isto é, escravos, libertos, africanos livres e
livres, grupos étnicos e raciais diversificados, ou seja, africanos, crioulos, mestiços e
brancos, jejes, nagôs, haussás, por exemplo, e posições de classe distintas. Seus líderes,
apontados pelas notícias, eram libertos ou livres, pessoas com maior disposição de
tempo continuado para as atividades de formação religiosa mais profunda, exigida nos
terreiros de candomblé. A sociedade de Salvador era composta por aproximadamente de
30% a 40% de pessoas “de cor”, livres ou libertas, o que reforça a idéia de que tinham
maior mobilidade social e capacidade de dispor de mais recursos econômicos do que os
escravos. Mas os escravos eram encontrados, segundo as notícias, nos candomblés
como consulentes eventuais e membros com menor número de obrigações do que os
líderes. Outras vezes, eles buscavam refúgio nos terreiros, quando estavam fugidos de
seus senhores.
263
Na colônia, houve o caso, em 1761, de José Zacarias que, segundo documentos
da Santa Inquisição portuguesa, era um “famoso profeta e adivinho na ilha de
Itaparica”. Ele usava seus supostos conhecimentos para “ganhar e juntar grandes somas
263
Rachel Elizabeth Harding, A refuge in thunder: candomblé and the alternative spaces of Blackness,
Bloomington, Indianapolis, Indiana University Press, 2000; Reis, “Candomblé in nineteenth-century
Bahia e Parés, A formação do Candomb, pp. 132-134.
199
de dinheiro através das quais conseguiu se libertar da miséria da escravidão”.
264
Mas os
procedimentos mágicos dessas pessoas eram sustentados pela crença de que através dos
mesmos atingiriam os fins almejados.
Como vimos, no Império a polícia se imiscuía na crença no feitiço, assim como
na república, aceitando denúncias contra acusados de feitiçaria. Entretanto, não são
muitos os documentos que revelam fatos dessa natureza.
6.3 – Agentes civilizadores contra os “candomblés”
Segundo pesquisas realizadas por Graden, O Alabama tinha como editor o “afro-
baiano” Aristides Ricardo de Santana, de 1863 até 1887, quando, em 1890 novos
editores assumiram.
265
Muitas das notícias do jornal, que não somente àquelas relativas
ao candomblé, criticavam acidamente o péssimo tratamento dado pelos senhores aos
seus escravos, bem como valores conservadores que supostamente prevaleciam na
cidade de Salvador. Rapidamente o jornal despertou especial atenção das autoridades
políticas e policiais da cidade. Na sua correspondência privada, o presidente da
província da Bahia dizia que O Alabama publicava uma série de informações “criando
embaraços para todos os membros do governo e da administração” de Salvador.
266
Outros membros da elite soteropolitana atacavam Aristides, inclusive
fisicamente, como ocorreu com o médico Eloi Martins de Sousa e seu filho Braulio. As
agressões físicas pelos golpes desferidos por ambos em Aristides, em 1872, provocaram
a abertura de um processo jurídico. Em seu depoimento, Aristides afirmou ao juiz que o
jovem Braulio o havia chamado de “orangotango”, e que o dr. Martins o havia
denunciado como “um negro que vinha escrevendo contra os interesses dos brancos”. O
processo fora arquivado por falta de evidências.
267
Casos como esses, explorados em O
Alabama, mostram como suas páginas eram lidas pela elite de Salvador e nela
provocava reações entusiasmadas.
Os termos negativos com os quais Aristides descrevia o candomblé podem ser
compreendidos por representarem a forte presença de crenças e comportamentos de
origens nitidamente africanas na sociedade de Salvador. Naqueles anos, muitos dos
membros das elites do Império queriam que o Brasil mantivesse cada vez mais distância
do continente que simbolizava, para eles, o atraso, a barbárie e porque não a feitiçaria.
264
Reis, “Candomblé in nineteenth-century Bahia”, pp. 122-123.
265
Graden, ““So much superstition among these people!””.
266
Documento citado por Graden, ““So much superstition among these people!”, p. 58.
267
Documento citado por Graden, ““So much superstition among these people!”, p. 58.
200
Aristides via o candomblé como o caminho contrário à civilização do Brasil, e usava O
Alabama, como vimos no capítulo anterior, para acusar líderes e freqüentadores dos
terreiros de candomblé de estarem conspirando contra os interesses da elite política de
civilizar o Brasil. O candomblé era a chave de acesso ao passado que muitos membros
das elites baianas precisavam esquecer, ao construírem a nova ordem social imperial
embora participassem do candomblé como protetores e como consulentes, como o
próprio O Alabama denuncia.
Mas O Alabama estava preocupado com outras formas de estremecimento mais
graves à propagação dos costumes da boa sociedade imperial: as cerimônias e as festas
promovidas pelos terreiros de candomblé, momentos de desestabilização da ordem
social da cidade de Salvador. Ao darem abrigo aos escravos fugidos, eles abalavam o
regime escravista fortemente vigente naquela cidade, e ainda ofereciam forças para
ameaçarem e atingirem seus senhores com feitiços crença compartilhada por pessoas
de todas as classes. Os libertos poderiam atingir posições sociais mais destacadas a
partir dos papéis que assumiam nos terreiros, sendo pagos por adivinhações e para
fazerem feitiços por encomenda de eventuais consulentes pertencentes à elite senhorial
de Salvador. Não era à toa que O Alabama denunciava a ligação de vários membros dos
terreiros com pessoas politicamente influentes da cidade, o que lhes garantia, muitas
vezes, proteção policial – como vimos nas últimas páginas do capítulo anterior.
As festas em Salvador eram momentos de grande mistura de pessoas, labirintos
de difícil penetração pelas autoridades policiais que queriam controlar seus
participantes. Muitas delas acreditavam que rebeliões de escravos explodiriam no meio
desses eventos públicos. Como a população negra da cidade era dominada pelos
africanos, a classe senhorial soteropolitana temia que mais uma vez, tal como ocorrera
no Recôncavo e no levante dos malês, nas quatro primeiras décadas do século XIX, eles
liderassem novo movimento insurrecional. Entretanto, outras autoridades públicas
acreditavam que as festas eram uma forma de os negros diminuírem suas tensões,
tornando menos tenso o clima social da cidade. Os batuques e os sons de vários tipos de
instrumentos acionavam ou a perseguição, ou a tolerância das autoridades, e sempre as
faziam prestar atenção na presença dos africanos.
268
268
Para essas e outras informações acerca das festas negras em Salvador, no século XIX, ver João José
Reis, “Tambores e temores: a festa negra na Bahia na primeira metade do século XIX”, in Maria
Clementina Pereira Cunha (org.), Carnavais e outras frestas: ensaios de história social da cultura,
Campinas, Editora da UNICAMP, CECULT, 2002, pp. 101-155.
201
Segundo Reis, a província da Bahia conviveu, em diferentes momentos do
século XIX, com dois paradigmas de vigilância aos escravos. O primeiro seria o de João
de Saldanha da Gama Mello e Torres Guedes Brito, o conde da Ponte, que assumiu o
cargo de governador da Bahia em 1807. O conde contava com articulada rede de
espiões e acreditava que assim acabaria com as insurreições escravas. Ele proibia que os
senhores dessem aos escravos a liberdade de cantar e dançar e se reunir com grande
freqüência. Esse método de controle do conde foi ineficaz, pois ocorreram insurreições
de vulto em Salvador e no Recôncavo, em 1808 e 1809. O outro paradigma foi o do
substituto do conde da Ponte. Trata-se de Marcos de Noronha e Brito, o conde dos
Arcos, que governou a Bahia de 1810 a 1818. Sua opinião era a de que os senhores
eram excessivamente severos com seus escravos, inclusive nas punições. Para ele, os
escravos deviam ter liberdade para praticar suas danças e religiões, evitando
insurreições. Os escravos, dessa forma, perceberiam que não havia “uma ordem dos
brancos” os submetendo, abafando a manifestação de seus costumes. Tal como seu
antecessor, sua estratégia fracassou, posto que insurreições escravas ocorreram durante
seu governo em 1814, por exemplo, escravos de Itapuã e de Salvador se uniram ao
redor de um “babarolixá subversivo”.
269
Os costumes dos escravos faziam tremer membros da classe senhorial sempre
quando eles acreditavam estarem ligados a prenúncios de insurreição. E muitas vezes
batuques e demais ações dos escravos estavam, posto que muitos dos membros da
classe senhorial conheciam seus significados. Do mesmo modo, eles conheciam códigos
específicos das cerimônias chamadas candomblé, como mostram as notícias de O
Alabama. O medo do feitiço estava acompanhado por uma relação de intimidade dos
jornalistas com os endereços onde se praticava a “feitiçaria” e onde “ocorriam os
candomblés”. Eram os lugares de onde os costumes ligados às pessoas classificadas
como africanos ou seus descendentes poderiam se proliferar, contaminando a sociedade
com a “incivilidade” e a “barbárie”, tirando-a do trilho da civilização. Aquelas pessoas
eram o alvo principal das acusações de feitiçaria de O Alabama.
No candomblé, as festas também eram momentos privilegiados, segundo O
Alabama, para que a população tivesse conhecimento, por suas notícias, da quantidade
de descendentes de africanos e pessoas livres que para se encaminhavam e se
aglomeravam desde as ruas vizinhas. Isso demonstrava como essas práticas mágico-
269
Cf. Reis, Rebelião escrava no Brasil, pp. 70-93.
202
religiosas, segundo os editores do jornal, prejudicavam o processo civilizatório da
sociedade baiana. Essas mesmas características podiam ser encontradas na festa do
Divino Espírito Santo, naqueles anos, ocorrida na Corte. Semelhantemente aos pedidos
de autorização que descendentes de africanos enviavam às autoridades para montarem
suas barraquinhas nas festas, pontos de aglutinação de escravos e libertos, segundo
autoridades policiais da Corte, para O Alabama, em Salvador, os terreiros faziam a
manutenção e a disseminação de costumes ditos africanos que membros da elite política
da cidade queriam abolir.
270
Ironicamente, o jornal que foi um dos elementos centrais
nas campanhas de perseguição ao candomblé é até hoje a mais rica fonte de informações
acerca dessa religião no século XIX.
Segundo Graden, as notícias de O Alabama representavam um dilema vivido
pelos intelectuais que nele escreviam, na década de 1860: como expressar a compaixão
pelos diversos descendentes de africanos que habitavam em grande escala a cidade de
Salvador, que freqüentavam as cerimônias de candomblé, sem reconhecer que os
terreiros ofereciam-lhes ajuda e conforto espiritual? Ao tentar transcrever as palavras
rituais das cerimônias presenciadas pelos informantes e colaboradores, o jornal dava voz
aos menos favorecidos, em seus termos, que viviam em grande parte nos terreiros.
Outras notícias mostravam como os acusados de serem feiticeiros, modo pelo qual
assim eram caracterizadas as proeminentes figuras dos terreiros, desfrutavam da crença
de brancos da cidade que neles reconheciam uma forma legítima de resolver seus
problemas, atingir objetivos urgentes e específicos tanto no amor, quanto na política.
Muitas daquelas figuras eram mulheres. Assim, O Alabama mostrava que os terreiros de
Salvador eram lugares onde havia uma dupla inversão da hierarquia social:
descendentes de africanos e mulheres tinham autoridade sobre a vida de homens
brancos, membros das elites de Salvador, sendo por eles procuradas para solucionar
seus problemas.
6.4 – O cheiro da civilização e o da barbárie
No primeiro dia de dezembro de 1851, o presidente da Comissão de Higiene
Pública, dr. José Vieira de Faria Aragão Ataliba, escreveu ao presidente da Câmara de
Vereadores de Salvador informando que, a partir daquela data, “para desempenho de
270
Para essas informações acerca da festa do Divino Espírito Santo, ver Martha Abreu, O Império do
Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900, Rio de Janeiro, São Paulo, Nova
Fronteira, FAPESP, 1999, pp. 249-294.
203
deveres a cargo da Comissão Pública de Higiene”, os vereadores deveriam “fornecer
uma lista dos médicos, cirurgiões, boticários, dentistas e parteiras”, que possuíssem
diplomas registrados nos livros da Secretaria Municipal, declarando quais
“corporações” haviam-lhes conferido os mesmos.
271
A Junta de Higiene Pública era um
dos braços do Estado Imperial no combate à insalubridade. Desde a epidemia de febre
amarela, em 1850, o governo vinha buscando controlar as condições sociais de higiene e
saúde, aumentando seu grau de ação em 1855, após epidemia de cólera. Como vimos no
documento, políticos das províncias do Império articulavam meios legais para dizer
quem tinha autorização, o poder institucionalizado, para exercer profissões ligadas à
saúde da população.
O governo da província da Bahia, tal como o do Rio de Janeiro, não legislou
sobre a ação dos acusados de feitiçaria e de seus acusadores. Afamados feiticeiros eram
procurados por pessoas de todas as classes sociais para curar diversos tipos de doenças
que as afligiam como Juca Rosa, por exemplo. Nem assim essas pessoas deixaram de
serem vistas por membros da classe senhorial, e nas notícias de O Alabama, como
portadoras dos costumes mais bárbaros que habitavam o Império. Como as autoridades
públicas entendiam que esses costumes, assim como a pobreza e a criminalidade, eram
passados através do contágio, então suas atitudes foram voltadas para a perseguição e
destruição dos terrenos férteis de sua propagação. Assim, medidas eram tomadas pelos
governos Imperial e provinciais para combater todos os tipos de vícios, tais como os
jogos de azar e as práticas gicas. Esses comportamentos eram encarados por
dirigentes imperiais como cios ligados ao que de mais atrasado existia no país em
termos morais, isto é, aos lugares onde se aglomeravam os africanos e seus
descendentes. Esses lugares atraíam outras tantas pessoas, tirando-as dos caminhos da
civilização. Alguns destes lugares, para O Alabama, eram “candomblés” hoje
considerados os autênticos terreiros nagôs.
Vimos como muitas das notícias de O Alabama tratam de alguns terreiros de
candomblé e de outras situações onde imperava a ação mágico-religiosa em Salvador
como lugares de propagação da barbárie, verdadeiros empecilhos para a civilização. As
referências aos sentidos, como ao cheiro das comidas e ao ambiente dos terreiros eram
componentes freqüentes da argumentação do jornal contra a tolerância de muitas
pessoas da cidade aos rituais e festas dos candomblés. Nestes, muitos dos sacrifícios de
271
Arquivo História Municipal de Salvador, doravante AHMSSA, Câmara, Ofícios da Inspetoria de
Higiene da Bahia, Comissão de Higiene Pública.
204
animais eram realizados sem o menor controle, segundo àquele jornal, das autoridades
públicas – símbolos da desorganização da cidade e mais um perigo a sua civilização.
A partir de 1853, por exemplo, a Comissão de Higiene Pública de Salvador
inicia fiscalização mais assídua sobre o funcionamento do Matadouro Público.
Encontramos inúmeros ofícios de moradores pedindo que as carnes fossem vendidas
com mais rapidez, pois seu cheiro demonstrava o quanto chegavam estragadas à
população. O cheiro dos alimentos passava, assim, a ser classificado pelas autoridades, e
seu olfato determinava o que estava ou não estragado. Elas tinham o poder de dizer o
que estava mais perto da civilização ou da barbárie através do seu olfato. Algumas
pessoas queixavam-se do cheiro de lixo, fezes, em alguns lugares da cidade, e pediam
providência àquela Comissão. Nos ofícios respondidos por alguns de seus membros,
percebemos que na maior parte das vezes não concordância com a reclamação pelo
simples fato de o mau cheiro não ter sido sentido por ele que havia estado no local.
Afinal, não era o olfato do reclamante autorizado para pedir as medidas contra o mau
cheiro que contava, mas sim o do membro da Comissão.
Os alimentos também eram classificados através do seu cheiro, se estavam
adequados ou não para serem consumidos, pelos médicos da municipalidade. Membros
da Comissão de Higiene, em nove de março de 1857, foram examinar se “latas de chá
recentemente chegadas à Salvador, e vendidas nas ruas, tinham qualidade para
alimentação, atestada pelo seu cheiro”. No ano seguinte, em 20 de novembro, o médico
Antonio Góes Tourinho denunciou à Câmara dos Vereadores a existência de “talhas
podres e rezes de carnes fedorentas, jogadas ao mar”. O cheiro era tão forte que,
segundo o médico, havia atraído cães, mesmo com alguns de seus pedaços estando
sob a terra. Poucos anos depois, em 24 de abril de 1864, o dr. José Eduardo de
Carvalho, a pedido do subdelegado da freguesia da Sé, “examinou uma porção de
farinha de mandioca, que constava existir no armazém n. 9 do Cais”. Eram “300 sacas
de farinha” e, caso estivessem estragadas, fariam bastante falta aos comerciantes e à
numerosa parte da população. O médico “julgou-as de boa qualidade, não estando
deterioradas, e sendo próprias para a alimentação”.
272
Em boa parte do século XIX, a cidade de Salvador não era separada por áreas de
moradores “mais ou menos nobres”. Ao lado das casas de pessoas mais abastadas,
erguiam-se as de africanos e seus descendentes. Durante as investigações sobre os
272
AHMSSA, Câmara, Médicos da Municipalidade.
205
lugares onde possivelmente ainda se encontravam participantes do levante dos malês,
por exemplo, Caetano Vivente de Galião, Juiz de Paz da freguesia da Sé, escreveu ao
presidente da Câmara de Vereadores de Salvador, em 29 de janeiro de 1835, que na
Ladeira da Praça foram vistos africanos que “reuniram-se, feriram e mataram
concidadãos na noite do dia 24”. Segundo a autoridade, os “proprietários” não ficariam
nada felizes com essa notícia.
273
Somente em 1855, algumas famílias ricas buscaram, na
Vitória, um lugar mais exclusivo e, por isso, aprazível para morar, em relação à maior
parcela da população da cidade. Isso foi intensificado após o término da epidemia de
cólera, em 1856, pois a classe senhorial associava a possibilidade de novos surtos aos
ambientes habitados por membros das “classes perigosas”. Quanto mais longe
estivessem dos africanos e seus descendentes, muitos deles moradores e freqüentadores
da Freguesia da Sé, mais longe estariam das doenças mortais que acreditavam serem os
transmissores. Mas, na realidade, o sistema de esgotamento sanitário era precário,
independente da classe social do morador. As fezes eram despejadas, muitas vezes, nas
praças e nas ruas, onde também atiravam água do serviço doméstico, lixo e diversos
outros detritos. Esse ambiente insalubre, somado à crença de muitas pessoas da boa
sociedade de que comportamentos moralmente condenáveis segundo os preceitos
cristãos faziam com que Salvador fosse alvo da ira da ideologia médica e da vontade de
Deus.
274
Essa realidade foi reconhecida pelo presidente da província da Bahia, Antonio
Joaquim da Silva Gomes, no subtítulo “Aceio e Limpeza da cidade”, do seu Relatório
de 1864.
275
Para mudar esse cenário, influentes moradores dessas novas áreas da cidade
pediam a sua “arborização e o investimento no calçamento das ruas”, tornando, assim, a
cidade “mais aprazível”. Era preciso “civilizar” Salvador.
276
Durante toda a segunda
metade do século XIX, membros da elite política da cidade travaram lutas para
conseguir melhorar as condições de higiene urbana. Não são poucas as fontes, ofícios e
correspondências, que mostram o diálogo intenso entre médicos e vereadores cobrando
uns dos outros soluções eficazes sobre o recolhimento do lixo, e outros símbolos da
limpeza das aparências externas da sujeira.
273
AHMSSA, Ofícios da Câmara – escravidão.
274
Para informações acerca da epidemia de cólera em Salvador, em 1855, e o ambiente social da
propagação da ideologia política da higiene médico-sanitária nessa cidade, ver Ornildo Reis David, O
inimigo invisível: epidemia na Bahia no século XIX, Salvador, EdUFBA, Sarah Letras, 1996.
275
Cf. Relatório do Presidente da Província da Bahia (1864) http://www.crl.edu/content/provopen.htm
(acesso em 15/janeiro/2008).
276
AHMSSA, Correspondência da Câmara com a Assembléia Provincial (1851-1880), fl. 52.
206
Chegou às mãos dos vereadores, em quatro de junho de 1866, um relatório da
Inspetoria de Higiene da Bahia e da Comissão de Higiene Pública detalhando os lugares
da cidade onde o lixo e o mau-cheiro imperavam. A Calçada do Bonfim, por exemplo,
“por ser um local mais baixo e arenoso”, obstruía as valas onde o lixo era despejado dos
lugares mais altos da cidade. Ali, também, “formavam-se grandes depósitos de águas
estagnadas, de onde se originam febres intermitentes”. Os médicos, autores do
documento, pediam que os vereadores tomassem quatro medidas para resolver essa
situação. A primeira era fazer com que “um tal Souza Carvalho”, proprietário de
algumas casas naquela região, desobstruísse as valas das mesmas; a segunda era que
“mandassem limpar todas as valas, instalando canos que as comunicassem” entre si; a
terceira era colocar um “cano na direção do mar, de cima para baixo do terreno”. Por
último, queriam que os vereadores pedissem “à Companhia da Estrada de Ferro que
aumentasse o esgoto do cano que fez”.
277
Os ambientes da cidade eram, assim, cada vez mais classificados através do seu
cheiro, e o de alguns dos “candomblés” também, através do de suas comidas, das suas
festas, dos seus participantes. Era o “cheiro da barbárie”, como noticiava O Alabama,
com características próprias, inoportuno ao meio físico que parte da boa sociedade
imperial queria civilizar. O cheiro do erotismo, daquilo que a boa sociedade não
conseguia controlar, dos impulsos sexuais dos freqüentadores dos terreiros, das clientes
de Juca Rosa, no Rio de Janeiro, e de Pai Gavião, nas fazendas de Itu e cercanias. O
olfato mostrava o caminho dos bitos de um tipo de vida nociva ao equilíbrio social e
político, e a necessidade de as autoridades públicas controlarem o ar respirado na cidade
para o bem-estar da boa sociedade.
278
6.5 – As ruas de Salvador: a cidade como palco da ação político-religiosa
Notícias diversas denunciavam que pessoas livres freqüentavam tanto os rituais
católicos, “a verdadeira religião” para o governo e a boa sociedade imperial, quantos os
dos terreiros. A vida religiosa de Salvador era mesmo múltipla em perfis sociais, como
277
AHMSSA, Câmara, Ofícios da Inspetoria de Higiene da Bahia, Comissão de Higiene Pública.
278
Sobre a construção social do olfato, e a vida social através da classificação dos sentidos, ver Alain
Corbain, Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos dezoito e dezenove, São Paulo,
Companhia das Letras, 1987 e os artigos de Actes de la recherche en sciences sociales, Année 1981, v.
40, n. 1, principalmente o de Pierre Bourdieu & Yvette Delsaut, “Pour une sociologie de la perception,”
pp. 3-9. capítulos e passagens específicas e muito sugestivas em termos metodológicos sobre a vida
social através do olfato em Luicen Febvre, Le problème de l´incroyance au XVIe. Siècle, Paris, Albin
Michel, 1947 e Robert Mandrou, Introducion à La France Moderne: essai de psychologie historique
(1500-1640), Paris, Albin Michel, 1998.
207
mostram outras fontes que não somente as notícias de O Alabama. Era comum
membros da elite letrada escreverem suas opiniões acerca das práticas religiosas na
cidade, noutros de seus jornais. E isso não ocorria somente com relação aos
“candomblés”. Pessoas ligadas oficialmente às práticas católicas exerciam vigilância
sobre as mesmas, procurando regulá-las e validá-las segundo critérios morais.
Entre 1849 e 1850, o jornal Noticiador Catholico, em números seguidos,
publicou coluna intitulada “Abusos que o progresso atual condena”, assinada por seu
então jovem redator, o padre Mariano de Santa Rosa de Lima, filho de importante
membro da elite política da Bahia, o barão de Itaparica. A coluna inventariava e
condenava atitudes públicas de ligadas ao catolicismo, em Salvador. Dizia o autor:
“estamos numa cidade em que não rua quase que não tenha a sua companhia de
cantadores de terço”. Os presépios de Natal eram condenados pelos padres, que estavam
incumbidos pela Igreja de tolher as iniciativas dos leigos nas camadas mais pobres da
população, controlando rigidamente as ações grupais no âmbito dos cultos católicos.
Clérigo algum poderia apoiar atitudes do baixo clero, em Salvador. As ruas da cidade
eram o palco da presença visível de irmãos pedintes e beatas, figuras desprezadas e
condenadas pelo alto clero. Em muitas cartas, deles os clérigos falam como pessoas
caricaturescas, importunas ao abordarem transeuntes, e piegas nos argumentos desses
apelos.
279
A cidade de Salvador convivia com mendigos e pedintes, fato que o próprio O
Alabama denunciava. Em 31 de março de 1864, por exemplo, o jornal pedia que uma
crioula, moradora na Soledade, fosse recolhida ao Asilo de Mendigos.
280
Para parte da
boa sociedade imperial as epidemias de que assolaram a cidade de Salvador, em 1855,
fizeram o favor de eliminar grande quantidade de pessoas pobres, alvos certeiros das
doenças.
Os olhos de parte da elite letrada estavam voltados para os comportamentos do
povo das ruas, composto em larga medida por trabalhadores e trabalhadoras escravos,
africanos livres e seus descendentes. A vigilância era exercida seguida do respaldo
jurídico do poder público, ao contrário daquela exercida por O Alabama, uma vez que a
prática do candomblé ou as acusações de feitiçaria não eram, como vimos, inscritas
como crimes no Código Criminal do Império.
279
Cândido da Costa e Silva, Os segadores e a messe: o clero oitocentista na Bahia, Salvador, Secretaria
da Cultura e Turismo do Estado da Bahia, EdUFBA, 2000, pp. 104-106.
280
Para informações acerca da geografia da pobreza na Bahia do século XIX, ver Walter Fraga Filho,
Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX, São Paulo, Salvador, HUCITEC, EDUFBA, 1996.
208
As pessoas eram acusadas, na cidade de Salvador, de usar poderes mágicos para
fazer o mal a outras já alguns anos. No centro do alvo dessas acusações feitas pela
classe senhorial e também pelos próprios escravos e homens livres estavam escravos,
principalmente africanos, e africanos livres, como vimos nos capítulos anteriores. Para
entendermos a abundância das notícias de O Alabama sobre alguns dos terreiros de
candomblé da cidade, acusando-os de praticar o mal mediante o uso de poderes
mágicos, é preciso saber mais sobre o cenário de articulações dessa crença em Salvador,
nos anos anteriores à publicação desse jornal. São informações preciosas sobre a relação
tensa estabelecida entre os acusadores e os acusados, em momentos de crise política.
Antes de tudo, não devemos perder de vista que as ruas da cidade de Salvador
foram palco da mais marcante insurreição de escravos das Américas, conhecida como
Revolta dos Malês. Na noite de 24 para 25 de janeiro de 1835, um grupo de africanos
escravos e libertos ocupou as ruas da cidade, enfrentando por mais de três horas
soldados e civis armados. Os malês, termo pelo qual eram conhecidos na Bahia da
época os africanos muçulmanos, eram os cabeças do movimento.
281
A década de 1830 trazia, também, as tensões provocadas pela grave crise
econômica que a província passava. A retração na agricultura do açúcar correspondeu à
crise na produção de alimentos, produção cuja fragilidade era característica central em
uma economia voltada para a exportação de uma única lavoura. A crise se deveu em
grande medida por quatro anos seguidos de seca, de 1830 a 1833. Isso levou ao governo
da província a pedir auxílio à Corte, que enviou farinha de mandioca alimento básico
da população. Nesse quadro, a elite senhorial sentia seus recursos minguarem com a
carestia de alimentos, bem como a energia para vigiar de perto seus escravos. Para
agravar a situação, ocorreu derrame de moedas falsas na província como um todo,
levando os comerciantes a um clima de insegurança ainda maior. A Sabinada, ocorrida
em 1837 com a participação de pessoas de várias classes sociais de Salvador, bebeu, tal
como os escravos islamizados e demais africanos que aderiram ao levante de 1835,
desse caldo de agitação social.
282
Após o levante dos malês, foram tantos os africanos
presos e condenados que faltavam instrumentos físicos para sua punição. Em 13 de abril
de 1836, o carcereiro Antonio Pereira de Almeida escreveu ao presidente da Câmara
281
Reis, Rebelião escrava no Brasil.
282
Ver Paulo Cesar Souza, A Sabinada: a revolta separatista da Bahia, 1837, São Paulo, Brasiliense,
1987, pp. 129-157. Sobre a economia da farinha de mandioca na Bahia e o consumo deste produto no
mercado local de Salvador, ver Bert J. Barickman, Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e
escravidão no Recôncavo, 1780-1860, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004, pp. 116-127.
209
Municipal de Salvador solicitando “correias e cordas” para aplicar as “sentenças de
açoites aos africanos assim condenados”.
283
Salvador voltou a ser palco de outra manifestação religiosa e política com a
participação de parte da população escravizada, pouco mais de um ano após a Revolta
dos Malês. Em 25 de outubro de 1836, manifestação de protesto convocada pelas
irmandades e ordens terceiras da cidade, organizações católicas que tinham, entre outras
funções, o encargo de cuidar dos funerais de seus membros, deu início ao episódio que
ficou conhecido como Cemiterada. O movimento era contra a lei que entraria em vigor
no dia 26, proibindo o tradicional costume de enterros nas igrejas. Além disso, a lei
concedia a uma companhia privada o monopólio dos enterros em Salvador por trinta
anos.
284
Esse foi o último dos grandes protestos violentos de rua na cidade de Salvador,
no século XIX. Outras formas de protesto político ocorreriam nos anos seguintes, mas
respeitando o aumento do cerco policial sobre os africanos e seus descendentes fechado
desde a insurreição dos malês e a Cemiterada. Em 23 de junho de 1838, o jornal baiano
Correio Mercantil publicava o “Relatório da Repartição dos Negócios da Justiça,
Apresentado à Assembléia Geral Legislativa na Sessão Ordinária de 1838, pelo
respectivo Ministro e Secretário de Estado Bernardo Pereira de Vasconcellos” logo na
primeira página. Esse documento mostrava à elite baiana como o Estado Imperial estava
agindo para “conter as insurreições de escravos e as rebeliões de livres”, que atingiam
em cheio a tão almejada estabilidade política do Império do Brasil. Os itens publicados
naquela página foram “Polícia” e “Administração da Justiça”. O primeiro versava sobre
a reorganização do aparato repressivo do Estado para “evitar os crimes e punir
exemplarmente os criminosos”. O segundo falava da “necessidade de empregar os
artigos do Código Criminal, conjunto de leis que para isso servia e que havia sido com
muito esforço político construído com rapidez, diante dos costumes peculiares do povo
da nova nação”.
285
De todo o modo, o Estado Imperial passava a se esforçar para
controlar cada vez mais as ações de todos os grupos que contra a “unidade territorial e a
ordem pública” se voltassem.
Havia, como as notícias de O Alabama apontavam, um paradoxo para a classe
senhorial em Salvador. Ela queria civilizar a cidade, mas, sem o trabalho dos africanos,
283
AHMSSA, Ofícios da Câmara – escravidão.
284
Para uma descrição da Cemiterada, ver João José Reis, A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta
popular no Brasil do século XIX, São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
285
CEDIG-UFBA.
210
“bárbaros e incivilizados”, nas ruas, a cidade não funcionava. E muitos deles sabiam
disso. Eles eram responsáveis pela circulação de pessoas e coisas: pacotes pequenos e
grandes, envelopes de cartas, caixas de açúcar, tinas de água ou fezes, e diversas
cadeiras de arruar. Segundo estimativas, os negros da cidade chegavam a 40% do total
da população e, somados aos algo de 30% a 40% de escravos, fora os libertos e os
africanos livres, formavam ampla maioria da população soteropolitana, no final dos
anos 1850 e início dos 1860.
286
Quaisquer movimentos de insatisfação envolvendo essa
parte da sociedade deixavam as autoridades públicas de Salvador de olhos bem abertos.
Assim, a cidade conviveu com formas não menos contundentes de luta política
de africanos e seus descendentes. No primeiro dia de junho de 1857, uma segunda-feira,
as ruas de Salvador amanheceram sem o seu costumeiro movimento. Os negros
cruzaram os braços, recusando-se a trabalhar em protesto contra uma postura municipal
que obrigava os ganhadores”
287
a trabalhar somente com a compra de uma licença.
288
Mais uma vez, as autoridades públicas tentavam controlar a circulação dos escravos nas
ruas de Salvador, e a ação organizada fora liderada por escravos africanos, reconhecidos
como tradicionais líderes da escravaria daquela cidade. A greve durou três dias, e, em
meio aos acalorados debates na Câmara Municipal de Salvador, vereadores chamavam
os grevistas de “novos revolucionários” de uma “província agora governada por
africanos”.
289
Depois da revolta dos malês, a cidade de Salvador assistiu ao aumento do
aparato policial sobre os escravos e demais descendentes de africanos que trabalhavam
nas ruas da cidade. As atividades remuneradas que estas pessoas poderiam exercer
davam-lhes a possibilidade de comprar sua alforria. Isso reforça o fato de muitos dos
líderes dos terreiros serem libertos e conhecerem, pelas características de sua forma de
viver, pessoas de várias classes sociais, antes mesmo de exercerem aquele papel.
286
Esses dados foram levantados por Kátia M. de Q. Mattoso, Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado
no século XIX, São Paulo, HUCITEC, 1978, p. 138 e Ana Amélia Vieira Nascimento, Dez freguesias de
Salvador: aspectos sociais e urbanos do século XIX, Salvador, EDUFBA, 2007, p. 65.
287
Como eram conhecidos os trabalhadores das ruas de Salvador, em larga medida negros, escravos ou
não.
288
Sobre todas as informações acerca da greve de 1857, ver João José Reis, “A greve negra de 1857 na
Bahia”, in Revista USP, n. 18, jun. /jul. /ago., 1993, pp. 7-29. Sobre os africanos livres em Salvador, ver
Afonso Bandeira Florence, “Nem escravos, nem libertos: os “africanos livres” na Bahia”, in Cadernos do
CEAS, Salvador, n. 121, 1989, pp. 58-69.
289
Cf. Reis, “A greve negra de 1857 na Bahia”, p. 26.
211
6.6 – Os “candomblés” como território do poder feminino
Uma das características-chave apontadas pelas notícias de O Alabama sobre o
perfil das pessoas que detinham o poder central na hierarquia de alguns dos terreiros de
candomblé de Salvador era o fato de serem mulheres libertas. A cidade vinha alguns
anos convivendo com o poder de escravas e libertas em pontos centrais da vida social,
em situações nas quais a classe senhorial delas dependia para viver – como nas questões
relativas ao comércio de produtos oriundos do Recôncavo, aportados na Baía de São
Salvador através dos saveiristas. Veremos mais informações importantes para
compreendermos as notícias daquele jornal que acusava alguns dos terreiros de
candomblé de produzir infortúnios à sociedade soteropolitana. Aquelas mulheres
mencionadas eram alvo dessas acusações, ao serem lideranças dos terreiros acusados
pelo jornal, porque também representavam uma dupla afronta aos valores políticos da
classe senhorial: elas invertiam a dominação masculina pretensamente civilizada na
cidade, posto que muitos dos membros da boa sociedade imperial freqüentavam esses
terreiros, e também mostravam como pessoas não-brancas poderiam exercer poder na
vida de pessoas consideradas brancas.
As escravas ganhadeiras eram aquelas que viviam no sistema de ganho de rua,
isto é, elas eram obrigadas a dar ao seu senhor uma quantia previamente estabelecida do
dinheiro que conseguiam, nos diversos trabalhos. Essa soma era previamente acordada
com o senhor, de maneira informal, posto que não houvesse lei regulamentando esse
tipo de relação. Em grande parte dos casos encontrados, os senhores respeitavam os
termos do acordo. As ganhadeiras conseguiam acumular dinheiro para comprar suas
cartas de alforria, uma vez que estavam plenamente inseridas na economia monetária de
Salvador. Muitas delas conseguiam autorização para dormir algumas noites fora da casa
de seu senhor, chamado, na época, de direito de viver sobre si. Quando eram escravas,
não era nada fácil conseguir cumprir o acordo, sendo necessário ampliar ao máximo as
redes de alianças com homens que possuíam boas somas de dinheiro para pagarem
pelos seus serviços. Ao contrário, quando eram libertas ficavam com todo o dinheiro
conseguido com seu trabalho.
De toda a sorte, escravas ou libertas, as ganhadeiras exerceram controle do
comércio varejista de produtos perecíveis, em Salvador: monopolizavam, desde o final
do século XVIII, a distribuição de carnes, peixes, verduras e até mesmo produtos
furtados. Os comerciantes sabiam que ao venderem seus produtos a essas mulheres,
conseguiriam lucros mais rápido uma vez que elas vendiam esses alimentos diretamente
212
para pessoas de várias classes sociais. As ganhadeiras andavam livremente pela cidade,
equilibrando gamelas e cestas na cabeça, parando parte do dia nas praças, verdadeiros
mercados públicos, e feiras livres. Algumas delas levavam seus filhos amarrados às
costas por um extenso pano. Nas suas cabanas, ou quitandas, além dos panos da Costa e
outras miudezas, tinham sempre ao lado fogões nos quais assavam suas guloseimas aos
não menos gulosos clientes, como mingaus.
Uma vez sendo africana, a ganhadeira tinha que pagar “licenças para poderem
mercadejar”. As autoridades públicas de Salvador, depois do levante dos malês, queriam
controlar todos os passos dos africanos nas ruas da cidade. Segundo a lei que cobrava a
taxa pela licença de comerciar nas ruas, as crioulas, escravas nascidas no Brasil,
estavam isentas de qualquer pagamento. Além da taxa, era necessário que a mulher
escrava ou liberta pedisse licença à Câmara Municipal e pagasse uma taxa de matrícula.
Sem isso, poderia ser presa. As autoridades encontravam-se em um dilema: coibir a
atividade comercial das ganhadeiras africanas, forçando-as a voltarem para a África,
sem que essa atitude inviabilizasse a vida comercial da cidade de Salvador. Esse mesmo
dilema, aliás, ocorria noutras cidades escravistas do Império, como Rio de Janeiro e
Recife.
290
Provavelmente as líderes religiosas dos “candomblés”, por várias vezes
mencionadas em O Alabama, eram libertas que através das atividades de ganho
conseguiram ascensão social. Não eram poucos os senhores que, quando endividados,
vendiam cartas de alforria a suas escravas, muitas das vezes ainda com poucos anos de
vida.
291
Os estudos sobre alforrias em Salvador mostram como os escravos urbanos
tinham mais facilidades para obtê-las, uma vez que lidavam com atividades monetárias
diversas. Estavam, também, mais próximos da justiça e por isso tinham maior acesso
aos meios e às técnicas jurídicas para fazer os acordos pela alforria serem cumpridos
290
Todas essas informações sobre as ganhadeiras em Salvador, no século XIX, estão em Cecília C.
Moreira Soares, Mulher negra na Bahia no século XIX, Salvador, EdUNEB, 2007. Algumas informações
foram cotejadas de Luiz R. B. Mott, Subsídios à história do pequeno comércio no Brasil”, in Revista de
História, v. 53, n. 105, 1976; Maria Odila Leite da Silva Dias, Quotidiano e poder em São Paulo no
século XIX, São Paulo, Brasiliense, 1984; Maria de Lúcia B. Mott, Submissão e resistência: a mulher
negra na luta contra a escravidão, São Paulo, Contexto, 1988; Queiroz, “Viajantes, século XIX” e Sonia
Maria Giacomini, Mulher e escrava: uma introdução ao estudo da mulher negra no Brasil, Petrópolis,
vozes, 1988. Para informações gerais acerca da diversidade de relações e estatus econômicos em
Salvador, no Império, ver Kátia M. de Queirós Mattoso, “A opulência na província da Bahia”, in
Fernando A. Novais (dir. col.) & Luiz Felipe de Alencastro (org. vol.), História da vida privada no
Brasil. V. 2 Império: a corte e a modernidade nacional, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pp.
143-179.
291
Cf. Isabel Cristina Ferreira dos Reis, Histórias de vida familiar e afetiva de escravos na Bahia do
século XIX, Salvador, Centro de Estudos Baianos, 2001.
213
diante de ameaças senhoriais.
292
Em Salvador, no culo XIX, predominou as cartas de
alforria concedidas a mulheres em relação aos homens, mesmo sendo elas a minoria da
população escrava da cidade.
293
6.7 – Contrariando O Alabama... Candomblé como ação (dos jeje) no mundo
A formação do Candomblé na Bahia teve como pilar central a nação jeje. É esta
afirmação de Parés, fruto de pesquisa de sete anos, envolvendo resenhas da literatura
especializada e atual sobre o tráfico de escravos para a Bahia de Todos os Santos, as
disputas internacionais pelos domínios desta atividade econômica, as relações internas
de povos africanos com comerciantes europeus por aquela atividade comercial, pesquisa
em fontes primárias de diversos arquivos, além de trabalho etnográfico em terreiros de
Salvador e de Cachoeira, cidade do Recôncavo da Bahia.
294
Mas, por que os jeje, e não
mais os nagô, entram no centro da discussão sobre a construção do candomblé como
instituição religiosa na Bahia?
A resposta a esta pergunta pode estar, em parte, no trabalho de Dantas. A autora
argumentou que a formação dos terreiros de candomblé não obedeceu a uma extensão
da África no Brasil, através dos conflitos entre senhores dominantes e escravos
dominados. A formação dos terreiros ocorreu, para Dantas, segundo complexas relações
de aliança e conflito entre diversos tipos de senhores, escravos, libertos, africanos,
africanos livres, políticos, médicos, policiais, homens de negócio, pais e mães-de-santo,
líderes de outras religiões, intelectuais, escritores e, entre eles, antropólogos.
295
Ou seja,
para que se possam estabelecer análises empíricas acerca da história da construção do
candomblé, para a autora, deve-se levar em consideração a complexidade das formas de
comportamento da sociedade brasileira, inclusive no longo período da escravidão, sem
292
Ver Ana Lourdes Costa, Ekabo! Trabalho escravo, e condições de moradia e reordenamento urbano
em Salvador no século XIX, Salvador, Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFBA, 1988,
dissertação de mestrado. Mesmo que voltada para o Rio de Janeiro do século XIX, muitas informações
acerca a luta de escravas pela sua liberdade jurídica são analisadas em Keila Grinberg, Liberata, a lei da
ambigüidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX, Rio de
Janeiro, Relume-Dumará, 1994. Sobre as possibilidades e as formas de mobilidade social de africanas e
suas descendentes, dentro da escravidão urbana e rural, ver, respectivamente, Sandra Lauderdale Graham,
Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910, São Paulo, Companhia das
Letras, 1992 e Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira, São Paulo,
Companhia das Letras, 2005.
293
Kátia Queirós Mattoso, A propósito das cartas de alforria, Bahia (1779-1850)”, in Anais de História,
n. 4, 1972 e “Capítulo VII A carta de alforria”, in Ser escravo no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1982,
pp. 176-198.
294
Parés, A formação do Candomblé.
295
Dantas, Vovó nagô e papai branco.
214
engessá-la em categorias raciais que já forneçam, de antemão, todo o roteiro da
pesquisa, inclusive sua conclusão.
Nessa linha, o argumento de Parés não está centrado no desmerecimento dos
nagôs, e dos termos iorubá, na construção do candomblé da Bahia como instituição
religiosa. Os alicerces do seu argumento são a demonstração empírica da presença dos
chamados jeje e seus descendentes, principalmente até a década de 1860, na formação
ritual e lingüística do candomblé na Bahia. Esta demonstração está pautada em duas
linhas-mestras: a movimentação do tráfico de escravos africanos da Costa da Mina para
a Bahia de Todos os Santos e as fontes documentais produzidas pelo envolvimento de
policiais e membros da elite política com rituais de candomblé, no século XIX.
No início de sua argumentação, o autor volta seus olhos para a origem dos
chamados escravos jeje da Bahia. Os grupos étnicos africanos classificados como jeje
pertenciam à área denominada por Parés como “área dos gbe falantes”, região
setentrional do atual Togo, da República do Benin e o sudoeste da Nigéria. Foi entre os
grupos que habitavam esta região que teria surgido o termo “vodum”, utilizado para
identificar as divindades ou forças invisíveis do mundo espiritual. Esta pequena palavra
designa, para o autor, uma crença que aparece em vários documentos sobre a América
portuguesa, o Império do Brasil e a Primeira República, ou seja, a de que pessoas
acreditam no poder de “espíritos” ou “entidades espirituais” para intervir em seu
mundo, na vida cotidiana.
Este dado é fundamental para que se possa compreender a construção de uma
identidade coletiva entre os jeje, desembarcados maciçamente na Bahia de Todos os
Santos na primeira metade do século XVIII. Este evento ocorreu graças aos fortes laços
estabelecidos entre os portos da Bahia e os da África gbe-falante pelos traficantes de
escravos baianos, que em muito se aproveitaram da produção de fumo do Recôncavo
para comprar escravos naquela área. Alguns libertos retornados trataram de intermediar
as relações econômicas entre os traficantes e as elites políticas locais, em cidades como
Uidá, dando continuidade ao comércio de escravos, mesmo na clandestinidade, até por
volta de 1850 quando o governo imperial brasileiro se empenhou na aplicação da Lei
Eusébio de Queiroz, que proibia o tráfico internacional de escravos para o Brasil,
definitivamente.
Se, de um lado, temos o impacto demográfico de uma leva de africanos
escravizados que compartilhavam a crença no “vodum”, em Salvador, de outro, temos a
ação policial se imiscuindo na prática religiosa, produzindo uma série de relatos ricos
215
em dados sobre a composição social dos calundus e dos candomblés, os objetos rituais
utilizados bem como alguns dos termos religiosos, mesmo sem que o Estado Imperial
legislasse sobre as atitudes dos acusados de serem feiticeiros e seus acusadores. A
postura n. 59, de 27 de fevereiro de 1857, proibia os batuques, as danças e as reuniões
de escravos, em qualquer lugar e hora, sob pena de oito dias de prisão.
296
Mas os livres
e os libertos não tinham o dever de respeitar esta postura. Pagando uma licença à
polícia, podiam organizar livremente as suas festas, muitas delas ligadas ao candomblé.
Quando ocorriam batidas policiais nos calundus ou nos candomblés, fossem para
encontrar escravos fugidos, ou para reprimir batuques e festas não-autorizadas, ou
simplesmente para perseguir as práticas religiosas das “classes perigosas”, autos de
apreensões e processos criminais eram produzidos. Tais fontes mostram que os espaços
das práticas religiosas dos calundus, e depois dos candomblés, eram lugares de
diferenciação e porque não de constituição das diversas nações africanas, e de
convivência entre pessoas de várias posições sociais. As nações foram se definindo na
relação entre os escravos crioulos e africanos, africanos livres, libertos e livres em torno
das formas de ocupação do espaço urbano, e dos pontos de encontro onde eram
estabelecidos os contatos. Foram também se configurando a partir das acusações de
feitiçaria que partiam da elite, como do jornal O Alabama, mas também dos próprios
envolvidos nesses rituais e crenças.
Outra característica foi fundamental para o dimensionamento geográfico dos
agentes sociais não-senhoriais em torno da religiosidade: a fundação e a manutenção de
espaços estáveis para a adoração de “ídolos” ou “figuras”, que seria típico das tradições
da Costa da Mina, onde habitavam muitos dos escravos jeje. No início, ainda na
colônia, tais espaços eram domésticos, muitas vezes para a adoração de uma divindade,
passando, aos poucos, aos espaços extradomésticos, com níveis de hierarquia mais
complexos dentro de um calendário litúrgico melhor definido.
Como, então, as crenças mágicas foram institucionalizadas e ganhando um corpo
explicativo racionalizado no candomblé da Bahia? Esta é uma questão que perpassa
todo o estudo de Parés e que serve de elo entre a construção da parte historiográfica de
seu trabalho e daquela baseada em entrevistas e etnografias produzidas em terreiros de
candomblé na Bahia.
296
Cf. AHMSSA, Livro de Posturas – 1857.
216
O sucesso da institucionalização do candomblé está ligado, segundo Parés, a
outra característica: a relação entre ganhar dinheiro e obter êxito nesta empreitada
através do recurso às forças mágicas. Afinal, em situações cotidianas de maior
dramaticidade emocional como era a vida de escravos, libertos e africanos livres, em
todas as cidades escravistas do Atlântico – o recurso às crenças mágicas era uma
garantia a mais para a obtenção do fim desejado.
Ao estudar a formação dos terreiros como a de congregações religiosas, Parés
demonstra que tal fenômeno estava relacionado ao tempo e ao dinheiro disponíveis,
mais ligados ao estilo de vida dos libertos e das escravas, que ganhavam a vida em
atividades comerciais, em grande parte das cidades escravas das Américas. Os
candomblés serviam, como os quilombos e as casas de zungu, estas últimas, na Corte,
como lugares de pouso para escravos fugidos dos seus senhores, que, pela natureza das
atividades características de sua condição social, não podiam manter uma relação ritual
constante com o candomblé.
297
Com um grau de mobilidade social maior, os líderes
religiosos dos calundus ou dos candomblés, desde o período colonial, conseguiam
sedimentar alianças com membros de outras classes sociais, ampliando o poder político
através da crença nos “voduns” para manter as casas de culto em plena atividade. Neste
sentido, Parés argumenta que as figuras conhecidas como ogãs eram recrutadas entre
pessoas influentes para interceder a favor dos candomblés, impedindo a prisão de seus
líderes e a interrupção de suas atividades rituais. A argumentação de Parés, então,
entrelaça relações políticas, formas de uso do dinheiro na sociedade escravista da Bahia,
e a visão de mundo dos agentes sociais baseada na crença na eficácia dos poderes
mágicos mudarem situações de suas vidas. Não vimos poucas informações em O
Alabama, no capítulo anterior, que exemplificam cada uma dessas características dos
“candomblés” em Salvador.
Este clima social teria sido favorável à predominância da tradição jeje no
candomblé dos anos 1860, o que poderia ser confirmado na análise minuciosa de Parés
das notícias de O Alabama, que alude a um nível complexo e bem estruturado de
297
Para os quilombos como lugares de recepção de escravos fugidos, ver Flávio dos Santos Gomes,
História de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro século XIX, Rio de
Janeiro, Arquivo Nacional, 1995 (2ª. Edição revista e ampliada, São Paulo, Companhia das Letras, 2006)
e A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil séculos XVII-
XIX, São Paulo, Editora UNESP, Editora Polis, 2005. Para as casas de zungu na Corte, ver Carlos
Eugênio Líbano Soares, Zungu: rumor de muitas vozes, Rio de Janeiro, Arquivo público do Estado do Rio
de Janeiro, 1998. Vale notar que ambos autores montam seus argumentos levando em consideração os
quilombos e as casas de zungu como espaços dinâmicos de construção de alianças e de resolução de
conflitos.
217
institucionalização religiosa em Salvador. Na cidade, predominavam os “indivíduos”,
praticantes de candomblé, mas que não lideravam hierarquia complexa alguma,
desenvolvendo práticas de “exorcismo” e de “cura”, cultuando uma única entidade.
nas roças ao redor da cidade, para onde escravos fugidos seguiam com maior freqüência
e onde se localizavam quilombos diversos, estariam os candomblés com uma hierarquia
mais complexa e o culto de mais de uma divindade espiritual. Trata-se, segundo Parés,
mais uma vez, de um traço da matriz de culto religioso jeje, e não nagô.
Independentemente da matriz, notícias de O Alabama falam que, mesmo para os
terreiros um pouco mais distantes da cidade de Salvador, pessoas de várias posições
sociais freqüentemente se dirigiam a eles.
Conforme Parés há outros indícios desta marcante e fundamental presença. Ele
encontrou, em O Alabama, um maior número de termos jeje do que nagô, na década de
1860 e que, por mais imprecisões jornalísticas que possam ter sofrido, indicam que
havia uma rede de relações ampla entre congregações religiosas de fortes traços jeje.
Estas redes consolidavam formas de solidariedade em momentos mais críticos da
repressão promovida por membros da boa sociedade imperial. Apoiando-se na
historiografia recente sobre as irmandades religiosas do período colonial, Parés
argumenta que as intensas ligações entre os grupos religiosos no século XIX tinham
relação com um comportamento de longa duração, remontando ao incentivo senhorial
para a formação daquelas irmandades, as quais contavam com a participação ativa de
escravos, africanos livres e libertos.
Mas, e após os anos 1860, como ficou a influência jeje na institucionalização do
candomblé na Bahia?
6.8 – À guisa de conclusão
Nos anos 1871-1891, houve o que ficou conhecido entre os intelectuais que
estudaram as “religiões afro” na Bahia e o “povo-de-santo” como “processo de
nagoização” do candomblé da Bahia, quando a identidade nagô-iorubá sobrepujou as
referências às características jeje. Neste período, a “africanidade” foi construída como
uma forma de resistência das antigas casas de culto, mesmo crioulas no século XIX,
para se manterem à frente das casas fundadas mais recentemente. A idéia de que as
“coisas da África” eram mais fortes do que as “crioulas”, nos efeitos dos feitiços,
perpassava fortemente vários grupos sociais. Assim, aquilo que as pessoas não diziam
ser “africano”, passou a ser dito africano. Também neste período muitos terreiros
218
baianos se comunicavam com a Costa da Mina, legitimando a sua hierarquia frente aos
outros terreiros que não tinham estes vínculos diretamente estabelecidos.
298
Nina Rodrigues foi o maior divulgador da idéia de que, apesar de todas as
pessoas poderem aderir ao candomblé iorubano, os negros eram aqueles que tinham um
transe verdadeiro. O transe teria variações de intensidade de acordo com a maior ou
menor aproximação da pessoa aos costumes africanos. O candomblé, assim, para Nina
Rodrigues, não era somente africano, mas sim africano/negro e baiano: primeiro, por
suas origens, depois pelo fato de suas lideranças serem negros que recebem, no transe,
os orixás, e, por último, porque sua cosmologia perpassava pessoas de todas as posições
sociais na Bahia. Esses argumentos são paradoxais, posto que mostram a universalidade
da crença no feitiço, e a especificidade da relação das pessoas com os orixás, através da
maior ou menor capacidade racial para entrar em transe. Essa foi a perspectiva que
predominou nos discursos de diversos dos seguidores de Nina Rodrigues, como também
nos de adeptos do candomblé.
299
Entretanto, vimos como antes mesmo de Nina Rodrigues formular seus
argumentos e publicá-los, eles aparecem em diversos documentos produzidos pela boa
sociedade imperial sobre acusações de feitiçaria, no Sudeste e em Salvador. Isso revela
que o paradoxo visto acima já ocorria no culo XIX. Por um lado, tratava-se de
costumes e crenças ligadas aos africanos e seus descendentes, os acusados de feitiçaria,
os difusores da “incivilidade” e da “barbárie”. Por outro, a crença era compartilhada por
pessoas de todas as posições sociais, freqüentando os lugares onde ocorriam consultas,
festas e rituais ligados às “práticas de feitiçaria” e aos “candomblés”.
Demonstramos tudo isso ao longo dessa tese, através de diferentes tipos de
fontes documentais. Demonstramos, também, o fascínio exercido pelos “objetos de
feitiçaria” nas pessoas da boa sociedade imperial, fossem elas delegados, subdelegados,
magistrados, romancistas e senhores de escravos. Essas pessoas reconheciam certos
objetos como elementos centrais para a localização da existência de um feiticeiro nas
redondezas, e para acreditar que os infortúnios foram causados pela sua ação. O acusado
de feitiçaria teria manipulado os objetos de uma maneira que somente ele, africano ou
seu descendente, poderia fazê-lo com eficácia. A crença nos feitos dos acusados de
298
Para uma discussão detalhada das ditas “nações africanas” em Salvador e no seu entorno, ver Maria
Inês Côrtes de Oliveira, “Viver e morrer no meio dos seus: nações e comunidades africanas na Bahia do
século XIX”, in Revista USP, São Paulo, n. 28, dezembro/fevereiro, 1995/1996, pp. 175-193 e “Quem
eram os “negros da Guiné?” A origem dos africanos na Bahia”, in Afro-Ásia, n. 19-20, 1997, pp. 37-73.
299
Sobre detalhes desse debate, ver Robson Rogério Cruz, “Branco não tem santo”: representações de
raça, cor e etnicidade no candomblé, Rio de Janeiro, PPGSA-IFCS/UFRJ, 2008, Tese de Doutorado.
219
feitiçaria pela boa sociedade imperial certamente impulsionou a fama dos “candomblés”
de Salvador, narrados em O Alabama, que vieram a ser dos mais famosos até os dias
atuais, depois de se tornarem autênticos terreiros nagôs.
Mas o século XX foi palco de uma proliferação de candomblés baseados, direta
ou indiretamente, em certas características da religião “vodum”, ou seja, o culto a uma
constelação ou a grupos de divindades, com rituais que utilizam a performance seriada.
As etnografias produzidas por Parés demonstram como tais características, construídas
historicamente através da influência, e não de uma herança determinante, da
religiosidade dos jeje na Bahia, se transformaram em pontos centrais da vida social dos
candomblés, e do exercício ritual da crença nas divindades, essencialmente dinâmicas.
Na formação do candomblé, além destes elementos, encontra-se também a capacidade,
oriunda do “vodum”, de, ao longo dos séculos, incluir outras divindades aos panteões
existentes. Assim, Parés compreende a palavra formação como conceito que possibilita
a leitura das fontes documentais e etnográficas levando em consideração o dinamismo
das relações entre pessoas de várias classes sociais ao longo dos anos. Mais do que
similaridades e repetições de comportamentos supostamente africanos, o dados
levantados mostram como as pessoas viveram o mundo religioso dos terreiros através
de um sem número de referenciais.
O sentido do termo formação usado por Parés não remonta, assim, o
entendimento do modo pelo qual as características dos candomblés na Bahia, no
presente, foram gestadas no passado para que se possa entender como chegamos ao
presente. Ao compreendermos isso, ter-se-ia as bases para a definição dos rumos da
nossa sociedade, vista por certos grupos, recentemente, como monolítica, homogênea, e
racialmente bipartida. Parés usa o conceito de formação no sentido de pensar o passado
à luz do cruzamento dos dados coletados das fontes impressas, das conclusões da
historiografia pertinente ao assunto, da memória oral e da prática ritual etnografada”
pelo autor de certas casas de candomblé de Salvador e do Recôncavo Baiano. Ele não
coloca o presente em estado pronto e inquestionável, mas como fruto de uma construção
narrativa e das percepções que os agentes sociais têm do passado. Influência de
referenciais religiosos não significa pureza cultural impávida.
Concordamos com Parés que é preciso levar em conta as condições sociais de
possibilidade para a entendermos a força do candombna Bahia como religiosidade
institucionalizada. Condições estas historicamente construídas e com uma compreensão
memorial do “povo-de-santo” nos dias atuais. No entanto, queremos acrescentar que as
220
informações acerca do candomblé no século XIX são, em larga medida, fruto de
acusações morais do perfil daquelas estudadas por Evans-Pritchard. São acusações de
feitiçaria, feitas por autoridades públicas ou pelos que escreviam em O Alabama, isto é,
de que pessoas provocam infortúnios por meio de técnicas e poderes mágicos eficazes.
E isso é possível se a sociedade legitimar a crença e o medo nos efeitos desses
poderes, perseguindo e combatendo os feiticeiros, denunciando-os. Nestes termos,
candomblé não deve ser compreendido como uma série de práticas religiosas
congeladas em uma África longínqua, imemorial, da vida social dos terreiros. Deve ser
compreendido através do movimento constante da própria vida social. Ainda, e sempre,
em formação, segundo, inclusive, as notícias de O Alabama.
As informações levantadas por Parés podem indicar que os terreiros jeje, mais
do que os nagô, foram acusados com maior freqüência de feitiçaria, pelo jornal O
Alabama. O fato é que os africanos, ou aqueles assim definidos ao longo do século XIX
e seus descendentes, foram alvo de acusações de feitiçaria, que emergiam no Império
em momentos de crise política que estavam relacionados com inflexões nas leis
escravistas. Nesses momentos, a ilegalidade tolerada da crença no feitiço, mesmo sem
uma lei que a criminalizasse, no Império, da boa sociedade imperial pôde ser vista,
revelada, e não escondida nos ermos lugares de difícil acesso. A perseguição aos
feiticeiros é a fundação da crença na feitiçaria.
221
Conclusão
O controle satisfatório do poder da magia e da feitiçaria
A classe senhorial desenvolveu mecanismos para conviver com ações violentas
por parte dos escravos, desde que não ameaçassem seu poder político. Ela também
convivia com a crença no feitiço, e não se incomodava com ele até o momento no qual
vislumbrava algum abalo no exercício da coerção sobre seus subordinados. Isso porque
ela acreditava no feitiço, isto é, no fato de pessoas causarem infortúnio a outras
mediante poderes mágicos. Seus membros compartilhavam da explicação do porquê as
coisas acontecerem no mundo a partir de uma acusação de feitiçaria, a partir da ação do
feiticeiro. Ao atribuir o poder ao feitiço, aos feiticeiros africanos ou seus descentes
escravos, libertos e até livres ela admitia não ter poderes para controlar os efeitos da
magia praticada por essas pessoas. Ela demonstrava que acreditava nos poderes do
feitiço, e temia algumas das conseqüências daquilo que não poderia controlar. Por isso o
Estado Imperial, mesmo sem uma lei específica que criminalizasse a feitiçaria, regulou
as acusações e assim iniciou o processo de domesticação da crença, legislando sobre a
magia, sobre acusações de feitiçaria, processo esse que se consolidou na República.
O Segundo Reinado foi uma época de grande agitação na elite escravista. Logo
nos primeiros meses de 1850 o Estado Imperial proibiu e coibiu, por lei, o tráfico
internacional de escravos para o Brasil, através de aparato policial e rede de articulações
diplomáticas eficiente para fazê-la valer. Muitos escravos entenderam a aprovação dessa
lei como um enfraquecimento do poder senhorial, e uma excelente oportunidade para
insurreições. Vimos como em 1854, liderados por Pai Gavião, escravos da cidade de Itu
e cercanias por pouco não executaram uma das maiores, se não a maior, insurreição de
escravos das Américas. Através da liderança de Pai Gavião, reunindo-se nos rituais por
ele comandados, escravos juntavam grande número de armas de fogo e coragem para
“matar todos os brancos da região”. Membros da classe senhorial local convocaram José
Cabinda, escravo que dava voz a Pai Gavião, para um depoimento na delegacia de Itu.
O medo das insurreições e o do feitiço estiveram lado a lado.
As décadas seguintes foram marcadas por intensos debates internacionais acerca
do final da escravidão no Atlântico, principalmente após esse regime ser derrubado nos
Estado Unidos da América, em 1863. A partir de 1864, d. Pedro II estava pessoalmente
empenhado em acabar com o trabalho escravo no Brasil. Fruto de suas ações, bem como
de outros políticos a ele ligados e às pressões das insurreições de escravos e do
222
crescente número de compra de cartas de alforria na Corte, foi aprovado depois de
meses de batalha política a Lei de 28 de Setembro de 1871, conhecida como “Lei do
Ventre Livre”. A partir de então, os escravos tinham por lei o direito de juntar pecúlio
para a compra de sua liberdade, agora legalizada pelo Estado, e senhor algum poderia
recusar sua venda.
O clima de tensão acerca de quando a escravidão acabaria no Brasil corria em
paralelo com a crença de pessoas de todas as classes sociais no feitiço, e no poder dos
feiticeiros, de que a feitiçaria era uma maneira de entender o porquê das coisas
ocorrerem. O Estado Imperial não havia, até 1869, se envolvido através de processos
judiciários na regulação da crença na magia. Neste ano, foi aberto um processo criminal
para julgar acusados de feitiçaria na cidade de Cunha, província do Rio de Janeiro.
Meses depois de aprovada a “Lei do Ventre Livre”, foi instaurado, na Corte, outro
processo criminal para julgar um homem livre da acusação de feitiçaria. Romances
foram escritos por membros da boa sociedade imperial tendo feiticeiros como
personagens descritos em detalhes. Eram pessoas que levavam perigo à boa sociedade
imperial, que podiam lhe fazer o mal, causando-lhe infortúnios através de poderes
mágicos.
Na cidade de Salvador, a partir de 1863, o jornal O Alabama passou a noticiar
freqüentemente fatos relativos aos “terreiros de candomblé”. Suas notícias denunciavam
seus freqüentadores, difamavam sua forma de usar o corpo e profanar sua fé, elementos
designadores da “barbárie” herdada da áfrica e inibidora do “processo civilizatório”
necessário para a boa sociedade imperial. Outras notícias desse jornal forneciam pistas e
até mesmo diziam quem eram as pessoas que iam aos diversos “terreiros” daquela
cidade, para tentar coibir a propagação de práticas religiosas nefandas para melhorar as
condições sociais do Império. O Alabama contava com uma rede de informantes que
narravam o que se passava nos rituais dos terreiros. Além disso, as notícias chamavam
atenção dos leitores para “outras práticas incivilizadas”, como “dar ventura” e “tirar o
diabo do corpo”. Os “terreiros” contavam com “proteção de autoridades” para funcionar
sem serem perseguidos. Mas por que seriam?
O Código Criminal do Império, de 1830, ao contrário da legislação colonial
portuguesa, organizada nas Ordenações Manoelinas e depois Filipinas, não previa
como comportamentos criminalizáveis a prática de feitiçaria ou da magia e qualquer
pessoa de acusar e nem ser acusada de praticá-las. O Estado não julgava as crenças no
223
Império. Nessa tese demonstramos como esse fato ocorreu simultaneamente no Sudeste
escravista e na cidade de Salvador.
Em Salvador, as notícias de O Alabama denunciavam o Estado de se imiscuir na
crença, quando policiais e pessoas de influência política na cidade protegiam os
candomblés de possíveis perseguições daqueles que antipatizavam por práticas
religiosas oriundas de africanos e seus descendentes. O jornal ainda informava que essas
mesmas pessoas também eram freqüentadoras das festas e dos rituais do candomblé,
legitimando o fato de a crença e o medo do feitiço perpassar membros de todas as
classes sociais.
Segundo nossas pesquisas, processo criminal algum fora instaurado durante o
Segundo Reinado, em Salvador, para julgar pessoas acusadas de feitiçaria, ao contrário
da Corte, onde o medo da “onda negra” alarmava a classe senhorial. Membros desta
classe possivelmente não queriam, naqueles anos de intensos debates acerca do final da
escravidão no Brasil, perder o controle ou a sensação de controle sobre as ações de
escravos, libertos e africanos livres.
As notícias acerca da grande insurreição prometida e planejada pelos Filhos das
Trevas, sob o comando de Pai Gavião, em 1854, na cidade de Itu e cercanias,
informaram que membros da classe senhorial acreditaram no plano. Eles, em momento
algum, segundo o jornal Correio Paulistano, duvidaram do poder de Pai Gavião. Por
isso investigaram a fundo o tal plano de insurreição e se realmente havia condições para
que fosse executado. Pai Gavião havia prometido, inclusive, que os Filhos das Trevas
matariam todos os “brancos” daquela região. A linguagem da feitiçaria foi aquela
utilizada para expressar o medo da rebelião.
Os acusados de feitiçaria eram pessoas identificadas como sendo africanos ou
seus descendentes, tanto no Sudeste quanto em Salvador. Eles eram acusados de
feitiçaria, de propagarem costumes “incivilizados” e “bárbaros” no ceio da nação que se
queria civilizada. As acusações de feitiçaria, vindas de membros da classe senhorial e
também da escravaria, de libertos e forros e da boa sociedade imperial revelam que as
pessoas desses dois grupos também freqüentavam os lugares onde encontravam o
feitiço. Elas reconheciam, nas acusações, a prova do feitiço através dos objetos
supostamente utilizados pelos acusados de feitiçaria.
A crença no feitiço reunia e juntava pessoas de várias classes sociais, mesmo
quando envolviam planos de insurreição dos escravos. Todos tinham medo do feitiço.
Encontramos vários tipos de discursos e autores em documentos produzidos mesmo sem
224
que o Estado regulasse, pelo Código Criminal de 1830, especificamente, a magia e a
feitiçaria. Ao contrário da grande quantidade de fontes produzidas pela repressão
policial e jurídica a certos tipos de práticas mágicas tanto no período colonial quanto no
republicano, as poucas fontes que encontramos para o período imperial demonstraram
que havia a crença na magia e o medo do feitiço em todas as classes sociais. E
pudemos ver isso quando mudamos o olhar da presença da repressão à feitiçaria do
Código para o cotidiano da sociedade imperial, tanto no Sudeste quanto em Salvador.
estava o germe para a regulação legal da crença na magia e da prática de feitiçaria,
logo no amanhecer do regime republicano brasileiro.
225
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Correio Mercantil
4.2) Seção de Obras Raras (PR-SOR)
Correio Paulistano
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