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I
Os Kaxinawá de Felizardo:
correrias, trabalho e civilização no Alto Juruá
Marcelo Manuel Piedrafita Iglesias
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutor em Antropologia Social
Orientador: Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira
Rio de Janeiro
Fevereiro 2008
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II
Os Kaxinawá de Felizardo:
correrias, trabalho e civilização no Alto Juruá
Marcelo Manuel Piedrafita Iglesias
Orientador: Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacio-
nal, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Doutor em Antropologia Social.
Aprovada por:
________________________________________
Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira (Presidente)
__________________________________________
Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira
__________________________________________
Prof. Dr. Antonio Carlos de Souza Lima
__________________________________________
Prof. Dr. Alfredo Wagner Berno de Almeida
__________________________________________
Prof. Dr. Mauro William Barbosa de Almeida
________________________________________
Prof. Dr. Fernando Rabossi (Suplente)
________________________________________
Profª. Drª. Eliane Cantarino O'Dwyer (Suplente)
________________________________________
Prof. Dr. Sidnei Clemente Peres (Suplente)
Rio de Janeiro
Fevereiro 2008
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III
Iglesias, Marcelo Manuel Piedrafita
Os Kaxinawá de Felizardo: correrias, trabalho e civilização no Alto
Juruá. Marcelo Manuel Piedrafita Iglesias. Rio de Janeiro: UFRJ/MN/
PPGAS, 2008.
ix, 415 pg., il.; 30 cm.
Orientador: João Pacheco de Oliveira
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro/Museu Na-
cional/Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social.
Referências bibliográficas: pg. 352-380
Anexos: pg. 381-415.
1. Antropologia Social. 2. Antropologia política. 3. Etnologia. 4. Kaxi-
nawá 5. Tutela 6. Mediação 7. Território Federal do Acre. 8. Felizardo
Cerqueira. I. Pacheco de Oliveira, João. II. Universidade Federal do Rio
de Janeiro/Museu Nacional/Programa de Pós-Graduação em Antropolo-
gia Social. III. Os Kaxinawá de Felizardo: correrias, trabalho e civiliza-
ção no A
l
to Juruá
IV
RESUMO
Este trabalho tem como foco o estudo de um tipo específico de mediação entre or-
ganismos governamentais, patrões seringalistas e índios Kaxinawá ocorrido nas três
primeiras décadas do culo XX, na região do alto rio Juruá, no Território Federal do
Acre.
Dois principais contextos atravessam e subsidiam a análise. O primeiro é a im-
plantação da empresa seringalista, a dinâmica da atividade caucheira e as conseqüências
das "correrias", expedições armadas promovidas pelos patrões, sobre os povos indíge-
nas. O segundo é relativo à institucionalização do governo federal no Departamento do
Alto Juruá, à definição da fronteira do Brasil com o Peru e à posterior demarcação física
desse limite internacional.
A atuação do governo federal nessa região fronteiriça é enfocada a partir de um
conjunto diverso de propostas formuladas para a proteção, "catequese" e "civilização"
dos índios. Primeiramente abordam-se as ações implementadas pela Prefeitura do Alto
Juruá e a Comissão de Obras Federais no Território Federal do Acre na segunda metade
dos anos de 1900. A seguir são analisadas as diretrizes e os resultados da atuação do
Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPILTN), e
depois do SPI, no Alto Juruá.
Diferentes formas de mediação exercidas pelo "catequista de índios" Felizardo
Avelino de Cerqueira, aproveitando oportunidades abertas por ações de órgãos do go-
verno federal e por iniciativas conjuntas com os patrões seringalistas e caucheiros, serão
tomadas como eixo da discussão sobre os processos que resultaram na incorporação de
um grupo de famílias Kaxinawá em diferentes atividades nos rios Envira e Jordão.
Em termos de referenciais, este trabalho dialoga com as teorias sobre a aplicação
da tutela aos indígenas brasileiros, observando a sua peculiaridade numa situação de
fronteira internacional e com o funcionamento da empresa seringalista.
V
ABSTRACT
This thesis aims to study a specific type of mediation between government insti-
tutions, rubber and "caucho" patrons and Kaxinawá Indians that occurred in the three
first decades of the twentieth century in the upper Juruá river region, in the Federal Ter-
ritory of Acre.
Two main contexts cross and subsidy this analysis. The first is the implantation
of rubber states in that region, the dynamics of "caucho" extractivism and the conse-
quences of the "correrias", armed expeditions organized by patrons, for the indigenous
peoples. The second is related to the institutionalization of the federal government in the
Department of Alto Juruá, the definition of the frontier between Brazil and Peru and the
physical demarcation of this international border.
The patterns of action of the federal government in that frontier region are put
under focus by taking in consideration a diverse set of proposals for the "protection" and
"civilization" of indigenous peoples. Actions implemented by the government of the
Alto Juruá Department and by the Commission of Federal Works in the Federal Terri-
tory of Acre in the second half of the 1900-decade are first taken in consideration. Fol-
lowing, the discussion focuses on the guidelines and results of the actions of the Service
for Indian Protection and Localization of National Workers (SPILTN), and afterwards
the Indian Protection Service (SPI), in the Upper Juruá Region.
Different forms of mediation put in practice by "Indian catechist" Felizardo
Avelino de Cerqueira, making use of opportunities opened by the actions of the federal
government or by joint initiatives with rubber and "caucho" patrons are then taken as an
axis for the discussion of the processes by which a group of Kaxinawá families was in-
corporated in different productive activities in the upper Envira and Jordão rivers.
In terms of referentials, this work dialogues with theories about the application
of tutelage on Brazilian Indians, observing its peculiarity in a situation conditioned by
the existence of an international border and the functioning of rubber states.
VI
ÍNDICE
Pg.
I – Introdução
1
II - O seringal como modalidade de ocupação
21
III - Outro ideário indigenista
108
IV - Um indigenismo limitado: o SPI no Território Federal do Acre
133
V - Felizardo Avelino de Cerqueira, "catequista de índios" 189
VI - Um "catequista" a serviço da Nação
313
VII - Considerações finais
343
VIII - Referências bibliográficas
352
IX - Anexos
381
VII
ÍNDICE DETALHADO
Pg.
I - Introdução 1
Materiais de pesquisa 15
Organização da tese 17
II - O seringal como modalidade de ocupação 21
No baixo rio Juruá: antecedentes 21
Exploração e povoamento do Alto Juruá 29
No rio Tarauacá 36
A organização da produção nos seringais 42
Os caucheiros peruanos e as questões fronteiriças 52
No "tempo das correrias": territórios em disputa 61
Crise na economia da borracha 85
Reorganização produtiva nos seringais 88
III - Outro ideário indigenista 108
Primeiras propostas para a "civilização" dos índios no Alto Juruá 108
Força policial contra as "correrias" 115
A Comissão de Obras Federais 126
IV- Um indigenismo limitado: o SPI no Território Federal do Acre 133
As "primeiras expedições" no Alto Juruá 139
No alto rio Envira: Reserva Florestal, delegados e caucheiros 151
Desdobramentos das primeiras expedições 158
Inspetor Bento de Lemos: posto de pacificação no Alto Tarauacá 163
Delegados honorários em Vila Seabra 176
V - Felizardo Avelino de Cerqueira, "catequista de Índios" 189
Os "catequistas" e as políticas públicas 192
Rumo ao alto rio Envira 212
"Amansando" os Kaxinawá 220
"Acomodações" com os patrões, confrontos com peruanos 224
Uma nova diáspora 228
A catequese como "árdua missão" 238
Delegado de Índios do Rio Envira 242
Contratos com os patrões no Alto Tarauacá: "um desmentido negativo" 250
Índios "selvagens", os chamados "Papavô" 255
A "polícia de fronteira" 266
Pedro Biló, "matador de índios": um contraponto 277
Homem de "oração forte" 284
FC: a marca de Felizardo 290
Um "bom patrão" 298
Sob o olhar do padre e o ataque do SPI 302
VIII
Pg.
VI - Um "catequista" a serviço da Nação 313
Demarcação da fronteira Brasil-Peru: um empreendimento militar 313
A política de "não hostilização": militares, mateiros e índios "selvagens" 316
Felizardo e seus índios "catequizados" 328
VII - Considerações finais 343
VIII - Referências bibliográficas 352
IX - Anexos 381
Mapas 382
Anexo Fotográfico 389
IX
Agradecimentos
* Ao CNPq, pelos recursos que viabilizaram esta nova passagem pelo PPGAS/MN e as pesqui-
sas para a elaboração dta tese.
* A João Pacheco de Oliveira, pela sabedoria, confiança e amizade com que conduziu e levou a
bom termo a orientação deste trabalho.
* A Antonio Carlos de Souza Lima, pela amizade e pelo respeito que sempre me dedicou.
* A Moacir Gracindo Soares Palmeira e Antonio Carlos de Souza Lima, pelas recomendações e
críticas em meus dois exames de qualificação.
* À Dona Yeda e à Dona Maria Luiza de Souza Cerqueira, pela confiança com que me recebe-
ram e permitiram ter acesso a um documento familiar de imenso valor histórico. À Prof. Dra.
Valéria Augusta Cerqueira de Medeiros Weigel, igualmente, pela confiança com que recebeu
meu pedido e pela gentileza com que o conduziu às suas tias. Às três, minha mais sincera e du-
radoura gratidão.
* A Terri Valle de Aquino, por tantos anos de trabalho conjunto, pela amizade que virou com-
padrio e pelo apoio e contribuição para que esta tese fosse adiante.
* Aos Kaxinawá, no Jordão, pela forma sempre tão generosa de receber e ensinar.
* Aos colegas e amigos do PPGAS/MN: José Gabriel de Souza Corrêa, Edmundo Marcelo
Mendes Pereira, Ana Flávia Moreira Santos, Carlos Augusto da Rocha Freire, Maria Barroso-
Hoffman, Francisco das Chagas de Souza, Andrey Cordeiro, Mércia Rejane Rangel Batista, In-
grid Weber, Déborah Bronz e Regina Erthal. Agradeço em especial a José Gabriel pela amizade
em todas as horas.
* Aos companheiros de trabalho e amigos de vida: Mariana Ciavatta Pantoja, Vera Olinda Sena,
Renato Gavazzi, Nietta Lindenberg Monte, Antonio Luiz Batista de Macêdo, Dedê Maia de O-
liveira, Maria Luiza (Malu) Pinedo Ochoa, Julieta Matos Freschi, José Frank Melo Silva, José
Osair Sales Siã Kaxinawá, Joaquim Paulo de Lima, Noberto Sales Tenê Kaxinawá, Edson Me-
deiros (in memoriam), Joaquim Tashkã Yawanawá, Luis Meneses, Debora Almeida e Dande
Tavares.
* Ao Laboratório de Pesquisas em Cultura, Etnicidade e Desenvolvimento (LACED/MN).
* Ao corpo de funcionários da secretaria do PPGAS, pelo apoio nos momentos necessários, bem
como às sempre solícitas funcionárias da biblioteca do Programa.
* A minha sogra Gilda Saldanha, pelo apoio em Itaipava, importante pouso para a escrita desta
tese.
* Aos meus pais, Hugo e Maria Cristina, pelo apoio e amor em todas as horas. A minha avó Pi-
lar, pelo exemplo de vida que tem nos dado. A meu avô, Américo Juan (in memoriam), sempre.
* A minha amada família, Beatriz, João Manuel Tui e José Roberto, por tudo que já vivemos
juntos e pelo muito que ainda está por construir.
* Ao Divino Pai Eterno, à Virgem Soberana Mãe, ao Nosso Senhor Jesus Cristo, a São João Ba-
tista e ao Mestre Raimundo Irineu Serra.
1
CAPÍTULO I - Introdução
Os Kaxinawá (gente do morcego) se autodenominam Huni Kui (gente verdadei-
ra) e falam o hãtxa kui (língua verdadeira), pertencente à família lingüística Pano. Pou-
co mais de 5.800 no Estado do Acre, vivem em doze terras indígenas (TIs) situadas nos
rios Breu, Jordão, Tarauacá, Murú, Humaitá, Envira e Purus. A maior população indí-
gena no Acre, os Kaxinawá constituíam, em 2006, 43% dos índios no estado. Do total
dos Kaxinawá, 68% habitavam dez TIs no vale do rio Tarauacá, afluente do alto rio Ju-
ruá (Iglesias & Aquino, 2006). Em 2004, em território peruano, pouco mais de 1.400
Kaxinawá viviam em 18 aldeias em 10 "comunidades nativas" oficialmente reconheci-
das no alto rio Purus e em seu afluente, o rio Curanja (Federación de Comunidades Na-
tivas de Purus (FECONAPU), 2004: 5).
Meu trabalho de pesquisa junto aos Kaxinawá teve início em 1990, após a conclu-
são das disciplinas do curso de mestrado no PPGAS/MN/UFRJ, de pesquisas no âmbito
do "Projeto Estudo Sobre Terras Indígenas no Brasil: invasões, uso do solo, recursos na-
turais" (PETI/MN) (Iglesias, 1989) e, ainda na cidade do Rio de Janeiro, de trabalho em
colaboração com o antropólogo Terri Valle de Aquino
1
.
Para viabilizar esse primeiro trabalho de campo no Estado do Acre, visando defi-
nir o tema de minha dissertação, coordenei uma "avaliação", promovida pela agência
Oxfam-Recife, dos trabalhos ("projetos econômicos" e programas de educação, de saú-
de e de incentivo à produção artesanal) realizados pela Comissão Pró-Índio do Acre
(CPI-Acre) junto aos Kaxinawá e outros grupos indígenas na década de 1980 (Iglesias
& Kahn, 1990). Como parte da primeira viagem, permaneci dois meses e meio na Terra
Indígena Kaxinawá do Rio Jordão, tendo ali voltado, por cinco meses, em 1991-1992,
com dedicação exclusiva à pesquisa da dissertação. Nessa segunda etapa procedi com
um "levantamento sócio-econômico" nas 153 casas distribuídas em seis seringais naque-
la terra indígena e em outros dois a ela limítrofes (Nova Empresa e São Joaquim), recém
ocupados pelos Kaxinawá.
A institucionalização da Associação dos Seringueiros Kaxinawá do Rio Jordão
(ASKARJ), criada em 1988, o reordenamento das formas de organização da produção e
1
Por meio do Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira, meu orientador de curso no PPGAS/MN, estabeleci, em
meados de 1989, meu primeiro contato com Terri Valle de Aquino. No segundo semestre daquele ano,
período em que permaneceu no Rio de Janeiro, auxiliei-o na catalogação de parte dos seus arquivos, com
documentos de trabalhos por ele realizados junto aos Kaxinawá e outros grupos indígenas do Estado do
Acre desde meados dos anos de 1970. Da amizade então iniciada, construímos parceria de trabalho atuali-
zada em vários contextos até o presente.
2
da comercialização da borracha, por meio da "cooperativa", aquela ampliação territorial
e a redefinição das relações com os seringueiros e patrões vizinhos constituíram o obje-
to da minha dissertação (Iglesias, 1993).
Após minha mudança para Rio Branco, em agosto de 1993, realizamos, junto com
o antropólogo Terri Valle de Aquino, gestões na Diretoria de Assuntos Fundiários
(DAF), da Fundação Nacional do Índio (Funai), para a assinatura de convênio entre o
órgão indigenista, a CPI-Acre e a Embaixada da Suíça, criando condições para a consti-
tuição de um grupo técnico de identificação e delimitação de terras indígenas (GT Funai
PP 1204/93) que contemplasse o reconhecimento dos seringais recém ocupados pelos
Kaxinawá, bem como de outros dois (Independência e Altamira), comprados pela
ASKARJ em 1993. Os trabalhos de identificação de quatro terras indígenas no vale do
rio Tarauacá (Kaxinawá do Baixo Rio Jordão, Kaxinawá do Seringal Independência,
Kaxinawá da Praia do Carapanã e Kampa do Igarapé Primavera) ocorreram no primeiro
semestre de 1994, nos quais atuei como "antropólogo convidado".
A sistematização dos dados resultantes da minha segunda etapa de campo no rio
Jordão (Iglesias & Aquino, 1993), bem como de nova pesquisa feita por uma equipe de
investigadores e indígenas Kaxinawá, em 1992, no âmbito do "Projeto de Estudo das
Estratégias de Subsistência, Desenvolvimento Autônomo dos Recursos dos Povos e
Territórios Indígenas da Bacia Amazônica", promovida pela Oxfam América e a Coor-
denação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônia (COICA), resultou num relató-
rio enviado a essas instituições (Iglesias & Aquino, 1994), depois editado e transforma-
do em livro (Iglesias & Aquino, 1994a). Como desdobramento deste conjunto de traba-
lhos resultou, até 1996, um período mais sistemático de "assessoria" à coordenação da
ASKARJ, na elaboração, negociação e acompanhamento de programas de apoio a di-
versas iniciativas econômicas nas três terras Kaxinawá e ao fortalecimento institucional
da Associação (Aquino; Siã Kaxinawá & Iglesias, 1993, 1994; Iglesias & Siã Kaxina-
wá, 1995)
2
.
2
Nesse mesmo período, integrei-me ao Setor de Educação da CPI-Acre, como "assessor" do programa
"Uma Experiência de Autoria dos Índios do Acre", tendo trabalhado até 1997, junto com a arqueóloga
Maria Luiza Pinedo Ochoa, em sala de aula durante os cursos de formação de professores indígenas, na
cidade de Rio Branco, na formatação de uma proposta curricular para a disciplina de História (Iglesias &
Ochoa, 1996), na organização de um material didático para uso nas escolas, a partir de textos produzidos
pelos professores durante três cursos (Professores Indígenas do Acre e Sul do Amazonas, 1997), e na ori-
entação de pesquisas iniciadas pelos professores. Em 1996, realizaria, por três meses, assessorias a pro-
fessores Kaxinawá em escolas de três terras indígenas nos rios Jordão e Breu (Iglesias, 1997). Os cursos
de formação de professores, e depois de agentes agroflorestais indígenas, permitiriam durante esses anos
momentos privilegiados de diálogo e de trabalho com os Kaxinawá de várias terras indígenas.
3
Uma nova etapa de trabalho e pesquisa teria início após a conclusão dos relatórios
de delimitação das terras identificadas em 1994 (Iglesias, 1995; 1996; Aquino, 1995,
1996), fruto, de um lado, do monitoramento da tramitação dos processos administrativos
na sede da Funai em Brasília (elaboração dos resumos dos relatórios [Iglesias & Aqui-
no, 1997, 1998] e de novas informações e com gestões junto a diferentes departamentos
e diretorias do órgão) e, de outro, de reuniões realizadas nas terras Kaxinawá (e Asha-
ninka) com as lideranças e chefes de família indígenas, os "ocupantes não índios" e ou-
tros atores relevantes (organizações indígenas, sindicatos, proprietários, Prefeituras), pa-
ra informar-lhes sobre o trafegar dos processos. Consultoria prestada ao Instituto Brasi-
leiro de Meio Ambiente (Ibama) em 1997-1998 (Iglesias, 1998), coordenando levanta-
mento sócio-econômico e fundiário para fundamentar a criação da Reserva Extrativista
do Alto Tarauacá, adjacente à TI Kaxinawá do Baixo Rio Jordão, permitiu a realização
de duas viagens de campo, às terras Kaxinawá, aos seringais da Reserva e à sede do
Município de Jordão, totalizando um total de quatro meses de trabalho.
Tendo retornado ao Rio de Janeiro em meados de 1999, uma consultoria prestada
ao Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal
(PPTAL/Funai), visando instrumentalizar a "participação indígena" na demarcação de
seis terras indígenas no Estado do Acre, possibilitou-me retornar, em 2000, em mais du-
as ocasiões às terras Kaxinawá no Município de Jordão
3
. Assim como em outras quatro
terras indígenas, numa primeira etapa, discutimos com as lideranças o delineamento de
estratégias para o acompanhamento e a fiscalização dos trabalhos demarcatórios a serem
realizados por empresas contratadas pela Funai e, no retorno, promovemos avaliação
conjunta dos resultados das demarcações, das diferentes modalidades de "participação"
e das relações entre índios e representantes das empresas (Iglesias, 2000, 2000a, 2002;
2002a).
Possibilitado por recursos financeiros obtidos em vários trabalhos de intervenção
social, este conjunto de pesquisas, levado a cabo entre 1994-2000, publicado em relató-
rios técnicos e em artigos acadêmicos, esteve voltado à análise de processos de redefini-
ção territorial e de reorganização política e econômica protagonizados pelas famílias e
lideranças, representadas pela ASKARJ, para a conquista, o uso produtivo e a regulari-
zação de quatro novos seringais, incorporados, a partir de 1990, ao território controlado
3
Durante este trabalho, desempenhei também atividades nas TIs Kaxinawá da Praia do Carapanã e Kaxi-
nawá Ashaninka do Rio Breu, e tive oportunidade de visitar, de forma breve, a TI Kaxinawá Nova Olinda
e os seringais reivindicados para a criação da TI Kaxinawá do Seringal Curralinho, no rio Envira.
4
pelos Kaxinawá desde o início da década anterior. Esses processos, e o reconehcimento
de duas novas terras indígenas, foram também contextualizados face a outras transfor-
mações territoriais, políticas e econômicas que ganharam forma com a crise instalada na
economia da borracha desde meados dos anos 1980; a presença de grupos de "índios i-
solados" nas cabeceiras dos rios Tarauacá e Jordão (Iglesias, 2001, 2006; Iglesias &
Aquino, 1996, 2006, 2006a); a criação do Município de Jordão em 1993, a constituição
do aparato administrativo da Prefeitura, a configuração de um campo político-partidário
local e a implementação pelos governos federal, estadual e municipal de diferentes pro-
gramas na jurisdição do município (Iglesias, 1998, 1999, 2000b, 2003, 2004; Iglesias &
Aquino, 1999, 2006, 2006a).
*********
Minha intenção inicial nesta tese era, a partir de uma sistematização de vários dos
trabalhos acima elencados, complementada por dados de uma nova etapa de campo,
produzir uma análise histórica e comparativa dos processos de reorganização sociopolí-
tica e cultural vivenciados pelos Kaxinawá, como resultado de modos de dominação e
de estratégias e mobilizações postas em prática face às correlações de força e relações
de interdependência que marcaram diferentes situações históricas (Oliveira, 1988: 57-
59) a partir de sua inserção na empresa seringalista e, nas últimas três décadas, do reco-
nhecimento e regularização de suas terras indígenas pelo Estado brasileiro.
Diferentemente, em função de questões levantadas por diferentes materiais aos
quais tive acesso ao proceder com novas pesquisas para a redação da tese, acabei deci-
dindo pela leitura, contextualização e exploração analítica de um documento de época,
texto inédito, aqui tomado como fio condutor de uma reflexão sobre os Kaxinawá e suas
relações com os patrões, seringalistas e caucheiros e com diferentes agências do gover-
no brasileiro durante as primeiras três décadas do século XX, no vale do alto rio Juruá,
no Território Federal do Acre. É essa trajetória que procurarei detalhar a seguir, explici-
tando algumas das pesquisas que levaram à redefinição do objeto inicial da tese e os ins-
trumentos teóricos que serviram enquanto fonte de inspiração para a construção da in-
terpretação e da trama narrativa apresentadas nos capítulos à continuação.
A inflexão inicial na definição do objeto da tese e o reordenamento da estratégia
de pesquisa resultaram da leitura do "Relatório e Biografia de Felizardo A. de Cerquei-
ra" (Cerqueira, 1958), em junho de 2006. O cearense Felizardo Avelino de Cerqueira é
5
personagem a quem boa parte dos Kaxinawá ainda hoje atribui papel central na media-
ção de suas relações com os brancos após a implantação da empresa seringalista no Vale
do Juruá.
Tomei conhecimento pela primeira vez da existência de manuscritos de Felizar-
do Cerqueira em 1997, por meio de Nietta Lindenberg Monte, então coordenadora do
programa de educação da CPI-Acre. Durante encontro de educação indígena realizado
em Manaus, no qual apresentou trabalho baseado em sua dissertação (Monte, 1996), Ni-
etta manteve diálogo com a Prof. Dra. Valéria Augusta Cerqueira de Medeiros Weigel,
professora e pesquisadora da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), neta de Fe-
lizardo Cerqueira, quem lhe falou de escritos que estavam sob a guarda de suas tias. En-
tregou-lhe naquela ocasião cópias de um manuscrito, de uma gina, legível apenas em
parte, intitulado "História de um Catequizador de Índios", e de dois "episódios", datilo-
grafados, todos sem especificação quanto à data e ao local onde haviam sido redigidos
(Cerqueira, 1958a)
4
. Surpresa com a riqueza desse material, Nietta comentou de sua im-
portância para os Kaxinawá e para novas pesquisas acadêmicas, aventando a possibili-
dade de uma consulta aos demais manuscritos. Ficaria desde então em aberto novo con-
tato com a Profa. Dra Valéria Augusta Cerqueira de Medeiros Weigel, feita a ressalva
de que o acesso aos manuscritos dependeria de aprovação de suas tias.
Em início de 2006, em consulta ao site Leis®
5
, tomei conhecimento que, por
meio da Lei 3.588, de 18 de julho de 1959, Felizardo Avelino de Cerqueira fora con-
templado com pensão especial, de Cr$ 3.000,00, por seus serviços como "catequista de
índio" e "guia da Comissão Demarcadora de Limites Brasil-Peru". Pouco depois, em
pesquisa no portal da Câmara Federal, comprovei que esse ato do poder executivo resul-
tara do Projeto de Lei 2.167/56, apresentado pelo deputado federal José Guiomard dos
Santos (PSD-Ac) a 12 de novembro de 1956, lido em plenário a 6 de dezembro e publi-
cado no dia seguinte no Diário do Congresso Nacional (Seção I, 7/12/1956: 12.237-
39)
6
.
4
Nesse manuscrito e nos dois episódios (Cerqueira, 1958a), Felizardo narra sua chegada ao Território Fe-
deral do Acre em 1904, os seus primeiros trabalhos como seringueiro e "catequizador de índios" nos se-
ringais de seu patrão Ângelo Ferreira da Silva no médio rio Tarauacá, a participação de ambos, à frente de
uma turma de homens, na abertura de um varadouro entre o seringal Cocameira e a cidade de Cruzeiro do
Sul, a serviço da Prefeitura do Alto Juruá, em 1906, e os primeiros entendimentos mantidos com alguns
dos grupos indígenas encontrados durante essa empreitada.
5
O site "Só Leis® - Leis Federais e súmulas por assunto" pode ser acessado em www.soleis.adv.br.
6
Nascido em Perdigão, Minas Gerais, em 1907, José Guiomard dos Santos teve formação como militar e
engenheiro, com especialização em geodesia e astronomia, tendo freqüentado a Escola Militar do Realen-
go, a Escola Politécnica e a Escola Técnica do Exército, no Rio de Janeiro. Exerceu cargos de subchefe
nas comissões brasileiras de demarcação de limites com a Colômbia, o Paraguai e o Uruguai. Foi Gover-
6
Levantamento no Diário do Congresso Nacional permitiu-me acessar a íntegra do
projeto de lei. Além da justificativa, de lavra de Guiomard dos Santos, o projeto inclui
carta enviada ao deputado por Felizardo Cerqueira, a 22 de setembro de 1955, solicitan-
do sua intervenção junto ao governo federal para a obtenção de uma pensão que o "am-
parasse na velhice". Ao pedido, encontram-se apensados documentos pelos quais Feli-
zardo procurava comprovar seus "serviços especializados na catequese de índios": sua
nomeação para a Comissão de Obras Federais no Território Federal do Acre, em mea-
dos dos anos de 1900; dois "contratos de prestação de serviços" assinados com patrões
seringalistas do alto rio Tarauacá em 1917; instruções recebidas do chefe brasileiro da
Comissão Mista Brasil-Peru Demarcadora de Limites em 1925; e atestados e declara-
ções assinadas, e lavrados em cartório, em 1955-1956 por autoridades públicas (o Re-
presentante da Produção Executiva da Defesa da Borracha, os Prefeitos dos Municípios
de Tarauacá e Cruzeiro do Sul e o Delegado de Polícia de Cruzeiro do Sul), bem como
por quatro comerciantes e patrões desses dois municípios
7
.
Em sua carta, Felizardo contabiliza ter "catequizado" "para mais de 300 índios", e
ressalta ter sido nomeado "Delegado de Índios no rio Envira", em 1914, pelo Serviço de
Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN). Os documen-
tos oficiais anexados estão relacionados, cabe destacar, a uma das dimensões do seu tra-
balho, a "segurança" prestada a diferentes comissões federais contra "possíveis ataques
de índios bravios" (Diário do Congresso Nacional, 7/12/1956: 12.238). Os atestados e
declarações de comerciantes e patrões seringalistas, boa parte dos quais afirmava co-
nhecer Felizardo fazia 30 anos, destacam, em linhas gerais, a contribuição dos seus ser-
viços de "catequese" para o "apaziguamento" e a "civilização" de "índios bravios", evi-
nador no Território Federal de Ponta Porá (1940-43) e Governador Delegado da União no Território Fe-
deral do Acre (1946-50). Foi deputado federal pelo Acre por três mandatos (1951-1962) e senador por ou-
tros dois (1962-1978), tendo ocupado assento em diferentes comissões no Congresso Nacional. Reeleito
em 1977, não completaria o terceiro mandato de senador, pois faleceria em 1983. Pouco menos de cinco
meses após apresentar o projeto de lei reivindicando uma pensão em benefício de Felizardo Cerqueira,
Guiomard dos Santos submeteria, a 20 de maio de 1957, o Projeto nº 2.654, para a elevação do Território
do Acre à categoria de Estado, proposição aprovada pela Lei 4.070, de 15 de junho de 1962 (Kalume,
1985: 13-4; Bezerra, 2006: 140-42).
7
Dentre os anexos ao projeto de lei está também a íntegra do parecer da consultoria jurídica do governo
do Território Federal do Acre, junto ao qual, em início de 1955, Felizardo primeiro pleiteara a pensão. A
carta enviada ao governador Coronel Paulo Francisco Torres resultara na abertura do Processo nº 3292-
55, objeto de parecer, de 21 de julho de 1955, do consultor Rubens Lameira de Carvalho, quem, apesar de
julgar justo o pedido, recomendou seu envio à Comissão de Limites, do Ministério das Relações Exterio-
res. Por fim, está apensada ao projeto de lei carta do então Contra-Almirante Antonio Alves Ferreira da
Silva, ex-chefe brasileiro da Comissão Mista Demarcadora de Limites, datada de 21 de novembro de
1955 e enviada ao deputado Guiomard dos Santos, louvando sua iniciativa e destacando os serviços pres-
tados por Felizardo à Comissão.
7
tando que continuassem a saquear seringais e a matar trabalhadores, e para o desbrava-
mento e o aproveitamento produtivo da região.
Em abril de 2006, em Rio Branco, durante conversa com Terri Valle de Aquino
sobre a minha pesquisa da tese, tomamos a decisão de tentar novo contato com a Profa.
Dra. Valéria Cerqueira Weigel. Pouco depois, Terri enviar-lhe-ia mensagem eletrônica,
com cópia à minha pessoa, com o assunto "Informações para uma tese de doutorado no
Museu Nacional", na qual, após se apresentar, comunicava a leitura dos documentos en-
tregues a Nietta Monte em 1997, e cogitava a possibilidade de que eu tivesse acesso aos
demais escritos de Felizardo, aos quais a professora fizera menção naquela ocasião, co-
mo relevante fonte de pesquisa para minha tese.
À gentil resposta da Prof. Dra. Valéria, seguiu-se uma troca de mensagens, em
que me comunicou que os manuscritos de Felizardo estavam sob a guarda de sua tia,
Dona Yeda de Souza Cerqueira, moradora em Vila Isabel, no Rio de Janeiro. E infor-
mou-me que consultaria suas duas tias (Donas Yeda e Maria Luiza), esclarecendo-lhes o
caráter científico do meu trabalho e consultando-as sobre possibilidade de me recebe-
rem para uma conversa. Fiz-lhe sabedora das várias histórias que ouvira sobre seu avô
em minhas viagens de campo nos rios Tarauacá, Jordão e Breu, do respeito e da estima
que os Kaxinawá ainda hoje têm por Felizardo e esclareci os objetivos da tese e algumas
das pesquisas já realizadas.
Entrei em contato com Dona Yeda, a quem novamente expus o tema da tese.
Após uma longa conversa telefônica, convidou-me para uma visita à sua casa, ocasião
para a qual ficou de chamar a sua irmã. Para esta ocasião, fiz cópias de uma série de do-
cumentos que faziam menção a Felizardo, para presenteá-las. Bem recebido, em junho
de 2006, conversamos por cerca de sete horas sobre a história de Felizardo, e sua famí-
lia, na cidade de Cruzeiro do Sul, a partir do final dos anos de 1920.
Ao final desse encontro, recebi das mãos de ambas o "Relatório e Biografia de
Felizardo A. Cerqueira", caderno manuscrito, com 183 folhas, papel almaço, em estado
delicado de conservação, organizado em 16 "episódios", bem como a primeira foto que
vi de Felizardo, feita em Cruzeiro do Sul, em 1926
8
.
8
Dentre os manuscritos estava uma cópia dos dois "episódios" recebidos por intermédio de Nietta Lin-
denberg Monte em 1997. Segundo Dona Yeda, são a transcrição dos dois primeiros "episódios" do ma-
nuscrito, datilografados, e ligeiramente editados, por uma jornalista de Belém, quem, em conversas com
Felizardo, demonstrara a intenção de transformar os originais em livro, projeto que acabou por não chegar
a termo.
8
Finalizado em Belém em 1958, quando Felizardo, aos 72 anos de idade, enfren-
tava difícil situação financeira e complicações de saúde, o relatório biográfico descreve
seus trabalhos no Território Federal do Acre, desde sua chegada, em 1904, até 1955.
Segundo suas filhas, Felizardo teve por costume escrever muito durante sua vida, regis-
trando tanto assuntos relativos aos seus trabalhos e negócios como impressões pessoais.
O relatório, todavia, aparenta ser produto de um esforço concentrado de sistematização
de informações guardadas em sua memória, ainda que precise datas em que certos even-
tos teriam ocorrido. E sua redação possivelmente fez parte das iniciativas de Felizardo
no sentido de sensibilizar os deputados federais para a obtenção de sua pensão
9
. Em
1961, Felizardo viajaria ao encontro de suas filhas, à procura de tratamento, no Rio de
Janeiro, onde faleceria dezessete dias após chegar e seria enterrado no Cemitério do Ca-
ju. Os documentos pessoais que com ele trouxera ficaram desde então sob a guarda de
Dona Yeda.
Ao longo de seu relatório, ao reconstruir sua trajetória como "catequista de ín-
dios", Felizardo se detém mais longamente, primeiro, nos serviços realizados, em 1906-
1909, para a Prefeitura do Departamento do Alto Juruá e a Comissão de Obras Federais
no Território Federal do Acre, órgãos pelos quais foi recrutado em reconhecimento por
suas iniciativas anteriores com o seringalista Ângelo Ferreira da Silva, ele próprio co-
nhecido como pioneiro "catequizador de índios" no médio rio Tarauacá. Destaque é
conferido, num segundo momento, a empreendimentos realizados com base em acordos
e contratos estabelecidos com diferentes patrões, seringalistas e caucheiros, nos altos ri-
os Envira e Jordão até início dos anos de 1920 e, de 1923-1927, quando a serviço da
Comissão Mista que demarcou o traçado da fronteira brasileiro-peruana.
Que contexto histórico mais amplo teria propiciado essas duas modalidades de
mediação protagonizadas por Felizardo? Nas últimas duas décadas do século XIX, co-
mo reflexo da crescente demanda por borracha no mercado internacional e dos interes-
ses comerciais das casas aviadoras de Belém e Manaus, a empresa seringalista consoli-
dou-se como matriz territorial e econômica em todos os principais afluentes do alto rio
Juruá. A exploração e o inicial funcionamento dos seringais ocorreram simultaneamente
9
Em maio de 1958, por exemplo, aconselhado por Guiomard dos Santos, Felizardo escreveria carta ao
então Presidente da Câmara dos Deputados, Paschoal Ranieri Mazzilli (PSD-SP), solicitando seu apoio no
sentido de tomar as providências ao seu alcance para uma mais ágil tramitação do projeto, que fazia pou-
co retornara à Comissão de Finanças. Parecer dessa Comissão levaria à transformação do projeto de Gui-
omard dos Santos em Projeto de Lei da Câmara, de nº 197/58, em 13 de dezembro de 1958, sancionado
pelo presidente Juscelino Kubitschek a 18 de julho do ano seguinte, por meio da Lei nº 3.588 (publicada
no Diário Oficial da União de 21/7/1959, à Seção I, na página 16.153).
9
ao principal período de atividade caucheira nessa região, realizada por turmas de cau-
cheiros peruanos chegados de diferentes afluentes do rio Ucayali, como desdobramento
da mesma conjuntura no mercado mundial e de redes de comércio articuladas por casas
aviadas de Iquitos, capital do Departamento de Loreto.
Nesse período, os povos indígenas que viviam no alto rio Juruá e em seus afluen-
tes foram objeto de "correrias", expedições armadas, patrocinadas por patrões, seringa-
listas e caucheiros. Justificadas com discursos que concebiam os índios como "selva-
gens", "feras" ("animais") e "pagãos" (ou "infiéis"), as "correrias" constituiram a princi-
pal iniciativa dos patrões para a destruição das "malocas" comunais e a dispersão dos
sobreviventes para locais distantes de onde havia maior incidência de árvores de serin-
gueira (Hevea Brasiliensis) ou caucho (Castilloa Ellastica). Para os povos indígenas, as
"correrias" resultaram em massacres, na captura de mulheres e meninos e na gradual
dispersão dos sobreviventes em terras firmes dos fundos dos seringais e pelas cabeceiras
principais afluentes do rio Juruá.
A partir de meados da década de 1900, com a criação do Território Federal do A-
cre, as ações favorecidas pela Prefeitura do Alto Juruá e pela Comissão de Obras Fede-
rais para a "proteção" e "civilização" dos índios estariam inseridas em um projeto mais
amplo do governo federal para a região, visando a institucionalização do poder público,
a integração territorial, o controle de zonas fronteiriças, a regulação das relações de tra-
balho nos seringais, o alargamento da utilização dos recursos naturais, uma maior arre-
cadação de impostos e a promoção de novos fluxos migratórios. A construção de uma
estrada de rodagem ligando a sede do Alto Juruá aos outros dois departamentos do Ter-
ritório seria vislumbarada como um dos principais eixos a articular esse projeto de inte-
gração, que teria como pré-requisito a "pacificação da região". Ainda que propostas sur-
gissem para o estabelecimento de terras reservadas para os índios e para sua incorpora-
ção, por meio do trabalho, aos "benefícios da civilização", a principal ação privilegiada
pela Prefeitura e a Comissão de Obras seria o "policiamento" e a "fiscalização" dos gru-
pos indígenas, evitando que constituíssem empecilho à abertura e ao funcionamento da
estrada. Essa política seria implementada, e gerida localmente, por personagens com re-
conhecidos serviços como "catequizadores de índios" - o seringalista Ângelo Ferreira da
Silva e Felizardo Cerqueira, conhecidos por suas pioneiras iniciativas, nos anos anterio-
res, no estabelecimento de relações pacíficas com várias "malocas" indígenas e a mobi-
lização da mão de obra de seus habitantes em diversos empreendimentos de Ângelo.
10
A partir do início da cada de 1910, Felizardo passaria a atuar numa região situ-
ada ao longo da recém estabelecida fronteira internacional com o Peru, primeiro no alto
rio Envira, onde predominava a extração de caucho, promovida por patrões brasileiros,
com o recrutamento de trabalhadores nordestinos e peruanos; e depois nos altos rios Ta-
rauacá e Jordão, onde o seringal, apesar do início da crise que começava a se instalar na
economia da borracha, continuava a funcionar como empresa especializada. Até então,
os patrões não haviam demonstrado qualquer interesse na incorporação de grupos ou
famílias indígenas às atividades produtivas. Diferentemente, haviam optado por conti-
nuar a promover "correrias", numa situação em que, face aos ataques nos seringais e nos
acampamentos caucheiros, os índios continuavam a ser vistos enquanto "selvagens" e
uma eminente ameaça à "segurança" dos trabalhadores e à viabilidade da produção. Por
meio de acordos e contratos estabelecidos com vários patrões, Felizardo, novamente,
buscaria mediar consensos, visando, com os "civilizados", a interrupção das "correrias"
e, com os chefes indígenas, dos roubos e mortes de seringueiros.
Ao longo da tese é minha intenção refletir nas atividades de "catequese" realiza-
das por Felizardo Cerqueira junto aos Kaxinawá e outros grupos indígenas enquanto
uma modalidade de relação de tutela, possibilitada por nichos de mediação abertos por
ações de diferentes órgãos do governo federal bem como por iniciativas conjuntas de
Felizardo com patrões seringalistas e caucheiros.
Conforme coloca Oliveira (1988: 224-25), um dos principais aspectos da tutela es-
fundado no princípio de que indivíduos ou grupos com comportamentos diversos da-
queles socialmente considerados adequados, seja por não dominarem plenamente os có-
digos da sociedade, seja por serem portadores de códigos e valores culturais próprios,
devem ser "assistidos" e "protegidos", de forma a verem seus interesses reconhecidos e
amparados e para não constituírem ameaça à ordem estabelecida. Ainda que revestida
por uma ideologia de proteção e assistência, destaca Oliveira, a tutela, como relação de
dominação, se constituiria enquanto mecanismo de controle social, tendo por finalidade
"transformar, através de ensinamento e orientação dirigidos, tais condutas desviantes em
ações e significados prescritos pelos códigos dominantes" (ibid).
Ao discutir formas de relacionamento entre índios Ticuna e funcionários locais do
Serviço de Proteção aos Índios (SPI) numa reserva indígena no alto Solimões, Oliveira
(1988: 228) ressalta que esse "paradoxo ideológico da tutela" constituía parâmetro de
orientação e atuação dos representantes do órgão indigenista em sua principal tarefa,
"tomar conta dos índios". Por um lado, esse "tomar de conta" implicava "proteger" os
11
Ticuna, buscando garantir que seus direitos e interesses não viessem a ser afrontados pe-
los "civilizados"; por outro, evitar que os indígenas representassem empecilho às ativi-
dades levadas a cabo pelos brancos, dentre elas, as econômicas.
Das considerações acima ressaltadas, cabe distinguir dois aspectos da ação tute-
lar. Um primeiro, o caráter ambíguo, ou "paradoxal", da ideologia que a fundamenta e
das práticas pelas quais se materializa, visando tanto a proteção dos indígenas, quanto a
repressão de seus comportamentos, implicando, portanto, em soluções de compromisso
com interesses dos "civilizados". O segundo, a dimensão pedagógica da ação tutelar,
que, por meio de uma orientação educativa, pretende disciplinar, adequar e transformar
essas condutas potencialmente danosas.
Ao longo da tese, essa dimensão pedagógica da ação tutelar ganha importância
como chave interpretativa para a compreensão da auto-representação de Felizardo Cer-
queira como "catequista de índios". A "acomodação" é o termo freqüentemente utiliza-
do por Felizardo para definir a principal finalidade de sua atuação na "pacificação" de
situações, historica e/ou contextualmente, marcadas pelas "correrias" e por enfrenta-
mentos armados entre índios e "civilizados". Na condição de "mediador", termo que
também emprega para definir seu papel, Felizardo buscaria a construção de consensos e
entendimentos entre índios e brancos, visando, simultaneamente, garantir às famílias in-
dígenas "proteção" contra novas violências e aos "civilizados" "segurança" face às ame-
aças e obstáculos colocados pelos índios (tidos como "selvagens") às suas atividades.
Tal como concebida e praticada por Felizardo, a "catequese" implica, portanto,
ações dirigidas tanto aos índios como aos brancos. Em relação aos índios, considerava
necessário aconselha-lhos sobre a "prudência" necessária no lidar com os "civilizados",
de maneira a "anular os rancores"
10
derivados de violências sofridas durante as "correri-
as", e evitar que prosseguissem as "represálias", com a morte de seringueiros e cauchei-
ros.
Um trabalho de cunho também educativo, criador de consensos e moralizador, se-
ria também levado a cabo por Felizardo junto aos patrões, aos seringueiros e aos cau-
cheiros, no sentido de fazê-los compreender que os indígenas eram também seres hu-
manos e que as suas "represálias" decorriam de um histórico de "correrias" e violências.
Seus esforços para demonstrar aos patrões os benefícios que poderiam advir, para os
seus próprios negócios e interesses, da incorporação da mão de obra indígena, e não de
10
Expressão literal de Felizardo Cerqueira (1958: 94). Adiante, no capítulo V, retomar-se-á mais exten-
samente essa discussão.
12
seu extermínio, caminharia junto com o estabelecimento de condições e limites para a
instauração dessas relações de trabalho e de comércio, bem como com uma orientação
sobre as posturas e responsabilidades que os patrões, na condição de "mestres"
11
, deve-
riam assumir para garantir o bom curso dessa convivência.
O caráter eminentemente pedagógico da atuação de Felizardo em relação aos "ci-
vilizados", contudo, é omitido na sua auto-classificação como "catequista de índios", a-
inda que seja ressaltado em diferentes momentos de seu relatório. Em situações marca-
das por relações assimétricas e pela hegemonia dos patrões, Felizardo assumiria publi-
camente apenas a sua condição de "catequista" dos índios, mas não dos "civilizados".
Outro importante aspecto da mediação protagonizada por Felizardo diz respeito às
suas iniciativas para engajar a mão de obra indígena em atividades produtivas, como re-
sultado de acordos e contratos estabelecidos com vários patrões. No alto rio Envira, re-
gião onde predominava a extração o caucho, atendendo pedidos de vários patrões, Feli-
zardo negociaria, com estes e com os chefes indígenas, condições para que estes passas-
sem a se engajar naquela produção. Nesse mesmo período, se empenharia no que deno-
mina a "catequese" dos Kaxinawá, procurando evitar que continuassem a promover ata-
ques aos caucheiros que ali trabalhavam, mediando suas relações face aos patrões e,
progressivamente, mobilizando-os na extração do caucho. Essa atividade teria continui-
dade no seringal Revisão, no alto rio Jordão, onde, sob a coordenação de Felizardo, os
Kaxinawá trabalhariam na produção de borracha e de caucho e em outras atividades ne-
cessárias ao funcionamento daquele seringal, dentre elas, o "policiamento da fronteira",
evitando que índios "selvagens" continuassem a promover saques e mortes e a ameaçar
a produção feita pelos seringueiros.
As iniciativas de Felizardo ao incorporar os grupos indígenas, e principalmente os
Kaxinawá, em atividades produtivas nos seringais distinguem-se de um padrão mais ge-
ral de atuação favorecido pelo órgão estatal de abrangência nacional, no caso o Serviço
de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), e seu su-
cedâneo, o SPI.
A partir de sua criação, em 1910, o SPILTN teve como principal diretriz de atua-
ção a "pacificação" dos índios "selvagens", ou "bravios", que constituíam obstáculo a
implantação das atividades das frentes econômicas (especialmente agrícolas) então em
expansão em diferentes regiões do território nacional. Essa atuação priorizaria a "atra-
ção" e a "agremiação" de grupos indígenas em unidades administrativas (diferentes ti-
11
Também expressão utilizada por Felizardo (Cerqueira, 1958: 80).
13
pos de "postos" e "povoações") estabelecidas pelo órgão, movimento em que, ao mesmo
tempo, possibilitava a liberação de grandes extensões de terras à exploração por particu-
lares. Conforme demonstra Lima, por meio das práticas cotidianas dos representantes do
Serviço, era intenção consolidar a exclusividade do exercício da tutela sobre os indíge-
nas, sob o discurso da "proteção fraternal e leiga" e, na condição de "elemento terceiro",
monopolizar a mediação de suas interações com os não índios (Lima, 1995: 125; 128-
29; 177).
Pacificados, atraídos e sedentarizados em unidades territoriais definidas e admi-
nistradas por funcionários do órgão, os indígenas deveriam ser objeto de um acompa-
nhamento pedagógico, por meio de uma tutela protetora e assistencial. Essa "ação civi-
lizatória" (Lima, 1995: 181-87) teria como importante componente a "educação para o
trabalho", por meio do progressivo engajamento e disciplinarização dos indígenas em
atividades econômicas promovidas pelos administradores dos postos. A mobilização da
mão de obra indígena, contudo, estaria ali prioritariamente voltada não para uma produ-
ção mercantil hegemônica (como, por exemplo, a economia da borracha), mas para cir-
cuitos restritos, que visavam a subsistência dos próprios indígenas e, idealmente, a auto-
sustentação dos postos. A reprodução econômica dos grupos indígenas estaria, portanto,
necessariamente atrelada à própria dinâmica das unidades administrativas do órgão in-
digenista, e sua mão de obra mantida à margem de qualquer inserção em atividades e
circuitos econômicos mais amplos.
No caso do Território Federal do Acre, nas primeiras duas cadas do século XX,
o seringal foi o principal empreendimento a determinar as formas de apropriação territo-
rial e de utilização econômica dos recursos naturais e de organização das relações de
trabalho e de comércio pelos patrões. Isto é crucial para compreender as próprias formas
de atuação local do SPILTN, bem como a modalidade de ação tutelar e de indigenismo
que em tal contexto viria a florescer.
Apesar das propostas iniciais para a criação de "postos de atração" e de "povoa-
ções indígenas", os representantes do SPILTN acabariam por nomear alguns dos princi-
pais patrões como "delegados de índios", atribuindo-lhes o encargo da supervisionar os
índios que viviam em suas propriedades e nas adjacências. Nenhum apoio posterior,
contudo, seria prestado pelo órgão a esses delegados, que, em certos casos, aproveitari-
am as suas nomeações como elemento a reforçar relações de dominação que lograram
instaurar sobre determinados grupos indígenas, aproveitando sua mão de obra em em-
preendimentos próprios. Em anos posteriores, a proposta da criação de um "posto de pa-
14
cificação", gerido pelo próprio SPILTN, como estratégia para a "proteção" de grupos
indígenas que promoviam recorrentes ataques e mortes nos seringais dos altos rios Ta-
rauacá e Jordão, não contaria com maior respaldo dos patrões locais e das próprias auto-
ridades departamentais, junto às quais o órgão pretendia angariar recursos financeiros.
Foi no contexto histórico marcado pela economia da borracha (e do caucho), por-
tanto, que ganharia fundamento e sentido a mediação exercida por Felizardo Cerqueira,
em sua tentativa de construir acordos, com os "civilizados" e com os índios, visando
propiciar condições para a interrupção das "correrias" e dos conflitos armados, bem co-
mo para favorecer o gradual engajamento da mão de obra indígena em diferentes ativi-
dades de interesse dos patrões.
Outros dois autores serviram de inspiração ao tratar as diferentes modalidades de
mediação exercidas por Felizardo ao longo de sua trajetória como "catequista de índios"
e as formas como suas atividades foram concebidas, tanto pelos indígenas como por -
rios outros atores (dentre eles, patrões, funcionários de órgãos estatais e missionários).
Neste sentido, pareceu-me rentável, por um lado, a discussão levantada por Robert Pai-
ne (1977) a respeito dos mecanismos que favoreceriam a proliferação de intermediários
("middlemen") e sua atuação na região ártica. O autor destaca duas principais razões pa-
ra esse processo, resultante da implementação de políticas de bem-estar social pelo go-
verno canadense em comunidades indígenas e Esquimó. Por um lado, a dependência dos
funcionários estatais (atuando em esferas superiores de decisão e/ou na administração
local de programas) com relação a diferentes tipos de "local whites" (dentre eles, mis-
sionários e comerciantes), vistos como atores privilegiados para a "interpretação" tanto
das políticas públicas dirigidas aos nativos como do comportamento e as visões dos na-
tivos sobre essas políticas, levaria o próprio governo a investi-los em diferentes papéis
de intermediação. Por outro lado, esses atores aproveitariam alternativas abertas pela
sua mediação face às políticas públicas para fortalecer posições de ascendência exer-
cidas (ou pretendidas) em relação aos nativos (Paine, 1977: 5-6).
Segundo Paine, a intermediação delegada pelo governo como meio de "practical
government" geraria processos de interação social e avaliações da parte dos vários ato-
res neles engajados. Destaca neste caso, a atuação dos "brokers", atores que, em papéis
de intermediação, "manipulam" e "processam" decisões, favores e benefícios inerentes
às políticas de governo, propositadamente fazendo mudanças de ênfase e conteúdo. Por
meio dessa estratégia, e tendo como pretensão fazer avançar seus próprios valores, inte-
resses e empreendimentos, o "broker" pode buscar consolidar sua posição enquanto me-
15
diador e, em última instância, constituir sua própria clientela. O conteúdo e a forma des-
sa "comunicação seletiva", ressalta Paine, nem sempre é passível de ser antevista a prio-
ri, podendo levar a modificações substanciais das políticas públicas e das bases sobre as
quais estas estavam originalmente assentadas e planejadas. (ibid: 7; 21).
Metodologicamente, Paine destaca que a análise do papel desempenhado pelos
intermediários deve estar centrada nas diferentes formas de percepção de suas ações, pe-
los próprios e pelos demais atores com os quais interage em relações que se desdobram
no tempo. Essas percepções podem variar de ator para ator, dependendo dos contextos e
situações de interação, gerando diferentes tipos de avaliações, expectativas e respostas
quanto ao próprio caráter dos papéis assumidos pelos intermediários e quanto às alterna-
tivas e escolhas abertas por sua atuação (ibid: 21).
Foi importante também na elaboração desse trabalho a formulação de Fredrik
Barth (1972, 1981) sobre o papel de agentes e esferas econômicos nas transações envol-
vendo atores de diferentes grupos étnicos. Em sua elaboração Barth destaca a figura do
"entrepreneur" como um indivíduo que, por meio de uma iniciativa inovadora, engaja a
si mesmo e a outros atores em trocas de bens e serviços, instaurando circuitos transacio-
nais previamente inexistentes, "criando pontes entre o que antes estava separado", e pa-
râmetros para que formas de aferição de valor sejam tornadas possíveis (1981: 56). É o
que, enquanto empreendedor, faria Felizardo Cerqueira nas três primeiras décadas do
século XX, colocando em relação três esferas distintas de transações sociais: a econo-
mia da borracha (segundo a perspectiva dos patrões), os planos governamentais para a
fronteira (na perspectiva dos funcionários encarregados de executá-los) e as práticas e
visões dos indígenas (a "agency" dos Kaxinawá).
Materiais de pesquisa
Os relatórios da Prefeitura do Alto Juruá e da Comissão de Obras Federais no Ter-
ritório do Acre, enviados, a partir de meados da década de 1900, ao Ministério da Justi-
ça e dos Negócios Interiores, contendo também recomendações a outros ministérios,
constituíram importante chave para a compreensão dos processos iniciais de institucio-
nalização do governo federal, das formas como as propostas para a "proteção", a "cate-
quese" e a "civilização" dos índios estiveram inseridas em projetos oficiais mais amplos
para a região e das ações por meio das quais essas propostas acabariam, ou não, imple-
mentadas. Essa investigação exigiu a retomada e o aprofundamento, sob nova aborda-
gem, de pesquisa iniciada em anos anteriores, para a qual se fez uso de diversos relató-
16
rios oficiais, microfilmados e disponibilizados, na íntegra, no "Brazilian Government
Document Digitization Project", resultado do trabalho do Latin American Microform
Project, sediado no Center for Research Libraries
12
.
A consulta, em final de 2006 ao acervo microfilmado do Serviço de Arquivo do
Museu do Índio (SARQ/MI), da Funai, no Rio de Janeiro, especialmente dos relatórios
das primeiras "expedições" feitas por representantes do SPILTN e dos relatórios anuais
da Inspetoria do Estado do Amazonas e Território Federal do Acre, permitiu-me consta-
tar, à diferença do que ressalta boa parte da historiografia regional e das etnografias so-
bre diferentes povos indígenas no Acre, a existência, durante as décadas de 1910-1920,
de ações que buscaram dar início à instalação do órgão no Território, de propostas vi-
sando a "proteção" e "assistência" dos povos indígenas que ali viviam, com a criação de
postos e povoações indígenas, bem como das relações que acabariam por ser privilegia-
das, com a nomeação de eminentes seringalistas como "delegados de índios". Relatórios
anuais da Diretoria do SPILTN e do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio
(MAIC) à Presidência da República também foram objeto de consulta, visando compre-
ender como as propostas e ações para o Território do Acre estavam referenciadas a polí-
ticas mais amplas desses órgãos e às suas ações na região do sudoeste amazônico.
Parte ainda do esforço de compreensão das formas pelas quais o governo federal
viria a atuar naquela região, especialmente nas questões relacionadas à definição da
fronteira internacional com o Peru, investiu-se na pesquisa de documentos produzidos,
em meados da primeira década do século passado, pelos comissários brasileiros das ex-
pedições mistas de reconhecimento dos altos rios Purus e Rio Juruá, e, na década de
1920, pelo chefe brasileiro da Comissão Mista Brasil-Peru Demarcadora de Limites.
Enquanto os escritos dos comissários encontram-se publicados em livros, as pesquisas
sobre as atividades desta última comissão, na qual Felizardo Cerqueira e índios Kaxi-
nawá trabalharam ativamente, exigiram a leitura dos relatórios anuais do Ministério das
Relações Exteriores, cujo acesso foi novamente viabilizado por consultas feitas no
"Brazilian Government Document Digitization Project". Levantamentos realizados na
sede da Primeira Comissão Brasileira Demarcadora de Limites (PCDL), em Belém, em
novembro de 2005, e no Acervo Histórico do Itamaraty, do Ministério das Relações Ex-
teriores, no Rio de Janeiro, em abril de 2007, acabaram por resultar em relevante parte
do material fotográfico que conta nos anexos da tese.
12
Este acervo encontra-se aberto à consulta em www.crl.edu/content.asp?l1=4&l2=18&l3=33&l4=22
17
Pesquisa foi efetuada nas hemerotecas do Museu da Borracha e do Centro de
Documentação e Informação Histórica (CDIH), da Universidade Federal do Acre, am-
bos em Rio Branco, em dezembro de 2006. Nesta, prioridade foi dada à leitura, e repro-
dução, com máquina fotográfica digital, de diferentes jornais publicados no Departa-
mento de Tarauacá entre 1912 e os primeiros anos da década de 1930, dentre eles, diá-
rios oficiais utilizados pela Prefeitura para a divulgação de seus atos administrativos.
Um material substantivo foi também obtido nos jornais contendo diagnósticos e propos-
tas formulados pelo poder público e os seringalistas a respeito da crise então vigente na
economia da borracha, bem como das gestões realizadas por estes últimos junto a dife-
rentes instâncias do governo federal, inclusive o SPILTN, na busca de solução para o
"problema social" causado pelos ataques de índios considerados "selvagens" nos serin-
gais da região.
Entrevistas e depoimentos gravados constituem o principal material utilizado pa-
ra apresentar as representações dos Kaxinawá sobre alguns dos processos aqui analisa-
dos - a implantação da empresa seringalista, as "correrias" de patrões e caucheiros e os
reordenamentos territorial e social que delas resultaram - e sobre a atuação de Felizardo,
as relações com ele estabelecidas em diferentes contextos e os trabalhos que juntos de-
sempenharam. Boa parte desse material é constituída por gravações feitas com alguns
de nossos principais interlocutores durante trabalhos de campo para a identificação de
terras indígenas, nas quais esses temas constituíram partes, às vezes relativamente bre-
ves, de depoimentos sobre períodos históricos e processos sociais de maior duração. Fiz
uso ainda de entrevistas e depoimentos que me foram disponibilizadas, fruto de pesqui-
sas feitas por outros antropólogos e por professores indígenas. Novas entrevistas, mais
diretamente relacionadas ao tema da tese, foram por mim realizadas nos últimos dois
anos. Terri Valle de Aquino, em uma viagem às terras Kaxinawá do rio Jordão e durante
recente curso de formação de professores indígenas, em Rio Branco, realizou novas en-
trevistas, sobre temas que havíamos previamente conversado e definido.
Organização da tese
Após esta introdução, o segundo capítulo procura analisar os processos econô-
micos, políticos e sociais por meio dos quais, nas duas últimas décadas do século XIX,
ocorreu a implantação da empresa seringalista na região do alto rio Juruá, procurando
ressaltar suas especificidades face às formas de ocupação territorial e de organização da
produção que haviam caracterizado as atividades extrativistas no baixo curso desse rio
18
nas décadas anteriores. Buscar-se-á compreender também as principais características
das atividades realizadas pelos caucheiros peruanos, problematizando as formas de so-
breposição e de articulação entre essas duas modalidades de extrativismo gomífero. As
negociações diplomáticas e as atividades de reconhecimento promovidas, nesse contex-
to, pelos governos brasileiro e peruano, visando a definição do limite internacional entre
ambos os países, pouco modificariam, conforme procurarei inicialmente indicar, o cará-
ter fluído e poroso dessa região fronteiriça. As "correrias" promovidas por patrões, se-
ringalistas e caucheiros, e suas conseqüências sobre os povos indígenas que habitavam a
região, com significativos processos de reordenamento territorial e reorganização social,
constituirão objeto de análise à continuação. Por fim, serão analisadas as transformações
econômicas e sociais ocorridas na empresa seringalista a partir do início da década de
1910, com o início da crise na economia da borracha.
O terceiro capítulo explicita diferentes propostas oficiais para a "proteção" e "ci-
vilização" dos índios, partes de processos de inicial institucionalização e atuação do go-
verno federal no Território Federal do Acre, e mais especificamente no Alto Juruá. Num
primeiro momento, serão discutidas as iniciativas da Prefeitura do Departamento do Al-
to Juruá, que ganharam forma, a partir de 1905, em ações policiais contra as "correrias",
medidas legais para normatizar as relações de tutela dos índios menores sob a guarda de
seringalistas e em propostas para a "catequese" e a "civilização" dos indígenas, com sua
"educação para o trabalho". Serão analisadas também as ações postas em prática pela
Comissão de Obras Federais no Território do Acre, em 1907-1909, para a "pacificação"
das relações entre "civilizados" e indígenas e, especificamente, para a "fiscalização" e o
"policiamento" dos índios.
No quarto capítulo atenção é dada às práticas pelas quais o SPILTN iniciaria sua
atuação na região, em 1911, com "expedições" feitas por seus representantes, às propos-
tas de criação de postos e povoações indígenas que delas resultariam e à estratégia ado-
tada na tentativa de viabilizá-las, a nomeação de destacados seringalistas como "delega-
dos de índios". A partir do relato de viagem feita pelo Inspetor do SPILTN no Amazo-
nas e Território do Acre em 1916 ao Departamento do Tarauacá, e da tentativa de cria-
ção de um "posto de pacificação", a ser gerido pelo SPILTN, mostrar-se-á a continuida-
de das relações, agora pontuais, com os "delegados" (alguns dos quais sediados em cen-
tros urbanos) e o rápido e definitivo abandono da política de instalação de unidades ad-
ministrativas próprias do Serviço no Território.
19
O quinto capítulo, guiado pelo eixo narrativo que estrutura o relatório de Feli-
zardo Cerqueira, inicialmente explicita momentos por ele considerados fundadores em
sua trajetória como "catequista de índios", explicita as condições em que ele seria reco-
nhecido enquanto tal pela Prefeitura do Alto Juruá e pela Comissão de Obras e analisa
as formas de mediação por ele protagonizadas, face aos seringalistas, a diferentes gru-
pos indígenas e aos agentes de governo, no bojo da política favorecida por esses órgãos.
Num momento seguinte, trata dos empreendimentos realizados por Felizardo ao longo
de quase duas cadas, por meio de acordos e contratos firmados com patrões cauchei-
ros e seringalistas dos rios Envira e Tarauacá, gerindo conflitos com os caucheiros,
promovendo "acomodações", mediando relações com vários grupos indígenas e, em cer-
tos casos, negociando as condições mais adequadas para o engajamento dessa mão de
obra em atividades de interesse, tanto dos índios como dos patrões. Destaque é dado,
por sua vez, às relações mais duradouras estabelecidas por Felizardo com um grupo de
famílias Kaxinawá, inicialmente no rio Envira, e aos processos que os levariam a tomar
a decisão de migrar para as cabeceiras do rio Jordão, onde se engajariam no "policia-
mento" dos índios tidos como "selvagens" e em outras atividades necessárias ao funcio-
namento do seringal Revisão. Ao longo deste capítulo, colocar-se-á em diálogo as con-
cepções de Felizardo sobre a "catequese" com as visões dos Kaxinawá a respeito de su-
as práticas, das relações com ele mantidas e das alternativas que sua atuação, enquanto
mediador, abriu para manterem formas próprias de organização e cultura.
O sexto capítulo relata as atividades da Comissão Mista Brasil-Peru que demar-
cou o traçado da fronteira internacional nos anos de 1913-1914 e 1920-1927, empreen-
dimento de cunho eminentemente militar. Tendo por foco principalmente o período de
1920-1924, em que a Comissão atuou ao longo do Paralelo de 10º S, atenção será dada à
política de "não hostilização" imprimida pelo Chefe da Comissão brasileira para o rela-
cionamento com os grupos indígenas considerados "selvagens". Novamente, essa políti-
ca contemplaria o recrutamento de "catequistas de índios", dentre eles Felizardo Cer-
queira, formalmente contratado pela Comissão na condição de "mateiro" e "prático".
Por seu intermédio, índios Kaxinawá seriam incorporados aos trabalhos, por um lado,
integrando turmas para a exploração de divisores de água e igarapés, mas principalmen-
te para localizar malocas indígenas, "sondando o ânimo" e as "disposições" de seus ha-
bitantes; e, por outro, em atividades destinadas à abertura de varadouros e caminhos e
ao transporte de carga e alimentos. Dando continuidade a uma análise iniciada no capí-
tulo anterior, procurar-se-á demonstrar como os Kaxinawá, também nesse contexto, se-
20
riam vistos como índios "catequizados", "mansos" e "civilizados", ao prestarem serviços
semelhantes aos que, com a mediação de Felizardo, vinham desempenhando em anos
anteriores para os patrões.
21
CAPÍTULO II - O seringal como modalidade de ocupação
No baixo rio Juruá: antecedentes
Até meados culo XIX, o curso do rio Juruá permaneceu praticamente inexplo-
rado, apesar de informações fornecidas por regatões (comerciantes itinerantes), oriun-
dos de Ega (Tefé) e Fonte Boa
13
, vilas situadas à beira do rio Solimões, darem conta de
que algumas de suas incursões haviam ultrapassado a foz do rio Tarauacá. Nestas,
principalmente no baixo curso do Juruá, os regatões tinham interesse em explorar carne
e ovos de tartaruga, pirarucu seco e peixe boi, além de outros produtos florestais, como
salsaparrilha, óleo de copaíba, breu, canela, cacau, baunilha e anil, trocados, muitas ve-
zes, com os indígenas por mercadorias (Wilkens de Matos, 1854: 23-4; Tastevin, 1920:
131; 134; Castello Branco, 1930: 601; 1947: 162-68). O naturalista inglês Henry Walter
Bates, que realizou pesquisas científicas em Ega em 1853-59, destaca a importância que
a pesca da tartaruga e a coleta de seus ovos tinham então na economia local, como prin-
cipal base de alimentação, atividade realizada por "todas as famílias" na época do ve-
rão" e pelas "famílias dos pescadores", também visando a venda e a troca no centro ur-
bano (Bates, 2001 [1864]: 147-48; 150).
Em final de 1851, passaram por Ega os tenentes da Marinha norte-americana Wil-
liam Lewis Herndon e Lardner Gibbon, em viagem oficial de reconhecimento do vale
do Amazonas. Nessa época, aponta Herndon (1853), Ega constituía a principal vila en-
13
Ambas as vilas estavam localizadas em terrenos de antigas missões fundadas pelo padre austríaco Sa-
muel Fritz. Sob ordens dos superiores da Companhia de Jesus em Quito, de 1687 a 1689, Fitz estabele-
ceu-as à beira do rio Solimões, num trecho já cursado pela expedição do capitão português Pedro Teixeira
em 1637-1639, sob encargo do governador-mor do Estado do Maranhão e Grão Pará. Em terras então
disputadas por Espanha e Portugal, Fritz constituiu cerca de 40 aldeamentos onde agrupou índios Omagua
(Cambevas), Jurimaguas e de vários outros povos. Os jesuítas espanhóis foram expulsos dessa região por
tropas portuguesas em 1710 e os aldeamentos dissolvidos pelos ataques das guarnições e pelas atividades
de "preação de índios", promovidas por comerciantes advindos de Belém (Ferreira Reis, 1953: 55-93).
Entregue a catequização aos carmelitas portugueses, coube ao Frei André da Costa, até 1712, a reorgani-
zação dos índios dispersos na antiga missão dos Axiuari, na boca do rio Tefé, de onde os levou para as
proximidades de Tefé em 1718 (Braga, 2006; Ugarte, 2006). Após a assinatura do Tratado de Madri
(1750), que reconheceu o uti possidetis português sobre a região, e na vigência do Diretório dos Índios
(1755), que promulgara a extinção da administração religiosa sobre os antigos aldeamentos, Ega foi ele-
vada à categoria de vila em 1759, mesmo ano em que o Município de Tefé foi criado, situado na então
Capitania de São José do Rio Negro. Nos anos de 1782-1790, uma comissão científica espanhola, apoiada
por guarnição militar, esteve em Ega procedendo com estudos visando comprovar as pretensões da Espa-
nha sobre essa região, iniciativa que acabou abortada com o envio de tropas militares portuguesas pelo
governador da Capitania (Bates, 2001: 142; IBGE, 1957: 238; Torres, 2006). Com a instalação da Provín-
cia do Amazonas, em 1852, Ega passou, no ano seguinte, a sede da Comarca do Alto Solimões, então cri-
ada, e foi elevada, dois anos depois, à categoria de cidade, sob a denominação de Tefé (IBGE, ibid). Con-
sultar nos Anexos, o Mapa 1, para a localização de Tefé e da foz do rio Juruá, na margem direita do rio
Solimões.
22
tre Barras (depois Manaus) e Iquitos (Peru), e sua importância se justificava pela sua lo-
calização nas cercanias das desembocaduras dos rios Juruá, Japurá e Tefé. Era visitada
por navios de grande porte de comerciantes, brasileiros e estrangeiros, que obtinham
"lucros consideráveis", trazendo mercadorias e retornando com produtos como mantei-
ga de ovos de tartaruga, peixe salgado e salsaparrilha.
Segundo Herndon, funcionavam em Ega de oito a dez estabelecimentos comerci-
ais, que mantinham um "comércio consideravelmente ativo", com Belém, Barra e Iqui-
tos. Boa parte das incursões dos regatões, e das relações que mantinham com os índios,
constituía uma extensão das atividades dos comerciantes urbanos de Ega, permitindo a
dilatação de seus negócios e a canalização de produtos destinados à venda aos represen-
tantes das casas comerciais daquelas três cidades. Os comerciantes de Ega que "tinham
posses suficientes", diz Herndon, optavam por aviar "jovens dependentes", fornecendo-
lhes embarcações, mercadorias e tripulação para subirem os rios vizinhos para recolher
os "produtos da terra e dos rios", trocados com os índios. Apesar dos ganhos compensa-
dores para esses aviados, 25% sobre o total da mercadoria vendida, avalia Herndon, os
riscos eram elevados, devido às dificuldades da navegação, ao freqüente não recebimen-
to das vendas feitas via de regra a crédito e, freqüentemente, à própria hostilidade dos
índios.
A captura de índios também fora objetivo comum a muitas das viagens explorató-
rias no rio Juruá, pois os cativos alcançavam bons preços quando negociados com famí-
lias dos núcleos urbanos (Bates, 2001: 142-44). Na recompilação da literatura produzida
por missionários, viajantes e historiadores desde o século XVIII, feita pelo juiz federal e
historiador José Maria Brandão Castello Branco (1947: 162-63), é possível identificar
vários termos utilizados para essas ações promovidas por exploradores e regatões, reali-
zadas no rio Solimões e seus afluentes, dentre eles o Juruá: "extração de índios" (Vigá-
rio José de Noronha, 1768), "caça aos indígenas" (Araújo e Amazonas, 1852), "agarra-
mento" (Cônego André Fernandes de Souza, 1870) e "agarrações" (Reis, 1953). O padre
francês Constant Tastevin (1920: 131-32) afirma que, sob a dominação portuguesa, o
rio Juruá teria sido um "reservatório para os mercadores de escravos" e que a mão de
obra dos índios capturados era usada nas "plantações" de cacau e baunilha às margens
do Solimões. Referência aos "descimentos" de indígenas dos rios Japurá, Tefé e Juruá,
como responsáveis por parte do povoamento das vilas estabelecidas no Solimões, bem
como à "caça de indígenas", ao "agarramento de silvícolas" e à "preação de índios" na
23
foz do Juruá em meados do século XIX, são também feitas por Castello Branco (1958:
59; 65; 1961: 157; 201).
Henry Bates (2001) chama a atenção para a importância da presença indígena à
época de sua permanência em Ega. Além das famílias que viviam nos arredores da sede
urbana e em igarapés próximos, diz Bates (2001: 142-43), do total dos 1.200 habitantes,
distribuídos em 107 casas, cerca de metade era de "mamelucos" (índios "semi-
selvagens", misturados com "brancos")
14
. Engajados em trabalhos extrativistas e em
serviços domésticos, os indígenas eram originários, contabilizou Bates, de 16 diferentes
"tribos", e tinham sido trazidos, muitos ainda crianças, dos rios Solimões, Japurá e Içá e
vendidos a famílias residentes na vila. Apesar de proibido pela legislação, esse comér-
cio, que segundo o naturalista tinha dentre os principais intermediários chefes nativos
"inescrupulosos", era visto com complacência pelas autoridades locais, dentre elas o de-
legado de polícia, que tinha seis índios a seu dispor em serviços domésticos e atividades
agrícolas.
Bates destacaria, ainda, o caráter "despótico" das gestões dos três Diretores de Ín-
dios nomeados pelo governo imperial no Alto Solimões (nos rios Japurá, Içá e Tonan-
tins), quem utilizavam os indígenas em seus próprios empreendimentos. Destaca, por
exemplo, o Diretor de Índios do Japurá, José Chrysostomo Monteiro, portador da paten-
te de coronel da Guarda Nacional, um "mameluco", a quem Bates considerou o maior
"empreendedor" de Ega, onde estava sediado, pois tinha a seu serviço cerca de 200 ín-
dios e era "far worse master to the redskins than the whites usually are" (2001: 139;
176)
15
.
14
Segundo Bates, outras 2.000 pessoas viviam num raio de pouco menos de 20 km de Ega, que incluía
outras duas "pequenas vilas". Dados populacionais produzidos pela Secretaria de Polícia da Província do
Amazonas, em 1 de julho de 1860, indicaram números totais diferentes dos de Bates. Os dados da Secre-
taria, contudo, não aparecem discriminados segundo fatores étnicos. Conforme os dados deste levanta-
mento, um total de 1.783 pessoas vivia no Distrito de Tefé, em 267 "casas", que representavam 421 "fo-
gos". Daquelas, 1.709 eram "livres" e 74 "escravos". Dentre os "livres", foram recenseados 948 homens
(546 "adultos" e 402 "menores") e 751 mulheres (478 adultos e 273 menores) (Brasil. Governo da Pro-
víncia do Amazonas, 1861). Na Comarca do Alto Solimões, no Município de Tefé (composto pelos distri-
tos das sub-delegacias de Tefé, Fonte Boa, Alvellos, São Paulo de Olivença e Tabatinga) foi contado um
total de 4.915 pessoas. Em 1865, recenseamento semelhante, procedido pela Secretaria de Polícia, indica-
ria uma população de 1.894 pessoas no Distrito de Tefé e de 5.609 no Município (Tavares Bastos, 1975:
127-28).
15
Jornalista e então deputado federal, membro do Partido Liberal, Aureliano Cândido Tavares Bastos,
que visitou Ega nessa mesma época, teceria severas críticas às atividades dos "diretores de índios”, a
quem chamou de "ladrões oficiais" dos índios. Condenaria a exploração da mão de obra indígena e as re-
lações comerciais francamente desfavoráveis estabelecidas pelos índios com os diretores, que negociavam
com mercadorias obtidas junto aos comerciantes citadinos. Tavares Bastos defenderia a abolição das dire-
torias e de qualquer forma de tutela missionária, bem como a repressão aos abusos cometidos contra os
indígenas, tanto pelos regatões como por autoridades oficiais, dentre elas, comandantes de fronteiras, a-
gentes de polícia ou chefes da "chamada guarda nacional" (Bastos, 1975: 204-07).
24
À parte das explorações e iniciativas dos regatões, foi somente na segunda metade
do século XIX que as primeiras expedições oficiais subiriam o rio Juruá. Em 1857-
1858, durante seis meses, o "Diretor de Índios do Juruá" João da Cunha Corrêa realizou
a "exploração" desse rio, custeada pela Diretoria Geral dos Índios do Amazonas (Brasil.
Governo da Província do Amazonas, 1858: 10-11). Esta é destacada em boa parte da
historiografia como a primeira incursão oficial nas florestas que, no Vale do Juruá, de-
pois comporiam parte do Território Federal do Acre (Castello Branco, 1930: 592-3;
1947: 165-6; 1958: 60-75; Tocantins, 1973: 96)
16
.
As atividades de João da Cunha Corrêa, contudo, eram bastante anteriores em Ega
e no rio Juruá, indicando o embricamento de sua atuação como "diretor de índios" com
interesses familiares, comerciais e políticos em Belém e Manaus, a importância de seu
cargo para os negócios que começou a empreender em Ega e as disputas entre "diretores
de índios" em torno do uso da mão de obra indígena
17
. Segundo aponta Castello Branco
(1947: 166-67), as primeiras viagens de João da Cunha Corrêa a Ega teriam sido pro-
movidas por seu meio-irmão, João Augusto, para "estudar o meio e a possibilidade de
negócios nesse lugar, enfeudados nas mãos do chefe local, Tenente Coronel José Mon-
teiro Chrysostomo", o Diretor de Índios do Japurá referido por Bates. Em fins da década
de 1840, João da Cunha Corrêa se estabeleceria na Barreira do Joanico, a 121 km da foz
do rio Juruá, e firmaria parceria comercial com os irmãos Cristovão e Antônio Coelho
(da firma Coelho e Irmão) e com os peruanos Pedro José e Sebastião Sevallo (da Seval-
lo & Hermanos), que figuravam dentre os primeiros exploradores do Juruá, então sedia-
dos no Lago Serrado, a 194 km da foz (Castello Branco, 1947: 166-67; 1959: 139; Fer-
reira Reis, 1953: 34).
16
No rio Juruá, João da Cunha Corrêa informou ter visitado nove "malocas", constituídas por 45 casas, e
426 "índios pacíficos" das tribos Marauás, Catauixis, Canamaris e Aranás, "poucos dos quais estavam ba-
tizados" (Brasil. Governo da Província do Amazonas, 1858: 11). Viajando em companhia de dez praças
da Guarda Nacional, em terras que depois comporiam o Território Federal do Acre, Corrêa visitou uma
aldeia de índios Naua, situada no local hoje denominado Estirão dos Nauas, próximo à cidade de Cruzeiro
do Sul, alcançou a foz do rio Juruá Mirim, afluente da margem esquerda do alto Juruá, de onde voltou pa-
ra adentrar o rio Tarauacá e passar, por terra, "guiado por índios", aos rios Envira e Purus, de onde retor-
nou a Ega. Ao longo da viagem teria distribuído grande quantidade de ferramentas, tecidos e miçangas, e
retornado trazendo produtos florestais e quatro índias (Castello Branco, ibid)
17
João da Cunha Correia era meio irmão de Ângelo Custódio Corrêa, seringalista e comerciante com ne-
gócios em Cametá e Belém, que ganhou projeção na política paraense, como membro do Partido Conser-
vador, nas décadas anteriores, bem como de João Augusto Corrêa, proprietário da Companhia Fluvial Pa-
raense, de 1867 a 1870, e de casa aviadora que exportava produtos florestais para a Europa. Conforme in-
forma Batista (2004: 98-9), Ângelo Custódio Corrêa exercera a presidência da Província do Pará em 1853
e 1855, tendo sido 1º vice-presidente (1850-55), deputado provincial (1844-52) e deputado na Assembléia
Geral Legislativa (1838-39 e 1853-55), e faleceu em junho de 1856. Quando de sua primeira subida no rio
Amazonas com destino a Ega, Bates (2001: 63-4) destaca ter feito a viagem, entre Belém e Óbidos, numa
escuna de 40 toneladas, movida a vela, carregada de mercadorias, com uma tripulação de 12 pessoas, a
maioria indígenas, de "propriedade" de João da Cunha Corrêa.
25
Nomeado pelo Presidente da Província do Amazonas em junho de 1855, João da
Cunha Corrêa atuaria como Diretor de Índios do Juruá até 1863. Nesse período, em par-
ceria com a João Augusto Corrêa & Cia. e com aqueles sócios, brasileiros e peruanos,
exportaria produtos florestais (cacau, breu, óleo de copaíba, anil, óleos vegetal e animal,
mantas de pirarucu e "mixira") para Belém, negociaria mercadorias em Tefé, Fonte Boa
e nos arredores, e seria responsável por trazer levas de moradores das "ilhas de Belém"
para, a partir de 1869, abrir seringais nos lugares então conhecidos por Jaíba, Abacaxi e
Cupú-ahú, no baixo e médio rio Juruá (Castello Branco, 1930: 601; 1947: 166-67, 176;
Ferreira Reis, 1973: 96).
Nos últimos cinco meses de 1867, em expedição custeada pela Royal Geographi-
cal Society de Londres e pelo Governo da Província do Amazonas, o engenheiro inglês
William Chandless (1869: 296; 1870: 4-7) subiria o rio Juruá a partir de Tefé, guiado
por um "escravo" e índios (que atuaram como "tripulantes" e "intérpretes") cedidos por
João da Cunha Corrêa
18
. A expedição chegaria pouco acima da foz do Riozinho da Li-
berdade, então conhecido como rio Mu, de onde, segundo Chandless, foi obrigada a re-
tornar, após um furtivo ataque dos índios "Nauás". Entre a foz do Juruá e o ponto final
da viagem, Chandless diz ter encontrado uma "população indígena (ao menos na beira)
pequena, apesar de pertencer a muitas tribus": um total de nove é por ele relacionado.
Dentre as mais próximas a Tefé, avalia Chandless, os Marahuá não seriam "índios pu-
ros", mas sim "ladinos", "quase todos batizados" e falantes da "língua geral", apesar de
conservarem sua "gíria". Os Araua, por sua vez, havia tempo estavam "envolvidos no
comércio das drogas do sertão". Chandless diferencia os primeiros, "pacíficos", de ou-
tros, como os próprios Arauá e os Nawa, vistos como "traiçoeiros", pois costumavam
"acometer" "negociantes" que subiam o rio para trocar mercadorias por produtos flores-
tais. Nas cercanias da foz do Tarauacá, principal afluente do rio Juruá, Chandless reali-
zou medições, destacou a abundância de produtos como salsaparrilha, cacau, óleo de
copaíba, pirarucu e peixe-boi, e informou que a exploração do baixo curso desse rio fo-
18
Nesse mesmo ano de 1867, a 27 de março, os governos do Brasil e da Bolívia haviam assinado o Trata-
do de Ayacucho, estabelecendo os limites fronteiriços entre os dois países, por meio de uma linha imagi-
nária entre as cabeceiras do rio Javari e a confluência dos rios Beni e Madeira. Desta forma, tanto Chan-
dless como os regatões, e as levas de seringueiros que viriam nas décadas seguintes, penetrariam em ter-
ras reconhecidas como território boliviano até 1903, quando a assinatura do Tratado de Petrópolis estabe-
leceria o traçado final das fronteiras entre os dois países. No caso específico do Alto Juruá, contudo, as
florestas transformadas em seringais continuariam a ser objeto de reivindicação do governo peruano até
1905, quando a Comissão Mista de Reconhecimento do Rio Juruá definiria o traçado da fronteira entre
ambos os países, que seria formalizado com a assinatura do Protocolo de 1909. A respeito destes proces-
sos diplomáticos, que serão comentados mais adiante, ver, por exemplo, Mendonça, 1989; Tocantins,
1973; e Craveiro Costa, 2003.
26
ra iniciada por regatões ("coletores de drogas"), ainda que de forma tímida, devido ao
receio de ataques dos "gentios", novamente os Nauas. Afirma, ainda, ter ouvido de seus
informantes indígenas, que, em épocas anteriores, os Nauas promoviam "correrias" con-
tra diferentes grupos indígenas Juruá abaixo.
Nesta época, a borracha ainda constava com pouca importância dentre os produtos
exportados do baixo rio Juruá, via Tefé, para Belém. Sua produção era realizada nos
meses do "verão" (abril-outubro) por comerciantes que subiam em barcos com seus
"fregueses", muitos deles indígenas, e, em muitos casos, com suas famílias, abastecidos
com farinha, peixe e carne salgados. Nos locais de exploração então abertos nos arredo-
res de Tefé, nas regiões dos paranãs, predominavam tipos de hévea de qualidades infe-
riores à "seringa real", que prepondera no Alto Juruá (Tastevin, 1920: 134; 1926: 42).
Trazendo tartarugas, ovos, pirarucu salgado, produtos florestais e gêneros agrícolas cul-
tivados na terra firme e nas praias, além de pequenas produções de borracha, retorna-
vam à sede urbana durante a estação chuvosa, que coincidia com a safra do cacau e com
o período dedicado aos cuidados nos roçados e à produção de farinha (Castello Branco,
1947: 169; 176-177)
19
. Outra parte da borracha, conforme visto, era canalizada pelos
regatões, aviados de comerciantes urbanos, em incursões aos locais de moradia de famí-
lias de indígenas e mestiços.
Dados do recenseamento de 1872 (Brasil. Governo Imperial, 1876: 37-9) indicam
a permanência do perfil anterior da população residente na jurisdição da Paróquia de
Santa Thereza de Tefé, bem como das principais atividades econômicas, de subsistência
e de comércio, ali realizadas. Composta por 2.213 pessoas, com praticamente o mesmo
número de homens e mulheres (50,6% e 49,4%, respectivamente), e uma elevada pro-
porção de "solteiros" (84,5%), a população total, distribuída em 504 "casas", assim apa-
rece categorizada por "raças": 1.116 "brancos" (50,5%), 714 "caboclos" (32,3%), 331
"pardos" (14,9%) e 52 "pretos" (2,3%)
20
. Deste total, apenas 25 aparecem sob a catego-
ria "escravos" (11 "pardos" e 14 "pretos"). Se a categoria de "caboclos" remete a de ín-
dios ("Indiens", conforme traduzida na versão francesa do censo de 1890), a considerá-
vel proporção de pessoas incluída na categoria "pardos", traduzida por "métis" na versão
19
Bates (2001: 142) informa que, por força de uma lei municipal e da estrita fiscalização de inspetores,
cada morador era obrigado a plantar pelo menos um pequeno roçado ao redor de sua casa, o que garantia
parte importante da subsistência dos grupos familiares, complementada, dependendo das estações, com as
carnes de tartaruga, peixes e caça e com outros produtos extrativistas.
20
Os dados para a Paróquia de Nossa Senhora de Guadalupe de Fonte Boa indicam, nesse mesmo censo,
751 "almas", distribuídas em 75 "casas" e assim categorizadas por "raças": 54 "brancos" (7,2%), 92 "par-
dos" (12,3%), 16 "pretos" (2,1%) e 589 "caboclos" (78,4%) (Brasil. Governo Imperial, 1876: 40).
27
francesa, parece evidenciar, novamente, a considerável população de descendência indí-
gena, resultado de uniões com "brancos", fato reforçado pelo reduzido contingente de
"pretos" historicamente presente em Tefé (Ega).
Por sua vez, outros dados permitem afirmar que não houvera até 1872 modifica-
ções substanciais na "composição" da população, pelo afluxo de imigrantes vindos de
outras regiões do país ou do exterior. Se os brasileiros eram larga maioria (92,7%), os
dados referentes à "composição em relação à nacionalidade brasileira" indicam 1.938
"amazonenses" (87,6% do total), seguidos de 61 pessoas (2,8%) nascidas em outras
províncias da região norte (Pará e Maranhão). Os nordestinos, que constituiriam o gros-
so da população que, nas três décadas seguintes, migraria rumo ao Amazonas e aos altos
rios, somavam, em 1872, apenas 37 (1,7%); outras 14 pessoas (0,6%) eram originárias
das demais regiões do país. Dentre os 161 "estrangeiros" (7,7%) residentes em Tefé, o
maior grupo era composto por 130 bolivianos, seguido de 12 peruanos e 10 portugueses.
Do total dos estrangeiros, a maioria era de homens (61,5%), chamando a atenção ainda
a grande quantidade de "solteiros" de ambos os sexos.
Os dados do censo referentes ao perfil ocupacional da população indicam, por sua
vez, que a economia de Tefé continuava baseada nas atividades agrícolas e extrativistas,
voltadas tanto para a subsistência como para a comercialização: 345 homens e 257 mu-
lheres foram relacionados como "lavradores" e 107 homens como ligados à "pesca". O
considerável número de homens (380) "sem profissão" pode mascarar, todavia, o enga-
jamento de pelo menos parte desse contingente em atividades sazonais, por iniciativa
própria ou mobilizado pelos comerciantes, de extração de produtos florestais e mesmo
na produção de borracha, atividades não contempladas em nenhuma outra categoria o-
cupacional do recenseamento. Nenhum "capitalista e proprietário" consta nos registros,
o que parece indicar a inexistência até então de terras legalmente registradas.
No âmbito urbano, o censo revela a existência de uma restrita presença de repre-
sentantes de órgãos de governo (um juiz e quatro "empregados públicos"). Os dados
permitem inferir a existência de um diversificado leque de "operários", com "profissões
manuais e mecânicas" (20 "de calçado", 20 "em madeiras", 18 "de vestuários", 17 "de
edificações" e 13 "em metais"), além de 207 "costureiras", mulheres, em sua grande
maioria, solteiras. Além de 77 "pessoas assalariadas" ("criados e jornaleiros"), outras
295 (135 homens e 160 mulheres) dedicadas ao "serviço doméstico" foram contabiliza-
das. Esse contingente era responsável, ao que parece, pelo suprimento da maior parte
dos bens destinados à subsistência e dos serviços demandados localmente.
28
A atividade comercial continuava concentrada nas mãos de um pequeno grupo de
"comerciantes, guarda livros e caixeiros" (13 brasileiros e 10 estrangeiros), estando os
"regatões" oficialmente registrados incluídos nessa última categoria. A atividade comer-
cial destinada à exportação para Belém e Manaus
21
permanecia fundada principalmente
na venda de produtos oriundos da extração florestal e da pesca. Com expressão limitada
nas exportações, a borracha constituía até então mais um produto na estratégia dos co-
merciantes, que a produziam engajando mão de obra indígena em excursões sazonais à
floresta ou a canalizavam por meio de regatões aos quais aviavam. Estes últimos, por
sua vez, trocavam por mercadorias as pequenas produções de borracha feitas por grupos
familiares, dentre eles indígenas, em seus locais de moradia durante a estação mais seca
do ano.
Em linhas gerais, a exploração da borracha feita em Tefé e seus arredores nas dé-
cadas de 1850-70 guarda semelhanças com as principais características do "seringal ca-
boclo", modelo proposto por Oliveira (1977, 1979) para compreender formas de organi-
zação da produção gomífera, as relações sociais de produção e as redes comerciais que
antecederam às que ganhariam configuração nas zonas mais produtivas, dentre elas, no
Território Federal do Acre. Dentre as principais semelhanças entre as formas de organi-
zação da produção extrativista, de um lado, nas cercanias da foz do Amazonas, na "regi-
ão das ilhas", inclusive a de Marajó, e nos baixos cursos dos rios Xingu, Jari, Capim,
Guamá, Acará e Mojú, e, de outro, nos arredores de Tefé, podem ser elencadas uma
produção realizada em bases familiares, a coexistência da produção de borracha com a
agricultura de subsistência e a extração de outros produtos florestais, uma participação
substancial da mão de obra indígena e mestiça, relações de aviamento engendradas por
regatões, em muitos casos, atrelados a comerciantes sediados em núcleos urbanos dis-
persos pela floresta e uma acentuada despreocupação com a validade legal dos terre-
nos
22
.
21
Essa exportação começara a ganhar maior volume a partir de 1853, quando do início do funcionamento
da primeira linha a vapor entre Manaus e Nauta, no Peru, operada pela Companhia Nacional de Navega-
ção e Comércio do Amazonas, criada por Irineu Evangelista de Souza, o Visconde Mauá, com significati-
vos subsídios do Governo Imperial.
22
Informações e análises a respeito das formas de organização da produção de borracha, bem como das
atividades agrícolas na região das "ilhas", constam em Tavares Bastos, 1975; Reis, 1953, 1989; Oliveira,
1977, 1977a; Weinstein, 1989.
29
Exploração e povoamento do Alto Juruá
Mudanças significativas ocorreriam em todo o alto curso do rio Juruá a partir
dos últimos anos da década de 1870, com a exploração e o efetivo povoamento da regi-
ão que, a partir de 1903, constituiria o departamento mais ocidental do Território Fede-
ral do Acre. Esse movimento migratório e de povoamento passou a refletir a rápida ex-
pansão da atividade da borracha para áreas até então pouco exploradas no Estado do
Amazonas. A crescente demanda de borracha pelo setor industrial europeu e norte-
americano, a partir da invenção dos processos de vulcanização e da fabricação de bici-
cletas e pneumáticos para a nascente indústria automobilística, resultou no forte aumen-
to da demanda e dos preços daquela matéria-prima no mercado internacional. A abertu-
ra de novas áreas de exploração, mais produtivas, passou a ser estratégia perseguida pe-
las casas aviadoras de Belém e Manaus para garantir o rápido crescimento de uma ofer-
ta regular de borracha, à época exclusivamente proveniente dos seringais nativos da re-
gião amazônica
23
.
O interesse das casas aviadoras de Belém e Manaus em ampliar suas redes comer-
ciais, de forma a controlar a canalização da produção de borracha e o abastecimento de
produtos manufaturados, e a se capitalizar junto às casas exportadoras estrangeiras, le-
vou-as a constituir uma ampla rede de prepostos no rio Juruá. Por meio destes, ou dire-
tamente, passaram a aviar pessoas dispostas a abrir e a movimentar seringais no alto
curso do rio Juruá e de seus principais afluentes
24
. No momento inicial, o principal obje-
tivo desses pioneiros era a delimitação de "explorações" em trechos de floresta situados
ao longo do curso dos rios. Em muitos casos, as "posses" inicialmente delimitadas fo-
ram prontamente revendidas a novos interessados, permitindo que os primeiros a chega-
23
Para análises da evolução da economia da borracha na região amazônica, ver, por exemplo, Tavares
Bastos, 1975; Le Cointe, 1922; Tocantins, 1973; Santos, 1977; Weinstein, 1993; Oliveira, 1977, 1979,
1988. Para uma análise crítica a respeito da produção acadêmica e literária produzida sobre a economia da
borracha neste período, ver Oliveira, 1977, 1979.
24
Vapores, lanchas e gaiolas pertencentes a casas aviadoras começaram a penetrar o baixo rio Juruá pou-
cos anos antes das primeiras linhas regulares de navegação operarem nesse rio, gerenciadas por sucessi-
vas companhias subsidiadas pelos governos imperial e depois federal. Em final dos anos de 1860, as pri-
meiras embarcações a vapor que penetraram o rio Juruá pertenciam à Companhia Fluvial do Alto-
Amazonas, sediada em Belém. Em meados dos anos de 1870, foi criada a Amazon Steam Navigation
Company, de capital inglês, fruto da fusão da Companhia Nacional de Navegação e Comércio do Amazo-
nas, da Companhia Fluvial do Alto-Amazonas e da Companhia Fluvial Paraense. Por meio de contratos
com os governos imperial e provinciais, a Amazon Steam manteria linhas ao longo dos rios Solimões e
seus afluentes, dentre eles o Juruá, alcançando, após 1904, a cidade de Cruzeiro do Sul (Tavares Bastos,
1975; Mendonça, 1989: 220-26; Tocantins, 1973; Weinstein, 1993: 81).
30
rem prosseguissem rio acima, reinvestindo seus ganhos iniciais na exploração de áreas
tidas como mais produtivas
25
.
No Alto Juruá, esses movimentos resultariam, após violentos enfrentamentos com
os grupos indígenas, na apropriação dos territórios tribais e na implantação de seringais.
Plausível de ser compreendida a partir do modelo do "seringal de apogeu", proposto por
Oliveira (1977, 1979), a empresa seringalista ali implantada estaria marcada, por quase
três décadas, por formas específicas de recrutamento de mão de obra e de organização
das relações sociais de produção, com a especialização das atividades produtivas, cen-
tradas na produção de borracha, e por uma vinculação comercial dos "proprietários"
com as casas aviadoras sediadas nos dois principais centros da economia regional, Be-
lém e Manaus.
A mão de obra para o povoamento e o funcionamento dos seringais foi suprida
com a importação de nordestinos (principalmente do Ceará, mas também do Rio Grande
do Norte, Paraíba, Pernambuco e Piauí), oriundos, em muitos casos, de reges marca-
das por períodos de intensas secas e por um crescente deslocamento dos sítios de pro-
dução familiar pelas fazendas de gado e as plantações de algodão e cana de açúcar (Tas-
tevin, 1920: 134-5; Castello Branco, 1961: 146-50; 243-4; Tocantins, 1973: 134-7; A-
quino, 1977: 39; Oliveira, 1988: 70; Wolff, 1999, 46-54)
26
.
25
Castello Branco (1930: 604; 1961: 174-75; 178) diferencia dois tipos de atores neste processo, os "ex-
ploradores dos rios", aqueles responsáveis pela delimitação das posses, e os "exploradores de seringais",
aqueles que efetivamente se dedicavam à abertura da sede, das estradas de seringa e das colocações para a
habitação dos trabalhadores. Destaca ainda, nessas primeiras iniciativas de povoamento do rio Juruá, os
freqüentes confrontos entre os recém-chegados e os grupos indígenas, bem como a constituição de um
movimentado mercado de terras: "Os exploradores dos rios subiam quase sempre por conta de alguém,
com mercadorias e objectos necessários à viagem. Uma vez atacados pelos indígenas e conseguindo do-
miná-los ardilosa ou violentamente, tornavam ao ponto de partida. As explorações iam sendo cedidas a
outros, chegando às vezes, no mesmo anno, a ser de diversos donos. Diminuto era o valor desses tractos
de terra, pois numa extensão de 10 ou 15 praias, cerca de 10 milhas de frente eram vendidas por menos
de 500$ e até por uma frasqueira de aguardente, como alludem algumas pessoas ao narrar cenas dos
tempos dos desbravamentos. Mas, um anno após, á proporção que as estradas iam sendo abertas, o seu
valor decuplicava, chegando no anno de 1904 um trecho do rio Juruá, que contava pouco mais de uma
praia, a ser vendido por 65:000$000. Três lustros antes, não se encontrariam quem offerecesse 50$ por
egual terreno". Para um histórico da abertura de um conjunto expressivo de seringais no Alto Juruá e dos
processos posteriores de transferência entre sucessivos donos, até o início dos anos de 1920, consultar
Castello Branco, 1930: 605-39.
26
Dados sobre o crescimento populacional da Amazônia a partir de 1870 indicam o vigor desse desloca-
mento humano, induzido pelos seringalistas, as casas aviadoras e o governo central, ainda que os números
devam ser analisados com precaução, conforme alerta Ferreira Reis (1953: 41), devido à inexistência de
"estatísticas seguras". Caio Prado Jr. (1984: 240) destaca a "transformação" vivida pela Amazônia durante
os anos de crescimento da economia da borracha, ao indicar o aumento da população de 337 mil em 1872
para 476 mil em 1890 e para 1,1 milhão em 1906, quando Belém contava com 170 mil habitantes e Ma-
naus com 70 mil. Benchimol (1989) contabiliza que, entre 1877 e 1900, 158.125 nordestinos teriam che-
gado à região, "cerca de 20% da população amazônica da época", e outros 150 mil teriam para ali migra-
do até o "início da depressão", em começo dos anos de 1910. O crescimento da população na Amazônia
pode ser constatado, segundo Benchimol, ao se comparar os dados dos censos de 1872 e 1900, quando fo-
31
Financiados pelas casas aviadoras, os seringalistas mais capitalizados, pessoal-
mente ou por meio de agentes que percorriam diferentes regiões do Nordeste, jogariam
relevante papel, até começo dos anos 1910, no recrutamento e no transporte de traba-
lhadores, em sua maioria, homens e rapazes solteiros, para os altos rios do Território
Federal
27
. Eram os "brabos", como passaram a ser conhecidos nos seringais os trabalha-
dores recém chegados, ávidos por constituir riqueza e retornarem às suas regiões de ori-
gem. Após um período de adaptação, muitas vezes marcado por doenças, privações e
dívidas elevadas no barracão de seus patrões, os "brabos" tornar-se-iam "mansos", se-
ringueiros com conhecimentos necessários à produção da borracha, à obtenção na flo-
resta de parte de sua alimentação e à compreensão das relações de autoridade e de sujei-
ção vigentes nos seringais (Cunha, 1976: 109-12; 280-81; Castello Branco, 1930: 604;
1961: 151-52; Costa, 2003: 49-51; Reis, 1953: 116; Tocantins, 1973: 136).
A entrada das primeiras levas de nordestinos no rio Juruá data de 1877 (Castello
Branco, 1930: 134)
28
. Sua chegada à foz do rio Tarauacá, seu principal afluente da mar-
gem direita, ocorreria quatro anos depois. Em 1882, Manoel dos Santos abriria o serin-
gal São Felipe, "exploração" que revendeu ao comerciante português José Joaquim Di-
as, que ali estabeleceria uma casa de negócios e hospedagem
29
.
O funcionamento dessa
ram registrados, respectivamente, 332.847 e 695.112 habitantes. Ainda que considere a cifra "não muito
realista", Santos (1980) apresenta números significativamente menores aos de Caio Prado Jr., indicando,
para o período de 1870-1910, a chegada de 500 mil pessoas à região.
27
Castello Branco (1961: 151-52) faz referência ainda, no período inicial da implantação dos seringais no
Território do Acre, às atividades dos seringalistas e seus agentes em viagens até Belém e Manaus, onde se
concentrava grande quantidade de migrantes nordestinos, ali chegados e hospedados como resultado de
ações custeadas com recursos do governo imperial. Para descrições das péssimas condições em que os
nordestinos eram trazidos para a Amazônia, ver Villanueva, 1902: 385-6; Mendonça, 1989 [1907]: 238;
Cabral, 1984: 31-4; Castello Branco, 1961: 150-52. Um diganóstico das principais doenças, e das causas
mortis, na cidade de Manaus e no baixo curso do rio Juruá, por onde os migrantes nordestinos passavam,
antes de penetrar para os altos rios, é apresentado por Mendonça (1989: 234-52). Além destas doenças, as
péssimas condições nos navios de carga que levavam os nordestinos contribuíram, significativamente, pa-
ra uma elevada mortandade durante as viagens, além de para a introdução e a disseminação dessas doen-
ças nos seringais dos altos rios. Sobre o quadro epidemológico nos seringais, com base em relatórios ofi-
ciais da época, ver Castello Branco, 1961: 143-45.
28
Nos Anexos, consultar o Mapa 2, que mostra os principais rios no Acre, permitindo ver os diferentes
cursos usados pelos nordestinos ao subirem rumo às cabeceiras do rio Juruá e de seus afluentes.
29
Em 1892, São Felipe (hoje Eirunepé) seria elevada a sede do Município de São Felipe do Juruá, criado
com o desmembramento do Município de Tefé - que no ano anterior, tivera outra parte de seu território
desmembrada para a criação do Município de Xibauá (hoje Carauari). Até 1904, constituiria a principal
vila em todo o curso do rio Juruá (Azevedo, 1905: 2). O crescimento da população do Município de Tefé
por sua vez, permite indicar a intensificação do povoamento no rio Juruá nas últimas duas décadas do sé-
culo XIX. Segundo o Censo de 1872, a população da Paróquia de Santa Tereza de Tefé era de 2.213 pes-
soas, cifra que passou a 6.512 no Censo de 1890. Se incluídos os números relativos à Paróquia de Nossa
Senhora de Guadalupe, com sede em Fonte Boa, também na jurisdição no Município de Tefé, os números
da população desse município cresceram de 2.916 em 1872 para 11.341 em 1890. Nesse mesmo período,
percebe-se uma ligeira alteração na composição sexual da população do município: em 1872, os homens
representavam 50,6% do total, proporção que alcançaria 56% em 1890. Dados do Censo de 1900, por sua
vez, indicam um ligeiro decréscimo da população do Município de Tefé (que incluíam os dados de São
32
casa comercial e o início da operação, em 1883, das primeiras linhas de vapores até São
Felipe constituíram relevantes fatores de apoio à continuidade da penetração do rio Ju-
ruá e dos baixos cursos dos rios Tarauacá e Envira (Castello Branco, 1947: 192; 1961:
215). Naquele mesmo ano, os exploradores passavam da foz do rio Gregório e aden-
travam o Riozinho da Liberdade, outros dois afluentes da margem direita do Juruá. A
abertura de seringais no alto curso do Juruá e seus afluentes, até a foz do rio Breu, ponto
a partir do qual a "hevea brasiliensis" (a "seringa real") se torna rara (Mendonça, 1989:
74; Tastevin, 1920; Almeida, 2004: 36), foi concluída em meados da década de 1890,
quase dez anos antes, portanto, da criação do Território Federal do Acre, em 1903, e da
fundação de Cruzeiro do Sul, capital do Departamento do Alto Juruá, em 1904
30
.
Os dados estatísticos relativos à chegada dos nordestinos aos altos rios Juruá, Pu-
rus e Acre e seus afluentes também apresentam consideráveis divergências. Segundo
Tocantins (1973: 138), em 1900, a "região acreana" contava com uma população calcu-
lada em 15 mil pessoas. Um montante bastante superior, entre 60 e 70 mil pessoas, é es-
timada por Ferreira Reis (1953: 41) em 1900, e entre 60 e 80 mil por Castello Branco
(1961: 180), três anos depois, quando da anexação do Acre ao território brasileiro e da
criação do Território.
Também com consideráveis disparidades, outros autores tomam como referência
para o cálculo dessa migração os primeiros anos da década de 1910, quando o declínio
nos preços da borracha no mercado internacional é considerado, em boa parte da histo-
riografia, como o início de um período de "despovoamento" dos seringais. Segundo
Caio Prado Jr. (1984: 240), mais de 50 mil pessoas povoavam o Território Federal em
1910, fruto de uma "febre" que enriquecera "aventureiros", transformara a Amazônia
não numa "sociedade organizada", mas num "acampamento", e acabaria subitamente,
como um "castelo de cartas" a ruir, sem nada deixar de "sólido ou ponderável". O esta-
tístico Craveiro Costa (2003: 52-3), por sua vez, estima que, em 1912, cerca de 40 mil
Felipe), contabilizada em 10.995 pessoas, indicando uma possível migração de parte dos moradores para
regiões de seringais mais produtivos, especialmente no Território Federal do Acre. Neste último censo,
por sua vez, os homens representavam 59% do total da população do município (Brasil, Governo Imperi-
al, 1876; Brasil. Ministério de Indústria, Viação e Obras Públicas [Directoria Geral de estatística], 1898,
1905).
30
Sobre diferentes aspectos dos processos de exploração e abertura de seringais e de inicial povoamento
no alto rio Juruá e seus afluentes, consultar Parissier, 1898; Azevedo, 1905, 1906; Mendonça, 1989; Tas-
tevin, 1920; Castello Branco, 1930, 1947, 1961; Almeida, 1993; Wolff, 1999; Correia, 2001; Cunha &
Almeida, 2002; Coutinho Jr., 2003; Pantoja, 2004; e Martini, 1998, 2005. Sobre o Riozinho da Liberdade,
ver Tastevin, 1928; Cabral, 1984; e Aquino, 2001; e sobre o rio Gregório, consultar Naveira, 1999; e Ma-
ciel, 2005. Sobre o rio Tarauacá, cuja ocupação será objeto de uma análise mais detalhada adiante, ver I-
glesias, 1995 e 1998.
33
homens viviam nos seringais acreanos, contingente que, estima, seria necessário à pro-
dução das pouco mais de 12 mil toneladas de borracha, alcançada nos seringais do Ter-
ritório naquele ano; outros seis mil estariam então dedicados a uma diversidade de tare-
fas necessária ao funcionamento dos seringais. Somados à população das sedes dos três
departamentos e das vilas, incluídas mulheres e crianças, segundo Costa, 70 mil pes-
soas, viveriam então no Acre, uma população que, apesar de ter contribuído de forma
decisiva para a definição dos limites territoriais do país e para as finanças públicas, pou-
ca atenção recebera do governo federal e, conforme defendia, não deveria ficar despre-
zada num momento em que a economia da borracha começava a enfrentar grave crise.
Dados oficiais produzidos pela Diretoria Geral de Estatística, do MAIC, ultrapas-
sam esses últimos números, sem discriminar, contudo, a proporção da população que
vivia nos seringais e nas sedes departamentais. Para 1908, primeiro ano para o qual da-
dos relativos ao Território Federal do Acre foram relacionados no "Anuário Estatístico
do Brasil", a população foi contabilizada em 65.000, aumentando para 69.457 em 1909,
74.484 em 1910, 80.175 em 1911 e 86.638 em 1912 (Brasil. MAIC, Directoria Geral de
Estatística, 1916: 258-59).
Informações populacionais específicas para a região do Alto Juruá, resultantes de
levantamentos e censos oficiais realizados a partir de 1905, igualmente marcados pela
parcialidade do universo efetivamente apurado, também dão indicações da consolidação
e da magnitude do povoamento dos seringais logo após a criação do Território Federal.
Em 1905, o Coronel de Engenheiros Belarmino Mendonça, chefe brasileiro da
Comissão Mista Brasil-Peru de Reconhecimento do Rio Juruá, contabilizou 151 serin-
gais (71 na margem esquerda e 80 na direita) entre a foz do rio Juruá e a do rio Taraua-
(Mendonça, 1989: 54-5), ou seja, no curso do rio Juruá em território do Estado do
Amazonas, numa extensão de 1.850 km. Registrou também a existência de 173 barra-
cões em seringais situados nas margens do Juruá entre a foz do rio Tarauacá e a do rio
Breu
31
. Quase 25 anos após o início do povoamento do rio Juruá, havia então abertos,
segundo esses dados, um total de 224 seringais em todo seu curso em território brasilei-
ro, ocupados por 49.803 habitantes
(ibid: 61-63). Deste total, 14.208 pessoas, ou 28,5%,
31
Cabe notar que um considerável trecho do rio Juruá, entre as cidades de São Felipe, na foz do rio Ta-
rauacá, e Cruzeiro do Sul, uma extensão de cerca de 1.270 km, incide, até hoje, no Estado do Amazonas.
O trecho entre a foz do rio Tarauacá e a foz do rio Breu é considerada por Mendonça como o "médio Ju-
ruá"; o trecho do "alto Juruá" serviria à identificação do curso do rio acima do rio Breu, ponto que, a par-
tir das conclusões dos trabalhos da Comissão Mista Brasil-Peru, em 1906, passou a determinar parte da
fronteira internacional entre os dois países. Definido o traçado da linha de fronteira, o "Alto Juruá" passa-
ria a determinar para o governo brasileiro o trecho desse rio entre a cidade de Cruzeiro do Sul, capital do
Departamento do Alto Juruá, e a foz do rio Breu.
34
viviam no Departamento do Alto Juruá, no Território do Acre (ibid: 210), distribuídas
em 74 seringais (Almeida, 1992: 13).
O primeiro censo oficial do Departamento do Alto Juruá, promovido pela Prefei-
tura em dezembro de 1904, em 112 seringais dos rios Juruá, Juruá-Mirim, Moa, Paraná
da Viúva e Gregório, todos no Território Federal, logrou atingir apenas parte da popula-
ção residente, contabilizando um total de 6.974 pessoas. Deste total, 5.087 (73%) e-
ram homens, 3.634 (52%) tinham idade acima de 21 anos e 5.021 (70%) "não sabiam
ler" (Azevedo, 1905: 23).
Neste censo, esclarece o então Prefeito, Coronel Gregório Thaumaturgo de Aze-
vedo, não foram incluídos os habitantes do vale do rio Tarauacá e de alguns tributários
do rio Juruá, e nem as "numerosas tribos indígenas", "algumas meio civilizadas e outras
ainda bravias", distribuídas entre as cabeceiras do rio Tarauacá e os afluentes da mar-
gem direita do Juruá. Neste último caso, Azevedo parece fazer referência não ao mon-
tante populacional, mas sim à considerável quantidade de grupos indígenas que viviam
em regiões cujo povoamento fazia pouco fora consolidado, e onde as "correrias" e en-
frentamentos armados eram constantes, fatos que levariam o Prefeito a declarar a urgen-
te necessidade de que "se catechise esses verdadeiros brazileiros, vitimas da ganancia
deshumana dos civilizados" (Azevedo, 1905: 22).
Em 1905, o segundo recenseamento promovido pela Prefeitura, "apesar de não ter
colhido o total dos habitantes", contabilizou, em 90 seringais no alto rio Juruá e seus a-
fluentes, um total de 7.781 pessoas (5.880 homens e 1.901 mulheres) (Azevedo, 1906:
45)
32
. O censo novamente constatou uma proporção bastante maior de homens (75,6%)
em relação às mulheres (24,4%), e das pessoas que não "sabiam ler" (5.519, ou 70,9%)
em relação aos que "sabiam" (2.262, ou 29,1%)
33
.
32
Este censo de 1905 apurou um total de 14.208 pessoas em todo o Departamento do Alto Juruá (incluin-
do os rios Juruá e Tarauacá e seus respectivos afluentes. Destas, 10.581 eram homens (74,5%) e 3.627
mulheres (25,5%). A população de Cruzeiro do Sul, abrangendo apenas o alto rio Juruá e seus afluentes,
continuaria a crescer significativamente nos anos seguintes: 8.053 em 1908, 9.458 em 1909, 11.109 em
1910 e 13.048 em 1911. No ano seguinte, quando a produção de borracha na região amazônica atingiria
seu maior patamar, a população de Cruzeiro do Sul foi contabilizada em 15.325 pessoas, tendo pratica-
mente duplicado, portanto, desde 1905 (Brasil. MAIC (Diretoria Geral de Estatística), 1916: 350). Após
desobrigas realizadas em todo o curso do rio Juruá, o padre Constant Tastevin informa ter encontrado em
1912 cerca de 12 mil pessoas no rio Juruá, no trecho localizado no Território do Acre. A população da ci-
dade de Cruzeiro do Sul, nessa mesma época, foi estimada pelo padre em 6 mil habitantes. Estimou outras
12 mil pessoas no vale do rio Tarauacá, além de 1000 em Vila Seabra. Além desses 40.000 "civilizados"
que o padre estimou em todo o Alto Juruá e seus afluentes, calculou que os indígenas talvez não alcanças-
sem 4 mil (Tastevin, 1920: 140).
33
Sobre esses dados são as seguintes as conclusões do Prefeito Azevedo (1906: 45): "Os que pensam que
tirem as naturaes deducções da desproporção constatada entre homens e mulheres, refletindo também
sobre o pavoroso cancro do analphabetismo. Estes dois males explicam muitos desequilibrios moraes dos
35
A análise das informações acima permite desnaturalizar uma afirmação recorrente
na historiografia, que enfatiza a quase total inexistência das mulheres nos seringais du-
rante as primeiras décadas do povoamento. Focada em boa parte na descrição da ativi-
dade de produção da borracha e da chamada "Revolução Acreana", que teria levado à
constituição do Território Federal, nas quais os homens supostamente protagonizavam
um papel quase que exclusivo, a historiografia torna invisível o papel das mulheres no
povoamento e na esfera do trabalho dos seringais. Ao aparecer de maneira pontual e
muitas vezes episódica nesses textos e na literatura, a presença feminina nos seringais é
usualmente explicada quase que exclusivamente pela captura de mulheres indígenas du-
rante as "correrias" promovidas contra as malocas ou pela prática dos patrões de traze-
rem prostitutas dos cabarés de Manaus e Belém, depois vendidas aos seringueiros mais
trabalhadores.
Apesar da elevada proporção de homens, que em alguns rios acreanos chegaram a
representar 75% do total da população, dados dos censos oficiais, excertos da literatura
produzida por viajantes e cronistas, peças judiciais tramitadas em fóruns locais, jornais
da época, depoimentos orais dos descendentes dos primeiros povoadores, bem como
textos mais recentes de antropólogos e historiadores, permitem vislumbrar a presença
de mulheres e de famílias inteiras, com crianças, nas viagens que levavam aos seringais
abertos no Alto Juruá, e, nos anos seguintes, sua participação na vida cotidiana dos se-
ringais e nos centros urbanos
34
. A análise atenta dos dados populacionais do segundo
censo promovido pela Prefeitura do Alto Juruá em 1905, discriminados por seringais,
permite constatar, ainda, que em alguns locais a disparidade entre homens e mulheres
não era tão elevada.
Por outro lado, é digno de nota que os primeiros censos e documentos oficiais ne-
nhuma informação quantitativa aportam sobre o contigente populacional dos grupos in-
dígenas na região, restringindo-se, na maioria dos casos, à citação da variedade de po-
vos encontrados pelos exploradores, dos freqüentes confrontos com os seringueiros, das
dificuldades que os ataques dos indígenas às colocações interpunham ao povoamento e
povoadores desta região". Oito anos antes, em 1897-98, o padre francês Jean Baptiste Parissier, na pri-
meira desobriga realizada por um representante da Congregação do Espírito Santo no alto rio Juruá, inclu-
iria a bebida, as rixas e a vingança dentre as principais "chagas" que afligiam a população dos seringais
(Parissier, 1898).
34
Consultar Wolff (1999: 57-91), para uma análise densa e bem ilustrada da presença feminina no inicial
povoamento dos seringais no Acre, baseada, inclusive, em pesquisa de autos de processos civis e crimi-
nais depositados no Fórum de Cruzeiro do Sul desde os primeiros anos do século passado. Ver também
Simonian, 1995, para dados sobre outras situações na Amazônia; e Neves, 2006, para uma breve proble-
matização dessa "ausência" das mulheres no que denomina a "historiografia clássica" acreana.
36
à produção da borracha e, em alguns casos, à necessidade de políticas e ações destina-
das à sua "pacificação" e "catequese". Essa carência de dados quantitativos sobre o
montante do contingente indígena também contribuiu para reforçar, cabe ressaltar, as a-
firmações quanto à ausência de mulheres à época da abertura e do inicial funcionamento
dos seringais na região.
Por fim, desperta a atenção a existência de uma considerável parcela da população
"letrada", ou que "sabia ler", conforme especificam os dados dos primeiros censos reali-
zados pela Prefeitura do Alto Juruá, ainda que ela fosse bem inferior à da população não
letrada, que oscilava próxima aos 70% do total. É fato que parte substancial da popula-
ção letrada estava concentrada nos nascentes núcleos urbanos, em atividades comerciais
e da administração pública, ou dedicada a ofícios, como os de guarda-livros e noteiros,
indispensáveis ao gerenciamento dos seringais. Todavia, parte notável dessa mesma po-
pulação era composta por seringueiros, conforme é possível constatar ao analisar os da-
dos do censo discriminados por seringal. Este fato coloca, portanto, outro contraponto
relevante às análises que usualmente subjazem à historiografia tradicional, que atribui
ao analfabetismo dos seringueiros a possibilidade dos seringalistas auferirem ganhos a-
dicionais em seus barracões, por meio de práticas comerciais lesivas na aquisição da
borracha e na venda das mercadorias, com vistas a viabilizar o permanente endivida-
mento dos seus fregueses e a imobilização de sua força de trabalho nos limites do serin-
gal.
No rio Tarauacá
Variam de 1885 a 1889 as datas apresentadas por diferentes autores para a chega-
da dos primeiros exploradores nordestinos à confluência dos rios Tarauacá e Murú, lo-
cal onde seria aberto o seringal Foz do Murú (Castello Branco, 1947: 192-3; 1958: 78-
9; Tastevin, 1920: 135; 1925: 419; 1926: 47; IBGE, 1957a: 81). A fundação de um por-
to na Foz do Murú, em 1889, e sua posição estratégica, apontam esses documentos, te-
ria levado à sua consolidação, inicialmente, como ponto de apoio às levas de "desbra-
vadores" que iniciavam a exploração de seringais nos rios Tarauacá e Murú, e, a partir
da criação do Território Federal, como principal centro urbano e comercial no rio Ta-
rauacá
35
.
35
Quando ainda pertencia ao Estado do Amazonas, Foz do Murú foi sede de distrito do Município de São
Felipe. Quando da instalação do Departamento do Alto Juruá, em 1904, o primeiro prefeito, Thaumaturgo
de Azevedo, criou, pelo Decreto nº 5, de 16 de setembro, um posto fiscal no lugar Esperança, defronte à
Foz, para o controle e a taxação da produção de borracha oriundas dos rios Tarauacá e Murú. Em maio de
37
O padre francês Constant Tastevin, da Congregação do Espírito Santo, que reali-
zou "desobrigas" e pesquisas etnológicas em meados dos anos 1920 nos rios Tarauacá e
Murú, data em 1890 o início da "invasão" desses dois rios pelos "cristãos". Segundo o
padre, a exploração e o povoamento permanente de todo o vale do rio Tarauacá teria si-
do concluída nos 13 anos seguintes: em 1900 os nordestinos chegavam à foz do rio Jor-
dão e três anos depois ao Nova Minas, seringal mais às cabeceiras do Tarauacá (Taste-
vin, 1926: 47). Explorado a partir da mesma época, o rio Murú era cursado, acima do
Iboiaçú, seu afluente da direita, em 1899 (Tastevin, 1925: 419; Castello Branco, 1961:
218).
Apesar das elevadas baixas entre os recém chegados, frutos de doenças contraídas
nos navios ou na floresta, ataques de índios e "crimes sem solução", a chegada de novas
levas anuais de seringueiros levaria a um crescimento significativo da população nos se-
ringais do rio Tarauacá nas duas primeiras décadas de exploração. O primeiro censo ofi-
cial promovido pela Prefeitura do Alto Juruá, em 1905, registrou no rio Tarauacá e seus
tributários (Murú e Envira), 6.427 pessoas, distribuídas em 115 seringais: um total de
4.701 homens (73,1%) e 1.726 mulheres (26,9%). Deste total, 1.663 (25,9%) sabiam ler
(Azevedo, 1906: 45). Dados do Annuário Estatístico do Brazil, comprovam o significa-
tivo crescimento da população no Vale do Tarauacá, agregada sob a categoria "Villa
Seabra", que praticamente duplicou durante os últimos anos do período de apogeu da
economia da borracha: 8.947 no ano de 1908, 10.052 em 1909, 12.343 em 1910, 14.497
em 1911, chegando a 17.028 em 1912, quando da criação do Departamento do Taraua-
cá, desmembrado do Departamento do Alto Juruá (Brasil. MAIC (Diretoria Geral de Es-
tatística), 1916: 350)
36
.
1905, ali criou a Villa Andrada, em homenagem ao "Patriarca da Independência", e a Escola Amazônia.
Nesse ano, o primeiro censo do departamento ali registrou 32 moradores (26 homens e 6 mulheres) (Aze-
vedo, 1906: 49). Em janeiro de 1907, o então prefeito do Departamento do Alto Juruá, João Virgolino de
Alencar, ali fundou a Villa Seabra, em homenagem a José Joaquim Seabra, Ministro da Justiça e dos Ne-
gócios Interiores, em cuja administração fora instalado o Território do Acre (Castello Branco, 1947: 195).
Em 1909, pouco mais de 80 barracas e barracões, todos de paxiúba e palha, estavam distribuídos em Villa
Seabra, na margem esquerda do Tarauacá, e outros dois núcleos menores, Villa Andrade e Villa Itama-
raty, estavam situados na confluência dos rios Tarauacá e Murú, na margem oposta (Araújo, 2003: 164).
36
Dados parciais da Delegacia de Recenseamento e Estatística do Departamento de Tarauacá, referentes
ao censo populacional que a Prefeitura realizava no segundo semestre de 1913, indicariam, por sua vez,
um total de 10.215 pessoas: 952 em Villa Seabra, 3.753 pessoas (2.769 homens e 984 mulheres) no rio
Tarauacá, 3.392 (2.419 homens e 973 mulheres) no rio Envira e 2.168 (1.597 homens e 571 mulheres) no
rio Murú. Nos seringais, portanto, haviam sido até então contadas 9.313 pessoas: 6.785 homens (72,9%) e
2.528 mulheres (27,1%). Do total da população, 6.383 eram maiores de 21 anos; 3.167 sabiam ler, 4.571
não sabiam e 2.477 eram crianças; 2.252 eram casados, e 7.963 não, aí incluído um limitado número de
viúvos. Eram as seguintes as informações quanto à origem da população, por estado: 5.832 CE, 2.138
Território do AC, 473 AM, 348 RN, 281 PB, 183 PA, 149 MA, 145 PE, 109 BA, 98 PI, 72 SE, 67 AL, 21
RJ, 7 MG, 5 SP, 5 RS e 3 ES. Dentre os estrangeiros, constavam 147 peruanos, 57 "turcos", 54 portugue-
38
Esse crescimento populacional caminhou junto com um considerável aumento da
produção de borracha no vale do Tarauacá, indicando uma forte especialização das ati-
vidades realizadas nos seringais ali situados. Nos últimos três meses de 1904, a produ-
ção dali oriunda chegaria a pouco mais de 563 toneladas (Azevedo, 1905: 36a). Em
1905, a exportação feita por Manaus e Belém alcançaria as 905 toneladas, e somaria 826
toneladas no primeiro semestre de 1906 (Mendonça, 1989: 219-220). No período 1905-
1912, a produção agregada dos seringais do rio Tarauacá e de seus afluentes representa-
ria pouco mais da metade dos 26.134.852 quilos de borracha exportados do Departa-
mento do Alto Juruá para Belém e Manaus (Castello Branco, 1930: 709)
37
.
Ainda em 1905, não havia qualquer linha regular, subsidiada pelo governo fede-
ral, operando com o transporte de borracha e mercadorias pelo rio Tarauacá, acima da
Vila de São Felipe. Este serviço permanecia a cargo de navios pertencentes a casas co-
merciais de Belém e Manaus (Azevedo, 1905: 27), servindo também ao transporte dos
trabalhadores agenciados pelos seringalistas. Os principais gêneros alimentícios consu-
midos nos seringais do rio Tarauacá eram em sua quase totalidade importados dessas
praças
38
. Eram comuns nesta época os períodos em que mercadorias faltavam nos bar-
racões, principalmente no auge dos meses de seca, quando o transporte nos navios era
dificultado
39
.
ses, 8 italianos, 6 alemães, 3 franceses e 1 norte-americano. Completavam a população 519 índios "semi-
civilizados, de diferentes tribus" (Brasil. MJ. Prefeitura de Tarauacá, 1914. In: O Estado, Vila Seabra,
Ano I, Nº 19, 11/7/1914, pg. 2).
37
Já em 1899, o Território do Acre respondia por mais de 60% da borracha produzida no Estado do Ama-
zonas, pouco mais de 12.000 toneladas (Costa, 2003: 52) e em 1907, com pouco mais de 11.000 tonela-
das, passaria a ser a principal zona produtora (Prado Jr., 1985: 237). A borracha assumiria um relevante
no total das exportações brasileiras: entre 1889-1897 teria uma participação média de 11,8% e entre 1898-
1910 de 25,7% (Martinello, 1989: 48-9). No quinquênio 1906-1910, as exportações de borracha contribu-
iriam com valor equivalente a 60% das do café, então maior produto nacional de exportação. Em 1910, as
exportações de café representariam 41,3% do total, ficando a borracha com 39% (Brasil. MAIC, 1911:
156). No período de 1904-1912, o Território do Acre exportaria 71.895 toneladas, ou 21,4% das exporta-
ções totais de borracha nativa da região amazônica (Guerra, 1955: 281; Martinello, 1988: 48). A produção
do Alto Juruá, por sua vez, manteve considerável participação no montante exportado do Acre até 1912,
com relevantes ganhos para o tesouro nacional, que arrecadava imposto de exportação sobre o valor da
produção oriunda do Território: inicialmente de 18%, depois elevado para 23%. Segundo estimativas de
Castello Branco (1930: 709), as pouco mais de 26.000 toneladas de borracha exportadas do Alto Juruá
nos primeiros oito anos da administração federal (1905-1912) teriam atingido, a um preço médio de $
6/kg, um "valor aproximado de 156.809:112$000, sobre o qual o governo da União teria arrecadado, a-
proximadamente, 31.000:000$000", ou seja, 19,7%.
38
Em seu segundo relatório semestral, o Prefeito do Alto Juruá relaciona os principais gêneros alimentí-
cios e as "estivas" importados de Belém e Manaus e consumidos nos seringais do rio Tarauacá ao longo
de 1905: "farinha d'água, frasqueiras de cachaça, carne em conserva e charque, fumo, açúcar, feijão, vi-
nho, sabão, sal, arroz, café, leite condensado, além de querosene, tigelas de seringa e balas de rifle" (A-
zevedo, 1906: 102). Para uma lista mais extensa das mercadorias, alimentos, vestuários e objetos envia-
dos pelas casas aviadoras aos seringais durante o período do apogeu, ver Reis, 1953: 87.
39
Demoradas viagens, em canoas e barcos movidos a varejão, eram necessárias nos meses secos para os
patrões abastecerem seus barracões, em casas comerciais na Villa Seabra ou em depósitos e entrepostos
39
A leitura de certas cartas escritas, em 1909, pelo bacharel em ciências jurídicas e
promotor público Antônio José de Araújo (2003) permite afirmar que estava então esta-
belecida uma rede regular para abastecimento de mercadorias e a canalização da borra-
cha ligando a Villa Seabra às cidades de Manaus e Belém, facilitando também o afluxo
de trabalhadores aos seringais no rio Tarauacá. Criada pelo Prefeito Thaumaturgo de
Azevedo em 1906, Seabra se consolidara como principal entreposto no rio Tarauacá. Ali
funcionavam os depósitos das duas principais casas comerciais da época, a Barbosa &
Tocantins, de Belém, e a Alves de Freitas & Cia, de Manaus.
No médio curso do rio, seringais como Lupuna, Apuanã, Universo, América e São
José constituíam importantes pontos de referência comercial para os vapores em suas
viagens anuais. Pouco acima, na foz do rio Jaminauá, funcionava depósito de mercado-
rias onde representantes daquelas duas casas aviadoras estavam estabelecidos e vários
seringalistas das redondezas vinham se abastecer (Araújo, 2003: 153). Na foz do rio
Jordão ficava a sede do comércio de Luiz Francisco de Melo, principal dono de serin-
gais no alto rio Tarauacá, sócio da firma Melo, Frota & Cia, de Belém, e aviador de vá-
rios seringalistas de menor porte no alto Tarauacá e no rio Jordão (2003: 144-48)
40
.
A consolidação da empresa seringalista no rio Tarauacá caminhou com uma gra-
dual definição da propriedade fundiária, conforme pode ser auferido na leitura de relató-
rios da Prefeitura do Alto Juruá, textos historiográficos e das cadeias dominais de vários
seringais ali localizados, levantadas em pesquisas realizadas no Cartório de Registro de
Imóveis de Tarauacá.
Para a década de 1890, Castello Branco (1961: 217-20) apresenta o nome de 22
seringais abertos nos rios Tarauacá e Jordão, por 20 "exploradores" (oito indivíduos e
três grupos de irmãos). Para o "começo do século", relaciona 22 seringais no rio Tarau-
acá e 8 no Jordão, movimentados por 21 seringalistas e duas "sociedades" de patrões.
montados por casas aviadoras de Manaus e Belém em pontos estratégicos ao longo do rio (Araújo, 2003:
147-48).
40
A partir de então, a pequena vila estabelecida na foz do rio Jordão serviu como entreposto comercial de
apoio à atividade gomífera, aproveitando sua localização estratégica no entroncamento desse rio com o
Tarauacá. Em 1905, pelo Decreto N° 21, de 19 de dezembro, o primeiro Prefeito do Departamento do Al-
to Juruá, Taumaturgo de Azevedo, instalou na Foz do Jordão a sede da Oitava Circunscrição de Paz (Cas-
tello Branco, 1947: 196). Apesar do florescente comércio, em 1909 não funcionavam ali uma escola, um
juizado de paz ou uma sub-delegacia de polícia, conforme destacado, criticamente, pelo promotor Anto-
nio José de Araújo (2003: 144-48). Com a criação do Departamento do Alto Tarauacá, em 1912, a Foz do
Jordão passou, no ano seguinte, a ser denominada Villa Jordão (Castello Branco, ibid). Quatro anos de-
pois, em viagem do então Prefeito de Tarauacá, José Thomaz da Cunha Vasconcellos, ainda estava na a-
genda oficial a efetiva instalação da Villa e a inauguração de uma escola e uma "delegacia auxiliar" de
polícia (Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano II, Nº 44, 11/2/1917, pg. 3), o que acabaria por não
acontecer.
40
Em setembro de 1909, após viagem ao rio Tarauacá, o promotor público Antônio José
de Araújo relaciona 36 seringais entre as cabeceiras do rio e a Villa Seabra, movimen-
tados por 19 proprietários, 11 sociedades de proprietários e duas companhias, e outros
12 seringais no rio Jaminauá, afluente da margem direita do Tarauacá, pertencentes a
vários seringalistas. Nessa lista, Araújo não fornece qualquer dado sobre os seringais no
rio Jordão (2003: 156-57)
41
.
A comparação dessas listagens e a leitura das cadeias dominiais permitem afirmar
que, assim como ocorrera no Alto Juruá, os pioneiros pela abertura e exploração de vá-
rios seringais no rio Tarauacá foram responsáveis pela constituição de um movimentado
mercado de terras. "Posses" e "explorações" foram revendidas, com bons lucros, a pes-
soas mais capitalizadas ou a sociedades de proprietários, financiadas por casas aviado-
ras, e interessadas na administração dos seringais e em seu povoamento com a importa-
ção de trabalhadores. Algumas "explorações" de maior extensão seriam desmembradas
em seringais menores e, nos primeiros anos do século passado, outros seriam abertos
em afluentes até então pouco explorados, por exemplo, nas nascentes do rio Tarauacá e
nos rios Jordão e Jaminauá.
Os dados das diferentes listagens evidenciam, no período de apogeu da economia
da borracha, uma expressiva presença dos respectivos proprietários na administração
dos seringais, bem como de "sociedades" compostas por diferentes proprietários. Esta
situação diferiria daquela configurada em um período posterior, marcado pelo aprofun-
damento da crise na economia da borracha, em que gerentes, arrendatários e inclusive
representantes de casas aviadoras de Belém e Manaus passariam a fazer essa adminis-
tração local.
As pesquisas em cartório e em relatórios dos primeiros prefeitos do Alto Juruá
permitem constatar também que, até 1904, o Governo do Estado do Amazonas emitira
"títulos definitivos" de seringais no rio Tarauacá e seus afluentes, com base apenas em
41
Edital publicado em junho de 1917 pelo Registro Fiscal Federal, situado em Vila Seabra, intimando os
proprietários a quitarem os "emolumentos" ou multas, relativos ao "registro das patentes de impostos do
consumo" do ano anterior, relaciona quatro seringais no alto rio Tarauacá (acima da Vila Jordão), cinco
no rio Jordão, quatro no paranã Jaminauá, além de outros 19 no curso do rio Tarauacá até a Vila Seabra.
(“Editaes”. Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Vila Seabra, 15/7/1917, pg. 4). Após viajar por toda
a extensão dos rios Tarauacá e Jordão em início de 1924, o padre Constant Tastevin (1926: 49) listaria 11
seringais no alto rio Tarauacá e no rio D'Ouro, no trecho acima da Vila Jordão, 8 no rio Jordão e outros
32 no curso do rio Tarauacá entre a Vila Jordão e a Vila Seabra. Com escassas exceções, os 51 seringais
relacionados por Tastevin permaneceriam os mesmos, e com limites inalterados, apesar das sucessivas
mudanças de proprietários, até início dos anos 1980. A partir de então, um total de 29 seringais, e partes
de outros três, foram gradualmente incorporados ao patrimônio da União, com a criação de seis terras in-
dígenas e uma unidade de conservação de uso sustentável (reserva extrativista).
41
informações e plantas submetidas pelos próprios interessados. A obtenção desses títulos
foi iniciativa de vários seringalistas para comprovar suas propriedades, explicitar seus
limites, discriminar a quantidade de estradas de seringa ali incidentes e, assim, basear
sua capacidade produtiva, de forma a possibilitar a obtenção de crédito junto às casas
aviadoras de Manaus e Belém, para movimentá-los ou para uma futura revenda.
Nesses títulos, as propriedades tinham suas "confrontações" discriminadas pelos
nomes dos seringais limítrofes, com a indicação de seus respectivos donos, ou "com
quem de direito", no caso destes serem desconhecidos quando de seu registro em cartó-
rio. Em outros casos, os "fundos" dos seringais eram estabelecidos pelos divisores ("ter-
ras da divisão") dos rios e igarapés das bacias hidrográficas vizinhas
42
. Posses ou explo-
rações inicialmente registradas com extensões reduzidas, correspondentes às áreas da
sede e das colocações mais próximas, foram progressivamente ampliadas, pela abertura
de novas colocações e estradas de seringa. Nestes casos, era a produção de borracha
efetivamente lograda, ou passível de ser realizada, e não necessariamente o título defini-
tivo lavrado em cartório, que servia aos respectivos proprietários como fundamento pa-
ra a obtenção de crédito junto às casas aviadoras.
Ambos os processos implicaram na consolidação de extensos domínios territoriais
e comerciais em mãos dos seringalistas, bem como na apropriação de consideráveis
quantidades de terras "devolutas", portanto, públicas (Azevedo, 1905: 9; Araújo, 2003:
157-8; 161-3; Castello Branco, 1961: 229; Almeida, 1992: 18-9)
43
. Com a criação do
Território do Acre em 1904, o governo federal temporariamente suspenderia a expedi-
ção de novos registros de terras, devido a uma ação judicial impetrada contra o Estado
do Amazonas
44
, à freqüente ocorrência de problemas pela sobreposição de limites entre
seringais e aos conflitos e questões diplomáticas em curso com o Peru, que pleiteava
42
Em contraponto ao discurso que permeia boa parte dos documentos oficiais e da historiografia, é possí-
vel afirmar que uma significativa proporção dos seringais titulados teve seus limites fisicamente demar-
cados. Levantamento encomendado pelo Prefeito do Alto Juruá em meados dos anos de 1900 indicou, por
exemplo, que dentre os 201 seringais existentes no Departamento 95 estavam efetivamente demarcados,
ou seja, 47% (Azevedo, 1906: 66-7). Conforme colocado por Oliveira (1977, 1977a) a maior preocupação
com a legalização da propriedade fundiária era um das características na empresa seringalista do "modelo
do apogeu".
43
O promotor Antonio José de Araújo, que teceria fortes críticas à apropriação das terras públicas pelos
seringalistas, é um dos poucos a destacar que esse processo também incluíra os territórios dos grupos in-
dígenas: "Se o particular tem terrenos que pertencem à União, ou antes, ao Território, em compensação
não existe um palmo de terra de que elle não tenha se apossado. Até as terras occupadas pêlos índios são
tomadas pelos particulares, que as destroçam e escorraçam dando-lhes correrias em que morrem cente-
nas delles" (Araújo, 2003: 162).
44
O jurista Rui Barbosa seria contratado pelo Governo do Estado do Amazonas e apresentaria, perante o
Supremo Tribunal Federal, a defesa das pretensões do Amazonas sobre as terras que haviam sido trans-
formadas no Território Federal do Acre. As razões apresentadas na defesa formulada por Rui Barbosa e
artigos por ele publicados à época podem ser consultadas em Barbosa (1983, 1984, 1986).
42
sua soberania sobre a região
45
. Em relatórios ao Ministério da Justiça e dos Negócios In-
teriores, os prefeitos departamentais seguidamente reivindicariam a necessidade de uma
urgente regulamentação da situação jurídica das terras públicas no Território do Acre
46
.
A revisão dos títulos emitidos pelo Governo do Amazonas e a promulgação dessa
legislação, contudo, não ocorreriam nos anos seguintes
47
. Prevaleceriam, assim, os títu-
los previamente concedidos e, no caso dos seringais não titulados, a posse, não contes-
tada, dos seringalistas que, após explorá-los ou adquiri-los de terceiros, efetivamente os
ocupavam e movimentavam comercialmente. À época, tanto os primeiro prefeitos do
Alto Juruá como promotores do direito atribuíam a essa indefinição jurídica a sistemáti-
ca apropriação das terras públicas e a "enfeudação" da propriedade da terra, as dificul-
dades colocadas pelos seringalistas ao funcionamento das instituições de justiça, bem
como a impossibilidade da Prefeitura implantar políticas de regularização fundiária que
favorecessem a criação de novas vilas e núcleos rurais, a concessão de pequenas propri-
edades para a fixação do homem à terra, o florescimento da agricultura e uma maior ar-
recadação de impostos (Azevedo, 1905: 9; Andrada, 1908: 19; Araújo, 2003: 157-58;
161-63).
A organização da produção nos seringais
O resultado destes processos ao longo dos primeiros vinte anos do povoamento
foi, portanto, a apropriação, em todo o Alto Juruá e os seus afluentes, das florestas a-
45
Pesquisas em cartórios permitem afirmar, com base na análise das cadeias dominiais de seringais situa-
dos nos rios Juruá e Tarauacá, que, a partir de 1908, tabeliões sediados em Cruzeiro do Sul e, de 1912, em
Villa Seabra, passaram a registrar, nos cartórios locais, escrituras de compra e venda de seringais.
46
Thaumaturgo de Azevedo solicitaria, inclusive, que esse ato legislativo fosse precedido por uma "es-
crupulosa revisão de todas as demarcações, por não serem verdadeiras, e dos respectivos títulos de pro-
priedade" (1906: 66-7). Reforçando esta demanda, encaminhou ofício ao Ministério da Fazenda, em maio
de 1906, denunciando as práticas do Governo do Amazonas, que continuava, contrariando a legislação, a
sancionar vendas, concessões e demarcações de terras no Departamento e a receber os impostos corres-
pondentes. Solicitações semelhantes, quanto à imperiosa necessidade da regularização das "terras devolu-
tas", seriam enviadas, à mesma época, ao Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores pelos outros
dois prefeitos do Território Federal (Brasil. MJ. Prefeitura do Alto Purus, 1905; e Brasil. MJ. Prefeitura
do Alto Acre, 1905).
47
Em março de 1913, o MAIC expediu o Decreto nº 10.105, que aprovava "o regulamento de terras devo-
lutas da União", ato que o Ministro da Justiça e dos Negócios Interiores considerou de interesse princi-
palmente ao Território do Acre (Brasil. Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 1913, pg. S1-44-S1-
61). O decreto, contudo, não chegou a ter a efetividade desejada pelos primeiros prefeitos do Alto Juruá,
por ter sido suspenso, pelo Decreto nº 11.485, de fevereiro de 1915, até que fosse organizada uma nova
lei de terras, que então deveria ser submetida à votação no Congresso Nacional (Brasil, Ministério da Jus-
tiça e Negócios Interiores, 1915: S74), o que acabou não ocorrendo nos anos seguintes. No caso do Acre,
as primeiras ações discriminatórias de terras públicas seriam realizadas pelo Instituto Nacional de Coloni-
zação e Reforma Agrária (Incra) apenas a partir de meados dos anos 1970, num contexto em que investi-
dores do centro-sul do país, com benefícios fiscais e creditícios dos governos federal e estadual, haviam
adquirido grandes parcelas de terras, as quais pretendiam legalizar (Linhares, 1992).
43
proveitáveis para a produção de borracha por um número relativamente restrito de "pro-
prietários", consolidando o seringal enquanto a matriz territorial e econômica e o "avi-
amento" enquanto instituição que permitiria que os patrões atualizassem um modo par-
ticular de organização da produção e de sujeição de suas respectivas "freguesias" de se-
ringueiros. Por meio das atividades dos seringalistas e de seus "empregados"
48
, a sede
do seringal, com seu barracão, constituiria locus de normatização das relações sociais
de produção e, ao mesmo tempo, de comércio com os seringueiros, que permaneciam
distribuídos em "colocações", cada um com uma quantidade variável de estradas de se-
ringa, na qual a produção de borracha era efetivamente realizada.
As relações comerciais realizadas sob o sistema de aviamento estiveram na base
do funcionamento da empresa seringalista. Com créditos ofertados por firmas exporta-
doras e bancos estrangeiros, as casas aviadoras de Belém e Manaus adiantavam merca-
dorias aos seringalistas, mediante o compromisso destes de, ao fim de cada safra anual,
entregar a borracha canalizada dos seringueiros e de pagar os débitos contraídos, que
incluíam despesas com transporte das mercadorias, o escoamento do produto final e os
impostos relativos à sua venda final
49
. Em cada seringal, o aviamento era reproduzido
pelo patrão (categoria genérica que abrangia proprietários, seus "gerentes" e inclusive
os arrendatários) ao fornecer aos seringueiros, seus "fregueses", as mercadorias que ne-
cessitavam para a produção anual de borracha.
Desde a implantação da empresa seringalista, as relações entre patrão e fregueses
estiveram balizadas pelos "regulamentos", normas não escritas que estabeleciam um
conjunto recíproco de responsabilidades e obrigações. Os regulamentos estipulavam
que cabia ao patrão disponibilizar uma colocação com estradas de seringa abertas,
fornecer ao freguês as mercadorias necessárias ao seu consumo, prestar "assistência"
em tempos de doenças e pagar os saldos obtidos ao término da safra. Em contrapartida,
eram atribuições do "freguês" dedicar-se à produção de borracha para quitar suas dívi-
das, respeitar a exclusividade comercial do patrão, entregando sua produção e compran-
48
Descrições das formas de funcionamento da sede dos seringais, e das atividades que cabiam a um con-
junto variável de "empregados" do barracão (dentre eles, o gerente, o guarda-livros, o caixeiro, o combo-
eiro, o mateiro, o toqueiro e o caçador), e de suas relações com o patrão, constam, por exemplo, em Tas-
tevin, 1920; Reis, 1953; Castello Branco, 1961; Tocantins, 1973; Allegretti, 1979, 2002; Almeida, 1992.
49
As casas aviadoras muitas vezes mantiveram os seringais de seus aviados sob hipoteca, como garantia
por créditos, serviços e mercadorias adiantados, levando, com o passar dos anos, e principalmente a partir
do início dos anos de 1910, quando começa a se configurar a crise na economia da borracha, a uma con-
centração de muitas propriedades nas mãos das principais casas comerciais, obtidas como pagamento por
dívidas não pagas (Rego Barros, 1993: 163; Iglesias, 1998).
44
do mercadorias unicamente no barracão, pagar a "renda" das estradas de seringa
50
, não
deixar o seringal enquanto tivesse débitos em aberto e zelar, sob pena de multas, pela
conservação das árvores de seringa (Cunha, 1976: 109-112; Tastevin, 1920: 143).
A majoração dos preços das mercadorias, o pagamento de preços menores pela
borracha, a obrigatoriedade do pagamento da renda das estradas, práticas confiscatórias,
artifícios contábeis (como a cobrança de juros por dívidas atrasadas) e a imposição do
consumo de artigos "de luxo" foram práticas usualmente usadas pelos patrões,
permitindo que boa parte de seus fregueses permanecesse endividada ao final de cada
safra e, portanto, imobilizada nos limites dos seringais
51
. Por meio de persuasão e, em
certos casos, práticas violentas de coerção, cada patrão procurava impor um monopólio
comercial sobre seus fregueses, evitando que vendessem parte de sua produção "para
fora", aos regatões (Tastevin, 1920: 143; Reis, 1953: 94-5; Castello Branco, 1961: 239).
Prolongados períodos de doenças contribuíam, com freqüência, para reforçar o endivi-
damento e a sujeição dos seringueiros, apesar do que estabeleciam os regulamentos
quanto à "assistência" que deveria ser prestada pelos patrões nessas situações.
Acordos tácitos entre patrões vizinhos previam a devolução dos "fugitivos" a seus
seringais de origem, quando saídos sem a quitação de suas dívidas no barracão ou a
obrigatória autorização de seus respectivos patrões. Assim, mudanças de seringal
eram idealmente passíveis de ocorrer caso o novo patrão se comprometesse a assumir os
débitos do freguês, pelo que geralmente lhe cobrava juros elevados por essa vida
assumida. Em casos de expulsão da colocação, o seringueiro nada costumava receber
como indenização por eventuais benfeitorias implantadas durante sua permanência
(Castello Branco, 1961: 245).
Nas décadas de apogeu da economia da borracha, poucos foram os patrões que
optaram por iniciar atividades agrícolas ou a criação de animais de alguma monta em
50
No Alto Juruá, desde a abertura dos seringais, a renda das estradas, paga anualmente, variou entre 66 e
70 quilos de borracha por "parelha", ou seja, por duas estradas. Apesar das variações entre os acordos tá-
citos entre patrões e seringueiros relativos ao pagamento da renda, especialmente durante o pior período
de crise na economia da borracha, nas décadas de 1920-1930, o pagamento perduraria, com raras exce-
ções, até meados dos anos 1980, tendo aquele montante permanecido como referência nas negociações
em várias conjunturas.
51
Quando recém chegado ao seringal, corriam por conta do freguês as despesas pelo seu transporte, os
instrumentos de trabalho e as mercadorias que consumia durante a construção do tapiri para sua moradia e
a (re)abertura das estradas de seringa, implicando numa elevada dívida inicial em sua conta aberta no bar-
racão do patrão. Esta dívida era acrescida durante o período de socialização do seringueiro ainda "brabo"
e, nos anos seguintes, durante os meses mais chuvosos, quando ficava praticamente inativo. Euclides da
Cunha fornece dados quantitativos sobre as dívidas assumidas por um seringueiro recém chegado ao Acre
em meados dos anos 1900 (Cunha, 1976: 109-10).
45
seus barracões
52
. Na maioria dos seringais, os fregueses não recebiam qualquer incenti-
vo para cultivar roçados de subsistência; ao contrário, chegavam a ser proibidos de fa-
zê-lo (Castello Branco, 1961: 240). Dispor de uma força de trabalho voltada exclusiva-
mente à produção de borracha era duplamente lucrativo para o patrão. Por um lado, as-
segurava uma utilização mais intensiva da mão de obra dos seringueiros e do potencial
produtivo dos seringais, viabilizando o acesso a um maior montante de crédito junto às
casas aviadoras; por outro, garantia a venda, no barracão, das mercadorias necessárias à
vida dos fregueses, e suas famílias, na floresta (Tastevin, 1920: 143)
53
.
As observações de Euclides da Cunha sobre o funcionamento dos seringais no rio
Purus em 1905 levaram-no a afirmar que estava ali configurada "a mais criminosa orga-
nização do trabalho que ainda engenhou o mais desaçamado egoísmo", e que o serin-
gueiro era "o homem que trabalha para escravizar-se" (Cunha, 1976: 109; 131). São co-
piosas na historiografia e nos textos de viajantes e cronistas, por outro lado, as menções
à truculência dos patrões durante as primeiras décadas de funcionamento da empresa se-
ringalista, resultando em freqüentes arbitrariedades, atos de violência, castigos físicos,
assassinatos encomendados e crimes sem punição. Uma imagem recorrentemente nesses
textos e inclusive em depoimentos orais atuais para retratar a situação vigente antes da
instalação da Prefeitura do Alto Juruá, quando os poderes judiciário e policial do Estado
do Amazonas nenhuma atuação ou influência tinham na região, é a da vigência da "lei
do 44", do "rifle" ou do "papo amarelo", com referência ao Winchester calibre 44
54
.
52
Ainda que esta fosse de fato uma realidade generalizada, recorrentemente enfatizada na historiografia e
na literatura, há relatos de cronistas e textos de historiadores que indicam que certos seringalistas haviam
iniciado plantações no entorno de seus barracões e a criação de pequenos rebanhos bovinos, bem como
montado engenhos de cana e casas de farinha. No Alto Juruá, menções recorrentes são feitas às iniciativas
dos seringalistas Francisco Freire de Carvalho, no Riozinho da Liberdade, a Mâncio Agostinho Rodrigues
de Lima, na Fazenda Aurora, e a Absolon Moreira no rio Amoacas (Cruzeiro do Vale). Ainda que pontu-
ais, há indicações, da mesma forma, sobre a permissão concedida por patrões a seus fregueses para que
também cultivassem pequenos roçados em suas colocações. A este respeito, ver, por exemplo, Tastevin,
1920; 143; Cabral, 1984, 57-8; Reis, 1953: 107; Castello Branco, 1960: 224. Conforme será discutido a-
diante, durante a década de 1910, com o início e o aprofundamento da crise na economia da borracha, a
empresa seringalista gradualmente deixaria de ser um empreendimento especializado, centrado quase que
unicamente na produção de borracha e na importação de mercadorias, resultando no surgimento de ativi-
dades agrícolas e de criação de animais, tanto nas sedes dos seringais como nas colocações.
53
Ferreira Reis (1952: 107) argumenta, por sua vez, que além desses impedimentos colocados pelo pa-
trão, muitos seringueiros não mostravam disposição para se dedicar às atividades agrícolas, tanto pelo
pouca adaptação às condições do novo meio natural ao qual haviam fazia pouco chegado, como pela con-
veniência, devido às altas cotações então alcançadas pela borracha, de se concentrar primordialmente na
extração do látex, valendo-se das mercadorias adquiridas no barracão para suprir a quase totalidade de sua
alimentação.
54
Castello Branco (1961: 228), por exemplo, afirma: "A lei não atingia os seus latifúndios [dos "primei-
ros senhores das feitorias acreanas"], de maneira que o "império do rifle", ou do "44" substituiu o "tacape
do índio", mandando aquele que mais armas possuisse ...". Em texto anterior, de 1922, já afirmara: "
cerca de três decênios, o império da justiça, nestas paragens, passou da vontade inflexível dos "tuchau-
46
Opiniões semelhantes foram emitidas por homens públicos em meados dos anos
de 1900, ao analisar a realidade vigente à época da implantação daquela Prefeitura. O
prefeito Coronel Gregório Thaumaturgo de Azevedo, em seu primeiro relatório ao Mi-
nistro da Justiça, fundamentando a necessidade de instituir o serviço policial no Depar-
tamento, afirmaria: "Fui encontrar os seringais na posse de verdadeiros senhores feu-
daes, dispondo a seu talante dos homens e mulheres domiciliados em suas terras. O
"tronco" era uma instituição. Extinguira-se em 1888 o captiveiro dos negros, mas im-
perava escandalosamente a escravatura branca, no regime do trabalho e nos castigos"
(Azevedo, 1905: 20). Avaliação semelhante sobre o poder dos patrões seria lavrada,
quinze anos depois, pelo juiz de direito e historiador Castello Branco (1930: 667-68):
"Anteriormente à instalação do Governo Prefeitural, dominava na região o pa-
trão do seringal, que instituiu um regime de trabalho em que o seringueiro era
um verdadeiro escravo, sujeito a castigos vários, inclusive o tronco, tendo o-
brigações para com os seus senhores, que dispunham dos homens e mulheres re-
sidentes em suas terras, como entendiam. A influência das autoridades adminis-
trativas do país, aqui, não chegava nem se fazia sentir"
55
.
Por força da legislação, as prefeituras dos três departamentos do Território Fede-
ral do Acre estavam diretamente jurisdicionadas à Presidência da República e ao Minis-
as" para o arbítrio único do "rifle", que, por sua vez, com o estabelecimento da justiça aqui, em 1904,
tem perdido muito do seu poder..." (Castello Branco, 1930: 672). O rifle Winchester calibre 44 é hoje co-
nhecido, em publicações especializadas nos Estados Unidos, como "The gun that won the West", por alu-
são à sua ampla utilização no processo de "conquista" do oeste norte-americano nas últimas quatro déca-
das do século XIX. Sobre este último ponto, consultar, por exemplo,
www.loc.gov/rr/scitech/SciRefGuides/winchester-rifle.html.
55
Ao constatar do poderio dos patrões nessa época, o juiz federal denunciaria em outras ocasiões a pre-
sença do "tronco" em certos seringais: "(...) em outros rios também se verificaram atos de violência e
contrários à ordem legal, chegando-se ao ponto de erguer-se o tronco, instrumento de tortura empregado
contra os recalcitrantes e desafeiçoados de alguns donos de seringais" (Castello Branco, 1961: 228). São
relativamente comuns até os dias de hoje, as narrativas feitas por seringueiros, relativos ao funcionamento
dos seringais durante o apogeu da economia da borracha, sobre o assassinato de "fregueses de saldo", cujo
pagamento implicaria, contraditoriamente, em "prejuízos" ao patrão. Foi este o relato que escutei da lide-
rança Kaxinawá, Jorge Lemês Ferreira, sobre o patrão do seringal Universo em começo dos anos de 1910:
"Meus parentes contavam que quando o freguês tirava saldo, esse Elmiro Peres mandava capanga pasto-
rear no meio do ramal. Pastoreava lá onde tinha uma sacupema. Num dos salões que ficavam nas raízes
do pé dessa sacupema, tinha um buraquinho, por onde o capanga ficava espiando, pastoreando freguês
até ele passar no rumo do centro. Quando o seringueiro aparecia, satisfeito, que tinha tirado saldo, po-
dia comprar mercadoria em grosso e tinha direito de viajar pra rua, o capanga matava à traição" (Igle-
sias, 1995: 17). Castello Branco (1961: 220) também dá conta de prática semelhante pouco antes em Ala-
goas, seringal no médio rio Tarauacá, onde "(...) os selvagens eram acusados de atacarem continuamente
os seringueiros, mas, por uma estranha coincidência só apareciam mortos nas estradas aquêles fregueses
que dispunham de maior saldo". Em 1994, durante o trabalho de identificação da Terra Indígena (TI) Ka-
xinawá do Carapanã, no rio Tarauacá, fui levado por antigos moradores do mesmo seringal Universo ao
cemitério da então decadente sede, para que "comprovasse com meus próprios olhos" como os patrões
haviam sido "carrascos" com os seringueiros: de frente aos túmulos, uma árvore, afinada a certa altura do
tronco pelo roçar de uma corrente de ferro, utilizada pelos patrões e seus "capangas", conforme fui infor-
mado, para manter presos fregueses com grandes dívidas, que não queriam "fazer a vontade dos patrões",
reclamavam de injustiças em suas contas ou tentavam fugir para outros seringais deixando débitos (Igle-
sias, 1995: ibid).
47
tério da Justiça e Negócios Interiores. Nomeados por decreto presidencial
56
, seus man-
datários também tinham por prática recomendar aos demais ministérios ações que con-
cebiam como de suas alçadas, em meio aos relatórios periodicamente enviados ao titu-
lar do Ministério da Justiça.
Acumulando, na prática, atribuições de chefe da polícia, da segurança blica e
da milícia, o primeiro prefeito do Departamento do Alto Juruá tomaria uma série de
medidas para institucionalizar a administração pública e confrontar o poder até então
exercido pelos seringalistas. Ao instaurar o poder judiciário, por meio do Decreto 7,
de 26 de setembro de 1904, Thaumaturgo de Azevedo estabeleceria "juizados de paz"
em nove circunscrições, cujos titulares, auxiliados, em cada seringal, por um "inspetor
de quarteirão", passaram a ter atribuições de "delegado de polícia", com atribuições pa-
ra mediar desavenças, estabelecer acordos, bem como solicitar providências do juiz e do
delegado de distrito na busca de equacionar questões não solucionáveis localmente (A-
zevedo, 1905: 147-74)
57
.
Diversos foram os atos legais promulgados pelo prefeito, ainda em 1904, como
parte de suas iniciativas para tentar modificar a situação vigente nos seringais. Um dos
mais importantes, a "Lei do Trabalho" (Decreto 15, de 15 de dezembro) regulamen-
tava diferentes modalidades de relações de trabalho (empreitada, parceria, renda), os
contratos escritos que, no prazo de um ano, deveriam ser lavrados por escrito e um con-
junto de obrigações e direitos recíprocos entre patrões e trabalhadores
58
. O decreto nor-
56
Além de Thaumaturgo de Azevedo, outros coronéis seriam nomeados como primeiros prefeitos nos ou-
tros dois departamentos do Território recém criado: no Alto Purus, Siqueira de Menezes, veterano da
"Guerra de Canudos", na qual chefiara a comissão de engenharia, quem depois se tornaria governador do
Estado de Sergipe; e no Alto Acre, Rafael Augusto da Cunha Matos, veterano da Guerra do Paraguai, ex-
governador do Mato Grosso e membro do Partido Liberal, quem, junto com o Tenente-Coronel Antonio
de Sena Madureira e o General Deodoro da Fonseca, participara diretamente nos acontecimentos que re-
sultaram na assim chamada "Questão Militar" (1885-1887) (Ranzi, 2004).
57
Auxiliados por um escrivão e quantos oficiais de justiça julgassem necessários, os juizes de paz tinham
também por encargo "superintender o serviço de registro de nascimento e óbitos", "fazer registrar casa-
mentos, processar e julgar causas com valores até 500$000", "presidir a comissão encarregada das ativi-
dades esporádicas de recenseamento", "auxiliar o serviço de alistamento da Guarda Nacional" e providen-
ciar para que os "inspetores de quarteirão" fossem apoiados por pelo menos um cidadão em cada barracão
de seringal (Azevedo, 1905: 147-48).
58
Destacando o caráter "avançado" dessa legislação, a antropóloga Mary Allegretti (2002: 173) assim re-
sume os principais pontos inovadores do Decreto, ao compará-los aos "regulamentos dos seringais" e às
relações vigentes entre patrões e fregueses no Alto Juruá: "[A Lei do Trabalho] Não eliminou um dos re-
gulamentos anteriores, que requeria o consentimento do patrão para que um seringueiro deixasse o se-
ringal, embora estabelecesse exceções: impontualidade do patrão, maus tratos ou violências físicas do
patrão (...). Todos os demais regulamentos então predominantes foram modificados por este Decreto: o
patrão terá sempre preferência, em igualdade de condições e de preço, sobre a compra dos produtos;
nenhum privilégio assiste ao patrão para o reembolso de adiantamentos pecuniários ou de outra espécie,
se não tiver feito contrato expresso do penhor; as contas-correntes devem ser individuais, mensais e
constituem prova nas liquidações judiciais; o patrão será obrigado a pagar as benfeitorias quando ter-
48
matizava, com fins de proteção, o uso das seringueiras, do caucho e de outros recursos
florestais. Previa, mediante recompensas monetárias, incentivos aos proprietários e aos
seringueiros para o plantio de seringueiras, caucho e espécies agrícolas e, no caso dos
primeiros, para a abertura de campos e a criação de rebanhos de animais. E obrigava o
seringueiro, sob pena de multa, a plantar, no entorno de sua barraca, pelo menos mil
covas de mandioca, bem como feijão e milho (Azevedo, 1905
:
188-94)
59
. De maneira a
coibir a monopolização dos rios, ou de trechos deles, pelos patrões, por meio do Decre-
to 16, de 24 de dezembro de 1904, e de seu regulamento, Azevedo declarou-os de
domínio público e regulamentou "o livre trânsito" e o comércio ambulante feito pelos
regatões (ibid: 194-96).
O funcionamento das instâncias dos poderes judiciário e policial e a aplicação
dessas novas normas legais caminharam a passos lentos. As freqüentes resistências dos
patrões à ação dos poderes judiciário e policial e a dificuldade do prefeito de fiscalizar a
atuação dos representantes desses poderes, devido ao isolamento de certas regiões do
Departamento, ficam evidentes nos primeiros relatórios encaminhados pelo prefeito ao
Ministro da Justiça e Negócios Interiores (Azevedo, 1905, 1906). Por outro lado, con-
testações às decisões e ações do prefeito surgiram com freqüência da parte de funcioná-
rios do judiciário, por considerá-las "tiranas" ou "autocráticas", e afrontas à autonomia
prevista entre os poderes (Azevedo, 1906; Araújo, 2003 [1909]; Castello Branco, 1930;
Costa, 2003; Costa, 2005).
Apesar desses entraves ao funcionamento dos poderes judiciário e policial, uma
série de situações permite vislumbrar que o poder dos patrões passou a sofrer contesta-
ções a partir da incipiente e gradual institucionalização da administração pública no
minar o contrato e o trabalhador a retirar-se da propriedade; o aviado ou freguês que abrir, por iniciati-
va própria, novas estradas de seringueira ou de caucho, fora das terras de propriedade do patrão, terá
direito a elas e não pagará renda, sendo, porém obrigado a entregar-lhe a borracha que preparar, para
ser levada a seu crédito; a renda devida ao patrão pelas estradas já abertas, não poderá ser maior de
10% sobre o produto do leite colhido em cada uma e, a título de compensação, não será cobrada percen-
tagem alguma no primeiro ano da abertura das mesmas em terras de propriedade do patrão; os patrões
são obrigados, no fim de cada ano, a entregar em dinheiro ou em mercadorias o saldo dos seus aviados
e, caso não o façam, a pagar-lhes um juro igual à renda das estradas; durante o tempo em que os avia-
dos ou fregueses estiverem no desembolso de seu saldo não pagarão as rendas das estradas equivalente
ao referido saldo; o sernambi é propriedade do freguês, que o venderá ao aviado ou ao patrão em igual-
dade de condições e de preço, a dinheiro à vista; os aviados que por sua vez fornecerem os seus fregue-
ses não deverão cobrar percentagens sobre o preço das mercadorias recebidas dos patrões, visto ser já
descontada nos fornecimentos feitos àqueles uma cota em favor deles".
59
Em seu relatório seguinte, Thaumaturgo de Azevedo (1906: 70-2) informaria ao Ministro que os efeitos
da Lei do Trabalho já se faziam ver, "diariamente". Para sua ampla divulgação, compilara um "esboço de
regulamento para os seringais" dentre as instruções emitidas aos "inspetores de quarteirão (barracão)" e
mandara imprimir cópias do decreto para distribui-las entre os juizes de paz, atribuindo-lhes o encargo de
fazer com que ele fosse respeitado.
49
Departamento do Alto Juruá. No relatório encaminhado ao Ministério da Justiça em
1905, o Prefeito informa, por exemplo, ter levado à prisão vários proprietários, dos
"mais poderosos e temidos, para mostrar aos demais que a ação da Justiça começava
pelos ricos e não pelos deserdados da sorte. Este meu passo, causando alarma e estu-
pefação, teve o merecimento de chamar à ordem os extraviados e impedir novos cri-
mes" (Azevedo, 1905: 20)
60
.
Mesmo numa conjuntura que continuaria marcada por um forte diferencial de po-
der dos patrões, outras situações permitem afirmar que diferentes relações entre patrões
e fregueses eram vigentes e que a empresa seringalista, e as relações de aviamento so-
bre as quais seu funcionamento estava assentado, não devem ser caracterizadas como
sistema único e homogêneo (Almeida, 1992: 21-6). Vigoravam na região duas princi-
pais formas de comercialização da borracha
61
. Sob o "regime de troco", o freguês entre-
gava sua produção diretamente ao patrão para pagar a renda das estradas e quitar parte
de sua conta no barracão. Mas, em certos seringais, os fregueses podiam optar por "em-
barcar" sua borracha, devidamente identificada, "por sua conta e risco", diretamente pa-
ra a casa aviadora, para que a produção fosse vendida pelo preço vigente em Manaus ou
Belém, e o valor, descontado o custo de transporte, fosse creditado em sua conta no bar-
racão. Caso tivesse dívidas, o montante apurado servia para deduzir parte delas. Em ca-
so de obter saldo, tinha direito a recebê-lo em dinheiro ou empregá-lo em novas com-
pras de mercadorias (Castello Branco, 1930: 720-21; Cabral, 1984: 118; Barros, 1993:
215-16; Almeida, 1992: 21-3)
62
.
Ainda que boa parte dos seringueiros permanecesse endividada ao final de cada
safra, em regiões de seringais mais produtivos muitos logravam pagar suas contas e
"
ti-
60
Azevedo reconheceria, pouco depois, que essa atitude não fora suficiente para modificar de forma sig-
nificativa o poder exercido pelos seringalistas. Para tal, destacaria a urgente necessidade da manutenção
de uma força do Exército no Departamento ou da constituição de uma companhia policial, que pudesse
apoiar o Prefeito, com o objetivo de garantir "com eficcacia a liberdade, a propriedade, a vida dos seus
jurisdicionados e a sua própria" (Azevedo, 1905: 20-1).
61
Essas duas modalidades de relações comerciais entre patrões e fregueses foram também vigentes em se-
ringais de outras partes da Amazônia (Goulart, 1968: 118-19; Oliveira, 1977: 13).
62
Na avaliação de homens públicos da época, esta última modalidade de contrato entre patrões e fregue-
ses implicava que, formalmente, os fregueses eram "homens livres": pagavam "renda" para usar as estra-
das, mas tinham liberdade de vender sua borracha diretamente à casa aviadora e podiam deixar o seringal,
sem qualquer aviso, caso obtivessem saldo. Críticas feitas à época por homens públicos destacavam as di-
ficuldades que esse segundo sistema colocava aos empreendimentos dos patrões, que adiantavam eleva-
das somas de dinheiro, custavam a receber de volta o crédito adiantado e, pior, não tinham garantia de
contar, ao início de cada safra, com número suficiente de trabalhadores (Brasil. Ministério de Justiça e
Negócios Interiores, 1905: A-H1-11-12; Araújo, 2003: 160-62). Apesar de utilizar pontos de vista diver-
gentes, tanto Thaumaturgo de Azevedo (1905) como o estatístico e historiador Craveiro Costa (2003) e o
promotor público Antonio José de Araújo (2003) defenderiam que os custos e a logística do transporte de
trabalhadores para os seringais fossem assumidos pelo governo federal.
50
rar saldo
"
. Seringueiros com elevadas produções de borracha acabaram por se estabele-
cer como pequenos proprietários de seringais. Alguns, inclusive, optaram por retornar a
seus estados de origem, definitivamente, ou para recrutar familiares para retornar aos
seringais
63
. Havia seringueiros que trouxeram suas esposas e filhos; outros, apesar do
grande desequilíbrio entre o número de homens e mulheres, lograram constituir famílias
após chegarem. Nestes casos, caso obtivessem autorização dos patrões, tinham maiores
condições de cultivar pequenos roçados, produzir farinha, criar animais e, caso tivessem
família mais numerosa, dispor de sua mão de obra no corte da seringa, na agricultura e
na pesca, possibilitando uma diminuição nas compras no barracão.
Os patrões pouco controle efetivo tinham sobre o processo de trabalho nas colo-
cações na floresta, restando-lhes fomentar a produtividade dos fregueses com sistemas
de recompensas e punir os menos produtivos com a redução do crédito no barracão. Era
do interesse do patrão cativar a fidelidade de seus fregueses, motivando-os a permane-
cer nas colocações que ocupavam, de maneira a garantir a mão de obra nas safras se-
guintes e evitar novos gastos com o recrutamento e transporte de novos trabalhadores.
Não obstante as tentativas dos patrões de impor seu monopólio comercial, regatões ope-
ravam com relativa desenvoltura em certos rios e canalizavam quantidades considerá-
veis da produção dos seringueiros. Além da borracha obtida por meio da burla do mo-
nopólio do patrão, este comércio também indica que seringueiros, após pagarem suas
contas no barracão, optavam por comprar mercadorias específicas (alguma supérfluas,
vistas como "luxo") junto a esses comerciantes ambulantes.
Com o passar dos anos, a presença, ainda que incipiente, do poder policial e judi-
ciário assumiria maior importância na mediação de "questões" entre fregueses e patrões
e na coibição de violências e excessos destes últimos. Destacadas recorrentemente em
textos de viajantes e em relatórios oficiais, revoltas, individuais e coletivas, de serin-
gueiros, por meio de levantes armados, da destruição de barracões e inclusive da morte
63
Ambos estes casos são retratados na trajetória familiar dos Lustosa Cabral (Cabral, 1984). Após traba-
lhar cinco anos no alto rio Tejo, os dois primeiros como seringueiro e os outros três como guarda-livros,
Silvino Lustosa Cabral retornou para uma visita à cidade natal de Patos (PB) em 1897, trazendo "no bolso
uns gordos cobres". Retornou logo depois levando seu irmão Alfredo. Juntos trabalharam no alto rio Tejo,
Silvino como guarda-livro e Alfredo, primeiro como seu ajudante e depois como seringueiro. Abriram um
seringal nas águas do rio Manteiga, afluente do alto Tejo, onde trabalharam por mais um ano. Alfredo
mudar-se-ia depois para a foz do Riozinho da Liberdade, para trabalhar com um primo, guarda-livro. Ali,
trabalharia por dois anos como seringueiro, período em que diz ter obtido saldo de três contos de reis.
Com capital acumulado, seu irmão optaria por subir o rio Tarauacá, onde adquiriu o seringal Redenção,
estabelecendo-se como patrão, administrando a produção de borracha, desenvolvendo, na sede, plantios
de mandioca, milho, banana e cana de açúcar, e produzindo rapadura e farinha para vender à sua freguesi-
a, aos domingos, para que "o seringueiro não suspendesse o trabalho por falta de comestíveis" (ibid: 58).
51
de patrões, aconteceram em certos seringais, especialmente em conjunturas marcadas
por bruscas oscilações nos preços da borracha (Parissier, 1898; Azevedo, 1905: 42; An-
drada, 1908: 74; Brasil. Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 1909: 62-3).
Conforme já apontado, o funcionamento da empresa seringalista no Alto Juruá até
os primeiros anos da década de 1910 se assemelhou às principais características do se-
ringal do "modelo de apogeu", caracterizado por Oliveira (1977, 1979): a especialização
das atividades produtivas, centrada na produção de borracha, uma maior preocupação
com o registro da propriedade fundiária, a maciça importação de mão de obra, em sua
maioria constituída por homens solteiros, modalidades próprias de sujeição dos serin-
gueiros e sua imobilização no interior dos seringais e formas de atrelamento, por meio
do aviamento, dos seringalistas às casas aviadoras de Manaus e Belém. Estas formas de
organização da produção diferiram significativamente, portanto, daquelas vigentes em
períodos anteriores na região amazônica, seja em seus "primórdios", na "região das i-
lhas", na foz rio do Amazonas, seja nos arredores de Tefé e da foz do rio Juruá, passí-
veis de serem mais adequadamente compreendidas sob o "modelo caboclo" de seringal
(Oliveira, 1977, 1979).
Cabe ressaltar que uma análise do funcionamento da empresa seringalista no Alto
Juruá no período de apogeu deve incorporar fatores pouco contemplados na historiogra-
fia sobre a economia da borracha, dentre elas: a presença de mulheres e famílias entre
as primeiras levas de povoadores, a constituição de redes de cooperação e compadrio
entre seringueiros, as formas alternativas de comercialização da produção de borracha,
a existência de seringueiros de saldo, os prêmios outorgados pelos patrões aos seus se-
ringueiros mais trabalhadores, a atuação de regatões que burlavam o monopólio comer-
cial pretendido pelos patrões, bem como as incipientes práticas agrícolas iniciadas por
alguns patrões e mesmo por seringueiros, solteiros ou casados.
Críticas contundentes à forma de organização da produção nos seringais e de su-
jeição dos seringueiros foram construídas tanto por intelectuais como Euclides da Cu-
nha como por agentes do poder público que então se instituía na região, diretamente ju-
risdicionado ao governo federal, representantes que procuraram atuar com relativa au-
tonomia em relação aos seringalistas. Legislações e práticas administrativas concretas
representaram, neste contexto inicial da institucionalização da administração pública,
uma afronta ao poder exercido pelos seringalistas até então.
Em uma seção posterior deste capítulo, este conjunto de fatores será retomado e
problematizado na descrição e análise das principais conseqüências territoriais, políticas
52
e culturais que a instalação da empresa seringalista, com o povoamento dos altos rios
pelos seringueiros, concomitante ao principal período de atividade dos caucheiros peru-
anos, tiveram sobre os povos indígenas que habitavam a região, bem como, no capítulo
seguinte, das ações postas em prática pela Prefeitura do Alto Juruá, a partir de 1904, pa-
ra a "proteção", a "catequese" e a "civilização" dos índios.
Os caucheiros peruanos: questões fronteiriças
Apoiados por casas comerciais sediadas em Iquitos, capital do Departamento de
Loreto, inclusive com créditos ofertados pelas casas aviadoras de Manaus e Belém e ca-
sas exportadoras estrangeiras, os caucheiros peruanos começaram a se fazer presentes
em vários afluentes da margem esquerda do alto rio Juruá e no rio Jutaí a partir de
1896-1897, como desdobramento do principal período da atividade extrativista nos cau-
chais nos rios Jaquirana e Javari
64
. nessa época, a diplomacia brasileira reconheceria
pela primeira vez essa presença peruana, em relatórios do Capitão-Tenente da Armada
Cunha Gomes
65
e de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, então
Ministro das Relações Exteriores (Castello Branco, 1959: 137; 142).
Em fim de 1897, o Capitão da Marinha de Guerra Enrique Espinar chefiou comis-
são "científica e comercial" do governo peruano no Alto Juruá. Seu relatório indica que
64
Para descrições mais detalhadas das atividades dos caucheiros peruanos no alto rio Juruá, de 1897 a
1905, ver Villanueva, 1902; Hassel, 1904; 1904a; 1905; Mendonça, 1989: 112-22; e Castello Branco,
1959. Dentre os aviadores dos patrões caucheiros que nesta época operavam na região fronteiriça do rio
Javari, estava Julio Cesar Arana del Águila Hidalgo. Uma década depois, Julio César Arana, como ficaria
mais conhecido, se tornaria o maior caucheiro da região do rio Putumayo, então zona contestada entre
Colombia e Peru, e seria denunciado, primeiro na imprensa de Iquitos e depois no Parlamento britânico,
por atrocidades cometidas contra os indígenas dessa região. Arana começara a trabalhar em 1878, com 14
anos, em La Rioja, junto com seu pai, fabricante e comerciante itinerante de chapéus. Estabeleceria seu
próprio negócio em Yurimaguas em 1880, vendendo chapéus em vários rios e cidades em ambos os lados
da fronteira Peru-Brasil. Como representante de casas aviadoras, faria incursões a Manaus e Belém, e aos
rios Javari, Juruá e Purus, onde venderia chapéus a regatões e mercadorias a seringalistas e caucheiros,
canalizando borracha e caucho. Estabelecido em Iquitos desde 1890, fundou sua própria casa comercial,
compraria um seringal e viajaria a Belém (e possivelmente ao Ceará), de onde traria 20 homens para tra-
balhar em seu seringal, empreendimento que teria curta duração. Entre 1892-1896, formaria diferentes
sociedades comerciais, com peruanos e depois com franceses, para aviar patrões que exploravam caucho
no Javari, atividade que continuaria por conta própria nessa região até adoecer de beriberi. Levaria sua
família para Iquitos em 1896, onde integraria sociedades comerciais que, três anos mais tarde, lhe permi-
tiram fazer suas primeiras compras de caucho no rio Putumayo, produzido por patrões colombianos com
mão de obra indígena. Pouco depois, com apoio de políticos influentes, a compra de cauchais e ações ar-
madas contra esses patrões, a Casa Arana, de sua propriedade, ali assumiria o monopólio sobre a produ-
ção e a comercialização da borracha e do caucho (Hardenburg, 1912; Taussig, 1993; Chirif, 2004; Pineda,
2005; Lagos, 2005; Pereira, 2005).
65
Responsável, em 1897, pela viagem de identificação das cabeceiras do rio Javari, com o intuito de ave-
riguar e retificar equívocos cometidos pela Comissão Mista Brasil-Peru no ano de 1874. Tendo substituí-
do o Coronel Thaumaturgo de Azevedo na condição chefe da delegação brasileira, Cunha Gomes acabari-
a, nessa viagem, por referendar os limites estabelecidos pelo Tratado de Ayacucho, em 1867, para a fron-
teira com a Bolívia (Brasil. Ministério das Relações Exteriores, 1898: 33-9; A-N1-235-A-N1-296).
53
casas comerciais peruanas estavam estabelecidas no local chamado Centro Brasileiro,
situado na foz do rio Moa (próximo à atual localização de Cruzeiro do Sul), na Vila
Porto Walter e nas desembocaduras dos rios Amônia e Breu, e que 715 caucheiros pe-
ruanos trabalhavam nos rios Gregório, Liberdade e Tarauacá (Mendonça, 1989: 210-11;
Castello Branco, 1959: 142-43). Os aviados de Carlos Scharff retirar-se-iam do Gregó-
rio em fins de 1900, uma parte para o alto rio Purus e outra para a foz do rio Breu. Nes-
ta mesma época, turmas de caucheiros trabalhavam no alto rio Murú e no Riozinho da
Liberdade (Tastevin; 1925: 413; 1928: 213; Sombra, 1913; Abreu, 1941: 61-2; Castello
Branco, 1959: 143; 210)
66
.
Diante da crescente presença de caucheiros peruanos no Alto Juruá, funcionários
da Superintendência da Vila São Felipe solicitariam, em março de 1900, providências
imediatas do Governo e da Secretaria do Interior do Estado do Amazonas. Os documen-
tos então enviados denunciavam práticas de "contrabando", o não pagamento de impos-
tos, o trânsito não autorizado de embarcações peruanas pelo rio Tarauacá e seus afluen-
tes, a "concorrência desleal" contra comerciantes brasileiros, a tentativa frustrada pelos
seringueiros da entrada de um destacamento militar peruano pelo rio Juruá Mirim, a de-
vastação de florestas, ameaças e conflitos armados contra seringalistas e seringueiros e,
ainda, "correrias" contra os indígenas, marcadas por massacres e o aprisionamento e a
venda de crianças e mulheres (Mendonça, 1989: 115-16; Castello Branco, 1959: 140;
143-44).
Em suas atividades, comerciantes e caucheiros peruanos utilizavam tanto o trans-
porte fluvial, assegurado pela Convenção Especial de Comércio, Navegação Fluvial,
Extradição e Limites, assinada entre o Brasil e o Peru em outubro de 1851, como uma
extensa de rede de varadouros terrestres que levava do Alto Juruá a diferentes pontos do
rio Ucayali. O Governo do Estado do Amazonas instalaria um posto fiscal no rio Amô-
nia em início de 1902, para evitar o escoamento, pelo rio Ucayali com destino à cidade
de Iquitos, de uma produção anual de entre 10 e 12 mil arrobas de borracha e caucho,
conforme estimada por Manuel Pablo Villanueva, então na condição de representante
do governo da Província de Loreto e da Sociedade Geográfica de Lima (1902: 418).
Demandas da chancelaria peruana junto à brasileira resultariam na desativação deste
66
Nos Anexos, o Mapa 3, ao mostrar a capilaridade dos cursos de água em ambos os lados da fronteira,
bem como a existência de várias bacias binacionais (caso dos rios Juruá, Amônia, Breu e Envira, na regi-
ão do Alto Juruá), permite perceber algumas das rotas utilizadas pelos caucheiros peruanos para entrar no
que anos depois seria reconhecido como território brasileiro. Agradeço à equipe do Instituto Sociambien-
tal (ISA), nas pessoas de Fany Ricardo e Alícia Rolla, pelo fornecimento dessa base cartográfica, origi-
nalmente produzida pelo IBGE.
54
posto no começo do ano seguinte. Em novembro de 1902, um destacamento militar e
um posto aduaneiro peruanos foram instalados na foz do rio Amônia. A presença de
grupos de caucheiros cresceu principalmente após a visita de Villanueva, que, em seu
relatório e em conferência na Sociedade Geográfica, descreveu, com minúcias, os vara-
douros que permitiam o acesso do Ucayali a diferentes afluentes do Alto Juruá.
Até meados de 1904, as tensões se avolumaram no Alto Juruá, em virtude do não
reconhecimento do novo posto aduaneiro pelo governo brasileiro, das reações às vio-
lências cometidas por comandantes do exército peruano contra comerciantes, seringalis-
tas e embarcações brasileiros, da cobrança indevida de impostos, de ameaças de revolta
dos seringueiros e da inquietação crescente das casas aviadoras de Manaus e Belém
quanto ao destino de seus negócios na região (Castello Branco, 1959: 163).
No alto rio Purus, por sua vez, a penetração dos caucheiros peruanos teve início
nos últimos anos do século XIX. Em 1892, Carlos Fermín Fitzcarrald
67
estabelecera um
entreposto comercial na foz do rio Mishagua, afluente do Urubamba (formador do rio
Ucayali), e gradualmente se tornaria o maior caucheiro dessa região, graças às suas li-
gações com casas aviadoras e o governo de Loreto, aviando patrões menores e mobili-
zando grandes quantidades de indígenas (Reyna, 1942, Gow: 1991: 40-1). Diferentes
processos teriam sido utilizados por Fitzcarrald para o recrutamento de indígenas para
os trabalhos na produção de caucho: alianças com destacados chefes de grupos extensos
("curacas") Kampa (Ashaninka) (Gow, 1991; Granero & Barclay, 2003)
68
; a exploração
de tradições messiânicas dos Ashaninka, que acreditavam no retorno da divindade míti-
ca Amanchuega, e, em certos casos, teriam reconhecido Fitzcarrald enquanto encarna-
ção do Inca Juan Santos Atahualpa (Reyna, 1942; Renard-Casevitz, 1992; Fernández &
67
Sobre Carlos Fermín Fitzcarrald, e o papel que exerceu na configuração e no funcionamento da econo-
mia do caucho nas regiões dos altos rios Ucayali e Madre de Dios, até sua morte em 1897, num naufrágio,
aos 35 anos de idade, ver sua biografia, escrita por Reyna (1942). Outra biografia, à qual não tive acesso,
"El verdadero Fitzcarral ante la historia" (Iquitos, Imprenta El Oriente, 1944) foi escrita por Zacarías Val-
dez, que afirma ter acompanhado Fitzcarrald em parte de suas viagens nos rios Urubamba e Madre de Di-
os.
68
Escritos do padre Gabriel Sala, do então prefeito de Ayacucho, Pedro Portillo, e dos exploradores Vic-
tor Almirón e La Combe, que estiveram no rio Mishagua e nas cabeceiras do rio Purus entre 1897 e 1901,
dão conta das atividades do "curaca" Ashaninka, Venancio Amaringo. Chefe da aldeia Washington, que
então contava com cerca de 500 moradores, falante de quichua, espanhol e sua língua nativa, Venancio e
seus homens trabalhavam para Fitzcarrald desde 1893, na extração de caucho durante as épocas do verão,
no recrutamento de mão de obra Ashaninka em outros grupos extensos e em expedições armadas contra
outros povos indígenas e em expedições punitivas contra patrões caucheiros com os quais Fitzcarrald ti-
nha desavenças ou créditos não recebidos. Após a morte de Fitzcarrald, Venancio continuaria a trabalhar
com Leopoldo Collazos e depois com Carlos Scharff, que controlariam a exploração do caucho e o mo-
vimento comercial no alto rio Purus e no Madre de Dios nos primeiros anos do século passado (Granero
& Barclay, 2003).
55
Brown, 2001)
69
; e o fomento às rivalidades interétnicas e entre grupos extensos Asha-
ninka (Varese, 1973; Renard-Casevitz, 1992; Fernández & Brown, 2001)
70
. Matanças
contra grupos indígenas que tentaram colocar obstáculos ao estabelecimento dos cau-
cheiros em seus territórios também foram promovidas pelos "tenientes" e por indígenas
Ashaninka a mando de Fitzcarrald: uma seqüência de "correrias", por exemplo, teria vi-
timado, segundo Reyna (1942), centenas de Masco, após uma comitiva de esses índios
ter lhe comunicado sua oposição à penetração e à ocupação das cabeceiras do rio Ma-
nu
71
.
Aproveitando caminhos muito usados pelos indígenas, Fitzcarrald consolidaria
em 1894 um varadouro (depois batizado com seu nome) ligando as cabeceiras dos rios
Ucayali e Madre de Dios, onde passou a trabalhar em sociedade com os bolivianos Ni-
colas Suarez e Antonio Vaca Diez, principais caucheiros dessa última região
72
. Dois a-
nos depois obteria, do Ministério da Guerra peruano, direitos exclusivos sobre a nave-
gação no alto Ucayali, e nos rios Urubamba, Manu e Madre de Dios (Lagos, 2005: 34).
Em 1899, dois anos após a morte de Fitzcarrald em um naufrágio, um de seus ex-
"tenientes", Leopoldo Collazos, trilharia o divisor de águas entre o rio Sepahua e os
formadores do rio Purus (Cujar e Curiuja), acompanhado por entre 400 e 500 índios
Kampa, Piro e Amahuaca do rio Ucayali, estabelecendo a via de comunicação por onde
69
Sobre os levantes indígenas organizados por Juan Santos Atahualpa contra missionários espanhóis e
"civilizados" na região de Chanchamayo, consultar Varese, 1973; Renard-Casevitz, 1992; Fernández &
Brown, 2001; e Pimenta, 2002.
70
Stefano Varese assim descreve essa estratégia utilizada por Fitzcarrald: "Com um conhecimento pro-
fundo da montaña, ele soube utilizar as rivalidades tradicionais [...]. O método é simples: dão-se Win-
chesters aos Cunibo que devem pagar em escravos Kampa e em seguida dão-se Winchesters aos Kampa
que devem pagar em escravos cunibo [e outros]" (Varese, 1968: 106, apud Renard-Casevitz, 1992: 208).
71
Biógrafo de Fitzcarrald, Reyna (1942) informa que as "correrias" estavam então generalizadas na regi-
ão, contando essas incursões via de regra com a participação de diferentes grupos de indígenas que traba-
lhavam para os caucheiros: "Tribus semicivilizadas de cocamas, cunivos, piros y campas, ayudadas tam-
bién por algunos blancos, asaltaban a los pueblecitos de indios, matando a los que se defendían, y lle-
vándose a las mujeres y a los niños de ocho o catorce años, para venderlos en las poblaciones grandes, a
razón de 200 y 400 soles cada uno. Los adultos eran tomados cautivos, y los llevaban a lejanos territo-
rios como peones".
72
Com base em relatos de viajantes, relatórios oficiais e depoimentos de velhos indígenas Santarrosinos,
gravados em início dos anos 1980, o antropólogo Klaus Rummenhöller (2003: 157) informa que, após o
ano de 1902, por causa das "correrias" realizadas "em grande escala" pelos aviados de Nicolás Suarez
nessa região, resultando em perseguições aos indígenas, na destruição de suas moradias, na captura de
homens e mulheres em idade de trabalho e na morte de crianças e anciões, os caucheiros espanhóis Má-
ximo e Baldomero Rodríguez, que pretendiam se instalar no rios Madre de Dios e de las Piedras, optari-
am, até início da década de 1910, pela "importação" de quase dois mil índios Amuesha, Kampa, Cocama,
Lamistra, Uitoto, Shipibo, Cashibo, Conibo, Shetebo e Santarrosinos, trazidos de diferentes regiões do
Peru e da fronteira do Equador, comprados de outros caucheiros ou "seduzidos" por promessas de ganhos
na extração do caucho. Consultar Rummenhöller (2003: 166-180) para mais informações sobre as ativi-
dades dos patrões caucheiros Rodríguez e das formas de recrutamento e importação de mão de obra indí-
gena utilizadas em seus empreendimentos.
56
os primeiros grupos de caucheiros penetrariam no alto rio Purus (Villanueva, 1902:
396; Cunha, 1976: 249; Reyna, 1942; Castello Branco, 1959: 189; Torralba, 1978: 4)
73
.
Nessa região seriam estabelecidos vários "puestos" caucheiros, locais onde fica-
vam as residências dos patrões, seus "tenientes" e "empregados", assim como o barra-
cão onde a produção de caucho era canalizada e as mercadorias comercializadas. Atre-
lados por relações de aviamento, mestiços e indígenas trabalhavam em grandes exten-
sões territoriais na floresta, estabelecidos em acampamentos provisórios, mantidos até o
total esgotamento dos cauchais (Villanueva, 1902; Cunha, 1976; Castello Branco, 1959:
192).
Até 1903, duas tentativas seriam feitas para o estabelecimento da soberania políti-
ca peruana no Alto Purus, contando com o respaldo dos governos de Lima e do Depar-
tamento de Loreto: a primeira pelo próprio Collazos e a segunda por Carlos Scharff, ou-
tro ex-"tenente" de Fitzcarrald. Vindo do rio Gregório, Scharff chegara ao alto rio Purus
em final de 1901, após varar pelos rios Envira e Santa Rosa, deixando volumosas vi-
das com comerciantes brasileiros e um rastro de violências contra grupos indígenas
(Castello Branco, 1959). Em meados de 1903, as iniciativas de Scharff passariam a con-
tar com apoio de um destacamento militar, enviado pelo Prefeito de Loreto, junto com
caucheiros e indígenas armados. À instalação de um posto aduaneiro no Alto Purus, se-
guiriam-se tentativas para forçar, por meio de atos legais, ameaças e violências, os bra-
sileiros a abandonar suas propriedades e a submeter-se à soberania peruana. Inconfor-
mados com os resultados das notas e protestos enviados pela diplomacia brasileira, vá-
rios seringalistas reuniram-se, prenderam Carlos Scharff, o representante do destaca-
mento e outros chefes peruanos, obrigando-os a se retirar da região. A "contra-ofensiva"
peruana ocorreria em início de 1904, com a chegada, pelo rio Curanja, de uma guarni-
ção de 30 praças do exército, assim como de 300 caucheiros e grande mero de indí-
genas, comandada por Scharff, resultando, segundo notícias publicadas no Jornal do
Commercio e n’O Paiz, de Manaus, em saques e destruição de barracões, em prisões e
mortes de seringalistas e seus fregueses e em estupros de mulheres (Costa, 2003: 168;
Castello Branco, 1959: 191-96)
74
.
73
Delfin Fitzcarrald, irmão do finado Carlos, também chegaria com Collazos ao alto Purus, onde seria
morto, pouco depois, por índios Jaminawa (Villanueva, 1902: 397; Castello Branco, 1959: 190; Chirif,
2004: 26).
74
Parcialmente reproduzido nesses jornais, relatório de lavra de José Ferreira de Araújo, agente da Prefei-
tura de Segurança Policial Pública, encaminhado ao seu superior em Manaus, sugerindo o urgente deslo-
camento de um destacamento do exército brasileiro para a região, dava conta que, segundo "fontes fide-
57
Esta seqüência de acontecimentos teve como pano de fundo, de um lado, o fim
dos conflitos armados entre brasileiros e bolivianos no Alto Acre
75
e a assinatura do
Tratado de Petrópolis, a 17 de novembro de 1903, que estabeleceu os limites entre esses
dois países. De outro, a promulgação da Lei 1.181, de 25 de fevereiro de 1904, e do
Decreto 5.188, de 7 de abril, que criava o Território Federal do Acre, organizado em
três departamentos (Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá), jurisdicionados à Presidência
da República, e determinava a instalação das respectivas Prefeituras. Nessa conjuntura,
a chancelaria brasileira intensificaria as negociações diplomáticas com sua contraparte
peruana com vistas a encontrar soluções para os conflitos em curso nos altos rios Juruá
e Purus e para a definição da fronteira comum aos dois países.
Em ambas as regiões, contudo, os crescentes desentendimentos entre brasileiros e
peruanos culminariam, em 1904, com enfrentamentos armados. No Alto Purus, em a-
bril, uma ofensiva de seringalistas e seringueiros resultou na morte de mais de 30 cau-
cheiros peruanos, uma dezena de presos e na evacuação da tropa peruana, situação con-
solidada com a chegada, no mês seguinte, do 33º Batalhão de Infantaria do Exército
brasileiro. No Alto Juruá, o envio de um destacamento do 15º do Batalhão de Infantaria
à foz do rio Amônia, apoiado pelo Prefeito do Alto Juruá e por eminentes seringalistas,
resultou, em novembro de 1904, em um confronto armado, que ficou conhecido como o
"Fogo do Amônia", na capitulação e retirada das tropas peruanas e na desativação do
destacamento e do posto aduaneiro que ali funcionavam fazia pouco mais de dois a-
nos
76
.
É digno de nota que os conflitos militares na Foz do rio Amônia ocorreram após a
retomada das negociações diplomáticas entre os governos brasileiro e peruano, motiva-
da pelos acontecimentos no Alto Purus. Estes entendimentos tinham resultado na assi-
natura, a 12 de julho de 1904, de um protocolo estabelecendo um "modus vivendi" com
o objetivo de prevenir conflitos nessa região fronteiriça e ensejar ações para o definitivo
estabelecimento dos limites entre os dois países
77
. O "modus vivendi" determinava a
dignas", Carlos Scharff ameaçava trazer mais 500 praças do exército peruano, além de caucheiros arma-
dos e mais de mil índios "das tribos Campas e Piros" (Castello Branco, 1959: 193; 195).
75
A respeito da assim chamada "Revolução Acreana", consultar, por exemplo, Tocantins, 1973; Costa;
2003; Meira; 2003. Para análises da constituição do Território do Acre, tendo como eixo narrativo central
a biografia e a atuação do "herói" da Revolução, o gaúcho José Plácido de Castro ver, dentre outros, Li-
ma, 1973; Castro, 2002; e Calixto, 2003.
76
Para descrições detalhadas dos acontecimentos havidos nas regiões do Alto Purus e Alto Juruá, bem
como das negociações diplomáticos e acordos estabelecidos entre os governos do Brasil e do Peru, con-
sultar Castello Branco, 1959; e Tocantins, 1973: 715-24; 765-773.
77
Sobre os entendimentos que resultaram na assinatura daquele "modus vivendi", bem como sobre seus
desdobramentos no âmbito diplomático, consultar, por exemplo, Tocantins, 1973: 725-764.
58
"neutralização" do território em litígio, no Alto Juruá e Alto Purus; a formação de duas
comissões mistas, com poderes de administração e polícia, sobre esse território; a cria-
ção de postos fiscais mistos (um na foz do Breu e outro no local Catay) para a taxação
dos produtos exportados e o recebimento dos certificados de importação
78
; e a nomea-
ção, por cada governo, de dois "comissários especiais", quem, acompanhados de auxili-
ares e de escolta militar, comporiam comissões mistas para realizar reconhecimentos e
levantamentos dos altos rios Juruá e Purus, de outros cursos de água e dos varadouros
incidentes no "território neutralizado"
79
(Castello Branco, 1959: 159-160; Tocantins,
1973: 753-54).
Os trabalhos de reconhecimento foram realizados pelas comissões mistas no se-
gundo semestre de 1905
80
. As comissões brasileiras estiveram chefiadas pelo primeiro
tenente reformado, engenheiro e escritor Euclides da Cunha, no Alto Purus, e pelo Co-
ronel de Engenheiros Belarmino Mendonça, no Alto Juruá. Formalizadas em 1906, as
conclusões das "memórias" das comissões mistas serviram de base à formulação do
protocolo assinado pelos governos brasileiro e peruano a 8 de setembro de 1909, no Rio
de Janeiro, com vistas a completar a determinação da fronteira comum entre os dois pa-
íses
81
e a estabelecer princípios gerais para o desenvolvimento das relações de comércio
e a boa vizinhança
82
.
78
As duas comissões mistas encarregadas do policiamento e da arrecadação fiscal funcionariam até 1911.
Os documentos originais relativos ao funcionamento dessas comissões (Livros de registro e de termos,
correspondências, relatórios, orçamentos) estão depositados no Arquivo Histórico do Itamaraty, nas "La-
tas" 536-37 (Alto Juruá), 546-47 (Alto Purus) e 548-50 (Delegacia Federal no Território do Acre), consti-
tuindo um rico material de pesquisa para uma compreensão mais aprofundada das relações estabelecidas
entre peruanos e brasileiros nessa faixa fronteiriça e em seus respectivos países.
79
Estabeleceu, ainda, a constituição de um Tribunal Arbitral, sediado no Rio de Janeiro, para julgar as
denúncias de violências cometidas por brasileiros e peruanos durante os conflitos armados.
80
As instruções que normatizaram as ações das comissões mistas, brasileiro-peruanas, de reconhecimento
dos rios Juruá e Purus nos territórios neutralizados, podem ser consultadas no Arquivo Histórico do Ita-
maraty (Lata 474, Maço 03). A este respeito, ver também Mendonça, 1989: 43-6.
81
O trecho da fronteira brasileiro-peruana desde a nascente do Javari, descendo por esse rio, até a cidade
de Tabatinga, e daí a norte, por linha geodésica até a foz do rio Apapóris, no rio Japurá, depois modifica-
da na linha do rio Putumayo (ou Içá), havia sido demarcada nos anos de 1866 e de 1872-1874, em aten-
dimento ao tratado assinado pelos dois países em 1851 (Brasil, Ministério das Relações Exteriores
[MRE], 1913: 73).
82
Para concretizar o primeiro objetivo, o Tratado de 1909 estabelecia a formação de nova comissão mista,
a partir de comissões nomeadas por cada governo, para, um ano após a troca das respectivas ratificações,
proceder com a demarcação física da fronteira comum. O Tratado foi aprovado, no Peru, pelo Congresso,
a 10 de janeiro de 1910, e, no Brasil, pela Câmara dos Deputados a 25 de abril e pelo Senado três dias de-
pois. As respectivas ratificações foram trocadas entre os governos a 30 de abril e o Tratado foi promulga-
do pelo Decreto nº 7.957, de 2 de maio de 1910 (Castello Branco, 1959: 179-80). Os trabalhos de demar-
cação da fronteira internacional seriam iniciados em 1913-1914. Interrompidos por decisão de ambos os
governos, com a irrupção da I Guerra Mundial, foram levados a cabo de 1920 a 1927, como será discutido
no capítulo VI.
59
As memórias das duas comissões mistas, e depois o Tratado de 1909, vieram a
confirmar o princípio do uti possidetis dos brasileiros sobre uma ampla região onde se-
ringais estavam em operação fazia quase duas décadas. De forma complementar, os re-
latórios de ambos os comissários brasileiros, e de forma mais pungente, o de Euclides
da Cunha, junto com vários artigos por ele publicados na imprensa, contribuíram para
cristalizar uma visão da atividade caucheira como nômade, permanentemente itinerante,
provisória e predatória, tanto do principal recurso natural (o caucho) explorado, como
do elemento humano nela envolvida, fossem os povos indígenas "barbarizados" nas
"correrias"
83
, fossem índios "domesticados" e "mestiços", "escravizados" pelos traba-
lhos exaustivos e o endividamento nos barracões dos patrões caucheiros (Cunha, 1976:
137-144; 160)
84
.
Produtos de uma conjuntura temporal, geopolítica e institucional específica, os re-
latórios dos comissários brasileiros, comprometidos com a confirmação da anteriorida-
de da ocupação e do uti possidetis brasileiro no território em litígio, ressaltariam a efê-
mera passagem, o caráter esparso e temporário da ocupação e o eminente desapareci-
mento da atividade caucheira das regiões onde, ao contrário, a economia da borracha,
83
Euclides da Cunha assim descreveria o modus operandi dos caucheiros, os "mais avantajados batedores
da sinistra catequese a ferro e fogo", durante as "correrias", que tinham lugar após um detalhado reconhe-
cimento do terreno e a identificação dos locais onde estavam assentadas as malocas, ou "tolderios", dos
selvagens: "Conquista é o termo predileto (...). Mas não a efetuam pelas armas sem esgotarem os efeitos
da diplomacia rudimentar dos presentes mais apetecidos pelo selvagem (...) Estes meios pacíficos [atrai-
los por meio de presentes (roupas, rifles, terçados) e fazê-los trabalhar, deixando-os que voltassem para
junto aos seus para constatar como haviam sido tratados pelos caucheiros - MPI], porém, são falíveis. A
regra é a caçada impiedosa, à bala. É o lado heróico da empresa: um grupo inapreciável arrojando-se á
montaria de uma multidão (...) Subordina-se a uma tática invariável: a máxima rapidez do tiro e a máxi-
ma temeridade. São garantias certas de um triunfo. É incalculável o número de minúsculas batalhas tra-
vadas naqueles sertões onde reduzidos grupos bem armados suplantam tribos inteiras (...)" (Cunha,
1976: 139-40).
84
Euclides da Cunha caracteriza o patrão caucheiro como um misto de cavalheiro e selvagem, portador de
uma moralidade dupla, de uma "brutalidade elegante" e uma "galantaria sanguinolenta", conjugando o
compromisso com saldar dívidas enormes com os exportadores de Iquitos e Manaus com a prática de en-
ganar seus fregueses por escassos quilos de caucho, preocupado em enriquecer rapidamente e retornar ao
seu local de origem, num constante vaivém entre a floresta e as cidades de Iquitos, Manaus e Paris, onde,
de forma perdulária, gastava altas somas de dinheiro. Os caucheiros, por sua vez, são retratados pelo co-
missário brasileiro enquanto "eternos caçadores de territórios", sem "nenhuma pega pela terra", uma "va-
ga devastadora", vivendo sob o "regime penal do rifle", em constantes combates de "conquista", para ex-
terminar ou escravizar indígenas, ações nas quais acabavam por "deixar mais selvagem a própria selvaja-
ria" (Cunha, 1976: 136-146). Imagens semelhantes às utilizadas na historiografia acreana para descrever o
poderio dos patrões durante o inicial funcionamento dos seringais seriam usadas pelo Coronel Pedro Por-
tillo, que pouco depois tornar-se-ia Prefeito de Loreto, ao retratar a situação que vira durante viagem em
1899 por acampamentos caucheiros no alto rio Juruá: "Alli no hay ley... el más fuerte, que tiene más ri-
fles, es el dueño de justicia" (Apud Cunha, 1976: 160).
60
organizada com base na empresa seringalista, se consolidara, de "forma permanente",
"sedentária", com um denso povoamento, havia pouco mais de quinze anos
85
.
Parte significativa da historiografia sobre a região (Castello Branco, 1947, 1959,
1961; e Tocantins, 1973, por exemplo) reproduz e cristaliza essas afirmações, ao conju-
gar uma dupla argumentação. De um lado, justifica a forçada "transumância" dos cau-
cheiros com determinismos ecológicos, creditando-a ao acelerado e definitivo esgota-
mento dos cauchais. De outro, faz coincidir e atribui o fim dos conflitos armados e a
"retirada final" dos caucheiros às negociações diplomáticas, ao "modus vivendi" de
1904 e às atividades e conclusões das Comissões Mistas de Reconhecimento do Alto
Purus e Alto Juruá, antes mesmo, portanto, da definição, pelo Tratado de 1909, da linha
de fronteira entre Brasil e Peru. É o "fim de um drama", conforme o intitula Tocantins
(1973: 788), ou o capítulo derradeiro da "conquista do deserto ocidental" (Costa, 2003),
que supostamente teria posto ponto final ao processo de incorporação do Acre ao Brasil,
estabelecido "limites definitivos" ao território nacional e pacificado as relações entre
brasileiros e peruanos.
Uma historiografia de recorte mais local, não pautada primordialmente pela di-
nâmica e os resultados das negociações diplomáticas, mas, sim, construída com base na
releitura de diferentes documentos oficiais e em outras fontes, escritas e orais, permite,
todavia, desnaturalizar essa concepção, a partir de um conjunto diverso de fatores. Ao
constatar as devastadoras conseqüências das "correrias" e das violências cometidas pe-
los caucheiros peruanos contra os índios nessa região fronteiriça, Euclides da Cunha
(1976: 137) assim afirmaria: "O narrador destes dias chega ao final de um drama, sur-
preendido o seu último quadro prestes a cerrar-se". À diferença dessa avaliação, gru-
pos indígenas considerados "selvagens" e "bravios" continuariam a habitar entre as ca-
beceiras dos rios Purus, Envira, Tarauacá e Juruá, em território brasileiro, colocando,
face aos interesses dos patrões e dos seringueiros, e mesmo dos grupos de caucheiros
peruanos que ali continuariam a trabalhar, consideráveis obstáculos à produção de bor-
85
A itinerância dos caucheiros, que não resultava em assentamentos definitivos e, portanto, dificultava as
pretensões do governo peruano de reivindicar sua soberania sobre essa região, foram reconhecidas, de
forma ressentida, também por Manuel Pablo Villanueva (1902: 386-87). Em análise mais recente, o an-
tropólogo peruano Alberto Chirif também ressalta as diferenças entre os processos de expansão da fron-
teira resultantes da produção da borracha e do caucho: "La diferencia entre estas especies [hévea e castil-
loa-MPI] no sólo atañe a cuestiones de carácter botánico, sino que también tiene importancia en los pro-
cesos sociales vinculados a su aprovechamiento. En efecto, el caucho introdujo en su época una nueva
modalidad de frontera, es decir, de expansión para la puesta en valor de los recursos. (...) la aparición
del caucho creó un tipo de frontera extractiva cuya principal característica era la temporalidad de los
asentamientos, ya que sólo duraban hasta que el recurso se agotase en una zona, para luego ser trasla-
dados a outra (...)" (Chirif, 2004: 23)
61
racha e do caucho.
Por outro lado, apesar das atividades das Comissões Mistas de Reconhecimento e
dos acordos diplomáticos estabelecidos entre as chancelarias brasileira e peruana, essa
região de fronteira permaneceria extremamente fluída no âmbito local. A presença de
caucheiros peruanos em território brasileiro continuaria a acontecer com relativa inten-
sidade até pelo menos meados dos anos 1910. Essas atividades dos caucheiros, marca-
das ao mesmo tempo por conflitos e por relações de aviamento mobilizadas por patrões
brasileiros, continuariam a ter relevantes repercussões, nessa região de fronteira, sobre
ampla quantidade de grupos indígenas considerados "selvagens", "bravios" ou "brabos",
os quais, ainda assolados por "correrias", procuravam manter-se à margem da empresa
seringalista
86
.
É o que será exemplificado em capítulo posterior, ao focar a análise das relações
dos Kaxinawá e de outros grupos indígenas, durante a primeira metade da década de
1910, com a economia da borracha e do caucho nos afluentes do alto rio Envira, região
fronteiriça com o Peru. Na seção seguinte, discutir-se-á, de forma mais extensa, as "cor-
rerias", e suas conseqüências territoriais e sociais sobre os povos indígenas durante a i-
nicial implantação e funcionamento da empresa seringalista no Vale do Juruá e as ativi-
dades realizadas nessa conjuntura pelos caucheiros peruanos, por vezes, articulados
com patrões brasileiros.
No "tempo das correrias": territórios em disputa
Nas últimas duas décadas do século XIX, e nos primeiros anos do século passado,
a gradual subida das levas de nordestinos pelo rio Juruá e seus afluentes e a descida dos
caucheiros peruanos pelas nascentes desses rios, por uma extensa rede de varadouros
oriundos do rio Ucayali, resultaram numa inicial sobreposição de suas atividades em
territórios de um significativo número de grupos indígenas, falantes de línguas Pano,
Arawak e Arawá
87
.
86
Em certas regiões da fronteira, no lado brasileiro, "correrias" patrocinadas pelos patrões continuariam a
ocorrer até início dos anos de 1970. Ataques às colocações, saques e mortes promovidos pelos índios
"brabos", bem como enfrentamentos armados, com mortes de ambos os lados, por sua vez, perdurariam,
com certa regularidade, até meados dos anos de 1990 (Aquino & Tenê Kaxinawá, 1986; Meirelles, 1987;
Silva & Kesselring Jr., 1987; Iglesias & Aquino, 1996; Pereira Neto, 1996, 1999).
87
Não há na literatura consultada qualquer estimativa sobre o contingente populacional dos grupos indí-
genas que habitavam nessa região à época da chegada dos brasileiros e dos peruanos. Apesar de esquemá-
ticas e fragmentárias, reconstruções dessa diversidade de povos e de suas formas de organização social,
econômica e cultural antes da instalação da empresa seringalista nos altos rios "acreanos" foram esboça-
das por Castello Branco (1950), Gonçalves (1991) e Piccolli (1993), com base na literatura produzida por
62
Descrições dos modos de organização das "correrias", das estratégias utilizadas
nas incursões às malocas, dos resultados devastadores sobre as formas de vida dos gru-
pos indígenas e da continuidade dos conflitos armados, bem como das respostas iniciais
dos indígenas na tentativa de manter certa autonomia face aos seringais, constam em
documentos escritos, nas três primeiras décadas do século passado, por missionários,
cronistas, prefeitos, membros das comissões brasileiras de reconhecimento da fronteira
Brasil-Peru e outros funcionários destacados por governos de ambos os países
88
. Na dé-
cada de 1910, "correrias" seriam denunciadas por auxiliares e inspetores do órgão indi-
genista federal (o SPILTN e depois o SPI), postura também adotada, na década seguin-
te, por membros da Comissão Mista Brasil-Peru Demarcadora de Limites
89
. Diversos
desses escritos, postos em diálogo com depoimentos orais de indígenas e de seringuei-
ros, subsidiaram trabalhos antropológicos (teses, dissertações, artigos e relatórios de i-
dentificação e delimitação de terras indígenas) produzidos nos últimos trinta anos
90
.
uma década, esse tema passou a constar como objeto de investigação de professores in-
dígenas no Acre na disciplina de "História", com base principalmente em pesquisas rea-
lizadas junto aos mais velhos de suas aldeias, mas também na leitura de textos de via-
jantes, documentos oficiais e trabalhos antropológicos, esforços de pesquisa que têm
rendido breves relatórios de pesquisa, bem como materiais para livros didáticos
91
.
A intenção a seguir não é retomar esse vasto material de forma exaustiva. Preten-
de-se, diferentemente, tomando como marco temporal inicial o período que se estende
principalmente até 1904, quando começa a ser implantada a Prefeitura do Alto Juruá,
destacar como as "correrias" constituíram mecanismo inerente ao processo de desterri-
torialização dos grupos indígenas, iniciado com a implantação da empresa seringalista e
com as atividades dos caucheiros peruanos, e apontar algumas das principais conse-
viajantes, missionários e agentes de governo (brasileiros, peruanos e europeus), e por Hassel (1905) para
a região fronteiriça entre Brasil e Peru.
88
Ver, por exemplo, Parissier, 1898; Azevedo, 1905, 1906; Brasil. Ministério da Justiça e Negócios Inte-
riores. Prefeitura do Alto Purus, 1905; Cunha, 1976; Mendonça, 1989 [1907]; Andrada, 1907, 1908; Oli-
veira, 1907; Araújo 2003 [1910]; Sombra, 1911, 1913; Silva, 1912; Linhares, 1913; Abreu, 1941 [1914];
Tastevin, 1920, 1925, 1926, 1928.
89
Dentre os escritos de funcionários do SPI(LTN), ver Barbosa, 1912; Silva, 1912, Linhares, 1913; Le-
mos, 1917, 1919, 1921, 1923, 1925. Para os relatórios de integrantes da Comissão Mista, consultar Silva,
1924, 1925, 1929; e Carvalho, 1929.
90
Dentre os textos antropológicos, ver Aquino, 1977, 1985, 2001; Aquino & Tenê Kaxinawá, 1989;
Mendes, 1991; Iglesias & Aquino, 1994, 1996; Iglesias, 1995; Ioris, 1996; Wolff, 1999; Pereira Neto,
1999; Naveira, 1999; Correia, 2001, 2004; Pantoja, 2003, 2004; Martini, 1998, 2005; Pimenta, 2001,
2002, 2003; Coutinho 2003; Vieira, 2005; e Maciel, 2005.
91
Um pequeno mosaico dos textos produzidos pelos professores indígenas, a partir de relatos de idosos de
suas comunidades, está agrupado no capítulo "O tempo das correrias", em OPIAC (2002: 90-100). As
"correrias" constam também como tema de pesquisa realizada pelo professor Joaquim Paulo de Lima
(Maná Kaxinawá, 1999) durante seus estudos na Universidade Estadual do Mato Grosso.
63
qüências que esses processos acarretaram para esses grupos, na forma de significativas
perdas populacionais e de mudanças das formas de organização territorial e social. Pro-
curar-se-á, ainda, resgatar alguns dos principais esforços contidos em textos antropoló-
gicos e de agentes governamentais no sentido de diferenciar distintas modalidades de
correrias ocorridas ao longo da implantação e do funcionamento dos seringais durante o
período de apogeu da economia da borracha. Por fim, atenção será vertida sobre os dis-
cursos ideológicos que, naquele então, justificariam e legitimariam a realização das
"correrias" contra os grupos indígenas.
O período inicial das explorações no alto rio Juruá e em seus afluentes, com vistas
à delimitação de extensões variáveis de floresta para a posterior abertura de seringais,
esteve marcado pelo acompanhamento interessado dos indígenas nas margens dos rios,
seguido, em alguns casos, de emboscadas e ataques feitos para a intimidação dos re-
cém-chegados. Tentativas feitas por alguns exploradores de estabelecer contatos e in-
tercâmbios resultaram por vezes em momentos de tensão e desentendimento, descam-
bando em atos de demonstração do poderio bélico de ambas as partes, e em certos casos
em conflitos abertos
92
.
Esta dinâmica, de encontros furtivos com expedições formadas por grupos peque-
nos de exploradores, viria a se modificar com a chegada de fluxos cada vez mais ex-
pressivos de nordestinos, e com o adentramento dos afluentes dos principais rios. Du-
rante a identificação das áreas ricas em árvores de hévea e a gradual abertura de coloca-
ções e estradas de seringa, os exploradores, guiados por toqueiros e mateiros, com fre-
92
Castello Branco (1930: 593) fornece, por exemplo, informações a respeito de alguns destes encontros,
nos arredores de onde duas décadas depois seria fundada a cidade de Cruzeiro do Sul: "Em princípios de
1884, o pernambucano Antônio Marques de Meneses, vulgo “Pernambuco”, acompanhado de Antônio
Torres, Pedro Moita, José Vieira, Manoel Meneses, Jacinto de Tal e Joaquim Nascimento, aportava ao
estirão dos Nauas, donde voltou, sem demora, por ter sido atacado pelos índios, que lhe deram uma sur-
ra". "Encontraram eles [os italianos Henrique Gani, Antônio Brozzo, Domingos Stulzer, vindos da Repú-
blica Argentina, que ali encontraram os seus compatriotas Antônio Marcílio e Luiz Paschoal, proprietá-
rios e sócios no seringal Nova Iorque, no baixo Juruá (CB)], pelas cercanias do rio Moa extensos bana-
nais ou grande numero de índios, que os iam seguindo com o maior interesse, por terra. No meio do esti-
rão dos Nauas (...) foram os viajantes a terra, deparando com uma enorme maloca dos silvícolas chama-
dos “Nauas” (...) e após uma certa demora, necessária apenas para oferecerem aos aborígines alguns
brinquedos ou outros objetos que lhes despertassem a curiosidade, continuaram sua rota, parando no-
vamente na extremidade sul do referido estirão, na terra firme, e daí encontraram novamente muitos ín-
dios, tendo-lhes feito oferecimentos idênticos. Foram, porém, obrigados a fazer fogo para o ar, a fim de
os atemorizar, uma vez que eles tentaram lançar mão de suas armas, instrumentos esses que os indígenas
prestavam muita atenção e pelos quais se mostravam assaz interessados desde o primeiro encontro na
parte central desse estirão" (ibid: 593-94). Com a gradual subida das expedições exploratórias, essa di-
nâmica repetir-se-ia ao longo de todo o rio Juruá, conforme indica o mesmo historiador, resultando inclu-
sive em emboscadas e conflitos armados. Castello Branco (1950: 13) pondera que os nomes dados pelos
proprietários a certos seringais, dentre eles, Triunfo, Novo Triunfo, Vitória e Fortaleza, indicariam locais
onde sua abertura exigira memoráveis conflitos contra os indígenas.
64
qüência se depararam com "malocas" indígenas, situadas tanto nas proximidades dos ri-
os como em áreas de terra firme, constatando, com admiração, na maioria dos casos, os
enormes e diversificados roçados ali plantados.
Em certos trechos dos rios, as notícias da presença e dos ataques dos índios retar-
daram temporariamente a abertura dos seringais e a consolidação do povoamento. Em
suas memórias, o paraibano Alfredo Lustosa Cabral (1984: 41) informa, por exemplo,
que, em 1898, no alto rio Tejo, um explorador havia demarcado sua posse, mas não lo-
grara dar seguimento à abertura de sua propriedade, "atemorizado pelo gentio". Tam-
bém nesse rio, no seringal São Francisco, o patrão, chefiando um grupo de oito homens,
acabaria morto, flechado, durante "correria" que encabeçara contra os Katukina, tendo
sido enterrado por seus companheiros, na beira de um curso de água, enquanto "faziam
disparos à toa para afugentar os inimigos".
Em final de 1901, no médio rio Tarauacá, ao chegar ao Redenção, "seringal novo,
ainda quase bruto", recém adquirido por seu irmão, Lustosa Cabral (1984: 44) foi pron-
tamente informado de que o local era "bom de leite, porém de muito índio e sazonado".
A situação era semelhante nas vizinhanças, onde as explorações e seringais abertos
alcançavam pouco valor, por ser "região doentia" e haver "tribus caxinauá e catuquina
em número considerável" (1984: 43). Na margem oposta do rio, seringais permaneciam
desocupados, apesar das seguidas tentativas dos proprietários, devido a constantes "per-
seguições" e roubos feitos pelos Katukina. Em começo do ano seguinte, para abrir o
Redenção, 45 seringueiros contaram com um verdadeiro "arsenal de guerra", diz Ca-
bral, precavidos pela existência de roçados fazia pouco abandonados pelos Kaxinawá,
os quais, mesmo após mudar-se para o centro da mata, continuavam a freqüentar suas
antigas plantações e a deixar "tapagens" e outros sinais nos caminhos, procurando ame-
drontar os seringueiros, sem, contudo, promover saques e mortes (1984: 50-1).
Com a abertura dos seringais, deparados com a presença de um número crescente
de seringueiros e cientes do poderio bélico dos rifles, muitos grupos indígenas optaram
por adentrar a floresta, a horas ou dias de caminhada dos locais onde estavam situadas
suas malocas e plantações. Instalados em acampamentos e tapiris, retornavam com rela-
tiva freqüência a seus antigos roçados, para colher produtos agrícolas, necessários à a-
limentação e à abertura de novos roçados e malocas
93
. Em certos casos, tornar-se-iam
93
Lustosa Cabral (1984: 50), por exemplo, descreve essa situação quando da abertura do seringal Reden-
ção, destacando que os seringueiros, recém chegados, costumavam se abastecer dos produtos dos roçados
"abandonados" pelos índios: "Todos armados a rifles e regularmente municiados. Havia ali um grande
perigo de vida. A quinze minutos de viagem acharam roçado, bem grande, em abandono, mas continha
65
freqüentes, ainda, as incursões às colocações dos seringueiros: na ausência destes, rou-
bavam seus pertences e, por vezes, ateavam fogo às barracas; ferimentos graves e mor-
tes costumavam resultar em ocasiões em que seringueiros eram surpreendidos em suas
casas ou no trabalho de corte e em caçadas.
Durante quase duas décadas, a presença indígena seria considerada pelos patrões
como eminente obstáculo à consolidação da ocupação, ao funcionamento de suas pro-
priedades e ao trabalho e "segurança" de seus fregueses. Os seringalistas não realizari-
am qualquer iniciativa para incorporar os indígenas às atividades produtivas, optando
por trabalhar com mão de obra trazida do Nordeste, utilizada exclusivamente na produ-
ção de borracha
94
. Em locais onde a presença indígena constituía ameaça à abertura dos
seringais, ou à produção, expedições armadas, as "correrias", passariam a ser patrocina-
das para destruir as malocas comunais, matar considerável parte dos moradores, forçar a
saída dos sobreviventes e, em certos casos, capturar mulheres e crianças indígenas.
Uma pioneira denúncia às "correrias" que marcaram a implantação da empresa se-
ringalista no Alto Juruá foi feita pelo padre Jean-Baptiste Parissier, após sua viagem à
região, em 1898, em companhia do padre Auguste Cabriolé
95
. Parissier criticaria os dis-
cursos dos patrões e seringueiros que consideravam os indígenas como "selvagens", "i-
bananeiras, mamoeiros e cana de açúcar. Pertencia aos Caxinauás, que, pressentindo os civilizados fir-
marem domínio nas margens do rio, mudaram-se para bem longe no centro da mata. Ora por outra vi-
nham ali se abastecer, sorrateiros, invisíveis. Os seringueiros traziam, por vezes, frutos desse roçado.
Para todo lado que se rumava, viam-se nítidos vestígios desses caboclos, mas sem se deparar com eles.
(...) A tribo de Redenção (Caxinauá) não era tão perversa. No começo limitava-se a tapar algumas de
nossas estradas sem deixar os sinais da morte, caça varada por flechas nos caminhos e outros avisos te-
merários".
94
Essa situação apresenta diferenças, portanto, como aquelas configuradas nas zonas produtoras de cau-
cho nos rios Ucayali e Madre de Dios (Villanueva, 1902; Hassel, 1902; Cunha, 1976; Mendonça; 1989;
Reyna, 1943; Gow, 1991; Rummenhöller, 2003) ou no rio Putumayo, na Colômbia (Hardenberg, 1912;
Taussig, 1993), regiões onde diferentes grupos indígenas, após sofrerem massacres, foram escravizados,
deslocados para regiões ricas em castilloa e incorporados à extração, freqüentemente sob regimes de vio-
lências e castigos e de vigiados por empregados a serviços dos patrões.
95
Ambos franceses, Parissier e Cabriolé foram os primeiros representantes da Congregação do Espírito
Santo a viajar pelo alto rio Juruá, promovendo "desobrigas". A chegada dos Espiritanos a Belém data de
1895, onde assumiriam a direção do Seminário Menor da Diocese, e a Tefé de dois anos mais tarde, como
fruto de articulações feitas junto às autoridades eclesiásticas em Manaus. No local denominado Sobrado,
em terreno doado pelo Governo do Estado do Amazonas, dariam início à instalação, em julho de 1897, da
"Escola Profissionalizante Agrícola e Industrial de Bocca de Tefé", onde funcionariam escola, internato,
carpentaria, torno mecânico, curtume e fábrica de chocolate e vinho de caju. A partir de 1907, quando a
Paróquia de Tefé passou à responsabilidade dos Espiritanos, as instalações da missão seriam gradualmen-
te transferidas para a cidade, mudança consolidada, três anos mais tarde, com a criação da Prefeitura A-
postólica de Tefé, desmembrada da Diocese do Amazonas, sediada em Manaus (Gruyters, s/d; Braga,
2006). Desde sua fundação, importante parte do trabalho dos missionários estaria vertida à periódica rea-
lização de desobrigas pelos rios Juruá, Japurá/Caquetá e Solimões. Além das pioneiras viagens de Parissi-
er e de Cabriolé e, em 1910, do Monsenhor Michel Barrat ao Alto Juruá, seria Constant Tastevin o mis-
sionário a realizar a maioria dessas atividades nos rios do Território do Acre, nos anos de 1911-1912 e
1924-1926. Para outras informações sobre a história da Congregação do Espírito Santo no Brasil e na
Amazônia, consultar www.spiritains.org/echo/echohist.htm#Bresil; www.csspbrasil.org; e Gruyters, s/d.
66
nimigos de toda civilização", "sempre prontos a massacrar os brancos" e como "feras"
das quais se deveria ver livre o mais rápido possível, contra as quais "todos os meios se-
riam bons".
Segundo o padre, esses argumentos constituíam meras "desculpas inventadas pe-
los "civilizados", que preferia chamar de "aventureiros", para legitimar seus próprios
roubos e atrocidades. As hostilidades dos índios, afirmaria, eram compreensíveis e justi-
ficáveis, por constituírem represálias contra um "inimigo implacável", que, por meio
das "correrias", se apropriara "(...) pouco a pouco do seu território, roubando as suas
riquezas, destruindo as suas plantações, queimando as suas habitações, massacrando
os homens e vendendo as mulheres e as crianças" (Parissier, 1898)
96
. Relativizando o
discurso vigente nos seringais sobre a "selvageria" dos índios, questionar-se-ia o padre:
"Quando visitamos hoje estas regiões noutra época tão prósperas, e agora tão pobres e
tristes, nos perguntamos, não sem corar de vergonha, se os verdadeiros selvagens, as
verdadeiras feras, não são estes vândalos europeus que vieram massacrar, roubar estes
pobres índios que viviam felizes e tranqüilos, sem pedir nada a ninguém". E constataria,
ainda, que as "correrias" haviam, nesta época, obrigado os índios a se retirar para as
"profundezas da floresta", longe da beira dos rios, "para viver, não na abundância, mas
antes em segurança e em liberdade"
97
.
Após viajar pelos rios Murú e Tarauacá, em 1924, o padre francês Constant Tas-
tevin, também da Congregação do Espírito Santo, forneceria, com base em depoimentos
orais, a seguinte descrição da forma de organização e das estratégias utilizadas nas "cor-
rerias" durante a abertura dos seringais:
"Rien de plus facile que d’en finir avec une tribu gênante. On réunit 30 à 50
hommes, armés de carabines à répétition et munis chacun d’une centaine de
96
Desta viagem resultaram dois manuscritos, escritos em 1898, por J.B. Parissier, "Six mois au Pays de
Caoutchouc" e "Le principal produit de la selva ammazonienne", hoje depositados nos Arquivos Gerais
da Congregação do Espírito Santo, em Chevilly-la-Rue, na França. (A versão em português, aqui utiliza-
da, do primeiro escrito foi traduzida do francês, em começo dos anos de 1990, pelo Núcleo de História
Indígena e do Indigenismo (NHII), da Universidade de São Paulo). "Do ponto de vista religioso", Parissi-
er (1898) assim contabilizaria o resultado dessa primeira "desobriga" no alto rio Juruá: "Fizemos ou legi-
timamos 101 casamentos, fizemos 521 batizados e confirmamos 830 pessoas. Ou seja, 1452 sacramentos
ministrados, sem contar com os sacramentos de penitência e de Eucaristia, que foram muito freqüentes".
97
Parissier (1898) assim descreve as violências cometidas contra os indígenas durante a exploração e a
abertura dos seringais: "Notem que estas correrias são praticadas ainda hoje. Eis aqui o que acontece
quando um branco quer se estabelecer num terreno ocupado por uma tribo de índios. Ele arma 5 ou 6
homens com bons fuzis, pega um para si também, e parte em busca da maloca. Quando esta é encontrada
é cercada, os homens massacram todos aqueles que tentam fugir e as mulheres e crianças são levados ao
Juruá e vendidos como animais". E externa seu pesar diante de cenas que presenciara durante sua viagem
de "desobriga": "Eu vi venderem na minha frente 8 pequenos índios de 4 a 5 anos. As lágrimas me vi-
nham aos olhos vendo estas pobres pequenas criaturas tratadas como pequenos animais. Infelizmente
não posso dizer tudo o que sei sobre os índios; quantas cenas de barbárie atroz poderiam ser citadas!!".
67
balles; et, de nuit, on cerne l’unique carbet, en forme de ruche d’abeilles, tout
le clan dort en paix. A l’aurore, a l’heure les Indiens se lèvent pour fair le
premier repas et leurs préparatifs de chasse, un cri convenu donne le signal, et
les assaillants font feu tous ensemble et à la volonté. Bien peu des assiégés
réussissent a s’échapper: on emmène les femmes et les enfants que l’on peut
prendre vivants, mais on ne fait aucun quartier aux hommes, lesquels d’ailleurs
se montrent sans peur et indomptables" (Tastevin, 1925: 419).
A vingança por saques e mortes realizados pelos indígenas também motivaram
parte das "correrias". Neste caso, por iniciativas dos patrões, ou atendendo às pressões
dos seringueiros, essas incursões, que em certos casos, reuniam homens dos seringais
das vizinhanças, eram justificadas pelos seringalistas com o argumento de que necessi-
tavam "dar segurança" aos fregueses, para assegurar sua permanência na propriedade,
garantir a produção de borracha e desencorajar novos ataques promovidos pelos índios.
Alfredo Lustosa Cabral descreve, de maneira semelhante a Tastevin, a organiza-
ção de uma dessas "correrias", promovida por seringalistas vizinhos ao Redenção contra
uma maloca dos Katukina, após um ataque a eles atribuído no seringal Primavera, que
resultara na morte de três seringueiros e o roubo de seus pertences:
"De pronto foi organizada uma correria. Era preciso ação pronta, decidida, ur-
gente. Compunha-se de vinte homens, com trezentos cartuchos Winchester cada
um. Redenção forneceu quatro rapazes, o resto foi arranjado em outros seringais.
Penetrando na mata, foram dar com as malocas depois de terem andado três di-
as. Roçado enorme, cheio de lavoura, num planalto, e no centro o barracão se-
melhante a circo de cavalinhos, tendo duas portas, salientando-se um mastro com
lugar para sentar-se o espia que descortinava grande parte do roçado. Tomaram
chegada às seis da tarde, hora em que o selvagem costuma estar em casa reuni-
do. Dormiram a certa distância do aceiro. Às cinco horas da manhã, avançaram
formando cerrado tiroteio (...) A mortandade foi grande, mas escafederam-se
muitos (...) conseguiram prender uns quinze colomins, de oito a dez anos. Os no-
vinhos deixaram (...) No regresso, os prisioneiros começaram a gritar demais,
sendo preciso abandoná-los, deixando-os à toa, perdidos. Outros praticavam sel-
vageria destampando a cabeça dos inocentes com balas" (Cabral, 1984: 61-62).
Tastevin (1928: 211) relata que no Riozinho da Liberdade "chegou-se até a arre-
messar pequenos índios ao ar para recebê-los sobre a ponta de um punhal". Diz o padre
que casos como este constituíram exceções, ainda lembradas, com horror, por seus in-
formantes, trinta anos após a chegada dos primeiros exploradores a esse rio. Ainda que
tratada como exceção pelo padre francês, relato de situações semelhantes, da destruição
das malocas comunais, da morte dos homens adultos, da captura de mulheres e crianças,
bem como dos atos de violência extrema contra os sobreviventes, surgem com relativa
68
regularidade em testemunhos diversos, escritos e orais
98
. É o caso, por exemplo, de de-
poimento gravado, em 1994, com Jorge Lemes Ferreira Kaxinawá, então com 58 anos,
no qual essa liderança da aldeia Praia do Carapanã, a partir de histórias ouvidas de seus
avôs e de seu pai, ressalta a violência que permeou as "correrias" promovidas por serin-
gueiros e caucheiros no médio rio Tarauacá em início do século passado:
"Meu pai me dizia que meu avô era do tempo quando Kaxinawá ainda era brabo,
morava em cupichaua nas terras firmes, andava com pau amarrado na envira na
cintura. Meu avô viveu nu, com um cordãozinho para amarrar o pau para ci-
ma na cintura. A mulher tinha uma saiazinha feita de tecido de algodão. (...)
Nesse tempo, seringal não existia ainda (...) quando meu pai começou a traba-
lhar, ele me contava estória, ele vivia muito preocupado devido que tinha muita
correria. Tanto caucheiro peruano como patrão cariu maltratava muitos os ín-
dios, matava, tratava que nem bicho da mata. Atacava, matava gente e tocava fo-
go no cupichaua. Esses meninos pequenos, dizia que jogava pro alto e aparava
na ponta da faca. Finada minha avó contava isso pra mim. Matava os homem tu-
dinho e amarrava as mulher pra levar. Arrasava os cupichaua, tocava fogo. Meu
vovô me contava. (...) quando parava de vir aqueles caucheiros, via quantidade
de gente do pessoal dele tudo morto. Passava por cima de gente morto, de bala,
furado de faca. Cariu botava fogo na casa. Assim, morreu muito velho, muito
homem feito. Com isso, os poucos índios que restavam eram obrigados a fugir
pro centro da mata e pras cabeceiras dos rios e igarapés. Nisso, vinha lutando
meu pai. Meu pai contava isso pra mim. Desde o tempo que eu venho lutando até
aqui, chegou uma época em que foi resolvido esse problema de correria, que vi-
nha sacrificando muito, de primeiro" (Iglesias, 1995: 2).
A presença mais significativa de grupos de caucheiros peruanos em vários afluen-
tes do rio Juruá coincidiu com o período inicial de implantação da empresa seringalista.
Parte deles teria chegado pelos altos rios Javari e Jaquirana em meados dos anos de
1890, e, pouco mais acima, às terras dos divisores dos rios Juruá e Ucayali, no trecho
entre as cabeceiras dos rios Moa, e Juruá Mirim (Castello Branco, 1959: 142-43).
98
Em artigo publicado no Jornal do Commercio de 19 de dezembro de 1911, Luiz Sombra, por sua vez,
relata o que considerou "fatos hediondos", dos quais teve conhecimento durante suas atividades como de-
legado de polícia no vale do Tarauacá no biênio 1905-1906: "No rio Iboiassu, affluente do rio Murú, um
seringueiro apellidado Cobra Grande matou cinco creancinhas que trouxe de uma correria sportiva feita
com outros companheiros! Elle atirava as crianças para o ar, aparava-as na ponta de uma faca e jogava
em seguida ao rio, tendo quebrado a ponta da faca ao espetar! (...) No seringal São Francisco, alto Envi-
ra, outro seringueiro matou dous curumins trazidos de uma correria, esmagando-os perversamente sob
os pés, dando depois como justificativa desse seu cruel procedimento o não haver encontrado quem qui-
zesse ficar com aquelles pagãos" (Arquivo SARQ/MI, Microfilme 324, Planilha 002, Fot. 33-34). Relato
similar consta de depoimento prestado por Dona Mariana Feitosa do Nascimento à antropóloga Mariana
Ciavatta Pantoja, ao rememorar as palavras de uma índia velha, "pega" numa correria no alto rio Envira,
em 1911, quando, no barracão do patrão que encomendara a correria, reencontrou duas meninas Nehena-
wa (uma delas Dona Regina, mãe de Dona Mariana), "pegas" em outra incursão, que ainda demonstravam
intenção de fugir: "Minhas filhas, não vão mais s’embora, nós não têm mais ninguém, mataram tudo o
nosso pessoal, mataram tudo, tudo, tudo! E não escapou nem os pequenininhos, mataram com a ponta da
faca, sacudia e aparava com a faca" (Pantoja, 2004: 123-24).
69
Dentre os patrões caucheiros chegados nestas levas pioneiras, destaque é dado a
Carlos Scharff, filho de alemães, que por pouco mais de dois anos permaneceria nas ca-
beceiras dos rios Gregório e Liberdade, à frente de um grupo de mais de 300 caucheiros,
antes de se retirar para o alto rio Purus, em 1901, levando parte de sua freguesia. Avia-
dos da firma Hidalgo Ruiz & Cia, sediada nas proximidades da boca do rio Moa (pró-
ximo à futura sede de Cruzeiro do Sul), passariam então a trabalhar nos rios Gregório e
Liberdade para o também peruano Efraim Ruiz, ali permanecendo por mais um ano,
quando esse patrão se transferiria com parte dessa freguesia para a foz do rio Breu, no
Alto Juruá (Mendonça, 1989: 210-11; Castello Branco, 1959: 142)
99
.
Informações do delegado federal no Alto Purus, Coronel José Ferreira de Araújo,
reproduzidas no jornal O Paiz de Manaus em 1904, davam conta que os caucheiros de
Carlos Scharff teriam "massacrado" cerca de 400 índios em "correrias" realizadas no rio
Gregório (Castello Branco, 1950: 19; 1959: 212). Em depoimento prestado em 1996, o
velho chefe Yawanawá, Raimundo Luiz, destacaria essas "correrias" realizadas por cau-
cheiros peruanos, nessa época, contra malocas dos Jaminawa, Rununawa e Shawanawa
(Arara) no Riozinho da Liberdade e contra os Yawanawá no rio Gregório, resultando
em grande quantidade de mortos e na dispersão de muitas famílias indígenas:
"Meu pai também contava que depois que os peruanos chegaram nas cabeceiras
do Gregório e do Riozinho da Liberdade muitos índios foi massacrado. Esses pe-
ruanos ninguém sabia donde é que eles vinha, ninguém não via os caminhos por
onde eles chegava. Sabia que eles tava acampado na cabeceira do Gregório. Era
muito peruano. Eles botava muita mercadoria, muito armamento e utensílio pra
tirar leite de caucho. Não era seringa, era caucho. O chefe dos peruanos mesmo
99
À época a presença de os caucheiros nessa região fora denunciada em relatórios das autoridades gover-
namentais sediadas em São Felipe. Esses documentos alertavam para a subida de lanchas e vapores peru-
anos pelo rio Juruá e seus afluentes (Tarauacá, Murú e Envira), trazendo centenas de caucheiros da cidade
de Iquitos, no Departamento de Loreto (Castello Branco, 1959: 140-41). A localização dos caucheiros de
Carlos Scharff no Riozinho da Liberdade em começo do século é detalhada pelo padre Tastevin: "C'est en
1883 que les chercheurs de gomme arrivérent a lémbouchure du "Riozinho da Liberdade" (...) En 1900
nous y trouvons les Péruviens installés á la bouche de Caxingó: ils y amenèrent même une embarcation à
vapeur, la seule qui ait jusqui'ici passé du Forquilha et y firent un chargement de gomme de castilloa
elastica, le caoutchouc proprement dit" (Tastevin, 1928: 213). Ao contrário do que usualmente registra a
literatura a respeito dos caucheiros, ao destacar a exclusiva presença de homens nessas atividades, exce-
ção feita a mulheres indígenas capturadas em "correrias", às "concubinas" dos patrões e a eventuais servi-
çais nos trabalhos domésticos nos postos, Alfredo Lustosa Cabral ressalta a presença de mulheres e crian-
ças, famílias, portanto, fato que também seria constatado nessa época por Manuel Pablo Villaneuva
(1902). Durante visita ao seringal na foz do rio Tarauacá, pouco acima de São Felipe, em 1902, Cabral,
que trabalhou no Riozinho da Liberdade em 1900-1901, observou a expressiva presença de caucheiros e
famílias ali e no rio Gregório: "Pedi [ao gerente] que ao menos arranjasse barraca para nos abrigar. Era
impossível, disse. Todas do pátio ocupadas por caucheiros peruanos, que chegaram das cabeceiras do
rio Gregório (...) e aguardavam navio que os conduzisse a Iquitos (Peru). Além de umas seis barracas
cheias, viam-se mais de trinta cobertas de lona, apinhadas de homens, mulheres, crianças. À frente do
barracão, no Juruá, via-se também um navio velho (...) Fora antes vaso de guerra peruano, e depois de
imprestável o adquiriam para servir de pontão. Estava ali ancorado há um mês, aguardando a chegada
de outros caucheiros e um rebocador que o conduzisse também a Iquitos" (Cabral, 1984: 46).
70
morava na cabeceira do Gregório. De ele mandava no Riozinho da Liberdade
e nos outros rios de perto também. Só não dominou no rio Tarauacá. (...) , eles
dominava os índios, tomava as mulheres de cada tribo. Então, esse chefe dos pe-
ruanos, ele não trabalhava. Era mesmo pra guarnecer as mercadorias. Botava
outros peruanos pra trabalhar dentro do Riozinho da Liberdade e um bocado no
rio Gregório. (...) os peruanos mataram muita, muita, muita gente. Por causa dis-
so os índios também se espalhou por outros cantos. Os índios também mataram
muitos peruanos. quando mataram, com pouco mais, vieram muito peruano,
morreu índio, morreu índio, morreu índio, mas mataram muito peruano também.
Aí os peruanos se afastaram mais"
(Aquino, 2001: 32-33)
100
.
Nos primeiros anos do culo, contudo, os altos rios Juruá e Purus constituíram as
principais rotas de penetração dos caucheiros onde seringais acabavam de ser implanta-
dos, ou funcionavam fazia anos, região que seria palco de conflitos localizados entre
brasileiros e peruanos e objeto de negociações e tratados diplomáticos entre os governos
de ambos os países. Nessa região de cabeceiras, a abertura de seringais, a ocupação das
colocações pelos seringueiros, a presença temporária dos caucheiros, a sobreposição
dessas atividades, ensejando, em certos casos, acordos de cooperação entre patrões bra-
sileiros e caucheiros, concorreram para a ocorrência de múltiplos conflitos armados e a
realização de "correrias" contra vários grupos indígenas, alguns cujos antigos territórios
estavam ali localizados, outros chegados nos anos anteriores, deslocados, a sul, pela
gradual chegada dos caucheiros e, a norte, pelos seringueiros.
Além das explicitadas anteriormente, evidências das atividades dos caucheiros nas
cabeceiras dos principais afluentes do alto Juruá, durante e após a implantação dos se-
ringais, bem como das conseqüências dessas atividades para as formas de vida de dife-
rentes grupos indígenas, constam de textos resultantes de duas viagens realizadas pelos
engenheiros Jorge Von Hassel e Manuel Pablo Villanueva
101
nessa região fronteiriça em
100
Nesse depoimento, prestado a Terri Valle de Aquino, por ocasião dos trabalhos de fundamentação da
criação da Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade, Raimundo Luiz detalharia estratégias utilizadas
pelos Yawanawá nos confrontos com os caucheiros: "Os Yawanawá começaram a estudar como matar
mais peruano. Tiraram as fardas daqueles que eles já tinha matado, vestia e quando chegava perto, eles
ficava confundido. Os peruanos pensava que era tudo patrício deles, assim foi matando muito peruano.
Os peruano não sabia mais quem era quem. Então, isso confundiu muito. Aí os peruanos foram embora.
Nunca mais vimos peruano. Nosso pessoal foi se afastando, morando na terra firme das cabeceiras dos
igarapés (Aquino, 2001). Tescon, chefe dos Rununawa e Shawanawa, nas cabeceiras do Riozinho da Li-
berdade, ganharia fama como valoroso "tuxaua", dentre outros feitos, pela morte de pouco mais de 30 pe-
ruanos durante esses confrontos. Referências a essas "proezas" de Tescon contra os peruanos, sobre sua
chefia e sobre as relações estabelecidas posteriormente com os seringalistas e agentes de governo constam
em relatórios oficiais (Oliveira, 1907; Linhares, 1913), em relatos do padre Tastevin (1926; 1928), no re-
latório biográfico de Felizardo Avelino de Cerqueira (1958) e em estudos de cunho histórico (Castello
Branco, 1950; Barros; 1993), e serão objeto de análise em capítulos posteriores (IV e V).
101
De origem alemã, Jorge Von Hassel fora oficial do exército de seu país e se agregara ao "Exército
Maior Geral" russo na campanha do Cáucaso e às forças armadas austríacas na ocupação da Herzegovina
(Hassel, 1904: 245). Realizadas sob delegação do Governo do Departamento de Loreto e o respaldo cien-
71
1902. A recente "descoberta" pelos caucheiros de vários varadouros ligando os altos ri-
os Purus, Envira, Tarauae Juruá, que, integrados a redes mais amplas de caminhos,
permitiam a ligação dessas cabeceiras com diversos pontos do rio Ucayali
102
, e dali para
as cidades de Pucallpa e Iquitos, é ressaltada por Villanueva (1902: 411; 424). À época,
segundo constatou, os lugares mais atraentes para se trabalhar eram as cabeceiras dos
rios Tejo, Breu e Tarauacá, devido aos grandes cauchais ali recém identificados (1902:
386).
Dentre os "índios não reduzidos" espalhados nessa região, Villanueva (1902: 426-
27) destacaria os Yura no alto Juruá e seus afluentes, os Capanawa nas cabeceiras do
Breu e grande número de "Yuminahuas" (Jaminawa) e Amahuacas nos rios Jordão, Tejo
e São João e "nas montanhas vizinhas ao Tarauacá". Os últimos três seriam também ci-
tados por Hassel (1905: 34), localizando-os nas cabeceiras dos rios Juruá, Tarauacá e
Purus em mapa que ilustra seu artigo precedente (Hassel, 1903)
103
. A população dos
Amahuaca, dividida em "numerosas sub-tribos"
104
, foi por ele estimada entre seis e nove
tífico da Sociedad Geográfica de Lima, nessas viagens Villanueva como Hassel tinham por atribuição fa-
zer um diagnóstico da situação das fronteiras do Peru com os seus países vizinhos. Os textos que resulta-
ram dessas viagens propõem ao Estado peruano ações para garantir a soberania e a ocupação na região
amazônica, sugerindo, inclusive, possíveis traçados para a construção de ferrovias, com intenção de per-
mitir sua definitiva integração econômica e política ao restante do país (Villanueva, 1902; Hassel, 1903,
1904, 1904a). Segundo Castello Branco (1959: 189), Villanueva, acompanhado do caucheiro Leopoldo
Collazos, já estivera em "missão secreta" para o governo de Loreto no alto Purus, onde chegaram a haste-
ar a bandeira peruana, afirmaram tratar-se de território daquele país e acabaram repelidos por seringalistas
locais. Em 1902, sua viagem pelos rios Tamaya e Amônia acrescentaria dados à expedição anterior do
Capitão da Marinha de Guerra Enrique Espinar, de 1897, e teria servido para alertar aos comerciantes e
caucheiros da chegada de forças militares peruanas para apoiar a ocupação então em curso. Villaneuva
ocuparia depois o cargo de cônsul do governo peruano na cidade de Manaus (ibid: 147).
102
Segundo Villanueva, dois varadouros saíam do Breu, rio ocupado por uma centena de caucheiros pe-
ruanos, para o Riozinho (como então era também conhecido o rio Jordão): se alcançava as cabeceiras des-
te último, à altura do seringal Revisão, pelo paranã Busnã e o seu médio curso, à altura do seringal Bom
Jardim, pelo próprio Breu. Outro varadouro partia do rio Tejo, povoado por brasileiros e peruanos, para
alcançar o rio Tarauacá, caminho de onde Villanueva viu famílias inteiras de caucheiros, após atravessar
"regiões desprovidas de recursos e infestadas de infiéis", saírem no rio Amônia e, pelo varadouro do rio
Tamaya, chegarem às águas do rio Ucayali. Cita ainda a existência de um terceiro caminho, usado por
"todos los caucheros procedentes del Tarahuacá ó del Embira, que salen unos huídos y otros después de
pagar sus cuentas", que, em sua continuação, permitia a ligação mais próxima do Alto Juruá com o Uca-
yali, passando pelos rios Huacapistea e Cohenhua (Villaneuva, 1902: 422-23). O intenso uso desse último
varadouro pelos caucheiros foi também ressaltada pelo chefe da comissão brasileira, Belarmino Mendon-
ça (1989: 64; 205), após a expedição de reconhecimento do Alto Juruá, em 1906. Destaca ainda a existên-
cia de varadouros, usados desde 1897, por brasileiros e peruanos para comunicar-se do Alto Juruá com os
rios Tejo e Tarauacá (1989: 197). À semelhança do "Istmo de Fitzcarrald", é plausível afirmar que esses
varadouros "descobertos" e utilizados pelos caucheiros em seus deslocamentos pelas cabeceiras dos aflu-
entes do Alto Juruá também constituíam antigos caminhos usados por vários grupos indígenas antes da
chegada dos brasileiros e peruanos.
103
Com base, em sua maior parte, nessas mesmas fontes, tanto Tastevin & Rivet (1921) como o "mapa
etno-histórico", produzido por Curt Nimendaju (Brasil. IBGE, 1987), corroboram a distribuição dos A-
mahuacas e dos demais grupos nessa região, ao longo da fronteira brasileiro-peruana.
104
Hassel (1905: 53) oferece a seguinte definição ao termo "sub-tribo", na seção sobre as "formas de go-
verno": "Ninguna tribu de la cuenca amazónica peruana cuenta com forma alguna de estado. Todas, in-
72
mil índios, a dos Jaminawa, "sub-tribo dos Amahuaca", moradores das cabeceiras do rio
Envira, entre um e 1,5 mil, e a dos Yura, habitantes do Alto Juruá, em pouco menos de
mil (Hassel, 1905: 31; 34).
Segundo Villanueva, esses indígenas viviam "em constante movimento", "erran-
tes", "em condição deplorável", sem casas fixas e sem roçados para se alimentar, devido
às recorrentes perseguições promovidas pelos caucheiros, como represálias e punições
por "assaltos" e "pilhagens", que costumavam realizar em busca de armas, instrumentos
de trabalho e farinha
105
. Uma tendência ao seu "inexorável" decréscimo populacional se
configurava, resultado das mortes dos homens que se opunham às "correrias" e da venda
dos sobreviventes na condição de "escravos". Além de afugentá-los das cercanias dos
acampamentos caucheiros, o "verdadeiro" objetivo das "correrias", afirma, era a captura
de jovens e mulheres indígenas, para vendê-los a "bons preços"
106
, a patrões peruanos e
brasileiros, quem mantinham-nos a seus serviços na floresta ou levavam-nos para cen-
tros urbanos distantes.
"Muchas tribus ya han desparecido y otras más están próximas a desaparecer;
por lo general, todas están sujetas a una reducción rápida", afirmaria Hassel (1905:
64), atribuindo essa situação à disseminação de doenças contagiosas (especialmente a
varíola), às "guerras" intertribais e às "correrias" promovidas por "brancos" interessados
em "lucrativos negócios com carne humana" (1905: 27-8). Nos cinco anos anteriores,
diz, certos caucheiros teriam vendido, cada um, mais de 300 índios. Estima, ainda, que,
para além dos mortos nas "correrias", cerca de 60% dos "infieles" nelas capturados fale-
ciam pouco depois, devido às "bruscas mudanças nas formas de vida" e aos maus tratos
aos quais, principalmente os jovens, eram submetidos, transformados em "escravos" e
clusive las más fuertes y poderosas, se componen de una agrupación de famílias, y el jefe de éstas dispo-
ne de todas. Las famílias que viven en las cercanías constituyen una subtribu, y eligen ou reconocen un
jefe de familia como jefe de la subtribu ó tribo". Um olhar atento ao mapa de Hassel indica que de fato
sob a denominação "genérica" de Amahuaca estava subsumida uma grande diversidade de grupos indíge-
nas falantes de línguas Pano, não discriminados ou localizados em seu esboço cartográfico da região fron-
teiriça então "contestada" entre Brasil e Peru.
105
O relatório de Belarmino de Mendonça (1989: 197; 205) também destacaria a ocorrência, em anos an-
teriores e à época da estadia da Comissão Mista, de freqüentes "correrias" organizadas por caucheiros
contra os "gentios amahuacas, cujas malocas têm dizimado, apoderando-se das mulheres e crianças e
matando os homens", bem como a presença de índios "mansos" dentre os contigentes de trabalhadores pe-
ruanos.
106
À época, diz Villanueva, um menino de 10 a12 anos valia 500 soles, e mais "no caso de ser Ashanin-
ka". Uma menina da mesma idade alcançava preços entre 300-400 soles, e pouco menos se maior de 20
anos. Explicaria essa diferença pela dificuldade dos índios, a partir de certa idade, de se adaptarem à nova
vida e pelas freqüentes tentativas de fuga. Considerava também que os mais novos podiam chegar a es-
quecer "seus costumes selvagens", aprender o castelhano e ser muito úteis a seus patrões, "si és que viven,
pues estas infelizes criaturas, arrancadas del lado de sus padres, a quienes quizá vieron morir por defen-
derlos, caen com frecuencia en profunda melancolía y sucumben sin enfermedad aparente" (Villanueva,
1902: 427-28).
73
utilizados em tarefas pesadas na floresta e em serviços domésticos
107
. E assim avalia os
resultados desses processos sobre os grupos indígenas: "Los infieles, pues, nada aprove-
chan de la civilización; por el contrario, aprenden muchos vicios que no conocian en
sus montañas" (Hassel, 1904: 244)
Preocupado com a efetivação de ações pelo governo peruano para garantir a sobe-
rania sobre a "região contestada", Villanueva ponderaria sobre os reais beneficiários das
atividades até então realizadas pelos caucheiros, caracterizadas por grandes deslocamen-
tos e uma "instabilidade inevitável", que, a seu ver, haviam contribuído decisivamente
para remover a incômoda presença indígena dos seringais abertos e trabalhados por bra-
sileiros:
"Quizás si hasta contraproducente para nuestros intereses han sido las explora-
ciones de los caucheros peruanos, porque, mercéd a sus esfuerzos, se han alejado
los indios selvajes que constantemente amenazaban a los shiringueros en sus ba-
rracas. Al despejar y limpiar la montaña, los peruanos trabajaron en beneficio
ajeno, porque los brasileros no tardaron en derramarse por todas las quebradas
en que, hasta entonces, nunca se aventuraron" (Villanueva, 1902: 387)
108
.
107
Em dois textos, Hassel (1904, 1905) faz apelos aos governos para que "amparassem" esses grupos in-
dígenas, a quem os "brancos" perseguiam e caçavam como "animais da mata", reconhecendo seu valor
apenas pelos preços que alcançavam ao comercializá-los: "Aprovecho de esta oportunidad para protestar
ante el mundo civilizado contra los abusos y la destrucción innecesaria de estos seres primitivos, que la
codicia del llamado hombre civilizado ha puesto entre los productos del mercado amazónico; pues es un
hecho conocido por todos que se cotízan allí como cualquier mercadería". Reivindica, diferentemente,
que os governos, com "os poderosos auxílios da civilização", os "conquistassem" e "incorporassem" à
"sociedade civilizada". E conclamaria os "homens das ciências" a realizar estudos minuciosos dessas tri-
bos, representantes dos "primeiros graus do desenvolvimento humano", num momento em que passavam
por uma completa mudança, pelo "surgimento de uma nova raça", forjada pelas misturas, dos grupos en-
tre si e com os caucheiros, e pela incorporação de novos costumes e tecnologias (por exemplo, o abando-
no do machado de pedra e a adoção de armas de fogo) (Hassel, 1905: 28). Como contribuição a essa tare-
fa, diz, tornava públicos seus breves apontamentos, frutos de dez anos de viagens, "aprovechando los úl-
timos momentos en que guardan todavía sus primitivas costumbres, antes de que las absorba la civiliza-
ción dominante (...)". Conforme será visto no capítulo seguinte, proposta semelhante seria feita pelo dele-
gado Luiz Sombra (1913) após viajar aos rios Murú e Iboiaçú em 1905, ao sugerir ao Museu Nacional a
constituição de coleções de cultura material e a promoção de estudos dos costumes e línguas dos indíge-
nas do Território do Acre, "antes de sua eminente extinção". Em outro texto (Hassel, 1904: 244), destaca-
ria as iniciativas levadas a cabo à época por agentes religiosos para levar a "civilização" aos indígenas:
"En esta capital [Iquitos] hay varios frailes dedicados a la conquista de infieles; han establecido una es-
cuela correcional, en la cual ellos y otras personas, les enseñan trabajos útiles, el idioma español, los
convierten al cristianismo y los hacen buenos ciudadanos que pueden servir más tarde como misioneros
entre sus proprios paisanos".
108
Villanueva (1902: 384) alertaria ainda para os perigos enfrentados pelos caucheiros ao trabalhar em
regiões onde patrões brasileiros não hesitavam em pegar em armas para assegurar o controle, ou se apos-
sar, de trechos de floresta recém abertos à produção da borracha: "Hasta las quebradas mas insignifican-
tes son objeto de viva explotación, pues en todas abunda el precioso árbol. Por la posesión de esas que-
bradas, llamadas igarapés por los brasileiros, ocurren riñas sangrientas, pues no es raro el caso de que
un shiringueiro, con pretensiones a las estradas tales o cuáles, arme a su gente y vaya con ella a atacar
al que disputa el dominio de las mismas. En este punto son irreconciliables nuestros vecinos. Por un poco
de jebe cometen los crímenes más abominables".
74
As "correrias" realizadas pelas turmas de caucheiros, que se retirariam da maior
parte da região após o esgotamento dos nichos de castilloa, permitiriam, como indica
Villanueva, a consolidação dos seringais em certas regiões, viabilizando que igarapés
onde a presença indígena fora antes ameaça fossem explorados, colocações fossem a-
bertas nos antigos territórios indígenas e que os seringueiros se assentassem e trabalhas-
sem "com segurança".
Ao contrário do ocorrido nos trechos peruanos dos altos rios Juruá e Purus, foco
principal das viagens e dos textos de Villaneuva e Hassel, na extensa região ocupada pe-
la empresa seringalista, os caucheiros não parecem ter priorizado o estabelecimento de
alianças com chefes de grupos extensos indígenas, e nem deliberadamente promovido
guerras intertribais, como estratégia para obtenção de "escravos", ou a transposição for-
çada de grande número de indígenas "escravizados" para aproveitar sua mão de obra
em regiões distantes. Não se deve, contudo, desconsiderar as perdas territoriais e os pro-
fundos impactos demográficos sofridos pelos grupos indígenas em razão das "correrias"
realizadas pelos caucheiros em meio aos seringais, que resultariam, sim, da destruição
de malocas, do número elevado de mortos, de atos de extrema violência, da pilhagem e
queima das plantações, da introdução de doenças contagiosas, bem como na captura de
considerável número de mulheres e crianças, levadas ou revendidas a comerciantes ou
moradores de centros urbanos.
Apesar da historiografia via de regra ressaltar a coincidência temporal da atua-
ção dos seringueiros e caucheiros nos seringais do Alto Juruá, suas formas de atuação
são retratadas como antagônicas, face aos argumentos da estabilidade do povoamento
dos brasileiros e da produção de borracha nos seringais, vis a vis a itinerância da ativi-
dade caucheira, e como geradora de relações conflituosas, fato justificado pelos enfren-
tamentos armados ocorridos na Foz do rio Amônia e no Alto rio Purus na primeira me-
tade dos anos de 1900. Num momento em que a soberania sobre a região estava em
questão nas instâncias diplomáticas, conforme apontado, a maior parte dos documen-
tos oficiais ou dos textos da época, procuraria, dependendo da nacionalidade do autor,
ou do governo para o qual estava a serviço, dar provas da anterioridade da chegada dos
brasileiros ou dos peruanos e do efetivo "uti posseditis" que exerciam sobre a região.
Exceções são os poucos textos que destacam a existência de iniciativas conjun-
tas de brasileiros e peruanos, nos primeiros anos do século passado e mesmo após a cri-
ação do Território Federal do Acre, com vista à promoção de "correrias" e à destruição
das malocas comunais encontradas em áreas com potencial produtivo de borracha e de
75
caucho. É o que fez, por exemplo, o Tenente do Exército Luiz Sombra, após viajar pe-
los rios Tarauacá, Murú e Envira em 1905-1906, ao apontar que "muitas vezes" os se-
ringalistas contratavam caucheiros peruanos para "a expulsão ou extermínio dos índios
existentes nos seringais que exploram a trôco da devastação gratuita dos cauchaes
(...)" (Sombra, 1913).
Em final de 1911, a leitura de telegrama publicado no Jornal do Commercio,
denunciando as "bárbaras correrias" que acabavam de sofrer os índios no alto rio Tarau-
acá, motivaria Luiz Sombra a escrever, no mesmo jornal, um breve texto sobre as "bar-
baridades" que ele próprio constatara durante sua atuação naquela região. Escrito por
um agente destacado anos antes pelo Prefeito do Departamento do Alto Juruá, Thauma-
turgo de Azevedo, com "plenos poderes para a repressão das correrias" (Sombra, 1913),
a importância desse texto de Sombra (1911) também reside na distinção ali feita entre o
que acreditava constituírem os principais "motivos" das "correrias" durante a implanta-
ção da empresa seringalista. Segundo Sombra seriam três as principais razões que teri-
am motivado a realização das correrias nesse período: "1º, para iniciar a exploração de
um seringal ou cauchal; 2º, em represálias; e 3, como gênero de sport"
109
.
O ex-delegado de polícia atribui a realização do primeiro tipo de correria "quase
sempre" aos caucheiros peruanos, por iniciativa própria, para expulsar os índios das ma-
locas situadas em áreas de cauchais e para se abastecerem em seus roçados, ou por
"conta de terceiros", patrocinados por seringalistas brasileiros, que "repugnando-lhes
mandar exterminar directamente as malocas existentes nos seringais que pretendiam
explorar", recrutavam-nos para proceder com esse serviço, mediante acordos para a ex-
ploração da castilloa que ali encontrassem. Esclarece Sombra que os indígenas não se
opunham às explorações dos seringueiros, desde que não lhes "devastassem" suas plan-
tações ou "arrebatassem" suas mulheres e filhos. As correrias realizadas pelos patrões,
avalia, ocorriam quando tinham que lidar com "índios intratáveis" ou por "simples per-
versidade".
As correrias motivadas por "represálias" ocorriam, segundo Sombra, quando
109
"Correrias de índios". Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 19/12/1911 (SARQ/MI, Microfilme 324,
Planilha 002, Fot. 033-34). Até o presente, salvo engano, esse texto permanece sem utilização na histori-
ografia sobre a região. No artigo, Sombra afirma, ainda, que as "correrias", fato de amplo conhecimento
de todos os que tivessem viajado pelo interior da Amazônia, negadas ou ignoradas apenas pelos "ingê-
nuos ou indiferentes", ocorriam não apenas no Território do Acre, mas nos Estados do Amazonas, Pará e
Mato Grosso, além de nas repúblicas vizinhas. É destaca que as "propaladas atrocidades" ocorridas no rio
Putumayo, então seguidamente noticiadas na imprensa nacional, eram fato comum em "outros rios do
Amazonas". Nem mesmo as "tribos" que já viviam em "relações amistosas e pacíficas" com os seringuei-
ros, pondera, estavam "isentas da sanha brutal das correrias", afirmação que retomaria em seu texto poste-
rior (Sombra, 1913).
76
malocas eram atacadas pelos seringueiros por "vingança" pelas mortes de seus compa-
nheiros pelos indígenas. Estas mortes, ressalta o delegado, resultavam, na maioria das
vezes, de violências previamente cometidas pelos "civilizados": assassinatos, captura de
mulheres e crianças, destruição dos roçados ou seguidos furtos ali realizados. Mesmo
considerando que, em boa parte dos casos, eram os seringueiros os "provocadores dos
índios", o ex-delegado chama a atenção para um importante componente dessas inicia-
tivas: as demandas dos fregueses geravam uma "sujeição" dos patrões, "obrigados a se
identificar com a vingança de seu pessoal, a fim de que este não abandone o serviço da
extracção da borracha, o que lhes causaria um grande prejuízo". Conforme será discu-
tido adiante, a "segurança" dos seringueiros e a garantia da produção de borracha cons-
tituíam, naquele então, os principais argumentos dos patrões ao justificar a "necessida-
de" de promover "correrias" contra os indígenas, única alternativa de que dispunham,
alegavam, para evitar novos ataques e roubos nas colocações e mortes entre seus fre-
gueses.
Assim como fariam outros agentes missionários e governamentais que viajaram
ou trabalharam na região, Sombra procederia com uma relativização crítica do discurso
que atribuía aos índios uma natureza intrinsecamente "selvagem" ou "traiçoeira". Des-
taca, para tal, a "pesada diferença" entre as vinganças dos seringueiros contra os "selví-
colas" e aquelas dos índios contra "os que se diziam civilizados". Estes últimos, afirma,
atacavam "de sorpreza em suas malocas, que arrasam completamente, trucidando a to-
dos que ahi encontram, sem nem piedade, raramente poupando alguma mulher ou
criança, a quem aprisionam e escravizam". Os indígenas, por sua vez, procederiam
"nobre e generosamente, nunca atacando seus inimigos sem lhes ter feito previamente
três avisos espaçados, afim de que eles procurem evitar vingança ou não insistam em
damno que lhes estejam causando". E conclui: "É os que assim tão nobre e generosa-
mente procedem que são acoimados com o labéu injusto de traiçoeiros!".
Por fim, Sombra destaca as "correrias" como "gênero de sport", a seu ver, "as
mais injustificáveis, as mais perversas, mas, felizmente, muito raras". Ocorriam, segun-
do ele, na maioria das vezes sem conhecimento ou assentimento prévio dos patrões, no
período de paralisação dos trabalhos de extração, devido às fortes chuvas, quando se-
ringueiros e caucheiros estavam "desocupados". Eram organizadas, diz, "pelo precon-
ceito feroz que elles alimentam de que não é pecado nem crime matar índios, porque el-
77
les são pagãos, ou infideles, como dizem os peruanos"
110
. Nestas, esclarece, seringuei-
ros costumavam "atacar as malocas visinhas ou descobrir outras, de onde afugentam
os índios e lhes arrebatam mulheres e filhos, dando-as ou vendendo-as depois, amazi-
ando-se alguns com as cunhãs que trazem e criando os curumins e cunhatainas que to-
mam paternal carinho".
Trabalhos acadêmicos produzidos por antropólogos procuraram diferenciar mo-
dalidades de "correrias" ocorridas nos altos rios Juruá e Purus em diferentes momentos
históricos da empresa seringalista. Em sua dissertação, Terri Valle de Aquino destaca
que os próprios Kaxinawá do rio Jordão, em entrevistas realizadas em meados dos anos
de 1970, distinguiam dois "tipos" de correrias organizadas pelos proprietários dos se-
ringais: "a) aquelas que visavam exclusivamente o extermínio dos grupos indígenas e b)
aquelas que visavam incorporá-los como força de trabalho nos seringais da região"
(Aquino, 1977: 44).
A definição apresentada por Aquino para o termo
111
, à primeira vista, parece in-
dicar sua ocorrência apenas durante a implantação e inicial funcionamento da empresa
seringalista, e sua organização apenas por brasileiros. Contudo, em trechos posteriores
da dissertação, destaca sua realização nesse mesmo período por caucheiros peruanos.
Por outro lado, a própria distinção feita pelos Kaxinawá do rio Jordão, destacada pelo
autor, ressalta a continuidade de ambos os tipos de "correrias" após o período do apo-
geu, durante a crise na economia da borracha. Enquanto alguns patrões continuariam a
promover expedições para afastar índios "brabos" das cercanias de seus seringais e dar
"segurança" aos seus trabalhadores, outros ensejariam iniciativas com o objetivo de in-
corporar a mão de obra indígena aos trabalhos nos seringais
112
.
Em sua tese de doutorado, Jacó César Picolli (1993) construiu uma tipologia que
110
Em seu texto posterior, Sombra (1913) faria novamente alusão a este tipo de correria, afirmando que
ela constituía "o esporte predileto de muitos seringueiros durante os lazeres da safra", reforçando, com
as mesmas expressões, o preconceito que os ditos civilizados nutriam pelos índios como principal motivo
para sua realização. Nesse mesmo texto, o ex-delegado constata que a "perversidade" dos seringueiros
contra os índios pagãos inclusive se voltava, por vezes, contra membros daqueles grupos com os quais já
mantinham "relações amistosas e pacíficas": "(...) embora esses [os índios - MPI] já sejam amigos ou
mansos, como dizem aqueles [os seringueiros - MPI], que não tem o menor escrúpulo de atirarem num
índio pagão, embora manso, só pelo prazer de verificar a boa pontaria de seu rifle".
111
É a seguinte a definição apresentada por Aquino (1977: 38): "Correria é um termo regional utilizado
para caracterizar as matanças organizadas dos diversos grupos indígenas pelos proprietários dos serin-
gais recentemente abertos, com a justificativa de garantir a segurança dos seringueiros".
112
Indicação neste sentido é a identificação feita pelos próprios Kaxinawá de cada uma dessas modalida-
des de "correrias" com diferentes personagens, "matadores de índios", de um lado, e "amansadores" ou
"catequizadores” de índios, de outro, que atuaram por quase sessenta anos nos rios Envira, Jordão e Juruá.
As trajetórias e formas de atuação de dois desses personagens, Pedro Biló, como paradigma do primeiro
caso de "correria", e de Felizardo Cerqueira, como "catequizador", serão objetos de análise no Capítulo
V.
78
distingue três modalidades de "correrias" nos seringais dos altos rios Juruá e Purus
113
,
correspondentes a diferentes "fases" da economia gomífera: as "correrias de desbrava-
mento" (1840-1870), ocorridas durante a exploração dos baixos cursos dos rios Juruá e
Purus; de "conquista e ocupação" (1880-1914), coincidindo com a "fase áurea do extra-
tivismo", realizadas por seringueiros e caucheiros; e de "catequização ou integração",
que teriam tido início "a partir da crise da economia da borracha" (1911-1920) (Piccoli,
1993: 412-16: e passim)
114
. Ressaltando que essa "divisão" tinha por objetivo servir en-
quanto "referencial para situar alguns eventos e não marcações temporais precisas", o
autor explicita que práticas semelhantes seriam recorrentes nos períodos do "desbrava-
mento" e da "conquista e da ocupação". E que, apesar deste último constituir o "período
"mais representantivo para o estudo das correrias" (ibid: 415), estas teriam ocorrido ao
longo de todo o processo de implantação e de funcionamento da empresa seringalista,
bem como, a partir dos anos de 1910, quando, em função da crise da economia da bor-
racha, o seringal passaria por significativas transformações
115
.
Piccoli destaca, ainda, que as "correrias", como inerentes a processos de con-
quista e dominação, gerariam reações, iniciativas de "luta" e estratégias de "resistência"
dos grupos indígenas. Estas ganhariam forma, num primeiro momento, em "contra-
correrias" e confrontos armados, com o objetivo de "retardar" a penetração dos recém-
chegados e a ocupação territorial. Num segundo momento, face ao maior poderio bélico
dos seringalistas e caucheiros, a "resistência" ganharia forma pelo abandono dos territó-
rios até então ocupados, com fugas para regiões de cabeceiras e para "afluentes de difí-
cil acesso", visando uma reorganização, ainda que "precária", de sua subsistência. A
113
Remetendo à definição previamente formulada por Aquino, Picolli (1991: 413) assim as define: "As
correrias ficaram conhecidas na memória regional como expedientes punitivos organizados e determina-
dos pela elite seringalista e caucheira, executados por seringueiros e caucheiros, no intuito de garantir a
posse dos seringais e a exploração dos cauchais, bem como a segurança dos seringueiros e caucheiros
mediante técnicas de subjugação e extermínio das populações tribais".
114
Para a construção das três diferentes modalidades, diz Picolli (1993: 414), foram levadas em conside-
ração diferentes "fatores e condições que intervieram na determinação e na configuração" das "correrias",
dentre elas, a particularidade das regiões extrativas (baixos ou altos rios, maior incidência de borracha ou
caucho); a "intensidade e natureza da expansão extrativista"; a "índole e mentalidade dos empresários" se-
ringalistas e caucheiros; diferentes conjunturas, de apogeu e crise, do extrativismo; e diferentes objetivos
que levavam à sua realização (o "extermínio", a "escravização", a "usurpação territorial", o "amansamen-
to" e a "integração da mão de obra indígena"); e o "grau de resistência" interposto pelos vários grupos in-
dígenas.
115
Piccoli (1993: 416-18) destaca ainda que as "correrias" teriam sido tributárias de diferentes processos
coloniais de ocupação territorial e dominação de populações nativas. Destaca dentre elas, as "expedições
de resgate", as "entradas de descimentos", as "guerras justas" e as "bandeiras". À semelhança destas inici-
ativas, diz, as "correrias" teriam incluído, em diferentes formas e intensidades, expedições de extermínio e
punição; de "agarramento" e captura de indígenas para dispor de mão de obra "escrava"; a localização, a-
liciamento e transferência de indígenas para pontos estratégicos e fronteiriços, bem como a incorporação
dos indígenas à "vassalagem" daqueles que os haviam poupado do extermínio.
79
posterior integração à empresa seringalista decorreria, segundo o autor, não apenas de
iniciativas dos patrões, mas também de estratégias dos próprios indígenas, pelas quais,
além de garantir formas de sobrevivência física, visavam adquirir "alguma tecnologia
útil" (Piccoli, 1993).
As "correrias" constituíram mecanismo inerente à exploração, à abertura e ao i-
nicial funcionamento da empresa seringalista no Alto Juruá, bem como das atividades
dos caucheiros peruanos, resultando num processo de (des)territorialização de boa parte
dos grupos indígenas. Nessa conjuntura inicial, mas também após a definitiva implanta-
ção da empresa seringalista, as "correrias" ganhariam sustentação ideológica no discur-
so dos patrões, seringueiros e caucheiros pela conjugação de uma série de imagens, va-
lores e preconceitos que negavam o caráter humano aos indígenas. Equiparados a ani-
mais selvagens, "irracionais", "feras"
116
, considerava-se legítimo matá-los e escorraçá-
los, como costumava-se fazer com certos animais selvagens que "infestavam" a floresta,
e representavam ameaças reais à vida dos seringueiros e/ou com eles competiam por
certas fontes de alimentação.
Em dois textos, resultantes de viagens aos rios Murú e Liberdade na segunda
metade da década de 1920, o padre Tastevin constata que esse discurso, que atribuía aos
indígenas características de animais selvagens, fora utilizado pelos caucheiros enquanto
legitimador das "correrias" e das mortes nelas infligidas: "(...) ce furent les Péruviens
demi-civilisés de l’Ucayali qui (...) se montrèrent les plus ardents dans ces correrias.
Pour eux l’Indien n’etait qu’un irracional qu’on pouvait tuer comme un singe (...)
"C’etait evidemment une assertion sans conviction puisqu’on ne s’abaissa jamais
jusqu’á manger de la chair d’Indien" (1925: 419). Constatou, igualmente, que as
mesmas imagens haviam sido amplamente utilizadas pelos patrões para justificar as
116
Ainda hoje, os seringueiros, assim como os Kaxinawá ao utilizar o português, classificam certos ani-
mais da floresta com essas categorias. Levantamento realizado pelo antropólogo Terri Valle de Aquino
revelou que os Kaxinawá classificavam como "feras" diferentes espécies de onças e gatos do mato, o ma-
caco bule-bule, a arraia e o puraquê (enguia elétrica); como "insetos" diversas espécies de cobras, escor-
pião, lacraia, a formiga tucandeira e as cabas; e como bichos "imundos", ou "repugnantes", animais como
mucura, irara, raposa, cachorro do mato e tamanduás (mambira e bandeira). Temidos pelas ameaças aos
homens ou às criações domésticas e/ou mal vistos pela competição exercida sobre certas fontes de ali-
mentação usadas pelo homem, consideram legítimo matar esses animais, sem que suas carnes fossem, to-
davia, objeto de consumo (Iglesias & Aquino, 1994a: 111-12). Levantamentos feitos junto com seringuei-
ros e agricultores da Reserva Extrativista do Alto Juruá, no âmbito das pesquisas realizadas por uma e-
quipe multidisciplinar para a produção da "Enciclopédia da Floresta" (Cunha & Almeida, 2002), indica-
ram, com pequenas variações, crenças e práticas semelhantes em relação a uma ampla variedade de ani-
mais, os quais, quando encontrados, são preferencialmente abatidos. Animais "que não se comem", são
classificados como "feras" ("animais que caçam e devoram outros bichos, competindo com os homens"),
"insetos" ("bichos que picam, com presas, ferrão ou esporão"), "sebosos e imundos" ("repulsivos ao ho-
mem e que não servem como alimento") e "pragas" (em geral, vários tipos de mosquitos, que, em certos
casos, eram também considerados como "insetos", devido às picadas) (ibid, 2002: 421-22).
80
"correrias", ao relacionar essa alegada "animalidade" dos índios à sua "incapacidade de
civilização": "(...) on tenait l’Indien pour un animal malfaisant incapable de
civilisation, et cette idée prônée par les hommes influents devait produire ce triste
résultat: l’extermination d’une race d’excellents agriculteurs" (Tastevin, 1928: 211).
Sabedor, por um lado, do esforço dedicado pelos diferentes povos indígenas às
atividades agrícolas e da relevância da alimentação dali colhida em sua sociabilidade
cotidiana, em suas cerimônias rituais e mesmo em seua cosmologia, Tastevin aponta pa-
ra uma importante contradição do discurso que, por vezes, justificava as truculências
contra os indígenas por serem "nômades", "indolentes", "não terem "canto certo", vive-
rem "de arribada" e do "roubo". Por outro lado, apontariam o padre e outros autores, e-
ram os "pretensos civilizados" aqueles que enfrentavam dificuldades devido à escassez
da agricultura e da criação de animais nos seringais, vendo-se, em certos casos, obriga-
dos a se abastecer furtivamente nos enormes roçados abandonados pelos índios quando
da chegada dos seringueiros e caucheiros ou da destruição das malocas nas "correri-
as"
117
.
A alegação de que os índios não eram batizados, mas "pagãos", "infieles", "seres
sem alma", também contribuiu para reforçar os discursos que negavam sua humanidade
e a naturalizar a realização de correrias e outros atos de violência contra os moradores
das malocas e os capturados nessas incursões. Como apontado, o ex-delegado Luiz
Sombra (1913) constatara que a maioria dos "civilizados" acreditava não constituir "pe-
cado" ou "crime" matar índios, "porque elles são pagãos; ou infideles, como dizem os
peruanos, seus matadores profissionais (....)". Tastevin (1925: 418), por sua vez, desta-
ca que, em suas viagens de "desobriga", procurava via de regra combater esse precon-
ceito arraigado entre os "cristãos", indicando-lhes que tivessem compaixão e indulgên-
cia para com os indígenas: "(...) j’ai partout combattu le préjugé qui refuse le caractère
d’humains auxs Indiens, parce que n’étant pas baptisés, ils n’ont pas d’âme, dit-on;
j´explique que ce sont nos semblables à l’exemple des juifs et des musulmans, qui, eux
non plus, ne sont pas baptisés (...)".
Durante a implantação da empresa seringalista e o principal período da extração
117
Essa contradição fica patente, por exemplo, em trecho do seguinte relato de Lustosa Cabral (1984: 68):
"Os roçados eram feitos com muito sacrifício, uma vez que eles não possuíam qualquer ferro de cortar. A
sua ferramenta era o fogo (...) Um outro irmão, Virgílio, relacionou-se com os índios jamináua, semi-
mansos. Foi com três companheiros à maloca e teve de andar seis horas dentro do roçado para chegar
no barracão dos selvagens. O aborígene, como sabemos, é de índole preguiçosa e indolente (...) Ficaram
pasmados ao ver a enormidade do roçado, que sustentava mais de mil almas, conforme observaram e
calcularam".
81
do caucho, com a ocupação, temporária ou definitiva, dos antigos territórios indígenas,
as "correrias" seriam justificadas por patrões, seringueiros e caucheiros como único
meio eficaz de garantir a "segurança" dos trabalhadores e da produção
118
. Nesse senti-
do, é possível dizer, os indígenas constituíam ameaça recorrente, que competia com os
interesses daqueles que, em diferentes posições, almejavam ocupar ou utilizar recursos
extrativos para "produzir", borracha e caucho, e deles tirar sua sobrevivência
119
. Pairan-
do acima das formas de dominação que permeavam as relações entre os patrões e seus
fregueses (fossem eles seringueiros ou caucheiros), os discursos que deram sustentação
ideológica à realização das correrias obtinham eficácia no delineamento de uma dife-
renciação dos "civilizados", "cristãos" face aos indígenas, concebidos como não-
humanos, "feras selvagens", "irracionais", "perigosas" e "traiçoeiras", estabelecendo
condições de possibilidade, nessa conjuntura, para diferentes modalidades de violência
contra os indígenas
120
.
118
É possível vislumbrar nesse conjunto de preconceitos a matriz de concepções e discursos que serviri-
am para diferenciar, nos anos seguintes, os índios "bravios" ("selvagens") dos "caboclos", referindo-se a
aqueles que gradualmente vieram a ser incorporados à vida e aos trabalhos na empresa seringalista. Na si-
tuação de seringal (Oliveira, 1988), que perduraria até os anos 1980, esses e outros estereótipos seriam a-
tualizados pelos patrões e pelos seringueiros na definição genérica dos índios como "caboclos", e sua es-
tigmatização como "traiçoeiros", "preguiçosos", "sem ambição", legitimando a sobreexploração do seu
trabalho (Aquino, 1977: 72-82; 106-111). Nessa mesma situação, a existência de "índios brabos", catego-
ria usada para caracterizar grupos que optaram por se manter à margem dos seringais, ainda concebidos
como "selvagens", "incapazes de civilização", "ladrões", continuou a legitimar diversas iniciativas dos pa-
trões, com a promoção de "correrias", a manutenção de "matadores de índios" ou de turmas de indígenas
para "fazer rondas", sob as mesmas justificativas de "dar segurança" aos fregueses, evitar ataques e sa-
ques nas colocações, conflitos armados, a morte e o êxodo de seringueiros e prejuízos à produção de bor-
racha.
119
É interessante notar que os índios podiam ser mesmo visto como "competidores" com relação à obten-
ção de caça, o "rancho", principal fonte de carne fresca, consumida com farinha. É o que se pode depre-
ender em um trecho do relato do seringueiro Alfredo Lustosa Cabral (1984: 57), ao dar conta de como vi-
viam no seringal recém comprado por seu irmão: "Estávamos em Redenção mal alimentados. Lugar onde
há índio não há caça, ele devora tudo. Raramente abatia-se um porco, anta ou mutum (..) Passava-se ne-
cessidade, fome, pela falta de caças e peixes naquele rio".
120
Refletindo sobre a multiplicidade de "critérios de verdade" acionados por diferentes atores (índios, pa-
trões, agentes de governo e o próprio etnógrafo), contextualmente relacionados em "comunidades de co-
municação", a respeito de uma situação social, e seus desdobramentos, envolvendo atos de violência ex-
trema contra indígenas Ticuna, do Alto Solimões, em começo dos anos 1980, Oliveira (2000: 308) afir-
ma: "A base para as práticas intolerantes e racistas é que os homens possam ser concebidos como ani-
mais selvagens, feras perigosas que precisam ser vencidas e subjugadas (...) As imagens e narrativas na-
turalizantes são a senha para a entrada em ação do idioma da animalização e da predação, com os seus
componentes de sujeição e domesticação (que inclui dentro de seus domínios a tortura, a morte, a comes-
tibilidade e o abuso sexual)". Essas imagens e narrativas, configurando esse idioma da animalização,
conclui, tornar-se-iam "(...) amplamente disponíveis enquanto instrumentos para o estabelecimento e na-
turalização de hierarquias sociais, que dirigem as expectativas de conjuntos definidos de atores, propici-
ando a força emocional e as justificativas necessárias à consecução de práticas em aberta contradição
com valores morais compartilhados em contextos culturais mais abrangentes (ibid: 309). Refletindo so-
bre as atrocidades cometidas pelos aviados de Júlio Cesar Arana contra os indígenas no rio Putumayo,
Chirif (2004: 12) afirma que historicamente três imagens, não sucessivas, mas cumulativas, foram utiliza-
das pelos "ocidentais" - a negação da humanidade, o ateísmo e a selvageria, associada em certos casos ao
canibalismo - para justificar a sua dominação sobre esses grupos humanos. A alegada superioridade dos
82
Matanças, violências contra feridos e capturados, mortos a tiros e golpes de faca,
e da captura de mulheres e crianças, a queima das malocas e a destruição de roçados e
paióis foram, assim, práticas empregadas de forma recorrente, visando o extermínio de
grande número de indígenas e a retirada forçada dos sobreviventes de seus territórios e
das proximidades das colocações.
Grupos desfigurados e divididos, famílias extensas espalhadas, pesarosas das
perdas de seus membros, sem chance de dar destinação adequada a seus mortos, teme-
rosos de novas "correrias", fugas muitas vezes sem rumo definido e sem acesso a qual-
quer fonte regular de alimentação marcaram o início de consideráveis deslocamentos
em busca de locais distantes, ou situados nos fundos, dos seringais ocupados. Além
do elevado número de mortes nas "correrias", das migrações, da perda de sementes na-
tivas dos legumes e da freqüente dificuldade em se estabelecer em lugares e no tempo
adequado para retomar o cultivo dos roçados, a introdução da gripe, do catarro, da varí-
ola e outras doenças então desconhecidas, frente às quais os índios não tinham qualquer
imunidade, implicou, de imediato e nos anos seguintes, em perdas populacionais signi-
ficativas entre os sobreviventes
121
.
Relatórios oficiais da época, textos históricos e depoimentos mais recentes de
indígenas ressaltam, como resultado desses primeiros anos de "correrias" generalizadas,
os deslocamentos dos grupos sobreviventes, bastante reduzidos numericamente, para
igarapés e divisores de água, nos fundos dos seringais, longe das margens dos principais
rios e das colocações. O Prefeito do Alto Juruá, em seu relatório de 1906, dava indica-
ções das principais áreas onde haviam se refugiado as "numerosas tribos" de "aboríge-
nes" existentes no Departamento:
"À margem esquerda do Juruá são em pequena quantidade, porque os perua-
nos, principiando a acossal-os das margens do Huallaga e do Ucayali, perse-
portadores da "civilização" e do "progresso", discurso que também permeava as práticas dos patrões cau-
cheiros, frente à "quase-animalidade" atribuída aos indígenas, diz, legitimava-lhes o direito de exercer a
violência como método pedagógico, que incluía todo tipo de violências, e inclusive a morte como sanção
final (ibid: 33).
121
É o que afirmam, por exemplo, Valdir Ferreira Tui Kaxinawá e Benjamim Chere Katukina, dois pro-
fessores indígenas, ao avaliar alguns dos principais desdobramentos deste período para os povos indíge-
nas: "Nesse tempo, chegaram também muitas doenças que os índios não conheciam. Morreu muita gente
de gripe, coqueluche, tuberculose, pneumonia e sarampo. Essas doenças estão fazendo a gente sofrer até
os dias de hoje" (OPIAC, 2002: 94-5). Castello Branco (1950: 15) destaca as "correrias" (essas "lutas ine-
vitáveis"), a ausência de qualquer ação governamental de "catequese" e "proteção" e as "moléstias intro-
duzidas pelos civilizados" como fatores que contribuíram para a redução do "elemento indígena" nos anos
anteriores à instalação das prefeituras no Território Federal do Acre em 1903. E levanta a hipótese de que,
mais do que as armas, teriam sido as doenças a principal causa desse significativo decréscimo populacio-
nal. O elevado número de mortes nas malocas, causado em anos posteriores pelo "catarro" e o "defluxo",
seria constatado por vários agentes governamentais que visitaram malocas indígenas (Oliveira, 1907; Sil-
va, 1912; Linhares, 1913).
83
guiram-n’os até estas alturas. A maioria refugiou-se entre a margem direita do
Juruá e o Jurupary, afluente do Embira, e ponto extremo do Departamento.
Quem atravessa por terra do Juruá ao Tarauacá e seus tributários depara cons-
tantemente malocas, assentes especialmente nas colinas de que brotam os infini-
tos rios destas regiões" (Azevedo, 1906: 67).
Outros grupos optariam por rumar para as cabeceiras dos rios Purus, Envira, Ju-
ruá, Murú, Tarauacá e Jordão, adentrando, inclusive, regiões onde não havia seringa,
como é o caso das nascentes dos três primeiros, localizadas em território peruano, e on-
de, em muitos casos, continuariam a ser assacados por "correrias" promovidas por cau-
cheiros. Os altos rios Tarauacá e Envira teriam estado dentre os principais locais de des-
tino dessas fugas, onde outras "correrias" resultariam novamente em grande número de
mortes: "No Juruá não deixou de haver sérios encontros, mas onde a luta teve o seu
clímax foi nas ribeiras do Tarauacá e do Embira, nas quais os aborígenes foram perse-
guidos com mais intensidade, fugindo da beira dos rios para o recesso das matas, no
divisor de águas, onde a bala dos pretensos civilizados ia monteá-los, dizimando-os,
exterminando-os de maneira atroz" (Castello Branco, 1950: 13).
As cabeceiras do rio Gregório e do Riozinho da Liberdade, chegando aos afluen-
tes da margem esquerda do médio rio Tarauacá, no período imediatamente posterior à
estadia dos caucheiros de Carlos Scharff e Efraim Ruiz, continuaria ocupada por vários
grupos falantes de línguas Pano. Apesar das "correrias" que continuaram a sofrer dos
seringueiros, os Rununawa e os Arara, liderados pelo "tuxaua" Tescon, armados com
grande quantidade de rifles e munição roubados dos caucheiros e nas colocações, logra-
riam manter um amplo território, também ocupado pelos Kaxinawá, Yawanawá, Isku-
nawa, Jaminawa e Katukina, onde num primeiro momento, continuariam a colocar obs-
táculos à expansão da atividade extrativista. Por vários anos, o principal patrão do Rio-
zinho da Liberdade, Francisco Freire de Carvalho, manteria uma turma com duas deze-
nas de homens armados para evitar ataques e roubos às colocações e mortes de fregue-
ses em seus seringais, atribuídas "aos índios de Tescon" (Cerqueira, 1958: 20).
As migrações forçadas dos grupos indígenas após as "correrias" resultaram em
acampamentos provisórios e na abertura de novas malocas. Os deslocamentos e/ou o es-
tabelecimento, ainda que temporário, em territórios, antigos ou novos, de outros grupos,
inimigos tradicionais, ou zelosos de espaços precariamente mantidos nos fundos dos se-
ringais, encurralados pelas atividades de brasileiros e peruanos, levariam, em vários ri-
os, a conflitos entre os próprios indígenas. Este foi o caso, por exemplo, dos "arrasado-
res" ataques feitos pelos Kulina (Madijá) a reduzidos núcleos de famílias Katukina e
84
Kapanawa no médio rio Tarauacá (Cerqueira, 1958: 8-9); do acirramento dos conflitos
entre vários grupos Pano nas cabeceiras do rio Envira (ibid: 52-3; 58-62); e dos roubos
que supostamente os Kulina realizavam nas plantações dos Kaxinawá no alto rio Murú
(Tastevin, 1925). Rifles e munição, roubados nas colocações dos seringueiros ou dos
peruanos, ou obtidos em trocas com os "civilizados", passaram a constituir elemento a-
dicional nesses conflitos, ao permitir, na avaliação de seus detentores, mudanças nas
históricas correlações de força
com seus inimigos
122
.
Diferentemente, as referências na literatura às "relações pacíficas" dos grupos ou
família indígenas com os moradores dos seringais, ou do estabelecimento de relações
comerciais pontuais destes grupos com patrões e seringueiros, constituem exceções no
Alto Juruá durante o período inicial do apogeu da economia da borracha. Conforme se
visto no próximo capítulo, as principais iniciativas para a "pacificação" das relações
com os "civilizados" e para a "catequese" e "civilização" dos índios decorreriam de a-
ções deslanchadas, ou apoiadas, pela Prefeitura do Departamento do Alto Juruá a partir
de 1905. Num momento anterior, a "pacificação" de vários grupos indígenas e sua con-
vivência com as atividades da empresa seringalista, resultaria, contudo, tanto das assim
chamadas "iniciativas de particulares", promovidas por alguns poucos patrões seringa-
listas, como das ações de "catequistas", que gradualmente contariam com respaldo e re-
cursos financeiros desses mesmos patrões e de diferentes agências do governo federal.
A inserção das famílias indígenas nos seringais, contudo, ocorreria, de forma mais sis-
temática, a partir do final da década de 1910, e principalmente ao longo da década se-
guinte, como resultado do aprofundamento da crise na economia da borracha, da impos-
sibilidade dos patrões continuarem importando trabalhadores, de uma gradual diversifi-
cação produtiva da empresa seringalista e de iniciativas, tanto dos patrões como dos
grupos indígenas.
122
Como fruto de observações durante sua estadia nas malocas do rio Iboiaçú, afluente da margem direita
do alto rio Murú, em meados dos anos de 1900, o delegado Luiz Sombra (1913) assim avaliaria, por e-
xemplo, os motivos do ataque então planejado pelos Kaxinawá contra os Jaminawa, seus "tradicionais i-
nimigos": "Os índios [Kaxinawá - MPI] daquelas regiões tem sido sempre derrotados em suas guerras
com os jaminauás, devido a esses seus inimigos usarem uns rígidos e impenetráveis escudos de couro de
anta contra os quais debalde atiram e arrojam suas flechas e zagaias; como, porém, os Cachinauás ha-
viam ultimamente conseguido em trocas com os seringueiros da vizinhança alguns rifles e muita muni-
ção, julgaram então a ocasião de tirarem uma desforra, já que os tais escudos não poderiam mais prote-
ger seus inimigos contra a força de penetração de suas novas armas". Processos semelhantes, em que
mudanças nas correlações de forças anteriores decorriam, além do maior poderio bélico das armas con-
quistadas aos "civilizados", ou por eles fornecidas, de restrições territoriais, de perdas populacionais so-
fridas por certos grupos a reboque das "correrias" e/ou de relações estabelecidas, de convivência e comér-
cio, iniciadas por certos chefes indígenas com patrões, são também descritas por Oliveira, 1907; Linhares,
1913; Abreu, 1941; Tastevin, 1924; e Cerqueira, 1958.
85
Crise na economia da borracha
Os primeiros anos da década de 1910 marcariam uma inflexão no mercado global
da borracha, com profundas implicações na Amazônia brasileira e, em particular, no
Território Federal do Acre, principal região produtora nos anos anteriores. A principal
razão para essa inflexão foi a entrada no mercado da produção agregada dos seringais
de cultivo implantados por empresas e instituições financeiras inglesas no sudoeste asiá-
tico (Ceilão, Burma, Índia, Malásia e Singapura), com sementes "contrabandeadas" por
Henry Wickham da Amazônia em 1876, depois aclimatadas no Jardim Botânico de
Kew, na Inglaterra. Visando garantir uma oferta segura para as crescentes necessidades
da indústria, seriam implantados nessa região "seringais de cultivo", plantações concen-
tradas de "hevea" (com cerca de 200 árvores por hectare), que permitiriam um imenso
salto na produtividade, com ganhos acrescidos pela abundância e a baixa remuneração
da mão de obra. A área cultivada com seringueiras cresceria de 5,3 milhões de hectares
em 1905 para 101,6 milhões em 1915 (Weinstein, 1989: 253). Em 1905, a produção a-
gregada desses seringais de cultivo atingiria 171 toneladas, chegando a 8.753 toneladas
em 1910 e a 48.000 toneladas em 1913, primeiro ano em que sobreporia à produção dos
seringais nativos da Amazônia, então de 39.650 toneladas (Santos, 1980: 237; Martinel-
lo, 1989: 51).
Após oscilações ascendentes dos preços nos dois anos anteriores, a borracha atin-
giria, em 1910, sua maior cotação histórica, levando as casas aviadoras de Belém e Ma-
naus a ampliarem seus investimentos, que resultariam, em 1912, na maior produção ob-
tida na região amazônica, 42.410 toneladas. Já em final dessa década, num período
marcado pela acelerada queda dos preços da borracha, a Amazônia brasileira tornar-se-
ia fonte marginal de abastecimento no mercado mundial: em 1919, a produção mundial
atingiria 423.000 toneladas, das quais 382.000 (90%) eram oriundas dos seringais de
cultivo do Oriente e apenas 34.000 (8%) dos seringais nativos amazônicos (Weinstein,
1989: 246; Prado Jr., 1984: 239; Martinello, 1989: 51).
Transformações significativas ocorreriam nas várias escalas do sistema de avia-
mento que, por quase quatro décadas, possibilitara o financiamento, a produção e a ex-
portação da borracha na Amazônia. Em Manaus e Belém, um significativo número de
casas aviadoras iria à falência, 47 apenas em 1913, e mesmo grandes estabelecimentos
operariam com elevados prejuízos. Contribuíram para isso a brusca perda de liquidez,
com a queda dos preços da borracha e a redução dos recursos antes ofertados por casas
86
exportadoras estrangeiras e pelos bancos oficiais, bem como os elevados custos das
despesas operacionais das casas aviadoras e a indisponibilidade de parte de seu capital,
composto, dentre outros bens, por imóveis urbanos, embarcações e seringais, freqüen-
temente contabilizados, para a obtenção de crédito, com valores fictícios e superdimen-
sionados
123
.
Reclamadas pelas elites comerciais e pelos representantes políticos dos Estados
do Amazonas e do Pará, as políticas públicas para a proteção da economia da borracha
tiveram resultados pouco duradouros e animadores. Já em 1908, após um período de re-
lativa depressão das cotações, o Banco do Brasil adotaria como política a compra de
quantidades de borracha, com vista à sustentação dos preços do produto, vendendo-a
com consideráveis lucros dois anos mais tarde. Em 1910, o Banco passaria a aceitar de-
pósitos em borracha como garantia para empréstimos concedidos às casas aviadoras,
política que seria suspensa pouco depois, quando se tornaram evidentes os sinais de que
os preços do produto seguiam uma tendência de declínio constante (Weinstein, 1989:
245-46). Os governos do Pará e do Amazonas, ameaçados pela perspectiva de queda em
suas próprias fontes de arrecadação, propuseram medidas ao governo federal em 1909-
1910, visando proteger a produção dos seringais nativos e incentivar à implantação de
amplas áreas com plantações de seringueiras, junto com medidas que incluíam a con-
cessão de terras e incentivos fiscais, recursos para o transporte de trabalhadores e de e-
quipamentos, distribuição de sementes, juros baixos sobre empréstimos contraídos para
investimentos e o decréscimo da parte que cabia ao poder central nos impostos de ex-
portação (ibid: 254-56).
Atendendo demandas dos representantes dos governos e dos grupos comerciais
daqueles dois estados durante o I Congresso da Borracha, ocorrido no Rio de Janeiro
em agosto de 1911, o Presidente Hermes da Fonseca criaria a Superintendência para a
Defesa da Borracha, no âmbito do MAIC
124
. Os resultados do Plano de Defesa da Bor-
123
Nos anos seguintes também ocorreriam alterações no perfil das firmas envolvidas nos ramos da expor-
tação. A gradual saída dos representantes das casas estrangeiras, que antes compravam borracha para
vendê-la no mercado externo, abriu espaço para o surgimento de novas casas comerciais de capital nacio-
nal, as quais, apesar de menos capitalizadas, acumulariam, em certos casos, as atividades de aviamento
dos seringais e da exportação da borracha dali canalizada (Weinstein, 1989: 263-69).
124
Criada pela Lei 2.543
A
, de 5 de janeiro de 1912, a Superintendência foi regulamentada pelo Decreto
9.251, de 17 de abril. Dentre as primeiras medidas previstas pela Superintendência constavam a implanta-
ção de estações experimentais para o cultivo de árvores produtoras de borracha (seringueira, caucho, ma-
niçoba e mangabeira) e de indústrias de refino e de produção de artefatos; a criação de hospedarias desti-
nadas a imigrantes em Belém, Manaus e no Território do Acre; a estruturação de distritos de fiscalização
nos Estados do Amazonas, Pará, Mato Grosso e no Acre, para regular a isenção dos direitos de importa-
ção e fiscalizar os recursos financeiros e incentivos concedidos a firmas particulares Acre; a melhoria das
condições de navegabilidade nos rios Purus, Acre e Branco; e a construção de hospitais, cercados de co-
87
racha seriam, contudo, pífios nos anos seguintes, devido às restrições orçamentárias im-
postas pelo Congresso Nacional, às dificuldades para a implantação dos escritórios de
representação da Superintendência e suas unidades experimentais nos vários estados e
ao pronto abandono das medidas delineadas para o plantio da seringueira e a proteção
do mercado da borracha da Amazônia (Weinstein, 1989: 257-61; Martinello, 1988: 55-
7; Allegretti, 2002: 103-04). A Superintendência acabaria extinta em 1914.
Demandas semelhantes, para a "defesa da economia da borracha" também seriam
formuladas pelos prefeitos dos três departamentos do Território do Acre ao governo fe-
deral nesse mesmo período. Essa agenda política, que denunciava o abandono a que es-
tavam sujeitos as Prefeituras e os seringalistas pelos "altos poderes da República", foi
tornada pública durante reunião ocorrida de 3 a 13 de agosto de 1913, em Sena Madu-
reira, e encaminhada a vários ministérios, à Presidência da República e ao Congresso
Nacional.
Dentre as principais demandas nela incluídas constavam a redução dos impostos
sobre a exportação da borracha (então estipulado em 20% sobre o valor bruto da produ-
ção) e a importação de mercadorias trazidas diretamente ao Acre por casas comerciais
ali instaladas; acordos diplomáticos com os governos do Peru e da Bolívia para a equi-
paração dos impostos de exportação cobrados por esses países (6% e 8%, respectiva-
mente), para evitar a continuação do "contrabando" de parte da borracha acreana por es-
ses países; o repasse de recursos federais às Prefeituras para o custeio do transporte de
novos trabalhadores, evitando as despesas assumidas pelos patrões com o recrutamento
"de braços nas Repúblicas do norte", sem qualquer garantia a não ser a perspectiva da
produção futura dos "brabos", que chegavam a uma região desconhecida, ignorantes dos
trabalhos aos quais se dedicariam; a promulgação de normais legais adequadas à regula-
ção do trabalho de extração da borracha e dos direitos e deveres recíprocos entre patrões
e fregueses, obrigando, por exemplo, patrões que recebessem seringueiros devedores,
saídos sem autorização de suas colocações, a indenizar seus patrões anteriores; o apoio
do governo federal à imigração de colonos estrangeiros (europeus e asiáticos) para a
implantação de núcleos agrícolas e de cultivo de seringueiras, bem como à diversifica-
ção das atividades agropastoris e industriais
125
. Assim como ocorreu com o Plano de De-
lônias agrícolas, como resultado de um amplo estudo das condições de salubridade de cada um dos gran-
des afluentes do Amazonas, atribuição que ficaria sob coordenação do sanitarista Oswaldo Cruz (Brasil.
MAIC, 1912: 166-72).
88
fesa da Borracha, nenhum desdobramento efetivo resultaria dessas demandas para ate-
nuar os contornos da crise na economia da borracha no Território do Acre ou o agrava-
mento das restrições financeiras enfrentadas pelas Prefeituras, com as quedas na arreca-
dação nos postos fiscais e no repasse de recursos federais oriundos do imposto de expor-
tação.
Reorganização produtiva nos seringais
Boa parte da historiografia sobre a economia da borracha, condicionada por uma
visão homogenizadora da empresa seringalista e organizada pela noção de "ciclos eco-
nômicos" (Oliveira, 1977, 1979), reforça a idéia de que com o começo da crise, a partir
de 1912, os seringais em toda a região teriam entrado num processo de profunda deca-
dência e de esvaziamento populacional, fruto do completo desarranjo das relações de
aviamento, do abandono da produção extrativista e da maciça saída dos seringueiros
rumo aos centros urbanos ou de seu retorno aos locais de onde haviam emigrado em a-
nos anteriores.
Em outra direção, uma maior rentabilidade na investigação surge ao se atentar pa-
ra as razões específicas que teriam permitido a continuidade do funcionamento dos se-
ringais em certas regiões, e a permanência das populações que ali moravam, durante a
crise na economia da borracha, que inclusive se aprofundaria nas décadas de 1920 e
1930.
Nessa direção, a tese de que permanência do seringal teria sido possibilitada pela
transferência do trabalho e dos recursos financeiros da produção de borracha para outras
atividades, agrícolas e extrativistas, tendo como unidade de produção principal os -
cleos familiares residentes nas colocações, bem como por transformações tanto nas re-
lações entre seringalistas e seringueiros como nas redes de aviamento mais amplas, ga-
nha respaldo no Alto Juruá, a partir da análise das estatísticas oficiais, de escritos de au-
tores contemporâneos àquelas transformações econômicas, políticas e sociais e de tex-
125
Jornal Alto Purus, Sena Madureira, Ano I, Nº 14-15, 24 e 31/8/1913; Nº 20-21, 5 e 12/10/1913; e Nº
23, 26/10/1913. Dentre outras demandas formalizadas pelos Prefeitos para a administração dos governos
departamentais constavam uma maior distribuição de verbas federais para o pagamento do funcionalismo;
a reorganização da instrução pública primária; a criação de um sistema de saúde pública nos portos das
prefeituras; a conservação das estradas e ramais já existentes e a abertura de outros; a instalação de um
comando superior da Guarda Nacional no Território; a organização e manutenção da milícia local; a efe-
tiva instalação dos termos judiciários; e a construção e manutenção das cadeias públicas.
89
tos mais recentes, produzidos por antropólogos e historiadores
126
.
Na historiografia sobre essa época, além da queda dos preços da borracha, da fa-
lência das casas aviadoras e dos patrões e da ruptura das redes de aviamento, o maciço
êxodo dos seringueiros, a partir de 1912, aparece como argumento recorrente para
explicar a queda da produção, e mesmo a desativação, dos seringais da Amazônia. Ao
contrário desse viés explicativo, dados que resultaram de censos oficiais e outros levan-
tamentos não indicam um declínio populacional significativo nos dois departamentos do
Vale do Juruá pelo menos até início dos anos de 1920. Que conjunto de fatores podem
ter concorrido para essa dinâmica populacional e para a manutenção do funcionamento
da empresa seringalista, ainda que com significativas transformações, nessa região?
Weinstein (1989: 272) argumenta que o brusco declínio dos preços da borracha
após 1912 teria tornado a produção pouco compensadora em regiões de exploração mais
antiga, no Pará e no leste do Amazonas, onde predominavam espécies de seringueiras
de menor qualidade e rentabilidade. E que, pelo menos nos primeiros anos da crise, no-
vas levas migratórias continuaram a afluir para áreas de seringais de maior produtivida-
de, caso do Alto Juruá
127
. Ainda em meados dos anos de 1920, Tastevin constataria que,
num contrafluxo ao êxodo, significativo, de seringueiros dos rios Tarauacá e Murú,
novos homens ("amadores") continuavam a migrar do baixo rio Juruá para os seringais
mais produtivos nas cabeceiras dos rios, ainda que ali, na avaliação do padre, a vida fos-
se "incomparavelmente mais difícil e cara" (Tastevin, 1926: 42).
Dados censitários relativos ao Departamento do Tarauacá, por exemplo, parecem
confirmar essa mesma tendência entre 1912 e 1920, quando a população cresceria
19,9%, passando de 17.028 a 20.421 habitantes, ainda que a uma taxa bastante mais len-
ta do que aquela, de 90,3%, que marcara o último quinquênio (1908-1912) do apogeu.
Esse aumento populacional no período inicial da crise na economia da borracha parece
ter estado concentrado nos seringais, tendo em vista que os moradores da sede urbana
126
Ver, por exemplo, Oliveira; 1977: 10; Weinstein, 1989: 273-76; Martinello, 1988: 58-61; Almeida,
1992: 34; 37-44; 2004: 38-40; Iglesias & Aquino, 1994a: 14-6; Iglesias, 1998: 7-10; 13-16; Wolff, 1999:
108-114; Allegretti, 2002: 100-101; 110; Pantoja, 2004: 99-105.
127
Dados dos censos oficiais dos anos de 1912 e 1920 confirmam o crescimento da população no Territó-
rio Federal do Acre: de 86.638 para 92.379, um acréscimo de 6,6%, ainda que significativamente inferior
ao de 33,2%, constatado de 1908 a 1912, nos últimos anos do apogeu da economia da borracha (Brasil.
MAIC [Diretoria Geral de Estatística], 1916: 350; Brasil. MAIC [Diretoria Geral de Estatística], 1926:
296-97). Outro fator que teria contribuído para esse crescimento da população no Território nos primeiros
anos da crise teria sido a migração rumo a zonas de castanhais (Weinstein, 1989: 272; e Allegretti, 2002:
105), inexistentes no Vale do Juruá, mas abundantes nos rios Purus e Acre.
90
de Seabra, 952 no censo da Prefeitura em 1913, seriam estimados em cerca de 700 em
meados da década de 1920 por Tastevin (1926: 34)
128
.
Além da chegada de novos trabalhadores aos seringais como fator compensador
da emigração nos primeiros anos da crise, a relativa estabilidade (e mesmo o crescimen-
to) dos habitantes na região pode ser atribuída à constituição de novas "famílias" e ao
crescimento vegetativo da população
129
.
Dados de recenseamentos oficiais do período de 1913 a 1920 apontam para um
crescimento relativo da participação das mulheres na população do Departamento de
Tarauacá
130
. Em 1913, incluídos os moradores de Vila Seabra, elas constituíam 28,0%
da população, proporção que chegaria a 34,6% em 1920 (7.062 mulheres para uma po-
pulação total de 20.421). Ainda que a proporção de pessoas "casadas" permanecesse es-
tável nesse período (21,9% em 1913 e 22,1% sete anos depois), parece cabível afirmar
da existência de um número maior de "famílias" em 1920, ao considerar a diferença dos
números da população total apurados nos dois censos. A mesma afirmação parece valer
para o crescimento vegetativo da população
131
.
128
No Departamento do Alto Juruá, diferentemente, os dados oficiais indicam um crescimento de apenas
1,0%: 15.325 habitantes em 1912 e 15.490, oito anos depois. Segundo Castello Branco (1930: 716), a po-
pulação da cidade de Cruzeiro do Sul crescera nos anos da crise: sua população passara de "cerca de"
2.000 habitantes em 1910 (cinco anos após sua fundação), "a mais" de 3.000 em 1915 e a 3.802 em 1916,
mas decrescera para "pouco mais" de 3.600 em 1920. Esse aumento da população urbana podia ser expli-
cado, diz o juiz federal, pelo abandono das colocações pelos seringueiros e pelas oportunidades de traba-
lho na sede municipal e na agricultura em seus arredores. Já o posterior decréscimo, em início dos anos de
1920, respondia, a seu ver, a um movimento pendular de trabalhadores entre a cidade e os seringais, asso-
ciado a oscilações contextuais nos preços da borracha.
129
A esse respeito, escreveu Castello Branco (1930: 717): "Não deve haver diminuição, actualmente
[1922-MPI], da população do município, pois, se ella se reduz por um lado, com a saída de pessoas que
se destinam ao sul do paiz, augmenta por outro com o nascimento de muitas creanças, facto esse que não
se verificava há alguns anos atrás, tanto que, a princípio, essa mesma população era composta sómente
de homens, que tractavam do fabrico da borracha, e pouco a pouco vieram chegando mulheres, de modo
que de certo tempo para cá o augmento constante da população é real". Em texto posterior, o juiz federal
voltaria a creditar à formação das famílias e ao desenvolvimento da agricultura, ocorridos quase duas dé-
cadas após o início do povoamento do Território, com "as dificuldades econômicas surgidas", uma impor-
tante contribuição para "fixar o homem à terra", fosse por um número maior de anos, fosse em caráter de-
finitivo (Castello Branco, 1961: 181)
130
Ainda que parciais, convém tomar como parâmetro inicial de comparação os dados do censo promovi-
do pela Delegacia de Recenseamento e Estatística do Departamento de Tarauacá no segundo semestre de
1913. Segundo esclarece o Delegado, estavam ausentes dessa contagem dados sobre outros 51 seringais.
Os dados do Anuário 1908-1912 (Brasil. MAIC [Diretoria de Estatística do MAIC], 1916), relativos a
1912, indicaram uma população total substancialmente maior (17.028) do que os dados da Prefeitura
(10.625). Estes últimos, contudo, aparecem discriminados por sexo. Os dados referentes ao ano de 1920
constam em Brasil. MAIC [Diretoria Geral de Estatística], 1926.
131
O censo de 1913 discrimina que os "menores" (até 20 anos) constituíam 37,5% do total da população e
as "crianças" (sem faixa etária definida) 24,2%. Segundo o recenseamento de 1920, 40,8% da população
tinham até 20 anos e 23,6% até 9 anos. Os dados deste último demostravam ainda que a maior disparida-
de entre os números de homens e mulheres estava concentrada nas faixas etárias de 21 a 49 anos, a saber,
76,6% e 23,4%, respectivamente, ou seja, dentre uma população chegada aos seringais, em sua maior par-
te, durante os anos de apogeu da economia da borracha. Na faixa de 0 até 20 anos, que correspondia, em
91
Os dados demográficos produzidos por Tastevin em 1925-1926 durante "desobri-
gas" nos rios Tarauacá e Murú confirmam algumas dessas tendências, mas introduzem
outros fatores relevantes sobre a dinâmica da população nos seringais, num período em
que a crise da economia da borracha se aprofundara. Ao comparar suas observações em
campo com os números que no Município de Tarauacá eram atribuídos ao Censo de
1920 (que ainda não haviam sido oficialmente publicados), o padre constataria que a
população estava em "vias de regressão": o rio Murú, diz, teria perdido 50% de sua po-
pulação desde o início da década (Tastevin, 1925: 419).
Num universo de 4.687 pessoas recenseadas em ambos os rios, Tastevin constata-
ria a presença de 693 "famílias"
132
. Os chefes destas famílias representavam 27,5% do
total da população e 44,5% daquela com idades acima de 16 anos
133
. As famílias tinham
uma média de 2,6 filhos, baixa segundo o padre, dada a alta mortalidade infantil, fruto
da "miséria habitual e do impaludismo". Tastevin aponta, ainda, para a persistência de
uma enorme disparidade entre os sexos nas faixas etárias em que novos casamentos po-
deriam ocorrer: 12 homens adultos para cada mulher "celibatária". No caso do rio Murú,
calculou, essa proporção alcançava uma mulher para cada 24 homens, ao desconsiderar
dentre as "celibatárias" aquelas, viúvas inclusive, que haviam passado da idade de casar.
A queda progressiva dos preços da borracha e a ausência de perspectiva de constituir
sua própria família teriam constituído algumas das principais motivações, segundo o
sua maioria, a daqueles já nascidos no seringal, essa proporção, ao contrário, demonstrava um equilíbrio
maior: 54,1% eram homens e 45,9% mulheres. Seria principalmente por meio de casamentos de homens
mais velhos, nordestinos, com mulheres mais novas, já nascidas nos seringais, e mesmo com indígenas
capturadas em "correrias", que boa parte das famílias seria constituída nesse período (Wolff, 1999: 114-
17; Almeida; Wolff; Costa & Pantoja, 1992: 119-21).
132
Tastevin (1925: 420; 1926: 46-7) assim discriminaria a situação dessas 693 famílias: 500 estavam "ca-
sadas" (343 no "religioso" e 157 no "civil"); 109 adotavam o "casamento livre" (ou seja, eram "juntas",
sem união formalizada), 48 viviam em "adultério", após um dos conjugues ter se divorciado e passado a
viver com outro parceiro; 3 eram casadas no civil, após o divórcio de um dos conjugues; 30 eram "indí-
genas", casadas segundo seus próprios costumes; e 3 viviam em "bigamia" (das quais duas eram indíge-
nas). Segundo o padre, o "anormal" desequilíbrio entre os sexos contribuía para explicar "l'instabilité de
certains ménages, même dans ce pays foncièrement catholique" (Tastevin, 1925: 420). Wolff (1999: 110-
14) aponta ainda para a improcedência de se pensar as "famílias" unicamente a partir de um núcleo for-
mado por um casal e seus filhos, chamando a atenção para diferentes agrupamentos e arranjos domésticos
que já nessa época eram comuns nos seringais (e que perduram até os dias de hoje), dentre eles: viúvos
chefiando casas, "filhos de criação" vivendo com avôs ou parentes, crianças indígenas "pegas" em "corre-
rias" sendo criadas por casais ou homens solteiros; unidades residenciais habitadas por compadres ou
companheiros no corte da seringa; casas habitadas por um casal, seus filhos e outros agregados; mulheres
que viviam na casa de mais de um homem (sem necessariamente implicar em relações sexuais, mas sim
na troca de certos serviços).
133
Ainda que parciais, os dados da Delegacia de Recenseamento e Estatística de Tarauacá haviam indica-
do, em 1913, uma participação feminina de 26,3% no rio Murú e de 26,2% no rio Tarauacá. Ao se com-
parar os dados de Tastevin com os do censo de 1920, percebe-se uma constância nas proporções relativas
à participação das mulheres na população total (35,1% no rio Murú e 33,6% no Tarauacá). As "crianças",
aquelas com até 16 anos segundo o padre, correspondiam a 31,9% no rio Murú e 39,6% no Tarauacá.
92
padre, a explicar nesses rios a intensificação do êxodo dos seringueiros, principalmente
dos solteiros, nos três primeiros anos da década de 1920 (Tastevin, 1925: 419-20; 1926:
47).
Como essas dinâmicas populacionais teriam sido condicionadas por processos e-
conômicos e sociais mais amplos e, ao mesmo tempo, teriam contribuído nas transfor-
mações produtivas havidas nos seringais do Vale do Juruá nos primeiros anos de crise
na economia da borracha?
Além da queda dos preços da borracha e da falência das casas aviadoras e dos pa-
trões, a ruptura das redes de aviamento e a escassez de mercadorias aparecem recorren-
temente na historiografia dentre os principais argumentos para justificar a queda da
produção nos seringais da Amazônia, e no Território Federal do Acre, a partir do início
da crise. Ao contrário dessa argumentação, dados da pesquisa demonstram que o avia-
mento para o abastecimento dos seringais continuou a operar, apesar das transforma-
ções havidas nas relações das casas aviadoras com os patrões e de um evidente decrés-
cimo do poder de compra tanto destes últimos como dos seringueiros.
Mudanças consideráveis na propriedade da terra também ocorreram no Alto Juru-
á. Seringalistas viram-se obrigados a, ou preferiram, vender suas propriedades a patrões
mais capitalizados, que aproveitaram a significativa queda nos preços dos seringais para
ampliar seus domínios territoriais e comerciais. Seringais foram alienados em leilões
públicos, realizados por juizes de direito, a raiz de ações judiciais impetradas por casas
aviadoras que tinham dívidas a receber dos proprietários. Nos primeiros anos da crise,
as agências do Banco do Brasil em Manaus e Belém também facilitariam as transferên-
cias de seringais, alienando a massa falida de casas aviadoras e de patrões que haviam
oferecido suas propriedades em hipoteca, como garantia por empréstimos contraídos
134
.
Em outros casos, seringalistas foram obrigados a entregar suas propriedades às casas
134
Em pesquisas em cartório para reconstruir as cadeias dominiais de vários seringais no rio Tarauacá,
exemplos dessas alienações intermediadas pelo Banco do Brasil foram encontrados. Destaco aqui uma de-
las: A 28/04/1914, a Alves de Freitas & Cia Foz do Murú, representada por seu sócio solidário João Alves
de Freitas, entregara seus seringais (Universo, Apuanã, Nauta, São João, São Pedro, Pavão, Itapira, Lupu-
na, Itamaraty e Conceição) à agência do banco em Manaus, como "dação de pagamento" (CRI de Taraua-
cá, Livro 3A, Nº de Ordem 192, fl. 92) A 21/10/1915, o Banco do Brasil vendeu esse conjunto de serin-
gais a Joaquim Pereira de Moraes, domiciliado em Manaus, por meio de escritura pública lavrada naquela
cidade (CRI de Tarauacá, Livro 3A, Nº de Ordem 95, fl. 195). Interessa ressaltar, ainda, que nesse breve
período (abril de 1914 a outubro do ano seguinte), o valor dos seringais passara de 285:879$282, quando
de sua entrega por Alves de Freitas & Cia ao banco, para 133:751$616, ao ser comprado por Joaquim Pe-
reira de Moraes.
93
aviadoras em "dação em pagamento", para quitar, em sua totalidade ou parcialmente,
dívidas que possuíam perante esses estabelecimentos comerciais
135
.
Um exemplo de concentração fundiária foi protagonizado no rio Tarauacá pela
Nicolaus & Companhia, "sucessora" da Mello & Companhia
136
em meados da década de
1910. Aproveitando as dificuldades financeiras enfrentadas por diversos proprietários,
aviados da Mello & Cia., a desvalorização nos preços dos seringais e a oportunidade de
controlar faixas de floresta conhecidas por seu alto potencial produtivo, os representan-
tes daquela casa aviadora adquiriram os seringais Tabocal e Oriente, bem como as "ex-
plorações" Santa Maria, Novo Mundo, Santa Luzia, Ouro Preto, Nova Vida, Invejado,
Bom Lugar (Restauração), São Luiz e Mucuripe, todas adjacentes, que unificaram pou-
co depois para formar o Alagoas, seringal de maior capacidade produtiva no rio Taraua-
cá (Iglesias, 1998)
137
.
135
Em seu texto sobre o rio Juruá, fruto de desobriga realizada nesse rio em 1914, o padre Tastevin
(1920: 136) constatou esse processo de concentração da propriedade dos seringais nas mãos de poucos
patrões: "La propriété d'abord assez divisée tend á se concentrer d'année en année, soit que le
commerçant malheureux cède ses titres à un autre plus habile, soit que fatigué de la vie des bois il rèalise
sa fortune pour aller en jouir à la ville, soit que les maisons de commerce de Manáos ou du Pará, qui ont
avancé les premiers fonds, retirent leur confiance à leur client, et prennent sa propriété en paiement de
leur créance. C'est ainsi que le Gregório presque en entier, le Liberdade, l'Ipixuna, le Paraná dos
Mouras, le Valparaíso et le Tejo, sont devenus chacun la proprieté d'une seule firme qui, de Manáos ou
du Pará, les administre par l'intermediaire d'un ou des plusieurs commis contables".
136
A Mello & Companhia, uma das mais importantes casas aviadoras de Belém durante todo o período do
apogeu, operava nos afluentes do Alto Juruá desde 1894. Fora proprietária de mais de 70 seringais nessa
região, além de possuir gaiolas, chatas e outras embarcações para o transporte de seringueiros, mercadori-
as e borracha (Almeida, 1992). Centralizava redes de aviamento que abrangiam os rios Juruá, Tarauacá e
Envira. Entrou "em liquidação" e decretou falência em 1914 (Weinstein, 1993: 262-63; Almeida, 1992).
Além de receber os seringais de propriedade de sua antecessora, e comprar outros, a Nicolaus & Cia con-
tinuaria a operar no ramo da importação e exportação, manteria, mesmo no período de crise, uma frota de
12 gaiolas viajando pelos rios da região, e diversificaria suas atividades, por meio de seus representantes
locais, então envolvidos na extração de madeiras nobres e de couros e peles de animais. A firma conser-
varia sua ascendência como principal casa aviadora no Alto Juruá até final dos 1930, tendo aberto falên-
cia em 1942, quando seus seringais passariam às mãos de Quirino Nobre, que, por quase três décadas, a
representara na cidade de Cruzeiro do Sul (Almeida, 1992: 37; Pantoja, 2004: 88).
137
Depositados no Cartório de Registro de Imóveis de Tarauacá, os títulos de algumas dessas aquisições
permitem vislumbrar como as cadeias de aviamento eram atualizadas nessa conjuntura e as dificuldades
enfrentadas pelos antigos proprietários, obrigados a entregar seus seringais para o pagamento de dívidas.
Na escritura de compra e venda do seringal Nova Vida, em 12 de maio de 1914, por exemplo, foram as
seguintes as "condições do contrato" entre a Nicolaus & Cia. e os proprietários, José Pereira Lima e espo-
sa: "Pagamento de 4:000$000 em dinheiro do contador; 29:250$960 para serem encontrados com o sal-
do devedor de igual quantia da conta que o transmitente tem na casa comercial dos adquirentes, e que
assim fica liquidada uma nota promissória assignada pelos mesmos adquirentes na importância de
50:000$000, vencível em março de 1910; a quantia de 11:749$034, que será creditada em nova conta de
fornecimento de mercadorias aberta aos transmitentes na casa dos adquirentes; e o resto, 100:000$000
ficam representados à responsabilidade que assumiram os adquirentes em liquidar o débito contrahído
pelos transmitentes com a firma R.L. Porto, da mencionada soma de 100:000$000, obrigando os mesmos
adquirentes a creditar essa quantia à conta que a dita R.L. Porto tem em sua casa comercial" (CRI de
Tarauacá, Livro 3-A, Nº de Ordem 20, fl. 10v-11). No caso do Tabocal e do Oriente, em maio de 1915, a
Nicolaus & Cia. assumiria a propriedade dos seringais mediante título de "dação em pagamento", cance-
lando uma dívida de 40:000$000 que os proprietários detinham com a casa comercial (CRI de Tarauacá,
Livro 3-A, Nº de Ordem 18, fl. 8v).
94
Outro importante desdobramento da crise foi a rearticulação das redes comerciais
que, ao longo das duas décadas anteriores, ligavam as principais casas aviadoras de Be-
lém e Manaus aos patrões de seringais no Vale do Juruá. Falidas, ou descapitalizadas,
várias casas aviadoras deixaram de operar com aviamento de mercadorias e transporte
de cargas, levando a uma inicial concentração dessas redes nas mãos de reduzido núme-
ro de firmas, de Belém e Manaus, e de algumas poucas casas comerciais de patrões lo-
cais
138
. Por meio de representantes e de redes de gerentes, essas casas aviadoras mante-
riam a administração dos principais seringais de sua propriedade, preferindo, nos outros
casos, arrendá-los a terceiros, aviando-lhes mercadorias e deles recebendo a borracha
apurada e/ou um montante fixo de borracha a título de "renda"
139
.
Além de aviarem os patrões ainda capitalizados, essas casas aviadoras passaram
gradualmente a abastecer comércios menores nos centros urbanos, do que vieram a se
beneficiar também os regatões, que, neste período, passariam a negociar pelos rios com
maior liberdade
140
. Dessa maneira, as casas aviadoras acabavam por canalizar a produ-
138
Castello Branco (1930: 715-16) dá indicação dessas mudanças: em 1912, haviam chegado ao porto de
Cruzeiro do Sul 32 vapores; dez anos mais tarde o mesmo porto era visitado anualmente por 12 chatas da
empresa Amazon River (de transporte de passageiros e de carga), 12 lanchas e dois vapores da Nicolaus
& Cia, bem como por duas lanchas e um vapor, estes pertencentes a uma casa comercial local e a dois pa-
trões seringalistas, perfazendo um total de 35 a 36 embarcações a vapor, "de pequena tonelagem, em sua
maioria".
139
Ao contrário do período de apogeu, quando a quase totalidade dos seringais era administrada pelos
proprietários, ou "sociedades de proprietários", nota-se que, a partir do início da crise, parte considerável
das propriedades passou a ser gerenciada por administradores ou arrendatários. Dados do censo agrícola
de 1920 indicam essa tendência nos cinco municípios do Acre: do total de 1.170 "estabelecimentos ru-
rais" recenseados, 74% eram gerenciados pelos "proprietários", 10% por "administradores" e "interessa-
dos" ("metayeurs") e 16% por "arrendatários" (Brasil. MAIC (Diretoria Geral de Estatística), 1923: 9).
Esse processo teria continuidade nas décadas seguintes, com o aprofundamento da crise da empresa se-
ringalista. Dados de 1940 indicaram, por exemplo, que dos 115 estabelecimentos recenseados no Municí-
pio de Tarauacá 31,3% eram geridos pelos "proprietários", 26,1% por "administradores" e 42,6% por "ar-
rendatários" (Brasil. IBGE, 1952: 149).
140
Ambas as situações foram constatadas pelo padre Tastevin em meados dos anos de 1920 em sua
estadia em Seabra: "C'est le quartier commercial et industriel: trois ou quatre de ces maisons sont
abondamment pourvues de tous les articles qu'on peut raisonnablement désirer pour un train de vie
modeste, mais très aisé. Des succursales plus petites se contentent d'un profit plus modique qui permet
pourtant à leurs tenants de mener un vie relativement douce. Çà et lá un atelier d'orfèvre, de cordonnier,
de ferblantier, de repasseuse, une pharmacie, une frutiferie, un billard, un café, une maison borgne,
achévent de caractériser ce vestibule de Séabrá, qui nous rappelle vaguement l'aspect d'un souk arabe.
L'élément syrien, très important, achéve de donner l'illusion. Ces orientauxs sont presque tous des Druses
de la régions de Beyrouth, de Tyr et de Sidon; trois en quatre son musulmans; deus à peine sont
Maronites et n'ont pas encore conquis leur place au Soleil. Les autres n'ont pas démérité de l'esprit
d'audace, d'aventure et de trafic de leurs ancêtres, les Phéniciens. Le port est assez mouvementé, on y
compte jusqu'á douze moteurs à essence qui font continuellement la navette entre Séabrá et les derniers
"seringaes" du Murú, du Tarauacá et du Jordão, suivant le caprice des eaux" (Tastevin, 1926: 34-5). Im-
pressionado com a dinâmica comercial e a infra-estrutura da administração pública no "centro administra-
tivo" de Seabra (a Intendência, o Fórum, a escola, o "posto de profilaxia", a caserna das forças militares, a
prisão e a estação de radiografia,) o padre afirmaria: "(...) c'est inutilment qu'on chercherait ailleurs, en
cette contrée en dehors de Manáos, la capitale de l'Amazonas, une ville aussi bien pourvue sous ce rap-
port. Séabrá est donc un centre de progrés et de civilization, d'autant plus remarquable, qu'elle est la
95
ção de borracha de seringais que não estavam sob a gestão de seus próprios representan-
tes, arrendatários ou aviados. Ganhos adicionais eram obtidos com a venda de mercado-
rias aos comerciantes urbanos, que vendiam-os a uma população que nunca desempe-
nhara ou se desvinculava das atividades florestais e rurais
141
.
Conforme pode se constatar da análise das estatísticas oficiais às quais se logrou
ter acesso, a borracha continuou como principal produto de exportação do Vale do Juruá
durante os anos da crise, ainda que com uma progressiva queda em relação aos montan-
tes exportados no período de apogeu. A produção dos rios Tarauacá, Envira e afluentes,
que somara 905.000 quilos em 1905 (Azevedo, 1905), tivera média anual de 1.633.428
quilos no período 1905-1912, chegaria a 966.289 quilos de "borracha fina" em 1913
(não incluída a produção embarcada pelo posto fiscal de Vila Feijó) (Brasil. Ministé-
rio da Justiça e Negócios Interiores. Prefeitura de Tarauacá, 1914). Em 1920, atingiria
739.259 quilos (Brasil. MAIC [Diretoria Geral de Estatística], 1923). Três anos depois,
contudo, a produção de "borracha fina" registrara um considerável aumento (1.086.436
quilos), que seria exportada junto com 41.016 quilos de "sernambi de borracha", 1.095
de caucho e 8.133 de "sernambi de caucho" (A Reforma, Cidade Seabra, Ano VII,
297, 15/6/1924, pg. 3)
142
.
Ainda que confrontados com dificuldades financeiras para saldar suas dívidas, a
pronunciada queda nos preços da borracha, a redução do crédito pelos aviadores e o de-
sabastecimento dos barracões, os patrões continuariam a ter necessidade de canalizar
borracha, para operar seus movimentos comerciais e garantir a subsistência de seus gru-
cadette des petites villes de l'Amazonie" (ibid: 35). Dez anos mais tarde, Onofre de Andrade (1937) torna-
ria a destacar os "sírios", dentre eles, Nagip Said, Calil Aladin, Said Bachir, Tufi Bachir, Consantino
Mosle e Calil Cheker, como proprietários das principais casas comerciais em Seabra.
141
Assim como fizera Tastevin (1926), os dados relativos no Recenseamento de 1920 também indicam,
para além dos "agricultores", comerciantes e funcionários públicos, a presença de uma ampla gama de
profissionais em Seabra, dedicados a trabalhos com madeira, produção de móveis, metalurgia, cerâmica
(olarias), confecções e construção civil (Brasil. MAIC [Diretoria Geral de Estatística], 1930: 851).
142
Como visto anteriormente, a produção de borracha do Departamento do Alto Juruá (incluindo os rios
Juruá, Tarauacá, Envira e seus afluentes), fora de 26.134.852 quilos de 1905 a 1912, uma média anual de
3.266.856 quilos. No rio Juruá e seus afluentes, a produção, que alcançara 1.398.860 quilos em 1905, cai-
ria para 900.000 em 1912 (Castello Branco, 1930: 709), 698.584 em 1913 (Brasil. Ministério da Fazenda,
1915: 66) e 415.256 em 1920 (Brasil. MAIC [Diretoria Geral de Estatística], 1924: 386). Em 1923, estava
reduzida a 312.169 quilos, montante inferior à média anual da "borracha fina" exportada dessa região no
período 1913-1923, que ficara em 466.677 quilos (Castello Branco, ibid: 709-13) Estes dados não inclu-
em, contudo, as produções de caucho e de "sernambi" (de borracha e de caucho) exportados nesse perío-
do: 590.502 quilos de sernambi de borracha, 5.912 quilos de caucho e 284.725 quilos de sernambi de cau-
cho (Castello Branco, ibid). Parece plausível afirmar que parte dessa produção de caucho ainda era oriun-
da do território peruano, mas registrada nos postos fiscais do Departamento do Alto Juruá, devido à crise
que também atingira as casas comerciais de Iquitos e Pucallpa, resultando na relativa desarticulação das
redes de aviamento que antes abasteciam os postos na floresta e canalizavam a maior parte da produção
dessa região fronteiriça. Conforme será visto nos capítulos IV e V, uma considerável produção de caucho
prosseguiu nos altos rios Envira e Breu por toda a década de 1910, realizada por brasileiros e peruanos.
96
pos familiares e dos empregados da sede. Medidas se tornariam então imperativas para
tentar assegurar a permanência de pelo menos alguns fregueses, produzindo borracha,
nas colocações. Numa conjuntura em que muitos seringueiros cogitavam retornar a seus
locais de origem ou tentar vida nova nos centros urbanos, o abandono das colocações
sem que os seringueiros pagassem suas contas tornava-se freqüente, e focos de revolta
despontavam em certos seringais (Almeida, 1992: 35-36; Carneiro & Almeida, 2002:
119), o uso da coerção e da violência, comum nos anos de apogeu, não seria o meio pri-
vilegiado pelos patrões na tentativa de persuadir os fregueses a permanecerem em suas
propriedades (Weinstein, 1989: 275-76).
Transformações significativas ocorreriam nas relações de aviamento, com a flexi-
bilização dos "regulamentos" que haviam assentado as relações entre patrões e fregue-
ses no período de apogeu. Impossibilitados de sustentar o monopólio sobre a esfera da
comercialização, muitos patrões desobrigaram os seringueiros de comprar mercadorias e
entregar sua produção exclusivamente no barracão do seringal, mediante o compromis-
so de continuarem a pagar um montante anual de borracha a título de "renda" das estra-
das de seringa. Essa mudança seria destacada por Castello Branco em início dos anos
1920, ao afirmar que havia "(...) alguns patrões que recebem sómente uma renda do se-
ringueiro, sem lhe vender mercadoria alguma, e outros arrendam as estradas, facul-
tando ao trabalhador a compra dessas mercadorias ou de utensílios para o serviço da
borracha" (Castelo Branco, 1930: 721)
143
.
Ainda em meados dos anos de 1920, mesmo com a progressiva queda dos preços
da borracha, no Município de Tarauacá alguns patrões e representantes de casas comer-
ciais continuavam a recrutar fregueses para trabalhar nos seringais, divulgando inclusive
propagandas na imprensa de Seabra
144
. Exemplo de um anúncio, mandado publicar pelo
patrão de seringais no rio Murú, Francisco Bayma, dava garantia aos seringueiros, em
"contrato por escrito", do valor de 3$000 pelo quilo da borracha; dos preços fixados pa-
143
Em meados dos anos de 1930, Onofre de Andrade constataria que essas formas de relacionamento en-
tre patrões e seringueiros continuavam em vigência: "(...) o regime do trabalho se modificou. Assim, mui-
tos são os seringais hoje arrendados aos próprios “seringueiros”, os quais pagam aos proprietários (se-
ringalistas) uma renda, que varia de 50 a 100 k., por par de estradas de seringueiras: nesta hipótese, dá-
se-lhes a liberdade de comprar e vender livremente, o que se verifica de preferência com os “regatões”
(embarcações a remo ou a motor, de palha, ou tolda, que fazem de lojas ambulantes, penetrando o rio ou
seus afluentes)" (Andrade, 1937).
144
Outra propaganda, publicada pela F. Santos & Cia, sediada em Seabra, anunciava a contratação de
pessoal para trabalhar nos seringais Estirão e Ouro Preto, também no rio Murú, "logares muito saudáveis,
onde têm vagas muitas e boas collocações". A firma anunciava que seus estabelecimentos contavam com
o "mais completo sortimento de artigos de toda qualidade", que vendiam "a preços convidativos" (A Re-
forma, Ano II, Nº 54, 18/5/1919, pg. 3).
97
ra as mercadorias; da isenção do pagamento da renda das estradas de seringa; do aluguel
dos utensílios necessários ao corte da seringa; dos serviços a serem prestados aos serin-
gueiros, no transporte das mercadorias até as colocações e da produção de borracha para
a sede; bem como do pagamento imediato dos saldos, em dinheiro, ao término da safra.
Era exigência que os seringueiros que se comprometessem a trabalhar o fabrico anual
completo, sem qualquer risco de, "sem motivo justificado", abandonarem as colocações,
deixando contas sem pagar. Essa obrigação era justificada, no próprio anúncio, pelo ca-
pital que seria empatado pelo patrão para movimentar o seringal, com os utensílios e
com as estradas de rodagem, os funcionários e os animais de transporte, de maneira a
garantir as "vantagens" oferecidas aos fregueses
145
.
Neste caso, a flexibilização dos "regulamentos" ocorreria, à diferença do modelo
precedente, pela isenção do pagamento da renda e pela própria existência de "contrato
escrito". Parte das cláusulas previstas no contrato, todavia, vinha a reforçar os "regula-
mentos", ao tornar explícitos direitos e deveres do patrão e dos seringueiros. Assim, se,
de um lado, continuavam a valer a obrigatoriedade do seringueiro de entregar a produ-
ção e comprar mercadorias no barracão e de permanecer no seringal até o final da safra
(ou até o pagamento de suas contas), de outro, o patrão garantia pagar o saldo do fre-
guês em dinheiro e prestar-lhe "assistência", no transporte de mercadorias e da borracha,
serviços que, com a crise, haviam deixado de ser oferecidos mesmo nos maiores serin-
gais (Almeida, 1992: 37).
Com a instauração da crise, apesar da importância que a borracha continuaria a ter
como principal produto para comercialização, a empresa seringalista gradualmente dei-
xaria de ser um empreendimento especializado. Tanto patrões como seringueiros pro-
moveriam uma significativa diversificação das atividades produtivas, dedicando-se à a-
gricultura e à criação, com o objetivo de gerar bens e produtos para seu próprio consu-
mo, substituir fontes de alimentação e mercadorias, antes importadas ou compradas no
barracão e, dependendo da localização, abrir novas alternativas de comércio, em outros
seringais, com os regatões e/ou nos centros urbanos.
Para manter as propriedades funcionando, cortar despesas, diversificar suas fontes
de ingresso e diminuir sua dependência face às casas aviadoras, muitos patrões começa-
ram, junto com seus empregados, agregados e alguns de seus fregueses, a dedicar-se, a-
lém de à agricultura, a produzir farinha, montaram engenhos de cana para produzir açú-
145
"Seringueiros". A Reforma, Ano VII, Nº 284, 1/01/1924, pg. 4.
98
car mascavo, mel, rapadura e mesmo aguardente, e abriram campos para iniciar a cria-
ção de gado, cabras, ovelhas e outros animais
146
.
A borracha continuaria a ser produzida pelos seringueiros em suas colocações,
mas como uma atividade dentre outras. Aqueles que optaram por permanecer nas colo-
cações, ao invés de continuarem especializados na extração da seringa, a ela dedicando
a maior parte do ano para a obtenção de um produto que permitisse comprar suas neces-
sidades no barracão, passaram a fazer uso mais diversificado dos recursos naturais. Esse
"campesinato florestal" (Almeida, 1992) redefiniria a matriz temporal antes imposta pe-
lo corte da seringa e pelo patrão, passando a dedicar maior número de dias à agricultura,
na terra firme e nas praias, às caçadas, à pesca e à coleta de produtos florestais, combi-
nando, de acordo com as épocas do ano e a composição de seus grupos domésticos, es-
tratégias produtivas para a obtenção de bens tanto para a subsistência como para a co-
mercialização
147
.
Escrevendo em 1922, Castello Branco (1930: 707-15) ressaltaria as transforma-
ções havidas na economia do Município de Cruzeiro do Sul
148
a partir do declínio nos
preços da borracha. O crescimento agregado das produções agrícolas de "primeira ne-
cessidade" permitira um gradual decréscimo da importação de vários produtos (café,
feijão, arroz, milho, tabaco, farinha, açúcar e aguardente), e inclusive a exportação de
parte do excedente para cidades do baixo rio Juruá, das margens do rio Solimões e in-
clusive para Manaus
149
.
146
Tastevin (1925: 422) assim descreveria a situação dos patrões nos rios Tarauacá e Murú em meados
dos anos de 1920: "Les propriétaires vivent de la location de leur seringal, de leur commerce avec les
"seringueiros" et d'élevage. Tous possèdent autour de leur maison un prairie artificielle où paissent
quelques dizaines de bêtes à corne, mêlées toujours à quelques porcs et quelquefois à des moutons. Leur
poulailler est en général bien garni. Ils ont une vie relativement heureuse, mais modeste: aucun d'entre
eux ne possède de numéraire. Ils vivent au jour au jour. Les impôts absorbent en général la totalité de
leur revenu. Il leur est interdit de sogner au progrès et à l'éducation de leurs enfants, tant que durera
l'état de choses actuel".
147
Almeida (1992: 41) calcula que de 180 dias anuais de corte de seringa durante o período do apogeu, os
seringueiros passaram a dedicar cerca da metade desses dias durante os anos da crise. Tastevin (1925:
422), por sua vez, após viajar pelo rio Murú, estimou em 120 a média dos dias dedicados pelos seringuei-
ros anualmente ao corte, com uma produção, também média, de 400 quilos de borracha.
148
O Território Federal do Acre teria uma nova organização a partir de 1 de outubro de 1920, com a pro-
mulgação do Decreto 14.383. Os cinco Departamentos então existentes foram extintos e transformados
em municípios (Rio Branco, Xapuri, Purus, Tarauacá e Juruá). O Decreto instaurou a figura do governa-
dor, nomeado pelo Presidente da República, com atribuição para nomear os intendentes municipais. A ca-
pital do Território foi então localizada na cidade de Rio Branco. Segundo Souza (1995: 91), esta medida
do governo federal teve por objetivo enfraquecer os movimentos autonomistas que defendiam a elevação
do Território à categoria de estado e vinham ganhando força com a crise financeira enfrentada pelas Pre-
feituras após a crise da borracha.
149
Ainda que a borracha continuasse como principal produto de exportação do Alto Juruá no período
1913-1923, a pauta dos demais produtos exportados reflete a gradual transformação na base produtiva dos
seringais. A partir de 1917, o feijão e a farinha despontam como primeiros produtos agrícolas a serem ex-
99
O crescimento da agricultura nos primeiros oito anos de crise na economia da bor-
racha pode ser comprovado nos dados sobre a produção agrícola do Município de Ta-
rauacá, resultado do "Recenseamento do Brazil", promovido pelo governo federal em
setembro de 1920 (Brasil. MAIC [Diretoria Geral de Estatística], 1923). Tomando o ano
agrícola 1919-1920 como base, e uma amostragem de 165 estabelecimentos, os dados
indicam que o milho era cultivado em 152 (92%), o feijão em 143 (87%), a mandioca
em 142 (86%), o arroz em 106 (64%), o tabaco em 96 (58%) e a cana em 91 (55%). O
café ocupava então uma área de 209 hectares, com um total de 125.214 pés. A produção
de farinha de mandioca estava em curso em 142 (86%) estabelecimentos, a de açúcar
em 88 (53%) e a de aguardente em oito (5%)
150
.
Os dados do censo também apontaram a importância que a criação de animais
domésticos adquirira nesse município. A criação de "aves" era realizada em 123 (75%)
estabelecimentos, com um plantel total recenseado em 30.239 galinhas, 2.325 patos e
518 perus. Os "rebanhos" contabilizados incluíam ainda 3.320 cabeças de gado, 6.769
de porcos, 1.801 ovelhas, 772 asnos e mulas, 177 cabras e 127 cavalos. No quesito ta-
manho, os "rebanhos" de Tarauacá figuravam com destaque dentre os cinco municípios
acreanos: o primeiro lugar nos ovino e suíno e o terceiro lugar nos bovino, eqüino, ca-
prino e asinino e muar.
Tastevin (1920: 139; 1925) e Castello Branco (1930) dão indicações de que boa
parte dessa criação de gado, ovelhas, asnos, mulas, cabras e cavalos era iniciativa dos
patrões, em campos abertos nas sedes dos seringais, bem como em fazendas situadas
nas cercanias das sedes urbanas, que então constituíam o principal mercado consumidor
de carnes e outros gêneros agrícolas. Tastevin (1920: 144), contudo, ressalta que a agri-
cultura e a criação de animais menores (galinhas, patos e porcos) estavam presentes em
boa parte das colocações habitadas por seringueiros. A agricultura realizada nas praias
portados, ganhando progressiva expressão nos anos seguintes, junto com o açúcar, arroz, o milho e o ta-
baco. Começa a despontar nestes últimos anos também a exportação de couros e peles de animais, bem
como de madeira, atividades que ganhariam maior monta em anos posteriores, com o aprofundamento da
queda dos preços da borracha. Ainda que em quantidades bastante modestas, produtos como café, algo-
dão, toucinho, aguardente, rapadura, palhas para coberturas e tijolos de barro também passaram a constar
das listas de exportação a partir de 1921 (Castello Branco, 1930: 709-13) As exportações de Tarauacá em
1923 também confirmam a diversificação da economia no município, com a saída de 17.500 quilos de
"couros" de veado, 15.500 "palmos" de cedro em rolos e 61.708 quilos de jarina (A Reforma, Seabra, Ano
VII, Nº 297, 15/6/1924, pg. 3).
150
Ainda que a área cultivada fosse pequena (0,7%) face à extensão agregada de 335.512 hectares dos
165 estabelecimentos recenseados no Município de Tarauacá, indicativo de que era realizada principal-
mente em pequena escala, nas sedes dos seringais, nas colocações dos seringueiros e em fazendas e "co-
lônias" próximas à sede urbana, a produção agregada chegava a 6.667 toneladas de mandioca, 1.624 de
farinha, 25.735 de cana, 1.215 de açúcar, 649 de milho, 445 de feijão e 150 de arroz e a 1.144 hectolitros
de aguardente.
100
dos principais rios, nas vazantes nos meses secos do verão, que exigia menor número de
dias e esforço para a limpeza da vegetação, ganharia importância nesta conjuntura, e
renderia um diversificado leque de produtos para a alimentação (milho, arroz, feijão,
melancia e algumas espécies de mandioca) tanto dos seringueiros e suas famílias como
das criações.
A necessidade dos seringueiros diversificarem as atividades produtivas em suas
colocações, visando uma menor dependência dos produtos antes adquiridos no barracão
do patrão, foi assim destacada por Tastevin (1925: 421-22):
"On aurait tort de croire que la vie est facile dans ces immenses forêts, en raison
de la rareté de la population. Cette rareté même fait que personne ne peut se
spéciliser et que chacun doit se suffire en tout. Le seringueiro, s'il veut manger,
doit se faire chasseur et pêcheur; s'il ne veut pas acheter au patron la farine de
manioc, le riz, les haricots, le sucre dont il a besoin, et qui absorberaient toute la
valeur de sa gomme, il faut qu'il se fasse aussi agriculteur et bûcheron, qu'il
défriche la fôret, qu'il sème, qu'il plante, qu'il soigne ses plantations, qu'il
transforme son manioc en farine, qu'il encaisse son riz et embouteille ses
haricots; ajoutez à cela le soin de ses vêtements et de son ménage rudimentaire, et
vou vous rendrez compte de la somme d'énergie quit doit déployer le seringueiro
pour soutenir une existence misérable. Heureux quand la maladie ne vient pas le
terrasser dans sa solitude et l'obliger à dépenser, en remèdes très chers, la maigre
résultat de ses économies. Aussi ne faut-il pas s'étonner de le voir abandonner la
lutte et déserter le pays à l'epoque la baisse du caoutchouc lui permet
difficilement d'acquérir les marchandises indispensables qu'il ne peut lui-même
fabriquer: étoffes pour se vêtir, ustensiles en fer-blanc pour la récolte de la
gomme, outils pour l'agriculture, armes pour la chasse, remédes contre les
maladies, sel, allumettes, etc...".
Apesar da maior dificuldade, devido aos baixos preços da borracha, de adquirir as
mercadorias, ferramentas e outras "necessidades" e do esforço requerido para a realiza-
ção de um maior número de tarefas, apontadas acima por Tastevin, melhorias na quali-
dade de vida de parte dos seringueiros também decorreram dessa nova situação, na for-
ma de uma alimentação mais variada e rica, que incluía gêneros agrícolas frescos, mais
caças e peixe, na diminuição do trabalho de até seis dias por semana, antes empenhado
na produção da borracha (que além do corte, exigia a coleta de cocos e a defumação das
pelas) e de uma maior autonomia face aos patrões. No caso dos seringais situados nas
cabeceiras dos rios, devido à sua maior produtividade, os seringueiros, apesar do menor
número de dias dedicados ao corte, e apesar da "carestia" e da alta nos preços das mer-
cadorias, conseguiram continuar comprando bens que não podiam faltar, dentre eles, o
sal e a munição, mesmo durante os piores anos da crise (Almeida, 1992: 39-41).
101
A necessidade de diversificação das atividades produtivas, voltadas à subsistência
e à comercialização, constituiria, por sua vez, estímulo à constituição de novos agrupa-
mentos familiares. Ao contrário da expectativa vigente entre a maioria dos seringueiros
nos anos do apogeu, de enricar rapidamente e retornar aos seus locais de origem, inclu-
sive para casar, no período de crise a possibilidade de permanecer nos seringais e gozar
de melhores condições de vida passou a depender da mão de obra também diversificada
que o grupo familiar, de preferência numeroso, poderia tornar possível (Almeida, 1992:
40; Wolff, 1999: 113-17).
Novamente o padre Tastevin (1926: 43) destacaria as diferenças nas formas de vi-
da levadas pelos seringueiros solteiros, que trabalhavam nas colocações de centro, afas-
tadas da beira dos rios, muitas vezes ainda especializados na produção de borracha, e
por aqueles que haviam se tornado chefes de famílias, algumas ainda pequenas, outras
já com bom número de integrantes:
"(...) la terre est incontestablement génereuse (...) mais un homme seul ne peut
pas tout faire, il faut se limiter, se spécialiser, et ici la meilluere spécialité c'est
l'hévea (...) La vie n'est bonne ici que pour les familles nombreuses, celles
tandis que les garçons vont cueillir la gomme native, le père se livre à la pêche, la
mère et les filles aux cultures, à la blanchisserie, à la couture. Mais malheur à
l'homme isolé, surtout s'il vient à tomber malade: sa vie n'est que un long
martyre. Malheur aussi à celui dont la famille est trop petite pour lui venir en
aide: elle ne fait qu'augmenter sa charge".
O destino da agricultura estava intrinsecamente associado aos preços da borracha,
já dissera o padre (Tastevin, 1920: 145) ao testemunhar as transformações em curso nos
seringais e nas relações entre patrões e fregueses pouco após o início da crise. Para os
seringueiros casados que permaneceram nas colocações, a gradual diversificação das a-
tividades produtivas se imporia como necessidade, pois a "carestia" de mercadorias nos
seringais viria a se agravar na segunda metade da década de 1920. E assumiria contor-
nos mais graves na década seguinte, quando, após a quebra da Bolsa de Valores de No-
va Iorque e o excesso de oferta nos seringais do Oriente, os preços da borracha tornari-
am a cair mais acentuadamente
151
.
Descapitalizados por pouco mais de quinze anos de crise, os patrões no Município
de Tarauacá, que continuavam a depender da borracha para obter a maior parte de seus
151
As cotações da tonelada de borracha no mercado internacional alcançariam uma média de 89,2 libras
esterlinas no período 1920-1924; 121,8 libras no período 1925-1929 (com um pico de 206 libras em 1925,
e uma acelerada queda nos anos seguintes, chegando a 75 libras em 1929); de 42,6 libras no período
1930-1934; e de 77 libras no período 1935-1939. A produção de borracha nativa da Amazônia, refletindo
essas flutuações nos preços, alcançaria uma média anual de 21.666 toneladas na década de 1920, caindo
para 11.786 toneladas na década seguinte (Martinello, 1988: 48).
102
ganhos e, ainda que precariamente, manter seus barracões em funcionamento, procura-
riam alertar o governo federal para a necessidade da adoção de políticas imediatas de
defesa da economia da borracha, justificando-as pelo risco de uma total paralisação da
"indústria extrativa" e da transformação do interior em um deserto despovoado de gente.
A ausência de perspectivas claras para o futuro da economia no município ficaria
evidenciada em duas campanhas realizadas pela imprensa de Seabra em meados dos a-
nos de 1920. A primeira, em 1924, incitava os proprietários de seringais a "rumar para a
agricultura", fortalecendo o "movimento agrícola" iniciado fazia poucos anos. A alterna-
tiva então defendida era a implantação de vastas plantações de café, produto que, face à
"revolução" em São Paulo e à broca que atingia as plantações nesse estado, poderia as-
sumir peso importante na pauta de exportação de Tarauacá (a exemplo do que vinha a-
contecendo em Cruzeiro do Sul), para "melhorar as condições que podem piorar na in-
dústria extrativa, devido à falta de braços"
152
. No ano seguinte, com as notícias advindas
das praças de Manaus e Belém, dando conta de que a cotação da borracha se apreciara,
numa tendência que "aparentava não ser transitória", os editoriais conclamavam aos se-
ringalistas, e a aqueles que haviam deixado a floresta para se instalar na cidade, que se-
guissem imediatamente aos seringais para retomar a produção. O principal obstáculo pa-
ra tal, ressaltava-se novamente, era a "falta de braços", resultante da diminuição, calcu-
lada em pouco mais da metade, da população do município nos anos anteriores. Para
possibilitar essa retomada os seringalistas solicitavam uma urgente intervenção do go-
verno federal, no sentido de viabilizar o transporte, pelo menos até Manaus, dos nordes-
tinos que quisessem fazer vida e "enricar" nos seringais
153
.
Novas articulações políticas visando alertar o governo federal para a necessidade
de políticas para o soerguimento da economia da borracha seriam protagonizadas pela
Associação Seringalista de Tarauacá, criada em 1928, em dois congressos realizados no
biênio 1930-31. Numa conjuntura marcada por anos de progressivas quedas nos preços
e na produção da borracha
154
e pela eminente desvalorização das propriedades, alertas
seriam feitos sobre a derrocada final da "indústria extrativista", pela impossibilidade dos
152
"Plantemos café". A Reforma, Ano VII, Nº 321, 9/11/1924, pg. 1; "O café. Nova fonte de riqueza". A
Reforma, Ano VIII, Nº 330, 18/1/1925, pg. 1.
153
"Rumo ao seringal" ; "Aspiração e necessidade". A Reforma, Ano VIII, Nº 351, 14/6/1925, pg. 1.
154
No Município de Tarauacá, o preço do quilo da "borracha fina", que o patrão Francisco Bayma prome-
tia pagar a 3$000 em 1924, atingira um pico de 10$000 em 1925, que motivara a referida campanha para
a imediata retomada da produção, mas despencara a 1$300 em 1931 ("Rumo ao seringal". A Reforma,
Ano VIII, Nº 351, 14/6/1925, pg. 1; "Notas a lápis". A Reforma, Ano XIV, Nº 643, 29/3/1931, pg. 1). A
produção no município, que alcançara pouco mais de um milhão de quilos de "borracha fina" em 1923,
estava reduzida, na safra de 1930, a praticamente a metade (507.674 quilos) ("Receita Fiscal Federal do
Tarauacá". A Reforma, Ano XIV, Nº 634, 18/1/1931, pg. 4).
103
patrões, descapitalizados, de continuarem a movimentar seus seringais e pelo êxodo
contínuo da população, que, "maltrapilha", vagava sem perspectivas em Seabra, colo-
cando em risco a segurança pública, ou rumava definitivamente para o Nordeste.
Ao final de ambos os congressos, radiotelegramas seriam enviados à Presidência
da República, aos Ministérios do Trabalho e da Agricultura, aos interventores do gover-
no federal nos Estados do Amazonas e Pae no Território do Acre, bem como às reda-
ções dos principais jornais do Rio de Janeiro, Belém e Manaus. Como demanda mais
geral, a Associação em 1931 propunha que o Banco do Brasil garantisse os preços futu-
ros da borracha, assegurando que estes cobrissem os custos de produção, possibilitando
aos seringalistas manter seus movimentos comerciais em operação e oferecer condições
para que os seringueiros permanecessem nas colocações
155
.
No plano mais local, a Associação demandaria a implantação de uma linha de
transporte fluvial subvencionada para o rio Tarauacá (a exemplo das queexistiam nos
demais municípios), de maneira a desonerar os fretes e as passagens e a baratear as mer-
cadorias de "primeira necessidade" e os utensílios agrícolas e industriais. Prometia, ain-
da, que junto com a implementação dessas políticas pelo governo federal, os seringalis-
tas ensejariam iniciativas para incentivar, de "uma vez por todas", a "policultura", de
maneira a tornar o município auto-suficiente na produção de alimentos. Esse conjunto
de ações, alegava a Associação, ao viabilizar o adensamento da população, a solução
dos problemas de transporte e comunicação e o barateamento das exportações de gêne-
ros agrícolas para outros mercados consumidores, permitiria que a economia do municí-
155
Outras resoluções tomadas durante o Congresso dão indicações de que, para além do êxodo para a ci-
dade e para fora do município, muitos seringueiros optavam por mudanças nos próprios seringais. Ao
término do IV Congresso, a Associação enviaria radiotelegrama ao interventor do governo federal no Ter-
ritório do Acre solicitando medidas para coibir, por um lado, a mudança de fregueses das colocações en-
quanto não pagassem suas dívidas, e, por outro, as atividades de "engajadores", que procuravam conven-
cer os seringueiros a se mudar de seringal, sob promessa de um maior acesso a mercadorias. Nesse mes-
mo sentido, os seringalistas alterariam duas cláusulas do estatuto da Associação. A primeira, obrigando os
titulares dos contratos de arrendamento de seringais a se responsabilizarem pelo pagamento integral da
renda estipulada, assumindo, inclusive, o montante de renda das estradas de seringa que deixassem de lhe
ser pagas pelos fregueses que abandonassem suas colocações antes do término da safra. A segunda, esti-
pulando que, ao colocar um freguês, seu novo patrão exigiria a apresentação de seu talão de conta-
corrente e, em caso da existência de débitos, os quitaria junto ao seu patrão anterior ("IV Congresso Se-
ringalista do Tarauacá" [A Reforma, Ano XIV, Nº 642, 22/3/1931, pg. 1]). Essas medidas indicam que,
apesar da crise vigente nos seringais, certos "regulamentos" continuavam a operar, ainda que freqüente-
mente violados pelas iniciativas tanto dos seringueiros, descontentes com a obrigação de continuarem pa-
gando renda das estradas de seringa, num momento de grande carestia de mercadorias nos barracões, co-
mo de certos patrões e "engajadores" que para eles trabalhavam. Essas situações confirmam, ainda, que, a
exemplo do ocorrido desde os primeiros anos da crise, muitos seringais eram administrados por arrendatá-
rios, os quais dependiam da borracha recebida dos seringueiros a título de renda para honrar seus contra-
tos com os proprietários, e procuravam obter alguma margem adicional de ganho com a comercialização
de mercadorias adiantadas pelas casas comerciais de Seabra.
104
pio pudesse, em breve, deixar de depender exclusivamente da "fatídica indústria da bor-
racha", se assentando nas atividades agrícolas e pastoris, fontes da "riqueza verdadeira
de um povo laborioso"
156
.
O apoio do governo federal aos governos dos municípios do Território se restrin-
giria, ainda em 1931, ao repasse de uma verba de 300$000 "para o amparo dos sem-
trabalho e à agricultura", da qual 50$000 caberiam ao Município de Tarauacá. A Inten-
dência resolveria investir esses recursos em "obras duradouras e de vantagem" para o
fortalecimento da "incipiente agricultura": a construção de estradas e aterros ligando a
cidade a três "colônias agrícolas", para que os moradores da zona rural pudessem co-
mercializar sua produção; e outro ramal até o local onde planejava instalar uma fábrica
de beneficiamento dos produtos das "colônias". Para a implantação desta fábrica, um
engenho de ferro, tachos, uma debulhadeira de milho e um "aviamento" completo para
produção de farinha foram encomendados em Belém e no exterior. Fazia parte desse
plano de incentivo oficial à agricultura, ainda, a regularização dos lotes dos agricultores
que viviam nas colônias e a doação de instrumentos de trabalho, bem como a aquisição
de terras de particulares para a ampliação dos perímetros da cidade de Seabra e da Vila
Feijó
157
.
Nenhum subsídio federal seria concedido, contudo, para o apoio à economia da
borracha, resultando numa gradual queda da produção ao longo de toda a década de
1930, aquela considerada pelos seringalistas com a época da "pior crise" (Allegretti,
2002: 108).
Também em 1930, pouco após a realização do III Congresso da Associação dos
Seringalistas, os jornais de Seabra publicaram uma série de artigos e notícias, dando
conta de que novas atividades vinham sendo fomentadas pelas casas comerciais de Be-
lém e Manaus, as quais, apesar das dificuldades vigentes, poderiam resultar em renova-
das alternativas para a combalida economia do Município de Tarauacá. O jornal A Re-
forma, por exemplo, reproduziria cartas enviadas ao governador do Pará pelo então adi-
do comercial do governo brasileiro em Nova Iorque, Monteiro Lobato, e do diretor geral
da National Association of the Fur Industry, dos Estados Unidos, Daniel C. Milles, soli-
156
"Terceiro Congresso Seringalista do Tarauacá". A Reforma, Ano XIII, Nº 596, 6/4/1930, pg. 1; "IV
Congresso Seringalista do Tarauacá". A Reforma, Ano XIV, Nº 640, 8/3/1931, pg. 1; "IV Congresso Se-
ringalista do Tarauacá". A Reforma, Ano XIV, Nº 642, 22/3/1931, pg. 1; "IV Congresso Seringalista do
Tarauacá". A Reforma, Ano XIV, Nº 643, 29/3/1931, pg. 4.
157
"Serviços territoriaes de amparo aos sem trabalho e à agricultura do Acre. Subsídio providencial e o-
portuno". A Reforma, Ano XIV, Nº 665, 17/10/1931, pg. 1.
105
citando providências imediatas para a garantia dos preços e dos montantes da exporta-
ção dos couros e peles de animais da floresta amazônica para aquele mercado
158
.
À mesma época, notícias começariam a ser publicadas na imprensa de Seabra
dando conta que a exportação de madeiras nobres começava a ganhar maior magnitude
a partir dos portos de Belém e Manaus
159
. A exportação de madeiras oriundas do alto rio
Juruá tivera início no romper dos anos de 1920, com a chegada, até Cruzeiro do Sul, dos
primeiros "rebocadores", apoiados por "motores" de menor calagem, próprios à navega-
ção em rios menores, como o Tarauacá e o Envira, onde parte da extração também pas-
sou a ser realizada, principalmente em seus baixos cursos. Segundo Onofre de Andrade
(1937), em início dos anos de 1930, a atividade madeireira ganhara maior monta no alto
Juruá e seus afluentes, com a operação de embarcações das firmas Eduardo Pereira &
Irmão e C. P. de Vris, donas de "serrarias mecânicas" em Manaus, J.G. de Araújo e A-
raújo Costa, esta de Itacoatiara. Os representantes dessas firmas haviam começado a
remunerar os patrões dos seringais pela retirada das madeiras da floresta e pelo seu "en-
ganjamento" em "balsas" ou "jangadas". As principais madeiras então demandadas eram
o agoano (mogno) e o cedro, que, beneficiadas em "pranchas", eram levadas, primeiro
pelos motores e depois pelos rebocadores, até Belém e Manaus, para dali serem expor-
tadas ao exterior e ao sul do país (Andrade, 1937).
No Município de Tarauacá, essas atividades foram vistas com inicial desconfiança
por parte dos seringalistas. Críticas foram veiculadas na imprensa contra os comprado-
res de peles e couros, que viajavam pelos seringais, "espalhando boatos", dizia-se, de
que a borracha tinha perdido totalmente seu valor e que se tornara mais conveniente aos
seringueiros dedicar-se à caça comercial, que podia ser feita com baixo custo ("com
munição comprada fiada no patrão"). Além dos baixos preços pagos pelos atravessado-
res, a iniciativa era vista como contrária aos interesses dos patrões, que adiantavam
158
"O commercio de pelles da Amazônia no mercado norte-americano" (Monteiro Lobato). A Reforma,
Ano XIII, Nº 599, 27/4/1930, p. 4; "O commercio de pelles da Amazônia no mercado norte-americano"
(Daniel C. Milles). A Reforma, Ano XIII, Nº 600, 4/5/1930, p. 4. Alegavam ambas as cartas que o proces-
so de secagem dos couros e peles ao sol, tradicionalmente utilizado na região, causava danos irreparáveis
ao produto final e prejuízos aos compradores dos diferentes ramos da indústria de peles nos EUA. Por es-
se motivo, os importadores se negavam a continuar adquirindo produtos oriundos da Amazônia brasileira,
a não ser por preços bastante inferiores aos alcançados por produtos exportados de outros países da região
(inclusive o Peru). Tanto Monteiro Lobato como o diretor geral da Associação da Indústria de Peles soli-
citavam ao governador paraense que transmitisse ao "povo do interior" recomendação para que os couros
e peles fossem beneficiados de maneira adequada, em locais à sombra, frescos e ventilados. Lobato aler-
tava que, caso essa mudança fosse lograda, os vários estados da Amazônia poderiam se inserir com van-
tagem no comércio internacional de peles, permitindo que o Brasil atingisse a mesma dimensão já lograda
pela Rússia e pelo Canadá e explorasse o mercado norte-americano, que, em 1928, importara 135 milhões
de dólares em peles para a confecção de diferentes indumentárias.
159
"As madeiras da Amazônia". A Reforma, Ano XIII, Nº 614, 17/8/1930, p. 1.
106
mercadorias na esperança de receber borracha, e, portanto, como mais um passo em di-
reção à total desarticulação da produção extrativa
160
. Novas críticas adviriam quando os
preços pagos pelos couros e peles foram reduzidos pelos representantes dos comprado-
res de Belém e Manaus, sob a alegação de que os produtos não atendiam às exigências
dos importadores estrangeiros
161
. As ponderações contrárias à viabilidade da atividade
madeireira em Tarauadestacavam as grandes distâncias dos centros compradores, os
altos custos com o transporte e os fretes e os baixos preços pagos pela matéria prima pe-
los rebocadores que trabalhavam para as firmas de Manaus e Belém. Apesar da reco-
nhecida diversidade de madeiras passíveis de aproveitamento nas florestas do municí-
pio, apenas a extração do mogno e do cedro, avaliava-se, compensaria as despesas ine-
rentes às atividades na floresta e ao transporte da produção até Seabra ou São Felipe, em
viagens perigosas, devido às correntezas, pauzadas e estreiteza dos rios
162
.
Ao longo da década de 1930, a extração de madeiras nobres passaria a ser realiza-
da no Alto Juruá e em seus afluentes, inclusive em suas cabeceiras, em território perua-
no, por representantes da Nicolaus & Cia. e outras casas comerciais, mobilizando, por
vezes, turmas de trabalhadores trazidos das cidades e, em menor escala, a mão de obra
de seringueiros e indígenas (Cerqueira, 1958: 167-68; Mendes, 1991; Almeida, 1992:
38; 41; Pimenta, 2002: 105-06; Allegretti: 2002: 108-09). Em Tarauacá, todavia, alcan-
çaria uma dimensão modesta.
À diferença da atividade madeireira, as caçadas para a venda de couros e "peles de
fantasia" rapidamente cresceriam nos seringais. Dados do Registro Fiscal de Tarauacá
indicaram, em 1930, a saída de 13.328 quilos de couros (7.253 de veado, 4.826 de caiti-
tu e queixada, 689 "diversos" e 551 de boi). Registros referentes aos meses de julho e
agosto de 1933 indicaram uma exportação de 6.442.000 quilos de "couros selváticos"
(contra apenas 44.255 quilos de borracha e 39.500 quilos de jarina)
163
.
Parte das caçadas
comerciais passariam a ser agenciadas pelos próprios patrões e arrendatários, para as
quais também arregimentavam trabalhadores, remunerados como diaristas, com dedica-
ção exclusiva. Nas transações nos barracões, os couros e peles passaram a ser contabili-
zados como crédito nas contas dos fregueses, o que incentivou muitos a dedicarem mai-
160
"A situação do nosso Município não é boa, mas os boateiros fazem-na pior". A Reforma, Ano XIV, Nº
651, 14/6/1931, pg. 1.
161
"Pró Acre abandonado". A Reforma, Ano XV, Nº 681, 29/5/1932, pg. 1; "Clamorosa situação do nosso
Município". A Reforma, Ano XV, Nº 682, 5/6/1932, pg. 1.
162
"As madeiras da Amazônia". A Reforma, Ano XIII, Nº 614, 17/8/1930, pg. 1.
163
"Receita Fiscal Federal do Tarauacá". A Reforma, Ano XIV, Nº 634, 18/1/1931, pg. 4; "Dados estatís-
ticos do Município de Tarauacá". A Reforma, Ano XVI, Nº 730, 24/9/1933, pg. 2.
107
or quantidade de dias a essa atividade e, assim, pagarem parte das mercadorias. A pro-
dução era vendida pelos patrões aos representantes das casas aviadoras e dos exportado-
res de Manaus e Belém
164
, bem como a atravessadores peruanos, que começaram a ope-
rar em locais como Puerto Esperanza, no alto rio Purus, e Puerto Breu, no alto rio Juruá,
quando essa atividade também ganhou dimensão expressiva no país vizinho.
Esse conjunto de atividades voltadas à subsistência e à comercialização, realiza-
das tanto pelos patrões como pelos seringueiros, permitiriam que a empresa seringalista
se mantivesse em funcionamento durante os piores anos de crise na economia da borra-
cha. Ao contrário do previsto pelo padre Tastevin em meados dos anos de 1920, e pela
Associação dos Seringalistas em começo da década de seguinte, os Municípios de Ta-
rauacá e Feijó (aí incluídos os rios Tarauacá, Murú e Envira
165
), e especificamente os se-
ringais, não sofreriam um significativo esvaziamento populacional.
164
No período 1930-37, com uma produção agregada de pouco mais de 439,7 mil toneladas, os couros e
peles atingiriam uma participação média de 3,98% do valor total das exportações brasileiras de "substân-
cias alimentícias" e "matérias primas", bastante superior aos da borracha (1,06%) e da madeira (0,89%)
(Brasil, Ministério da Agricultura, 1939: 30; 37), chegando a 5,0% em final da década, ocupando o quarto
lugar no valor total daquelas exportações, atrás do café, algodão e cacau. Aquela produção agregada in-
cluía, todavia, couros e peles oriundas das regiões sul, nordeste e centro-oeste, estando a produção de "a-
nimais silvestres" concentrada principalmente nos estados do Amazonas, Pará e Maranhão, e em menor
monta na região Nordeste. Em 1938, por exemplo, as peles de veado e animais "diversos" (dentre as de
maior expressão, os couros de porco caititu e queixada e as peles de gato maracajá) ocupavam o terceiro
lugar nas exportações do Pará, com destino, principalmente, aos Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra
(ibid, 1940, Vol. I: 239-43). No ano seguinte, os Estados do Amazonas e do Pará exportariam, conjunta-
mente, 1,2 milhão de quilos de peles e couros. O início da Segunda Guerra Mundial marcaria um período
de queda das exportações (ibid, 1940, Vol. II: 91-2). Os relatórios do Ministério da Agricultura não espe-
cificam para o período qualquer produção oriunda do Território do Acre, fato que pode ser explicado pela
sua canalização por casas aviadoras de Belém e Manaus, ficando as exportações contabilizadas nesses es-
tados, bem como pelo escoamento de considerável parcela da produção oriunda dos seringais acreanos
por compradores peruanos.
165
O Município de Feijó seria criado, a 21 de dezembro de 1938, junto com o Município de Brasília (de-
pois Brasiléia), pelo Decreto-Lei nº 968, de 21/12/1938, assinado pelo então Presidente da República, Ge-
túlio Vargas. Feijó seria desmembrado do Município de Tarauacá. Os dados dos Municípios de Tarauacá
e Feijó são aqui considerados de maneira agregada, de maneira a permitir uma comparação dos dados do
censo de 1940 (Brasil. IBGE, 1952) com os do anterior, de 1920.
108
Capítulo III - Outro ideário indigenista
Primeiras propostas para a "civilização" dos índios no Alto Juruá
As considerações de cunho mais geral do capítulo anterior, sobre a implantação e
o inicial funcionamento da empresa seringalista, sobre a dinâmica das atividades cau-
cheiras e sobre as "correrias", servirão de pano de fundo, a seguir, para a descrição e
análise de projetos de "civilização" e "catequese" dos indígenas propostos por diferentes
agentes governamentais e das ações que acabariam por ser implementadas pela Prefeitu-
ra do Departamento do Alto Juruá e a Comissão de Obras Federais no Território Federal
do Acre na segunda metade dos anos de 1900.
À diferença do período inicial das "explorações", da abertura e do povoamento
dos seringais, durante o qual as "correrias" foram a única iniciativa dos patrões e cau-
cheiros para fazer frente à "incômoda presença" dos grupos indígenas, um conjunto de
discursos, propostas e ações oficiais para a "catequese" e a "civilização" dos indígenas
começaria a ganhar forma com a gradual institucionalização da administração estatal no
Território Federal criado em 1904. Num contexto em que a empresa seringalista estava
consolidada na região e que a Prefeitura começava a ser implantada no Departamento
do Alto Juruá, parte das ações do poder público teriam por objetivo a integração e a
"pacificação" da região, fazendo cessar as "correrias", os ataques e saques aos seringais
e as "guerras intertribais", normatizar as relações dos patrões seringalistas com os indí-
genas, bem como dar início à sua "catequese" e "civilização".
Incisivas críticas às "correrias" e à "escravização" de índios constam em relatórios
produzidos, em meados dos anos de 1900, pelo Coronel Gregório Thaumaturgo de A-
zevedo, primeiro prefeito do Departamento do Alto Juruá, e pelo Coronel de Engenhei-
ros Belarmino Mendonça, chefe brasileiro da Comissão Mista Brasil-Peru de Reconhe-
cimento do Rio Juruá. Questionadas com base em valores humanitários e da justiça,
ambos denunciariam as concepções etnocêntricas inerentes à ideologia e aos discursos
davam sustento às "correrias", promovidas, segundo Azevedo, pelos "homens influen-
tes, responsáveis pela colonização".
Ambos condenariam esses discursos dos seringalistas, os quais, ao enfatizarem a
selvageria, a animalidade, a ferocidade e a "incapacidade de civilização" dos índios, e a
necessidade de "dar segurança" aos seringueiros, serviriam apenas para legitimar as
"correrias" e violências, com o intuito de se apropriar de seus territórios e das riquezas
naturais ali existentes, bem como de roubar e escravizar mulheres e crianças. Diferen-
109
temente, ao conceber os indígenas como "aborígenes", "representantes do primeiro es-
tágio da humanidade", "deserdados da civilização" (Azevedo, 1905), "primitivos povo-
adores", "genuínos brasileiros", "nossos patrícios" (Mendonça, 1989: 227-28), pela pri-
meira vez no Alto Juruá, dois representantes governamentais, engenheiros militares e
positivistas, defenderiam, por meios diversos, políticas de "catequese" e "educação" dos
indígenas, visando sua "proteção", "tutela" e definitiva incorporação aos "benefícios da
civilização".
Em trechos pontuais do "Relatório do Comissário Brasileiro", Belarmino Men-
donça
166
(1989) denunciaria as violências das "correrias", creditando-as, contudo, quase
que exclusivamente aos caucheiros peruanos; ao contrário do Prefeito Azevedo, não fa-
ria alusões mais incisivas à sua realização pelos brasileiros. Destacando a contribuição
dos indígenas ao povoamento do rio Juruá, como "guias e auxiliares dos pioneiros", e
pelos "ensinamentos" repassados aos "civilizados", Mendonça defenderia um "movi-
mento compensador de humanidade e simpatia" em relação aos "primitivos povoado-
res". Além de sua proteção contra as "correrias", proporia como requisito a atribuição
aos indígenas de "um cantinho, ao menos, dos seus vastos e seculares domínios, com
discriminadas divisas e direitos senhoriais definidos" (Mendonça, 1989: 228), sugestão
inovadora na região, numa conjuntura em que Thaumaturgo de Azevedo e os prefeitos
dos outros dois departamentos chamavam a atenção para a total inexistência de "terras
devolutas" no Território Federal, apropriadas por particulares para a abertura dos serin-
gais.
Como alternativa para atrair os indígenas ao trabalho e à "civilização", Mendonça
recomendaria que a "luz da instrução" fosse levada às malocas, "sem violência e quebra
de seus hábitos", e, sobretudo, que esse esforço estivesse dirigido aos mais jovens, "sem
segregá-los de todo das selvas em que nasceram e se criaram". Desaconselharia, por sua
166
Natural do Rio de Janeiro, em 1865, aos 15 anos de idade, como praça do Corpo de Voluntários da Pá-
tria, Belarmino Augusto de Mendonça Lobo foi enviado à Guerra do Paraguai, na qual, durante quatro
anos, participou de seis importantes combates. Então com a patente de alferes, seria agraciado, por seu
comportamento e bravura, com distinções outorgadas pelo Conde D’Eu, comandante em chefe das forças
militares brasileiras, pelo Ministério da Guerra e pela Câmara dos Deputados. De 1871 a 1878, já tenen-
te, freqüentaria a Escola Militar, graduando-se como bacharel em matemática e ciências físicas. Partici-
pou de comissões nos Estados de Mato Grosso, Paraná, Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro e,
sob encargo do Ministério das Relações Exteriores, tratou das negociações relativas às questões fronteiri-
ças com a Argentina. Em 1902, já coronel, seria nomeado chefe da Comissão Construtora da Ferrovia Lo-
rena-Benfica, cargo que exerceu até outubro de 1904, quando foi convidado pelo Barão do Rio Branco
para chefiar a Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Juruá, encargo que aceitou, apesar dos
protestos da família, pois estava, fazia três anos, em tratamento contra a tuberculose. De retorno do Alto
Juruá, em 1906, seria promovido a general de brigada e cinco anos depois a general de divisão. Nomeado
Ministro do Superior Tribunal Militar em 1912, se aposentaria, no ano seguinte, por motivo de saúde, já
como marechal. Morreu a 28 de maio de 1913 no Rio de Janeiro (Tocantins, 1988: 14-15).
110
vez, a interferência de agentes missionários, em iniciativas delegadas ou apoiadas fi-
nanceiramente pelo poder público, por implicarem, a seu ver, na entrada de "cerimônias
e práticas religiosas que tão poderosa influência exercem sobre imaginações supersti-
ciosas". Diferentemente, como política que acreditava "mais eficaz e talvez menos dis-
pendiosa", sugeriria submeter aos índios "a um brando regime militar, ministrado sem
rigor em aldeamentos próximos das linhas limitrophes que tanto nos convém guarne-
cer, sem aniquiliação dos liames das famílias e de habitos inveterados que possam ser
tolerados". E acrescentaria: "O pendor natural para todo apparato bellicoso lhes des-
pertará o gosto pelos exercícios militares que acabarão por polir-lhes os costumes e os
assimilar, principalmente a partir dos que não sahiram da meninice" (Mendonça, 1989:
228).
O Coronel do Corpo de Engenheiros Gregório Thamauturgo de Azevedo
167
ocupa-
ria o cargo de Prefeito do Alto Juruá de setembro de 1904 a fevereiro de 1905 e de de-
zembro de 1905 a julho de 1906. Seus dois relatórios semestrais, datados de 1905 e
1906, destinados ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores, relacionam e contextuali-
zam as ações adotadas para o inicial funcionamento da Prefeitura, a implantação da sede
municipal e os serviços básicos, a instauração dos poderes públicos (judiciário, policial
e fiscal), reproduzem a íntegra dos 38 decretos expedidos em sua gestão, bem como e-
lencam outras recomendações aos Ministérios de Viação e Obras Públicas, da Fazenda,
167
Nascido em Barras (PI) em 1853, formado em engenharia na Escola Militar do Rio de Janeiro, coman-
dou a 2ª Companhia da Fortaleza de São João, antes de participar como secretário, nos anos 1879-1883,
da Comissão Demarcadora de Limites do Brasil com a Venezuela. Em 1884-1886, no Estado do Amazo-
nas, exerceu o cargo de Comandante Geral das Fronteiras e Inspetor de Fortificações. Foi governador do
Piauí (1889-1890) e do Amazonas (1891-1892). Em 1895, como chefe brasileiro da Comissão Mista con-
vocada para determinar a cabeceira do rio Javari, ponto fundamental para, com base no Tratado de Aya-
cucho (1867), estabelecer a fronteira com a Bolívia, rebelar-se-ia contra a chancelaria, por não acatar o
traçado estabelecido, que a seu ver desconsiderava o uti possidetis brasileiro na "região contestada". A-
bandonaria a missão, que acabaria chefiada, dois anos depois, pelo Capitão Tenente da Armada Cunha
Gomes. Antes de seguir para o Alto Juruá, trabalhou como secretário do Ministério da Guerra (1898-
1901) e chefe da 2ª Seção da Diretoria Geral de Engenharia (1902-1904). Em seu relatório semestral de
1905, Azevedo enumera seus títulos e qualificações: Bacharel em Matemáticas e Ciências Físicas, Bacha-
rel em Ciências Jurídicas e Sociais, Engenheiro Militar e Coronel do Corpo de Bombeiros. Pediria exone-
ração da Prefeitura do Alto Juruá em julho de 1906, queixoso da falta de recursos e condições para exer-
cer adequadamente o cargo. Até 1910, serviria como Comandante Militar nas Regiões da Bahia e do Ma-
to Grosso e como Comandante da Brigada do Rio de Janeiro. Ao se reformar, com o posto de Marechal,
ocuparia a presidência da Cruz Vermelha Brasileira por quase uma década, bem como a Presidência da
Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, de 1914 até 1920. Faleceu na capital federal a 23 de agosto de
1921 (Castello Branco, 1959: 214; Prefeitura Municipal de Cruzeiro do Sul & Universidade Federal do
Acre, 1994: 115-16; Ranzi, 2004, 2004a). Positivista, admirador de Augusto Comte, teria sido objeto dos
seguintes comentários elogiosos de Cândido Mariano da Silva Rondon: "Tive sempre a impressão de que
o general Taumaturgo dispunha de vasta cultura, tanto no campo das ciências, como particularmente nos
de Economia Política, nas questões de Direito Público e Internacional, conhecendo tôdas as obras notá-
veis de literatura, sociologia, história e geografia" (Andrade, 1937).
111
da Guerra e das Relações Exteriores, de acordo com as atribuições específicas desses
órgãos.
Numa conjuntura em que a empresa seringalista estava consolidada no Alto Juruá,
mas que as "correrias" dos patrões e as represálias dos indígenas continuavam a ocorrer
em diferentes pontos do Departamento, Azevedo delinearia as linhas mestras de um pro-
jeto de "catequese" e "civilização" para os indígenas, parte de políticas mais amplas, que
visavam integrar o território, normatizar as relações de trabalho nos seringais, fixar o
homem à terra, fomentar as práticas agrícolas, diversificar as atividades produtivas e le-
galizar as atividades comerciais feitas nos rios pelos regatões.
Além da "escravatura branca" e da instituição do "tronco", que, segundo o prefei-
to, marcavam a dominação a que os seringueiros estavam sujeitos pelos patrões, seus
dois relatórios ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores condenariam a violência
das "correrias" contra os indígenas. "Os índios eram perseguidos, massacrados em suas
tabas, escravisados e vendidos", afirmaria, por exemplo, dentre as justificativas quando
da instituição do serviço policial (Azevedo, 1905: 20). A escravização a que faz menção
o prefeito diz respeito à transformação de mulheres e crianças, capturadas nas "correri-
as", em mão de obra aproveitada nos serviços domésticos nos barracões dos patrões,
mas também em "mercadorias" negociadas com seringueiros, que, chegados solteiros à
floresta, viam nessas transações uma alternativa concreta para constituir suas próprias
famílias e, assim, mudar significativamente de vida (Wolff, 1999; Pantoja, 2004).
A "catequese" das "tribos" indígenas, umas "meio civilizadas", outras "ainda bra-
vias", pelo aproveitamento do "trabalho intelligente e perseverante dessa raça perse-
guida", somada a ações de conscientização dos seringalistas ("dar luz a consciencias
ignaras") quanto aos benefícios passíveis de redundar daquela primeira alternativa, fo-
ram metas que Thaumaturgo de Azevedo estabeleceria para sua administração.
Em seu primeiro relatório informa que, com o objetivo de cumprir essa dupla mis-
são, encaminhara carta ao Arcebispo do Rio de Janeiro, Cardeal Arcoverde, "solicitando
a sua valiosa interferencia no sentido de serem contractados na Europa uns frades
Trapistas para a civilisação dos índios" (Azevedo, 1905: 22)
168
. Em seu relatório se-
168
Em 1989, após sua pioneira "desobriga" pelo Alto Juruá, Jean Baptiste Parissier (1898) já defendera a
ação missionária como vetor para a "civilização" dos índios. Segundo o padre espiritano, apesar da preo-
cupação do governo federal com relação às "perseguições" sofridas pelos índios e da existência de leis
promulgadas para sua proteção, a total ausência de meios para garantir que estas fossem respeitadas nos
seringais, devido à inexistência de um policiamento eficaz, levava os "civilizados" a terem total certeza da
impunidade ao realizarem as "correrias". Como alternativa a essa ausência de qualquer presença estatal,
Parissier defenderia a "política adotada pelo governo em outras regiões": o recrutamento de missionários
112
guinte, na seção "A catechese dos índios", arrolada nas recomendações ao Ministério de
Viação e Obras Públicas, Azevedo elaboraria diagnóstico mais preciso da localização
dos índios, "mansos, em sua maioria", e explicitaria outras iniciativas, em curso e pla-
nejadas, para "trazel-os ao nosso convívio, aproveitando-os na agricultura, em que são
peritos, e nos transportes" (Azevedo, 1906: 67). Neste momento, o fato de serem quali-
ficados como "mansos" não parece implicar que esses índios já estivessem incorporados
como mão de obra nos seringais, mas, sim, que não mantivessem conflitos com os "civi-
lizados" ou representassem ameaça, na forma de ataques e saques.
Para tal, pleitearia do Ministério de Viação e Obras Públicas recursos financeiros
para a abertura de um varadouro entre os rios Juruá e Tarauacá, assim como de outros,
atravessando os rios Murú, Envira e Purus, até alcançar a cidade de Sena Madureira (se-
de do Departamento do Alto Purus). Aberto o primeiro varadouro, e contando com a
coordenação dos frades trapistas, ou de agentes religiosos de outra congregação, essa
"missão civilizadora" permitiria, segundo Azevedo, "melhorar muito a sorte desses an-
gustiados representantes do primeiro estágio da humanidade. Acabar-se-ão as diutur-
nas provocações de umas e outras tribos, próprias do período histórico em que se vivia
da guerra para a guerra, cedendo o lugar à era do labor agrícola e industrial" (Azeve-
do, 1905: 68).
Para, simultaneamente, combater a "escravidão" de indígenas e financiar as ações
de "catequese" da Prefeitura, Azevedo promulgaria, em 2004, o Decreto Nº 15, de 15 de
dezembro, instituindo e regulamentando a "Lei do Trabalho". O decreto estipulava um
prazo de seis meses para que os patrões requisitassem a tutela dos menores de idade, de
ambos os sexos, índios ou órfãos, que tivessem em seu poder. A partir de então, trimes-
tralmente, por adiantado, deveriam depositar na tesouraria da Prefeitura uma contribui-
ção, "a título de salário", para a formação de um pecúlio a ser repassado aos tutelados
quando de sua emancipação, ao atingirem a maioridade. O prefeito assim justificaria es-
sa medida:
"É sabido que nossas leis equiparam os índios aos menores. Entendi que a Prefei-
tura devia protegel-os diretamente, ressalvando-os da escravidão em que vegeta-
vam em alguns seringais. E, assim, pela Lei do Trabalho, art. 37, mandei que os
de diferentes ordens, e seu apoio, inclusive com subvenções, para a obra de "predicação do evangelho".
Consideraria este o único instrumento possível de impedir que os "civilizados" continuassem a perpetuar
atos de violência contra os indígenas. Com relação à "civilização" destes, acreditava que a ação missioná-
ria seria capaz de torná-los "se não iguais aos europeus, ao menos auxiliares muito úteis". Em pouco
tempo, diz, poderia o índio tornar-se "um excelente cristão e, por isso mesmo, um excelente cidadão e um
poderoso meio de prosperidade para a sua pátria". Após a "desobriga", Parissier confessaria ter se senti-
do "muito honrado" por ter batizado 12 indígenas numa barraca em que havia somente "índios cristãos".
113
patrões contribuíssem mensalmente com 5$000 por cada índio menor de 10 anos
que tivessem em seu poder e com 10$000 por cada um também d'ahi até a idade
em que nós outros somos declarados maiores" (Azevedo, 1906: 68-69).
Instruções específicas seriam enviadas pelo prefeito aos juizes de paz sediados nos se-
ringais, para que providenciassem o imediato registro de indígenas que estavam "inde-
vidamente" sob posse de proprietários ou de seringueiros.
Em seu segundo relatório, ao fazer uma introdução dos principais avanços de sua
administração, o prefeito informava que "os indígenas, d’antes ferozmente perseguidos
à bala, estão sob o patrocínio das autoridades e os menores sob tutela de pessoas qua-
lificadas" (Azevedo, 1906: 1). Até meados de 1905, a Prefeitura recolhera, "principal-
mente no vale do rio Tarauacá", a soma de 6:075$250 de patrões que haviam requisita-
do a tutela de menores indígenas. Pelo Decreto 36, de 16 de junho de 1906, que instituiu
e regulamentou a Caixa Econômica Juruaense, o prefeito, com essas contribuições dos
patrões, criou a "Caixa dos Índios", constituindo um fundo que esperava reverter em a-
ções destinadas "ao auxílio da catequese e ao custeio de um instituto de instrução ofici-
nal dos indígenas" (ibid: 68-9). O regulamento da Caixa dos Índios previa ainda que
parte dos recursos para a fundação e custeio do instituto adviria dos depósitos efetuados
em nome de índios que falecessem antes de atingir a maioridade e, portanto, de sua e-
mancipação (ibid: 156).
O projeto de "catequese" delineado pelo primeiro prefeito do Departamento do
Alto Juruá incorpora categorias comuns na região, dentre elas, "selvagens" ("bravios"),
"semi-civilizados" e "catequizados" ("civilizados" e "mansos"). Essas categorias sinali-
zam a existência de diferentes modalidades de relacionamento dos indígenas com a "ci-
vilização" dos seringais. Quando ordenadas em seqüência, traçam um caminho "natu-
ral", e almejado, para sua "integração", permitindo, na concepção de Azevedo, ancorada
no ideário positivista, que passassem de uma "etapa representativa do primeiro estágio
da humanidade" a outra marcada pelo compartilhamento dos costumes e valores da "ci-
vilização".
Para tal, o projeto de Azevedo privilegiaria duas principais diretrizes: a primeira,
protegé-los das "correrias" e da "escravidão" a que estavam submetidos nos seringais,
tendo como pré-requisito a ligação do interior com varadouros e sua "catequese" por
missionários católicos. A segunda, integrá-los ao trabalho agrícola e industrial, forne-
cendo, para tal, a necessária "educação". Como resultado da plena incorporação dos in-
dígenas aos "hábitos do trabalho", aproveitando sua vocação "natural" de bons agricul-
114
tores, e instruindo-os em novos ofícios, ganharia a própria sociedade, mais humanitária
e justa, que o Prefeito pretendia construir no Departamento.
Foi no sentido de favorecer essa incorporação dos indígenas ao trabalho nos se-
ringais e a regulação de suas relações com os patrões que, por meio da Lei do Trabalho
e da Caixa dos Índios, passou a ser normatizada e instrumentalizada a instituição da tu-
tela, apoiada também no funcionamento do Juizado de Órfãos
169
. À diferença do que de-
pois viria a marcar o discurso do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Tra-
balhadores Nacionais (SPILTN), este projeto não pressupunha como principal diretriz
um exercício monopolista da tutela sobre os índios, a cargo de órgãos e de agentes do
Estado nacional. O "gozo dos benefícios redentores da civilização", como afirma Aze-
vedo, resultaria principalmente de relações personalizadas dos indígenas, crianças e me-
nores, com "particulares", os seringalistas, permitindo sua transformação de "escraviza-
dos" em "tutelados". Seriam essas relações, normatizadas pela tuitela, que, por outro la-
do, contribuiriam para o financiamento de outras ações voltadas para a "catequese", es-
pecialmente a "educação para o trabalho", implementadas pela Prefeitura.
À semelhança da proposta esboçada por Belarmino Mendonça, o projeto de "cate-
quese" e "civilização" do primeiro prefeito do Juruá também contemplaria medidas para
a garantia de direitos territoriais aos "aborígenes", com seu "aldeamento em núcleos co-
loniaes", onde seriam "civilizados" "pela tolerância, pela instrução e pelo trabalho"
(Azevedo, 1905: 90). Essas tarefas seriam atribuição da Diretoria de Comércio, por
meio da seção de "Immigração e Colonisação, Catechese e Civilisação dos Índios", cri-
169
Com base em pesquisas no Fórum de Cruzeiro do Sul, referentes ao período 1904-1945, informa Wolff
(1999: 184), poucos teriam sido os pedidos de registro de tutela de indígenas formalizados no Juizado de
Órfãos: doze foram por ela localizados, nove relativos a meninos e três a meninas (com idade média de
8,8 anos); seis pedidos foram feitos de 1905 a 1907 e os outros seis até 1912. Levando-se em conta dados
produzidos pelo juiz federal Castello Branco (1930: 679-80), esses pedidos representariam 12% dos 100
processos relativos a questões orfanológicas que tramitaram naquele Fórum de 1904 a 1912. Wolff desta-
ca, todavia, que meninos "pegos" em correrias, e mal tratados por seus captores ou por aqueles que os ti-
nham sob seu poder, teriam sido encaminhados pelo Juizado ao chefe da Comissão de Obras Federais,
Engenheiro Antonio Manuel Bueno de Andrada, para serem incorporados à "escola profissional" que a
Comissão manteve em Cruzeiro do Sul em 1907-1908. É o que se depreende de carta, de 23 de julho de
1907, assinada pelo Juiz de Órfãos, Gustavo Farnese, encaminhada ao advogado, jurista e então Presiden-
te da República, Afonso Pena, ao relatar providências que adotara em relação aos índios: "Preocupa-me a
sorte deles. Escravizá-los, aproveitar os seus serviços e até matá-los são fatos contados freqüentemente
aqui (...) Quanto a índios menores que se acham em poder de pessoas, que não os tratam com carinho,
convenientemente e com amor deliberei entregá-los ao Dr. Bueno a fim de educá-los e empregá-los nas
oficinas, onde adquirem uma aprendizagem proveitosa e os distraem. Eles gostam de maquinismos. Os
que ali aprendem folgadamente são chamariz de outros. Cada um tem a sua solda, alimento, vestuário,
médico, etc." (apud Wolff, 1999: 182-83). A análise das principais linhas de atuação da Comissão de O-
bras Federais com relação aos indígenas, as quais, em linhas gerais, dariam continuidade às políticas ini-
ciadas por Thaumaturgo de Azevedo, será feita adiante e retomada no Capítulo V.
115
ada pelo Decreto 3, de 14 de setembro de 1904, que fixava os limites do Departa-
mento do Alto Juruá e estabelecia sua divisão administrativa, civil e judicial.
Cabia ainda a essa Seção a introdução de imigrantes, "consagrados exclusivamen-
te à agricultura, à indústria pastoril e à piscicultura", bem como o incentivo do povo-
amento pela propaganda, ao expor em "publicações periódicas as condições climatéri-
cas, riquezas naturaes e garantia das leis sobre os colonos". Também faziam parte da
Diretoria de Comércio os serviços referentes às terras e minas, viação e obras públicas,
bem como à agricultura e indústrias, artes e manufaturas. O serviço de "catequese e ci-
vilização dos índios", como defendia o prefeito, estava inserido, portanto, num plano
mais amplo de implantação do Departamento, que incluía o reconhecimento e integra-
ção do território, com abertura das vias de comunicação (dentre elas as estradas de ro-
dagem e ramais) e a diversificação das atividades produtivas, até então centradas quase
que exclusivamente na produção de borracha, por meio do incentivo a outras formas de
extração florestal, à agricultura e à criação de animais (Azevedo, 1905: 89-90)
À diferença da proposta de Belarmino Mendonça, Thaumaturgo de Azevedo inici-
almente privilegiaria a atuação dos missionários católicos como protagonistas nas ações
de "catequese" nos aldeamentos. Apesar de sua iniciativa junto ao Cardeal Arcoverde,
essa opção fracassaria, com a impossibilidade de recrutamento dos religiosos, trapistas
ou de outras ordens. A prioridade vertida à implementação dessas ações ao longo do va-
radouro entre os rios Juruá e Tarauacá, em uma zona considerada "fronteiriça", de suma
importância para os interesses econômicos e para um efetivo controle estatal sobre a
parte mais oriental do departamento, onde quantidade considerável de malocas indíge-
nas estava situada e os confrontos com os seringueiros eram recorrentes, marcaria, por
sua vez, certa homologia entre essas duas pioneiras propostas oficiais para a "catequese"
e a "civilização" dos indígenas no Alto Juruá. Nenhum "núcleo colonial" seria implan-
tado nos anos seguintes. Mas, a Comissão de Obras Federais, como será visto adiante, e
no Capítulo V, priorizaria ações para a "fiscalização" e o "policiamento" dos índios, em
regiões situadas ao longo do traçado da estrada, visando promover a anunciada "pacifi-
cação" e "integração" da região.
Força policial contra as "correrias"
Se a incorporação dos indígenas às atividades produtivas nos seringais foi uma
das metas que fundamentava o projeto de "catequese" e "civilização" do Prefeito Thau-
maturgo de Azevedo, outras medidas seriam por ele tomadas para buscar r fim às
116
"correrias" e às violências promovidas por seringalistas e caucheiros. Em 1905, o tenen-
te do Exército Luiz Sombra, na qualidade de delegado auxiliar, seria destacado para as-
sumir a administração do policiamento no vale do rio Tarauacá, região que, apesar da
criação da Villa Seabra naquele ano, permanecia isolada da sede do Departamento, sem
qualquer presença mais efetiva do poder público. Nas instruções anexas à sua portaria
de nomeação, ressalta Sombra (1913), eram-lhe conferidos, dentre outras atribuições,
"plenos poderes para a repressão das correrias de índios que se faziam naquele rio".
Em janeiro de 1913, Sombra publicaria no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro,
o artigo "Os Cachinauás. Ligeiras notas sobre seus usos e costumes", fruto das observa-
ções feitas durante duas viagens realizadas, em 1905-1906, a malocas Kaxinawá situa-
das no rio Iboiaçú. Escrito em 1911, o artigo atendia a uma solicitação de seu conterrâ-
neo e amigo, o historiador e lingüista João Capistrano de Abreu, para servir de "esclare-
cimento" ao estudo "Rã-txa hu-ni-kui: a língua dos Caxinauás do rio Ibuaçú, affluente
do rio Murú (Prefeitura de Tarauacá)". Construído a partir de informações fornecidas
por dois jovens Kaxinawá, Borô e Tuxinin, trazidos por Sombra
170
, o livro de Abreu te-
ve sua primeira edição publicada em 1914 pela Livraria Briguiet, e inclui mitos, "anedo-
tas", relatos sobre diferentes aspectos da organização social e da cultura, além de dois
"vocabulários" (brasileiro-caxinauá e caxinauá-brasileiro)
171
.
170
Em seu texto, Sombra (1913) comenta sobre o destino de três de "seus caboclos", trazidos após servir à
Prefeitura do Alto Juruá: "Um deles, Vicente Borô Penna, afilhado do saudoso Presidente Dr. Affonso
Penna, e que se casou a 28 último, é uma estimada e distinta praça do Corpo de Bombeiros, já tendo tido
a satisfação de ver seu retrato publicado em alguns jornais desta capital, por atos de heroísmo pratica-
dos na extinção de um incêndio; é muito econômico e já tem 500 e tantos mil réis numa caderneta do Bri-
tish Bank, onde vai todos os meses depositar as sobras de seu soldo. Outro, que entreguei ao Sr. General
Thaumaturgo [de Azevedo -MPI], é hoje um bravo marinheiro nacional, tendo cursado a escola de a-
prendizes da Ilha das Cobras; e o mais inteligente deles é o meu pagem e afilhado Luiz de Gonzaga Tu-
xinin, que também é o mais instruído e educado dos três, sabendo todos ler, escrever e contar". Castello
Branco (1950: 61) esclarece que, em 1907, após servir no Território do Acre, Sombra trouxera consigo
seis Kaxinawá: quatro homens e duas mulheres. Quatro décadas depois, apenas dois estavam vivos: uma
mulher, que "servia na casa" da viúva de Sombra, e um homem, que "viajou muito pelo interior com o
general Rondon, onde se casou com uma filha de um cacique, preferindo, contudo, voltar à civilização,
trabalhando, atualmente, no comércio", na cidade do Rio de Janeiro.
171
Segundo Sombra, esta obra de Capistrano de Abreu foi "construída com material fornecido pelos meus
caboclos Borô e Tuxinin (...), e que lhes foi arrancado partícula por partícula, colhidas dia a dia com a
incansável, inteligente e laboriosa constancia, dedicação e perseverança que só os sábios do quilate da-
quele nosso eminente ethnographo, patriota e philologo sóem ter" (Sombra, 1913). Sobre o processo de
trabalho com Borô e Tuxinin, ver Abreu (1941: 5-10) e as metodologias utilizadas na construção dos dois
vocabulários (1941: 525; 549); e sobre os créditos a atribuídos a Borô e Tuxinin como "co-autores" e as
considerações críticas de Capistrano de Abreu sobre as implicações de ter construído sua obra com base
em depoimentos de apenas dois informantes, de pouca idade (1941: 627-628). Borô tinha cerca de 20 a-
nos quando começou o trabalho com Abreu, três dos quais passara trabalhando em seringais e em estadias
em Manaus (onde, conforme informa Sombra (1913) fora batizado pelo então Presidente da República,
Afonso Penna) e no Ceará. Com 13 anos, Tuxinin vivera por quatro anos em Manaus e em Maranguape,
no Ceará, antes de dar início ao seu trabalho com Abreu.
117
Os escritos de Capistrano de Abreu (1976 [1911]; 1941 [1914])
172
e de Luiz Som-
bra (1913) constituem os primeiros estudos etnográficos sobre os Kaxinawá, ambos cen-
trados no grupo de famílias então estabelecido no rio Iboiaçú. Não é pretensão aqui es-
miuçar esses textos, mas deles destacar dados reveladores dos padrões de reorganização
social e territorial desses Kaxinawá que, após serem acossados pelas "correrias", come-
çavam a manter relações com patrões, seringueiros e regatões. É objetivo, também, a-
presentar as recomendações de políticas feitas pelo tenente Sombra para a "proteção"
dos indígenas, considerando suas particularidades, e suas homologias e diferenças, face
ao projeto de "catequese" delineado pelo Prefeito Thaumaturgo de Azevedo, seu superi-
or imediato, e às propostas feitas por Belarmino Mendonça. Por fim, permitir, no Capí-
tulo V, tecer contrapontos com a situação de outros grupos Kaxinawá que, à mesma é-
poca, começavam a ser incorporados nos seringais do médio rio Tarauacá, pelas inicia-
tivas de dois "catequizadores de índios", no âmbito de ações implementadas pela Prefei-
tura do Alto Juruá e a Comissão de Obras Federais no Território do Acre.
Das cerca de 20 "tribos" que pessoalmente diz ter conhecido, ou sobre as quais
obteve informações, durante sua permanência no Vale do Tarauacá, Sombra (1913) des-
taca que a Kaxinawá era a mais "notável", "por sua índole laboriosa e pacífica", e por
ser a mais numerosa em todo o Alto Juruá. Após sofrerem correrias freqüentes nos anos
anteriores, e serefugiarem nas "terras firmes aos fundos dos seringais", as principais
malocas Kaxinawá estavam então concentradas no Riozinho da Liberdade ("onde sof-
freram grandes correrias até 1906"), no alto rio Gregório, bem como nos afluentes do
alto rio Tarauacá, entre os altos rios Envira e Murú, especialmente no rio Iboiaçú
173
.
Em seu texto sobre o rio Murú, o padre Tastevin, por sua vez, informa que à época
da chegada dos "cristãos" a esse rio, em 1890, habitava nas cabeceiras um conjunto de
grupos indígenas, a maioria falante de "dialetos" Pano, sendo o mais importante o dos
Kaxinawá. O Iboiaçú, afluente da margem direita do Murú, informa Tastevin (1925:
172
Em dezembro de 1911 e janeiro do ano seguinte, Abreu publicara em três edições do Jornal do Com-
mercio textos sobre os mesmos Kaxinawá, posteriormente republicados pela Sociedade Capistrano de A-
breu em coletânea de ensaios e estudos do autor, com os títulos "Os Caxinauá" e "A língua dos Caxinauá"
(Abreu, 1976 [1938]). A publicação de "Rã-txa hu-ni-kui" estava também prevista para 1911, mas um in-
cêndio nas dependências da Imprensa Nacional consumiu boa parte dos originais, então no prelo.
173
Essas informações de Luiz Sombra coincidem, apenas em parte, com aquelas relacionadas no segundo
relatório de Thaumaturgo de Azevedo, de 1906, que indicavam a existência de malocas Kaxinawá nos ri-
os Acuraua, alto Tarauacá, Murú e seus afluentes (Iboiaçú e Humaitá) e alto Envira (Mendonça, 1989:
108; Castello Branco, 1950: 15), mas não fazia qualquer menção àquelas situadas nos altos rios Gregório
e Liberdade, habitadas, segundo o Prefeito, por outros índios, os "mais irriquietos do Alto Juruá". No vale
do Tarauacá, além dos Kaxinawá, Azevedo havia ressaltado a presença de agrupamentos de índios Kapa-
nawa, Katukina, Kontanawa, Kulina, Jaminawa, Marinawa e Tuxinawa (Mendonça, ibid).
118
411), constituía o principal local de morada dos Kaxinawá antes da chegada dos serin-
gueiros. Estes teriam sido recebidos inicialmente sem hostilidades, mas massacres e
"guerras sem perdão" teriam início por volta de 1898, primeiro promovidas pelos cau-
cheiros peruanos e depois pelos seringueiros (1925: 419).
De acordo com as informações de Borô, cinco "aldeias" ("maö")
174
, cada uma che-
fiada por um "tuxaua" ("xanõe ibô")
175
,
estavam localizadas "não longe" das margens do
Iboiaçú pouco antes das primeiras "pelejas" com os caucheiros "peruanos", chegados do
rio Envira (Abreu, 1941: 53-4; 1976: 204). Às "correrias", os Kaxinawá teriam respon-
dido com roubos, a destruição de casas e a morte de caucheiros, quem, amedrontados,
optariam por se retirar. Antevista por um "dauya"
176
, a chegada dos "brasileiros" à foz do
Iboiaçú, onde deram início à construção de casas, resultaria inicialmente em fugas dos
Kaxinawá. Bem tratados pelos seringueiros, que, à diferença dos caucheiros peruanos,
consideraram "bons", os Kaxinawá "amansaram", começaram a "trabalhar para eles",
ajudando-os a derrubar e a plantar seus primeiros roçados, e depois se dedicando à ex-
tração de caucho, que trocavam por espingardas, roupas, machados e terçados (1941:
59-62).
Com base em observações de suas viagens, Luiz Sombra ressalta a permanência
dos "cupichauas", ou "malocas", como unidades coletivas de moradia e organização so-
cial. Construídas em meio aos roçados de terra firme, haviam sido deslocadas, mais re-
centemente, para as "margens dos mais reconditos igarapés, no recesso das mattas",
onde o risco de "correrias", dos brasileiros e peruanos, era menor.
Cada maloca constituía local de habitação de um grupo de "famílias", sob a chefia
de um "tuxaua". A maloca conformava o centro de um território comum, onde estavam
distribuídos os roçados, abertos e plantados coletivamente, mas zelados "individualmen-
te" por cada família, áreas de caça, pesca e coleta. As referências à existência de "maio-
riais" indicam que as "famílias" agrupadas numa mesma maloca tinham seus próprios
chefes, responsáveis pela mobilização dos seus familiares, tanto em atividades próprias
174
O termo "aldeia" é tradução, nos relatos apresentados por Abreu, de "maö". "Mae" é o termo hoje uti-
lizado pelos Kaxinawá para, dependendo do contexto, definir sua aldeia, seu território e sua terra indíge-
na.
175
O termo xaneibu é hoje usado pelos Kaxinawá para designar o principal chefe, a "liderança", o chefe
de uma família extensa ou outras pessoas com cargos de mando em domínios específicos de trabalho co-
letivo. No passado, na situação de seringal, esse termo foi utilizado também para fazer referência aos pa-
trões.
176
No vocabulário caxinauá-brasileiro, este termo é traduzido como curador, feiticeiro, envenenador (A-
breu, 1941: 564). Atualmente, os Kaxinawá do rio Jordão categorizam com esse termo a aqueles que pre-
param "remédios da mata" e os utilizam em tratamentos terapêuticos.
119
como naquelas organizadas pelo "tuxaua". É a seguinte a descrição feita por Sombra
desta habitação coletiva, que em certo trecho denomina de "barracão":
"O copichaua consiste em um longo galpão coberto de palha, muito alto no meio
e descaindo em duas águas até pouco mais de um metro acima do solo, sem pare-
des nem resguardos laterais, se podendo entrar neles em pé pelas extremida-
des e sendo preciso inclinar o corpo para se poder sair pelos lados. Não tem divi-
sões internas, sendo seu interior comum a todos os moradores; cada família, po-
rém, tem seu fogo, seus utensílios, suas redes, suas espigas de milho e seus mo-
lhos de mondobi nos lugares previamente designados pelo tuchaua e que ficam
assinalados pelos esteios e vigas que sustentam o teto. O copichaua é sempre le-
vantado no meio do roçado, no lugar em que o terreno é mais elevado, e os roça-
dos são abertos nas terras firmes à margem de algum rio ou igarapé" (Sombra,
1913)
Nos relatos de Borô e Tuxinin, as "aldeias" são retratadas como aglomerados de
grande quantidade de "casas". A primeira impressão é que, nesse contexto, as "famí-
lias", sob o comando de um "tuxaua" principal, haviam adotado um padrão disperso de
habitação, morando em "casas" distribuídas em um território coletivo. A alusão ao esta-
belecimento de "casas" em locais mais afastados, às visitas de dormida a outras "casas",
aos convites feitos pelo "tuxaua" ou por chefes de famílias para que homens e mulheres
se juntassem em atividades coletivas e à chegada de famílias à aldeia para eventos ritu-
ais e festas, parecem confirmar essa impressão. Abreu, contudo, equipara casa e aldeia,
por meio de uma definição bastante semelhante à de Sombra para o cupichaua:
"Casa e aldeia são a mesma coisa: um grande galpão sem divisões internas, em
que todos se acomodam: a habitação do tuxaua no centro é assobradada. No cô-
modo de cada família há armadores para as redes, giraus para as louças, para as
cestas e peças moqueadas, varas de que penduram espigas de milhos ou raízes de
mudubim, potes com água, pratos, panelas e cozinha" (Abreu, 1976: 210-11).
Nos relatos de Borô e Tuxinin, a formação da uma nova "família" acontecia pelo
casamento entre primos cruzados bilaterais (Abreu 1941: 120-21), ficando mais comu-
mente o casal junto aos pais da mulher. Contando com o assentimento prévio dos pais e
a aprovação do "tuxaua", a união se consolidava pela harmoniosa convivência do casal.
Os relatos descrevem várias das atividades realizadas por homens e mulheres em suas
respectivas "casas": os primeiros, na abertura, plantio e limpeza dos roçados, na caça,
pesca, tirada de lenha, produção de armas; e as mulheres na colheita dos legumes dos
roçados, confecção das comidas, zelo das casa e das crianças, abastecimento de água,
fabricação das louças de cerâmica, fiação do algodão, a produção de tecidos, redes, tin-
tas e enfeites. E reforçam a complementaridade dessas atividades, tanto no cotidiano (na
comida feita pelas mulheres dos legumes plantados pelo homem e da caça e da pesca
120
trazidas por este, em tarefas conjuntas nos roçados e nas pescarias, que permitiam não
só alimentar a própria casa, mas também distribuir alimentos e comidas entre parentes, e
convidá-los a comer), como em momentos rituais, por exemplo, na preparação e reali-
zação das festas.
Os textos de Sombra e Abreu fazem referência a diferentes formas de comando
exercidas pelo tuxaua. Sua participação é destacada na coordenação de festas destinadas
"à abertura de um roçado, à mudança da maloca, à declaração de guerra, aos funerais
de algum chefe ou maioral" (Sombra, 1913)
177
, nas cerimônias em que as crianças comi-
am nixpu pela primeira vez para tingir os dentes (nixpupimá), furavam o nariz e o lábio
inferior, na festa "fogo novo", na mobilização das "festas da paxiúba" (katxanawa)
(A-
breu, 1941: 100-111)
,
no arranjo dos casamentos (e na atribuição de mais de uma mu-
lher ao homem considerado "trabalhador"), na organização de caçadas e pescarias cole-
tivas e na convocação de expedições guerreiras (Abreu, 1941: 515).
Dizem Borô e Tuxinin que o "tuxaua" "mandava" fazer, convocando e delegando
tarefas nas atividades coletivas, "mandava chamar", "convidava", integrantes de outras
"casas", "nossa gente outra", para que se juntarem nessas atividades e festas. Mandava
"suas gentes", "seus filhos" ("baköbô", ou bakebu), "bem viver", "bem morar", aconse-
lhando-os a dedicar-se aos trabalhos, não se zangar ou brigar entre si, tratar bem seus
respectivos conjugues, não cometer adultério, o roubar. Do respeito a esses preceitos
dependia não sua própria posição de liderança, mas também o "bem viver" de "sua
gente", a possibilidade de continuarem morando juntos. Da mesma forma, a mulher do
tuxaua desempenhava papel relevante junto às demais mulheres, aconselhando-as a tra-
balhar, a exemplo dos homens, dedicando-se confeccionar tecidos e louças, preparar
comida para seus maridos, zelar suas casas e filhos (Abreu, 1941: 515-20).
177
Sombra faz alusão às vestimentas utilizadas pelos Kaxinawá, e especialmente pelo tuxaua, durante
uma festa que parece ser a do txirin (do gavião), além de fazer alusão descrever aquela que considera a
festa "mais curiosa", os rituais funerários feitos após a morte de algum "chefe ou parente notável". Após
longas sessões de choro, diz, os Kaxinawá, consumiam os restos mortais, ao moquear o cadáver e em se-
guida beber na caiçuma os ossos torrados. Borô, por sua vez, nenhuma menção faz ao consumo do cadá-
ver daqueles mortos de causa natural. Para que o espírito do morto fosse embora e deixasse seus parentes
em paz, relata que aos choros seguia-se o enterro do corpo e de todos os seus pertences (Abreu, 1941:
142-44). Sombra é o primeiro autor a levantar a questão se os Kaxinawá deveriam ou não ser considera-
dos canibais. Diz Sombra a este respeito: "A vista dessa descrição não vão pensar os leitores que os ca-
chinauás sejam canibais. Eles só devoram o cadáver dos chefes e parentes notáveis por um dever ou pre-
ceito religioso, não matam para comer nem devoram os inimigos que matam; ao contrario, respeitam e
enterram aos chefes inimigos mortos em combate". O "necrofagia" ou o "endo-canibalismo", ou dos Ka-
xinawá seria retomado em textos etnográficos do padre Tastevin (1925, 1925a, 1925b), mencionado em
relatórios de agentes de governo (López, 1925; Silva, 1929; Carvalho, 1929), e tratado em análises etno-
lógicas mais atuais (Montag & Torres, 1975; Kensinger, 1995; Erikson, 1986; McCallum, 1991, 1996,
1999; Montag, 2002; Lagrou, 2007).
121
Uma série de outras situações relatadas por Sombra permite vislumbrar formas de
relacionamento dos Kaxinawá com os seringueiros e outros grupos indígenas vizinhos.
Nas malocas que haviam estabelecido "relações pacíficas" com os seringueiros, os
roçados eram derrubados e plantados com menor dificuldade, pois haviam adquirido
instrumentos metálicos que substituíam com "grande vantagem" os machados de pedra
e as cascas de jabuti antes usadas. Miçangas trocadas com regatões enfeitavam homens
e mulheres.
Outras informações, todavia, indicam que essas "relações pacíficas" não estavam
generalizadas. Para desorientar pessoas estranhas, cada maloca tinha duas entradas e
dois varadouros, um de acesso e outro de retirada, ambos vigiados por "vedetas" que,
por meio de sinais, comunicavam a eventual chegada de indesejados. Apesar do grande
tamanho dos roçados (alguns com dois quilômetros quadrados, diz Sombra), e da incor-
poração de certas espécies cultivadas pelos seringueiros, certas palmeiras (por exemplo,
a pupunha) não eram mais plantadas com a mesma abundância, por temor de serem ex-
pulsos a qualquer momento de suas moradias. Seringueiros seguidamente acusavam os
Kaxinawá de utilizar "venenos" (especialmente o "tingui") em suas pescarias, com in-
tenção de causar epidemias de "beriberi, febres e outras doenças" a aqueles que os per-
seguiam
178
.
Formas ritualizadas de relacionamento estabelecidas pelos Kaxinawá com Som-
bra, durante certas festas e outros eventos, dão indicações sobre as decisões tomadas pe-
lo delegado nestas ocasiões, para se apresentar e fazer frente às expectativas geradas por
sua presença, bem como sobre as atitudes dos indígenas, especialmente dos "tuxauas",
ao reconhecê-lo como "autoridade", passível de oferecer-lhes alguma "proteção". Som-
bra informa, por exemplo, que a uma festa compareceu "fardado com as insígnias do
primeiro uniforme", tendo sido recebido inicialmente no varadouro do roçado por "di-
versos tucháuas e maiorais, que acolheram com ruidosa satisfação ao "Papai Tenente",
ou tuchaua dos rios, como elles me chamavam", e, à continuação, servido pelas mulhe-
res com caiçuma e convidado pelos "tuxauas" a seguir para a maloca.
Ao comentar sobre os nomes usados pelos Kaxinawá, Sombra revela iniciativas
contextuais que, a seu ver, constituíam tentativas dos índios de evitar novas violências
dos seringueiros e caucheiros. Aqueles com "maior contato" com os seringueiros, diz,
178
Queixa semelhante dos "civilizados", sobre as doenças causadas pelo uso de venenos para a pesca, se-
ria também ouvida, cinco anos depois, pelo Auxiliar do SPILTN, Máximo Linhares (1913), quando em
viagem em seringais do Riozinho da Liberdade, onde estavam situadas malocas Kaxinawá.
122
pediram-lhes sugestões de nomes para seus filhos, alguns dos quais aceitavam, outros
não. Em sua estadia numa maloca, Sombra atenderia pedidos idênticos, nomeando vá-
rias crianças. Alguns solicitaram que desse a seus filhos o nome Tenente, posto que o
visitante ocupava, um "tuxaua" demandou para si "o appelido de Thaumaturgo, nome
do Prefeito, por ter sabido que era esse o tucháua catayana [principal] de todos os rios
e carinas ["cariu", "civilizados" - MPI]", e um outro reivindicaria a confirmação do "a-
pellido de Doutor, com que se arrogara, por ter notado a consideração e o respeito
com que os seringueiros assim tratavam um agrimensor que por andara demarcando
terras".
Os "tuxauas" e outros índios solicitaram a Sombra que escrevesse seus nomes e
"apelidos" em pedaços de papel, o que o delegado diz ter feito, lavrando "uma espécie
de certidão de batismo". Os documentos seriam guardados com satisfação e cuidado,
diz,
"pois entre elles um papel escripto é considerado uma coisa muito preciosa, tal-
vez por notarem o cuidado com que os seringueiros guardam as contas que rece-
bem de seus patrões (...) O maior desejo que tem os cachinauás, ou quaesquer ou-
tros índios, desde que entram em relações amistosas com os carinas é o de ser
baptisados, pois observam logo que os seringueiros matam os que o não são,
embora esses sejam amigos, ou mansos, como dizem aquelles, que não têm o
menor escrúpulo de atirarem num índio pagão, embora manso, pelo prazer de
verificar a boa pontaria de seu rifle!!" (Sombra, 1913).
Como "talvez único remédio eficaz" contra esse "arraigado e feroz" preconceito
dos seringueiros, Sombra recomendaria o "batismo em larga escala", para "atenuar o
morticínio de índios". Em seu entender, era desejável que os índios coadunassem desses
valores da "civilização", pois, "O índio baptisado identifica-se logo com os seringuei-
ros, julga-se um outro homem, um carina ou civilizado, e não admite que o chamem
mais de índio, nome que reputa injurioso, tal como os nossos pretos, que não gostam
que se lhes chamem de negros (...)". Sombra, contudo, teceria críticas aos padres que
ocasionalmente realizavam "desobrigas" nos rios, pelos altos preços cobrados pelos ba-
tismos, "40 e tantos mil réis", valores os quais, avalia, faziam com que muitos patrões se
recusassem a batizar os índios "mansos" que viviam em seus seringais
179
.
179
Em 1907, o então Prefeito do Alto Juruá, Antônio Bueno de Andrada também criticaria a postura dos
sacerdotes católicos em suas desobrigas pelos altos rios: "No payz da borracha, systematicamente, têm
feito do sacramento de sua religião objecto de commercio. Um casamento vende-se por duzentos mil réis;
baptizados, de trinta a cincoenta mil réis; missas, a cem mil réis... Esta é a tarifa dos pobres. Para os ri-
cos, um baptizado com música vale seiscentos mil réis; sem música, quatrocentos. Seria irrizorio se não
fosse real. Gratuitamente, mesmo a bem da moralidade, não baptizam, não casam, não rezam. "Fica pa-
123
À semelhança da iniciativa tomada pelo Prefeito Thaumaturgo de Azevedo, ao
prender patrões que haviam cometido arbitrariedades com os seus fregueses, Sombra
(1911) informa ter levado presos e "perseguido" autores de "correrias", logrando, duran-
te o período em que permaneceu no vale do rio Tarauacá, pôr um fim às "barbaridades"
cometidas contra os índios
180
. Informa ainda, em viagem realizada às cabeceiras do rio
Envira, em 1906, ter obrigado rios seringueiros a se casarem com "índias meninas",
"trazidas dessas correrias", atitude diferente da adotada em relação aos caucheiros peru-
anos, de quem havia tomado as também meninas, de 10 e 11 anos, "com quem se deita-
vam, como se suas mulheres fossem!" (Sombra, 1911).
Por outro lado, Sombra indicações de que suas ações para combater as violên-
cias contra os índios não estiveram destinadas somente à coibição das "correrias", mas
também das lutas entre os próprios grupos indígenas, as quais ganhavam novas feições
no âmbito de relações que alguns deles começavam a estabelecer com os "civilizados".
Nesse sentido, narra a decidida oposição que, em 1906, colocou a uma expedição plane-
jada pelos Kaxinawá, fortemente armados com rifles e munição obtidos dos patrões,
contra os Jaminawa: "(...) tivemos ensejo de assistir em parte a festa com que celebra-
vam a próxima partida de uma expedição de guerra contra seus inimigos seculares os
belicosos jaminauás, belos e valorosos índios mui temidos entre eles, expedição que
lhes proibimos, aconselhando-os a viverem em paz com seus vizinhos (...)"
181
. A expedi-
ção seria desmobilizada pelos Kaxinawá, diz Sombra, após sua ameaça de retirar-lhes
ra outra safra" é resposta constante, corrente e obstinada da ganancia mascarada em christianismo. As-
sim, pois, pela porta religiosa não entrará aqui a moral" (Andrada, 1908: 9).
180
Lustosa Cabral, que presenciou uma das viagens de Sombra ao rio Tarauacá, dá informações sobre as
ações de tenente do Exército nomeado como delegado por Thaumaturgo de Azevedo, com atribuições de
resolver todos os problemas atinentes ao policiamento e negócios dos rios, tendo sob seu comando os
"inspetores de quarteirão" que trabalhavam em cada seringal: "O Sombra pintou horrores - prisões vio-
lentas, humilhações -, causando vexames aos [inspetores] tímidos. Muitos, ao ter notícia de que ele vinha
pelo rio, fugiam para o mato. Viajava o delegado em batelão com três soldados apenas. Quando voltava
do alto do rio, conduzia dez, doze criminosos para Cruzeiro do Sul" (Cabral, 1984: 54-5). Em março de
1906, no jornal Correio do Norte, de Manaus, o advogado Miguel Tinoco tornaria pública sua indignação
contra supostos atos arbitrários cometidos pelo delegado e contra a dificuldade que enfrentara para "(...)
fazer o Prefeito Gregório Thaumaturgo abrir um Inquérito Policial para apurar os crimes praticados por
Luiz Sombra e outros funcionários de sua confiança, contra João Augusto Fernandes Teixeira, sócio da
firma comercial Teixeira & Cia, que, dentre outros crimes, roubaram jóias, dinheiro, livros e outros do-
cumentos dessa firma (...)" (Costa, 2005: 102).
181
Assim como destacado anteriormente, este evento traz à baila como as relações comerciais, ainda que
descontínuas, de certos grupos indígenas com patrões ou seringueiros, mas também os saques feitos às ca-
sas de fregueses brancos permitiam um gradual acesso a armas de fogo e, por isso, o redimensionamento
das correlações de força que historicamente marcavam as relações de conflito com outros povos, e mesmo
com os seringueiros da vizinhança. Por outro lado, parece revelar que, em certos casos, os patrões, apro-
veitando as rivalidades tradicionais, armavam um grupo para que atacasse seus inimigos, tidos como "sel-
vagenes”, que matavam e roubavam nos seringais, colocando em risco a "segurança" e a produção dos
fregueses.
124
sua "proteção", "(...) não sem terem primeiramente tentado nossa cobiça oferecendo-
nos em troca do assentimento a sua empresa uma parte dos despojos da vitória, isto é,
alguns dos curumins e cunhatás que aprisionassem, além das armas e mais artefatos
artísticos que porventura tomassem a seus inimigos" (Sombra, 1913)
182
.
A promessa de uma desejada "proteção", ou a ameaça de retirá-la, fizeram parte,
ao que indica o relato do delegado, de suas iniciativas ao implementar ações que guar-
davam semelhança com a dupla tarefa defendida pelo Prefeito Thaumaturgo de Azeve-
do para a "pacificação da região": pôr fim às "diuturnas provocações de umas e outras
tribos", assim como conscientizar os seringalistas sobre a conveniência de não mais
promover "correrias" contra os indígenas, a captura de meninos e meninas e sua "escra-
vização".
Apesar de constatar a existência de malocas que tinham um "maior contato" com
os seringueiros e relações comerciais estabelecidas com patrões e regatões, Sombra não
parece coadunar da idéia, defendida pelo Prefeito, de que a "catequese" e a "civilização"
dos indígenas poderiam advir de relações de trabalho sob a tutela dos seringalistas. To-
davia, assim como, de maneira pioneira, haviam proposto Belarmino Mendonça e
Thaumaturgo de Azevedo, Sombra também consideraria fundamental a atribuição de
territórios próprios aos indígenas, permitindo que vivessem à margem do convívio com
os "civilizados". A fim de "melhorar a sorte dos índios e evitar o extermínio completo
de suas tribos", informa o delegado, tomara a iniciativa de "reservar-lhes os rios ainda
não invadidos ou explorados pelos seringueiros", recomendação que teria sido acatada
pouco depois pelo Prefeito, que a "extendeu por um decreto aos demais rios do depar-
tamento em iguaes condições" - fato não confirmado, contudo, na relação dos decretos
relacionados por Azevedo nos relatórios referentes às suas duas gestões. Os prefeitos
que sucederam Thaumaturgo de Azevedo, lamentaria Sombra (1911) anos depois, não
teriam tomado as providências cabíveis para "fazer cumprir tão profícua medida em fa-
vor dos índios".
182
À semelhança das "correrias", portanto, estas incursões contra malocas de grupos inimigos também
rendiam a captura de mulheres e crianças, prática que já marcava os enfrentamentos armados entre indí-
genas antes da implantação dos seringais. A promessa feita a Sombra, de entregar-lhe meninos e meninas
capturados, também guarda semelhanças com práticas dos seringueiros e caucheiros durante as "correri-
as", quando aqueles eram cedidos ou vendidos aos patrões. Fato semelhante, da captura de mulheres, é re-
latado por Borô, se referindo a um ataque feito contra, supostamente, os Kontanawa, como vingança por
um ataque anterior, que havia resultado em mortes (Abreu, 1941: 65). Incursões armadas eram realizadas
pelos Kaxinawá contra os Kulina ("gente fedorenta"), a quem consideravam "preguiçosos" e "ladrões",
devido aos saques que realizavam aos seus roçados (Abreu: 1941: 118). Nesse sentido, percebe-se que es-
sas incursões contra os Kulina eram legitimadas por concepções e discursos etnocêntricos, semelhantes a
aqueles atualizados por seringalistas e caucheiros ao realizar as "correrias".
125
Nas conclusões de seu segundo texto, Luiz Sombra (1913) destacaria outro con-
junto de recomendações que julgava urgente para preservar não apenas a integridade fí-
sica dos Kaxinawá e outros indígenas, mas também as línguas e os artefatos de suas cul-
turas materiais, os quais por viverem perseguidos pelas "correrias", "sem pouso certo"
nas malocas, não confeccionavam mais "com o mesmo primor de outrora". A este res-
peito, sugeriria:
"É lastimável saber que essa [os Kaxinawá - MPI] e outras tribus do Alto Amazo-
nas estejam a se extinguir sem que o nosso Museu mande estudar suas línguas e
collecionar seus artefactos, que figuram em alguns museus da Europa, sendo,
entretanto, desconhecidos entre nós. As armas e mais objectos trazidos das corre-
rias, os seringueiros dão a seus patrões e esses a seus aviadores no Pará e Ma-
náos, que por sua vez as presenteiam aos chefes das casas exportadoras extran-
geiras daquellas praças, que as remettem aos museus da Europa".
Os caminhos que esses artefatos, tal qual butins de guerra, seguiam até os museus
europeus coincidiam, portanto, com as redes que, ao longo da cadeia do aviamento, arti-
culavam os diferentes atores dos seringais às casas aviadoras nacionais e às instituições
comerciais estrangeiras, tornando possível o funcionamento da economia da borracha
nos altos rios do Território do Acre.
Numa situação marcada pelas "correrias", que, em sua avaliação, colocavam em
risco a sobrevivência, física e cultural dos índios, Sombra formularia, então, duas prin-
cipais propostas: a primeira, de atribuição do Museu Nacional, a constituição de cole-
ções de cultura material e realização de estudos dos costumes e línguas dos indígenas,
para que estes se tornassem conhecidos da sociedade nacional antes de sua eminente ex-
tinção
183
. A segunda, mais afinada com as propostas do padre Jean Baptiste Parissier e
do Prefeito Thaumaturgo de Azevedo, mas destoante das recomendações de Belarmino
Mendonça, a ação de padres católicos, "comprometidos com o destino dos indígenas",
que, por meio do "batismo em larga escala", abrissem condições para que os patrões e
os seringueiros os respeitassem como seres humanos.
Face à situação de violência decorrente das "correrias", os Kaxinawá também
buscavam alternativas que aparentemente confluíam com essa última proposta de Luiz
Sombra, homem que o Prefeito enviara, e que viam, em suas malocas, fardado, com po-
deres de prometer ou retirar uma desejada proteção, repreender e prender "civilizados" e
183
Conforme destacado no capítulo anterior, esta sugestão de Luiz Sombra converge com aquela feita,
anos antes, pelo engenheiro Jorge Von Hassel (1905), quem, após viajar pelo alto rio Juruá no Peru con-
clamara aos "homens da ciência" a realização de minuciosos estudos sobre os indígenas, num momento
em que estes passavam por inexoráveis mudanças, forjadas pelas "misturas" com os "civilizados" e entre
os próprios índios e pela absorção de novos costumes e tecnologias.
126
até mesmo batizar. Além de bem recebê-lo, oferecer-lhe comida e caiçuma, prometer-
lhe presentes (artefatos da cultura material e crianças a serem trazidas de uma guerra
com os inimigos), realizar festas durante sua estadia e reconhecer sua autoridade como
"Papai Tenente", "tuxaua dos rios" e representante do Prefeito (o "tucháua principal de
todos os rios e brancos"), os Kaxinawá demandavam ser batizados, receber (e escolher)
nomes e registrá-los por escrito, visando acessar marcas e atributos que julgavam efica-
zes para assemelhar-se aos "civilizados" e adquirir seu reconhecimento como seres hu-
manos, cuja vida deveria ser poupada e respeitada.
O tenente do exército e delegado Luiz Sombra não seria o único personagem a ser
reconhecido pelos Kaxinawá e outros grupos indígenas como autoridade, representante
do governo e como agente de uma "proteção" possível e desejada, num contexto em que
os patrões e os seringueiros constituíam, por um lado, uma constante ameaça à sua so-
brevivência e, por outro, uma realidade com a qual teriam que lidar dali por diante. Con-
forme será visto no Capítulo V, à mesma época em que as malocas do rio Iboiaçú foram
visitadas por Sombra, as pioneiras iniciativas dos cearenses Ângelo Ferreira da Silva e
Felizardo Avelino de Cerqueira, respaldadas pelas políticas de "catequese" da Prefeitura
do Alto Juruá e da Comissão de Obras Federais, despontariam para outros grupos indí-
genas (inclusive os Kaxinawá) como alternativa concreta face às "correrias" no médio
rio Tarauacá, no rio Gregório e no Riozinho da Liberdade.
A Comissão de Obras Federais
A abertura de uma estrada de rodagem entre a recém fundada cidade de Cruzeiro
do Sul e o rio Tarauacá foi empreendimento que Thaumaturgo de Azevedo considerou
estratégico para dar início à integração do Departamento do Alto Juruá, e sua conexão
com o restante do Território Federal, bem como para um efetivo funcionamento dos po-
deres judiciário, policial e fiscal. Como parte dessa iniciativa constava um projeto de
"catequese" para os indígenas, por meio do qual, com o auxílio de agentes missionários
e a implantação de "núcleos coloniais", tencionava o prefeito pôr fim aos conflitos inter-
tribais e às "correrias", apaziguar as relações dos seringueiros com os índios e favorecer
a incorporação destes últimos ao trabalho nos seringais e aos valores, costumes e bene-
fícios da civilização".
A primeira iniciativa para dar início à abertura do varadouro é assim notificada
pelo Prefeito, em 1905, ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores:
127
"convidei o Sr. Ângelo Ferreira da Silva, residente em Cocamêra, no Taraua-
cá, a romper d’alli um varadoiro em direcção ao Cruzeiro do Sul, promettendo-
lhe um auxílio por tal emprehendimento. Este proprietário tem ao seu dispôr, per-
feitamente catechisados, cerca de 150 índios, com a ajuda dos quaes já abriu uma
estrada de rodagem em direcção às cabeceiras do rio Gregório. Deste ponto para
a séde da Prefeitura é curta a distancia" (Azevedo, 1906: 68).
O convite seria reiterado por Thaumaturgo de Azevedo a Ângelo Ferreira da Silva
em maio de 1906. A abertura do varadouro de Cocameira a Cruzeiro do Sul, um percur-
so de pouco mais de 190 quilômetros, foi concluída em começo do mês seguinte, quan-
do, após duas semanas de trabalho, à frente de uma turma de 63 homens, seus fregueses
e empregados, Ângelo Ferreira chegou à sede do departamento, onde foi recepcionado
pelo Prefeito interino, Dr. José Pereira de Britto Leite de Barredo (Cerqueira, 1958: 10-
13)
184
.
A abertura da "Leste-Oeste Brazileira", estrada de rodagem entre as cidades de
Cruzeiro do Sul e Sena Madureira, foi um dos principais empreendimentos desenvolvi-
dos, no biênio 1907-1908, pela "Comissão de Obras Federais no Território do Acre".
Criada pelo Decreto 6.406, de 8 de março de 1907, a Comissão tinha por atribuições, a-
lém da abertura de estradas, a desobstrução de rios, a construção de edifícios públicos, a
defesa militar do Território (atendendo a instruções específicas do Ministério da Guerra)
e a implantação de escolas profissionais e núcleos agrícolas (Brasil. MJ, 1907: 59-60;
1908: 70-1; A4-A6).
Até março de 1910, a Comissão seria chefiada pelo engenheiro civil Antonio Ma-
nuel Bueno de Andrada, cargo que acumularia com o de Prefeito durante dois períodos,
de agosto de 1907 a janeiro de 1908 e de setembro de 1908 a outubro de 1909 (Castello
Branco, 1930: 670). No primeiro relatório da Comissão de Obras, encaminhado ao Mi-
nistério da Justiça e Negócios Interiores, Andrada (1907: 12-16) elencaria alguns dos
principais benefícios geopolíticos e econômicos vislumbrados com a construção da es-
trada: a integração do Território com o restante do país (especialmente no período de es-
tiagem nos rios), a segurança das fronteiras (a "defesa nacional"), o aproveitamento das
riquezas naturais, o aumento da população, o barateamento do transporte, a maior arre-
184
Saindo de Cocameira, na margem esquerda do rio Tarauacá, o varadouro passava pelo igarapé Apiuri,
cortava o rio Gregório, seguia pelo igarapé Marajá, descia o Forquilha, afluente da margem direita do Ri-
ozinho da Liberdade, cruzava o Riozinho na sede do seringal Ceará, descia o igarapé da Besta, seu afluen-
te da esquerda, seguia até o igarapé Campinas, de onde cortava para a margem direita do rio Juruá, à altu-
ra do seringal Remanso, distante 30 minutos da cidade de Cruzeiro do Sul (Cerqueira, 1958: 10-13). No
Mapa do Território do Acre produzido por João Alberto Masô (1910/1917), o traçado da estrada de roda-
gem é detalhado entre Cocameira e Cruzeiro do Sul, com o registro "Varadouro do catechizador Ângelo
Ferreira 1906".
128
cadação de impostos, a melhoria da ação policial e judiciária, o alargamento da instru-
ção, a localização de colonos nacionais e estrangeiros, bem como a fiscalização e o
combate ao contrabando de caucho e mercadorias promovido por caucheiros e comerci-
antes peruanos.
O "policiamento" e a "fiscalização" das "tribos" que viviam nas cabeceiras do Ri-
ozinho da Liberdade e do rio Gregório foram iniciativas da Comissão de Obras nesses
seus dois primeiros anos de operação, por serem consideradas pré-condições para viabi-
lizar os trabalhos das turmas dedicadas à determinação do curso mais conveniente para
a estrada e à sua posterior abertura. A existência dessas "tribos" e as "lutas sangrentas"
que travavam com os seringueiros seriam destacadas como principal obstáculo ao início
desses trabalhos, no primeiro relatório encaminhado pelo chefe da Comissão ao Minis-
tério da Justiça e Negócios Interiores:
"Constantes correrias e assaltos travavam-se de parte a parte. Ora, os seringuei-
ros cahiam repentinamente sobre as malocas, matando os homens e escravisando
as mulheres e creanças, ora os indios trucidavam todos os brancos, roubando-
lhes os haveres e incendiando as barracas. Seria louca temeridade enviar enge-
nheiros, embora acompanhados por forças, para atravessar e estudar regiões tão
perturbadas. Convinha pois, antes de qualquer tentativa neste sentido, por termo
a taes hostilidades" (Andrada, 1907: 16).
Para tal, o engenheiro informava ter adotado duas medidas imediatas: estabelecer
entendimentos com seringalistas "bem intencionados", comunicando-lhe sua intenção
de proteger as "tribos" indígenas; e constituir uma turma de sete homens, dos quais
"dois falantes de línguas indígenas", para localizá-la "em meio às tabas", com a "missão
especial de impedir incursões sangrentas nas terras dos índios e, portanto, represálias
por parte destes"
185
. Por meio dessas iniciativas, avaliaria pouco depois, lograra a Co-
missão "acabar com as luctas e captar a confiança de ambos os lados" (Andrada, 1907:
28).
Por considerar "pacificada a região" entre os rios Juruá e Tarauacá, em maio de
1907, o engenheiro Joaquim Nunes de Oliveira seria enviado por Andrada, à frente de
185
No relatório do segundo ano de atividades da Comissão, o engenheiro chefe novamente justificaria as
medidas tomadas antes do início dos estudos sobre o melhor traçado para a estrada de rodagem: "Sem es-
tabelecer pacíficas relações com as tribus indígenas nomades nas florestas que teria de atravessar a es-
trada, seria temeridade atravessar com turmas de trabalhadores (...) Pelo lado econômico, tanto como
pelo lado humanitário, impunha-se a amisade com os indígenas. De outro modo a creação de uma expe-
dição militar se tornava custosa e indispensável e muito provavelmente conflictos sangrentos poderiam
advir" (Andrada, 1908: 76). As ações da turma de homens contratada pela Comissão de Obras Federais
para o "policiamento" e a "fiscalização" dos grupos indígenas ao longo do traçado da estrada, cuja coor-
denação ficaria a cargo do "catequista de índios" Felizardo Avelino de Cerqueira, serão objeto de descri-
ção e análise mais detalhadas no Capítulo V.
129
uma turma de sete homens recrutados pela Comissão, todos armados, para levantar o
traçado mais conveniente para a futura abertura da estrada de rodagem. Os estudos aca-
bariam por determinar um percurso de 241 quilômetros, com desvio de 85 quilômetros
em relação à "picada" aberta no ano anterior pelo "audaz sertanejo, seringueiro destas
regiões, o coronel Ângelo Ferreira da Silva" (Oliveira, 1907: 17).
Andrada informa que, durante essa viagem, Oliveira visitara "cinco tabas", onde
fora "recebido com agrado" e os chefes das "tribos", "orçadas em três mil índios", pro-
meteram auxiliá-lo na abertura da estrada, em troca de machados, roupas e "principal-
mente se o Governo demarcar terras onde elles possam tranquilamente exercer a la-
voura". Essa proposta foi então julgada auspiciosa pelo engenheiro chefe, conforme ex-
plicita em seu relatório ao Ministro da Justiça: "Os homens, em geral, são possantes, e
têm prática de derrubar as matas, executam grandes roçados para o plantio do milho;
portanto, se cumprirem a promessa, terá o Governo, nas obras do Acre, por preço mí-
nimo, algum alimento e roupa, valentes auxiliares" (Andrada, 1907: 28). No mesmo re-
latório, a principal demanda dos chefes indígenas tampouco seria esquecida pelo chefe
da Comissão, apesar de depois não ter sido concretizada. Dentre os pontos de um "plano
de ordenamento para o Acre", apresentado pela Comissão ao Ministério, Andrada assim
recomendaria, no item "Terras": "Humano e justo, e provavelmente muito proveitoso
para o paiz, será marcar territórios para os indígenas sempre que fôr possível" (An-
drada, 1907: 48)
186
.
Por fim, Andrada informa ao Ministro que Ângelo Ferreira da Silva seguira para o
rio Purus, "amansando índios e atravessando mattas". Proposto pelo "denodado sertane-
jo", a troco do auxílio de Andrada, junto ao Governo Federal, "no reconhecimento da
posse de alguns lotes de terras desconhecidas", esse empreendimento foi bem visto pelo
chefe da Comissão, com vistas a proceder com um levantamento preliminar de um pos-
sível traçado para o prolongamento da "Leste-Oeste Brazileira" até Sena Madureira, se-
de do Departamento do Alto Purus
187
.
186
Dentre outras sugestões feitas nesse item constavam a manutenção de lotes de terras, sob o domínio
público, ao longo das duas margens da estrada, a regularização das antigas posses e a concessão de lotes a
particulares, mediante a obrigação da manutenção dos limites lindeiros à via (ibid).
187
Os resultados dessa viagem, comunicados por Ângelo Ferreira a Andrada em carta de dezembro de
1907, acabariam por diferir do trajeto inicialmente combinado, apesar do engenheiro-chefe tê-los julgados
proveitosos para os objetivos futuros da Comissão. O seguinte trajeto foi trilhado por Ângelo Ferreira e
seus homens nessa viagem: "Saído de Lupuna, atravessou o Murú e o Envira, continuando, transpôs o
pouco elevado espigão divisor entre os vales do Purus e do Envira, conseguiu mesmo chegar (...) nas á-
guas que vertem para o Purus. Mas, deste ponto, em vez de prosseguir na orientação Leste-Oeste, defle-
xionou para o sul e foi sair em águas do Tejo, que muito a sul aflui para o Juruá; daí voltando às mar-
gens do Tarauacá, por este desceu até Lupuna, ponto inicial da viagem" (Andrada, 1907: 28-9).
130
Os trabalhos de abertura da estrada de rodagem entre Cruzeiro do Sul e Sena Ma-
dureira foram realizados nos meses de "verão" de 1908 por quatro turmas da Comissão
e, em menor extensão, por serviços de empreitada (Andrada, 1908: 71-2). Num primeiro
trecho, 108 km de "boa estrada" ligavam Cruzeiro do Sul a Cocameira, no rio Tarauacá,
local que se consolidaria como "cabeça de linha", onde a Comissão construiu vários bar-
racões e abriu algumas plantações. A partir de Cocameira, a leste, uma "larga picada",
com 234 km de extensão, cruzaria os rios Murú e Envira, até alcançar o rio Jurupari, a-
fluente da margem direita deste último, em local ainda distante de Sena Madureira (An-
drada, 1908: 71)
188
.
Ainda em final de 1908, o êxito da política de "catequese", com a "pacífica incor-
poração dos selvícolas à nossa sociedade", seria atestada por Andrada com base nas se-
guintes avaliações: o gradual cessar, "com tendência ao desaparecimento", dos conflitos
entre seringueiros e indígenas, a convicção que ganhava força entre os seringalistas uma
consciência quanto aos proveitos que poderiam advir para seus empreendimentos de
uma convivência harmoniosa com os índios e o crescente afluxo de comitivas indígenas
(integradas, inclusive, por mulheres e crianças) a Cruzeiro do Sul, as quais, "bem rece-
bidas pelas autoridades", voltavam às suas malocas "propagando a boa vontade para
com os civilizados"
189
. A confiança com que os agentes do governo haviam sido recebi-
188
Conforme evidenciado em croquis anexo ao segundo relatório da Comissão (Andrada, 1908: A-97),
era intenção do governo federal que a estrada ligasse as sedes dos três departamentos do Território Fede-
ral. No âmbito do projeto denominado "Central Amazonense", a partir da Villa Rio Branco, sede do De-
partamento do Alto Acre, a estrada seria prolongada até Santo Antônio, no rio Madeira, um dos pontos fi-
nais da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, permitindo também um mais rápido acesso a Manaus, de for-
ma a baratear o transporte das mercadorias e da produção de borracha. Uma segunda opção cogitada para
alcançar esse mesmo objetivo era a abertura, a partir de Porto Acre, de outra estrada de rodagem, de apro-
ximadamente 322 quilômetros de extensão, até Cachoeira, ponto extremo na "navegação franca e perene"
no rio Purus (Andrada, 1907: A1-46-7). Outras informações sobre esses planos foram destacadas, pouco
antes, por ambos os chefes brasileiros das Comissões Mistas de Reconhecimento dos altos rios Purus e
Juruá, Euclides da Cunha (1976: 165-77) e Belarmino Mendonça (1989: 286-90). Santo Antônio era tam-
bém ponto estratégico no trabalho da Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas do Mato Grosso ao
Amazonas (CLTEMGA), chefiada pelo então Major (depois Tenente-Coronel) Cândido Mariano da Silva
Rondon. Realizada em três expedições, nos anos de 1907-1909, a exploração do traçado da linha telegrá-
fica entre Cuiabá e o rio Madeira tinha previsto, como um de seus desdobramentos, o prolongamento des-
sa linha de forma a permitir a conexão com as sedes das três Prefeituras do Território Federal do Acre.
Seria por meio de contrato entre o governo brasileiro e a companhia alemã Telefunken, todavia, que, em
1912, estações telegráficas seriam instaladas nas sedes dos três departamentos acreanos, permitindo tam-
bém sua comunicação com Porto Velho e, a partir dali, com o Rio de Janeiro, então capital federal (Er-
thal, 1992: 133; Acre. FEM, 2004: 37; 39).
189
Prova adicional dessa "pacífica incorporação", segundo Andrada, era a participação de três indígenas
na "escola profissional" implantada pela Comissão de Obras, onde freqüentavam aulas de português, a-
ritmética, inglês prático e desenho, além de oficinas de ferraria, olaria, carpintaria e, em alguns casos, de
arte tipográfica. Dentre os 37 aprendizes da escola, destacavam-se os três "pela profunda e cuidadosa a-
tenção com que se entregam a qualquer trabalho" (Andrada, 1907: 29; 1908: 65). Nenhuma menção há
nesses relatórios, todavia, à continuidade da operação da "Caixa dos Índios", com cujos fundos o prefeito
131
dos nas malocas tornara-se patente, por outro lado, no auxílio por vezes prestado pelos
indígenas aos trabalhos de abertura e limpeza da estrada de rodagem. Para dar continui-
dade a essa situação, "auspiciosa para sua catequese", Andrada informa, ainda, que a
Comissão continuava a manter, em diferentes pontos do Departamento, encarregados
para o "policiamento" dos índios, garantindo suas boas relações com os seringueiros
(Andrada, 1907: 28; 1908: 67; 76).
Pouco depois, o promotor público Antonio José de Araújo, ao condenar a concen-
tração da terra em mãos dos seringalistas e a escassa dedicação dos "povoadores" às ta-
refas agrícolas, defenderia a necessidade de medidas governamentais para avançar com
a "catequese" dos indígenas, por meio de "um regimem compatível com o seu gráo de
civilização, iluminados por uma instrucção parca, mas proveitosa (...) (Araújo, 2003
[1910]: 32). Vista como problema de ordem nacional, e atribuição das Prefeituras, A-
raújo proporia como alternativa às "correrias" e ao extermínio, uma "catequização" que
mantivesse os índios em suas malocas, "construídas estas de modo mais hygienico e
moral, a maneira de nossas tabas ou povoados".
Assim como haviam proposto Belarmino Mendonça e Bueno de Andrada, Araújo
defenderia a necessidade de, para cada maloca, reservar "uma área determinada de ter-
reno", de preferência às margens de lagos e igarapés, onde os índios pudessem pescar,
caçar e cultivar, e onde lhes fossem fornecidos, gratuitamente, ferramentas e "ensino ao
trabalho". Ali "situados", defenderia Araújo, "o mestre-escola levar-lhes-á, em aulas
diurnas e nocturnas, para as crianças e os adultos, as luzes da instrucção. No dia em
que o índio souber com certo numero de syllabas formar uma palavra, pode-se garantir
que mais um grande e poderoso elemento terá entrado para a communhão nacional".
Sugeriria ainda a abertura de largas estradas ligando as malocas aos povoados, de ma-
neira a "habituar" os índios ao convívio com os "civilizados". Paralela a essa política de
"catequese", o promotor proporia a localização de "trabalhadores nacionais" (e não de
colonos estrangeiros), trazidos gratuitamente pelo governo, acompanhados de suas fa-
mílias, para cultivar a terra, em "sítios" previamente demarcados e limpos, e o apoio da
prefeitura às suas iniciativas, por meio do empréstimo das ferramentas necessárias e da
oferta de crédito para a compra de "provisões" durante os seis primeiros meses após a
sua chegada (Araújo, 2003: 33-5).
Thaumaturgo de Azevedo anunciara a intenção de criar um "instituto de instrução oficinal" específico pa-
ra os indígenas.
132
A abertura da rede de estradas de rodagem entre Cruzeiro do Sul e o limite orien-
tal do departamento do Alto Juruá seria a principal e última obra realizada pela Comis-
são de Obras no Território do Acre. O relatório ministerial referente ao ano de 1909 fa-
ria apenas a lacônica menção de que a Comissão continuava a exercer as atividades de
sua competência, mesmo após a exoneração, a pedido, do seu engenheiro chefe, Anto-
nio Manuel Bueno de Andrada, em março (Brasil. Ministério da Justiça e Negócios In-
teriores, 1910: 71). O ano de 1910 aprofundaria a ausência de recursos específicos para
a Comissão e a paralisação de suas atividades, levando à dispensa de todo o seu pessoal,
em dezembro (Brasil. MJ, 1911: 72), e à sua definitiva extinção, pelo Decreto 9.138, de
29 de novembro de 1911
190
.
190
Ver Araújo (2003 [1910]: 159-167) e Costa (2003 [1925]: 223-31) para análises e críticas sobre as a-
ções e os resultados da Comissão de Obras Federais no Alto Juruá. Dentre as críticas de Araújo à atuação
de Bueno de Andrada, como chefe da Comissão e como prefeito, constam a falta de dedicação da Comis-
são à tarefa de desobstrução dos rios, a incapacidade de manter a estrada de rodagem aberta em plena sel-
va, a falta de vigor para fazer valer medidas adequadas para a regulação relações entre seringalistas e seus
fregueses, bem como a ausência de medidas para uma efetiva regulamentação da propriedade fundiária e
o incentivo à produção agrícola.
133
Capítulo IV - Um indigenismo limitado: o SPI no Território Federal do Acre
À parte de referências pontuais às viagens de representantes do SPILTN em co-
meço da década de 1910, perdura até o presente uma lacuna, na historiografia e nas et-
nografias sobre diferentes povos indígenas no Acre, a respeito da atuação do órgão indi-
genista no Território Federal do Acre. Se, por um lado, esta lacuna pode ser creditada à
brevidade da atuação localizada desse órgão federal e ao quase nenhum registro que
deixou na memória daqueles povos, por outro, parece derivar da ausência de pesquisas
em diversos tipos de fontes documentais (dentre eles, relatórios do SPI(LTN) e do Mi-
nistério da Agricultura, Indústria e Comércio, normas legais e jornais) hoje depositados
no acervo microfilmado do Serviço de Arquivo do Museu do Índio (SARQ/MI), da
Fundação Nacional do Índio (Funai), na cidade do Rio de Janeiro.
Pesquisa ali realizada permitiu-me perceber, contudo, a formulação, durante as
décadas de 1910-1920, de propostas de ações para a "proteção" e "assistência" dos gru-
pos indígenas que viviam no Território Federal, fruto, inicialmente, de "expedições" de
representantes do SPILTN e, depois, da atuação de inspetores sediados na Inspetoria em
Manaus. Ainda que pouco concretizadas nos anos posteriores, a recuperação dessas
propostas formuladas por representantes do SPILTN, bem como das ações que delas a-
cabaram resultando, é relevante para, por um lado, analisar as práticas por meio das
quais o órgão procuraria se institucionalizar naquela região fronteiriça. E, por outro, pa-
ra contrastá-las e colocá-las em diálogo, primeiro, com os projetos esboçados e postos
em prática pela Prefeitura do Alto Juruá e a Comissão de Obras Federais e, num mo-
mento posterior, com as atividades de "catequistas de índios", realizadas no âmbito tan-
to das iniciativas desses poderes públicos como das assim chamadas "iniciativas particu-
lares", promovidas por patrões interessados na "segurança" da produção de borracha e
caucho em suas propriedades e, inclusive, na mobilização de mão de obra indígena.
O Decreto 8.072, de 20 de junho de 1910, que criou o SPILTN, estabeleceu em
seu regulamento a fundação de uma Inspetoria no Território Federal do Acre e a nomea-
ção de um inspetor e de dois "ajudantes" (Brasil. MAIC, 1910: 56-7). Em fevereiro de
1911 teve início a primeira "expedição" do inspetor nomeado, Tenente Francisco Esco-
bar de Araújo, ao Acre
191
. Breve nota publicada no jornal O Paiz, do Rio de Janeiro, a
191
Em 1910, o primeiro chefe da Inspetoria do SPILTN no Amazonas, Tenente Alípio Bandeira, fora res-
ponsável pela elaboração das "Instruções internas da Diretoria Geral do SPILTN", documento destinado
aos inspetores que acabavam de ser nomeados (Lima, 1995: 160-66; Freire, 2007: 14-7). Pouco depois,
134
17 de fevereiro, dava conta que Escobar encontrava-se a caminho de Sena Madureira,
sede do Departamento do Alto Purus, onde pretendia instalar a sede daquela Inspetoria
(SARQ/MI, Microfilme 324, Planilha 02, Fot. 23).
O novo regulamento do SPILTN, aprovado pelo Decreto 9.214, de 15 de dezem-
bro de 1911, estabeleceria a reestruturação do órgão, com uma redução do número de
inspetorias, de 13 para 10, implicando na junção das do Estado do Amazonas e do Terri-
tório do Acre em apenas uma, sediada em Manaus (Brasil. MAIC, 1912: 118-9)
192
. An-
tes de sua exoneração, as atividades do inspetor no Acre se estenderiam até dezembro
de 1911, interrompidas por uma breve passagem, em maio, por Manaus, de onde segui-
ria até Cruzeiro do Sul, no Departamento do Alto Juruá.
A 10 de junho de 1912, Francisco Araújo apresentaria ao chefe da Inspetoria do
Estado do Amazonas e Território do Acre, engenheiro militar João de Araújo Amora,
uma "súmula" das atividades realizadas no ano anterior e do estado em que se encontra-
va a Inspetoria do Acre quando de sua extinção (Araújo, 1912). Somada aos relatos dos
dois "ajudantes" que, no biênio 1911-1912, encabeçaram "expedições" em diferentes ri-
os do Acre (Silva, 1912; Linhares, 1913), além dos relatórios produzidos pela Diretoria
Bandeira elaboraria o documento "Instrucções para uso dos Inspectores do SPLITN, na primeira expedi-
ção destinada à installação da séde da Inspectoria e à visita geral às terras habitadas pelos indios", que, a
31 de outubro de 1910, receberia o visto e a aprovação do então Tenente Coronel Cândido Mariano da
Silva Rondon, Diretor Geral do órgão (SARQ/MI, Microfilme 380, Planilha 98, Doc. 01, Fot. 673-77).
Dentre os "deveres" que cabiam aos inspetores nas "primeiras expedições" constavam: "1º Installar so-
lemnemente a sede da inspectoria na Capital do Estado ou em outra cidade que for julgada mais conve-
niente pela Directoria Geral, dando desse acto parte official às autoridades estadoaes e federaes (...);
Organizar e levar a effeito (...) uma expedição destinada a iniciar relações amistosas com os índios e
constatar detalhadamente a situação em que ficam as terras pelos mesmos habitadas, seus limites natu-
raes e os tidos como taes pelos maioraes da tribu, condições geraes de clima e salubridade, aspecto geo-
graphico das regiões, sua fertilidade e adaptação á vida pastoril e agrícola (...); 7º Receber e prestar in-
formações acerca do desenvolvimento de cada tribu, do estado de sua existencia nomade ou sedentaria, e
do gráo de adaptação de cada uma à civilisação occidental, no que concerne aos nossos habitos e cos-
tumes; 8º Informar-se sobre as relações que essas tribus mantem com as povoações mais proximas, si es-
sas relações são cordeaes ou não; e si são as mesmas victimas de expeculações e abusos (...); 9º Investi-
gar as razões das questões e contendas existentes, quer dos indios entre si, quer entre esses e os civilisa-
dos; 10º Informar de todas as perseguições, usurpações e injustiças de que sejão alvo os indios; 11º Pro-
por medidas e expedientes conciliatorios e generosos, no sentido de ser restabelecida e mantida a paz, e
evitadas de parte a parte violencias e depredações; 12º Organizar com todos os dados reunidos um rela-
tório, que, para juizo deste Serviço, deve ser dirigido à Directoria Geral, afim de poder a mesma posteri-
ormente mandar proceder à demarcação das terras que se destinam às povoações indígenas" (SARQ/MI,
Microfilme 380, Planilha 98, Doc. 01, Fot. 673-74).
192
São as seguintes as razões apresentadas nesse relatório para a extinção da Inspetoria no Acre: "A junc-
ção do Territorio do Acre ao Amazonas, formando uma só inspectoria, justifica-se pela razão de ser o
Territorio um prolongamento do Estado, succedendo que nas proximidades das fronteiras os indios do
Territorio passam, frequentemente, para o Estado e vice-versa. Além disso, sendo as communicações pa-
ra qualquer dos tres departamentos do territorio feitas por vias fluviaes, por não haver no interior estra-
das capazes, succede que Manáos, séde da antiga inspectoria do Amazonas, vinha a ser também o ponto
mais central para a séde da do Acre, o que mostra não haver vantagem em manter esta ultima como ins-
pectoria á parte" (Brasil. MAIC, 1912: 118-9).
135
do SPILTN (Cavalcanti, 1912) e pelo MAIC (1911, 1912, 1913), a "súmula" de Araújo
permite destacar os objetivos almejados, as ações iniciadas e os resultados logrados pelo
órgão indigenista durante os onze meses de existência de uma inspetoria no Território
Federal do Acre e nos meses seguintes à sua extinção.
De forma mais geral, o relatório do MAIC de 1911, encaminhado à Presidência da
República, informa que o Inspetor do SPILTN no Acre realizara várias "expedições" pe-
los rios Iaco e Juruá, estivera nas cidades de Sena Madureira e Cruzeiro do Sul, estabe-
lecera "pequenos postos de atração" e pretendia estruturar "povoações indígenas" para
"agremiar" os Manchineri, no alto rio Iaco, e os Poyanawa, no rio Moa (Brasil. MAIC,
1911: 58-9).
A principal parte da súmula de Francisco Araújo (1912) é dedicada às atividades
por ele realizadas após a instalação da sede da Inspetoria em Sena Madureira
193
, junto a
um grupo de famílias Manchineri que habitava três malocas no alto rio Iaco, no Depar-
tamento do Alto Purus. Em Senegal, local onde estava situado o último barracão daque-
le rio, acima do seringal Guanabara, Araújo informa ter estabelecido "fáceis contratos"
com esses índios, "de boa índole e muito trabalhadores", os quais, segundo constatou,
viviam "em grande miséria", explorados pelo patrão Moisés Alvim de Souza, que exer-
cia "as funções de catechisador de índios no rio Yaco, por nomeação do ex-prefeito do
Departamento do Purus, cidadão Cândido José Mariano"
194
. Sob as ordens de Moisés,
afirma Araújo, os Manchineri eram obrigados a migrar constantemente, de "maloca em
maloca", e a dedicar-se à abertura de varadouros e à extração do caucho. Nessas incur-
sões, eram muitas vezes encontrados por caucheiros peruanos, que, além de saquear
193
A partir de 1908, quando Sena Madureira era a principal sede departamental no Território do Acre, vá-
rios órgãos públicos ali instalariam as sedes de suas representações, dentre eles, o Tribunal de Apelação
do Território, da Justiça Federal, a Companhia Regional Federal do Purus, a Delegacia Fiscal do Tesouro
Nacional (Ministério da Fazenda), a Comissão de Defesa da Borracha, o Serviço de Inspeção e Defesa
Agrícola/MAIC, a Estação Central dos Telégrafos do Território Federal, a Comissão Mista Brasil-Peru
Demarcadora de Limites e a Administração dos Correios, bem como um vice-consulado de Portugal.
(Castello Branco, 1947: 149-50; Acre. FEM, 2004a; Menezes & Fernandes, 2005).
194
Em relatório enviado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores em 1905, o Prefeito, Engenheiro
Militar Cândido José Mariano, informara da existência de diversas tribos de aborígenes, "ainda selva-
gens", que começavam a se reaproximar das terras ocupadas pelos "civilizados". Após terem sido subme-
tidos ao "antigo regime de catequese", que resultara em "perseguições" e em "escravização" - os homens
em serviços como caucheiros e caçadores e as mulheres e crianças como domésticas e "amásias" -, e em
"legítimas represálias" da parte dos indígenas, defendia o Prefeito a necessidade de iniciativas para "al-
deá-los em pontos convenientes", convence-los de sua condição de "tutelados natos", portanto merecedo-
res da proteção dos poderes públicos, e obrigá-los a dedicar-se, "mediante módica remuneração, a traba-
lhos úteis e consentâneos com o seu grau de civilização" (Brasil. MJ. Prefeitura do Alto Purus, 1905: H-
12-H13). Mariano exerceria o cargo de Prefeito até dezembro de 1910 (Brasil, MJ, 1911: S-101), sem que
tivesse, em relatórios posteriores ao Ministério, voltado a esses temas ou detalhado qualquer iniciativa pa-
ra efetivar sua intenção inicial.
136
seus roçados, promoviam-lhes "correrias", resultando em mortes e no rapto de mulheres
e crianças.
Após apresentar uma série de "presentes" (roupas, ferramentas, contas, etc.) como
"credenciais", diz Araújo, convidaria os Manchineri para assentar-se às margens do rio
Iaco, "em um lugar mais acessível". O local indicado pelos índios, próximo às suas an-
tigas malocas, onde ainda havia vastos roçados, bananais e plantações abandonados, se-
ria recusado pelo Inspetor, por ser próximo ao barracão Senegal e pelo temor dos obstá-
culos que poderiam ser colocados à atuação do SPILTN por Moisés, que, segundo o
inspetor, considerava-se dono das terras até as cabeceiras do rio Iaco, apesar de ali não
ter qualquer exploração ou movimento comercial.
À diferença da demanda dos Manchineri, Araújo optaria por "combinar" com o
patrão do seringal Guanabara, Coronel Avelino de Medeiros Chaves
195
, o estabelecimen-
to provisório dos índios "em terrenos de sua exploração, os quaes pouca importância
têm para elle seringueiro, por não possuírem a cubiçada hévêa, estando quasi todo ex-
plorado o caucho que existia (...)"
196
. Araújo comunicaria ao Inspetor Amora sua es-
perança de que, num futuro próximo, esses "terrenos" fossem doados aos índios pelo co-
ronel, comprados pelo governo federal, por preço módico, ou reivindicados pelo
SPILTN para a definitiva instalação de uma "povoação indígena", localizada nas "legí-
timas terras" dos índios, "apossadas" fazia cerca de duas décadas pelos "civilizados"
197
.
195
A partir de 1898, Avelino de Medeiros Chaves foi o primeiro explorador dos seringais Porto Brasil e
Guanabara, no alto rio Iaco, junto com uma turma de 30 homens, num trabalho dificultado pela expressi-
va presença de índios Canamari, Manchineri e principalmente Catiana (Castello Branco, 1947: 145; 1961:
196): "Aprendendo a língua deles e careando-lhes a amizade por presentes, enfeites e outros ardis, con-
seguiu torná-los ativos auxiliares nos seus empreendimentos" (Castello Branco, 1947: 145). Em 1901, a-
tendendo a demanda de Chaves, a Amazon River iniciaria viagens regulares até Porto Guanabara, ponto
final da navegação no alto rio Iaco (ibid: 146). Chaves consta da lista de autoridades que em 1904 assina-
ram a ata de instalação do governo do Departamento do Alto Purus (Acre. FEM, 2004a: 11). Em novem-
bro de 1912, seria nomeado 1º Substituto do Prefeito (Brasil. MJ, 1913: S1-42), cargo que ocupou até fa-
lecer, em 1919 (Brasil. MJ, 1920: S1-9), período no qual assumiu a Prefeitura em pelo menos três ocasi-
ões. Escreveu o livro "Exploração da hévea no Território Federal do Acre", publicado em 1913, por oca-
sião da Exposição Nacional de Borracha, realizada no Rio de Janeiro.
196
Conforme fica claro a partir da leitura do relatório do Inspetor, o Coronel Chaves vislumbrara na che-
gada do SPLITN possibilidades de obter ganhos e avançar seus próprios interesses: oferecera ao Inspetor
outra parte de sua propriedade para a criação de uma "colônia de nacionaes", fornecera, em mais de uma
ocasião, mercadorias para a inicial instalação e o posterior abastecimento do posto (Araújo, 1912: 2) e es-
tabelecera acordos para a utilização da mão de obra indígena nas atividades de seus seringais.
197
Segundo o Capítulo V, do Título I, do Regulamento do SPILTN, "povoações indígenas" foi a denomi-
nação atribuída aos "antigos aldeamentos indígenas", "reconstituídos de acordo com as prescripções do
presente regulamento". Ali seriam estabelecidas "escolas para o ensino primário, aulas de música, offici-
nas, machinas e utensílios agrícolas, destinados a beneficiar os productos das culturas e campos apro-
priados à aprendizagem agrícola", bem como "seções especiaes para apicultura, sericultura, pequenas
indústrias, criação de animais domesticos, etc." (Brasil. MAIC, 1910: 49-50) Convencidos, por "meios
brandos", da necessidade e conveniência de participarem dessa aprendizagem, ali trabalhariam os índios
livremente, "com pleno direito ao produto integral de seu trabalho". Para a administração das "povoa-
137
Na companhia de dois chefes indígenas (Coanzé e Raymundo), que foram recebi-
dos pelo Coronel Chaves com "fartos presentes", Araújo fundaria em Guanabara o "en-
treposto do alto Iaco", batizado Rodolpho Miranda, e designaria como "encarregado"
dessa unidade Pedro Antonio da Silva. Era a proposta do Inspetor que os Manchineri se
dedicassem à agricultura nesse local, atividade iniciada, logo a seguir, por uma dezena
de índios, com a supervisão do encarregado, para preparar a chegada do restante das
famílias. Mercadorias no valor de pouco mais de dois contos de reis seriam cedidas pelo
Coronel Chaves, "por preços compensadores", para assistir aos primeiros fundadores do
posto, parte das quais seriam pagas, conforme acertado com Araújo, com a primeira
produção de feijão obtida pelos Manchineri.
Além dos problemas com os primeiros cultivos, o plano original do Inspetor aca-
baria sofrendo alterações, com a descida, antes do previsto, de todos os moradores das
três malocas, após novas "correrias" promovidas por caucheiros peruanos, que resulta-
ram em várias mortes. Mercadorias enviadas por Araújo tampouco chegariam a tempo e
novas compras implicaram em pesadas dívidas da Inspetoria no comércio de Sena Ma-
dureira. Face a essa situação, Araújo ordenara ao encarregado que se abstivesse de rea-
lizar novas compras sem sua expressa autorização, mantivesse o posto apenas com o
trabalho dos índios e solicitasse aos demais "civilizados" que utilizavam mão de obra
indígena que sua remuneração fosse feita apenas com "mercadorias essenciais, e não
com supérfluos".
O relatório enviado pelo MAIC à Presidência da República, relativo aos trabalhos
de 1911, informava da continuidade dos trabalhos de "agremiação" dos Manchineri num
posto, "futuramente transformável em povoação indígena (...), reunidos sob as vistas de
um empregado do Serviço, para este fim nomeado pelo respectivo Inspetor" (Brasil.
MAIC, 1912: 120). Um ano após a instalação do "entreposto do rio Iaco", em relatório
ao inspetor João de Araújo Amora, Francisco Araújo recomendaria o envio de uma má-
quina para a produção de farinha (que alcançava bons preços no alto rio, podendo tor-
nar-se fonte de renda relevante para a manutenção do próprio posto e para os próprios
Manchineri), bem como de cobertas e redes para os índios. Comunicava também a dis-
pensa do encarregado, a quem a Inspetoria devia três meses de ordenado, e sua substitu-
ções", previa-se a nomeação de um diretor, um ajudante e um escrevente (ibid: 57). A expectativa do Ins-
petor Araújo quanto à futura cessão do terreno para a instalação da "povoação" vinha de encontro à possi-
bilidade, prevista no mesmo Regulamento, do governo federal aceitar a transferência à sua jurisdição de
"aldeamentos" (ou instituições destinadas à "educação dos índios") mantidos por governos estaduais ou
municipais, ou por associações, com a cessão ao patrimônio público dos terrenos e instalações onde aque-
les estivessem estabelecidos (ibid: 50).
138
ição por Hermílio Ribeiro, a cuja portaria de nomeação o inspetor apensara as "instru-
ções que regiam o órgão" (Araújo, 1912: 13)
198
.
Dada a recente extinção da Inspetoria do Acre, Araújo, em sua súmula, apresenta-
ria ao Inspetor Amora uma relação de material de expediente, cadernetas de campo, e-
quipamentos, canoas e motores, e de considerável quantidade de "presentes" e ferra-
mentas, para serem distribuídos aos índios, por ele deixados em diferentes pontos do
Território, tanto em mãos de particulares como de autoridades federais e departamen-
tais. Por fim, solicitaria que, na medida do possível, fossem quitadas, com a maior bre-
vidade possível, as dívidas contraídas no comércio de Sena Madureira e com o Coronel
Avelino Chaves, de maneira que o crédito e, principalmente, a imagem do SPILTN não
ficassem severamente prejudicados junto a aqueles "setores que não viam a proteção aos
índios com olhos favoráveis".
O desmonte da Inspetoria no Acre marcaria o término da atuação do SPILTN no
Departamento do Alto Purus
199
. Em anos seguintes, ao tratar questões relativas aos indí-
genas desse departamento, o próprio titular do MAIC optaria por estabelecer contatos
com a Prefeitura local. Em 1913, por exemplo, enviaria pedido de informações ao Pre-
feito Samuel Barreira sobre a situação dos índios na região. Face à repercussão das de-
núncias sobre a escravidão e de violências contra indígenas no rio Putumayo, em territó-
198
Dentre essas instruções, Araújo encomendaria ao encarregado do Posto o envio à Inspetoria em Ma-
naus de ofícios mensais, contendo relatórios das atividades realizadas, de balancetes semestrais com a re-
lação da produção agrícola lograda, dos salários recebidos pelos índios que trabalhassem em outras loca-
lidades e das compras realizadas, bem como de "estatísticas demográficas da tribo", aí incluídos os ani-
mais domésticos. Recomendaria a venda da produção agrícola feita pelos índios "de preferência" no bar-
racão do seringal Guanabara, do Coronel Chaves, que maiores vantagens oferecia. Quanto à regulação das
formas de trabalho dos índios, deveria o encarregado zelar para que trabalhassem apenas em "casas de re-
conhecida moralidade", que não fossem maltratados ou realizassem serviços "acima de suas forças" e que
tivessem seus salários estabelecidos de antemão, pagos em períodos de no máximo seis meses, em dinhei-
ro ou mercadorias, e não com "bugigangas ou objetos supérfluos". Nenhum tipo de coerção violenta, mas
sim o "conselho paciente", deveria ser usado pelo encarregado para o que fosse de "conveniência para a
civilização e bem-estar dos índios". Em casos "de importância ou de gravidade", deveria dirigir-se à auto-
ridade policial mais próxima e ao "Delegado do Serviço de Proteção aos Índios no Iaco"; em casos de
"divergências de visões", comunicação deveria ser prontamente feita à sede da Inspetoria em Manaus (A-
raújo, 1912: 13-14).
199
Após graves conflitos entre índios Apurinã, seringueiros, castanheiros e caucheiros peruanos, a Inspe-
toria do Amazonas e do Acre criaria, em 1913, o Posto Indígena Pedro Dantas (depois PI Marienê), situa-
do no rio Seruini, afluente da margem esquerda do médio rio Purus, no Amazonas, e ali concentraria sua
atuação junto aos índios Apurinã, bem como, a partir de 1921, no Posto Indígena Manuacá, no rio Tuini,
junto aos Jamamadi, ambos no Município de Lábrea, no Estado do Amazonas. Desativado em 1914 e rei-
naugurado em 1920, o posto Marienê seria considerado "modelo" da atuação do órgão indigenista até o
início dos anos 1930. Com a instauração da Comissão de Inquérito pelo Interventor do governo Getúlio
Vargas no Estado do Amazonas, para a apuração de supostas irregularidades na atuação da Inspetoria do
Amazonas e Acre, o Posto Indígena de Nacionalização (PIN) Marienê e o Posto Indígena de Atração
(PIA) Manauacá entrariam em gradual desarticulação até o início dos anos 1940. O segundo posto seria
definitivamente extinto em 1945 e o primeiro em começo da década seguinte. A respeito da atuação do
SPI no Posto Indígena Marienê, consultar Schiel, 1999; 2004.
139
rio colombiano, a solicitação do Ministério era motivada pela necessidade de elaborar
relatório desmentindo a existência de situação similar em seringais em território brasi-
leiro, visto que empresários alemães haviam anunciado a intenção de impor barreiras à
compra de borracha oriunda de países onde indígenas estivessem submetidos à condição
de escravos.
Em sua resposta ao MAIC, na forma de telegrama, depois publicado no jornal ofi-
cial, o Prefeito afirmaria que mesmo antes das ações iniciadas no Alto Purus pelo
SPILTN para a "proteção" dos indígenas, estes "gozavam do carinhoso amparo da
administração departamental, vivendo em situação lisongeira as pequenas tribus dos
manitenirys, catianas e apurinãs nas cabeceiras do Yaco e Macauhan, com as maximas
garantias das autoridades"
200
. Os editores do jornal, por sua vez, reforçariam as pala-
vras do Prefeito, informando que fazia anos "não se registra um único caso de attentado
aos selvicolas. Isto prova à evidencia, que os brasileiros civilisados que habitam este
Territorio, auxiliam os humanitarios esforços do Governo em proteger os nossos selva-
gens sem olhar sacrificios, como os que faz a missão Rondon, no interesse de chamal-
os à civilização".
Castello Branco (1950: 22) destaca que o Prefeito Barreira, em seu relatório de
1914, após "viagem de inspeção" ao alto rio Iaco, onde constatara a existência de "tribos
de índios desorganizadas e dispersas", estudava a possibilidade de conciliar os interes-
ses dos indígenas "com as respeitáveis conveniências da civilização, organizando alde-
amentos nos arredores desta cidade [Sena Madureira - MPI], onde os índios possam,
cercados de conforto e de garantia, entregar-se pacificamente a trabalhos agrícolas".
Nenhuma ação seria levada a cabo pela Prefeitura nos anos seguintes, contudo, para ma-
terializar essas intenções.
As "primeiras expedições" no Alto Juruá
A primeira expedição de um representante do SPILTN ao Departamento do Alto
Juruá esteve a cargo do próprio Inspetor Francisco Escobar de Araújo. Nesta viagem, de
41 dias de duração, na qual chegou até a cidade de Cruzeiro do Sul, estaria acompanha-
do de Máximo Linhares, "ajudante" da Inspetoria do Território do Acre, nomeado, em
janeiro de 1911 pelo titular do MAIC.
200
"A situação dos índios no Território do Acre". Alto Purús, Sena Madureira, Ano I, Nº 15, 31/8/1913, p.
3.
140
Uma nota assinada pelo Inspetor no jornal O Paiz, do Rio de Janeiro
201
, constitui a
principal fonte de informação sobre os primeiros contatos realizados com o Prefeito e
diferentes patrões, os resultados que julgava atingidos após a expedição e as perspecti-
vas para uma futura atuação do órgão na parte mais ocidental do Território. Segundo
Araújo, a expedição tornara-se necessária devido a informações de que "correrias" esta-
vam na eminência de acontecer no Riozinho da Liberdade, como desdobramento do fe-
rimento, a golpe de machado, de Guilherme Duque Estrada, "empregado no serviço de
catequese, então mantido pela Prefeitura", durante visita a uma maloca Jaminawa. De
subida para Cruzeiro do Sul, na foz do Riozinho, Araújo estabeleceria entendimentos
com o Coronel Francisco Freire de Carvalho
202
, quem lhe garantiu ter proibido qualquer
"ação ofensiva aos índios". Devido "ao prestígio do respeitável ancião", e a essa garan-
tia, o Inspetor julgava que novas "correrias" não tornariam a ocorrer nesse rio. Negocia-
ções também seriam feitas com Carvalho, diz Araújo, para "assentar a questão das ter-
ras dos índios das cabeceiras do rio Liberdade, até onde se estendem suas vastas pos-
ses"
203
.
Em Cruzeiro do Sul, contatos seriam iniciados com proprietários do rio Moa, de
quem o Inspetor colhera "boas informações". Araújo acreditava ter passado a contar
com a "boa vontade" desses seringalistas, no sentido de apoiarem as ações do SPILTN,
voltadas à "pacificação dos ânimos" e à identificação de terras para a futura fundação de
uma "povoação indígena" naquele rio. Araújo se apresentaria ainda ao Prefeito, "dis-
pondo do serviço de proteção" ao seu encargo. Por tê-lo julgado um "entusiasta da pro-
teção aos infelizes selvícolas", o Inspetor vislumbrou também o futuro apoio da prefei-
tura à instalação e ao funcionamento do SPILTN no departamento
204
.
201
"Manaus - 13". O Paiz, 13/2/1911 (SARQ/MI, Microfilme 324, Planilha 02, Fot. 032).
202
Proprietário de todos os seringais no Riozinho da Liberdade, dos quais retirava cerca de 200 toneladas
de borracha anualmente, patrão enérgico com seus seringueiros, homem influente na política de Cruzeiro
do Sul, Carvalho, segundo Máximo Linhares (1913), era capitão honorário do Exército por "relevantes
serviços" prestados à pátria na "Guerra da Cabanada". Outras informações sobre os empreendimentos e-
conômicos, a ascendência política e o "carrancismo" do Coronel Carvalho constam em Araújo (2003),
Tastevin (1928) e Cabral (1984), bem como na literatura que trata do Movimento Autonomista no Alto
Juruá, no âmbito do qual, em início dos anos de 1910, Carvalho assumiu destacado papel de liderança e
articulação. Novas referências ao Coronel Carvalho serão feitas no capítulo seguinte, ao tratar, sob outro
olhar, das ações de "catequese" empreendidas pela Prefeitura do Alto Juruá e a Comissão de Obras Fede-
rais, por meio do recutamento dos "catequistas de índios" Ângelo Ferreira da Silva e Felizardo Avelino de
Cerqueira.
203
Tal entendimento seria destacado pelo titular do MAIC em relatório ao Presidente da República, ao
ressaltar que, contando com o "prestígio" e a ação do Coronel Carvalho, podia se esperar um definitivo
"cessar dos conflitos" e já estava assentada a "questão das terras" dos índios no alto Riozinho da Liberda-
de (Brasil. MAIC, 1911: 58-9).
141
O ajudante Máximo Linhares seria inicialmente incumbido pelo Inspetor Araújo
de seguir às malocas no alto Riozinho da Liberdade, com os objetivos de entrar em con-
tato com os índios, "acalmar os ânimos", divulgar a criação e o início da atuação do
SPILTN, levantar informações populacionais e sobre as relações com os "civilizados",
distribuir vasta quantidade de "presentes" e executar outras tarefas "previstas nas Instru-
ções do Serviço" (Araújo, 1912: 10)
205
.
Na sede do seringal Liberdade, de propriedade do Coronel Carvalho, Linhares a-
firma ter estabelecido seu "quartel-general", fundando a sede do Serviço e preparando a
expedição às malocas. Fazendo uso de canoa e de homens cedidos pelo coronel, chega-
ria ao seringal Ceará, de onde, acompanhado pelo gerente Manoel Rodrigues da Cunha,
alcançaria as malocas habitadas pelos Kaxinawá e Arara, chefiados pelo "tuxaua" Tes-
con, nas nascentes do igarapé Forquilha. "Bem recebido" pelos índios, que reconhece-
ram o gerente, recepcionando-o com gritos de "papai Cunha", Linhares realizaria um
censo da população, levantaria "suas necessidades mais imediatas" e procederia com a
distribuição de "presentes", dentre os quais, especifica realejos e contas.
De retorno à sede do seringal Liberdade, Linhares decidiria por iniciar a abertura
de uma estrada de rodagem até o barracão do seringal Ceará, de maneira a facilitar a
comunicação entre a "sede do Serviço" e as malocas, empreitada na qual, sem sucesso,
tentaria mobilizar os índios de Tescon. Em nova visita às malocas do igarapé Forquilha,
onde se dedicou ao tratamento dos índios doentes, diz ter encontrado vários Jaminawa,
oriundos do igarapé da Besta, prisioneiros de uma "correria" promovida por Tescon. Li-
nhares comenta ainda que Tescon planejara nova "correria" contra os Jaminawa, para
vingar a recente tentativa de assassinato de Guilherme Duque Estrada, então "funcioná-
204
De sua rápida passagem pelo Alto Juruá, Araújo levaria a impressão de que não eram numerosas as
"nações indígenas", "nem em número de malocas, nem tampouco de habitantes". Compostas por peque-
nas famílias, diria, viviam em constante "estado de guerra" entre si, guerra "entretida e açulada" por al-
guns seringalistas, que assim se viam "livres dos índios, sem responsabilidade jurídica, nem maiores in-
cômodos". Araújo diz ter tomado conhecimento de três principais nações, Jaminawa, Arara e Kaxinawá,
que se encontravam espalhadas em diferentes afluentes dos vales dos rios Juruá, Liberdade, Gregório, Ta-
rauacá, Murú e Envira, estando mais concentradas nas cabeceiras deste último, onde com freqüência eram
alvo de violências de caucheiros peruanos (Araújo, 1912: 11).
205
Os resultados da expedição de Linhares foram publicados como artigo no Jornal do Commercio, de
Manaus, a 12/1/1913, em texto datado de maio do ano anterior (Linhares, 1913). Em várias passagens de
seu relatório, o Inspetor Francisco Araújo (1912) teceria críticas aos procedimentos do ex-Ajudante Má-
ximo Linhares durante a expedição, por não ter acatado suas instruções, enviando-lhe ofícios mensais de
suas atividades e dos gastos realizados (inclusive com a distribuição de larga quantidade de mercadorias e
presentes destinados aos índios), e por não ter, até maio de 1912, feito a entrega do seu relatório final, o
qual, aparentemente, Linhares optou por enviar diretamente ao novo Inspetor, João de Araújo Amora.
Nenhum relatório de Linhares, encaminhado à Inspetoria do Amazonas e Território do Acre, foi localiza-
do no SARQ/MI. Menções a certos resultados de sua expedição constam, contudo, em relatórios encami-
nhados pelo MAIC à Presidência da República (Brasil. MAIC, 1911, 1912), como será visto adiante.
142
rio da Prefeitura do Alto Juruá", dedicado ao "cuidado dos indígenas". Essa incursão te-
ria sido, segundo Linhares, impedida pelo gerente do seringal Ceará, a quem Tescon
comunicara sua intenção. Do Coronel Carvalho, Linhares obteria nova garantia de que
seus gerentes não promoveriam ou permitiriam "correrias".
Acompanhado por alguns índios, Linhares seguiria às cabeceiras do rio Gregório,
onde visitou outras duas malocas, habitadas por cerca de 40 Kaxinawá, chefiadas pelos
"tuchauas" João Timá e Maroacá, e tratou doentes com malária, enquanto "estudava-
lhes os costumes e levantava suas necessidades". Seguiria depois com esses "tuchauas"
em "rápida excursão" a três malocas no rio Amoacas (Humaitá), habitadas por cerca de
200 índios, Jaminawa e Amahuaca. Doente, sofrendo crises diárias de febre, chegaria à
sede do seringal Humaitá, cujo proprietário, Coronel Manoel Absolon Moreira, provi-
denciaria sua acolhida, seu tratamento inicial e sua viagem até a cidade.
Em Cruzeiro do Sul, Linhares, aproveitando a presença de um padre, providencia-
ria o batismo de alguns índios e entregaria presentes (espingardas, um rifle, balas, muni-
ção, roupas, sapatos, mosquiteiros, miçangas e outras "miudezas") aos dois "tuchauas"
Kaxinawá que haviam acompanhado-o na expedição. Procurou ainda encaminhar junto
ao Juizado de Órfãos, sem sucesso, devido à ausência do juiz, o pedido de tutela de um
menino indígena, encontrado, "bem tratado", na companhia de um "digno proprietário"
no rio Moa. Depois nomeado Floriano Peixoto, o menino chegara fazia quase seis anos,
trazido por caucheiros peruanos, baleado às costas, resultado de uma "correria" promo-
vida contra uma maloca no alto rio Tarauacá. Ainda em Cruzeiro, Linhares remeteria
carta ao peruano Nicanor Robalino, morador do rio Juruá Mirim, exigindo a imediata li-
beração de quatro indígenas que, segundo tomara conhecimento, mantinha "escraviza-
dos" e em breve pretendia levar ao Peru.
De retorno ao Riozinho da Liberdade, diante das notícias de saques feitos por "ín-
dios bravios" no seringal do Major Alfredo de Mello, solicitar-lhe-ia "proteção e paci-
ência" para com esses indígenas, obtendo sua palavra de honra de que não consentiria
que, em represália, "correrias" fossem promovidas por seus fregueses. Indenizaria, ain-
da, fregueses de outro seringal, onde os mesmos "índios bravios" haviam cometido vá-
rios roubos.
Por incumbência do Inspetor Francisco Araújo, a parte final da expedição de Li-
nhares nos afluentes do Alto Juruá estaria voltada ao rio Moa. Essa etapa contaria com a
decisiva participação do Coronel Mâncio Agostinho Rodrigues Lima, proprietário da
Fazenda Canudos e do seringal Barão do Rio Branco, que desde início do século pro-
143
movera várias tentativas de "conquista" dos cerca de 200 Poyanawa, que, apesar dos
contatos fortuitos e das ferramentas e "presentes" recebidos, continuavam a promover
seguidos saques às casas dos seringueiros
206
. Contaria também com a presença de Antô-
nio Bastos, conhecido "catequizador de índios", "protetor" de malocas habitadas por
quase duas centenas de índios, que trabalhara para a Comissão de Obras Federais e
encontrava-se então a serviço da Prefeitura do Alto Juruá
207
. Em junho de 1911, Bastos
fora recrutado por Mâncio Lima para uma nova tentativa de contato com os Poyanawa,
tarefa na qual fora acompanhado por cinco índios "civilizados", trazidos das malocas
das quais era "protetor". Nesta outra ocasião, Mâncio Lima providenciaria passagem e
hospedagem para Linhares, Bastos e aqueles índios na Fazenda Canudos, onde o aju-
dante do SPILTN pretendia instalar uma "base das nossas expedições para a conquista
dos bravios índios Poyanawa". O coronel forneceria ainda canoa, homens e recursos pa-
ra que Bastos, junto com seis índios, seguisse depois ao seringal Gibraltar, no alto rio
Moa, com a intenção de convidar alguns dos "pacíficos, civilizados e bons índios" Nu-
kini a se engajarem em uma futura expedição às malocas Poyanawa.
Quais foram os principais resultados das primeiras "expedições", de quase seis
meses de duração, dos dois primeiros representantes do SPILTN a visitarem o Alto Ju-
ruá? Que padrões de relacionamento entre o SPILTN, os índios, os proprietários de se-
ringais e o poder público departamental foram vislumbrados pelo Inspetor Francisco
Barbosa de Araújo e pelo Ajudante Máximo Linhares? Que medidas foram efetivamen-
206
Em seu texto, Linhares (1913) transcreve a íntegra de longa carta de Mâncio Lima, na qual o coronel
historia as várias iniciativas realizadas, desde 1901, com o seu irmão Vicente, para tentar "catequizar" os
Poyanawa, com o único interesse, justifica, de "dar à nossa cara-pátria mais duzentos braços úteis, para
o seu engrandecimento". Mâncio Lima ressalta ainda a impossibilidade de realizar novas empreitadas
com esse fim, devido às altas somas de recursos próprios já investidos e aos seguidos prejuízos enfrenta-
dos em seus seringais, devido à recusa de vários de seus fregueses de continuarem produzindo borracha,
desanimados com os roubos e temerosos de novos ataques.
207
São as seguintes as considerações de Linhares sobre Antonio Bastos: " (...) moço que reaes serviços
tem prestado à catechese e civilização dos índios do departamento do Juruá, pois em 5 annos que com el-
les vive tem-lhes ensinado os bons costumes e já conseguio catechizar oito malocas, sem que para isto ti-
vesse o menor auxílio do Governo. Falla com desembaraço os dialetos dos Caxinauas, Jaminauas, Ara-
ras, Amoacas e Catuquinas. É extremamente estimado pelos índios que vivem sob sua protecção, que o
obedecem cegamente e que já receberam uma certa educação, que muito me sorpreendeu e que observei
com prazer numa viagem que fiz no alto Môa em companhia de Bastos e 6 delles. Em toda a parte por
onde tenho passado ouço com desvanecimento, não só de proprietários, como de autoridades, grandes e
francos elogios ao seu real valor e desinteresse". Comentários, sempre favoráveis, sobre os trabalhos de
Bastos à "civilização" dos índios, constam na carta do Coronel Mâncio Lima, transcrita por Linhares
(1913), e no relatório de Dagoberto Silva (1912), "auxiliar" da Inspetoria do Amazonas e Acre, que, em
1912, realizou "expedição" nos rios Amoaca e Valparaíso. Castello Branco (1950: 20), ao arrolar Antonio
Bastos dentre os personagens, na sua maioria seringalistas, que mais se "esforçaram nessa pacificação re-
gional", contabiliza ter ele trazido "mais de oitocentos selvícolas a relações amistosas com os seringuei-
ros, permitindo o alargamento do campo da ação da indústria extrativa (...)".
144
te tomadas pelo órgão e como estavam relacionadas com os acordos inicialmente firma-
dos com os seringalistas e a prefeitura?
Dos entendimentos de Linhares com os coronéis Francisco Freire de Carvalho e
Mâncio Lima resultariam ofertas de terras para que o SPILTN procedesse com a "agre-
miação" e o "aldeamento" de vários grupos indígenas: no seringal Liberdade, terrenos
aptos à agricultura e banhados por quatro lagos piscosos, distantes uma hora da sede do
barracão, para a fundação de uma "povoação indígena"; e na Fazenda Aurora, para outra
"povoação", na qual os Poyanawa, uma vez "pacificados", ficariam "sob as vistas" do
"benemérito Coronel". Nas adjacências desta mesma Fazenda, em uma faixa de "terras
devolutas", sugerida por Mâncio Lima, Linhares anunciaria a intenção de instalar um
"núcleo indígena", para abrigar parte dos Nukini, e futuramente outros índios
208
. Por
fim, em terras também devolutas, localizadas a 16 km de Cruzeiro do Sul, no Estado
do Amazonas, vislumbrou o ajudante a oportunidade de instalar outra "povoação indí-
gena".
Dada as atribuições mais amplas do SPILTN, Linhares sugeriria a conveniência,
para a "civilização" dos índios, da localização de trabalhadores nacionais, junto com su-
as famílias, naquelas "povoações", as quais ficariam sob a supervisão de um "encarre-
gado" de confiança do órgão indigenista. Pela "imitação do civilizado", acreditava Li-
nhares, poderiam os índios melhorar as suas "prejudiciais habitações" (às quais atribuía
o péssimo estado sanitário constatado nas malocas) e "muitas outras coisas". Assim co-
mo já fizera o Inspetor Araújo no alto rio Iaco, Linhares vislumbraria na agricultura a a-
tividade a ser privilegiada pelo SPILTN em futuras "povoações indígenas" no Alto Ju-
ruá, mesmo destacando, em várias passagens de seu texto, as grandes extensões e a di-
versidade dos roçados e plantações encontradas em quase todas as malocas visitadas.
O fim da expedição de Linhares ao Alto Juruá coincidiria com a promulgação do
decreto que determinou a extinção da Inspetoria no Território do Acre e, por conseguin-
te, sua própria demissão do cargo de ajudante dessa Inspetoria. Apesar desse contexto,
Linhares proporia duas medidas visando dar continuidade à atuação do órgão naquela
região. Por um lado, sugeriu a nomeação, com o título de "protetores de índios", de qua-
tro seringalistas, todos cearenses e já portadores de títulos de Coronel da Guarda Nacio-
nal: Francisco Freire de Carvalho, Mâncio Agostinho Rodrigues Lima, Manoel Absolon
208
Relatório do SPILTN, relativo ao ano de 1911, informa sobre a escolha, entre o rio Moa e o Paraná da
Viúva, acima da cidade de Cruzeiro do Sul, de um "bom terreno para a fundação de uma povoação indí-
gena", não especificando, todavia, se se tratava de terras incidentes na Fazenda Aurora ou se da outra
"faixa de terras devolutas" (Brasil. MAIC, 1912: 120).
145
Moreira e Francisco Bonifácio da Costa, este último proprietário no rio Tejo. Linhares
assim justificaria essa reivindicação: "Os títulos pedidos são uma prova da gratidão do
Brasil a tão dignos patriotas e humanitários brasileiros, os quaes muito têm trabalhado
em favor do nosso infeliz patrício e irmão índio". Em outro trecho do relatório, destaca
que pela "grande bagagem de bons serviços aos índios, os quaes bem lhes dão direito
ao honroso título de protectores dos Índios, servidores da pátria, bemfeitores da huma-
nidade (...)", procedera, "devidamente autorizado", com a nomeação de Mâncio Lima,
Francisco Carvalho e Absolon Moreira como "auxiliares" do SPLITN, e criara "delega-
cias" que ficaram a eles confiadas
209
. Aliada à futura fundação de "povoações indíge-
nas", no Riozinho da Liberdade e no rio Moa, essas medidas, vislumbrava Linhares,
possibilitariam que, sob a supervisão dos "delegados" recém nomeados, as famílias in-
dígenas se dedicassem às atividades agrícolas, sem nenhum risco eminente de conflitos
com os "civilizados"
210
.
Por outro lado, era intenção de Linhares constituir um corpo permanente de fun-
cionários do SPILTN na região. Nesse sentido, comunica ter efetivado Antonio Bastos
como "auxiliar" da Inspetoria, atribuição que este desempenhara na "expedição":
"Fiz-lhe um pequeno ordenado de trezentos mil réis mensaes que é relativamente ao
que tem feito em prol dos índios insignificantíssimo. É de inteira justiça, em vista do
exposto, que este serviço eleve o seu ordenado a seiscentos mil réis. Este pobre moço
209
O relatório do SPILTN, de 1912, explicita a política de nomeação de delegados, num quadro em que a
diretoria do órgão reconhecia não ter condições de manter funcionários próprios, em número suficiente,
em vastas regiões onde as "depredações" e "chacinas" contra os índios eram freqüentes e permaneciam
impunes, e a comunicação e os recursos eram escassos: "(...) estabeleceu o Serviço uma categoria de em-
pregados gratuitos, escolhidos entre pessoas de reconhecida capacidade, e encarregou-os de velar pelos
interesses dos índios naqueles pontos onde a acção das Inspectorias não pode ser contínua. Esses dele-
gados, agindo em nome das Inspectorias, não só cohibem os abusos a que eram os índios tão habitual-
mente sugeitos como velam por sua civilização e pela manutenção da paz entre as tribus. Elles se comu-
nicam constantemente com as Inspectorias, sendo seus trabalhos de vez em quando inspeccionados por
funcionário do quadro. Fica cada Inspectoria em condições de ter sempre informações precisas da popu-
lação indígena a seu cargo e, mesmo nas grandes regiões como a Amazonia, devidamente representada
em todos os pontos onde se sabe da existencia de selvícolas" (Brasil. MAIC, SPILTN, 1913: 2).
210
O mesmo relatório da Diretoria do SPILTN, referido na nota anterior, torna claros alguns dos objetivos
almejados com a implantação de "postos" e "povoações indígenas" em regiões onde a "velha opinião" a-
tribuía aos índios uma "indolência inata que o torna quase incapaz ao trabalho", concebendo-os como obs-
táculo à incorporação e ao desenvolvimento de novas áreas produtivas, devido às "depredações" que cau-
savam em propriedades dos "civilizados": "É muito importante fazer-se essa constatação, sobre tudo
quando se trata de abrir o paiz às grandes empresas da indústria moderna, tendo-se portanto de povoar
regiões novas onde nenhum outro elemento, senão o indígena, pode com facilidade adaptar-se. É eviden-
te, assim, que os actuaes postos de serviço, que são os primeiros fundamentos de futuras povoações indí-
genas, serão os naturaes fornecedores de proletários trabalhadores e operários dessas regiões (...) Não
resta, pois, duvida de que ao mesmo passo que o governo protege, ampara e salva o índio brazileiro,
promove e assegura os meios indispensáveis à conquista de grande parte do paiz (...) Era aliás esta uma
inilludivel obrigação de nossa política administrativa, a qual precisa pôr termo à falta de segurança ofe-
recida aos visitantes das nossas mattas e sertões, que até agora viam nas populações selvagens do Brazil
inimigos muito mais temerosos que as suas feras" (Brasil. MAIC, SPILTN, 1913: 4-5).
146
disse-me há dias que a Prefeitura do Alto Juruá lhe deve a quantia de 5 contos e tantos
mil réis!"
211
.
Atendendo a solicitação do próprio Bastos, nomeara-lhe, ainda, dois "auxiliares",
Luiz das Chagas Filho e Conrado Ferreira de Souza, com salários de 200$000 e
300$000, respectivamente. Além de continuar a atuar nas malocas, habitadas por cerca
de 200 índios, "que fazia cerca de cinco anos viviam sob sua proteção", e do acordo
com Mâncio Lima para prosseguir com a "pacificação" dos Poyanawa, Linhares não de-
talha, em seu texto, outras instruções fornecidas a Antonio Bastos e aos seus auxiliares.
As principais diretrizes propostas por Máximo Linhares para a atuação do
SPLITN no Departamento do Alto Juruá, e principalmente as ações por ele iniciadas, te-
riam linha de continuidade em nova "expedição" realizada, a partir de abril de 1912, por
Dagoberto de Castro Silva, "ajudante" da Inspetoria do Amazonas e Território do Acre,
na gestão do novo inspetor, o engenheiro militar João de Araújo Amora, sucessor do
tenente Alípio Bandeira
212
.
Num contexto em que continuavam a ecoar nos órgãos governamentais e na im-
prensa denúncias de violências e do genocídio cometido por representantes da Casa A-
rana contra indígenas no rio Putumayo, Silva procuraria dar seqüência as ações contra a
"escravização de índios". Pouco antes de sua chegada, Antonio Bastos, na condição de
211
Na carta de Mâncio Lima, transcrita por Linhares (1913), o coronel solicita que "apoio e proteção"
fossem dados a Antonio Bastos pelo governo federal, para que ele pudesse prosseguir com sua atuação,
tanto nas malocas do Alto Juruá, como na "pacificação" dos Poyanawa. E sugere a Linhares que envidas-
se esforços para garantir, junto à Prefeitura, que Bastos recebesses seus salários atrasados, colocando-se a
total disposição, junto com outros seringalistas, no sentido de oferecer provas dos serviços que aquele já
prestara.
212
A documentação disponível a respeito da gestão do Inspetor João Araújo Amora é fragmentária nos re-
latórios da Diretoria do SPILTN e do MAIC e praticamente inexistente no acervo do SARQ/MI. Nomea-
do em janeiro de 1912 pelo Ministro da Agricultura, em atendimento à indicação do inspetor anterior, seu
ex-colega na Escola Militar do Ceará, Araújo Amora chefiaria a Inspetoria do Amazonas e Território do
Acre até começo de 1916. Ao iniciar sua gestão, daria continuidade às atividades iniciadas por Bandeira,
promovendo, por meio de ajudantes e encarregados de entrepostos, "expedições" para o reconhecimento
da situação em que se encontravam os índios, a mediação de conflitos e a produção de subsídios necessá-
rios ao estabelecimento de postos (Freire, 2007: 17; Melo, 2007: 101-02; 133-34). Além de duas expedi-
ções a aldeias Mura na região de Autaz, e uma a aldeias Apurinã e Jamamadi, no rio Inanuini, no médio
Purus, outras três seriam realizadas ao rio Jauapery, onde Bandeira iniciara, em 1911, os primeiros enten-
dimentos com os Waimiri (Para um detalhamento dessas expedições, com base nos relatórios que dela re-
sultaram, ver Melo, 2007: 102-132). Pouco depois da expedição ao Alto Juruá, em setembro de 1912, a-
tendendo ordens da Diretoria do SPILTN, Dagoberto de Castro Silva participaria de expedição ao rio Ju-
taí, chefiada pelo também ajudante Arthur Bandeira, com o objetivo de recuperar cinco meninas captura-
das por índios Conibo, após terem matado seu pai, o Coronel Cornélio de Chaves e Mello, e sua esposa,
no seringal Icaraí. Após o Ministro da Agricultura, Pedro de Toledo, ter solicitado ao Governador do A-
mazonas a desmobilização de uma tropa da polícia militar estadual que seguiria ao local dos acontecimen-
tos para punir os "índios criminosos", a partida da expedição da SPILTN e o seu bem-sucedido resultado
alcançaram significativa repercussão na imprensa, em Manaus, São Paulo e no Rio de Janeiro. A este res-
peito, ver os relatórios de Bandeira (1912) e Silva (1912a), e uma série de matérias, listada na bibliografi-
a, na Seção "Artigos de jornais", disponível no SARQ/MI (Microfilme 324, Planilha 02, Fot. 34-41).
147
"encarregado do Entreposto de Proteção aos Índios do Alto Juruá", publicara no jornal
O Cruzeiro do Sul carta encaminhada ao Prefeito, capitão do Exército Francisco Siquei-
ra de Rego Barros, denunciando casos de indígenas "escravizados" e solicitando seu a-
poio para intimar o peruano Nicanor Robalino, junto com os índios sob seu poder, para
a devida "apuração da verdade"
213
. Escoltado por força policial, disponibilizada pelo
prefeito a pedido de Dagoberto Silva, Bastos traria inicialmente dois índios a Cruzeiro
do Sul. O ajudante do SPILTN solicitaria ao Juizado de Órfãos que a tutela do menor de
idade fosse concedida a João Bispo Lustosa, morador do seringal Vitória, no rio Juruá.
A outra índia, Magdalena, optaria por permanecer na Fazenda Canudos, "aos cuidados"
do Coronel Mâncio Lima, "delegado" da Inspetoria no rio Moa (Silva, 1912: 2). Em o-
casião posterior, Nicanor Robalino atenderia a uma nova intimação, trazendo duas ín-
dias, Maria Pintada e Felipa, as quais, perante o Prefeito e outras testemunhas, declara-
riam seu desejo de permanecer em companhia do peruano (1912: 7).
A principal atividade da "expedição" do ajudante Dagoberto Silva esteve centrada
no rio Amoacas no rio Nilo, seu afluente. No seringal Humaitá fez a entrega ao proprie-
tário, Coronel Manoel Absolon Moreira, de documento da Inspetoria nomeando-o "De-
legado dos Índios do rio Amoaca"
214
. De passagem em canoa oferecida pelo Coronel, e
depois acompanhado por dois índios Jaminawa que trouxera de Cruzeiro do Sul, Silva
visitou, em diferentes igarapés, quatro malocas e um agrupamento de "barracas", habi-
tados por famílias Amahuaca e Jaminawa, realizou censos nessas habitações e distribuiu
grande quantidade de roupas, ferramentas, canivetes, tesouras e brinquedos para as cri-
anças. Ali constataria casamentos interétnicos, grupos de famílias vivendo em malocas
e outros em casas semelhantes às dos seringueiros, alguns "tuxauas" com bom domínio
do português, grandes roçados e plantações e, ainda, alguns índios dedicados à produ-
ção da borracha e do caucho, que trocavam por mercadorias no barracão de Absolon
Moreira e nos depósitos de seus gerentes.
O ajudante do SPILTN avaliaria que os Jaminawa e Amahuacas, "trabalhadores e
bem tratáveis", viviam "na melhor harmonia possível". Consideraria, contudo, que seria
213
A transcrição da carta de Antonio Bastos, precedida de breve introdução, renderia a matéria "No Juruá.
Índios brasileiros escravizados. Rico proprietário tem em seu poder cinco índios captivos", no Jornal do
Commercio, do Rio de Janeiro, a 9 de junho de 1912 (SARQ/MI, Microfilme 324, Planilha 07, Fot. 258).
214
Castello Branco (1950: 17) dá indicações dos métodos utilizados pelo proprietário do Humaitá para
gradualmente "incorporar os índios à civilização", mobilizando a sua mão de obra: "(...) cearense pro-
gressista e inteligente, Absolon Moreira, o qual por meio de constantes atos de tolerância conseguiu a
confiança das tabas do rio Leonel (Amahuacás), tratando os seus componentes por meio de um sistema
de recompensa, acostumando-os ao regime do trabalho. Não os tem presos à gleba dos seus seringais.
Quando eles aparecem, executam diversos serviços, recebendo o pagamento previamente combinado, re-
tirando-se depois para as suas malocas".
148
conveniente reuni-los em um único local, sob a direção de um chefe, iniciativa que de-
veriam contar com o auxílio da Inspetoria. Para tal, sugeriria a criação de uma grande
"povoação indígena" próxima à maloca Cova da Onça, entre os rios Nilo e Amoaca, lu-
gar saído, fértil, "preferido pelos índios" e onde estes não correriam risco de serem per-
seguidos por "pseudocivilizados", devido à total ausência da seringa. Futuramente, es-
perava para ali atrair outros grupos que não habitavam "lugar certo": os Kulina, que
"perambulavam" nas cabeceiras dos rios Breu e Jordão, e os Chipinawa, no alto igarapé
Valparaíso. Para facilitar a comunicação entre essa "povoação" e o rio Juruá, planejou
abrir uma estrada de rodagem, atravessando parte das propriedades de Absolon Moreira.
Além da autorização para essa empreitada, o delegado ofereceria um terreno para fun-
dar a "povoação", o qual Silva sugeriu que a Inspetoria demarcasse até o final daquele
ano (Silva, 1912: 6).
As propostas de atuação delineadas por Máximo Linhares, que tiveram continui-
dade na expedição de Dagoberto de Castro Silva, refletem certa visão, inspirada pelo i-
deário positivista, quanto aos deveres e compromissos que o SPILTN deveria desempe-
nhar em relação à "civilização" dos índios, "protegendo-os" contra o extermínio físico e
educando-os em práticas produtivas, respeitadas as suas "aptidões naturais"
215
.
Em linhas gerais, as propostas dos ajudantes do SPILTN assemelhavam-se a parte
daquelas que haviam fundamentado, anos antes, os projetos de "catequese" propostos
pelos Prefeitos Thaumaturgo de Azevedo e Manuel Bueno de Andrada: a denúncia das
"correrias", iniciativas contra a "escravização" de indígenas e o estabelecimento de a-
cordos com certos proprietários dos seringais, visando "pacificar" a região, "proteger"
os indígenas, fazer cessar as "correrias", bem como evitar "represálias" dos índios e de-
sencorajar a continuidade de conflitos entre diferentes grupos. Ambos ajudantes do ór-
gão indigenista providenciariam ações, ainda que pontuais, para a concessão da tutela de
menores e jovens indígenas em favor de proprietários "bem intencionados"; e, no caso
de Linhares, para o batismo de índios, iniciativa defendida por Thaumaturgo de Aze-
vedo e pelo delegado Luiz Sombra, e levada a cabo nas "desobrigas" pelos padres fran-
215
Linhares (1913) assim resumiria sua visão sobre a "missão civilizatória" a cargo do órgão indigenista
federal: "É um magno dever do paiz a civilização do índio, trazendo-o ao convívio social, como elemento
de progresso pelo cultivo e desenvolvimento de suas aptidões e tendencias nativas, que não podem ficar
desaproveitadas em prejuízo da comunhão geral. Tem tanto direito à instrucção o filho das selvas como o
das grandes cidades; em vez de exterminal-o pela morte, como proclama o novo canibalismo, em nome
de uma falsa sciencia, chamemol-o à vida, à vida plena da actividade, boa, sã e fecunda. É um tríplice
dever, dever patriótico, dever humano, dever christão. Destruir em vez de instruir é de bárbaros (...) At-
tingiremos o nosso escopo final se proseguirmos sem desfallecimento no caminho que vamos jornadean-
do e então a missão de protecção aos índios será bem comprehendida como uma obra de civilização, de
ordem e de progresso".
149
ceses da Congregação do Espírito Santo, Jean Baptiste Parissier e Auguste Cabriolé e
depois por Constant Tastevin.
Durante a "expedição" de Máximo Linhares, a nomeação de funcionários próprios
e a constituição de uma rede de "delegados honorários" dentre os principais seringalistas
da região resultaram da tentativa de instalar o SPILTN no Alto Juruá e consolidá-lo co-
mo principal condutor das políticas de "proteção" e "civilização" dos indígenas. Essa
institucionalização do órgão no plano local seria vislumbrada por meio da fundação de
"povoações indígenas", constituídas pelo reassentamento e a territorialização de grupos
"dispersos", com base na agricultura e em ações de cunho pedagógico, voltadas à "edu-
cação" para o trabalho. E contemplaria a convivência com famílias de "trabalhadores
nacionais", vistas como outra relevante fonte de "exemplo" para os indígenas incorpora-
rem costumes e hábitos produtivos e, assim, acessarem benefícios da "civilização".
O funcionamento permanente do SPILTN no Alto Juruá e a tutela pretendida so-
bre os grupos indígenas dependeriam, em última instância, da atuação de seringalistas
nomeados como "delegados de índios", contando com a "supervisão" de funcionários
dos quadros do Serviço (neste caso, Antonio Bastos e seus "auxiliares"). Além da "pro-
teção", "educação" e "supervisão" dos índios, caberia a essa rede de atores, composta
pelos funcionários do órgão e pelos "delegados honorários", a produção e o repasse sis-
temático à Inspetoria de informações a respeito do andamento das atividades nas "povo-
ações" e de eventuais conflitos com os "civilizados" e entre os próprios indígenas, vi-
sando subsidiar diretrizes e ações determinadas pela administração centralizada em Ma-
naus, bem como informar à Diretoria do órgão na capital federal
216
.
Assim como ocorrera no Departamento do Alto Purus, contatos e entendimentos
seriam mantidos pelos representantes do SPILTN com a Prefeitura do Alto Juruá, vi-
sando obter apoio institucional e financeiro para as ações continuadas do órgão. Ao con-
trário do que aventara o Inspetor Francisco Barbosa de Araújo, essas iniciativas acabari-
am por ter desdobramentos pouco auspiciosos. Após sua estadia em Cruzeiro do Sul,
Linhares teceria críticas
a dois prefeitos, Manoel Bueno de Andrada e Pedro Avelino,
216
A respeito dos objetivos das delegacias, bem como das formas de nomeação e principais atribuições
dos delegados, destaca Lima (1995: 239): "As delegacias eram uma forma específica de construção de a-
lianças, de coligir informações e divulgar a existência do Serviço em locais onde a presença direta do
aparelho através de unidades locais não pudera se estabelecer, pela distribuição tática de recursos. Tra-
tava-se de uma espécie de prebenda, função não remunerada da qual eram investidos, através de nomea-
ção oficial, certos indivíduos da confiança pessoal de Rondon ou de inspetores do Serviço. Sua tarefa era
informar às inspetorias sobre a situação dos indígenas estabelecidos nas áreas em que habitavam, nota-
damente no que tange à presença de conflitos de diferentes povos entre si, entre estes e os civilizados, e
acerca de "invasões" estrangeiras, sobretudo de exploradores de seringa".
150
este major da Guarda Nacional. A negativa deste último de repassar ao SPILTN uma
quantidade considerável de ferramentas deixadas para trás pela Comissão de Obras Fe-
derais e a ausência de respostas a outros pedidos encaminhados constituiriam os pontos
principais desssas críticas. Por isso, avaliaria Linhares (1913), "nenhum favor" devia a
Inspetoria ao prefeito, que sempre revelara "não ligar a menor importância ao nobre
problema da protecção aos selvícolas"
217
.
A resposta oficial a essas críticas viria em relatório encaminhado pelo prefeito,
Capitão Francisco Siqueira do Rego Barros, ao Ministério da Justiça e Negócios Interio-
res, em início de 1914, reivindicando uma atuação mais efetiva do SPILTN no Alto Ju-
ruá:
"O serviço instituído pelo Governo Federal, de defesa e proteção aos silvícolas,
não tem dado resultado prático no Departamento, apesar de aqui estarem desta-
cados dois funcionários designados pela direção do serviço em Manaus. Por
maior que seja a dedicação desses empregados (e eles o têm sido realmente dedi-
cados), quase nada lhes têm sido possível fazer, em virtude de não disporem de
elementos pecuniários para o êxito de uma empresa dispendiosa, como essa que
lhes foi cometida" (apud Castello Branco, 1950: 20)
218
.
Ao contrário dos resultados praticamente nulos da "catequese oficial", ressaltaria
o prefeito, a "pacificação regional" e as boas relações então vigentes entre indígenas e
"civilizados" continuavam a resultar dos esforços pessoais e dos elevados dispêndios re-
217
Linhares também criticaria o atraso nos salários prometidos aos funcionários responsáveis pela "cate-
quese departamental", Antonio Bastos e Guilherme Duque Estrada. Pela falta de respaldo após a tentativa
de assassinato que sofrera no Igarapé da Besta, diz, Estrada acabara por abandonar sua "vocação natural"
de trabalhar em prol dos índios, resultando, na perda de um potencial colaborador do Serviço. A noção de
"favor", contudo, parece permear as ações face aos seringalistas nomeados como delegados e protetores
de índios, não só enquanto reconhecimento pelos serviços prestados à "civilização" destes, mas pelos "fa-
vores" prestados ao SPILTN, na cessão de terrenos e no apoio hipotecado a futuras ações, e também aos
seus representantes durante as "expedições", na forma de hospedagens, apoio logístico, alimentação, cui-
dados em caso de doenças.
218
Também em 1914, após "desobriga" no rio Moa, o padre Constant Tastevin publicaria, em "Missions
Catholiques", carta endereçada ao Monsenhor Le Roy, da Congregação do Espírito Santo, com o objetivo
de mostrar as condições em que o "ministério apostólico" era levado a cabo nas regiões mais distantes da
Amazônia ocidental. Informando ao Monsenhor que nunca um missionário francês visitara aquele rio e
que as "correrias" ali continuavam a acontecer, Tastevin teceria críticas às ações do SPILTN: "O governo
brasileiro, para evitar estes abusos lamentáveis, estabeleceu a "catequese laica e positivista" dos índios:
mas nem todos os índios estão dispostos a escutar estes senhores. Os chefes da catequese não deixam a
capital, onde gozam de gordas remunerações. Os empregados secundários apenas sabem assinar o nome
e são tão bárbaros quanto os índios. O chefe atual desta região administrativa tem duas índias como
companheiras: uma delas fica em casa e a outra o acompanha nas suas viagens. Foi ele o catequisado
pelos índios! ". Também criticaria a falta de apoio oficial para que as tarefas de proteção, catequese e as-
sistência dos índios ficassem sob responsabilidade de missionários católicos, inclusive de sua congrega-
ção, conforme desejo já manifestado pelo padre Parissier quinze anos antes: "Se nós, os missionários fôs-
semos mais numerosos, poderíamos fazê-lo; mas não somos suficientes nem para o serviço dos cristãos.
Além disso, para ir até os índios, são necessários recursos, pois eles não têm nada e estão longe de todo
centro civilizado! O governo brasileiro, que parece ter se unido à igreja positivista ao se separar da I-
greja Católica, não nos ajudará nunca. Há caridade católica demais a ser feita na África e na Ásia. Que
Deus tenha piedade dos índios da Amazônia!" (Tastevin, 1914).
151
alizados por "iniciativas de particulares", dentre as quais citaria, novamente, as empre-
endidas pelos coronéis Mâncio Lima, Absolon Moreira, Francisco Freire de Carvalho e
Francisco Bonifácio (Castello Branco, 1950: 21; Barros, 1993, Vol. I: 125)
219
.
Além desses mesmos seringalistas terem sido reconhecidos como "protetores
dos índios" e "delegados honorários", as considerações de Rego Barros são indício, por
um lado, de que a Prefeitura do Alto Juruá deixara de ter projetos e ações próprios para
a "catequese" e "civilização" dos índios. Por outro, são uma clara indicação da frágil
institucionalização lograda até então pelo SPILTN no plano local. Sem qualquer apoio
continuado do órgão, as ações dos seringalistas nomeados como "delegados de índios"
continuariam a ser realizadas, e vistas pelas autoridades departamentais e pelos demais
civilizados, como fruto de seus interesses, iniciativas e dispêndios pessoais. As patentes
de "delegados" vieram assim a constituir mais um afiançador das relações, e da domina-
ção, que alguns desses seringalistas já exerciam, ou passaram a exercer, no caso do Co-
ronel Mâncio Lima, sobre populações indígenas localizadas em, ou depois trazidas
para, suas propriedades.
O SPILTN, por meio da Inspetoria sediada de Manaus, nenhuma atuação signifi-
cativa desenvolveria no Departamento do Alto Juruá nos anos seguintes, para além da
nomeação de "delegados honorários
"
e, conforme permitiu constatar a pesquisa, o Inspe-
tor que assumiria a partir de 1916, Bento Martins Pereira de Lemos, optaria por não atu-
alizar quaisquer relações institucionais com esses seringalistas nomeados na gestão de
seu antecessor. Voltar-se-á a estes pontos numa seção à continuação.
No alto rio Envira: Reserva Florestal, delegados e caucheiros
A etapa final da expedição do ajudante Máximo Linhares ocorreria nos rios Murú
e Envira, afluentes do rio Tarauacá, nos dois primeiros meses de 1912, portanto, logo
após a extinção da Inspetoria do Território do Acre. Os motivos, os protagonistas e os
desdobramentos dessa viagem são relatados de maneiras diversas em diferentes docu-
mentos oficiais.
Relatório do MAIC, encaminhado à Presidência da República em 1912, informa
que, durante a passagem do Inspetor do SPILTN por Manaus, em meados do ano anteri-
or, o Jornal do Commercio publicara artigo sobre "atrocidades e depredações de índios
219
Dentre esses "particulares", o prefeito Rego de Barros também incluiria, além de Antonio Bastos, o fi-
nado coronel Ângelo Ferreira da Silva, cujas ações, na segunda metade da década anterior, tinham resul-
tado na "catequização" de "mais de mil índios, que lhe eram dedicadíssimos" (apud Castello Branco,
1950: 20). As ações de Ângelo Ferreira serão analisadas mais detidamente no capítulo seguinte.
152
no Alto Envira, affluente esquerdo [direito - MPI] do rio Tarauacá". A ida ao "theatro
dos acontecimentos", ressalta o relatório, permitira constatar que a realidade era inversa
à noticiada: os "índios acusados de roubos e mortes eram, de fato, as vítimas dessas
violências". Face a essa situação, o inspetor ensejara medidas para evitar novas violên-
cias, mas não lograra responsabilizar "os autores ou cúmplices da batida". O relatório
centra as denúncias sobre as ações dos caucheiros (o "bandeirante destes tempos"), pela
devastação das florestas, da caça e dos roçados dos índios, pelo engajamento forçado de
sua mão de obra, pelo desrespeito às suas mulheres e por recorrentes "morticínios", via
de regra impunes. E finaliza reivindicando mais recursos orçamentários para viabilizar
uma maior atuação e vigilância do órgão indigenista (Brasil. MAIC, 1912: 120).
O próprio Inspetor Barbosa de Araújo, contudo, contradiz as informações acima
em relatório apresentado a João de Araújo Amora, Inspetor do SPILTN no Amazonas e
Acre. O ex-Inspetor confirma ter iniciado expedição às cabeceiras do rio Envira, mas in-
forma tê-la interrompido devido à extinção da Inspetoria do Acre e à sua dispensa do
Serviço (Araújo, 1912: 9-10). Informa, ainda, ter deixado o ajudante Máximo Linhares,
em meados de dezembro de 1911, na foz do rio Tarauacá, destinado aos altos rios Murú
e Envira, com instruções de colher dados detalhados sobre os índios desses rios e distri-
buir, a todos os "posseiros" da região, cópia do decreto presidencial que criara a "Reser-
va Florestal" (Araújo, 1912: 8).
O ex-inspetor faz menção à Reserva Florestal estabelecida no Território do Acre
pelo Decreto 8.843, de 26 de julho de 1911, assinado pelo Presidente da República,
Hermes da Fonseca, e pelo titular do MAIC, Pedro de Toledo. Composta por quatro á-
reas descontínuas de terras, com extensão agregada de cerca de 2,8 milhões de hectares,
a reserva tinha por objetivo evitar grandes incêndios florestais e proteger o regime de
águas pluviais, garantindo a navegação fluvial e os rios que dela dependiam
220
. No caso
específico do alto rio Envira, uma faixa da reserva, com largura média de 20 quilôme-
tros, tinha a divisa do Purus e o Envira como eixo, abrangendo todas as cabeceiras deste
220
Para as íntegras do decreto e da Portaria de 28 de Agosto de 1911, com as instruções para a execução
do decreto, ver Brasil. MAIC, 1911, A-170-A-174. A respeito do contexto político institucional dessas
medidas, concomitante ao envio ao Congresso, pelo Ministro da Justiça, do Projeto de Lei Florestal, e à
publicação do Mapa Florestal, como subsídio à criação de outras reservas no país, consultar Brasil.
MAIC, 1911, Vol. 1: IX-XX; 67-71; 143-50; e Vol. III (Anexos - Segunda Parte): 1-98. Para uma análise
da conjuntura de criação da Reserva Florestal e de seus desdobramentos práticos, ver Garcia, 1989.
153
último, e descia até a linha geodésica Beni-Javary, fronteira entre o Acre e o Amazonas,
compreendendo uma extensão total de cerca de 400 mil hectares
221
.
O decreto presidencial vedava a entrada de estranhos, a extração de madeiras e
outros produtos florestais, a caça e a pesca no interior da reserva. E estabelecia prazo de
um ano para que os "moradores" apresentassem títulos de posse e a Justiça Federal ava-
liasse sua legalidade, de forma que o Governo providenciasse sua aquisição, por "acor-
do amigável ou desapropriação", ou a alteração dos limites da reserva. Essas medidas
não se aplicavam, todavia, às "populações aborígenes que, com exclusão absoluta de
indivíduos de outras raças, vivam em sociedade nas mattas da reserva, podendo o Go-
verno promover a sua mudança de conformidade com o art. n. 13, do decreto
8.072, de 20 de junho de 1910"
222
. Em trechos incidentes em "região de fronteira", pode-
ria o governo implantar na reserva fortificações e guardas "necessárias à defesa nacio-
nal", bem como caminhos para a "comunicação estratégica". A jurisdição sobre a reser-
va era atribuição do Serviço de Inspeção e Defesa Agrícola (SIDA), do MAIC, auxilia-
do por outros funcionários desse ministério sediados no Território do Acre.
A portaria de 28 de agosto de 1911, que apresenta as instruções para a execução
do decreto, tornava explícitas as atribuições do SPILTN, órgão do MAIC, na gestão da
reserva: o Delegado do SIDA e o Inspetor do SPILTN deveriam articular ações para um
"reconhecimento prático" da reserva (incluindo levantamentos de suas características fí-
sicas, dos rios navegáveis e estradas, do "caráter da população" e de sua ocupação prin-
cipal e uma relação nominal dos ocupantes de terras), e para a "vigilância" dos pontos
mais relevantes ou "sujeitos a depredações". Cabia, ainda, ao Inspetor do SPILTN, ou a
um de seus subordinados, substituir o Delegado do SIDA em caso de ausência deste e
de seus subalternos; nesses casos, deveria intervir e acompanhar as ações junto às auto-
ridades, dando ciência à Delegacia e à Diretoria Geral do MAIC das iniciativas toma-
das. As instruções da Portaria estabeleciam atribuições adicionais do SPILTN no caso
221
Outra dessas faixas, na área central do Departamento do Alto Juruá, com cerca de 600 mil hectares,
abrangia afluentes da margem direita do Alto Juruá (Tejo, Bagé, Cruzeiro do Vale, Valparaíso, Riozinho
da Liberdade e Gregório) e da margem esquerda do rio Tarauacá (Acuraua, Catuquina, Primavera e São
Salvador), locais onde, após as "correrias" e a implantação da empresa seringalista, havia se refugiado
bom número de grupos indígenas falantes de línguas Pano, conforme, em começo da segunda metade da
década de 1900, já indicavam vários relatórios oficiais (Azevedo, 1906; Andrada, 1907; Oliveira, 1907).
O próprio Inspetor Francisco Araújo especifica que índios Jaminawa, Arara e Kaxinawá ocupavam esses
rios, na "chamada região central da Reserva Florestal" (Araújo, 1912: 8).
222
O decreto aludido é o de criação do SPILTN. Parte do Capítulo I ("Da proteção aos índios"), o artigo
2, que discrimina a "assistência", em seu § 13, especifica que caberia ao Serviço "promover a mudança de
certas tribus, quando fôr conveniente e de conformidade com os respectivos chefes" (Brasil. MAIC, 1910:
A-47).
154
da existência de "índios" na Reserva: caberia então à Inspetoria realizar estudo sobre os
mesmos, o qual, remetido à Diretoria Geral do MAIC, habilitaria o governo, ouvida a
Diretoria Geral do SPILTN, a julgar pela "necessidade ou conveniência" de remover e
reassentar os índios. Nesta situação, era responsabilidade do SPILTN a "elaboração do
plano respectivo e sua completa execução".
Por sua vez, Máximo Linhares informa em seu relatório que, em meados de 1911,
durante sua estadia no Riozinho da Liberdade, teve conhecimento que "terríveis correri-
as" teriam ocorrido nos altos rios Tarauacá, Murú e Envira, resultando na morte de "oi-
tenta civilizados e mais de mil índios!!" (Linhares, 1913). Por achar "o fato extraordiná-
rio", diz ter-se preparado para seguir de imediato a aquele local, e enviado telegrama ao
vice-diretor do SPILTN justificando esse deslocamento. Mesmo alertado pelo guarda-
livro do seringal Liberdade, Francisco Aprigio Riquet Nogueira, de que se tratava de
"
mero boato
"
, Linhares confessa ter desconfiado de que "effectivamente houve alguma
cousa entre índios e civilizados das cabeceiras do rio Envira".
O ajudante informa ter chegado à Vila Seabra em fins de 1911, sem mencionar a
companhia do Inspetor Barbosa de Araújo ou qualquer instrução dele recebida. No rio
Murú, alcançaria o seringal Santa Júlia
223
, do "hospitaleiro proprietário" Pantaleão Ma-
rinho Telles. Assim como procedera no Alto Juruá, Linhares depois sugeriria ao
SPILTN o reconhecimento desse Coronel da Guarda Nacional como "protetor de ín-
dios". Tendo em vista serem "homens vantajosamente conhecidos no Murú", informa
ter nomeado, ainda, o coronel Telles como "delegado auxiliar dos índios" e Romualdo
Ferreira da Rocha como "subdelegado"
224
.
Auxiliado por homens do coronel Telles, Linhares vararia por terra até o rio Envi-
ra. No seringal Nova Olinda visitaria uma maloca onde viviam cerca de 40 índios, "ves-
tidos, bem limpos, com boas habitações, assoalhadas, muita lavoura, alguns tocadores
de armonicas, bem satisfeitos, etc.", sob guarda de Francisco Ferreira, patrão que "
alguns annos olha com grande carinho e bondade para aquelles infelizes Brasileiros,
da tribu dos caxinauás". No Paranã do Ouro, afluente do Envira, em visita a outra ma-
223
Linhares não alcançaria, portanto, o rio Iboiaçú, afluente do rio Murú, onde seis anos antes o delegado
de polícia Luiz Sombra visitara malocas Kaxinawá, a serviço da Prefeitura do Alto Juruá.
224
O bacharel em direito e promotor público Antonio José de Araújo, que viajara pelo Murú em setembro
de 1908, descreve o Coronel Pantaleão Telles como homem de "caráter independente, espírito esclareci-
do e retidão de conduta", e de "coração franco, sincero e grande, para quem a lealdade é um símbolo
que não se pode deixar de deslustrar". Araújo consideraria que Telles, junto com o Capitão Antonio Frota
de Menezes, dono dos seringais Victoria, Colombo e Muruzinho, e sócio da firma comercial Mello, Frota
& Cia, do Pará, e com o Tenente-Coronel Antonio Carlos Viriato de Sabóia, proprietário do seringal Para-
íso e sócio da firma A. Carlos e Marques, constituíam "a trindade do Murú, que preside aos destinos des-
se rio (...)" (Araújo, 2003: 152; 155).
155
loca, afirma ter ficado com boas impressões "quanto ao adiantamento que notei entre os
índios Caxinauás dalli".
Como resultado dessa viagem, Linhares informa ter procedido com outras três
nomeações, posteriormente comunicadas à Inspetoria em Manaus, a saber, a do Sr. Pra-
do, como "delegado auxiliar dos índios do rio Envira", e as de Francisco Ferreira e de
José de Souza, como "subdelegados", respectivamente "do seringal Nova Olinda" e "das
cabeceiras do Envira"
225
.
Um conjunto de outros fatos chama a atenção ao se pôr em diálogo os relatórios
do MAIC, do ex-Inspetor Francisco Araújo e de Máximo Linhares. O relatório ministe-
rial, relativo a 1912, fornece breves informações sobre os resultados da viagem do ex-
ajudante: visitas a malocas dos Kaxinawá, "muito adaptáveis à vida sedentária", e sua
fracassada tentativa de "entrar em comunicação" com os "índios habitantes do Janinaná
[Jaminauá - MPI], afluente do Envira, pela oposição que lhe fizeram os seringueiros da
zona" (Brasil. MAIC, 1913: 140-41). O relatório da Diretoria do SPILTN, do mesmo
ano, além de fazer referência à oposição sofrida pelo então ajudante, caracterizaria os
seringalistas como "poderosos e truculentos déspotas, tão numerosos nessas longínquas
paragens", e criticaria a total ausência de "representantes idôneos" nos poderes policial
e judiciário (Brasil. MAIC. SPILTN, 1913: 10).
Diferentemente, não qualquer menção no relato do próprio Linhares (1913) a
esse acontecimento. Linhares afirma ter apenas ouvido de violências cometidas contra
os "infelizes índios" no alto rio Envira, imputando ao Inspetor Araújo a responsabilida-
de pela não realização de uma investigação in loco para averiguá-las: "De taes violên-
cias, foi sabedor o Sr. Inspetor do Serviço no Território do Acre. Deixei de ir até lá,
porque o meu estado de saúde era precário e mesmo porque havia me affirmado o Sr.
Inspetor que ficaria aos seus cuidados a expedição às cabeceiras do rio Envira, o que
infelizmente não aconteceu".
À diferença de Linhares, que não proporia qualquer medida para tentar evitar a
continuidade das "correrias" e das violências dos caucheiros, peruanos e brasileiros, o
ex-Inspetor chamaria a atenção para os "duros labores" aos quais os índios estavam
submetidos na extração de caucho e para os freqüentes casos em que eram levados ao
225
Castello Branco (1961: 223) indica que, em final dos anos de 1900, Rubim e Prado eram proprietários
do seringal Porto Rubim e Prado e Azevedo do seringal Califórnia. Levando em conta outros dados for-
necidos pelo historiador, Francisco Ferreira tornara-se proprietário do Nova Olinda pouco antes da visita
de Linhares, pois em 1908 o seringal era movimentado por Antonio Tavares, "um dos maiores explorado-
res da região".
156
Peru, para serem vendidos como "escravos". Face a essa situação, assim recomendaria
ao Inspetor João de Araújo Amora:
"(...) seria um grande serviço à nossa precária civilização e à cultura humana, si
pudesses tomar informações seguras, mandando um dos funcionários desta repar-
tição nesse pedaço do Brazil e em alguns departamentos do Peru, onde dizem se
exerce tão vil commercio, a fim de se poder agir em consequencia, dando um gol-
pe de morte em tão nefanda instituição, ainda arraigada nos costumes de alguns
descendentes de Cortez, sem entranhas, e de alguns máos brazileiros (...)" (Araú-
jo, 1912: 9).
Recomendações, por conseguinte, para que o governo federal, inclusive por en-
tendimentos internacionais, combatesse as "correrias", o trabalho forçado e a "escravi-
zação" de índios, seriam formuladas pelo ex-Inspetor Barbosa de Araújo. Seu diagnósti-
co e as recomendações elencadas contrastam fortemente com as informações incluídas
no relatório do MAIC à Presidência da República, dando conta da ida do inspetor ao
"theatro dos acontecimentos" e de ações por ele postas em prática para evitar novos con-
flitos e violências contra os indígenas.
Não nos relatórios do MAIC ou da Diretoria do SPILTN, qualquer informação
relativa à implantação da Reserva Florestal, criada em julho de 1911, para cuja gestão
tanto o SIDA como o órgão indigenista tinham atribuições claramente definidas. Como
mencionado, a reserva abrangia todas as cabeceiras do Envira, e a densa presença de
grupos indígenas nessa região, implicaria, no caso do SPILTN, a realização de estudos e
de ações para sua proteção e, dependendo da decisão do governo federal, para o seu re-
assentamento. Adicionalmente, a presença de caucheiros, promovendo a devastação flo-
restal, bem como "morticínios" de índios, condenados nos relatórios do ex-Inspetor e do
próprio MAIC, constituíam razões suficientes, conforme previsto no decreto de criação
da Reserva, para ações de vigilância em uma região fronteiriça, inclusive com a instala-
ção de guarnições militares e de vias de comunicação em locais estratégicos.
Em momento algum de seu relatório Linhares menciona ter posto em prática as
instruções do ex-Inspetor Araújo relativas à divulgação, junto aos proprietários ou aos
"posseiros", do decreto presidencial de criação da reserva florestal. Araújo (1912: 10),
por sua vez, lamentaria, em sua rápida incursão pelo rio Envira em 1911, não ter alcan-
çado as cabeceiras e ter limitado sua ação à divulgação dessa norma legal. Informa, ain-
da, que, ao tomar conhecimento da criação da reserva, e que cabia ao SPILTN "a sua
polícia", encaminhara ofício ao Delegado do SIDA no Território do Acre, Engenheiro
João Alberto Masô, colocando-se à sua inteira disposição. Apesar das sedes do SIDA e
157
da Inspetoria do SPILTN estarem ambas situadas na cidade de Sena Madureira, nenhum
retorno receberia ao seu ofício
226
. Com a publicação da portaria de 28 de agosto, conten-
do as instruções para execução do decreto, e face às atribuições do SPILTN na gestão da
Reserva, procurara, novamente sem sucesso, estabelecer entendimento com o Delegado
do SIDA "para uma ação conjugada de nossos comuns esforços" (Araújo, 1912: 9)
227
.
As dificuldades enfrentadas pelo então Inspetor Francisco Barbosa de Araújo para
coordenar ações com a Delegacia do SIDA, as demandas de Luiz Sombra (1911, 1913)
para que a proteção dos grupos indígenas fosse viabilizada no interior da reserva flores-
tal e, por fim, a ausência de qualquer menção nos relatórios do MAIC, ou de outros ór-
gãos, nos anos seguintes, sobre ações para a implantação da reserva, são indícios, como
de fato aconteceu, que a criação dessa unidade, a mais antiga medida do governo federal
para proteção da floresta amazônica, acabou ficando apenas nas intenções
228
.
Assim como procedera no alto Juruá, Máximo Linhares decidiria nomear, no rio
Envira, um "delegado auxiliar" e dois "sub-delegados" do SPILTN. O ajudante fornece
informações apenas em relação à guarda fazia anos exercida pelo patrão do seringal
Nova Olinda, Francisco Ferreira, sobre uma maloca dos Kaxinawá, sem especificar so-
bre as atividades dos outros dois nomeados ou das relações que mantinham com indíge-
nas.
Por meio da atribuição dessa tutela aos delegados, pretendia Linhares marcar uma
presença local do SPLITN, estendendo aos indígenas a "proteção" contra ações danosas
dos "civilizados". Essa ação mereceria aprovação da Diretoria do órgão, a qual, confor-
me informaria ao Ministro da Agricultura, assim esperava livrar os Kaxinawá das vio-
226
Sobre a instalação e os objetivos do SIDA no Território do Acre, ver Brasil. MAIC, 1910: 19-20.
227
Escrevendo em 1911, o então Tenente Luiz Sombra (1913) denunciaria, no Jornal do Commercio, ter
tomado conhecimento das "correrias" que caucheiros peruanos acabavam de promover contra grande nú-
mero de grupos "refugiados" no alto rio Envira. E teceria críticas ao MAIC, por não ter reservado essa re-
gião para os índios, ou decidido "agrupá-los na reserva florestal", conforme pouco antes pessoalmente
demandara ao órgão. A recomendação de Sombra, de reservar parte das cabeceiras do rio Envira para os
grupos indígenas, retomaria, em parte, a sugestão do Coronel Belarmino Mendonça (1989: 142), feita em
1906, e pelo Engenheiro Bueno de Andrada (1907: 28; 48), no ano seguinte, de destinar-lhes e demarcar
pelo menos parte de seus antigos territórios tribais. A outra medida sugerida por Luiz Sombra, o "aldea-
mento" dos indígenas na reserva florestal, também guarda homologia com a proposta de Mendonça: am-
bas visavam a proteção dos indígenas e a regulação de suas relações, tanto com os brasileiros como com
os peruanos, por meio da demarcação e desintrusão de terras reservadas, bem a implantação de fortifica-
ções militares para garantir a vigilância e a "segurança nacional" em "regiões de fronteira" (Mendonça,
1989: 228).
228
O decreto presidencial de criação da reserva florestal, contudo, nunca foi revogado (Garcia, 1989). As
quatro faixas de terras incidentes nela incidentes estão distribuídas numa vasta região, nos vales dos rios
Juruá e Purus/Acre, onde, nos últimos trinta anos, ações dos governos federal e estadual resultaram na
configuração de um mosaico contínuo de terras reservadas (terras indígenas e unidades de conservação),
com pouco mais de 7,9 milhões de hectares, que ocupam aproximadamente 45% da atual extensão do Es-
tado do Acre. A este respeito, ver Iglesias, 1999, Vol. IV: 1-3; Iglesias & Aquino, 2005, 2006.
158
lências e da exploração a que estavam sujeitos no alto rio Envira: "Têm o seu protetor
immediato no delegado honorário nomeado pela Inspetoria, o qual é sempre uma ga-
rantia contra as extorsões habituaes dos caucheiros" (Brasil. MAIC. SPILTN, 1913:
10).
A política de nomeação de delegados novamente privatizaria atribuições da res-
ponsabilidade do órgão indigenista, reforçando a ascendência dos delegados, neste caso,
três seringalistas, e a dominação que já exerciam (ou passariam a exercer), sobre os gru-
pos indígenas que viviam em suas propriedades e nos arredores. Novamente evidencia-
ria, em âmbito local, a total falta de recursos humanos e financeiros do Serviço para ali
estabelecer-se e cumprir com suas atribuições e propostas, num contexto em que o pró-
prio ajudante Linhares fora impedido de visitar malocas situadas no alto rio Envira, a
Inspetoria acabara de ser extinta no Acre e eram incertas as perspectivas de qualquer
continuidade das ações de funcionários dos quadros do SPILTN nessa região. Nessas
condições, eventuais abusos da parte dos próprios delegados, e/ou de sua rede de famili-
ares e clientes, interessados na utilização da o de obra dos indígenas, ou no alarga-
mento de seus domínios territoriais e comerciais, não deixaram de ser comuns. Este se-
ria o caso, no alto rio Envira, pelo menos a partir de final dos anos 1910, da família pro-
prietária do seringal Califórnia, os Prado, à qual pertencia o "delegado auxiliar" dos ín-
dios desse rio, nomeado por Máximo Linhares
229
.
Desdobramentos das primeiras expedições
Que continuidade teriam no Território Federal as ações da Inspetoria do Amazo-
nas e Acre, chefiada pelo engenheiro João de Araújo Amora de janeiro de 1912 a março
de 1916? As viagens dos ajudantes Máximo Linhares e Dagoberto de Castro Silva, no
biênio 1911-1912, marcaram o fim das "primeiras expedições" de funcionários daquela
Inspetoria aos rios do Território. Em sintonia com a política do órgão, de estabelecer u-
nidades operacionais com base nos resultados das "expedições", mas não com a ação i-
niciada pelo ex-Inspetor Francisco Barbosa de Araújo junto aos Manchineri do rio Iaco,
o relatório do MAIC, relativo a 1913, ciência da fundação de dois "postos" no Acre:
o "de Curinas", no Alto Tarauacá, e o "de Poianauas", no rio Moa, onde estavam "agre-
miados", respectivamente, 80 e 180 índios (Brasil. MAIC, 1914: 97).
229
No capítulo seguinte, esta questão será retomada, ao analisar a atuação do "catequista de índios" Feli-
zardo Avelino de Cerqueira nos altos rios Envira e Jordão e ao colocá-la em contraponto com as ativida-
des de Pedro Biló, quem, por décadas, trabalharia como "mateiro" para as famílias Prado e Azevedo nas
cabeceiras do Envira, onde adquiriu fama de implacável "matador de índios".
159
Não qualquer indicação nesse relatório a ações levadas a cabo pelo SPILTN
para a implantação do "Posto de Poianauas". Em 1912, expedição chefiada pelo "Encar-
regado do Entreposto de Proteção aos Índios do alto Juruá", Antonio Bastos, contando
com a participação de "índios mansos" Nukini e com recursos financeiros, apoio logísti-
co e homens disponibilizados pelo Mâncio Lima, lograria conduzir alguns Poyanawa
que moravam no Paranã dos Mouras para o igarapé Bom Jardim, e a seguir para o iga-
rapé Maloca, nas propriedades do coronel. O grupo encabeçado por um dos principais
chefes Poyanawa, depois batizado Napoleão, seria pouco depois contatado e trazido pa-
ra esse mesmo local. Ali Mâncio Lima mobilizaria os próprios Poyanawa, auxiliados
por seus empregados, na abertura de uma ampla clareira e na construção de duas gran-
des habitações coletivas, para abrigar cerca de 150 índios, núcleo ao qual denominaria
"Villa Rondon". Boa parte dos Poyanawa optaria por fugir pouco depois, dispersando-se
em vários grupos. Guiados por homens Poyanawa, empregados e fregueses de Mâncio
Lima encontrariam parte desses fugitivos e tornariam a levá-los à Vila Rondon. Em ou-
tra expedição, matariam a tiros o chefe conhecido por Napoleão, cujo grupo seguiria pa-
ra o rio Azul, afluente do rio Moa, onde seria depois encontrado e reconduzido à Vila.
Pouco depois, uma epidemia de sarampo dizimaria significativa parte dos índios ali as-
sentados. Os Poyanawa passariam a trabalhar em diferentes atividades nas propriedades
de Mâncio Lima: derrubar mata bruta, abrir e roçar varadouros e estradas, plantar e lim-
par roçados, cortar cana, trabalhar no engenho e em casas de farinha, caçar para o barra-
cão, abrir e bater campos, fazer cercas para o gado. Em 1916, a Prefeitura do Alto Juruá
fundaria, no seringal Barão do Rio Branco, a Escola Coronel Rondon, voltada à educa-
ção e "catequização" dos Poyanawa
230
. A incorporação produtiva dos Poyanawa às ati-
vidades dos seringais decorreria de ações empreendidas e custeadas pelo coronel Mân-
cio Lima. Enquanto exemplar "iniciativa particular" de "catequese", essas ações ganha-
riam amplo reconhecimento na região e apoio da Prefeitura do Alto Juruá, principal-
mente para o funcionamento da escola
231
.
230
Os Poyanawa seriam depois engajados na abertura do ramal ligando a sede do seringal à Vila Japiim,
criada em 1912. Em 1922, a Fazenda Aurora tinha área de 1.400 ha, grandes plantações, campos e pasta-
gens cultivados, 300 cabeças de gado, porcos, mulas e ovelhas, "bolandeira" para a produção de farinha e
engenho de ferro para a produção de açúcar. As 260 estradas dos seringais pertenecentes a Mâncio Lima
rendiam então uma produção anual de 30 toneladas de borracha. Dentre seus 300 habitantes, 115 eram ín-
dios, dos quais 47 freqüentavam a Escola Coronel Rondon (Castello Branco, 1930: 606-07; 654; Aquino,
1985; Machado, 1991; Iglesias, 1999a).
231
À parte de sua nomeação como "delegado de índios do rio Moa" e dos serviços prestados por Antonio
Bastos nos contatos e na localização inicial dos Poyanawa em suas propriedades, o Coronel Mâncio Lima
nenhum apoio posterior teria do SPILTN para ações voltadas à "civilização" e à "assistência" daqueles
índios. O posto "criado" pelo SPILTN em 1913 seria extinto dois anos depois. O "sucesso" desse processo
160
O citado relatório do MAIC (Brasil. MAIC, 1914) tampouco faz qualquer indica-
ção à localização do "Posto de Curinas", as ações a serem ali desenvolvidas ou se ape-
nas índios Kulina (Madijá) constituíam o objeto de sua atuação. A criação desse posto,
por outro lado, tampouco constava de planejamentos anteriores do SPILTN ou das re-
comendações de Máximo Linhares, que não fizera qualquer nomeação de "delegados",
ou solicitara o reconhecimento de "protetores de índios", no Tarauacá, rio que não che-
gou a percorrer durante a sua expedição.
Informações pontuais a respeito do denominado "Posto de Curinas" surgem, toda-
via, em duas cartas assinadas por Delfin Freire, "Sub-Encarregado dos Índios do Alto
Tarauacá", em 1914, e enviadas ao Inspetor João de Araújo Amora. Não indicação,
em outros documentos, se a nomeação de Freire resultara de iniciativa do próprio inspe-
tor ou de recomendação de Arthur Lebre, ajudante da Inspetoria que, segundo Dagober-
to Silva (1912: 7), visitara o "alto Tarauacá" no primeiro semestre de 1912
232
.
Na primeira correspondência, escrita em Manaus, a 28 de abril, Freire comunica
ao Inspetor Amora que o então Prefeito do Departamento de Tarauacá, Coronel Antonio
de "pacificação", "agremiação", sedentarização e "civilização" dos Poyanawa, tidos por décadas como
"errantes" e obstáculo às atividades produtivas de um dos principais empreendedores do Alto Juruá, seria,
contudo, capitalizado pelo Inspetor Bento Manuel Pereira de Lima, uma década e meia depois, num con-
texto em que uma Comissão de Inquérito fora instaurada, em 1930, pelo governo Getúlio Vargas para a-
purar supostas irregularidades na Inspetoria do Amazonas e Território do Acre. Fotografias dos Poyana-
wa, tiradas em 1913, mostrando seu engajamento na construção da Villa Rondon e as rápidas transforma-
ções pelas quais haviam passado após a sua "agremiação", seriam incluídas pelo Inspetor nos anexos fo-
tográficos da defesa que apresentou à Comissão, visando, ao que tudo indica, comprovar a eficácia das
ações do SPI(LTN). O material compilado por Bento de Lemos inclui ainda fotografias de malocas habi-
tadas por índios Jaminawa e Amahuaca, no rio Amoacas, em propriedades de Manoel Absolon Moreira,
"delegado de índios" nomeado em 1912, bem como de grupos de índios Poyanawa e Arara, acompanha-
dos pelos respectivos "delegados", em visita à cidade de Cruzeiro do Sul. Essas fotografias, que constam
do anexo fotográfico desta tese, fazem parte do "Inquérito na Inspetoria do Serviço de Proteção aos Índios
no Amazonas e Acre. Razões de Defesa - apresentadas à Junta de Sanções Federais por Bento M. Pereira
de Lemos - Anexos - 1931", quarto volume da documentação, depositada no Arquivo Nacional, no Rio de
Janeiro, referente àquela Comissão de Inquérito (Brasil. Tribunal Especial, 1931). Não consta nessa do-
cumentação o autor dessas fotos, feitas pouco após a passagem de Máximo Linhares e Dagoberto de Cas-
tro e Silva pelo Alto Juruá, as condições em que foram produzidas ou quem as teria encomendado. No re-
ferido anexo, optou-se por manter as legendas das fotografias originais. Agradeço à colega Ana Flávia
Moreira Santos pela gentileza de ter disponibilizado esse valioso material, por ora desconhecido no Acre,
fruto de sua pesquisa no acervo do Arquivo Nacional.
232
Em sua conclusão, o relatório de Silva (1912) cita que, em sua viagem de Cruzeiro do Sul a Manaus,
no vapor "Acreano", tivera a felicidade de abraçar "seus colegas", Arthur Bandeira e Arthur Lebre, que
retornavam do alto Envira e do alto Tarauacá, respectivamente. Nenhuma referência a essas viagens é fei-
ta em relatório encaminhados pelo MAIC ao Presidente da República ou nos relatórios da Diretoria do
SPILTN acessados nos microfilmes do SARQ/MI. O fato de Silva citar o "alto Tarauacá" como região vi-
sitada por Lebre não implica que este último alcançara as cabeceiras desse rio, local no qual, no ano ante-
rior, "bárbaras correrias" teriam sido promovidas contra os índios, conforme fora à época noticiado pelo
Jornal do Commercio. Em vários documentos oficiais, a denominação Alto Tarauacá era utilizada para
designar o trecho do rio que banhava a Vila Seabra, sede do Departamento, e suas cercanias mais imedia-
tas, a montante, para contrastá-lo com o seu baixo curso, abaixo dessa Vila e já próximo à sua foz.
161
Antunes de Alencar, criara, em abril de 1913, a "Colônia Rivadavia Correia"
233
, situada
a meia hora de viagem, a pé, de Vila Seabra, onde pretendia assentar cerca de 30 índios
Kulina, que "lhe haviam solicitado aldeamento". Informa que, por resolução do Prefeito,
de janeiro de 1914, os trabalhos nessa colônia haviam sido suspensos. Visto que as ter-
ras onde a colônia fora criada pertenciam ao Coronel José Victorino de Menezes, e que
os índios não tinham ali habitação permanente, avaliava Freire sobre a impropriedade de
ali estabelecer uma unidade do SPILTN e manter um encarregado. Ressalta, ainda, que
se sentia na obrigação de comunicar tais fatos à Inspetoria tendo por desejo "zelar pela
efficacia dos louváveis esforços do humanitário Serviço de Proteção aos Silvícolas". In-
forma, por fim, que por decisão do prefeito tivera vedado acesso ao posto radiográfico,
apesar de ser portador de ofício, destinado ao chefe dessa repartição, por meio do qual
Amora solicitava autorização para que Freire mantivesse contatos regulares com a Ins-
petoria em Manaus (SARQ/MI. Microfilme 31, Planilha 380, Doc. 04).
Na segunda carta, datada de 30 de junho de 1914, na Vila São Felipe, Delfin Frei-
re, que não mais assina como "Sub-Encarregado", comunicava ao Inspetor João Amora
que Francisco Carneiro Sobrinho fora reintegrado ao cargo "que previamente ocupava",
em função de pedido encaminhado pelo prefeito, seu "protetor", via radiograma, ao Co-
ronel Cândido Mariano da Silva Rondon. Readmitido, Sobrinho teria por atribuição re-
tomar os trabalhos na Colônia Rivadavia, contando, conforme alegava Freire, com o
consentimento do então Diretor Geral do SPILTN.
Por três motivos, Freire tornaria a enfatizar sua opinião sobre a inadequação do
funcionamento de um posto do SPILTN nesse local: a extinção da colônia, promulgada
por ato oficial do prefeito; a ilegalidade da realização de investimentos públicos em ter-
reno pertencente a um particular (cerca de 20:000$000 haviam sido ali gastos, diz Frei-
re, dos quais pouco mais da metade oriundos do erário da Prefeitura); e a pequena dis-
tância a separá-la de Vila Seabra, capital do Departamento, "centro de seringueiros, em
que a cachaça abunda, onde rareiam as mulheres e ambiciona-se a posse dos indiozi-
nhos". Reforçando seus argumentos, acrescentaria que o "reduzido contigente" de índios
Kulina era pacífico, estava protegido das violências dos "civilizados" pela proximidade
das autoridades departamentais e que tentar "misturá-lo" com outros índios, seus "ir-
mãos das selvas", seria contraproducente, dado o desprezo que estes lhes guardavam.
233
Assim nomeada em homenagem a Rivadavia Correia Meyer, Ministro da Justiça e Negócios Interiores
nos anos de 1910-1914, durante a presidência de Hermes da Fonseca.
162
Solicitando confidencialidade, para que o pessoal da Prefeitura "não imaginasse
que pretendia desfazer atos" do Prefeito Alencar, Freire solicitaria ao Inspetor Amora
que fizesse chegar essas informações a Rondon, por ter certeza que o diretor do SPILTN
desconhecia os "pormenores" da reintegração de Francisco Carneiro Sobrinho. Acredi-
tava Freire que Sobrinho "era aproveitável" no Serviço, mas não tendo a Colônia Riva-
davia como local de atuação. De sua parte, Freire colocava-se à total disposição do Ins-
petor Amora, para receber novas ordens e tarefas, inclusive para viver "longe de povoa-
dos, onde ninguém possa dizer que goso de confortos, que negocio com o trabalho indí-
gena ou que agrado quem quer que seja (...)" (SARQ/MI. Microfilme 31, Planilha 380,
Doc. 05).
A leitura dessas duas cartas permite constatar, novamente, como as prebendas
concedidas pelo SPILTN - por meio da concessão de cargos, honoríficos ("delegados" e
"protetores de índios") ou remunerados ("encarregados dos índios") - passaram a consti-
tuir objeto de disputas entre diferentes atores, fossem eles seringalistas ou moradores
dos núcleos urbanos, pela possibilidade que abriam para a implementação das ações do
órgão indigenista federal no plano local. Se para alguns seringalistas, as prebendas cons-
tituíam fator adicional no prestígio político e econômico já gozado e nas suas práticas de
dominação sobre populações indígenas e territórios, para outros podiam representar no-
vas possibilidades de lograr reconhecimento, renovar ou construir relações com repre-
sentantes de órgãos governamentais, acessar recursos financeiros e, inclusive, "negociar
com o trabalho indígena". Nessas disputas, representantes do poder público departamen-
tal também passariam a atuar com interesses próprios, indicando e legitimando nomea-
ções de seus funcionários e clientes, propondo e financiando ações, disponibilizando
terras para a instalação de postos e mobilizando suas redes de influência, ao controlar,
ou franquear, canais de acesso e de comunicação, junto à Inspetoria e à Diretoria do
SPILTN, diferentes ministérios e, em certas ocasiões, à própria Presidência da Repúbli-
ca.
Segundo relatório do MAIC, referente ao ano de 1914, a agricultura fora iniciada
nos dez postos então em funcionamento na área de jurisdição da Inspetoria do Estado do
Amazonas e Território do Acre, havendo alguns deles alcançado resultados acima das
expectativas iniciais, "devido à fertilidade das terras e às atividades dos índios". A crise
de recursos que assolava ao governo, e em particular ao SPILTN, não comprometera a
execução dessas ações, destacava o relatório (Brasil. MAIC, 1915: 71).
163
No ano seguinte, todavia, apenas dois desses postos continuavam em operação:
Jauapery, no Município de Mouras, e Abacaxys, no Município de Maués, ambos no Es-
tado do Amazonas, os quais, pelo seu desenvolvimento agrícola, prometiam uma "mais
pronta emancipação" (Brasil. MAIC, 1916: 72; Brasil. MAIC. SPILTN, 1916
[SARQ/MI, Microfilme 1-A, Fot. 1392-94]; e Lemos, 1917). Os demais postos, inclusi-
ve os dois criados no Território do Acre, haviam sido extintos. Além da crise de recur-
sos enfrentada pelo órgão, a decisão de acabar com os postos seria justificada pelo
MAIC pelo fato dos "selvagens" terem "se entregado às atividades agrícolas" e desis-
tido de suas "rixas" com os seringueiros. Esses postos haviam atendido, acrescenta o re-
latório, a necessidade de "dar cobertura" à produção de borracha contra as perturbações
causadas por essas rixas. Apesar da ausência de qualquer atuação de funcionários dos
quadros da Inspetoria nos locais onde os postos haviam sido criados, os índios continua-
riam a estar "protegidos das violências graças às ações dos Delegados de Índios, para
os quais a Inspetoria apelou, no sentido de permanecerem, sem vencimentos, envidando
esforços para o prosseguimento das culturas nelles existentes" (Brasil. MAIC, 1916:
71-72)
234
.
Inspetor Bento de Lemos: posto de pacificação no Alto Tarauacá
Em outubro de 1916, a Prefeitura do Departamento de Tarauacá emitiu "Nota Ofi-
cial", na qual rebatia críticas dos seringalistas sobre a alegada inoperância do poder pú-
blico em ensejar medidas para devolver-lhes fregueses que haviam abandonado suas co-
locações, "fugidos", sem o consentimento de seus patrões e, em certos casos, sem pagar
contas devidas nos barracões. Na nota, a Prefeitura negava ter dado qualquer acolhida a
"vagabundos ou malandros"; ao contrário, esclarecia, ordem expressa fora distribuída
aos "subalternos" para prender e processar "desocupados" encontrados a "perambular"
em Vila Seabra, e em suas cercanias, e para obrigá-los a tomar "ocupação fixa e hones-
ta". Não se opunha a Prefeitura, dizia a Nota, a que os seringueiros voltassem às coloca-
ções de onde haviam saído, desde que "voluntariamente ou por acordo com os patrões".
Não poderia o poder público, contudo, "consentir que sejam presos manu militari e re-
234
O relatório da Diretoria do SPILTN, referente a esse mesmo ano, na seção dedicada à Inspetoria do
Amazonas e Território do Acre, endossava a afirmação de que a "proteção" continuava mesmo nos postos
extintos, onde os índios eram "atendidos gratuitamente por amigos nossos, considerados delegados de
Inspetoria, e cuja principal funcção é protege-los contra as violências e explorações". O diretor, todavia,
ponderaria sobre a fragilidade dessas ações: "É claro que tal protecção é, por sua natureza, precária no
Amazonas, onde os próprios funcionários do governo nem sempre conseguem fazer respeitas as mais me-
ras disposições legais" (Brasil. MAIC. SPILTN, 1916. SARQ/MI, Microfilme A-1, Fot. 1392).
164
entregues aos patrões, trabalhadores bons ou maus, mentirosos ou não, que se tenham
auzentado dos seringais, qualquer que seja o motivo dessa retirada. A missão ingrata
distribuída aos antigos capitães do matto não tem razão de ser num paíz livre (...)".
Informava ainda a nota que o poder judiciário da comarca mobilizaria os meios legais
necessários para fazer frente a ações impetradas pelos patrões para exigir da Prefeitura
iniciativas desse tipo. E finalizava: "Os interesses muito respeitáveis do commércio e
dos proprietários devem ser resguardados por outros processos. Interesses desse tipo
foram invocados (...) contra a abolição da escravatura, do cárcere privado e da caçada
de homens (...) entretanto, a abolição se fez, o preto ganhou fóros de cidadão, a lavoura
desenvolveu-se e o paiz prosperou (...)" (Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Villa
Seabra, 29/10/1916, pg. 3)
235
.
Num contexto em que, devido aos preços decrescentes da borracha, muitos serin-
galistas haviam sido obrigados a vender suas propriedades ou entregá-las às casas avia-
doras como pagamento por suas dívidas, os ganhos dos comerciantes não eram os mes-
mos da cada anterior e a arrecadação de impostos pela administração departamental
acumulava quedas progressivas, o êxodo de seringueiros para a Vila Seabra tornava-se
uma preocupante realidade. Nos altos rios Tarauae Jordão, esse quadro tornava-se a-
inda mais grave, denunciavam os seringalistas, devido a freqüentes saques e mortes
promovidos pelos índios "selvagens" conhecidos por Papavô, resultando na completa
paralisação da produção em certos períodos e no abandono das colocações por muitos
fregueses.
em início de 1915, a imprensa de Vila Seabra noticiaria as gestões realizadas
pelos seringalistas do Alto Tarauacá na tentativa de "garantir o apoio do poder público",
visando "conter" os Papavô, pôr fim às mortes e aos roubos, "dar segurança" aos serin-
gueiros e viabilizar a produção contínua de borracha. Essas articulações, iniciadas junto
à Prefeitura de Tarauacá, progressivamente chegariam a diferentes instâncias do gover-
no federal, até alcançar a Presidência da República.
Face à ausência de resultados imediatos dessas gestões, os seringalistas também
delineariam propostas de intervenção que julgavam exeqüíveis no plano local. Contando
com o respaldo da Prefeitura, aventariam o recrutamento de pessoas com capacidade pa-
ra a "catequese", comprovada por bem-sucedidas "iniciativas particulares" realizadas
235
Nova "Nota Oficial" seria emitida pela Prefeitura a 27 de junho de 1917, reafirmando, com idênticos
argumentos, as posições previamente assumidas e as ações postas em prática pelo poder público para evi-
tar a "vagabundagem" na Vila Seabra (Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano II, Nº 64, 1/7/1917,
pg. 1).
165
em seus próprios seringais, ou por sua inserção em ações iniciadas pelo SPILTN nos
anos anteriores. De comum, essas propostas contemplariam o engajamento de "índios
mansos", que acompanhariam esses atores para a "contenção" dos Papavô. À diferença
da política que pouco depois seria defendida pelo Inspetor do SPILTN, Bento Martins
Pereira de Lemos, para solucionar a situação no Alto Tarauacá - uma visita ao local dos
conflitos e a instalação de um "posto de pacificação" -, as propostas dos patrões visa-
vam, por "conta própria", "fazer o que fosse possível", num contexto considerado de
"calamidade" e de "desamparo pelo governo federal", face à ausência de políticas tanto
para o soerguimento da economia da borracha como dos obstáculos enfrentados pela
presença dos "índios bravios"
236
.
A reconstrução das gestões empreendidas pelos seringalistas com o objetivo de
"obter garantias" dos poderes públicos realizar-se-á, inicialmente, pela apresentação e
análise de informações e dos discursos contidos em um conjunto de atos administrativos
e artigos publicados nessa época na imprensa de Vila Seabra, em boa parte em jornais
oficiais, editados pela Prefeitura. Esse material, meio pelo qual à época parte da popula-
ção urbana de Vila Seabra tomava conhecimento dos acontecimentos na floresta, permi-
te pôr em evidência tanto os discursos dos seringalistas como dos próprios editores dos
jornais, indicando, por um lado, como os processos decorrentes da crise na economia da
borracha eram sentidos e representados. Por outro lado, evidencia como os índios eram
então percebidos (como "selvagens", "canibais", "naturalmente inclinados ao saque" e
"obstáculo ao progresso e à civilização", mas também, à semelhança dos seringueiros
"fugidos", como "vagabundos", "malandros" e "errantes", que viviam a "perambular");
como a situação nos altos rios Tarauacá e Jordão foi construída enquanto "problema pú-
blico", "de máximo interesse do comércio", quais foram algumas das soluções desejadas
e propostas para sua solução, quais iniciativas foram favorecidas pela Prefeitura; e, in-
clusive, como as ações para uma atuação efetiva do órgão indigenista passaram a ser
demandadas localmente. Permite, portanto, delinear os contornos das iniciativas conce-
bidas pelos seringalistas, principalmente para a "contenção" dos "índios selvagens", as
quais, em vários contextos, contariam com o respaldo institucional, mas não financeiro,
do poder público do departamento, e com o decisivo apoio da imprensa local.
236
A respeito das formas como a crise na economia da borracha era então percebida pelos seringalistas do
Departamento do Tarauacá e das propostas encaminhadas a diferentes órgãos do governo federal para a
reativação do setor, ver o Capítulo II.
166
Em final de fevereiro de 1915, o jornal O Município divulgou que o tenente-
coronel José Xavier Maia, proprietário do seringal Revisão, no alto rio Jordão, "comis-
sionado" por outros seringalistas e comerciantes, iniciara viagem a Manaus, onde pre-
tendia encontrar-se com o
"chefe da repartição de protecção aos selvicolas", para soli-
citar "providencias contra a practica de roubos e assassinatos commettidos pelos abo-
rígenes (...)"
237
. Essa iniciativa ocorria pouco após a morte de mais um freguês de José
Maia, Manoel Cesário, pelos "Papavô", conforme noticiado no mesmo jornal, à edição
de 20 dezembro do ano anterior.
Devido ao pânico então disseminado entre seus fregueses, à recusa de continua-
rem cortando seringa, às ameaças de abandonarem as colocações e, portanto, aos prejuí-
zos causados ao término de mais uma safra de borracha, José Maia havia anunciado sua
intenção de não mais retornar ao seringal Revisão caso não obtivesse "garantia dos po-
deres públicos para trabalhar desassombrado". Para comprovar suas alegações, por o-
casião da visita à Inspetoria do SPILTN, Maia levava, dentre outros documentos, "offi-
cios das autoridades da Comarca", informava o jornal, ressaltando o respaldo do prefei-
to, coronel Antonio Nunes de Alencar, à iniciativa, que "atendia aos interesses do com-
balido comércio da região".
Os editores d'O Município sugeriam, por sua vez, que as "necessidades" do co-
mércio do alto rio Tarauacá de "conter" os índios, "proibindo-os da practica do roubo e
do morticínio", poderiam ser atendidas por um "homem na altura" do capitão Joa-
quim Rodrigues da Silva, proprietário do Atenas, seringal do médio rio Tarauacá, que
fazia 15 anos "lutava [lidava - MPI] com os silvícolas", "conhecia-lhes as manhas" e era
por eles respeitado e estimado como "papai grande".
Em relatório do segundo semestre de 1913, Manoel Vasconcelos, delegado de Re-
censeamento e Estatística do Departamento de Tarauacá, destacara que Joaquim Rodri-
gues da Silva se estabelecera em 1905 no seringal Athenas, onde, no "centro", constata-
ra a existência de "várias tribus selvagens". Dados os freqüentes "assaltos" a barracas e
as mortes de seringueiros, em 1907, o "ousado sertanista" Ângelo Ferreira da Silva, "de-
vassando o território onde residiam os selvícolas, visitou algumas malocas e firmou paz
com vários chefes (tuchauas)", iniciativa que, associada aos "louváveis esforços" poste-
riores do proprietário de Athenas, havia resultado na "chamada à nossa civilisação de
237
"Despedidas". O Município, Villa Seabra, Ano VI, 22/2/1915, pg. 3 (Seção "Carteira Local"). Segundo
a notícia, os comerciantes pelos quais José Maia fora "comissionado" eram Manoel Martins da Silva, da
Nascimento & Cia. (Seringal Paraíso); João Dias da Costa (seringal Seretema); Othílio de Oliveira, geren-
te da casa Restauração; e Raimundo Machado Freire.
167
alguns centenares de indígenas". No âmbito da divulgação dos dados preliminares do
censo que a Prefeitura realizava em 1913, Vasconcelos citaria informações enviadas por
Joaquim Rodrigues da Silva, "não incluídas nas listas do seringal Atenas", sobre os cer-
ca de 200 índios das "tribus Catuquina, Jaminaua e Cachinaua e outros" que ali vivam,
"em harmonia com os civilizados, embora entregues às suas superstições e hábitos".
Esse montante havia sido confirmado, diz o delegado, por Antonio Bastos, "empregado
do Ministério da Agricultura", que estivera em Vila Seabra "a serviço do seu cargo, En-
carregado de Índios", e também informara sobre 61 índios moradores no seringal Nithe-
roy (pouco acima de Athenas) e outros 194 no rio Gregório
238
.
Em início de maio de 1915, o retorno de José Maia à Vila Seabra seria objeto de
nota publicada no mesmo jornal, na qual o proprietário do seringal Revisão informava
"nada ter arranjado em sua viagem relativamente a índios", devido ao desalentador re-
sultado das gestões realizadas junto à Diretoria do SPILTN, então ocupada, interina-
mente, pelo engenheiro José Bezerra Cavalcanti
239
. Em radiograma recebido, como res-
posta, do "Encarregado dos Índios" no Rio de Janeiro, Maia fora comunicado da total
impossibilidade do órgão de arcar com 500$000, quantia que estipulara para o ressarci-
mento dos prejuízos causados pelos "aborígenes" em seu seringal. Obtivera do Diretor,
contudo, promessa da imediata nomeação, pelo "encarregado" da Inspetoria em Ma-
naus, João de Araújo Amora, de dois agentes "para irem apasiguar os aborígenes nos
logares onde elles estão depredando".
As avaliações, tanto de José Maia como dos editores d'O Município, confluem ao
criticar a ineficácia da proposta da Diretoria do SPILTN, bem como a improbabilidade
dela vir a ser efetivada. Em nova nota
240
, que resultou de carta enviada por Maia à edito-
ria do jornal, na qual tornava a esclarecer que "nada arranjara em Manaus com o tele-
grama passado ao Rio de Janeiro", o proprietário do seringal Revisão criticaria as in-
tenções e a atuação dos "encarregados" do órgão, que, a seu ver, "teem dinheiro para
política e outros desperdícios".
238
Com base nos dados já sistematizados do censo, Vasconcelos estimava um total de 519 "índios semi-
civilizados, pertencentes a tribus differentes" em diferentes pontos do Departamento (Brasil. Ministério
da Justiça e Negócios Interiores. Prefeitura de Tarauacá, 1914. In: O Estado, Villa Seabra, Ano I, Nº 19,
11/7/1914, pg. 2).
Ao considerar os dados, ainda parciais, do mesmo levantamento, os 261 indígenas que
viviam nos seringais Athenas e Nitheroy representavam 6,5% da população já recenseada no rio Taraua-
cá, um total de 4.014 pessoas. O total dos índios "semi-civilizados" ao qual faz alusão o delegado do Re-
censeamento constituía então 5,6% do total da população já contabilizada nos seringais dos rios Tarauacá,
Envira e Murú.
239
"Regresso". O Município, . Ano VI, Nº 218, 9/5/1915, pg. 3 (Seção "Carteira Local").
240
"Catechese de índios". O Município. Ano VI, Nº 220, 23/5/1915, pg. 3 (Seção "Carteira Local")
168
Na matéria anterior, de início de maio, de forma irônica, os editores do jornal des-
denhariam a proposta da Diretoria do SPILTN, personificada na figura do então Tenen-
te-Coronel Cândido Mariano Rondon:
"Esta de cabo de esquadra! Os índios estão em estado selvático, internados
nas mattas do Ucayale, Breu, alto Embira, etc., fazem o ataque a horas mortas da
noite ou emboscam-se, esperando o incauto seringueiro para flexal-o. Como é
que um agente vae penetrar na matta para amansal-os, sem levar coisa alguma
para agradal-os? Esse nosso paiz cahe em cada patetice, movida pela incompe-
tência de muitos dirigentes da actualidade, que provoca o riso..."
241
.
E concluiriam sugerindo a José Maia que cogitasse abandonar em definitivo o seu
seringal no alto rio Jordão, "si não quizer ser moquiado, para servir de pasto a essas
hordas de selvagens".
Após o seu retorno a Vila Seabra, José Xavier Maia, decidido a permanecer em
Revisão, tornaria a buscar apoio da Prefeitura de Tarauacá. Travou entendimento com o
Substituto do Prefeito, então em exercício, Coronel José Vicente Assumpção, quem,
segundo Maia, demonstrara "boa vontade" para encontrar uma solução viável para os
problemas enfrentados pelos seringalistas no Alto Tarauacá. Em comunicação radiográ-
fica mantida por Assumpção com o Prefeito do Alto Juruá, Capitão Francisco Siqueira
do Rego Barros, este último colocar-se-ia à disposição para auxiliar "no que fosse possí-
vel, de acordo com os recursos da Prefeitura". Segundo a proposta de José Xavier Mai-
a, além dos 6$000 com os quais entrariam os seringalistas, cada Prefeitura deveria arcar
com 3$000, como auxílio "para fazermos o serviço por nossa conta".
Como a decisão
final tardaria a chegar de Cruzeiro do Sul, e Maia tinha urgência por retornar ao seu se-
ringal, acabaria por acertar com o prefeito substituto a contratação de Francisco Carnei-
ro Sobrinho, que, em seguida, "auxiliado pela Prefeitura", seguiria ao alto rio, "com ín-
dios mansos (...), para fazermos o que for possível"
242
.
241
Cabe ressaltar que, pouco antes, os mesmos editores haviam sugerido ao Prefeito de Tarauacá a mobi-
lização dos serviços do Capitão Joaquim Rodrigues da Silva, dono do seringal Atenas. A justificar essa
aparente contradição, parece estar subjacente uma visão que punha em contraste, por um lado, uma "inici-
ativa particular" bem sucedida, comprovada pelos quase quinze anos de "lida" do capitão com os índios
em seu seringal, somados à possibilidade de mobilizar "índios mansos" para acompanhá-lo, e, por outro, a
chegada de apenas dois agentes, neófitos à região e possivelmente desprovidos de apoio logístico da Ins-
petoria e dos recursos materiais vistos como necessários a uma empreitada desse tipo ("presentes", "para
agradar aos índios", por exemplo), conforme ficara patente pela falta de continuidade e de resultados con-
cretas das ações propostas e iniciadas pelo SPLITN no Departamento de Tarauacá.
242
Não há no material consultado qualquer indicação de que a ida de Francisco Carneiro Sobrinho ao Al-
to Tarauacá tenha se concretizado. Cabe recordar que, em meados do ano anterior, Sobrinho fora "reinte-
grado" ao SPILTN, como resultado de pedido feito pelo Prefeito ao próprio Rondon, visando uma reto-
mada das atividades na Colônia Rivadavia, nos arredores de Vila Seabra, e o "aldeamento" de um grupo
de famílias Madijá (Kulina). Sua contratação pelos seringalistas e o auxílio a ser dado pela Prefeitura,
bem como a ausência de qualquer referência ao seu nome nos entendimentos que pouco depois seriam es-
169
A continuidade dos roubos, mortes e queima de barracas, feitos pelos Papavô nos
seringais do Alto Tarauacá, pouco após o início da safra de 1915, motivaria nova inicia-
tiva de José Maia na tentativa de levar esses fatos ao conhecimento das autoridades fe-
derais, solicitando-lhes que medidas urgentes e definitivas fossem efetivadas. Em julho
desse ano, outro jornal oficial da Prefeitura, O Departamento, transcreveria o seguinte
radiograma enviado por José Maia ao Presidente da República, Wenceslau Braz Pereira
Gomes, autorizado por seus "colegas" seringalistas e em nome do comércio de Taraua-
cá:
"Estação Radiographica do Tarauacá, 18 de Junho de 1915. Presidente Republi-
ca - Rio. Indios Tarauacá incendiando barracas matando seringueiros espalham
terror. Trabalhadores fogem apavorados. Prejuízos completos. Fabrico borracha
paralisado. Prefeito Departamento melhor vontade impedido, porem, agir exigui-
dade de verba. Verdadeira calamidade. Pedimos benemérita urgente intervenção
Vossa Exc. poder regressar nossas propriedades. Aguardando respeitável respos-
ta sede Prefeitura. Pelos comerciantes e proprietários Tarauacá. José Xavier
Maia"
243
.
Respaldadas pelo Prefeito de Tarauacá, as demandas dos proprietários do Alto Ta-
rauacá acabariam por ecoar positivamente junto ao MAIC e à Diretoria do SPILTN. Em
radiograma recebido a 20 de setembro de 1916, o então "ajudante adido" da Inspetoria
do SPILTN, Dagoberto de Castro e Silva, comunicava ao novo Prefeito, José Thomaz
da Cunha Vasconcellos que, cinco dias antes, o Inspetor Bento Martins Pereira de Le-
mos saíra de Manaus, a bordo do vapor Andirá, com destino a Vila Seabra, "afim esta-
belecer serviço pacificação índios desse Departamento em hostilidades seringueiros"
244
.
Bento de Lemos exercia então interinamente o cargo de Inspetor do SPILTN no
Estado do Amazonas e Território do Acre
245
. Num contexto de grave restrição orçamen-
tabelecidos entre o SPLITN e o poder público departamental são indicações, todavia, de que, à época, So-
brinho possivelmente não mais integrava o quadro do órgão, no qual permanecera por exíguo período.
243
"Os índios no Alto Tarauacá". O Departamento. Orgam da Prefeitura. Villa Seabra, Ano II, nº 24,
11/7/1915, p. 3-4.
244
Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 25, 1/10/1916, pg. 1. Em relatório redigido após o
seu retorno, o Inspetor afirma ter saído de Manaus a 18 de setembro, atendendo "ordens" do Diretor do
SPILTN (Lemos, 1917. SARQ/MI, Microfilme 380, Planilha 103, Doc. 01, Fot. 1357).
245
Bento de Lemos trabalhara como ajudante da Inspetoria do Amazonas, e depois do Amazonas e do A-
cre, de julho de 1911 a janeiro de 1914, sob a chefia de Alípio Bandeira e de seu sucessor, João de Araújo
Amora. Admitido como auxiliar na mesma Inspetoria, trabalharia de fevereiro a dezembro de 1914. Re-
tornaria ao SPILTN em janeiro de 1916 para assumir o cargo de encarregado do posto indígena no rio
Jauapery, do qual seria exonerado em abril desse mesmo ano. Tendo assumido como interino em março
de 1916, seria efetivado como inspetor no Amazonas e Território do Acre em dezembro de 1917, tendo
tomado posse no mês seguinte. Ocuparia o cargo até 1931, com uma breve interrupção no ano de 1923,
quando seria destacado para inspecionar o Centro Agrícola de Ivaí, no Paraná, e o ajudante Arthur Ban-
deira assumiria interinamente a Inspetoria (Brasil. MAIC. Directoria Geral de Estatística, 1920: 272-3;
Freire, 2007: 19). Sobre a trajetória profissional anterior de Bento de Lemos e sua atuação indigenista à
frente da Inspetoria no Amazonas e Território do Acre, consultar Freire, 2007, e Melo, 2007: 135-206. O
170
tária no SPILTN, Lemos (1917), em seu relatório referente às atividades de 1916, in-
formaria à diretoria do órgão ter dado continuidade às atividades nos postos indígenas
Jauapery e Abacaxys e, conforme instruções do próprio Diretor, realizado "viagens" ao
Território do Rio Branco, ao aldeamento do Quirimiry, ao rio J(Município de Mou-
ras) para tomar providências sobre a entrada de um grupo de caucheiros venezuelanos,
e, por fim, à Vila Seabra, no Departamento de Tarauacá. O ajudante-adido Dagoberto de
Castro Silva, por sua vez, encabeçara expedição ao rio Madeira, onde, sem sucesso, ten-
tara dar início à "pacificação" dos índios que viviam nas cabeceiras do rio Pixunas (sic).
A 22 de outubro de 1916, dez dias antes da chegada do Inspetor Bento de Lemos à
Vila Seabra, o Jornal Official noticiou "mais um grande atentado cometido pelos selva-
jens contra os nossos infelizes seringueiros", ocorrido a 16 de setembro na colocação
Samaúma, do seringal Seretama, no alto Tarauacá, então sob administração do comerci-
ante João Dias da Costa. Segundo a matéria, Fernando Corrêa de Souza, de 13 anos de
idade, que ali vivia com o tio, o alagoano Israel Corrêa de Souza, ao retornar do corte de
sua estrada, fora tocaiado, morto por um tiro de rifle e tivera seu corpo mutilado a gol-
pes de faca. Encontrado na mesma noite pelo tio, fora sepultado com a ajuda de vizi-
nhos. Quatro dias depois, Israel faleceria, "de desgosto", tendo sido enterrado no mesmo
local. O artigo expressa surpresa e revolta ao destacar que o "canibalismo dos índios não
parara por aí": "Alguns dias passados, voltaram eles e, profanando a terra da sepultura
de Fernando, tiraram para fora o seu corpo putrefacto, abriram-lhe o ventre, destaca-
ram-lhe entre as vísceras o fígado e o levaram consigo, deixando insepultos os restos
do cadáver"
246
.
Em razão dos seguidos apelos feitos pelos moradores do alto Tarauacá ao prefeito,
os editores do jornal, dizendo-se sabedores da existência de um órgão federal destinado
ao "serviço de protecção e catequeze dos nossos selvícolas", concluiriam a matéria aci-
ma dirigindo aqueles clamores ao "Inspector de Índios, Sr. Dr. Bento Lemos", que apor-
taria em breve na cidade. Segundo o jornal, a visita do Inspetor resultava do atendimen-
to pelo SPILTN dos pedidos de providências, "contra os repetidos ataques dos índios
no alto rio", encaminhados ao governo federal pelos seringalistas, em várias ocasiões,
por intermédio da Prefeitura.
conjunto de relatórios escrito por Bento de Lemos como inspetor em Manaus, hoje depositado no
SARQ/MI, está citado na bibliografia e será comentado a seguir e, pontualmente, no próximo capítulo,
nas questões relativas à atuação do órgão no Território do Acre.
246
"Índios sacrílegos". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 28, 22/10/1916, pg. 3.
171
Mesmo levando em consideração os consideráveis lapsos de tempo que, usual-
mente, decorriam entre a ocorrência de certos acontecimentos nas cabeceiras dos rios e
a sua divulgação, por meio dos jornais, junto a uma parcela específica da população ur-
bana de Vila Seabra, é possível pensar que a publicação dessa matéria nesse momento
tivesse por objetivo "preparar" um palco adequado à chegada do Inspetor Bento de Le-
mos. Cristalizava-se, dessa maneira, um histórico, e ao mesmo tempo a atualidade, dos
conflitos no Alto Tarauacá, reforçando visões sobre a "selvageria" dos ataques feitos
por índios "canibais", da situação de desespero dos seringalistas e moradores daquela
região, da preocupação e do empenho demonstrados pela Prefeitura e, ainda, da ne-
cessidade de ações urgentes da parte do governo federal, especificamente do órgão indi-
genista, para uma definitiva solução daquele "problema público".
A 5 de novembro de 1916, o Jornal Official noticiou a chegada a Vila Seabra,
dois dias antes, de Bento de Lemos, "commisionado pelo Ministério da Agricultura, pa-
ra examinar aqui os serviços a pôr em execução para a catechese e protecção dos ín-
dios"
247
. Procurado pela equipe do jornal, com a qual manteve "palestra amistosa", o "a-
fável e maneiroso" inspetor teria comunicado sua intenção de enviar radiograma ao
MAIC para expor a situação "dos nossos seringueiros diante dos índios do Alto Taraua-
"
e solicitar "elementos urgentes para a imediata creação de um Posto, na Foz do
Jordão, ou onde mais próprio". Na edição da semana seguinte, os objetivos da chegada
de Bento de Lemos à Vila Seabra tornariam a ser destacados pelos editores do jornal:
"ver a situação dos nossos selvicolas e examinar a maneira eficaz de conte-los, nas su-
as hostilidades contra os civilizados, catequiza-los e aldeia-los, chamando-os definiti-
vamente às vantajens da vida civilizada"
248
. A principal estratégia vislumbrada pelo ins-
petor para lograr esses objetivos, segundo o jornal, constituía a criação de um "posto de
catequese".
Os entendimentos buscados por Bento de Lemos junto ao Prefeito Cunha Vascon-
cellos tiveram por objetivo obter apoio financeiro da administração departamental à im-
plantação de um "posto permanente", destinado, não à "catequese", conforme noticiado
247
"Dr. Bento de Lemos". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 30, 5/11/1916, pg. 4.
248
"Dr. Bento Lemos". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 31, 12/11/1916, p. 4. O artigo
retrata o inspetor como um "apaixonado pelo serviço que lhe foi confiado e com esforço nobre, jenerozo e
patriótico, dedica-se à civilização do jentio, com esse grande amor e caridade que fizeram o renome e a
glória dos antigos sacerdotes católicos e desse hoje não menos gloriozo e heróico, coronel Candido Ron-
don".
172
na imprensa, mas à "pacificação" e à "proteção" dos índios no Alto Tarauacá
249
. A res-
trição dos recursos destinados pelo governo central à Prefeitura e a queda na arrecada-
ção com a crise na borracha, conforme alegaria Vasconcellos, associados à ausência de
qualquer verba específica na Inspetoria para esse fim, dada a crise orçamentária então
enfrentada pelo SPILTN, impossibilitariam a imediata implementação das principais
propostas de Bento de Lemos: a ida ao local dos conflitos e a instalação de um posto pa-
ra a "pacificação" e "proteção" dos indígenas.
A mesma edição do Jornal Official, de 12 de novembro, na seção destinada à pu-
blicação dos atos administrativos da Prefeitura, dava ciência de radiograma enviado,
cinco dias antes, ao ajudante da Inspetoria Dagoberto Silva, comunicando, ao mesmo
tempo, a chegada de Bento de Lemos a Vila Seabra e o seu pronto retorno a Manaus
250
.
O eminente regresso do inspetor, dada a ausência de recursos para a implantação do
"posto de pacificação", bem como a necessidade de encontrar meios para viabilizar essa
relevante medida, foram objeto de dois radiogramas enviados aos Ministros da Agricul-
tura e da Justiça e Negócios Interiores pelo Prefeito de Tarauacá, no dia seguinte, tam-
bém transcritos pelo jornal na seção destinada aos atos oficiais. Eis o texto do primeiro
dos radiogramas:
"Tarauacá 8 - Ministro Agricultura - Rio - Acha-se aqui Dr. Bento Lemos Inspec-
tor índios commissão esse ministério que regressará falta recursos para installar
posto permanente calculado vinte contos installação custeio primeiro anno, única
solução evitar continuação hostilidades indios. Urge entretanto seja adoptado al-
vitre lembrando virtude reiterados ataques índios ameaça morte seringueiros
249
À diferença das "expedições" priorizadas nos primeiros anos de atuação da Inspetoria, para a divulga-
ção da existência do Serviço, o conhecimento da situação em que viviam os índios, o reconhecimento ge-
ográfico das regiões onde a ação localizada era prioritária, o estabelecimento de relações com os chefes
das malocas e a nomeação de potenciais aliados como representantes locais do órgão indigenista, Bento
de Lemos, em seguidos relatórios enviados à Diretoria durante sua longa trajetória como Inspetor, defen-
deria, em consonância com as diretrizes mais gerais do SPLITN, a instalação de diferentes tipos de postos
(inclusive no Território do Acre) e demandaria recursos financeiros necessários à sua criação e manuten-
ção. Esta estratégia, segundo o Inspetor, tinha dentre seus principais objetivos "localizar os índios disper-
sos" e tornar "mais permanente e eficaz" as ações destinadas à sua "proteção" (Lemos, 1920: 5). Em anos
posteriores, defenderia, via de regra, essa mesma política, por exemplo, ao destacar o posto indígena co-
mo "o elemento mais positivo para a vigilância e proteção dos nossos aborígenes, é claro que, sem elle,
muitas zonas continuarão a soffrer a ação de aventureiros que costumam escravizar os índios no traba-
lho, sem remuneração, ou despoja-los cruelmente de suas terras" (1925: 19); e "o melhor - senão o único
- meio de se chegar ao fim desejado, de pacificação, localização e proteção completa dos índios dissemi-
nados pelos nossos sertões" (1928: 1).
250
"Administração do Exm. Sr. Dr. José Thomaz da Cunha Vasconcellos. Radiogramas expedidos". Jor-
nal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 31, 12/11/1916, p. 1. Apesar do fluxo de radiogramas,
enviados e recebidos para/de diferentes pontos do país, que constituíam o meio mais confiável para uma
rápida comunicação entre órgãos do governo federal, o ajudante Dagoberto Silva, a 3 de dezembro, por-
tanto, já próximo à data de partida de Bento de Lemos para Manaus, enviaria radiograma à Prefeitura so-
licitando informações se o Inspetor já chegara à Vila Seabra. Este radiograma, que aparentemente ficou
sem resposta, foi publicado na seção "Radiogramas recebidos", do mesmo Jornal Official (Ano I, Nº 35,
10/12/1916, p. 1).
173
conseqüente decréscimo renda, providencia esta que submetto esclarecido espíri-
to v. exc. - Saudações - Cunha Vasconcellos, Prefeito Tarauacá"
251
.
Tendo em vista o retorno de Bento de Lemos a Manaus, e seu anúncio de que bus-
caria os meios necessários ao início das ações do SPILTN no departamento, os editores
do Jornal Official concluíam a matéria primeiro referida, com desejos de uma boa via-
gem e de um pronto regresso, que viabilizasse a definitiva "solução desse melindrozo
problema de máximo interesse social nosso"
252
.
Dois outros documentos, de distinto teor, redigidos por Bento de Lemos, tornari-
am a justificar o fracasso de parte de seu projeto inicial. Permitem, ainda, vislumbrar
suas impressões sobre as razões dos conflitos entre índios e "civilizados" no Alto Ta-
rauacá e sobre as dificuldades que o órgão indigenista enfrentaria para executar ações
destinadas a equacioná-los. À diferença das referidas matérias de jornais, ambos escritos
do Inspetor assumem outra perspectiva discursiva, focada nas violências cometidas pe-
los "civilizados", nas iniciativas dos índios para fazer frente à inexorável ocupação dos
territórios antes ocupados e na necessidade de uma urgente atuação oficial para a sua
"proteção".
Junto com o relatório encaminhado à Diretoria do SPILTN, referente às atividades
da Inspetoria em 1916 (Lemos 1917), esses dois documentos e as ações efetivadas pelo
Inspetor durante sua estadia em Vila Seabra permitem pontuar as medidas previstas pelo
Inspetor, inicialmente para o alto rio Tarauacá e depois para o Departamento de Taraua-
cá. A descrição e a análise desse conjunto de discursos e ações possibilitam pôr em evi-
dência o projeto indigenista vislumbrado pelo Inspetor para essa região. Ainda que pou-
co concretizado nos anos seguintes, esse projeto, direcionado tanto aos índios como aos
"civilizados", estava em consonância com as diretrizes mais gerais do órgão indigenista
e com as principais linhas de atuação priorizadas por Bento de Lemos em sua gestão.
No plano local, ganharia forma ao se opor às propostas defendidas e às iniciativas pos-
tas em prática pelos seringalistas, e sofreria alterações em relação aos planos iniciais de
251
"Administração do Exm. Sr. Dr. José Thomaz da Cunha Vasconcellos. Radiogramas expedidos". Jor-
nal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 31, 12/11/1916, p. 1. Semelhante, o teor do radiograma
enviado ao Ministério da Justiça, órgão ao qual a Prefeitura encaminhava seus relatórios anuais, é o se-
guinte: "Tarauacá 8. - Ministro Justiça - Rio - Acha-se aqui Dr. Bento Lemos Inspector Indios commis-
sionado Ministério Agricultura, que lembra conveniência urgente installação posto permanente pacifica-
ção índios calculando despezas primeiro anno installação custeio 20 contos. Falta absoluta recursos re-
gressará aguardando novas providencias governo. Urge entretanto seja sem demora adoptado alvitre
lembrando virtude freqüentes ataques índios, ameaça morte seringueiros, decrescimo renda, providencia
esta que submetto esclarecido espírito v. exc. - Saudações - Cunha Vasconcellos, Prefeito Tarauacá" (i-
bid).
252
"Dr. Bento Lemos". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 31, 12/11/1916, p. 4.
174
Bento de Lemos, em virtude das restrições orçamentárias, enfrentadas tanto pela Inspe-
toria e o SPILTN como pela Prefeitura, e das possibilidades vislumbradas pelo inspetor
para institucionalizar o órgão no departamento.
Em seu relatório à Diretoria do SPLINTN, Lemos informa ter chegado a Manaus
a 18 de dezembro, de retorno de Vila Seabra, "sem ter logrado obter auxilio algum do
respectivo Prefeito para a minha ida até o local das hostilidades, que foram levadas ao
conhecimento do Sr. Ministro pelo dito Prefeito (...)". Ressalta, ainda, que as hostilida-
des prosseguiam em vários pontos do alto rio Tarauacá, devido às "pretensões" dos ín-
dios de "expulsar os seringueiros das terras por estes occupadas e onde aquelles esta-
vam primitivamente localisados". Informa, por fim, dos "perigos" a que os índios conti-
nuavam sujeitos, pois era opinião corrente no Departamento, inclusive entre as autori-
dades, que "o índio não tem direito a terra alguma, devido ao seu estado nômade (...)"
(Lemos, 1917. SARQ/MI, Microfilme 380, Planilha 103, Doc. 01, Fot. 1357)
253
.
O segundo documento é uma carta enviada ao editor do jornal O Tempo, de Ma-
naus, datada de 7 de janeiro de 1917, na qual o inspetor tece "alguns reparos" a um arti-
go, publicado no dia anterior
254
, sobre um recente ataque dos índios "Caxinauás" ao lu-
gar Santa Rosa, no alto rio Purus (SARQ/MI, Microfilme 31, Planilha 380, Doc. 09). A
título de introdução, Lemos discorreria sobre a situação de penúria e violência vivida
pelos "silvícolas" inseridos nos seringais, "absolutamente deslocados de suas malocas,
devido às batidas e perseguições de toda sorte que os mesmos teem soffrido por parte
dos seringueiros". Identificando as "correrias" como causa principal dessa situação, es-
clarece que os ataques dos índios ocorriam sempre em "justa represália" às recorrentes
hostilidades dos "civilizados", em "todo o Alto Tarauacá e seus afluentes". Segundo
253
Para uma análise das ações adotadas por Bento de Lemos em relação ao reconhecimento e legalização
de terras destinadas aos índios durante o período em que chefiou a Inspetoria, consultar Freire, 2007. À
diferença das iniciativas dos ajudantes durante as primeiras expedições, em 1912, quando procuraram a
cessão de terras pertencentes a seringalistas ou a identificação de terras devolutas, com vistas à instalação
de "povoações indígenas", nenhuma iniciativa seria tomada por Bento de Lemos para reservar terras para
os índios no Território do Acre. Dentre os fatores que podem contribuir para explicar essa ausência de-
vem ser citados o fracasso da política de implantação de "postos de pacificação", o diálogo pouco frutífe-
ro da Inspetoria com as prefeituras, a inexistente atuação local de funcionários do SPILTN e a própria a-
tuação dos delegados antes nomeados, alguns dos principais seringalistas do Vale do Juruá, que passaram
a gerir a mão de obra e as relações comerciais com os indígenas que viviam em suas propriedades, e que,
na gestão de Bento de Lemos, deixaram de constituir seus interlocutores privilegiados. Por outro lado, se-
gundo as reclamações anteriores de vários Prefeitos, as terras devolutas inexistiam no Acre, pois elas ha-
viam sido apropriadas por particulares na forma de seringais, situação que, devido à inexistência de um
marco legal que contemplasse a especificidade do Território Federal, constituía obstáculo, desde a primei-
ra metade da década anterior, para que próprios governos departamentais regulassem mercados locais de
terras e desenvolvessem suas próprias políticas fundiárias, com a criação de vilas e colônias e com o in-
centivo às práticas agrícolas.
254
Conforme explicita a carta de Bento de Lemos, tratava-se da reprodução, na íntegra, de materiaa origi-
nalmente publicado n’O Alto Purús, jornal de Sena Madureira, sede do Departamento do Alto Purus.
175
Lemos, em virtude da disparidade dos "elementos de ataque" dos "civilizados" em rela-
ção ao "índio", resultava que este, por não ter mais "aldeamentos", "arrasados e quei-
mados por exploradores de seringais e cauchaes", sem qualquer alternativa para fixar-
se em terras próprias, estava fadado a viver "miseravelmente espalhado, em pequenos
grupos, sem roça, sem abrigo, sujeito a todos os tipos de privações", sob constantes
ameaças de expulsão, "quando outro mal maior não lhe fazem", patrocinadas pelos pro-
prietários dos seringais ou por "posseiros" que alegavam ser donos dessas terras.
Como única solução para o "problema da proteção ao índio", pelo menos no A-
mazonas e no Território do Acre, o inspetor tornaria a defender a instalação de "postos
indígenas", "de accordo com os methodos estabelecidos por este Serviço"
255
. Em respos-
ta às informações apresentadas pelo autor do artigo publicado em O Tempo, que orçara
as despesas para a implantação de um "núcleo indígena" em 24$000, incluído o salá-
rio do encarregado do posto, no primeiro ano, e de 10$000, nos anos subsequentes, Le-
mos assim detalharia a proposta feita à Prefeitura de Tarauacá, para a implantação do
posto no Alto Tarauacá e para sua futura manutenção: "quarenta contos de reis, pagos
em duas prestações iguaes, uma no primeiro anno e a outra no anno seguinte, sob ga-
rantia de ficar o posto ou nucleo indigena livre de quaesquer onus, mantendo-se exclu-
sivamente do seu proprio rendimento, do terceiro anno em diante".
Lemos esclarece, novamente, que devido à exiguidade das verbas destinadas ao
Departamento de Tarauacá, conforme declarado pelo Prefeito, não lograra fundar o pos-
to indígena, razão pelo qual continuavam as hostilidades no alto rio Tarauacá e em seus
afluentes, via de regra "com maior prejuízo" para os índios. Lamenta confessar, todavia,
que "maiores são as despezas que costumam fazer alli, como em toda a parte, para a
matança dos índios", quando comparadas àquelas necessárias à instalação do posto. E
informa que pretendia, em breve, com o mesmo objetivo, estabelecer entendimentos
com as demais prefeituras do Território do Acre, começando pela do Alto Purus.
Antes de solicitar a divulgação da íntegra de sua carta nas páginas d'O Tempo,
Bento de Lemos concluiria desqualificando, de forma enfática, a afirmação de que esta-
255
Lemos ressalta que o SPLITN tinha apenas dois postos em operação à época nessa vasta região, face à
absoluta falta de recursos do órgão: o orçamento da Inspetoria que chefiava para o ano de 1916, especifi-
caria, fôra de escassos 25$000, quantia que não incluía o seu próprio ordenado, advindo de outra verba.
Para ilustrar a disparidade dessa verba orçamentária em relação aos "esforços protecionistas" de outros
países para a assistência aos "nativos", detalharia, com base em "documento oficial", dados sobre os dis-
pêndios feitos pelos governos dos Estados Unidos e da Austrália, a quantidade de índios ali existentes,
bem como, no caso da "República do Norte", o quadro de 2.300 empregados que integravam o Bureau of
Indian Affairs e as mais de 253 escolas públicas mantidas para os índios. Parte dessas informações, prin-
cipalmente aquelas relativas aos Estados Unidos, constava da exposição de motivos do Decreto 8.072, de
20/6/1910, que criara o SPILTN.
176
va "paralisado", conforme alegado pelo autor do artigo que motivara seus reparos, sem
tomar qualquer providência para evitar a continuidade das violências contra os índios,
das mortes dos seringueiros e dos prejuízos acumulados pelos comerciantes do Alto Ta-
rauacá: "Não, o Inspetor não está inerte. Está agindo na medida das suas forças, sem-
pre vigilante e muito alerta, principalmente com relação aos malfeitores e assassinos
de indios e espoliadores das terras destes".
Delegados honorários em Vila Seabra
Conforme referido, poucos dias após a chegada de Bento de Lemos a Vila Sea-
bra, matérias publicadas no jornal, e os radiogramas oficiais nele divulgados, anunci-
avam seu eminente regresso a Manaus, dada a impossibilidade da imediata implementa-
ção da proposta feita à Prefeitura. Durante sua estadia em Seabra, contudo, o Inspetor
tomaria duas principais medidas visando a instalação e o inicial funcionamento do órgão
indigenista no Departamento de Tarauacá, tornadas públicas na edição de 26 de novem-
bro do Jornal Official: à primeira página do jornal, faria divulgar a íntegra das "Instru-
ções para os Delegados do SPILTN no Estado do Amazonas e Território do Acre", do-
cumento de 16 de julho de 1916, de sua autoria
256
; e nomearia dois "delegados honorá-
rios" para o Serviço.
Compostas por vinte artigos, as Instruções estabeleciam os procedimentos que,
"para a boa execução" do Serviço, deveriam ser "estritamente observados" pelos "ditos
funcionários" (os delegados honorários), em suas respectivas regiões de atuação, para,
em suma, proteger "(...) a todo transe, o indígena, não permitindo que os desrespeitas-
sem ou lhes fizessem represálias, ainda quando por eles atacados". De forma mais ge-
ral, "cumpria" aos delegados velar pelos direitos que a legislação concedia aos índios e
assegurar a "efetividade da posse dos territórios" por eles ocupados e do conjunto de
bens que neles houvesse, colocando em prática todos os meios para impedir sua invasão
pelos "civilizados".
Boa parte das Instruções almejava a regulação das relações de trabalho entre ín-
dios e "civilizados". Nesse sentido, deviam os delegados garantir que os índios não fos-
sem coagidos a prestar serviços a particulares. Caso fosse da "livre vontade" dos índios
se engajar neste tipo de empreitada, os contratos não deveriam exceder um prazo inicial
256
"Inspectoria de Serviço de Protecção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionaes no Estado
do Amazonas e Território do Acre". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 33, 26/11/1916,
p. 1. Três anos depois, as Instruções seriam publicadas em edição institucional da Diretoria do SPI (Le-
mos, 1919).
177
de seis meses, que poderia ser renovado, caso fosse, novamente, "desejo explícito" dos
primeiros. Os contratos a serem assinados deveriam claramente prever uma série de o-
brigações da parte dos "civilizados": o fornecimento aos índios, além dos salários, de
vestuário, alimentação, tratamento e medicamentos (em caso de doenças), a cobrança de
dívidas sem qualquer tipo de coação (implicando esta última a perda total da obrigação
de pagamento) e o não fornecimento, ou venda, de bebidas alcóolicas.
Vários artigos das Instruções procuram reforçam a exclusividade da tutela dos ín-
dios pelo SPILTN. Esse exercício não poderia ser delegado a terceiros, cabendo, ideal-
mente, ao inspetor. Contudo, as próprias Instruções contemplam atribuições tutelares
aos "delegados", na condição de representantes do Serviço, devidamente nomeados pelo
inspetor
257
. Assim, cabia ao delegado estar presente, e exercer "a máxima fiscalização",
quando do pagamento dos salários, o que podia ocorrer em dinheiro vivo ou em "mer-
cadorias úteis, segundo a vontade do índio". Deveria zelar para que os índios não vives-
sem espalhados em casas de particulares, a não ser quando contratados para serviços
temporários - neste caso, apenas por pessoas de "reconhecida moralidade e probidade".
Não deveria permitir, tampouco, que qualquer "civilizado" tivesse em sua companhia
índios menores, órfãos ou não, "sem prévio consentimento da Inspetoria ou de quem re-
presentá-la". Cabia-lhe, ainda, fiscalizar que os índios não fossem objeto de qualquer ti-
po de violência ou desrespeito, e não permitir, de forma alguma, que mulheres e crian-
ças fossem retiradas das malocas.
Um conjunto final de artigos das Instruções estabelecia as formas desejadas de re-
lacionamento dos "delegados" com os índios, bem como com os demais "civilizados",
as autoridades locais e a própria Inspetoria. Cabia aos delegados entender-se apenas por
escrito com todos aqueles que mantivessem transações com os índios, nunca "atendendo
a recados", e ensejar todos os meios ao seu alcance para que crimes cometidos contra os
257
A possibilidade de delegação da tutela estava prevista tanto na Lei que criou o SPILTN em 1910, em
seu no §9º do Artigo 2º (Da proteção aos índios), dentre os objetivos da "assistência" a ser prestada aos
indígenas: "concorrer para que os inspectores se constituam procuradores dos indios, requerendo ou de-
signando procuradores para represental-os perante as justiças do paiz e as auctoridades locais" (Brasil.
MAIC, 1910 (Vol. II): 47). O Projeto de Lei elaborado por Alípio Bandeira e Manoel Miranda, em 1911,
e apresentado ao Congresso Nacional, visando regularizar a situação jurídica dos índios, previa, dentre
outros itens, sua emancipação da tutela orfanológica então vigente e a exclusividade de sua tutela pelo ór-
gão indigenista. Contudo, estabelecia o Projeto, em seu artigo 6º: "Os Inspetores do Serviço de Protecção
aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionaes são os procuradores natos dos índios, aos quaes
servirão de tutores e curadores, requerendo ou nomeando procurador para requerer em nome dos índios
perante as justiças e as auctoridades e praticando todos os actos permitidos em direito. § 1º- Cada aju-
dante ou auxiliar do SPILTN receberá uma portaria do inspector dando-lhe auctorização para o substi-
tuir, em caso de necessidade, nas funções de que trata este artigo. §2º- Em casos especiaes póde o ins-
pector, mediante procuração, delegar poderes a qualquer pessoa para o substituir nas sobreditas func-
ções" (Brasil. MAIC. 1914. Vol. II: 157).
178
indígenas e suas propriedades fossem punidos, iniciativas estas que deveriam ser imedi-
atamente comunicadas à Inspetoria. Era sua atribuição buscar meios para a "localiza-
ção" dos índios "em estado nômade" em terras devolutas e aptas às atividades agrícolas.
Em suas relações com os índios, com a intenção de zelar por sua "segurança e tranqüili-
dade", nunca deveriam os delegados empregar meios coercitivos, mas, sim, "conselhos
pacientes" para demonstrar práticas e valores julgados convenientes ao seu "bem-estar e
civilização". De forma sistemática, relatórios de todas as ocorrências havidas em sua á-
rea de atuação deveriam ser remetidos à Inspetoria, contendo informações "acerca do
desenvolvimento que vai tendo cada tribo e da adaptação de cada uma à civilização o-
cidental, no que concerne aos nossos hábitos e costumes". Com a finalidade de também
informar a Inspetoria, era atribuição dos delegados "estudar o modo de vida dos índios,
suas lendas e tradições, organizar, tendo o máximo cuidado na grafia da pronúncia, um
glossário das palavras correntes e a estatística dos mesmos".
A reprodução das Instruções no Jornal Official da Prefeitura, junto com as nome-
ações de dois "delegados honorários", teve por objetivo tornar públicos a existência do
órgão indigenista federal, sua implantação no Departamento de Tarauacá, os princípios
legais e éticos que fundamentavam sua atuação e os métodos que norteariam as ações
dos seus representantes locais. Além das orientações nelas imbuídas para a atuação dos
delegados, essa divulgação teve, portanto, como alvo primordial um público externo ao
Serviço, constituído tanto pelos seringalistas, a quem Bento de Lemos atribuía papel fo-
cal na expropriação territorial e nas violências das quais os índios eram objeto fazia a-
nos, como pelas autoridades departamentais, sistematicamente omissas, na opinião do
Inspetor, na efetivação de iniciativas que, ancoradas na legislação, pudessem garantir a
"proteção" dos indígenas.
A legitimação local dos delegados também pretendia estabelecer um monopólio
estatal da tutela sobre os indígenas, tendo como áreas prioritárias de atuação a fiscaliza-
ção das relações de trabalho com os seringalistas e a mediação dos "direitos" (territori-
ais, trabalhistas e à proteção de formas coletivas de existência) junto às autoridades do
judiciário. Esse monopólio visava, ainda, fazer frente a uma prática comum na região,
condenada por Bento de Lemos durante sua gestão à frente da Inspetoria: a concessão
aos seringalistas da tutela e da guarda de crianças e jovens indígenas, muitas vezes reti-
radas das malocas após a realização de "correrias".
Fazendo lembrar as iniciativas defendidas pelo primeiro Prefeito do Alto Juruá,
Thaumaturgo de Azevedo, de "levar luz às consciências ignaras", destinadas à conscien-
179
tização dos seringalistas, o projeto indigenista esboçado nas Instruções também almeja-
va uma ação moralizadora e pedagógica dirigida aos ditos "civilizados", pela condena-
ção das violências, a regulamentação das relações de trabalho nos seringais e a cobrança
de um engajamento mais efetivo dos poderes públicos no cumprimento de suas atribui-
ções legais e administrativas de defesa dos indígenas.
No que diz respeito à desejada atuação dos delegados, as Instruções marcam uma
diferença significativa da gestão de Bento de Lemos em relação às ações privilegiadas
por seu antecessor, o Inspetor João de Araújo Amora. Com base nas iniciativas dos aju-
dantes do SPILTN, durante as expedições no biênio 1911-1912, alguns dos principais
seringalistas do Alto Juruá haviam sido nomeados como representantes locais da Inspe-
toria, tendo lhes sido delegadas atribuições de tutela e de proteção dos índios que vivi-
am em suas propriedades e nas cercanias. Aos olhos de Lemos, contudo, a defesa dos
interesses e direitos dos indígenas havia sido dificultada pela prioridade dada pelos de-
legados aos seus interesses particulares, que, em muitos casos, incluíam a exploração da
mão de obra indígena. Pela mobilização de relações pessoais e de sua influência políti-
ca, os delegados contavam com a aprovação e a complacência dos agentes do executivo
e do judiciário e atuavam, segundo o Inspetor, não em benefício dos seus tutelados e do
SPILTN, mas, sim, de interesses próprios e/ou de outros seringalistas, comerciantes e
inclusive funcionários públicos
258
.
A publicação das Instruções procurava configurar uma nova situação. A almejada
regulação das atividades daqueles "que mantinham relações com os índios", seria esta-
belecida por meio do papel focal dos delegados na proteção e assistência aos indígenas,
a serem desempenhadas com base nas Instruções e de maneira desvinculada de interes-
ses particulares, cabendo aos poderes judiciário e policial, uma vez mobilizados pelos
258
Dez anos depois, ao insistir junto à Diretoria do SPI quanto à urgência da criação de postos indígenas
como estratégia para uma efetiva "proteção" e "assistência" dos índios, Bento de Lemos exporia uma fra-
gilidade histórica do Serviço no Território do Acre, cuja atuação estivera restrita as ações dos "delega-
dos", cujos interesses pessoais acabavam por sobrepesar em relação a aqueles dos índios: "No 1º Capítulo
do meu relatório de 1927 abordei o assumpto, enumerando as tribus e designando as regiões que estão a
reclamar a assistência do Serviço, pois os índios alli não tem para quem appelar, em virtude de não po-
der esta Inspetoria, dada a insufficiencia de verba de que dispõe, crear os postos indígenas que se fazem
mister para a garantia e assistência daquelles infelizes patrícios. Verdade que existem delegados nomea-
dos para todas as localidades do Território. Mas a ação dessas autoridades não satisfaz, pois se tratam
de pessoas com interesses opostos aquelles em que são interessados os índios. Uns são proprietários de
seringaes, outros negociantes, alguns empregados em repartições do governo territorial ou interessados
em emprezas industriaes. De sorte que, os delegados, somente tomam a defeza do índio quando está afas-
tada toda e qualquer hypothese de um prejuízo nos seus interesses pessoaes, comerciais ou industriaes"
(Lemos, 1929: 2-3).
180
representantes do órgão indigenista, ensejar ações para punir crimes e abusos cometidos
contra os índios.
A publicação das Instruções mereceria, por sua vez, o seguinte comentário da e-
ditoria do Jornal Officia, prova de que a ação de divulgação pública pretendida por
Bento de Lemos surtira o efeito desejado:
"Damos para conhecimento de nossos leitores as instruções na página official
dispostas por artigos e deixadas para orientação dos nossos Delegados. As ins-
truções são, em sintheze, o plano todo do serviço de protecção aos índios, dei-
xando perceber o methodo seguido e o processo adoptado para a sua catecheze,
processo dificílimo de practicar e somente ao alcance daquelles cujo tacto suave
e brandura de gênio, poderão lutar vantajozamente contra as qualidade inferio-
res da raça e contra os hábitos de indolência em que ella se tem consumido"
259
.
Quem foram os dois "delegados honorários" nomeados por Bento de Lemos em
1916 para representar o SPLITN no Departamento de Tarauacá? A partir do material
pesquisado, que medidas acabariam por ser efetivamente implementadas por esses ato-
res? Como estavam estas ações referenciadas às diretrizes contidas nas Instruções? Que
mecanismos de comunicação foram mantidos entre os delegados e o Inspetor e como es-
te fluxo de informações veio a condicionar tanto a atuação da Inspetoria como a dos
próprios delegados?
A mesma edição do Jornal Official em que as Instruções foram publicadas trazia
três outros documentos, dando ciência da nomeação do Tenente Eugênio Augusto Terral
e do Coronel João Frota Menezes como "delegados honrários" do SPILTN.
A nomeação de Terral, por meio de ato assinado por Bento de Lemos, foi transcri-
ta na íntegra, nos seguintes termos:
"Ministério da Agricultura, Industria e Commercio - Inspectoria do Serviço de
Protecção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionaes - Estado do
Amazonas e Território do Acre - Manaos, 13 de Novembro de 1916 - Usando da
autorisação que me é concedida por lei, nomeio o cidadão Tenente Eugenio Au-
gusto Terral, delegado honorário do Serviço de Protecção aos Índios e Localiza-
ção dos Trabalhadores Nacionaes, junto às tribus dos índios domiciliados no De-
partamento de Tarauacá - O Inspector, Bento Martins Pereira de Lemos"
260
.
A nomeação do João Frota Menezes, como delegado "junto às tribus dos aborige-
nes no rio Murú e seus affluentes" foi registrada, diferentemente, na seção destinada à
divulgação dos atos administrativos, na primeira página da mesma edição do jornal,
259
"Serviço de Proteção aos Índios". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 33, 26/11/1916,
p. 3.
260
ibid.
181
com a reprodução de ofício encaminhado à Prefeitura pelo próprio coronel
261
. Foi di-
vulgada, ainda, por meio da reprodução de uma breve carta, remetida por Menezes à e-
ditoria do jornal, a 14 de novembro, comunicando o ato assinado por Bento de Le-
mos
262
. Nas pesquisas realizadas em textos históricos e em outras notícias de jornais,
nenhuma referência substantiva foi obtida a respeito das atividades do Coronel Mene-
zes, seja como "delegado honorário", seja como seringalista ou como comerciante urba-
no, atividade, esta última, à qual dedicou a maior parte de sua vida
263
.
O Tenente de Artilharia Eugênio Augusto Terral
264
chegara à Vila Seabra a 11
de junho de 1916 (Brasil. IBGE, 1957a: 82), para assumir o cargo de Capitão Coman-
dante da "Companhia Regional de Segurança" do Departamento de Tarauacá, criada
provisoriamente por resolução do Prefeito Cunha Vasconcellos, do dia 12 de junho
265
.
261
"Administração do Exm. Sr. Dr. José Thomaz da Cunha Vasconcellos. Officios recebidos". Jornal Of-
ficial. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 33, 26/11/1916, p. 1. Assim versava o referido ofício: "Em 18
de novembro - De João Frota Menezes, datado de 14 do corrente, communicando que naquella data foi
nomeado Delegado honorario do Serviço de Proteção aos Índios junto aos indios domicilliados no rio
Murú e seus affluentes, por acto do Sr. Dr. Bento Martins Pereira de Lemos - Agradeça-se".
262
"Serviço de Proteção aos Índios". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 33, 26/11/1916,
p. 3.
263
Castello Branco (1961: 218) relaciona Antonio Frota de Menezes, pai do delegado, dentre os nordesti-
nos que, depois de 1890, "penetraram no Tarauacá Federal, e mais se destacaram no assentamento de
sua futura civilização". Escrevendo em 1909, o promotor de justiça Antonio José de Araújo cita Antonio
Menezes como dono dos seringais Victoria, Colombo e Muruzinho, situados em diferentes trechos do rio
Murú, e sócio da firma comercial Mello, Frota & Cia, do Pará, homem de "alma grande e generosa cujos
serviços ao departamento e à República só têm equivalência nas dedicações aos amigos" (Araújo, 2003:
151; 156). Assim como referido anteriormente, Araújo relacionaria Antonio Frota de Menezes, junto com
o Capitão Pantaleão Marinho Telles (nomeado "delegado auxiliar de índios" pelo ajudante Máximo Li-
nhares, em 1912) e o Tenente-Coronel Antonio Carlos Viriato de Sabóia como os mais destacados serin-
galistas do rio Murú em final da década de 1900 (ibid: 152). Quase uma década depois, contudo, nenhum
dos três constava como proprietário de seringais nesse rio (Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano
II, Nº 66, 15/7/1917, p. 4).
264
"Comandante Terral". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 10, 18/6/1916, p. 3. Con-
forme informa essa matéria, Eugênio Augusto Terral, membro do 1º Regimento de Artilharia do Exército,
ingressara na carreira militar na Escola Preparatória de Tática do Realengo, no Rio de Janeiro, em 1901,
concluíra os cursos de infantaria e cavalaria em 1909 e de artilharia em 1913, e fora reconhecido pelo Mi-
nistro da Guerra, General Dantas Barretto, por seu comportamento exemplar, à frente de uma "seção de
bateria", durante a Revolta da Chibata, ocorrida nos quadros da Marinha, em 1910, que reivindicavam
aumento dos soldos, redução da jornada de trabalho e o fim do regime de castigos corporais.
265
Pesquisas no Sistema de Informações do Congresso Nacional (Sicom) indicaram que uma "Companhia
Regional" fora criada no Departamento de Tarauacá pelo Decreto 9.998A, de 14 de janeiro de 1913, ato
que também constituíra outras duas companhias, as do Alto Purus e do Alto Juruá, já criadas à época. O
Decreto 11.312, de 11 de novembro de 1914, por sua vez, estabelecera a criação de uma brigada de infan-
taria e uma de cavalaria de guardas nacionais em Tarauacá. O regulamento das Companhias Regionais do
Território do Acre, elaborado pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores, foi aprovado pelo Decreto
12.077, de 25/5/1916, assinado pelo presidente Hermes da Fonseca. O regulamento determinava a criação
de uma companhia de infantaria em cada departamento do Território do Acre, comandada por um capitão,
tendo sob sua chefia dois outros "oficiais", cinco "inferiores" e 76 "praças". Novo regulamento para as
"forças regionais" do Território, promulgado pelo Decreto 12.357, de 10 de janeiro de 1917, reduziu o e-
fetivo da Companhia de Tarauacá a 58 militares, apesar de, no corpo do texto, discriminar um total de 59:
dois "oficiais", cinco "inferiores" e 52 "praças" (5 cabos de esquadra e 47 soldados).
182
Nessa mesma data, o Prefeito editou portarias nomeando Eugênio Terral
266
e três Alfe-
res e discriminando o mapa demonstrativo da força que comporia a Companhia (além
daqueles quatro, um 1º sargento, um 2º sargento, três 3
os
sargentos, 8 cabos de esquadra,
4 anspeçadas, 1 corneteiro e 29 soldados), bem como uma resolução com a tabela de
seus respectivos vencimentos
267
.
Segundo a resolução que criou a Companhia, tinha esse "corpo de infantaria mili-
tar" como principal atribuição a "manutenção da ordem, da segurança e da integridade
do Departamento de Tarauacá, sendo-lhe distribuído o trabalho de policiamento, guar-
da das prisões, edifícios públicos e todas as diligências de caracter official que se fize-
rem necessárias"
268
. Os regulamentos das Companhias, instituídos por decretos de 1916
e 1917, estabeleciam que essas forças ficariam sob as ordens dos respectivos prefeitos,
para serem utilizadas nos serviços de guarda dos edifícios públicos e do policiamento
urbano
269
.
Quatro meses após ter assumido o cargo de capitão comandante da Companhia,
em novembro de 1916, conforme já aludido, Augusto Terral foi nomeado "delegado ho-
norário" do SPILTN por ato do Inspetor Bento de Lemos, tendo o Departamento de Ta-
rauacá como área de atuação. Bastante pontuais foram as informações obtidas a respeito
das providências por ele tomadas na condição de delegado, para o que possivelmente
266
A 12 de junho, a Prefeitura recebera ofício do Ministro da Justiça e Negócios Interiores comunicando a
indicação de Augusto Terral como Capitão Comandante da Companhia Regional. Sua nomeação pelo
Presidente da República, conforme previa o regulamento das Companhias, seria efetivada por decreto de
12 de julho de 1916 (Brasil. MJ, 1917, pg. S12-S13). Terral ocuparia o cargo até ser exonerado por decre-
to de 24/10/1917 (Brasil. MJ, 1918, pg. S1-15). Um ano depois, pelo decreto de 2/10/1918, o cargo foi
preenchido pelo 1º Tenente do Exército Agnello de Souza, que o acumularia com o de Substituto do
Prefeito de Tarauacá (Brasil. MJ, 1919, pg. S-15). Exonerado da Companhia a 23/7/1919, Agnello assu-
miria a Prefeitura a 30 de dezembro desse ano. Para substitui-lo, Eugenio Terral seria reconduzido ao co-
mando da Companhia Regional, por decreto de 14/1/1920 (Brasil. MJ, 1920, pg. S10; S12).
267
Conforme estabelecem ambos os regulamentos, em seus artigos 39º, os cargos da Companhia deveri-
am ser preenchidos pelo alistamento de voluntários, de 18 a 35 anos, "com a necessária robustez física",
preferencialmente ex-praças do "Exército e da Brigada Policial do Distrito Federal", de bom comporta-
mento, comprovado por "certidão de assentamento, excusa do serviço e caderneta de reservista" (§ 2º).
Em edições subseqüentes do Jornal Official, o Comandante Terral faria publicar uma série de "comuni-
cados" discriminando o perfil (nome completo, filiação, estado de origem, cor de pele, cabelos e olhos,
profissão e condição de alfabetizado ou não) de cada praça a serviço da Companhia. A título de exemplo
desses comunicados, ver Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 11, 25/6/1916, pg. 1.
268
"Administração do Exm. Sr. Dr. José Thomaz da Cunha Vasconcellos. Resoluções". Jornal Official.
Semanário da Prefeitura. Ano I, Nº 11, 25/6/1916, pg. 1.
269
Apenas em caso de "guerra externa" passariam as Companhias a responder às ordens das autoridades
militares (Decreto 12.357, Art. 1º, § 2º). Dentre as atribuições que cabiam à "praça rondante" ou à "patru-
lha" responsável pelo policiamento urbano constavam deter e conduzir à autoridade policial indivíduos
que estivessem a cometer crimes ou a portar armas para praticá-los, indiciados com mandados de prisão
ou evadidos da penal, portadores de armas não licenciadas, a promover e jogar jogos proibidos, a realizar
distúrbios nas ruas (dentre eles, bêbados, vadios e prostitutas), bem como coligir as provas que permitis-
sem constatar flagrantes e apoiar as autoridades policiais em casos de resistência a detenções ou de crimes
havidos em residências e estabelecimentos comerciais (ibid, Art. 90º).
183
contribuiu a ausência, no SARQ/MI, dos relatórios da Inspetoria do Amazonas e Terri-
tório do Acre, referentes ao biênio 1918-1919. A consulta aos relatórios encaminhados
pelo MAIC à Presidência da República nesse período tampouco fornecem informação
relevante a respeito.
A publicação, no Diário Official, de um radiograma enviado pelo Inspetor Bento
de Lemos ao Tenente Terral, a 20 de março de 1917, fornece indicações, todavia, de que
a correspondência entre ambos pode ter sido freqüente. No radiograma
270
, Lemos men-
ciona uma "carta oficial" recebida a 28 de fevereiro, contendo sugestão de Terral quanto
à nomeação de José Apolinário da Silva como "encarregado dos índios do alto rio Mu-
rú". Nesse sentido, é possível afirmar que, na condição de delegado, Terral indicara uma
pessoa de sua confiança com vistas a possibilitar uma ação mais capilar e permanente
do SPLITN, num local afastado do Departamento, onde a existência de malocas de ín-
dios Kaxinawá era conhecida e os "selvagens"
Papavô realizavam periódicas incursões
nos seringais
271
. Em sua resposta, Lemos informaria não ter qualquer objeção à nomea-
ção, alertando, todavia, que ela poderia ocorrer sem remuneração, dada a exiguidade
das verbas destinadas Inspetoria para aquele exercício. E despedir-se-ia de Terral, apre-
sentando seus "mais sinceros agradecimentos cívicos, pelo valioso concurso que estaes
nobremente prestando na defesa e protecção dos nossos irmãos selvicolas, domiciliados
nessa região".
Na mesma edição do Jornal, sob o referido radiograma, o Capitão Eugenio Terral
fez divulgar Circular, por ele assinada a 23 de março, por meio da qual tornava público
sua nomeação como "delegado honorário" da Inspetoria do órgão no Amazonas e no
Território do Acre, atribuição que, ressaltava, resultara de ato assinado pelo Inspetor
Bento de Lemos, com a aprovação da Diretoria do SPILTN, no Rio de Janeiro
272
. Res-
paldando-se no regulamento do decreto de criação do Serviço, comunicava também que,
na condição de delegado, tinha por atribuições representar à Inspetoria em Manaus, bem
como à Justiça Federal e às autoridades locais, "contra todos os actos de prepotência e
attentados à propriedade e à liberdade, como sejam, violências, depredações, hostili-
270
"Serviço de Protecção aos Índios. Telegramma Recebido". Jornal Official. Semanário da Prefeitura,
Ano II, Nº 50, 25/3/1917, p. 1.
271
Chama a atenção, novamente, a descontinuidade das ações no órgão indigenista, e a constituição de
uma nova rede de representantes locais do SPLITN, tendo em vista que, quatro anos antes, o Coronel
Pantaleão Telles fora nomeado "delegado auxiliar dos índios" do mesmo rio Murú pelo ajudante Máximo
Linhares. Por outro lado, a nomeação desse encarregado parece indicar a limitada atuação do delegado
nomeado por Bento de Lemos, o coronel João Frota Menezes, comerciante urbano, sobre pelo menos par-
te de sua área de jurisdição, o alto curso do rio Murú e seus afluentes.
272
"Serviço de Protecção aos Índios. Circular". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano II, Nº 50,
25/3/1917, p. 1-2.
184
dades e outros crimes, que se commetterem contra os índios sob a minha jurisdição,
promovendo a punição dos criminosos"
273
.
No relatório referente às atividades da Inspetoria no ano de 1916, Bento de Lemos
(1917) novamente informaria da existência, em vários pontos da Amazônia, de pelo
menos um "representante idôneo" do Serviço, desempenhando as funções do "cargo gra-
tuito de delegado", com a incumbência principal de "evitar e reprimir abusos e violên-
cias contra os índios". Recomendaria, ainda, à Diretoria do órgão, que a Inspetoria fosse
dotada com verba suficiente para permitir a remuneração desses delegados, visto que a
maioria atuava em áreas de seringais, "já apossadas ou invadidas por civilizados", onde
os índios se achavam "de tal modo acovardados pelas perseguições que têm soffrido,
que facilmente se deixam reduzir ao captiveiro e, o que é mais grave, supportam, embo-
ra constrangidos, que lhes sejam arrancadas as esposas e filhos pelos seringueiros e
caucheiros". Sem qualquer remuneração, estavam, a seu ver, os delegados impossibili-
tados de exercer adequadamente ações de vigilância e de coibição das violências, tendo
em vista as grandes distâncias e os custos das viagens aos locais onde viviam os índios e
as violências contra eles costumavam ocorrer. Pelas mesmas razões, sem recursos fi-
nanceiros da Inspetoria, tornava-se impossível a mobilização e o apoio das autoridades
policiais locais a quaisquer iniciativas que visassem a repressão dos "crimes contra a li-
berdade e pessoas dos índios" (Lemos, 1917. SARQ/MI, Microfilme 380, Planilha 103,
Doc. 01, Fot. 1356).
À diferença da principal política defendida por Bento de Lemos, a instalação de
postos permanentes voltados à "pacificação", "proteção" e "localização" dos "índios
dispersos", o Inspetor viu-se, por força das circunstâncias, locais e do próprio órgão in-
digenista, obrigado, no Departamento de Tarauacá, assim como em outras regiões sob
sua jurisdição, a recorrer à nomeação de delegados honorários, confiando-lhes tanto a
representação do SPILTN como atribuições de tutela que legalmente caberiam à Inspe-
273
E, por fim, "para que não fosse alegada ignorância sobre os direitos concedidos aos índios pela legisla-
ção em vigor", Terral relaciona alguns dos principais objetivos da "assistência ou proteção aos índios"
prestada pelo SPILTN, conforme constava no art. 10 (na realidade, do art.2) do regulamento do órgão in-
digenista: "Garantir a effectividade da posse dos territórios occupados pelos índios. Evitar que suas ter-
ras sejam invadidas pelos civilisados. Fiscalisar o modo como são tratados nos aldeiamentos e nos esta-
belecimentos particulares. Exercer vigilância para que não sejam obrigados a prestar serviços a particu-
lares. Velar pelos contractos que forem feitos com elles para qualquer gênero de serviço. Promover, fi-
nalmente, a punição dos crimes que se cometterem contra os índios". Apesar da referência de Terral ao
regulamento do SPILTN, os principais objetivos e atribuições por ele destacados na Circular refletem
principalmente as principais linhas mestras das "Instruções aos Delegados", redigidas por Bento de Le-
mos, publicadas na imprensa de Seabra quando de sua passagem pela cidade e entregues ao delegado,
conforme de praxe, quando de sua nomeação.
185
toria. Quais podem ter sido algumas das razões que levaram Bento de Lemos a nomear
o comandante da Companhia Regional, Augusto Terral, para cargo de delegado naquele
Departamento?
Ao analisar as diretrizes da atuação de Bento de Lemos em relação ao Território
do Acre, torna-se evidente a ausência de uma linha de continuidade face às ações inicia-
das pelo ex-Inspetor, Francisco Barbosa de Araújo, dos ajudantes que realizaram "expe-
dições" pelo Alto Juruá em 1912 e, ainda, do seu antecessor na Inspetoria do Amazonas
e do Acre, o Inspetor João de Araújo Amora. É fato que, em 1915, a crise de recursos no
SPILTN implicara na não implantação das "povoações indígenas", prevista como
desdobramento das primeiras expedições, e no fechamento dos dois "postos" criados no
Acre. Todavia, não há nos primeiros relatórios de Bento de Lemos (pelo menos naque-
les aos quais se teve acesso), qualquer menção à reativação ou manutenção de contatos,
via radiogramas, correspondências, atos oficiais e instruções, com os "delegados de ín-
dios" nomeados durante as primeiras "expedições" no Alto Juruá e durante a gestão de
seu antecessor.
Face ao fracasso da proposta de implantar um "posto permanente de pacificação"
no Alto Tarauacá, primeira iniciativa planejada para o Território do Acre, Bento de Le-
mos anunciaria, em início de 1917, sua intenção, depois tampouco concretizada, de es-
tabelecer entendimentos com outras Prefeituras, visando buscar apoio financeiro para
efetivar ações semelhantes em outros departamentos. Por outro lado, optaria por, gradu-
almente, nomear novos delegados, inclusive no Departamento de Tarauacá, como des-
dobramento de uma rede de contatos por ele mesmo constituída e, à continuação, da le-
gitimação, ao seu critério, de indicações feitas pelos representantes do SPILTN previa-
mente nomeados.
Considerando as dificuldades apontadas por Lemos (1917) para a institucionaliza-
ção e operação do SPILTN e para a atuação dos delegados em zonas de seringais, mar-
cadas pelas violências contra os indígenas e por uma frágil, ou inexistente, ação do po-
der público para sua proteção, a nomeação de Augusto Terral como "Delegado dos Ín-
dios do Departamento de Tarauacá" constituiu uma decisão de cunho estratégico. Mili-
tar de carreira, positivista, condecorado por sua disciplina e por seu comportamento e-
xemplar, Terral, pouco após a sua chegada, era visto pela população em Vila Seabra
como um dos principais "representantes da lei", responsável por um serviço de policia-
mento julgado necessário e bem conduzido no âmbito urbano.
186
Dentre outros fatores que podem ter pesado nessa escolha de Bento de Lemos es-
tavam o fato de Terral não estar atrelado aos seringalistas, ou sob sua dependência, e ter
ordenado fixo, reivindicação relativamente constante dentre aqueles indivíduos de me-
nor posse que pleiteavam nomeações como "delegado de índios", cargo honorário que
não outorgava direito a remuneração. O acesso direto do Comandante Terral ao seu su-
perior imediato, o prefeito de Tarauacá, e as relações institucionais e pessoais, que por
força de seu cargo, poderia vir a construir, com representantes de outros poderes públi-
cos e com os seringalistas e comerciantes, com quem regularmente participava de sole-
nidades oficiais e sociais
274
, constituíam um potencial capital para os objetivos do
SPILTN no Departamento: divulgar a existência do órgão e seus objetivos, criar consci-
ência sobre as violências e crimes cometidos contra os índios e estimular ações para sua
proteção e incorporação aos "valores e benefícios da civilização". O regular contato do
comandante da Companhia Regional com autoridades policiais e do judiciário era alter-
nativa para que o SPILTN pleiteasse um desejado respaldo institucional para punir res-
ponsáveis pelos crimes contra os indígenas. As relações de Terral com o Prefeito torna-
vam-se, neste caso, novamente relevantes, tendo em vista a decisiva influência deste úl-
timo sobre as decisões e ações do judiciário e da polícia, como era praxe em Tarauacá e
nos demais departamentos do Território.
Dado o caráter de sua atuação centrada em Vila Seabra e de suas cotidianas atri-
buições como comandante da Companhia, óbvia limitação se impunha para que Terral
exercesse, ele próprio, qualquer atuação sistemática nos seringais, no que diz respeito à
proteção, fiscalização e vigilância, atividades também previstas nas Instruções aos dele-
gados. Para enfrentar esse obstáculo, a exemplo de Bento de Lemos, Terral nomearia,
como delegados ou "encarregados", pessoas de sua própria confiança, não escolhidas
dentre os seringalistas mais eminentes. Com essas indicações, visava, por um lado, dar
capilaridade às ações do Serviço, com intenção de torná-lo conhecido dos índios e de
gradualmente conquistar sua confiança e seu respeito, por meio de uma atuação diferen-
ciada em relação aos demais "civilizados". Por outro lado, almejava constituir sua pró-
pria rede de informações, que pudesse subsidiá-lo em suas iniciativas no âmbito urbano
e em sua troca de correspondência com a Inspetoria. A indicação de José Apolinário
274
Conforme estabelecia o regulamento da Companhia Regional de Segurança, eram atribuições de seu
comandante, além da responsabilidade pela "administração, disciplina e observância das ordens emanadas
das autoridades competentes", a correspondência direta com o Prefeito, e por meio deste, "com qualquer
outra autoridade, quando assim convier ao serviço publico" (art. 61 e 62, §1, do Decreto 12.357, de
10/1/1917).
187
Silva para "encarregado dos índios do alto Murú" é indício, ainda, de que Terral estives-
se propenso a sugerir a instalação, ali e em outros pontos do Departamento, unidades
permanentes do SPILTN, na forma de postos indígenas.
Por fim, as boas relações iniciais de Augusto Terral com o Prefeito Cunha Vas-
concellos permitiram que os serviços de radiografia da administração municipal consti-
tuíssem canal de comunicação regular com a Inspetoria em Manaus. A publicação do
radiograma enviado por Bento de Lemos, na seção do Jornal Oficial destinada à divul-
gação dos atos administrativos, é indicação das iniciativas do Terral de tornar públicas,
junto a circuitos mais amplos (representantes dos demais órgãos da Prefeitura, seringa-
listas e comerciantes) sua condição de delegado honorário, diferenciando-a daquela de
Comandante da Companhia, suas atribuições como representante do órgão indigenista e
do MAIC e as determinações oriundas do Inspetor
275
. O livre acesso aos serviços radio-
gráficos e a publicação de atos oficiais do órgão indigenista no Jornal Official são tam-
bém indicação do interesse e do apoio que a administração departamental brindava ao
delegado Terral nesse momento, interessada em dar resposta às recorrentes demandas e
críticas dos seringalistas quanto à falta de iniciativas concretas para solucionar a situa-
ção de conflito fazia anos configurada no Alto Tarauacá
276
.
A exoneração de Augusto Terral do cargo de capitão comandante da Companhia
Regional em outubro de 1917, o qual reassumiria pouco mais de dois anos depois, cons-
tituiria limitação adicional ao seu efetivo raio de ação como "delegado honorário", e,
portanto, aos objetivos estratégicos vislumbrados por Bento de Lemos para uma atuação
sistemática e articulada da Inspetoria no Departamento de Tarauacá.
Terral procuraria, contudo, dar continuidade às ações do SPI na região, mobili-
zando-se inclusive para viabilizar a instalação de postos indígenas. Para tal, tentaria,
novamente sem sucesso, angariar apoio institucional e recursos financeiros junto à Pre-
feitura e ao MAIC. É o que se depreende de um trecho do relatório enviado pelo inspe-
tor à Diretoria do SPI, relativo ao exercício de 1920 (Lemos, 1921. SARQ/MI, Micro-
filme 32, Planilha 389). Neste, Lemos informa ter recebido, a 21 de julho de 1920, ra-
diotelegrama de Eugênio Terral, "Comandante da Região Militar do Tarauacá e delega-
275
Para se ter uma idéia desses circuitos sociais promovidos pela, ou dos quais participava a, chefia da
Companhia Regional, ver, por exemplo, as edições de O Regional: Órgão litterario da Companhia Regi-
onal, relativo aos meses de junho-novembro de 1917, publicadas em Vila Seabra, que se encontram mi-
crofilmadas e depositadas no arquivo da Biblioteca Nacional (Rolo PR-SPR 00614-00624).
276
Cabe aqui lembrar, como contraponto, os obstáculos colocados pelo prefeito anterior de Tarauacá, Co-
ronel Nunes de Alencar, ao uso dos serviços do setor de radiografia pelo então "Sub-Encarregado dos Ín-
dios do Alto Tarauacá", Delfim Freire (SARQ/MI. Microfilme 31, Planilha 380, Doc. 04).
188
do desta Inspetoria", comunicando que instalara, na semana anterior, "com toda soleni-
dade", "dois postos para as tribus dispersas", um no rio Tarauacá, denominado General
Rondon, e outro no rio Murú, com o nome Simão Lopes. O fracasso dessa nova tentati-
va de instalar postos indígenas no Departamento é também comunicada pelo Inspetor à
Diretoria:
"Parece, entretanto, que aquelle oficial não logrou o êxito que esperava, não so-
mente da Prefeitura, como do Sr. Ministro, com quem, disse-me elle, havia con-
versado pessoalmente sobre o assumpto, resultando dahi ficarem apenas no acto
da installação os dois alludidos postos. Aquella Prefeitura não quis ou não pôde
prestar o seu auxílio" (Lemos, 1921: 7-8)
277
.
Face à sistemática ausência de apoio do poder departamental, Bento de Lemos
nomearia outros delegados em diferentes pontos do vale do Tarauacá, com quem mante-
ria contatos pessoais em Manaus e trocaria freqüentes correspondências. Em relatórios
enviados à Diretoria do SPI nos anos de 1920, com base nas informações recebidas des-
ses e de outros delegados, o Inspetor (Lemos, 1921, 1923, 1925, 1928, 1929, 1930) a-
presentaria análises sobre a situação dos índios do Território do Acre - e especificamen-
te sobre os do Alto Tarauacá e suas imediações -, solicitando, de maneira insistente, a
instalação de "postos indígenas", nesse rio, no Envira e em diferentes locais do alto rio
Juruá, destinados à "vigilância", à "proteção" e à "assistência" dos indígenas. Essas de-
mandas, contudo, não encontrariam, até o final de sua gestão, em 1930, ou depois, qual-
quer respaldo efetivo da diretoria do órgão indigenista ou dos titulares do MAIC.
277
Nesse mesmo relatório, tecendo um contraste com o desinteresse demonstrado pela Prefeitura de Ta-
rauacá em apoiar as atividades do SPILTN, Lemos informa do grande número de demandas recebidas,
"inclusive de autoridades", solicitando a fundação de "estabelecimentos de proteção aos índios", ou no-
meações de funcionários para desempenhar essa função, "talvez por lhes parecer que esta Inspetoria dis-
põe de recursos suficientes para isso". Como exemplo, o inspetor transcreve a resposta enviada à reivindi-
cação de um Juiz Federal: "Respeito vosso datado 17. Informo que esta Inspetoria só poderá nomear o
cidadão Delphino Freire delegado de índios região Juruá por vós indicado sem remuneração espécie al-
guma. Estou trabalhando sentido criação pelo menos dois postos indígenas um alto Embira Departamen-
to Tarauacá e outro Amoaca departamento Juruá. Depende solução Snr. Ministro para o que aproveito
ocasião pedir vosso concurso para realização desse desideratum. Só depois creação desses postos pode-
rá ser remunerado - cargo encarregado. Conto poder visitar breve esse Território. Agradeço-vos interes-
se tomais nossos selvícolas" (Lemos, 1921: 8). Para além do fato curioso do Juiz ter indicado Delfim
Freire, que desempenhara o cargo de "Encarregado dos Índios da zona de Tarauacá", em 1914, na gestão
do Inspetor João de Araújo Amora, essa demanda reforça o argumento de que as prebendas do SPILTN,
na forma de nomeações, eram disputadas por diferentes atores da sociedade, nem sempre seringalistas, os
quais mobilizavam redes de clientela pré-existentes, inserindo-se em relações marcadas por favores, obri-
gações e outras relações pessoais. Por outro lado, a iniciativa de Bento de Lemos, ao responder ao juiz fe-
deral, com informações detalhadas e com cumprimentos cordiais, parece dar indicações do seu esforço
para angariar apoios e aliados no âmbito do judiciário, poder que considerava estratégico para apoiar o
Serviço na proteção dos índios e com o qual mantinha relações freqüentemente conflituosas no Estado do
Amazonas, por conta de suas ações visando garantir territórios para os indígenas e a punição de crimes
contra eles cometidos. A respeito deste último tema, ver Freire, 2007.
189
Capítulo V - Felizardo Avelino de Cerqueira, catequista de índios
Em meados da primeira década do século passado, num contexto em que a empre-
sa seringalista estava implantada no recém criado Departamento do Alto Juruá, o poder
público federal começava a se institucionalizar, as "correrias" continuavam a ser pro-
movidas por patrões e caucheiros e saques e ataques dos indígenas ocorriam com fre-
qüência em certos seringais, a "catequese" e "civilização" dos índios seriam metas a-
nunciadas e implementadas pela Prefeitura e a Comissão de Obras Federais no Territó-
rio do Acre.
Ações policiais e judiciais foram promovidas na gestão do primeiro Prefeito do
Alto Juruá no intuito de fazer cessar as "correrias" e violências contra os indígenas. Me-
canismos legais de tutela, inseridos na Lei do Trabalho, foram criados, normatizando as
relações personalizadas entre seringalistas e os menores indígenas, para, de um lado,
combater a alegada "escravidão" a que estes estavam sujeitos nos seringais e, de outro,
financiar ações da Prefeitura para a sua "educação profissional". Sem qualquer resultado
posterior, o estabelecimento de terras reservadas para os grupos indígenas chegou a ser
proposto por vários agentes públicos, atrelado à sua tutela por religiosos, militares ou
educadores, legitimados pelo governo com a responsabilidade de implementar ações
pedagógicas visando a "catequese" dos índios e a sua "educação" para o trabalho.
Por outro lado, os grupos indígenas seriam objeto de ações oficiais no bojo da a-
bertura da "Leste-Oeste Brazileira", estrada de rodagem entre Cruzeiro do Sul e o serin-
gal Cocameira, no rio Tarauacá, principal eixo de um plano para a integração do Alto
Juruá, e sua ligação com os outros dois departamentos do Território Federal, a capilari-
zação do poder de atuação dos órgãos governamentais, o aproveitamento do potencial
econômico da região e a garantia da segurança nacional em áreas "fronteiriças". A "pa-
cificação" da região cortada pelo traçado da estrada, com o cessar das "correrias", dos
conflitos armados entre índios e "civilizados" e das "guerras intertribais", seria vista
como condição prévia a esse empreendimento público, iniciativa que teria continuidade
com o "policiamento" e a "fiscalização" dos grupos indígenas cujas malocas estavam ali
situadas.
Em relatório de 1905, o Prefeito do Alto Juruá, Thaumaturgo de Azevedo, infor-
mava ao Ministro da Justiça e Negócios Interiores que, com intenção de dar início à li-
gação terrestre entre Cruzeiro do Sul e o rio Tarauacá, convidara Ângelo Ferreira da
Silva, patrão sediado no seringal Cocameira, para estender a oeste o varadouro que este
190
abrira até as cabeceiras do rio Gregório, com a ajuda de cerca de 150 índios "perfei-
tamente catequizados" (Azevedo, 1906: 68).
Vinte anos mais tarde, o padre Constant Tastevin, ao comentar a decidida oposi-
ção interposta pelos indígenas à chegada dos seringueiros e caucheiros no rio Tarauacá,
destacaria importantes diferenças que haviam marcado as relações de Ângelo Ferreira
da Silva com os grupos que "pacificara" e lograra engajar em seus empreendimentos:
"En 1905, un audacieux aventurier du nom d’Angelo Ferreira, réussit a se faire
accepter comme chef par les Yawa-nawa, les Runu-nawa, les Isku-nawa, etc, qu’il
groupa sous le nom de Catuquina. A leur tête il s’empara des riviéres Lupuna et
Apuanan, il ouvrit deux grands seringaes qu’exploitait son personnel civilisé,
en grande partie péruvien. Les Indiens ne le servaient que comme soldats e
chasseurs. Sous ses ordres ils ouvrirent un chemin de Cocamera sur le Tarauacá
jusqu’au Cruzeiro do Sul. Il pacifia les tribus d’alentour Kachinaua, et Arára, et
décida le gouverneur du Cruzeiro, à élargir le sentier qu’il avait ouvert, et à en
faire une route de 20 métres de large quis se prolongerait jusqu’á Senna
Madureira, sur le Purus. Cocamera, la tête de ligne, devint une veritable petite
ville; la route fut ouverte en pleine forêt vierge, et l’on vint à cheval en quatre
jours du Cruzeiro au Tarauacá" (Tastevin, 1926: 47-8).
Apesar de extensamente citado em várias das fontes pesquisadas
278
, poucas infor-
mações substantivas nelas constam sobre a chegada de Ângelo Ferreira ao Território do
Acre e ao rio Tarauacá
279
. Em meados da primeira década do século passado, o "sítio"
onde estava situado o seu barracão, na foz do rio Lupuna, na margem esquerda do rio
Tarauacá, constituía "um pequeno povoado", com duas dezenas de casas, grandes plan-
tações, engenho de cana, campo e criação de animais. Era também local a partir do qual
Ângelo controlava os seringais que abrira nos rios Apuanã e Lupuna, trabalhados por
278
O reconhecimento de Ângelo Ferreira da Silva como desbravador e patrão de seringais no médio rio
Tarauacá e pioneiro "catequizador" de índios, bem como os serviços por ele prestados à Prefeitura do Al-
to Juruá e à Comissão de Obras Federais, são destacados em relatórios oficiais (Azevedo, 1906; Mendon-
ça, 1989 [1907]; Andrada, 1907, 1908; Oliveira, 1907; Brasil. MJ. Prefeitura de Tarauacá, 1914), em tex-
tos de contemporâneos (Cunha, 1976: 169; Costa, 2003: 226-7), em matérias de imprensa (O Município,
Villa Seabra, 28/4/1912) e em textos posteriores à sua morte (Guedes, 1914: 219; Tastevin, 1924, 1926;
Andrade, 1937; Castello Branco, 1950: 16-8; 26; 49).
279
Ângelo Ferreira era cearense (O Município, Villa Seabra, 28/4/1912. SARQ/MI. Filme 324, Planilha
007, Fot. 236-37). Em romance ficcional com trama passada no rio Tarauacá e Villa Seabra (Vieira,
2005), no qual Ângelo Ferreira é personagem, este "narra" ter trabalhado, nas últimas décadas do século
XIX, como regatão nos rios Juruá e Tarauacá, trocando mercadorias, aviadas no comércio de Manaus, por
diversos produtos florestais; e, com o aumento nos preços da borracha e a intensificação do movimento
migratório para as cabeceiras dos rios, ter decidido se estabelecer no médio rio Tarauacá para explorar se-
ringais. Em sua tese, o antropólogo Oscar Calavia Saez (1994) faz referência à transcrição de diários do
padre Tastevin, relativos aos anos de 1919-1922, feita pelo Padre Teodoro, também da Congregação do
Espírito Santo. Em um desses diários, Tastevin faz referência a 1900 como o ano do início das atividades
de Ângelo Ferreira no médio rio Tarauacá, comenta fatos de sua vida pessoal e relaciona atividades nas
quais teria mobilizado a mão de obra de vários grupos indígenas: "sacava montanhas de caucho com os
índios; tinha uma peruana poliglota como companheira; a cana crescia no meio do caucho ... Começou
em Cocamera onde residiu de 1900 a 1909; obrigava os índios ... a trabalhar no caucho + nas planta-
ções: Kolina, Kasinaua, Capanaua, Catukina + Canamari. Falava vários dialetos..." (Saez, 1994: 188).
191
uma freguesia de cerca de 200 homens, engajados na extração do caucho e na produção
de borracha, tanto brasileiros como peruanos. Estes últimos, parece plausível supor, e-
ram, em parte, remanescentes das turmas de caucheiros, aviados de Carlos Scharff e E-
fraim Ruiz, que, em anos anteriores, haviam trabalhado no Riozinho da Liberdade e no
rio Gregório, tendo chegado aos afluentes da margem esquerda do médio rio Tarauacá.
estabelecido no rio Tarauacá, Ângelo Ferreira, por meio da abertura do varadouro até
as cabeceiras do rio Acuraua e as margens do rio Gregório, visara expandir seus domí-
nios sobre novas zonas ricas em seringa e aproveitar as últimas regiões de cauchais ali
disponíveis
280
.
Parece plausível se questionar, como diz Tastevin, se Ângelo Ferreira em 1905
lograra ascendência sobre diferentes grupos indígenas nos rios Gregório e Liberdade, e
engajara-os na abertura de seus seringais nessa região e no rio Tarauacá. Contatos com
grupos indígenas e a eventual mobilização de sua mão de obra, como caçadores, guias e
intérpretes e em atividades agrícolas, haviam aparentemente ocorrido já durante a explo-
ração e abertura desses seringais, empreitada que Ângelo levara a cabo, contudo, princi-
palmente com sua extensa freguesia de nordestinos e peruanos. À diferença do que a-
firma Tastevin, parecem ter sido as iniciativas realizadas por Ângelo Ferreira sob enco-
menda da Prefeitura do Alto Juruá, para a "pacificação da região", a ampliação do vara-
douro até Cruzeiro do Sul e a "catequese" dos índios que viviam no seu entorno, as que
acabariam por resultar na construção de acordos e relações mais duradouros com um
amplo conjunto de povos falantes de línguas Pano, numa região que se estendia entre o
médio rio Tarauacá e as cabeceiras do Riozinho da Liberdade. Por indicação de Ângelo
Ferreira, um de seus fregueses, Felizardo Avelino de Cerqueira, seria, nesse período, re-
crutado pela Prefeitura e a Comissão de Obras Federais, assumindo papel focal nesses
processos de mediação das relações entre indígenas, seringalistas e diferentes agentes do
poder público.
Como parte do principal objetivo da seção inicial deste capítulo, atenção será fo-
cada, por um lado, sobre essas diferentes modalidades de mediação protagonizadas por
esses dois atores que seriam reconhecidos como "catequistas de índios", no bojo das ini-
ciativas oficiais para a "catequese" e o "policiamento" dos grupos indígenas, as quais
280
Documentos obtidos no Cartório de Registro de Imóveis de Tarauacá, referentes aos seringais movi-
mentados por Ângelo Ferreira indicam que, em 1910, Nauta e Apuanã, situados em ambas as margens do
rio Apuanã, somavam cerca de 140 estradas de seringa, e São João, São Pedro, Pavão e Itapyra, "lotes de
terra com seringais", no alto rio Acuraua, próximos às cabeceiras do rio Lupuna, outras 150 estradas (CRI
Tarauacá, Livro 3B, fl. 4v-6).
192
gerariam um renovado quadro de expectativas e interações entre índios, seringalistas e o
governo federal. Por outro, é intenção salientar como, aproveitando os nichos de media-
ção abertos por essas iniciativas governamentais, esses "catequistas", movidos por inte-
resses conjuntos, levariam à frente atividades que fortaleceriam os empreendimentos de
Ângelo Ferreira da Silva no médio rio Tarauacá.
Os "catequistas" e as políticas públicas
Ao contrário das escassas informações disponíveis sobre a chegada e o início das
atividades de Ângelo Ferreira nos seringais do Território do Acre, o relatório biográfico
de Felizardo Avelino de Cerqueira (1958) esclarece uma rie de eventos que ele pró-
prio considera fundadores de sua trajetória profissional como "catequizador de "índios",
inicialmente por meio de atividades realizadas para o seu patrão Ângelo Ferreira da Sil-
va.
Felizardo nasceu a 29 de outubro de 1886, em Vila Pedra Branca, no município de
mesmo nome, no Estado do Ceará
281
. Com pouco mais de 17 anos, em março de 1904,
acompanhado de uma turma de conterrâneos, deixou a cidade natal com destino ao A-
mazonas, passou por Belém e Manaus e desembarcou na confluência dos rios Envira e
Tarauacá. Naquele ano, trabalhou como seringueiro no rio Acuraua e na safra seguinte,
de 1905, como freguês de Ângelo Ferreira da Silva, cortaria seringa numa colocação
de margem próxima ao sítio Lupuna, dividida com o também seringueiro Francisco
Gomes (Cerqueira, 1958: 1)
282
.
281
Era um dos doze filhos de Joaquim Avelino de Cerqueira. Em 1857, aos 18 anos de idade, este chegara
a Pedra Branca (Cerqueira, 1958: 40), então um povoado situado no local antes conhecido por Tabuleiro
da Peruca, no sertão de Senador Pompeu. Três anos antes, o pequeno povoado, antigo ponto de encontro
de vaqueiros e viajantes, fora elevado a distrito do Município de Mombaça (Brasil. IBGE, 1959). Ali, Jo-
aquim Avelino de Cerqueira tornar-se-ia um "abastado e esclarecido proprietário de imóveis urbanos", e
após o desmembramento do Município de Pedra Branca e a elevação de povoado à condição de vila, em
1871, passaria a auferir sua principal renda do aluguel de terrenos e prédios à administração municipal e a
particulares. O documento "Adesão à República", acessado em 2004 no site www.familiacavalcante.com
(hoje desativado), revela que, com pelo menos um de seus filhos, Samuel Avelino de Cerqueira, fazia par-
te do grupo político que, a nove de dezembro de 1889, aderiu ao "sistema do novo governo da República
Brasileira" e fundara o Clube Republicano de Pedra Branca, filiado ao Centro Republicano Cearense. Jo-
aquim Avelino de Cerqueira faleceria em 1919, sem reencontrar Felizardo, o primeiro filho a migrar para
o "Amazonas". Felizardo voltaria à sua cidade natal apenas uma vez, cinco décadas após partir, para "ver
se ainda podia ver" alguém de seu núcleo familiar. Surpresa, diz ter sentido, ao ver pais e irmãos "debaixo
de uma pedra, onde havia os dizeres: Aqui jaz toda família dos Cerqueiras" (Cerqueira, 1958: 140). Nes-
sa viagem, reencontraria cunhados, sobrinhos e filhos destes.
282
Nos Anexos, o Mapa 4, excerto de um croquis desenhado pelo padre Constant Tastevin (1926) mostra
o médio curso do rio Tarauacá. Sua consulta, sugiro, é de utilidade para melhor localizar alguns dos locais
aos quais se estará fazendo menção nesta seção. Maiores informações sobre dados relevantes que ali
constam estão discriminadas como legenda do croquis.
193
Em agosto de 1905, o ataque de cinco índios a essa colocação, durante o qual o
seu companheiro em fuga foi alvejado por uma flecha, seus pertences foram roubados e
sua casa incendiada, desencadearia uma seqüência de eventos que daria início, diz Feli-
zardo, à sua carreira como "catequista de índios". No barracão, onde Francisco foi leva-
do e salvo pelo tratamento prestado por Ângelo Ferreira, a imediata reação dos demais
fregueses seria planejar uma "correria". Após refletir, dado o "risco de ser responsabili-
zado pela defesa que constitui dos índios", diz Felizardo, proporia experimentar se era
capaz de "entrar em contato" com os "selvagens". Sua reação, culminando com essa ou-
sada proposta, é assim justificada:
"Eu, que por diversas vezes, vi chegarem grupos de peruanos e brasileiros, tra-
zendo consigo índias e meninos e contarem que ficaram inúmeros índios mor-
tos, não me sentia bem com tremenda cena desumana. Sentia dentro de mim, não
sei o que, uma compaixão pelos pobres dos prisioneiros das selvas que, foram
criados com tanta liberdade e em dado momento fugir de súbito da sua felicidade
que outrora gozavam, para ser ver prisioneiros e cativos de seus algozes, que sem
compaixão jogavam-lhes nos mais brutais trabalhos" (1958: 5)
Sua proposta seria recebida sob forte protesto, esclarece Felizardo, pois "não a-
creditavam que houvesse um só homem capaz de enfrentar a morte, ante os perigos que
ofereciam ao audacioso que tentasse penetrar a floresta virgem em busca da pior fera
conhecida por todos os habitantes do vale amazônico" (1958: 6). Mas receberia o res-
paldo de Ângelo Ferreira. À frente dos três únicos seringueiros que consentiram acom-
panhá-lo, após dois dias de caminhada, encontrariam um índio, enquanto caçava, que
seria "pego" por Felizardo ao "passar-lhe uma corda no pescoço". Na volta, "quase uma
centena de pessoas" se aglomerava na sede do Cocameira, alertada pelo aviso dado por
Felizardo e seus companheiros à boca do caminho: uma saraivada de tiros, com seu "re-
vólver calibre 38 duplo, de seis disparos" e três rifles.
O índio, Maru, permaneceria pouco mais de dois meses no barracão, período em
que foi "bem tratado", levado em visita a várias colocações e fartamente presenteado
com terçados, canivetes, facas e espelhos. Pouco depois, levaria Felizardo à sua "aldei-
a", onde viviam outros 22 Katuquina (4 homens, 6 mulheres e 12 crianças), parte de um
grupo outrora maior, "arrasado" por seguidos ataques dos Kulina. Na chegada, diz Feli-
zardo, os índios "ficaram passados de alegria e festejaram-me como um divino, visto o
seu próprio companheiro se declarar alegre e cheio de presentes. Desta forma foi fácil
a retirada de todos os outros para o barracão, onde o patrão os aguardou e presenteou
da forma possível". Foi morando na sede, ao lado de Ângelo Ferreira, que essas famílias
194
permaneceriam a partir de então, e Maru prestaria relevantes serviços como guia e in-
térprete em outras expedições. Na primeira delas, atendendo ao pedido de Felizardo, le-
varia-o a uma "aldeia" de 17 índios Kapanawa (6 homens, 6 mulheres e 5 crianças),
também "restantes da ferocidade dos Kulina". Trazidos inicialmente ao barracão, eles
voltariam depois à sua maloca, mas permaneceriam "em contato direto com o pessoal
do patrão" (1958: 8-9).
A retomada relativamente extensa desses eventos, os quais Felizardo destaca co-
mo fundadores de sua trajetória como "catequizador de índios", permite identificar al-
gumas das principais estratégias e práticas que, com pequenas variações, ele usaria ao
longo das duas décadas seguintes, em incursões a outras malocas: a companhia de um
reduzido grupo (de seringueiros e/ou indígenas "mansos"), o rifle, o revólver, o terçado
222 e a corda como instrumentos de trabalho; a opção privilegiada por "pegar" alguns
poucos índios e levá-los inicialmente ao barracão; a farta distribuição de "presentes"; a
promoção de visitas a casas de seringueiros, para tornar o índio "conhecedor de nossas
condições de amizade e tratamento" (1958: 28); e o posterior retorno às malocas, para
que os próprios contassem o que haviam visto, como haviam sido tratados, mostrassem
(e distribuíssem) os presentes e as ferramentas recebidos e abrissem uma possibilidade
de diálogo visando a construção de entendimentos e relações duradouras. A utilização
de "intérpretes", homens escolhidos dentre os grupos previamente contatados, para a
costura dos "acordos", também faria parte recorrente do repertório de estratégias e práti-
cas de Felizardo
283
.
Os resultados dessas duas primeiras incursões às aldeias Katukina e Kapanawa
também permitem colocar em evidência diferentes formas de relacionamento prioriza-
das por Ângelo Ferreira com os grupos (ou famílias) indígenas após os contatos iniciais:
alguns passariam a morar perto do barracão, outros permaneceriam em suas malocas,
283
Em sua dissertação, Edviges Ioris (1996: 145-47) reproduz depoimento do índio Amaral Shanenawa,
então morador da TI Katukina/Kaxinawá, em Feijó, no qual ele relata outras iniciativas de Ângelo Ferrei-
ra, que teriam resultado em contatos iniciais com os "Katukina", referidos em depoimentos de velhos in-
dígenas, e no relato de Felizardo, como os Iskunawa, que em meados dos anos de 1900 viviam na mar-
gem esquerda do rio Tarauacá e nos afluentes da direita do rio Gregório. Reportando-se a histórias ouvi-
das de seu avô, que ainda criança, conhecera Ângelo Ferreira, e com ele trabalhara, Amaral aponta proce-
dimentos semelhantes usados por Ângelo ao "amansar" seus parentes e outros grupos Pano, durante expe-
dições para a exploração de seringais e a abertura de varadouros: o uso de um colete "que não deixava ba-
la passar", a companhia de índios já "amansados", que indicavam aonde viviam seus parentes e outros
grupos e serviam de "intérpretes", a farta distribuição de roupas, facas, cobertas e mercadorias, bem como
as visitas ao barracão, onde Ângelo "cuidava bem", dava comida e mais mercadorias. Por serem "bem tra-
tados", diz Amaral, muitos dos índios costumavam chamar Ângelo de "papai".
195
"em contato direto" com seu pessoal. Felizardo, que depois adotaria esses mesmos mé-
todos, também passaria períodos, de até meses, residindo junto aos indígenas.
A abertura do varadouro de Cocameira a Cruzeiro do Sul, em junho de 1906, a-
tenderia a dois convites feitos pelo Prefeito Thaumaturgo de Azevedo a Ângelo Ferrei-
ra, nos quais também lhe solicitaria a "catequese dos índios dessa zona" (SARQ/MI.
Filme 380, Planilha 102, Fot. 1222-23)
284
. Feita por uma turma de 63 homens, Ângelo à
frente, a primeira empreitada marcaria a construção de entendimentos com os grupos
Rununawa e Arara (Shawanawa) que habitavam no igarapé Forquilha, afluente da direi-
ta do alto Riozinho da Liberdade. Ligados por casamentos e aliados na defesa de um ter-
ritório comum contra as "correrias" dos caucheiros peruanos (aviados de Carlos Scharff
e Efraim Ruiz) e dos gerentes e empregados do Coronel Francisco Freire de Carvalho,
tinham Tescon, Rununawa, por principal chefe. Tescon era respeitado e temido pelos
"civilizados", pela morte de mais de 30 peruanos e pela posse de grande quantidade de
rifles, obtidos nesses embates e em saques aos seringais de uma extensa região, que se
estendia pelo altos rios Liberdade e Gregório, por vários afluentes da margem direita do
rio Juruá e alcançava as cabeceiras do rio Tejo. Na ida a Cruzeiro do Sul, a turma de
Ângelo Ferreira encontraria cerca de 80 índios derrubando um enorme roçado. O Katu-
kina Maru, um dos "intérpretes" da comitiva, logrou fazer-se entender com alguns dos
índios em fuga e marcar um encontro para o dia seguinte no mesmo local, ao qual com-
pareceram pouco mais de 100 homens, pintados e fortemente armados. Uma nova visita
às malocas chefiadas por Tescon seria então prometida por Ângelo Ferreira quando do
retorno de Cruzeiro (Cerqueira, 1958: 12)
285
.
284
Com timbre do MAIC, esse documento, que ao final é referenciado "R.E (Catequese dos índios Caxi-
nauás - Amazonas - 1906)", com três páginas, das quais apenas duas constam no SARQ/MI, reproduz
uma narração sobre parte dessa travessia, feita em primeira pessoa, ao que tudo indica pelo próprio Ânge-
lo Ferreira. Darcy Ribeiro (1977: 44-5) faz referência a relatório da Inspetoria do SPI no Amazonas, de
1906 [sic], ao comentar que as "correrias" sofridas pelos Kaxinawá perdurariam até um "morador do rio
Tarauacá organizar um grupo de índios Katukina, fortemente armado e pôs se a percorrer as matas pro-
curando os Kaxinawá para catequizá-los". Ribeiro transcreve trecho do que parece ser aquela mesma
narração (a parte não encontrada no SARQ/MI), com a descrição do "primeiro encontro" com os Kaxina-
wá, então chefiados por "Tercum", ou seja, Tescon, e conclui que essa "pacificação" resultaria numa "es-
cravização" que tornaria os índios "ainda mais miseráveis" do que quando eram perseguidos em "correri-
as".
285
Em seu relatório, Felizardo (Cerqueira, 1958) não faz qualquer menção à presença de Tescon nessa
ocasião. Na edição dos dois primeiros capítulos desse relatório, feita com a colaboração de uma jovem
jornalista de Belém, em final da década de 1950, a presença de Tescon, diferentemente, é assim destaca-
da: "(...) vieram mais ou menos uns 120 caboclos, o da frente o chefe da tribo, se apresentou, dando o seu
nome, Tescon (...) vieram em traje de gala, segundo seus costumes, pintura de variadas cores, penas de
aves diversas, sendo que o tuchaua trajava uma calça de casimira preta e camisa listrada de vermelho e
preto. Pendia no braço esquerdo um lenço onde conduzia umas 60 a 80 balas e um rifle novo de marca
americana, aparentava uns 35 anos (...) Nesse batalhão indígena, todos estavam bem armados, uns usa-
vam rifles, outros espingardas, outros terçados. Havia cerca de 60 rifles entre todos da tribo e umas 30
196
A passagem de Ângelo e de seus homens pelo rio Gregório foi também lembrada
por Raimundo Luiz
286
, destacando a participação de índios "amansados" no rio Tarauacá
na turma e o papel de um Katukina como intérprete nos primeiros diálogos com os che-
fes Yawanawá. O Katukina comunicaria que Ângelo era um chefe, como eles, e não
tencionava fazer-lhes "correrias", como os peruanos, mas sim estabelecer relações que,
como acontecera com seu próprio povo, poderiam render-lhes roupas, instrumentos
de trabalho e outras mercadorias. Desafiado a provar sua condição de chefe, Ângelo a-
ceitaria tomar rapé de tabaco, soprado com um longo canudo, tombaria ao chão, mas
acabaria bem recebido nas malocas. "Assim Katukina amansou Yawanawá (...) Turma
do Ângelo Ferreira amansou Yawanawá", diz Raimundo. Da mesma forma que fizera
com os Rununawa e os Arara, Ângelo Ferreira comunicaria que fora encarregado pela
Prefeitura para dar-lhes "proteção" e que "correrias" não seriam mais realizadas por pe-
ruanos ou pelos patrões. Pediria, em contrapartida, que não promovessem novos saques
às barracas e mortes de seringueiros.
A delegação outorgada por Thaumaturgo de Azevedo a Ângelo Ferreira seria ini-
cialmente alvo de descontentamento da parte de Antônio Nunes, patrão do seringal Uni-
ão, no rio Tarauacá, com quem aquele tivera desentendimentos acerca dos limites de su-
as respectivos seringais. Pouco antes da saída da turma de Ângelo Ferreira para Cruzei-
ro do Sul, Nunes enviaria dois de seus empregados aos seringais do Riozinho da Liber-
dade, propriedade do coronel da Guarda Nacional Francisco Freire de Carvalho. Esses
emissários alertariam Carvalho e seus gerentes de que Ângelo Ferreira pretendia armar
os índios com rifles e incitá-los a atacar as casas dos seringueiros, responsabilizando-o
pelas mortes recentes de fregueses e creditando-lhe a intenção de, à frente de um bando
de homens fortemente armado, assumir os seringais daquele rio (SARQ/MI. Filme 380,
Planilha 102, Fot. 1222-23). Os empregados de Nunes seguiriam depois à cidade de
espingardas, todas essas armas tinham sido tomadas, custando inúmeras vidas, testemunhando assim a
ferocidade dos componentes de tão terrível gente" (Cerqueira, 1958a). Referências às proezas de Tescon
contra os peruanos e de sua chefia entre os índios do Liberdade constam em relatórios oficiais (Oliveira,
1907; Linhares, 1913) e outros textos (Tastevin, 1926; 1928; Castello Branco, 1950; Barros; 1993), bem
como em depoimentos de lideranças Arara (Correia, 2001).
286
Nascido em 1929, Raimundo Luiz é filho de Antonio Luiz, chefe que consolidaria as relações com os
patrões, da família Carioca, nos seringais do rio Gregório, nos anos 1920. Após a morte do pai, Raimundo
Luiz assumiria a chefia do povo Yawanawá (na verdade um aglomerado de povos Pano) e, a partir de fi-
nal dos anos de 1970, teria papel central na luta pelo reconhecimento e demarcação da Terra Indígena Rio
Gregório. O depoimento acima citado foi prestado a Terri Valle de Aquino, em 1996, por ocasião dos es-
tudos para a criação da Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade (Aquino, 2001). Versões similares
sobre os primeiros entendimentos de Ângelo Ferreira com os Yawanawá, também baseados em relatos de
Raimundo Luiz, encontram-se transcritas e comentadas em Naveira, 1999: 29; Maciel, 2005: 20-2; e
Vinnya Yawanawá, 2007: 20.
197
Cruzeiro do Sul, onde alertariam o prefeito interino, José Pereira Leite de Berrado, que
um "grande bandoleiro, à frente de um exército de mais de 100 homens, chegaria para
saquear a coletoria e casas comerciais e descer de rio abaixo levando tudo de arrasto"
(ibid). O prefeito destacaria ao rio Tarauacá uma lancha e uma força militar, comandada
por um tenente, com ordem para prender Ângelo Ferreira e destruir sua casa e todos os
seus pertences. Com a chegada de Ângelo Ferreira a Cruzeiro, para a entrega do serviço
de abertura do varadouro, o Leite de Berrado enviaria, tendo Felizardo Cerqueira e Ma-
ru como portadores, carta ao rio Tarauacá, ordenando a imediata suspensão da operação.
Acordo seria então selado com o prefeito para um posterior retorno de Ângelo à sede do
departamento, quando receberia a remuneração pelo serviço que acabara de prestar
(Cerqueira, 1958: 13).
Durante a estadia em Cruzeiro, informa Felizardo, "eu já havia sido nomeado pelo
Engenheiro Chefe da Comissão de Obras Federais no Território do Acre, o Sr. Antonio
Manuel Bueno de Andrada, para ocupar o lugar de chefe da turma em defesa de cami-
nho e catequização de índios, chefiando quatro homens, (...), mas que estes homens a-
inda estavam em projeto" (Cerqueira, 1958: 15).
A data dessa nomeação, meados de 1906, antecede, em pouco menos de ano, a
criação e a chegada da Comissão de Obras Federais, e daquele engenheiro chefe, ao Al-
to Juruá. Apesar deste desencontro de datas, essa informação permite apontar que, por
indicação de Ângelo Ferreira, até então interlocutor exclusivo face a diferentes manda-
tários do poder departamental, Felizardo também recebera da Prefeitura, nessa época,
o encargo de promover a "catequese" dos grupos indígenas que viviam nas cercanias do
varadouro recém aberto, conforme intenção inicialmente manifestada por Thaumaturgo
de Azevedo no ano anterior. A constituição de uma equipe de homens, localizada em
meio às malocas, para "pacificar" a região e "fiscalizar", ou "policiar"
287
, os índios, per-
mitindo a abertura e o livre trafego da estrada de rodagem a ser construída, seria, por
sua vez, política privilegiada pela Comissão de Obras a partir de 1907. Para tal, o convi-
te já feito a Felizardo seria renovado pelo engenheiro Bueno de Andrada
288
.
287
Sintomático desse viés imprimido pela Prefeitura e a Comissão de Obras Federais às iniciativas desti-
nadas à tutela dos grupos indígenas é, por exemplo, a inclusão dos assuntos relativos à "catequese dos ín-
dios" na seção "Policiamento" do relatório enviado pelo então Prefeito Bueno de Andrada (Brasil. MJ.
Prefeitura do Alto Juruá, 1908: 19) ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, no qual dava ciência de
que informações mais detalhadas sobre o "policiamento das tribos indígenas" constavam de relatório da
Comissão de Obras, também de sua autoria (Andrada, 1908).
288
Dentre os documentos encaminhados por Felizardo ao deputado federal José Guiomard Santos em
1955, com o pedido de seu apoio para a obtenção de uma pensão pelos serviços como "catequista de ín-
dios", consta uma declaração com o timbre da Comissão de Obras Federais, datada de 24 de maio, com
198
De retorno de Cruzeiro do Sul, recrutado pela Prefeitura, Felizardo receberia
instruções de Ângelo Ferreira para "ir à busca" dos índios encontrados na viagem de i-
da, com ordem expressa de "apressar a catequese". Sozinho, Felizardo seria "bem rece-
bido" nas malocas, onde permaneceria por pouco mais de 20 dias e estabeleceria acor-
dos com Tescon: prometer-lhe-ia, novamente, a "proteção" do governo e obteria seu
compromisso de que os índios sob sua chefia, e mesmo os Jaminawa que moravam no
igarapé da Besta, afluente do Riozinho da Liberdade, não promoveriam novos roubos e
ataques nos seringais. Apesar da insistência para que ali estabelecesse moradia, logrou,
diz Felizardo, prometendo mostrar-lhes um "pé da árvore de balas", levar alguns índios
ao sítio Lupuna e, depois, a localidades das redondezas, "para bem desembaraçá-los do
medo da morte" e reafirmar, na presença de Ângelo Ferreira, os acordos já estabelecidos
(Cerqueira, 1958: 15-19).
Novas iniciativas para estabelecer entendimentos com outros grupos seriam prota-
gonizadas por Felizardo em meados de 1907, após receber denúncias, de patrões e se-
ringueiros, de que os Iskunawa e os Yawanawá, moradores do igarapé Apiuri, afluente
da margem direita do rio Gregório, próximo à terra da divisão com o rio Tarauacá, esta-
vam "semeando o terror" em seringais desses dois rios. "Não me fiz por esperar, fui em
auxílio aos seringueiros que estavam sendo roubados e prejudicados pelas hostilidades
(...)", diz Felizardo (ibid: 22), tornando clara a associação entre as ações de "catequese",
de "policiamento" dos índios e de "garantia da segurança" dos trabalhadores e da produ-
ção nos seringais. De retorno de Cruzeiro do Sul, em junho de 1907, onde a Comissão
de Obras Federais fora instalada dois meses antes, Felizardo assim descreve a "entrada
triunfal" nas malocas, a participação de Tescon como "intérprete" e os resultados das
tensas negociações tecidas com os chefes de ambos os grupos:
"Resolvi, como era da minha alçada, procurar entrar em contato direto com os
bugres. No dia 22 de junho de 1907, tive ensejo de nossa entrada triunfal na
ano e assinatura ilegíveis (conforme especifica a responsável pela transcrição). Neste documento, Felizar-
do era nomeado "chefe de turma de segurança dos caminhos", com diária de dez mil reis (Diário do Con-
gresso Nacional, 1956: 12239). Em outro trecho de seu relatório, Felizardo afirma que, durante o período
em que atuou para a Comissão de Obras, ocupara o cargo de "sargento da turma de segurança de cami-
nhos", e que, em Cruzeiro do Sul, reportava-se ao Capitão de Corveta Aristídes Vieira Mascarenhas, co-
mandante da canhoneira Missões (Cerqueira, 1958: 21-22). Tendo chegado como membro da Comissão
de Obras, Mascarenhas estava à época a serviço da Prefeitura, com atribuição de garantir a segurança pú-
blica em Cruzeiro do Sul e no Alto Juruá. Acumularia o cargo de delegado de polícia, indicado pelo Pre-
feito Bueno de Andrada (Brasil. MJ. Prefeitura do Alto Juruá, 1908: 19) e assumiria interinamente a pre-
feitura de janeiro a setembro de 1908 (Castello Branco, 1930: 670). Em certa ocasião, Mascarenhas teria
ordenado a Felizardo a imediata prisão de Tescon, que pouco antes, dizia-se, matara um índio por roubos
feitos em barracas de vários seringueiros. Essa ordem seria demovida, esclarece Felizardo, após suas con-
siderações sobre as conseqüências, contrárias à desejada "pacificação" da região, que a prisão de Tescon
poderia acarretar (Cerqueira, 1958: 22).
199
grande maloca dos Japós - Isco-naúa e Queixadas - Iaúa-naúa. Levei como intér-
prete o grande Tescom. Na chegada houve um levante de ânimos, as duas tribus
não queriam chegar a acordo nenhum; cismavam uma falsidade, mas, foi o que
eu mais garanti, que de forma alguma os subordinava - prisão. Os chefes das du-
as casas eram já muito amigos, tinham os seguintes nomes: o Iaúa-naúa seu nome
Picaruá e o da tribo Isco-naúa Rúmê-á. Depois dos acordos e juramentos que
prestaram, de não hostilizarem mais aqueles rios, fizeram as devidas cerimônias
de praxe e os chefes índios também pediram-me para que os brancos cessassem
os seus ataques de correrias em seu povo" (Cerqueira, 1958: 23).
À mesma época, o engenheiro Joaquim Nunes de Oliveira, a serviço da Comissão
de Obras Federais, realizaria viagem de Cruzeiro do Sul a Cocameira, para realizar es-
tudos para a determinação do melhor traçado da "Leste-Oeste Brazileira", cuja abertura
seria iniciada no ano seguinte. Em seu relatório, Oliveira (1907: 63) informa ter encon-
trado Felizardo, "nosso encarregado da fiscalização dos índios", na margem esquerda
do rio Gregório, acompanhado do índio Manduca, nas proximidades de um bananal e de
um roçado abandonados pelos Kaxinawá, após "perseguições de seringueiros, em con-
quista de terras". Conforme previamente acertado, Felizardo acompanharia Oliveira e
sua equipe, sete homens armados, pelo restante da viagem. Após dez dias de caminhada,
chegariam a Lupuna, onde o engenheiro seria recebido por emissários de Ângelo Ferrei-
ra, ainda no caminho, trazendo-lhe um "lunch" e uma garrafa de vinho. A descrição do
"sítio", feita por Oliveira, confirma a opulência do "povoado" e a fama de "homem tra-
balhador" gozada por Ângelo:
"Bonito logar, com uma área descampada de 18 alqueires de 10.000 braças qua-
dradas, mais ou menos, sendo uma parte em pastos, outra em bananaes, roças de
macacheira, cannaviaes, possuindo 18 pequenas barracas bem distribuídas, uma
moenda, uma bolandeira, gados muares, vacuum, suinos, cavallares, ovelhas e
muitas galinhas. Sobre um alto se acha a casa do Sr. Angelo, barracão grande,
alto e de relativo bom gosto. Do alpendre da casa se avista todas as barracas e
toda a área descampada. Esta situação fez-me lembrar, com saudade, os peque-
nos sítios dos Estados de São Paulo e Minas" (Oliveira, 1907: 65)
289
.
Findos os trabalhos topográficos em Cocameira, Oliveira decidiria, em seu retor-
no, visitar várias malocas, com o objetivo de fazer-se conhecer como representante da
Comissão de Obras, comunicar a abertura da estrada e estabelecer acordos que permitis-
sem o início dos trabalhos. Rio Tarauacá acima, seguiria numa canoa cedida pelo Coro-
nel Ângelo Ferreira, acompanhado de dois homens de sua escolta e dos "sete homens
289
Três anos depois, no registro do título de compra e venda dos seringais antes movimentados por Ânge-
lo Ferreira seriam relacionados no "sítio Lupuna" 14 estradas de seringa, benfeitorias, plantações, avia-
mento de farinha, barracão (com móveis e objetos de escritório) e barracas, uma lancha, além de uma tro-
pa de seis burros, com arreios (Cartório de Registro de Imóveis de Tarauacá, Livro 3B, fl. 4v-6).
200
que estavam encarregados de zelar dos índios" (Oliveira, 1907: 66). A caminhada inici-
al, de 36 quilômetros, pela floresta teve início no seringal Atenas, passando pelo igarapé
Cupú, até alcançar o Apiuri, onde esperava encontrar a primeira maloca, habitada pelos
Iskunawa
290
. À diferença do relato de Felizardo, e de outros relatórios da Prefeitura e da
própria Comissão, o engenheiro informa ter presenciado uma situação desoladora: em
meio a um roçado abandonado, um grande "barracão" deserto, no qual havia nove se-
pulturas (inclusive a do "tuxaua"), índios em fuga, após mortandade recente, por um mal
ao qual chamavam "catarro". À frente, restos de outro barracão, incendido pelos pró-
prios índios, ainda em chamas, cercado por plantações arrasadas. Perguntado sobre o
porquê dessa situação, Felizardo, "nossa ngua" ("intérprete", "guia", esclarece Olivei-
ra), revelaria o "costume" desses índios de, depois de seguidas mortes, "chorarem seus
parentes", tudo destruírem e mudarem seu local de moradia (1907: ibid).
Nas proximidades do igarapé Paturi, também afluente do rio Gregório, o encontro
com dois casais de indígenas e várias crianças marcaria a proximidade de outro grande
roçado e de vários "tapiris"; adiante, outra maloca, segundo o engenheiro, "um dos pon-
tos de permanência do Felizardo com sua turma de policiamento dos índios". Alertados
por uma saraivada de tiros ao alto, apareceriam vários índios, um dos quais foi chamar o
chefe, que compareceu com vários homens, mulheres e crianças. O chefe quis saber de
Felizardo se o engenheiro também era um "tuxaua" e se era dos "peruanos", dos quais,
disse, guardava desconfiança e ódio, devido às lembranças das "correrias" promovidas
pelos caucheiros poucos anos antes. Esclarecido por Felizardo de que se tratava de um
tuxaua e um "cariu" (brasileiro), Oliveira, como "prova de amizade", seria presenteado
com cachos de bananas e convidado a seguir à maloca. Impressionado com a deferência,
Oliveira comentaria: "Só a mim, não aos que me acompanhavam, o que revella entre el-
les o orgulho: era um tuchaua que se entendia com outro"
291
. Na visita aos "tapiris", on-
290
Foto, sem autor especificado, datada de 1910, dos "índios da maloca do Cupu", consta no Anexo Foto-
gráfico da tese. A foto integra a reedição, em livro, do texto "O Juruá Federal", de Castello Branco
(1930), patrocinada, em 2005, pelo gabinete do senador acreano Geraldo Mesquita Júnior, como parte da
coleção "Documentos para a História do Acre", publicada na Gráfica do Senado. A foto aqui reproduzida
foi obtida no Acervo Digital do Memorial dos Autonomistas, em Rio Branco, gerenciado pelo Departa-
mento de Patrimônio Histórico, da Fundação de Cultura e Comunicação Elias Mansour, do governo esta-
dual.
291
Sobre as expectativas e a postura dos chefes indígenas quando dos "primeiros" encontros e negocia-
ções com os representantes governamentais, e mesmo com os seringalistas, afirma Castello Branco (1950:
59-60): "O principal problema da catequese estava no seguinte. O gentio, da língua Pano (...) considera-
va-se em pé de igualdade a qualquer outra pessoa e os seus tuchauas só consentiam em falar com os ou-
tros chefes, e, quando estes eram civilizados, êles indagavam logo se eram possuidores de igual título,
para então entabolar conversação. (...) êstes homens não admitiam superiores a êles, não podiam, facil-
mente, subordinar-se a outrem (...). Habituados a um sistema de atividades inteiramente diferente dos da
201
de viviam cerca de 120 índios, uma constatação semelhante, da qual Oliveira (1907: 69)
diz não ter guardado "agradáveis impressões": muitos doentes, alguns graves, com os
mesmos sintomas, um "forte catarral e febres", que o engenheiro atribuiria ao costume
dos índios de dormirem em redes, nus, sobre pequenas fogueiras e se banharem nas á-
guas frias dos igarapés várias vezes durante o dia.
Após outros 50 quilômetros de caminhada, e passar o barracão do seringal Gua-
rany, abandonado desde um ataque dos índios e o assassinato de todos os moradores, a-
travessar o rio Gregório, descer os igarapés Carrapateira e Marajá, onde havia "diversos
tapiris", e entrar no igarapé Forquilha, afluente da direita do Riozinho da Liberdade, al-
cançariam a maloca do "afamado Tescon", que Oliveira afirma ser "chefe" dos Kaxina-
wá. Cerca de 60 índios, espalhados em tapiris, choravam a morte de parentes, também
vitimados pelo catarro. Tendo sido "bem recebidos", Felizardo enviaria um índio para
chamar Tescon, que não compareceria. Numa maloca próxima, onde viviam 90 índios,
Oliveira lograria conversar brevemente com Tescon, com ajuda do "intérprete" (Feli-
zardo), pois, aquele se recusava a falar o espanhol, "língua dos conquistadores", e pouco
compreendia o português. Oliveira (1907: 71) diz ter recebido de Tescon a promessa de
uma visita a Cruzeiro do Sul e, segundo Bueno de Andrada (1907: 28), do auxílio de
seus índios na abertura da estrada. Como contrapartida, exigiria que o governo lhes re-
servasse terras e fornecesse machados e roupas.
Legitimado pela Comissão de Obras Federais, tendo por atribuições a "fiscaliza-
ção" e o "policiamento" dos índios, estabelecidos os primeiros acordos com os chefes
das malocas, e respaldado por Ângelo Ferreira, Felizardo iniciaria negociações com o
coronel Francisco Freire de Carvalho, para que este indicasse pessoa de sua confiança
como "encarregado" das malocas no Riozinho da Liberdade. Com a implantação desse
"posto de fiscalização", e de outro no rio Apiuri, Ângelo e Felizardo pretendiam esten-
der a "proteção" e a "catequese" aos indígenas de todas as malocas dessa região, pacifi-
cando suas relações com os seringueiros, garantindo "segurança" à produção de borra-
cha e criando condições para a abertura da estrada pela Comissão
292
. Ao mesmo tempo,
gente que se intrometeu na floresta que dominavam, não podiam de bom grado aceitar as exigências dos
novos senhores e sempre que não lhe davam a liberdade a que estavam habituados, fugiam, revoltavam-
se, usando de represálias e vinganças. Métodos mais liberais, como os adotados (...) no Liberdade, por
outros civilizados, no tempo da Comissão de Obras Federais, deram bons resultados".
292
Diferentemente, nos capítulos editados de seu relatório, Felizardo (Cerqueira, 1958a) afirma que esse
encontro teria ocorrido quando do retorno da turma de Cruzeiro do Sul, a reboque de convite feito pelo
Coronel Carvalho a Ângelo Ferreira, com intenção de conhecê-lo e agradecer-lhe a abertura do varadou-
ro, pelos benefícios que traria aos seus negócios. A proposta de nomeação de um "homem de sua confian-
ça" para colocar nas malocas de Tescon teria sido inicialmente recebida com entusiasmo por Carvalho,
202
era intenção deles obter garantias do Coronel Carvalho de que novas "correrias" não se-
riam realizadas por seus gerentes, fregueses e homens armados. Carvalho julgaria con-
veniente a proposta apresentada por Felizardo, e indicaria o peruano Maxico, casado
com uma índia, "de uma tribo do rio Japurá" e pai de uma menina. Maxico se instalaria
no igarapé da Besta, próximo aos Jaminawa, com a atribuição de "fazer a administra-
ção" dessa maloca e daquelas "dos índios de Tescon", auxiliado por dois homens indi-
cados por Felizardo (Cerqueira, 1958: 23-4).
As ações oficiais de "catequese", promovidas por meio de iniciativas articuladas
por Ângelo Ferreira e Felizardo Cerqueira, foram concebidas e postas em prática sobre
uma extensa rede de relações interétnicas, pré-existente à chegada dos caucheiros e se-
ringueiros, que persistia, apesar dos substanciais rearranjos territoriais e sociais pelos
quais haviam passado os vários grupos indígenas em decorrência das "correrias" e da
implantação da empresa seringalista sobre seus antigos territórios.
Trechos de um depoimento de Raimundo Luiz Yawanawá indicam que, antes da
chegada dos caucheiros e seringueiros, as grandes "festas" eram momentos importantes
de reafirmação de alianças políticas e matrimoniais, e de intercâmbio de bens e conhe-
cimentos, entre os vários grupos que viviam, e se visitavam, nos rios Liberdade, Gregó-
rio e Tarauacá, mas também ocasiões nas quais se reavivam e eclodiam conflitos, moti-
vados por intrigas, vinganças, emboscadas, envenenamentos e roubos de mulheres:
"Tempo das festas, os Rununawa e os Shawanawa [Arara - MPI] faziam aquela
grande festa, iam buscar os Yawanawá, e Yawanawá iam buscar o povo do rio
Tarauacá, que era os Iskunawa. Hoje se chama Katukina [Shanenawa - MPI] (...)
eles tomavam de conta do rio todinho. Eles não, os Kaxinawá. Então, esses Katu-
kina faziam ligação muita com os Kaxi. Quando eles convidavam uma festa, eles
iam, os Kaxi também. Misturavam. Então fazia uma grande festa, um encontro de
três, quatro aldeias, ou tribos, quatro tribos. Muita gente, mais de duas mil pes-
soas. Faziam aquele convite grande. Então aquela aliança foi uma aliança muito
segura. Por causa dessa aliança, fizeram muita troca de mulher, pra unir mais".
Esses grandes encontros serviram, nesse novo contexto, para despertar a curiosi-
dade e o desejo por novos instrumentos de trabalho, roupas e mercadorias, levando vá-
rios grupos a se mobilizar para acessá-los: em alguns casos, pela continuidade dos rou-
bos a barracas de seringueiros, em outros, pelo estabelecimento de acordos e relações,
pois mantinha entre 20 e 30 homens armados para evitar saques e mortes promovidos pelos índios, os
quais, em certos anos, haviam causado a queda de até metade da produção de seus seringais. O encontro
serviria ainda para pôr fim às desconfianças e ao incômodo gerados pela passagem dos portadores de An-
tônio Nunes pelo Riozinho da Liberdade, os quais, devido à gravidade das denúncias, haviam levado carta
assinada por Carvalho, endereçada ao prefeito, recomendando que atenção lhes fosse dada e providências
fossem urgementente tomadas.
203
mais ou menos duradouras, com os seringalistas, principalmente com Ângelo Ferreira.
Ainda segundo Raimundo Luiz: "Naquela época, de ajuntar para fazer a festa, eles
traziam chapéu de palha na cabeça, o terçado, alguma coisinha. O pessoal via e dizia:
"Como é isso?". Os outros respondiam: "É o ajudante daquele pessoal que passou aqui
naquele tempo. Era para isso que eles queriam amansar. Olha como está dando algu-
mas coisas boas pra nós. Essas coisas tudinho". Ao que tudo indica o "ajudante" de
Ângelo Ferreira, que passara pelo rio Gregório, na abertura do varadouro para Cruzeiro
do Sul, era Felizardo Cerqueira, quem, nos anos seguintes, concentrara sua atuação nes-
sa região, legitimado pela Comissão de Obras e contando com o respaldo de seu antigo
patrão.
As ações de "catequese" e "policiamento" promovidas por Felizardo vieram a in-
cluir, portanto, ferramentas e mercadorias como importante atrativo para o estabeleci-
mento de negociações e acordos, que, por sua vez, vieram a permitir o engajamento de
mão de obra indígena em empreendimentos encabeçados por Ângelo Ferreira. O cum-
primento pelos patrões dos acordos para a interrupção das "correrias", o reconhecimento
dos chefes indígenas e suas formas de autoridade nas malocas e a distribuição de mer-
cadorias por seu intermédio constituíram importantes componentes na legitimidade que
as ações de Felizardo alcançaram nessa conjuntura. E vieram a contribuir, ainda, no re-
conhecimento público que Ângelo Ferreira adquiriria como "catequizador de índios",
mas também como "tuxaua", "chefe" e "papai grande", como indicam depoimentos de
lideranças indígenas, matérias da imprensa de Villa Seabra ("Aborígenes". O Município,
28/4/1912. SARQ/MI, Filme 324, Planilha 007 Fot. 236-37) e textos depois escritos por
Tastevin (1926: 47) e Castello Branco (1950: 17; 59-60).
Esse sistema de "catequese" e tutela dos indígenas teria curta duração, contudo.
Em dezembro de 1907, diz Felizardo, quatro "mateiros" do seringal Ceará, após tenta-
rem manter relações sexuais à força com índias Jaminawa, e serem impedidos por Ma-
xico, comunicariam ao gerente, o português Manuel Cunha, genro de Francisco Freire
de Carvalho, que o peruano planejava revoltar os índios para apossar-se do seringal e
para matá-lo, caso o coronel oferecesse resistência. Por ordem de Cunha, Maxico seria
espancado, amarrado e preso junto com sua mulher e sua filha. Após fugirem, o gerente
ofereceria aos mateiros "um conto de reis e uma pipa de vinho" a quem os matasse. E
mandaria convocar os Jaminawa ao barracão, oferecendo-lhes, pelas mesmas mortes,
boa quantidade de armas, munição, terçados e miudezas. Os três seriam mortos a tiros
204
pelos Jaminawa, diz Felizardo, antes de conseguirem alcançar o rio Gregório (Cerquei-
ra, 1958: 24-7).
À época residindo na maloca do rio Apiuri, Felizardo seria informado da prisão de
Maxico por um dos índios que com ele moravam e do seu assassinato por seringueiros
do igarapé Forquilha. Foi então ao encontro de Cunha, que, desmascarado, pediria-lhe
segredo. De Ângelo Ferreira, Felizardo receberia a incumbência de levar carta ao Coro-
nel Carvalho relatando a participação de seu genro na trama. Temeroso da famosa trucu-
lência do coronel, Felizardo seguiria ao barracão na foz do Liberdade, aonde Cunha
chegara. Dando eco às informações do genro, Carvalho acusaria Ângelo Ferreira de
tramar o assassinato de Maxico, e Felizardo, "seu braço direito", "homem valente que
não temia nem mesmo os índios bravios", de executá-lo. Disse, ainda, ser sabedor que,
em breve, por ordem de Felizardo, Tescon e seus índios desceriam o rio, queimando
barracões e barracas, matando os seringueiros e carregando suas mulheres, para saquear
o seu barracão. Por isso, enviara seu guarda-livros, Francisco Aprigio Riquet Nogueira,
a Cruzeiro do Sul, para dar parte às autoridades (Cerqueira, 1958: 28-31). Ameaçado de
morte, preso a mando de Cunha, cuja nomeação como juiz de paz do seringal Ceará fora
solicitada e trazida por Riquet Nogueira, libertado por este guarda-livros, Felizardo le-
varia a Ângelo carta que os intimava a se apresentar em Cruzeiro do Sul para responder
a processo judicial já instaurado
293
.
O desmantelamento do sistema de "catequese" e tutela montado por Felizardo
Cerqueira e Ângelo Ferreira, com respaldo da Comissão de Obras, se consumaria ao
longo de 1908. Grande parte dos Jaminawa, originalmente cerca de 70 índios, seria ata-
cada pelos índios comandados por Tescon, em represália pela morte de Maxico, e opta-
ria por fugir para as cabeceiras do rio Amoaca, afluente da margem direita do Juruá, em
seringais do patrão Manoel Absolon Moreira. No Apiuri, em maio, Luiz Izidoro, um dos
"encarregados" nomeados por Felizardo, seria acidentalmente morto por um jovem ín-
dio que, por curiosidade, manejava sua arma. Desconfiado de que essa morte fora pro-
posital, Tescon exigiria dos chefes Iskunawa e Yawanawá a entrega do rapaz. Face à
293
Segundo Felizardo, em abril de 1908, Ângelo Ferreira e ele se apresentariam para prestar esclareci-
mentos sobre a morte de Maxico perante as autoridades judiciárias, as quais teriam exigido dinheiro a
Ângelo para arquivar o caso. Recusada a proposta, o processo iria a julgamento posterior, o que acabaria
não ocorrendo, pois Manoel Cunha acabaria falecendo um ano depois (Cerqueira, 1958: 35). Máximo Li-
nhares (1913), ajudante do SPILTN, em sua viagem pelo Liberdade em 1911, informa, contudo, ter sido
acompanhado pelo gerente do seringal Ceará, Manoel Rodrigues da Cunha, em visita feita a uma "impor-
tante maloca dos índios Caxinauas e Araras, chefiada pelo famoso tucháua Tescon, da tribu dos Cachi-
nauas, caboclo valente e que falla regularmente o portuguez, anda vestido, possue trez rifles e tem pe-
queno commercio com os barracões".
205
sua recusa, informa Felizardo, "As tribos romperam as relações diplomáticas e logo
houve a declaração de guerra (...)", com uma série de ataques recíprocos, que resultari-
am em elevado número de mortes (1958: 39-40)
294
.
Em outubro de 1908, por sua vez, o Prefeito Capitão Aristides Vieira Mascare-
nhas, diz Felizardo, solicitaria seus serviços para "amansar" os Poyanawa, atendendo
pedido do Coronel Mâncio Agostinho Rodrigues de Lima, dono do seringal Aurora e da
Fazenda Barão do Rio Branco, no rio Moa. Para seguiria, com "índios intérpretes", o
"mateiro" Antonio Bastos, quem, por indicação de Felizardo, substituíra Izidoro nas ma-
locas do Apiuri
295
. Por solicitação do mesmo capitão, Felizardo seguiria ao alto rio Tejo,
na tentativa de "pacificar" os indígenas que ali promoviam saques e mortes (Cerqueira,
1958: 41).
O assassinato de Ângelo Ferreira, em meados de 1909, teria como desdobramento
o término das ações de "catequese" de Felizardo Cerqueira nos rios Liberdade, Gregório
e Tarauacá. Informações sobre a continuidade das ações promovidas pela Comissão de
Obras Federais e a Prefeitura em 1909 constam em Castello Branco (1950: 18): os ín-
dios do rio Gregório, "já civilizados", teriam limpado mais de 30 quilômetros do leito da
"Leste-Oeste Brazileira", serviço pelo qual receberam roupas, armas e instrumentos para
a agricultura. Dois "chefes de turma" haviam estado à frente dessa empreitada: Gui-
lherme Duque Estrada, remunerado pela prefeitura, e Antonio Bastos, pela Comissão de
294
Felizardo atribui a esses conflitos o assassinato de Tescon e de grande parte de seus homens, a tiros,
em dezembro de 1908, quando os Iskunawa e os Yawanawa os surpreenderam pescando em um lago
(Cerqueira, 1958: 40). Todas as outras fontes informam, diferentemente, que a morte de Tescon e seus
homens ocorreram em 1914, numa tocaia preparada pelos Arara (Shawanawa) durante uma pescaria cole-
tiva num lago do igarapé Forquilha (Tastevin, 1926: 50-1; 1928: 208-09; 211; Castello Branco, 1950: 50;
Barros, 1993: 127). Depoimentos de Raimundo Luiz (Aquino, 2001; Vinnya Yawanawá, 2007: 18-9) e de
lideranças Shawanawa (Correia, 2001) também creditam a morte aos Arara, devido a seguidas desavenças
surgidas por maus tratos a mulheres casadas com Rununawa e Yawanawá. Após a morte de Tescon, te-
mendo represálias dos Rununawa, Yawanawá e Iskunawa, os Arara rapidamente abandonariam o Riozi-
nho da Liberdade e se refugiariam na região compreendida entre os rios Tejo, Bagé e Amoaca. Neste úl-
timo, conforme já dito, viviam famílias Jaminawa e Amahuaca, em seringais de Manoel Absolon Morei-
ra, que, dois anos antes, fora nomeado pelo SPILTN como "delegado de índios".
295
Esta é a única alusão feita por Felizardo a Antonio Bastos em todo o seu relatório. Após o fim das ini-
ciativas de Ângelo Ferreira e Felizardo, Bastos adquiriria progressivo reconhecimento como "catequiza-
dor" e "protetor" das malocas dos rios Tarauacá, Gregório e Liberdade, tendo trabalhado para a Comissão
de Obras Federais e para a Prefeitura, antes de, em 1911, ser nomeado pelo SPILTN como "Encarregado
do Entreposto de Proteção aos Índios do Alto Juruá" (Silva, 1912; Linhares, 1913). Seria a partir de então
que, a pedido do seringalista Mâncio Lima, nomeado "Delegado de Índios do rio Moa", Bastos se dedica-
ria à "atração" e "pacificação" dos Poyanawa, logrando em 1913, assentá-los nas propriedades daquele
coronel. Em carta ao Prefeito do Alto Juruá, Capitão Rego Barros, em meados de 1912, depois publicada
no jornal O Cruzeiro do Sul e no Jornal do Commercio, este de Manaus, Antonio Bastos, antes de reivin-
dicar o apoio da administração, afirmava estar "(...) humildemente, trabalhando na cruzada da nobre e
árdua tarefa que teve como seu paladino e iniciador o saudoso emprehendedor Coronel Ângelo Ferreira,
que muito fez para a tranqüilidade dos seringueiros e melhoramento dos infelises brazis (...)" (SARQ/MI,
Microfilme 324, Planilha 07, Fot. 258).
206
Obras. Citando relatório do Capitão-Tenente da Armada Carlos Frederico Noronha, que
sucedera Bueno de Andrada como prefeito, Castello Branco informa ainda que a Prefei-
tura continuava a manter entre os índios dos rios Tarauacá e Juruá, "nos mesmos locais
de outrora", "empregados encarregados pela catequese". E que estes vinham com fre-
qüência a Cruzeiro do Sul, encabeçando comitivas de indígenas, às quais a Prefeitura
fornecia "roupas, redes, armas de caça e alimentação".
O assassinato de Ângelo Ferreira foi assim rememorado pelo velho chefe Kaxi-
nawá Sueiro Cerqueira Sales, oito décadas e meia depois de ocorrido:
"Com uns tempos pegaram inveja, porque ninguém podia com ele. era ele que
lutava [trabalhava - MPI] com os índios. Pegaram queixa com ele. Foram matar
ele dentro do Apuanã. (...) Eram três pessoas: Auton Furtado, Ananias e Elmiro.
Esses dois eram pistoleiros, o Auton Furtado era o patrão forte, o chefe. Lá mata-
ram ele de bala, à traição. Ângelo tinha ido no centro, quando vinha querendo
sair, montou num cavalo, vieram e atiraram nele. Mataram na colocação Sa-
nango de Cima. Sinal dele não sei se existe ainda, num toco de cumaru, bem alto.
Derrubaram e ele foi sepultado bem encostadinho desse toco de cumaru" (Sueiro
Sales Cerqueira, Depósito Natal, seringal Alto do Bode, 1991).
O promotor de justiça Antônio José de Araújo (2003: 156), que viajou pelo rio
Tarauacá pouco após o assassinato, informa que a emboscada foi tramada por Ananias
Lima, Elmiro Peres, Auton Furtado e outros, e que o "malogrado Coronel" foi enterrado
no seringal Apuanã. Tastevin (1926: 48) atribui sua morte a rivais, aos quais alugara seu
seringal, versão endossada pelo historiador Castello Branco (1950: 17), que acrescenta
que os arrendatários teriam cometido o assassinato quando procurados "para regularizar
suas transações", às vésperas de uma longa incursão que Ângelo pretendia iniciar. O
nome e o local da colocação, Sanango, onde Ângelo foi morto e enterrado, aparecem
destacados, com uma cruz, no mapa do rio Tarauacá produzido, quinze anos depois, por
Tastevin (1926)
296
.
Essas informações convergem, em parte, na versão que Felizardo apresenta sobre
os motivos, o plano e a execução do assassinato de "um grande trabalhador nacional,
morto traiçoeiramente" (Cerqueira, 1958: 37). Em seu relatório, Felizardo atribui o pla-
no ao Coronel Francisco Freire Carvalho, intrigado com Ângelo Ferreira, e com ele, a-
pós a morte de Maxico, bem como a Auton Furtado, que se tornara gerente do seringal
Ceará, após a alegada morte de Manoel Cunha, o genro do coronel. Com recursos de
Carvalho, Auton seguira ao Ceará, onde recrutara uma turma de homens para trabalhar
como seringueiros. De retorno, solicitara um local para colocar sua freguesia a Ângelo,
296
Consultar o Mapa 4, nos anexos.
207
que lhe ofereceu uma "exploração" no rio Humaitá, aberta na expedição feita para a
Comissão de Obras Federais em 1907. Alegando preferir explorar borracha, e não cau-
cho, Furtado proporia a compra do seringal Apuanã, por 90 contos de reis, a serem pa-
gos em três parcelas. Para administrar o seringal, e levar à frente a trama do assassinato,
Auton estabeleceria sociedade comercial com Elmiro Peres e Ananias Lima, também
desafeto de Ângelo Ferreira, depois que, no rio Gregório, este lhe recusara o emprésti-
mo da lancha de sua propriedade. Nas datas acertadas em contrato, promessas de paga-
mento posterior, o que causara elevados prejuízos a Ângelo, que descolocara seus fre-
gueses do Apuanã e arcara com seu pagamento como diaristas. Às vésperas de uma no-
va viagem de exploração pelo rio Tarauacá, diz Felizardo, Ângelo enviara carta a Auton
Furtado, cobrando o pagamento dos atrasados ou a imediata devolução do seringal. O
assassinato, a tiros, ocorreria no paranã Apuanã a 15 de junho de 1909, dia marcado pa-
ra receber o seringal. Presos, Ananias, Elmiro e Auton seriam encaminhados a Cruzeiro
do Sul, mas, de passagem pelo barracão na foz do rio Liberdade, acabariam soltos por
intervenção do Coronel Francisco Freire de Carvalho, quem, segundo Felizardo, ofere-
ceria uma festa em comemoração à morte do desafeto (Cerqueira, 1958: 35-7).
Após o assassinato de Ângelo Ferreira da Silva, sua controversa fama perduraria,
afirma o padre Tastevin (1926: 48): "Sa personnalité est trés discutée: pour les uns ce fu
un herós, pour d’autres ce ne fut qu’un bandit".
Em 1994, durante a identificação da Terra Indígena Kaxinawá da Praia do Cara-
panã, que incidiria sobre os seringais Lupuna, Apuanã, Cocameira e outros explorados e
movimentado por Ângelo Ferreira nove décadas antes, duas lideranças Kaxinawá, Suei-
ro Cerqueira Sales e Jorge Lemes Ferreira foram incitadas a dar seus depoimentos sobre
este personagem e sobre as relações que estabelecera com vários grupos indígenas. Ava-
liações positivas de Ângelo Ferreira e dessas relações permeiam ambos os depoimentos,
ao ressaltar como suas iniciativas haviam impedido a continuidade das "correrias" e, à
diferença do que faziam brasileiros e peruanos, priorizaram "catequizar" e "amansar" os
índios, mobilizando-os em diferentes atividades em seus seringais. Disse Sueiro:
"Antigamente, no começo, o nosso patrão, que estava catequizando, era o Ângelo
Ferreira. Ângelo Ferreira não deixou mais matar gente, nem peruano, nem cea-
rense. Não sei de onde é que eles vinham, atacavam os índios, estragando os ín-
dios. Quando via as casas iam tomar à força, a tiro. Os índios corriam, ficavam
com a casa. Não queria ficar, tocava fogo, ficava com a comida. Índio ia fazer
tudo de novo. O Ângelo Ferreira chegou e não deixou mais fazer isso. Ele foi a-
mansando. Com medo, os índios se entregavam. Ele tava trabalhando, ajuntando
208
muito índio, tudo bom de serviço" (Sueiro Sales Cerqueira, Seringal Minas, rio
Tarauacá, março, 1994).
Com base em narrativas ouvidas de sua sogra, Jorge Lemes Ferreira reafirma a
habilidade de Ângelo Ferreira em "juntar" vários grupos indígenas e mobilizá-los em
trabalhos junto com os seringueiros e os caucheiros, bem como o respeito dedicado aos
chefes e a "satisfação" com que os índios trabalhavam, tendo assim acesso a mercadori-
as. Criado em meio aos seringais, Jorge Lemes enquadra Ângelo Ferreira na categoria
de "bom patrão" e descreve as atividades nas quais a mão de indígena era mobilizada e
as formas de relacionamento mantidas com esses grupos:
"Antigamente, desde 1900 e pouco (...) os Kaxinawá trabalhavam com Ângelo
Ferreira. Ângelo Ferreira trabalhava com um bocado de índios. Fora os Kaxina-
wá, tinha Jaminawa, Yawanawá, Katuquina, Kulina e outras nação de índio que
hoje nem existe mais. Ângelo era patrão bom pra se trabalhar. Não deixava cau-
cheiro e outros patrão fazer correria, matar os índios. Respeitava os chefes. A-
gradava, vendia mercadoria. Os índios fazia todo tipo de serviço pro Ângelo: tra-
balhava no campo, abria colocação, estrada de seringa, empicava ramal, estrada
de rodagem, varadouro, colocava roçado, caçava, pescava, fazia transporte de
mercadoria, de borracha. Mas trabalhava tudo satisfeito. Nunca tinha visto aque-
las mercadorias que o Ângelo arrumava. Tratava bem o índio. Não empatava de
colocar roçado, de pescar, de caçar, de fazer nossas festas" (Iglesias, 1995: 6).
Legitimados pela Prefeitura do Alto Juruá e pela Comissão de Obras Federais, as
iniciativas de Ângelo Ferreira e Felizardo Cerqueira gozaram de relativa autonomia, co-
locando a "catequese" e a "o "policiamento", relação de tutela sobre os vários grupos
indígenas, a serviço dos empreendimentos do primeiro. Tiveram papel crucial, por um
lado, na consolidação do Lupuna como principal ponto comercial no médio rio Taraua-
e de Cocameira como "cabeça de linha", primeiro do varadouro e depois da "Leste-
Oeste Brazileira". Por outro lado, viabilizaram uma contextual "pacificação da região",
com a exploração e o aproveitamento de novas áreas de seringais e a mobilização da
mão de obra indígena em diferentes serviços. O prestígio de Ângelo Ferreira junto à
Prefeitura e à Comissão de Obras permitiria ao primeiro pleitear o reconhecimento legal
dos seringais que movimentava e de outras explorações que abrira nos rios Envira e Mu-
297
.
297
Em pesquisas realizadas no Cartório de Imóveis de Tarauacá, não foi identificado qualquer registro in-
dicando que Ângelo Ferreira tivesse, em seu nome, título de propriedade dos seringais que movimentou
na primeira década do século passado. Contudo, escritura pública lavrada em Villa Seabra em 14 de mar-
ço de 1910, e depois no Livro 3B (fl. 4v-6) em 24 de junho de 1911, registra título de compra e venda de
"posses e de direitos dominicaes" sobre os seringais Nauta, Apuanã, Lupuna (no rio Tarauacá), São João,
São Pedro e Itapira (alto rio Acuraua), além de "explorações" nos igarapés Maronáua (rio Envira) e Hu-
maitá (rio Murú), adquiridas por Augusto Vieira e João Alves de Freitas & Companhia Foz do Murú, de
209
Por meio das ações de Ângelo Ferreira e Felizardo Cerqueira, as políticas de "ca-
tequese" da Prefeitura e da Comissão de Obras foram implementadas, alcançando al-
guns dos principais objetivos propostos por vários representantes do governo federal. A
gradual incorporação dos indígenas aos trabalhos nos seringais, sob a tutela tanto de a-
gentes públicos como dos seringalistas, fora projeto defendido pelo Prefeito Thauma-
turgo de Azevedo. A "catequese" articulada com a "fiscalização" e o "policiamento" dos
índios em suas malocas, semelhante ao "regime militar brando" defendido pelo Coronel
Belarmino Mendonça, veio a garantir a "vigilância" de vias de comunicação estratégicas
numa região fronteiriça. Vislumbrada por Azevedo e por Mendonça, essa foi a principal
política favorecida na gestão de Antonio Bueno de Andrada como engenheiro chefe da
Comissão de Obras Federais, cargo que acumularia com o de prefeito do Alto Juruá.
Pela "acomodação", termo que, em seu relatório, Felizardo Cerqueira utiliza re-
correntemente para referir-se aos acordos e ações destinados à "pacificação" das rela-
ções entre indígenas e "civilizados", logrou-se contextualmente "garantir segurança" aos
seringueiros e viabilizar a produção de borracha, meta que a maioria dos patrões e cau-
cheiros só havia concebido possível alcançar por meio de "correrias" e expedições puni-
tivas.
As ações oficiais de "catequese", delegadas a Ângelo Ferreira e a Felizardo Cer-
queira, também incluíram, como defendera Thaumaturgo de Azevedo, compromissos
com os patrões (especialmente com Francisco Freire de Carvalho e seus gerentes) para a
interrupção das "correrias". Essas ações seriam bem recebidas inicialmente pelos serin-
galistas, devido a ganhos que vislumbraram ser possível auferir, por exemplo, com a a-
bertura da estrada e com a garantia da "segurança" dos seringueiros na produção de bor-
racha. A fragilidade inerente a aquele plano de "pacificação da região" ficaria evidenci-
ada, contudo, quando a mediação feita por Ângelo Ferreira e Felizardo Cerqueira, e a
sua anterior proprietária, Dona Anna Joaquina da Silva, residente em Vila Pedra Branca (Ce) (Iglesias,
1995: 9-10). Distribuídos por vários rios e ligados por uma rede de extensos varadouros, estes haviam si-
do os seringais abertos e movimentados por Ângelo Ferreira até 1909. As "explorações", por sua vez, co-
incidem com aquelas abertas na viagem feita para a Comissão de Obras Federais. Apesar de terem o
mesmo sobrenome, não foi possível confirmar se Dona Anna Joaquina e Ângelo eram parentes. Tastevin
(1926) informa que, de passagem por Vila Seabra em fevereiro de 1924, conversara com uma tia do fina-
do Ângelo Ferreira, cujo, nome, todavia, não revela. Cabe lembrar que Pedra Branca foi local de nasci-
mento de Felizardo Cerqueira, o que torna possível especular se, quando chegaram ao Acre em 1904, Fe-
lizardo e a turma da qual fazia parte haviam sido recrutados por Ângelo Ferreira, ou por seus agentes, se
haviam sido motivados a migrar para o Acre por notícias auspiciosas enviadas por aquele patrão a Pedra
Branca ou se foram arregimentados pelo conterrâneo quando este abria um varadouro rumo às cabeceiras
do rio Acuraua, local em que primeiro Felizardo trabalhou como seringueiro.
210
ascendência que ela lhes permitiu, passaram a ser vistas pelos patrões como ameaça aos
seus próprios interesses e negócios.
As ações de tutela sobre grupos indígenas numericamente reduzidos, ainda viven-
do significativas transformações territoriais e um considerável declínio demográfico,
causados pelas "correrias" e por epidemias de "catarro" e outras doenças, constituíram
fator adicional a condicionar as políticas de alianças interétnicas, mas também o surgi-
mento de novos conflitos entre os vários grupos. À exceção das impressões "nada agra-
dáveis" sobre a situação sanitária nas malocas, conforme destacaria o engenheiro Joa-
quim Nunes de Oliveira em seu relatório de viagem de 1907, os resultados apresentados
nos demais relatórios dos Prefeitos, do chefe da Comissão de Obras e do próprio Minis-
tro da Justiça e Negócios Interiores, ressaltariam, via de regra, que a "catequese" e a
"pacificação" dos grupos "outrora bravios" caminhavam junto com a "defesa de cami-
nhos estratégicos", o crescente aproveitamento das imensas riquezas da floresta, o au-
mento da arrecadação e a integração do Território do Acre, objetivos maiores da admi-
nistração pública na região.
O desmonte da Comissão de Obras Federais e, principalmente, a morte de Ângelo
Ferreira da Silva, marcariam o fim das primeiras iniciativas de Felizardo Cerqueira co-
mo "catequista de índios". O assassinato, a fama de violentos daqueles que o mataram,
foram presos e acabaram retornando, impunes, para trabalhar como gerentes de serin-
gais na mesma região, aliado ao temor de uma possível retomada das "correrias", levari-
am a uma rápida dispersão da maioria dos grupos indígenas que, nos anos anteriores, ti-
vera nas relações com Ângelo e Felizardo relevante referência. "Quando os capangas
do Auton Furtado mataram Ângelo Ferreira, os índios ficaram com medo e espalharam
por todo canto", disse, por exemplo, Jorge Lemes Kaxinawá (Iglesias, 1995: 6).
Os índios dos rios Gregório e Liberdade ali permaneceriam e, nos anos seguintes,
apesar de eventuais "correrias" e conflitos, gradualmente iniciariam relações de trabalho
e comércio com os principais seringalistas nesses rios e em outros afluentes da margem
direita do alto rio Juruá (Barros, 1993; Lima, 1994; Correia, 2001; Naveira, 2001; Ma-
ciel, 2005). O mesmo aconteceria com grupos de famílias Kaxinawá, Jaminawa e Isku-
nawa, que se maneriam nos fundos de diferentes seringais (caso do Atenas, União e São
Luiz) no médio rio Tarauacá, contando com o consentimento de certos patrões, interes-
sados em sua mão de obra (Silva, 1912; Linhares, 1913; Brasil. MJ. Prefeitura de Ta-
rauacá, 1914; Tastevin, 1924, 1926, 1928; Castello Branco, 1950; Iglesias, 1995, 1998;
Aquino, 1996; Iglesias & Aquino, 1997). Diferentemente, vários dos grupos de famílias
211
indígenas que haviam se agrupado nas imediações do seringal Lupuna, ou viviam em
outros trechos das margens do médio Tarauacá, prefeririam rumar para as cabeceiras
desse rio, do Murú e do Envira, seus afluentes da margem direita, temerosos de novas
"correrias". A busca por locais para se refugiar e se estabelecer nos altos rios, em meio a
áreas de seringais e cauchais e a territórios restritos ocupados por outros grupos indíge-
nas, geraria enfrentamentos com os "civilizados", ataques e saques aos seringais, novas
"correrias" e, inclusive, conflitos entre esses grupos.
Pouco mais de dois anos após o assassinato de Ângelo Ferreira, num contexto em
que o Inspetor do SPILTN Francisco Escobar de Araújo e o ajudante Máximo Linhares
acabavam de realizar as primeiras expedições no Território Federal, a imprensa de Villa
Seabra demandaria do Ministério da Agricultura e do órgão indigenista a nomeação de
um "diretor" para atuar especificamente no Departamento de Tarauacá. Justificavam es-
sa demanda pela retomada dos saques promovidos pelos indígenas nos seringais e pelo
recrudescimento dos conflitos com os "civilizados". A nomeação de um "diretor" no Ta-
rauacá e a implementação de ações para a "catequese" dos indígenas seria vista como
única maneira de retomar os resultados auspiciosos que tinham advindo da "catequese
particular", "empreendimento vitorioso", realizado em anos anteriores por Ângelo Fer-
reira, a quem os editores do jornal denominam "bandeirante" e "sertanista" (O Municí-
pio, Villa Seabra, 28/4/1912. SARQ/MI, Filme 324 Planilha 007 Fot. 236-237). À parte
da nomeação de delegados honorários nos rios Murú e Envira, durante a expedição do
ajudante Máximo Linhares, em início de 1912, a principal ação na tentativa de estabele-
cer uma atuação do SPILTN no rio Tarauacá seria promovida, sem sucesso, pelo Inspe-
tor Bento de Lemos, quatro anos depois.
Na primeira metade da década de 1910, enquanto alguns patrões mantinham as
"correrias" como estratégia para tentar garantir "segurança" aos seus fregueses, outros
gradualmente vislumbrariam a possibilidade de começar a engajar os indígenas como
mão de obra indígena complementar nos trabalhos em seus seringais. Conforme será
discutido nas seções seguintes, os serviços de Felizardo Cerqueira passariam a ser re-
quisitados nesse contexto, agora no alto rio Envira, numa região em que ainda predomi-
nava a extração do caucho. Aproveitando os nichos de mediação abertos pelas deman-
das de vários patrões, Felizardo levaria a cabo novos empreendimentos pessoais, os
quais, por sua vez, abririam para um conjunto de famílias extensas Kaxinawá alternati-
vas de "proteção", de acesso a mercadorias e de sobrevivência coletiva, numa zona até
então marcada por conflitos com patrões, caucheiros e outros grupos indígenas.
212
Rumo ao alto rio Envira
Depoimentos de lideranças indígenas (como Jorge Lemes Ferreira e Sueiro Cer-
queira Sales, ambas Kaxinawá, e Raimundo Luiz Yawanawá), relatórios governamen-
tais (Azevedo, 1905; Oliveira, 1907; Linhares, 1913) e as memórias de Luiz Sombra
(1913) e Alfredo Lustosa Cabral (1984) indicam as margens do médio rio Tarauacá e as
cabeceiras dos rios Liberdade, Gregório e Acuraua como locais de existência de malo-
cas Kaxinawá à época da chegada dos exploradores brasileiros e dos caucheiros perua-
nos e do início dos processos de reordenamento territorial e econômico que resultaram
da implantação da empresa seringalista
298
. Tanto os depoimentos daquelas lideranças
como textos do padre Constant Tastevin (1926, 1928) relacionam os Kaxinawá dentre
os grupos que na segunda metade da década de 1900 mantiveram relações com Ângelo
Ferreira. O relatório de Felizardo Cerqueira (1958), todavia, nenhuma menção faz a a-
ções de "catequese" junto aos Kaxinawá, ou mesmo à existência de suas malocas, nessa
região durante esse período.
Após o assassinato de Ângelo Ferreira, em 1909, enquanto alguns grupos de famí-
lias Kaxinawá permaneceram em vários locais entre os rios Tarauacá e Liberdade, ou-
tros se dispersariam, seguindo rumo às cabeceiras dos rios. Nos relatos das velhas lide-
ranças Kaxinawá, essa diáspora é destacada como momento relevante na história dos
seus antepassados e dos de outros grupos familiares, os quais, ao longo de trajetórias
comuns vieram a compor o povo que, depois de quase noventa anos, permanece "divi-
dido" nos dois lados da fronteira internacional Brasil-Peru e distribuído em doze terras
indígenas no Estado do Acre.
Em seus relatos, Sueiro Cerqueira Sales não precisa o trajeto percorrido pelas fa-
mílias Kaxinawá que saíram do médio rio Tarauacá e alcançaram os afluentes do alto
rio Envira. Mas indica o destino final dessa fuga, empreendida logo após o assassinato
de Ângelo Ferreira, e as formas de inserção inicialmente buscadas numa região onde
predominava a extração do caucho:
"Ficaram com medo. Logo correu a notícia que tinham matado o patrão e agora
iam matar todos os índios. Quando caiu no ouvido dos índios, todo tempo era sa-
298
Os relatos de Oliveira (1907) e Linhares (1913) afirmam que Tescon e parte dos índios das malocas
por ele chefiados seriam Kaxinawá, apesar dos depoimentos das lideranças indígenas e do relatório de Fe-
lizardo Cerqueira (1958) assegurarem que Tescon era Rununawa. A atribuição de certas denominações
(como Kaxinawá e Katukina) a diferentes grupos falantes de diferentes línguas Pano, seja por agentes go-
vernamentais, seja pelos próprios regionais ou pelos "catequizadores de índios", foi comum nessa época,
tendo sido elas, ao mesmo tempo, adotadas por certos grupos como estratégia de defesa em meio às "cor-
rerias". Para uma interessante discussão a este respeito no caso dos Katukina, ver Lima, 1994: 16-27.
213
indo pra aqui, pr’acolá, pra todo canto. Os Kaxinawá pegaram no rumo de cima.
Vararam não sei por onde e foram sair no seringal Simpatia, nas cabeceiras do
Envira. foram trabalhar com um peruano, esse peruano que mataram ele.
Começaram a trabalhar no caucho. Muita gente, muito caucheiro, peruano e bra-
sileiro, trabalhando tudo junto" (Sueiro Cerqueira Sales, Seringal Minas, rio Ta-
rauacá, 1994).
Nos depoimentos de Sueiro e de outros velhos Kaxinawá, não há, nessa decisão de
fugir ou durante a migração para o alto rio Envira, qualquer referência à participação de
Felizardo Cerqueira, que ali reapareceria, "tempo depois", "atalhando" e procurando re-
agrupar várias famílias extensas após nova diáspora decorrente do assassinato de um pa-
trão "peruano" conhecido por Patrício, para o qual vinham trabalhando. Os relatos de
Sueiro e outros Kaxinawá, somados às informações que Felizardo apresenta em seu re-
latório, adicionam fatos novos às duas principais vertentes explicativas pelas quais vá-
rios autores procuraram dar conta da presença dos Kaxinawá no alto rio Envira em iní-
cio do século passado.
Uma primeira caracteriza a região de florestas nas cabeceiras dos rios Purus, Envi-
ra, Tarauacá e Juruá como um amplo território ocupado e utilizado pelos Kaxinawá e
outros grupos falantes de nguas Pano e Arawak fazia séculos (D'Ans, 1977; Townsley,
1988)
299
. O conhecimento que os Kaxinawá detinham dos diferentes afluentes dos altos
rios Juruá e Purus, inclusive do Envira, antes da chegada dos brasileiros e peruanos, é
evidenciado nos relatos feitos por Borô e Tuxinin a Capistrano de Abreu (1941: 514) e
por Pudicho Torres a Richard Montag (2002: 18-9).
299
O antropólogo francês André Marcel D'Ans especifica essa área geográfica como tradicionalmente
habitada pelos Kaxinawá: "Le territoire traditionnel proprement dit des Cashinaua se trouvait dans une
zone actuellement partagée entre le Pérou et le Brésil, au sources et sur les cours supérieurs des fleuves
Juruá et Curanja au Pérou, Embira, à cheval sur la frontière, Tarauacá et Murú au Brésil (...) Ils
n'étaient cependant implantés en ceux lieux que depuis quelques siècles. En effet, l'archéologie ainsi que
la linguistique et l'ethnographie comparées présentent de nombreux et convergent indices propres à nous
faire admettre qu'une migration récente (il ya a dix-treze siécles) les auraient amenés là, en compagnie
d'autres peuples pano tel que les Amahuaca et les Yaminahua. Cette migration aurait pris naissance dans
les parages de l'Ucayali central, région elle même précédemment envahie (il ya a environ vingt siécles)
par l'ensemble des peuples pano, venus probablement du sud-ouest" (Ans, 1977: 14-5). Para outra análi-
se, baseada em evidências arqueológicas e etnohistóricas, da chegada dos povos falantes de línguas Pano
aos rios Javari, Juruá e Purus, consultar Erikson (1992). Incorporando uma subdivisão dos Pano proposta
por D'Ans (1974), o antropólogo Graham Townsley define como "southeastern Panoans" os grupos, aí in-
cluídos os Kaxinawá, Jaminawa (na realidade um conjunto amplo de povos - dentre eles, os Sharanawa,
Marinawa e Bastanawa, agrupados sob esas denominação) e Amahuaca, que "tradicionalmente habita-
vam" a região das cabeceiras dos rios Juruá e Purus, em pequenos grupos locais, com marcada tendência
à fissão e à reorganização (Townsley, 1988: 10-11a; 15-9). E, baseado em histórias orais ouvidas em
campo, afirma, sem ter como verificar de forma definitiva, que os "southeastern Panoans" que atualmente
vivem no alto rio Purus, em território peruano, tinham a região do rio Envira como território, mais ou me-
nos contíguo, à época do "boom da borracha", ou pouco antes. Segundo Townsley, as hostilidades entre
esses grupos eram comuns e as relações interétnicas "mutáveis e instáveis", sendo sua atual distribuição,
no Peru, explicável pelas migrações ocorridas após o "boom" e pela atualização dessas rivalidades em
contextos posteriores (ibid: 13).
214
Diferentemente, sem desconsiderar uma presença anterior de vários grupos falan-
tes de línguas Pano naquela região, uma segunda vertente se fundamenta em dados dos
escritos do padre Constant Tastevin (1925, 1926) para enfatizar a chegada dos Kaxina-
ao rio Envira, trazidos do rio Iboiaçú, afluente do Humaitá, por Felizardo Cerquei-
ra
300
. As iniciativas de Felizardo após a morte de Ângelo Ferreira, cobrindo um período
que se estende até final da década de 1910, são assim sumarizadas por Tastevin (1926:
48):
"Il [Ângelo] eut un disciple dans la personne de l'un de ses compagnons du nom
prédestiné de Felizardo. Celui-ci après la mort de son patron se retira chez les
Kachi-nawa de l'Iboyassú et les emmena au Haut Embira, sur les bords du
Furnaya
301
, la rivière aux eaux basses (en pano, besna-ya). Là, loin des civilisés il
les dressa à la récolte de la gomme du "castilloa ellastica", les maintint en paix
avec les seringueiros et tint en respect les autres Indiens. En 1919, il se trouvait
sur les bords de l'Alliança, qui est à l'Embira ce que le Jordão est au Tarauacá.
C'est par l’Alliança que les caucheiros se rendaient à l'Ucayali, aprés une
traversée très courte par terre, et sans recontrer les eaux du Purus, ni celles du
Juruá".
Com base nessas informações, o padre afirma que os "Kaxinawá de Felizardo",
que em 1924 visitou no seringal Revisão, no alto rio Jordão, durante uma "desobriga",
seriam "originários" do Iboiaçú e do Humaitá, ambos afluentes do rio Murú (Tastevin,
1926: 50).
Em outro texto, Tastevin (1925) afirma que o Murú era o rio onde se concentrava
a maior parte dos grupos Huni Kuin (os "homens verdadeiros", falantes de línguas Pa-
no) antes da chegada dos seringueiros ao Iboiaçú. Os Kaxinawá, o mais importante des-
ses grupos, viviam "sobretudo nos afluentes da margem direita do médio Murú", diz o
padre (1925: 413), sendo o igarapé Iboiaçú o seu principal "habitat" (1925: 411). As
narrativas de Borô e Tuxinin, transcritas e traduzidas por Capistrano de Abreu, apresen-
tam informações sobre a existência de cinco aldeias Kaxinawá no rio Iboiaçú pouco a-
pós as primeiras incursões dos caucheiros e a definitiva chegada dos seringueiros (A-
breu, 1941: 53-4; 59-62; 1976: 204).
300
Cabe ressaltar que a existência de malocas Kaxinawá na margem direita do alto rio Envira já havia si-
do destacada no primeiro relatório do Prefeito do Alto Juruá, Thaumaturgo de Azevedo (1905) e por Luiz
Sombra (1911; 1913), que viajou por essa região nos anos de 1905-1906.
301
O rio Furnanha, como é hoje grafado nos mapas oficiais produzidos pelo IBGE, é afluente da margem
esquerda do rio Jaminauá, que, por sua vez, desemboca na margem direita do rio Envira. Tendo suas ca-
beceiras na linha da fronteira Brasil-Peru, o Furnanha corre entre o Jaminauá (a leste) e o Riozinho da
Ordem (a oeste). Para uma melhor visualização da localização desses afluentes no alto rio Envira, ver o
Mapa 5, nos anexos.
215
Com base nessas informações de Tastevin e Abreu, a antropóloga Cecília McCal-
lum (1989: 56; 1990: 414; 2001: 8) afirma que o Murú e o Iboiaçú teriam sido o territó-
rio de origem ("original home") dos Kaxinawá contemporâneos, mas alerta sobre a difi-
culdade de precisar em que ano, vindos do Iboiaçú, "persuadidos" por Felizardo Cer-
queira para extrair caucho, teriam chegado ao alto rio Envira (1989: 57). Fazendo
referência a McCallum (1990: 414), o lingüista, depois antropólogo, Kenneth Kensinger
(1995: 1) também endossa esse argumento: "All Cashinaua appear to be descendants of
a group that at the turn of the century lived on the upper Muru River and its affluents,
particularly the Iboiçu"
302
.
Em sua dissertação de mestrado, ao reconstruir a inicial inserção dos Kaxinawá
nos seringais do rio Humaitá, Ingrid Weber (2004, 2006) não faz referência a uma pos-
sível passagem ou permanência de Felizardo Cerqueira nas malocas situadas nos vários
afluentes do alto rio Murú em final da primeira década do século passado. Nas conver-
sas mantidas com idosos e lideranças, durante seus trabalhos de campo no Humaitá (em
pesquisa para a dissertação e em assessorias às escolas indígenas), nenhuma menção foi
feita pelos Kaxinawá à presença de Felizardo nesse rio, ou à sua participação como per-
sonagem relevante em algum momento na trajetória dessas famílias extensas (Ingrid
Weber, comunicação pessoal 2006)
303
.
302
Kensinger realizou trabalho de campo para o Summer Institute of Linguistics (SIL), por meio de con-
vênio com o Ministério de Educação peruano, em 1955-1959 e 1961-1963. Ao chegar ao alto rio Purus,
informa, iniciou seu trabalho com os "sobreviventes e os descendentes" do grupo que seguira em cerca de
"meados dos anos 1920" para o rio Curanja, em território peruano (Kensinger, 2001: 1). Em dois artigos
de meados dos anos 1960, reafirma que esse grupo descendia das famílias que migraram do lado brasilei-
ro após separar-se de seus "more progressive kinsmen", e atribui esse "tribal split", ocorrido na "virada do
século" passado, à diferença de entendimentos dos Kaxinawá sobre como deveriam proceder face à emi-
nente chegada dos brasileiros ao rio Envira. O "more conservative, isolationist group" teria então optado
por subir o Envira e seguir para o alto rio Curanja, tendo manter distância dos recém chegados (Kensin-
ger, 1965: 5; 1967: 4). Dez anos depois, Kensinger enfatizaria que os "primeiros" contatos dos Kaxinawá
"peruanos" não teriam derivado de relações com brasileiros ou caucheiros no rio Envira, em começo do
século, mas sim com "outposts da cultura ocidental", no rio Curanja, em meados dos anos de 1940 (Ken-
singer, 1975: 10), quando, primeiro com a mediação dos Marinawa e depois por conta própria, procura-
ram regatões e patrões peruanos em busca de machados, terçados e outros bens. Em nota de página, res-
salta: "My oldest informants told me that their fathers and grandfathers, as young adults, had fled before
the advancing Brazilians to the watershed between the Jurua-Embira River drainage basin and that of the
Curanja-Purus without ever seeing them" (ibid: 11).
303
Segundo Weber, essa ausência, de Felizardo e de Ângelo Ferreira, nos relatos históricos construídos
por seus interlocutores, constituiria uma indicação da antigüidade da ocupação dessas famílias Kaxina
nos rios Humaitá, Iboiaçú e suas cercanias: "Há indícios que comprovariam a antigüidade da presença
dos Kaxinawá na região do rio Humaitá. Em primeiro lugar, está o fato de os Kaxinawá do Humaitá não
mencionarem duas figuras centrais na história da região do Juruá: o patrão de seringal Ângelo Ferreira
e Felizardo Cerqueira (Aquino e Iglesias, 1994). Os dois, lembrados como "amansadores de índios", fo-
ram responsáveis por muitos deslocamentos e reagrupamentos. Todos os grupos kaxi, ao que parece,
com exceção dos do Humaitá, tiveram experiências marcantes "nas mãos deles", no período dos serin-
gais. Em segundo lugar, a toponímia ao longo do Humaitá mantém termos claramente derivados de de-
nominações em língua Pano" (Weber 2004: 23; 2006: 227). Outros dados no depoimento da liderança Vi-
216
Por fim, os relatórios de Felizardo Cerqueira (1958) e do chefe brasileiro da Co-
missão Mista Brasil-Peru Demarcadora de Limites, Antônio Alves Ferreira da Silva
(1929), permitem questionar a afirmação de Tastevin (1926) sobre o período de perma-
nência de Felizardo e dos Kaxinawá no alto rio Envira e o local, o igarapé Aliança, on-
de, em 1919, estariam localizados
304
. A retomada desses relatórios, somados a depoi-
mentos de velhas lideranças Kaxinawá, filhos das famílias que viveram com Felizardo
Cerqueira no alto rio Envira, e de outros materiais, permite construir outra periodização
e espacialização desses processos.
Felizardo Cerqueira assim relata a decisão tomada após o assassinato de Ângelo
Ferreira e a gradual desmobilização das ações de "catequese" e "policiamento" financia-
das pela Comissão: "Em 20 de junho de 1909, eu estava só, visto a verba da Comis-
são de Obras Federais no Território do Acre, faltou verba em 1908, toda Comissão de-
bandou-se. Eu então fiquei agindo, amansando índios onde necessários fossem meus
trabalhos de catequizador" (Cerqueira, 1958: 24).
À época já reconhecido como "catequizador de índios", pelos trabalhos prestados
junto com Ângelo Ferreira para a Prefeitura do Alto Juruá e a Comissão de Obras, Feli-
zardo começaria a ter seus serviços recrutados por seguidos patrões. Essas possibilida-
des de trabalho surgiriam agora na região das cabeceiras dos rios, onde certos grupos
indígenas haviam logrado manter territórios possíveis, por meio de uma postura de beli-
gerância face a seringueiros e caucheiros, ou por meio de seguidas migrações, e outros
haviam fazia pouco chegado, fugindo da total ocupação de seus antigos territórios e das
"correrias". Para os patrões, portanto, garantir "segurança" aos seus trabalhadores era
visto como pré-condição para manter suas freguesias. Para alguns, trabalhando em regi-
cente Sabóia Kaxinawá e na análise de Ingrid indicam da chegada e permanência nessa região de Kaxi-
nawá, Jaminawa e Arara, fruto de recorrentes conflitos interétnicos, antes mesmo da chegada de Luiz
Sombra, em 1905 (2006: 55-6; 61), personagem tampouco lembrado pelos Kaxinawá do rio Humaitá. Es-
sas informações podem, todavia, indicar migrações ocorridas anos antes desta data, resultantes não só
desses conflitos, mas também do início da implantação de seringais no médio rio Tarauacá, sobrepostos a
antigos territórios desses grupos, que resultaram tanto em "correrias" como nos referidos conflitos inte-
rétnicos.
304
Como resultado dos levantamentos de terreno realizados pela Comissão Demarcadora de Limites no
alto curso do rio Envira, em 1923, Silva (1929: 110-11) indica a localização da foz do igarapé Aliança a
uma distância de 22 quilômetros e mais "seis voltas" do rio acima do Paralelo de 10º S, que entre as cabe-
ceiras dos rios Santa Rosa e Breu estabelece o traçado da fronteira internacional Brasil-Peru. Em momen-
to algum de seu relatório, por sua vez, Felizardo indica ter vivido com os Kaxinawá em território peruano,
apesar de ali ter feito incursões em anos anteriores, e de, em 1923, ter trabalhado no igarapé Aliança,
quando a serviço da Comissão (Cerqueira, 1958: 133). Conforme será melhor siscutido adiante, seu rela-
tório, bem como contratos assinados por Felizardo com seringalistas do alto rio Tarauacá (Diário do Con-
gresso Nacional, 1956: 12239), permitem afirmar que foi no ano de 1917 que, junto com pouco mais de
trezentos Kaxinawá, mudou-se para aquele rio, tendo eles, poucos meses depois, se estabelecido no serin-
gal Revisão, no alto rio Jordão.
217
ões pouco exploradas e menos atrativas, devido à ausência de uma quantidade substan-
cial de seringueiras e à densa presença de "índios selvagens", o engajamento da mão de
obra indígena, por meio do recrutamente de personagens com reconhecidos serviços de
"catequese", colocar-sei-ia como uma nova alternativa para incrementar seus negócios.
Em seu relatório, Felizardo confirma ter estado brevemente no rio Humaitá, aflu-
ente do Murú, no segundo semestre de 1909, "para fazer alguns adomos na tribo Mas-
ta-naúa", (Cerqueira, 1958: 41), ou seja, para tentar "pacificar" esses índios, que "fe-
rozmente dizimavam os trabalhadores nacionaes" (ibid: 1). Não fornece, todavia, qual-
quer informação sobre os motivos que o levaram a realizar essa empreitada ou por quem
havia sido recrutado; tampouco faz alusão a ter estado acompanhado por qualquer grupo
de índios ao sair do médio rio Tarauacá, ter passado nas malocas Kaxinawá do rio Iboi-
açú ou a dali ter levado índios ao rio Envira para engajá-los na extração do caucho. A
única exceção surge pouco mais adiante no relatório, e se repete, pontualmente, em dife-
rentes "episódios", nos quais Felizardo faz referências pontuais à sua companheira Ka-
xinawá, Raimundinha, que viveria com ele no rio Envira, o acompanharia nos anos se-
guintes no alto rio Jordão e com ele teria filhos. Felizardo o precisa, contudo, onde
Raimundinha nascera, como se tornara sua companheira ou informações mais detalha-
das sobre sua vida em comum, inclusive sobre a quantidade de filhos que tiveram.
Felizardo afirma ter chegado no mês de janeiro de 1910 ao alto rio Envira, mais
especificamente, à foz do rio Furnanha, onde estava situado o barracão de Francisco Se-
na e Silva, proprietário de todo o rio Jaminauá
305
. Fizera então um "contrato" com esse
patrão para "amansar" os Kulina (Madijá) que viviam no igarapé Preto, pouco abaixo do
rio Jaminauá, iniciativa que geraria resultados pouco promissores: quatro homens e três
mulheres seriam "pegos" numa primeira expedição e trazidos ao barracão, de onde fugi-
riam logo depois, levando Felizardo e o patrão a desistir de uma nova tentativa (Cer-
queira, 1958: 42). Sena então proporia a Felizardo que seguisse às cabeceiras do Jami-
nauá para "amansar" os Kaxinawá, os quais, com seus freqüentes ataques, diz Felizardo,
tanto "semeavam o terror" entre os demais grupos indígenas
306
como colocavam sério
305
Conforme já sugerido, consultar, nos Anexos, o Mapa 5, que apresenta um recorte ampliado do alto rio
Envira e de seus afluentes em território brasileiro. Uma consulta ao Mapa 3 permite, por sua vez, visuali-
zar a região dos divisores de água entre os rios Envira e Purus, ao longo da fronteira internacional Brasil
Peru, local de alguns dos acontecimentos que serão descritos e analisados a continuação.
306
Escrevendo seu relatório em plena Guerra Fria, Felizardo traçaria a seguinte comparação para ilustrar
o terror imposto pelos Kaxinawá aos grupos indígenas vizinhos: "O mundo indígena cobre-se de pavor
talvez igual ao que hoje a América do Norte sente pela Rússia – União Soviética" (Cerqueira, 1958: 43).
218
obstáculo à tentativa do patrão de ali colocar seus fregueses, nordestinos e peruanos, pa-
ra extrair caucho.
Em que contexto histórico Felizardo começaria a desempenhar suas ações de "ca-
tequista" no alto rio Envira, sendo mobilizado por vários patrões para "amansar" dife-
rentes grupos indígenas, "pacificar" as relações entre eles, "dar segurança" aos fregueses
brasileiros e peruanos, viabilizar a produção de caucho e inclusive engajar a mão de o-
bra dos indígenas nessa atividade?
Até final dos anos 1900, apesar do alto Envira e seus afluentes já terem sido pene-
trados por "exploradores" nordestinos (Castello Branco, 1947: 192; 1961: 221-22), seu
povoamento ainda era pouco denso. Rica em caucho, mas pouco abundante em serin-
gueiras, essa região fora também explorada por peruanos advindos dos rios Ucayali e
Purus, tendo sido rota de passagem do grupo de caucheiros liderado por Carlos Scharff
em 1900, após terem saído do rio Gregório, fazendo um trajeto semelhante ao percorri-
do pelo Diretor de Índios João da Cunha Correia quatro décadas antes.
Segundo Euclides da Cunha, os peruanos teriam começado a chegar ao alto rio
Purus nos primeiros anos de século passado, mesma época em que se concluía a "explo-
ração" inicial das cabeceiras do rio Envira pelos brasileiros. A "descoberta" de "vara-
douros", ligando as cabeceiras dos rios Purus e Envira aos formadores do rio Ucayali,
permitiria o afluxo de novas levas de trabalhadores, indígenas e "civilizados", trazidos
por patrões caucheiros (Villaneuva, 1902: 418-25). Em 1901, Scharff controlava doze
postos no alto rio Purus, onde trabalhavam dois mil caucheiros (Granero & Barclay,
2003). Dois anos depois, segundo estimativas de Euclides, cerca de mil caucheiros tra-
balhavam no rio Curanja, afluente do alto Purus. Em 1905, logo após os conflitos arma-
dos entre peruanos e brasileiros, o número de caucheiros achava-se bastante reduzido,
disperso por vários "postos" (aglomerados de casas) de pequena monta, segundo consta-
tou durante as atividades da Comissão Mista Brasil-Peru de Reconhecimento do Alto
Purus (Cunha, 1976: 263-4).
Apesar da relativa decadência da atividade caucheira nessa região em meados dos
anos de 1900, peruanos continuavam a penetrar e a dedicar-se à extração da castilloa no
alto rio Envira e em seus afluentes
307
, onde mantinham seguidos enfrentamentos com os
307
Mesmo após os principais conflitos armados no alto Purus, a entrada e a permanência de caucheiros na
região ocupada pelos brasileiros foi constatada em censo encomendado pelo Prefeito do Departamento do
Alto Purus, Cândido José Mariano, em 1904: dentre uma população de 10.852 habitantes, distribuída em
150 seringais no departamento, 400 peruanos estavam dedicados à extração do caucho e à produção de
borracha, como aviados de patrões brasileiros (Castello Branco, 1959: 210).
219
grupos indígenas que ali viviam. "Atrocidades" teriam sido cometidas em "correrias"
promovidas por aviados da firma Lecca & Penna e depois pelos homens de Carlos S-
charff
308
, conforme também constatou o tenente Luiz Sombra ao por ali viajar em 1906,
como "delegado administrativo" da Prefeitura do Alto Juruá. Ali, informa ter "tomado"
de caucheiros peruanos "meninas de 10 e 11 anos", capturadas em "correrias", "com
quem se deitavam, como se suas mulheres fossem!" (Sombra, 1911).
Em 1905, o segundo censo realizado pela Prefeitura do Alto Juruá registrara 153
moradores (110 homens e 43 mulheres) em Vila Feijó (Azevedo, 1906: 49), principal
centro urbano no rio Envira. No ano seguinte, Thaumaturgo de Azevedo (1906: 73), em
relatório enviado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, comunicava que as ca-
beceiras do rio Envira e do Riozinho da Ordem, seu afluente da margem esquerda, ainda
não haviam sofrido "a incisão do machadinho", ou seja, sido aproveitadas na produção
de borracha. E que essa região, devido ao grande número de "varadouros" que desem-
bocavam no alto rio Purus, continuava a apresentar um significativo volume de contra-
bando de caucho, feito por peruanos, e inclusive por brasileiros, para postos e casas co-
merciais situados no Departamento do Alto Purus e no país vizinho (Azevedo, 1906:
104; 125; Mendonça, 1989: 193; 220)
309
.
Em 1907, Ângelo Ferreira da Silva, na expedição realizada para a Comissão de
Obras Federais, ao passar pelo alto Envira, abrira uma "exploração" no igarapé Maro-
naua, revelando a existência de terras não ocupadas ou ainda pretendidas por seringalis-
tas. Castello Branco (1961: 223) dá indicações de que, em 1908, o povoamento do Envi-
ra por brasileiros havia alcançado o seringal União, nove voltas abaixo da foz do rio
Jaminauá. A quase totalidade dos patrões era então aviada de duas principais casas co-
merciais, a Coutinho, Aníbal e Cia., sediada na foz do rio Jurupari, e a Mello & Compa-
nhia, de Belém, com filial localizada na Vila Feijó.
308
Baseado em informações de Raimundo Antônio Borges, que em 1900 "fora comissionado pelo gover-
no municipal de São Felipe, para observar as atividades dos peruanos na bacia do Juruá", Castello
Branco (1959: 143) informa que em 1989 o representante da Lecca y Hermanos, Carlos Monte, realizara
"(...) horrososa carnificina numa maloca neste rio [Envira - MPI], cujos moradores foram na sua maioria
mortos, apreendendo as mulheres e crianças, que ficaram como criadas ou foram vendidas como escra-
vas (...)". Informações de documentos escritos pelo delegado federal no Alto Purus, Coronel José Ferreira
de Araújo, reproduzidas no jornal O Paiz, de Manaus, a 25 de julho de 1904, davam conta que Carlos S-
charff e seus caucheiros teriam "trucidado" "milhares de indígenas" no rio Jaminauá e no Paranã do Ouro,
afluentes do alto rio Envira (Castello Branco, 1959: 212).
309
Apesar desse desvio, o Posto Fiscal do Envira, criado pelo prefeito em 1904, contabilizara, no ano se-
guinte, a exportação, para Manaus e Belém, de pouco mais de um milhão de quilos de caucho e borracha
(Mendonça 1989: 219), esta última oriunda principalmente do médio e baixo curso Envira e do seu prin-
cipal afluente, o rio Jurupari.
220
A presença de patrões brasileiros dispostos a abrir explorações no alto rio Envira e
a se engajar principalmente na exploração do caucho tornar-se-ia mais efetiva e perma-
nente em final da primeira década do século passado, num contexto em que os governos
do Brasil e Peru culminavam as negociações do tratado que estabeleceria o traçado da
fronteira entre os dois países e definiria os arranjos institucionais para sua futura demar-
cação física.
As atividades dos caucheiros peruanos no alto rio Envira e em seus afluentes, e as
freqüentes "correrias" por eles realizadas contra as malocas dos grupos indígenas (Som-
bra, 1911, 1913; Araújo, 1912; Brasil. MAIC, 1912: 120-21; Linhares, 1913), ou que
para ali gradualmente migraram, fugindo da progressiva subida dos exploradores de se-
ringais, bem como o considerável contrabando de produtos florestais e mercadorias,
constituem indicadores da fluidez e da porosidade que caracterizavam esse trecho da
fronteira internacional, antes e após a assinatura, em setembro de 1909, do tratado entre
os governos do Brasil e do Peru
310
.
"Amansando" os Kaxinawá
Ao considerar as informações fornecidas por Felizardo Cerqueira em seu relatório
biográfico, é plausível afirmar que suas ações mais duradouras de "catequese" junto aos
310
A importância dessa região para os interesses geopolíticos de ambos os países fica comprovada, por
exemplo, pela criação, pelo Decreto 8.698, de 26 de abril de 1911, assinado pelo Presidente Hermes da
Fonseca, de um vice-consulado do governo brasileiro no povoado de Santa Rosa, com jurisdição sobre o
alto Purus peruano. Três anos depois, o chefe brasileiro da Comissão Mista Demarcadora de Limites, ca-
pitão de fragata Antônio Alves Ferreira da Silva, citaria a presença do vice-cônsul Manoel da Veiga Me-
nezes em Santa Rosa e o uso, pela Comissão, das quatro barracas que constituíam as instalações dessa re-
presentação consular como depósito de materiais durante os trabalhos de levantamento dos rios Chambu-
yaco e Santa Rosa (Silva, 1929: 20). A considerável presença de índios tidos como "selvagens" constitui-
ria importante obstáculo à exploração desses dois rios, tendo uma das turmas da Comissão sido atacada a
tiros por índios Marinawa em 1914 (Silva, 1929: 32; 34). Nesse mesmo ano, após expedição ao alto rio
Purus, o prefeito do departamento, Samuel Barreira, com o objetivo de garantir "a integridade e a supre-
macia" brasileiras, providenciara o envio de um destacamento para apoiar o vice-cônsul, que vivia acom-
panhado apenas de um parente e de um empregado, e anunciara sua intenção de abrir um varadouro de
Sena Madureira até Santa Rosa e de instalar, em vários "povoados" (principalmente nos situados na fron-
teira, Santa Rosa e Chambuyaco) núcleos dotados de escolas, postos policiais, médicos, farmácias e pe-
quenos centros de zootecnia e agronomia, essenciais à "manutenção da ordem" e "propulsores do progres-
so", pela "educação e o exemplo", das populações que ali viviam (Alto Purús, Sena Madureira, Ano VII,
Nº 287, 5/4/1914, p. 1). Outra indicação de que a assinatura do tratado de 1909 ou a fundação do vice-
consulado brasileiro em Santa Rosa não haviam diminuído as tensões, tanto locais como entre as chance-
larias de ambos os países, consta da mensagem encaminhada pelo presidente peruano, Coronel Óscar Be-
nevides Larrea, ao Congresso Nacional, a 28 de julho de 1914, num contexto em que a Comissão Mista
Brasil-Peru Demarcadora de Limites retomava os trabalhos iniciados no ano anterior: "La urgencia de fi-
niquitar el amojonamiento de la línea divisoria entre las dos naciones que comparten el dominio del A-
mazonas, está demostrada por la frecuencia con que se han suscitado reclamaciones de una y otra parte,
por actos que se han creído atentatorios a sus respectivas soberanías territoriales. Recientemente, el Go-
bierno brasileño ha reclamado del establecimiento de un puesto fiscal en el alto Envira, en la región del
Yuruá, por considerar que no está en territorio peruano" (Peru. Presidência da República, 1914: 3-4).
221
Kaxinawá tiveram início não no médio rio Tarauacá ou no rio Murú, mas nos afluentes
do alto rio Envira. Essa relação teria início em março de 1910, como desdobramento de
contrato estabelecido com o "proprietário" do rio Jaminauá: "Eu havia combinado com
o Sr. Francisco Sena e Silva, se acaso tivesse a possibilidade de entrar em relações a-
mistosas com os terríveis Cachi-nauás, havíamos de traçar um plano de sociedade, le-
vando os índios ao trabalho de extração de caucho (...)" (Cerqueira, 1958: 44). Em um
trecho posterior, Felizardo reafirma os termos desse entendimento: "(...) no caso de eu
amansar os Caxi-nauás, instrui-los em extração de goma elástica, fazendo uma socie-
dade nos lucros" (ibid: 62).
O principal objetivo desse acordo, portanto, deve ser compreendido em duas dire-
ções principais: por um lado, a "pacificação" das conflituosas relações que os Kaxinawá
mantinham com diferentes grupos indígenas que ali viviam e principalmente com os
caucheiros, brasileiros e peruanos, aviados de Francisco Sena, abrindo condições para
estes pudessem trabalhar com "segurança", sem riscos de ataques e mortes; por outro,
torná-los interessados na extração de caucho e nas mercadorias que ela poderia render,
ensinando-os a trabalhar e mediando as suas relações com o patrão e com os demais
caucheiros
311
.
Felizardo partiria para uma primeira expedição às cabeceiras do rio Jaminauá em
março de 1910, acompanhado de sua companheira Raimunda, um irmão do patrão e um
caucheiro. Após subir o rio por dez dias e "cortar a mata" por mais quatro, encontrariam
e seguiriam um caçador indígena, que parecia rumar para casa. Pouco depois, escondi-
dos nas proximidades de uma maloca, "pegariam" um casal de Kaxinawá: o homem
com uma corda em torno do pescoço ("uma corda com uma fita de sola de largura de
três centímetros e um cadeado que fechava sem necessitar da chave") e a mulher imobi-
lizada e amarrada. Gastariam mais dias no retorno, pois os cativos se recusavam a andar
e, às noites, tinham de ser amarrados e vigiados para evitar tentativas de fuga. Os dois
índios permaneceriam por um mês e 18 dias no barracão do patrão Francisco Sena e,
conforme é "necessário ao neófito", diz Felizardo, seriam levados em visitas às moradi-
as de vários fregueses e fartamente presenteados, para adquirirem confiança de que não
era intenção matá-los ou promover "correrias" contra as demais famílias nas malocas.
311
De forma mais geral, "amansar" faz lembrar o processo, também de cunho pedagógico e socializador,
pelo qual passavam os trabalhadores recém chegados aos seringais (os "brabos"), no bojo do qual se tor-
navam "mansos", ou seja, conhecedores das técnicas necessárias à produção da borracha, bem como das
normas e condutas que costumeiramente regiam as relações de trabalho e comércio entre patrão e fregue-
ses.
222
Em maio, acompanhado de seu irmão Pedro Avelino de Cerqueira
312
e de Rai-
munda, Felizardo voltaria à maloca levando o casal. Pouco antes da chegada, no cami-
nho, após passarem por um roçado de quase "um quilometro de extensão", todo planta-
do com macaxeira, bananas, ananás, abacaxis e outras frutas, e por um paiol, repleto de
milho massa, amendoim, taioba, jerimum e inhame, a mulher permaneceria com os três,
enquanto seu marido seguiria para comunicar a chegada. Foram recebidos, então, por
oito homens, com os corpos pintados e armados de arcos e flechas: de forma cerimonio-
sa, pegariam Felizardo pelos braços e levariam-no, "saltando", em pequenos intervalos,
até a maloca. Desarmado do terçado, rifle e revólver, Felizardo, com seu irmão e sua
mulher, ficariam no centro da habitação coletiva, enquanto o casal mostrava os presen-
tes recebidos, que causaram "grande admiração" (Cerqueira, 1958: 50-3).
Dois meses depois, diz Felizardo, mandaria seu irmão Pedro e Raimunda, acom-
panhados de dois Kaxinawá, de volta ao barracão de Francisco Sena. Solicitara-lhes que
comunicassem ao patrão que "domara" os Kaxinawá e sobre a necessidade do envio,
o mais breve possível, de "sal, balas, rifles e toda sorte de miçangas, terçados, macha-
dos, facas, canivetes e mais algumas coisas que embelezem os índios". Após a partida
de seus familiares, Felizardo ponderaria: "Fiquei com aquele povo que até então a-
parentava gostar de mim" (ibid: 53).
Em consonância com uma estratégia discursiva que permeia boa parte de seu rela-
tório, ao destacar as dificuldades e perigos enfrentados em diferentes momentos, como
maneira de valorizar sua trajetória de "catequista", Felizardo inicialmente retoma e en-
dossa informações ouvidas na região sobre os Kaxinawá, caracterizando-os como "tribo
malfeitora", de "índios ferozes", "terríveis comedores de humanos", "antropófagos, os
mais perigosos" (Cerqueria, 1958: 42). Dentre os interesses que moviam Felizardo a
promover essa "catequese", a mais difícil que realizou, ressalta, além dos ganhos eco-
nômicos com uma parte do caucho que os Kaxinawá viessem a produzir e com a mobi-
lização de sua mão de obra em outras atividades, estava o de "chamar um povo para a
civilização e tirá-los da brutal ignorância que estão - comer seu semelhante" (ibid: 43).
312
Vindo de Pedra Branca, Pedro Cerqueira, como ficaria conhecido, chegara à Vila Seabra em maio de
1909 e só reencontraria seu irmão um ano depois. Trazia um pedido do pai para que Felizardo imediata-
mente abandonasse seu trabalho e retornasse ao Ceará. Sem sucesso, Pedro argumentaria sobre os perigos
a que Felizardo estava sujeito, condenado a uma morte trágica, e sobre a falta de perspectiva de obter
qualquer ganho financeiro, já que não tinha qualquer apoio ou ajuda financeira do governo, os seringalis-
tas não lhe pagavam o que prometiam e os poucos recursos que ganhava eram investidos na própria "ca-
tequese" (Cerqueira, 1958: 48-9).
223
Por outro lado, Felizardo constataria uma situação de conflito permanente em que
os Kaxinawá viviam com os Patunawa e os Txaninawa, grupos que promoviam constan-
tes expedições, com seguidas mortes, e colocavam armadilhas, com espeques envene-
nados, para possibilitar tocaias armadas
313
. Felizardo convidaria dois Kaxinawá "para
fazer uma batida", "pegar" algum Patunawa e levá-lo à maloca para tentar algum enten-
dimento. Pegariam de surpresa dois índios em uma tocaia, armados de rifles, e uma mu-
lher no caminho. Contrariando as ordens de Felizardo, um dos índios acabaria flechado
e morto pelos Kaxinawá; os outros dois seriam levados à maloca e mantidos amarrados.
Por conta de desavenças sobre o destino a ser dado aos cativos, Felizardo diz ter sido
obrigado a dar uma coronhada de rifle no principal chefe ("que depois receberia o nome
de Raimundo Pereira"), quando este avançava para matar a mulher Patunawa; durante a
noite, percebendo que poderia ser morto, Felizardo diz ter se agarrado ao chefe, chacoa-
lhando-o pelos colares. Daria então liberdade aos dois índios, deixando-os, ainda de noi-
te, no aceiro do roçado e abandonaria a idéia de promover qualquer acordo entre os Ka-
xinawá e os Patunawa (Cerqueira, 1958: 54-55; 58-61).
Junto com o patrão Francisco Sena, seu irmão Pedro Cerqueira, Raimundinha e os
dois índios Kaxinawá retornariam em setembro, trazendo "70 rifles, 10 cunhetes de ma-
chado e 10 de terçados, 20 sacas de sal, além de uma sem conta de pequenas coisas pa-
ra atrair a atenção dos índios" (Cerqueira, 1958: 61-2).
Levando cinco Kaxinawá, além do patrão e do seu irmão, Felizardo decidiria ten-
tar chegar à maloca dos Txaninawa, com intenção de "procurar entrar em relação amis-
tosa". Já nas proximidades de uma maloca, pouco antes do romper do dia, pegariam dois
índios que, despreocupados, seguiam para um paiol. Seriam vistos, contudo, por um
menino que os acompanhava e sairia em disparada para dar o alarme na maloca. Chega-
riam ali sob intenso tiroteio e revoada de flechas, que resultariam em três Kaxinawá
mortos, Felizardo baleado na perna e no braço, além de outros Txaninawa mortos e feri-
dos. "Voltei indignado com o mau sucesso", diz Felizardo (ibid: 62-64). Também devi-
do ao descontentamento dos Kaxinawá pelas mortes dos seus, Felizardo decidiria não
mais tentar qualquer acordo ou aproximação com os Txaninawa.
313
Sobre os conflitos entre os Kaxinawá e os Patunawa e as estratégias usadas por estes últimos, diz Feli-
zardo (1958: 53): "Altos rivais da tribo caxi-naúas, com que, sucessivamente, estavam em continuas lutas
(...) Estas duas tribos tinham de uma para outra o verdadeiro ódio concentrado (...) As lutas eram quase
diárias, pois não havia segurança nem no banheiro, nem nas sentinas, nem nas caçadas nem nos maris-
cos, pois os ataques eram sucessivos, em condições de não se puder dormir com segurança. Botavam to-
caia no banheiro - igarapé, na sentina - pau da gata, nos caminhos dos roçados, no celeiro e em fim qua-
se que tomavam os becos de saída".
224
Pouco depois, Francisco Sena desceria ao barracão na foz do Furnanha, junto com
Pedro Cerqueira, que ali começaria a trabalhar na extração do caucho. Acompanhado de
Raimundinha, Felizardo permaneceria nas cabeceiras do rio Jaminauá, "experimentando
se os índios tomavam o trabalho do caucho". "Amansar" os Kaxinawá implicava não
apenas "pacificar" suas relações com os "civilizados" e demais grupos indígenas, mas
também dar início a um trabalho de "catequese", para socializá-los nas atividades de ex-
tração do caucho. Neste processo, as mercadorias jogariam relevante papel, principal-
mente a grande quantidade de rifles e de munição que os Kaxinawá acabavam de rece-
ber, garantia de uma "proteção" contra possíveis "correrias" e ataques dos indígenas vi-
zinhos. Finda essa primeira etapa da "catequese" dos Kaxinawá, Felizardo assim conta-
bilizaria seu resultado: "Havia na minha turma 152 homens, inclusive rapazes. Toda a
turma, incluindo homens, mulheres e crianças, era um total de 624" (Cerqueira, 1958:
79).
"Acomodações" com os patrões, confrontos com os peruanos
Em final de outubro de 1910, informa Felizardo, caucheiros peruanos vindos do
rio Curanja, afluente da margem esquerda do alto rio Purus, teriam encontrado as malo-
cas dos Kaxinawá nas cabeceiras do rio Jaminauá, onde mataram dois homens e duas
mulheres e levaram uma mulher e um menino. Então no alto rio Furnanha, onde estabe-
lecera sua casa, a cerca de quatro dias desse "centro indígena", Felizardo seria pronta-
mente avisado do acontecido pelos Kaxinawá.
À frente de um grupo de homens Kaxinawá, sairia no encalço dos peruanos, com
a vontade declarada de matá-los. A seu ver, esta constituía a única atitude possível nessa
situação, na qual os Kaxinawá exigiam vingança. Como demonstração de apreço pela
maloca que "estava chefiando", diz Felizardo, tinha por obrigação se apresentar como
seu "legítimo defensor", igualmente desejoso de vingança. Sua real intenção, confessa,
era resgatar os dois cativos, iniciativa com a qual pretendia acalmar o "rancor" dos Ka-
xinawá e dissipar sua intenção de atacar os peruanos. Pretendia, assim, creditar-se a "re-
ceber da tribo o título de chefe supremo e, portanto, ser comandante de todo aquele e-
xército" (Cerqueira, 1958: 65-6), o qual, segundo as contas de Felizardo, então possuía
112 rifles e 41 homens de arco e flecha, além de 140 cunhetes de munição, que valiam
225
por 300, "visto o índio não necessitar a bala para sua manutenção, pois tem flecha e
arco" (1958: 67; 69)
314
.
Com a constatação de que os caucheiros haviam baixado o rio Curanja, a decisão
tomada por Felizardo, após a chegada do patrão Francisco Sena, foi seguir ao povoado
de Esperanza, em território peruano, para, a "qualquer custo", exigir dos caucheiros a
imediata devolução dos cativos. Com Felizardo e seu patrão seguiria apenas Marcelino,
pai da criança capturada. Na foz do rio Curanja, os primeiros contatos foram feitos no
barracão da Padilla y Compañía
315
, cujo proprietário informou que uma turma de cau-
cheiros do patrão Camilo, um rio, acabara de retornar do alto rio, "trazendo índios".
Felizardo seguiria à casa de Camilo, com o objetivo de realizar uma "acomodação ami-
gável". Diante da negativa do patrão de que seus homens tivessem participado da "cor-
reria" à maloca, Felizardo, aludindo ao poderio bélico dos Kaxinawá, procuraria im-
pressioná-lo, fazendo-lhe pesar as trágicas conseqüências que o "choque de retorno" po-
deria trazer, não apenas aos seus trabalhadores, mas a todas as famílias peruanas mora-
doras do rio Curanja. O patrão não se intimidou, contudo, e ameaçou, em caso de repre-
sálias dos Kaxinawá, mobilizar 400 homens armados, seguir à casa de Felizardo e "co-
locar tudo por terra", "não deixando nem galinha, nem pinto, nem gente, nem casa, nem
paiol". Apesar da reafirmação do desejo de estabelecer uma "acomodação" que evitasse
314
Parece plausível afirmar que Felizardo vislumbrava ser possível atualizar nessa situação relações se-
melhantes às que mantivera, anos antes, nos rios Liberdade e Gregório, com Tescon, quem, à frente de
uma grande quantidade de homens fortemente armados, lograra impor temor aos "civilizados" e respeito
aos demais grupos indígenas e, no âmbito das ações de "catequese" e "policiamento", servira como im-
portante referência na contextual pacificação das relações com os patrões e os demais grupos.
315
Informações sobre as atividades dos caucheiros em Esperanza nesta época foram fornecidas pelo mis-
sionário dominicano Frei Adolfo Torralba, com base em anotações e relatórios do frade, também domini-
cano, de origem asturiana, José Pío Aza Martínez de Vega, da Missão de San Jacinto, de Puerto Maldo-
nado, que, de outubro de 1910 a maio de 1911, viajou pelo rio de las Piedras e o alto rio Purus, acompa-
nhado, na viagem de ida, pelo Capitão Tabeada, recém nomeado comissário da guarnição peruana em Ca-
tay (Torralba, 1978: 10). Segundo constatou Frei Pío Aza, havia 12 postos caucheiros no rio de las Pie-
dras, nos quais os patrões mobilizavam, em grande parte, índios (Piro, Amahuaca e Uitoto) trazidos de
outras regiões, vendidos, trocados e roubados, que, escravizados e explorados à exaustão, serviam muitas
vezes como grupos armados nos enfrentamentos entre caucheiros. Relata, ainda, que, como resultado das
oscilações dos preços do caucho e da relativa decadência dos postos caucheiros, revoltas indígenas contra
os patrões estavam a ocorrer com freqüência, dentre as quais destaca a que levara, em 1909, ao assassina-
to do caucheiro Carlos Scharff por seus "peões", indígenas e mestiços. No alto rio Purus, seis postos esta-
vam distribuídos até Catay, dos quais os mais movimentados (Curanja, Esperanza e San Juan) estavam na
sproximidades da fronteira com o Brasil (Torralba, 1978: 10-12). É a seguinte a descrição de Esperanza
feita pelo Frei Aza em início de 1911: "Esperanza, de gran movimiento de personal cauchero, pertene-
ciente a la firma Padilla y Cía. Allí se encontraban gentes de diversas nacionalidades: españoles, france-
ses, peruanos, brasileños, belgas, turcos, etc (...) era la pequeña urbe cosmopolita, foco de atracción pa-
ra comerciantes y caucheros, donde se hacían las grandes transacciones comerciales, y de donde salían
las embarcaciones, río abajo, cargadas de caucho y demás productos de la región" (1978: 12). Esperanza
fora inicialmente estabelecida nas cercanias do igarapé Esperancillo, como povoado e sede de várias casas
comerciais; em 1915 seria transladada, pouco abaixo, ao local onde ainda está situada, hoje como capital
da Província do Purus, do Departamento do Ucayali (1978: 4; 12).
226
violências de ambas as partes, novas ameaças de Camilo culminariam com o comunica-
do de Felizardo de que, em breve, os Kaxinawá atacariam em todo o rio Curanja, ma-
tando os homens e levando as mulheres para as malocas.
Nova tentativa de entendimento seria realizada no barracão da Padilla y Cia, onde
Felizardo tornaria a alertar aos proprietários dessa casa comercial sobre as armas que os
Kaxinawá dispunham, de seu desejo de vingança, bem como da eminente tragédia que
se abateria sobre os moradores do Curanja e os prejuízos que resultariam para a produ-
ção de caucho e para o comércio em toda a região. Mediante compromisso de que Feli-
zardo não "rebelaria o seu pessoal", Padilla e seu sócio garantiriam a devolução dos dois
cativos. Felizardo, Francisco Sena e Marcelino voltariam com o menino, que encontra-
ram na casa de um caucheiro em Esperanza, e com a promessa de que a mulher seria
devolvida após voltar de uma viagem à qual fora levada no baixo rio Purus, o que aca-
baria por ocorrer dois meses depois, em fevereiro de 1911 (Cerqueira, 1958: 67-71).
Este episódio constituiria o primeiro de uma série de enfrentamentos, negociações
e acordos com os caucheiros peruanos, a reboque dos quais, Felizardo, considerado o
"chefe" dos Kaxinawá, passaria a ser visto por aqueles como eminente ameaça aos seus
interesses e empreendimentos.
Em junho de 1911, um ataque dos Marinawa contra uma turma de caucheiros, no
igarapé Cumaru, afluente do rio Jaminauá, resultaria na morte de cinco peruanos, no
roubo dos seus pertences e em suspeitas de que o incidente fora realizado pelos Kaxi-
nawá sob ordens de Felizardo. Para esclarecer o ocorrido, Felizardo seguiria às malocas
dos Marinawa, acompanhado por cinco Kaxinawá e dois peruanos. O chefe dos Mari-
nawa, com idade entre 30-35 anos, confirmaria as mortes e esclareceria terem confundi-
do os peruanos, ao encontrá-los nus tomando banho no igarapé, com os Curunawa, gru-
po com o qual mantinham freqüentes embates (Cerqueira, 1958: 73-4). Devolvidos os
pertences dos peruanos e desfeita a suspeita que pairava sobre os Kaxinawá, diz Feli-
zardo a respeito da decisão que de início tomou: "Ficaram os Mari-nauás (cotias) sendo
fiscalizados por mim. Mas não deixei estarem em contato com os Caxi-nauás, visto e-
xistir em todas as tribos uma hereditariedade rancorosa, de tempos idos, pelas falsas
amizades e hipócritas alianças" (1958: 75).
Em julho de 1911, Antonio Sena, irmão do patrão Francisco Sena, solicitaria o
consentimento de Felizardo para retirar os Marinawa do igarapé Cumaru e trazê-los ao
seu seringal, Santo Antonio, na margem do rio Envira, para engajá-los na exploração de
caucho. Agradecendo a iniciativa de ter sido consultado, Felizardo, num primeiro mo-
227
mento, discordaria da proposta. Em visita à maloca, contudo, o chefe dos Marinawa
demonstraria satisfação com a possibilidade de trabalharem para terem acesso a ferra-
mentas, que em muito facilitariam suas atividades agrícolas. Felizardo diz então ter a-
conselhado tanto aos Marinawa como ao patrão: "Recomendei-os a máxima prudência
com os brancos e até mesmo intimidei-os dizendo-lhes: se vocês fizerem qualquer atro-
cidade, vocês bem sabem o peso dos Caxi-nauás, e eu vou onde quer que vocês parem.
E, ao Sr. Sena, recomendei-lhe que fizesse todo o possível de poder suportar dos pobres
índios algumas possíveis ignorâncias e tivesse muita prudência para não haver um mau
entendimento" (1958: 75-6).
Transportados pelo patrão ao seringal Santo Antonio, os Marinawa dariam início
ao trabalho no caucho. Quatro meses depois, um jovem índio, que ficaria conhecido por
João Curumin, mataria um caucheiro e um irmão de Antonio Sena, que lhe aplicara vio-
lenta surra. Após a fuga de todas as famílias Marinawa, Felizardo seria novamente pro-
curado pelo patrão, reconhecendo que seu irmão gozava fama de "valentão" e que o ín-
dio tivera razão suficiente para vingar os maus tratos recebidos. Por isso, solicitava os
serviços de Felizardo para trazer os Marinawa de volta, sob a promessa de que seriam
bem acolhidos e tratados. Após localizar os índios, Felizardo comunicaria a proposta e
as intenções do patrão ao "tuxaua", que "já recebera o nome de Antonio". Convencido
da boa vontade do patrão, Antonio mostrou-se disposto a retornar com os seus: conside-
ravam "papai" Sena "bom", pois dele haviam recebido terçados, machados e boa quan-
tidade de mercadorias. O patrão e Antonio fechariam um novo acordo, acatando as ori-
entações de Felizardo: os Marinawa não mais ficariam no seringal Santo Antonio, mas
nas proximidades da foz do Furnanha, sob os cuidados de Francisco Sena, patrão de Fe-
lizardo e irmão mais velho de Antonio Sena.
Dois meses depois, em janeiro de 1912, contudo, novo incidente, bastante mais
grave, teria lugar. Outro irmão do patrão, Durico Sena, em mais de uma oportunidade,
fora surpreendido tendo relações sexuais com a jovem esposa de João Curumim, índio
Marinawa com quem dividia uma colocação. Apesar das promessas de que esse desres-
peito não se repetiria, vários homens Marinawa acabariam por matar os irmãos Antonio
e Durico Sena e mais 17 fregueses, e por fugir, para bem mais longe, levando duas mo-
ças, uma de 16 anos e outra de 13, respectivamente, filha e sobrinha do patrão
316
. O resto
316
Este fato demonstra que à semelhança do que faziam os "civilizados" nas "correrias", também os ín-
dios, em certas ocasiões, capturavam crianças e mulheres durante ataques, tanto nas colocações dos serin-
gais como nas malocas de outros grupos indígenas. Alusões a fatos semelhantes são discutidas em Pantoja
228
da família Sena (seis irmãos e uma mulher) abandonaria o rio Jaminauá e se estabelece-
ria às margens do rio Envira. Após dois meses em constantes "batidas" pela mata, Feli-
zardo encontraria o novo acampamento dos Marinawa, e negociaria a devolução das
moças, grávidas, à família Sena (1958: 76-8). Com a mudança da família Sena, Feli-
zardo estava, a partir de então, "sem patrão" certo.
Uma nova diáspora
O assassinato de um patrão conhecido por Patrício no alto rio Envira, e o saque de
seu barracão, repleto de mercadorias, ferramentas, armas e munição, surge em rias
das narrativas históricas dos Kaxinawá como evento detonador da diáspora que acabaria
por resultar na divisão do grupo que nessa época vivia no alto rio Envira: uma parte des-
sas famílias seguiria para as cabeceiras do rio Curanja, em território peruano, e a outra,
junto com Felizardo Cerqueira, para o alto rio Tarauacá e logo depois para o alto rio
Jordão.
Na tentativa de reconstruir esse drama social (Turner, 1974) e seus desdobramen-
tos, procuro colocar em diálogo seis diferentes versões: duas entrevistas, com os finados
Sueiro Cerqueira Sales (1994) e Romão Sales (2004), seu irmão, ambos moradores do
rio Jordão; um relato escrito por Agostinho Manduca (Mateus Kaxinawá, 1993), tam-
bém morador do Jordão, baseado em informações de Miguel Macário, Kaxinawá nasci-
do no rio Purus e chegado ao Jordão em final dos anos 1950, quando ocorreu o primeiro
reencontro entre membros dos dois grupos de famílias Kaxinawá divididos quase quatro
décadas antes; o relato de Pudicho Torres, ex-chefe da aldeia de Balta, no alto rio Cu-
ranja, transcrito no livro de Richard Montag (2002)
317
; um breve depoimento de um ín-
dio Kaxinawá, sem nome especificado, morador da Terra Indígena Alto Purus, membro
das famílias que para ali migraram, vindas do Peru, a partir dos anos 1970, transcrito
por Cecília McCallum (1989: 58); e, por fim, trechos do relatório de Felizardo Cerquei-
ra (1958).
(2003, 2004), a partir de relatos ouvidos, na década de 1990, de seringueiros e mulheres, alguns de des-
cendência indígena, moradores na Reserva Extrativista do Alto Juruá.
317
Richard Montag e sua esposa, Susan Montag, chegaram ao alto rio Purus, em território peruano, em
1969. Sob os auspícios do SIL iniciaram um trabalho com os Kaxinawá que, concluído em 1981, seria re-
tomado em 1999 e se estende até os dias atuais. O livro de Montag constitui uma versão revisada de sua
tese de PhD, apresentada em 1998 à Universidade do Estado de Nova Iorque. A versão do livro em caste-
lhano, "Una historia del grupo de Pudicho. Narración cashinahua que habla del contacto con los europeos
en el siglo veinte", editada por Marlene Ballena Dávila, hoje em sua segunda edição, encontra-se disponí-
vel no site do SIL.
229
O nome completo desse caucheiro que ficaria marcado na memória dos Kaxina-
wá, bem como a época e as condições em que com ele começaram a trabalhar são preci-
sadas unicamente no relatório de Felizardo. Em outubro de 1910, Felizardo diz ter sido
procurado por Manoel Patrício, um pernambucano (e não peruano) recém chegado à re-
gião para explorar caucho. Sabedor que Felizardo tinha os Kaxinawá sob sua "guarda",
Patrício teria proposto que lhe cedesse algumas famílias para com elas trabalhar. Dese-
joso de "expandir a civilização aos índios", socializando-os na produção do caucho, diz
Felizardo, considerou a proposta conveniente. Em conversas com os chefes das famílias
extensas das malocas Kaxinawá nas cabeceiras do rio Jaminauá, estes aceitariam o a-
cordo, com o argumento de que Felizardo "não tinha trabalho suficiente para lhes dar o
necessário". Felizardo contabiliza ter então separado 60 famílias, cerca de 300 pessoas,
metade dos Kaxinawá que acabara de "amansar", às quais Patrício "recebeu de bom gos-
to" (Cerqueira, 1958: 79).
O nome do seringal para o qual Patrício levaria as famílias Kaxinawá não é espe-
cificado por Felizardo em seu relatório. Em seus depoimentos, Sueiro e Romão fazem
referências ao seringal Simpatia, e o informante de McCallum especifica tratar-se do
União
318
, ambos situados às margens do rio Envira: o último, nove voltas abaixo da foz
do igarapé Jaminauá e o Simpatia pouco acima da foz do Riozinho da Ordem.
Nenhum dos relatos dos Kaxinawá, todavia, destaca a participação de Felizardo na
decisão de trabalharem com Patrício. Sueiro e Romão dizem que várias famílias Kaxi-
nawá, pouco antes chegadas do médio rio Tarauacá, teriam começado a extrair caucho,
plantar e caçar para os "peruanos", num período em que Felizardo também acabara de
chegar ao rio Envira, onde teria passado a ser recrutado como "mateiro" por diferentes
patrões. Ambos referem-se a Patrício como patrão, ou caucheiro, de nacionalidade peru-
ana. Agostinho Manduca Mateus, por sua vez, ressalta que apenas Patrício era peruano,
mas que todos seus "fregueses" eram brasileiros. Felizardo, diferentemente, especifica
que Manoel Patrício nascera no Estado de Pernambucano (1958: 79), sem dar qualquer
esclarecimento a respeito da nacionalidade de sua freguesia.
À diferença das narrativas dos Kaxinawá junto aos quais pessoalmente pesquisei,
que enfatizaram a fuga de seus antepassados do médio Tarauacá até o rio Envira, ou do
escrito do padre Tastevin (1926), que destaca a sua chegada com Felizardo, trazidos do
rio Iboiaçú, os relatos de Pudicho Torres e alguns de seus contemporâneos indicam que,
318
O seringal originalmente chamado Foz do Jaminauás teria seu nome depois mudado para União ("Nota
de protesto". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano II, Nº 66, 15/7/1917, p. 4).
230
antes dos brasileiros e dos peruanos terem se feito ali presentes, seus ascendentes vivi-
am e se deslocavam em vários afluentes das cabeceiras do rio Juruá e Purus, mantendo
relações amistosas com outros grupos falantes de línguas Pano e inclusive com os Kam-
pa oriundos do Ucayali. Após estabelecerem as primeiras relações pontuais com rega-
tões, mediadas pelos Jaminawa e a seguir por conta própria, os Kaxinawá, relata Pudi-
cho, teriam começado a trabalhar com um patrão peruano, quem os levaria às cabeceiras
do rio Envira para extrair caucho. Junto com redes, cocares de pena e outros artefatos de
sua cultura material, a produção de caucho era trocada por mosquiteiros, cobertores, te-
cidos, panelas, potes e miçangas, em viagens ocasionais do patrão às malocas ou em vi-
sitas do principal chefe Kaxinawá ao barracão (Montag, 2002: 13-5).
Pouco depois, convencidas por um patrão brasileiro, parte dessas famílias exten-
sas teria descido o rio Envira para trabalhar em seu seringal, onde se estabeleceriam em
diferentes malocas próximas. Cada maloca uma tinha um chefe, afirma Pudicho, mas
um deles, Chanemaiti, coordenava o trabalho no caucho, o cultivo dos roçados e a co-
lheita dos legumes (Montag, 2002: 21; 27). As várias famílias trabalhavam juntas, Mon-
tag esclarece, mas esse "paramount leader" atuava como "coordinator and guarantor
and was responsible for dividing the goods among the men after he had gone downriver
with the rubber boss" (ibid: 28). Não qualquer referência nos relatos de Pudicho ou
de seus parentes, nem nas análises de Montag, à presença de Felizardo Cerqueira, ou se
alguns dos dois patrões, o brasileiro ou o peruano, com os quais haviam começado a
trabalhar fora Patrício.
O ano do assassinato de Manoel Patrício tampouco é especificado em nenhum dos
relatos dos Kaxinawá
319
. Felizardo informa que ele teria ocorrido "um ano inteiro" após
os Kaxinawá terem começado a trabalhar para esse patrão, ou seja, em final de 1911. À
exceção da versão do informante de McCallum (1989), todas as demais explicitam o
motivo dos desentendimentos com Patrício: as relações sexuais que ele mantivera com
319
Fazendo um cálculo baseado nos anos de nascimento e das trajetórias pessoais e dos familiares de al-
guns de seus interlocutores, bem como de outros fatos históricos por eles narrados, Montag (2002: 33) es-
tima que a morte de Patrício teria ocorrido entre 1908 e 1920, cálculo que o faz concordar com a estima-
tiva, entre 1910 e 1920, apresentada por McCallum (1989: 58). Após visitar aldeias Kaxinawá no rio Pu-
rus, em território peruano, em 1951, o fotógrafo, documentarista e etnólogo do Museu Paulista, Harald
Schultz, e sua esposa, Wilma Chiara, afirmariam que os Kaxinawá que então viviam no alto rio Curanja
pareciam ter migrado de afluentes do rio Envira, "fazia uma geração ou talvez pouco mais, em virtude de
desentendimentos entre os vários grupos" (Schultz & Chiara, 1955: 197). A antropóloga Barbara Keife-
nheim (2002: 95-6), que desde 1977 desenvolve pesquisas no alto rio Purus, em território peruano, afirma
que os Kaxinawá ali residentes "(...) são descentes de um ramo da etnia, que, no final do auge da explo-
ração da borracha, fugiram para a região da nascente do rio Curanja e evitaram qualquer contato com o
mundo exterior até final dos anos 1940".
231
mulheres Kaxinawá. Segundo Sueiro e Agostinho, isto acontecia enquanto os homens,
mandados por Patrício, caçavam e trabalhavam no caucho ou em outras tarefas em lo-
cais distantes da sede. Romão, por sua vez, cita que uma mulher Kaxinawá teria come-
çado "a namorar" com Patrício, possibilidade que não é descartada por Montag (2002:
28), movida pelo desejo de acessar mercadorias. Felizardo, por sua vez, informa: "Tudo
andou bem um ano inteiro: o patrão fornecia tudo a tempo e hora, os índios estavam
muito satisfeitos. Quando um belo dia, o patrão entendeu de se fazer de sultão; tirou
duas caboclas de 14 anos mais ou menos e avançou em seu desespero, com maior ga-
nância, sem pensar no resultado e nem na recompensa vindoura" (Cerqueira, 1958: 80).
O descontentamento dos Kaxinawá, e a vingança planejada para dar fim à vida de
Patrício, teria chegado aos ouvidos desse patrão. Seu plano, então, foi mandar os Kaxi-
nawá fazerem um "curral" (cerca) em seu terreiro e, quando este estivesse pronto, colo-
cá-los dentro para matá-los a tiros. Após o início da construção, Patrício teria enviado
vários de seus fregueses a um seringal próximo para recrutar outros caucheiros e para
trazer mais rifles e munição. O plano de Patrício também chegaria aos ouvidos dos Ka-
xinawá, por meio de uma das índias que estava (ou trabalhava) no barracão (ou de uma
peruana que se afeiçoara dos Kaxinawá, segundo Agostinho).
Os desdobramentos desses acontecimentos também convergem em vários dos re-
latos: a decisão dos Kaxinawá de se antecipar ao plano de Patrício e à chegada dos de-
mais caucheiros, a ida de um grupo de homens ao barracão, o breve diálogo com o pa-
trão, as mortes, a tiros, de Patrício e dos demais moradores da sede, homens e mulheres,
seguidos da abertura da loja e da retirada de grande quantidade de armas, munição, fer-
ramentas de trabalho, utensílios de cozinha, roupas, tecidos e outras mercadorias. Três
relatos dos Kaxinawá também mencionam a morte de outros fregueses de Patrício que
moravam em centros mais distantes do barracão. Felizardo assim contabiliza o resultado
dessa ofensiva:
"Ora os Caxi-naúas mais que qualquer outra tribo não tiveram mais tempo a per-
der e mesmo foi em uma ocasião que estava o armazém repleto de tudo e muita
munição e rifles; foi o bastante. Num abrir e fechar de olhos, fizeram uma carni-
ficina que admirou a todos quantos souberam da notícia: mataram o patrão e to-
da a sua família, que eram 10 filhos, e 18 fregueses, e levaram quase toda merca-
doria, inclusive rifles e balas (...)" (Cerqueira, 1958: 80-1).
A fuga dos Kaxinawá, subindo o rio Envira e atravessando o divisor de águas (e a
fronteira Brasil-Peru) até o alto rio Curanja, afluente da margem esquerda do alto rio
Purus, é ressaltada em um trecho do relato de Pudicho, reproduzido por Montag (2002:
232
29; 35-6), e no relato transcrito por McCallum (1989: 58), como resultado imediatamen-
te posterior à morte de Patrício. Nacimiento, primo de Pudicho, acrescenta que, apesar
de não ter se engajado no trabalho com o patrão brasileiro, seu grupo familiar foi con-
vencido por alguns de seus parentes a seguir para o Curanja, temerosos com prováveis
vinganças. Por sua vez, Felizardo informa que após matar Patrício, esse grupo de famí-
lias foi "morar e se esconder" nas cabeceiras do igarapé Bãi (Surubim), afluente do Rio-
zinho (por sua vez, afluente da margem direita do Envira).
Em começo de 1912, Felizardo seria procurado pelos sócios, brasileiros, da Ir-
mãos Valente & Cia., que confessaram estar em situação de severa dificuldade. Recém
chegado do rio Ucayali, um grupo de peruanos aviara-se no barracão da firma, situado à
foz do Riozinho, e subira o rio para extrair caucho. Ao encontrar as malocas dos Kaxi-
nawá "refugiados" (60 homens armados, contabiliza Felizardo), promovera uma "corre-
ria", matando 22 índios. O "choque de retorno" dos Kaxinawá resultaria na morte de 38
caucheiros peruanos e na fuga dos outros 112, os quais prontamente comunicaram aos
irmãos Valente seu desejo de abandonar a região, deixando sem pagamento contas que
somavam cerca de 800 contos de reis (Cerqueira, 1958: 81)
320
.
Outro trecho do relato de Pudicho acrescenta dados que aparentemente em parte
coincidem com esse relato de Felizardo. Após a morte do patrão brasileiro, segundo Pu-
dicho, o grupo familiar de seu pai teria se estabelecido em um igarapé distante, nas ca-
beceiras do rio Envira, onde seria novamente encontrado por uma turma de peruanos. O
chefe dessa turma de caucheiros teria lhes perguntado se não eram eles que, pouco an-
tes, haviam matado um patrão e fugido nessa direção. Após desmentir esse fato, o chefe
Kaxinawá teria pegado um rifle e baleado o peruano, quem, antes de morrer, acabaria
por também matá-lo a tiros. Após matarem os demais caucheiros, os Kaxinawá nova-
mente optaram por fugir, tendo chegado às cabeceiras do rio Curanja. "Por não terem
mais para onde fugir", ali decidiriam se estabelecer, abrindo novos roçados e construin-
do novas malocas (Montag, 2002: 35-6).
320
Este fato seria objeto de destaque na imprensa de Seabra, como parte da justificava da demanda dirigi-
da ao Ministério da Agricultura quanto à urgente necessidade da nomeação de um "diretor de índios" no
rio Tarauacá e do início de uma efetiva atuação do SPILTN nessa região. Segundo os editores d’O Muni-
cípio, o assassinato de Ângelo Ferreira e o fim de seu "sistema de catequese", dois anos antes, resultaram
na volta do "nomadismo" dos indígenas, no alastramento da "indisciplina" e na retomada da "selvageria
indômita de outr'ora", e especificamente no rio Envira, onde "(...) toda a zona caucheira do alto curso
emplagou-se e o indígena, revoltado, trucidou na allucinação de nevrose vermelha de ódio, saqueou, ex-
pulsou centenas de extractores" ("Aborígenes". O Município, Villa Seabra, 28/04/1912. SARQ/MI. Mi-
crof. 324, Planilha 007, Fot. 236-237).
233
À diferença do relato de Felizardo, os de Sueiro, Romão e Agostinho convergem
ao afirmar que os Kaxinawá constituíam um único grupo de famílias extensas, que jun-
tas trabalhavam Patrício. A fuga e os fatos após a morte desse patrão "peruano" se de-
senrolam também em águas do alto rio Envira. As narrativas destacam a chegada de Fe-
lizardo somente após tomar conhecimento da morte de Patrício e de seus fregueses, sua
tentativa de promover o reagrupamento de todos os Kaxinawá, separados durante a fuga
rio acima, e a "divisão" de dois principais grupos de famílias após o fracasso desta inici-
ativa.
Segundo Sueiro, as famílias Kaxinawá teriam seguido no rumo do rio Curanja,
por acreditarem que, ali, os fregueses de Patrício não mais os alcançariam para vingar a
morte de seu patrão. Aquelas famílias que vinham atrás teriam sido "atalhadas" por Fe-
lizardo, pedindo-lhes que não mais corressem, que retornassem e continuassem a morar
juntas. "O pessoal conhecia Felizardo, porque trabalhava com Ângelo Ferreira.
atenderam", diz Sueiro. Com a decisão dessas famílias de permanecer nas cabeceiras do
rio Jaminauá, Felizardo levaria um pequeno grupo de homens para tentar convencer as
demais a também retornar. Os relatos convergem ao afirmar que Felizardo vinha atrás
deste grupo de homens, pescando com arco e flecha, quando foram surpreendidos pelos
tiros disparados pelos Kaxinawá que haviam seguido em frente, resultando na diáspora
das várias famílias em direções opostas: umas para o rio Curanja e outras, com Felizar-
do, para as cabeceiras do rio Tarauacá.
Os relatos de Agostinho e Romão, por sua vez, acrescentam outros fatos, posterio-
res à morte de Patrício, que atribuem a conflitos surgidos entre diferentes famílias Kaxi-
nawá, antes da chegada de Felizardo para "atalhá-las". Ambos destacam um homem do-
ente (um paralítico), que, impossibilitado de acompanhar os demais, acabaria morto, por
ter ameaçado denunciar aos brasileiros ou peruanos por onde os Kaxinawá haviam es-
capado. Segundo Agostinho, em um acampamento, durante a fuga, os parentes do para-
lítico resolveram vingar-se, envenenando integrantes das famílias que o matara. Disto
resultaria, pouco depois, uma troca de tiros, vários mortos e a divisão dos dois grupos,
um para o rio Curanja e outro para o rio Tarauacá. Felizardo chegaria pouco depois e
reencontraria essas últimas famílias. Dentre elas, recrutaria três homens e seguiria no
rumo do Curanja, para tentar convencer as demais a retornar. Na chegada à "aldeia", um
grupo de homens, ao reconhecer Felizardo, teria atirado contra eles, colocando-os em
fuga (Mateus Kaxinawá, 1993).
234
No relato de Romão Sales, após a morte de Patrício, os Kaxinawá teriam subido o
rio Envira, separados em dois grupos distintos de famílias. Felizardo chegaria de bai-
xo junto com seu irmão Pedro Cerqueira, que lhe avisara que, em breve, os peruanos
pretendiam subir para vingar a morte de seu patrão e dos demais fregueses. Felizardo e
Pedro topariam o último grupo de famílias acampado em um local onde haviam plan-
tado várias praias de milho. Felizardo mandaria Pedro seguir em frente com esse grupo,
no rumo do alto rio Tarauacá, enquanto ele desceria o Envira para tentar despistar os pe-
ruanos. Segundo Romão, seu pai (e de Sueiro), Chico Curumim, então um jovem rapaz,
seria "convidado" por Felizardo a acompanhá-lo. Ao encontrar os peruanos, Felizardo
logrou convencê-los a esperar os Kaxinawá nas proximidades das praias plantadas, onde
retornariam em breve para colher os legumes. Enquanto os peruanos ali esperavam, Fe-
lizardo e Chico Curumim teriam, às escondidas, seguido para reencontrar Pedro e os
demais Kaxinawá.
No caminho rumo ao alto Tarauacá, Felizardo convidaria uma "turma grande" de
homens Kaxinawá, segundo Romão, para ir atrás das famílias que haviam espalhado na
direção do rio Curanja. Ainda no alto rio Envira, num igarapé onde estava dando muito
peixe, o grupo se adiantaria, enquanto Felizardo, pouco atrás, pescava de flecha. Ali,
acabariam tocaiados por um grupo de homens Kaxinawá, que voltara com medo da pos-
sível chegada dos fregueses de Patrício:
"Vinha reparando se peruano vinha atrás deles. Aí eles toparam o Felizardo e es-
ses outros que estavam atrás deles. se esconderam e viram eles, o Felizardo
conversando, em português. cismaram: "Esses outros m atrás de nós para
matar. Pra que traz o cariu?, vêm atrás de nós. Vum’bora matar tudo. se es-
conderam. Atiraram num e matou. Atirou no outro, matou (...) ainda conheceram
um outro, que tava baleado. O Felizardo correu, porque queriam matar ele"
(Romão Sales, Aldeia Chico Curumim, Terra Indígena Kaxinawá do rio Jordão,
setembro de 2004).
Ao discorrer sobre essa seqüência de acontecimentos, os três relatos, feitos por
Kaxinawá que vive(ra)m no rio Jordão, enfatizam, portanto, episódios que dão conta da
divisão do grupo de famílias extensas que pouco antes vivia no rio Envira, trabalhando
para Patrício, e dão sentido à posterior trajetória daquelas famílias reunidas e levadas
por Felizardo para as cabeceiras do rio Tarauacá e dali para o alto rio Jordão. Todas es-
sas narrativas convergem ao ressaltar o fracasso da tentativa de Felizardo e dos homens
por eles arregimentados de alcançarem as famílias que tinham seguido na frente, rumo
às cabeceiras dos rios Envira e Curanja: dois Kaxinawá mortos e um gravemente ferido,
Raimundo Pereira, baleado e com o braço estilhaçado, ferimento que o deixaria "aleija-
235
do" até o fim de seus dias. Também destacam a divisão dos Kaxinawá após esse aconte-
cimento, a permanência de suas próprias famílias com Felizardo e a total ausência de
notícias, até final dos anos 1950, sobre as famílias que seguiram para o rio Curanja, as
quais, segundo Sueiro, julgavam terem "se acabado", mortas pelos peruanos.
Nesses três relatos, a migração das famílias agrupadas e levadas por Felizardo pa-
ra as cabeceiras do rio Tarauacá teria acontecido logo após a "divisão" no Envira. O re-
latório de Felizardo, por sua vez, acrescenta outras informações, algumas convergentes,
outras não, a essas narrativas dos Kaxinawá, permitindo contextualizar tanto sua decisão
de tentar tornar a reunir todas as famílias como o dilema que essa iniciativa geraria entre
os Kaxinawá, pela suspeita sobre as reais intenções que haviam levado Felizardo a ten-
tar essa empreitada.
Em sua narrativa, Felizardo introduz outra ordem temporal ao desenrolar dessa
mesma seqüência de acontecimentos, culminando, em meados de 1917, com sua decisão
de levar o grupo de famílias que com ele havia permanecido para o rio Tarauacá e dali
às cabeceiras do rio Jordão. Em final de maio de 1912, informa Felizardo, a pedido dos
irmãos Valente, seguira às malocas do igarapé Surubim, onde os Kaxinawá haviam se
refugiado após terem matado Patrício e onde houvera um enfrentamento posterior com
os caucheiros peruanos. Seu objetivo era tornar a juntar os dois grupos de famílias Ka-
xinawá e lograr uma "acomodação" que permitisse o retorno dos caucheiros, fregueses
dos Valente, ao Riozinho da Ordem. Para acompanhá-lo nessa viagem, diz ter "retirado"
seis Kaxinawá das malocas do rio Jaminauá, inclusive aquele que considerava o princi-
pal "tuxaua", Raimundo Pereira. No igarapé Surubim, foram bem recebidos pelas mu-
lheres e pelos poucos homens que ali encontraram, pois outros 42 homens estavam na
mata, ainda no encalço dos peruanos para vingar a recente "correria". O convite de vol-
tarem a morar no rio Jaminauá e a proposta de não mais hostilizarem os caucheiros, to-
davia, seriam recebidos com desconfiança: "Ficaram todos suspeitando contra mim,
julgando que, pelos crimes que cometeram, eu não estivesse enganando, e ir entregá-
los aos peruanos" (Cerqueira, 1958: 82).
À noite, na maloca, Raimundo Pereira reforçaria o convite, dizendo que Felizardo
tinha agora condições de dar trabalho a todos e "muita mercadoria" (rifles, balas, rou-
pas, machados, terçados e miudezas). Novas suspeitas, contudo, seriam verbalizadas por
um homem mais velho: "Vocês não sabem que este homem é quem vai fazer nossos fi-
lhos ficarem sem pai e nossas mulheres ficarem sem marido? O melhor que aparece é
nós tirar a cabeça deste diabo. fica tudo livre. Vocês não vêem? Todo negócio en-
236
rascado, ele é quem vai chamado. Só ele é quem é danado, não tem medo. Portanto, nós
matando ele, outro não vem cá, este é o terrível" (ibid: 83). Tentado a fugir, com
medo de ser morto, Felizardo decidiria permanecer, temeroso de cair em descrença pe-
rante todos que nele tinham "fé como o mais destemido dos viventes". Raimundo, o
"meu caboclo chefe", como diz Felizardo, levantaria novos argumentos em sua defesa:
"Não duvido que ele faça uma traição, combinado com os peruanos. Não duvido que
ele venha ganhando alguma coisa. Mas, se nesta ocasião, pois todo tempo que ele
tem estado conosco, nunca pudemos presenciar uma mentira. Será esta a primeira
vez, se acaso praticar falsidade" (Cerqueira, 1958: 85).
Aparentemente convencido pelas palavras de Raimundo, chorando ao recordar do
seu filho morto pouco antes pelos peruanos, o velho concordaria em retornar ao Jami-
nauá, pois ali haviam deixado muitas plantações e no novo local encontravam-se "muito
perseguidos". No dia seguinte, 3 de junho de 1912, aconselharia Felizardo a aguardar o
retorno do chefe da maloca, José Lourenço (Maná), e dos homens que andavam na ma-
ta, para que todas as famílias pudessem decidir juntas, aprontar seus pertences e descer.
Apesar deste conselho, e do alerta sobre a raiva que José Lourenço e os demais carrega-
vam pela recente morte de seus filhos e parentes, Felizardo decidiria descer, por ter ur-
gência em voltar ao barracão dos irmãos Valente para comunicar-lhe que lograra "a paz
entre índios e peruanos". Levaria "os seus índios e mais um da maloca", para, no caso
de encontrar os demais Kaxinawá em viagem, conversar e chegar a um entendimento.
Após dois dias de caminhada, quando desciam um igarapé, pescando, Felizardo atrás,
com um rifle às costas e um arco e flecha nas os, acabariam surpreendido por 24 ho-
mens Kaxinawá, que, escondidos, abriram fogo cerrado. Pouco antes de sair em dispa-
rada, perseguido sob intenso tiroteio, Felizardo diz ter tido a certeza de que os sete ín-
dios que o acompanhavam jaziam mortos no leito do igarapé (Cerqueira, 1958: 86-7).
Durante os cinco dias que caminhou até chegar à sua casa no Furnanha, Felizardo
diz ter temido por sua vida, preocupado com a desconfiança que recairia sobre suas re-
ais intenções e com a "satisfação" que deveria dar nas malocas sobre o destino dos seis
índios que dali retirara: "(...) Tinha certeza de ir morrer em casa, se não desse uma jus-
tificação satisfatória aos índios, pois os índios sempre têm uma suspeita de falsidade,
jamais perdem isto da memória. Julgam que pelo meio de gratificação de ser fácil ha-
ver uma trama que sirva de extermínio para eles" (1958: 89-90). O temor de Felizardo
se comprovaria quando, ao chegar, relatou o ocorrido aos Kaxinawá que haviam chega-
do em busca de novidades:
237
"Quando aportei em casa, houve por momento uma alegria incomparável, mas,
quando me perguntaram pelos companheiros, todos choraram sem consolo. Vi
logo ali o mundo transformar-se em ódio e responsabilizar-me irrevogavelmente
(...) nada podia afastar da mente indígena a suspeita de que eu era o verdadeiro
intermediário para os atos comuns, a hipocrisia, a falsidade e a covardia de a-
cordar com os peruanos os planos traiçoeiros de morte dos silvícolas (...) Não
houve um índio que me acreditasse que houve essa coincidência. Mas, acredi-
tavam que eu, para ganhar alguma recompensa, tivesse feito falsidade e conspi-
rado contra, contra sim, a favor dos peruanos" (Cerqueira, 1958: 97).
A única esperança vislumbrada por Felizardo nesta situação era a de retornar ao
Surubim para que os próprios Kaxinawá, cientes do equívoco cometido, inclusive de ter
matado um dos parentes de sua maloca, pudessem testemunhar a seu favor, esclarecen-
do as intenções de sua proposta e a circunstância das mortes. Suas tentativas de recrutar
uma nova turma de Kaxinawá nas malocas do Jaminauá e de levar algum dos seus qua-
tro "empregados", "civilizados", que trabalhavam em sua casa seriam infrutíferas. Con-
frontado com o medo de ser acusado de traição e condenado à morte pelo "conselho"
dos Kaxinawá, decidiria seguir sozinho à maloca. Ainda em viagem, encontraria três
Kaxinawá, vindos do Surubim, carregando, numa rede, Raimundo Pereira, único sobre-
vivente dos que levara, com duas balas encravadas no corpo e o braço quebrado. Um
dos índios seria levado por Felizardo às malocas do Jaminauá, onde relataria o aconteci-
do no igarapé Surubim, acabando a "maldita suspeita" que recaía sobre sua pessoa
(1958: 97-100).
A continuação do relato de Felizardo coincide com a parte final do relato de Ro-
mão Sales, na qual Felizardo e Chico Curumim (pai de Romão e Sueiro) teriam ludibri-
ado os peruanos que pretendiam matar os Kaxinawá, como vingança pela mortes de Pa-
trício e seus fregueses. Felizardo, todavia, atribui outra razão à iniciativa, em dezembro
de 1912, de dois "chefes" peruanos (Tomaz Torrofon e Efraim Ramiro), à frente de 18
caucheiros, de matá-lo em sua própria casa junto com sua família e "seus índios": a
convicção de que partira dele a ordem para os Kaxinawá matarem os 38 peruanos no i-
garapé Surubim.
Assim como relata Romão, Felizardo destaca, por um lado, ter sido alertado dessa
trama por seu irmão Pedro, a quem mandaria com os Kaxinawá para as cabeceiras do
rio Jaminauá, para deixar as mulheres e as crianças, inclusive sua companheira Raimun-
dinha e sua filha, a salvo; e, por outro, de ter ido acompanhado por Chico Curumim
321
321
Em seu relato, diferentemente, Felizardo atribui ao próprio Chico Curumim a iniciativa de acompanhá-
lo: "Eu, olhando todos os caboclos, perguntei: qual de vocês que tem a coragem de morrer comigo espe-
238
ao encontro dos peruanos (no rio Furnanha) e de ter logrado convencê-los de subir o rio
algumas praias, onde encontrariam os Kaxinawá colhendo amendoim e milho. Assim,
ele e Chico Curumim escapariam rio abaixo, onde reencontrariam Pedro e 32 homens
Kaxinawá, de retorno. Cientes de terem sido ludibriados, os peruanos fugiriam à noi-
te, desistindo de consumar as mortes. Novo encontro com Tomaz Torrofon, no rio Envi-
ra, pouco mais de um mês depois, no qual Felizardo revelou ter poupado sua vida, im-
pedindo a represália dos Kaxinawá, e não pretender tomar qualquer vingança pela tenta-
tiva de assassinato, acabaria por selar um acordo de convivência com os caucheiros nes-
sa região, evitando potenciais enfrentamentos com as famílias indígenas que com ele
permaneciam no rio Jaminauá (Cerqueira, 1958: 102-08).
A catequese como "árdua missão"
À frente de "sua turma de Kaxinawá", Felizardo tornar-se-ia um "ponto de refe-
rência" (Cerqueira, 1958: 93) no alto rio Envira e em seus afluentes, para os patrões bra-
sileiros que mobilizavam suas freguesias na exploração do caucho, para as turmas de
peruanos que, de forma autônoma ou aviados por esses patrões, trabalhavam nessa regi-
ão, bem como para os demais grupos indígenas que ali tinham suas malocas.
Em diferentes trechos de seu relatório, Felizardo fornece informações claras de
suas concepções sobre suas atividades de "catequista". Essas concepções surgem em
meio a reflexões provocadas por dificuldades ou pelo eminente risco de vida, em meio a
diálogos com diferentes atores, quando questionado se não temia uma morte trágica e o
que ganhava com suas iniciativas, e quando consultado, por patrões, sobre a possibili-
dade de mobilizar a mão de obra indígena na extração de caucho ou de realizar "correri-
as" para afastar índios considerados "selvagens" das proximidades de suas propriedades.
"Predestinado ao salvamento dos índios do Juruá e seus afluentes" (1958: 1), a-
creditava Felizardo ter assumido um "destino resignado" (1958: 26), uma "missão"
(1958: 44), cumprindo uma "ordem superior", "pois todo mundo vem ao mundo trazen-
do uma missão dada por Deus" (1958: 48). Esta missão tinha como objetivo maior pro-
porcionar aos índios "melhores condições de vida" e à "pátria brasileira renda financei-
ra, pelo trabalho dos milhares de homens espalhados pela floresta e ignorados dos pode-
res públicos" (1958: 43-5; 48). Mais do que ganho financeiro por seus trabalhos, diz Fe-
rando os peruanos aqui? Um, por nome Francisco Curumim, respondeu: "Eu, patrão". "É verdade que tu
morre junto comigo?". "Pronto eu!" (Cerqueira, 1958: 104). Essa, por sinal, é a única referência feita por
Felizardo a Chico Curumim durante todo seu relatório.
239
lizardo, buscava reconhecimento como "bem-feitor", um brasileiro que colocava seus
esforços pelo bem-estar e o progresso tanto dos índios como dos nordestinos (1958: 93),
tendo como maior recompensa o "sossego dos acreanos e a felicidade dos pobres ín-
dios" (1958: 115).
No alto rio Envira, região onde à época o caucho era o principal produto explora-
do e a arregimentação de peruanos era iniciativa comum para a composição de freguesi-
as pouco duradouras, alguns patrões passaram a vislumbrar a mão de obra dos indígenas
como alternativa para desenvolver atividades agrícolas e complementar a produção go-
mífera. A maioria dos patrões, contudo, ainda concebia os índios como obstáculo a ser
removido de suas propriedades e das cercanias, de forma a garantir a "segurança" de
seus trabalhadores e a viabilizar a produção de caucho.
Felizardo assumiria, perante os patrões e os caucheiros, uma decidida posição
contrária à realização de "correrias", justificada por sentimentos humanitários e por uma
ideologia que norteava seu trabalho especializado de "catequista". Diante da proposta de
um patrão para que fizesse uma "batida" nos fundos do seu seringal para decidir a alter-
nativa a tomar para pacificar os índios que causavam saques e mortes, Felizardo, afir-
maria, por exemplo: "Mesmo que o senhor quisesse que eu matasse, eu desistiria do en-
cargo. Nós que amansamos índios, não nos é permitido matar (...) meu trabalho exclu-
sivo é catequese" (1958: 79).
Nessa conjuntura, Felizardo conceberia a catequese como trabalho dirigido tanto
aos índios como aos patrões e seus trabalhadores. Além de instruir os primeiros na ex-
tração do caucho, tinha por objetivo "fazer anular os rancores dos silvícolas que, a-
chando-se prejudicados pela invasão dos brancos, feriam de morte os trabalhadores
nacionais" (1958: 93)
322
. Ao dar início à "catequese" de um grupo indígena, esclarece
Felizardo, preferia deixá-lo em seu próprio local de moradia, "com inteira liberdade de
pensamento e prática de seus negócios", ficando "o contato com os civilizados", ou sua
transferência para outros locais, como alternativa última para evitar "correrias" ou en-
frentamentos armados (1958: 75). No caso dos grupos que, por decisão dos próprios
chefes, face a convites realizados pelos patrões, acabariam deslocando suas malocas pa-
ra as propriedades destes últimos, para ali trabalhar no caucho, Felizardo costumaria re-
322
A dimensão pedagógica das diretrizes desse duplo trabalho, de amansar e catequizar, que Felizardo
concebia voltada tanto aos índios como aos "civilizados", parece contemplada nas definições que constam
para esses dois verbos no Médio Dicionário Aurélio (Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1980), a saber:
"Amansar: 1. Tornar manso; domesticar, amestrar. 2 Aplacar, apaziguar, sossegar. 3. Refrear, moderar
(...)"; e "Catequizar: 1. Instruir em matéria religiosa. 2. Doutrinar sobre questões sociais. 3. Procurar con-
vencer; aliciar. 4. Introduzir no conhecimento ou na participação de alguma coisa; iniciar".
240
comendar-lhes "prudência" com os brancos e que não matassem caucheiros para vingar
desavenças.
Apesar das primeiras tentativas "sem sucesso" de "pacificar" os Patunawa e os
Txaninawa, situações de negociação e negociação surgiriam com outros grupos indíge-
nas. Em algumas delas, os Kaxinawá serviriam como afiançadores dessas mediações le-
vadas a cabo por Felizardo: integrariam escoltas em visitas às malocas, desempenhariam
papel de "intérpretes" e encarnariam o temor de possíveis punições e represálias, em ca-
so de descumprimento dos acordos. "Severamente armados", os Kaxinawá, que, por sua
"legenda fantástica de antropófagos", já eram respeitados e temidos pelos demais grupos
dessa região, "ficaram superando a todas as outras tribos", afirma Felizardo (1958: 66).
Felizardo se auto-representa como o "pai da acomodação" (1958: 115), "o propos-
to pelas forças superiores para acalmar os ânimos exaltados" (1958: 75). Convocado
pelos patrões em situações onde "correrias" já haviam sido realizadas, gerando ataques e
represálias dos índios contra os trabalhadores nordestinos e peruanos, ou onde a presen-
ça belicosa dos indígenas impedia a exploração de áreas ricas em caucho, Felizardo se
faria presente "onde necessitasse de uma intervenção amigável entre ambos contendo-
res, índios e civilizados" (1958: 94).
Aos patrões, Felizardo procuraria fazer entender que a maioria das represálias pro-
tagonizadas pelos índios resultava tanto de um histórico de "correrias" como de ações
desrespeitosas contra os índios, dentre elas, a queima de malocas, a destruição de roça-
dos, a retirada e o abuso sexual de mulheres e crianças. Considerava que os patrões, na
condição de "mestres", deveriam desempenhar um trabalho de "educação" dos índios
que tinham sob "sua regência" e "responsabilidade". Dos "bons exemplos" do tutor, a-
firma, dependeriam as respostas, positivas ou negativas, a serem esperadas dos "alu-
nos", bem como os resultados das "acomodações" e, em última instância, da catequese
(1958: 110-11)
323
.
Antes das famílias Kaxinawá terem seguirem com Patrício ao seu seringal, por
exemplo, diz ter aconselhado aos homens "que tivessem prudência e não causassem mal
a ninguém". Os conselhos dirigidos a esse patrão exemplificam concepções de Felizardo
323
Felizardo cita sua própria forma de comportamento como modelo a ser seguido para levar a frente a
catequese com possibilidades de sucesso, sem, inclusive, correr risco de morte, pela violação de normas e
valores prezados pelos índios: "O homem que amansa índios, para não morrer no início, é mister obser-
var estes itens: por consideração alguma não namorar com as índias, nem açoitar os índios, não tirar
seus filhos para presenteá-los a quem quer que seja estranho, e não dar opinião favorável a gente de fora
da maloca. Quando um índio se declarar raivudo com uma pessoa, quando não falar contra, ao menos,
esteja parcial e conserve-se calado" (1958: 64).
241
sobre as atividades a serem desenvolvidas pelos patrões enquanto "tutores", por meio do
respeito, do exemplo e da educação, bem como sobre os resultados, positivos ou negati-
vos, que poderiam resultar dessas iniciativas:
"(...) Fiz-lhe (a Patrício) mais explanação, referindo-me a muitas adversidades in-
frutíferas somente por falta de prudência e respeito com toda humanidade, mor-
mente com os índios, pois eram homens igualmente aos demais homens, mas eram
mais perigosos que qualquer outro homem, visto serem selváticos sem a menor
educação, mas muito bons para se educar, visto eles ainda se acharem sem vícios,
sem estragos sociais que lhes conferisse banditismo, portanto bons para serem
educados moralmente, dentro do maior respeito e sinceridade da parte de quem
os tem ao seu lado. Tudo disse para evitar o possível desastre por falta de moral e
respeito de quem está encarregado de dar bons exemplos. O índio está pronto a
receber de quem está servindo de mestre, e eles não tem outra coisa a oferecer
senão a paga de uma boa educação ou de maus exemplos (choque de retorno)"
(1958: 79-80).
Conforme visto, Manoel Patrício, junto com sua família e parte de sua freguesia, seria
morto pelos Kaxinawá, como desdobramento de abusos sexuais feitos com mulheres in-
dígenas e de abusos e ameaças aos homens que com ele trabalhavam.
Na condição de "mediador", Felizardo procuraria estabelecer acordos (ou "aco-
modações") que impedissem novas "correrias" dos patrões e dos caucheiros e as repre-
sálias e mortes promovidas pelos índios (o "choque de retorno"), viabilizando, ao mes-
mo tempo, a proteção dos indígenas e a produção do caucho pelos fregueses dos pa-
trões. Visto pelos brasileiros e peruanos como "chefe" dos temidos Kaxinawá, única
pessoa capaz de entrar em suas malocas e dialogar com seus chefes, Felizardo seria, em
diversas ocasiões, responsabilizado por ataques e saques por eles realizados contra os
acampamentos dos caucheiros. Os Kaxinawá seriam também responsabilizados por rou-
bos feitos por outros grupos, recaindo, novamente, as suspeitas de ataques orquestrados
por Felizardo.
Os Kaxinawá, por sua vez, considerariam as relações estabelecidas com Felizardo
enquanto alternativa concreta face às "correrias" que anos sofriam dos patrões e cau-
cheiros. Os acordos firmados por Felizardo junto a patrões como Francisco Sena e Ma-
noel Patrício garantiriam, num primeiro momento, tanto a permanência de certas famí-
lias nas malocas nas cabeceiras do rio Jaminauá como o deslocamento de outras para lo-
cais de produção de caucho, abrindo oportunidades de trabalho e de acesso a mercadori-
as e "bens de valor" desejados. Os desentendimentos com esses patrões, "correrias" e
ameaças dos peruanos, seguidas de represálias dos Kaxinawá, alterariam significativa-
mente essa situação inicial.
242
As negociações e acordos estabelecidos por Felizardo com os patrões e seus fre-
gueses, bem como suas tentativas de, nas malocas, garantir que novas represálias não
aconteceriam contra os caucheiros, contudo, levariam os Kaxinawá, em várias ocasiões,
a levantar suspeitas de que Felizardo poderia estar tramando junto aos carius, abrindo-
lhes condições para a realização de novas "correrias". O dilema inerente à sua condição
de mediador, constantemente visto com desconfiança tanto pelos Kaxinawá como pelos
"civilizados", é assim colocado:
"(...) o mesmo Felizardo era continuamente suspeito de ambas as partes, como
sendo um malfeitor, sedicioso, sedutor, assassino e falso em suas apresentações
democráticas. Quantas vezes e quantas tentativas fizeram contra minha vida, pe-
las suspeitas que eu fosse um bandido, um cruel, um desumano e traidor, esque-
cendo-se os seus próprios atos praticados aos pobres silvícolas que, sem (muitas
vezes) saberem por que, eram trucidados pelas correrias fantásticas dirigidas pe-
los brancos; e tudo isto eu havia de apresentar-me como um mediador, para evi-
tar maiores prejuízos de ambas as partes" (1958: 94).
A desconfiança dos próprios Kaxinawá quanto às reais intenções de Felizardo ao
negociar, em vários contextos, com patrões e peruanos, exigiria dele iniciativas que con-
firmassem a lealdade dedicada à "sua turma" e a honestidade de seus propósitos, garan-
tindo a "pacificação" de suas relações com os "civilizados", a proteção de suas malocas,
o respeito por suas famílias e um acesso regular a mercadorias, ferramentas de trabalho
e objetos de valor.
Delegado de Índios do Rio Envira
Nos sete "episódios" em que trata de suas atividades no rio Envira, a parte mais
extensa de seu relatório biográfico, Felizardo (Cerqueira, 1958: 41-114) escassas men-
ções faz às atividades realizadas por "sua turma" de Kaxinawá na produção de caucho,
aos gastos efetuados como parte da "catequese", às relações comerciais por ele estabele-
cidas com diferentes patrões ou aos ganhos financeiros derivados dos acordos com estes
estabelecidos para a mobilização da mão de obra indígena e para a "segurança" dos cau-
cheiros.
Cinco breves alusões, bastante diversas entre si, são feitas por Felizardo a respeito
desses temas. A decisão de aceitarem aceitar a proposta de Manoel Patrício, segundo
Felizardo, derivou da impossibilidade dele próprio garantir a todas as famílias Kaxina-
trabalho suficiente para suprir suas necessidades de mercadorias e ferramentas, bens
que já necessitavam e almejavam possuir (1958: 80-1). Após a fracassada tentativa de
reunir os Kaxinawá, e diante da urgência de seguir às malocas do igarapé Surubim, Fe-
243
lizardo afirma ter oferecido, sem sucesso, dois contos de reis para que pelo menos um
de seus "empregados" o acompanhasse (1958: 98). Ao tomar conhecimento de que os
peruanos chefiados por Tomaz Torrofon pretendiam fazer-lhe uma emboscada, informa
Felizardo, estava saindo de um centro no rio Furnanha, a algumas horas de sua casa, on-
de extraía caucho com seus quatro "empregados" e "alguns caboclos" (1958: 103). Ins-
tado por seu irmão Pedro a fugir da tocaia dos peruanos e a retornar para o Ceará, Feli-
zardo descartaria qualquer possibilidade de abandonar sua família e "seus índios". Caso
Pedro preferisse voltar, lhe diria Felizardo, deveria passar no barracão dos irmãos Va-
lente e retirar o crédito que ele ali possuía, de três contos de reis. Ao chegar a Pedra
Branca, seu irmão deveria repassar essa importância aos seus pais, comunicando-lhes, e
aos demais irmãos, que "Felizardo havia morrido" (1958: 104). Por fim, Felizardo, em
mais de uma vez, faz menção às dificuldades financeiras que recorrentemente enfrenta-
va, devido aos elevados gastos, com "presentes", para "agradar" seus índios.
Felizardo deixara de ter "patrão certo" em início de 1912, após a morte de parte da
família Sena pelos Marinawa, quando Francisco Sena abandonara o barracão na foz do
Jaminauá e seguira para a margem do rio Envira. Desde então, seus serviços haviam si-
do solicitados por outros dois patrões para tarefas pontuais. Em meados de 1912, aten-
dera pedido dos irmãos Valente para tentar "estabelecer a paz" entre os Kaxinawá e os
seus fregueses. Se algum dinheiro Felizardo ganhara com essa ação, pois tinha crédito
no barracão desses patrões, seu prejuízo também fora grande, pois "perdera" metade de
"sua turma" de Kaxinawá, cerca de 60 famílias, que seguira primeiro ao igarapé Suru-
bim e depois ao Curanja.
Em 1913, seus serviços foram solicitados pelo patrão José Vicente. Após promo-
ver "correrias" contra dois grupos indígenas (os Curunawa e os Binanawa), causando-
lhes numerosas mortes e a destruição das malocas e de dois "paióis de mantimentos",
Vicente tivera vários de seus fregueses atacados e a produção do seu seringal reduzida
quase pela metade. Mediante compromisso previamente assumido por esse patrão, de
que seus fregueses "não ficariam em contato direto com os índios", Felizardo seguiria às
suas malocas, onde permaneceria por pouco mais de um mês, "a fim de deixá-los bem
relacionados, tanto os seringueiros como os índios". Com o auxílio dos Kaxinawá, que
levara como "intérpretes" e escolta, estabeleceria entendimentos com ambos os grupos,
dos quais o patrão depois ficaria como "regente" e "responsável" (Cerqueira, 1958: 109-
11). Apesar de ambos continuarem trabalhando com José Vicente no ano seguinte, Feli-
244
zardo não menciona possíveis ganhos auferidos como resultado dessa "acomodação"
e/ou de parte da produção de caucho feita pelos índios.
Em início de 1914, Felizardo diz ter obedecido ao "bom conselho", de "pessoas de
responsabilidade", de "procurar a Inspetoria de Índios" para, "com auxílio monetário,
melhor desenvolver os trabalhos de catequese" (1958: 113). Já próximo à conclusão de
seu relatório, em que se lamentaria pela difícil situação monetária e de saúde enfrentada
na velhice, num momento em que não podia mais trabalhar, Felizardo torna a detalhar
as razões que, quatro décadas antes, o levaram a tomar a decisão de procurar, em Ma-
naus, a sede da Inspetoria do SPILTN no Estado do Amazonas e Território do Acre:
"Em [fevereiro de] 1914, aconselhado por quem me conhecia, vim em Manaos,
solicitar do inspetor, Dr. João Amora, um auxílio para custear as despesas em-
brutecidas que anualmente gastava em presentes para agradar a fim de índios.
Fiz um gasto acima de meus recursos, a fim de conduzir comigo 3 índios até a
Inspetoria para provar com os mesmos as nossas necessidades" (1958: 181).
Além dessa justificativa, parece plausível sugerir que outras razões podem ter mo-
tivado a iniciativa de Felizardo de apresentar-se ao Inspetor João de Araújo Amora e de
pleitear alguma forma de remuneração pelos serviços que vinha prestando, a saber, o i-
nício das atividades do órgão indigenista no Território do Acre em 1911 e, mais especi-
ficamente, os resultados da viagem do ajudante Máximo Linhares ao rio Envira em iní-
cio de 1912, durante a qual três seringalistas ali haviam sido nomeados como "delega-
dos honorários". Num contexto em que se encontrava sem patrão certo e enfrentava di-
ficuldades financeiras, Felizardo veria no reconhecimento de seus serviços pelo
SPILTN alternativa de contar com uma remuneração fixa, que lhe permitiria, ao mesmo
tempo, dar continuidade às suas ações de "catequista", garantindo um fluxo regular de
mercadorias para o atendimento das "necessidades" dos Kaxinawá, e mobilizar sua mão
de obra na extração do caucho, outra fonte de retorno financeiro.
Felizardo informa que, acompanhado de três índios, teria descido rumo a Manaus
a bordo do gaiola "Rio Envira". Seria apresentado na sede da Inspetoria do SPILTN por
Rodolpho Vasconcellos, gerente da casa aviadora Nicolaus & Cia., de Belém, a qual ti-
nha casa comercial estabelecida em Vila Feijó e propriedades e negócios no rio Envi-
ra
324
. Na Inspetoria, Felizardo afirma ter realizado entendimentos com o "chefe" João
324
A Nicolaus & Cia. operava na Vila Feijó pelo menos a partir de 1908 (Castello Branco, 1961: 234).
Seis anos depois, apoveitando a conjuntura de aprofundamento da crise na economia da borracha e de di-
ficuldades financeiras enfrentadas por vários patrões, a casa aviadora expandia seus negócios no alto rio
Envira, com a aquisição do seringal Canadá e de outros. O conhecimento das atividades realizadas por
Felizardo e da sua importância para a viabilidade da extração de caucho nas cabeceiras do rio pode ter
245
Amora, "(...) e este aceitando-me como auxiliar de inspetoria, fez uma diária de 10,000
reis e me nomeou como Delegado de Índios do Rio Envira. Aconselhou-me que era de
conveniência que eu deixasse um procurador, com a devida nomeação, para receber da
Inspetoria o meu ordenado de delegado de índios" (1958: 113-4).
Pouco depois, os quatro seguiriam para Belém, onde também visitaram a sede da
Inspetoria do SPILTN, cujo "chefe", diz Felizardo, era o Capitão Alípio Bandeira
325
.
Nessa ocasião, ressalta, teve a "feliz ventura" de encontrar, pela única vez, o então Te-
nente-Coronel Cândido Mariano Rondon, com quem conversaria por "mais de uma ho-
ra", "assuntos relativos a índios"
326
.
Rondon surge como referência recorrente em reflexões de Felizardo Cerqueira so-
bre os ideais e valores que fundamentavam sua "missão" e sua prática profissional, bem
como sobre as agruras e as dificuldades financeiras enfrentadas para exercê-las. Cabe
chamar a atenção, nesse sentido, que o seu relatório biográfico foi finalizado em 1958,
mesmo ano em que, a 19 de janeiro, faleceu Rondon, então Marechal, aos 92 anos de
idade, na cidade do Rio de Janeiro.
contribuído para a decisão de Vasconcellos de intermediar sua apresentação na Inspetoria do SPILTN. A
expansão das atividades da Nicolaus & Cia. no alto rio Envira seria alvo de disputas pouco depois. Em
meados de 1917, o peruano Theobaldo Lecca, "sucessor das extintas firmas de Lecca & Pena e Lecca &
Cia.", alegando ser o legítimo dono do seringal "Foz do Jamináuas (depois conhecido por União)", man-
daria publicar duas Notas de Protesto, em Vila Seabra e na Foz do Jurupary, prometendo ingressar em ju-
ízo contra a casa aviadora, que, por meio de seu "procurador", Rodolpho Vasconcellos, encomendara a
demarcação daquele seringal, com intenção de vendê-lo a Pedro José Gadelha (Jornal Official. Semanário
da Prefeitura, Ano II, Nº 66, 15/7/1917, p. 4).
325
Após ter chefiado a Inspetoria no Amazonas desde a sua criação até janeiro de 1912, período em que
pessoalmente se dedicou às primeiras iniciativas de "atração" de um grupo de índios Waimiri, no rio Jau-
aperi, e ordenou a realização de seis outras "expedições" em várias regiões do estado, o então tenente do
Exército Alípio Bandeira foi obrigado a retornar ao Ministério da Guerra. Reintegrado ao SPILTN em
maio de 1912, ocupou a 1ª Seção da Diretoria até novembro, quando foi nomeado Inspetor no Pará. A
partir de fevereiro de 1913, dedicou-se à inspeção das atividades do órgão indigenista em vários estados
da região Nordeste. Acabaria dispensado do SPILTN em janeiro de 1914, num contexto de restrição or-
çamentária no órgão e de unificação das Inspetorias do Pará e do Maranhão (Freire, 2007: 14).
326
Felizardo assim resume o seu diálogo com Rondon e a promessa então feita pelo diretor do SPILTN,
de futuramente convidá-lo para trabalhar sob suas ordens: "(...) sua Excia. disse-me: Sr. Felizardo, o se-
nhor pode ser muito famoso, mas sua fama perder-se-ia com os Parintintins. Os Parintintins do Madeira,
pegados, morrem de fome a propósito de não amansar. Respondi: Coronel, sendo comigo, os Parintin-
tins comem, dormem, dançam e brincam carnaval. Em resposta, ele disse-me: O senhor só diz isto por-
que ainda não conhece os Parintintins. Respondi: Coronel, sua Excia. conhece bem os Parintintins, mas
não conhece o Felizardo. Quando sua Excia. trabalhar comigo, verá. Disse-me o seguinte: Eu agora vou
baixando para o Rio. Quando voltar, chamá-lo-ei. Eu espero, Excia., disse-lhe. E jamais chamou-me"
(1958: 114). À época que Felizardo diz ter saído do rio Envira para Manaus e depois para Belém, Rondon
chefiava expedição com o ex-presidente norte-americano Theodore Roosevelt; em final de fevereiro de
1914, a comitiva começava a descer o rio da Dúvida, trecho da expedição que seria concluído em fins de
abril, com a chegada a Belém. Nenhuma referência às visitas da comitiva de três índios Kaxinawá, enca-
beçada por Felizardo, às sedes das duas inspetorias foi identificada no acervo do SARQ/MI. Como será
visto logo adiante, menção à visita feita à Inspetoria de Manaus é feita por Romão Sales Kaxinawá, mas
não ao encontro com Rondon.
246
Segundo Felizardo, apenas Rondon "tomara a peito" a "missão rejeitada" de cate-
quista, como ele próprio a assumira (Cerqueira, 1958: 64). Semelhanças nos sentimen-
tos que teriam motivado os dois a abraçar essa "missão" são também destacadas: se o
tenente-coronel enxergara que os índios eram "merecedores do olhar sereno de sua
complacência", Felizardo também diz ter se movido pelo "verdadeiro sentimento de
compaixão por esta gente abandonada e sujeita às correrias" (1958: 56). Todavia, signi-
ficativas diferenças são via de regra ressaltadas por Felizardo ao comparar as condições
institucionais, financeiras, materiais e logísticas que ele e Rondon dispuseram para rea-
lizar suas atividades:
"(...) embora correndo os mesmos riscos de morte entre os índios, já deixa ver que
ele [Rondon] sempre estava em melhores condições, tanto amparado pelo gover-
no, lhe fornecendo o necessário para o abastecimento de sua gente, como bem re-
compensado monetariamente. Não é o Felizardo velho que tudo tem que enfrentar
sem ter os auxílios que o Coronel Rondon se rodeado: gente (soldado), dinhei-
ro, boa alimentação, bem cercado e vigiado pelo seu exército, nada lhe faltando,
tudo para ele estava a tempo e hora, tinha a seu comando homens que compreen-
diam seus deveres (...)" (1958: 56).
Em 1958, enfrentando problemas de saúde, e em busca de obter uma pensão por
uma vida de serviços como "catequista de índios", Felizardo contrastaria, em seu relató-
rio, o reconhecimento logrado por Rondon e por ele, um "humilde trabalhador nacio-
nal", que desempenhara sua missão "sem auxílio nem do governo nem dos particulares
nem da parte dos índios" (1958: 101):
"Eu podia estar rico hoje, se eu houvesse botado os índios para trabalhar para
mim, mas a consciência não me permitiu. Não tive a coragem de oferecer àquela
gente tão sacrificada pelos horrores das correrias, mais um cativeiro. Antes, ofe-
recia-lhes os parcos recursos que tinha, ao oferecer-lhes alguns presentes. Ah! se
eu houvesse recebido do governo auxílios como recebeu o Coronel Rondon. Hoje
seria também enxergado e um segundo Rondon. Quanto eu não tivesse atingido o
tamanho do grande Oficial, pelo menos teria hoje uma pensão que pudesse atin-
gir as minhas necessidades. Com o dinheiro que gastei em catequese, seria hoje
um homem abonado, sem necessidade de estar a pedir" (1958: 57)
327
.
A viagem de Felizardo e os "três índios", os entendimentos na Inspetoria e seus
desdobramentos foram também rememorados por Romão Sales Kaxinawá em entrevista
concedida em maio de 2005. Romão fez então referência a uma viagem à cidade de Be-
lém, para a qual Felizardo "convidara" seu pai, Chico Curumim, junto com outros dois
327
Em livro sobre diferentes aspectos do rio Juruá, no capítulo relativo à "etnografia", Onofre de Andrade
(1937) equipara os feitos de Felizardo Cerqueira e de Ângelo Ferreira da Silva aos de Rondon, destacan-
do, porém, a falta de remuneração e de apoio oficial que marcara as ações dos dois primeiros: "(...) Ânge-
lo Ferreira e Felizardo, os dois grandes Rondons do Juruá, que se cometeram, sem comissões oficiais,
nem proventos, à obra civilizadora de numerosas tribus".
247
chefes de famílias extensas, Raimundo Pereira e Augusto, todos Kaxinawá. Essa via-
gem, segundo Romão, teria ocorrido logo após o término da demarcação da fronteira
Brasil-Peru, na qual Felizardo e alguns Kaxinawá estiveram engajados durante os traba-
lhos da Comissão Mista nas cabeceiras dos rios Envira, Tarauacá, Jordão e Breu, em
1923-24. A informação de Romão de que, em "Belém", seus parentes foram levados à
presença de "um homem do governo", e de que "o governo era o Doutor Amora", per-
mite afirmar, todavia, tratar-se da mesma viagem relatada por Felizardo, iniciada por
Manaus e ocorrida quase dez anos antes do término da demarcação física daquele trecho
da fronteira internacional.
A avaliação sobre os principais acontecimentos dessa viagem, relatada por Romão
a partir do que ouviu seu pai Chico Curumim contar, difere significativamente daqueles
destacados por Felizardo. Antes da partida, segundo Romão, "miçangas, muitas" foi a
principal encomenda feita pelas mulheres Kaxinawá aos três homens que iniciariam a
viagem.
Pouco após a chegada "em Belém", de madrugada, enquanto Felizardo descia à
terra para realizar os primeiros contatos, contou Romão, os Kaxinawá teriam permane-
cido no navio, "apreciando a cidade, toda iluminada". Um homem, que Romão não sou-
be especificar quem era, chegou ao navio e estabeleceu conversa com eles: "O Felizar-
do chegou do alto. Esse Felizardo diz que é malvado, que maltrata muito os índios".
viraram. "Não senhor, o Felizardo é um que toma de conta dos índios". Nova inquisi-
ção sobre o tratamento que lhes era dispensado por Felizardo seria feita pelo próprio
Inspetor Amora, quando os Kaxinawá foram convidados a visitar a sede do SPILTN:
"perguntou: "O Felizardo, o que ele faz com vocês?". "Não senhor, o Felizardo é
quem cuida de nós. Foi ele que trouxe nós pra cá. Nós viemos para conhecer o senhor"
(Romão Sales, Aldeia Boa Vista, 2005).
Segundo Felizardo, num contexto em que, sem qualquer auxílio dos patrões, en-
frentava dificuldades financeiras para dar continuidade à "catequese" dos Kaxinawá, o
objetivo principal da viagem, ao levar os três índios, iniciativa na qual realizou elevadas
despesas, era que juntos demonstrassem ao SPLITN "as nossas necessidades". Pergun-
tados pelo Inspetor Amora sobre como podia ajudá-los, os Kaxinawá, diz Romão, de-
mandariam mercadorias: "Nós precisa de muita coisa. Nós mora no mato, no mato
mesmo. Não tem mercadoria onde nós mora". À diferença da avaliação de Felizardo, na
visão dos Kaxinawá, os principais resultados dessa visita ao SPILTN, segundo Romão,
248
foram o dinheiro, as mercadorias e as miçangas fornecidos pelo Inspetor, não sem antes
levantar dúvidas sobre as intenções e a honestidade de Felizardo:
"O doutor deu um bocadinho. "Eu não vou dar mercadoria aqui, porque vocês
não podem levar. Agora vocês levem dinheiro, para comprar mais perto". Diz
que deu não sei quantos contos de reis. Deu para o meu pai, deu para o outro.
Agora, disse para o Felizardo: "Eu dei esse dinheiro, não vou dar mercadoria
aqui. Chega mais perto, você vai comprar pra eles. Olhe lá! Você não vai en-
ganar eles". Tirou a nota. Diz que quando voltaram, trouxeram miçanga mes-
mo. Chegou não sei aonde, eles compraram mercadoria. Trouxeram um bocado
de mercadoria nesse tempo". (Romão Sales, Aldeia Boa Vista, 2005).
Também em seu depoimento, Romão fornece outra informação que constitui pos-
sível pista sobre quem seria o homem que, no navio, abordara seu pai e os outros dois
Kaxinawá, e sobre as razões pelas quais Felizardo seria tratado com desconfiança, por
ele e depois pelo Inspetor Amora, devido aos alegados maus tratos aos quais submetia
aos índios que tinha "sob seus cuidados". Diz Romão que Raimundo Prado teria convi-
dado seu pai Chico Curumim a visitar São Paulo. A viagem, contudo, seria abortada por
Felizardo, com a justificativa de que se comprometera, ao retornar, de levar consigo os
três Kaxinawá de volta às suas casas: caso retornasse sem algum deles, seus respectivos
parentes e mulheres ficariam "com raiva dele".
Cabe recordar que em início de 1912 o ajudante Máximo Linhares nomeara o Sr.
Prado como "delegado-auxiliar dos índios do rio Envira". Poderia a visita de Felizardo à
sede do SPILTN em Manaus representar, aos olhos de um membro da família Prado,
ameaça ao prestígio gozado por seu familiar junto ao órgão indigenista e ao cargo de de-
legado de índios desempenhado naquele rio, em cujo alto curso a família Prado tinha
propriedades e interesses comerciais?
Conforme salientado no capítulo anterior, os relatórios do MAIC (Brasil. MAIC,
1913: 140-41) e do SPILTN (Brasil. MAIC, SPILTN, 1913: 10), referentes ao ano de
1912, mencionam explicitamente as correrias promovidas por caucheiros peruanos con-
tra os Kaxinawá no alto rio Envira, os constantes conflitos armados entre os Kaxinawá e
outros grupos indígenas que ali viviam e, inclusive, a oposição interposta pelos patrões
à visita que Máximo Linhares pretendia fazer às malocas no rio Jaminauá. Essas infor-
mações, cabe lembrar, não constariam, contudo, no relatório do próprio Linhares
(1913). Nenhum desses relatórios, por sua vez, mencionaria a presença e atuação de Fe-
lizardo nessa região, quem, fazia pouco mais de dois anos, desenvolvia ações condizen-
tes com algumas das principais expectativas da Inspetoria quanto à atuação dos delega-
249
dos, seus representantes locais, dentre elas, a "proteção" dos índios contra as "correrias"
e a "pacificação" de suas relações com os "civilizados".
Parece factível pensar que para os patrões que serviram como cicerones de Máxi-
mo Linhares, e depois acabariam nomeados como delegados do órgão, pode ter sido es-
tratégico não informar ao ajudante sobre as atividades de Felizardo, e, ao contrário, de-
negrir seus métodos de trabalho, de maneira a afastá-lo como potencial concorrente ao
reconhecimento e às prebendas do SPILTN. Assim, procederia novamente Raimundo
Prado quando da visita de Felizardo à sede da Inspetoria, possivelmente preocupado
com os desdobramentos que o seu reconhecimento oficial poderiam trazer no alto rio
Envira, ao fortalecer seu empreendimento na produção de caucho, sua ascendência so-
bre os Kaxinawá, então uma importante fonte de mão de obra, e suas relações com a
Nicolaus & Cia, casa aviadora em expansão na região em que os Prado, como donos de
seringais e casa comercial, tinham seus próprios interesses.
Como fruto de uma iniciativa própria, na qual a presença dos Kaxinawá, a defesa
por eles feita daqueles que consideravam "seu protetor" (que deles "cuidava" e "tomava
de conta") e as demandas externalizadas ao Inspetor João Amora, somadas ao respaldo
oferecido pelo representante da Nicolaus & Cia, Felizardo acabaria nomeado como
"Delegado dos Índios do Rio Envira". Não receberia, todavia, qualquer apoio posterior
do SPILTN ou, como almejava, remuneração por seus serviços, situação que se mante-
ria nos anos seguintes, na gestão do sucessor de Amora, o Inspetor Bento Martins Perei-
ra de Lemos.
Felizardo esclarece ter, em várias ocasiões, procurado, por meios diversos, obter
esclarecimentos da Inspetoria sobre essa situação: "Estive no Acre até 1955 e nunca re-
cebi nada do meu emprego. Tanto escrevi, telegrafei e nada de resposta. Nunca fui de-
mitido e nunca sai da minha posição" (Cerqueira, 1958: 114)
328
. Em outro trecho de seu
relatório, ao comentar que "sua nomeação e sua diárias haviam ficado apenas nos li-
vros", Felizardo teceria críticas ao SPILTN, pelos elevados gastos anuais e a concentra-
ção dos recursos nas sedes do órgão nas capitais, "enquanto os índios estão nos altos ri-
os, onde as benções das Inspetorias não os atingem (...) (1958: 181).
328
A mesma afirmação fora feita por Felizardo em setembro de 1955, quando recorreu ao deputado Jo
Guiomard Santos para solicitar seu auxílio para obter uma pensão. Na carta em que se apresenta e rela-
ciona os documentos apensados para comprovar seus "serviços especializados como catequista de índios",
Felizardo reafirma ter sido nomeado pelo SPILTN: "Em 1914, achando-me financeiramente mal, estive
em Manaus, Estado do Amazonas, e depois de entendimento no mês de março com o inspetor dos índios
Dr. João Amora, esse nomeou-me delegado dos índios no Rio Envira, com uma diária de Cr$ 10,00, mas
nunca recebi nenhuma importância. Julguei-me sempre em tal função, pois nunca fui demitido" (Diário
do Congresso Nacional, 1956: 12238).
250
Em seu relatório, Felizardo nenhuma referência faz às suas atividades no alto En-
vira de 1914 até meados de 1917. Comenta apenas ter continuado a morar no rio Furna-
nha, cercado por todos os lados de índios, "que não lhe davam descanso". Seus empre-
endimentos teriam continuidade, a partir de então, nos altos rios Jordão e Tarauacá, no
bojo de iniciativas patrocinadas por "particulares", para, junto com os Kaxinawá, "poli-
ciar" a fronteira, evitando que índios tidos como "selvagens" continuassem a roubar e a
matar seringueiros e a prejudicar a produção de borracha nos seringais.
Contratos com os patrões no Alto Tarauacá: "um desmentido negativo"
Em fevereiro de 1917, o Jornal Official noticiou que o Prefeito José Thomaz da
Cunha Vasconcellos preparava-se, ainda sem data definida, para iniciar uma "já anunci-
ada" viagem ao alto rio Tarauacá, de onde pretendia seguir para o rio Murú e retornar à
Vila Seabra
329
. Além de possibilitar um reconhecimento da maior parte da extensão ter-
ritorial do departamento, visando mapear as necessidades prioritárias para sua adminis-
tração, a viagem tinha por objetivo fundar a Vila Jordão, no entroncamento dos rios Jor-
dão e Tarauacá, e ali estabelecer uma delegacia auxiliar e uma escola pública. Outro
"assunto importante" que, segundo a matéria, motivava o deslocamento do prefeito ao
Alto Tarauaera "a pacificação dos índios e a garantia dos proprietários contra as
suas sanguinárias investidas". Nesse sentido, era intenção do Prefeito "ouvir os interes-
sados para assentar as medidas mais próprias e efficazes à terminação do estado de
sobressalto em que vive a população seringueira daque’les logares". Informações sobre
se essa viagem aconteceu, e os resultados que dela advieram, não chegaram a ser divul-
gadas em matérias nos jornais de Vila Seabra nos meses seguintes.
O anúncio da viagem do prefeito de Tarauacá à Vila Jordão ocorreu três meses
após a breve passagem do Inspetor do SPILTN Bento Martins Pereira de Lemos pela
sede do departamento, resultado de seguidas demandas e gestões feitas pelos patrões e
os comerciantes do alto Tarauacá junto à prefeitura, à diretoria do órgão indigenista, ao
MAIC e à Presidência da República. Face ao fracasso da principal proposta então nego-
ciada por Bento de Lemos, a implantação de um "posto permanente de pacificação", e
apesar da recente nomeação de dois "delegados de índios", os patrões continuavam a
demandar apoio e recursos financeiros da prefeitura para, "por conta própria", "conter"
os ataques e mortes promovidas pelos índios, por meio do recrutamento de atores com
329
"Viagem pelo Tarauacá e Murú". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano II, Nº 44, 11/2/1917,
p. 3.
251
reconhecidas ações de "catequese", que, com o auxílio de índios "mansos", tentariam a
"pacificação" dos índios.
Em junho de 1917, Felizardo receberia carta assinada por sete seringalistas
330
dos
rios Tarauacá, Jordão e D'Ouro
331
, solicitando seus serviços para "acomodar" os "indo-
máveis e ferozes" índios conhecidos por "Papavô". Assim Felizardo relata sua avaliação
sobre os processos que haviam resultado nessa convocação:
"
Quando nada mais esperava, chega uma carta
(...) chamando-me para atendê-los
relativamente a índios que tanto estavam danificando os seringueiros nacionais nos fa-
bricos da goma elástica. Quando já não podiam mais resolver os ataques dos índios, e as
correrias não davam mais sucessos, recorriam a Felizardo, Pai da acomodação. (...)
A-
chavam-se prejudicados nos seus fabricos de goma elástica, fizeram então apelos
ao Sr. Prefeito de Tarauacá, pedindo vênia de misericórdia para tão aflituosa si-
tuação. Em resposta o Prefeito disse, Eu nada posso agir com relação a índios,
pois eu não posso retirar a polícia da cidade para procurar índios nas matas.
Mas, se houver alguém que disponha de habilidades e conhecimentos que possa
amenizar o caso, eu me proponho uma garantia
"
(Cerqueira, 1958: 115-6)
332
.
À diferença dos discursos que permeavam tanto os documentos enviados a dife-
rentes órgãos do governo federal como várias das matérias publicadas na imprensa de
Vila Seabra, nos quais os seringalistas colocavam, a si próprios e aos seringueiros, como
vítimas da "selvageria" e dos prejuízos financeiros causados pelos ataques dos indíge-
nas, Felizardo destaca outro aspecto desse mesmo problema. As iniciativas dos seringa-
listas, segundo ele, não haviam estado restritas à busca de "garantia dos poderes públi-
cos" ou à demanda por apoio a ações que, por "conta própria", "fazendo o que possível
330
Conforme discrimina Felizardo (Cerqueira, 1958: 116), eram os seguintes patrões que conjuntamente
haviam se proposto a custear sua vinda e a dos Kaxinawá para o rio Tarauacá e assinado a carta endossa-
da pelo Prefeito Cunha Vasconcellos: João Dias da Costa (Seretama, alto rio Tarauacá); Antonio Zachari-
as de Mesquita (Nova Minas, alto Tarauacá); Victorino Prado (Itamaracá, rio D’Ouro); Raimundo Costa
Mello (Transual, alto rio Jordão); José Felício Maia e Tenente Coronel José Xavier Maia (Revisão, alto
rio Jordão); e Amsílio Sampaio. Entre parênteses constam os seringais dos quais esses patrões eram donos
ou que movimentavam, e os rios onde estavam situados. Essas informações foram compiladas a partir de
Brasil. MJ. Prefeitura de Tarauacá, 1914; Cerqueira, 1958; Castello Branco, 1961; e Pereira Neto, 1999.
Dentre os signatários da carta consta um membro da família Prado, parente do "delegado auxiliar dos ín-
dios do rio Envira" nomeado pelo Ajudante Máximo Linhares, em início de 1912. Além do Itamaracá, em
1917, Victorino Prado movimentava o seringal Iracema, no alto Tarauacá, e sua família era proprietária
do seringal Califórnia, no alto Envira.
331
O rio Jordão é o principal afluente da margem esquerda do rio Tarauacá, ficando em sua foz a Vila
Jordão. O rio D’Ouro é o principal afluente da margem direita do alto rio Tarauacá, e sua foz está situada
a três dias de subida, de barco, da Vila Jordão. Nos Anexos, o Mapa 6, excerto do croquis do padre Taste-
vin, mostra a localização aproximada dos seringais distribuídos no alto rio Tarauacá, acima da Vila Jor-
dão, e no rio Jordão.
332
O argumento utilizado por Cunha Vasconcellos torna a expor a fragilidade da iniciativa do Inspetor
Bento de Lemos, na tentativa de institucionalizar o SPILTN no âmbito local, ao nomear, em novembro de
1916, dois delegados honorários do Serviço radicados em Vila Seabra. Cabe lembrar que um desses dele-
gados era o 2º Tenente de Artilharia Eugênio Augusto Terral, então Capitão Comandante da "Companhia
Regional de Segurança", força militar jurisdicionada ao prefeito, cuja principal atribuição era o policia-
mento urbano da Vila.
252
fosse", resultassem na "contenção" e na "pacificação" dos Papavô. Desde a abertura dos
seringais no alto rio Tarauacá, as iniciativas dos patrões haviam se restringido à realiza-
ção de "correrias" e expedições punitivas, fato, aliás, denunciado por Bento Pereira de
Lemos em sua resposta às acusações sobre a inoperância da Inspetoria do SPILTN em
viabilizar soluções para o "problema social" vigente no Alto Tarauacá. Era num mo-
mento em que a crise na economia da borracha começava a ganhar monta, com o êxodo
de considerável quantidade de seringueiros dos altos rios, que os ataques dos índios
"selvagens" representavam prejuízos mais significativos, com a queda da produção lo-
grada em seguidas safras e a morte de fregueses que dificilmente poderiam ser substitu-
ídos pela importação de novas levas de nordestinos ou por sua arregimentação em ou-
tros seringais.
Desiludido com a perspectiva de receber qualquer remuneração como "Delegado
dos Índios do Rio Envira", ou apoio do SPILTN para suas atividades de "catequese",
Felizardo diz ter decidido mudar-se do rio Envira com "seus Kaxinawá", devido aos pa-
trões do Alto Tarauacá terem feito a "promessa de haver tudo a mais farta abundância"
(Cerqueira, 1958: 116). Em seu relatório, informa ter firmado um "contrato" de 20 con-
tos de réis com esses proprietários, para "pacificar os índios e cessar as hostilidades que
eram comuns nos seringais".
Dois "instrumentos particulares de locação de serviços", assinados em junho de
1917, constam dentre a documentação encaminhada por Felizardo ao Deputado José
Guiomard dos Santos em 1955, como comprovante de seus serviços como "catequista
de índios": um com a Nascimento & Companhia e outro com o seringalista João Dias da
Costa. Ambos foram assinados por Felizardo, como "locador", os respectivos seringalis-
tas, como "locatários", e por duas testemunhas, foram selados com "estampilhas fede-
rais", previam uma duração de quatro anos e estabeleciam os serviços a serem prestados
por Felizardo, caracterizado como "catequizador de índios", suas formas de remunera-
ção, as obrigações dos patrões e as penalidades legais, cabíveis a ambas as partes, em
caso de não cumprimento, sem causa justa, dos termos acordados (Diário do Congresso
Nacional, 1956: 12239).
O principal compromisso assumido por Felizardo em ambos os "contratos" era
empenhar seus serviços para evitar que os índios "selvagens" continuassem a saquear os
seringais e a "prejudicar" a produção de borracha. O documento assinado com João Dias
da Costa explicita, por sua vez, que os Kaxinawá trabalhariam como "auxiliares" de Fe-
lizardo nessa atividade:
253
"Eu, Felizardo Avelino Cerqueira, me comprometo e obrigo durante o prazo de
quatro anos (...) a guardar os seringaes de propriedade do locatário (...) contra
os assaltos dos índios que infestam os mesmos seringaes, empregando para este
fim os meios que a emergência permitir, tendo como meus auxiliares os índios
mansos da tribu cachinoás, de forma que o locatário João Dias da Costa possa
tirar seus fabricos de goma elástica sem dano nem temor dos índios salteadores
(...)" (Diário do Congresso Nacional, 1956: 12239).
Na vigência desse último contrato, Felizardo teria direito a fazer uso de seis estradas de
seringa, "livres de arrendamento", a "título de gratificação", e a aviar-se "diretamente
com os patrões da praça" com os quais João Dias da Costa mantivesse relações comer-
ciais
333
.
A 21 de junho de 1917, acompanhados por quatro homens mandados pelos pro-
prietários, Felizardo e os Kaxinawá, "335 pessoas, inclusive as crianças", partiriam do
rio Jaminauá, no alto rio Envira, para o Novas Minas, último seringal das cabeceiras do
rio Tarauacá, de propriedade de Antonio Zacharias de Mesquita (Cerqueira, 1958: 117).
Rapidamente constatariam, segundo Felizardo, que as promessas nas quais se ba-
seara sua decisão de mudar-se para o alto Tarauacá junto com os Kaxinawá tratavam-se
de "um desmentido negativo" (1958: 116), dado que os compromissos firmados em con-
trato seriam desrespeitados pelos seringalistas:
"Fomos primeiro tratar de roçados e de toda qualidade de plantação, casas e ca-
çadas. A falta de numerário e manutenção foram de amargar. Os homens que tu-
do prometeram, tudo faltaram e não tinha onde buscar. Passamos fome até che-
gar o milho. Seis meses foram de fome terrível. Trezentas e tantas pessoas para
comer. Ninguém queira saber o que passamos" (1958: 115).
Ao rememorar essa mudança, conforme ouvira seu pai Chico Curumim contá-la,
Romão Sales também fez referência aos momentos de dificuldade enfrentados pelas fa-
mílias Kaxinawá ao chegarem, segundo ele, a São Paulo, última colocação do rio Ta-
rauacá. Após comunicar ao morador, seu Amâncio, que trouxera "sua gente", que estava
na mata "passando necessidade", sem qualquer "assistência" dos patrões, Felizardo en-
traria num acordo para que os Kaxinawá comessem parte dos roçados maduros existen-
333
O contrato assinado com a Nascimento & Cia., no qual constam como testemunhas Joaquim Zacharias
de Mesquita e José Joaquim do Nascimento, tem conteúdo mais reduzido, ficando Felizardo obrigado a
prestar "os serviços de sua profissão" nos seringais Itamaracá e Nova Minas, de propriedade daquela fir-
ma. O contrato não estipula qualquer forma de gratificação adicional, o direito de Felizardo se aviar junto
a outros comerciantes e nem faz qualquer alusão à participação dos Kaxinawá. Previa remuneração total
de dois contos de reis, a ser paga em duas parcelas, nos dias 31 de março de 1918 e 1919. O contrato com
João Dias da Costa, por sua vez, estabelecia remuneração total de dez contos de reis, a serem pagos em
parcelas iguais, de dois contos e meio, a 31 de março de cada ano. Ambos estabeleciam as penalidades
cabíveis na lei que então regia as locações de serviços, nos casos de Felizardo abandonar o trabalho ou
dos patrões dispensarem seus serviços antes dos prazos previstos para o término dos contratos (Diário do
Congresso Nacional, 1956: 12239).
254
tes em sua colocação, assegurando, como contrapartida, que os índios ali permaneceri-
am trabalhando até plantar novos roçados (Romão Sales Kaxinawá, Aldeia Chico Cu-
rumim, 2004)
334
.
A exemplo do que fora esboçado, sem qualquer desdobramento posterior, em pelo
menos duas oportunidades nos anos anteriores, a convocação de Felizardo Cerqueira
implicou no reconhecimento, pelo poder público e pelos seringalistas, de sua trajetória
como "catequizador de índios" e dos resultados de suas ações anteriores para "pacificar"
relações entre indígenas e "civilizados". Neste caso específico, à diferença dos serviços
prestados a diferentes patrões no alto Envira, a relação de trabalho seria formalizada por
meio de "contratos" com Felizardo, e, por meio dele, com os Kaxinawá, reconhecidos
como "auxiliares" e índios "mansos", cuja mão de obra seria também considerada fun-
damental numa iniciativa destinada a garantir a "segurança" dos seringueiros e a viabili-
dade da empresa seringalista nessa região.
À semelhança de outras iniciativas anteriormente vislumbradas pelos patrões do
alto Tarauacá, esta também acabaria abortada antes mesmo de começar: desta vez, não
pela ausência de respaldo ou de recursos oficiais, ou pela dificuldade de mobilizar "ca-
tequistas" com as necessárias habilidades e conhecimentos, mas sim pelo não cumpri-
mento das obrigações explicitadas em contratos, especialmente o pagamento de Felizar-
do e a assistência prometida às famílias Kaxinawá. Após anos de pressionar os governos
federal e departamental para a concertização de políticas e ações que garantissem uma
solução definitiva para os problemas causados pelos ataques dos índios "selvagens", a
maioria dos patrões do alto Tarauacá deixaria de cumprir sua parte, com a justificativa
das dificuldades financeiras que enfrentavam devido às sucessivas quedas nos preços da
borracha e na produção de seus seringais.
334
Numa outra entrevista, Romão reproduziu o diálogo entre Felizardo e Amâncio, reafirmando os termos
da combinação então feita: "Seu Amâncio, eu vim aqui com minha gente. O senhor não tem comida aqui?
O senhor tem muita roça". "Tenho sim, senhor. Eu tenho três roçados. A roça está toda boa de comer".
"Eu quero que o senhor me arrume menos um roçado". "Taí, querendo escolher, pode ficar com tudo. Es-
tá aí a roça". "Não, senhor, eu vou ficar com dois, dois roçados. Pro senhor fica um". Pros Kaxinawá ele
falou: "Agora nós vamos ficar aqui trabalhando, pra pagar essa roça . Vamos botar roçado, plantar ro-
ça, do mesmo tanto que vocês estão comendo". Aí, eles ficaram" (Romão Sales Kaxinawá, Aldeia Boa
Vista, 2005). São Paulo constituía na realidade uma colocação, e não um seringal. Sem qualquer registro
em cartório, permaneceu desde início do século na posse de três gerações de uma única família, os Alves
de Oliveira, até ser incorporada, em 2001, à Terra Indígena Alto Tarauacá, então declarada por portaria
ministerial para o uso permanente de grupos de "índios isolados", como resultado de trabalho de identifi-
cação iniciado pela FUNAI cinco anos antes (Pereira Neto, 1998. Processo Funai, 1941/92: 354).
255
Índios "selvagens", os chamados Papavô
Em início de 1918, Felizardo seria procurado por José Xavier Maia, proprietário
do seringal Revisão, um dos principais articuladores das demandas dos seringalistas nos
anos anteriores e emissário, em nome do comércio e dos patrões do Alto Tarauacá, nas
gestões realizadas junto à prefeitura e ao governo federal. Com ele, estabeleceria acordo
verbal com a mesma finalidade prevista nos contratos assinados em meados do ano an-
terior: "dar segurança" aos seus fregueses contra os saques e mortes promovidos pelos
"Papavô" e garantir a produção de borracha de suas propriedades (Cerqueira, 1958:
116).
O juiz federal e historiador Castello Branco (1961: 220) relaciona José Maia como
dono do Revisão em início do século passado
335
, ressaltando que os "Amauacas", ín-
dios "moradores do Alto Juruá peruano", sempre invadiam, "depredando e matando",
essa "última feitoria do rio Jordão". Em 1902, quando trabalhava com seu irmão como
"regatão" no rio Tarauacá, trocando mercadorias por borracha e caucho, o paraibano Al-
fredo Lustosa Cabral subiu o rio Jordão até Revisão, a pé, sozinho, armado com um rifle
e 200 balas, em "zona infestada por índios", para cobrar o débito de um seringueiro.
Dormiu na barraca de dois cearenses na primeira noite, participou de uma festa na se-
gunda noite, um domingo, e chegou ao seu destino na tarde do terceiro dia. Surpreso pe-
lo visitante ter se aventurado só, José Maia informou que tinham por costume sempre
andar pelo menos em dois, bem "municiados", para não serem "tragados pelos caboclos
a qualquer momento". Cabral (1984: 101) assim descreve a situação então vivida pelo
dono do Revisão:
"José Maia não demonstrava ser um homem fatigado, vencido pelas tormentas da
luta incessante em que laborava diariamente. Pelo contrário, era um desses indi-
víduos que nada temem nem desfalecem ante o perigo e os revezes da sorte. Com-
prara a propriedade longínqua e estava, dois anos, desbravando-a com os
seus vinte e tantos homens cearenses, entre a vida e a morte, contra o ameríndio
sagaz e belicoso, repelindo-o a bala a todo momento. Persistia e não desanimava
na dupla ânsia de arranjar os cobres e voltar confortado, um dia, ao torrão na-
tal".
335
Registro encontrado no Cartório de Imóveis de Tarauacá, referente à venda do Revisão, em começo
dos anos 1950, dá conta que o seringal tinha 60 estradas de seringa, e confrontava-se a sul, com as nas-
centes do rio Jordão (na realidade com o traçado da fronteira Brasil-Peru, incluindo todas essas nascen-
tes). A oeste e a leste, confrontava-se, parcialmente, com duas "explorações" do próprio José Xavier Mai-
a, respectivamente, no igarapé Cazuza, afluente da margem direita do alto rio Breu, e no igarapé "Formo-
so", afluente da margem esquerda do rio Tarauacá. (CRI Tarauacá. Livro 3F, Nº de Ordem 1024, fl. 4v-
5).
256
Desde a consolidação da ocupação brasileira no alto rio Tarauacá, com a implan-
tação dos seringais e a importação de trabalhadores nordestinos, os conflitos com gru-
pos indígenas tidos como "selvagens" haviam sido uma constante nessa região
336
. A em-
presa seringalista ali funcionou de forma especializada, dedicada quase que inteiramente
à produção de borracha
337
. A crise na economia da borracha, em início da década de
1910, não modificara essa situação de forma significativa, apesar de alguns patrões te-
rem iniciado incipientes criações de gado e incrementado as atividades agrícolas. Ape-
sar de alterações terem ocorrido nas redes comerciais que ligavam as casas aviadoras
aos comerciantes e aos seringalistas, resultando numa redução do crédito e numa maior
"carestia" de mercadorias nos seringais, o aviamento manteve-se como instituição a re-
gular as relações entre patrões e fregueses
338
.
336
Segundo o padre Tastevin (1926: 47), os "exploradores" brasileiros teriam chegado à foz do rio Jordão
em 1900. Três anos depois procediam com a abertura do último seringal do rio Tarauacá, Nova Minas, e
com a "conquista" do rio D'Ouro, seu afluente da margem direita, após vários embates contra os Konta-
nawa e os Satanawa.
337
A partir de 1905, o movimento comercial no Alto Tarauacá passara a ser controlado por Luiz Francis-
co de Melo, comerciante e sócio da Melo & Cia, casa aviadora de Belém, proprietária de cerca de 70 se-
ringais no Alto Juruá desde a década anterior. Após participar de forma decisiva do Fogo do Amônia, em
1904, Melo partira das cabeceiras do rio Tejo, levando um barco, mais de uma centena de homens e mer-
cadorias, varou por terra para o Alto Tarauacá, onde se tornou proprietário de vários seringais, ali e no rio
Jordão (A Tribuna, Rio Branco, 25/9/1997, pg. 12). Até o final da primeira década do século passado, a
propriedade de um conjunto de onze seringais no alto Tarauacá (incluindo o rio D'Ouro) e oito no rio Jor-
dão estava concentrada em mãos de um número restrito de seringalistas, alguns responsáveis pelas pri-
meiras "explorações" e outros chegados pouco depois (Castello Branco, 1961: 217-20; Araújo, 2003:
157). Na foz do Jordão, em terras do seringal Duas Nações, pertencente ao seu irmão José Felício de Me-
lo e ao peruano Barnabé Saavedra, funcionava a casa comercial de Luiz Francisco de Melo. Por meio de
sociedades e relações comerciais com seringalistas de menor porte, Melo tornar-se-ia o principal aviador
de praticamente todos os seringais nos rios Tarauacá e Jordão (Araújo, 2003: 144-45; 147), canalizando
anualmente entre 70 e 80 toneladas de borracha (ibid, 2003: 144; Pereira Neto, 1999: 930).
338
A crise implicou, ainda, na transferência de certas propriedades a seringalistas mais capitalizados ou a
casas aviadoras, como foi o caso da Semper & Cia, de Manaus, no rio Jordão e no alto Tarauacá. Neste
último rio, a morte de Luiz Francisco de Melo, em meados da década de 1910, resultou na venda de al-
guns de seus seringais e na administração dos restantes, dentre eles, o Seretama, por João Dias da Costa,
quem, até 1919, desempenharia o papel de tutor de seus dois únicos herdeiros, os menores Hilarino e Hi-
bernon Alves de Melo. As dificuldades financeiras enfrentadas pelos seringalistas, conforme já sugerido,
podem ter sido causa para o não cumprimento do contrato estabelecido com Felizardo Cerqueira. A casa
comercial gerenciada por João Dias da Costa entraria em liquidação em maio de 1919, mesmo mês em
que um dos herdeiros de Francisco de Melo abriu a firma Hibernon Alves de Melo. (A Reforma, Cidade
Seabra, Ano II, Nº 54, 2/11/1919 ["Coluna Livre"], pg. 3). Registrado depois em nome da esposa de Luiz
Francisco de Melo, o Seretama seria oficialmente repassado aos dois herdeiros, que o dividiriam em qua-
tro seringais: o Boca de Pedra e o Alegria ficaram com Hibernon e o Seretama e o Cachoeira com seu ir-
mão Hilarino. Estas propriedades seriam depois repassadas aos seus respectivos herdeiros, ainda que,
formalmente, continuassem registradas como um único seringal, o Seretama (Pereira Neto, 1999. Proces-
so Funai, 1941/92: 354-55). Todos esses seringais permaneceriam em mãos da família Melo por pouco
mais de 90 anos, período em que exerceram atividades comerciais no Alto Tarauacá e mantiveram em
funcionamento lojas, tanto na Vila Jordão como na sede do Município de Tarauacá, e mais recentemente
assumiram cargos eletivos nas prefeiturs desses dois municípios. Aqueles "quatro" seringais passariam a
fazer parte da Terra Indígena Alto Tarauacá a partir de 2001, quando de sua declaração por portaria mi-
nisterial.
257
Até meados dos anos de 1910, portanto, os principais obstáculos enfrentados pe-
los seringalistas para garantir uma regularidade na produção de borracha nos altos rios
Tarauacá e Jordão não haviam sido as efêmeras atividades dos caucheiros peruanos, a
ausência de linhas regulares de navegação, o alto custo dos fretes e das mercadorias ou,
com o agravamento da crise, as vidas com as casas aviadoras, a dificuldade crescente
de importar ou manter os seringueiros e a concorrência mais constante e desembaraçada
dos regatões. Ao contrário do que fora previsto nos escritos dos engenheiros Villaneuva
(1902) e Hassel (1905), sobre o eminente desaparecimento dos indígenas nessa região,
em função da inexorável "limpeza étnica" promovida pelos caucheiros nos primeiros
anos do século XX, das doenças, da escravidão e dos deslocamentos forçados, o princi-
pal obstáculo com o qual se defrontavam os patrões e os comerciantes continuava a ser
os ataques, roubos e mortes promovidas por grupos indígenas vistos como "selvagens",
os quais haviam logrado manter suas habitações em zonas pouco exploradas e inclusive
em território peruano.
Nenhuma iniciativa fora promovida pelos seringalistas nessa região para a "pacifi-
cação" desses indígenas e para a mobilização de sua mão de obra. Desde a implantação
dos seringais, ao contrário, as "correrias" haviam constituído a principal prática dos pa-
trões, estratégia que poucos resultados haviam trazido no sentido de garantir "seguran-
ça" aos fregueses e evitar periódicas perdas nas safras de borracha. Segundo calculavam
os patrões do rio Jordão, os índios que denominavam "Papavô" haviam, de 1907 a 1917,
matado 177 pessoas, seringueiros e seus familiares, na ampla região entre o rio Progres-
so, afluente da margem esquerda do rio Envira, e os afluentes da direita do rio Juruá
(Breu, Caipora, São João e Tejo), abrangendo as cabeceiras dos rios D'Ouro, Tarauacá,
Jordão, além de terem roubado uma guarnição militar peruana no Alto Juruá, de onde
haviam carregado rifles e inclusive sabres (Cerqueira, 1958: 119).
Após viajar pelos altos rios Tarauacá e Jordão em 1924, o padre Tastevin (1926)
afirmaria: "Les Indiens du Tarauacá doivent se diviser en deux groupes: les apprivoisés
et les sauvages". Tratando destes últimos, cuja população então estimou em cerca de
300 índios, o padre relacionaria vários grupos, todos falantes de línguas Pano, vivendo
nos igarapés Matapá (ou do Bernardo) e Laurita (ou dos Papavô), ambos afluentes do
alto Jordão, único rio onde estariam ainda presentes nas "águas do Tarauacá"
339
. No
339
Nos Anexos, o Mapa 6, excerto do croquis desenhado pelo próprio Tastevin (1926) após essa viagem,
apresenta a localização desses grupos "selvagens", cujos territórios estavam então distribuídos acima dos
últimos seringais, ao longo da fronteira internacional e no território peruano.
258
Matapá, menciona os Nehenawa, vindos dos afluentes da margem esquerda do rio Envi-
ra, onde bom número deles fora massacrado em 1920 numa "correria" feita por perua-
nos e de onde depois saíram "caçados" pelos Kontanawa e os Marinawa, "também sel-
vagens", e pelos "Machonawa". No Laurita, por sua vez, faz referência aos "Yumbana-
wa" (Jaminawa) e aos "Chenenawa" (Shanenawa) (Tastevin, 1926: 49)
340
.
A listagem feita por Tastevin dos índios "selvagens" que, à época de sua viagem
ao Jordão, habitavam nos afluentes alto curso desse rio, apesar de não ter sido a primei-
ra, suscita questões relevantes, sobre quem seriam os assim chamados "Papavô" e sobre
como estes eram representados por uma diversidade de atores, tanto indígenas como
"civilizados".
A existência, a história das relações de confronto e as "características inatas" des-
ses grupos foram sempre afirmadas e contadas, desde a década de 1900, por "outros". O
grosso das informações hoje disponíveis, especialmente aquelas produzidas após perío-
do inicial das "correrias", são histórias contadas por (ou baseadas em depoimentos de)
seringalistas, seringueiros, indígenas e outros atores, moradores de seringais onde a pre-
sença dos índios "selvagens", ou "brabos", era, ao mesmo tempo, marcada pela proxi-
midade e a distância, e suas incursões eram via de regra concebidas como ameaça à "se-
gurança", ao trabalho produtivo e à "civilização" dos seringais. Apesar de recheadas de
refinados saberes de cunho local, esses relatos são invariavelmente carregados de forte
carga emocional e de pesados preconceitos, originados de tensos encontros fortuitos,
bem como de um longo histórico de violentos conflitos armados, que muitas vezes re-
sultaram em mortes, vividos por aqueles que as relatam, ou das quais foram vítimas seus
parentes, vizinhos e conhecidos.
Algumas das informações relatadas por Tastevin, por exemplo, advêm de relatos
feitos por índias pegas em "correrias" e transformadas em esposas de seringueiros, as-
sim como de diálogos com Felizardo Cerqueira e alguns de "seus" Kaxinawá, como ele
deixa entendido. Nem por isso, contudo, essas informações deixam de estarem permea-
das por hipóteses, suposições, incongruências e generalizações. Por outro lado, as de-
nominações de muitos desses grupos indígenas, "selvagens", foram quase sempre a eles
340
Tastevin (1925), com base em informações produzidas em diálogos com seringueiros e indígenas, re-
laciona outra extensa lista de grupos Huni Kui, falantes de línguas Pano, que então habitavam no alto rio
Murú e em seus divisores de água com os rios Envira e Tarauacá. Dentre eles, cita, além dos Jaminawa
(os "fabricantes de machados"), os "Hsu-naua" (rãs), os "Paranaua" ("enganadores", ou "preparadores de
emboscadas"), os "Bastanaua" ("filhos da floresta", que "se alimentavam, como Adão no paraíso terrestre,
do que lhes oferecia a natureza e daquilo que podiam roubar dos seus vizinhos trabalhadores"), os "Kunu-
naua" (comedores de cogumelos) e os "Tuchinaua" (tuchi, amarelo; tóchi, periquito verde).
259
atribuídas, por outros indígenas, alguns deles seus tradicionais inimigos, e depois pelos
"civilizados", não sendo reconhecidas por aqueles assim denominados, como também
explicita Tastevin. Alguns indígenas, capturados em "correrias", costumavam negar os
nomes a eles impostos e procuravam adotar outras denominações, freqüentemente como
estratégia para livrar-se de identidades estigmatizadas, ocultar sua real origem e dificul-
tar novas iniciativas dos "civilizados" contra seus parentes. Nos documentos escritos,
por sua vez, as denominações atribuídas a vários grupos aparecem, com freqüência, de
forma trocada e/ou associados a outros grupos.
Em meados dos anos de 1900, uma situação semelhante ganhara configuração nos
rios Gregório, Liberdade e no médio rio Tarauacá, quando nomes como Katukina e Ka-
xinawá foram atribuídos a, e incorporados por, uma diversidade de grupos, falantes de
línguas Pano. Este fenômeno veio a se repetir nas cabeceiras dos rios Tarauacá e Jordão,
uma década depois, quando "Papavô" passou a ser atribuído, de forma genérica, a um
amplo conjunto de grupos, considerados "silvícolas", "selvagens" ou "brabos", que en-
tão protagonizava ataques, saques e mortes nos seringais. "Amahuaca", uma recorrente
referência, também genérica, aos grupos "não reduzidos" ou "infieles" nos relatórios à
época produzidos por autores peruanos e estrangeiros, serviria ainda como sinônimo de
"selvagem", mas também seria adotado por índios capturados "em correrias". Por fim,
"Jaminawa" seria utilizado, à época, pelos Kaxinawá, para referir-se não aos seus
tradicionais inimigos, personagens inclusive de sua mitologia, mas também, de forma
genérica, a diferentes grupos indígenas, falantes de línguas Pano, que então habitavam e
se deslocavam nos altos rios Envira, Tarauacá e Jordão, mantendo constantes relações
de conflito com os moradores dos seringais e com os caucheiros
341
.
"O seringueiro não estava interessado em distinções lingüísticas e culturais; com
uns poucos nomes batizou todas as tribus, fazendo-os recair sobre grupos completa-
mente diferentes", afirma o antropólogo Darcy Ribeiro (1977: 43), ao comentar sobre a
rapidez e a violência que caracterizaram a penetração da frente de expansão extrativista,
341
Referências às históricas contendas entre os Kaxinawá e os Jaminawa constam em Sombra, 1913; Tas-
tevin, 1925: 414; 416; e Schultz & Chiara, 1955: 197. Referida a outro contexto, o do alto rio Curanja,
onde os Kaxinawá, em busca de ferramentas, utensílios e armas, protagonizavam ataques contra os Jami-
nawa, Sharanawa e Marinawa, Keifenheim (1997: 145-46) aponta como os Kaxinawá denominavam-nos
indiferentemente como "Yaminawa", significando literalmente "os homens dos machados de metal". Nos
relatos transcritos por Montag (2002), Pudicho Torres e seus parentes também citam os Jaminawa, ao re-
ferir-se a aqueles que, em começo do século passado, intermediaram os primeiros contatos com regatões
peruanos e, novamente, em final dos anos de 1940, mediariam a retomada do contato com comerciantes
peruanos interessados em transacionar caucho e peles e couros de animais. Por sua vez, Kensinger (1965,
1967) especifica terem sido os Marinawa aqueles que, neste segundo momento, mediaram a retomada das
relações comerciais entre os Kaxinawá e os regatões peruanos.
260
seringalista e caucheira, nos rios Juruá e Purus e sobre as dificuldades que a reorganiza-
ção espacial e sociocultural imposta a esses grupos pela empresa seringalista colocou à
pesquisa etnológica.
A afirmação de Darcy Ribeiro parece refletir as práticas dos "civilizados" nos al-
tos rios Tarauacá e Jordão, devido à consolidação de certos "nomes", de cunho generali-
zante, atribuídos a uma ampla diversidade de grupos. Nessa direção, é possível afirmar
que o "etnônimo" Papavô, então de uso generalizado pelos "civilizados" nas cabeceiras
dos rios Tarauacá e Jordão, era atribuída a diferentes grupos indígenas, em sua quase to-
talidade, falantes de línguas da família Pano (Tastevin, 1926; Rivet, 1926; Aquino & I-
glesias, 1996).
É interessante notar, por outro lado, que a denominação Papavô, de uso corrente
no Alto Tarauacá, em momento algum surge nas matérias publicadas, a partir de mea-
dos dos anos de 1910, na imprensa de Vila Seabra, cujas informações advinham de rela-
tos feitos pelos seringalistas daquela região. Ora ecoando os interesses e preocupações
desses comerciantes, ora noticiando e condenando as ocorrências no Alto Tarauacá, os
jornais fariam uso de um conjunto de categorias igualmente genéricas - os aborígenes,
silvícolas, índios em estado selvático, hordas de selvagens, índios sacrílegos -, via de
regra associadas a aqueles que responsabilizavam por roubos, assassinatos, selvagerias e
inclusive por práticas de canibalismo.
Numa conjuntura em que os saques, as mortes e a paralisação da produção no alto
Tarauacá tornaram-se objeto de denúncias dos seringalistas, e em que a imprensa local
contribuiria para representá-los como componentes de um grave "problema social" con-
flagrado naquela região, a denominação Papavô tampouco seria utilizada nos documen-
tos enviados a diversos órgãos do governo federal ou nas matérias dedicadas a cobrir a
passagem do inspetor do SPILTN por Vila Seabra. Nesse contexto, uma diferenciação
inicial é construída pelo contraste entre, de um lado, os "índios semi-civilizados", por
referência a aqueles incorporados aos seringais, como o Atenas e outros nas cercani-
as, ainda que "entregues aos seus hábitos e superstições", e, de outro, os "silvícolas",
aqueles que, na região das cabeceiras, mantinham-se em hostilidade aberta com os "ci-
vilizados".
Nos documentos destinados aos órgãos do governo federal, quando da visita de
Bento de Lemos, nos quais opiniões e recomendações foram formalizadas ao SPILTN,
é a categoria genérica "índios" (às vezes referenciados a uma região específica, "do Alto
Tarauacá") aquela posta em operação pela imprensa local. Por vezes representados co-
261
mo "raça" ou "gentio", os "índios" passariam a ser considerados também como objeto
privilegiado de ações oficiais, visando sua "pacificação", "sedentarização", "catequese",
"civilização" e, inclusive, "proteção", vistas como necessárias à correção de suas "qua-
lidades inferiores", seu nomadismo, seus "hábitos indolentes", sua "aversão ao trabalho"
e de sua injustificável hostilidade contra os "civilizados".
Por fim, os documentos elaborados pelo Inspetor Bento de Lemos, ao tratar a situ-
ação conflagrada no Alto Tarauacá, também destacam e operam com a categoria "ín-
dios". Seu uso aparece referenciado tanto à categoria jurídica privilegiada no regula-
mento do SPILTN como à classificação dos indígenas elaborada pelo Tenente Alípio
Bandeira, quando chefe da Inspetoria do Amazonas e do Território do Acre, e especifi-
camente àquela "classe" dos "selvagens que haviam recebido violências dos civiliza-
dos"
342
. Assim, Bento de Lemos (1917) caracterizaria os "índios" (eventualmente os
"silvícolas") que viviam em "estado nômade", deslocados de suas malocas, devido às
"correrias" e perseguições, mas especificaria a "justa represália" como principal razão
de seus ataques aos "civilizados". O "índio" aparece também no discurso do Inspetor
como objeto da ação do órgão indigenista. Nesse contexto, a presença permanente do
SPILTN, por meio da instalação de postos indígenas, de "acordo com os métodos esta-
belecidos pelo Serviço" objetivava "pacificar" e "proteger" "índios dispersos", com sua
"localização" em terras devolutas e aptas à agricultura, longe do convívio com os "civi-
lizados", condições ideais para sua gradual educação e "civilização".
De outro lado, a recuperação de um conjunto variado de fontes, escritas e orais
permite, pelo menos em parte, dissolver as dificuldades impostas à pesquisa etnológica,
conforme apontado por Ribeiro, devido à prática dos seringueiros de atribuir categorias
étnicas de cunho generalizante, muitas vezes marcadas pelo preconceito, aos diversos
grupos indígenas com os quais se defrontavam. Essa outra démarche possibilita agregar
uma maior polifonia à situação então vigente, ao referenciar aquelas categorias étnicas
genéricas, junto com as imagens e os discursos a elas associados, aos processos políti-
cos nos quais essas atribuições impostas e a redefinição de identidades ganhavam forma
e sentido.
342
De acordo com essa classificação, os índios do Amazonas podiam ser agrupados em quatro "classes":
"a) os selvagens que não têm relações com os civilizados; b) os selvagens que já receberam violências
dos civilizados; c) os que, já estando domiciliados na civilização, formam sociedade à parte; e d) os que
vivem em inteira promiscuidade com os civilizados". Com relação a aqueles da segunda classe, conside-
rava Bandeira que "(...) têm famas de ferozes; mas de fato são apenas defensores de sua liberdade e da
honra de suas famílias. São também trabalhadores e tão moralizados quanto lhes permite sê-lo o atraso
mental em que vivem" (Brasil. MAIC, 1912: 124-25).
262
Não é pretensão aqui unificar ou dar sentido único à polifonia configurada no Alto
Tarauacá, ao oferecer veredicto final sobre quais seriam o grupo ou grupos indígenas
índios que desde os primeiros anos do século passado saqueavam casas e matavam se-
ringueiros nessa região. Mas sim de constatar a existência de uma diversidade de gru-
pos, falantes de línguas Pano, aos quais diferentes atores e em contextos diversos, atri-
buiriam a denominação de "Papavô", então representados como "selvagens" e "indomá-
veis", pelos obstáculos que fazia pelo menos uma década e meia interpunham à produ-
ção de borracha, por meio de ataques e mortes.
Após realizar "desobrigas" nos altos rios Tarauacá e Jordão no ano de 1924, Tas-
tevin (1926: 50), por exemplo, afirma:
"Les Yumbanawa sont connus des Blancs sous le nom de Papavo, qui jusqu'a à ce
jour n'a sens en aucune langue; ce pourrait être un mot pano (...) mais je n'ai pas
trouvé une seule indienne capturée qui ait su me l'interpreter. Bien plus, toutes
celles à qui on l'applique, le rejettent et ne connaissent aucun clan à qui il
revienne en propre. Ces mêmes Indiennes ou du moins quelques-unes d'entre elles
se donnaient les noms de Amahuacas, en particulier les Nisi-nawa (arbre à
écorce flexible dont on fait des cordages, des ceintures, et des lianes); d'autres se
appelaient simplesment Tyani ou Tchaninawa (les Menteurs, ou plutôt peut-être
les petis aras, maracanas, chandi); Mastanawa ou Bastanawa (les tonsurés);
Binanawa (les guèpes), Charanawa (les abeilles), Yabi ou Yambinaua (les
fabricants de haches). On prétend que ce sont les Indiens eux-mêmes qui se sont
donné ce surnom de Papavo et qu'ils ont l'habitude de changer de nom pour
dérouter leurs ennemis"
343
.
Em um texto anterior, demonstrando surpresa pelo fato de seus "informantes" não
terem "nenhuma idéia" sobre determinados grupos citados previamente na literatura a
que ele tivera acesso, e especificamente sobre os "Amahuaca", Tastevin (1925: 416) a-
firma que, a seu ver, "(...) les Amahuaca sont les mêmes que les Jaminaua (...)"
344
.
Em 1926, o lingüista Paul Rivet publicou uma breve nota no Journal de la Société
des Américanistes divulgando resultados das viagens realizadas por Tastevin, dois anos
343
Interessante notar que vários desses grupos citados por Tastevin são os mesmos, segundo Felizardo,
que viviam ou se estabeleciam temporariamente em afluentes do alto rio Envira nos anos 1910. Seriam
também citados por Azevedo (1906), Linhares (1912), Sombra (1913) e encontrados em ambos os lados
da fronteira internacional quando da demarcação promovida pela Comissão Mista na primeira metade dos
anos de 1920 (Silva, 1929; Carvalho, 1929). Alguns desses grupos, como os Mastanawa, Charanawa, Ma-
rinawa, Txaninawa e Amahuaca vivem hoje em diferentes pontos do alto rio Purus, para onde, a exemplo
de parte dos Kaxinawá, optaram por migrar a partir das décadas de 1910-1920, fugindo das "correrias"
feitas por caucheiros peruanos e por brasileiros.
344
O chefe da comissão brasileira, Antônio Alves Ferreira da Silva, que, nessa região, demarcou a frontei-
ra internacional com o Peru, no relatório relativo aos trabalhos de 1924, também reforça a suposição so-
bre a atribuição da denominação de Papavô aos Amahuaca: "Diversos affluentes do rio "Jordão" foram
explorados, acima de "Revisão" (...) o igarapé "Laurita", hoje conhecido por "Papavô", por terem nelle
habitado indios conhecidos por esse nome, mas pertencentes à tribu dos Amahuacas, quasi extincta (...)"
(Brasil. Ministério das Relações Exteriores, 1926: 360-61; Silva, 1929: 149).
263
antes, nos rios Tarauacá, Jordão e Murú
345
. A atribuição pelos "civilizados" do etnônimo
"Papavô" a diversos grupos falantes de línguas Pano, então considerados "selvagens", e
a rejeição dessa categoria por aqueles assim denominados, são destacadas, por Rivet,
como conclusões a que o padre chegara durante as suas pesquisas etnológicas:
"Il [Tastevin] a pu établir que les Yumba-nawa, font partie, avec les Nisi-nawa,
les Masta-nawa, les Neha-nawa, les Chara-nawa, les Bina-Nawa et les Amahuaka
des bassins de Jordão et du Tarauacá, d'un me groupe dénommé Papavo ou
Papaho, appelation que les indiens rejettent et qui leur á été imposée par les
civilisés, Papavo ou Papaho étant synonyme des "sauvages" ou "cruels". Ce nom
est courant dans l'Embira, le Murú et le Tarauacá" (Rivet, 1926: 394).
Depoimentos de vários Kaxinawá também indicam a existência de diferentes gru-
pos indígenas nas cabeceiras do Jordão em final da década de 1910, atribuindo-lhes di-
ferentes pertencimentos étnicos, alguns dos quais coincidentes com essas conclusões de
Tastevin. Sueiro, por exemplo, afirmou que os "índios brabos" que então atacavam em
Revisão eram Papavô, mas, perguntado do por que desse nome, respondeu: "É porque
subia nesse igarapé Papavô. Os índios andavam por ali, quando pegavam o piso,
subiam nesse igarapé". Indagado se os Papavô eram falantes de língua Pano, esclare-
ceu: "Eram nawa também. Nixinawa, tudo nawa. Eram danados, nunca quiseram a-
mansar, até agora" (Sueiro Cerqueira Sales, seringal Minas, 1994). Outra resposta a es-
sas mesmas questões foi oferecida por seu irmão Romão: "Era tribo de Jaminawa. Era
Mastanawa. Diz que é, diz que tem aquela coroa aqui na cabeça, coroado" (Romão Sa-
les, Aldeia Boa Vista, 2005). Getúlio Sales, filho de Sueiro, e principal liderança Kaxi-
nawá por quase vinte cinco anos, em entrevista concedida a Terri Valle de Aquino, tam-
bém faz menção aos históricos ataques dos "coroados" no alto rio Jordão, e à sua per-
345
Durante suas viagens pelo Juruá e seus afluentes, Tastevin realizou amplas pesquisas etnológicas e lin-
güísticas entre grupos falantes de línguas das famílias Pano, Arawak e Arawa, trabalho que ganhou ins-
trumentos metodológicos e legitimidade acadêmica a partir de sua longa parceria com Paul Rivet, lingüis-
ta e diretor do Museu do Homem, de Paris, consolidada durante a Primeira Grande Guerra, quando o pa-
dre deixou a sede da congregação em Tefé e, na condição de brigadista, serviu como enfermeiro no exér-
cito francês e como interprete no contingente português. Faulhaber (1997: 111) informa que Tastevin "Em
sua estadia em França, conheceu Paul Rivet, com quem já havia entrado em contato através do Diretor
do Museu do Pará, Sr. Hubert. Após sua volta à Amazonia, Tastevin manteve correspondência e inter-
câmbio com Rivet, confidenciando-lhe detalhes de suas descobertas e enviando, por seus intermédios, ob-
jetos arqueológicos ao Museu do Homem". Esta relação marcaria as investigações de Tastevin durante os
anos de sua segunda permanência na Amazônia, na primeira metade da década de 1920, que contaria com
subvenção do governo francês (Père Bouchad, s/d) e resultaria na produção de textos etnológicos e lin-
güísticos, estes últimos com vocabulários e análises comparativas (Tastevin & Rivet, 1921, 1919-1924,
1927/1929). De retorno à França, além de exercer suas atividades religiosas, Tastevin inauguraria, em
março de 1927, a cadeira de Etnologia no Instituto Católico de Paris, cargo que ocuparia como professor
titular por três anos e, em diversos períodos posteriores, como professor honorário (Père Bouchad, s/d).
Sobre os trabalhos etnológicosde Tastevin, e suas relações com outros etnógrafos e o campo acadêmico
da época, ver Faulhaber, 1996, 1997, 2008.
264
manência na região em décadas posteriores: "Esses índios "brabos", nós chamamos de
Jaminawa. Eles andam ainda nus, com o pau amarrado para cima no cinto de envira.
Têm cabelo grande, mas raspado no meio da cabeça, parecendo uma coroa que os pa-
dres usavam de primeiro. Por isso, muitos carius chamam eles de coroados" (Aquino &
Tenê Kaxinawá, 1987)
346
. Conforme fica evidente nestes depoimentos precedentes, os
Kaxinawá continuam, em hãtxa kuin, a chamar os "índios brabos" de Jaminawa, ainda
que esta categoria genérica seja utilizada para fazer referência a uma ampla diversidade
de povos
347
.
Em suma, é possível afirmar que, à época da chegada dos Kaxinawá e de Felizar-
do, vários grupos indígenas, então conhecidos principalmente por Papavô, não moravam
apenas nos igarapés Matapá e Laurita, conforme afirma Tastevin (1926), mas, sim, em
vários locais do alto rio Tarauacá, parte, por sua vez, de uma região mais ampla, que a-
brangia das cabeceiras do rio Breu às do Purus, e incluía considerável extensão do terri-
tório peruano. Depoimentos de vários Kaxinawá, como Sueiro, Getúlio e Agostinho
Mateus, dão conta que os igarapés citados por Tastevin, assim como o Paranã, na mar-
gem direita do alto rio Jordão, constituíam, desde essa época, principalmente cami-
nhos, utilizados por aqueles índios durante deslocamentos e fugas pelas cabeceiras do
rio Jordão. Por ser rota de passagem dos "índios brabos", o Laurita passaria gradual-
mente a ser conhecido como o igarapé "dos Papavô", ou Papavô, nome que guarda até o
presente. À diferença do afirmado por Tastevin e por Silva (1929), portanto, esses iga-
rapés não parecem ter constituído territórios ocupados ou utilizados de maneira estável
346
Tanto Villaneuva (1902: 426) como Hassel (1905: 37) fazem referência ao hábito dos Kapanawa de
rasparem a cabeça dessa forma, depilando-a totalmente ou deixando um círculo de cabelo em meio à parte
depilada na parte superior. Agostinho Manduca Mateus, morador e liderança do seringal Novo Segredo
(antigo Revisão), de 1980 a 2000, também faz menção aos "coroados", ao relatar um encontro com eles
durante uma pescaria no alto rio Jordão em 1986: "De longe, eu vi os índios. Vi uma pessoa sentada no
meio do igarapé (...) Tinha mulheres e crianças. (...) Quando ele virou, eu conheci. Era todo raspado na
cabeça. Era coroado. Tava usando a farda dele: cinturão de envira com o pau amarrado pra cima. Tam-
bém tinha envira amarrada nos braços". Em outra parte dessa entrevista, ao relatar o episódio em que,
em 1991, um Kaxinawá, Osvaldo Sereno, acabaria baleado pelos "brabos", Agostinho, reproduzindo a fa-
la de Osvaldo, faz menção aos Jaminawa. Por fim, diferenciando os "brabos brabos" dos "brabos man-
sos", estes últimos os Jaminawa que habitavam no rio Vacapistea, e ocasionalmente faziam roubos nas
colocações dos últimos seringais do Jordão, Agostinho diz: "Acho que esses (os Jaminawa "peruanos")
não são coroados, são os mansos que vêm do Peru. Os que são brabos mesmos são coroados. Ninguém
não sabe se é Mastanawa, se é Jaminawa mesmo". (Agostinho Manduca Mateus Kaxinawá, Rio Branco,
1995).
347
Keifenheim (1990: 85; 1992: 89) afirma que, nesses contextos, os Kaxinawá utilizam Jaminawa como
categoria relacional, intermediária entre eles próprios e os "nawa" (os brancos), categoria que, de forma
indivisa, agrega uma ampla diversidade de outros grupos falantes de idiomas da família lingüística Pano.
265
por aqueles grupos a partir da abertura dos seringais nessa região (Iglesias & Aquino,
1996)
348
.
Devido às "correrias" feitas por caucheiros e patrões desde a implantação da em-
presa seringalista, alguns grupos, bastante reduzidos, procuraram refúgio nas cabeceiras
e terras firmes dos rios Tarauacá e Jordão, utilizando extensões desabitadas do território
peruano. Alguns vieram a misturar-se, outros foram atacados por grupos superiores em
número ou força bélica, obrigando-se os a eles se submeter
349
. Outros preferiram per-
manecer ou estabelecer moradia no alto Juruá peruano, numa faixa de floresta situada
além dos seringais, onde o caucho fora quase totalmente esgotado (Castelo Branco,
1950: 28; Ribeiro, 1977: 27), aproveitando os meses secos do verão para fazer incursões
às colocações dos seringais. Eram alguns desses grupos que tanto moradores do Alto
Tarauacá como autores como Castello Branco (1961: 220) supunham ser oriundos e ha-
bitantes do território peruano, fazendo referência principalmente aos Amahuaca, então
distribuídos em vários afluentes da margem direita do Alto Juruá no país vizinho
350
.
Nos documentos oficiais e na imprensa de Vila Seabra, uma ampla gama de gene-
ralizações seria utilizada para fazer referência aos grupos indígenas que mantinham uma
postura de evitamento e de beligerância em relação aos moradores dos seringais. Nos
discursos dos Kaxinawá, e em textos etnológicos construídos a partir de informações
produzidas junto a outros indígenas, uma maior polifonia se configura, marcada, ao
mesmo tempo, por jogos de identidades e por denominações atribuídas a grupos dos
quais pouco conhecimento efetivo se tinha à época.
No Alto Tarauacá, todavia, a denominação Papavô permaneceria como referência
e nos discursos dos "civilizados", e inclusive dos próprios Kaxinawá, para dar conta de
348
Esses igarapés permaneceriam como rotas de trânsito nas décadas seguintes (Aquino & Tenê, 1988; I-
glesias & Aquino, 1996; Pereira Neto, 1999; Pereira Neto & Aquino, 2000). Nos últimos dez anos, com o
abandono das colocações mais distantes do seringal Revisão, em função do abandono da produção de bor-
racha e da migração de grande número de grupos familiares Kaxinawá para aldias localizadas no baixo
curso do Jordão, mais próximas à sede do Município de Jordão, tornaram a ser utilizados, dentre eles o
paranã Papavô, como territórios ocupados de forma sazonal por grupos de "índios brabos", para acampar
e realizar fartas caçadas e pescarias durante os meses de verão (Agostinho Manduca Mateus, comunica-
ção pessoal, 2005).
349
Erikson (1993: 54-5) destaca como entre os Pano esses processos ocorreram com freqüência como
desdobramentos do período inicial de contato, violento, com os invasores brancos. Como exemplo de uma
dessas estratégias de fusão adotadas pelos grupos Pano para fazer frente à depopulação, faz referência aos
Marinawa, hoje moradores do alto rio Purus, no Peru, os quais, segundo missionários que com eles vivi-
am nos anos 1960, seriam uma congregação dos restos de cerca de vinte e cinco "tribos antigas" (ibid:
54).
350
Assim como os Jaminawa eram concebidos pelos Kaxinawá, os Amahuaca eram pelos Ashaninka
(Kampa), novamente inimigos no âmbito de confrontos acirrados pela chegada e presença dos patrões
caucheiros, que, em suas incursões aos afluentes do alto rio Juruá, traziam famílias Ashaninka, usadas
como mão de obra e para garantir a "segurança" de seus trabalhadores (Mendes, 1991: 38-41).
266
uma ampla diversidade étnica, com uma categoria genérica utilizada como sinônimo de
"selvagens", índios que continuavam a constituir ameaça à "segurança" nos seringais.
Progressivamente, esse "etnônimo" passaria a ser gradualmente diluído em outras cate-
gorias, igualmente genéricas, as de índios, ou caboclos, "brabos". Estas ganhariam sen-
tido e operacionalidade quando postas em relação com as categorias, também genéricas,
de índios "catequizados", "civilizados", "domesticados" e "mansos". Sob a tutela de Fe-
lizardo Cerqueira, os Kaxinawá começariam, a partir do final da década de 1910, a ser
vistos sob essa ótica pelos seringalistas, seus fregueses e por outros atores que, anos de-
pois, visitariam o rio Jordão, dentre eles, o padre Tastevin e o chefe da Comissão Mista
Brasil-Peru que demarcaria essa fronteira internacional.
A "polícia de fronteira"
No biênio 1916-1917, vários fregueses de José Xavier Maia haviam sido mortos
pelos "Papavô" no seringal Revisão, nas cabeceiras do rio Jordão. Em final de 1917, Fe-
lizardo estabeleceria um acordo com Maia com o objetivo de evitar novos saques e mor-
tes, bem como novos prejuízos derivados da periódica paralisação da produção de bor-
racha. Os antecedentes do convite feito por Maia a Felizardo para se estabelecer com os
Kaxinawá em seu seringal foram assim explicados por Sueiro:
"O Felizardo foi trabalhar com ele. Era todo o tempo os índios atacando ali. O Zé
Maia chamou porque os brabos tinham matado um freguês dele por nome Cândi-
do. O Cândido e tinha outro, dois irmãos, que trabalhavam numa colocação. Os
índios mataram. Eram barbados, os índios tiraram o queixo do pobre para mos-
trar pros parentes deles que tinham matado cariu barbado. Por causa disso o
Maia mandou chamar" (Sueiro Cerqueira Sales, seringal Minas, rio Tarauacá,
1994)
351
.
Após sua viagem pelos altos rios Tarauacá e Jordão em 1924, o padre Tastevin
(1926: 48) também especifica os motivos que teriam levado Felizardo a se mudar com
os Kaxinawá para essa região: "(...) les propriètaires du Haut Tarauacá firent appel à
son concours pour les défendre contre les Indiens Papavos qui leur faisent chaque an-
351
Raimundo Costa Mello, proprietário do Transual, seringal limítrofe ao Revisão, relataria a Felizardo as
mortes promovidas, pouco antes, pelos "Papavô" em colocações e igarapés de diferentes seringais: "No
Seretama, eles mataram o filho do velho Correia, menino de 14 anos, quando cortava a estrada, e só qui-
seram levar a cara. Com dois meses, mataram Cocino [Roseno - MPI] e Cândido, dois irmãos, na colo-
cação Centro de Dentro; no Formoso, Manoel Figueiro; no Paraíso, Raimundo Avelino; no Novo Acre, o
Cezar; no Cipó, João Elias, duas mulheres e duas crianças" (Cerqueira, 1958: 119-20). À exceção das
mortes ocorridas no seringal Seretama e no Formoso, no alto Tarauacá, as demais haviam acontecido em
colocações do Revisão. Cabe notar que a primeira das mortes citada por Costa Mello, a do "filho do velho
Correia", é a mesma noticiada na matéria "Índios sacrílegos", publicada do Jornal Official a 22/10/1916,
poucos dias antes da chegada do inspetor do SPILTN, Bento de Lemos, à Vila Seabra.
267
née des victimes et de nombreux vols. Felizardo s’établit avec ses Indiens sur les bords
du Formoso, et de lá, à Revisão, il se trouve encore a ce jour". Um seringueiro nas-
cido em Revisão pouco após a chegada das famílias Kaxinawá, em entrevista ao antro-
pólogo Terri Valle de Aquino, estima o número de índios que então acompanhava Feli-
zardo e reafirma as razões do convite que recebera dos patrões: "Felizardo era freguês
de Ângelo Ferreira, patrão ali do seringal Cocameira. Dali ele saiu com 400 caboclos
em 1916. Eu acho que ele amansava os caboclos porque os patrões tinham interesse.
Ele veio aqui com esses Kaxi para amansar esses caboclo Papavô, caboclos que não
amansavam nunca" (Iglesias & Aquino, 1994a: 13).
Como parte do trato estabelecido para mudar-se com os Kaxinawá para o seringal
Revisão, Felizardo informa que José Maia inicialmente prometera
"alguns cuidados, relativamente às nossas necessidades de fome, pois eu não dis-
punha recursos para alimentar 335 pessoas (...). Fizemos um acordo de ele forne-
cer-nos o necessário da alimentação, em troca de serviços prestados em seus di-
versos afazeres, como seja: campo, roçados e viagens. Ficamos assim bem enten-
didos que os índios por esse sistema não iriam sofrer tanto como estavam sofren-
do" (Cerqueira, 1958: 117-18).
Segundo Romão Sales, após esse acerto com José Maia, a maior parte das famílias
Kaxinawá teria seguido para o seringal Revisão com Felizardo, enquanto outras perma-
neceram no rio Tarauacá, plantando novos roçados, conforme combinado com Amân-
cio, morador da colocação Nova Minas. Findo esse serviço, também seguiriam para Re-
visão, onde se juntaram às demais famílias ali instaladas. Segundo Romão e Sueiro, o
pai deles, Chico Curumim, seria deixado por Felizardo na colocação Aurora, no igarapé
Formoso, afluente da margem esquerda do alto rio Tarauacá, numa "exploração" do
próprio José Maia, local próximo de onde um de seus fregueses acabava de ser morto.
Inicialmente trabalhando com dois seringueiros brancos, Chico Curumim permaneceria
na Aurora por alguns anos, num ponto estratégico para os planos de José Maia e de Fe-
lizardo, pois próximo a um dos caminhos usados pelos "Papavô" em seus deslocamen-
tos pelas cabeceiras dos rios Tarauacá e Jordão
352
.
352
Pouco depois de sua chegada à Aurora, nasceriam Alfredo Sueiro Sales e Nicolau Sales, dois primeiros
filhos de Chico Curumim (Tenê) e de Maria Madalena (conhecida como "Maria Perdida", pois, ainda no
alto rio Envira, Curumim a encontrara vagando na mata vários dias após a maloca ter sofrido uma correria
feita por caucheiros e vários dos sobreviventes terem sido obrigados a correr sem rumo). A mulher que
ajudou Maria Madalena no primeiro parto, "pegando" Sueiro, foi uma peruana por nome Crismância. O
nome de Sueiro teria sido sugerido a Chico Curumim por um homem, que Sueiro consideraria seu padri-
nho de batismo, quem assim prestou homenagem a Alfredo Soeiro, representante da Semper & Cia, de
Manaus, à época proprietária de seringais no alto rio Tarauacá e no rio Jordão e principal aviadora da
maioria dos patrões locais. Sueiro calculava ter nascido em 1920. Documentos atribuindo diferentes anos
de nascimento a Sueiro seriam produzidos pouco após a sua morte, ocorrida a 12 de janeiro de 1997 na
268
Segundo Sueiro, as principais famílias que acompanharam Felizardo do rio Envira
para o rio Tarauacá e depois para o seringal Revisão, no alto rio Jordão, eram chefiadas
por Raimundo Pereira, Pedro Sereno (Siã), Raimundo Caxambu (Mekã), Maia (Ibã),
Sampaio (Kupi), Manduca Mateus (Itsairu), Biló (Shane) e Sabino (Yube), além de pe-
los "três Chicos": Francisco Vicente (Bisku), Francisco Minas (Ixã) e o próprio pai de
Sueiro, Francisco Sales (Tenê), que passariam a ser mais conhecidos, respectivamente,
por Chico Vicente, Chico Mirim e Chico Curumim
353
. Ao analisar os nomes em portu-
guês
354
destes chefes identifica-se os "patriarcas" de algumas das principais famílias ex-
tensas que constituem o povo que hoje vive em três terras indígenas no Município de
Jordão, ligadas entre si por alianças matrimoniais e de afinidade, bem como com outras
famílias extensas chegadas ao rio Jordão em outros momentos do século passado.
O acordo feito por Felizardo com José Maia estabelecia, ainda, que as famílias
Kaxinawá deveriam permanecer nas cabeceiras do rio Jordão, acima das últimas coloca-
ções ocupadas por seus fregueses nos centros, de forma a garantir-lhes "segurança", evi-
tando que os "brabos" promovessem novos roubos e mortes. Imposta pelo patrão do se-
ringal Revisão, esta condição foi assim explicada por Sueiro:
"Dentro do Jordão, o primeiro patrão dele [Felizardo] foi o Zé Maia, era o patrão
chefe. Ele não deixava índio morar mais para baixo. Para guarnecer os serin-
gueiros dele, para atalhar os brabos, para não atacarem os brancos, que estavam
aldeia Nova Empresa, na Terra Indígena Kaxinawá do Baixo Rio Jordão, local onde foi enterrado. Num
breve texto, "Pequeno relatório do finado Sueiro", o professor Kaxinawá Noberto Sales Tenê diz que seu
tio, e pai de criação, nascera em 1908, tendo falecido aos 89 anos. A Certidão de Óbito Nº 003, lavrada a
2 de abril de 1997, no Cartório de Registro Civil do 2º Distrito do Município de Jordão, com base em in-
formações fornecidas pelo mesmo professor, então vereador, Noberto Sales, também indica que Sueiro te-
ria feito sua passagem aos 89 anos. Outro professor Joaquim Paulo de Lima (Maná Kaxinawá, 1999), di-
ferentemente, afirma que Sueiro teria feito a sua passagem aos 85 anos.
353
Ouvi essas informações de Sueiro em conversa na aldeia Posto de Saúde, seringal Alto do Bode, em
1996. À época, Sueiro encontrava-se já bastante debilitado por uma longa doença, para a qual já buscara
tratamento em Tarauacá e Rio Branco. Naquela ocasião, seu irmão Romão e José Mucaiá, renomado co-
nhecedor de plantas medicinais, haviam se reunido para tomar cipó, tentar adivinhar a sua doença e alivi-
ar seu desconforto físico. Passamos três dias nessa aldeia. Numa das noites, deitados lado a lado nas re-
des, Sueiro pediu-me que anotasse suas falas em meu caderno, ocasião em que falou de seus ascendentes
e dessas outras famílias chegadas ao Jordão junto com Felizardo.
354
Em várias oportunidades, indaguei a velhos Kaxinawá se poderiam me explicar como seus ascendentes
tinham obtido seus sobrenomes em português, sem receber uma resposta definitiva. Felizardo dá indica-
ções de que certos chefes, por exemplo, Antonio Marinawa, haviam sido nomeados quando começaram a
trabalhar junto com patrões. Ao analisar os sobrenomes de alguns dos chefes Kaxinawá chegados ao Re-
visão, e de outras famílias não citadas por Sueiro, é possível perceber que dentre eles constam sobreno-
mes de patrões para os quais os Kaxinawá trabalharam nos rios Envira, Tarauacá e Jordão. Sena, Maia e
Costa, por exemplo, até hoje perduram como sobrenomes de famílias extensas no rio Jordão. Segundo
Sueiro, alguns dos primeiros batismos de velhos Kaxinawá teriam acontecido nas cabeceiras do rio Jor-
dão, na desobriga promovida pelo padre Tastevin em 1924 (Sueiro Sales Cerqueira, Depósito Natal, feve-
reiro, 1991). Novos batizados ocorreriam, com freqüências variadas, a partir de então, dependendo das
desobrigas feitas pelos padres, alemães, no rio Jordão, e da disposição dos patrões de custear o pagamento
do serviço, cerimônia por meio da qual, por indicação do próprio padre, acabavam na maioria das vezes
se tornando "padrinhos" do recém-batizados e compadre de seus pais.
269
cortando seringa, ele botava os Kaxinawá na frente das colocações. Ele não que-
ria nenhum índio aqui para baixo. Nesse tempo, nós morávamos em cima da
terra, na cabeceira do Formoso, na cabeceira do Paranã. Ali pra cima era tudo
de índio. Zé Maia não deixava passar pra baixo" (Sueiro Sales Cerqueira, seringal
Minas, rio Tarauacá, fevereiro, 1994).
Assim como fizera Felizardo no médio rio Tarauacá e depois no alto rio Envira,
um relevante desdobramento do acordo estabelecido com José Maia e da instalação das
famílias Kaxinawá em Revisão foi a atualização, nos altos rios Jordão e Tarauacá, outra
região fronteiriça, de ações de "fiscalização" e "policiamento" dos índios vistos como
ameaça à "segurança" dos seringueiros. A utilização de categorias de cunho militar ou
policial para caracterizar essa iniciativa subjaz aos discursos de diferentes atores. Taste-
vin (1926: 50) refere-se aos "Kaxinawá de Felizardo" promovendo "la police de la
frontière", dando indicações da realização de "rondas" nos altos rios Tarauacá e Jordão.
Quase sete décadas depois, diria Sueiro: "Felizardo chegou e ajeitou tudo, colocou to-
dos os índios Kaxinawá na fronteira, servindo de guarnição pros brabos não atacarem
os brancos ali embaixo" (Sueiro Sales, Depósito Natal, 1991). O principal objetivo do
serviço de Felizardo e dos Kaxinawá nas cabeceiras do rio Jordão fora, segundo Romão,
"pastorear os brabos" (Romão Sales, Aldeia Chico Curumim, 2004), e, segundo o pro-
fessor Noberto Sales, fazer a "segurança da fronteira" (Noberto Sales Tenê, Rio Branco,
2007).
Face a tantas mortes recentes e aos prejuízos na produção de borracha, e por con-
siderarem os "Papavô" como "feras", "demônios", "praga que infestava os seringais" e
"índios terríveis", que nunca "amansariam", os seringalistas, apoiados por seus fregue-
ses, defenderiam a promoção de novas "correrias". Tanto José Maia como o patrão do
vizinho seringal Transual, Raimundo Costa Melo, procurariam convencer Felizardo de
que "levá-los na bala" era a única solução para evitar novos roubos e mortes, para os
fregueses trabalhar com tranquiliade e, inclusive, para que ele próprio não tivesse razões
para temer por sua vida (Cerqueira, 1958: 120).
Assim como também fizera nos rios Tarauae Envira, Felizardo condenaria no-
vas violências, de ambas as partes, justificando as atitudes dos índios como resposta às
"correrias" e ao "cativeiro" delas resultante
355
. Contrariando a proposta inicial dos pa-
355
Assim Felizardo avaliaria os motivos para a continuidade de uma situação de conflitos e de mútuas a-
cusações entre "brancos" e os índios aos quais aqueles consideravam "selvagens": "Os brancos tornam-se
mais cruéis para com os índios devido à falta de senso, de procedimento incorreto, de querer ser superior
aos pobres indígenas, levando estes ao cativeiro, tomando seus filhos para presenteá-los aos seus amigos
e de verem suas filhas como concubinas, sem se prestarem em obediência a seus pais. Eis aí a causa
270
trões, e confiado em seus usuais procedimentos -"pegar" alguns índios, fazê-los perma-
necer por algum tempo na sede do seringal, em convívio com os "civilizados", e com
eles retornar às malocas para acertar uma "acomodação"-, Felizardo defenderia a "cate-
quese" como alternativa: "Sr. Maia, se eu não tivesse certeza de meu trabalho, jamais
viria de tão longe para fazer o que julgo a mais perversa ação praticada a uma pobre
gente, que tão necessário aspiram a civilização! Acho portanto injusto praticar-se atro-
cidades a esses infelizes silvícolas, que nada mais fazem que defender seu torrão natal"
(1958: 120). E garantiria a José Maia trazer os índios à sede do seu seringal, colocá-los
a dançar na sala do barracão e, depois, familiarizá-los na produção de borracha e apro-
veitá-los nos trabalhos agrícolas, dando início ao que depois denominaria a "coloniza-
ção dos Papavô" (1958: 130).
Convocado após um roubo numa colocação das cabeceiras do igarapé Jardim, Fe-
lizardo seguiria no encalço dos índios, acompanhado por um Kaxinawá e três "brancos",
diz Felizardo, um dos quais, José Felício Maia, irmão do patrão. No seringal Sorocaba,
encontrariam cinco índios e duas índias carregando os objetos roubados. Contrariando
as ordens de Felizardo, dois dos brancos, José Felício e Manoel França, haviam levado
uma garrafa de cachaça escondida, bebido para "ter mais coragem" e combinado de ma-
tar os índios, ao invés de "pegá-los". Assim que Felizardo "acometeu" contra os índios,
deixando os demais na retaguarda para apanhar os que corressem, José Felício e França
atiraram, matando um jovem "dos seus 15 anos" e pondo os demais em fuga (1958: 118-
19). Felizardo "pegaria" apenas uma mulher e ficaria contrariado, pois acreditava neces-
sário contar com mais índios para depois retornar à maloca e "amansar" os demais. Ao
repreender seus dois acompanhantes, seria ameaçado de morte e constataria o quão ar-
raigado era o ódio dos brancos contras os "Papavô": "Algum dia viu índio manso a não
ser quando está deitado?", responderia Felício, deixando claro que, por sua vontade,
também daria cabo da mulher recém capturada.
A índia seria levada à sede do Revisão e mantida por Felizardo, por um mês, em
sua casa, onde foi "bem tratada", recebeu "muitos presentes de seu agrado" e começou
"a entender nossa fala". Com cinco Kaxinawá e dois "homens nacionais", diz Felizardo,
principal dos grandes desastres entre ambos. E os brancos, escondendo seus modos irreguláveis, culpam
os índios de traiçoeiros e bandidos" (Cerqueira, 1958: 132-33). O sentido de "cativeiro" que permeia esse
discurso de Felizardo assemelha-se a aquele utilizado, uma década antes, pelo prefeito Thaumaturgo de
Azevedo, ao denunciar a captura de mulheres e crianças indígenas em "correrias", mas daquele que passa-
riam a lhe atribuir os seringueiros e os indígenas, nas décadas seguintes, ao se referir à dominação dos pa-
trões, simbolizada pelo endividamento no barracão, a obrigatoriedade do pagamento da renda das estradas
de seringa e a imobilização da mão de obra nos limites do seringal.
271
levá-la-ia de volta à maloca, na esperança de que "servisse de testemunha" de que não
fora ele, mas seu acompanhante, o responsável pela morte do jovem índio. Durante a vi-
agem, a índia perguntaria várias vezes a Felizardo, a quem chamaria de "papai", se pre-
tendia matar os demais (1958: 122-23).
Na maloca, após serem recebidos primeiro por duas mulheres e depois por parte
dos homens, seriam surpreendidos pela chegada de 19 caucheiros peruanos fortemente
armados. À frente de sua turma, de revólver em punho, Felizardo diz ter saído na tenta-
tiva de evitar um eminente ataque. Assim como ocorrera em várias situações no rio En-
vira, acabaria acusado de "bandido infâme" e "causador de muitas mortes" pelos perua-
nos, cuja primeira intenção seria a de amarrar Felizardo e levá-lo à presença de seu pa-
trão, no rio Breu, para receber uma prometida recompensa de dez contos de reis. Segun-
do o chefe dos caucheiros, o equatoriano Elias Chebes, haviam vindo vingar, com uma
"correria", o roubo promovido pelos Papavô pouco antes no rio Breu, no qual um peru-
ano resultara ferido
356
. Na maloca, acompanhados por Felizardo, Chebe e os caucheiros
encontrariam e recuperariam seus pertences. Contrariando uma das normas que conside-
rava necessário respeitar ao dar início à "catequese" de um grupo indígena, Felizardo a-
firma "ter sido obrigado" a "(...) ceder aos peruanos duas caboclas, que logo ao chegar
em casa batizaram e deram o nome de Sofia e a outra Suzana" (1958: 121-23).
O retorno à sede do seringal Revisão e o espanto de José Maia com a chegada dos
índios e com dança realizada em seu barracão, conforme prometido caso à expedição
fosse bem sucedida, é assim narrada por Felizardo:
"Quando apareci no campo, que era de 500 metros calculados, puxei do revólver
e dei 6 tiros, o Sr. Maia olhou e viu eu à frente de 22 índios e 3 mulheres e trazia
o tuxaua preso ao meu cinturão. Na chegada, ao da escada, pedi licença e su-
bi, estava o Coronel sem riso e com os olhos esbugalhados de espanto. Eu então:
Sr. Coronel, licença aos caboclos para dançarem um pouco. Respondeu: dan-
cem. E os caboclos deram-se os braços enlaçados nos ombros e entraram no rit-
mo de seus folguedos. O Coronel sentou-se ao meu lado em uma mala grande e,
botando as mãos sobre os olhos, demorou-se uns 10 minutos e depois retirou-se.
Disse-me: jamais pensei que neste mundo houvesse um homem que fizesse estes
monstros, responsáveis de tantos crimes, vir um dia dançar dentro de minha casa.
Foi o que eu disse, que o Sr. conhecia bem os índios, mas faltava conhecer o Feli-
356
O chefe peruano da Comissão Mista Brasil-Peru Demarcadora de Limites, que trabalhou nas cabecei-
ras dos rios Tarauacá e Breu em 1924, Roberto López, em seu livro de memórias "En la frontera oriental
del Perú", atesta a presença nessa região de fronteira de famílias Ashaninka oriundas do rio Vacapistea,
afluente da margem esquerda do alto rio Juruá, bem como de índios Ticuna, abandonados na foz do rio
Breu, por um patrão equatoriano, oriundo do rio Napo, que anos antes os trouxera para extrair caucho
(López, 1925: 101, apud Salisbury: 2007: 302).
272
zardo, o proposto pelas forças superiores para acomodar os ânimos exaltados"
(1958: 123-24)
357
.
José Maia seguiria à foz do rio Breu, onde lograria, junto a outro patrão, Cândido
Ferreira Batista, que, ali trabalhava com índios Ashaninka, Santa Rosa, Chamas e Santa
Rosarrosinos, que o patrão equatoriano e seus caucheiros peruanos devolvessem as mu-
lheres entregues por Felizardo
358
. Na sede do Revisão, na ausência de José Maia, os "ín-
dios resolveram coisas e planos muito contrários à acomodação" (1958: 124), diz Feli-
zardo: a índia que, "pega", permanecera em sua casa por dois meses identificaria os res-
ponsáveis pela morte do jovem rapaz, levando os demais a decidirem um "plano de vin-
gança", uma matança generalizada, a começar por Felizardo, a quem, com base nas in-
formações da índia, consideravam o "único atrevido que assombrava os índios" e, caso
ficasse vivo, poderia realizar nova "perseguição".
O plano acabaria descoberto por Felizardo ao compreender que tramavam a vin-
gança: "Eu sempre escondi das tribos algumas coisas que aprendi de suas nguas.
Quando eles falavam algo, eu, em resposta, saía com disparatadas tão adversas que os
mesmos riam-se das besteiras. E eu sempre calculei de necessitar desta manha em oca-
sião oportuna. Desta vez, surtiu efeito" (1958: 125)
359
. Após escapar com o auxílio de
seus empregados carius, alertados pela companheira Kaxinawá de um deles, Felizardo
resolveria "guardar" os "Papavô", primeiro numa barraca e depois no barracão. Confor-
me esclarece, pretendia ali vigiá-los, para evitar tentativas de fuga e entregá-los a José
Maia, mas, principalmente convencê-los a "amansar", fazendo-lhes assumir o compro-
misso de que deixariam de atacar os seringueiros, e a trabalhar junto com os Kaxinawá.
Romão Sales assim explicitou a tentativa de Felizardo de convencer os "brabos" a
se dedicarem à produção de borracha e à agricultura: "O Felizardo disse: "Agora vamos
357
A reação admirada do patrão foi também mencionada por Sueiro ao relembrar como este acontecimen-
to lhe foi contado: "(...) O Felizardo mandou dançar no salão, na sala do Zé Maia, um barracão que era
um monstro. O velho [Felizardo] arremedava bem a cantiga deles. Tudo nu, os ovos balançando, tudo
dançando. (...) O Zé Maia botou a cabeça assim, na mesa. "Felizardo, parece que estou sonhando". Não
acreditava que eram os índios, dançando na sala. "Não disse que eu ia buscar?". E o Zé Maia: "Parece
um sonho"" (Sueiro Cerqueira Sales, seringal Minas, fevereiro, 1994).
358
Essa iniciativa lembra a protagonizada por Felizardo, anos antes, no rio Envira, quando de sua ida a
Esperanza, no lado peruano do rio Purus, para resgatar uma mulher e uma criança, capturadas por cau-
cheiros peruanos após uma "correria" contra as malocas dos Kaxinawá. Sobre a atuação de Cândido Fer-
reira Batista no rio Breu, ver Silva, 1929 e, principalmente, Martini, 1998 e 2005.
359
Esta estratégia utilizada por Felizardo é reiterada em outro trecho do relatório, tratando desse mesmo
episódio: "Senti que os mesmos índios ficaram bestificados quando ouviram eu pronunciar claramente a
sua fala, pois eles bem sabiam o que haviam conspirado contra minha vida, pensando que eu era a besta,
como eles haviam dito. E não esperavam que eu de tudo estava sabedor, pois sempre tive o cuidado de
nada falar aos índios de qualquer tribo, para que eles não escondessem seus terríveis planos nas ocasi-
ões oportunas, como esta que eu estou relatando" (Cerqueira, 1958: 127-28).
273
trabalhar. Esses novos vão cortar seringa. Esses mais velhos vão trabalhar na agricul-
tura, vão colocar roçado, plantar roça, cana, para ter muito legume. Esses rapazes no-
vinhos vão cortar". Mas destacou a pronta reação dos "Papavô", contrária ao que pre-
tendia Felizardo: "Os brabos fizeram: Eu vou cortar. Vou cortar assim" [com a mão, faz
um gesto em que simula cortar parte do queixo]" (Romão Sales Kaxinawá, Aldeia Boa
Vista, 2005). Sueiro, por sua vez, reafirmaria que, "assustado porque os índios fizeram
que iam cortar a cara dele, igual tinham feito com o seringueiro que tinham matado",
Felizardo resolveria "prende-los" no barracão e entregá-los ao patrão (Sueiro Sales Cer-
queira, Depósito Posto de Saúde, agosto, 1996).
Versões com dois diferentes desfechos para estes eventos constam nos relatos, de
um lado, de Felizardo e, de outro, de Sueiro, Romão e do padre Tastevin. Os últimos
três ressaltam, com escassas diferenças, a morte de grande número de índios a reboque
de uma iniciativa dos brancos, que para consumá-la convocariam os Kaxinawá. Ao re-
memorar essa seqüência de eventos, a narrativa de Romão guarda estreita semelhança
com aquela feita pelo padre Tastevin
360
:
"Ajuntaram o pessoal tudinho e combinaram, com os mansos mesmo. Os cariu,
com os caboclos mansos. "Rapaz, esses caboclos. Diz que corta seringa assim
[Romão repete o gesto como quem tira o couro da cara - MPI]. Foram eles mes-
mos que mataram o homem". Aí, se combinaram: melhor, em vez deles matar
nós, nós matar eles". mandaram chamar o meu pai. "Deixa o Chico Curumim
chegar aqui, nós faz serviço com eles". Chegaram muita gente. "Rapaz, o homem
está custando muito, ele não vai chegar hoje não. Vamos fazer o serviço logo"
361
.
360
É a seguinte a descrição de Tastevin (1926: 53-4) sobre esse "massacre", do qual tomou conhecimento
em sua estadia no rio Jordão e no seringal Revisão em 1924: "Cette histoire de massacre est terrible.Un
conquistador avait réussi à déterminer une soixantaine de Papavo à venir s’etablir pour quelque temps
au milieu de ses Indiens apprivoisés. Au bout de quelques mois ces pauvres sauvages eurent la nostalgie
de leur indépendence et de leur liberté: ils voulurent se retirer. On les enferma dans un barraque solide,
et on appela en hâte les Indiens apprivoisés. Les Papavo passèrent deux ou trois jours sans pouvoir sortir
pour se soulager, gardés à vue des civilisés armés jusqu’aux dents, en attendant l’arrivé des autres
Indiens. Ceux-ci arrivèrent tous armés de carabines: on leur livra les Papavo à qui on ouvrit la porte de
leur prision. On indiqua aux Papavo la direction du port qui pouvait être celle des ubas qui devaient les
emmener chez eux: mais avant qu’ils eurent franchi les cinquante ou cent mètres qui les séparaient, ils
furent mis un joue: en dehors des jeunes femmes, que l’on garda pour les soi-disant civilisés, un seul
homme réussit à s’echapper. L’année suivante, à la même date, ce rescapé revint sur la scène du
massacre avec trois compagnons, pour se venger: ils manquèrent leur coup et s’enfuirent. Les Indiens
apprivoisés lancés à leur poursuite les atteignirent avant qu’ils fussent parvenus à leur campement et
tous les quatres furent mis à mort sans merci".
361
Em suas narrativas, tanto Sueiro como Romão ressaltaram que seu pai, Chico Curumim, chamado no
rio Formoso para juntar-se aos demais Kaxinawá, chegaria após a morte dos Papavô, mas que voltaria pa-
ra sua casa levando uma menina para criar. Em entrevista recente o filho de Sueiro, Getúlio Sales Tenê,
revelou o destino depois dado por seu avô à menina: "Quando meu vô chegou lá, já tinham feito, tinham
matado tudinho, só tinham deixado uma menina. Era Papavô. Meu vô pegou a menina e trouxe. Essa me-
nina era Jaminawa. Cresceu com meu vô. (...) quando estava ficando bem grandinha, chegou o pai do Zé
Pedro, Rodrigo, o nome dele. Pediu ao meu vô. Aí, meu vô fez troca, com rifle. Rodrigo deu rifle e ele deu
a menina. Era cariu puro, o Rodrigo. Depois de muito tempo, foi que apareceu o Zé Pedro, esse já era
misturado" (Getúlio Sales Tenê, Rio Branco, 15/8/2007). Assim como ocorrera por várias décadas a re-
274
Aí, pegaram uma corda comprida, cabo mesmo, passaram no braço dos caboclos
tudinho. Barranco alto, botaram os índios em cima do barranco, amarraram os
índios tudinho. perguntaram: "O que é que vão fazer com nós?". Aí, falaram:
"Eles vão amansar vocês. Vão amansar pra vocês não irem embora, pra traba-
lhar por aqui mesmo". estavam desconfiados, já estava sabendo que vai mor-
rer, né? Quando chegaram, amarraram tudinho, essas mulheres velha também,
amarraram. As novinhas, a meninada, botaram no quarto, trancadas. , mata-
ram, tiro, deram tiros. A derradeira, na ponta da corda, a bala cortou a corda.
Aí, caiu, levantou, ia-se embora, mas ... Estavam atirando pra matar ele, mas fi-
cou. Foi-se embora. "Que é que nós faz agora?". Meteram enxada, cavaram dois
palmos e meio, jogaram terra em cima e enterraram ali mesmo, no barranco"
(Romão Sales, Aldeia Boa Vista, maio, 2005).
Diferentemente, o relato de Felizardo tem com o seguinte desfecho:
"Demorou-se o Sr. Maia 10 dias para chegar com as duas caboclas mulheres,
coisa esta que provocou aos índios o mais entusiástico sentimento de amor ao ve-
rem suas mulheres regressarem ao seio dos seus queridos. Como um bom preven-
tivo pedi ao Sr. Maia para retirar de sua casa os dois homens assassinos do rapaz
na primeira etapa da catequese dos Papá-vôs; e logo o Sr. Maia fez a retirada
para longe de sua casa dos dois criminosos: José Felicio e Manoel França. E as-
sim ficaram os índios Papá-vôs sendo moradores do alto Jordão até os dias de
hoje. Sendo que os mais velhos já morreram e só tem os seus filhos de idade de 40
anos abaixo, pagando os impostos dos seus trabalhos" (Cerqueira, 1958: 129).
Evento que marcou a história da região, a ponto de ser relembrado pelos Kaxina-
e pelos seringueiros quase sete décadas depois de ocorrido, a morte dos "Papavô"
em Revisão não é citada no relatório biográfico por meio do qual Felizardo reconstrói
sua trajetória profissional como "catequista de índios". A ausência de qualquer referên-
cia a esse evento contrasta com outros trechos de seu escrito, nos quais Felizardo, com
riqueza de detalhes, realça percalços enfrentados durante incursões às malocas, proces-
sos de negociação com chefes indígenas e iniciativas para a mobilização da mão de obra
de diferentes grupos em atividades para os patrões. Essas descrições detalhadas estão
presentes em seu escrito mesmo quando aquelas iniciativas, à diferença do inicialmente
planejado, acabaram por resultar em morte de indígenas, de seus próprios auxiliares e de
patrões e seus familiares, bem como no acirramento de rivalidades e em enfrentamentos
armados entre grupos indígenas. Felizardo tampouco hesitou em explicitar seu desejo de
comandar os Kaxinawá como "um verdadeiro exército armado", pronto para ser mobili-
zado para dissuadir violências, tanto dos "civilizados" como dos "selvagens", mediar re-
boque das "correrias", indica o depoimento de Getúlio, continuava a haver uma demanda dos "civiliza-
dos" por mulheres e meninas indígenas para a formação de famílias, num contexto em que ainda era
grande o desequilíbrio entre o número de homens e mulheres e em vários seringais dos altos rios prevale-
ciam os seringueiros solteiros.
275
lações, estabelecer as "acomodações" necessárias e garantir "segurança" aos seringuei-
ros e "proteção" aos índios.
A intransigente condenação de Felizardo às "correrias" e sua crença na "cateque-
se" como alternativa privilegiada para a "civilização" dos índios aparecem relativizadas
num contexto em que, por um lado, os patrões, seus empregados e fregueses exigiam
uma ação enérgica e definitiva para vingar as muitas mortes e garantir a segurança e a
produção nos seringais. Por outro, numa situação em que a fama de "selvagens" e de
"indomáveis" dos Papavô teria novamente se confirmado, quando estes prontamente re-
cusaram a proposta de "amansar" e, ao contrário, demonstraram sua disposição de pros-
seguir com as mortes, atitudes que, aos olhos dos "civilizados", justificavam a adequa-
ção de uma decidida ação punitiva.
Fortemente armados, os Kaxinawá, que tinham um histórico de conflitos armados
com grupos rivais, não vacilaram em cumprir o papel a eles outorgado quando os "Pa-
pavô" lhes foram entregues, ão que também contribuiria para reafirmar, novamente
aos olhos dos "civilizados", sua condição de índios "mansos" ("domesticados", como di-
ria por diversas vezes Tastevin) e de mão de obra útil à empresa seringalista. Mandado
por José Maia, como ressaltaria Sueiro
362
, patrão que dera condições para que mantives-
se os "seus Kaxinawá" reunidos sob sua tutela e prometia-lhes "assistência", após um
período de fome e necessidade, também Felizardo cumpriria o "compromisso" e a "o-
brigação" que formalmente assumira, em contrato, ao primeiro chegar ao alto rio Tarau-
acá, a saber, "guardar os seringaes (...) contra os assaltos dos índios que infestam os
mesmos seringaes, empregando para este fim os meios que a emergência permitir, ten-
do como meus auxiliares os índios mansos da tribu cachinoás, de forma que o locatário
possa tirar seus fabricos de goma elástica sem dano nem temor dos índios salteadores
(...)".
Indicações pontuais no relatório de Felizardo sinalizam, sem maiores detalhes,
que ações para a "colonização" dos Papavô e para o "policiamento da fronteira" tiveram
continuidade nos anos seguintes. O fato de estar "comprometido seriamente com o José
Maia na colonização dos Papavô", e da sua ausência prolongada poder vir a causar pre-
juízos irreparáveis aos resultados já logrados, seriam as razões apresentadas por Felizar-
362
Assim se expressou Sueiro na entrevista de 1994: "Esses índios eram danados para não amansar. Fu-
giu um, fugiu outro. Aí, Felizardo conversando com eles: "Vamos cortar seringa. Vamos deixar de andar
no mato. Vamos trabalhar aqui". Os índios riam, mostrando assim, como se tivesse tirando o couro da
cara, de novo. Depois, mataram tudinho esses índios que saíram da mata. Foi o Zé Maia que mandou,
com raiva que já tinham matado muitos freguês e tirado o couro da cara".
276
do, em 1920, ao declinar o primeiro convite do comissário brasileiro para incorporar-se
à Comissão Mista que dava início, nas cabeceiras do rio Envira, a uma nova etapa da
demarcação da fronteira internacional Brasil-Peru (1958: 130; 132)
363
.
O massacre dos "Papavô" em Revisão marcaria um divisor de águas face à situa-
ção de insegurança e de crise denunciada pelos patrões fazia anos. Nos anos imediata-
mente posteriores, nenhum novo ataque ou morte de fregueses nos seringais dos altos
rios Jordão e Tarauacá seria noticiado na imprensa de Villa Seabra. Durante os trabalhos
de demarcação da fronteira internacional, em 1923-1924, nenhuma maloca de índios
considerados "selvagens" seria encontrada nas cabeceiras dos rios Jordão e Tarauacá, à
diferença do que ocorreria nos afluentes do alto rio Envira, onde a existência de malocas
habitadas por Jaminawa e Marinawa exigiria políticas e ações específicas para evitar
possíveis confrontos e a paralisação das atividades demarcatórias
364
.
Assim como acontecera durante os dez anos em que permaneceu no seringal
Revisão, a relevância dos serviços prestados por Felizardo nos altos rios Jordão e Ta-
rauacá seria destacada, em 1955-1956, por patrões, comerciantes e funcionários gover-
namentais de Tarauacá e Cruzeiro do Sul, por meio de "declarações" e "atestados"
365
.
Parte desses seringalistas e comerciantes informa conhecê-lo fazia pelo menos três dé-
cadas, portanto, desde a época em que Felizardo morava e trabalhava em Revisão. Além
de suas qualidades como homem "trabalhador", "honesto", "cumpridor de seus deveres",
"portador de reputação ilibada" e "de espírito conciliador e ordeiro", os documentos res-
saltam que os serviços realizados por Felizardo, no "apaziguamento", "catequese" e "ci-
vilização" de "índios bravios", evitando que "continuassem a atacar seringais, depredas-
sem propriedades e matassem seringueiros" (Declaração, Manoel Thomé de Frota, a-
bril/1956), contribuíram de forma significativa para o "desbravamento de zonas inexplo-
radas" e o "desenvolvimento do Território do Acre" (Atestado, João Tibúrcio da Silva,
363
O padre Tastevin (1926: 49-50) relataria que nessa mesma época os "Kaxinawá de Felizardo", "polici-
ando a fronteira", teriam encontrado na mata duas mulheres e um menino Nehenawa, sobreviventes de
"correria" feita por peruanos no rio Envira.
364
As políticas adotadas pela Comissão Mista, bem como a participação de Felizardo e dos Kaxinawá nas
suas atividades, serão analisadas no capítulo seguinte.
365
Escritos por solicitação de Felizardo, os documentos, depois de registrados em cartório, foram anexa-
dos aos pedidos por ele encaminhados, em 1955, ao Governo do Território do Acre e, no ano seguinte, ao
deputado José Guiomard dos Santos, como comprovantes de seus trabalhos como "catequista de índios".
São os signatários desses documentos Raimundo Quirino Nobre, proprietário da casa comercial Raimun-
do Quirino Nobre, de Cruzeiro do Sul; Manoel Thomé de Frota, comerciante e seringalista de Tarauacá,
então Representante de Produção na Comissão Executiva de Defesa da Borracha; Bento Marques de Al-
buquerque, Prefeito Municipal de Tarauacá; Joaquim Lopes da Cruz, Prefeito de Cruzeiro do Sul; Alfredo
Silva, Delegado de Polícia de Cruzeiro do Sul; Francisco Correa Barahuna, seringalista e comerciante no
Alto Juruá; Joaquim Maria Ruela, comerciante e seringalista no Alto Juruá; e Ubaldo Marques de Mene-
zes, Inspetor de Ensino em Tarauacá. (Diário do Congresso Nacional, 1956: 12237-39).
277
setembro/1955
)
. Ressaltam, ainda, que essa "espinhosa missão" fora levada a cabo "(...)
com serenidade, por meios pacíficos, sem emprego de força armada, procurando sem-
pre entendimentos para harmonizar as forças contendoras" (Atestado, Francisco Corrêa
Barahuna, junho/1955), possibilitando que a região fosse explorada "(...) sem quase a-
tritos entre civilizados e aborígenes" (Atestado, Joaquim Maria Ruela, outubro/1955).
Sustentada por seguidos patrões, a "polícia de fronteira", e no limite as "correri-
as", para manter os índios "brabos" afastados das colocações, "dar segurança" aos fre-
gueses e garantir a produção da borracha, continuariam nas décadas seguintes como
"instituição" inerente ao funcionamento dos seringais nos altos rios Envira, Tarauacá,
Jordão e Breu até final dos anos de 1960. Turmas de Ashaninka (Kampa) cumpririam
esse papel nos altos rios Jordão e Breu, em ações intermediadas inclusive por peruanos,
mediante acordos estabelecidos com patrões brasileiros, em troca de percentagens da
produção logradas nos seus seringais. Homens Kaxinawá seriam esporadicamente mobi-
lizados por patrões e arrendatários com o mesmo objetivo
366
. A "necessidade" alegada
pelos patrões de manterem essa "instituição" em funcionamento por décadas demonstra,
por outro lado, as iniciativas que certos grupos indígenas, genericamente conhecidos por
"brabos", continuariam a realizar para manter-se à margem dos seringais, defender "ter-
ritórios possíveis", com a imposição de limites ao uso de certas áreas de floresta e dos
recursos ali existentes, e ativamente buscar objetos e conhecimentos que consideravam
já essenciais às suas formas coletivas de vida.
Pedro Biló, "matador de índios": um contraponto
Como os Kaxinawá conceberam as relações estabelecidas com Felizardo no serin-
gal Revisão? Como os "Kaxinawá de Felizardo", com diz o padre Tastevin (1926), eram
vistos por outros grupos de atores sociais que nesse momento histórico viviam no rio
Jordão e na região do alto Tarauacá? Indicações, neste sentido, despontam em meio a
relatos, entrevistas e depoimentos de Kaxinawá mais velhos, filhos da "primeira" gera-
366
Dentre os principais agenciadores dos Ashaninka nessas atividades, no rio Breu e no alto Juruá, esteve
o peruano Júlio Peres, arrendatário do seringal Busnã nos anos 1950-60, período em que firmou contrato
com o seringalista Ribamar Coelho de Moura, para garantir a produção dos seringais Revisão e Transual,
no alto rio Jordão. Uma dezena de famílias Ashaninka foi localizada acima das últimas colocações do Re-
visão. Além de trabalhar na agricultura e prestar serviços diversos ao barracão, os homens tinham por o-
brigação fazer "rondas" periódicas, de forma a evitar a presença dos "índios brabos". Conforme rezava o
acordo, Peres tinha direito a metade da produção de borracha juntada pelo gerente do seringal Revisão, o
mais produtivo daquele rio (Entrevista Ribamar Coelho de Moura, Rio Branco, 1996). Dentre os chefes
Ashaninka no rio Breu destacou-se o curaca Kitola, que mesmo tendo apenas um braço, tornar-se-ia afa-
mado pela grande quantidade de "brabos" mortos em rondas e "correrias" nas cabeceiras daquele rio e em
diferentes afluentes do alto Juruá peruano (Mendes, 1991; Ioris, 1996: 157-158).
278
ção "amansada" e "catequizada" por Felizardo no rio Envira, nascidos pouco após a
chegada de seus familiares ao alto rio Jordão. Essas informações têm como base tanto
relatos ouvidos de seus parentes mais velhos, bem como avaliações e juízos de valor re-
sultantes de suas próprias experiências de vida, construídas em meio aos seringais, e de
seu conhecimento de outras iniciativas levadas a cabo pelos seringalistas para "dar segu-
rança" à produção de borracha, no rio Jordão e em outros rios, contra os ataques dos
"índios brabos".
A continuação, elas serão postas em diálogo com informações e análises que cons-
tam em escritos de agentes governamentais (Silva, 1924, 1925, 1929) e de missionários
(Tastevin, 1926), que visitaram o rio Jordão, no relatório do próprio Felizardo Cerqueira
(1958), bem como em depoimentos de outros personagens, indígenas ou não, que vive-
ram nesse mesmo tempo ou são descendentes daqueles contemporâneos. Dentre estas
narrativas, serão destacados trechos de entrevistas com alguns professores Kaxinawá,
netos e bisnetos da geração que conviveu com Felizardo nos rio Envira e Jordão nas dé-
cadas de 1910-1920. Escritos de antropólogos, bem como matérias em jornais de Rio
Branco, produzidos a partir da década de 1970, também serão utilizados como fontes de
informação para fundamentar esta discussão.
Sueiro Sales costumava afirmar que Felizardo foi o "primeiro catequizador" dos
Kaxinawá, referindo-se ao grupo de famílias que com ele trabalhara no rio Envira e a-
cabaria por se estabelecer no seringal Revisão. Permeava essa afirmação o reconheci-
mento de Felizardo, por um lado, como "aquele que ficou no lugar" de Ângelo Ferreira
da Silva
367
, considerado por Sueiro também como "catequizador" e "bom patrão" de di-
ferentes povos indígenas nos seringais que movimentou no médio rio Tarauacá na se-
gunda metade da década de 1900.
Assim como fizera Ângelo, os empreendimentos de Felizardo no alto rio Envira,
por meio de acordos com diferentes patrões caucheiros, abriram alternativa às "correri-
as" de peruanos e brasileiros. Em entrevista recente, o sobrinho e "filho de criação" de
Sueiro, o professor Noberto Sales reafirmou a "proteção" prestada por Felizardo ao
promover esse "primeiro contato" no rio Envira: "(...) ele foi uma pessoa que salvou,
367
Além de reconhecer uma linha de continuidade nos trabalhos realizados por ambos, Sueiro, em duas
entrevistas, afirmou acreditar que Ângelo era tio de Felizardo, e que os dois teriam nascido e vindo do
mesmo lugar do Estado do Ceará para o Território do Acre. Para além da possibilidade, já comentada, de
que Ângelo Ferreira fosse também natural de Pedra Branca, no Ceará, não logrei, com base nas fontes
consultadas, qualquer indicação sobre essa possível relação de parentesco de ambos. As duas filhas de Fe-
lizardo com as quais conversei, Donas Yeda e Maria Luiza, indagadas a esse respeito, negaram ter conhe-
cimento de qualquer parente de seu pai por nome Ângelo Ferreira da Silva.
279
talvez salvou aquelas famílias, o nosso povo, protegeu, para não acabar. Protegeu mui-
to o nosso povo, foi ao nosso favor. Ajudou muito nesse primeiro contato. Melhorou o
nosso contato, com ele" (Noberto Sales Tenê, 2007).
No alto rio Envira, a mediação de Felizardo permitiu que as famílias Kaxinawá
sob sua tutela lograssem uma inserção diferenciada em meio às áreas de cauchais, dei-
xassem de se envolver em conflitos armados, outrora recorrentes, com grupos indígenas
vizinhos e, apesar da ameaçadora presença dos peruanos, ficassem protegidas das "cor-
rerias" que continuariam a ser realizadas contra esses grupos. Sob sua "guarda", os Ka-
xinawá constituíram um "ponto de referência" nessa região (Cerqueira: 1958: 93), ser-
vindo como interlocutores, intérpretes e balizadores de acordos, mediados por Felizar-
do, entre chefes indígenas, seringalistas e caucheiros, cujo cumprimento, ou não, acaba-
ria por viabilizar uma, sempre tensa e frágil, "pacificação" da região, o aproveitamento
das áreas de caucho pelos "civilizados" e a inicial ou incipiente incorporação da mão de
obra indígena nessa atividade.
A migração dos Kaxinawá ao rio Tarauacá e depois ao Jordão, em 1917, pode ser
interpretada como prova da ascendência de Felizardo, mas também da fidelidade e da
confiança que essas famílias nele depositavam. Para Felizardo, levar os Kaxinawá era
fundamental para a viabilidade do empreendimento que chegou a formalizar com os pa-
trões, a "pacificação" dos Papavô. Para os Kaxinawá, a eminência da perda da "prote-
ção" garantida fazia pouco mais de seis anos por Felizardo foi fator levado em conside-
ração na decisão das várias famílias extensas, ao levarem em conta a situação ainda
marcada pelas "correrias" dos caucheiros e seringalistas no alto rio Envira. Fatores se-
melhantes haviam sido considerados, quase uma década antes, após a morte de outro
importante "catequizador", Ângelo Ferreira, quando o temor da retomada das "correri-
as" e violências pelos seringalistas levara-os a empreender uma incerta diáspora rumo às
cabeceiras dos rios, que acabaria por levá-los ao alto Envira.
No rio Jordão, numa região conformada por seringais, por meio de acordo firmado
com o seringalista José Xavier Maia, Felizardo novamente criaria condições para inser-
ção diferenciada e uma uma existência coletiva das famílias Kaxinawá. Em Revisão,
bem recebidas pelo "patrão chefe", mantidas à distância dos seringueiros carius, forte-
mente armados, sem ameaça de ataques de outros índios ou dos caucheiros, sem pers-
pectiva eminente de deslocar seus locais de moradia no futuro próximo, construíram su-
as malocas e tiveram condição de realizar suas atividades agrícolas e de dispor de uma
vasta área de floresta para caçar, pescar e coletar. Conforme o acordo com José Maia, os
280
homens Kaxinawá passaram, em certos momentos do ciclo anual, a conciliar essas ati-
vidades com serviços prestados ao patrão.
Assim como fora Ângelo Ferreira quinze anos antes, Felizardo seria reconhecido
como "catequizador", segundo Sueiro, pois, ao contrário dos patrões que promoviam
"correrias", foi aquele que os "amansara" e "criara", socializando-os e engajando-os na
economia do trabalho nos seringais. Essas considerações de Sueiro sobre Felizardo fo-
ram, por várias vezes, construídas ao contrastar sua postura e suas iniciativas às de Pe-
dro Galdino Filho, mais conhecido por Pedro Biló, personagem que, a partir dos anos
1940, quando sucedeu seu pai, Pedro Galdino, e por quase três décadas, trabalharia "a
mando" de vários seringalistas no alto rio Envira, em serviços destinados a garantir "se-
gurança" aos seringueiros, caucheiros e madeireiros contra os ataques de "índios bra-
bos":
"Ele [Felizardo] falava do Pedro Biló, porque Pedro não criava índio nenhum.
Felizardo criou muitos índios, e tudo era dele. O Pedro Biló fazia era matar. Fe-
lizardo falava: "O que é que o Pedro faz? Faz é matar. Não tem nenhum índio
trabalhando com ele". Agora, o Felizardo, não. Ele era muito bom. Não deixava
mais os peruanos nem os brasileiros matar mais os índios. Amansava e criava,
botava pra trabalhar com ele" (Sueiro Cerqueira Sales, seringal Minas, 1994)
368
.
Conforme apontado, em sua dissertação, Aquino (1977: 44) aponta a distinção
feita pelos Kaxinawá entre dois tipos de "correrias", as que visavam o extermínio dos
grupos indígenas e as que almejavam incorporá-los como força de trabalho nos serin-
gais. Ao ilustrar essa distinção, Aquino transcreve trecho de um depoimento de um "se-
ringueiro Kaxinawá"
369
, bastante similar à afirmação anterior de Sueiro, no qual essas
duas modalidades de "correrias" são associadas a dois "personagens" principais, Pedro
Biló, com referência à primeira, e Felizardo, e, por extensão, Ângelo Ferreira da Silva, à
segunda.
Nos rios Envira, Murú, Tarauacá e Jordão, Pedro Biló é até hoje lembrado como
"afamado" e implacável "matador de índios"
370
, tendo adquirido uma aura de "herói cul-
368
Nessa mesma entrevista, Sueiro especificaria que Felizardo referia-se a Pedro Galdino, pai de Pedro
Biló. É relevante destacar, ainda, que Felizardo foi contemporâneo do pai de Pedro Biló, Manoel Galdino
Biló, no alto rio Envira, onde este último começou a trabalhar com a família Prado na década de 1910,
primeiro como "desbravador" de seringais e cauchais e depois como seringueiro e "mateiro".
369
É o seguinte o depoimento transcrito: "Pedro Biló não amansava caboclo. Pedro Biló matava caboclo.
(...) Felizardo Cerqueira amansava caboclo, dava mercadoria pra nós caboclo. Agradava o velho, o me-
nino. Felizardo e Ângelo Ferreira amansava caboclo pra trabaiá pra ele (...)" (Aquino, 1977: 44).
370
Os principais patrões a mobilizarem os serviços de seu pai e depois do próprio Pedro Biló foram mem-
bros da família Prado (os irmãos Raimundo, Ramiro e Custódio, este casado com Neusa Prado de Azeve-
do), descendentes do Sr. Prado, "delegado auxiliar dos índios do rio Envira" nomeado, em 1912, pelo A-
judante do SPILTN Máximo Linhares. A participação de Pedro Biló em grande número de "correrias" e
281
tural dos carius e dos desbravadores de seringais" nessa extensa região (Aquino, 1987).
Com base, por um lado, nesse contraponto que surge nos depoimentos dos Kaxinawá e,
por outro, em entrevista
371
concedida por Pedro Biló em 1981, é possível destacar seme-
lhanças e diferenças entre as trajetórias desses atores que personificariam duas posturas
e formas de relacionamento favorecidas pelos seringalistas em relação aos índios: de um
lado, as "correrias", de outro, iniciativas para a utilização da mão de obra indígena nas
atividades nos seringais.
Dentre as principais semelhanças entre as trajetórias de Pedro Biló e de Felizardo
cabe assinalar a pouca idade com a qual começaram a trabalhar, o aprendizado empírico
da profissão de "mateiro", os serviços prestados aos seringalistas para "dar segurança"
aos seus fregueses, as "orações fortes" que lhes eram atribuídas, seu recrutamento em
iniciativas promovidas por representantes do governo federal, o reconhecimento e a
"fama" que adquiriram, entre "carius" e indígenas, bem como as difíceis situações fi-
nanceiras enfrentadas ao chegarem a idades mais avançadas.
Na entrevista, Pedro Biló informou ter nascido no seringal Progresso, no alto rio
Envira, e começado a trabalhar em 1925, aos sete anos de idade, acompanhando seu pai,
com quem, aos poucos, aprenderia a profissão de "mateiro". Com a crise nos preços da
borracha, ambos passaram, a pedido dos seus "padrinhos" Custódio e Neusa Prado, a
acompanhar turmas de madeireiros por eles aviadas, abrindo picadas para a identifica-
ção da madeira, caçando para alimentar aos trabalhadores e exercendo a "vigilância" dos
"caboclos brabos" para evitar ataques e mortes. Primeiro junto com o pai, e depois à
frente de turmas de mateiros e seringueiros, Pedro Biló encabeçaria várias "correrias"
num importante período da atividade madeireira no rio Envira, nos anos 1930-1950.
Ao comentar sobre as razões que levavam os patrões a promover "correrias", Pe-
dro justificá-las-ia pela obrigação de "garantir segurança" aos fregueses, evitando que
abandonassem os serviços e que áreas ricas em caucho e madeira permanecessem inex-
sua "fama" como "matador de índios" foi recorrentemente atestada por indígenas Ashaninka, Madijá,
Shanenawa e Kaxinawá em testemunhos que serviram de subsídio tanto para textos acadêmicos (Schultz
& Chiara, 1955: 182; Aquino, 1977; Ioris, 1996: 149-53) como para relatórios de identificação e delimi-
tação de terras indígenas situadas nesses rios (dentre eles, Schwade, 1976: 4; Aquino, 1976, 1977a; Silva
& Kesselring, 1987: 6; Pereira Neto, 1996: 66; 1999: 326-27; e Vieira, 2005: 29; 39-41).
371
A entrevista foi concedida a Terri Valle de Aquino e José Carlos dos Reis Meirelles, então membros
da Comissão Pró-Índio do Acre, dois anos antes da morte de Pedro Biló. Com uma contextualização in-
trodutória, parte dela foi publicada por Aquino sob o título "O herói dos carius", a 18 de outubro de 1987,
em sua coluna "Papo de Índio", no jornal A Gazeta do Acre. É a este texto, e à entrevista com Pedro Biló
nele transcrita, que se faz menção aqui, sob a referência Aquino, 1987 (ver na bibliografia, na seção Arti-
gos de Jornais).
282
ploradas
372
. Além de peruanos, que constituíram importante contingente no alto rio En-
vira, tanto no "tempo do caucho" como no "tempo da madeira", a quem considerava
"mestres" nas "correrias", Pedro Biló ressaltou o costumeiro engajamento nessas incur-
sões, a "mando dos patrões", de "caboclos mansos": Ashaninka, trazidos pelos peruanos,
os Katukina, hoje Shanenawa, chegados do médio rio Tarauacá nos anos 1920, e os
Madijá (Kulina), que, após trabalharem para rios patrões, haviam se estabelecido nas
imediações da sede do seringal Califórnia.
Nos primeiros anos da década de 1950, Pedro Biló foi quem "recebeu" rias de-
zenas de famílias Kaxinawá oriundas do rio Curanja, no Peru, as quais, após quatro dé-
cadas da diáspora da morte de Manoel Patrício, retornavam ao alto rio Envira
373
. Pedro
Biló assim rememorou esse episódio:
"Uma vez, eu amansei mais de 200 Kaxinauá, que vinham varando do rio Cu-
ranja, cabeceiras do Purus, para encontrar os seus parentes que moram no
Jordão, na cabeceira do rio Tarauacá. Eu dei para eles terçados, machados, rou-
pa, cobertas, rede, calção. Os homens eram todos nus: usava o instrumento [o
pênis - MPI] preso pela cabeça numa fina corda de envira. as mulheres usa-
vam tanga de algodão, que elas próprias teciam" (Aquino, 1987).
Ao comentar sobre a chegada dos Kaxinawá ao alto rio Envira, Sueiro assim ava-
liou a atitude de Pedro Biló ao recebê-los: "Apareceram no Pedro Biló, se apresentaram
ao Pedro Biló. Pedro era muito valente, mas nesse tempo, dessa vez, não matou mais
372
Histórias correntes no alto rio Envira atribuem essa postura de de Pedro Biló em relação aos "índios
brabos" ao fato de sua mãe ter sido morta por eles. José Carlos dos Reis Meirelles, sertanista que trabalha
nessa região desde 1987, há sete anos na condição de chefe da Frente de Proteção Etnoambiental Envira
(FPEE), em entrevista de 2004, concedida a Maria Elisa Guedes Vieira, faz alusão a esse fato: "(...) Bar-
raca Velha, onde morou o pai do Pedro Biló, aquele matador de índio, o velho Biló. Ele desceu lá pro se-
ringal Califórnia, deixou as mulheres e os filhos lá, e os “parentes” [os brabos] foram lá e mataram a
mulher dele. Por isso que ele virou matador de índio" (Meireles, FPEE, 2004). Em sua dissertação, Edvi-
ges Ioris (1996: 151), também reproduz trecho de um diálogo gravado no rio Envira, em sua pesquisa de
campo, sobre esse mesmo tema: "(...) era enfatizado que sua "raiva de caboclo era porque eles tinham
matado sua mãe" (...)".
373
Schultz & Chiara (1955: 197) fornecem informações sobre a existência de oito aldeias, com popula-
ções que variavam entre 20 e 120 pessoas, e um total de entre 450 e 500 Kaxinawá, quando de sua pes-
quisa no alto rio Curanja em 1951. Kensinger (1965: 5; 1967: 6; 1975: 11; 1995: 270), McCallum (1989:
67), Lagrou (1991: 20), Keifenheim (1997: 144) e Montag (2002: 61-2; 66-7, passim) fazem referências à
migração de parte das famílias Kaxinawá para o alto rio Envira, devido a surtos epidêmicos que teriam
resultado da intensificação dos contatos, procurados pelos Kaxinawá, junto a regatões peruanos, interme-
diados por índios (Marinawa e Jaminawa), para obter instrumentos de trabalho e mercadorias. Ao chegar
pela primeira vez no rio Curanja, em 1955, Kensinger constataria a existência de apenas duas aldeias, ha-
bitadas por 91 Kaxinawá. A visita coincidiria com a volta de parte das famílias que haviam saído para o
rio Envira; outras retornariam ao longo da década seguinte. Entrevistas com Sueiro Cerqueira Sales
(1979; 1991) e Agostinho Manduca Mateus (1992, 1995) relatam a passagem dessas famílias Kaxinawá
pelo rio Envira, seu encontro com Pedro Biló, as formas pelas quais chegariam ao rio Jordão, onde reen-
contrariam parentes separados fazia quatro décadas, e que julgavam terem sido mortos, e as razões (dentre
elas, o "cativeiro" dos patrões e a "carestia" de mercadorias) que levaram a maioria a voltar ao rio Purus
pouco depois, ainda que algumas optassem por permanecer nos seringais no rio Jordão.
283
gente" (Sueiro Sales, Depósito Natal, 1991). É nesse episódio que na história contada
pelo próprio Pedro Biló ganha fundamento a possibilidade de afirmar uma outra faceta
de sua trajetória, a de "amansador" de índios. "Eu amansei muitos caboclos brabos aqui
nesse rio Envira. (...) Trabalhei foi muitos anos para o Padrinho Custódio Prado e Ma-
drinha Neusa Prado nesse negócio de amansar caboclo brabo", diz Pedro na entrevista
de 1981, ao referir-se, não só aos Kaxinawá, mas às longas relações de patronagem e tu-
tela com os Katukina (Shanenawa), Ashaninka e Madijá.
Em 1976, aos 58 anos, Pedro Biló seria preso e algemado, por uma equipe da Po-
lícia Federal em sua casa, no alto Envira, onde pouco antes fora visitado pelo indigenis-
ta José Porfírio de Carvalho, recém chegado ao Acre para instalar a primeira Ajudância
da Funai. Conduzido à sede da Polícia em Rio Branco, onde prestou depoimento, reco-
nheceria ter participado de "correrias" promovidas por seus patrões, nas quais grande
número de índios acabara morto. Instruído por seu advogado, afirmaria, contudo, que
esses fatos teriam acontecido fazia 35 anos ou mais, pelo que foi liberado pela Justiça
Federal, sob o argumento jurídico da prescrição dos crimes (Pereira Neto, 1996: 66; Re-
vista Outras Palavras, 2000)
374
.
À diferença de Pedro Biló, Felizardo terminaria sua trajetória profissional no Alto
Juruá com o reconhecimento de autoridades de governo, seringalistas e comerciantes.
Poucos anos mais tarde, teria os serviços prestados como "catequista de índios" (e como
"guia" da Comissão Mista Brasil-Peru Demarcadora de Limites) reconhecidos pelo
374
Segundo Porfírio de Carvalho, as principais razões que o levaram a solicitar a prisão de Pedro Biló fo-
ram sua "fama" de "matador de índios profissional" e a captura de índias para usá-las sexualmente e ven-
de-las aos seringueiros (Revista Outras Palavras, op. cit.). Em 1981, Pedro Biló demonstraria ressenti-
mento pelas acusações recebidas à época, por não ter ele sido o único a ter realizado "correrias", inclusive
os "índios mansos" as fizeram, todos "mandados" dos patrões, a quem identificou como os "verdadeiros
culpados" e quem, por "serem ricos", permaneceriam imunes às perseguições, livres, inclusive, para ven-
der seus seringais a grupos econômicos do sul do país. E tornaria explícita sua mágoa por, após tanto tra-
balhar para os patrões, o governo federal (o 7º Batalhão de Engenharia e Construção, na aviventação dos
marcos da fronteira com o Peru, e a Petrobrás, nos estudos de prospecção de petróleo nas cabeceiras dos
rios Envira e Tarauacá) e os representantes desses grupos "paulistas" (Atalla-Copersucar e Atlântica Boa-
vista), encontrar-se perseguido e desamparado em sua velhice: "E o que foi que eu ganhei com isso? Na-
da! Só doença, só malária e fui até perseguido pela Funai. Por que a Funai não persegue os patrões dos
seringais, que mandavam fazer as correrias, e só persegue eu, que sou um pobre coitado, um velho que
não estou nem enxergando direito? Certo, houve correrias! Mataram muitos índios aqui no Acre. Mas, os
culpados são os patrões dos seringais, não sou eu, não. (...) Eu só ia para onde era mandado pela minha
madrinha Neusa Prado de Azevedo. Hoje, eu sou amigo dos Kampa, dos Kulina, dos Katuquina e dos
Kaxinauá (...) a Funai, em vez de me perseguir, deveria era demarcar as terras dos índios (...) Nasci e me
criei nas matas. Conheci cada grutião de mata de suas cabeceiras. E aqui estou, velho, com 63 anos, e
nem aposentado do Funrural eu estou. Da vida só fica mesmo a fama" (Aquino, 1987)
284
Congresso Nacional e pelo presidente Juscelino Kubitschek, com base nos documentos
por ele apensados ao pedido encaminhado ao deputado José Guiomard dos Santos
375
.
Para os Kaxinawá, por sua vez, o seu reconhecimento como "catequizador" advi-
ria da "proteção" prestada inicialmente contra as "correrias", mas também de iniciativas
para gradualmente incorporá-los aos trabalhos nos seringais, marcando uma linha de
continuidade com as práticas de Ângelo Ferreira da Silva:
"Os que matavam eram os outros, mas o Ângelo Ferreira mais o Felizardo faziam
era amansar pra trabalhar. No que ficaram lá, com Ângelo Ferreira e depois com
Felizardo, ficou trabalhando todo mundo ali junto, tudo Kaxi. Ficou conhecido
como catequizador, que amansou. Não deixou ninguém matar mais, maltratar.
Tiveram muito tempo com ele, com Felizardo" (Sueiro Cerqueira Sales, Seringal
Minas, 1994)
Homem de "oração forte"
Em sua pesquisa, o professor Joaquim Paulo de Lima (Maná Kaxinawá, 1999) faz
referência a outro atributo de Felizardo que fundamentava a confiança e o respeito que
os Kaxinawá lhe dedicavam. Segundo Joaquim Maná afirma ter ouvido de parentes da
geração de seus pais, os Kaxinawá acreditavam que Felizardo era possuidor de "poderes
mágicos", que lhe permitiam "esconder-se sem deixar rastro", "passar sem ser notado" e
não ser alvejado por armas de fogo, atributos que davam confiança aos Kaxinawá ao se
engajarem com ele nas atividades da "polícia de fronteira"
376
. Numa entrevista em 2005,
375
Dentre os documentos apresentados por Felizardo ao governo do Território do Acre e depois ao depu-
tado José Guiomard dos Santos, para gestionar a obtenção de uma pensão, consta um "Atestado de Con-
duta" lavrado pelo Delegado de Polícia de Cruzeiro do Sul, Alfredo Silva, devidamente carimbado com as
Armas da República, no qual se lê: "Atesto que, nesta Delegacia de Polícia, nenhuma nota se registra em
desabono da conduta moral e civil de Felizardo Avelino de Cerqueira, brasileiro, cearense, catequizador
de índios, 69 anos de idade, casado, domiciliado e residente neste município. Cruzeiro do Sul, 4 de no-
vembro de 1955". A inclusão desse documento reforça a importância atribuída por Felizardo à legitima-
ção de sua trajetória como "catequizador de índios", não só pelos seringalistas e comerciantes com os
quais trabalhara ou com outros patrões seus conhecidos, mas também pela autoridade policial do municí-
pio onde exercera suas atividades, como arrendatário de seringal, no rio Breu, nas duas décadas anterio-
res. Estes documentos, por outro lado, permitem dimensionar os sentimentos de mágoa e ressentimento
expressos por Pedro Biló, após ter sido, no seu entender, injustamente acusado, por ter trabalhado a
"mando dos patrões", e perseguido pela Polícia Federal e a Funai, órgãos do governo federal, para o qual
trabalhara em diferentes períodos.
376
Em entrevista recente, o professor Noberto Sales atribuiria a Felizardo algum "poder espiritual" que
lhe permitia entrar nas malocas: "(...) ele era estudante, aprendeu a andar na mata, a se esconder, ele ti-
nha algumas coisas, alguns poder, espiritual. Quando chegava na maloca entrava sem barulho, tirava
todas as armas, ou então cortava as cordas das armas, dos arcos, as linhas dos arcos. Aí, de manhã, co-
meçava aquela guerra. Não é matar. O pensamento dele era pegar, para amansar. Agora, tinha muitas
pessoas que matava muito. Agora, esse daí, Felizardo, não matava não" (Noberto Sales, Tenê Kaxinawá,
Rio Branco, fevereiro de 2007). Outro professor, Tadeu Mateus, atribuiria à "oração" essas habilidades de
Felizardo: "Diz que ele é homem religioso. Pode passar perto da pessoa, não consegue se ver ele. Ele ia
perto das pessoas que não têm contato, os índios isolados, ele ia lá para ver qual era o movimento deles
(...) Na religião, no estudo do branco, tem muito isso que se chama de oração. Diz as palavras de nosso
Pai, Jesus Cristo, e quem tem tudo, para se defender, às vezes para se defender do inimigo, às vezes con-
285
em meio às respostas às minhas indagações sobre como os Kaxinawá haviam concebido
Felizardo quando com ele viviam no seringal Revisão, Romão Sales assim comentou
sobre algumas das práticas que presenciara Felizardo exercer: "(...) Era o magnetismo.
O magnetismo parece que é espiritismo. Ele se concentrava, rezava pra ir dormir. A
gente dormia mesmo. Ele cantava. Era caboclo mesmo, caboclo guerreiro, caboclo fle-
cheiro. Tinha muita coisa mesmo" (Romão Sales, Aldeia Boa Vista, 28/5/2005). Surpre-
so com meu pedido para que se estendesse um pouco mais sobre esse tema, Romão sor-
riu e retomou outro assunto.
Essas informações motivaram-me a proceder com uma pesquisa exploratória so-
bre as práticas religiosas e espirituais de Felizardo, na tentativa de identificar pistas que
permitissem relacioná-las aos "poderes mágicos", às "orações" e às "muitas coisas" a ele
atribuídas pelos Kaxinawá durante a convivência que com ele mantiveram. Indicações
relevantes surgiram, em 2006, na leitura de trechos pontuais do relatório biográfico de
Felizardo e na conversa com suas filhas, Donas Yeda e Maria Luiza, no Rio de Janeiro.
Um conjunto de outros materiais foi então pesquisado para tentar contextualizar essas
informações.
Segundo suas filhas, Felizardo sempre foi homem profundamente religioso, "te-
mente a Deus", e tinha por costume fazer preces diárias. Em 1925, seria reconhecido
com o título de mestre na Loja Maçônica "Libertadora Acreana 4"
377
. Desligar-se-ia
da maçonaria pouco depois, contudo, por não sentir-se à vontade com o caráter restriti-
vo dos trabalhos e com "o segredo" exigido dos seus participantes. morando em Cru-
zeiro do Sul, onde em 1927, após finalizar sua participação como mateiro na Comissão
Mista Demarcadora de Limites, se casaria com Alzira de Souza, Felizardo passou a fre-
tra negócio. Principalmente para se defender. Ele sabia todo esse tipo de coisas " (Tadeu Mateus, Siã
Kaxinawá, Rio Branco, fevereiro de 2007).
377
Essa Loja fora fundada em Vila Seabra a 13 de julho de 1913, e era a quarta a ser criada no Território
do Acre, dez anos após a instalação da primeira, na cidade de Xapuri. Diz Tastevin (1926: 35-6) sobre
certos aspectos da vida religiosa dos habitantes de Seabra em 1924: "Par les liens de l'habitude et de
l'hérédité, tous les habitants de la ville e des environs, à l'exception des Orientaux, se réclament de
l'Eglise catholique.Ils en prennent à leur aise avec de dogme et la morale, marient sans scrupule le Pape
avec la franc-maçonnerie, le catéchisme romain avec le spiritisme et la soi-disant libre pensée, mais ils
se retrouvent tous autour de l'autel et aux pieds des statues pour les cérémonies du culte. Et cet exemple a
tellement d'influence que même les Orientaux druses et musulmans se laissent entraîner sur la méme voie.
On le vit bien à la fête de Saint-Joseph qui rassembla tant de monde, qu'on n'vait jamais vu pareille foule
dans Séabrá: beacoup de figures étaient inconnues; on se demandait s'ils n'étaient pas sortis de terre".
Nesse trecho, Tastevin faz também alusão ao novenário em homenagem a São José, padroeiro da cidade,
cuja organização ele próprio coordenara durante sua estadia em Seabra. À época, os missionários da Con-
gregação do Espírito Santo, com apoio das autoridades municipais e da imprensa, mobilizavam ampla
campanha de arrecadação de recursos, junto aos comerciantes e figuras destacadas da sociedade local,
bem como outros eventos (quermesses, bingos e sorteios), para a construção da sede da Paróquia de São
José (A Reforma, Cidade Seabra, Ano VII, Nº 294 e 295, 9 e 16/3/1924).
286
qüentar o "Círculo Esotérico Comunhão do Pensamento", onde se reuniam, dentre ou-
tros, seguidores do espiritismo kardecista. Sua presença era aguardada e respeitada no
Círculo. Nas "sessões de mesa", abertas com a "Prece de Cáritas", várias entidades espi-
rituais se manifestavam, incorporando e operando em participantes com dons mediúni-
cos, e almas desencarnadas eram doutrinadas no caminho da luz
378
. Mesmo após 1934,
quando voltou a trabalhar na floresta, primeiro no Alto Juruá peruano e depois no rio
Breu, sua presença era requisitada nas sessões do Círculo, durante suas estadias em
Cruzeiro do Sul, onde visitava sua família, entregava a produção do seringal que arren-
dara, acertava contas com seu patrão, Quirino Nobre, e fazia novos aviamentos de mer-
cadorias. Felizardo trabalhava habilmente com a hipnose, individual e coletiva. Segundo
Dona Yeda, costumava usar essa técnica inclusive com seus familiares, procurando aju-
dá-los a identificar e a esclarecer preocupações corriqueiras e auxiliá-los a progredir em
suas trajetórias espirituais pessoais
379
.
378
O jornal O Rebate, de Cruzeiro do Sul, a 21 de setembro de 1927, deu conta da perigosa expansão do
culto dedicado ao "Príncipe Jurema", iniciado anos antes e ainda chefiada por Chica Prestes, no qual se
fazia a ingestão da jurema, bebida utilizada por vários grupos indígenas na região Nordeste (Pessoa, 2007:
218-19; 256-57). O jornal noticiou uma recente ação policial que, com o objetivo de reprimir esse culto,
cercara a casa de Chica Prestes, levara os participantes da sessão à delegacia e resultara na instauração de
inquérito judicial, visando a punição dos acusados de promover "uma série de atentados à ordem e mora-
lidades públicas, praticada pela detestável seita, à sombra do falso espiritismo que pratica" (apud Pesso-
a, 2007 : 218). Em aberto apoio a essas medidas, diz ainda a matéria: "Não é de hoje nem de ontem que
há a necessidade de uma enérgica intervenção da autoridade, atinente a abolir de nossos costumes, o
culto da jurema (...) O peor é que tais práticas não se retringem à casa de Chica Prestes. Em muitos pon-
tos desta cidade e do interior se lhe tem criado sucursuais". Entrevistado pelo teólogo e filósofo Enock
da Silva Pessoa, Gilberto Correia da Silva, que junto com seus irmãos participara desses rituais, confirma-
ria que Felizardo freqüentara os rituais de Chica Prestes e que, em 1934, na Vila Humaitá, no rio Moa, a-
tuava como "líder" e "guia espiritual" em sessões semelhanes: "Felizardo abria a corrente com todas as
pessoas presentes, de mãos dadas, dizendo: eu chamo pela castidade de João e pela força de Sansão, e
jogava simbolicamente aquela força nas pessoas com as mãos. Os presentes, na maioria mulheres, caiam
no chão e mudavam de voz, Algumas que tomavam a bebida vomitavam (...)" (apud, 2007: 257). Por sua
vez, Pessoa aponta para a existência de pessoas "adeptas do espiritismo kardecista" em Cruzeiro do Sul
em fins dos anos de 1920, cujas atividades eram via de regra negligenciadas na imprensa local (2007:
219), para a primeira menção nos jornais "a um culto afro-brasileiro com raízes no Nordeste" (ibid: 256) e
para as evidentes semelhanças, no que diz respeito aos "elementos naturais", entre o culto da jurema e as
que hoje permeiam a doutrina do Santo Daime (ibid: 257). Dada a total inexistência de menções posterio-
res à prática de religiosas que teriam feito uso da jurema no Alto Juruá, e mesmo, salvo engano, da pre-
sença dessa espécie de acácia nas florestas da região, parece válido se perguntar se não teria sido a ayahu-
asca aquela bebida utilizada nos rituais.
379
Em sua biografia (Cerqueira, 1958: 163-4), na única referência que faz ao uso dessa técnica, Felizardo
narra uma sessão de hipnose coletiva, na qual os participantes foram "levados" às cabeceiras do Batã, a-
fluente do rio Javari, para saber do paradeiro de três mulheres peruanas, pouco antes capturadas por ín-
dios Nukini, após matarem seus maridos, fregueses de um patrão espanhol, José Lorena. Assim descreve
Felizardo os procedimentos adotados nessa ocasião, seus fundamentos esotéricos e os resultados logrados:
"Eu com o auxilio de estudo do esotérico, pude descobrir em mim uma força que vulgarmente chamam-
lhe de magnetismo. Esta força vem desde criança, mas, eu ignorava completamente e só muito tarde foi
que pude ir percebendo, mas, mesmo assim, em muitos casos, eu por não compreendê-la dava-lhe o nome
muito vulgar que quase todos ignorantes aplica (Diabo) (...) quando não é outra coisa esta força senão o
verdadeiro Deus. Vibração em auxilio a própria humanidade. (...) E como nesta ocasião encontrava-se
para mais de 20 pessoas presentes, eu procedi a uma hipnotização em todos que ali estavam. Sendo que 4
287
É difícil assegurar se Felizardo costumava fazer uso dessas práticas em meio aos
Kaxinawá, no período em que conviveram em Revisão. Até então, é plausível afirmar,
Felizardo era cristão devoto e freqüentava a Maçonaria quando suas atividades na flo-
resta permitiam. Com os Kaxinawá aprendera a apreciar o nixi pae (a ayahuasca), que
tomava com eles em rituais que incluíam o consumo de rapé de tabaco. Seria também
reconhecido como bom "rezador", e exerceria esse "dom" para tratar, nos Kaxinawá e
nos carius, de todas as idades, "males de reza" (como ventre caído, peito aberto, que-
brante, mal olhado, derrame, vermelha, tumor, caroço, inchação, desmentidura, dor de
cabeça, cobreiro e dor de dente)
380
.
As informações de Romão e Getúlio Sales sobre essas práticas de Felizardo se re-
ferem, por sua vez, ao período, nos anos de 1940, em que Felizardo se tornaria arrenda-
tário e patrão do seringal Busnã, no alto rio Breu, e Sueiro e seus irmãos, dentre eles
Romão, com ele trabalhariam como seringueiros. Fora durante os anos que viveu de
maneira mais permanente em Cruzeiro do Sul, na década anterior, que Felizardo desen-
volvera uma maior consciência esotérica e aprimorara seus estudos, despertando para
temas, saberes e práticas que marcariam sua trajetória espiritual até o fim de seus dias.
A presença e a participação de índios Kaxinawá em sessões em que Felizardo fazia uso
do hipnotismo, rezava, cantava e invocava "caboclos" ocorreu, pelo menos no rio Breu,
deles não foi atingidos pela hipnose. Levei-os ao estado sonambúlico, e pude conduzi-los pela auto-
sugestão (..) e pela visão mental, todos de uma só vez foram em comunhão de pensamento onde estavam
as ditas peruanas. No grupo hipnótico havia um homem por nome José Leonardo que se fez guia dos de-
mais hipnotizados, e por esse meio foram todos em número de 16 à maloca dos Nucu-inins, onde estava
lá como chefe um peruano místico por nome Aságama, da tribu Cheberos, que por ser valente não queria
convencer-se que era necessário entregar as peruanas. Mas fizemos resistência e fizemos uma serie de
ameaças até que por ultimo cedeu-nos o nosso pedido. Quer dizer, tudo isso foi feito sob uma ação mag-
nética sugerida que surtiu efeito verdadeiramente satisfatório. Pois passados uns 15 dias, não veio as
três peruanas porque uma adoeceu gravemente e morreu de catarro, mas duas os índios vieram pô-las
bem perto da foz do Galvo, um dos afluentes da margem esquerda do rio Javary.(...) Eu quando tive o
verdadeiro conhecimento das minhas forças internas, tratei de estar sempre em contato direto que cujas
freqüências me foi coerente com as mesmas. Tenho hoje um conhecimento acima de todos meus senti-
mentos e vejo claro como a luz do dia que a terra muito necessita que o homem cultive esta fonte lumino-
sa que dará aos homens um verdadeiro esclarecimento da verdade pura. Dizem os homens, que já estão
esclarecidos "Conheça a verdade, a verdade libertar-te-á". Os esplendores da força magnética que acha-
va acumuladas em todos os corpos que gravitam no cosmo, é a causa única de todos os fenômenos que
vulgarmente chamam milagre ou sobrenatural. Milagre ou sobrenatural não existe, jamais existiu neste
planeta, não há exemplo que possa-se constatar tais fenômenos. O que sempre toda vida existiu e existirá
é uma força que o vulgo sempre ignorou e que tem sido ela manejada por homens como Moisés, Josué,
Zoroastro, Jesus e muitos outros grandes iniciados. Onde ela foi mais estudada e praticada foi no Egito,
Grécia, Assíria, Fenícia, Babilônia, Tiro, Alexandria e muitas outras, trazendo à terra um esclarecimento
admirável. Mas, os homens sempre conservaram-na debaixo de um sigilo aterrador, dando origem às
embrutecidas censuras da ignorância da parte de quem não conhece (...)".
380
Sobre as atividades e importância dos "rezadores" nos seringais, ver Barbin Jr., 1996, 1999. Sobre a
importância dada a mulheres indígenas que, em meio aos brancos, trabalhavam como parteiras, curadoras
e erveiras, consultar Tastevin, 1926; Araújo, 1998; Wolff, 1999; e Pantoja, 2004.
288
como atestou Romão
381
. Os contextos e as formas como esses saberes e práticas eram
exercidos por Felizardo, como foram interpretados pelos Kaxinawá e, ainda, como esta-
vam inseridos nas relações que certas famílias então mantinham com ele, são questões,
todavia, que merecem maior atenção e aprofundamento em futuras pesquisas.
As considerações dos Kaxinawá quanto às "orações" e às práticas espíritas atribu-
ídos a Felizardo permitem, todavia, levantar outras questões: Elas contribuíram para a
crença, generalizada entre os Kaxinawá, outros indígenas e muitos "civilizados" de que
Felizardo, assim como outros personagens da época, era possuidor de um carisma e de
atributos extraordinários? Se, segundo essa crença, eram também esses poderes que ha-
viam permitido que tornasse um "afamado" mateiro e "catequizador de índios", que ex-
periências e técnicas, segundo o próprio Felizardo, legitimavam e possibilitavam-lhe
exercer essas atividades?
Conforme discutido num capítulo anterior, Felizardo considerava-se "predesti-
nado" a cumprir uma "missão" outorgada por Deus, com o objetivo de trazer "proteção"
e a "catequese" aos "índios", o bem-estar aos "civilizados" e a prosperidade ao Territó-
rio do Acre. Por outro lado, vale também lembrar que Felizardo seria, em várias ocasi-
ões, concebido ora como "um divino" ora como um "diabo" ao chegar às malocas e de-
pois como "protetor", capaz de pôr fim às "correrias", enfrentar caucheiros, "amansar"
"índios brabos" e escapar ileso das intrigas, ameaças e emboscadas preparadas contra
sua vida, tanto pelos "civilizados" como pelos próprios índios.
O uso da "oração forte" e o "corpo fechado" foram atribuídos a outros persona-
gens reconhecidos como "catequizadores" ou como "matadores" de índios. Assim como
Felizardo, Pedro Biló seria mais um, talvez o principal, deles. Novamente, um contra-
ponto entre esses dois personagens possibilita elucidar diferenças e semelhanças nas su-
as trajetórias, na forma como foram concebidos pelos Kaxinawá e por diferentes atores
e nas representações sobre as quais suas respectivas "famas" foram construídas.
381
Em entrevista mais recente, Getúlio Sales, filho de Sueiro, também falaria sobre "rezas" e técnicas de
hipnose usadas por Felizardo durante tratamentos feitos à época em que morou no rio Breu, na década de
1940: "Curador ele era, mas não era com remédio, ele rezava. Não era bem reza, era negócio de espírito.
Eu mesmo não vi, mas ouvi dizer. Mas, com meu pai, diz que estava doente, curou. Diz que estava muito
doente. Disse pra ele: "Rapaz, eu vou te curar". Diz que Felizardo estava curando muita gente, mas meu
pai duvidava. Diz que começou a rezar e meu pai ficou com sono. Ficou sentado, ficou que nem se está
dormindo, rezou e que meu pai acabou que ficou bom" (Getúlio Sales, Tenê Kaxinawá, Rio Branco, agos-
to, 2007). Já em final dos anos de 1930, no alto Juruá peruano, quando trabalhava na "proteção e seguran-
ça" das turmas de madeireiros aviadas de seu patrão Quirino Nobre, Felizardo relata ter trazido de volta à
vida um Kaxinawá, que, após ser atingido por uma tora de madeira, havia sido levado à sua presença por
outros quatro índios Ashaninka: diante da estupefação dos índios e dos demais presentes, Felizardo diz ter
realizado uma "operação", aplicando-lhe uma fricção com banha quente em todo o corpo e chamando, em
voz alta, o espírito do índio dado como morto pelos demais (Cerqueira, 1958: 167-68).
289
O depoimento de um seringueiro do rio Envira, transcrito por Terri Valle de A-
quino (1977: 43), ressalta uma visão generalizada naquela região, a de que as "orações"
de Pedro Biló permitiam-lhe fazer "correrias" contra as malocas sem ser pressentido:
"Pedro Biló não amansava caboclo não. Pedro Biló matava era muito caboclo. Ele an-
dava no mato e não deixava vestige. Entrava no cupichaua dos caboclos brabo e corta-
va as corda toda dos arcos e caboclo nem dava fé. Depois ele chamava os homi e cer-
cavam o cupichaua e aí fazia fogo. Pedro Biló é um home cheio de oração". Em 1977, a
primeira edição do jornal Varadouro, numa rie de reportagens que, dentre outros te-
mas, denunciava as "correrias" havidas durante a implantação dos seringais, novamente
destacaria "encantos" atribuídos a Pedro Biló
382
. Em sua dissertação, Ioris (1996: 151)
atesta ter ouvido, durante suas pesquisas no rio Envira e na cidade de Feijó, várias refe-
rências a Pedro Biló como homem "corajoso", "de fé", que "não tinha medo de caboclo"
e "sabia andar no mato", e que teria "o corpo fechado", pois as flechas não o atravessa-
vam.
Na entrevista concedida a Terri Valle de Aquino e José Carlos dos Reis Meirelles
em 1981, quando perguntado se, como era amplamente comentado, possuía "muitas o-
rações", que lhe permitiam "tornar-se invisível" junto com as demais pessoas que o a-
companhavam, "andar pela mata sem se perder" e "entrar no cupichaua dos índios e cor-
tar as cordas dos arcos sem ser notado", Pedro Biló, rindo, desmentiria esses atributos,
ao considerá-los meros boatos, "conversa do povo": "Eu conheço essas histórias. Isso é
tudo conversa deles. Conversa de quem não tem o que dizer. Depois que eu cheguei em
Feijó o povo tem contado muitas estórias de mim. (...) Isso é conversa do povo. Pessoal
conversa demais. Quem sabe alguma coisa não fica dizendo o que sabe. E, quem sabe
muito, sabe que não sabe nada" (Aquino, 1987).
Em seu relatório biográfico, Felizardo nenhuma menção faz à ter feito uso de "o-
rações" durante os anos em que viveu junto com os Kaxinawá nos rios Envira e Jordão.
À semelhança de Pedro Biló, Felizardo ressalta que, desde a sua chegada ao Território
do Acre, gradualmente adquiriu, "por conta própria", os conhecimentos e habilidades
382
Dizia a matéria: "(...) foi no Envira que cresceu a figura principal das "correrias", Pedro Biló, que de
tão desumano, brutal e sagaz, tornou-se quase mística. Dizia-se que aparecia e desaparecia nas matan-
ças, que tinha encantos e era de paz com o diabo. Podia transformar-se em cascavel para envenenar suas
vítimas ou em sucuri para atravessar pântanos nas suas rastejadas. Virava ventania, estava ao mesmo
tempo em muitas partes, fulminava pessoas a distância, com seu olhar de cão, e quem o tocasse poderia
sucumbir sob o peso de estranhas e terríveis maldições". ("Correrias. As mulheres corriam e eram fuzila-
das ou capturadas". Varadouro. Um jornal das selvas. Rio Branco, Nº 1, maio, 1977, pg. 10-11).
290
que lhe permitiram tornar-se "mateiro" e "catequista de índios", profissões pelas quais
obteria sua pensão do governo federal em 1959.
No que diz respeito ao seu ofício de "catequista de índios", Felizardo também tor-
na claro, ao longo do relatório, que a experiência acumulada nas muitas incursões às
malocas, nas ações de fiscalização e vigilância, na "pacificação" e "acomodação" de si-
tuações conflituosas e na "catequese" dos índios com os quais conviveu mais prolonga-
damente, eram as qualificações que lhe permitiram desempenhar sua "missão" com a
necessária maestria. "Os índios são inteligentes, sabem camuflar os incautos. não
enganavam a mim, porque eu, com o tempo, aprendi todos os seus costumes, as táticas
das suas mais sutis experiências. Os índios sabiam que como Felizardo nenhum outro,
nem mesmo o índio, tinha os conhecimentos que eu aprendi na prática" (Cerqueira,
1958: 117), diria, por exemplo, ao relatar uma situação em que procurava encontrar a
direção de fuga tomada por um grupo de índios após roubarem uma colocação.
Assim como Pedro Biló, Felizardo tampouco atribuiria a quaisquer "orações", ou
"poderes mágicos", mas sim à sua experiência prática, os conhecimentos e o savoir-faire
necessários às atividades que desenvolveu ao longo de sua trajetória profissional. A
crença dos Kaxinawá sobre aqueles poderes de Felizardo, derivada de sua habilidade de
chegar às malocas dos "índios brabos", confrontar os peruanos e comandar a "polícia de
fronteira", sem nunca ter sido gravemente ferido, bem como das práticas religiosas e es-
píritas que o viram exercer e de seu reconhecimento como bom "rezador" e ayahuas-
queiro, era sentimento que parece ter contribuído, em diferentes contextos, para balizar
e reforçar o respeito que lhe dedicam até o presente.
FC: a marca de Felizardo
Em seu relatório, Felizardo dá indicações de que os Kaxinawá foram aquele grupo
junto ao qual suas ações de "catequese" obtiveram resultados mais consolidados - apesar
de reconhecer que "Em caso algum me foi tão difícil a catequese quanto esta tribu"
(Cerqueira, 1958: 42). Ao contabilizar os resultados de seu trabalho como "catequista de
índios", Felizardo diria: "Todos os índios que foram mansos por mim, que são superior
a três mil, deixei-os na mais perfeita "Liberdade". Não prova concludente que des-
minta esta verdade" (1958: 102). Destaque é dado por Felizardo, sugiro, ao resultado
de suas ações voltadas para a "acomodação" de situações marcadas por conflitos e vio-
lências, com o estabelecimento de acordos que resultariam no cessar, ainda que tempo-
rário, das "correrias", dos roubos e das mortes, em salvaguardas para a "proteção" dos
291
índios e na possibilidade de aproveitamento pelos "civilizados" de áreas ricas em borra-
cha e caucho.
Na carta enviada ao deputado federal José Guiomard dos Santos em 1955, Feli-
zardo, diferentemente, especifica ter "catequizado" "para mais de trezentos índios" (Diá-
rio do Congresso Nacional, 1956: 12238). Este número, cabe ressaltar, coincide com o
total aproximado dos Kaxinawá que com ele permanecera após a diáspora no rio Envira,
o acompanhara na mudança ao alto rio Tarauacá e com ele se estabeleceu e trabalhou no
seringal Revisão.
Felizardo tinha por hábito marcar suas iniciais, FC, no braço de homens, mulheres
e crianças por ele "amansados". Assim aconteceu com parte dos Kaxinawá e com outros
índios que, enquanto Felizardo esteve em Revisão, ali chegaram, "pegos" em rondas da
"polícia de fronteira" ou por circunstâncias de suas trajetórias pessoais. Uma única
menção a essa prática é feita por Felizardo em seu relatório
383
: "Eu tinha o hábito de
marcar todos os índios com as letras FC e o número de ordem que fosse amansando"
(Cerqueira, 1958: 172). Em mais de uma ocasião, Sueiro comentaria que Felizardo tinha
por hábito registrar, num caderno, "grande, de capa dura", os nomes e as datas de nas-
cimento dos índios que marcara.
Em depoimento em meados dos anos 1970, parcialmente transcrito na dissertação
de Terri Valle de Aquino, Sueiro destacara que vários Kaxinawá haviam sido assim
"marcados": "Felizardo amansava caboclo e depois botava a marca dele para saber
que era dele, que foi ele que amansou. O Nicolau Costa, o Regino, Romão Sales, o Val-
demar Damião, esses caboclos mais velhos tudo, ainda carrega essa marca no braço.
Picava o braço com quatro agulhas e passava a tinta, que é jenipapo misturado com
pólvora e tisna preta de sernambi" (Aquino, 1977: 44)
384
.
383
Felizardo faz então essa referência quando da marcação dos índios "Mixinawa", quando, nos anos de
1934-1935, trabalhou na foz do rio Vacapistea, afluente da margem esquerda do alto rio Juruá, como "se-
gurança de turmas de madeireiros", aviadas por seu então patrão, Quirino Nobre, ex-representante da casa
aviadora Nicolaus & Cia. no Alto Juruá e, à época, proprietário de sua própria casa comercial, a Quirino
& Cia, e dono de todos os seringais antes pertencentes àquela casa aviadora (Cerqueira, 1958: 168-73).
384
Em caderno de campo que resultou de sua viagem ao rio Jordão em 1981, por sua vez, Terri assim es-
creveu: "Nesta viagem tirei várias fotos de velhos Kaxi que trazem no braço a marca FC (Felizardo Cer-
queira), feitas com tisna de poronga, misturada com pólvora. Amarrava 4 agulhas e pinicava com a tinta
desta mistura. Aqui no Jordão quem tem esta marca: João Pereirinha e seu irmão Regino Pereira, Nico-
lau Costa, Valdemar Damião, João Sereno, velha Cecília (mãe do Irapuã Caxambu), velha Alzira (uma
das três mulheres do Nicolau Costa). Essa marca era feita para dizer que pertencia a aquele patrão Feli-
zardo e não podia trabalhar para outro patrão. Além desta marca FC, vê-se as iniciais dos nomes pesso-
ais em português dos índios e em alguns tem até a data do nascimento" (Aquino, Caderno de campo,
1981: 39v-40). Duas fotografias tiradas por Terri, uma nessa viagem e outra em 1992, incluídas no Anexo
Fotográfico desta tese, mostram dois velhos Kaxinawá, ambos moradores de seringais no rio Jordão, com
os braços marcados com as iniciais FC.
292
Minhas primeiras conversas com alguns dos Kaxinawá mais idosos, em começo
dos anos 1990, serviram para dissipar minha suposição de que Felizardo, após capturá-
los em "correrias", havia marcado-os como animais e os mantido sob seu domínio, na
condição de "escravos", mediante violências e coerção. Na primeira entrevista que me
concedeu em 1991, Sueiro referiu-se a Felizardo como o "primeiro catequizador" dos
Kaxinawá, destacando os benefícios que haviam resultado de um relacionamento cons-
truído ao longo de quase vinte anos de convivência nos rios Envira, Tarauacá e Jordão.
E afirmou que muitos Kaxinawá haviam consentido com que Felizardo os marcasse,
pois fora ele quem os "amansara"
385
e com ele trabalhavam fazia muitos anos.
Numa entrevista posterior, Sueiro se referiu ao que acreditava ser o objetivo prin-
cipal dessa "marcação":
"Tinham ele como um pai, o Felizardo. E ele marcava, marcava com FC, como
que fosse tudo dele, pra todo mundo saber. Todo Kaxi tinha a marca dele, porque
foi ele que amansou. Felizardo era muito bom para nós. Era bom demais. Como o
índio é danado para ir trabalhar com o outro, foi por isso que marcou, como ta-
tuagem, marcava. Quando um índio saía para um canto, Felizardo dizia que era
dele, que trabalhava com ele, com a marca dele. Os índios sofriam muito na mão
dos outros patrões. Quando índio aparecia por lá, Felizardo ia buscar, levava de
volta" (Sueiro Cerqueira Sales, Seringal Minas, 1994).
Num contexto em que os patrões continuavam a defender a realização de "correri-
as" contra os selvagens "Papavô", a marcação tornava explícita, aos olhos dos "civiliza-
dos", a condição de "mansos" dos Kaxinawá. Por outro lado, a marca inscrevia na pele
dos Kaxinawá uma exclusividade que Felizardo pretendia exercer sobre as famílias que
"amansara", mantenda-os agrupados no seringal Revisão e dispondo da mão de obra dos
homens. Tomando por referência as idades dos velhos Kaxinawá que em meados dos
385
Esta consideração faz lembrar, ainda, a avaliação do delegado Luiz Sombra (1913) após sua visita às
malocas Kaxinawá no rio Iboiaçú, em 1905, ao mencionar o desejo expresso pelos índios de ser batizados
e de receber nomes de "civilizados", "cristãos", e registrá-los em papel, iniciativas que concebiam como
eficazes para proteger-se das "correrias" e violências promovidas pelos caucheiros e seringueiros contra
os "selvagens", "infiéis" ou "pagãos". Nesse sentido, a marcação feita por Felizardo nos Kaxinawá pode
igualmente ser vista enquanto "uma espécie de certidão de batismo", à "civilização", para fazer uso de
uma expressão utilizada pelo delegado. Em entrevista recente, o professor Tadeus Mateus, Siã Kaxinawá,
31 anos, assim considerou sobre a prática de Felizardo de marcar os Kaxinawá: "Tudo que trabalhava
com ele, ele ia registrando. Ele registrava nos braços de alguns velhos Kaxinawá, que eu vi dentro do
Jordão, que foi Felizardo que registrou ele, FC, assim no braço dele. Esse foi o primeiro documento dos
índios" (Tadeu Mateus, Rio Branco, fevereiro de 2007). A expressão "primeiro documento" começou a
ser utilizada pelos Kaxinawá do rio Jordão a partir de meados dos anos 80, ao se referirem à certidão de
batismo, lavrada pelos padres alemães durante as "desobrigas", e ao registro administrativo emitido pelos
Chefes de Posto da Funai em Tarauacá, por abrirem a possibilidade da obtenção dos demais documentos
(carteira de identidade, cadastro de pessoa física, títulos de eleitor e de reservista), necessários à aposen-
tadoria dos mais velhos, à contratação dos jovens em atividades remuneradas (professor, agente de saúde,
agente agroflorestal indígena) e, mais recentemente, ao acesso a benefícios oficiais como o Bolsa Família
e o Auxílio Gás.
293
anos 1970 tinham a marca de FC, parece plausível sugerir que essa marcação teria ocor-
rido na primeira metade dos anos de 1920, em uma conjuntura em que, com a morte do
patrão José Xavier Maia e as prolongadas ausências de Felizardo, então a serviço da
Comissão Mista, algumas famílias Kaxinawá tomavam a iniciativa de abandonar as ca-
beceiras do rio, descendo para locais abaixo da sede de Revisão, e a mão de obra indí-
gena seria objeto de interesse de patrões de outros seringais (e inclusive de um delegado
honorário do SPI, como será visto adiante).
A antropóloga Mariana Ciavatta Pantoja (2004: 139-140) apresenta outra dimen-
são dessa história, a partir de entrevistas e conversas com Maria Feitosa do Nascimento,
mais conhecida por Dona Mariana, hoje moradora da Reserva Extrativista do Alto Juru-
á, filha de Regina, índia Nehenawa "pega" por seringueiros em uma "correria" contra a
maloca de seus familiares no alto rio Envira, supostamente em 1911. Vinda do Envira,
casada com um seringueiro cariu, Regina permaneceria por um ano no seringal Revisão,
quando os Kaxinawá e Felizardo ali viviam. Dona Mariana relata que várias mulheres,
de diferentes povos, foram, a exemplo dos Kaxinawá, "marcadas" por Felizardo com
suas iniciais. Mas ressalta que várias se recusaram a receber a "marcação"
386
. Pantoja a-
tribui essa recusa ao orgulho dessas mulheres de terem sido "pegas", por outros patrões
ou seringueiros, na condição de "brabas", e seu desejo expresso de, por isso, diferencia-
rem-se dos Kaxinawá, "amansados" por Felizardo. A delimitação dessa fronteira estava
também referenciada, na trajetória pessoal de Dona Regina, à reconstrução de uma rede
de relações familiares com outras mulheres indígenas, nativas do rio Envira e depois
chegadas ao seringal Revisão, e à valorização dessa origem, geográfica e étnica, co-
mum, elementos também atualizados para diferenciar-se dos Kaxinawá (Pantoja 2004:
140-42; 149).
386
É o seguinte o diálogo das duas Marianas, aquela que rememora essa história e a antropóloga, gravado
em julho de 1998: "[Mariana Pantoja - MP] A senhora me falou (...) de umas índias que eram marcadas
pelo Felizardo Cerqueira, que a senhora conheceu. Eram Kaxinawá, essas índias que eram marcadas?
[Dona Mariana - DM] - Era não, era índia braba, pegada. [MP] - Ah, é? Que ele marcava? [DM] - Mar-
cava (...) se você quisesse que ele lhe marcasse, ele marcava você com o nome dele. Foi índia, se consen-
tisse... Ele marcou uma porção de índias que não foi ele que pegou. Agora, a minha mãe não deixou! A
minha mãe, a tia Maria, do Antônio do Carmo, a tia Maria do Amadeu e a tia Rita do Miguel do Gomes.
Mas a Rita do Toqueiro era marcada, a finada Eva era marcada, a Ditosa, a Nega, a Elvira, a Santani-
nha, a Raimundona; outra Raimunda, também, que saiu no meio dos brancos, ele marcou, e... a Dalgisa,
era marcada (...) [MP] - Mas marcava pra quê? [DM] - Porque era dele. [MP] - Mas, por exemplo, se
sua mãe tivesse consentido que ele marcasse ela, ela virava dele como? Virava mulher dele? [DM] - Ele
dizia que era índia dele, que tinha sido ele que tinha pegado. Minha mãe não consentiu. Quando ele dis-
se: - "Regina, venha pra mim marcar, marcar com meu nome", ela disse: - "Não, não foi você que me pe-
gou; quem me pegou foi o Joaquim Paraíba; eu nem lhe conhecia, eu era do Envira, e esses caboclos que
você pega, que você marca, é aqui, do Tarauacá com o Jordão"" (Pantoja, 2004: 139-140).
294
Essas narrativas e os processos de redefinição étnica analisados por Pantoja,
quando postos em diálogo com depoimentos e pesquisas dos Kaxinawá e com informa-
ções resultantes de minha pesquisa de campo, permitem introduzir outra questão rele-
vante nas relações mantidas por Felizardo e seus empregados "civilizados" tanto com
mulheres Kaxinawá como com outras mulheres aparentemente "pegas" em rondas da
"polícia de fronteira".
Conforme destacado anteriormente, a captura de mulheres e crianças foi fato
constante nas "correrias" no Alto Juruá. Esta prática constituiu forma freqüente dos se-
ringueiros, chegados solteiros do Nordeste, conseguir mulheres para iniciar suas pró-
prias famílias. Cristina Wolff (1999: 163-64) destaca o direito que os "pegadores de ca-
boclo" tinham sobre o destino das índias que capturassem nas "correrias". Trocavam-
nas, em certos casos, diretamente com seringueiros solteiros, muitas vezes por um rifle.
O mais comum, todavia, era que as vendessem ao seus patrões, por este mesmo "preço"
ou por quantidade equivalente, paga em mercadorias ou dinheiro ou creditada em borra-
cha. Os patrões, por sua vez, vendiam-nas a seus seringueiros "trabalhadores", maiores
produtores de borracha e detentores de "saldo" no barracão. Wolff especifica que em al-
guns casos, o montante pago por uma mulher indígena podia eqüivaler à produção de
um seringueiro "médio" durante uma safra anual, ou seja, de 400 a 500 quilos de borra-
cha.
Em pesquisa inicial para sua monografia de conclusão do ensino médio na Uni-
versidade do Estado de Mato Grosso (Unemat)
387
, diz o professor Joaquim Paulo Kaxi-
nawá:
"Com a vinda dos huni kui para o Jordão e Tarauacá, o Felizardo acompanhou
essas famílias, por ter se juntado com uma dessas famílias. Como o Felizardo
demonstrava ser o amigo dos huni kui, as magias dele de se esconder, para as
armas de fogo não dispararem nele, os huni kui se sentiam protegidos para en-
frentar os outros que ainda não tinham contato com o nawa (branco). E com is-
so o Felizardo Cerqueira se sentiu muito bem respeitado pelos huni kui. Com
esse respeito e confiança, fez muitas correrias junto aos huni kui, para adquirir
mais mulheres e homens" (Maná Kaxinawá, 1999).
Os depoimentos e entrevistas com os Kaxinawá e o relatório do próprio Felizar-
do não indicam que juntos tenham realizado "correrias", mesmo com a finalidade de
387
O tema final da monografia de Joaquim para a UNEMAT acabaria mudando, estando dedicada aos ke-
, desenhos das tecelagens, pinturas corporais e outros artefatos da cultura material Kaxinawá. Esse tra-
balho seria depois publicado, como livro, em iniciativa conjunta da Organização dos Professores Indíge-
nas do Acre (OPIAC) e da Comissão Nacional de Apoio à Produção de Material Didático Indígena
(CAPEMA) (Maná Kaxinawá, 2006).
295
capturar mulheres ou de incorporar homens como força de trabalho aos seringais. Afora
as mulheres "Papavô", remanescentes do "massacre", guardadas para os "pretensos civi-
lizados", como diz Tastevin (1926), e confirmam os depoimentos de Romão e Sueiro
Sales, escassas, contudo, são as informações a respeito das formas como homens e mu-
lheres indígenas, de outros grupos, acabaram sendo trazidos para o Revisão, ou ali che-
garam, conforme destaca Dona Mariana. O padre Tastevin faz referência a Felizardo e
os Kaxinawá, realizando a "polícia de fronteira", terem encontrado, ao redor de 1920,
duas mulheres Nehenawa e o filho de uma delas na mata, dois meses após seu grupo ter
sido atacado por caucheiros peruanos. Uma dessas mulheres, diz o padre, teria sido
transformada em "escrava" e vendida a um seringueiro branco, que a tomou por compa-
nheira (Tastevin, 1926: 49-50). Na mesma direção, em entrevista feita pelo professor
Joaquim Maná com Manoel Francisco de Souza, mais conhecido por Biu Amadeus
388
,
este comentaria, a partir de histórias ouvidas de seu pai, sobre índios e índias "pegos"
por Felizardo e os Kaxinawá, espalhados na mata, após terem sido objeto de "correrias"
feitas por homens de seringais vizinhos ao Revisão (Manoel Francisco de Souza, Tarau-
acá, 2005).
Segundo Sueiro, Felizardo, por "ser junto" com Raimundinha, uma Kaxinawá,
com quem teve filhos, constituíra relações de parentesco e afinidade com as famílias ex-
tensas que com ele viveram no rio Envira e no alto rio Jordão
389
.
Relações semelhantes seriam construídas por meio de uniões de mulheres indí-
genas, dentre elas Kaxinawá, com "empregados" de Felizardo. Essas uniões não tiveram
início no rio Jordão
390
. No rio Envira, ao fazer referência aos quatro "empregados" que
388
Morador em Tarauacá, Biu Amadeus é filho de uma índia Jaminawa, "pega" e depois "batizada" Maria
do Carmo, com o paraibano Amadeu Antonio de Souza, que viveu no rio Envira por vários anos, como
seringueiro, integrou turmas chefiados por Manoel Galdino, pai de Pedro Biló, e depois, no rio Tarauacá,
trabalhou como "mateiro geral" da casa comercial Melo & Cia, abrindo estradas de seringa. Segundo Biu,
seu pai teria participado de "correrias", "caçando índios", para evitar roubos nas colocações e mortes de
fregueses nos seringais da firma para a qual trabalhou como "empregado".
389
De outro lado, atestaram vários Kaxinawá, Felizardo manteve relações sexuais com mulheres indíge-
nas, tanto "pegas" nas incursões da "polícia de fronteira", como com mulheres Kaxinawá, algumas destas
bem novas, outras já casadas, muitas vezes na ausência de seus maridos. Essas práticas, envolvendo, em
certos casos, relações marcadas por atos de força e violência, em outras por "agrados" com mercadorias,
não foram objeto de aprovação inconteste da parte dos Kaxinawá; ao contrário, geravam desgosto e con-
denação, na forma de "queixas", de homens e mulheres. Os filhos que resultaram dessas relações passa-
geiras acabaram, por sua vez, incorporados às famílias extensas Kaxinawá, criados por suas respectivas
mães e seus maridos, ou por parentes mais velhos delas. Parece importante, todavia, levar em considera-
ção que, apesar do precedente que resultou no assassinato de Manoel Patrício anos antes no rio Envira, o
descontentamento gerado pelas relações sexuais mantidas por esse patrão com mulheres Kaxinawá, Feli-
zardo não teria o mesmo fim entre os "seus índios".
390
Segundo indica o professor Joaquim Paulo Maná Kaxinawá, essas uniões, envolvendo seringueiros,
caucheiros e "empregados" do barracão teriam tido início já no médio rio Tarauacá, em meados dos anos
1900, no período em que várias famílias extensas, de diferentes grupos falantes de línguas Pano, inclusive
296
viviam e trabalhavam nas proximidades de sua casa, Felizardo menciona Dedé, "casado
com a Dona Luzia, índia Caxi-naúa mais ou menos educada (...)" (Cerqueira, 1958: 95).
Na ocasião em que retornava do igarapé Surubim, onde, sem sucesso, tentara reagrupar
as famílias que haviam fugido após a morte de Manoel Patrício, Felizardo comenta que
ao chegar à casa de Dedé e comunicar a morte de vários Kaxinawá, Dona Luzia "não se
conteve, abriu-se em pranto, visto ir no grupo um primo adorado, José Catique" (1958:
96). Mesmo sem ter como saber sob que condições ocorrera a união entre Dedé e Luiza,
o episódio revela que a proximidade física e os sentimentos dessas índias por seus pa-
rentes que viviam nas malocas perduravam e eram prezadas, apesar daquelas estarem
casadas com "civilizados", e elas próprias serem consideradas como "semi-educadas”,
"mansas" ou "civilizadas”.
no seringal Revisão, Felizardo faz novamente menção a quatro homens que
tinha consigo como "empregados", dos quais, pelo menos um, Joaquim David, era casa-
do com Carmina, "cabocla Caxi-nauá, civilizada" (1958: 126). Na narrativa em que
descreve a maneira como escapou da emboscada dos Papavô, Felizardo destaca a inicia-
tiva de Carmina, que, ao perceber o perigo, correra e lograra arregimentar sete homens
armados para evitar o ataque eminente (1958: 126-27).
Assim como ocorrera no rio Envira, as uniões com homens "civilizados" não
implicariam numa ruptura das relações dessas mulheres com parentes que continuaram
a viver nas malocas distribuídas em diferentes localidades do seringal Revisão. Ao con-
trário, essas relações parecem ter contribuído para a ascendência de Felizardo sobre as
famílias extensas que ali viviam.
Ao comentar a lealdade dedicada a Felizardo pelos Kaxinawá que visitara no se-
ringal Revisão em 1924, o padre Tastevin (1926: 48) comentaria: "Cet homme a réussi à
fanatiser les Indiens qui sont tous prêts à verser leur sang pour lui. Il possède un harem
de neuf femmes qui'il met à la disposition de ses compagnons civilisés, pour le temps
qu'ils resteront avec lui. Il n'admet pas qu'on soit célibataire au milieu de ses Indiens".
Ao analisar o papel que Felizardo Cerqueira desempenhou no "amansamento"
dos Kaxinawá e na coordenação da "polícia da fronteira", Wolff transcreve parte de uma
Kaxinawá, foram incorporadas como mão de obra nos seringais de Ângelo Ferreira, quem teria incentiva-
do os casamentos interétnicos: "Pelos comentários dos mais velhos, sabemos que o Ângelo tinha a sua
administração muito boa e que a bondade dele acabou na bala dos capangas, do próprio chefe dele. Os
mais velhos me falaram que, apesar dos huni kui gostarem dele, ele sempre falava para eles de que ti-
nham que fazer o cruzamento, ou seja, o branco casar com a índia e o índio casar com a branca. Eles fa-
lam que a intenção dele era que todos fossem iguais aos brancos, com todos os direitos dos trabalhos e
não queria a classificação de raça branca e “índio huni kui”" (Maná Kaxinawá, 1999).
297
entrevista realizada em 1995 com Dona Mariana, a mesma interlocutora da pesquisa de
Pantoja (2003, 2004). Nessa entrevista, Dona Mariana rememora a formação de um
conjunto de famílias a partir de casamentos entre empregados e fregueses de Felizardo e
mulheres indígenas "pegas", destacando, à diferença do padre Tastevin, o também papel
ativo dessas mulheres na consumação dessas uniões:
"(...) minha mãe trabalhou um ano com esse homem, no seringal dele (Felizardo).
Quer ver, ele tinha a finada Raimundinha, a Mariquinha, Santaninha, Ditosa,
Nega, Elvira, Ritinha, um monte de cabocla, tudo era dele, sete cabocla. essas
caboclas se engraçaram dos freguês dele, dos empregados dele, a Rita, a mãe da-
quela Esmeralda, casou-se com o toqueiro, Cearense. A Mariquinha ajuntou-se
com o Antônio Belarnuto e a Ditosa ajuntou-se com o Délcio do Mato. [CW- Mas
aí, esse Felizardo, ele não achava ruim que elas se ajuntassem?] Não. Se se engra-
çasse e se o cara também quisesse. [...] foi essa Santaninha se ajuntou-se com
um cearense chamado Imediato" (Wolff, 1999: 179-80).
Sueiro, por outro lado, fornece informações que permitem relativizar a impressão
de que apenas "civilizados", fregueses ou empregados de Felizardo ou de José Maia, se
esposaram com mulheres indígenas "pegas". Na entrevista de 1994, por exemplo, Sueiro
fez menção a alguns Kaxinawá que também se "juntaram", em uniões temporárias, com
índias "pegas", bem como a filhos e famílias concebidos a partir dessas relações:
"O Zé Maia, um Kaxinawá, pegou uma cabocla Papavô, deram para ele. Fez Se-
verino, fez a mulher, a Júlia, que está casada com o Artur Miguel, meu primo. Ti-
nha o Major, que trabalhava para lá. Fizeram bem uns seis filhos nessa cabocla.
Severino construiu muita gente já, que está por aí. É filho de brabo, Papavô. É fi-
lho desse Zé Maia, Kaxinawá, que construiu sua família com brabo. Fez o Severi-
no e mais duas, uma menina e outro filho. Cada homem forte..." (Sueiro Sales, se-
ringal Minas, 1994).
Detalhadas informações sobre famílias que surgiram a partir da união de serin-
gueiros e índias são fornecidas por Wolff (1999) e Pantoja (2004), ao reconstruírem os
processos históricos pelos quais, nos anos de 1910 e 1920, vieram a se constituir alguns
dos grupos familiares extensos que hoje vivem na Reserva Extrativista do Alto Juruá,
limítrofe a três terras indígenas Kaxinawá, nos rios Jordão e Breu. As situações relata-
das por filhas de índias pegas em "correrias" não deixam dúvidas quanto aos processos
traumáticos vividos por suas mães, marcados por fugas e recapturas, por práticas violen-
tas usadas para "amansá-las", por vezes pela imposição de uniões com homens que, em
muitos casos, haviam participado das "correrias" que resultaram na morte de parentes e
no cativeiro inicial e por relações domésticas marcadas por diversas formas de violência
(Wolf, 1999: 165-67).
298
Parte da importância desses dois trabalhos reside, por outro lado, no seu esforço
por não considerar essas mulheres apenas como "objeto" de capturas, "vítimas" passivas
de violências ou submissões forçadas, mas, sim, como sujeitos ativos de trajetórias pes-
soais e coletivas arduamente construídas em meio aos seringueiros. Essas trajetórias in-
cluem, por exemplo, a escolha de seus companheiros, a ruptura de uniões com homens
"preguiçosos" ou violentos (inclusive com a morte destes), novos casamentos, a redefi-
nição de fronteiras étnicas, a diferenciação face a outros índios "amansados", a
(re)construção de redes de parentelas com outros indígenas ou de compadrio com outros
carius, bem como a obtenção de um gradual reconhecimento como atores portadores de
saberes e práticas valorizados no seringal. A relevância desses trabalhos deriva da com-
preensão dessas trajetórias em relação contextos culturais frutos de situações históricas
precisas, bem como da valorização das formas pelos quais os próprios atores interpre-
ta(ra)m essas trajetórias e as formas pelas quais estratégias próprias de sobrevivência,
individuais e coletivas, foram ativamente construídas.
Um "bom patrão"
Conforme acontecera anteriormente com Ângelo Ferreira, além de como "cate-
quizador", Felizardo foi também considerado um "bom patrão" pelos Kaxinawá que
com ele viveram e trabalharam no seringal Revisão, sabedores do tratamento dedicado
aos indígenas pelos demais patrões, seringalistas e caucheiros, no passado e àquela épo-
ca. Essa mesma imagem, do "bom patrão", seria depois atualizada pelos descendentes
daqueles Kaxinawá, nascidos em meio aos seringais e submetidos à dominação dos
patrões por décadas, alguns dos quais haviam tornado a trabalhar como fregueses de Fe-
lizardo, nos anos de 1940, cortando seringa em colocações do seringal Busnã, no alto
rio Breu.
Com certa admiração, Sueiro destacava que Felizardo aprendera a falar, com
fluência, o hatxa kui (a "língua verdadeira" dos Kaxinawá)
391
, e a "compreender" os "i-
diomas" dos demais grupos falantes de línguas Pano, com quem mantivera contatos e
convivera em diferentes períodos
392
. Esse conhecimento de Felizardo contrastaria, nas
391
Em duas entrevistas recentes, tanto Getúlio Sales, como Noberto Sales, matizariam essa consideração
de Sueiro sobre a fluência de Felizardo em hãtxa kuin: "Ele falava. Não falava bem, mas falava. Ele en-
tendia tudo. E falando com ele, ele entendia tudo também. Conversava algumas palavras. Não falava que
nem nós, mas entendia tudo" (Getúlio, agosto, 2007); "Falava hãtxa huin. Diz que falava. Entende bem,
mas fala pouco" (Noberto, fevereiro, 2007).
392
A habilidade de falar as "línguas indígenas" foi atributo reconhecido aos principais "catequizadores de
índios" (Ângelo Ferreira, Felizardo e Antonio Bastos) que trabalharam no alto Juruá. Essa habilidade foi
299
décadas seguintes, com a postura adotada por muitos seringalistas, que estigmatizariam
o txa kuin como "gíria" e procurariam ridicularizar e desincentivar seu uso na presen-
ça de "civilizados".
Segundo Sueiro, Felizardo sempre demostrou consideração pelos chefes das vá-
rias famílias extensas que compunham a "sua turma", não interferindo nas decisões rela-
tivas às alianças matrimoniais e políticas. Não colocava qualquer empecilho à realização
dos rituais e "festas", dos quais, inclusive, "tinha gosto em participar", conforme afir-
mou o professor Noberto Sales: "Nesse tempo, os Kaxinawá sempre dançavam, faziam
algumas festas. Felizardo acompanhava, tirava a roupa dele também, se pintava. Se
misturava com eles, incentivando a cultura. Comia nossa comida típica" (Noberto Sa-
les, Tenê Kaxinawá, Rio Branco, fevereiro, 2007).
Novamente, essa atitude contrastaria com a da maioria dos seringalistas nas déca-
das seguintes, que procuraria demover "festas" e prolongadas visitas entre as famílias
Kaxinawá moradoras de diferentes colocações, condenando-as por supostamente empa-
lharem o ritmo da produção de borracha e contribuírem para o acúmulo de débitos no
barracão. Os patrões legitimavam essa atitude com um discurso, compartilhado pela
maioria dos seringueiros, que atribuía aos "caboclos" estereótipos, por exemplo, de
"preguiçosos", "gente sem ambição", "ociosos", que gostava de "andar viajando", fa-
zendo festa ou tomando álcool, conforme constatou Terri Valle de Aquino (1977: 74-5),
em meados da década de 1970, durante suas primeiras pesquisas em seringais nos rios
Jordão, Tarauacá, Murú e Envira.
Após visitar o seringal Revisão em 1924, Tastevin (1926: 160) faria referência às
"danças religiosas", o katxanawa e o nixpu pima, realizadas para "apelar para a bênção
dos espíritos sobre as plantações; agradecer a colheita; espantar as más influências no
momento da passagem das crianças à idade núbil (...)". Mencionaria também o consu-
mo de vários tipos de caiçuma, fermentadas ou não, bem como o uso, pelos homens, do
pesada como fator positivo no recrutamento desses personagens em ações promovidas pelo governo fede-
ral. A Prefeitura do Alto Juruá e a Comissão de Obras dentre as iniciativas para "pacificar" a região quan-
do da abertura da estrada de rodagem entre Cruzeiro do Sul e Cocameira, constituíra uma turma de sete
homens para assentar em "meio às tabas", dois deles "falantes de línguas indígenas" (Andrada, 1907: 28).
Joaquim Nunes de Oliveira que em 1907 viajou por essa região a serviço da Comissão faz referência ao
desempenho de Felizardo também como "nossa língua" ("intérprete" e "guia", especifica o engenheiro)
(Oliveira, 1907: 68). O chefe da Comissão que demarcou a fronteira internacional com o Peru decidiria
pela incorporação às turmas não só de Felizardo, reconhecendo o domínio que este tinha da língua Kaxi-
nawá (Diário do Congresso Nacional, 1956: 12237), mas também de Antonio Bastos, no caso deste, para
exercer "o logar de interprete de selvícolas" (Silva, 1929: 112). Na entrevista concedida em 1981, Pedro
Biló relaciona Ângelo Ferreira, Felizardo, seu próprio pai, Pedro Galdino, e Manoel Lúcio, dentre aqueles
que, em tempos idos, "sabiam cortar a gíria dos caboclos" (Aquino, 1987).
300
tabaco moído, em forma de rapé, considerado por eles uma boa prevenção contra o ca-
tarro e a gripe, do huni (nixi pae, ayahuasca), para "conhecer o futuro, conversar com os
espíritos ou afugentar a sorte", e do sapo campú, cuja secreção era aplicada na pele
como "meio de ser bem sucedido na caça e vomitar o mau fado". Destacaria, ainda, o
conhecimento generalizado de grande número de "extratos dos vegetais da floresta", na
forma de remédios, usados contra diferentes males (picadas de insetos, febres, tosse,
golpes, tumores, dores de cabeça) (Tastevin, 1926: 158-61).
O respeito dedicado por Felizardo aos rituais Kaxinawá é também apontado por
Tastevin ao introduzir sua descrição da consumação dos corpos dos mortos pelos seus
parentes mais próximos e de seus ossos, torrados, moídos e misturados à caiçuma, por
toda a "tribo": "Les autres Indiens apprivoisés enterrent leurs morts après avoir détruit
tout ce qui leur avait appartenu, mais les Kachinaua de Felizardo mangent les leurs e
n'en ont pas honte (...)" (Tastevin, 1926: 162). Esta situação diferia daquela constatada
por Tastevin nos Kaxinawá que visitara meses antes no rio Mu
393
, quem, após cons-
trangimentos impostos pelos "civilizados", haviam aparentemente abandonado essa prá-
tica: "Aujourd'hui, grâce à l'énergie des chrétiens, il semble que ces coutumes aient
disparu. Il a fallu beaucoup lutter pour convaincre les Indiens. On les a vus déterrer
pendant la nuit des cadavres qu'on les avait obligés de confier à la terre pendant le
jour. Il fallut mettre des gardes aux sépultures indiennes en certaines points de
l'Hoyassú" (Tastevin, 1925: 34-35)
394
.
Em depoimento gravado pelo professor José Mateus Itsairu em 2001, dona Maria
da Conceição Martins Kaxinawá, nascida em 1916, e criada em Revisão, atestaria o res-
peito com que eram tratados por Felizardo, enquanto patrão, e a possibilidade que as
393
Tastevin diz ter encontrado, em 1924, apenas "uma tribo Kaxinawá organizada", no seringal Boa Vis-
ta, na margem direita do rio Murú, composta por 12 "famílias" e 31 pessoas (12 homens, 13 mulheres e 4
crianças), situação que levou o padre a afirmar: "(...) la mortalité infantile et la stérelité volontaire contri-
buent, autant que la chasse a l'homme, à exterminer les Indiens. La catéchèse positiviste, malgré les
ressources abondantes qui lui fornit l'État, s'est montrée d'une carence absolue" (1925: 413). Outras fa-
mílias estavam espalhadas pelas margens desse mesmo rio e outras, "mais ou menos misturadas" com os
"civilizados", por vários seringais. Seis outras viviam no Iboiaçú, rio em que o padre não pôde entrar de-
vido à pouca água. Cerca de uma dezena de mulheres Kaxinawá vivia junto com seringueiros, especifica
Tastevin (1925: 413-14).
394
Discutido em seu texto sobre o rio Murú (Tastevin, 1925: 34-5), o tema da consumação dos mortos se-
ria objeto de outros dois textos do padre, também de 1925, aos quais não tive acesso: "A Necrophagia nos
Cachinauas", publicado em "O Missionário" V(I): 19-20, e "Les Kachinawas mangeurs de cadavres", no
Annales Apostoliques, Ano XLI: 147-153. Outras referências a esse ritual, feitas a partir de observações e
relatos colhidos nessa mesma época no rio Jordão, são feitas pelo chefe da Comissão Brasileira de De-
marcação, Antonio Alves Ferreira da Silva (1929: 128) e pelo médico da comissão, João Braulino de
Carvalho (1928: 302-03).
301
famílias extensas tinham de permanecerem agrupadas, ao realizar trabalhos tanto para
sua subsistência como para o funcionamento do seringal:
"Nesta época morava um bocado de Kaxinawá com esse patrão. Eles trabalha-
vam na agricultura, fazendo farinhada, moagem, colhendo arroz, limpando roça-
do. Também eles viviam feliz fazendo roçado, plantando todos os legumes no ro-
çado e na praia (...) e usava de sua cultura, tradição, língua e de todos o seu cos-
tume. O patrão não proibia nada para os Kaxinawá, ele cuidava e tratava bem os
Kaxinawá. (...) Nesse tempo os Kaxinawá morava bem tratado, morava junto e
organizado no seu lugar de moradia, com sua família e com os parentes (Maria
da Conceição Martins, Depoimento gravado e transcrito por José Mateus, Itsairu,
2001).
Enquanto permaneceu em Revisão, Felizardo seria considerado patrão bondoso,
"homem da barriga cheia", afirmava Sueiro, pois "recebia bem em sua casa", sabia co-
mo organizar os trabalhos e estava sempre à frente deles, dava bons conselhos, mostrava
preocupação com o bem-estar de todas as famílias, e procurava mantê-las "unidas", não
deixando que espalhassem para outros seringais, onde dizia, seriam explorados pelos
patrões.
Sob sua coordenação, os trabalhos dos homens Kaxinawá permitiram que suas
famílias obtivessem mercadorias, instrumentos de trabalho, "objetos de valor" e "miu-
dezas", que Felizardo conseguiu suprir, com períodos que oscilavam entre uma maior
"fartura" ou a "carestia". "Ele levava todas as mercadorias pra gente. Levava terça-
dos, machados, alimentos para os trabalhos. Espingarda, nesse tempo, não tinha. Era
rifle. Levava. Levava munição para todos. Sal, querosene, tudo. Era muito bom para
todos", disse Sueiro (Seringal Minas, 1994)
395
.
A produção de borracha e de caucho feita pelos homens Kaxinawá era juntada por
Felizardo, que a trocava com seu patrão, José Xavier Maia, o "patrão chefe" do Revisão,
como diz Sueiro. As mercadorias assim obtidas eram entregues por Felizardo aos chefes
das famílias extensas, responsáveis pela sua distribuição entre os parentes e afins em su-
395
A importância que tinha a aquisição de algum desses "bens de valor" pode ser auferida nas palavras de
João Braulino de Carvalho, médico da comissão brasileira que demarcou a fronteira internacional, a partir
de observações feitas entre os Kaxinawá dos rios Envira e Jordão em 1923-24. Ao descrever as "armas"
usadas pelos Kaxinawá, diz: "Usam tambem, como arma de defesa e ataque, a Winchester calibre 44,
vulgarmente denominada "rifle". Para elles, a acquisição de uma dessas armas e respectiva munição
constitue a realização de um ideal supremo. O "rifle" do índio está sempre limpo, guardado com todo
cuidado e carinho" (Carvalho, 1928: 301). O acesso a uma grande quantidade de rifles, já em começo dos
anos de 1910, ainda no rio Envira, conseguidos por Felizardo junto ao seu então patrão, fato que se repeti-
ria depois no Jordão, conforme informa Sueiro, pode ser visto como outro relevante fator na avaliação po-
sitiva que os Kaxinawá tinham de Felizardo como "bom patrão", tendo em vista os benefícios que essas
armas haviam lhes trazido, principalmente, quando a munição estava disponível, nas caçadas de subsis-
tência.
302
as respectivas malocas. Quando esses bens não estavam disponíveis no barracão do Re-
visão, Felizardo, com a autorização de José Maia, baixava à Vila Jordão, na foz do rio,
para vender a produção dos Kaxinawá aos comerciantes e aos "regatões", dentre eles os
"turcos", como eram conhecidos aqueles de origem árabe, sírio-libanesa e maronita, que
nessa época controlavam boa parte do comércio na Vila.
Felizardo assumiria o seringal Revisão após a morte do patrão José Maia, baleado,
acidentalmente, numa "armadilha" montada por um seringueiro para matar alguma ca-
ça
396
. Pouco depois, com sua incorporação à Comissão Mista que demarcaria a fronteira
internacional Brasil-Peru, Felizardo continuaria tendo acesso a recursos, como parte da
remuneração recebida por seus serviços como "mateiro" e "prático", dos remanescentes
de mercadorias e medicamentos deixados pelas turmas da Comissão após os trabalhos
de 1923-1924, bem como da venda da produção de borracha, feita por um reduzido nú-
mero de fregueses e, em menor quantidade, pelos Kaxinawá. Durante os anos de 1923-
1927, em que Felizardo estaria diretamente envolvido nas atividades da Comissão, dois
de seus empregados, Chico Roseno e Antonio Belarnuto, ambos casados com índias
Kaxinawá, ficariam encarregados por coordenar as atividades realizadas pelos Kaxina-
wá e distribuir mercadorias, em troca da produção de borracha e dos serviços realizados
na sede do Revisão.
Sob o olhar do padre e o ataque do SPI
Em 1924, Tastevin visitou, durante um mês, os rios Tarauacá e Jordão, onde al-
cançou os últimos pontos habitados e realizou serviços de "desobriga" e pesquisas etno-
lógicas
397
. Extenso na apresentação dos dados etnográficos co-produzidos com os Kaxi-
396
É plausível estimar que a morte de José Maia tenha ocorrido em algum momento do triênio 1921-
1923. Documento encontrado no Cartório de Imóveis de Tarauacá dá conta do registro, a 8 de dezembro
de 1919, de documento de "quitação de hipoteca", no qual constam como "outorgante" José Garcia de Sá
Barreto e como "outorgado" José Xavier Maia. Em seu relatório, ao negar a possibilidade de atender o
primeiro convite feito pela Comissão Mista Demarcadora de Limites em 1920, Felizardo faria menção ao
compromisso que continuava a honrar com José Maia, para a "colonização" dos Papavô. Não faz referên-
cia depois, todavia, à morte do patrão ou a ter assumido o seringal Revisão, informações que surgem ape-
nas nos depoimentos dos Kaxinawá, Sueiro e Romão Sales, e em outras fontes orais. Por sua vez, os rela-
tórios do chefe brasileiro da Comissão Mista (Silva, 1926, 1929) e o texto de Tastevin (1926), resultantes
de viagens e trabalhos que incluíram estadias no seringal Revisão em 1924, nenhuma alusão fazem à pre-
sença de José Maia. O chefe da Comissão (Silva, 1929: 128) inclusive refere-se ao Revisão como o serin-
gal de Felizardo Cerqueira.
397
Em outras viagens a rios do Território do Acre, Tastevin (1920, 1925, 1928) também realizou detalha-
dos censos. No Alto Tarauacá, procedeu com o recenseamento da população, indígena e "civilizada", que
vivia nesse rio e em seus principais afluentes (Jordão, D'Ouro, Jaminauá e Joaci). O censo relaciona a po-
pulação que habitava acima da sede do Departamento (Vila Seabra), especificando sua distribuição pelos
seringais, e os dados agregados são desmembrados por gênero, faixa etária, condição religiosa e estado
civil (indicando, neste caso, um olhar específico de Tastevin, informado pelas suas atividades de religioso
303
nawá e na compilação de uma série de "légendes" e "croyances", como diz o padre, o
texto resultante dessa viagem (Tastevin, 1926) é econômico, todavia, ao descrever as
condições em que sua pesquisa e aquele serviço religioso foram feitos em Revisão
398
. Da
estadia nesse seringal e das formas como foi recebido e tratado pelos Kaxinawá, limita-
se a informar: "J'ai passé plusieurs jours et plusieurs nuits, seul en compagnie des
Kachinaua apprivoisés dans leurs campements: en dehors de quelque lourde
plaisanterie de la part des jeunes je n'ai eu qu'à me louer de leurs bons traitements, de
leur patience à satisfaire ma curiosité, de leur intelligence, de leur gaîté et de leurs
attentions de toutes sortes" (Tastevin, 1926: 54).
Minhas indagações aos Kaxinawá mais velhos sobre se recordavam ter visto ou
ouvido falar sobre a passagem do padre Tastevin pelo seringal Revisão poucos frutos
renderam. Meus interlocutores ainda não tinham nascido ou eram meninotes naquele en-
tão; seus pais, explicaram, pouco compreenderam as razões da presença daquele ho-
mem, por se tratar da primeira vez em que viam um padre e dadas as dificuldades em
compreender o português, provavelmente com forte sotaque francês, falado por Taste-
vin.
Durante nossa primeira entrevista, em 1991, fizera essa mesma pergunta a Sueiro,
aproveitando que ele discorria sobre as atividades de Felizardo junto aos Kaxinawá.
Fruto do que ouvira seu pai Chico Curumim contar, visto que Sueiro, à época, contava
com cerca de cinco anos de idade, as seguintes foram as suas palavras sobre essa visita:
"O padre Constantino, naquele tempo eu era pequeno. Chegou padre muito alto,
muito grosso. Foi batizar os índios velhos. Naquele tempo, não sabiam nem con-
durante uma "desobriga"). No rio Tarauacá, Tastevin revela ter produzido os dados do censo "muito exa-
to", da população civilizada, a partir de informações fornecidas pelos patrões, mas informa ter precedido
pessoalmente com a contagem dos indígenas. Faz menção, contudo, a ter escrito o texto que resultou da
viagem "reduzido às suas lembranças", pois, no baixo rio Jordão, à altura da "Ponte dos Índios", perdera
suas bagagens, suas anotações e "muitas outras coisas", e quase morrera, quando sua pequena ubá, condu-
zida por um jovem rapaz, "alagou-se" durante um repiquete (Tastevin, 1926: 36; 39; Rivet, 1926: 395; A
Reforma, Cidade Seabra, Ano VII, Nº 302, 22/6/1924, pg. 1). Segundo relatou o padre em entrevista ao
jornal A Reforma, dentre as "lembranças de muito valor estimativo" então perdidas estava "a sua medalha
de combatente, conferida no tempo da grande guerra, no campo de batalha, em França, pelo general seu
comandante". Comentários sobre os outros dados deste censo serão tecidos a seguir. Apesar de já decor-
ridos cinco anos desde a última "desobriga" feita pelo padre José Victor Fritsch, também espiritano, Tas-
tevin lamentaria, nessa viagem, ter celebrado em todo o rio Tarauacá apenas 240 batizados e 30 casamen-
tos, e constatado que os "sacramentos da penitência e da eucaristia" haviam sido menos freqüentados do
que em outros rios cobertos pelas ações da Prelazia. Tastevin atribui esses fatos ao "abandono" em que,
devido à crise na economia da borracha, então vivia a população, desprovida, inclusive, de roupas ade-
quadas para comparecer às cerimônias e de recursos para pagar pelos serviços religiosos (A Reforma, i-
bid).
398
Em nota publicada no Journal de la Société des Américanistes de Paris, dando ciência dessa viagem
do padre e de alguns dos resultados preliminares de sua pesquisa, Paul Rivet (1926: 395) informa que
Tastevin "remonta le fleuve jusqu'au dernier village indien oú il se séjourna quelques jours, recueillant
de nombreuses légends et des vocabulaires Kasi-nawa, Noha-nawa, Nisi-nawa et Masta-nawa".
304
versar. Quem conversava melhorzinho era o papai. Conversou muito com o pa-
pai, perguntando como era a vida dos índios. Conversou mais com ele. Naquele
tempo eu não compreendia nada também. Conversando, papai foi caçar, matou
anta. Não puderam buscar, com tanta chuva. Foram buscar no outro dia. O padre
era bom, não tinha tempo ruim com ele, comia tudo. Carne sentida, assim mesmo,
comia com nós. E ensinava a rezar, ensinava religião, mas naquele tempo, o pes-
soal não compreendia nada, né? Perguntando todas as coisas. Ele escrevia muito.
Aí, o padre Constantino perguntou se índio rezava. Papai disse: "Reza. Toda reli-
gião nós temos". Constantino falou: "Reza pra eu ouvir". Papai foi cantar, foi re-
zar, e depois disse: "Esse é o começo, nós podemos rezar assim". O padre ficou
muito contente, tomou nota, levou" (Sueiro Sales, Depósito Natal, Seringal Alto
do Bode, 1991).
Ainda que sucintas, essas informações dão indicações sobre as atividades religio-
sas do padre
399
, seus interesses e práticas de pesquisa, as relações estabelecidas, o papel
de principal interlocutor assumido por Chico Curumim e, ainda, como a presença de
Tastevin foi avaliada pelos Kaxinawá, à luz de valores prezados na sua cultura, relacio-
nadas ao orgulho do bom caçador, do "bem receber", com carne, do "comer junto", do
apreço do visitante pela comida oferecida, mesmo que esta estivesse "sentida" e, ainda,
do respeito e alegria demonstrados pelo padre com relação às tradições Kaxinawá, espe-
cificamente por suas "rezas" e cantos.
Considerações relevantes podem ser tecidas, por sua vez, a partir de uma análise
dos dados do censo produzido por Tastevin no rio Jordão. À diferença dos 335 índios
que, segundo Felizardo, integravam "sua turma" quando da chegada ao alto Tarauacá, o
padre recenseou 184 índios (51 homens, 63 mulheres e 70 crianças) no seringal Revi-
são
400
, que, por várias vezes, denomina os "Kaxinawá de Felizardo" e, em uma ocasião,
os Kaxinawá "domesticados"
401
. Na foz do rio Jordão, relacionou outros 33 Kaxinawá
(13 homens, 13 mulheres e 7 crianças), que, segundo o padre, viviam "sous l'égide de la
399
Nos textos escritos para publicações especializadas (como La Geographie e Journal de la Société des
Américanistes), Tastevin não detalha ou quantifica os resultados dos trabalhos de "desobriga" realizados
junto aos índios e "civilizados" em diversos rios da Amazônia nas décadas de 1910-1920, informações es-
tas que circulavam em documentos restritos à Congregação ou em publicações especializadas, dentre elas
a Missions Catholiques. Ver, por exemplo, Tastevin, 1914; 1924.
400
O Chefe da Comissão Brasileira Demarcadora de Limites, que também esteve no rio Jordão em 1924,
pouco após a passagem de Tastevin, reafirma os números de Felizardo, ao informar que o "mateiro" da
Comissão tinha em seu seringal "cerca de 300 "Cachinauas" por ele domesticados" (Silva, 1929: 128).
Castello Branco (1930: 596) escrevendo em 1922 estimara um número maior de Kaxinawá: "Em numero
superior a 500, vivem entre as cabeceiras do rio Breu e Tarauacá, os Kaxinauás, chefiados por um cate-
quizador cearense". Em trecho à continuação, ao relacionar alguns dos principais "catequistas" reconhe-
cidos no Alto Juruá, Castello Branco relaciona "Felizardo Avelino Cerqueira, nas terras altas que sepa-
ram o Breu do Jordão (...)", especificando desta vez o nome do "catequizador cearense" (ibid: 601).
401
Em outras oportunidades, contudo, Tastevin faz alusão aos Kaxinawá utilizando a expressão "indiens
apprivoisés". A tradução de "apprivoiser" é "domesticar, domar, dominar, civilizar, amansar, moderar, so-
frear, amestrar" (Dicionário Francês-Português Português-Francês. [Éverton Florenzano (ed.)], Rio de
Janeiro, Edições de Ouro/Editora Tecnoprint, 1972: 24).
305
"Commission de Protection des Indiens" représentée para un Italien" (Tastevin, 1926:
51)
402
. Ainda segundo o censo, um total de 247 "civilizados" vivia nos oito seringais do
rio Jordão: 20 em Revisão; 18 no Transvaal; 19 no Sorocaba; 14 no Fortaleza; 50 no
Bom Jardim; 18 no Bonfim; 64 no Nova Empresa; e 44 no Boa Vista (Tastevin, 1926:
49)
403
.
Incluídas as famílias indígenas da foz, os Kaxinawá constituíam, portanto, pouco
menos de 47% do total da população dos seringais do rio Jordão. Os "Kaxinawá de Fe-
lizardo", por sua vez, representavam quase 43% desse total e pouco mais de 90% dos
moradores de Revisão. O pequeno total de "civilizados", incluídos Felizardo e seus
empregados, em Revisão indica um reduzido número de seringueiros solteiros, bem
como a subutilização do potencial produtivo do maior seringal do Jordão (60 estradas de
seringa, nas escrituras lavradas em cartório, ou 75, segundo patrões que ali depois traba-
lharam). Ambos esses fatos podem ser relacionados à "má fama" atribuída ao Revisão,
devido aos ataques dos "Papavô" e as mortes de seringueiros desde a sua abertura, bem
como aos desdobramentos que a crise na economia da borracha trouxera ali e em todo o
alto Tarauacá, resultando no êxodo de muitos seringueiros.
A existência, nessa época, de três famílias extensas Kaxinawá vivendo na foz do
rio Jordão, chefiadas por Feitosa (Yube), Conrado (Himã) e Peres (Murú), foi atestada
por Sueiro em nossa conversa de 1996. Apesar da dificuldade de locais adequados para
plantarem "de vantagem", em benefício próprio, na terra firme e nas praias, e da proxi-
midade da Vila Jordão, essas famílias teriam ali permanecido até início dos anos 1930.
402
Tastevin informa, ainda, da existência, em 1924, de outros dois grupos de famílias Kaxinawá vivendo
no médio curso do rio Tarauacá: o primeiro, com 19 pessoas, no seringal Primavera e o outro, com 28
pessoas, no seringal Atenas. Ambos, portanto, próximos aos locais onde duas décadas antes, a serviço da
Comissão de Obras Federais, Felizardo estabelecera seu posto de "fiscalização e vigilância" e onde pouco
depois permaneciam sob a "catequese particular" do patrão Francisco Rodrigues da Silva. Segundo Tas-
tevin, assim como as famílias que então viviam na foz do Jordão, esses outros dois grupos Kaxinawá e-
ram oriundos das cabeceiras dos rios Gregório e Primavera, e haviam tido Tescon como chefe na primeira
década do século. Malocas Kaxinawá existiam também no seringal Caxinauá, nas cabeceiras do rio Gre-
gório. Tastevin cita ainda um grupo Jaminawa no seringal São Luiz, originário do Riozinho da Liberdade
e do rio Gregório, bem como três grupos Katukina (no seringal Atenas, no igarapé Catuquina e no serin-
gal Caxinauá). Segundo o padre, essas famílias Katukina eram constituídas por uma amálgama de vários
"clãs" "amansados" por Ângelo Ferreira, aos quais se somavam os Yawanawá, Iskunawa, Hununawa, Es-
kinawa, Vamunawa, Vuinawa e Shanenawa (Tastevin, 1926: 50-1). Levando-se em conta os grupos indí-
genas que viviam nos rios Tarauacá e Jordão, somados aos cerca de 300 índios "selvagens" que estimava
viverem nas cabeceiras desses rios, Tastevin contabiliza uma população total de 661 índios. Segundo os
dados de seu censo, este total representava 18,7% da população dos rios Tarauacá e Jordão (não inclusos
aí os habitantes de Vila Seabra). Levando em conta todo o Vale do Tarauacá, no Território Federal, e o
rio Gregório, Tastevin estima mais 370 índios "domesticados" (100 no Murú, 150 no Envira, 60 no alto
Gregório, 60 no alto Acuraua), um total, portanto, de quase um milhar, bem menor, constataria, que os
quatro mil estimados no mapa do Engenheiro João Alberto Masô (1910/1917).
403
O Mapa 6, nos anexos, mostra a localização dos dois principais agrupamentos Kaxinawá no rio Jordão
à época, em Revisão, na cabeceira do rio, e em Parthenope, nas proximidades da Vila Jordão.
306
A partir de então, com outros grupos extensos, optariam por migrar para colocações de
vários seringais no médio rio Tarauacá, inclusive para as cercanias dos antigos locais
movimentados por Ângelo Ferreira, como Lupuna e Cocameira (Sueiro Cerqueira Sales,
Aldeia Posto de Saúde, 1996; Iglesias, 1995).
O seringal São João, sito à margem direita da foz do rio Jordão e em ambas as
margens do alto rio Tarauacá, nas adjacências da Vila Jordão, foi conhecido por Itália,
antes de passar a ser denominado Parthenope. Teve seu "título definitivo" expedido pelo
Governo do Amazonas em 1903 (CRI de Tarauacá, Livro 2-A, Matrícula 158, fl.
167/167v). O bacharel em direito e promotor público Antonio José de Araújo (2003:
152-53), em 1908, cita Saverio (Xavier) Giordano e seu irmão Pedro, homens de "gran-
de trato comercial", como proprietários da firma Giordano & Irmãos, sediada na foz do
rio Jaminauá, afluente da margem direita do médio Tarauacá, sem fazer qualquer alusão
à sua nacionalidade estrangeira. Dados obtidos em duas edições do jornal O Município,
de Vila Seabra, de 1915 e 1917, indicam que Mário e Antônio Giordano, ambos italia-
nos, haviam chegado à Vila Jordão em 1912, acompanhados de seu pai, Xavier Giorda-
no. Em maio de 1915, informava o jornal, a casa comercial Irmãos Giordano & Cia, se-
diada em Parthenope, operava com "compra e venda de mercadorias e outras transações
do ramo". Mário Giordano faleceria, doente, em junho de 1917, ficando seu irmão An-
tônio à frente da casa comercial. O Parthenope constituiu propriedade de Xavier Gior-
dano até 1934, quando foi vendido a Munir Bissat, brasileiro naturalizado (CRI Taraua-
cá, ibid), quem, durante alguns anos, pessoalmente movimentaria o seringal e manteria
uma loja comercial na Vila Jordão.
Nenhuma indicação surgiu nos depoimentos dos velhos Kaxinawá de que, em me-
ados dos anos 1920, houvesse qualquer atuação do SPI nessa região, fosse por meio de
funcionários próprios ou de seringalistas nomeados como "delegados de índios". Com
base no texto de Tastevin (1926) e na reconstrução das cadeias dominiais de vários se-
ringais do rio Jordão, perguntei a Sueiro, em 1996, se ouvira falar do italiano a quem o
"padre Constantino" identificara como representante do órgão indigenista na foz do rio
Jordão. Respondeu Sueiro que escutara falar de "Giordano" como dono do seringal Itá-
lia e comerciante de algum porte, mas desconhecia sua condição de estrangeiro, sua
vinculação com o SPI ou qualquer "catequização" que tivesse feito junto aos Kaxinawá
na foz do Jordão ou junto a quaisquer outros índios.
Informações pontuais sobre a atuação de Antônio Giordano como delegado do SPI
nessa região foram obtidas na documentação consultada no SARQ/MI. Uma carta do
307
Inspetor Bento Martins Pereira de Lemos, escrita em Manaus a 26 de setembro de 1922,
e endereçada, com "afetuosas saudações", ao "prezado amigo", permite saber que Gior-
dano estivera na sede da Inspetoria pouco antes, onde o encontrara o inspetor, mas
deixara uma carta alertando-o de sua visita. Em sua carta-resposta, o inspetor lamenta o
desencontro havido e a impossibilidade de terem conversado "sobre a situação indígena
no rio Jordão", desejando que isto pudesse acontecer na próxima visita de Giordano a
Manaus. Comunica, ainda, o envio de um "vale postal", tomado de "forma particular",
em seu próprio nome, no valor de 72$000, como indenização pelo frete, já pago pelo de-
legado, relativo ao transporte de nove volumes de Seabra à foz do rio Jordão
(SARQ/MI. Microfilme 31, Planilha 383).
A outra informação sobre a atuação de Antônio Giordano como representante do
SPI no alto Tarauacá consta de relatório de lavra de Bento de Lemos, referente às ativi-
dades da Inspetoria em 1922
404
. Na seção "Escravização de índios", tema recorrente em
seus relatórios, o inspetor assim informa:
"No seringal Revisão, do rio Tarauacá, organizou-se uma espécie de feudo, sob o
domínio do peruano Felizardo Cerqueira, que traz escravizada uma infinidade de
índios da tribu Cachinaua. Tomando o caso na devida consideração, o delegado
desta Inspectoria na fóz do Jordão conseguiu promover uma fuga de alguns des-
ses selvícolas, localizando-os em terras do seu seringal Paternope, no mesmo rio,
onde gosam de inteira liberdade e protecção. Depois disso, sabendo que Felizar-
do ia deportar o resto dos índios para Ucayale, no Perú, o delegado pediu provi-
dências às autoridades da cidade de Seabra, não logrando o menor resultado. À
vista officei ao Governador do Acre reclamando medidas positivas e enérgicas no
sentido de que não se consumasse tamanho crime que attenta contra a soberania
das nossas leis e constitue uma affronta ao nosso país. Não sei, entretanto, se o
Governador já tomou as providencias solicitadas" (Lemos, 1923: 16)
405
.
404
Agradeço novamente à colega Ana Flávia Santos pelo repasse desse documento, que fotografou, com
câmara digital, durante pesquisa documental realizada na sede da Funai em Manaus, em início de 2007. À
diferença dos outros documentos de Bento de Lemos, esse relatório, de 1923, não foi por mim identifica-
do no acervo microfilmado do SARQ/MI.
405
Informação mais resumida destes acontecimentos seria novamente destacada por Bento de Lemos no
relatório encaminhado à Diretoria do SPI, referente às atividades da Inspetoria no exercício de 1924, tam-
bém na seção destinada ao tema "Escravização de Índios": "Na região do Tarauacá, Território Federal
do Acre, o delegado desta Inspetoria libertou 12 índios cachinauás, que viviam seqüestrados na senzalas
do peruano Felizardo Cerqueira, recolhendo-os ao seu seringal "Parthenope", onde passaram a viver li-
vremente com outros silvícolas alli domiciliados, que se dedicam aos serviços da lavoura" (Lemos, 1925:
40). Um fato curioso merece destaque com relação à menção feita por Bento de Lemos sobre o ofício que
enviara ao Governador do Acre, cobrando providências em relação aos crimes e às intenções atribuídos a
Felizardo Cerqueira. Nenhuma ação nesse sentido foi efetivada pelo governo do Território do Acre até ja-
neiro de 1923, de quando o primeiro relatório é datado, ou posteriormente. A 17 de fevereiro desse ano,
tomaria posse como governador do Acre, cargo que ocuparia até maio de 1926, José Thomaz da Cunha
Vasconcellos, ex-prefeito do Departamento de Tarauacá, quem, em 1917, endossara a carta, assinada por
sete proprietários do alto rio Tarauacá, recrutando os serviços de Felizardo para "acomodar" os Papavô.
308
Baseada em informações recebidas do próprio delegado, provavelmente quando
de sua passagem por Manaus, esta ação destacada por Bento de Lemos (1923, 1925) es-
tava inserida nas preocupações e nas linhas de atuação de sua gestão à frente do SPI no
Estado do Amazonas: o combate a diferentes modalidades de escravidão indígena e às
atividades de estrangeiros em terras habitadas por indígenas em regiões fronteiriças, nas
quais "correrias", a subjugação da mão de obra indígena e a destruição de recursos natu-
rais das florestas ocupadas pelos índios eram ocorrências comumente denunciadas.
As acusações de Antônio Giordano contra Felizardo, endossadas nos relatórios de
Bento de Lemos, ganham dimensão quando contextualizadas em relação à recorrente
crítica feita pelo inspetor sobre práticas dos "proprietários dos seringais" que resultavam
na "escravização dos índios": tanto "meios violentos ("caçando-os nas florestas ou apri-
sionando-os nos ataques que fazem às malocas"), como "meios brandos" ("pelo comér-
cio que procuram com eles estabelecer, ou pela ascendência que o civilizado exerce so-
bre eles, de índole geralmente tímida") (Lemos, 1920)
406
. Bento de Lemos condenaria o
aproveitamento pelos patrões da mão de obra indígena, a obrigação do trabalho a troco
de "mísera alimentação", a utilização do "velho tronco" (semelhante ao dos antigos "se-
nhores de escravos negros") em casos de revoltas dos indígenas, o endividamento dos
índios nos barracões, extensivo a toda a família do devedor, pela imposição de "merca-
dorias imaginárias", ou vendidas por um preço excessivo", e o retorno imposto pelos pa-
trões em casos de fugas (Lemos, 1920: 8-9).
Em seu relatório de 1922, o Inspetor volta à carga contra a prática de "escraviza-
ção de índios", reconhecendo que as ações da Inspetoria não haviam resultado numa
"completa solução" para esse "problema", com a "libertação radical dos selvícolas"
(Lemos, 1923: 15). Avanços haviam sido logrados, destaca, com a fundação de vários
"postos", resultando em um "serviço permanente de proteção", nos quais a "vigilância"
dos funcionários pusera um fim às formas de "escravismo", e permitira que os índios
gozassem "uma vida de relativo conforto, recebendo roupas, medicamentos, materiais
agrários para os seus serviços de cultura agrícola, além de outros benefícios (...)"
(1923: 40). Apesar dos constantes esforços da Inspetoria, que procurava recrutar o apoio
406
No relatório seguinte da Inspetoria do SPI no Amazonas, no subtítulo "A libertação de índios", ao ver-
sar sobre a "escravidão humana" que "revivia" na Amazônia, fornecendo um triste exemplo aos estrangei-
ros que viajavam pela região, por evocar-lhes uma situação semelhante "aos tempos do feudalismo medi-
eval", Bento de Lemos explicita outra modalidade de submissão imposta aos índios pelos "modernos fei-
tores": "Outros proprietários, quando não visam o interesse comercial, deixam ver um intuito mais baixo
e aviltante, seqüestrando índios em suas feitorias para tão somente reduzir as mulheres e filhas dos paci-
entes à triste condição de concubinas, zombando assim da honra alheia" (Lemos, 1926: 44).
309
de forças policiais e retirar índios do poder dos "suzeranos", "localizando-os nos postos"
ou fazendo-os regressar às suas malocas, o pequeno número de unidades permanentes
do SPI, as grandes distâncias destas das malocas e a dificuldades de transporte contribu-
íam, todavia, para perpetuar os castigos e a sujeição dos índios em trabalhos pesados e
não remunerados (1923: 15-6; 40).
Por esse motivo, diz Lemos, a Inspetoria insistira, em várias ocasiões, na criação
de novos "postos", em locais onde numerosos grupos viviam "no mais completo aban-
dono". "No intuito de fazer cessar, de uma vez, por todas", a "escravização de índios",
tornaria a defender a "conveniência" de que a Diretoria do SPI destinasse recursos mais
significativos à Inspetoria, de modo que "possamos ajudar os nossos delegados em dili-
gências a pontos longinquos e fundar mais alguns postos nos rios attingidos pela cobi-
ça dos aventureiros que fazem do índio um elemento servil, sem liberdade, sem conforto
e sem o direito de viver no seu próprio lar" (Lemos, 1923: 17). Dentre os locais nos
quais, segundo o inspetor, tornava-se premente a fundação desses postos, constavam, no
Território Federal do Acre, o alto rio Envira e a foz do rio Jordão, no Município de Ta-
rauacá, e os rios Amoaca e Gregório, no Município do Juruá
407
.
No caso do Alto Tarauacá, ao comunicar, em 1922, ao inspetor fatos positivos de
sua atuação, o delegado Antonio Giordano tinha por objetivo legitimar sua própria posi-
ção no campo indigenista constituído pela "situação indígena no rio Jordão". Para tal,
faria uso de informações distorcidas, quanto à nacionalidade de Felizardo, à alegada e-
xistência de "senzalas" nas quais os Kaxinawá viveriam "seqüestrados" - à diferença da
407
Em outro trecho do seu relatório, Bento de Lemos (1923: 20-1) destaca nova razão para considerar a
instalação de um posto indígena como prioritária no alto rio Envira, local que já indicara, junto com o rio
Amoacas, nos relatórios encaminhados à Diretoria do SPI, relativos aos anos de 1919 e 1920 (Lemos,
1921: 5-6; 8. SARQ/MI, Microfilme 32, Planilha 389). O inspetor afirma ter tomado conhecimento de
que na fronteira do Brasil com o Peru, no alto rio Purus, um destacamento militar peruano, chefiado pelo
alferes Carlos Gonzalez Zuñiga, cercara uma maloca, fuzilara todos os moradores e se apoderara da única
sobrevivente, uma índia menor de idade. Por saber da presença de Zuñiga em Manaus, oficiou ao delega-
do de polícia para que, caso o incidente tivesse ocorrido em solo brasileiro, a menor fosse prontamente
devolvida e os culpados fossem responsabilizados e julgados. Bento de Lemos creditaria a ausência de
resposta ao seu ofício e a permissão dada ao alferes peruano para seguir viagem rumo a Iquitos, levando a
menor, ao fato do delegado de polícia ser filho do governador, quem, sistematicamente, procurava "entra-
var a ação da Inspetoria". Lemos informaria, ainda, sobre radiograma enviado, a seguir, ao Contra-
Almirante Antônio Alves Ferreira da Silva, chefe da Comissão Mista Brasil-Peru Demarcadora de Limi-
tes, solicitando informações se o fato ocorrera em território brasileiro. E sobre a resposta recebida do co-
missário, dando conta de que, após um desentendimento entre indígenas e "civilizados", o comandante do
destacamento peruano em Santa Rosa fora ao local e, à frente de um destacamento, matara grande quanti-
dade de índios, "tudo em território peruano", em local acima de onde então estavam em curso os trabalhos
demarcatórios (Lemos, 1923: 20-1). Essa informação indica o intercâmbio de informações entre Bento de
Lemos e Ferreira da Silva, por meio de radiogramas e contatos pessoais, quando das passagens do comis-
sário por Manaus. Informações recebidas pelo inspetor nessas ocasiões também parecem ter contribuído
para fundamentar propostas para a criação de postos indígenas no Território do Acre, em diferentes tre-
chos da fronteira internacional onde a Comissão vinha trabalhando.
310
situação de "liberdade" e "proteção" usufruída pelos indígenas em seu seringal - e à su-
posta intenção de Felizardo de levar os índios por ele "escravizados" para o rio Ucayali,
no Peru.
Essa iniciativa de Giordano aconteceria, por sua vez, num contexto em que, face
ao agravamento da crise da economia da borracha, às dificuldades de recrutar novos tra-
balhadores no Nordeste e ao êxodo dos seringueiros, a disponibilidade de mão de obra
indígena para a implantação, ou a intensificação, de atividades agrícolas, visando diver-
sificar as atividades produtivas nos seringais, passara a ser iniciativa priorizada por vá-
rios patrões. A estratégia de delegado pode ser referenciada, por um lado, à luz desse in-
teresse, que também fundamentaria sua pretensão de exercer, de forma exclusiva, a tute-
la oficial sobre os índios no rio Jordão. Para tal, procuraria desvalorizar as ações de Fe-
lizardo, delegado de índios nomeado pelo inspetor anterior, João de Araújo Amora, mas
totalmente desconsiderado desde o início da gestão Bento de Lemos
408
.
Por outro lado, pode ser pensada à luz de uma estratégia de criar condições para a
continuidade do apoio, institucional e financeiro, que até então recebera da Inspetoria,
conforme aparece indicado na correspondência de Bento de Lemos em 1922: o frete re-
lativo ao transporte de nove volumes, ressarcido pelo órgão indigenista, indica o possí-
vel envio de materiais destinados às ações promovidas em benefício dos indígenas sob
sua égide, ou supostamente direcionados a tal fim, e não às atividades particulares do
delegado enquanto comerciante e seringalista
409
. A possibilidade de sua nomeação como
encarregado de um posto indígena na foz do rio Jordão, cuja fundação fora demandada
pelo inspetor à Diretoria do SPI (Lemos, 1923: 17), fazia também parte do cálculo do
delegado Giordano.
Com base na documentação consultada, não foi possível estabelecer que outras in-
formações Bento de Lemos tivera, ou não, sobre as atividades de Felizardo nos altos ri-
408
Como já apontado anteriormente, há indícios de que, em 1914, quando vivia no rio Jaminauá, Felizar-
do fora alvo de campanha semelhante junto à Inspetoria do SPILTN em Manaus, então mobilizada pela
família Prado, que, dois anos antes, tivera um de seus membros nomeados "delegado auxiliar dos índios"
no alto rio Envira: primeiro, durante a passagem do Ajudante Máximo Linhares, quem acabou por nomear
o Sr. Prado, visando não dar visibilidade as ações empreendidas por Felizardo na pacificação das áreas de
cauchais naquela região e, num momento posterior, para "difamá-lo", como homem que "maltratava os
seus índios", com a intenção de dificultar seus entendimentos com o Inspetor Amora e sua possível no-
meação como mais um representante do SPILTN no rio Envira. Parte das críticas que seriam depois diri-
gidas por Felizardo a Pedro Biló podem também ser entendidas em relação àquela campanha do Sr. Pra-
do, tendo em vista que os seus descendentes, por décadas, sustentariam, no alto Envira, as ações de Biló,
para "dar segurança" aos seus fregueses na produção de borracha e na extração de madeira e para matar os
"índios brabos" que colocassem obstáculos a essas atividades.
409
Bento de Lemos informa ter, em 1921, distribuído, por meio dos delegados, "roupas e instrumentos de
lavoura a muitos índios necessitados", ação à qual não lograria dar seqüência no ano seguinte, devido à
"deficiência de verbas" enfrentada pela Inspetoria (Lemos, 1923: 40)
311
os Envira e Jordão. É fato, conforme salientado, que nenhum reconhecimento daria, a
partir de 1916, à nomeação de Felizardo como "delegado de índios", feita pelo Inspetor
João Amora dois anos antes. Por sua vez, as informações repassadas a Bento de Lemos
pelo "delegado" Giordano certamente contribuíram para o enquadramento de Felizardo
como "escravizador de índios". A julgar pelas considerações iniciais do Inspetor, as a-
ções de Felizardo estariam maculadas por várias das práticas condenadas nos relatórios
enviados à Diretoria do SPI: em 1924, Felizardo era "proprietário" de seringal, reconhe-
cido como "amansador" de índios e responsável pela "polícia de fronteira", exercia forte
ascendência sobre os Kaxinawá, dispondo de sua mão de obra em diferentes atividades,
sem qualquer contrato que configurasse uma relação trabalhista ou previsse as respecti-
vas formas de remuneração, mantinha com eles transações permeadas pelas mercadori-
as, vistas como meio para o endividamento e a perpetuação de uma submissão forçada,
e tinha por prática demovê-los de se deslocar livremente e/ou de trabalhar para outros
seringalistas.
Em seu relatório desse mesmo ano, contudo, Bento de Lemos não mais reforçaria
à Diretoria do SPI o pedido de criação de um posto indígena na foz do rio Jordão, desta-
cando novamente a urgência de fazê-lo no Envira. Ao justificar essa demanda, afirmari-
a: "O posto do alto rio Embira terá o encargo de vigiar e proteger as numerosas tribos
que se encontram dispersas pelos diversos centros daquela região, evitando os ataques
dos seringueiros peruanos. Esses índios, infelizmente, habitam uma região limitrophe
com terras da República do Peru, o que vale dizer que as suas vidas estão em contínuo
perigo" (Lemos, 1925. SARQ/MI, Filme 340, Planilha 051).
Nos anos seguintes, a quase totalidade das reivindicações enviadas pelo Inspetor à
Diretoria do SPI para a criação de postos indígenas no Território do Acre indicaria ou-
tros locais situados ao longo, ou nas proximidades, da fronteira internacional
410
. O fato
do alto rio Tarauacá ter deixado de constar como local prioritário para a fundação de um
posto e das ações de Antonio Giordano não terem mais sido mencionadas em relatórios
posteriores da Inspetoria, é plausível cogitar, podem também ter resultado das trocas de
informações mantidas entre Bento de Lemos e Antônio Alves Ferreira da Silva. O chefe
brasileiro da Comissão Mista, em 1920, pessoalmente se empenhara na contratação
410
Dentre essas demandas, cabe destacar aquelas relativas aos altos rios Juruá-Mirim e Moa (no Depar-
tamento do Alto Juruá) e nos altos rios Envira e Jurupary (no Departamento de Tarauacá) (Lemos, 1928.
SARQ/MI. Microfilme 340, Fot. 455); e nos altos rios Tejo, Juruá-Mirim, Envira e Purus, além de na foz
do rio Breu, todos, à exceção do primeiro, ao longo da fronteira internacional (Lemos, 1929: 3; SARQ/
MI. Microfilme 340, Planilha 053, Doc 00, Fot. 557).
312
de Felizardo e, em vários trechos dos seus relatórios (Silva, 1926, 1929) teceria comen-
tários elogiosos aos resultados das atividades de "catequese" que fazia vários anos aque-
le realizava junto aos Kaxinawá no seringal Revisão. Ao contrário, Ferreira da Silva ne-
nhuma alusão faria à atuação ou à presença de Antonio Giordano em seu relatório de
1924 (Silva, 1926), referente ao ano em que a Comissão trabalhou nas cabeceiras do rio
Jordão e chegou a estabelecer um acampamento temporário na foz desse rio, nas proxi-
midades do seringal Parthenope.
À diferença dos trechos destacados dos relatórios de Bento de Lemos (1923,
1925), nos quais Felizardo é caracterizado como peruano e "escravizador" de índios,
Sueiro Sales, conforme dito, afirmava que seus pais, tios e demais parentes da gera-
ção anterior, consideravam-no como primeiro "catequizador" dos Kaxinawá, "protetor"
e "bom patrão". Em meados dos anos 1920, ao comparar a situação dos "Kaxinawá de
Felizardo" com a das famílias, também Kaxinawá, que então viviam na foz do rio Jor-
dão, sob a "égide" de Antonio Giordano, o "italiano" que então representava a "Comis-
são de Proteção aos Índios", o padre Tastevin (1926: 51), após visitar ambas as locali-
dades, teceria a seguinte consideração: "Ils [os da foz] ne sont naturellement pas plus
avancés que les autres: ils m'ont même paru plus denués de ressources".
Essa afirmação de Tastevin aparece também em dissonância com o relatório de
Bento de Lemos. E fornece um indício para a comparação entre diferentes formas de pa-
tronagem e de tutela exercidas por ambos os personagens, Felizardo e Giordano, ao
considerá-las enquanto relações que possibilitavam aos Kaxinawá acessos diferenciais
tanto a mercadorias e bens materiais como a uma inserção coletiva em meio aos serin-
gais, incluídas as alternativas efetivamente disponíveis de acesso a recursos naturais,
como a caça, a pesca, terras boas de plantar, indispensáveis à uma subsistência "mais
farta" e a um melhor viver. Nesse sentido, parecem convergir com as informações de
Sueiro, sobre a decisão, por um lado, dos Kaxinawá da foz do Jordão de migrarem, a
partir de final dos anos de 1920, devido ao restrito acesso que gozavam a locais adequa-
dos para plantar e da proximidade da Vila Jordão. De outro lado, remetem à própria de-
cisão das várias famílias extensas Kaxinawá que viviam em Revisão de, após a saída de
seu "catequizador", migrarem, devido à impossibilidade dos patrões que ali ficaram, an-
tigos empregados de Felizardo, de continuarem atendendo suas "necessidades" de mer-
cadorias e à procura de possíveis "bons patrões" em outros seringais do rio Jordão.
313
Capítulo VI - Um "catequista" a serviço da Nação
Demarcação da fronteira Brasil-Peru: um empreendimento militar
Como resultado dos trabalhos de reconhecimento realizados por duas comissões
mistas no Alto Juruá e no Alto Purus em 1905-1906 e da assinatura do Tratado de Limi-
tes de 1909, as condições para a demarcação física da fronteira internacional entre Bra-
sil e Peru foram definidas por Protocolo assinado a 19 de abril de 1913, no Palácio do
Itamaraty, na cidade do Rio de Janeiro
411
. Conforme previsto nesse protocolo, comis-
sões foram nomeadas por ambos os governos, conformando a "Comissão Mista Demar-
cadora de Limites" (doravante Comissão Mista). Até 1927, respaldados por troca de no-
tas e correspondências entre os Ministérios de Relações Exteriores, os chefes das duas
comissões ficariam responsáveis por manter a mútua comunicação, preparar e coordenar
os trabalhos em campo, realizar conferências, com a formalização das respectivas atas, e
redigir os relatórios anuais aos seus superiores.
A Comissão Mista deu início às suas atividades em 1913 com a determinação das
coordenadas geográficas das cidades de Sena Madureira, Manaus e Belém
412
. No ano
seguinte, apenas a comissão brasileira trabalharia no levantamento dos cursos dos rios
Chambuyaco e Santa Rosa, afluentes do rio Purus. Com o início da I Guerra Mundial,
ambos os governos acordariam pela paralisação das atividades, por meio de notas troca-
das em agosto de 1914
413
. Ao retomá-las em 1920, a Comissão Mista concluiria os le-
vantamentos dos rios Purus, Santa Rosa e Chambuyaco. Em 1921, sem a presença da
comissão peruana, a brasileira iniciou este mesmo trabalho nos rios Chambuyaco,
Chandless e Iaco, concluído no ano seguinte, de forma conjunta, com a confirmação dos
levantamentos realizados, a demarcação e o assentamento dos marcos no meridiano
entre as nascentes dos rios Chambuyaco e Acre, descendo o curso deste último até a foz
do Arroio Yaverija (ponto que passaria a estabelecer a tríplice fronteira Brasil-Peru-
411
O Protocolo alterou protocolo de 29 de abril de 1912, também assinado no Rio de Janeiro, para, em
função do que estabelecia o Artigo II Protocolo de 1909, definir as instruções relativas à organização e
operação da Comissão Mista Demarcadora. A íntegra do Protocolo de 1913 pode ser acessado em
www.rree.gob.pe/portal/ pexterior.nsf/0/d32b786e0597eee605256c5b0075e0fa?OpenDocument, no por-
tal do Ministério das Relações Exteriores do Peru.
412
A sede da Comissão de Limites, inicialmente planejada em Manaus, acabou transferida para Belém em
1913, mediante acordo entre os chefes das duas comissões. Sena Madureira funcionaria nos anos de 1913-
1914 e 1920-1922 como principal sede de apoio dos levantamentos astronômicos necessários à determi-
nação do traçado da fronteira. A partir de 1923, e até 1927, essa principal sede de apoio seria transferida
para Cruzeiro do Sul.
413
Caberia ao governo peruano a proposta da suspensão dos trabalhos, justificada pelo início da guerra e a
falta de recursos financeiros para custear a sua Comissão. Sobre esses entendimentos, e as notas trocadas,
entre os dois governos, consultar Brasil. MRE, 1915: 114-15; 1915a: 11-13.
314
Bolívia). Após a demarcação do trecho ao longo do Paralelo de 10ºS, entre as cabeceiras
dos rios Santa Rosa e Breu, no biênio 1923-1924, os trabalhos seriam concluídos, em
três etapas, até 1927, com a exploração, demarcação e sinalização do paralelo (de 09ºS
24"42') entre a foz do rio Breu e o divisor de águas dos rios Juruá e Ucayali, seguindo
por este, a norte, até a nascente do rio Jaquirana, confirmada pela Comissão como prin-
cipal formador do rio Javari (Silva, 1929)
414
.
Subordinado às instâncias diplomáticas de ambos os países, o levantamento e de-
marcação da fronteira internacional constituiu empreendimento de cunho eminentemen-
te militar
415
. Além de determinar a composição dos comandos de ambas as Comissões,
suas formas de organização, de decisão, interação e deslocamento logístico em campo, a
estratégia militar também condicionaria a política e as instruções definidas para o rela-
cionamento com os grupos indígenas considerados "selvagens" encontrados pela Co-
missão Mista e, posteriormente, para o recrutamento de pessoal especializado para levar
a cabo essa tarefa.
As atividades de campo da Comissão Mista se desenrolaram via de regra nos me-
ses do verão amazônico (abril a outubro), quando a escassez de chuva permitia um me-
lhor desempenho das tarefas na floresta, mas colocava pesados obstáculos ao transporte
dos trabalhadores, equipamentos e alimentos pelos rios secos. Os relatórios anuais pro-
duzidos pelo chefe da Comissão brasileira, Antonio Alves Ferreira da Silva, explicitam,
com grande profusão de detalhes, o cronograma das atividades planejadas e executadas,
as condições e a logística dos deslocamentos pelos rios e igarapés, as negociações lo-
calmente empreendidas pelos chefes de ambas as comissões, as ordens emitidas, pesso-
414
A extensão total da fronteira brasileiro-peruana é de 2.995 quilômetros, dos quais 2.003 em limites
formados por rios, lagos e canais e 992 em linha seca, dos quais 709 ao longo de terras dos divisores e
283 em três linhas geodésicas. O trecho demarcado com base no Tratado de 1909 tem extensão de 1.565
quilômetros (sendo 573 km por água e 992 km por divisores de terra), sinalizados com 86 marcos (Silva,
1929: 236). A descrição detalhada deste último trecho consta da Ata da 24ª Conferência da Comissão
Mista, realizada em Belém a 12 de setembro de 1927 (Brasil. MRE, 1928 [2º Vol., Anexo A, Nº 6G]: 52-
73). Uma descrição resumida dos marcos pelos quais a fronteira foi sinalizada, com suas coordenadas ge-
ográficas e respectivas datas de inauguração, consta em Silva, 1929: 271-82.
415
Em 1923, quando tiveram início os trabalhos nos rios Envira, Tarauacá e Jordão, a comissão brasileira,
chefiada pelo então Contra-Almirante Antonio Alves Ferreira da Silva, esteve composta por um Sub-
Chefe com a patente de Capitão de Corveta; dois Ajudantes, ambos Capitães-Tenente; um Capitão-
Médico do Exército; um Auxiliar, Primeiro Tenente da Armada; com a mesma patente, um Comandante
de Contingente do Exército, contingente este integrado por um Sargento e 24 praças, dois marinheiros ra-
diotelegrafistas e dois motoristas, além do "pessoal civil" contratado na própria região para os trabalhos
braçais. A comissão peruana, por sua vez, teve como chefe o Tenente-Coronel de Infantaria Roberto Ló-
pez e, como Ajudantes, um Capitão e um Major (em anos anteriores, também faziam parte desta um mé-
dico e um contingente de praças militares). A composição das Comissões seria mantida em 1924, com a
substituição de alguns nomes, tendo se somado, à brasileira, um Capitão-Tenente Médico, visto que três
turmas atuaram nesse ano, duas no Paralelo de 10ºS e outra no levantamento e na sinalização do curso do
rio Breu (Silva, 1929).
315
almente ou por rádio, às turmas de trabalho na floresta, o andamento e os resultados prá-
ticos da exploração de divisores de terras, nascentes e cursos de igarapés, das observa-
ções astronômicas, da abertura de clareiras e picadas, do assentamento dos marcos de
sinalização, bem como o planejamento das atividades previstas para a continuidade da
demarcação nos anos subsequentes.
Os mesmos relatórios não apresentam registros significativos sobre diálogos e re-
lações estabelecidos pelo comando da Comissão Mista com outros atores, seja nas via-
gens pelos rios, seja durante os trabalhos na fronteira - o que, neste caso, pode ser en-
tendido por seu traçado ter percorrido áreas de floresta situadas além das últimas colo-
cações ocupadas dos seringais
416
. De forma sistemática, todavia, relacionam informa-
ções sobre os cupichauas e os roçados indígenas, bem como sobre os contatos fortuitos
e as relações, diretas e indiretas, mantidas com diferentes grupos indígenas, considera-
dos "selvagens", encontrados ao longo do levantamento e da demarcação da linha fron-
teiriça.
A proximidade dos índios, que "infestavam" a região e acompanhavam de perto as
atividades da Comissão, e a permanente necessidade de "vigilância" nos acampamentos,
de forma a evitar possíveis ataques e roubos, ocupando, para isto, homens e tempo, "em
detrimento dos trabalhos técnicos e materiais", são relacionados em vários trechos dos
relatórios escritos por Ferreira Silva até 1924 dentre os principais obstáculos que contri-
buíam para o lento avanço dos trabalhos. A "presença constante de índios" seria também
destacada em mensagem apresentada pelo Presidente Arthur Bernardes na sessão de a-
bertura do Congresso Nacional em 1924, ao relacionar os fatores que representavam
obstáculos ao desejado progresso da Comissão Mista (Brasil. Presidência da República,
1924: 98)
417
.
416
Nesse caso, os registros se limitam a informações e agradecimentos sobre apoios obtidos de alguns
poucos seringalistas, na forma de embarcações e de locais para a guarda temporária de materiais. Em ál-
bum fotográfico anexo ao relatório final do Comissário brasileiro (Brasil. MRE, 1928), constam registros
esporádicos das sedes de alguns dos principais seringais visitados, via de regra sem qualquer presença
humana, e pequeno número de fotos das cidades pelas quais a Comissão passou em diferentes anos. Pre-
valecem as imagens das equipes, dos deslocamentos e dos acampamentos feitos pela Comissão, ao subir
os rios rumo à região fronteiriça, bem como dos atos oficiais de cravação de marcos. Registros fotográfi-
cos de dois agrupamentos Kaxinawá, nos rios Envira e no Jordão, também constam do álbum, e serão ob-
jeto de análise mais adiante.
417
A necessidade de realizar simultaneamente dois diferentes de trabalho, de "exploração" e de "execu-
ção", traduzindo-se "no levantamento e na demarcação material da fronteira", consumindo um tempo
sempre mais prolongado do que originalmente previsto, derivava também, segundo o Chefe da Comissão
Brasileira, das "imperfeições dos mappas existentes, cuja confecção tem sido baseada, em geral, em sim-
ples informações de seringueiros e outros habitantes da região, bem assim à deficiência de subsídios que
possam orientar na organização prévia do plano de operações" (Silva, 1929: 132). Dentre outros fatores
apontados com recorrência nos relatórios para justificar a lentidão dos trabalhos constavam a "inclemên-
316
Pretende-se, nas próximas seções, enfocar os trabalhos de levantamento e de de-
marcação da fronteira brasileiro-peruana, principalmente em 1923-1924, no trecho de
florestas ao longo do Paralelo de 10ºS, entre as nascentes dos rios Santa Rosa e Breu
418
.
Nesse biênio, a Comissão Mista atuaria nos rios Envira, Tarauacá, Jordão e Breu duran-
te dois períodos de "verão", o seringal Revisão serviria em 1924 como uma das princi-
pais bases de apoio logístico, Felizardo Cerqueira seria contratado como "mateiro" e
"prático" e, por seu intermédio, homens Kaxinawá seriam engajados, como parte do
"pessoal civil", em tarefas desempenhadas por diferentes "turmas" da Comissão.
A partir da documentação produzida por Ferreira da Silva sobre as atividades
cumpridas naquele biênio, bem como de outros documentos escritos (Tastevin, 1926;
Carvalho, 1929; Cerqueira, 1958), de depoimentos orais e do material fotográfico pro-
duzido pela Comissão, destaque será dado, por um lado, à participação de Felizardo e
dos Kaxinawá nos trabalhos demarcatórios, na busca de, em última instância, subsidiar
novas análises sobre as relações por eles mantidas à época no seringal Revisão, no alto
rio Jordão. Por outro lado, a título de introdução, serão brevemente discutidas as repre-
sentações vigentes sobre um conjunto de grupos índios tidos como "selvagens" que ha-
bitavam na zona então em demarcação, bem como as políticas e práticas adotadas pela
Comissão vis a vis esses indígenas, com o objetivo principal de garantir o estabeleci-
mento de "relações pacíficas" e, assim, o adequado desempenho das atividades previstas
nos Protocolos de 1909 e 1913.
A política de "não hostilização": militares, mateiros e índios "selvagens"
Nos anos anteriores ao início das atividades da Comissão Mista, diversos docu-
mentos produzidos por órgãos do governo federal (prefeituras, ministérios e o SPI) e
matérias publicadas na imprensa, nacional e dos departamentos acreanos, haviam feito
recorrentes alertas sobre conflitos em curso na região de fronteira Brasil-Peru, decorren-
tes de enfrentamentos armados entre índios e "civilizados" e da atuação de caucheiros
peruanos. Diferentemente, nenhum documento das chancelarias de ambos os países, ao
cia do clima"; a dificuldade dos deslocamentos até os altos rios na época das vazantes, devido à sua obs-
trução por grandes tronqueiras; a natureza do terreno na floresta; a impossibilidade de contar com muares
para o transporte de alimentos e materiais, tornando-se obrigatório fazê-lo às costas dos trabalhadores; as
freqüentes doenças e os acidentes de trabalho, segundo o Chefe da Missão Brasileira, "(...) sérios obstácu-
los superáveis apenas por quem possua uma comprehensão clara da responsabilidade de sua missão, al-
liada a uma vontade firme patriótica" (ibid: 131).
418
A respeito das negociações diplomáticas, dos levantamentos, da demarcação neste período e das atas
que formalizaram esses trabalhos, ver Silva, 1914, 1915, 1922, 1924, 1925, 1929 (este último uma compi-
lação de todos os relatórios produzidos pelo Chefe da Comissão brasileira); e Brasil. MRE, 1925, 1926.
317
tratar das formas de organização e operação da Comissão Mista, mencionaria a presença
indígena como potencial obstáculo ao avanço dos levantamentos e da demarcação da
fronteira internacional. A preocupação do comando da Comissão Mista com a ampla
presença de índios "selvagens", com possíveis ataques e com o delineamento de estraté-
gias para garantir a "defesa" dos acampamentos e a "segurança" das "turmas" de traba-
lhadores na floresta ganharia forma, todavia, durante a primeira etapa dos trabalhos de
campo.
Em 1914, ano em que a comissão brasileira atuou sem a presença da contraparte
peruana, seriam constatados, no rio Santa Rosa, afluente da margem esquerda do rio Pu-
rus, os primeiros sinais da presença de índios, Marinawa, perceptíveis em "rastros" fres-
cos, pequenos tapiris abandonados e o constante "arremedo" de cantos de aves em torno
dos acampamentos montados pelas turmas da Comissão (Silva, 1929: 32). A iniciativa
do chefe brasileiro, de enviar "um prático"
419
para "sondar o ânimo" e "conhecer as dis-
posições" dos índios em relação à Comissão, resultaria em breve diálogo com um caça-
dor Marinawa, quem, após pedir um rifle e munição, recusaria convite para conhecer o
chefe do acampamento e desapareceria na mata após roubar o chapéu do prático. Nova
fuga, de um grupo maior de Marinawa, seria antecedida por disparos de dois tiros de ri-
fle contra outros dois "práticos", enviados para "dar uma batida" e "reconhecer a situa-
ção", visando evitar uma possível "emboscada" (ibid: 34)
420
.
Apesar dos "objetivos patrióticos" e das "intenções pacíficas" da Comissão, a po-
tencial desconfiança e a hostilidade dos índios em relação às turmas de trabalhadores
ganhava fundamento, na avaliação de Ferreira da Silva, nas violências outrora sofridas
em relações de trabalho mantidas com patrões caucheiros: "Os índios que infestam a
faixa compreendida entre os rios Santa Rosa e Embira são em grande parte antigos
empregados de caucheiros brasileiros e peruanos, que os maltratavam, dando logar a
essa lamentável revanche, para cuja execução se aproveitam das armas fornecidas pe-
419
Nestes dois primeiros anos de trabalho da Comissão, a principal qualificação destacada para os "práti-
cos", recrutados localmente como parte do "pessoal civil", era o conhecimento da região então em demar-
cação (Silva, 1929: 32; 71), razão que motivou a contratação de antigos moradores dos seringais, os quais
haviam trabalhado como mateiros, seringueiros e/ou caucheiros. Os contatos mantidos com índios durante
essas atividades também seriam ressaltados como atributo que pesara na inicial contratação desses práti-
cos, uns de nacionalidade brasileira, outros peruana.
420
Cabe recordar que, três anos antes, um grupo de famílias Marinawa, após matar cinco caucheiros peru-
anos num afluente do rio Jaminauá, fora contatado por Felizardo com os Kaxinawá. Mediante "acomoda-
ção" feita entre os chefes de família Marinawa e o patrão do seringal Santo Antonio, os índios ali se esta-
beleceriam para trabalhar na extração de caucho, no rio Envira. Mas, após desentendimentos, acabariam
por matá-lo, junto com seu irmão e mais 17 fregueses, optando, a seguir, por fugir e manter-se a distância
dos locais ocupados pelos "civilizados" e outros indígenas.
318
los próprios patrões quando os tinham a seu serviço" (Silva, 1929: 36). O histórico de
"correrias", por outro lado, seria também destacado pelo comissário como motivo adi-
cional para as represálias dos índios contra os "civilizados": "As freqüentes luctas entre
seringueiros e selvagens, motivadas pelas correrias e batidas daquelles contra estes,
bem explicam a natural vingança dos índios, que em seus ataques aos seringaes, se a-
poderam de "rifles" e munições, tornando-se, com esses elementos, mais perigosos na
expansão inconsciente e brutal de hostilidade aos civilizados" (ibid: 113)
421
.
Com base em "informações colhidas na própria região", Ferreira da Silva (1929:
37) relacionaria os Kaxinawá, Kulina, Jaminawa, Marinawa, Kontanawa, Kapanawa e
Charanawa como as "tribus" "mais conhecidas". "Muito disseminadas", tinham seu "ha-
bitat" no rio Santa Rosa, no divisor de água entre os rios Purus e Envira e nas cabeceiras
dos rios Tarauacá e Jordão, chegando à margem direita do alto rio Juruá, portanto, numa
ampla região no entorno do Paralelo de 10ºS, abrangendo partes dos territórios brasilei-
ro e peruano. As três primeiras "tribos" eram então as mais numerosas, atesta o comissá-
rio, ainda que, de modo geral, estivessem todas "mui reduzidas", após décadas de
conflitos com caucheiros e seringueiros.
Ciente desse histórico de conflitos, e preocupado com as conseqüências que os
primeiros encontros com os "selvagens" poderiam trazer ao adequado andamento dos
trabalhos e à moral de seus comandados, Ferreira da Silva emitiria, em 1914, um con-
junto de instruções, visando "evitar inúteis sacrifícios de vidas" e normatizar as ações de
"vigilância" e "defesa". Orientadas por uma política de "prudência" e de "não hostiliza-
ção", as instruções contemplavam o retorno imediato dos trabalhadores aos acampamen-
tos à primeira manifestação de hostilidade dos índios; o não abandono de "instrumentos
preciosos", (...) "no caso de um ataque vigoroso dos índios"; o cuidado para que as em-
barcações não se distanciassem umas das outras nos deslocamentos fluviais, e viajassem
escoltadas por um destacamento, que se deslocaria a pé, em ambas as margens do rio,
421
As avaliações de Ferreira da Silva, de que as vinganças e os ataques armados dos indígenas contra os
"civilizados" constituíam uma legítima represália às "correrias" e ao saque de suas "propriedades", seriam
compartilhadas pelo médico da Comissão, Capitão João Braulino de Carvalho, fazendo referência às in-
formações levantadas em campo acerca das iniciativas dos Kaxinawá: "Constantemente lemos nos jorna-
es das cidades de fronteira, noticias sobre ataques a seringaes, pelos "Cachinauas". Quando trabalhá-
mos no "Embira", em 1923 e 1924, fizemos indagações minuciosas, e chegámos á conclusão de que todos
os ataques aos seringaes, pelos "Cachinauas", foram a consequencia de perseguições e usurpações ante-
riormente feitas pelos civilisados contra os selvicolas e suas propriedades. As "correrias" são caçadas
systematicamente organizadas contra os indefesos indigenas e suas familias. Os ataques dos "Cachinau-
as" são a manifestação do mais sagrado dever do homem: a defesa da familia e da propriedade contra os
crueis organizadores de correrias, que geralmente são caucheiros ou apaniguados dos proprietarios de
seringaes" (Carvalho, 1929: 305).
319
em ação de "flanqueamento", para evitar emboscadas; e a proibição de disparos de ri-
fles, salvo em situações de emergência, nas quais o sinal de três tiros indicaria pedido de
socorro. Durante as atividades nos divisores de água, as instruções determinavam que os
roçados indígenas fossem respeitados e nenhum objeto fosse tocado ou retirado dos cu-
pichauas, dos tapiris ou de locais onde fossem encontrados "rastros" recentes de índios;
ao contrário, "presentes" deveriam ser prontamente ofertados, deixando-os em seus lo-
cais de moradia e nos acampamentos abandonados pela Comissão, para que os índios
"percebessem os bons desejos de uma caridosa aproximação" e condições fossem cons-
truídas para a atuação das turmas de trabalho nos anos seguintes (Silva, 1929: 32; 34-
6)
422
.
Ao final dos trabalhos de 1914, sabedor da paralisação das atividades da Co-
missão, Ferreira da Silva definiria que a sua retomada nos anos seguintes, ao longo do
Paralelo de 10ºS, deveria acontecer com a presença conjunta das duas comissões, cada
uma com 30 homens "sãos" para os trabalhos demarcatórios, além de "pessoal suficiente
para defesa" (1929: 36). Assim ocorreria em 1920, quando, além do "pessoal civil" ar-
regimentado em Belém, Manaus e Sena Madureira, a Comissão brasileira recrutaria, pa-
ra compor o "contingente militar", um sargento e 12 soldados do 4º Batalhão de Artilha-
ria da Costa, sediado em Óbidos (Am), e nove soldados do 27º Batalhão de Caçadores,
de Manaus. A Comissão peruana seria escoltada, por sua vez, por um contingente com-
posto por um segundo sargento e 29 praças (Silva, 1929: 52)
.
Pouco após o início dos trabalhos em 1920, no rio Santa Rosa, um "prático", peru-
ano, seria ferido por flechas atiradas por índios Kulina, os quais, por várias noites, man-
ter-se-iam nas cercanias do acampamento, dando "sinais evidentes de sua presença", se-
gundo Ferreira da Silva, com possível intenção de protagonizar novo ataque. O acam-
pamento da Comissão seria visitado pouco depois por cinco Kulina (um dos quais "pro-
nunciava algumas palavras em português"), acompanhados de seu patrão, o cearense
Ovídio Gadelha, com quem, "destacados da tribo", trabalhavam na extração do caucho
no baixo rio Santa Rosa. Recebidos com "presentes" (ferramentas), garantiriam não te-
rem sido os autores do ataque ao prático, atribuindo-o aos Kaxinawá, "seus inimigos".
422
É relevante destacar certa homologia dessas instruções com aquelas que nortearam as atividades da
Comissão Mista Brasil-Peru de Reconhecimento do Alto Juruá, chefiada pelo então Coronel Belarmino
Mendonça, pelo lado brasileiro, em 1905. Como resultado da preocupação com o "seguimento" dos "au-
tochthones bravios" e de duas "emboscadas", nas quais um soldado acabou ferido, a Comissão também
adotaria ações de "vigilância" e "defesa", com a estratégia de concentrar as várias equipes em um único
local ao constatar a presença de índios e de evitar qualquer "confrontação" e a retirada dos objetos encon-
trados nas malocas e acampamentos indígenas (arcos e flechas e ferramentas e utensílios que haviam sido
"tomados" dos seringueiros e caucheiros) (Mendonça, 1989: 125; 127; 129).
320
Essa afirmação seria vista com descrença pelo chefe brasileiro, dado que apenas índios
Kulina haviam sido encontrados no reconhecimento feito naquele rio e os Kaxinawá,
tomara conhecimento, haviam mudado seu "habitat" para as cabeceiras do rio Curanja
após os caucheiros peruanos terem abandonado essa região (Brasil. MRE, 1922: 121-22;
Silva, 1929: 73).
Segundo o Comissário, novos ataques não teriam ocorrido naquele ano "graças à
constante vigilância e aos elementos de defesa que possuíamos", e por "terem os índios
observado, que mantínhamos com elles as mais pacíficas intenções, longe de pensar em
hostilisal-os, como geralmente acontece naquella zona", prova do acerto das instruções
por ele emitidas na "parte relativa aos índios" (Brasil. MRE, 1922: 123; Silva, 1929:
71). Mas, a constatação do considerável número de malocas indígenas situadas nessa
região, os ataques sofridos em 1914 e 1920 e a necessidade de manter condições propí-
cias ao avanço da demarcação, sem "enfrentamentos" ou "baixas", levaria Ferreira da
Silva a tomar nova resolução para o seguimento dos trabalhos no Paralelo de 10ºS: além
da manutenção do contingente militar de 60 homens, decidiria pela incorporação de re-
conhecidos "catequistas de índios" às turmas da Comissão Mista.
em 1920, logo após o ataque dos Kulina, Felizardo Cerqueira seria convocado
pelo Chefe da Comissão brasileira. Em carta encaminhada ao Deputado José Guiomard
dos Santos em novembro de 1956, em apoio ao projeto de lei que visava conceder uma
pensão a Felizardo por seus serviços como "catequista de índios e "guia" da Comissão
Mista, o então Almirante de Esquadra Ferreira da Silva assim justificou o porquê daque-
le convite feito três décadas e meia antes:
"Sabedor da existência, nas regiões dos rios Juruá e Tarauacá, daquêle brasileiro
que vivia entre índios, por êstes muito estimado e obedecido, guiando-os e orien-
tando no rumo da civilização, falando a sua língua e perfeitamente adaptado a
seus costumes, habituado às vicissitudes na floresta agressiva e selvagem, mas
dotado de boas qualidades pessoais, procurei atrai-lo, sendo em seguida admiti-
do, como prático e "mateiro", na Comissão por mim chefiada" (Diário do Con-
gresso Nacional, Seção I, 7/12/1956: 12237)
423
.
Em seu relatório, Felizardo confirma ter recebido, em maio de 1920, "chamado"
do Chefe da Comissão brasileira, por meio de "portador especial", enviado ao seringal
423
Em vários trechos de seu relatório, Ferreira da Silva faz referência à profissão de "catechista de ín-
dios", ao extenso conhecimento da região, por nela viver fazia muitos anos, e ao domínio do ofício de
"mateiro", como atributos que credenciaram Felizardo para o exercício das atividades para as quais deci-
dira contratá-lo. A precisão dos levantamentos do curso de diferentes trechos do divisor de água feitos por
Felizardo, atestada pelos subchefes de várias turmas da Comissão, também seria por várias vezes aponta-
da por Ferreira da Silva, inclusive em reuniões dos comandos das duas comissões.
321
Revisão, ao qual se prontificou a atender com urgência. No rio Purus, Ferreira da Silva
ausente, manteria entendimento com o Capitão de Corveta Nogueira da Gama, subchefe
da Comissão e então responsável pela turma de exploração do rio Santa Rosa, junto a
quem se informou das condições em que ocorrera o ataque dos Kulina. Após uma "pe-
quena exploração por toda zona infestada pelos índios", diz Felizardo, procuraria tran-
qüilizar Nogueira da Gama, opinando sobre a ausência de risco de prosseguir até as nas-
centes daquele rio, ponto previamente estabelecido para o término dos trabalhos naquele
ano
424
.
Mesmo percebendo "que o ilustre Capitão estava com receio dos índios voltarem
à carga impiedosa sobre aquela pobre gente, que nada compreendia dos traiçoeiros a-
taques dos silvícolas", Felizardo comunicaria a impossibilidade de incorporar-se de i-
mediato à Comissão, ou mesmo de demorar-se. Esclareceria, para tal, que necessitava
retornar com urgência a Revisão, por estar "comprometido seriamente com o Sr. José
Maia na colonização dos indios Papá-vôs". Em seu relatório, informa ter gentilmente
recusado "proposta de vultosa soma de dinheiro e mais oferecimento de uma pistola
Colt 45, para que eu não os desprezasse", feita por Nogueira da Gama, e, por fim,
seu pedido de que pelo menos acompanhasse sua turma até o meio curso do rio Santa
Rosa (Cerqueira, 1958: 130-31)
425
.
Para o ano de 1923, a Ata da 11ª Conferência da Comissão Mista, assinada em 25
de novembro do ano anterior, estabelecera a transferência para a cidade de Cruzeiro do
Sul do posto de observações astronômicas e transmissão de sinais rádio horários, opera-
424
Em seu relatório, Felizardo assim transcreve a explicação então dada ao subchefe da Comissão, fruto,
esclarece, da experiência adquirida ao longo de anos de catequese, justificando a não necessidade de seus
serviços naquele ano: "(...) Capitão, diante de meu estudo do mato e pela experiência de muitos anos de
luta com os silvícolas, afirmo-lhe que este ano não é necessário ainda da presença minha aqui, pois não
vejo perigo justificado para uma vingança indígena, pois em vez de ser os índios feridos, foram eles quem
feriram. Portanto, o direito de vingança pertence à parte civilizada, e se esta parte de maior compreen-
são perdoar o ofensor este não terá justificativa do ódio da lei do dente por dente e olho por olho (...) o
que eu quero dizer com elas é o seguinte: devido à grande e longa pratica que tenho de vivenda com ín-
dios e mesmo assim atendendo razões proporcionadas pelas ofensas, vejo que durante um certo tempo
quase completo de um ano, o ofensor estará sempre à espera do choque de retorno e só voltará a carga
novamente quando desenganar da ofensa do que recebeu e perdoou. É, portanto, desta teoria recebida
da prática indígena que me atrevo atestar que nada virá até conclusão dos trabalhos deste ano, pois que
Sua Excia. mesmo disse-me que em outubro voltarão dos trabalhos, tempo este que ainda os índios esta-
rão à espera do choque de uma vingança" (Cerqueira, 1959: 131-32).
425
Felizardo reiteraria, contudo, que sua presença era imprescindível na "colônia Papa-vôs", pois "(...) por
um triz ia ser destruído todo esforço praticado por mim em prol da humanidade indígena e a nossa hu-
manidade, mais rebelde do que os silvícolas" (Cerqueira, 1959: 130-31). Conforme a cronologia aqui
construída, com base em informações esparsas em diferentes fontes escritas e orais, fazia menos de dois
anos que o grupo de várias dezenas de Papavô fora trazido à sede do seringal Revisão e ali acabara mas-
sacrado. O início do verão, período em que usualmente os índios "brabos" costumavam se deslocar com
maior desenvoltura, promovendo saques e ataques, é fator que pode ter também concorrido para a decisão
de Felizardo de retornar de imediato à Revisão, temeroso de represálias por parte dos seringueiros.
322
do por uma "turma", bem como a subida do rio Envira, para a determinação das coorde-
nadas de seus pontos principais e a identificação daqueles a serem depois assinalados.
Caso esse rio fosse atravessado pelo Paralelo de 10ºS, estabelecido pelo Tratado de
1909 como traçado máximo da fronteira, outras duas "turmas" ("do Envira" e "do Ta-
rauacá") seriam constituídas, para dali, rumo às nascentes do rio Santa Rosa, a leste, e
do rio Breu, a oeste, realizar levantamentos, abrir picadas e assentar marcos
426
.
Seguindo decisão tomada por Ferreira da Silva três anos antes, dois "catequistas
de índios", agentes qualificados para chefiar as principais expedições destinadas a me-
diar possíveis contatos e os entendimentos necessários com os "selvagens", seriam in-
corporados às turmas da Comissão. Antônio Bastos seria recrutado para "o lugar de in-
térprete de silvícolas", cargo que exerceu no biênio 1923-1924. Como justifica o Co-
missário, pesara na contratação de Bastos, à época residente em Manaus, além de seu
domínio de várias línguas nativas, os serviços, fazia anos, prestados no rio Juruá, "do-
mesticando índios" (Silva, 1929: 122), inicialmente por "conta própria" e depois como
representante da Comissão de Obras Federais e do SPILTN.
Um novo portador seria enviado por Ferreira da Silva ao seringal Revisão em
maio de 1923 para alertar Felizardo do início dos trabalhos da Comissão Mista no rio
Envira. Felizardo seria contratado como "mateiro" e "prático"
427
, cargo pelo qual acerta-
ria um ordenado mensal de 900$000. Assim como ocorreu até 1927, trabalharia junto às
turmas da Comissão durante o "verão", de maio a outubro
428
. No período em que a Co-
426
Conforme explicita o Tratado, seria o seguinte traçado da fronteira internacional a ser determinado e
demarcado no trecho entre as cabeceiras dos rios Breu e Santa Rosa: "3°- (...) Si las cabeceras del Ta-
rauacá y del Envira estuviesen al sur del paralelo de diez grados, la línea cortará estos ríos siguiendo el
expresado paralelo de diez grados y continuará por el divortium aquarum entre el Envira y el Curanjá, ó
Curumahá, hasta encontrar la naciente del río Santa Rosa". Visto que os trabalhos de campo inciados em
1923 precisaram que as cabeceiras do rio Envira estavam situadas a sul da latitude de 10ºS, esta linha ge-
odésica acabou por prevalecer como traçado da demarcação física entre as nascentes dos rios Breu e San-
ta Rosa.
427
Escassas foram as informações obtidas em entrevistas com Kaxinawá de diferentes idades sobre a par-
ticipação de Felizardo, e de seus próprios parentes, nas atividades da Comissão Mista nas cabeceiras dos
rios Jordão e Tarauacá. Em depoimento feito em 2005, Romão Sales, nascido em meados dos anos 1920,
no seringal Revisão, assim narraria o episódio da incorporação de Felizardo à Comissão Mista e o princi-
pal trabalho por ele desempenhado: "A Comissão de Limites. A Comissão de Limites, quem contava era
os velhos mesmo. Felizardo era mateiro. A Comissão de Limites chegou, diz que convidaram ele. Nesse
tempo, ele ainda estava na Revisão. Convidaram ele, ele era mateiro. Era ele quem fazia a picada, tirava
o rumo da divisão. Juruá pra acolá, Envira pra cá. Brasil e Peru. Entrou o seu Felizardo na Comissão.
Assim contavam os mais velhos" (Romão Sales, Aldeia Boa Vista, TI Kaxinawá do Rio Jordão, maio de
2005).
428
As principais atribuições confiadas a Felizardo na condição de "mateiro" durante as atividades nos me-
ses de verão são assim descritas pelo Chefe da Comissão: "O trabalho de abertura da referida picada te-
ve começo (...), methodicamente organisado, indo á frente o matteiro Felizardo com dois homens, afim de
seguirem a crista do divisor, reconhecendo ao mesmo tempo as direcções dos cursos d'agua que appare-
ciam (...) Achado um trecho do divisor de aguas, o empregado Felizardo o assignalava com simples cor-
323
missão se desmobilizava, durante os meses de "inverno", Felizardo, junto com o "seu
pessoal", exploraria e sinalizaria trechos determinados dos divisores de águas, obede-
cendo instruções anualmente repassadas por Ferreira da Silva, de modo a facilitar os
trabalhos de observação astronômica, abertura de picadas e assentamento de marcos rea-
lizados pela Comissão Mista nos verões subseqüentes. Conforme acertado com Ferreira
da Silva em 1923, o pessoal mobilizado nos trabalhos de "invernada" seria pago pela
Comissão, ficando a sua alimentação "por conta" de Felizardo. Parte desse pessoal, re-
zava também o trato, seria incorporado às turmas regulares da Comissão durante as ati-
vidades de verão (Cerqueira, 1958: 133-34; Diário do Congresso Nacional, 1956:
12238).
A preocupação da Comissão Mista com novos ataques dos índios "selvagens" fi-
caria patente nas precauções adotadas, em 1923, ao iniciar a exploração das florestas vi-
zinhas ao acampamento montado no cruzamento do rio Envira com o Paralelo de 10ºS,
ponto de partida e principal base de apoio logístico aos trabalhos das turmas do "Tarau-
acá" e do "Envira". Visto que nesse local a "presença de índios era denunciada por si-
nais evidentes e numerosos", quatro homens de "confiança e coragem" seriam destaca-
dos por Ferreira da Silva para "montar guarda" no depósito de equipamentos e víveres
ali instalado (Silva, 1929: 112). Apesar da "constante e rigorosa vigilância, que muito
fatigava o pessoal", o tapiri ocupado pelo sargento da guarda acabaria roubado por ín-
dios não identificados, que levaram dois rifles e um "telemetro de Feuriais", instrumento
do qual apenas parte seria recuperada, pouco depois, por carregadores que retornavam
ao acampamento.
A leste do rio Envira, informa Ferreira da Silva, o "empregado" Antonio Mathi-
as, antigo morador da região, "acompanhado de um índio "Cachinaua" a serviço da
Comissão", em exploração no Riozinho da Ordem, seria obrigado a retornar, por terem
encontrado "muitos vestígios recentes de índios e julgarem-se próximos de alguma ma-
loca". Nova exploração seria iniciada por uma "turma suficientemente forte", coordena-
da por Antonio Bastos, que ali encontraria "uma malóca de índios "Jaminauas", de
construção recente, com setteiras para "rifles" e paredes reforçadas, de tres ripas su-
perpostas, deixando tudo perceber uma franca disposição para resistencia em caso de
ataque" (Silva, 1929: 113). Seguindo a política de "não hostilização", "brindes", neste
caso, machados, terçados, fósforos, espelhos, miçangas e "anéis de fantasia", seriam
tes nas arvores, esboçando a direcção da picada. Esta era aberta pela turma que caminhava na recta-
guarda (...)" (Silva, 1929: 122).
324
deixados nessa maloca, abandonada pelos Jaminawa ao pressentirem a chegada da tur-
ma da Comissão.
Com o avanço dos levantamentos, ainda a leste do rio Envira, novos "taperys de
indios, recentemente abandonados" seriam encontrados. Mais adiante, os trabalhos teri-
am de ser interrompidos, informa Ferreira da Silva, "(...) por ter sido encontrado um
vasto roçado, em cujas cercanias havia grande numero de indios". Também sob a che-
fia do "intérprete" Antonio Bastos, uma nova turma seria organizada, com a participa-
ção de outros dois "práticos", "(...) com o fim de se obter um entendimento com os indi-
os e facilitar a continuação da tarefa, mas verificou-se com grande surpresa (...) que
esses indios, supostos "Jaminauas", haviam abandonado os taperys, deixando varios
utensilios, viveres e grande quantidade de milho. Pelo numero de taperys existentes no
aldeamento, foi estimado em 300 o número de índios que alli habitam" (Silva, 1929:
115). No rio Jaminauá, dois quilômetros além do limite da picada, e no igarapé Frontei-
ra, em território peruano, novas interrupções seriam necessárias, com a identificação de
outra maloca, "muitos índios" e "muitos vestígios novos de selvagens". Nos trabalhos a
oeste do rio Envira, que visavam determinar o traçado das terras dos divisores até a
principal nascente do rio Breu, a situação se repetiria: foram ali encontrados "um regu-
lar bananal, matto rasteiro e arvores derrubadas, signaes evidentes de ter alli existido
um cupichaua de índios. Dalli observou-se um outro cupichaua, na direcçao Oeste e á
distancia aproximada de mil metros, situado em cima de um morro isolado" (Silva,
1929: 123)
429
.
O temporário abandono dos cupichauas pouco antes da passagem da Comissão, o
próximo, mas respeitoso, acompanhamento feito pelos índios às turmas de trabalhado-
res, "que os não via, mas pressentia, pelo rumor produzido próximo dos acampamen-
tos" e a ausência de novo "ataque de surpresa" configuravam, na avaliação de Ferreira
da Silva, evidências substantivas do acerto da política de "não hostilização" por ele de-
terminada: "Penso que esse procedimento, rigorosamente seguido desde o inicio dos
nossos trabalhos, imprimiu nos indios certa confiança, insufficiente para de nós se ap-
proximarem, mas bastante para nelles despertar o sentimento de gratidão, pelos pre-
429
Registros das coordenadas geográficas da localização de malocas, "tapiris", roçados dos indígenas, lo-
calizados ao longo do divisor, seriam sistematicamente anotados nas "cadernetas de levantamento do di-
visor de águas", mantidas pelos encarregados das turmas, e hoje depositadas, junto com o restante do ma-
terial da Comissão, no Arquivo Histórico do Itamaraty. Para exemplo desse registro, consultar "Caderneta
de levantamento do divisor de águas "Tarauacá-Juruá", a partir do marco das nascentes do rio Breu (do
trecho comprehendido entre o marco que assignala a nascente principal do rio Breu e a Estação A). 1924 -
2ª Turma. Observador: Arthur Bustamante de Albuquerque - 1º Tenente - Ajudante". (Lata 492 - Livro
40).
325
sentes que lhes deixavamos e pelo estreito respeito ás suas propriedades" (Silva, 1929:
115-116). Ressaltaria ainda o caráter estratégico, para a conquista dessa confiança, da
oferta de "brindes", "(...) por elles retirados, sem, entretanto, deixarem cousa alguma
em retribuição, como geralmente fazem para demonstrar desejo de uma approximação
pacifica" (ibid: 129). Apesar de auspiciosas para o avanço da demarcação, ambas essas
respostas dos indígenas à política da Comissão, não constituíam, segundo o savoir-faire
militar de Ferreira da Silva, sinais de uma pacificação definitiva, implicando em recor-
rentes ordens para a manutenção de uma constante "vigilância", visando a "defesa" dos
acampamentos e a "segurança" das várias turmas distribuídas pela floresta.
Os dois únicos encontros face a face com grupos de índios considerados "selva-
gens" ocorreriam durante as atividades de 1924, frutos de "visitas" por eles realizadas ao
acampamento da "Turma do Envira", cujos membros então finalizavam a demarcação e
a sinalização da fronteira entre as cabeceiras dos rios Santa Rosa e o ponto de interseção
do rio Envira com o Paralelo de 10º.
O primeiro, com índios Jaminawa, que seguiam a comissão fazia vários quilôme-
tros, e cuja próxima presença fora denunciada por "vestígios" encontrados por Felizar-
do, quando chefiava uma turma que precedia com levantamentos no divisor. Por ter
constituído iniciativa dos próprios índios, essa visita objetivaria a suposição de Ferreira
da Silva quanto às intenções pacíficas de que aqueles estavam imbuídos e, novamente,
da adequação da postura de "não hostilização" adotada durante a expedição sob encargo
de Antonio Bastos no ano anterior, quando "brindes" haviam sido deixados na maloca.
Chama a atenção o discurso da diplomacia militar que subjaz à descrição feita pelo che-
fe da Comissão sobre as preliminares dessa visita, a seu ver, mais uma demonstração
concreta de "amizade" da parte dos índios, condição necessária para o prosseguimento
dos trabalhos:
"No dia 19 de julho vimos corroborada a presumpção, por mim manifestada no
último relatório, que os referidos indios nenhuma intenção tinham de nos ataca-
rem, considerando-nos antes seus amigos, não pelos presentes que lhes deixa-
vamos desde o anno anterior, como também pelo respeito absoluto ás suas roças.
Às 16 horas daquelle dia appareceu na picada do divisor uma india Jaminaua,
que, aos gritos, approximou-se do acampamento, no caracter de parlamentar,
manifestando o desejo que nutria o "tuchaua" de visitar a turma do acampamento.
Concedida a necessaria permissão, e a um grito dessa original parlamentar,
surgiram de varias direcções muitos indios, quatro dos quaes pernoitaram no
nosso acampamento. Estava, pois, firmada a amisade que nos convinha, como
garantia da realisação dos nossos trabalhos, sem entretanto dissipar as nossas
326
desconfianças nem diminuir a vigilancia, pois continuava o acampamento cerca-
do pelos selvicolas" (Brasil. MRE, 1926: 353)
430
.
A segunda "visita" ocorreria um mês depois, quando 37 Marinawa se fizeram pre-
sentes ao acampamento, onde dois pernoitaram, "com toda confiança no nosso pessoal",
destaca Ferreira da Silva. No dia seguinte, deixariam à entrada do acampamento "gran-
de quantidade de milho, macacheira (aipim) e bananas, como retribuição de presentes
recebidos" (Silva, 1929: 143), atitude que marcaria uma substancial diferença em rela-
ção à iniciativa beligerante no primeiro ano de atividades da Comissão, uma década an-
tes, quando haviam recusado qualquer contato e, antes de fugir, atirado contra dois prá-
ticos no rio Santa Rosa.
Contrastando com a narrativa sucinta de Ferreira da Silva, Felizardo fornece, em
seu relatório, detalhes sobre as condições que haviam possibilitado essa visita, bem co-
mo sobre os entendimentos então mantidos entre o chefe dos Marinawa
431
e o Capitão
Tenente Alfredo de Miranda Rodrigues, Subchefe da Comissão e responsável pela
"Turma do Envira":
"(...) um dia o meu comandante, sem me dizer que havia trazido presentes para os
índios bravios, disse-me: "Felizardo, teu trabalho exclusivo é índios!, mas, eu a-
inda não vi índios, tenho visto, sim, casas, roçados, bananas e outras coisas". Em
resposta eu lhe fiz ver que seria melhor deixa-los que fiquem por lá mesmo. Mas o
homem, que não queria voltar com aqueles brinquedos e miçangas, me repeliu,
dizendo-me que queria ver índios. Como ele insistisse, eu ordenei os meus auxili-
ares que iria fazer o máximo esforço para que os índios viessem visitar o coman-
dante. E com dois dias os índios moradores da casa grande que eu havia passado
quando fui fazer a travessia para o Curanja, vieram uns tantos e trouxeram tam-
bém uma mulher, que fizeram entrega ao comandante. A mulher aparentava 14
ou 15 anos. Mas que o comandante, não aceitando a referida mulher, fez ver ao
índio chefe que era casado e portanto não lhe era lícito ficar com aquela dádiva,
430
A expressão diplomacia militar acima usada tem por fundamento as seguintes definições de "Parla-
mentar": "v.i. (de parlamento). Fazer ou ouvir propostas para a capitulação de uma praça, a conclusão
de um armistício, etc; parlamentar com o inimigo" (Dicionário Prático Ilustrado. Porto, Lello & Irmão,
Editores, 1986, pg. 876); e "fazer ou aceitar proposta(s) sobre negócios de guerra; tratar com delegação
inimiga" (Médio Dicionário Aurélio. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1980, pg. 1261).
431
Situada num ponto do varadouro entre os rios Jaminauá e Curanjinha, a maloca dos Marinawa, "que
talvez medisse 400 palmos de comprimento, repleta de víveres", habitada por pelo menos 100 homens, fo-
ra localizado em 1923 por Felizardo, acompanhado de outros três trabalhadores da Comissão (um deles,
Antonio Leandro, um Kaxinawá). Além de ter sido "deixada intacta" (ao contrário do costume de queimá-
la, diz Felizardo, comum na região), foram deixados em cada uma das entradas da maloca açúcar, fósfo-
ros, cigarros, linhas de costura e um canivete (Cerqueira, 1958: 136). Nessa expedição, destinada a encon-
trar o local exato onde o marco das nascentes do rio Santa Rosa fora assentado pela turma do Capitão No-
gueira da Gama em 1920, Felizardo e seus homens avistariam, à distância, várias famílias Marinawa, es-
palhadas pelas praias, em território peruano, dedicadas à caça de jacarés e à coleta de ovos de tracajá. An-
tonio Leandro seria picado por uma arraia numa das praias do Curanjinha, deixado por Felizardo em um
esconderijo, a salvo dos Marinawa, junto com outro dos trabalhadores e resgatado por ordem expressa do
Sub-Chefe da Comissão, por uma turma de quatro homens, tendo chegado ao acampamento após 18 dias
de penosa viagem (Silva, 1929: 141; Cerqueira, 1958: 136-38).
327
pedindo ao mesmo que desculpasse-lhe o não aceitar a oferta, o que o índio pode
compreender o motivo e o comandante fez o que havia pensado antes, ofereceu-
lhes os belos presentes que tão bem guardados havia ocultado de todos nós. Sen-
do que os referidos índios da tribu Mari-naúas, saíram bem satisfeitos e reconhe-
ceram na pessoa do comandante mais um bom homem e tiveram entendimento di-
reto com o pessoal da turma" (Cerqueira, 1958: 141).
Algumas breves considerações merecem ser tecidas a partir da situação consta-
tada pela Comissão na região do Paralelo de 10ºS e das políticas adotadas face aos ín-
dios "selvagens". Ferreira da Silva destaca a grande dispersão dos territórios desses in-
dígenas e o seu reduzido contingente populacional. Os números estimados para os gru-
pos cujas malocas foram identificadas (400 Jaminawa e Marinawa), fora outros grupos
de cuja existência a Comissão tomou conhecimento, mas acabou por não "encontrar"
432
(aí incluídos os Kaxinawá que haviam migrado para as cabeceiras do Curanja, em terri-
tório peruano), ultrapassam bastante a estimativa de 300 "selvagens" feita pelo padre
Tastevin (1926) em 1924, após viagem pelos rios Tarauacá e Jordão.
Informações fornecidas por Ferreira da Silva indicam que a produção de caucho
continuava a ser feita no divisor dos rios Purus e Envira, agenciada por patrões brasilei-
ros, inclusive com a mobilização de mão de obra indígena
433
. Ainda que alguns poucos
peruanos continuassem como aviados de patrões brasileiros, a atividade caucheira dimi-
nuíra consideravelmente, especialmente em território peruano. A desarticulação dessa
atividade em território peruano
434
e a crise então vigente nos seringais, com o êxodo de
muitas famílias das colocações situadas nas cabeceiras dos rios, foram fatores que con-
tribuíram decisivamente para a sobrevivência dos grupos que continuava a ser vistos
como "selvagens". Após quase três décadas de "correrias", haviam logrado se estabele-
cer em territórios coletivos e ali construir suas malocas, se dedicando ao cultivo de
grandes roçados, à caça, à pesca e a extração.
Mesmo após a demarcação física executada pela Comissão Mista, a região do
entorno da fronteira internacional continuaria a ser marcada pela porosidade, não tanto
432
Vale citar que grupos de índios Kaxinawá, Charanawa e Kulina, citados por Ferreira da Silva, além de
Mastanawa, Txaninawa, Ashaninka e Amahuaca, habitam hoje em territórios de "comunidades nativas"
oficialmente reconhecidas pelo governo peruano ao longo do rio Purus, boa parte delas ao longo da fron-
teira internacional com o Brasil.
433
Conforme indica Ferreira da Silva, a casa aviadora Nicolaus & Cia. detinha vários seringais nessa zo-
na, e, parece plausível afirmar, operava linhas de navegação regulares e centralizava o aviamento e a ca-
nalização da produção de outros proprietários e patrões (Brasil. MRE, 1926: 351; Silva, 1929: 107).
434
A decadência da economia do caucho ao longo de toda a fronteira tornaria a ser constatada pela Co-
missão no divisor de águas dos rios Juruá e Ucayali, em 1925-1927, com o total abandono de localidades
outrora ocupadas por peruanos e de diferentes vários "varadouros" antes usados como vias de comunica-
ção e transporte entre diferentes pontos dessas bacias hidrográficas.
328
pelas atividades dos caucheiros, mas pela ocupação e uso de uma extensa área de flores-
tas por diferentes grupos indígenas, os quais continuavam a ativamente se manter à
margem dos seringais
435
. A localização pela comissão da maioria desses grupos "selva-
gens" a leste do rio Envira, região onde o caucho fora outrora bastante abundante, e não
tanto a seringa, parece confirmar essa dinâmica articulada à decadência da atividade
caucheira. A quase total ausência desses grupos nas cabeceiras do rio Tarauacá, Jordão
e Envira, por outro lado, parece guardar relação com a continuidade do funcionamento
da empresa seringalista, com as "correrias" que haviam continuado a ser promovidas
por muitos patrões, bem como com a "polícia de fronteira" realizada por Felizardo e os
Kaxinawá após sua chegada ao alto rio Jordão em 1917 e com o "massacre" dos Papavô
ocorrido em Revisão pouco depois.
A política de "não hostilização" face aos índios "selvagens", imprimida por Fer-
reira da Silva às ações da Comissão Mista, por meio do recrutamento de agentes especi-
alizados, catequistas reconhecidos, como Felizardo Cerqueira e Antonio Bastos, o res-
peito às malocas e aos roçados e a oferta de "presentes", permitiria a conclusão dos tra-
balhos de demarcação da fronteira, em cumprimento ao estabelecido no Tratado de
1909. As atividades realizadas pela Comissão Mista, no âmbito de um empreendimento
militar, não resultariam, todavia, em qualquer proposta de ações posteriores, voltadas
para uma pacificação das relações entre índios e "civilizados" ou para uma maior pre-
sença do poder estatal nessa região fronteiriça, como, por diferentes meios, haviam de-
fendido tanto os militares Thaumaturgo de Azevedo, Belarmino Mendonça e Luiz Som-
bra como diferentes os inspetores do SPILTN (Francisco Escobar de Araújo e Bento Pe-
reira de Lemos).
Felizardo e seus "índios catequizados"
O ativo engajamento de homens Kaxinawá nas atividades da Comissão Mista é
objeto de referências pontuais nos relatórios de Ferreira da Silva referentes a 1923-
1924, biênio em que a Comissão atuou nas cabeceiras dos rios Tarauacá, Jordão e Breu.
De forma mais geral, não constam nesses relatórios informações substantivas sobre o
perfil e sobre as formas de escolha e de remuneração, à exceção dos "práticos", do "pes-
soal civil", contratado localmente e mobilizado em serviços de transporte de equipa-
435
Mudanças nessas formas de ocupação, marcada por um relativo "isolamento", bem como nas relações
com os "civilizados" adviriam, já a partir da década seguinte, com a intensificação das atividades de ex-
tração madeireira e, principalmente, de peles e couros de animais.
329
mentos e alimentos, abertura de clareiras e da picada da demarcação, além de na monta-
gem e transferência dos acampamentos. O duplo papel de mediador e empreendedor e-
xercido por Felizardo, balizado, de um lado, no acordo firmado com Ferreira da Silva e
nas instruções anuais dele recebidas e, de outro, nas relações de tutela e trabalho que fa-
zia anos mantinha com as famílias que com ele viviam em Revisão, será aqui privilegi-
ado na busca de respostas para essas questões, no que diz respeito aos trabalhos feitos
pelos Kaxinawá para a Comissão Mista.
Imagens inicialmente divergentes seriam utilizadas por Ferreira da Silva ao se re-
ferir aos Kaxinawá visitados por integrantes da Comissão em junho de 1924, quando
subiam rumo às cabeceiras dos rios Jordão e Tarauacá. A mais numerosa "tribo" da re-
gião, composta por "cerca de 300 índios", distribuídos em cinco malocas, nos seringais
Revisão e Transwaal
436
, os Kaxinawá seriam ora representados como "já quase total-
mente catequizados" (Brasil. MRE, 1926: 365) ora como "domesticados" (Silva, 1929:
128), condição que resultara de sua longa convivência com Felizardo, catequista que os
"guiara e orientara no rumo da civilização", como afirmaria o comissário três décadas
depois (Diário do Congresso Nacional, 1956: 12237). Por outro lado, o Chefe da Co-
missão ressaltaria a "preocupação" da "Turma do Tarauacá" com "a presença dos índios
"Cachinauas", que infestam aquella região, embora menos selvagens e aggressivos do
que os "Jaminauas", cujo habitat principal se encontrava ao Leste do mesmo rio (...)"
(Silva, 1929: 126).
Nenhuma informação substancial é oferecida por Ferreira da Silva acerca da exata
localização dos cupichauas no alto rio Jordão, do modo vida de seus moradores, de suas
relações cotidianas com Felizardo, nem de seu contextual relacionamento com as turmas
da Comissão, na visita feita às malocas ou durante o convívio nos acampamentos e nos
trabalhos na fronteira. Não causa estranheza, contudo, que o Comissário abra exceção
única ao chamar a atenção para a existência da "poligamia", "geralmente permitida até
três mulheres, cabendo esse direito aos homens mais valentes e possuidores de grande
roçados", e ao descrever, com informações que atribui a Felizardo, o ritual de consuma-
436
A indicação da existência de pelo menos uma maloca no seringal Transwaal (ou Transual) é, em parte,
confirmada por informações de Sueiro, ao afirmar que, ao optar por abandonar o rio Formoso, afluente do
rio Tarauacá, e entrar no rio Jordão, seu pai se estabeleceu num local por nome Araçá, que depois seria
conhecido como a última colocação do Transual. A chegada da família de Chico Curumim ao Araçá mar-
cou o início de uma gradual saída de várias famílias das cabeceiras do rio Jordão, onde haviam permane-
cido, em anos anteriores, em função do trato de Felizardo com José Maia, para, atuando como "polícia de
fronteira", evitar possíveis saques e mortes promovidas pelos Papavô.
330
ção dos parentes mortos, para concluir que os Kaxinawá, por "crença religiosa", eram
necrófagos, antes que antropófagos (Silva, 1929: 127-28).
Não há afirmações de condenação a essas práticas nos relatórios oficiais de Ferrei-
ra da Silva, mas ficam assim registrados sinais diacríticos que, aos olhos do militar e
dos "civilizados" da Comissão, maracavam uma radical alteridade dos Kaxinawá
437
. O
consumo ritual dos mortos, um tema recorrentemente destacado por Felizardo em início
de seu relatório, ao salientar o desafio inerente à catequese dos então "selvagens" Kaxi-
nawá, é retomado, nesse contexto, como elemento a valorizar a necessidade de seu pa-
pel de mediador nas relações desses índios com os membros da Comissão. Destacado
por Ferreira da Silva, reforça a representação da condição dos Kaxinawá, ao mesmo
tempo, como "domesticados" e "já quase totalmente", mas não plenamente, "catequiza-
dos", e a justificativa da preocupação causada pela presença indígena à "Turma do Ta-
rauacá".
Um conjunto de fotos da visita da "Turma do Tarauacá" às malocas nos seringais
Revisão e Transual em junho de 1924, parte do "Álbum Fotográfico" da Comissão (Bra-
sil. MRE, 1928a)
438
, retratam situações que fundamentam dessa duplicidade inerente às
437
São as seguintes as palavras do Chefe da Comissão sobre o ritual: "Não matam para comer, mas co-
mem os que morrem, excepto os inimigos, certos de que, se não o fizerem, também morrerão. O matteiro
da Commissão, Felizardo de Cerqueira (...) informa que grande alvoroço se estabelece em um "cupi-
chaua" logo que sabem do fallecimento de algum indio: uns, correm pressurosos em busca de lenha para
uma grande fogueira; outros, deitam um pouco d'agua em um panelão de barro, que está sempre promp-
to á espera de um morto; outros, finalmente, transportam o cadaver, que é nelle sentado de cócoras para
ser cozido. Debaixo de ruidoso chôro é o fogo alimentado, durante toda a noite, pelas indias que rodeiam
a fogueira, e, no dia seguinte, devoram o cadaver, entre lagrimas e canticos, tendo o cuidado de guardar
pedaços para os ausentes. Essa refeição é feita em completa desordem, procurando cada um arrancar
maior quinhão, e, como nada deve restar do morto, são seus ossos triturados e collocados na bebida por
elles muito aprecida e denominada "caiçuma", geralmente produzida pela cocção do milho ou da mandi-
oca" (Silva, 1929: 128). Outros dois registros foram feitos por membros da Comissão Mista a respeito da
"necrofagia" dos Kaxinawá. O médico da Comissão brasileira, João Braulino de Carvalho (1929: 302-03),
no verbete "Destino dado aos mortos", o maior da seção dedicada aos Kaxinawá, descreve essa prática,
acrescentando à descrição de Ferreira da Silva o costume dos Kaxinawá de "inutilizar" todos os pertences
do morto e de mudar-se de local, após queimar o cupichaua, em casos da ocorrência de várias mortes se-
guidas. Carvalho diz ter feito essas observações com base em informações de "moradores da zona", do
patrão do seringal Nova Olinda, no rio Envira e de Kaxinawá, moradores de Revisão, incorporados à
"Turma do Envira". Num trecho, destaca: "(...) o índio Biló (...) deixou a esposa em um cupichaua do
"Jordão". Ao regressar, soube que ella havia morrido e nos contou que foi devorada pelos parentes e a-
migos" (ibid: 303). Por sua vez, o Chefe da Comissão peruana, Tenente Coronel Roberto López, também
trataria do tema em seção específica do relatório que elaborou ao término dos trabalhos de 1924 (López,
1925: 53-63, apud Salisbury, 2007: 77).
438
O Álbum Fotográfico, incorporado como Anexo Nº 18 ao relatório final do Comissário brasileiro (Sil-
va, 1929: 267), é composto por 103 páginas e 446 fotografias, e encontra-se depositado no Arquivo Histó-
rico do Itamaraty (Lata 541), onde foi consultado e, mediante autorização dos responsáveis pelo acervo,
parcialmente fotografado com uma máquina digital. O fotógrafo da Comissão Mista, responsável pelos
registros, não tem seu nome identificado no Álbum ou nos relatórios de Ferreira da Silva; estes últimos
tampouco fazem qualquer menção ao registro fotográfico que a Comissão manteve ao longo de seus nove
anos de atividades, ainda que o relatório final (Silva, 1929) inclua uma reduzida quantidade de fotos. O
Álbum inclui os seguintes registros de grupos indígenas "encontrados" pela Comissão: 1) "Índios perua-
331
representações de Ferreira da Silva
439
. À exceção de uma foto (94-3), são poses produ-
zidas a pedido da Comissão, frutos de diálogo, mediação e confiança, nas quais se mes-
clam, dentre outras, expressões de alegria, apreensão e recato dos Kaxinawá, ao que tu-
do indica, colocados à frente de uma câmara fotográfica pela primeira vez. Três fotos
(93-1, 93-2 e 93-3) retratam moradores da maloca situada em Transwaal: homens ves-
tindo calças compridas e calções, cocares e colares, com arcos e flechas, geralmente, em
posição de descanso; as mulheres com saias de algodão, tecidas e pintadas a mão, faixas
de tecido industrializado em torno do abdome, com voltas de miçangas nos tornozelos e
nas orelhas
440
. Outras duas fotos (94-1, 94-2) são as únicas a registrar um momento de
convivência de membros da Comissão e os Kaxinawá, em "festa", na maloca próxima à
sede de Revisão.
Todas essas imagens imprimem um contraste com aquela (93-4) de oito mulheres
Kaxinawá fotografadas na sede desse seringal, com crianças, no colo e no chão, portan-
do vestidos inteiros, costurados, nenhum adorno. À diferença das demais tiradas nas
malocas em Revisão e Transual, sua legenda indica se tratar de "Kaxinawá civilizados".
Ao que tudo indica, se trata de pelo menos parte das mulheres juntas com empregados
de Felizardo, moradores de casas no entorno do terreiro da sede. Uma diversidade de si-
tuações, portanto, expressa em fotografias, escolhidas para retratar os Kaxinawá ao
compor o Álbum da Comissão.
Por outro lado, a comparação, feita por Ferreira da Silva, dos Kaxinawá com os
Jaminawa, exemplo dos "selvagens" com os quais a Comissão se via obrigada a despen-
nos trabalhadores da Comissão", acompanhados do Ajudante da Comissão peruana Capitão Tenente La-
barte, no alto rio Santa Rosa, 1914 (Brasil. MRE, 1928a: pg.11- Fot. 4); 2) "família de índios peruanos no
alto rio Chandless", 1922 (38-4); 3) "Índio em seu tapiry no alto rio Iaco", ladeado pelo Bispo D. Próspe-
ro Bernardi, que então ali fazia uma "desobriga", 1922 (50-4); 4) "Grupo de índios Piro", no igarapé Ma-
tança, afluente do alto rio Acre, acompanhados de seu patrão peruano, 1922 (59-3); 5) Kaxinawá morado-
res do cupichaua do seringal Nova Olinda, no rio Envira, 1924 (66-3/4; 67-1/2); 6) "Grupo de índios pe-
ruanos Kampa", na foz do rio Breu, acompanhados de seu patrão, Cândido Ferreira Batista, 1924 (77-3);
7) Kaxinawá que participavam da Turma do Envira, em 1924 (74-2/4); 8) Kaxinawá nos cupichauas dos
seringais Transual e Revisão, alto rio Jordão, 1924 (92-3; 93-1/2/3/4; 94-1/2/3); 9) índios "Chama", origi-
nários do Ucayali, moradores do rio Amônia , 1925 (98-3); 10) Kampa no rio Amônia, "índios que habi-
tam em grande número em ambas as margens do Ucayali e do Pachitea", 1925 (98-4). O Álbum da Co-
missão permanece desconhecido no Estado do Acre (apesar de seis fotos, dentre elas, duas dos Kaxinawá
de Revisão, uma dos Kaxinawá de Nova Olinda e uma dos Ashaninka, terem servido como ilustrações em
Barros [1993]). Há também no relatório do Chefe da Comissão peruana, Roberto López (1925), uma boa
quantidade de fotos das atividades da Comissão em 1924, dentre as quais, oito dos Kaxinawá que viviam
no alto rio Jordão (www.mae.u-paris10.fr/recherche/PANOL.htm; Salisbury, 2007: 77).
439
As fotos dos Kaxinawá aqui referidas estão reproduzidas no Anexo Fotográfico que consta ao final da
tese.
440
Miçangas, tecidos e confecções industrializados, juntos com uma diversificada quantidade de vesti-
mentas, ornamentos e pinturas corporais feitos pelos próprios Kaxinawá, marcam uma indumentária que,
já nessa época, mesclava, ressemantizando, manifestações próprias da cultura com fluxos incorporados de
outros grupos indígenas e, nas duas décadas anteriores, dos "civilizados".
332
der custosos esforços para a "vigilância" e "defesa", insere os primeiros numa posição
intermediária ao longo de um gradiente civilizatório delineado pelo Comissário. Resul-
tado de diferentes históricos de relacionamento dos Kaxinawá e dos Jaminawa com os
patrões, caucheiros, seringueiros e "catequistas", essa gradação é construída, nos escri-
tos de Ferreira da Silva, com base em impressões decantadas de avaliações sobre os
possíveis obstáculos que as várias "tribos" encontradas" pela Comissão" poderiam colo-
car à concretização do "patriótico objetivo" a ela incumbido, bem como das diferentes
modalidades de interação, ou não, com elas estabelecidas pelas turmas ao longo dos tra-
balhos.
Assim, num pólo oposto aos dos Jaminawa, estariam, na visão do comissário, os
índios, "todos domesticados", que habitavam um cupichaua no seringal Atenas, no rio
Tarauacá, por "representarem restos de várias tribos", "já mui reduzidas"
441
, assim como
os Kaxinawá "aldeados" num cupichaua no seringal Nova Olinda, no rio Envira, cujas
famílias, cerca de 120 pessoas (das quais 74 homens), dedicadas a uma agricultura "ru-
dimentar" e "em constantes relações com o patrão", viviam "na mais completa imundi-
ce" (Silva, 1929: 126)
442
. Segundo informa Ferreira da Silva, alguns destes Kaxinawá
prestariam serviços à "Turma do Envira" em 1924: em meio a uma desproporcional va-
zante no rio, auxiliariam o "pessoal civil" no transporte, "às costas", de grande quanti-
dade de equipamentos e alimentação, subindo por varadouros e praias desde a sede do
seringal União até o ponto de cruzamento das cabeceiras do rio Furnanha com o Parale-
lo de 10ºS, numa empreitada que se estenderia por treze dias (Silva, 1929: 138).
441
De passagem pelo médio rio Tarauacá, a Comissão ali "encontraria" "cerca de 50 índios, homens e
mulheres, das seguintes tribus: esconaua, vamonaua, ururunawa e jaminaua", diz Silva (1929: 154), das
"famílias" (nawa) do japó, da queixada, da cobra e do machado, respectivamente. Viajando nesse mesmo
ano de 1924, Tastevin (1926) faria referência a esses mesmos grupos, e a outros, moradores do seringal
Atenas (e das cabeceiras do rio Gregório), os quais agruparia sob o "etnônimo" Katukina, reconhecendo
tratar-se de uma amálgama de "antigos clãs" "amansados" por Ângelo Ferreira fazia duas décadas. Parte
desses índios, cabe lembrar, estivera sob a "fiscalização" do próprio Felizardo, quando a serviço da Co-
missão de Obras Federais, e depois, por mais de uma década, trabalhara para Joaquim Rodrigues da Silva,
patrão do Atenas.
442
Segundo Ferreira da Silva (1929: 126) a entrada do cupichaua em Nova Olinda "(...) era uma viella de
cerca de 70 metros de extensão, tendo ao fundo algumas choupanas, intervalladas de alguns metros"
(Silva, 1929), nas quais, diz o médico da Comissão, João Braulino de Carvalho (1929: 303), as famílias
recolhiam-se à noite; de dia, preferiam permanecer no cupichaua, a "casa coletiva", na qual cada família
"tinha a sua parte". A avaliação de Ferreira da Silva sobre situação em que viviam essas famílias contrasta
com a do relatório de Máximo Linhares (1913), ajudante do SPILTN, em 1912, quando ali visitara 40
Kaxinawá, "(...) vestidos, bem limpos, com boas habitações, assoalhadas, muita lavoura, bem satisfeitos
(...)", sob o "olhar caridoso e bondoso" do patrão Francisco Ferreira, a quem nomearia "subdelegado de
índios". Contrasta, por outro lado, com as breves "observações pessoais" feitas pelo médico da Comissão
após visitar o cupichaua, quando dá indicações da vitalidade da organização social e econômica e das ex-
pressões culturais das famílias ali "aldeadas" (Carvalho, 1929). Destoa, ainda, de fotografias dos Kaxina-
wá à frente de seu cupichaua e em visita ao acampamento da Comissão numa praia do rio Envira (Brasil,
MRE, 1928a: 66-3, 66-4, 67-1, 67-2), incluídas no Anexo fotográfico da tese.
333
Conforme fica evidente desde a primeira "convocação" feita a Felizardo por Fer-
reira da Silva em 1920, eram de seu conhecimento os serviços por aquele prestados, jun-
to com os Kaxinawá, no rio Envira, para a "pacificação" das relações entre civilizados e
indígenas tidos como "selvagens", e nos rios Jordão e Tarauacá, para o "policiamento da
fronteira", evitando ataques e roubos dos Papavô, ambos com o objetivo de "dar segu-
rança" aos trabalhadores do caucho e da seringa. Da mesma forma, Ferreira da Silva re-
conheceria os serviços de Felizardo enquanto "antigo catequista" e tutor dos Kaxinawá
que com ele viviam em Revisão. Dando continuidade a essas atividades, incorporado à
Comissão, Felizardo contribuiria, com outros "práticos" e com os Kaxinawá por ele
mobilizados, para o cumprimento da política de "não hostilização" imprimida por Fer-
reira da Silva como norte para o relacionamento com os índios "selvagens".
Iniciativa do próprio Ferreira da Silva, a contratação de Felizardo assumiria im-
portância em sua estratégia para também lidar com os Kaxinawá de Revisão, grupo vis-
to como "domesticado", mas numeroso e potencialmente "agressivo", cujos homens en-
contravam-se de posse de grande quantidade de "rifles", além de arcos, flechas, lanças e
tacapes, orgulhosamente exibidos durante a passagem dos membros da Comissão, con-
forme evidenciado nos registros fotográficos então feitos e depois incorporados ao ál-
bum fotográfico (Brasil. MRE, 1928a).
A mediação delegada a Felizardo pelo Chefe da Comissão brasileira seria, princi-
palmente nos anos de 1923-1924, fundamental à garantia de uma "acomodação", neces-
sária ao "despreocupado" avanço dos trabalhos das Turmas "do Tarauacá" e "do Breu",
bem como à arregimentação e mobilização dos Kaxinawá, importante fonte de força de
trabalho, passível de ser utilizada em tarefas relevantes aos objetivos da comissão
443
.
Formalmente contratado na condição de "prático" e "mateiro", Felizardo, em seu relató-
rio, define como "chefe de turma de divisores, transporte e defesa de caminhos" o cargo
que exerceria por cinco anos para a Comissão (Cerqueira, 1958: 133). Na introdução do
seu relatório, ao elencar, de forma resumida, as várias atividades exercidas ao longo de
sua vida profissional, afirma, por sua vez, ter sido "incluído" na Comissão de Limites na
condição de "chefe de turma de defesa de caminho e divisor, com a incumbência de a-
fastar os índios e não deixar a referida turma sofrer ataque dos mesmos" (1958: 1).
443
Cabe lembrar, a partir dos dados do censo promovido pelo padre Tastevin (1926) pouco antes da pas-
sagem da Comissão, a população "civilizada" de Revisão (aí incluídos, homens, mulheres e crianças) era
de apenas 16 pessoas, enquanto 184 Kaxinawá, dos quais 51 homens, ali viviam.
334
Numa situação em que julgava os chefes da Comissão e o "contingente militar"
eminentemente despreparados para compreender a dinâmica de possíveis represálias dos
"selvagens", Felizardo viabilizaria, com intenção de "defender", ou "dar segurança", aos
trabalhadores, a incorporação de jovens Kaxinawá nas expedições por ele chefiadas, ou
sob responsabilidade de outros "práticos". Fardados como os demais membros do "pes-
soal civil" e armados com rifles, esses rapazes participariam não apenas no levantamen-
to dos divisores e cursos de certos rios, mas desempenhariam tarefas especializadas, em
"batidas" destinadas a localizar cupichauas e a "sondar o ânimo" e "conhecer as disposi-
ções" de seus moradores, contribuindo, assim, para subsidiar estratégias e decisões que
permitissem um constante e "pacífico" avanço das turmas da Comissão
444
.
Como parte das tarefas coordenadas por Felizardo enquanto "chefe de turma de
divisores e transporte", um número maior de homens Kaxinawá daria outra relevante
contribuição à demarcação da fronteira ao longo do Paralelo de 10ºS. Em cumprimento
a instruções recebidas de Ferreira da Silva em outubro de 1923, ao término das ativida-
des regulares da Comissão, Felizardo mobilizaria "seu pessoal" no levantamento da ter-
ra da divisão até as cabeceiras do rio Breu e na abertura de uma rede de picadas, ligando
a sede de Revisão àquela nascente e ao último acampamento utilizado pela "Turma do
Envira". Era intenção do Chefe da Comissão, ao início dos trabalhos de 1924, assim agi-
lizar a medição, a demarcação e a sinalização do trecho do divisor previamente levanta-
do por Felizardo, bem como o transporte de equipamentos e víveres até as cabeceiras
dos rios Tarauacá e Breu. Como parte desse planejamento, e da confiança depositada
em Felizardo, o envio desses materiais à sede de Revisão foi previamente acertado por
Ferreira da Silva junto aos responsáveis pela coordenação logística da Comissão Mista
na cidade de Belém (Brasil. MRE, 1926: 358; Silva, 1929: 146-47)
445
.
444
Nas fotos que registram sua presença em meio aos acampamentos da Comissão (Brasil. MRE, 1928a:
74-2, 74-3, 74-4), as legendas, novamente, salientam tratar-se de Kaxinawá "civilizados" e já "domestica-
dos": em uma delas aparecem em destaque, sozinhos, com o subcomissário brasileiro responsável pelo
comando da "Turma do Envira"; em outra, apenas com Felizardo; em outra, foto coletiva da "Turma do
Envira", dois dos Kaxinawá aparecem logo atrás de seu "catequizador". São essas últimas as únicas duas
fotos em todo o Álbum em que Felizardo aparece retratado. Via de regra, os jovens Kaxinawá exibem or-
gulhosamente seus rifles, assim como, na foto coletiva, também o fazem os demais membros do "pessoal
civil".
445
A vazante do rio Tarauacá, incomum em fevereiro de 1924, permitiria, todavia, que essa carga fosse
transportada apenas até a sede do seringal Novo Destino, pouco acima de Vila Seabra. Em começo de
maio, a própria turma da Comissão Mista, fazendo uso de batelões, realizaria, durante duas semanas, seu
transporte até a Vila Jordão, onde um acampamento e um depósito ali montados serviriam como base de
operações para o translado da carga rio Jordão acima, em pequenas ubás, até a sede do seringal Sorocaba.
Dali até Revisão, seu transporte prosseguiria por varadouros e por dentro do rio, com o auxílio de ubás e
de três bois de carga, dois "cedidos por empréstimo" e outro alugado, por patrões locais. Este fato é regis-
335
O padre Tastevin, que realizou "desobriga" nos seringais dos altos rios Tarauacá
e Jordão em abril e maio de 1924, pouco antes da chegada da Comissão Mista para a se-
gunda etapa de serviços no Paralelo de 10ºS, ressaltaria, no texto que resultou de sua vi-
agem, que essa tarefa encarregada por Ferreira da Silva estava concluída, graças ao tra-
balho de Felizardo e "seus Kaxinawá". Diz o padre: "La commission des limites a fait
appel à son concours [de Felizardo] pour tracer la frontière entre le Santa Rosa sur les
Purus, et le Bréo sur le Juruá. Grâce à lui et à ses Indiens, ce travail s'est poursuivi
sans accident et est aujourd'hui achevé" (Tastevin, 1926: 48).
Tastevin também destaca, durante sua viagem de retorno até a cidade de Seabra,
ter encontrado e conversado com os membros da "Turma do Tarauacá, que subiam ru-
mo ao alto rio Jordão. Com base em informações levantadas em sua viagem à Revi-
são
446
, então ainda desconhecidas da própria Comissão, o padre precisa as atividades
concluídas por Felizardo e "seu pessoal" nos meses anteriores, que permitiam vislum-
brar um pronto encerramento dos trabalhos demarcatórios até a foz do rio Breu. E des-
tacaria a participação de seringueiros, empregados e fregueses de Felizardo, outra parte
do "pessoal" por ele recrutada nesse trabalho de "invernada", sem tornar a mencionar,
desta vez, o ativo envolvimento dos Kaxinawá:
"J'ai rencontré, lors de ma descente en mai, à la bouche du [paranã] San
Salvador, les membres de la Commission Mixte, qui allait fixer sur le terrain et
dresser la carte de la frontière du Perou et du Brésil. Le gros travail avait été fait
par des seringueiros qui connaissaient à fond la région, et avaient ouvert quatre
sentiers: le premier de l'Ibuya au Bréo, le trois autres de Revisão à l'Ibuya, et aux
deux formateurs du Bréo, le Cazuzinha et le Bréo proprement dit. Il ne restait
donc plus qu'a dresser les bornes pyramidales en ciment armé, au passage ou à la
naissance des principaux cours d'eau et à relever les points astronomiques, avec
l'aide du poste de radiographie installé au Cruzeiro do Sul. s les mois de
septembre, les travaux furent achevès, jusqu'à l'embouchure du Bréo sur le Juruá,
et nous aurons bientôt le plaisir d'être fixés sur les rèsultats de cette campagne
géographique" (Tastevin, 1926: 41)
447
.
trado por Ferreira da Silva com júbilo, pois seria esta a única ocasião em que, em nove anos de atividade,
a Comissão Mista contaria com o auxílio desse tipo de animais (Silva, 1929: 145-46).
446
Tastevin (1926: 40) deixa entendido ainda que parte das informações que então apresentava em seu es-
crito derivava de conversa mantida com Felizardo durante sua estadia no alto rio: "D'aprés les
renseignements d'un homme intelligent qui pendant l'hiver 1923-1924 a déblayé sur le terrain la frontière
brésilienne entre l'Embira et les sources du Bréo (...)", diz, como preâmbulo para a apresentação de um
conjunto de dados sobre a região dos formadores dos rios Tarauacá e Jordão.
447
Como fruto desse encontro, Tastevin (1926: 41) informa que da "Comissão Internacional dirigida pelo
almirante Antonio Ferreira da Silva" obtivera informações sobre as coordenadas geográficas e altitudes
dos pontos de nascimento dos rios Tarauacá, Jordão e Breu, dados que o padre fez questão de transcrever
na íntegra em uma das poucas notas de rodapé de seu texto.
336
Em seus relatórios, o chefe da comissão brasileira faria também questão de regis-
trar, por um lado, o "auxílio" prestado pelos Kaxinawá no cumprimento das instruções
recebidas por Felizardo ao final dos trabalhos de 1923; e, por outro, o pleno acerto dos
trabalhos realizados, conforme depois atestado pelos comandantes pelas Turmas "do Ta-
rauacá" e "do Breu" ao iniciarem suas atividades:
"De "Revisão", onde foi feito o deposito geral das cargas e base de operações
da Sub-comissão Mixta, realisou-se o transporte de viveres para a nascente
principal do rio "Breu", em quantidade sufficiente para 60 dias; utilisando-se,
para isso, de uma picada que liga "Revisão" á confluencia do igarapé "Cazuza",
até seu cruzamento com outra que conduz áquella nascente. Esta picada fôra
aberta pelo matteiro Felizardo de Cerqueira, auxiliado por alguns indios "Ca-
chinauas", no intervallo dos trabalhos 1923-1924, afim de facilitar o referido
transporte; prolongando-a depois, conforme minha ordem, a partir da nascente
para o sul, sobre o divisor de aguas que separa as que correm para o "Juruá", a
oeste, das que correm para o mesmo rio, ao norte, e seguindo sobre ella até en-
contrar o ponto attingido pela turma, em 1923, sobre o mesmo divisor. Essa
medida, por mim tomada ao terminar os trabalhos do anno anterior veio facili-
tar immensamente os de 1924, visto terem sido encontrados certos todos os pi-
ques do divisor, quando verificados pela Sub-comissão Mixta" (Brasil. MRE,
1926: 358; Silva, 1929: 146-47).
Ferreira da Silva aponta, ainda, outro produto dessa atividade, o qual também con-
tribuiria para o deslancho das atividades da subcomissão nas nascentes do rio Breu.
Poucos dias após a chegada da turma a esse ponto, em meados de junho, seu chefe, Ca-
pitão Tenente Amaury Sadock de Freitas, enviaria portador à base de operações na sede
de Revisão solicitando informações acerca "dos piques que o Felizardo devia ter aber-
to" (Silva, 1929: 147). No dia seguinte, outro portador partiria imediatamente para o
Breu, levando consigo um "croqui" das picadas. Ferreira da Silva não especifica, toda-
via, se este fora desenhado pelo próprio Felizardo, então presente em Revisão, ou se por
algum membro da Comissão, sistematizando informações por ele fornecidas.
Somente após a chegada desse croqui, e de quatro viagens para o transporte de a-
limentos da sede de Revisão à cabeceira do Breu, é que a turma chefiada por Sadock de
Freitas iniciaria o levantamento desse rio até a foz. A fotografia que registra a saída da
primeira turma de transporte rumo ao divisor permite constatar que homens Kaxinawá
estivam envolvidos nessa tarefa (Brasil. MRE, 1928a: 95-1). Da mesma forma, partici-
pariam da desmobilização da "Turma do Tarauacá" em final de agosto de 1924, após a
conclusão da demarcação do divisor até a nascente do rio Breu; Segundo informa o che-
fe da comissão, ao descer de Revisão ao seringal Sorocaba, os equipamentos e a alimen-
tação restante foram carregados por terra, "(...) ás costas de indios e outros empregados,
337
e as embarcações arrastadas sobre o leito do rio (...)", novamente com o auxílio de bois
de arrasto (Silva, 1929: 153).
Não apenas os escritos de Ferreira da Silva ou do padre Tastevin, todavia, desta-
cam o valioso auxílio prestado pelos Kaxinawá às turmas da Comissão Mista no biênio
1923-1924. O mesmo seria feito pelo chefe da comissão peruana, conforme ressalta em
sua tese o geógrafo David Salisbury (2007: 77), ao resumir, traduzindo, informações do
escrito do oficial peruano.
"(...) Lieutanant Colonel Roberto López, chief of the Peruvian Boundary Commis-
sion, also noted the importance of local people in the demarcation efforts:
“Cashinaguas (Kaxinawá) Indians helped the demarcation sub-commissions act-
ing on the Jordán and Alto Tarahuacá Rivers in 1924, in exchange for glass
beads, mirrors and scissors” (López 1925: 55). López’s photographs and captions
demonstrate the importance of the resident Kaxinawá in opening trails, hunting
for food, and hauling loads for the bi-national commission (López 1925)".
Conforme comentado, nenhuma menção é feita por Ferreira da Silva em seus
relatórios às formas de remuneração dos Kaxinawá ou dos demais integrantes do "pes-
soal civil". Felizardo, por sua vez, se refere aos "salários" pagos pela Comissão ao "seu
pessoal" pelos trabalhos de invernada. E o chefe da Comissão peruana, Roberto López
explicita escassos objetos (apesar do alto valor atribuído às miçangas pelos Kaxinawá)
como remuneração recebida em troca dos serviços realizados.
A partir de informações que resultaram de pesquisas históricas iniciadas junto aos
"velhos", filhos daqueles que presenciaram a passagem da "Comissão de Limites" no rio
Jordão, ou participaram diretamente de suas atividades, o professor Kaxinawá Noberto
Sales, em entrevista gravada em 2007, ressaltaria, por outro lado, como aqueles incorpo-
rados por Felizardo ao seu pessoal de invernada haviam concebido as atividades feitas
durante a demarcação da fronteira:
"Eu estou falando sobre a nossa vida, sobre o trabalho da história, de Felizardo,
bem dizer, nosso avô Felizardo. (...) Na próxima vez que eu encontrar alguns ve-
lhos, vou poder contar mais algumas histórias. O que eu sei é que tem mais histó-
ria, do tempo de fazer caminho, fazer pique, fazer fronteira, a divisa Peru e Bra-
sil. Eu ouvi que ele levou uns dez, quinze Hui Kuin nesse trabalho. Diz que foram
abrir o pique, da demarcação da fronteira. Diz que levavam comida pra eles, ca-
da qual levando um paneiro de farinha, alguma coisa, açúcar. Passava muitos
dias, muitos meses na mata, abrindo pique, fazendo trabalho. Na hora de co-
mer, tinha que comer pouco, latinha de manteiga, com um pouquinho de farinha,
pedacinho de carne, para economizar a comida. Os parentes não tinham costume
de lutar naqueles trabalhos. Daí o pessoal sempre falava com ele, com Felizardo,
que passava muita necessidade, trabalho muito difícil, muito duro. Diz que traba-
338
lhava não sei quantos dias, abrindo variante, no terçado" (Noberto Sales Tenê,
Rio Branco, 17 de fevereiro de 2007)
448
.
Aproveitando um nicho de mediação aberto com a sua contratação pela Comissão,
Felizardo viabilizaria a incorporação da mão de obra dos Kaxinawá nas atividades das
Turmas "do Envira" e "do Tarauacá" em 1923-1924, e com eles comporia parte do pes-
soal para trabalhar nos períodos de inverno entre esses anos. Com a morte do patrão Jo-
Maia, ocorrida pouco antes da passagem da Comissão pelo alto rio Jordão, Felizardo
"tomara de conta" do seringal Revisão e assumira o movimento comercial de seu barra-
cão. Com sua contratação pela Comissão, pela primeira vez em mais de uma década,
quando encerrara suas atividades para a Comissão de Obras Federais em 1909, Felizar-
do teria ordenado fixo, pago pelo governo federal. O recrutamento da mão de obra de
vários Kaxinawá, a remuneração por eles recebida, na forma de mercadorias, pelos ser-
viços para Felizardo e as turmas da Comissão, os usuais "brindes" ofertados por mem-
bros da Comissão em sua visita às malocas e materiais (ferramentas e medicamentos,
dentre eles) deixados pela "Turma do Tarauacá" após a sua retirada do rio Jordão seriam
448
A demarcação da fronteira nas cabeceiras dos rios Jordão, Tarauacá e Envira é fato pouco lembrado,
quando perguntados a respeito, mesmo pelos Kaxinawá mais velhos, filhos daqueles que viram a Comis-
são passar e/ou dela participaram. Sueiro e Romão, contudo, relacionam esse evento à sua própria partici-
pação em atividades promovidas, ao longo da fronteira internacional, em início dos anos de 1970, pela
Petrobras, quando levantamentos geológicos foram realizados nas cabeceiras daqueles três rios, e, em
1986, pelo sertanista José Carlos dos Reis Meirelles, da Funai, quando diagnóstico da situação dos índios
"isolados" naquela região acabaria resultando na construção de um "posto de atração" no alto rio Envira
(A respeito desta segunda atividade, consultar Meirelles, 2008). Homens Kaxinawá atuariam nessas duas
ocasiões como "guias", "carregadores" e abridores de picadas. Nessas expedições, passaram por vários
marcos de fronteira. Quando a trabalho para a Petrobras, segundo Romão, vira o alemão que chefiava a
equipe consultando livros e informações do tempo da "Comissão de Limites". Novamente semelhanças
foram tecidos quanto à dureza" dos trabalhos realizados no divisor, com pouca comida (conserva, farinha
e arroz) e pesadas cargas (Romão Sales, Aldeia Boa Vista, TI Kaxinawá do Rio Jordão, maio de 2005).
Com pesar, Sueiro revela ter constatado que alguns dos marcos haviam sido danificados pelos "brabos",
ao tentar arrancá-los. Episódio interessante, ocorrido quando da expedição da Petrobras, é destacado por
Sueiro, no qual menciona que seu tio paterno, Miguel Sales, teria trabalhado para a Comissão Mista: "Nós
passamos para lá e para cá, o marco tinha caído. Para cair, só faltava bater com o joelho. Não achava,
parece que era encantado. Toda vez nos procurava. O Felizardo [filho mais velho de Sueiro] se perdeu,
dormiu na mata, só de calção. Fiquei gritando, não respondeu. Voltei para o tapiri, bem preocupado. Eu
sonhei com o meu tio Miguel, irmão do papai, que tinha andado nesse serviço. Ele me apareceu. "Sueiro,
o marco está bem ali, perto. O Felizardo pegou outra terra. Você não se preocupa que ele vai voltar a-
manhã". Outro dia, cedo, fui gritando, lá vinha ele voltando. Aí, eu contei esse negócio para ele: "Meu fi-
lho, eu sonhei que o finado me disse que estava perto o marco". Ele disse: "Papai, vamos achar?". "Va-
mos". A picada que nós tinha feito, só faltava bater em cima do marco, mas não achava. Quando chega-
mos lá, de longe, eu vi o troncão [marco da cabeceira do rio Jordão]. Levantamos, deixamos em pé. Não
sei os brabos já derrubaram de novo. [Terri: O Felizardo Cerqueira foi convidado para trabalhar nessa
Comissão de Limites. Você trabalhou também?] Nesse tempo eu não trabalhei. Eu era meninote, não
compreendia nada. Eu trabalhei para reabrir a picada. Os marcos já estavam todos velhos, como estão
lá até hoje. Meu tio Miguel me ensinou o marco, que estava perto, no sonho" (Sueiro Cerqueira Sales, TI
Kaxinawá da Praia do Carapanã, fevereiro de 1994).
339
importantes componentes para reforçar a ascendência e a legitimidade gozadas por Feli-
zardo entre as famílias indígenas de Revisão, como seu "catequizador" e "bom patrão".
Tendo correspondido plenamente às expectativas e demandas de Ferreira da Silva
e dos demais subcomissários sob cujas ordens atuou em 1923-1924, Felizardo seria efe-
tivado na Comissão até 1927, quando a demarcação da fronteira internacional teve con-
tinuidade ao longo dos 592 quilômetros do principal divisor de águas entre os rios Juruá
e Ucayali. Nos meses de verão, trabalharia incorporado a turmas da Comissão. Nos me-
ses de inverno, atendendo instruções repassadas pessoalmente por Ferreira da Silva, Fe-
lizardo continuaria com "sua gente" explorando e sinalizando diferentes trechos do divi-
sor, de maneira a preparar os próximos trabalhos da Comissão. Nestas empreitadas esta-
ria acompanhado por seis homens, dentre eles diferentes Kaxinawá trazidos de Revisão;
em pelo menos uma das etapas, no inverno de 1925-1926, no levantamento do divisor
entre as cabeceiras dos rios Moa e Jaquirana, seguiria acompanhado de duas índias, uma
Kaxinawá e a outra "Papavô" (Cerqueira, 1958: 147-53).
De final de 1924 a final de 1926, Felizardo ficaria ausente de Revisão durante cer-
ca de dez meses por ano, tendo retornado em duas ocasiões, por períodos de menos de
dois meses, ao término dos trabalhos de verão. Ao retornar com aqueles que levara de
Revisão, revisitava cada uma das malocas, participava de festas de katxanawa feitas pa-
ra comemorar sua chegada, avaliava o resultado dos trabalhos ocorridos em sua ausên-
cia e acertava planos para o ano seguinte. Traria ainda alguns recursos para o abasteci-
mento do barracão, cuja administração deixara a cargo de dois de seus "empregados",
Antônio Belarnuto e Chico Roseno, quem continuariam mobilizando a mão de obra dos
Kaxinawá em tarefas necessárias ao funcionamento do Revisão e atendendo às necessi-
dades básicas de mercadorias das famílias extensas que ali viviam.
Certas tarefas realizadas por Felizardo em 1924-1927 seriam por ele lembradas
como algumas das mais difíceis exercidas na sua profissão de "mateiro", e ganhariam
reconhecimento explícito de Ferreira da Silva, por ocasião das reuniões anuais da Co-
missão ao iniciar suas atividades (Diário do Congresso Nacional, 1956: 12238; Cerquei-
ra, 1958: 146-47; 154-55) e, depois, em seus relatórios oficiais. A primeira, a confirma-
ção da exata localização da nascente do rio Jaquirana, principal formador do Javari,
pendência que permanecia para a diplomacia brasileira e peruana, após os trabalhos das
comissões chefiadas pelo Tenente Cunha Gomes, em 1897, e pelo astrônomo Luiz
Cruls, em 1901 (Silva, 1929: 183). A segunda, a identificação de um fenômeno natural
raro, entre os rios Juruá-Mirim e Abujao, que levara aos incorretos levantamento do di-
340
visor e assentamento de três marcos (ibid: 230-34), equívoco que adiaria até 1927 o en-
cerramento dos trabalhos demarcatórios e seria corrigido com base nas "picadas e todas
as indicações resultantes das explorações feitas pelo matteiro Felizardo de Cerqueira",
conforme atestaria o Chefe da Comissão (ibid: 232)
449
.
Salvas de palmas seriam oferecidas a Felizardo, como homenagem por seus valio-
sos serviços, pelos comandantes peruanos e brasileiros em julho de 1927, em Cruzeiro
do Sul, durante uma das reuniões de conclusão das atividades da Comissão
450
. Felizardo
receberia convite do Sub-Chefe da Comissão, Capitão Braz Dias de Aguiar, para mudar-
se ao Rio de Janeiro, com a promessa de que as necessárias gestões seriam feitas para
viabilizar a sua incorporação às próximas atividades demarcatórias a ocorrerem nas
fronteiras internacionais do Brasil. Declinaria o convite, todavia, por achar-se então
comprometido com José Teotônio de Souza, pai de sua noiva, Alzira de Souza, com
quem se casaria a 9 de agosto de 1927 em Cruzeiro do Sul (Cerqueira, 1958: 159-61),
cidade onde permaneceria até 1934.
A decisão de abandonar o seringal Revisão e de estabelecer-se em Cruzeiro do Sul
seria comunicada por Felizardo aos Kaxinawá e a seus empregados antes de sua partida,
449
Em seu relatório, Felizardo (Cerqueira, 1958: 157-160) narra extensamente o mal-estar inicialmente
gerado entre os chefes da Comissão Mista pela necessidade de prorrogar por mais um ano a atuação das
turmas de trabalho, bem como sua desconfortável posição no episódio: temeu ser visto como "capaz de
tramar uma dificuldade nos serviços dos limites, para finalizar ganhando mais salário", e viu confrontados
a "honra de seu ofício" e a experiência do seu saber prático de mateiro (ibid: 158) Por sua vez, foi a se-
guinte a versão desse episódio que Romão Sales narraria em um de seus depoimentos: "Na cabeceira do
Juruá, diz que viram um lago, mesmo em cima da terra, da terra da divisão. Diz que o Felizardo que en-
controu, mesmo em cima de uma terra. Aí, ele mesmo disse: "O rumo é por aqui mesmo". Aí, os homens
não acreditaram, né? Então, mandaram avisar outro mateiro, do Rio de Janeiro. "Pode ser que o senhor
tenha errado. Se você errou, você vai ficar sem cabeça". Sim, disseram que cortava a cabeça dele. Aí,
mandou chamar o mateiro do Rio de Janeiro. Chegou. Reparou: "Rapaz, é por aqui mesmo. Aqui é o di-
visor das terras, pode fazer o serviço por aqui mesmo". Aí, fizeram a balsa, atravessaram o lago, come-
çaram. "Seu Felizardo, o senhor é capitão do mato. Eu vou te dar a farda, aqui, do capitão". Deram uma
espada, com corrente, farda, a arma de fogo, deram pra ele. Aí, chamavam ele capitão do mato, o Feli-
zardo. Diz que foi assim" (Romão Sales, Aldeia Boa Vista, TI Kaxinawá do Rio Jordão, 2005). Sueiro,
irmão de Romão, comentara esse mesmo episódio em 1991, em versão semelhante, em nossa primeira
conversa sobre Felizardo. A narrativa de Romão é interessante por revelar um fato que, contado por Feli-
zardo, acabaria por marcar a memória dos Kaxinawá de Revisão sobre a demarcação da fronteira, e como
o reconhecimento oficial dado a Felizardo seria relido e atualizado pelos próprios Kaxinawá, por meio da
figura do "capitão do mato".
450
Em carta, datada de 21 de novembro de 1956, encaminhada ao Deputado José Guiomard Santos, em
apoio à sua iniciativa para a concessão de uma pensão como "guia da Comissão de Limites", Ferreira da
Silva novamente louvaria os serviços de Felizardo. Disse então o chefe da comissão brasileira: "No exer-
cício de suas funções, nas citadas regiões [rios Juruá e Tarauacá - MPI] e na zona do rio Javari, prestou
ele relevantes serviços, dando mostras de boa educação, obediente às ordens, cumpridor de suas obriga-
ções, muito dedicado ao trabalho, sempre solícito no auxílio de seus superiores, enfim, revelando-se efi-
ciente cooperador no êxito absoluto com que Deus me permitiu levar a cabo a demarcação completa da
fronteira brasileira-peruana, em execução ao Tratado de Limites estipulado entre o Brasil e o Peru, de 8
de setembro de 1909. Permita-me V. Excia, apresentar-lhe meus francos aplausos pela justíssima e cari-
dosa iniciativa de premiar os ótimos e patrióticos serviços prestados por aquele modesto servidor, de
quem guardo mui grata lembrança" (Diário do Congresso Nacional, Seção I, 7/12/1956: 12337).
341
em início de 1927, para a última etapa de seus trabalhos na Comissão Mista. "Juntou to-
do mundo e falou: "Vocês ficam aqui trabalhando, como nós passamos pra cá. Essa
terra aqui não é mais do peruano, isso aqui é Brasil. Podem ficar trabalhando. Eu vou
baixar, vou procurar lugar melhor. Eu vou pra Cruzeiro do Sul". deixou eles lá"
(Romão Sales, 2004).
Nos anos imediatamente posteriores à sua saída, num contexto de grave crise na
economia da borracha, Chico Roseno e Antônio Belarnuto, empregados que Felizardo
deixara na administração do seringal, poucas alternativas teriam para movimentar o bar-
racão, manter uma freguesia de seringueiros e atender as necessidades das famílias Ka-
xinawá. Confrontadas com a ausência de Felizardo, e com a desarticulação do movi-
mento comercial em Revisão, a maior parte dessas famílias daria início a uma nova di-
áspora, agora rio abaixo, à procura de patrões que se mostrassem dispostos a colocá-los
em seus seringais e aviá-los com mercadorias a troco de seu trabalho. De acordo com os
desígnios dos patrões, as famílias seriam distribuídas, em locais próximos aos barracões,
onde se dedicariam à agricultura de subsistência e a diferentes serviços, na condição de
"diaristas", ou em colocações de centro, onde combinariam a produção de borracha com
a agricultura e com eventuais trabalhos na sede dos seringais. Reconhecidos como ín-
dios "mansos" pelos trabalhos realizados com Felizardo por pouco mais de uma década
no seringal Revisão, os Kaxinawá passariam, na condição de "caboclos", a representar
uma mão de obra diversificada para os patrões seringalistas, dando início a um padrão
mais geral de relações que perduraria no rio Jordão até meados dos anos 1970 (Aquino,
1976, 1977, 1977a).
Uma ressalva final merece ser feita, por ora sem maior delonga. Ainda em 1929,
ao sair do seringal Revisão, Chico Curumim receberia convite de Marcolina do Forno,
uma viúva piauiense, para se estabelecer em seu pequeno seringal, o Fortaleza, situado
no médio rio Jordão. Junto com outras famílias, ao longo dos 18 anos seguintes, se de-
dicariam à produção de borracha, a atividades necessárias ao funcionamento do seringal
e a "dar assistência" àquela "patroa", que mediaria suas relações com outros patrões dos
seringais do rio Jordão, e com a qual estabeleceriam extensas relações de compadrio.
Ainda em vida, Marcolina prometera, quando morresse, que o Fortaleza ficaria para o
seu afilhado Sueiro, para que os Kaxinawá ali continuassem morando. Sueiro e seus ir-
mãos trabalhariam ainda, nos anos de 1939-1951, no seringal Busnã, no rio Breu, tendo
por patrão Felizardo Cerqueira, que ali permaneceria até 1955, como aviado de Quirino
Nobre. De volta ao rio Jordão, Sueiro assumiria o Fortaleza. Seu duplo papel, como che-
342
fe e patrão, seria de crucial importância para garantir um pequeno território e construir
condições para uma inserção diferenciada nas redes de aviamento mobilizadas por ge-
rentes aviados de sucessivos arrendatários de todos os seringais no rio Jordão, bem co-
mo por diferentes famílias de comerciantes da Vila Jordão. Após as primeiras passagens
de Terri Valle de Aquino em 1975 e 1976 pelo rio Jordão, e seu retorno como membro
de um grupo técnico da Funai em 1977, o Fortaleza constituiria a semente da TI Kaxi-
nawá do Rio Jordão
451
.
451
Uma análise comparativa entre as formas de mediação exercidas por Felizardo Cerqueira e por Marco-
lina do Forno, neste último caso, durante o período de pior crise na economia da borracha, faz parte de
meus planos para a continuidade da pesquisa apresentada nesta tese. A respeito do Fortaleza, que ficaria
conhecido como o "seringal de caboclo", consultar, Aquino, 1976, 1977, 1977a; Iglesias, 1992; Iglesias &
Aquino, 1994.
343
VII - Considerações finais
A consolidação da empresa seringalista como empreendimento que determinaria,
a partir das duas últimas décadas do século XIX, as formas de apropriação territorial, de
utilização dos recursos naturais e da organização das relações de trabalho e de comércio
no Alto Juruá ocorreria simultaneamente ao principal período de atividade dos cauchei-
ros peruanos. Ambos os empreendimentos extrativistas adotariam iniciativa semelhante
em relação aos grupos indígenas que ali viviam, a promoção de "correrias".
À diferença do que usualmente afirma a historiografia, procurou-se evidenciar
em diferentes capítulos da tese, a compatibilidade dessas duas formas de extrativismo
no Alto Juruá, especialmente durante a instalação dos seringais nos altos rios, nos pri-
meiros anos do século passado. Relatórios de agentes dos governos brasileiro (Azevedo,
1905, 1906; Cunha, 1976; Mendonça, 1989) e peruano (Villanueva, 1902), em esforços
para comprovar o uti posseditis e a soberania dos respectivos países sobre um território
então contestado e, depois, uma produção historiográfica centrada nos enfrentamentos
armados havidos nos altos rios Purus e Juruá, desembocando nos acordos diplomáticos
que estabeleceram o traçado da fronteira internacional (Castello Branco, 1947, 1959,
1961; Tocantins, 1973), tiveram importante contribuição na consolidação de discursos e
imagens que enfatizam uma inerente oposição entre as atividades de seringueiros e cau-
cheiros.
Ao focar, diferentemente, nas "correrias" como um dos processos fundadores
daquelas modalidades de extrativismo na região, e nos resultados dessas expedições ar-
madas sobre os povos indígenas, torna-se possível jogar luz sobre o importante papel
complementar desempenhado pelas atividades itinerantes dos caucheiros na implantação
da empresa seringalista (e inclusive para o posterior reconhecimento do uti posseditis
brasileiro nessa região). Os acordos firmados entre patrões seringalistas e caucheiros,
para a realização de correrias a troco da exploração dos cauchais, por exemplo, demons-
tram a interação e compatibilidade dessas formas diversas de aproveitamento dos dois
principais recursos que motivaram a constituição daquela região de fronteira, bem como
a serventia que as "correrias" dos caucheiros também tiveram para a desterritorialização
dos grupos indígenas e para a consolidação do povoamento pelos brasileiros dos serin-
gais fazia pouco abertos.
À diferença do que também faz crer a historiografia, as atividades dos peruanos
na extração do caucho teriam continuidade em certas regiões do Alto Juruá mesmo após
344
a definição do traçado da fronteira internacional pelas atividades da Comissão Mista de
Reconhecimento, em 1906, e pelo tratado diplomático de 1909. Assim ocorreria por to-
da a década de 1910, por exemplo, no alto rio Envira e no rio Breu, zonas caracterizadas
pela porosidade da fronteira internacional, pela menor concentração da hevea brasilien-
sis, por relações de interdependência, ora de cooperação ora conflituosas, entre patrões
brasileiros e caucheiros peruanos e pela presença de uma diversidade de grupos indíge-
nas que, sobreviventes às correrias, ali haviam permanecido ou recém chegado. Nessa
região fronteiriça, as correrias continuariam a constituir prática inerente ao funciona-
mento da empresa seringalista e da extração do caucho, sendo justificadas pelos patrões
como necessárias para garantir a segurança dos seus trabalhadores.
No Alto Juruá, as primeiras propostas para a "proteção", "catequese" e "civiliza-
ção" dos índios seriam formuladas, em meados da década de 1900, por representantes
do governo federal envolvidos tanto na implantação da administração estatal no recém
criado departamento, como na determinação do traçado da fronteira com o Peru. De
comum, atores como Belarmino Mendonça e Thaumaturgo de Azevedo, engenheiros
militares, e Antonio Manoel de Andrada tiveram suas nomeações feitas pelo governo
central, conexões diretas com diferentes ministérios e curtas estadias na região. Os dois
últimos, no cargo de Prefeito, marcariam sua atuação pela instauração dos poderes judi-
ciário e policial e pela condenação pública à apropriação privada das terras devolutas, às
violências dos seringalistas, à dominação a que estavam submetidos os seringueiros, aos
obstáculos colocados pelos patrões ao funcionamento da justiça, assim como às "corre-
rias" realizadas por brasileiros e peruanos.
De forma pioneira na região, Thaumaturgo de Azevedo promulgaria legislação e
implementaria medidas para normatizar as relações dos patrões com os menores indíge-
nas (de até 18 anos), em muitos casos trazidos aos seringais como resultado das "corre-
rias". Visando combater a "escravização" a que acreditava estarem sujeitos nos serin-
gais, instituiria a obrigatoriedade do registro dos menores indígenas e sua tutela indivi-
dualizada por "proprietários bem intencionados", instrumento que julgava adequado pa-
ra sua educação para o trabalho e para seu acesso aos benefícios da "civilização". Nessa
mesma direção, tanto a Prefeitura como a Comissão de Obras Federais, e mesmo o Jui-
zado de Órfãos, fomentariam, por curto período, a inserção de jovens indígenas em ofi-
cinas de instrução, com vistas a dotá-los de diferentes conhecimentos profissionais.
Nesse mesmo contexto, surgiriam propostas, defendidas por Mendonça, Azeve-
do e Andrada (mas também do promotor de direito Antonio José de Araújo), de reservar
345
terras para os indígenas, concebidas como locais em que os índios poderiam dedicar-se
às atividades agrícolas, ser "educados para o trabalho", mas também ser mobilizados em
obras e ações promovidas pelo poder público, inclusive na fiscalização de áreas de fron-
teira. A criação dessas reservas estava via de regra atrelada à tutela dos indígenas por
agentes estatais (militares, funcionários da prefeitura ou oficiais de instrução) ou legiti-
mados pelo poder público (missionários). A instalação desses "núcleos coloniais", ou de
qualquer outra modalidade de reserva, acabaria não ocorrendo.
Em outra direção, tanto Azevedo como Andrada conceberiam a "catequese" e a
"civilização" dos índios como eixo estratégico de um projeto que, articulado pela aber-
tura da "Leste-Oeste Brazileira", estrada entre os Departamentos do Alto Juruá e do Al-
to Purus, objetivava, ao mesmo tempo, o controle estatal sobre um território escassa-
mente integrado, a garantia da soberania brasileira na fronteira e o alargamento da utili-
zação dos recursos naturais. A "catequese" seria vista, assim, como diretriz de um plano
para a "pacificação" da região, pré-requisito para a abertura dessa estrada e, por meio
dela, para o desenvolvimento do Território.
Esse plano de "pacificação" seria viabilizado na segunda metade da década de
1900, nos altos rios Gregório e Liberdade e no médio rio Tarauacá, por meio do "polici-
amento" e da "fiscalização" das malocas indígenas situadas nas proximidades da estrada
de rodagem. As ações implementadas pelos "catequistas de índios" Ângelo Ferreira da
Silva e Felizardo Cerqueira, respaldadas pela Prefeitura e pela Comissão de Obras Fede-
rais, contemplariam relações de mediação e tutela dirigidas tanto a indígenas como aos
patrões, com a construção de acordos que visavam a interrupção das "correrias", dos sa-
ques aos seringais, das mortes de seringueiros e dos conflitos interétnicos.
Escassa atenção foi vertida até o presente na historiografia e na produção antro-
pológica sobre os povos indígenas no Território Federal do Acre à atuação local de re-
presentantes do SPILTN nos anos imediatamente posteriores à criação do órgão. São re-
correntes as afirmações de que o SPILTN (e depois o SPI) nenhuma atuação teve na re-
gião.
A existência de uma Inspetoria no Acre, e o ano posterior à sua extinção, estari-
am marcados pelas expedições do Inspetor e de dois "auxiliares" (Máximo Linhares e
Dagoberto de Castro Silva). Parte de uma estratégia para a divulgação da existência do
SPILTN e do início de sua atuação no plano local, os contatos daqueles funcionários
com os índios, ora facilitados por intérpretes e chefes indígenas, ora pelos patrões e seus
empregados, seriam realizados em meio a expeditas rotinas de levantamento de dados,
346
ficando marcados pela distribuição de "presentes". Com o objetivo de garantir "prote-
ção" aos índios, acordos seriam negociados com os patrões, buscando obter compromis-
sos de que não mais promoveriam "correrias" e outras violências.
Se, por um lado, é fato que o SPILTN teve uma atuação direta apenas pontual no
Território Federal do Acre, por outro, procurou-se demonstrar que seus representantes
fariam diagnósticos sobre a situação dos índios, delineariam propostas para a atuação
local do órgão e iniciariam ações que acabariam por ter desdobramentos concretos, ain-
da que diversos dos pretendidos e anunciados.
A intenção de constituir estruturas locais do SPILTN e de nomear funcionários,
visando uma atuação autônoma e centralizada das ões de "proteção" e "assistência"
aos índios, esbarraria na própria reorganização do organograma do Serviço em âmbito
nacional, com a extinção da Inspetoria no Território do Acre, e na escassez de recursos
financeiros. Os agentes do SPILTN recorreriam à nomeação de alguns dos principais se-
ringalistas do Alto Juruá como "delegados de índios", na tentativa de dar credibilidade
ao órgão e alguma forma de operação no plano local. O estabelecimento de unidades
administrativas (postos e povoações indígenas), como estratégia para a "proteção" e "as-
sistência", seria planejada em propriedades de alguns desses delegados, sendo-lhes atri-
buída o encargo de supervisionar os grupos indígenas que ali estavam ou pretendiam ser
futuramente "agremiados".
A localização dos postos foi vislumbrada pelos agentes do SPILTN em locais
onde a seringa e o caucho eram pouco abundantes ou inexistentes, alternativa que não
causaria interferências na produção de borracha e que estava atrelada a uma proposta de
"sedentarização" dos índios, por meio dos trabalhos agrícolas, visando a subsistência
das famílias indígenas e a auto-suficiência dos postos. Nessa mesma conjuntura, a insta-
lação de "núcleos agrícolas" nas proximidades desses postos, povoados com "trabalha-
dores nacionais", também chegou a ser aventada como estratégia adicional para a "edu-
cação dos índios" ao trabalho e para a melhoria de suas condições de habitação.
Essa estratégia para a institucionalização do SPILTN na região mostrar-se-ia
frágil, face à posterior descontinuidade da atuação de funcionários do Serviço e da au-
sência de qualquer respaldo aos delegados previamente nomeados. Essas nomeações a-
cabariam por ser instrumentalizadas por alguns desses patrões como mais um compo-
nente a afiançar as relações de dominação que passariam a exercer sobre famílias indí-
genas localizadas em suas propriedades.
347
Em meados dos anos de 1910, as principais diretrizes inicialmente anunciadas
pelo Inspetor Bento Pereira de Lemos para a atuação do SPILTN na região implicariam
em uma relativa inflexão face àquelas implementadas pelos ajudantes durante as expe-
dições. Importa ressaltar que a visita do Inspetor à sede do Departamento do Tarauacá
foi motivada por gestões dos patrões e comerciantes dos altos rios Jordão e Tarauacá
junto a vários ministérios, à direção do Serviço e mesmo à Presidência da República,
por meio das quais reivindicavam medidas urgentes para a "contenção" dos "selvagens"
Papavô, a "segurança" dos seringueiros e a viabilidade da produção nos seringais.
Partindo de uma ferrenha crítica às "correrias" promovidas pelos seringalistas e
caucheiros, a principal proposta do Inspetor estaria centrada numa intervenção direta,
com uma ida aos locais dos conflitos e a instalação de um "posto de pacificação", "de
acordo com os métodos estabelecidos pelo Serviço", destinado à "proteção" e "localiza-
ção" daqueles índios. Sob a tutela exclusiva de funcionários do órgão, era pretensão
mantê-los à margem de qualquer relação com os "civilizados". As atividades agrícolas,
realizadas pelos funcionários e depois pelos indígenas, seriam novamente priorizadas,
como estratégia para garantir a subsistência dos índios e, a partir do terceiro ano, a defi-
nitiva auto-sustentação do posto.
A ausência de recursos, do próprio SPILTN e da Prefeitura de Tarauacá, impedi-
ria que essa iniciativa fosse sequer iniciada. Os patrões e comerciantes do Alto Taraua-
cá, por sua vez, criticariam a ausência de providências dos órgãos federais e a própria
adequação da proposta de intervenção direta por funcionários do órgão indigenista, neó-
fitos à região, como medida para a definitiva solução dos conflitos. Defenderiam, dife-
rentemente, apoio financeiro da Prefeitura para o recrutamento de atores com reconhe-
cidas "iniciativas particulares" de "catequese" ou para tomarem providências por "sua
própria conta", modelo que implicitamente contemplava a continuidade das "correrias".
Críticas seriam feitas por Lemos à atuação dos "delegados honorários" previa-
mente nomeados, pela prioridade dada por esses seringalistas e comerciantes a seus
próprios interesses econômicos, e não às necessidades e interesses dos indígenas. O Ins-
petor descontinuaria qualquer relação com os delegados previamente nomeados. Face à
falta de recursos próprios e do apoio financeiro pleiteado junto à Prefeitura de Tarauacá
para a instalação do "posto de pacificação", Lemos optaria, contudo, pela nomeação de
delegados sediados na cidade de Seabra, dentre os quais o Chefe da Companhia Regio-
nal de Segurança. Pesaria nessa opção o capital de relações que esses atores poderiam
348
potencialmente mobilizar, que incluíam autoridades departamentais, seringalistas, co-
merciantes e outras pessoas influentes na sociedade local.
Iniciativas seriam tomadas pelo Inspetor para dar visibilidade a essa atuação lo-
cal do SPILTN, por meio de reportagens na imprensa local e da publicação na imprensa
oficial das nomeações e das Instruções que normatizavam a atuação dos "delegados".
Essa publicização visava ainda demarcar, por parte do SPILTN, um pretendido mono-
pólio da tutela sobre os indígenas, estipulando o papel privilegiado dos delegados na
fiscalização das relações de trabalho dos índios com os seringalistas, na garantia dos ter-
ritórios por eles ocupados, no combate às diferentes formas de violência e de restrição
da liberdade, bem como na representação legal dos indígenas face às autoridades dos
poderes judiciário e policial. Nenhum resultado mais efetivo adviria da atuação desses
delegados, distantes da realidade dos seringais e desprovidos de qualquer respaldo efeti-
vo da parte da Inspetoria sediada em Manaus.
As propostas e iniciativas oficiais teriam resultados limitados e de curta duração,
portanto, quando avaliados face aos objetivos vislumbrados para a "catequese" e "civili-
zação" dos indígenas. Ao longo de todo o período de apogeu da economia da borracha,
por outro lado, nenhuma iniciativa sistemática seria realizada pela grande maioria dos
patrões para a incorporação dos grupos indígenas às atividades produtivos nos seringais.
A gradual inserção dos grupos indígenas nas atividades produtivas nos seringais ocorre-
ria a partir de final dos anos 1910, e se intensificaria na década seguinte, com o apro-
fundamento da crise na economia da borracha e o quase término das atividades dos cau-
cheiros peruanos. Essa crise, é possível afirmar, teria contribuído, mais do que as pró-
prias políticas oficiais de proteção e assistência, para a sobrevivência e para o relativo
cessar das violências armadas contra vários grupos indígenas nos seringais do Alto Ju-
ruá (e possivelmente em outras regiões da Amazônia). O substancial êxodo de serin-
gueiros, a impossibilidade dos patrões continuarem importando trabalhadores e a neces-
sidade de desenvolverem atividades produtivas diversificadas, foram fatores que gradu-
almente contribuíram para essa nova realidade, na qual o aproveitamento da mão de o-
bra indígena tornar-se-ia estratégia adotada por um maior número de patrões seringalis-
tas.
Parte significativa do esforço empenhado nesta tese esteve direcionado à descri-
ção e análise das atividades realizadas por Felizardo Avelino de Cerqueira ao longo das
três primeiras décadas do século XX e, especificamente, das relações mantidas nesse pe-
ríodo com um grupo de famílias Kaxinawá nos rios Envira e Jordão.
349
Apesar de extensamente citada na historiografia e na produção antropológica,
geralmente de forma redutora, a pouco conhecida trajetória de Felizardo foi aqui descri-
ta e analisada como seqüência de empreendimentos pessoais realizados, em diferentes
contextos históricos, fazendo proveito de nichos de mediação possibilitados tanto por
políticas governamentais como por iniciativas conjuntas com diferentes patrões.
Os conhecimentos especializados de Felizardo como "catequista de índios", seu
principal capital, seriam via de regra valorizados e demandados em zonas, geográficas,
sociais e culturais, marcadas pela liminaridade e pelo conflito, nas quais a "pacificação"
das relações entre índios e "civilizados" tornava-se pré-requisito fosse para o controle
estatal sobre áreas fronteiriças fosse para a viabilidade da produção extrativista
452
.
"Missão" pessoal que creditava a um desígnio divino, a "catequese", tal como
definida e posta em prática por Felizardo, pressupunha um trabalho dirigido tanto a ín-
dios como aos patrões. Na condição de "mediador", conforme o próprio Felizardo defi-
niria seu papel, "se apresentaria" para estabelecer "acomodações" (acordos, ou entendi-
mentos), visando "evitar maiores prejuízos de ambas as partes" (Cerqueira, 1958: 94),
com o objetivo maior de proporcionar aos índios "melhores condições de vida", e à "pá-
tria brasileira, renda financeira", pelo trabalho dos seringueiros.
Assim, a proteção dos índios, "salvando-os" das correrias, caminharia junto com
um trabalho pedagógico, visando "anular rancores" e aconselhá-los sobre como proce-
der face aos "civilizados", para evitar novos conflitos, saques e mortes de seringueiros,
bem como para instruí-los no trabalho, mobilizando-os na extração do caucho e da se-
ringa e em outras atividades de interesse dos patrões, condição de possibilidade para o
exercício de suas próprias atividades como empreendedor.
Por outro lado, a "catequese" contemplaria a "conscientização" dos patrões e de
seus fregueses de que as inciativas dos índios constituíam "represálias" a um histórico
de correrias, de captura de mulheres e crianças e outras violências. Como parte desse
trabalho, também de cunho pedagógico, de forma pioneira na região, Felizardo conde-
452
As denominações atribuídas por Felizardo às funções que exerceu em serviços prestados para diferen-
tes comissões oficiais - "chefe de turma em defesa de caminhos e catequização de índios" e "encarregado
da turma de fiscalização dos índios", nos trabalhos para a Prefeitura do Alto Juruá e a Comissão de Obras
Federais, "chefe de turma de divisores, transporte e defesa dos caminhos", para a Comissão Mista Demar-
cadora de Limites, e "capataz geral e defensor contra possíveis ataques de índios", para a "Comissão do
Departamento Nacional da Produção Mineral para Pesquisa de Petróleo no Território do Acre" (para a
qual trabalhou em 1935-1936)- denotam essa dimensão do "policiamento" e "fiscalização". Esta mesma
dimensão, associada aos trabalhos feitos mediante acordos com os patrões, visando "garantir segurança"
nos seringais, podendo ser resumida no termo "polícia de fronteira", cunhado pelo padre Tastevin (1926),
para caracterizar as atividades realizadas por Felizardo e os Kaxinawá durante quase quinze anos nos al-
tos rios as cabeceiras dos rios Envira, Tarauacá e Jordão.
350
naria fortemente as "correrias" e ressaltaria os benefícios que poderiam advir da incor-
poração dos indígenas às atividades produtivas nos seringais. E procuraria fazer os pa-
trões ver sobre a importância do "bom exemplo" que, na condição de "mestres", ou tuto-
res, deveriam oferecer aos índios sob sua "regência" e "responsabilidade", postura da
qual dependeriam o curso das relações estabelecidas com os índios que começavam a
trabalhar nos seringais.
Na condição de mediador que buscava a "intervenção amigável" e "acomoda-
ções" entre índios e "civilizados", interessado na manutenção das relações entre ambos,
condição para a legitimidade de sua posição e a viabilidade de seus interesses e empre-
endimentos, a atuação de Felizardo atenderia a diferentes demandas e diretrizes. De um
lado, a dos patrões, cujas expectativas quanto à garantia da produção de borracha, exigi-
am que os índios, tanto "mansos" como "brabos", fossem tutelados e mantidos sob con-
trole. De outro, impunha-se a necessidade de atuar como "protetor" dos Kaxinawá, evi-
tando "correrias" e agindo prontamente em sua defesa. Essa dupla legitimidade inerente
ao seu papel de mediador e tutor, ressaltaria Felizardo, colocá-lo-ia, em diversas ocasi-
ões, em situações de fragilidade e perigo, acusado de traição tanto por índios como pe-
los patrões, seringueiros e caucheiros, por supostamente tramar as mortes de seringuei-
ros e/ou "correrias" contra as malocas.
Procurou-se ainda em diferentes momentos da tese, partindo-se dos discursos
tanto de Felizardo como de diferentes Kaxinawá, compreender e analisar as representa-
ções mútuas sobre as relações por eles desenvolvidas ao longo de praticamente três dé-
cadas. Esforço foi empreendido, assim, no sentido de desnaturalizar e complexificar vi-
sões polarizadas que fundamentam discursos nos quais Felizardo ora é concebido como
"conquistador", "escravizador de índios" e "promotor de "correrias", ora como exemplar
"catequizador de índios".
Diferentemente, procurou-se destacar a mediação, a tutela e a patronagem, com
o componente da dominação nelas inseridas, enquanto jogo dialético, por meio dos
quais os Kaxinawá buscavam não apenas "proteção", mas também formas coletivas de
inserção nos seringais e o acesso a mercadorias e outros bens. Ao invés de visões pola-
rizadas surgem nos discursos de diferentes gerações de Kaxinawá imagens sobrepostas
de Felizardo, como "protetor", "primeiro catequizador" e "bom patrão", informadas pela
re-semantização e atualização de coordenadas culturais da própria tradição nativa, bem
como por reflexões contextuais sobre outros modelos de violência e dominação que
marcaram uma quase secular inserção nos seringais - as "correrias" de seringueiros e
351
caucheiros, as violências dos "matadores de índios" a serviço dos seringalistas e o "cati-
veiro" nas mãos dos patrões seringalistas.
Além da utilização de fontes documentais pouco aproveitadas até o presente nos
estudos etnográficos sobre os grupos indígenas que hoje habitam no Estado do Acre, a
tese procurou chamar a atenção para a necessidade da continuidade das pesquisas dedi-
cadas à compreensão das formas pelas quais os relacionamentos estabelecidos com pa-
trões e outros mediadores foram importantes condicionantes nas estratégias adotadas pe-
las famílias indígenas para viabilizar formas coletivas de existência, hoje acessíveis a-
través da documentação escrita e da etnografia, esta última abrangendo as narrativas so-
bre o passado pensadas à luz de projetos políticos e culturais próprios e atuais.
352
VII - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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01)
1928- "Relatório do Inspetor referente ao ano de 1927". Manaus, Ministério da Agricul-
tura, Indústria e Comércio/Serviço de Proteção aos Índios, 3 de janeiro. (SARQ/MI, Microfilme
340, Planilha 052, Doc. 00)
1929- "Relatório do Inspetor referente aos trabalhos realizados no exercício de 1928".
Manaus, Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio/Serviço de Proteção aos Índios, janei-
ro. (SARQ/MI, Microfilme 340, Planilha 053, Doc. 00)
1930- "Relatório do Inspetor referente ao ano de 1929". Manaus, Ministério da Agricul-
tura, Indústria e Comércio/Serviço de Proteção aos Índios, 8 de fevereiro. (SARQ/MI, Micro-
filme 340, Planilha 054, Doc. 01)
1930a- "Offício 125/10, de 7 de fevereiro" (Assunto: Memorial organizado sobre o
modo de executar-se o serviço de recenseamento dos índios existentes no Amazonas, Acre e
Norte do Matto Grosso, segundo instrucções do General Rondon). Manaus. (SARQ/MI, Micro-
filme 290, Planilha 931, Doc. 03)
1932- "Relatório do Inspector referente aos trabalhos realizados nos exercícios de 1930-
1931". Manaus, 1 de fevereiro. (SARQ/MI, Microfilme 340, Planilha 055, Doc. 00)
SILVA, Dagoberto de Castro
1912- Relatório sem tulo, referente à expedição ao alto Juruá, entregue à Inspectoria
do Serviço de Protecção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionaes no Amazonas e
Território do Acre. Manaus, datilografado, 26 de dezembro. (SARQ/MI, Microfilme 31, Plani-
lha 380, Doc. 02).
SILVA, Dagoberto de Castro
1912a- Relatório sem título, referente à expedição ao rio Jutaí, entregue à Inspectoria do
Serviço de Protecção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionaes no Amazonas e Ter-
ritório do Acre. Manaus, datilografado, 11 de dezembro. (SARQ/MI, Microfilme 31, Planilha
380, Doc. 01).
CORRESPONDÊNCIAS
* Carta de Delfim Freire, Sub-Encarregado dos índios do Alto Tarauacá, ao Dr. João de Araújo
Amora, M.D. Inspector do Serviço de Protecção aos Selvicolas, no Estado do Amazonas e A-
cre". Manaus, 28 de abril de 1914, 1 pg. (SARQ/MI, Microfilme 31, Planilha 380, Doc. 04).
* Carta de Delfim Freire, Sub-Encarregado dos índios do Alto Tarauacá, ao Dr. João de Araújo
Amora, M.D. Inspector do Serviço de Protecção aos Indios e Localisação de Trabalhadores Na-
cionaes, no Amazonas e Acre". São Felippe, 30 de junho de 1914, 3 pg. (SARQ/MI, Microfilme
31, Planilha 380, Doc. 05).
* Carta de Delfim Freire, Encarregado de índios na zona do Tarauacá, ao Dr. João de Araújo
Amora, M.D. Inspector do Serviço de Protecção aos Indios e Localisação de Trabalhadores Na-
cionaes, no Amazonas e Acre". Tamandaré, Alto Rio Tarauacá, 12 de setembro de 1914, 3 pg.
(Recebida em Manaus a 11 de outubro de 1914).
* Carta do Inspetor Bento Martins Pereira de Lemos ao Diretor do Jornal "O Tempo". Manaus,
datil., 7 de janeiro de 1917, 4 pg. (SARQ/MI, Microfilme 31, Planilha 380, Doc. 09).
* Carta de José Gonzaga da Silva ao Inspector do Serviço de Protecção aos Indios do Estado do
Amazonas e Território do Acre. Foz do Massypira, 18 de julho de 1919, 1 pg. (SARQ/MI, Mi-
crofilme 31, Planilha 380, Doc. 13).
377
* Carta do Inspetor Bento Martins Pereira de Lemos ao Sr. Antonio Giordano, sócio da Giorda-
no & Cia. e proprietário do seringal Parthenope, na foz do rio Jordão. Manaus, datil., 26 de se-
tembro de 1922, 1 pg. (SARQ/MI, Microfilme 31, Planilha 383).
ENTREVISTAS e DEPOIMENTOS
Sueiro Cerqueira Sales Kaxinawá. (1991). Gravado por Marcelo Piedrafita Iglesias e João
Pereira das Neves a 22 de janeiro, no Depósito Natal, TI Kaxinawá do Rio Jordão.
Agostinho Manduca Mateus Kaxinawá. (1992). Gravado a 11 de fevereiro, no seringal Bo-
tafogo, Reserva Extrativista do Rio Juruá.
Agostinho Manduca Mateus Kaxinawá. (1992). Gravado por Terri Valle de Aquino e Mar-
celo Piedrafita Iglesias, em julho, no Rio de Janeiro.
Sueiro Cerqueira Sales Kaxinawá. (1994). Gravado por Terri Valle de Aquino e Marcelo
Piedrafita Iglesias em 14 de fevereiro, no Seringal Minas, Terra Indígena Kaxinawá da Praia
do Carapanã, Rio Tarauacá. Rio Branco, mimeo, 20 pg.
Agostinho Manduca Mateus Kaxinawá. (1995). Gravado em Rio Branco por Terri Valle de
Aquino e Marcelo Piedrafita Iglesias. Rio Branco, mimeo, setembro, 8 pg.
Ribamar Coelho de Moura. (1996). Gravado em Rio Branco por Terri Valle de Aquino e
Marcelo Piedrafita Iglesias. Rio Branco, mimeo, março, 2 pg.
Raimundo Luiz Yawanawá.(1996). Gravado por Terri Valle de Aquino, em Cruzeiro do
Sul, em junho. Rio Branco, mimeo, 29 pg.
Romão Sales Kaxinawá (2004). Gravado por Terri Valle de Aquino, a 24 de setembro, na
Aldeia Chico Curumim, TI Kaxinawá do Rio Jordão.
Romão Sales Kaxinawá (2005). Gravado a 20 de maio, na Aldeia Boa Vista, TI Kaxinawá
do Rio Jordão.
Agostinho Manduca Mateus Kaxinawá. (2005). Gravado por Terri Valle de Aquino, a 21 de
maio, na Aldeia Nova Cachoeira, TI Kaxinawá do Baixo Rio Jordão.
Manoel Francisco de Souza, conhecido por Biu Amadeus (2005). Gravada pelo professor
Joaquim Paulo Maná Kaxinawá, a 1 de março de 2005, na cidade de Tarauacá.
Noberto Sales Tenê Kaxinawá (2007). Gravada por Terri Valle de Aquino, durante o XXVII
Curso de formação dos Professores Indígenas, no Centro de Formação dos Povos da Flores-
ta, da Comissão Pró-Índio do Acre, em Rio Branco, a 17 de fevereiro. Transcrita por Marce-
lo Piedrafita Iglesias.
Professores Tadeu Mateus Siã Kaxinawá, Francisco das Chagas Marcelino Kaxinawá e Le-
onardo Mateus Kaxinawá (2007). Gravada por Terri Valle de Aquino, durante o XXVII
Curso de formação dos Professores Indígenas, no Centro de Formação dos Povos da Flores-
ta, da Comissão Pró-Índio do Acre, em Rio Branco, a 25 de fevereiro. Transcrita por Marce-
lo Piedrafita Iglesias.
Getúlio Sales Tenê Kaxinawá (2007). Gravada por Marcelo Piedrafita Iglesias e Terri Valle
de Aquino, em Rio Branco, a 15 de agosto. Transcrita por Marcelo Piedrafita Iglesias.
378
ARTIGOS DE JORNAL
De Villa Seabra (Departamento do Tarauacá)
Documentos Oficiais
"Administração do Exm. Sr. Dr. José Thomaz da Cunha Vasconcellos. Radiogramas recebidos".
Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 25, 1/10/1916, p. 1
"Administração do Exm. Sr. Dr. José Thomaz da Cunha Vasconcellos. Radiogramas expedi-
dos". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 31, 12/11/1916, p. 1
"Inspectoria de Serviço de Protecção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionaes no
Estado do Amazonas e Território do Acre". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I,
Nº 33, 26/11/1916, p. 1
"Administração do Exm. Sr. Dr. José Thomaz da Cunha Vasconcellos. Radiogramas recebidos".
Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 35, 10/12/1916, p. 1
"Serviço de Protecção aos Índios. Telegramma Recebido". Jornal Official. Semanário da Pre-
feitura, Ano II, Nº 50, 25/3/1917, pg. 1.
"Serviço de Protecção aos Índios. Circular". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano II,
Nº 50, 25/3/1917, pg. 1-2
“Editaes” (Registro Fiscal Federal). Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano II, 66,
15/7/1917, p. 4
De autor não especificado
"Aborígenes". O Município, 28/4/1912 (SARQ/MI, Microfilme 324, Planilha, 07, Fot. 244-45).
"Despedidas". O Município, 22/2/1915, pg. 3 (Seção "Carteira Local")
"Regresso". O Município, Ano VI, Nº 218, 9/5/1915, pg. 3 (Seção "Carteira Local")
"Catechese de Índios". O Município, Ano VI, Nº 220, 23/5/1915, pg. 3 (Seção "Carteira Local")
"Os índios no Alto Tarauacá". O Departamento. Orgam da Prefeitura. Ano II, Nº 24,
11/7/1915, pg. 3-4
"Várias". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 14, 16/7/1916, pg. 3
"Várias". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Villa Ano I, Nº 28, 22/10/1916, p. 3
"Índios Sacrílegos". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 28, 22/10/1916, p. 3
"Dr. Bento de Lemos". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, 30, 5/11/1916, p.
4
"Dr. Bento Lemos". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, Nº 31, 12/11/1916, p. 4
"Serviço de Proteção aos Índios". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano I, 33,
26/11/1916, p. 3
379
"Viagem pelo Tarauacá e Murú". Jornal Official. Semanário da Prefeitura, Ano II, 44,
11/2/1917, pg. 3
"Novenário de São José". A Reforma, Cidade Seabra, Ano VII, Nº 294, 9/3/1924, p. 1
"Festa de São José". A Reforma, Cidade Seabra, Ano VII, Nº 295, 16/3/1924, p. 1
"Palestra com o Revmo. Pe. Dr. Constantino Tastevin". A Reforma, Cidade Seabra, Ano VII,
Nº 302, 22/6/1924, p. 1
De Sena Madureira (Departamento do Alto Purus)
"Reunião dos Prefeitos do Território do Acre. Memorial enviado aos membros do Congresso
Nacional” (continuação). Alto Purús, Senna Madureira, Anno I, Nº 15, 31/8/1913, p. 3.
"A situação dos índios no Território do Acre". Alto Purús, Senna Madureira, Anno I, 15,
31/8/1913, p. 3.
"Reunião dos Prefeitos do Território do Acre. Memorial enviado aos membros do Congresso
Nacional". Alto Purús, Senna Madureira, Anno I, Nº 14, 24/8/1913, p. 2-3.
"A reunião dos Prefeitos do Território do Acre. Memorial enviado ao Ministro da Justiça e Ne-
gócios Interiores”. Alto Purús, Senna Madureira, Anno I, Nº 20, 5/10/1913, p. 3.
"A reunião dos Prefeitos do Território do Acre. Memorial enviado ao Ministro da Justiça e Ne-
gócios Interiores”. Alto Purús, Senna Madureira, Anno I, Nº 21, 12/10/1913, p. 1-2.
"A reunião dos Prefeitos do Território do Acre. Memorial enviado ao exmo. sr. Dr. Pedro Tole-
do. D.D. Ministro da Agricultura, Industria e Commercio”. Alto Purús, Senna Madureira, Anno
I, Nº 23, 26/10/1913, p. 2.
"Excursão ao alto rio Yaco". Alto Purús, Senna Madureira, Anno I, Nº 32, 28/12/1913, p. 1.
"Excursão ao alto rio Purús". Alto Purús, Senna Madureira, Anno VII, Nº 287, 5/4/1914, p. 1.
De outros lugares do Brasil
"Manaus, 18". O Paiz, Rio de Janeiro, 13/2/1911 (SARQ/MI, Microfilme, 324, Planilha, 02,
Fot. 032-033).
"Correrias de índios" (Luiz Sombra). Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 19 de dezembro de
1911. (SARQ/MI, Microfilme 324, Planilha 02, Fot. 033-034)
"No Juruá. Índios brasileiros escravisados. Rico proprietário peruano tem em seu poder cinco
índios captivos". Jornal do Commercio, Manaus, 9/6/1912 (SARQ/MI, Microfilme, 324, Pla-
nilha, 07, Fot. 258).
"Os indios escravisados do Juruá e as providencias da inspectoria de protecção". Jornal do
Commercio, Manaus, 14/6/1912 (SARQ/MI, Microfilme, 324, Planilha, 07, Fot. 258-59).
"Quadro horrível. O que fizeram, no Jutahy, os indios bravios". Jornal do Commercio, Ma-
naus, 23/8/1912 (SARQ/MI, Microfilme, 324, Planilha, 02, Fot. 34)
380
"Nossa reportagem colhe outros informes sobre o massacre e pilhagem feitos pelos indios no Ju-
tahy".Jornal do Commercio, Manaus, 23/8/1912 (SARQ/MI, Microfilme, 324, Planilha, 02,
Fot. 34-5)
"Governo do Estado. Administração do Exm. Sr. Coronel Antonio Bittencourt. Telegramma Of-
ficial". Diário Official do Estado do Amazonas, Manaus, 31/8/1912 (SARQ/MI, Microfilme,
324, Planilha, 02, Fot. 35)
"O ministro da agricultura telegrapha ao governador do Estado, pedindo o sustamento da remes-
sa de forças ao Jutahy, com o fim de punir as atrocidades praticadas por indios daquella região".
Jornal do Commercio, Manaus, 31/8/1912 (SARQ/MI, Microfilme, 324, Planilha, 02, Fot. 35)
"Os Indios do Amazonas. O caso dos indios Cunibas que raptaram cinco donzelas, depois de
matar-lhes os pais". O Estado de São Paulo, São Paulo, 9/11/1912 (SARQ/MI, Microfilme,
324, Planilha, 02, Fot. 36-7)
"O crime no interior. Chegou hontem a Manáus a expediçlão que fora ao Jutahy capturara indios
criminosos". O Norte, Manaus, 16/11/1912 (SARQ/MI, Microfilme, 324, Planilha, 02, Fot. 37)
"Perigosa expedição. Quatorze pessoas raptadas pelos indios, inclusive mocas e creanças. Sua
chegada". Jornal de Manaus, Manaus, 16/11/1912 (SARQ/MI, Microfilme, 324, Planilha, 02,
Fot. 37-8)
"A Inspectoria dos Indios conseguio afinal encontrar as filhas do inditozo Coronel Chaves Mel-
lo, que haviam sido arrebatadas pelos Cunibas". Jornal do Commercio, Manaus, 16/11/1912
(SARQ/MI, Microfilme, 324, Planilha, 02, Fot. 40)
Jornais de Rio Branco
"Índios (ou caboclos do Acre)". Varadouro. Um jornal das selvas. Nº 1, maio, 1977, pg. 7-13.
AQUINO, Terri Valle de
1987- "O herói dos carius" (Entrevista com Pedro Biló, feita por Terri Valle de Aquino
e José Carlos dos Reis Meirelles). Gazeta do Acre (Coluna Papo de Índio), 18/10/1987.
MACHADO, Altino
1991- "As correrias no Acre". A Gazeta (Coluna Papo de Índio). Rio Branco, 30 de ju-
nho, pg. 20.
"Família Melo sai se as terras ficarem para índios brasileiros". A Tribuna, 25/9/1997, pg.
12-13
Revistas
"Histórias de um sertanista". (Entrevista com José Porfírio de Carvalho, concedida a Vassia Va-
nessa da Silveira). Outras Palavras, Rio Branco, Fundação de Cultura e Comunicação Elias
Mansour/Secretaria de Estado de Educação, Ano I, Nº 7, agosto, 2000, pg. 20-24.
381
ANEXOS
382
MAPAS
383
MAPA 1
Hidrografia do Oeste Amazônico
Fonte: Banco de Informações e Mapas dos Transportes, da Secretaria Executiva do Ministério dos Transportes
453
453
Acessado em http://www.infoescola.com/geografia/complexo-regional-da-amazonia/
384
Mapa 2
385
MAPA 3 - HIDROGRAFIA FRONTEIRA ACRE - PERU (rotas usadas pelos caucheiros em começo do século passado)
386
MAPA 4
Baixo curso do rio Tarauacá, acima de Vila Seabra - Território Federal do Acre
(Excerto de Croquis desenhado pelo padre Constant Tastevin, no ano de 1924
Fonte: Tastevin, 1926.
Neste mapa é possível ver a localização do "sítio Lupuna", na foz do igarapé do mesmo nome, e do seringal Cocameira, bem como caminhos que
ligavam esse seringal à bacia do rio Gregório, parte da estrada de rodagem aberta pela Comissão de Obras Federais em 1906. Dentro do paranã A-
puanã, cuja foz está situada defronte ao seringal Universo, Tastevin assinalou com uma cruz a colocação Sanango, local onde em 1909, foi assassi-
nado e enterrado Ângelo Ferreira da Silva. [MPI]
387
MAPA 5 - CABECEIRA DO RIO ENVIRA (e PARALELO de 10ºS)
Fonte: "Mapa Físico do Estado do Acre". Rio de Janeiro, IBGE, 2005
Observação: À margem direita do rio Envira, é possível ver seus afluentes o Furnanha, local onde Felizardo estabeleceu moradia, em 1910, e em cuja foz
estava localizado o barracão do primeiro patrão nesse rio, Francisco Sena. Afluente do Furnanha, o Jaminauá era o rio onde as malocas Kaxinawá estavam
localizadas. Baixando o curso do rio Envira, vê se a localização do seringal União, possível local onde os Kaxinawá matariam o patrão Manoel Patrício, em
final de 1911. O mapa assinala ainda os marcos da fronteira Brasil-Peru, situados ao longo do Paralelo de 10º S, assentados pela Comissão Mista Brasil-Peru
Demarcadora de Limites em 1923-24, anos em que Felizardo Cerqueira e os Kaxinawá seriam incorporados à Comissão.
388
MAPA 6-
ALTOS RIOS JORDÃO E Tarauacá (acima da Vila Jordão)
Excerto do Croquis desenhado pelo padre Constant Tastevin, em 1924 (Tastevin, 1926)
OBS: Além da distribuição dos seringais pelos rios Jordão e Tarauacá, Tastevin destaca a localização das malocas Kaxinawá, no seringal
Revisão, e em Parthenope, bem como dos territórios então ocupados por uma diversidade de grupos que se mantinham acima dos últimos
Seringais, nos rios Envira, Tarauacá, Jordão e Breu. Destaque é dado ainda ao caminho que ligava Progresso, no rio Envira, ao seringal Nova
Minas, rota utilizada pelos Kaxinawá e Felizardo em 1917 ao se mudarem primeiro para o alto rio Tarauacá e depois para o seringal Revisão.
389
ANEXO FOTOGRÁFICO
390
Reprodução da primeira página do
"Relatório e Biografia de Felizardo A. Cerqueira" (1958)
391
392
ACERVO
ARQUIVO NACIONAL
Rio de Janeiro - Rio de Janeiro
BRASIL. TRIBUNAL ESPECIAL
1931- "Comissão Especial de Inquérito na Inspetoria do Serviço de Proteção aos Ín-
dios no Amazonas e Acre". Volume 4. Fundo Tribunal Especial, Procuradoria, Processo
640, pg. 29-33.
393
POYANAWA
Villa Rondon - Fazenda Aurora e Seringal Barão do Rio Branco
"Alto Rio Juruá - Índios da tribu Poianáuas, localizados na Villa Rondon, no rio Môa - 1913"
(Brasil. Tribunal Especial, 1931, Vol. 4, pg. 32)
"Alto Rio Juruá - Índios da tribu Poianáuas, localizados na Villa Rondon, no rio Môa, depois de haverem re-
cebido roupas, chapéus e brindes - 1913" (Brasil. Tribunal Especial, 1931, Vol. 4, pg. 30)
394
"Alto Rio Juruá - Índios da tribu Poianáuas, localizados na Villa Rondon, no rio Môa, depois de haverem re-
cebido roupas, chapéus e brindes - 1913" (Brasil. Tribunal Especial, 1931, Vol. 4, pg. 30)
"Alto Rio Juruá - Crianças Poianáuas localizadas na Villa Rondon, no rio Môa - 1913"
(Brasil. Tribunal Especial, 1931, Vol. 4, pg. 29)
395
"Alto Rio Juruá - Derrubada da matta para installação da Villa Rondon - 1913"
(Brasil. Tribunal Especial, 1931, Vol. 4, pg. 33)
"Alto Rio Juruá - Índios Poianáuas, carregando madeira para construcção de suas casas na Villa Rondon -
1913" (Brasil. Tribunal Especial, 1931, Vol. 4, pg. 33)
396
"Alto Rio Juruá - Índios Poianáuas trabalhando na construcção de suas casas na Villa Rondon - 1913" (Bra-
sil. Tribunal Especial, 1931, Vol. 4, pg. 32)
"Alto Rio Juruá - Índios Poianáuas localizados na Villa Rondon - 1913"
(Brasil. Tribunal Especial, 1931, Vol. 4, pg. 33)
397
"Alto Rio Juruá - Homens da tribu Poianáuas, localizados na Villa Rondon, no rio Môa - 1913"
(Brasil. Tribunal Especial, 1931, Vol. 4, pg. 31)
"Alto Rio Juruá - Indios da tribu Poianáuas, localizados na Villa Rondon - 1913"
(Brasil. Tribunal Especial, 1931, Vol. 4, pg. 31)
Obs.: Foto feita na cidade de Cruzeiro do Sul, no mesmo local das duas fotos seguintes - MPI.
398
CRUZEIRO DO SUL
Índios Poyanawa e Arara
"Alto Rio Juruá - Indios das tribus Araras e Poianáuas, reunidos em Cruzeiro do Sul - 1913"
(Brasil. Tribunal Especial, 1931, Vol. 4, pg. 30)
À direita, vêem-se, os Coronéis Manoel Absolon Moreira e Mâncio Agostinho Rodrigues de Lima, respecti-
vamente, "delegados de índios" dos rios Amoacas e Moa, nomeados pelo SPILTN - MPI
"Alto Rio Juruá - Indios das tribu Araras reunidos em Cruzeiro do Sul - 1913"
(Brasil. Tribunal Especial, 1931, Vol. 4, pg. 32)
399
JAMINAWA E AMAHUACA
Rio Amoacas (Humaitá)
"Alto Rio Juruá - Maloca Maroró - Indios Jaminauás e Amuácas, no rio Amoáca - 1913"
(Brasil. Tribunal Especial, 1931, Vol. 4, pg. 29)
"Indios das tribus Jaminauás e Amuácas, no rio Amoáca - 1913"
(Brasil. Tribunal Especial, 1931, Vol. 4, pg. 29)
400
"Alto Rio Juruá - Indios das tribus Jaminauás e Amuácas, no rio Amoáca - 1913"
(Brasil. Tribunal Especial, 1931, Vol. 4, pg. 31)
401
ACERVO DIGITAL
DO MEMORIAL DOS AUTONOMISTAS
Departamento de Patrimônio Histórico
Fundação de Cultura e Comunicação Elias Mansour
Secretaria de Estado de Educação do Acre
Rio Branco - Acre
402
"Índios do rio Tarauacá, maloca do “Cupu”, ainda selvagens em 1910"
454
454
Foto, sem autor especificado, que consta da reedição, em livro, do texto "O Juruá Federal", de Castello
Branco (1930), patrocinada, em 2005, pelo gabinete do senador acreano Geraldo Mesquita Júnior, como parte
da coleção "Documentos para a História do Acre", e publicada pela Gráfica do Senado Federal. A legenda a-
cima é a que consta da reedição. A foto foi obtida, em dezembro de 2006, no Acervo Digital do Memorial dos
Autonomistas, em Rio Branco, gerenciado pelo Departamento de Patrimônio Histórico, da Fundação de Cul-
tura e Comunicação Elias Mansour, do Governo do Estado do Acre.
403
ACERVOS
Centro de Documentação e Pesquisa Indígena (CDPI)
Centro de Formação dos Povos da Floresta
Comissão Pró-Índio do Acre
Rio Branco - Acre
Centro de Documentação Txai Terri Aquino ("Casa Txai")
Departamento de Patrimônio Histórico
Fundação de Cultura e Comunicação Elias Mansour
Secretaria de Estado de Educação do Acre
Rio Branco - Acre
404
Braço de velho Regino Pereira, com a marca de Felizardo Cerqueira (FC)
(Foto: Terri Valle de Aquino, TI Kaxinawá do Rio Jordão, 1981)
Acervo: CDPI - Comissão Pró-Índio do Acre
Nicolau Costa, à época com cerca de 75 anos, exibe braço direito com a marca FC
(Foto: Terri Valle de Aquino, Seringal Boa Vista, TI Kaxinawá do Rio Jordão, 1992)
Acervo: Centro de Documentação Txai Terri Aquino (Casa Txai)
405
ACERVO
ARQUIVO HISTÓRICO DO ITAMARATY
Rio de Janeiro - Rio de Janeiro
BRASIL. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES
1928- "Álbum Fotográfico da Comissão de Limites do Brasil com o Peru, com índi-
ce". (Originalmente, Anexo 18 ao "Relatório apresentado ao Ministério das Relações
Exteriores, pelo Contra-Almirante Antonio Alves Ferreira da Silva, Chefe da Comissão de
Limites do Brasil com o Peru (31 de Maio de 1928)"). Rio de Janeiro, Arquivo Histórico do
Itamaraty, Lata 541, 113 pg
455
.
455
As fotos reproduzidas a seguir contêm as legendas originais, seguidas da página e do número da foto.
406
KAXINAWÁ
Seringal Nova Olinda - Rio Envira
(1923)
"Vista geral de um "cupichaua" de Indios "Cachinanuas", em Nova Olinda, no rio Embira" (66-3).
[Espaço coletivo, sem paredes e assoalho, o cupichaua, primeiro à esquerda, ladeado por casas das diferentes famílias,
construídas ao estilo dos seringueiros, sobre palafitas, com chão e paredes de paxiúba, com local fechado para a dormida -
MPI].
"Grupo de índios "Cachinauás" em frente ao seu "cupichaua", no rio Embira" (67-1)
407
"Indios "Cachiuauás" em visita ao acampamento da Commissão em uma praia do rio Embira" (67-2)
"Grupo de índios "Cachinauás" em uma praia do rio Embira" (66-4)
408
OS KAXINAWÁ E FELIZARDO NA "TURMA DO RIO ENVIRA" (1923)
"O matteiro Felizardo com índios "Cachiuanás" [sic], que com elle vivem em Revisão, no alto rio Jordão, e
estavam a serviço da Commissão. Esses índios foram por elle catechisados em numero avultado" (74-3).
"Outro grupo, no mesmo logar, vendo-se o Major Manuel Zárate, Ajudante da Commissão peruana, entre o Sadock e o
Felizardo" (74-4) (Felizardo aparece agachado, na primeira fila, à extrema direita, com dois Kaxinawá pouco atrás. O Te-
nente Coronel Amaury Sadock de Freitas, junto com Manuel Zárate, chefiaram a "Turma do Rio Envira", sub-comissão
que, em 1923-1924, trabalhou ao longo do Paralelo de 10º S, no trecho a oeste do rio Envira - MPI].
409
"O Capitão-Tenente Sadock e índios "Cachiuanás" já domesticados" (74-2).
410
KAXINAWÁ
Malocas nos Seringais Revisão e Transual, no alto rio Jordão
(Junho de 1924)
"Índios "Cachiuanás" em Transwaal, no rio Jordão, affluente do rio Tarauacá, no anno 1924". (93-2) [No
Álbum à margem da página 93, "Cachiuanás" aparece riscado no texto de todas as legendas das fotos. À mar-
gem, à mão, foi corrigido para "Cachinauas" - MPI]
"Índios "Cachiuanás" em Transwaal, no rio Jordão, affluente do rio Tarauacá, no anno 1924". (93-3)
411
"Índios "Cachiuanás" em Transwaal, no rio Jordão, affluente do rio Tarauacá, no anno 1924" (93-1).
"Índios "Cachiuanás" civilisados, no seringal Revisão" (93-4)
412
"Vista do cupichaua de Revisão" (92-3).
"Índios "Cachiuanás" em festa, no cupichaua das proximidades de Revisão, no alto rio "Jordão", affluente do Tarauacá" (94-2)
"Índios "Cachiuanás" em festa, no cupichaua das proximidades de Revisão, no alto rio "Jordão" (94-1)
413
"Uma refeição de índios "Cachiuanás", no rio Jordão" (94-3)
Kaxinawá num poço no alto rio Jordão, ao que tudo indica no seringal Revisão
456
456
Reprodução de fotografia encontrada em 1993 no acervo do escritório do Movimento dos Povos Indígenas
do Vale do Juruá (MPIVJ), na cidade de Cruzeiro do Sul. Esta foto não consta dentre as relacionadas no "Ál-
bum Fotográfico da Comissão de Limites".
414
ACERVO DE FAMÍLIA
415
Felizardo Avelino de Cerqueira, aos 40 anos de idade
(Álbum de família).
No verso da foto, lê-se:
"Offereço à Irmã e Amiga Gersina. Cruzeiro do Sul, 30-10-1926. Felizardo Cerqueira".
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