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Colecionar, escrever a história:
A história de Portugal e de suas possessões na perspectiva do bibliófilo Diogo
Barbosa Machado
Ana Paula Sampaio Caldeira
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
graduação em História Social do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Mestre em História Social.
Orientador: Manoel Luiz Salgado Guimarães/ Rodrigo
Bentes Monteiro
Rio de Janeiro
2007
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Colecionar, escrever a história:
A história de Portugal e de suas possessões na perspectiva do bibliófilo Diogo
Barbosa Machado
Ana Paula Sampaio Caldeira
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História Social.
Aprovada por
_______________________________________________
Prof. Dr. Manoel Luiz Salgado Guimarães
(Orientador)
_______________________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Bentes Monteiro
(Co-orientador)
_______________________________________________
Profa. Dra. Andréa Viana Daher
______________________________________________
Profa. Dra. Íris Kantor
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III
Ficha catalográfica
CALDEIRA, Ana Paula Sampaio.
Colecionar, escrever a história: A história de Portugal e de suas possessões na
perspectiva do bibliófilo Diogo Barbosa Machado/ Ana Paula Sampaio Caldeira. Rio de
Janeiro: UFRJ/ PPGHIS, 2007.
v, 175f.; 29,7 cm.
Orientador: Manoel Luiz Salgado Guimarães/ Rodrigo Bentes Monteiro
Dissertação (mestrado) UFRJ /IFCS/ Programa de Pós-graduação em História Social,
2007.
Referências bibliográficas: f. 163-175
1. Historiografia. 2. Colecionismo. I. Guimarães, Manoel Luiz Salgado II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. III. Programa de Pós-graduação em História Social. IV.
Título
IV
RESUMO
No século XVIII português, um erudito chamado Diogo Barbosa Machado dedicou-se
a colecionar materiais sobre a história de Portugal e de suas possessões. Nesta minuciosa
tarefa de selecionar aquilo que era digno de sobreviver ao tempo, aquele antiquário constituía,
por meio da prática colecionista, uma relação com o passado. Este trabalho de compilação foi
levado a cabo por Barbosa Machado até os últimos anos de sua vida, quando, então, vendeu a
sua coleção pessoal e toda a sua livraria para a Coroa portuguesa. Com a invasão napoleônica
e a vinda da Corte para o Brasil, muitas das obras da Biblioteca Real foram transferidas para o
Rio de Janeiro, dando início aqui à atual Biblioteca Nacional. Entre estas obras, estava toda a
coleção daquele erudito.
Nesta dissertação, buscaremos refletir, em primeiro lugar, sobre a história desta
própria coleção, percebendo as mudanças que sofreu já no Brasil. Cremos que estas mudanças
relacionam-se às diferentes maneiras como os homens dos séculos XVIII e XIX se
relacionavam com o seu passado e elaboravam a sua experiência do tempo. Nos capítulos
seguintes, buscaremos mostrar que esta mesma coleção pode ser entendida, a partir das
demandas historiográficas de sua época, tanto como um arquivo, capaz de fornecer vestígios
para uma escrita do passado, quanto como uma forma peculiar de escrita da história, na
medida em que conferia um sentido ao passado português.
ABSTRACT
At the Portuguese 18th century, an erudite named Diogo Barbosa Machado, has
devoted himself to collect materials about Portugal’s history and possessions. Through the
precise task of selecting what should survive at time, by a antiquarian practice, the erudite
built a relation with the past. This work of compilation has been done by Barbosa Machado
until the last days of his life. Then, he sold his personal collection and all his library to the
Portuguese Crown. With the Napoleonic invasions and the Crown’s arrival to Brazil, lots of
the Royals libraries productions were transferred to Rio de Janeiro. That way began the
National Library. Between these productions was all the erudite’s collections.
This dissertation will try to reflect, at first place, about this collection’s history,
noticing the changes suffered in Brazil. We believe that these changes are relate to the
different manners which men from the 18
th
and 19
th
centuries used to deal with their pasts and
build their experience of time. Through the next chapters we will try to show that this same
collection can be understood such as a archive capable of giving elements to a written of the
past, and such as a peculiar way of writing history, because it gave a meaning to the
Portuguese past.
5
SUMÁRIO
Agradecimentos ............................................................................................................................ 6
Introdução .................................................................................................................................. 10
Capítulo 1: Uma coleção em diferentes regimes de historicidade ................................................... 19
A coleção e a prática do antiquariado................................................................................................20
A trajetória da coleção e as mudanças sofridas por ela na cultura histórica oitocentista .................39
Capítulo 2: A Coleção como Arquivo ............................................................................................ 64
A Academia, o Decreto e o projeto de uma escrita da história pautada em documentos.................66
A constituição de um ambiente erudito em Portugal e a busca por testemunhos do passado.........85
A autoridade do documento: o arquivo de Barbosa Machado ..........................................................93
Capítulo 3: A Coleção como Escrita da História........................................................................... 106
A escrita de Diogo Barbosa Machado: os elogios ...........................................................................110
A dimensão do conflito: combates nos campos de batalha e embates de testemunhos................120
Os lugares da história ......................................................................................................................131
Conclusão ................................................................................................................................ 156
Fontes ...................................................................................................................................... 163
Bibliografia................................................................................................................................ 164
Obras de caráter teórico-metodológico............................................................................................164
Obras Gerais....................................................................................................................................166
6
Agradecimentos
Os agradecimentos, certamente, constituem a parte mais prazerosa de ser feita em
qualquer dissertação. Quando finalmente vemos que o trabalho foi concluído, podemos, então,
sentar e pensar nas pessoas que contribuíram, cada uma a sua maneira, para ele. Mas, ao
mesmo tempo, é uma tarefa difícil, pois, para aquele que o escreve, fica evidente o quanto as
palavras são limitadas quando se quer expressar o que algumas pessoas representaram não
para a realização desta etapa, mas sobretudo para a minha vida e a minha formação.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer aos funcionários da Biblioteca Nacional.
Tive a sorte de encontrar alguns que ajudaram bastante ao longo da pesquisa, pegando aqueles
volumes enormes e pesados que eu consultava, fornecendo relatórios dos bibliotecários do
século XIX (que eu jamais encontraria na base de dados da biblioteca) e tirando dúvidas a
respeito da minha documentação e da organização daquele acervo. Gostaria de agradecer
especialmente aos funcionários da Iconografia (sobretudo Deividy e Mônica) pela tão
preciosa ajuda, e a D. Lygia Cunha pela entrevista concedida.
Também na Biblioteca Nacional tive o prazer de conviver diariamente com pessoas
que se tornaram fundamentais para a realização deste trabalho. Desses amigos recordo não
apenas os divertidos almoços juntos, mas o incentivo enquanto ainda preparava o projeto de
mestrado. Um agradecimento especial vai para Walter Marcelo Ramundo, Ana Cristina
Rodrigues, Guido Fabiano Pinheiro Queiroz e os “excellentissimos e digníssimos varões
insignes” Pedro Fonseca de Araujo, Jorge Miranda Leite, Gustavo Kelly de Almeida e
Jerônimo Duque Estrada de Barros. Sempre dispostos a me ajudar, compartilhando suas
pesquisas e também os preciosos resumos e tabulações dos livros de Barbosa Machado, eles
foram essenciais para a conclusão desta dissertação. Obrigada também a David Felismino por
ter compartilhado conosco os materiais coletados nos arquivos portugueses.
Agradeço a Paula Cruz e Cíntia Almeida Ramos que, ainda na etapa de seleção de
mestrado, leram meu projeto, contribuíram com suas críticas e compartilharam dúvidas
teóricas e existenciais comigo. Adriana Clen e Ísis Pimentel, fizeram o mestrado ser menos
maçante e mais divertido. À nossa “Pequena Notável”, sou grata também pela força que me
deu, sobretudo na conturbada reta final de escrita da dissertação. Imprescindíveis também
foram Rafael, Valéria, Amália, Ilton, Marcos César, Sérgio Henrique, Aline, Ricardo
Alexandre, Beto, Léo, Carlos e demais agregados do “cream de la cream”, que me enchiam de
cerveja e caipirinha e nunca me perguntavam (com exceção do Léo, é claro!) sobre minha
7
dissertação, pois sabem muito bem que isso não é papo evoluído o suficiente para uma mesa
de bar. Meus agradecimentos também a Irina Aragão, Ricardo Pinto e Erika, minha amiga-
irmã que por vezes me socorreu diante da precariedade do meu inglês.
Uma pessoa fundamental, não apenas como um dos responsáveis por um dia eu ter
escolhido fazer história, mas por ter participado da minha vida durante tanto tempo foi Fabio
Candido dos Santos. A ele agradeço a grande amizade que tivemos e também o
companheirismo que demonstrou nos momentos bons e ruins em que esteve comigo.
Gostaria ainda de ressaltar o papel de alguns professores neste processo. Em primeiro
lugar, meus orientadores. Manoel Salgado, de quem fui aluna tantas e tantas vezes, me
ensinou, mais do qualquer conteúdo de história, a pensar e problematizar o tempo todo as
minhas concepções e certezas. Certamente ele não sabe mas poderá ter uma noção a partir
desses agradecimentos o quanto eu refleti sobre o que me ensinou não apenas para preparar
meus projetos acadêmicos, mas para minha vida como um todo. A Rodrigo Bentes Monteiro
agradeço a enorme dedicação, a generosidade intelectual, a paciência e também a
sensibilidade de entender a vida atribulada que tive nesse último ano de mestrado. Mais do
que um contato entre aluno e professor, tornou-se uma relação de amizade.
Agradeço a Íris Kantor, sempre tão acessível e atenciosa, seja por e-mail, seja
pessoalmente, e a Margarida de Sousa Neves, por ter aceitado participar da minha banca de
qualificação e ter feito considerações importantes para o crescimento do trabalho. A Andréa
Daher gostaria de agradecer as valorosas sugestões, algumas das quais tentei incorporar à
dissertação, mas também de atribuir a ela influência em muitas das minhas escolhas e
interesses dentro da área de história. Não gostaria de esquecer a professora Andréia Frazão, a
quem sou grata pela leitura do projeto e por boa parte da minha formação e aprendizado
dentro do IFCS.
A meus pais, Antonio (in memoriam) e Beth, que nunca entenderam muito bem que
negócio era esse de mestrado, mas ainda assim ficaram contentes quando me viram ingressar
na pós-graduação, agradeço a presença constante e todas as loucuras que fizeram por mim ao
longo da vida. Obrigada a meus sobrinhos João e Pedro, por terem me alertado tantas vezes
que era nosso papel, como super-heróis, salvar a terra de monstros ligados às forças do mal e,
portanto, que eu não poderia ficar sossegada lendo um livro diante de um perigo tão iminente.
A eles sou grata por este importante alerta. Agradeço aos meus cachorros Mel e Xisto, tantas
vezes enxotados do quarto, e Scooby, privado dos seus passeios noturnos nos últimos meses.
Gostaria de ressaltar ainda o companheirismo de meus gatos, Penélope e John Lennon, que
8
sempre estavam ao meu lado na mesa do computador, dando uma grande utilidade aos
rascunhos da dissertação quando dormiam sobre eles.
Propositalmente por último, um agradecimento especial a Douglas Attila (aquele que
me tirou da história para a vida), para quem, toda vez que eu olho, eu me convenço de que a
vida, isso que a gente tanto planeja e tenta controlar, é realmente engraçada e, sobretudo,
imprevisível.
9
Os fregueses da taverna acotovelam-se em torno à mesa que se foi
aos poucos cobrindo de cartas, esforçando-se por tirar dessa
barafunda de tarôs a sua própria história, e quanto mais confusas e
desconjuntadas se tornam essas histórias tanto mais as cartas
esparramadas vão encontrando seu lugar num mosaico ordenado.
Será apenas resultado do acaso, este desenho, ou talvez algum de nós
o estará pacientemente estruturando?
(CALVINO, Ítalo. O Castelo dos Destinos Cruzados).
10
INTRODUÇÃO
11
No século XVIII, em Portugal, um homem chamado Diogo Barbosa Machado
dedicou-se praticamente por inteiro aos estudos. Em sua casa, situada à rua Direita a
Rilhafoles, em Lisboa, ele foi ao longo da vida enchendo as estantes de sua biblioteca com
muitos livros. Interessava-se por vários assuntos, mas, sobretudo, pela história eclesiástica e
secular do reino. Teve de dividir seu interesse pelos estudos com a vocação eclesiástica,
paixões de forma alguma excludentes, mas, antes, complementares, pois a carreira religiosa
certamente lhe garantia acesso a saberes e um acúmulo ainda maior de erudição. Dessa forma,
além de ser um homem das letras, foi também um homem de Deus. Quando jovem, entrou
para a Congregação do Oratório. Em 1724, foi ordenado presbítero e, quatro anos depois, foi
nomeado abade da Paroquial Igreja de Santo Adrião de Sever. A vida na abadia não era algo
que Diogo Barbosa quisesse para sempre. Amante das letras, não era seu desejo ficar muito
tempo longe de Lisboa, cidade onde tudo acontecia, abrigo das academias literárias e dos
grupos letrados. Não demorou, portanto, para que ele largasse seus afazeres naquela pequena
igreja de madeira e voltasse a respirar o ar libertador da cidade.
1
Sua vocação para o estudo acabou tornando-o reconhecido no ambiente erudito
lisboeta. Primeiramente, foi indicado como membro da uma academia literária nova, que tinha
tudo para dar certo, afinal fora criada pelo próprio rei com o auxílio de proeminentes eruditos
da época. Chamava-se Academia Real da História Portuguesa. Mais tarde, já como
acadêmico, compôs obras de grande fôlego, como a Biblioteca Lusitana e as Memórias para a
História de D. Sebastião. Morreu aos 92 anos e, ao longo de sua trajetória, pode vivenciar
muitas coisas: acompanhou três reinados, viu o reino entrar e sair de muitos conflitos, assistiu
o alvorecer e o crepúsculo dos estudos históricos em Portugal, surpreendeu-se com a tentativa
1
BAIÃO, Antonio. O Testamento de Diogo Barbosa Machado. Porto: Tipografia Siqueira, 1937; COSTA,
Manuel Alberto Nunes. Diogo Barbosa Machado e a bibliografia portuguesa. Anais da Academia Portuguesa de
História, Lisboa, p. 291-340, 1986; MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real da História. Os intelectuais, o
poder cultural e o poder monárquico no século XVIII. Coimbra: Edições Minerva Coimbra, 2003; MONTEIRO,
Rodrigo Bentes. Reis, príncipes e varões insignes na coleção Barbosa Machado, in Anais de História de Além-
Mar. Lisboa, Centro de História de Além-Mar, v. VI, 2005, p. 215-51.
12
de regicídio contra o monarca português e, se não bastasse isso tudo, também pôde
literalmente sentir o terremoto que assolou Lisboa em 1755. Quase no fim de sua vida, ainda
teve um momento de grande prazer e reconhecimento intelectual, quando viu ninguém mais
ninguém menos que o rei D. José I interessado em comprar a biblioteca que cultivou durante
tantas décadas.
Hoje, de alguma maneira, Barbosa Machado encontra-se no Brasil, mais precisamente
na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, onde, nas seções de Iconografia, Cartografia, Obras
Raras e Manuscritos nos deparamos com várias obras que um dia foram suas. Elas
atravessaram o Atlântico e aportaram aqui alguns anos depois da vinda da família real. Junto
com sua biblioteca, foi transferido para também um acervo de mapas, imagens e folhetos
que Barbosa Machado colecionou e organizou em volumes encadernados, com direito a folha
de rosto, título e adornos.
O primeiro contato com esta coleção se deu um pouco por acaso. Fui chamada pela
Biblioteca Nacional para estagiar em um dos vários projetos que, em meados de 2003,
estavam iniciando com financiamento daquela instituição. Eram pesquisas, em sua maior
parte, pautadas no acervo da própria biblioteca e dirigidas por professores de diversas áreas e
universidades. Aleatoriamente, acabei sendo mandada para o projeto Recortes de Memória,
coordenado pelos professores Rodrigo Bentes Monteiro (Universidade Federal Fluminense) e
Pedro Cardim (Universidade Nova de Lisboa). A pesquisa era pautada integralmente nos
materiais da coleção pessoal de Diogo Barbosa Machado, sobretudo nos opúsculos e imagens
amealhados por ele. O objetivo inicial era saber o que tínhamos ali, o que aquele abade tanto
colecionou e pensar as possibilidades de estudos que aqueles materiais poderiam trazer sobre
a monarquia ou mesmo o império português. Dessa forma, era minha função, e também do
outro estagiário que trabalhava comigo, ficar algumas horas sentados descrevendo imagens,
lendo folhetos e relatando o que víamos e líamos ali.
13
O trabalho que poderia ser maçante acabou chamando a nossa atenção. Perdíamo-nos
em meio às várias imagens, trazendo rostos de reis, eclesiásticos e nobres portugueses.
Quando chegamos aos opúsculos, a segunda fase de nosso projeto, líamos cada folheto,
alguns com linguagens e caracteres dificílimos, muitos dos quais exigiam um trabalho de
decifração daqueles jovens estudantes de história tão pouco acostumados a lidar diariamente
com arquivos e fontes de época. Ao manusear aqueles materiais, intrigava-me o impulso que
teria levado alguém a dedicar tanto tempo da sua vida coletando e ordenando papéis antigos.
Posteriormente, meu estranhamento mudou: incomodava-me também que pessoas
manuseassem diariamente aqueles folhetos e imagens sem nunca se perguntarem de onde eles
vieram e como foram parar ali. Pesquisadores entravam e saíam na biblioteca, examinavam
aqueles materiais para seus trabalhos como se tudo estivesse naturalmente esperando para se
tornar fontes, referências e citações em suas teses e artigos.
Fruto do acaso ou não, aquela coleção acabou ganhando sentido e despertando mais
meu interesse, pois, de alguma maneira, casava-se com (ou, talvez tenha ajudado a formular)
as questões historiográficas que trazia na época. Minhas preocupações giravam em torno de
como os homens, ao longo do tempo, davam sentido a si mesmos e ao seu presente a partir
das imagens que faziam do passado; como histórias de determinados povos, eventos ou
mesmo de indivíduos eram elaboradas e reelaboradas constantemente, das mais diversas
formas, a partir das demandas de cada época; e, por fim, como eu mesma, na ambição de ser
historiadora, também estava inserida neste movimento. Percebi, assim, que a coleção que
tinha em mãos poderia me ajudar não a responder totalmente essas interrogações, o que seria
muito pretensioso, mas, pelo menos, a pensá-las a partir de um objeto e de uma cultura
específica.
O objeto eram, justamente, os materiais colecionados por Diogo Barbosa Machado.
Em sua compilação, nosso abade juntou imagens e folhetos que representavam e tratavam da
14
vida de reis, rainhas, clérigos, nobres e outras personalidades do passado e também do seu
presente. Ele ainda colecionou mapas sobre o território luso, além de muitos opúsculos que
contavam histórias fantásticas e feitos magníficos obrados pelos portugueses em terras não
do reino, mas também na Ásia, África e América. Tudo que dissesse respeito à grandeza
daqueles que fizeram de Portugal o vasto império no qual se tornou deveria ser colecionado.
Sobre esta coleção, falaremos de maneira mais detida ao longo dos capítulos da dissertação. O
que nos interessa destacar aqui é o fato de Barbosa Machado ter se debruçado sobre o passado
português e um presente que um dia tornar-se-ia passado. Seu desejo era de que essa
experiência não morresse, mas chegasse até às gerações futuras. Aquele abade coletou os
vestígios de um tempo que se foi e, a cada folheto e imagem que recortava e colava, ia
construindo a sua história de Portugal.
Por outro lado, a sua coleção nos remetia também para uma sociedade e um tipo de
relação específica com o passado, em que este era tomado e sentido na materialidade de sua
presença.
2
Dessa forma, aquele acervo nos conduzia para uma certa tradição antiquária e para
a sua existência como prática difundida entre os eruditos portugueses do Setecentos.
De acordo com Jean-Marie Goulemot, o século XVIII era obcecado pela história,
sobretudo pelo medo da finitude histórica e do perecimento. O tempo, sinônimo de destruição
e esquecimento, deveria ser vencido, num esforço, por parte daqueles homens, de
sobreviverem a si mesmos. Neste embate, a memória e a lembrança tinham uma aliada
poderosa, a escrita, que cada vez mais ganhava terreno como forma de comunicação na
sociedade moderna. Associada ao ato e à atividade de preservar e compilar, ela tornava-se
2
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Reinventando a Tradição: sobre antiquariado e escrita da história.
Humanas, Porto Alegre, v. 23, n. 1/2, p. 111-143, 2000.
15
uma maneira de não permitir que as experiências do passado e do presente se perdessem no
tempo.
3
Em Portugal, essa preocupação com o perecimento das experiências passadas também
esteve presente para seus eruditos, que se queixavam do fato de grandes personagens e feitos
do passado reinol estarem esquecidos e sepultados nos arquivos. Se essa injustiça fora
cometida contra os homens de outrora, o mesmo poderia acontecer com os daquele presente.
Dessa forma, era preciso tomar medidas para que se pudesse reparar esta situação e que
ajudassem a preservar a memória dos homens e dos eventos que contribuíram para a grandeza
do reino português. Contando com o apoio da monarquia, foi criada, portanto, a Academia
Real da História.
Para conduzir este trabalho, era necessário lidar com os restos do passado e, é claro,
averiguar se aquilo que os textos diziam sobre outras épocas era, de fato, verdadeiro. Para
isso, foi promulgado também um decreto, em 1721, que tornava obrigatória a conservação de
vestígios e testemunhos antigos. Os documentos encontrados eram dispostos e organizados
em coleções, importante ferramenta para que os acadêmicos pudessem, de acordo com seus
interesses, pesquisar sobre um tema ou um momento da história portuguesa. As coleções
fixavam o que era importante ser conservado, além disso, imortalizavam e preservavam
contra a corrupção do tempo. Muitos acadêmicos, individualmente, constituíam as suas
coleções, entre eles o próprio Diogo Barbosa Machado.
Dessa forma, este acervo nos abria a possibilidade de discutir sobre a escrita da
história em Portugal no século XVIII e, mais especificamente, sobre uma certa escrita
peculiar, colecionista e antiquária. Interessava-nos entender que prática foi aquela que atribuiu
um valor histórico aos resquícios do passado, preocupando-se em salvaguardá-los, mantendo,
assim, uma relação com dois tempos desconhecidos: um passado pedido, mas mediado
3
GOULEMOT, Jean-Marie. Bibliotecas e angústia da perda: a exaustividade ambígua das luzes. In: BARATIN,
Marc e JACOB, Christian (Org.). O Poder das Bibliotecas. A memória dos livros no Ocidente. Rio de Janeiro:
UFRJ, 2000. p. 257.
16
pelos documentos, e um futuro desconhecido e invisível.
4
No entanto, a coleção poderia nos
levar também para além do mundo erudito do século XVIII. Como dissemos, ela acabou
vindo parar no Rio de Janeiro e passou a figurar nas estantes da Biblioteca Nacional. Era
preciso se interrogar, portanto, não pela cultura histórica que possibilitou o surgimento
daquela coleção, mas também por aquela que permitiu que ela chegasse até nós hoje.
Para discutirmos essas interrogações, estruturamos nosso trabalho da seguinte
maneira. O capítulo inicial reserva-se, em primeiro lugar, a elaborar uma tipologia da
Coleção Diogo Barbosa Machado, mostrando no que ela se difere e se aproxima de outras de
sua época, o tipo de material que a compõe, como eles acham-se dispostos e, ainda, de que
maneira foram encontrados e reunidos pelo seu colecionador. Em seguida, partimos da
própria coleção para abordar a atividade de bibliófilo de Barbosa Machado, destacando o
trabalho exaustivo de compilação feito por ele em diversas frentes. Por fim, vemos também
como esta coleção tem uma história que vai além da vida de seu idealizador. Nesta última
parte do capítulo, mostramos os caminhos percorridos por este conjunto de documentos até
fazer parte do acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, no século XIX. O intuito
não é apenas contar uma trajetória, mas, antes de tudo, mostrar como as mudanças que esta
coleção sofreu ao longo de algumas décadas podem nos ajudar a refletir a respeito de como as
sociedades se relacionam com o seu passado.
Nos capítulos seguintes, depois de já termos compreendidas a sua trajetória e as
modificações sofridas a partir das demandas de uma outra sociedade, voltamo-nos para a
época em que a coleção foi feita justamente para entender seus usos e a relação que nosso
colecionador mantinha com o passado.
Chegamos, assim, ao capítulo dois, no qual, a partir do projeto historiográfico da Real
Academia e do estudo do ambiente letrado português, buscamos dar um primeiro significado
4
POMIAN, Krzysztof. Coleção. In: Enciclopédia Einaudi. v.1. Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional-
Casa da Moeda, 1984. p. 51-86.
17
àquela coleção, entendendo-a a partir das novas demandas que se impunham ao historiador,
sobretudo quando da fundação daquela Academia. A principal delas era a escrita da história
pautada em documentos, o que pressupunha a recolha de papéis e a montagem de coleções
como elementos centrais para que os historiadores-antiquários daquele tempo realizassem a
sua tarefa. Nosso objetivo foi localizar a coleção dentro de um conjunto de questões da época
e, sobretudo, dentro de uma proposta de escrita da história pautada não mais na tradição, mas
nos testemunhos. Em seguida, procuramos mostrar que o interesse pelo passado e o
colecionismo não são idéias que surgiram no século XVIII, mas existiam entre os letrados
portugueses, como verificamos a partir do exemplo de Manuel Severim de Faria. Veremos
que, dentro de uma proposta de história agora pautada em testemunhos e na validade dos
textos escritos, a coleção Diogo Barbosa Machado pode ser entendida como um arquivo, em
consonância com o projeto de escrita da história da Academia Real. Na sua tarefa de compilar
folhetos, imagens e mapas, nosso abade trabalhava em sintonia com as propostas da
instituição da qual fazia parte. Além de compor um cânone de personagens importantes da
história portuguesa, nosso erudito, ao procurar e coletar documentos para a sua coleção,
ajudava na tarefa de conhecer e organizar os arquivos portugueses e a documentação referente
ao reino e suas possessões.
No capítulo três, propomos dar uma segunda chave para entender essa coleção,
concebendo-a como uma escrita da história na medida em que não somente guardava
testemunhos de um passado, mas também o organizava dentro de uma lógica e de um
significado. Trata-se de uma escrita própria, como regras e peculiaridades, como qualquer
outra. A maneira que escolhemos para pensar esta questão foi abrir os tomos da coleção, ler
seus folhetos, contar algumas de suas histórias, para mostrarmos, sobretudo, que a escrita da
Barbosa Machado é pautada na idéia de documento. A história de Portugal é o conjunto de
diversas outras: de reis, rainhas, nobres, batalhas
, etc. Todas elas contadas por uma infinidade
18
de textos diferentes. Todos esses folhetos, agrupados em coleção, postos lado a lado,
compõem um quebra-cabeça, em que as peças vão se juntado, formando um todo coerente:
uma história de aventuras e sucessos. Em outras palavras, uma história exultante.
19
CAPÍTULO 1:
UMA COLEÇÃO EM DIFERENTES REGIMES DE
HISTORICIDADE
20
“A história é a testemunha do tempo, a luz da verdade, a vida da memória,
a mestra da vida, e a mensageira da Antiguidade
(BLUTEAU, Raphael. História. In: Vocabulário Português e Latino,
Áulico, Anatômico... Coimbra: Colégio das Artes da Cia de Jesus, 1712,
v.4).
A coleção e a prática do antiquariado
A Coleção Diogo Barbosa Machado é composta por mapas, folhetos e retratos em sua
maioria dos séculos XVI, XVII e XVIII. Não é possível saber exatamente o período em que
foi montada, mas, pela datação dos folhetos, podemos supor que o colecionador, além de ter
levado muitas décadas para compô-la, também se empenhou neste trabalho até, pelo menos,
1770, data do opúsculo mais recente que consta nesta coleção e ano em que o abade também
se desfez da mesma.
Diogo Barbosa Machado dedicou boa parte de sua vida à erudição. Nascido em
Lisboa no ano de 1682, ele morreu nesta mesma cidade em 1772. Embora não pertencesse à
nobreza portuguesa, Diogo era um homem muito bem relacionado. Com a ajuda de um dos
grandes do reino, Rodrigo Annes de Almeida, o marquês de Abrantes, ocupou o cargo de
abade da Igreja Paroquial de Santo Adrião de Sever, da qual a casa de Abrantes detinha o
padroado.
5
É certo que ele não permaneceu muito tempo neste posto, pois isto implicava ficar
distante de Lisboa, cidade por excelência dos eruditos portugueses do século XVIII. Por outro
lado, também é certo que a pensão que adquiriu como abade lhe garantiu renda suficiente
para formar uma considerável biblioteca pessoal e também para empenhar-se integralmente a
práticas eruditas de sua época, tais como a correspondência com outros homens de saber, o
5
MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real da História. Os intelectuais, o poder cultural e o poder
monárquico no século XVIII. Coimbra: Edições Minerva Coimbra, 2003. p. 227-9.
21
interesse pela história pátria e, sobretudo, o colecionismo. Seus irmãos, José e Inácio Barbosa
Machado, também se dedicaram aos estudos e às práticas eruditas. O primeiro distinguiu-se
ante D. João V como célebre orador e foi nomeado cronista oficial da casa de Bragança. o
segundo, veio para o Brasil e aqui, além de ter exercido o cargo de juiz de fora da Bahia, foi
também nomeado para a Academia Brasílica dos Renascidos.
6
Com a morte de Inácio, sua
biblioteca, composta por cerca de dois mil volumes, foi anexada a de Diogo, uma vez que os
dois irmãos moravam juntos.
Assim como seus irmãos, Diogo Barbosa Machado ascendeu socialmente por meio
das letras. Foi a partir do contato com membros da alta nobreza portuguesa que ele, em 1720,
foi nomeado pelo rei D. João V como membro da recém fundada Academia Real de História,
instituição interessada em escrever a história do reino português e promover as glórias de
Portugal para toda a Europa. Seu papel dentro desta academia parecia ser tímido se levarmos
em conta a presença pouco expressiva do abade de Sever nos documentos referentes às
reuniões de seus membros-acadêmicos. No tomo um da Historia da Academia Real da
História Portuguesa obra escrita por Manoel Telles da Sylva, também acadêmico da dita
instituição, e que reúne vários documentos referentes ao primeiro ano de funcionamento da
Academia, como atas de reuniões e conferências Diogo aparece somente duas vezes.
7
Na
primeira, ele é apenas referido em uma lista trazendo os nomes de todos os acadêmicos que
faziam parte da instituição. Ao contrário dos demais membros, que ao lado de seu nome
tinham a especificação de um cargo ocupado ou de um título adquirido, Diogo Barbosa
Machado não traz indicação alguma, nem mesmo a de abade de Sever.
8
Mais adiante, o
erudito é citado novamente por Manoel Telles da Sylva quando, em meio a uma reunião dos
6
Sobre esta Academia Literária formada na Bahia em 1759, ver KANTOR, Íris. Esquecidos e Renascidos.
Historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759). São Paulo: Hucitec; Salvador: Centro de Estudos
Baianos/ UFBA, 2004. A respeito da trajetória de Diogo Barbosa Machado, ver MOTA, Isabel Ferreira da. Op.
Cit.
7
SYLVA, Manoel Telles da. Historia da Academia Real da Historia Portugueza. Lisboa: Officina de Joseph
Antonio da Sylva, 1727, v.1. Prólogo
8
Ibid.
22
acadêmicos, levanta uma questão a respeito do desaparecimento de D. Sebastião na batalha
de Alcácer Quibir.
9
Seu interesse era apenas o de expor uma dúvida a respeito da morte do
Desejado, dúvida esta que deveria ser respondida pelos membros de maior vulto dentro da
Academia. Dessa forma, parece que, naquela instituição, alguns acadêmicos destacavam-se
mais do que outros e possuíam um maior poder de decisão no que se refere à escrita da
história e ao esclarecimento de alguns eventos pouco elucidados do passado português. Estes
membros, em geral, ou faziam parte dos grandes” da nobreza como Francisco Xavier de
Meneses (conde da Ericeira) e Francisco Paulo de Portugal e Castro (marquês de Valença)
ou eram eclesiásticos responsáveis pela fundação daquela academia como Manoel Caetano
de Sousa.
Como acadêmico real, uma das tarefas que o cargo ocupado por Diogo Barbosa
Machado exigia era a de produzir as memórias de D. Sebastião, de D. Henrique e dos reis
Felipe I, II e III. No entanto, seu trabalho foi muito além. Entre seus escritos mais
importantes, destacam-se as Memórias para a História de Portugal, que comprehendem o
governo delRey D. Sebastião e a Bibliotheca Lusitana. O abade elaborou também um
catálogo manuscrito de todos os livros que possuía. Atualmente, esta lista encontra-se na
Biblioteca Nacional e, a partir dela, podemos não conhecer as obras que eram de interesse
daquele colecionador e figuravam em sua livraria, mas, sobretudo, saber de que maneira ele
dividia a sua biblioteca e o peso que dava para cada assunto.
A livraria do acadêmico era composta por 4301 obras e 5764 volumes.
10
Estes livros
dividiam-se em 34 classes, a saber: Escritura Sagrada; teologia especulativa, dogmática e
moral; teologia sacra e profana; história eclesiástica; história eclesiástica das regiões orientais
e ocidentais; história profana; história profana das regiões orientais e ocidentais; vidas de
Cristo, santos e santas, príncipes eclesiásticos e seculares e de homens e mulheres ilustres em
9
Ibid. p. 316-8.
10
Cf. GALVÃO, Ramiz. Diogo Barbosa Machado. In: Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca
Nacional, 1876-77, v.1. p. 1-43.
23
virtudes e ações militares; elogios de pontífices, príncipes e varões insignes em santidade,
letras e armas; bibliotecários; genealógicos; heráldicos; cronólogos; geógrafos; ortógrafos;
gramáticos; retóricos e oradores; discursos concionatórios; poetas latinos; poetas portugueses,
castelhanos e italianos; símbolos, emblemas e empresas; dicionários; antiquários; autores que
compreendem diversas matérias em suas obras; autores antigos de língua latina em prosa e
verso; pompas triunfais na entrada de príncipes e funerais dos mesmos; políticos; ascéticos,
itinerários; escritores de cartas; apologias; críticas invectivas; miscelânea e livros de
estampas.
11
O peso em termos de mero de livros por classificação varia bastante. No entanto,
nos interessa aqui destacar que à história, seja ela eclesiástica ou profana, segundo a própria
classificação de Barbosa Machado, são reservadas 1169 obras, isto é, cerca de 27% de sua
livraria. Se incluirmos nesta categoria os livros referentes a vidas de personagens ilustres,
este número cresce para 34%.
Estes dados tornam-se interessantes, sobretudo, quando comparados a levantamentos
realizados em outras livrarias do mesmo período. Uma proposta neste sentido foi
desenvolvida por Ana Cristina Araújo em seu artigo intitulado Livros de uma vida. Critérios
e modalidades de constituição de uma livraria particular no século XVIII.
12
Ela também se
interessou em pesquisar as bibliotecas portuguesas do setecentos centrando-se na livraria
particular de José da Silva Pais, sargento-mór que, assim como Barbosa Machado, conseguiu
ascender socialmente e conquistar prestígio. Esta biblioteca era composta por 437 volumes,
papéis soltos e algumas gazetas. Dentre este material, Ana Cristina Araújo destaca que 252
volumes eram dedicados à história e a vidas de príncipes. Embora a livraria deste último
personagem seja bem modesta se comparada à de Barbosa Machado, elas, juntas, mostram
11
MACHADO, Diogo Barbosa. Cathalogo dos Livros da Livraria Diogo Barbosa Machado distribuídos por
matérias e escrito por sua própria mão. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional.
12
ARAÚJO, Ana Cristina. Livros de uma Vida. Critérios e modalidades de Constituição de uma Livraria
Particular no Século XVIII. Revista de Historia das Idéias, Coimbra, v. 20, p. 149-185, 1999.
24
duas coisas importantes. Em primeiro lugar, o interesse dos letrados daquela época pela
história. Em segundo lugar, a indicação da existência de um mercado livreiro se voltando
também para este interesse.
13
Dentre os livros que compunham a sua biblioteca pessoal, o abade de Sever destacou
em seu catálogo uma coleção organizada por ele mesmo e que reúne documentos
relacionados à história de Portugal e de suas possessões na África, América e Ásia. Esta
coleção, em especial, parece se diferenciar em alguns aspectos de outras do mesmo período.
Referimo-nos principalmente àquelas estudadas por especialistas como Adalgisa Lugli,
Antoine Schnapper, e, no que se refere a Portugal, João Carlos Pires Brigola.
14
Seus trabalhos
destacam o interesse dos colecionistas do dezoito por materiais relativos à história e à história
natural. De um modo geral, estes autores se detêm nas coleções naturalistas, uma vez que, a
partir delas, é possível refletir a respeito das mudanças científicas ocorridas na virada do
século XVIII para o XIX. Ao contrário dos colecionistas do Oitocentos, que se preocupavam
em classificar os materiais coletados e desvendar as leis da natureza, os naturalistas de início
e meados do Setecentos tinham como motivação mostrar as maravilhas da criação divina
(através, sobretudo, de materiais que representassem o extraordinário, como o chifre de
unicórnio ou a mandíbula de um gigante) e a onipotência de Deus.
No que se refere às coleções de história ou antiquárias, podemos perceber, de acordo
com os estudos e os inventários feitos pelos pesquisadores citados acima, que predominavam
nas coleções do século XVIII os objetos materiais, isto é, moedas, medalhas, ou até mesmo
estampas. Acreditava-se que estes objetos, justamente por seu caráter material, seriam menos
13
Isabel Ferreira da Mota destaca que a História é um dos gêneros que mais dinamizou o mercado livreiro na
primeira metade do século XVIII e foram justamente estas obras que organizaram e projetaram para o público
uma imagem elaborada do rei, da própria Academia e da Corte. (MOTA, Isabel Ferreira da. Op. Cit.).
14
LUGLI, Adalgisa. Naturalia et Mirabilia. Les cabinets de curiosités en Europe. Paris: Adam Biro, 1998;
SCHNAPPER, Antoine. Le Géant, la Licorne et la Tulipe. Paris: Flammarion, 1988; BRIGOLA, João Carlos
Pires. Colecções, Gabinetes e Museus em Portugal no Século XVIII. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian;
Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2003.
25
passíveis de manipulação.
15
Blandine Kriegel, no entanto, complexifica esta idéia. Para esta
historiadora, as medalhas e os monumentos eram materiais colecionados, sobretudo pelos
antiquários interessados nas grandes civilizações do passado. Por outro lado, havia o interesse
crescente, em especial por parte de alguns colecionadores ligados às ordens religiosas ou
ainda juristas, em relação aos documentos escritos, notadamente as atas, produções típicas
das sociedades modernas.
16
Para estes últimos, os documentos escritos não eram menos
verdadeiros que as medalhas ou moedas antigas. Pelo contrário: através da utilização das
técnicas trazidas pela crítica documental era possível estabelecer, com rigor, a autenticidade
dos testemunhos.
Diferentemente das coleções estudadas por Lugli, Schnapper e Brigola, mas
semelhante às estudadas por Kriegel, a Coleção Barbosa Machado tem como ponto central a
reunião de documentos escritos. Nesta característica, ela se difere, inclusive, de outras
coleções compostas pelos pares do abade de Sever. O gabinete dos condes da Ericeira, por
exemplo, era especializado em antiguidades, moedas e, sobretudo, em história natural.
17
Da
mesma maneira, o duque de Cadaval, embora mantivesse uma coleção de manuscritos,
dedicava-se também aos objetos naturais e à numismática.
18
A coleção dos marqueses de
Abrantes era referência em medalhas,
19
enquanto o gabinete de D. João V centrava-se nos
objetos de arte e na mineralogia.
20
A coleção montada pelo abade de Sever é, por seu turno, exclusivamente dedicada a
objetos históricos, se quisermos utilizar uma nomenclatura que, sem vida, não é a mais
apropriada para o século XVIII, época em que não havia uma divisão muito clara entre
história e história natural. No entanto, queremos destacar que este colecionador não se
15
LUGLI, Adalgisa. Op. Cit.
16
KRIEGEL, Blandine. L´Histoire à l´Age Classique. La défaite de l´erudition. Paris: PUF, 1988, v.2. p.165.
17
BRIGOLA, João Carlos Pires. Op. Cit. p. 507.
18
Ibid. p. 511.
19
Ibid. p. 513.
20
Ibid. p. 508.
26
interessava por instrumentos científicos ou por objetos naturais, mas por documentos
relativos ao passado português, por imagens de homens valorosos deste passado e por mapas
dos territórios portugueses. A sua questão, portanto, não dizia respeito ao mundo da natureza,
mas à história de Portugal.
A Coleção Diogo Barbosa Machado é composta por 2.039 imagens, 3.134 folhetos e
81 mapas.
21
Ela é também dividida dentro da classificação da livraria de seu compositor. Na
parte referente à história profana, Barbosa Machado não só listou alguns tomos da coleção de
opúsculos organizada por ele, mas também deu o seu próprio parecer sobre a mesma:
Collecção singular, e de summa estimação que consta de sucessos
pertencentes a historia de Portugal formada de vários livros de prosa e
verso da dita historia, e reduzida a folhas em volumes divididos nas classes
seguintes (...)
22
Barbosa Machado passa, então, a listar os seguintes volumes que compõem a sua
coleção de opúsculos:
Genethliacos dos Reys, Raynhas e Príncipes de Portugal – 5 tomos
Aplausos dos annos de Reys, Raynhas e Príncipes de Portugal – 2 tomos
Entradas em Lisboa de Reys e Raynhas – 2 tomos
Epithalamios de Reys, Raynhas e Principes de Portugal – 5 tomos
Elogios dos Reys, Raynhas e Príncipes de Portugal – 4 tomos
Aplausos oratórios, e poéticos pella saúde dos Reys – 1 tomo
Ultimas ações e exéquias de Reys, Raynhas e Príncipes de Portugal 3
tomos
Elogios fúnebres dos Reys, Raynhas, e Príncipes de Portugal – 4 tomos
Noticias militares de D. João IV – 2 tomos
Noticias militares de D. Afonso VI – 3 tomos
Noticias militares de D. Pedro II – 2 tomos
Noticias militares de D. João V – 2 tomos
Noticias militares de D. José I – 1 tomo
Noticias militares da Índia Oriental – 3 tomos
Noticias militares da América – 1 tomo
Noticias militares da África – 1 tomo
21
É muito provável que alguns folhetos, imagens e mapas tenham desaparecido depois que o abade de Sever
vendeu a sua coleção para o rei D. José I. Dessa forma, os números que indicamos dizem respeito ao que
podemos encontrar atualmente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
22
MACHADO, Diogo Barbosa. Op. Cit. p. 33.
27
Historia dos cercos que sustentaram os portugueses nas quatro partes do
mundo – 5 tomos
Aplausos genethliacos de fidalgos portugueses – 1 tomo
Epithalamios de duques, marqueses e condes de Portugal – 3 tomos
Elogios de duques, marqueses e condes de Portugal – 2 tomos
Elogios fúnebres de duques, marqueses e condes de Portugal – 4 tomos
Elogios fúnebres de duquesas, e marquesas de Portugal – 1 tomo
Elogios oratórios e poéticos de cardeais, e bispos – 2 tomos
Elogios fúnebres de cardeais e arcebispos de Portugal – 1 tomo
Elogios fúnebres de eclesiásticos portugueses – 4 tomos
Elogios fúnebres de diversos portugueses – 2 tomos
Elogios históricos, e poéticos de eclesiásticos e seculares – 1 tomo
Manifestos de Portugal – 3 tomos
Tratado de pazes celebradas em diversas cortes – 2 tomos
Autos de cortes, e levantamento de reys – 2 tomos
Noticia genealógica da casa real – 1 tomo
Noticia genealógica de famílias portuguesas – 2 tomos
Noticia genealógica de missões orientais – 2 tomos
Noticia genealógica de procissões, e triunfos sagrados – 4 tomos
No entanto, a sua coleção de folhetos ainda é composta por outros títulos, que Diogo
listou em partes diferentes de seu catálogo manuscrito. Os sermões de sua coleção, o
bibliófilo os classificou em “Discursos concionatorios” e estão divididos da seguinte forma:
Sermões de aclamação Del rey D. João IV – 2 tomos
Sermões do Nascimento de reys, e príncipes de Portugal – 4 tomos
Sermões de desposorios de príncipes de Portugal
Sermões gratulatros pella vida, e saúde dos reys de Portugal – 5 tomos
Sermões de exéquias dos reys de Portugal – 7 tomos
Sermões de exéquias de raynhas de Portugal – 3 tomos
Sermões de exéquias de príncipes e infantes de Portugal – 3 tomos
Sermões de exéquias de duques de Portugal
Sermões de exéquias de marqueses e condes de Portugal – 2 tomos
Sermões de exéquias de duquesas, marquesas e condessas de Portugal
Sermões de exéquias de senhoras de Portugal
Sermões de exéquias de varoeñs portugueses
Sermões de exéquias de cardeais e arcebispos portugueses – 2 tomos
Sermões de exéquias de bispos portugueses – 3 tomos
Sermões de exéquias de eclesiásticos portugueses – 1 tomo
Sermões de exéquias de fidalgos portugueses
Sermões pregados nos autos de fee celebrados em Lisboa, Coimbra, Évora e
Goa – 6 tomos
28
os Vilancicos, também presentes em sua coleção, constam na parte de sua biblioteca
reservada aos “Poetas portugueses, castelhanos e italianos” e estão divididos da seguinte
maneira:
Villancicos da festa do natal cantados na capella real desde o anno de 1640
athe 1715 – 3 tomos
Villancicos da conceição de nossa senhora cantados na capella real desde o
anno de 1652 athe 1715 – 3 tomos
Villancicos da festa dos santos reys cantados na capella real desde o anno
de 1646 athe 1716 – 3 tomos
Villancicos da festa de S. Vicente cantados na cathedral de Lisboa desde o
anno de 1700 athe 1723
Villancicos de Santa Cecília do anno de 1702 athe 1722.
Villancicos de S. Gonçalo do anno de 1707 athe 1722.
Villancicos de varias festividades.
Foram omitidos do catálogo manuscrito de Diogo Barbosa os três tomos referentes às
Notícias das Embaixadas que os reis de Portugal mandaram aos soberanos da Europa. Os
Sermões Vários de D. José Barbosa, também não figuram na listagem da sua compilação de
sermões, mas atualmente, depois da coleção ter sofrido algumas transformações e
atualizações, esses volumes são considerados parte daquele conjunto.
Os retratos, por sua vez, encontram-se classificados na seção reservada aos “Livros de
estampas” e sobre eles o abade fez a seguinte observação, mostrando o apreço e o valor que
ele conferia ao seu empreendimento:
Retratos de reys, raynhas e príncipes de Portugal – fol. Imperial – 2 tomos
Retratos de varoens portugueses insignes em santidade, litteratura, sciencia
militar e política – fol imperial – 4 tomos
Esta colecção que consta de seis volumes he de summa estimação pella
raridade dos m
tos
retratos, e estarem a mayor parte delles metidos em tarjas
primorosas q. lhe augmentão m
to
as figuras q. representam.
23
O catálogo elaborado por Barbosa Machado não traz nenhuma indicação do ano em
que foi produzido. Podemos, no entanto, lançar algumas hipóteses. Pela indicação dos livros,
23
Ibid. p. 112v.
29
é possível supor que ele tenha sido feito depois de 1767, pois as obras mais recentes datam
desta época.
24
A partir desta data, portanto, a coleção do abade já deveria estar quase que
totalmente organizada, uma vez que ela foi listada no seu catálogo e, três anos depois,
vendida para o rei D. José. Por outro lado, podemos supor também que tanto este catálogo
quanto a sua coleção de opúsculos, mapas e retratos, poderiam ser atualizados
periodicamente, conforme Barbosa Machado fosse adquirindo mais materiais. Cremos que é
possível que isto possa ter ocorrido com seu catálogo manuscrito, mas torna-se mais
complicado estender esta hipótese à sua coleção, pois Barbosa Machado a organizou temática
e cronologicamente. Se o seu método de trabalho fosse o de “atualizar” constantemente a
coletânea, ele teria de refazer os volumes a cada novo folheto ou imagem que conseguisse
obter.
Sabemos, no entanto, que Barbosa Machado viveu um episódio importante para a
história da erudição em Portugal. O evento referido é o terremoto que acometeu Lisboa em
1755, que acabou destruindo não a Biblioteca Real, mas também rios palácios, como os
pertencentes às casas dos duques de Aveiro e dos marqueses de Alegrete, Angeja, Louriçal,
Távora e Valença, entre outros. Apenas parcialmente atingidos terão sido os dos duques de
Cadaval.
25
Nestes palácios eram abrigadas várias bibliotecas e coleções que, com o terremoto
e o incêndio que se seguiu a ele, foram total ou parcialmente destruídas.
Este incidente marcou o o mundo erudito português, mas a República das Letras
européia, pois repercutiu em obras como Cândido, ou o Otimismo, escrita em 1758 por
Voltaire. Podemos nos interrogar aqui a respeito do significado e da interferência que um
evento como este poderia ter no trabalho colecionista do abade de Sever. Teria sido Barbosa
Machado impelido, pelo curso dos acontecimentos, a tomar para si a tarefa de organizar e
preservar a memória portuguesa, uma vez que a sua biblioteca foi uma das poucas que
24
Trata-se de uma obra de Lucan, chamada Cum suplem
to
maii pareniy e outra sem autoria, cujo título é
Dedução chronologica analytica contra os jesuítas.
25
BRIGOLA, João Carlos Pires. Op. Cit. p. 52.
30
sobreviveu ao sismo? É muito provável que Diogo tenha começado a colecionar suas peças
muito antes do terremoto, talvez quando fora nomeado para a Real Academia. Mas será que,
após este evento, sua coleção poderia ter tomado um outro rumo, outras características e
interesses? É importante frisar que o terremoto praticamente não aparece na compilação de
folhetos. Nenhum deles trata diretamente do assunto. Quando existem referências, elas são
indiretas e enfatizam sempre a reconstrução da cidade de Lisboa desenvolvida pelo marquês
de Pombal. Certo é, portanto, que em seu trabalho ativo de lembrança e esquecimento
Barbosa Machado preferiu passar por cima deste episódio.
Um evento como o sismo de 1755 pode ser entendido como um evento-limite, um
acontecimento imprevisível capaz de ocasionar rupturas violentas na ordem histórica ou, se
quisermos utilizar uma expressão de Hannah Arendt, como uma brecha do tempo.
26
O
terremoto, nesta perspectiva, pode ser interpretado como um momento de crise que causou
profundos impactos entre os eruditos portugueses e europeus, entre eles Diogo Barbosa
Machado. Enquanto organizava sua coleção e sua biblioteca, o bibliófilo, a cada folheto,
imagem ou livro que manuseava e catalogava, reconstruía muito do que Lisboa tinha perdido
em relação à sua história e à vida de seus varões ilustres. A importância de seu
empreendimento parece muito clara para o próprio Diogo, que, como vimos, não mediu
palavras para valorizar o seu labor e a coleção que produziu quando se referia a ela em seu
catálogo manuscrito. Se Pombal reconstruiu as ruas e os prédios de Lisboa, Barbosa Machado
teria ajudado a reconstruir a sua memória.
Torna-se importante, depois de entendermos de que maneira a coleção pessoal de
Barbosa Machado liga-se à sua biblioteca, mostrar, de forma pormenorizada, as partes e os
materiais que compõem esta compilação sobre o passado português.
26
Reflexões desenvolvidas em: MONTEIRO, Rodrigo Bentes e CALDEIRA, Ana Paula Sampaio. A Ordem de
um Tempo: folhetos na coleção Barbosa Machado. Topoi (Revista do Programa de s-Graduação em História
Social da UFRJ), no prelo.
31
A coleção de retratos, atualmente, possui oito volumes e contém gravuras dos séculos
XVII e XVIII. Com exceção de uma imagem colorida e algumas poucas em sangüínea, a
grande maioria delas encontra-se em preto e branco e foi gravada em madeira ou em chapas
de cobre.
Os dois primeiros volumes da coleção tratam da monarquia portuguesa e trazem
estampas de reis, rainhas e príncipes, desde Wamba, rei visigodo, até D. José. Nesta coleção,
Barbosa Machado parece se preocupar com os mitos do passado, como D. Afonso Henriques,
e não tanto com os reis de seu tempo, como D. José. Por outro lado, constam na coleção
várias imagens do rei D. João V, patrono da Academia Real de História e monarca cujo
reinado, que durou de 1707 a 1750, foi acompanhado por Barbosa Machado.
O terceiro volume da coleção de retratos trata dos santos e dos prelados de várias
épocas, alguns deles, inclusive, do tempo da dominação romana, como Santa Engrácia e
Santa Quitéria. Se nos dois primeiros livros de gravuras a cronologia é levada mais a sério,
neste o tempo e o espaço aos quais estão relacionados os personagens parecem mais fluidos.
O volume seguinte, por sua vez, trata dos varões insignes nas letras, nas ciências e nas artes,
trazendo retratada ali a intelectualidade portuguesa. Entre os eruditos presentes, encontramos
alguns membros da Academia Real de História, como o próprio Barbosa Machado,
representado sentado, tendo ao fundo a sua biblioteca.
Os volumes 5 e 6 apresentam os varões insignes da Campanha e Gabinete. Tratam-se
de homens ligados à guerra e à administração do governo português. Por fim, o e o
volumes são, podemos dizer, mais “universais” e dúvidas se eles foram, de fato,
elaborados pelo abade de Sever. Eles também figuram na seção “Livros de estampas” do
catálogo manuscrito de Barbosa Machado, mas não foram colocados juntos com os seis
tomos anteriores, aos quais a citação acima se refere. A forma de encadernação,
originalmente, também era diferente. Enquanto os seis tomos referentes aos reis e
32
personagens ilustres da monarquia portuguesa foram encadernados em fólio imperial, esses
dois últimos, segundo a própria indicação do catálogo do abade, estavam em fólio grande.
As imagens destes dois últimos livros da Coleção de Retratos francesas, em sua
maioria são mais luxuosas, mas nestes volumes não aparece um traço característico de
Barbosa Machado. Como o próprio abade indicou em uma passagem de seu catálogo
destacada, ele não apenas guardou as imagens coletadas, mas as manipulou, intervindo nelas,
recortando-as, colando enfeites, epigramas e “tarjas primorosas” ou ainda fazendo
composições como se quisesse deixar nelas a sua marca. Seu trabalho de recortar e encaixar,
delicadamente, os retratos nas molduras ou ainda uma estampa dentro da outra é tão
minucioso que, para um olhar menos treinado, torna-se difícil distinguir a montagem feita
pelo abade. Estes dois últimos volumes, ao contrário dos anteriores, não demonstram este
cuidado. Além disso, trazem personagens que não estão diretamente ligados à história
portuguesa, como Richelieu, Tomás de Aquino, Aristóteles, Montaigne, Descartes, Van
Dyck, Rafael, Wiclif, Hus, Júlio César, Safo, entre outros. Acreditamos que, de fato, estes
dois volumes tenham sido produzidos por Barbosa Machado. No entanto, como não estavam
relacionados ao passado luso, foram colocados separadamente em seu catálogo, além de
elaborados de uma outra maneira, menos ornados que os demais. A junção destes dois
volumes aos demais, ao que tudo indica, foi fruto de um trabalho de restauração desenvolvido
no século XIX, como veremos adiante.
A coleção de mapas de Barbosa Machado é bem menos numerosa e se refere a
Portugal e a suas possessões. Contém algumas cartas de Lisboa, das ilhas dos Açores e da
Madeira e ainda outras do Brasil. Um deles, de autoria de Ian Iansson, mostra, inclusive,
cenas de antropofagia entre os índios brasileiros. Os mapas que se encontram datados foram
produzidos nos séculos XVII e XVIII, mas ainda dois deles do século XVI, um de Lisboa
e outro da cidade de Funchal.
33
A coleção de folhetos é, por sua vez, a mais numerosa. Ela traz não opúsculos
impressos e manuscritos sobre a monarquia, a nobreza e os eclesiásticos portugueses, mas
também notícias sobre festas, batalhas e ainda relatos de missões que aconteceram nas
possessões portuguesas da América, África e Ásia. Os folhetos se encontram,
predominantemente, em português e espanhol, mas também alguns em francês, inglês,
latim, alemão ou italiano. As publicações também são variadas, uma vez que há textos
impressos em Madri, Barcelona, Roma, Luca, Paris, entre outras cidades, inclusive no Rio de
Janeiro.
27
Sobre a forma de organização dada aos opúsculos pelo nosso colecionador, nos
deteremos no capítulo dois. No entanto, é necessário destacar aqui que os 146 tomos de
folhetos da coleção respeitam, em primeiro lugar, uma ordem temática e, em seguida,
cronológica. Alguns de seus temas são: nascimentos, aniversários, exéquias e elogios
fúnebres. Há também volumes sobre notícias históricas e militares de Portugal, África,
América e Ásia, além de autos de fé, sermões e celebrações pela saúde dos monarcas
portugueses. Cabe acrescentar que livros especificamente dedicados à monarquia
portuguesa (reis, rainhas e infantes) e outros reservados à nobreza e aos eclesiásticos de
Portugal.
A grande maioria dos folhetos refere-se aos reinados de D. João V e de D. José, o que
pode ser entendido pela maior facilidade do acadêmico em encontrar material desta época do
que de períodos mais remotos. Mas, ainda assim, opúsculos datados do início do século
XVI.
28
Nesta parte da coleção a interferência de Barbosa Machado se deu de maneira um
27
Os folhetos impressos no Rio de Janeiro são: Relação da entrada que fez o excellentissimo, e reverendíssimo
senhor D. Fr. Antonio do Desterro Malheyro bispo do Rio de Janeiro, em o primeiro dia deste prezente anno de
1747 havendo sido seis annos bispo do Reyno de Angola, donde por nomiação de sua magestade, e bulla
pontifícia, foy promovido para esta diocesi. Rio de Janeiro: segunda Officina de Antonio Isidoro da Fonseca,
1747 e Em aplauso do excellentissimo, e reverendíssimo senhor D. Frey Antonio do Desterro Malheyro
digníssimo bispo desta cidade. Romance heróico. Rio de Janeiro: segunda Officina de Antonio Isidoro da
Fonseca, 1747. Os dois opúsculos constam no segundo tomo dos Elogios Oratórios e Poéticos dos Cardeais,
Arcebispos, Bispos e Prelados Portugueses.
28
Nem todos os folhetos da Coleção Barbosa Machado encontram-se datados. Dentre os opúsculos que trazem
esta informação, verificamos que três deles são do século XV (no entanto, constam na compilação com edições
34
pouco diferente daquela feita sobre os retratos. Em relação aos opúsculos, ele os repetiu em
volumes de temáticas diferentes, os dividiu, colocando parte deles em um dado volume e a
outra parte em outro, acrescentou a eles mapas, plantas de cidade e desenhos de batalhas ou
até mesmo corrigiu palavras e erros tipográficos. Seu empenho em organizar este material
escrito ficou evidente também no cuidado que o bibliófilo teve em fazer uma lista com os
títulos de todos os folhetos que constavam em um determinado livro, colocando-a no início
de cada tomo de sua coleção, produzindo, assim, um índice de consulta para o seu leitor.
Não faltam ainda nesta coleção de opúsculos folhetos produzidos pelos pares de
Barbosa Machado, isto é, pelos outros membros da Academia Real de História e, inclusive,
pelo próprio abade de Sever. Sobretudo nos volumes dedicados ao aniversário dos reis e
rainhas de Portugal há várias orações e elogios recitados pelos acadêmicos para os monarcas.
Torna-se difícil, hoje, dizermos exatamente de que maneira Barbosa Machado
conseguiu reunir essa quantidade de documentos. De fato, sabemos pelos gravadores das
imagens, pelos autores dos folhetos, pelo idioma ou ainda pela cidade em que foram
publicados (quando trazem estas referências) que a maioria das gravuras, dos opúsculos e dos
mapas foram produzidos em Portugal, masoutros que certamente vieram de fora do reino.
Mesmo entre os opúsculos portugueses, por exemplo, alguns raros e outros que datam do
século XVI. Como pôde, então, o abade de Sever ter acesso a estes documentos? Em alguns
casos, Diogo Barbosa Machado comprou estes materiais e ainda mandou vir alguns do
estrangeiro. Esta prática era comum, uma vez que vários eruditos da época, como Diogo de
Mendonça Corte Real, ocupavam cargos administrativos, tendo, por isso, de viajar
constantemente para outros reinos. Além de Corte Real, outros pares de Barbosa Machado
tinham inserção no exterior e entravam freqüentemente em contato com eruditos de outros
países. É o caso, por exemplo, de Raphael Bluteau e de José da Cunha Brochado. O primeiro,
do século XVI), 78 são do século XVI, 1009 do século XVII e 1795 do século XVIII (até 1770, data do texto
mais recente).
35
filho de pais franceses, nasceu em Londres e fez seus estudos na França e na Itália. O
segundo, por sua vez, ocupou o cargo de embaixador em Paris.
29
Através da correspondência
que Diogo manteve com o embaixador Francisco Xavier de Oliveira, percebemos que alguns
dos amigos do abade recebiam encomendas e mandavam-lhe, de suas viagens ao exterior,
opúsculos ou imagens úteis aos interesses do colecionador:
Quanto à encomenda de estampas que VM continua a lembrar me confesso
que tenho medo de fazer emprego algum porque todas as occasiõens em
que discobri alguma couza que podia servir a VM achey que o preço não
era commodo, ou para melhor dizer dúvidas se seria a sua satisfação. Pello
que respeita aos Retratos dos Príncipes e Varoens Insignes o faltarey de
lançar em todos os que poder achar desejando que VM me diga se acha
curiosidade se limita somente nos Heroes Portuguezes, ou se pretende
haver também os Retratos dos Estrangeyros mais famosos.
30
Os Anais da Biblioteca Nacional, por outro lado, indicam também que Barbosa Machado, a
fim de adquirir imagens variadas para a sua coleção de retratos, não se importava em recortar
os livros que tinha duplicados, arrancando deles gravuras de reis e rainhas de Portugal e
adicionando-as à sua coleção, não sem antes “enfeitá-las” com suas tarjas, composições e
epigramas.
31
É preciso destacar, portanto, que a prática do colecionismo não era, como comumente
se pensa, uma atividade individualizada e que remete a uma pessoa na solidão de seu
gabinete. De fato, a coleção estudada nos leva à biblioteca particular de um erudito específico
e não à de uma congregação ou até mesmo à do reino. Mas é preciso ter sempre em mente
que Diogo Barbosa Machado fazia parte de uma comunidade erudita, organizada em uma
instituição de pesquisa histórica, a Academia Real, o que lhe inseria em uma rede de
29
DIAS, Sebastião da Silva. Portugal e a Cultura Européia (sécs XVI a XVIII). Biblos, 28, p. 203-498, 1952.
30
Carta de Francisco Xavier de Oliveira para Barbosa Machado. Haia, 19/10/1742. Biblioteca do Palácio
Nacional da Ajuda. Podemos perceber que, ainda nos anos 40, Barbosa Machado continuava a procura por
materiais para a sua coleção. Além disso, talvez tenha começado por esta época, e a partir dos retratos mandados
por D. Francisco Xavier de Oliveira para Barbosa Machado, os volumes dos retratos, relativos a personagens
estrangeiros.
31
BRUM, JoZephyrino de Meneses. Introdução. In: Catálogo dos Retratos Colligidos por Diogo Barboza
Machado. Rio de Janeiro: G. Leuzinger e Filhos, 1893-1905, v.1. p. I-VIII.
36
relacionamentos sem dúvida fundamental para que ele conseguisse montar sua coleção. Além
disso, é preciso atentar para o fato de, a partir da fundação da Real Academia, a escrita do
passado português se ligar essencialmente à busca, aquisição e crítica dos vestígios deste
mesmo passado.
32
Dessa forma, como veremos mais detalhadamente no próximo capítulo, a prática
colecionista era corrente dentro da Academia Real e também indispensável para o projeto de
escrita da história desta instituição. Embora seus membros, individualmente, colecionassem
documentos e objetos, a própria academia estava interessada em ter o seu próprio arquivo e o
seu próprio museu. Era programado, desde os primeiros estatutos daquela comunidade, que
fosse produzida uma história da Academia Real. Para isso, foram preservados escritos
relativos ao funcionamento da instituição, pois, como qualquer história, aquela também
deveria ser escrita a partir de documentos. Dessa forma, fazia parte do projeto daqueles
eruditos reunir e colecionar tudo que fosse necessário para se escrever a história de um
determinado período. E foi justamente isso que Barbosa Machado fez em todas as suas obras.
Para compor as Memórias para a História de Portugal, que comprehendem o governo
delRey D. Sebastião, cujo primeiro tomo saiu a público em 1736, Barbosa Machado colheu
um farto material sobre a época, como decretos, cartas e outros documentos escritos
referentes ao reinado do Desejado e ao período Habsburgo. Nesta obra, o abade também
listou e descreveu de forma minuciosa as ões dos “varões insignes”, cuja lealdade,
sobretudo em um momento turbulento da história do reino português, não poderia cair no
esquecimento, mas deveria, por meio do trabalho daqueles acadêmicos reais, ser trazida à
memória. A idéia de elaborar memórias era muito cara aos membros da Academia Real, pois
este gênero dava espaço para que se mostrassem os pontos duvidosos de um determinado
32
KRIEGEL, Blandine. L´Histoire à l´Age Classique. Les Académies de l´Histoire. Paris: PUF, 1988, v.3.
37
período, fossem destacados os personagens e seus feitos importantes e se compilassem
documentos que, posteriormente, seriam úteis para se escrever a história portuguesa.
33
Todo um trabalho de pesquisa e coleta de documentos também foi elaborado pelo
abade enquanto montava a sua Bibliotheca Lusitana. Para compor esta obra, que se trata, na
verdade, de um catálogo dos escritores portugueses e de suas produções, Barbosa Machado
consultou outros autores que tentaram fazer um trabalho semelhante
34
e ainda pediu ajuda,
por meio de correspondência a eruditos, solicitando-lhes que mandassem informações sobre a
vida e os escritos de autores portugueses, como se na carta que o abade destina ao Padre
Frei Marceliano da Ascensão:
O Francisco Mauro de que V.E me aponta as obras, quizera saber o seu
apellido, e mais notícias, pois falta sobre elle desígnio de destinção. O
portador da carta de V.E me assegurou para o thesoureiro mor de Braga me
queira mandar notícias dos seus Patrícios, eu lhe agradeci com sinceros
expressõens este socorro literário.
No cathálogo que por via de meu irmão D. Joseph recebi dos
[revendedores] Bracharenses vem grande número q eu não tenho, e assim
peço a V.E para qual o escreveo se resolva a mandar notícias daquellas que
não estão na Bibliotheca Lusitana impressa e com quanto mayor
brevidade se remeteram, tanto mais se hirão acomodando com as suas
classes.
que V.E foy o Vasco da Gama da Canônica de Frei João do Apocalypse
lhe peço me mande transcripto o título della que assim o por na dita
bibliotheca e depósitos de livros contra e como começa e acaba. Tão bem
não tenho os nomes de seus Pays, nem o dia e anno que reçebeo o hábito,
asemelho que fora natural de Guimarães e que morrera em Tranca a 22 de
Abril de 1632. De tudo espero resposta.
Joseph de Andrade de Coimbra vereador antigo da Câmara de Braga foi à
Oração que deu entrada pública nesta cidade o sereníssimo D. Joseph.
Della achey impressa de folhas que tenho. Quero saber a pátria dos pays
deste homem, e o dia, e o anno da morte, pois me segurão que
fallecera.
35
33
KANTOR, Íris. Op. Cit.
34
MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana. Lisboa Occidental: Officina de Antonio Isidoro da
Fonseca, 1741-1759, v.1. prólogo.
35
Carta de Diogo Barbosa Machado destinada ao Padre Frei Marceliano da Ascensão em 31 de outubro de
1744. Biblioteca Nacional de Lisboa.
38
O resultado destas trocas de correspondência e do intercâmbio de informações foi a
composição dos quatro tomos da Bibliotheca Lusitana, publicados respectivamente em 1741,
1747, 1752 e 1759, e que serviam como um elogio à República das Letras portuguesa.
O trabalho de Barbosa Machado, portanto, é antes de tudo o de coletar e ordenar. Nem
a sua livraria pessoal poderia fugir a este desejo de organização dos livros, dos documentos e
dos saberes. Não bastava apenas compilar. Esta compilação, seja de documentos, seja de
informações sobre autores portugueses, trazia um objetivo explícito, objetivo este que não era
apenas de Barbosa Machado, mas de toda a Academia e, inclusive, da monarquia portuguesa:
o de trazer à memória os fatos e personagens que contribuíram para a grandeza do reino, seja
de forma militar ou política (lutando, por exemplo, pela defesa da independência portuguesa
frente ao domínio espanhol), seja por meio das letras e do saber. A sua coleção pessoal
insere-se também neste duplo interesse de ordenação e de memória. Este trabalho ainda trazia
implícito um leitor, que era guiado pelos seus índices, pela sua divisão dos tomos ou ainda
pela ordem, escolha e montagem dos folhetos e das imagens. Este público-leitor era
composto por seus pares, ou seja, outros acadêmicos e eruditos que tinham acesso à sua
biblioteca pessoal. Mas, por outro lado, ao escolher os seus documentos, Barbosa Machado
selecionou aquilo que devia ou não ser lembrado, o que era digno de sobreviver ao tempo, os
personagens e eventos que, dali por diante, passariam a figurar na tão “memorável” história
do reino português, que seria escrita a partir do esforço colecionista de eruditos como ele
próprio. Diogo, a partir de sua coleção, dizia, de forma ativa o que era tradição, o que era
memória, portanto, o que devia ser guardado. Dessa forma, o passado não se arrastava até
Barbosa Machado, mas, antes, era composto por ele a cada folheto, a cada imagem. É dessa
forma, por exemplo, em que ele compôs um passado em que a tragédia de 1755 não está
presente. Esta coleção, portanto, pode ser percebida como uma promessa de uma futura
39
escrita da história, mas também, ela própria, como uma escrita singular dentro do seu modo
próprio de coleção.
A coleção estudada nos remete ao trabalho antiquariado do século XVIII e, sobretudo,
ao interesse que aqueles homens tinham pelo seu passado, principalmente se levarmos em
conta o caráter dos materiais colecionados. No século seguinte, ela viria para o Brasil e
passaria a fazer parte do fundo da Biblioteca Imperial, mais tarde Biblioteca Nacional.
Restaurada e admirada pelos bibliotecários daquele momento, esta coleção passou por
mudanças que nos fazem refletir a respeito dos interesses que as sociedades dos séculos
XVIII e XIX mantinham pelo passado. Cabe-nos, portanto, perguntar: 1. O que levava
aqueles homens no século XVIII a reunir freneticamente elementos referentes a um tempo
longínquo? Por que colecionar o passado? O que este passado representava e que ligação
mantinha com o presente e o futuro? 2. De que maneira os bibliotecários do século XIX
entenderam o trabalho de Barbosa Machado? O que os levou a conservar e restaurar a
coleção? Por que este desejo de preservação? A nossa preocupação nesta última parte do
texto refere-se, portanto, a duas culturas históricas: de um lado, a que permitiu a montagem
desta coleção e, de outro, a que a constituiu como fonte e possibilitou que ela chegasse até
nós hoje.
A trajetória da coleção e as mudanças sofridas por ela na cultura histórica oitocentista
O interesse de Barbosa Machado e de seus pares da Academia Real em relação ao
passado foi marcado por duas questões que, na verdade, estavam imbricadas: a da finitude e a
da exemplaridade. Como indicamos, alguns dos tomos que compõem a coleção de folhetos
do abade de Sever, intitulados Aplausos dos annos de Reys, Raynhas e Príncipes de Portugal,
trazem orações dos membros da Academia Real da História nas quais eles expõem aos
40
monarcas, D. João V e D. Mariana, os trabalhos que vêm realizando dentro daquela
instituição. Essas orações são particularmente interessantes, pois, em algumas delas, os
eruditos refletiam a respeito da história, das relações entre presente e passado ou ainda sobre
o que consideravam ser o trabalho de um acadêmico-historiador.
Uma preocupação que aparece em praticamente todos estes folhetos é a do
esquecimento. Manoel Caetano de Sousa afirmava que a fundação da Academia Real e a
promulgação do Decreto de 1721 desnaturalizou, em Portugal, o vício do esquecimento,
hábito este “nefasto, pois nega a glória dos heróis e oculta a infâmia dos indignos.”
36
O
marquês de Valença chegou a afirmar que “os homens aspiram à imortalidade por natureza”,
não fisicamente, uma vez que “nada é mais conforme à humanidade do que a morte”, mas
através dos filhos que geram, dos edifícios que fabricam ou dos livros que compõem.
37
O que estava em jogo nestas orações e elogios proferidos pelos acadêmicos era o
papel que eles atribuíam à história e à Academia da qual faziam parte. Para eles, o estudo do
passado tinha uma função muito clara: reter a efemeridade das coisas, perpetuar a memória,
tirar os heróis do esquecimento e trazê-los novamente à vida. A história estava ligada à
exaltação dos grandes homens ou, nas palavras de Alexandre de Gusmão, era “uma elegia à
glória dos governantes”.
38
Esses homens ilustres, diz Manuel Teles da Sylva, foram
“sepultados” nos arquivos do reino graças ao esquecimento e à negligência.
39
Em meio a este
debate, o marquês de Alegrete lembrou também o papel e a importância dos documentos,
36
SOUSA, Manuel Caetano de. Introducção panegyrica na conferencia publica da Academia Real da Historia
Portuguesa, que se celebrou no Paço, em presença de Suas Magestades, e Altezas, em 22 de Outubro de 1726.
Dia dos annos del Rey nosso Senhor, recitada pelo padre D. Manoel Caetano de Sousa, que era director.
Lisboa: s. ed., [1726]. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Aplausos Oratórios e Poéticos no Complemento
de Anos dos Serenissimos Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v. 1. p.
224-30.
37
VALENÇA, Francisco Paulo de Portugal e Castro. Oração consolatória na morte de El Rey Catholico Filippe
V. A'Serenissima Senhora D. Maria Anna Victoria Princeza do Brasil, composta por D. Francisco de Portugal e
Castro Marquez de Valença. [Lisboa, 1746]. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Elogios Fúnebres
Oratórios e Poéticos dos Sereníssimos Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal. Rio de Janeiro, Biblioteca
Nacional, v. 2. p. 386-90.
38
Cf. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Para Escrever uma História do Brasil: a guerra pelo passado na
cultura histórica oitocentista brasileira. XXIII Simpósio Nacional de História História: Guerra e Paz. Anais...
Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 17 a 22 de julho, 2005.
39
SILVA, Manuel Teles da. Op. Cit. p. 85.
41
pois era a partir deles que podiam ser encontrados os atos e os exemplos dos varões
insignes.
40
Era preciso, portanto, conhecer os arquivos, organizá-los e ter acesso aos vestígios
do passado, pois neles estavam esquecidos os homens e as ações gloriosas, dignas de
lembrança.
A memória, portanto, tinha o poder de vencer a própria morte. Esta, por sua vez, podia
ser superada pela escrita, capaz de fixar as virtudes e os atos de um homem para as gerações
futuras. Os elogios fúnebres e os sermões de exéquias, gêneros muito produzidos no século
XVIII português e que ganhavam destaque na Coleção de Diogo Barbosa Machado
mostravam a preocupação daquela sociedade com seus mortos, isto é, o interesse em
conservar, por meio de um texto escrito, a sua memória e também de construir um ideal de
virtude que servisse para os demais súditos.
41
Memória e escrita apareciam, portanto,
imbricadas aqui.
A Academia Real tomou para si uma tarefa que era a de fazer justiça àqueles homens
e mulheres dignos de permanecerem vivos na memória. É interessante observar que, se nós,
atualmente, conservamos praticamente tudo o que nos chega do passado e chegamos a
transformar o nosso próprio presente em história, a cultura histórica setecentista parece que se
valia de outros critérios. Como lembra Blandine Kriegel, para os eruditos dos séculos XVII e
XVIII nem todos os tipos de texto eram documentos, ou seja, era dignos de sobreviver ao
tempo. No entanto, esta concepção não é apenas válida para os vestígios do passado, mas
estende-se também aos seus personagens. Alguns homens foram virtuosos, outros não.
Somente os virtuosos mereciam lembrança e podiam aspirar à imortalidade conferida pela
40
ALGRETE, Manuel Teles da Silva. Oraçam, que o marquez de Alegrete, sendo director da Academia Real da
Historia Portugueza, repetio na presença de suas Magestades, e Altezas, celebrando-se os annos da Rainha
Nossa Senhora no dia 7 de setembro de 1723. [Lisboa] s. ed. [1723]. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.).
Aplausos Oratórios e Poéticos no Complemento de Anos dos Serenissimos Reis, Rainhas e Príncipes de
Portugal. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v. 1. p. 148-53.
41
A respeito dos elogios fúnebres e dos cultos de memória no século XVIII, ver ARAÚJO, Ana Cristina.
Despedidas triunfais – celebração de morte e cultos de memória no Século XVIII. In: KANTOR, Íris e JANCSÓ,
István (Org.). Festa: Cultura e Sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo: HUCITEC, EDUSP, FAPESP,
Imprensa Oficial, 2001, v.1. p. 17-33.
42
escrita e pela história.
42
Se, para os historiadores atuais, todos os tipos de texto são fontes e
toda experiência humana é interessante de ser estudada (seja a vida de um rei, seja a vida de
um simples camponês), naquele mundo erudito o movimento era inverso, era, na verdade, de
estreitamento e de redução.
43
Essa idéia de depuração, de que nem tudo deve sobreviver à destruição do tempo,
ligava-se ao fato de que apenas o que era exemplar para as gerações futuras merecia a honra
da imortalidade. O próprio sentido de “história“ presente no Vocabulário Português e Latino,
do Padre Raphael Bluteau, traz consigo este significado. O acadêmico definiu a palavra da
seguinte maneira:
Mais particularmente, Historia he narração de cousas memoráveis, que tem
acontecido em algum lugar, em certo tempo, e com certas pessoas, ou
naçõens. (...) A historia he a testemunha do tempo, a luz da verdade, a vida
da memória, a mestra da vida, e a mensageira da Antiguidade.
44
(grifo
nosso).
A história, como mestra da vida, ligava o presente ao passado através da idéia do
exemplo que ensina. No entanto, como lembra Reinhart Koselleck, a História Magistra podia
ensinar os homens a serem melhores, mas somente se os pressupostos para isso foram
basicamente os mesmos. Isto é, esta história exemplar subentendia não a admissão da
constância e invariabilidade da natureza humana, mas também um tempo mais lento no que
se refere às transformações sociais, o que permitiria que os exemplos de personagens do
passado continuassem úteis e válidos no presente e, ao mesmo tempo, limitassem aquilo que
seria possível experimentar no futuro.
45
Esses modelos faziam sentido em um mundo
42
A respeito da relação entre virtude, lembrança e nobreza ver OSÓRIO, Jerônimo. Tratados da Nobreza Civil e
Cristã. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1996 (1ª edição de 1542). Embora seja de uma época
anterior a que estudamos, esta obra é interessante, pois defende que pensar em nobreza é pensar uma linhagem
em que o descendente carrega consigo a memória e os merecimentos de seus antepassados.
43
KRIEGEL, Blandine. L´Histoire à l´Age Classique. La défaite de l´erudition. Paris: PUF, 1988, v.2, p. 18.
44
BLUTEAU, Raphael. História. In: Vocabulário Português e Latino, Áulico, Anatômico... Coimbra: Colégio
das Artes da Cia de Jesus, 1712, v.4. p. 39-40.
45
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Para uma semántica de los tiempos históricos. Barcelona, Buenos
Aires, México: Paidos, s/d. p. 43.
43
aristocrático em que o passado ainda era capaz de jogar luz sobre o futuro ao mesmo tempo
em que os homens do presente limitavam as suas experiências e expectativas a partir dos
exemplos do passado.
Torna-se claro, portanto, a partir das questões da finitude e do exemplo, o interesse
que moveu eruditos, como Barbosa Machado, a guardar de forma intensa, porém criteriosa,
documentos a respeito do passado. Colecionar era uma maneira de remontar no tempo, ter o
passado perto de si, senti-lo e preservá-lo contra a corrupção dos séculos. Os folhetos
(publicações fadadas ao desaparecimento por serem consumidas pelos leitores
momentaneamente, no calor de um determinado evento) e as imagens colecionadas
ganhavam uma função de deixar sempre viva a memória dos personagens do passado, mas
também de educar os homens do presente e do futuro.
O desejo de Barbosa Machado com a sua coleção era simplesmente o de preservar, de
trazer à memória as ações e os personagens capazes de fornecer modelos. Por outro lado,
parece que havia por parte do abade não o interesse em que a lembrança daqueles homens
fosse perpetuada, mas também a vontade de que o seu próprio trabalho fosse preservado e
lembrado pelas gerações futuras. Foi com este intuito que ele mesmo incluiu um retrato seu
entre os varões insignes em artes, letras e ciências e também foi com este desejo que ele
aceitou vender não só a sua coleção, mas toda a sua livraria, à Real Biblioteca da Ajuda.
Em 1755, Lisboa ficou totalmente destruída após um terremoto e um incêndio. Muitas
bibliotecas se perderam completamente, entre elas a Biblioteca Real. A livraria de Barbosa
Machado, no entanto, não sofreu danos. Sendo assim, dentro de um plano de recuperação da
biblioteca do rei, o abade de Sever vendeu os seus livros e a sua coleção pessoal à Coroa,
recebendo por isso uma pensão vitalícia. O intermediário desta negociação foi Frei Manuel do
Cenáculo, conhecido colecionador e erudito da segunda metade do século XVIII. O transporte
das obras começou em 1770 e terminou dois anos depois, pois o acadêmico desejava
44
reformar e reencadernar alguns exemplares antes de entregá-los aos seus novos donos.
46
Isto
nos permite supor mais uma vez que, primeiramente, o bibliófilo amealhou os documentos e
depois encadernou-os. Esta informação ainda nos permite imaginar o interesse e o cuidado
de Barbosa Machado em mexer na coleção, tirar documentos de lugar, encaixá-los em outros
tomos, portanto, reescrever a história portuguesa. Por ter sido uma das poucas livrarias que
sobreviveram ao sismo, Barbosa Machado tinha em suas mãos documentos que se tornaram
raros. Com a invasão napoleônica e a vinda da Corte para o Brasil, muitas das obras da
Biblioteca Real foram transferidas para o Rio de Janeiro. Entre elas, estava toda a coleção de
nosso abade.
Na cidade do Rio de Janeiro, no início do século XIX, esta coleção teve uma
trajetória certamente inimaginável para o seu idealizador. Faltam documentos que nos
indiquem exatamente as transformações pelas quais ela passou, mas sabemos que, assim que
chegou à cidade, em 1810, a coleção foi instalada nas salas do andar superior da Terceira
Ordem do Carmo junto com outras obras que também faziam parte da Real Biblioteca. Não
sendo aquele o ambiente mais adequado para a conservação e o abrigo dos livros, os
materiais, por ordem do Príncipe Regente, foram ocupar as catacumbas que haviam servido
os religiosos da ordem.
47
Este acervo passou a constituir o fundo da Biblioteca Imperial,
posteriormente Biblioteca Nacional. Já nas mãos dos bibliotecários desta instituição,
notadamente Benjamin Franklin Ramiz Galvão diretor da Biblioteca Imperial e, mais tarde,
organizador da nova Biblioteca Nacional e José Zephyrino de Meneses Brum chefe da
recém criada seção de estampas –, a coleção passou por algumas restaurações e sofreu
mudanças. Determinados livros e imagens foram perdidos, outros reencontrados no século
XX. No entanto, o que nos importa é o fato de que estes homens trabalharam sobre o
empreendimento de Barbosa Machado. O que os unia ao abade do século XVIII? Certamente
46
GALVÃO, Ramiz. Op. Cit. p. 39.
47
CASTRO, César Augusto. História da Biblioteconomia Brasileira. Brasília: Thesaurus, 2000. p. 44-5.
45
o desejo de conservar e de organizar, mas, agora, sob critérios e métodos, na visão dos
bibliotecários, mais rigorosos do que aqueles utilizados pelo abade setecentista.
Os retratos coligidos por Diogo Barbosa Machado foram, em relação às outras partes
da coleção, os que sofreram as maiores mudanças. Em primeiro lugar, eles passaram por um
processo de “atualização”, isto é, foram inseridas nos álbuns de estampas algumas imagens
que, pelas datas e pela disposição em que se encontram nos livros, não poderiam ter sido
postas ali pelo acadêmico do século XVIII. A mais importante é a do Frei Manuel do
Cenáculo, erudito que intermediou a venda da coleção de Barbosa Machado para a Biblioteca
Real de D. José. Não sabemos quando esta gravura foi colocada na coleção de retratos, mas é
possível que tenha sido antes de chegar às mãos de Ramiz Galvão e Zephyrino Brum, uma
vez que eles identificaram que aquela estampa e algumas outras não foram postas ali por
Barbosa Machado.
48
Certo é que a coleção se encontrava no Rio de Janeiro quando a
gravura foi inserida. No entanto, o que nos importa destacar é um certo interesse embora
não se saiba exatamente de quem em atualizar a memória, adicionando aos retratos a
estampa de um personagem ligado à própria história daquela coleção.
Luís Marrocos, funcionário que zelou pela Real Biblioteca quando ela estava em vias
de ser transportada para o Brasil, copiou uma informação de Francisco José da Serra, cliente
de Diogo Barbosa Machado, aludindo a furtos ocorridos por meio do guarda que cuidava dos
livros reais. De acordo com este documento, fora furtada uma imagem de Inácio Barbosa
Machado presente no tomo dos retratos referente aos Varões Insignes em Artes e Ciências. A
imagem estaria localizada logo após a de seu irmão Diogo.
49
Os álbuns que compõem a coleção de retratos também passaram, nos tempos de
Ramiz Galvão, por um processo de restauração que durou cerca de dez anos. Durante este
período, todas as imagens foram descoladas de suas folhas originais, lavadas e coladas
48
GALVÃO, Ramiz. Op. Cit.
49
Notícia sobre a collecção dos retratos de Diogo Barbosa Machado que era propriedade de Francisco Xavier
da Serra, e copiada por um Marrocos. Biblioteca Pública Eborense.
46
novamente em outras.
50
Lygia Cunha, funcionária da Biblioteca Nacional entre as décadas de
1940 e 1990 e ex-chefe da Seção de Iconografia, diz que certas dúvidas em relação a
“lavagem” das gravuras, não se sabendo exatamente como ela poderia ter sido feita, nem os
métodos utilizados na época.
51
No entanto, este processo de restauração é descrito por
Zephyrino Brum na introdução que escreveu para o Catálogo dos Retratos Colligidos por
Diogo Barbosa Machado:
O estado de deterioração a que se achavam reduzidos os volumes d´esta
preciosa collecção de retratos reclamava prompto reparo e nova
encadernação. Graças à rara habilidade do auxiliar Snr Antonio Luiz Pinto
Montenegro, coadjuvado pelo auxiliar Snr Carlos Peixoto, poude a secção
de estampas levar feito estas difficeis reparações com toda a perfeição.
Como para realizá-las era mister que todo o papel fosse previamente
molhado, principiou-se por desmanchar os volumes e descollar-lhes uma
por uma as estampas grudadas nas folhas; depois foram colladas sobre
estas: 1º, as estampas nos lugares em que d´antes se achavam, 2º, novas
folhas de papel, nas quaes tinham sido de antemão feitas aberturas do
tamanho exacto das estampas, espécie de passe-partout, para que d´esta
arte ficasse a nova folha com espessura igual em toda ella.
52
O trabalho destes bibliotecários foi, de fato, minucioso e não se restringiu somente à
restauração da encadernação dos tomos. Na verdade, foi um labor de pesquisa dificultado
pelos próprios métodos do colecionador setecentista.
50
BRUM, José Zephyrino de Meneses et all. Registro dos Relatórios Trimestrais da Secção de Estampas da
Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1876-98.
51
CUNHA, Lygia da Fonseca Fernandes da. Entrevista a Rodrigo Bentes Monteiro e Ana Paula Sampaio
Caldeira. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 02/03/2005. Lygia Cunha entrou na
Biblioteca Nacional em 1941, depois de fazer um curso de dois anos na própria instituição. Sua formação é
marcada pela erudição e por viagens de estudo para vários lugares da Europa, como França, Alemanha e Itália.
Exerceu as funções de chefe da seção de Iconografia (criada com a reforma de 1945/46) e diretora da Divisão de
Obras Raras, que compreendia os setores de Manuscritos, Música, Iconografia e Obras Raras propriamente dita.
A vivência que Lygia Cunha teve durante o longo período em que trabalhou na Biblioteca Nacional (1941-1990)
é importante para entendermos um pouco da história da Coleção Barbosa Machado, uma vez que esta
bibliotecária, além de ter lidado com a compilação de retratos, vivenciou vários momentos daquela instituição.
Ela passou, por exemplo, por um processo em que a erudição, anteriormente característica indispensável para as
estudantes de biblioteconomia, foi cedendo cada vez mais lugar à técnica. O período em que Rubem Borba de
Moraes esteve à frente da diretoria da biblioteca (1945-47) é caracterizado pela reorganização técnica dos
serviços, pelo início da classificação do acervo baseada em normas universais o método Dewey e pela
higienização dos livros.
52
BRUM, José Zephyrino de Meneses. Introdução. In: Catálogo dos Retratos Colligidos por Diogo Barboza
Machado. Rio de Janeiro: G. Leuzinger e Filhos, 1893-1905, vol. 1. p.VIII.
47
(...) continuei durante o 2º. Trimestre deste anno a classificação das
estampas da Collecção de Retratos de Barboza Machado, trabalho que não
está tão adiantado, como eu desejara, pelas pesquizas bibliographicas, que a
cada passo sou obrigado a fazer por causa do systema usado pelo célebre
colleccionador de mutilar a parte gravada das estampas, ou cortar-lhe as
margens.
53
A pesquisa de Zephyrino Brum, embora trabalhosa, rendeu um catálogo das imagens da
Coleção Barbosa Machado. Os bibliotecários investigaram no Brasil e na Europa, procurando
saber onde Barbosa Machado conseguira seus materiais, a autoria dos folhetos anônimos,
notícias a respeito de vários dos personagens presentes na coleção, a origem de alguns
pintores e gravadores, além da proveniência de várias das imagens.
54
Recorreu-se ao catálogo
da biblioteca pessoal do abade para entender também de que maneira a coleção estava
disposta, e, com algumas diferenças, mantiveram a organização original do acadêmico. A
exceção encontra-se, sobretudo, na coleção de retratos, em que foram incorporados aos seis
tomos referentes aos reis e varões insignes portugueses outros dois, de estampas relativas a
personalidades estrangeiras. Como indicamos, estes dois últimos livros, que originalmente
encontravam-se encadernados de maneira diferente, foram restaurados e encadernados como
os demais, em fólio imperial.
55
Esta junção é referida nos relatórios trimestrais da Seção de
Estampas da Biblioteca Nacional:
Durante o 2º. Trimestre do corrente anno continuei a classificação da
Collecção de Retratos de Diogo Barbosa Machado, que não poude ser
terminada, como eu esperava, n’este mez por ter de classificar mais hum
volume de retratos, o qual embora já fosse por mim conhecido, só há pouco
53
BRUM, José Zephyrino de Meneses et all. 38º. Relatório Trimestral concernente ao 2º. Trimestre de 1886. In:
Registro dos Relatórios Trimestrais da Secção de Estampas da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca
Nacional, 1876-98.
54
Durante a gestão de Ramiz Galvão na Biblioteca Nacional, foi produzido um catálogo em 4 volumes das
imagens colecionadas por Diogo Barbosa Machado. No que se refere à catalogação dos dois primeiros tomos da
coleção referentes aos reis, rainhas e príncipes portugueses –, percebemos que houve um trabalho intenso por
parte dos bibliotecários em localizar e datar as imagens, bem como em descobrir os nomes e a proveniência de
seus gravadores. Esse empenho, no entanto, não é mais percebido no catálogo das imagens dos varões insignes.
Essa mudança de ritmo pode ser associada à própria saída de Ramiz Galvão da diretoria da instituição e às
dificuldades decorridas disso.
55
Ibid.
48
me convenci de que devia pertencer á famosa Collecção do Abbade de S.
Adrião de Sever.
56
De acordo com Lygia Cunha, Ramiz Galvão e Zephyrino Brum pouco interferiram na
Coleção de Retratos. Eles se concentraram na restauração da encadernação e, segundo eles
mesmos informam, na lavagem das imagens. As gravuras, no entanto, teriam sido coladas
novamente da maneira como Barbosa Machado fez. Mesmo o hábito de vazar as folhas para
que os volumes não ficassem muito grandes, que, segundo Lygia Cunha, era originalmente do
abade de Sever, foi preservado.
57
No entanto, sabemos que, por melhor que fossem as
intenções dos bibliotecários, eles interferiram na coleção e, mais do que isso, seu empenho
em deixá-la conforme fora produzida, seria hoje considerado falsificação. É interessante
observar como o próprio Zephyrino Brum descreveu com naturalidade as alterações e
acréscimos que ele e seus funcionários fizeram na coleção de retratos:
Como os volumes VII e VIII não tinham títulos, demos-lhes os que lhe
convinham e que occorrem à folha IIIv do Catalogo Manuscripto da
Livraria de Diogo Barboza Machado, accrescentamos com o dizer
commum aos títulos dos seis primeiros volumes: “collegidos por Diogo
Barboza Machado, abbade da Paroquial Igreja de Santo Adrião de Sever, e
Acadêmico Real”. Estes títulos foram feitos à mão, com tinta preta e
vermelha, pelo dito Snr Montenegro, imitando com tanta exactidão os
caracteres typographicos dos títulos dos outros volumes da collecção que
difficilmente se poderá descobrir differenças entre os impressos e os
manuscriptos.
58
(grifo nosso)
Toda esta tarefa de restauração e de pesquisa rendeu não relatórios bastante
detalhados a respeito do estado da coleção, mas também um artigo escrito por Ramiz Galvão
e publicado no primeiro volume dos Anais da Biblioteca Nacional. Neste texto, ele tratou da
56
BRUM, José Zephyrino de Meneses et all. 42º. Relatório Trimestral concernente ao 2º. Trimestre de 1887. In:
Registro dos Relatórios Trimestrais da Secção de Estampas da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca
Nacional, 1876-98.
57
CUNHA, Lygia. Op. Cit.
58
BRUM, José Zephyrino de Meneses. Introdução. In: Catálogo dos Retratos Colligidos por Diogo Barboza
Machado. Rio de Janeiro: G. Leuzinger e Filhos, 1893-1905, vol. 1. p.VIII.
49
vida e da obra de Diogo Barbosa Machado e ainda deixou transparecer a maneira como via o
trabalho daquele erudito do século XVIII, bem como o seu, no século XIX.
59
Ramiz Galvão nasceu no Rio Grande do Sul em 1846 e morreu, no Rio de Janeiro, em
1938. Assim como muitos outros intelectuais do século XIX, ele atuou em diversas frentes.
De acordo com Eliana Dutra, Galvão teve uma trajetória bastante burocrática dentro do meio
intelectual carioca.
60
Graduou-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1868. No
ano seguinte, foi nomeado lente de grego no Colégio Pedro II, onde lecionou também
geografia. Serviu como médico-cirurgião na Guerra do Paraguai e, em 1869, aos 23 anos, foi
nomeado diretor da Biblioteca Imperial. Suas relações com o Imperador D. Pedro II eram
estreitas. O monarca confiou a ele a educação de seus filhos e netos e ainda o nomeou como
representante do Brasil na exposição internacional de Viena. Ramiz Galvão também viajou
por toda a Europa, buscando documentos referentes à história do Brasil, tudo isso a pedido de
D. Pedro.
61
A respeito desta viagem, Alfredo Valadão comenta o seguinte no Necrológio de
Galvão:
Certo que a constante e especial proteção de D. Pedro II, sobremodo
facilitou e estimulou essa tarefa de Ramiz Galvão, nem faltando que em
missão oficial, houvesse este de partir para o Velho Mundo, em 1874, onde
com tanto destaque nos tinha representado no ano anterior, na Exposição
Universal de Viena, para estudar, agora, a organização das melhores
bibliotecas, procurar documentos sobre a nossa história, adquirir livros,
tendo minuciosamente visitado as principais bibliotecas de Paris, Londres,
Bruxelas, Haia, Berlim, Viena, Milão, Florença, Roma e Lisboa, das quais
daria preciosa noticia, em relatório apresentado.
62
Ainda do Imperador, Galvão recebeu o título de Barão de Ramiz, que foi somado a
vários outros que possuía, deixando evidente um certo caráter aristocrático do erudito, que foi
59
GALVÃO, Ramiz. Op. Cit.
60
DUTRA, Eliana de Freitas. Rebeldes Literários da República. História e identidade nacional no Almanaque
Brasileiro Garnier (1903-1914). Belo Horizonte: UFMG, 2005.
61
TUBINO, Nina. Sinopse Biográfica de Benjamim Franklin Ramiz Galvão (Barão de Ramiz) 1846-1938.
Brasília: s/e, 1994.
62
VALADÃO, Alfredo. Necrológio dos Srs Conde de Affonso Celso, Ramiz Galvão, Barão de Studart... Revista
do IHGB, Rio de Janeiro, vol. 173, p. 838-892, 1938.
50
também Dignatário da Imperial Ordem da Rosa, Comendador da Real Ordem de Leopoldo
(Bélgica), Cavaleiro da Imperial Ordem de Francisco José (Áustria), Cavaleiro da Legião da
Honra (França) e Comendador da Ordem de Cristo e Santiago (Portugal).
63
na República, Ramiz Galvão foi nomeado Inspetor Geral de Instrução Primária do
Distrito Federal, passando, mais tarde, a ser Diretor da Instrução Pública, cargo que ocupou
até 1893, quando se exilou para fugir às perseguições de Floriano Peixoto. Retornou em 1894
e, até 1899, permaneceu como secretário da Gazeta do Rio de Janeiro.
64
A carreira de Ramiz Galvão vai ainda muito além. Ele foi primeiro reitor da
Universidade do Brasil e membro da Academia Brasileira de Letras. No entanto, nos
interessa aqui destacar que o barão também fez parte do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB), lugar privilegiado de produção historiográfica e ambiente que marcará
também a sua forma de pensar a história, indispensável para entendermos o parecer do Barão
de Ramiz a respeito do trabalho colecionista de Diogo Barbosa Machado.
A impressão de Galvão sobre o labor do abade de Sever era, em primeiro lugar, de
admiração. Sobre a Coleção Barbosa Machado, o diretor da Biblioteca Imperial deu o
seguinte parecer:
Não se sabe, o que mais se deva admirar, se a excellencia das edições raras,
se a belleza dos exemplares preferidos pelo douto collecionador, se emfim
a boa ordem e perfeiçãom das colleções facticiais, prodígio de
peerseverança e de cuidado. Estão nelles reunidas quase todas as províncias
do saber humano, representado pelas suas obras mais dignas de nota e
estima.
65
Por outro lado, a obra de Diogo Barbosa era também passível de alguns julgamentos
severos. Uma de suas observações mais rigorosas dirigiu-se ao gosto duvidoso do
63
TUBINO, Nina. Op. Cit.
64
Ibid.
65
GALVÃO, Ramiz. Frei Camillo de Monserratte: estudo bibliográfico. In: Annais da Biblioteca Nacional. Rio
de Janeiro: Companhia Typógrafica do Brasil, 1889, v.12. p. 159.
51
colecionador setecentista. Em relação às tarjas nas quais o erudito envolvia as suas gravuras,
Ramiz Galvão fez a seguinte consideração:
Barbosa foi um collector intelligentissimo, e ao que parece grande
conhecedor de livros; mas o senso artístico, o gosto, o amor do bello esse
faltava à sua organização e não fizera nunca o seu cuidado.
Como dizer um iconophilo que um soberbo retrato de Edelinck, de Nantevil
ou de Vorsterman ganha merecimento dentro de uma communissima tarja
de Bonnart?
Haverá consorcio mais absurdo aos olhos de um amador da arte do que o de
uma gravura primitiva de Portugal com a arte de G. Audran em seu apogeu
de gloria?
Não nega-lo; essa união hybrida, offensiva, quase se-poderia dizer
repugnante de retratos e de molduras das escholas mais oppostas, de
gravadores os mais distanciados na escala do merecimento e da edade, é a
nossos olhos a demonstração viva de que ao nosso illustre bibliophilo eram
completamente alheias as noções intuitivas do bello.
66
Mas as críticas não se restringiam apenas ao gosto estético do abade. Elas dirigiram-se
também às obras de cunho histórico produzidas por Diogo Barbosa Machado. A respeito das
Memórias para a História de Portugal, que comprehendem o governo delRey D. Sebastião,
Galvão afirmou:
Filha de estudos sérios e de uma consulta laboriosissima de documentos,
ella nos-offerece grande copia de factos e de opiniões sobre o reinado do
infeliz D. Sebastião, ainda que não prime pela analyse profunda nem pelo
elevado espírito philosophico, que hoje acreditamos inseparável das boas
obras históricas.
67
(grifo nosso)
Ramiz Galvão destacou os pontos positivos a respeito do trabalho do erudito, mas
também criticou determinadas concepções e procedimentos. Barbosa Machado, embora
consultasse e entrasse em contato com a documentação, ainda não era marcado pelo “espírito
filosófico” do século XIX e pela preocupação em não narrar, mas, sobretudo, analisar os
fatos do passado.
Da crítica ao trabalho de historiador de Barbosa Machado, o Diretor da Biblioteca
Imperial passou ao exame dos procedimentos da própria Real Academia de História
66
GALVÃO, Ramiz.. Diogo Barbosa Machado. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca
Nacional, 1876-77, v.1. p. 35.
67
Ibid. p. 8.
52
considerados estranhos a seus olhos e aos de seus contemporâneos. Em seu artigo, Ramiz
Galvão conta que, em uma conferência entre os eruditos daquela sociedade, Barbosa
Machado propôs aos censores a controvérsia relativa ao desaparecimento do Rei D.
Sebastião. O abade não poderia decidir sozinho se aquele monarca escapara vivo da Batalha
de Alcácer Quibir ou se nela teria morrido a golpes dos infiéis e combatendo como um herói.
Os censores da academia, por sua vez, responderam-lhe que escrevesse que o tal rei saíra
vivo da batalha, porém, o acadêmico deveria deixar claro que tudo que se contava a respeito
de D. Sebastião depois do tal acontecimento devia ser tratado como duvidoso. A estranheza
de Galvão recai exatamente sobre o procedimento da Academia Real:
Esta maneira singularíssima de resolver ex cátedra ponctos históricos
controversos, e da ordem do que se-propunha, seria hoje altamente
extranhada, e não haveria escriptor capaz de subjeitar-se a similhante
decisão peremptória; entretanto era aquelle o procedimento geralmente
seguido na célebre academia, cujos serviços não nos-é dado negar, mas
teve como todas as associações análogas do tempo o enormissimo defeito
de não comprehender a sua missão e a sublimidade dos estudos, que tomará
sobre seus hombros. A critica histórica em Portugal deveria surgir mais
tarde.
68
Subjacente ao trabalho de Ramiz Galvão e ao olhar que ele lançou sobre o
“historiador” Barbosa Machado, havia uma concepção de história. Esta concepção era, em
parte, diferente daquela dos eruditos do século XVIII, mas guardava, como veremos adiante,
alguns pontos de contato. No entanto, o que é importante destacar neste momento é a
distinção que o próprio Galvão marcava entre o seu trabalho e o de Diogo Barbosa. Para o
membro do IHGB, ainda não havia chegado no Portugal do Antigo Regime a crítica histórica,
fundamental para que o historiador não contasse o passado, mas o analisasse criticamente,
concebendo-o dentro de um movimento linear do tempo. Ramiz Galvão, ele sim, vivia uma
outra época, época esta em que para se dedicar à história, era necessário rigor, pois o seu
68
Ibid. p. 6-7.
53
objetivo era lançar razão e imparcialidade sobre os fatos do passado.
69
Neste ponto, para
Galvão, Barbosa Machado era passível de muitas críticas pelos excessivos e deliberados
elogios que fazia aos autores que figuravam em sua Biblioteca Lusitana. O bibliotecário
também criticou o erudito pela severidade com que falava dos escritores protestantes:
Também não podemos passar em silêncio a acrimônia injustificável com
que Barbosa Machado constantemente falla dos escriptores protestantes,
exquecido de que a verdade nada tem a ver com as crenças religiosas do
auctor, desde que o assumpto versa sobre matérias extranhas a este
particular.
70
Por outro lado, Ramiz Galvão buscava entender e justificar alguns erros que, a seus olhos,
foram cometidos por Barbosa Machado a partir do seguinte argumento:
A Inquisição estava então em Portugal em seu pleno vigor, e sabe-se que
não seria visto com bons olhos quem, alludindo a um escriptor protestante,
lhe não addicionasse um epitheto affrontoso.
Era o mal do tempo e da sociedade; que faria Barbosa sinão respeita-lo e
convir com elle? Não se-tomára por norma na Academia Real da Historia
Portugueza o rejeitar in lumine a auctoridade dos escriptores de outro credo
religioso?
(...) A bibliographia estava naquelles tempos mui longe do que hoje é em
matéria de rigor e fidelidade, em methodo de exposição e espírito de
critica.
71
Ramiz Galvão via-se em um estágio mais avançado em matéria de entendimento da
história, da bibliografia ou da estética do que aquele em que se encontrava Barbosa Machado,
estágio este que lhe permitia falar, de um lugar privilegiado, a respeito do gosto do erudito
setecentista, da sua parcialidade, da falta de análise e de rigor em suas obras e dos
procedimentos tão pouco científicos da Academia Real da História em matéria de julgamento
dos fatos. Para Ramiz Galvão, havia diferenças muito claras entre o seu trabalho (e o dos
demais historiadores do XIX) e o de Barbosa Machado: aqueles detinham outros
instrumentos, poderiam ver além e de forma mais criteriosa que os acadêmicos do século
69
Ibid. p. 21.
70
Ibid. p. 19.
71
Ibid. p. 20-1.
54
XVIII. Além disso, a sua história não é aristocrática como a de Diogo, mas tem como
personagem central um grande ator: a nação brasileira. Por que, então, fazer uma pesquisa tão
minuciosa e se preocupar em restaurar e conservar um trabalho passível de tantas críticas? As
respostas podem ser muitas. Pode-se argumentar que as concepções políticas do bibliotecário,
que foi preceptor dos filhos da Princesa Isabel e que possuía vínculos estreitos com a
monarquia brasileira nos últimos anos do Império, tenham direcionado o seu interesse a uma
coleção e a um personagem tão vinculados à história da monarquia portuguesa e à dinastia
bragantina.
72
No entanto, é preciso considerar também que, mesmo com todos os problemas,
o empreendimento de Barbosa Machado era, para Ramiz Galvão, de grande importância não
só pelo seu trabalho de compilação, mas também porque aquela coleção era capaz de oferecer
aos estudiosos documentos interessantes para o conhecimento e análise dos fatos do passado.
Era possível, a partir do esforço de Barbosa Machado, realizar aquilo que este erudito e os
membros da Academia Real da História não fizeram como historiadores. Eles tinham os
documentos, mas não o conhecimento do movimento da história e a “imparcialidade” que, no
século XIX, era pré-condição para aquele que desejava se ocupar dos acontecimentos de
outrora. O próprio investimento de Ramiz Galvão e de Zephyrino Brum sobre a coleção que
estavam restaurando era marcado pela idéia de imparcialidade e de preservar o documento o
mais próximo possível do original, apesar das interferências.
Embora Ramiz Galvão pretendesse separar o seu trabalho e as suas concepções das de
Barbosa Machado, nós, hoje, podemos destacar algumas semelhanças entre o trabalho do
erudito do século XVIII e do bibliotecário do culo XIX. Esses momentos de semelhança
estão ligados às singularidades que o processo de disciplinarização da história adquiriu no
Brasil. De acordo com Manoel Salgado, na Europa este movimento foi efetuado
fundamentalmente no espaço universitário. “Neste processo, o historiador perde o caráter de
72
MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Recortes de Memória: reis e príncipes na coleção Barbosa Machado. In:
SOIHET, Rachel, BICALHO, Maria Fernanda e GOUVÊA, Maria de Fátima. Culturas Políticas: ensaios de
história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005. p. 138-9.
55
hommes de lettres e adquire o estatuto de pesquisador, de igual entre seus pares no mundo da
produção científica”.
73
Aqui no Brasil, no entanto, a tradição iluminista portuguesa, marcada
pelas academias literárias, acabou influenciando a fundação do IHGB, sobretudo pelo seu
caráter elitista e pelos critérios baseados nas relações sociais e pessoais.
74
É justamente esta
característica do IHGB que nos possibilita fazer alguns paralelos entre aquele lugar de
produção historiográfica e outro, a Academia Real da História.
alguns pontos de contato muito claros entre o IHGB e a Academia Real
Portuguesa. Um deles é a própria concepção de história. Embora os membros do IHGB
estivessem preocupados com o progresso e a escrita de uma história nacional questões que
não aparecem no projeto historiográfico da Academia Real ainda está presente a idéia de
que a história é capaz de ensinar os homens através dos exemplos do passado. Não é à toa,
portanto, que Ramiz Galvão tenha dedicado boa parte de seu tempo no Instituto Histórico às
biografias. Além disso, ele foi um dos responsáveis pelas comemorações do IV Centenário do
Descobrimento do Brasil. Em relação às festas que comemorariam tal data, ele diz que:
[o objetivo de tais comemorações era] agitar o sentimento que exalta os
corações, lembrando-lhes o nascer da Pátria, as glórias do seu passado, a
rota vencida através de tamanhas lutas e dificuldades, a situação presente e
por último os fundamentos assentados para o edifício robusto e altaneiro do
futuro.
75
Para Ramiz Galvão, o passado servia para despertar o fervor patriótico, estimular a juventude
e, portanto, conseguir o mais importante: fazer com que “o país seguisse no caminho do
progresso”.
76
Para isso, os acadêmicos do IHGB não mediram esforços para as
comemorações do quarto centenário. De maneira semelhante aos acadêmicos da Real
Academia, os membros do Instituto empenharam-se em tarefas como a de organizar
73
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos. O Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, p. 5-27, 1988. p. 1.
74
Ibid. p. 6.
75
GALVÃO, Ramiz. Introdução. In: Livro do Centenário (1500-1900). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1910.
76
Ibid.
56
festividades, elaborar selos, diplomas e moedas comemorativas, pensar a arquitetura de arcos
monumentais e estátuas etc.
De acordo com François Hartog, com o advento do regime moderno de historicidade,
o exemplar, como tal, desaparece para dar lugar ao que não se repete. O passado é, portanto,
visto como ultrapassado. Se ainda existe uma lição da história, ela vem do futuro e não mais
de um tempo que passou.
77
No entanto, no caso do IHGB, o mais interessante é perceber
como, em um mesmo lugar de produção historiográfica, era possível casar as noções de
história magistra e de história como progresso. Este último, para o IHGB e para Ramiz
Galvão, não pressupunha necessariamente uma ruptura com o passado, mas, pelo contrário,
incorporava fatos e personagens de outrora, que deveriam não honrar a pátria, mas “falar
ao coração da juventude”
78
, responsável pelo caminho da nação para o progresso. Dessa
forma, o membro do IHGB, embora criticasse a parcialidade e os excessivos elogios feitos
por Diogo Barbosa em suas obras – como a Bibliotheca Lusitana – ele mesmo estava
preocupado em exaltar os personagens que, através dos anos, formaram o que naquele
momento era a nação brasileira.
Foi com este objetivo que Ramiz Galvão, ainda no ano do quarto centenário, fez uma
Galeria de História Brasileira, álbum que reproduzia as telas e gravuras que representavam
grandes personalidades e temas da história nacional. Constam nesta galeria nomes como
Cristóvão Colombo, Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama, marquês de Pombal, Tiradentes,
José Bonifácio, Duque de Caxias, entre outros. Alguns dos fatos representados são: a
elevação da Cruz em Porto Seguro, o ataque holandês ao Nordeste, a aclamação de D. João
VI, o Grito do Ipiranga, a Guerra do Paraguai, a emancipação dos negros e a Proclamação da
República.
77
HARTOG, François. Régimes d´Historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, 2003. p. 117.
Sobre o moderno regime de historicidade, ver também: KOSELLECK, Reinhart. Le concept d´histoire. In:
L´expérience de L´histoire. Paris: Gallimard, 1997. p. 15-99 e ____. Futuro Passado. Para uma semántica de los
tiempos históricos. Barcelona, Buenos Aires, México: Paidos, s/d.
78
GALVÃO, Ramiz. Galeria de História Brasileira (1500-1900). Rio de Janeiro: H. Garnier, s/d. p. 1
57
Mesmo partilhando de determinadas preocupações que não estavam presentes na
Academia Real ou no trabalho do abade de Sever, Ramiz Galvão ainda pensava o passado
como exemplar. Nele estavam gravados os grandes personagens e fatos que mostravam o
valor de um determinado povo ou nação. Enquanto Barbosa Machado constituiu o seu rol de
reis, varões insignes e eventos portugueses (a sua coleção de exemplos morais), Galvão
produziu a sua galeria de personalidades e fatos marcantes da história nacional. Ambos
faziam um trabalho de memória uma memória aristocrática e outra nacional ao
estabelecer o que devia e o que não devia ser lembrado.
A semelhança entre os trabalhos de Ramiz Galvão e de Barbosa Machado poderiam
terminar aí, mas não terminam. Na galeria produzida pelo Barão de Ramiz, encontram-se
imagens de alguns reis portugueses diretamente ligados à história do Brasil, tais como D.
Manuel (monarca que reinava à época da descoberta do Brasil), D. João III (em cujo reinado
se iniciou a colonização na América portuguesa), D. Sebastião (período de expulsão dos
franceses e fundação do Rio de Janeiro), Felipes I, II e III (época em que o Brasil estava sob
domínio espanhol e momento também de luta contra os franceses e holandeses), D. João V
(elaboração do Tratado de Utrecht e período da mineração), além de outros. É importante
destacar que aquelas poderiam ser apenas imagens de reis portugueses, no entanto, as
gravuras selecionadas o, na realidade, cópias dos retratos que figuram na Coleção Barbosa
Machado. Ramiz Galvão não coordenou a restauração e o estudo de tal coleção, mas,
inclusive, aproveitou suas imagens no momento em que fez a Galeria da História Brasileira.
A “história nacional” de Ramiz Galvão não excluía, portanto, a presença portuguesa,
tampouco a considerava nociva. De acordo com Manoel Salgado,
Num processo muito próprio ao caso brasileiro, a construção da idéia de
nação não se assenta sobre uma oposição à antiga metrópole portuguesa:
muito ao contrário, a nova Nação brasileira se reconhece enquanto
continuadora de uma certa tarefa civilizadora iniciada pela colonização
portuguesa. (...) Parte significativa destes 27 fundadores pertencia a uma
58
geração nascida ainda em Portugal, vinda para o Brasil na esteira das
transformações produzidas na Europa em virtude da invasão napoleônica à
Península Ibérica. Tal experiência marcará certamente a socialização desta
geração, criada nos princípios de recusa ao ideário e práticas da Revolução
Francesa e de fidelidade à casa reinante de Bragança.
79
Ramiz Galvão tinha pelos portugueses e por Portugal um sentimento de admiração:
foi de lá que o Brasil recebeu a crença, a língua e a civilização.
80
Sua relação com o
imperador D. Pedro II é um indicativo disso. No entanto, seu esforço e empenho em estudar e
restaurar uma coleção feita para exaltar Portugal, sua monarquia e seus varões, também pode
ser compreendido pela admiração do membro do IHGB pelos portugueses e pela própria idéia
de buscar ligar as histórias lusa e brasileira.
O trabalho de Ramiz Galvão na Biblioteca Nacional e, sobretudo, as restaurações e
estudos que promoveu sobre a Coleção de Retratos foram de grande importância. Para
qualquer pesquisa que se faça sobre a mesma é indispensável passar pelo primeiro volume
dos Anais da Biblioteca Nacional, em que consta o artigo do bibliotecário sobre Diogo
Barbosa Machado, ou ainda pelos relatórios trimestrais da seção de iconografia, nos quais
Zephyrino Brum detalha o processo de restauração das imagens. No entanto, se o trabalho de
Galvão foi precursor, ele, todavia, não foi o único. Já no século XX, alguns bibliotecários
restauraram ou trabalharam de alguma maneira com a coleção do abade de Sever. Neste
momento, as principais mudanças se deram não na parte dos retratos cuja última
modificação foi feita nos tempos de Galvão –, mas nos folhetos e mapas. A bibliotecária
Rosemarie Horch se destaca neste processo, pois coube a ela fazer um catálogo de todos os
opúsculos da Coleção Barbosa Machado.
Assim como Lygia Cunha, bibliotecária a qual nos referimos anteriormente,
Rosemarie Horch estudou na Europa e começou a trabalhar com a coleção de opúsculos de
79
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos. O Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, p. 5-27, 1988. p. 2 e 6.
80
GALVÃO, Ramiz. Discurso que Proferiu em Honra da Officialidade da Canhoneira Portugueza Pátria na
Sessão Solenne de 15/10/1905. Rio de Janeiro: Cia Typographica do Brasil, 1905. p. 8
59
Barbosa Machado desde que entrou para a Biblioteca Nacional. Incumbida de fazer um
catálogo daquele acervo, a funcionária, quando tirou licença maternidade, pode transportar
para casa vários dos volumes daquela coleção. Em 1956, ano em que se mudou para São
Paulo, ela chegava a levar cerca de quatro ou cinco tomos dos folhetos para que seu trabalho
não fosse interrompido.
81
Apesar dos conhecidos problemas de segurança sofridos ainda hoje
pela Biblioteca Nacional, esta prática de retirar obras do prédio em que elas estão abrigadas
nos soa, atualmente, bastante estranha. No entanto, tal procedimento foi detalhado com muita
naturalidade pela funcionária. Outros tempos, em que a maneira de lidar e cuidar do acervo
era claramente diferente.
O catálogo produzido por Rosemarie saiu nos Anais da Biblioteca Nacional a partir de
1972 e hoje é referência para aqueles que procuram estudar algum assunto a partir dos
folhetos coligidos por Diogo Barbosa. No entanto, a maneira como este catálogo foi
produzido difere da forma como o bibliófilo setecentista organizou a sua coleção de
opúsculos. Conforme indicamos, a divisão proposta pelo abade era, sobretudo, temática.
Dessa forma, os folhetos eram selecionados por assuntos (genetilíacos, exéquias, notícias
militares etc) e, dentro de cada tomo, foram dispostos em ordem cronológica. No entanto, a
bibliotecária optou por catalogá-los não na ordem em que apareciam nos volumes, mas
cronologicamente, pois, assim, era possível perceber o desenvolvimento do interesse
português pelo Brasil.
82
Rosemarie teria trabalhado com os suportes originais dos livros que, de acordo com a
bibliotecária, estavam com a encadernação de couro em péssimo estado. Alguns tomos
encontravam-se amarrados, outros com várias folhas soltas. Nem todos os volumes estavam
do mesmo tamanho, no entanto, foram igualados pela encadernação.
81
HORCH, Rosemarie Erika. Entrevista a Rodrigo Bentes Monteiro. São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros
– USP, 20/10/2005.
82
Ibid.
60
Podemos perceber que, durante o tempo que permaneceu na Biblioteca Nacional a
coleção sofreu algumas modificações que, se a primeira vista podem parecer irrelevantes, elas
merecem ser ressaltadas, pois tratam-se de mudanças que alteraram a obra de seu artífice. A
Coleção Barbosa Machado foi, aos poucos, perdendo o seu caráter de compilação particular e
o abade de Sever foi esquecido como autor deste conjunto. Atualmente, não um catálogo
na Biblioteca Nacional que nos leve diretamente à coleção de Diogo, pois a sua classificação
ficou condicionada à Biblioteca Real. é possível saber se um livro era ou não da sua
livraria pessoal a partir do ex-libris do colecionador. Além desta, não nenhuma outra
referência nos fichários daquela instituição.
A coleção foi ainda, durante o século XIX, separada dentro das diversas seções da
Biblioteca Nacional, o que a fez perder o seu caráter de uma coleção completa. Hoje, no
máximo, pensa-se em três conjuntos separados o de retratos, de opúsculos e de mapas
pois eles foram preservados em setores diferentes, respectivamente Iconografia, Obras Raras
e Cartografia. A obra de Barbosa Machado acabou sendo utilizada, sobretudo a partir do
catálogo cronológico de Rosemarie Horch, para estudar assuntos isolados, referentes à
história do Brasil ou à história da monarquia portuguesa. Não é levado em conta, portanto, o
processo de preservação desses folhetos e de constituição dos mesmos como fontes. O
catálogo da bibliotecária, embora muito útil como instrumento de pesquisa para os
estudiosos, acabou não preservando a classificação projetada pelo colecionador dos
opúsculos.
Alguns materiais, isoladamente, também sofreram modificações. Um folheto sobre D.
Pedro II que comportava várias gravuras deste monarca acabou desmembrado, pois as
imagens estavam dobradas, prejudicando a sua conservação. Elas foram levadas para a seção
de iconografia. Algo semelhante aconteceu com os mapas. Lygia Cunha afirma que estes
materiais da Coleção Barbosa Machado formavam apenas um volume. Atualmente, a chefe
61
da seção de cartografia, Maria Dulce de Faria, vem separando cada mapa, tirando-os da
encadernação original. Por serem muito grandes, eles encontravam-se dobrados dentro do
tomo. Agora eles são preservados abertos e em gavetas.
83
Conhecer estas modificações é importante, em primeiro lugar, para lidarmos melhor
com a coleção. É preciso entender que ela mesma possui uma história. No entanto, este
acervo também nos remete à história da conservação e da biblioteconomia no Brasil.
Enquanto Ramiz Galvão interessava-se em preservar o mais próximo possível do original,
camuflando, inclusive, as alterações e acréscimos feitos posteriormente pelos bibliotecários
(vale lembrar que, segundo Zephyrino Brum, o reparo foi feito de forma tão perfeita que
tornava-se difícil descobrir as diferenças entre o original e o restaurado), os bibliotecários do
século XX pareciam mais interessados em preservar os objetos da coleção, ainda que para
isso fosse necessário interferir neles. Por outro lado, não devemos tomar isso rigidamente,
pois é preciso lembrar que, durante a gestão de Ramiz Galvão, os volumes dos retratos
referentes aos varões insignes europeus acabaram sendo incorporados aos seis volumes de
gravuras sobre a história portuguesa. Parece que a coleção acabou, ao longo da sua história,
sendo reelaborada por outros artífices.
Estas questões em torno da restauração e das modificações sofridas pela coleção nos
remetem à oposição que, geralmente, se faz entre o francês Eugène Emmanuel Viollet-Le-
Duc e o inglês John Rusken. Enquanto este último pregava o absoluto respeito pela matéria
original, enfatizando que a atitude diante dos documentos vindos do passado deveria ser
apenas de conservação e contemplação, Viollet-Le-Duc, por outro lado, não se contentava,
como restaurador, em fazer uma reconstituição hipotética do estado de origem”, mas
procurava refazer ou restaurar qualquer coisa pensando como os homens de outrora teriam
83
Cf. CUNHA, Lygia da Fonseca Fernandes da. Entrevista a Rodrigo Bentes Monteiro e Ana Paula Sampaio
Caldeira. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – 02/03/2005.
62
feito se detivessem os conhecimentos e as experiências dos homens de sua própria época.
84
Como proceder, então? Restaurar, mas com o compromisso de preservar como na forma
original, mesmo que isso significasse comprometer a preservação do documento? Ou
restaurá-lo, utilizando técnicas novas ainda que signifique interferir na originalidade do
material? Mas restaurar, em qualquer uma das opções, já não é, necessariamente, interferir no
original? Parece que tanto Ramiz Galvão e Zephyrino Brum quanto Lygia Cunha, Rosemarie
Horch e Maria Dulce de Faria, em algum momento de suas trajetórias profissionais, tiveram
de se deparar com essas questões. A tendência atual dos bibliotecários e restauradores é
interferir minimamente no objeto, o que nos permite dizer que uma restauração nos moldes
da de Zephyrino Brum seria quase totalmente descartada atualmente por ser considerada
falsificação. No entanto, curiosamente percebemos que, mesmo hoje, esta tendência não é
tomada sempre de forma rigorosa e absoluta.
A história da Coleção Diogo Barbosa Machado ultrapassa, portanto, a vida de seu
autor e compilador. Ela não nos remete à maneira como o século XVIII relacionava-se
com o passado e o futuro, mas também à forma como, posteriormente, os funcionários da
Biblioteca Imperial e da Biblioteca Nacional elaboravam a sua experiência do tempo a partir
do seu trabalho diário com os materiais herdados do passado, entre eles esta coleção. Neste
capítulo, procuramos, inicialmente, fazer uma tipologia da coleção e lançar algumas hipóteses
sobre a maneira como ela poderia ter sido montada. Em segundo lugar, procuramos destacar
as semelhanças e diferenças entre os trabalhos e as perspectivas a respeito da história de
Barbosa Machado e Ramiz Galvão. Se, no século XVIII, a história tinha a função de fornecer
exemplos, no século XIX, ela passou a ser uma ciência exercida por um profissional, o
historiador, capaz de analisar e de lançar luz sobre os fatos do passado. Mas, como
destacamos, no caso do IHGB e, mais especificamente, de Ramiz Galvão – os exemplos do
84
KÜHL, Beatriz Mugarjar. Introdução. In: VIOLLET-LE-DUC, Eugéne Emmanuel. Restauração. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2000. p. 18-9.
63
passado continuavam válidos para o presente caminhar para o progresso. A história magistra,
a pesquisa e o contato com os documentos como critério para estabelecer uma verdade
podiam ser encontradas nos dois momentos, mas as questões que estas épocas lançavam
sobre o passado, as demandas em relação à tarefa do historiador e, sobretudo, a maneira como
elas se percebiam em relação a um tempo que passou mudaram substancialmente de um
período para o outro. Adentrando o século XX, mas não abandonando o Oitocentos,
procuramos, posteriormente, mostrar as alterações sofridas pela coleção por meio das
restaurações e catalogações. Vimos como este acervo se alterou, sobretudo no que se refere à
organização original proposta por Barbosa Machado, ganhando não apenas modificações em
sua estrutura e composição, mas também novos significados.
64
CAPÍTULO 2:
A COLEÇÃO COMO ARQUIVO
65
(...) os arquivos constituem os lugares menos inocentes que se podem
encontrar, pois, de fato, são depósitos que forjam uma memória e, ao
mesmo tempo, apagam outra. A idéia do arquivo como lugar de construção
de memória, e não unicamente depósito dela, me parece muito eloqüente
nesta circunstância. No fundo, encontramos apenas no arquivo o que está
nos esperando, o que há séculos está disposto com todo o cuidado para que
encontremos.
(BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. Entrevista. Topoi, v.4, n. 7, jul-dez. 2003,
p.359.)
Documento: prova, testemunho (...). papéis com que nas demandas se prova
a sua razão (...).
(BLUTEAU, Raphael. Documento. In: Vocabulário Português e Latino,
Áulico, Anatômico... Coimbra: Colégio das Artes da Cia de Jesus, 1712, v.3).
Como vimos no capítulo anterior, a Coleção Diogo Barbosa Machado teve uma longa
história, passando pelas mãos não só daquele erudito, mas também de técnicos e bibliotecários
que, décadas depois, debruçaram-se sobre aqueles materiais. Ela foi montada de acordo com
as demandas do século XVIII, mas acabou sofrendo a interferência de profissionais nos
séculos XIX e XX, tendo sido consideravelmente modificada por eles. Neste capítulo,
permaneceremos no Setecentos a fim de aprofundarmos as relações entre a constituição deste
conjunto de materiais e dois elementos essenciais para entendermos o interesse histórico do
período: a formação da Academia Real da História Portuguesa e a preocupação em relação
aos vestígios do passado, expressa, sobretudo pelo Decreto de 1721, que visava conservar as
antiguidades portuguesas com o objetivo de utilizá-las para a tarefa de escrever a história
eclesiástica e secular de Portugal e de suas conquistas.
Dessa forma, estruturamos este capítulo da seguinte maneira. Em primeiro lugar,
tentamos estabelecer uma relação entre a Academia Real da História, o Decreto de 1721 e o
conjunto de materiais compilados por nosso abade, adentrando, assim, o ambiente letrado do
século XVIII português e discutindo o projeto historiográfico daquela recém-fundada
instituição. Nosso objetivo foi localizar a coleção dentro de um conjunto de questões da época
e, sobretudo, dentro de uma proposta de escrita da história pautada não mais na tradição, mas
66
nos testemunhos e na documentação, o que explica o interesse daqueles letrados em constituir
coleções. Em seguida, voltamos um pouco no tempo, e, acompanhados do erudito seiscentista
Manoel Severim de Faria, veremos que a própria Academia Real e Barbosa Machado se
inseriam em um ambiente letrado que não nasceu junto com aquela instituição, mas lhe era
anterior. A história já havia se instalado entre os homens da Igreja e do governo português, de
onde, algumas décadas depois, sairiam os membros da Real Academia. Por fim, veremos que,
dentro de uma proposta historiográfica pautada em testemunhos, a coleção do abade de Sever
pode ser entendida como um arquivo que poderia servir ao projeto de escrita da história da
Academia Real. Dessa forma, coube-nos, então, adentrar neste arquivo e evidenciar os
critérios que Barbosa Machado utilizou para organizar os documentos amealhados por ele
durante décadas.
A Academia, o Decreto e o projeto de uma escrita da história pautada em documentos
O surgimento da Academia Real da História e a promulgação do Decreto de 1721
devem ser entendidos dentro de um movimento de interesse pelo passado percebido,
sobretudo, durante o reinado de D. João V. Como veremos adiante, esse interesse não foi
específico do período joanino. No entanto, naquele momento, a história ganhou uma
dimensão institucional com a formação de uma academia própria.
A idéia de fundar a Academia Real não nasceu propriamente do rei, mas deveu-se,
principalmente, ao esforço de um grupo erudito, particularmente Manuel Caetano de Sousa
que, entrando em contato com a república das letras européia por meio de viagens à França e
à Itália, apresentou ao monarca a possibilidade de escrever a história eclesiástica de Portugal.
A proposta foi rapidamente aceita por D. João, que escolheu o próprio Caetano de Sousa
como o membro número um da recém fundada instituição. O recorte pautado apenas na
67
história eclesiástica de Portugal acabou por se expandir, pois, de acordo com Manoel Telles
da Sylva, toda a história lusa se achava diminuta, imperfeita e incompleta”.
85
Assim, o
projeto acadêmico acabou englobando também a história secular do reino, dividida de acordo
com seus reinados. Para tal empresa, muitos eruditos foram convocados como membros
numerários (residentes em Lisboa) ou supranumerários (residentes em outras cidades ou ainda
nas terras do Ultramar). uma certa diversidade no que se refere aos acadêmicos. Temos
neste grupo Diogo Barbosa Machado, erudito modesto, ligado à proteção do marquês de
Abrantes, mas também homens como Pedro de Almeida Portugal (conde de Assumar) e
Martinho de Pina e Proença, nomes importantes no que se refere à política ultramarina da
época.
86
Além destes e do citado Manuel Caetano de Sousa, Francisco Xavier de Meneses,
conde da Ericeira, tinha uma grande importância naquele ambiente letrado. Isto se deve,
sobretudo, ao incentivo de longa data que os integrantes de sua família deram ao
desenvolvimento de grupos literários e eruditos em Portugal, como a Academia dos
Generosos, fundada em 1647. Alguns ambientes eruditos foram criados ao longo do século
XVII, como a Academia dos Titulares, formada em 1661, e a dos Solitários, instituída em
Santarém no ano de 1664. De acordo com Diogo Ramada Curto, essas iniciativas eram de
caráter privado, diferente da Academia Real de História, constituída no século seguinte por
um interesse da realeza e financiada pelo monarca, que chegava, inclusive, a participar de
algumas de suas sessões.
87
85
SYLVA, Manoel Telles da. Historia da Academia Real da Historia Portugueza. Lisboa: Officina de Joseph
Antonio da Sylva, 1727, v.1. Prólogo
86
Pedro de Almeida Portugal, marquês de Alorna e conde de Assumar, nasceu em 1688. Barbosa Machado
nos informa que ele foi exímio conhecedor de línguas, matemáticas e história eclesiástica e profana, a ponto de
ser nomeado, em 1733, para os quadros da Academia Real. Mas a sua vida não foi apenas dedicada às letras. Ele
participou da Guerra de Sucessão Espanhola e, graças ao seu amor à pátria, foi nomeado, em 1717, Governador
das Minas. Em 1744, foi eleito Vice-Rei da Índia com o título de marquês de Castelo Novo. Martinho de
Mendonça de Pina e Proença, por sua vez, foi fidalgo da Casa Real e membro do Conselho Ultramarino.
Também dedicou-se às musas, tendo sido, de acordo com nosso abade, um homem de grande intelecto e
conhecedor das línguas latina, grega, francesa, italiana e inglesa. (MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca
Lusitana. Lisboa ocidental: Officina de Antonio Isidoro da Fonseca, 1747, v. 3. p. 441 e 552-3).
87
CURTO, Diogo Ramada. O Discurso político em Portugal (1600-1650). Lisboa: Universidade Aberta, 1988.
p. 98.
68
A Academia Real de História foi objeto de estudo de alguns poucos historiadores.
Joaquim Veríssimo Serrão e Antonio de Oliveira Marques em suas obras sobre historiografia
portuguesa passaram rapidamente pela existência daquela instituição.
88
Oliveira Marques
dedicou pouquíssimas páginas de seu livro Ensaios de Historiografia Portuguesa à Academia
Real, entendida por ele como o “derradeiro florescimento da historiografia absolutista
clerical”.
89
Seu fim simbolizou o término de um período historiográfico e o surto de outro, o
dos homens das “luzes”, em que, do mero registro dos fatos e da compilação de eventos,
passou-se à elaboração de uma visão harmoniosa da civilização e a uma interpretação
filosófica da humanidade. Veríssimo Serrão, por sua vez, explicou o “surto historiográfico”
do momento pela idéia vigente de que a história era tida como um elemento fundamental para
valorizar o próprio tempo, tornando os homens mais doutos e felizes.
90
Sua obra é introdutória
e informativa e, na verdade, o autor se preocupou apenas em fazer um inventário de
historiadores e suas obras. Por outro lado, no que se refere à Real Academia, ele ainda
mostrou como o seu surgimento e o culto ao passado eram associados a outras iniciativas,
como a defesa da língua portuguesa, a preservação de monumentos e a organização interna
dos arquivos. Veríssimo Serrão enfatizou a idéia de que a Academia Real não surgiu ex nihilo,
mas “foi uma forma concreta de um ideal de cultura que pairava no ar e correspondia aos
anseios daqueles homens”.
91
De modo geral, as academias literárias que antecederam a
Academia Real da História exemplificavam, de acordo com este autor, esse “ideal de
cultura”.
Entretanto, o trabalho mais importante sobre a Academia Real da História foi
produzido por Isabel Ferreira da Mota. Seguindo os passos dos autores anteriores, a
historiadora desenvolveu uma tese de doutoramento muito detalhada e pautada em uma
88
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. A Historiografia Portuguesa. Doutrina e Crítica. Vol.3. Lisboa: Verbo, 1974 e
MARQUES, A. H. de Oliveira. Ensaios de Historiografia Portuguesa. Lisboa: Palas Editores, 1988.
89
MARQUES, A. H. de Oliveira. Op. Cit. p. 27.
90
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Op. Cit. p. 10.
91
Ibid. p. 62.
69
volumosa documentação. Ela destacou o papel da Academia, seu projeto, inovações e sua
importância para a delimitação de um campo historiográfico em Portugal. Dentre outras
coisas, enfatizou que aquela instituição nasceu estreitamente comprometida com a monarquia
lusitana, seja em relação aos seus rituais acadêmicos, seja em seu projeto historiográfico.
92
Em relação aos rituais acadêmicos, para Isabel Mota, o rei parecia estar consciente de
que os modos de implantação da Real Academia eram, paralelamente, modos de implantação
do seu poder. Esta função de exaltação real não se restringia apenas à academia portuguesa.
No século anterior, mais precisamente em 1660, foi fundada na França uma instituição
consagrada à glória do rei, a Académie Royale des Inscriptions et Belles-Lettres. Seus
membros produziam várias representações do monarca através de retratos, medalhas que
mandavam cunhar, panegíricos e orações que recitavam e narrativas históricas.
93
No caso
português, os acadêmicos, além de trabalharem nestas atividades, ainda estavam à frente de
importantes rituais que organizavam o relacionamento entre a Academia, o rei e seus súditos.
destacamos que eles se reuniam duas vezes por ano, uma para comemorar o aniversário do
rei, outra, o da rainha. Aquele era o espaço de exaltação da monarquia. Era o momento não só
de representar uma ordem e uma hierarquia que engrandecia o rei e determinava o lugar de
92
MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real da História. Os intelectuais, o poder cultural e o poder
monárquico no século XVIII. Coimbra: Edições Minerva Coimbra, 2003. Outra autora que, a partir dos estudos
de Isabel Mota, ressaltou a importância e os projetos da Real Academia foi Íris Kantor. No entanto, seu objeto de
pesquisa não foi propriamente esta instituição, mas as Academias dos Esquecidos e dos Renascidos, fundadas na
América Portuguesa entre 1724 e 1759. É importante citar ainda, no que e refere à preocupação com questões
como a ritualidade do poder no período de D. João V, os trabalhos de Ana Cristina Araújo. Em um artigo, a
historiadora destaca que “o jogo metafórico da linguagem política, derramado na visão hiperbólica da vivencia
cotidiana do príncipe, é fixado pelas festividades típicas da sociabilidade cortesã e, de modo especial, pelas
comemorações de aniversários, casamentos e funerais de membros da família real”. A imagem do rei era
elaborada para os seus súditos nas festas oferecidas nos palácios, casamentos, aniversários e em diversas outras
ocasiões. Eventos que deveriam ser grandiosos assim como o príncipe era grandioso. A citação do trabalho de
Ana Cristina Araújo é interessante, pois os responsáveis por trabalhos como decoração, representação,
configurações de imagens eram acadêmicos-historiadores. Longe de ser um trabalho de escrita solitária, ser
historiador, naquele momento significava trabalhar em equipe, para elaborar uma imagem do rei. KANTOR, Íris.
Esquecidos e Renascidos. Historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759). São Paulo: Hucitec; Salvador:
Centro de Estudos Baianos/ UFBA, 2004; ARAÚJO, Ana Cristina. Ritualidade e Poder na Corte de D. João V. A
gênese simbólica do regalismo político. Revista de História das Idéias, Coimbra, v. 22, 2001, p. 175-208.
93
MOTA, Isabel Ferreira da. Op. Cit. p. 100
70
cada súdito, mas de produzir e confirmar esta mesma ordem nos discursos, gestos e atitudes.
De acordo com Isabel Mota:
A Academia Real da História é uma instituição fundamental para a
implementação e dominação de um valor e uma crença que é a da soberania
régia e, através de seus membros, instituição fundamental para a construção
do Estado Moderno centralizado, como instituição formadora e difusora de
funcionários competentes e leais à Coroa. (...) [A Academia Real] delineia
imagens, valores e modelos culturais que se vão interiorizando, das quais
destaca-se a imagem do rei e o valor da história.
94
Isabel Mota ressalta, portanto, as contribuições da Real Academia para a construção
das representações sociais no reinado de D. João V. Aquela instituição projetou uma imagem
poderosa, sagrada e absoluta do rei, impondo aí, segundo a autora, uma tradição que veio
eclodir no chamado “despotismo pombalino”. O rei preocupava-se com a sua imagem frente
aos súditos. Mais do que isso, preocupava-se com que imagem ele e seus antepassados
poderiam legar para o futuro. Neste sentido, a tarefa de resolver estas questões coube à recém
fundada academia. Era sua função pensar, por exemplo, o modo como príncipes e monarcas
deveriam ser representados nas gravuras. O retrato da família real tornava-se uma questão de
Estado, pois projetava uma imagem de um determinado reinado não para os vassalos do
presente, mas do futuro. Se quisermos ir além do reino, essa imagem era construída ainda para
os súditos de outras regiões do império muitos dos quais teriam a chance de visualizar o
rei por meio dos retratos e para os demais reinos europeus, principalmente se considerarmos
o intercâmbio de imagens e documentos entre os eruditos de uma República das letras
européia.
95
94
Ibid. p. 282.
95
Ana Paula Megiani, em seus trabalhos recentes, tem se dedicado a pensar os círculos letrados portugueses e
suas conexões por todo o império. Sobre o assunto ver MEGIANI, Ana Paula. Política e letras no tempo dos
Filipes: o Império português e as conexões de Manoel Severim de Faria e Luís Mendes de Vasconcelos. In:
BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Lúcia Amaral (Org.). Modos de Governar. Idéias e práticas políticas no
Império português. Séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. p. 239-56.
71
No referente ao projeto de escrita da história da Academia Real, a exaltação da
monarquia e das glórias da monarquia portuguesa também era a tônica da instituição. Um dos
objetivos principais ao se escrever a história eclesiástica e secular do reino, era tirar do
esquecimento aqueles vassalos que contribuíram para a grandeza da monarquia, e ainda juntar
e organizar notícias espalhadas a respeito de Portugal e suas possessões. Seus acadêmicos
numerários e supranumerários ficaram responsáveis por recolher materiais que contribuiriam
na tarefa de escrever as memórias históricas das várias regiões do Império. A preocupação
com a história do Império português significava que o projeto acadêmico se interessava pelos
feitos dos portugueses em todas as partes do mundo e não propriamente no reino, daí a
necessidade de se recolher notícias das várias regiões.
Essas notícias, no entanto, pareciam um pouco nebulosas. Dessa forma, também
competia aos acadêmicos esclarecer determinadas dúvidas que pudessem surgir a partir da
coleta de materiais e informações. O lugar de nascimento de alguns personagens considerados
importantes para a história portuguesa, por exemplo, não era conhecido ou bem definido. Era
preciso pesquisar sobre a origem de certos homens e mulheres para saber se eles eram ou não,
de fato, portugueses. O objetivo era evitar correr o risco de exaltar santos, prelados e varões
pertencentes a outro reino, talvez até rival a Portugal. Um exemplo destes personagens é São
Frutuoso, arcebispo de Braga, confundido com o abade de Constantim, de mesmo nome.
Outra santa cuja vida trazia alguns pontos duvidosos era Wilgeforte. Os acadêmicos
perguntavam-se em que região teria nascido aquela mártir e se ela e a Santa Liberata de
Siguença, eram a mesma pessoa.
96
A contenda talvez não tenha se resolvido, pois embora
tenha sido incorporada à coleção de Barbosa Machado no tomo dos retratos relativo aos
96
SYLVA, Manoel Telles da. Op. Cit. p. 116.
72
varões insignes em virtudes e dignidades, os dois nomes, Liberata e Wilgeforte, aparecem nas
gravuras.
97
Ao escrever sobre a Academia Real, Manuel Teles da Silva afirmava que aquela
instituição aparecia para produzir uma história “completa e verdadeira”, tentando marcar
uma escrita diferente daquela caracterizada como “tosca e antiquada” elaborada pelos
cronistas, que até então tinham a função de narrar os acontecimentos do passado. Isabel Mota
ressalta que, com a fundação da Real Academia, um declínio dos croniciados, muito
embora tal cargo tenha sido preservado.
98
A título de exemplo, convém destacar que José
Barbosa, irmão de Diogo, exerceu tal função como cronista da Casa de Bragança. No entanto,
os próprios acadêmicos reais diferenciavam o seu trabalho daquele pelo fato da sua proposta
de escrita da história se pautar, principalmente, em documentos. Os arquivos, cartórios,
cabidos das catedrais, conventos, câmaras e comarcas do reino, deveriam fornecer aos
eruditos da Real Academia notícias que esclarecessem dúvidas como: quando e por quem
foram fundadas as paróquias, capelas e dioceses? Havia, naquela região, santuários de
relíquias insignes ou imagens milagrosas? Que procissões eram feitas na cidade? Que varões
insignes em virtudes ou letras eram naturais daquela cidade? Quem foram os prelados da
diocese? Que memórias de suas virtudes? Recomendava-se ainda o inventário dos
documentos, como bulas, privilégios, doações e testamentos, e também se esperava que os
párocos copiassem os letreiros das sepulturas, capelas e armas.
99
O objetivo de todo este
trabalho era tirar a menor sombra de falsidade das narrações dos acontecimentos da história
secular e eclesiástica de Portugal. Para isso, era preciso ir aos documentos, organizá-los,
verificar os verdadeiros e falsos para, então, montar as memórias do reino.
97
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Retratos de Varões Portugueses insignes em Virtudes e Dignidades. Rio
de Janeiro, Biblioteca Nacional. p. 30.
98
MOTA, Isabel Ferreira da. Op. Cit.
99
SYLVA, Manoel Telles da. Prólogo. In: Op. Cit.
73
Para desenvolver suas memórias e seu trabalho, os eruditos precisavam de
documentação e, neste sentido, puderam contar com a iniciativa de D. João V. Sobre este
assunto, Manuel Teles da Silva afirmou, exaltando, é claro, o mecenas da Academia: “não
poderia certamente melhorar a nossa historia sem o socorro do braço real”.
100
O monarca
tomou duas medidas importantes para que os eruditos pudessem levar a cabo o projeto
historiográfico pretendido. Em primeiro lugar, conferiu aos acadêmicos o direito de livre
acesso a qualquer arquivo do reino, nomeando, inclusive, alguns daqueles eruditos para cuidar
da sua organização. E, em segundo lugar, favoreceu, a partir do decreto promulgado em 13 de
agosto de 1721, a preservação de monumentos e restos arqueológicos que permitissem o
conhecimento do passado português.
O objetivo do Decreto de 1721 era preservar monumentos, estátuas, moedas e todos os
outros vestígios, mesmo ruínas, de um passado lusitano. Esse passado ao qual o decreto se
referia foi também claramente estabelecido, uma vez que compreendia os seguintes povos que
habitaram outrora Portugal: fenícios, gregos, persas, romanos, godos e arábios. Vejamos o que
diz o decreto:
Por me representarem o director, e censores da Academia Real da Historia
Portugueza, eclesiástica, e secular, que procurando examinar por si, e pelos
acadêmicos os monumentos antigos que havia, se podiam descobrir no
reyno, dos tempos em que nelle dominarão os Fenices, Gregos, Persas,
Romanos, Godos e Arabios, se achava que muitos que puderão existir nos
edifícios, estátuas, mármores, cippos, laminas, chapas, medalhas, moedas e
outros artefactos, por incúria e ignorância do vulgo se tinhão consumido,
perdendo-se por este modo um meyo muy próprio, e adquado, para verificar
muitas noticias da venerável antiguidade, assim sagrada como política; e
que seria muy conveniente à luz da verdade e conhecimento dos séculos
passados (...)
101
O argumento que justificava esta lei residia no desaparecimento e destruição dos sinais
de um tempo pretérito “pela incúria e ignorância do vulgo”. Cabe destacar que, em uma das
reuniões dos membros da Academia, fora iniciada uma discussão em que os acadêmicos
100
Ibid.
101
Decreto de D. João V de 13 de agosto de 1721. In: Academia Real da História Portuguesa e a sua Lei de
Proteção a Monumentos Arqueológicos. Lisboa: s/e, 1958.
74
perguntavam-se se os monumentos encontrados nas diversas regiões do reino deveriam
permanecer em seu ambiente de origem ou, antes, serem transportados para lugares mais
seguros, longe das pessoas incultas, que não conseguiam reconhecer aqueles materiais como
vestígios de um passado glorioso português.
102
É interessante observar como começava a se
constituir um olhar que separava o vulgo do acadêmico. O acadêmico conservava e entendia o
monumento como forma de conhecer o passado, ao contrário do vulgo que, ao invés de
preservar, conferia utilidade a uma coluna grega ou a uma panela dos tempos romanos. Estas
tarefas de recolher e resguardar não são naturais. Transformar os vestígios do passado em
materiais a partir dos quais se poderia conhecer algo é, antes de tudo, o trabalho de um olhar
construído em um dado momento por um grupo de eruditos, grupo este que estava à frente da
Real Academia e do qual fazia parte Diogo Barbosa Machado. O passado era percebido como
passível de conhecimento se fosse estudado a partir daquilo que dele ficou. A partir da recolha
dos restos era possível, na visão daqueles eruditos do setecentos, trazer os homens de volta à
vida e conhecê-los.
Reconhecer e recolher documentos pressupunha também saber como tratá-los. De
acordo com Íris Kantor, a partir do final do século XVII, a diplomática moderna trouxe
inovações importantes no que se refere à autenticação documental.
103
As novas técnicas foram
debatidas e, sobretudo, incorporadas ao trabalho dos acadêmicos reais portugueses, que
passaram a se preocupar em coletar documentação e organizar arquivos. As ações generosas e
heróicas dos vassalos em prol da glória do reino” seriam destacadas depois de
comprovadas pelo trabalho erudito de procura e reconhecimento dos testemunhos.
104
Dessa
forma, era função dos acadêmicos não só compilar os documentos necessários para escrever a
102
Ver SYLVA, Manoel Telles da. Op. Cit.
103
KANTOR, Íris. Op. Cit. p. 205.
104
Raphael Bluteau, em seu dicionário, define documentos como “provas, testemunhos, papéis”. Ele não usa a
palavra “fonte”, tampouco encontramos esta expressão nos documentos da Real Academia ou nos textos de seus
acadêmicos. BLUTEAU, Raphael. História. In: Vocabulário Português e Latino, Áulico, Anatômico... Coimbra:
Colégio das Artes da Cia de Jesus, 1712, v.3
75
história do reino, mas também lançar mão das técnicas modernas de autenticação documental
com o objetivo de separar os autores e documentos confiáveis dos duvidosos. Como destaca
Kantor, cabia aos membros daquela instituição classificar as fontes, distinguir os relatos
literários dos verídicos e excluir os milagres e tradições que não tivessem comprovação
documental.
105
Havia interesses políticos muito claros naquele empreendimento. Ainda de acordo
com Kantor, a Academia Real possuía feições geopolíticas e relacionava-se a uma conjuntura
posterior à chamada paz de Vestfália (1648). Nas suas palavras,
A concorrência entre as diversas potências européias teria levado Portugal a
munir-se com documentação comprobatória, investindo numa política
oficial de construção da memória histórica dos seus domínios
ultramarinos.
106
Com Vestfália, a diplomacia portuguesa foi obrigada a reformular a fundamentação
teológica da expansão marítima, uma vez que as justificativas religiosas pautadas nas
concessões papais (isto é, o Tratado de Tordesilhas e a Bula Inter Coetera) não mais surtiam
efeito frente às novas demandas de um cenário internacional. A história em seus diversos
gêneros passava a ser fundamental como uma justificativa para os interesses políticos dos
reinos europeus. Porém, não se tratava de qualquer história ou narrativa. Importava, agora,
que ela fosse pautada em documentos que confirmassem a legítima ocupação ou domínio, por
exemplo, de um território. Naquele momento, “configura-se um discurso mais secularizante
– de justificação do Império”.
107
Essa preocupação historiográfica não se restringiu apenas à Coroa portuguesa. Na
Espanha também podemos observar um movimento de interesse pela história, concretizado na
fundação, em 1738, da Real Academia de la Historia, interessada no estabelecimento rigoroso
105
KANTOR, Íris. Op. Cit. p. 205
106
Ibid. p. 19.
107
Ibid. p. 45-6.
76
dos fatos, na unificação das datas, na limpeza e crítica das fontes, na redação de memórias
eruditas, no empreendimento de coleções, entre outros objetivos que também podiam ser
encontrados entre os acadêmicos portugueses quase duas décadas antes.
108
No entanto, havia
pelos menos duas diferenças muito fortes entre as instituições ibéricas. Em primeiro lugar, a
Academia Portuguesa foi uma iniciativa da Coroa e era custodiada por ela, enquanto a
espanhola, de caráter cortesão, tinha apenas a proteção dos monarcas. Em segundo lugar,
aquela era uma instituição exclusivamente de história, enquanto esta se dedicava também às
ciências, às línguas e à poesia.
109
Vale ressaltar que essa especialização era bastante inovadora para os padrões europeus
da época, uma vez que esta matéria ainda não se constituía como um campo muito claro e
separado. As demais academias, como a espanhola, acabavam estudando não apenas história,
mas também poesia, física, política, entre outros assuntos. Isso é particularmente interessante
se pensarmos no esforço dos próprios acadêmicos portugueses em definir um espaço seu,
diferenciando, por exemplo, o que faziam do oficio dos poetas. O próprio Diogo Barbosa
Machado, em sua obra Memórias para a História de Portugal, que comprehendem o governo
delRey D. Sebastião, marcou esta distinção ao enfatizar a necessidade de documentos para
que uma história não saísse “defeituosa”. Para ele, havia um elemento fundamental que
distinguia o poeta do historiador: aquele fingia dentro dos limites do verossímil. Este último,
por sua vez, “é um fiel relator das ações passadas, das quais o mundo foi teatro”.
110
O
elemento de distinção entre o poeta e o historiador, segundo nosso antiquário, era o
compromisso deste último não com a imaginação, mas com a verdade. Aliás, a distinção feita
pelo Abade de Sever, sugere que ela se pautava menos na forma do texto produzido (prosa/
poesia) e mais no objetivo de cada um, historiador ou poeta. A “verdade” do historiador, por
108
Sobre a Academia espanhola, ver: MOYA, António Morales. La historiografia española del siglo XVIII.
Revista de Historia das Idéias, Coimbra, vol 18, p. 7-43, 1996.
109
KANTOR, Íris. Op. Cit. p.41
110
MACHADO, Diogo Barbosa. Prólogo. Memórias para a História de Portugal, que comprehendem o governo
delRey D. Sebastião. V. 1. Lisboa: Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1736.
77
seu turno, estava ligada a algo fundamental para os eruditos daquele momento: o uso de
documentos. Não cabia ao historiador inventar ou fingir para o deleite de seu leitor. Ele
deveria ter o compromisso de contar fielmente o que aconteceu. Para isso, possuía um
método: a crítica dos testemunhos. Toda a sua narrativa deveria se embasar em vestígios, e
este pré-requisito era, em várias oportunidades, ressaltado pelos membros da Real Academia.
Para o conde da Ericeira, membro ativo da instituição, o uso de documentos não
diferenciava o poeta dos historiadores, mas também historiadores antigos dos coevos. Dessa
forma, na famosa Querela entre Antigos e Modernos, para aquele nobre, os últimos saíam
vencedores, pois a pesquisa com documentos fazia-os ficar mais próximos de uma verdade.
111
Nas Notícias da Conferência que a Academia Real da Historia Portugueza fez em 12 de
fevereiro de 1722, a crítica documental é mencionada como “uma tocha acesa que ilustra e
guia pelos escuros caminhos da Antiguidade, discernindo o verdadeiro do falso, a história da
fábula e o que é antigo do moderno”.
112
É importante ressaltar que os cinqüenta membros da Real Academia não constituíam
um corpo homogêneo em matéria de concepção historiográfica. Havia um projeto de escrita
expresso nos estatutos, e se pretendia que ele fosse seguido pelo corpo de eruditos que
compunham a instituição. Mas isso não significava que fosse fechado ou que não existisse
espaço para o embate ou discussão em torno do conhecimento histórico entre seus membros.
De acordo com Norberto Cunha, parece claro que, com a Academia Real da História
Portuguesa, o argumento da tradição e da autoridade em matéria historiográfica foi perdendo
peso. Mas, dentro daquela instituição, havia diversas tendências. Entre os acadêmicos, ele
111
MENESES, Francisco Xavier de. Introducçam panegyrica na conferência pública da Academia Real da
Historia Portugueza, que se celebrou no Paço em presença de suas magestades, e altezas em 7 de setembro de
1721. Dia dos annos da rainha nossa senhora, recitada pelo conde da Ericeyra, que era director. [Lisboa: s/e,
1721]. In: MACHADO, Diogo Barbosa. (Org.) Op. Cit.
112
Notícias da Conferência que a Academia Real da Historia Portugueza fez em 12 de fevereiro de 1722. In:
Collecçam dos Documentos, estatutos, e memórias da Academia Real da Historia Portugueza que neste ano de
1722 a compuzerão, e se imprimirão por ordem dos seus censores. Dedicada a ElRey nosso senhor, seu
augustissimo protector e ordenada pelo conde de Villarmayor secretario da mesma academia. Lisboa
Occidental: Officina de Pascoal da Sylva, 1722.
78
destaca José da Cunha Brochado, cujo pensamento era muito moderno, se pensarmos a
maneira como nós hoje entendemos a história como conhecimento do passado. Para ele,
simplesmente não era possível ou viável usar o critério de verdade para a história: incertezas,
lacunas, paixões e sentimentos estavam presentes não no trabalho do historiador, mas
também nos autores que escreviam os livros e os documentos sobre os quais este último se
debruçava. A parcialidade era, portanto, uma marca da história, algo que não permitia ter a
verdade como fim último do trabalho do historiador. Por outro lado, para o fim último
destinado ao conhecimento histórico por Cunha Brochado a educação moral esse critério
de verdade não era o mais importante.
113
Mesmo com divergências dentro da Academia se era possível usar ou não o critério de
verdade para assuntos historiográficos, alguns de seus procedimentos parecem claros: 1) a
pesquisa descolava-se da autoridade da tradição para os documentos; 2) esses documentos
deveriam ser verificados, confrontados e mostrados pelos historiadores para os seus leitores;
3) a pesquisa com documentos era importante para a elaboração de uma história de cunho
moralizante.
Os documentos eram utilizados dentro de uma concepção de historia magistra,
certamente presente na Academia Real, e que pretendia exaltar os atos dignos de memória e
de sobrevivência ao tempo. De acordo com esta concepção, as ações exemplares,
comprovadas pelos documentos, seriam capazes de fazer crescer nos demais súditos o desejo
de apoiar e de lutar pela glória de seu reino. No entanto, estes atos valorosos não
necessariamente precisavam de documentos para serem encontrados, narrados e, assim,
servirem de inspiração. O que importa é o fato de, mesmo essa história magistra, não poder
prescindir de uma prova documental. Não havia problema nenhum para os historiadores
daquele momento em produzir uma história elogiosa e exultante. Pelo contrário, este era um
113
CUNHA, Norberto. Elites e Acadêmicos na Cultura Portuguesa Setecentista. Lisboa: Imprensa Nacional–
Casa da Moeda, 2000.
79
de seus papéis: tirar um personagem digno de lembrança do esquecimento e exaltar todas as
suas virtudes. No entanto, tornava-se fundamental que essas virtudes e vitórias fossem
procuradas não na tradição ou no “ouvir dizer”, mas nos vestígios e papéis deixados pelo
passado. Como lembra Norberto da Cunha,
a história desejável nos estatutos da Academia era a narrativa de heróis,
santos, de suas ações maravilhosas e exemplares. Um espelho moral.
Embora tendo por condição e fundamento a verdade dos fatos, sufragada
por documentos autênticos.
114
É importante pensar como este interesse pelos documentos não estava dissociado de
um certo uso político da história, já sugerido por Íris Kantor.
115
A partir dos vestígios um
reino poderia comprovar seus direitos políticos, sua soberania em relação a outro reino
(fundamental para o reino português, principalmente depois de ter passado pela experiência da
União das Coroas entre 1580 e 1640) e suas pretensões de posse de um território. Realçar o
valor dos vassalos portugueses e suas vitórias significava também provar que suas conquistas
do passado legitimavam no presente o domínio e a permanência lusitana em um lugar, ou
ainda a própria independência de Portugal em relação à Castela. Não foi por acaso, portanto, o
interesse da monarquia em relação ao seu passado e na exaltação de seus vassalos.
Blandine Kriegel também relaciona a Diplomática aos interesses políticos das
monarquias modernas, bem como da Igreja. A Diplomática como método capaz de
discriminar as fontes autênticas era, segundo a autora, uma ciência religiosa e do Estado.
Diante dos conflitos entre protestantes e católicos que marcaram a Idade Moderna, os
reformadores utilizaram bastante a erudição humanística e a pesquisa histórica para sustentar
a sua tese de perversão da Igreja Católica. Para defender-se, a Igreja Romana também se
114
Ibid. p. 14-5.
115
KANTOR, Íris. Op. Cit. Ver também KANTOR, Íris. A Academia Real da História Portuguesa e a defesa do
patrimônio ultramarino: da paz de Westfália ao Tratado de Madri (1648-1750). In: BICALHO, Maria Fernanda;
FERLINI, Lúcia Amaral (Org.). Modos de Governar. Idéias e práticas políticas no Império português. Séculos
XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. p. 257-76.
80
engajou na polêmica e começou um trabalho de coleta e reunião de textos que respaldassem
seus dogmas e sua supremacia.
116
Lógica semelhante pode ser implementada para entender o interesse das modernas
monarquias em relação ao seu passado. Segundo Blandine Kriegel, juristas, jurisconsultos e
genealogistas procuraram no arsenal dos arquivos os elementos jurídicos que confortassem as
pretensões das Coroas e os direitos dos reis. Da mesma maneira, famílias nobres buscavam
reencontrar provas de sua antiguidade e ilustrações da legitimidade de suas pretensões. No
caso português, o reconhecimento das virtudes de um varão do passado podia render boas
mercês aos membros de sua família no presente, o que explica o investimento da nobreza no
conhecimento de suas origens. Obras importantes neste sentido são História da Casa Real
Portuguesa e Memórias Históricas e Genealógicas dos Grandes do Reino, ambas de Manoel
Caetano de Sousa.
Neste sentido, os interesses políticos da monarquia lusitana pareciam abrir espaço para
um tipo de historiografia pautada não mais na tradição, mas nos testemunhos que tornavam-
se, então, fundamentais para as pretensões políticas de Portugal. O projeto historiográfico da
Real Academia deve ser entendido nesta chave interpretativa. No entanto, cremos que a
questão pode ser complexificada. Tomemos o que dizem os estatutos da Academia Real sobre
seus membros:
Se espera de hus, e outros historiadores, q ajustando quanto póde ser a
ordem dos tempos, e as regras mais seguras da critica erudita, ne por
preoccupação, ou desejo de adquirir gloria à Pátria, nem por indiscreta
piedade nem por adornar a historia com o que he raro, e plausível, defendão
os successos inverossímeis, sigão os authores, ou documentos, que na
melhor censura se tem por falsos; nem passando a outro extremo não menos
vicioso, por impiedade, ou gênio difícil se opponhão ao que se acha
solidamente estabelecido em títulos originais, e authenticos, em authores
contemporâneos, e estimados, em tradições bem fundadas, em milagres
approvados, e em rasoens demonstrativas. (grifo nosso)
117
116
KRIEGEL, Blandine. L´Histoire à l´Age Classique. La défaite de l´erudition. Paris: PUF, 1988, v.2. p. 59-72.
117
Estatutos da Academia Real da História. In: Collecçam dos Documentos, estatutos, e memórias da Academia
Real da Historia Portugueza que neste ano de 1721 a compuzerão, e se imprimirão por ordem dos seus
81
O trabalho acadêmico pressupunha um compromisso com a verdade que jamais
poderia se sobrepor ao desejo de elevar as glórias lusitanas. Isso implicava, como vimos, em
uma crítica aos documentos, descartando-se, portanto, os relatos falsos ou duvidosos, por
mais engrandecedores que fossem do passado do reino. Mas a citação abre espaço a um
porém. Os acadêmicos deveriam ter o cuidado de não cair em extremismos e colocar em
dúvida o solidamente estabelecido, isto é, uma certa tradição. Essa tradição estava expressa
nos três temas canônicos da história portuguesa. Embora a Academia defendesse o uso de
documentos e a crítica nos moldes da diplomática, havia temas que, para todos os acadêmicos,
deveriam ser incontestáveis. Numa das reuniões periódicas dos letrados, foi estabelecido que
“as Cortes de Lamego, o Juramento del rey Afonso Henriques e a Primazia de Braga se
devião mandar tratar por todos os acadêmicos, como factos verdadeiros, e indisputáveis (grifo
nosso).”
118
Como lembra Íris Kantor, entre 1702 e 1713, a Europa assistiu à Guerra de Sucessão
Espanhola e à possibilidade da união das coroas francesa e castelhana. Importava tornar a
separação entre Portugal e Espanha um princípio geoestrategicamente sagrado.
119
Afonso
Henriques, Ourique e Lamego eram mitos fundadores da monarquia portuguesa. Sua
aceitação tornava-se indispensável, pois legitimava a monarquia e a separava do trono
espanhol.
Centremo-nos na história de Afonso Henriques e no episódio do milagre de Ourique,
ao qual ela se liga. Trata-se de um mito bastante conhecido. A imagem do Cristo crucificado
teria aparecido a D. Afonso e lhe dito “quero em ti e em teus descendentes fundar para mim
um império”. Aquela passava a ser, portanto, a origem de um império fundado por Deus. No
censores. Dedicada a ElRey nosso senhor, seu augustissimo protector e ordenada pelo conde de Villarmayor
secretario da mesma academia. Lisboa Occidental: Officina de Pascoal da Sylva, 1721.
118
SYLVA, Manoel Telles da. Op. Cit. p. 93.
119
KANTOR, Íris. Op. Cit. p. 50
82
entanto, para se constituir como um mito das origens, essa história foi contada e recontada em
conjunturas políticas diferenciadas. De acordo com Luís Filipe Silvério Lima, as primeiras
versões em torno do milagre de Ourique foram elaboradas em fins do século XIV, perto do
momento da Revolução de Avis. Fundar o reino português como desígnio divino legitimava,
naquele contexto, a autonomia portuguesa frente à possibilidade de união com a coroa de
Castela. Afonso Henriques fora caracterizado, então, como um herói épico, à moda das
novelas de cavalaria, versão muito divulgada por escritores como Pedro de Mariz e Duarte
Galvão.
120
Em 1596, no entanto, foi encontrado no Cartório Real do Mosteiro de Alcobaça o
Juramento de Afonso Henriques, documento pretensamente redigido em 1152 que
comprovava a fundação miraculosa do reino português. Em um primeiro momento,
poderíamos pensar que a descoberta daquele testemunho bem como sua tradução e
divulgação para todo o império – poderia ter servido como elemento de contestação ao
domínio castelhano, afinal, desde 1580, Portugal era governado por um rei estrangeiro, Felipe
II de Espanha. Mas não foi bem assim. Quando Portugal se preparava para receber seu
monarca, imagens e edifícios foram construídos e alguns deles contavam a história da lenda
de Ourique. Embora fosse um rei castelhano, Felipe II era tido ali por portador legítimo das
armas lusitanas dadas por Cristo a D. Afonso.
121
O documento encontrado no mosteiro de Alcobaça possibilitou uma outra versão da
história de Afonso Henriques. Se até então ele era tido como um herói épico, a partir daquela
narrativa, fora transformado em um homem piedoso e o milagre de Ourique em sinal de sua
piedade. Esta versão mais religiosa e providencialista de D. Afonso foi desenvolvida pela
historiografia alcobacence e tornou-se fundamental para a leitura feita de outros dois
120
Sobre a lenda de Alfonso Henriques e a construção de seu mito, ver LIMA, Luís Filipe Silvério. O Império
dos Sonhos. Narrativas proféticas, sebastianismo e messianismo brigantino. São Paulo: USP, 2005. Tese
defendida pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Capítulo 3.
121
Ibid. p. 108.
83
momentos importantes da história portuguesa: a Revolução de Avis e a Restauração.
122
O
episódio de Ourique, tomado, então, como profecia, propunha, como destaca Luís Filipe
Silvério Lima, “uma temporalidade divinamente instruída e inspirada que direcionava todos
os sucessos do reino. A história era, assim, narrativa da profecia e continha todos os eventos
futuros”.
123
Os “dois monarcas”, isto é, o épico e o piedoso, se juntaram como as duas
faces de um mesmo personagem no século XVII, na Chronica de Cister, de Frei Bernardo de
Brito.
124
No século XVIII, a memória de Afonso Henriques continuava viva. D. João V e D.
José, seu sucessor, retomaram o processo de canonização daquele rei e mandaram coligir
provas do Milagre de Ourique,
125
afinal, aquele episódio poderia se transformar em uma
tradição ainda mais forte e indiscutível se devidamente comprovado. Mesmo uma questão
“sobrenatural” poderia ser comprovada documentalmente. Além disso, em 1727 foi publicada
a crônica de Duarte Galvão sobre D. Afonso, tendo sido censurados alguns capítulos que não
condiziam com a imagem que se pretendia divulgar sobre o rei fundador.
Dessa forma, consideramos difícil compreender o projeto acadêmico como
“científico”, como pretendeu Isabel Mota. Pelo menos não científico da maneira como
poderíamos conceber hoje. Pautado em documentos e na crítica, o trabalho daqueles
acadêmicos não excluía os milagres e o sobrenatural. Cremos que podemos falar em uma
apropriação dos procedimentos críticos da Diplomática em Portugal, apropriação esta que não
rejeitou necessariamente as tradições, nem tirou da história todo o seu lastro sagrado.
126
O
maravilhoso, presente na base de algumas tradições, além de compor o universo daqueles
homens, poderia servir a uma escrita historiográfica que não era desinteressada, e que, por sua
122
Ibid. p. 95.
123
Ibid. p. 131.
124
Ibid. p. 99.
125
ARAÚJO, Ana Cristina. Morte, memória e piedade barroca. Revista de História das Idéias, Coimbra, v. 11,
1989, p. 145-6.
126
CUNHA, Norberto Ferreira da. Op. Cit.
84
vez, ligava-se à monarquia. Era possível para os acadêmicos portugueses do Setecentos
aceitar sem muitos problemas o “maravilhoso” na história, desde que fosse estabelecido como
uma história comprovada. Ainda era possível a sua aceitação naquela historiografia,
principalmente em relação aos três mitos fundadores da Coroa. Não se tratavam, portanto,
apenas de uma questão de fé, mas também, de um tema político.
Milagres, religião, política, história. Elementos que se confundiam a partir dos
interesses e critérios da época em um plano historiográfico fluido. Parece-nos clara a
impossibilidade de pensar em um projeto racionalmente fechado para a Academia Real. A
história passava a ser pautada no critério da prova documental. No entanto, se para nós hoje
isso poderia levar a excluir o sagrado e as tradições, parece que, antes, este trabalho de
autenticação poderia levar a confirmar e legitimar tais tradições, pois havia relações muito
claras entre essa escrita historiográfica e a política real. Era importante que certas histórias e
rituais fossem comprovados. Ana Cristina Araújo nos fornece um exemplo interessante sobre
a unção de D. João V. Este ritual foi sustentado por meio de documentos considerados
irrefutáveis, confirmando que o Papa Martinho V, em 1428, permitiu aos monarcas de Avis
adotarem as solenidades do Pontificial Romano no ato da coroação sob a condição de
prestarem fidelidade à Santa Sé. Comprovada a autorização papal por meio de documentos, o
ritual foi retomado por D. João.
127
A questão do uso de documentos para se escrever a história de Portugal é, portanto,
fundamental para entender o projeto historiográfico da Real Academia e, inclusive, para
pensar como os pressupostos da Diplomática entraram em Portugal. Já ressaltamos a oração
proferida pelo conde da Ericeira na qual estabelecia uma diferença fundamental entre
historiadores antigos e modernos, o uso das fontes. Em outra oração, o mesmo acadêmico
propunha a seus pares que as memórias compostas por eles fossem feitas com documentos
127
ARAÚJO, Ana Cristina. Ritualidade e Poder na Corte de D. João V. A gênese simbólica do regalismo
político. Revista de História das Idéias, Coimbra, v. 22, 2001, p. 180-1.
85
impressos e manuscritos. Ademais, os autores das histórias e memórias deveriam colocar ao
final de cada volume os documentos e o título dos arquivos em que se basearam.
128
Para seguir esta recomendação, foram de grande serventia o Decreto de 1721 e a
autorização real de livre entrada em qualquer arquivo do reino. Mas era comum lermos
algumas reclamações vindas dos acadêmicos, justamente porque os supranumerários e os
órgãos das diversas regiões do reino não cumpriam a sua parte. No entanto, o que chegava às
mãos dos acadêmicos era selecionado, organizado, agrupado, selecionado para seus estudos e
passava, assim, a constituir um arquivo. Mesmo a Academia Real tinha um arquivo próprio,
que serviu para montar a sua Collecção de Documentos da Academia Real da Historia. Havia,
portanto, uma relação forte entre a escrita de memórias e histórias e a prática do colecionismo,
desenvolvida por vários membros da Academia Real, sobretudo Diogo Barbosa Machado. As
coleções deste momento possuíam um viés documental. Seus materiais passavam pelo crivo
de um confiável erudito, conhecedor dos procedimentos modernos de autenticação
documental.
A constituição de um ambiente erudito em Portugal e a busca por testemunhos do
passado
Raphael Bluteau, em seu dicionário, definiu a palavra coleção como “ajuntamento de
cousas”. Na verdade, se quisermos completar, um “ajuntamento” de papéis, medalhas,
imagens e outros tipos de objetos. A prática de “juntar coisas” foi ocupação de vários eruditos
da Real Academia. Como vimos, assim como Barbosa Machado, o conde da Ericeira, o duque
de Cadaval, o marquês de Abrantes e o próprio rei D. João V, dedicaram-se a juntar materiais
os mais diversos, fossem eles minerais, medalhas, moedas ou outras antiguidades. O enfoque,
128
SYLVA, Manoel Telles da. Op. Cit. p. 33-45.
86
contudo, eram objetos materiais, enquanto o abade de Sever preferiu textos escritos, imagens
e representações cartográficas. É preciso, no entanto, entender as práticas desses homens de
forma articulada. Em primeiro lugar, consideramos que o trabalho dentro da Academia Real
não pode ser desvinculado de outras atividades eruditas às quais os acadêmicos se dedicavam,
como a troca de correspondência ou mesmo a constituição de coleções pessoais. Elas devem
ser entendidas em conjunto, pois eram práticas de um ambiente letrado do século XVIII
português muito embora não tenham sido criadas naquele momento. Em segundo lugar, os
próprios eruditos eram relacionados, na medida em que formavam uma comunidade,
colecionavam e produziam textos não somente para si, mas para mostrar aos seus pares,
conseguir proteção, formar redes clientelares, enfim, realizar alguns de seus interesses
intelectuais e pessoais.
A constituição de um ambiente letrado em Portugal não data do culo XVIII,
tampouco da formação da Academia Real da História Portuguesa. A partir de estudos como
de Diogo Ramada Curto e, sobretudo, das pesquisas recentes de Ana Paula Megiani,
percebemos que uma rede de conexões e informações, bem como a constituição de bibliotecas
e coleções, existiam no século XVII e, de acordo com Curto, desde a segunda metade do
XVI as bibliotecas portuguesas conheceram várias formas de regulamentação. Mas é de fato
no Seiscentos que a “moda das livrarias” se difundiu em Portugal. “De Montaigne a Justo
Lípsio, de Gabriel Naudé a Vicente Nogueira as reflexões sobre a organização e catalogação
dos livros sucedem-se”.
129
Essas bibliotecas não se ligavam apenas às ordens religiosas, como
os jesuítas, ou a alguns colégios, mas também a particulares.
Não as livrarias faziam sucesso neste ambiente letrado do século XVII o qual,
para Curto, era fechado em torno de uma elite mas a própria troca de correspondência era
uma prática importante que articulava diversas partes do Império. Ana Paula Megiani enfatiza
129
CURTO, Diogo Ramada. Op. Cit. p. 110.
87
como este grupo letrado, espalhado pelas diversas regiões, através da troca de informações
por correspondência, construiu uma “memória que passaria a incorporar os novos espaços e
humanidades ao antigo mundo europeu”.
130
O conhecimento sobre uma terra, os costumes de
sua população, as riquezas a serem exploradas, entre outras informações, circulavam nas
cartas manuscritas dos eruditos e alimentavam determinadas imagens e representações sobre o
Novo Mundo. Um exemplo deste esforço intelectual é o erudito Manoel Severim de Faria
(1583-1655), Chantre de Évora e, segundo Megiani, responsável por uma rede de conexões e
informações com sede naquela cidade.
Severim de Faria figura na obra Bibliotheca Lusitana, de Barbosa Machado, a partir da
qual é possível conhecer alguns dados sobre a vida do erudito seiscentista. Ele teria
freqüentado a Universidade de Évora e alcançado ali o grau de teólogo. Acabou seguindo os
passos de seu tio, que também fora chantre da catedral eborense. Sobre as atividades de
Severim de Faria, Barbosa Machado nos informa que:
A nobre ambição de adquirir novas notícias, assim sagradas, como profanas o
impellia a continua lição da sagrada Escritura, e Theologia Mystica, como
tambem de Historia antiga, e moderna extendendo-se a sua applicação a
examinar as maximas da Politica, os pontos da Geografia, as dificuldades da
Chronologia, e as origens da Genealogia. Com igual dispendio, que eleição
juntou huma livraria mais estimavel pela qualidade que pelo numero
constando de livros rarissimos entre os quais se distinguiam as obras do
Infante D. Pedro, filho delRey D. João I impressas seis anos depois de
inventada a impressão em Basilea, a Chronica de D. Affonso Henriques da
letra original do grande André de Resende mais copiosa que a de Duarte
Galvão, as obras do insigne Fr. Luiz de Granada na lingoa japoneza, hum
volume escrito no antigo papyro do Egypto, outro em folhas de palma, e
abertos com estylo de ferro os caracteres; muitos volumes na lingoa Chinese
com preciosas encadernaçoens de varias sedas, e brochas de admiravel
artificio. Esta singular livraria (...) estava patente a todos os eruditos que
querião aproveitarse da sua lição (...).
131
130
MEGIANI, Ana Paula. Política e letras no tempo dos Filipes: o Império português e as conexões de Manoel
Severim de Faria e Luís Mendes de Vasconcelos. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Lúcia (Org.).
Modos de Governar. Idéias e práticas políticas no Império português. Séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda,
2005. p. 237.
131
MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana. Lisboa Occidental: Officina de Antonio Isidoro da
Fonseca, 1741-1759, 3v.
88
Severim de Faria era admirado por Barbosa Machado como o “mais célebre antiquário
de seu tempo”,
132
justamente pelo trabalho documental feito em arquivos e cartórios, pela sua
erudição histórica e pela crítica que usava, “não se deixando preocupar do amor da pátria para
lhe adoptar glorias fabulosas”.
133
Podemos supor que Barbosa Machado tenha tirado dali sua
inspiração, pois ele próprio destaca que Severim possuía bustos e efígies de personagens que
também constam na sua compilação pessoal, como o rei Wamba. Talvez a Coleção de Babosa
Machado tenha mais pontos comuns com a de Severim de Faria, feita um século antes,
também preocupada com a palavra escrita, do que com as de seus pares coevos.
134
São apenas
hipóteses, pois a comparação em Portugal se torna complicada quando muitas dessas coleção
se perderam em virtude do terremoto de 1755. Haveria a necessidade também de analisar
de forma mais detida a coleção de Manuel Severim, o que não constitui nosso objetivo. No
entanto, sabemos que ele ainda compôs várias obras de história, centradas nos reinados de D.
João II, D. Sebastião (que também foi objeto de estudo de Barbosa Machado), D. Henrique,
dos reis Felipes de Habsburgo e de D. João IV alguns dos quais também receberam a
atenção do nosso colecionador. Além dos monarcas, ocupou-se também em formar catálogos
dos prelados de Évora, dos bispos de algumas cidades, dedicando-se ainda a estabelecer a
árvore genealógica da Casa de Bragança.
Entre esses dois colecionadores existe ainda um ponto comum, além do desejo de
organização: o pertencimento à Igreja. Diogo Barbosa Machado exerceu funções na
hierarquia eclesiástica. Antes de ter sido nomeado presbítero e abade, ele pertenceu a uma
importante congregação, a do Oratório, dedicada aos estudos das letras e caracterizada pelo
incentivo às matérias filosóficas e às ciências físico-naturais. Esta congregação e a dos
132
Ibid.
133
Ibid.
134
Os materiais pertencentes à livraria de Severim de Faria não se resumem a documentos escritos. Segundo Ana
Paula Megiani, havia também raridades, medalhas, gravuras, peças, conchas, animais empalhados, couro, peles
de bicho e outros materiais, semelhante a um gabinete de curiosidades. MEGIANI, Ana Paula. Conexões e
informantes entre Portugal e as partes do Império no tempo dos Filipes: o circuito do chantre Manuel Severim de
Faria. Congresso Internacional O Espaço Atlântico de Antigo Regime: Poderes e Sociedades. Lisboa, 2 a 5 de
novembro de 2005.
89
religiosos beneditinos foram responsáveis por rios projetos enciclopédicos de reunião de
documentos, atas e notícias de dinastias, cidades, reinos e antiguidades.
135
Tratava-se de um
momento, como lembra Blandine Kriegel, em que a história estava intimamente ligada à
ciência religiosa. Nesse ambiente religioso das ordens a moderna crítica documental nascia e
se desenvolvia. Mabillon, tido como o pai da Diplomática, foi um beneditino da famosa
abadia de Saint-Germain-des-Prés, interessada em estudar seu próprio passado, os
manuscritos da ordem, as vidas de seus santos, entre outros assuntos. Entre 1655 e 1677,
foram compilados naquela abadia treze volumes in-quarto de documentos, incluindo cânones,
concílios, crônicas, histórias, hagiografias, correspondência, entre outros. Tratava-se de um
programa interessado em celebrar a ordem e defender a Igreja Católica dos ataques dos quais
era objeto na época.
136
Para isso, era necessário investigar, pesquisar, compilar provas e
documentos. Foi exatamente neste sentido que congregações como a dos beneditinos, dos
cistercienses e dos oratorianos agiram.
Barbosa Machado e Severim de Faria, embora separados por algumas décadas, tinham
alguns elementos em comum e uma formação religiosa que lhes garantia erudição e interesse
pelos assuntos referentes à história. Mais do que isso, essa formação lhes forneceu um método
de organização documental. Se confiarmos na descrição da biblioteca de Severim feita por
Diogo Barbosa, percebemos que o primeiro tinha interesse por vários assuntos históricos, mas
dedicou-se também ao passado português, tratando de temas e reinados que, mais tarde,
seriam objeto de estudo da Real Academia. Além disso, assim como Barbosa Machado, a
relação de Severim de Faria com a história passava pelos sentidos, pelo contato com os restos
do passado, pelo ato de guardar e ter por perto algo que fizesse recordar um tempo que
passou. Em outras palavras, ambos eram colecionadores, relacionavam-se com o passado e
lhe davam algum sentido a partir do contato visual e sensitivo com os testemunhos. Dezenas
135
DOMINGUES, Francisco Contente. Ilustração e Catolicismo. Teodoro de Almeida. Lisboa: Colibri, 1994 .p.
53; KRIEGEL, Blandine. Jean Mabillon. Paris: PUF, 1988, v.1.
136
Ibid. p. 32-33
90
de anos antes da Academia Real, Severim fazia sua coleta de documentação, sua
catalogação, isto é, seu arquivo e coleção. Não foi à toa que ele despertou tanta admiração em
Barbosa Machado. Podemos pensar então que a proposta da Real Academia se inseria em um
ambiente erudito já existente em Portugal entre os letrados e antiquários do século XVII. Uma
instituição historiográfica ligada à monarquia e com um projeto de escrita estabelecido, de
fato, nasce em 1720. Contudo, antes disso, a história havia se “instalado” entre os
eruditos portugueses, se quisermos tomar emprestado uma expressão de Blandine Kriegel.
137
Em primeiro lugar, havia se instalado nos meios religiosos. Não podemos esquecer o
trabalho dos religiosos do Mosteiro de Alcobaça, sobretudo o de Frei Antonio Brandão, na
elaboração de uma obra magna, a Monarchia Lusitana, redigida em português. A figura de
Severim de Faria é um bom exemplo de uma tradição de homens ligados à hierarquia
eclesiástica e também interessados no passado luso. Mesmo dentro da Real Academia de
História a presença de religiosos era marcante. Dos seus cinqüenta membros, pelos menos
vinte e quatro ligavam-se ao clero. Entre eles José Barbosa, Manuel Caetano de Sousa,
Antonio Caetano de Sousa e o próprio Diogo Barbosa Machado.
138
Na formação religiosa
destes homens era evidente o interesse pela história e uma espécie de “saber lidar” com os
vestígios passados.
Em segundo lugar, a história se instalou não apenas entre os religiosos, mas também
entre juristas e homens ligados ao governo. Ainda dentro da Academia temos os exemplos de
Diogo de Mendonça Corte-Real, Fernando Mascarenhas e Rodrigo Annes de Sá e Almeida.
139
137
KRIEGEL, Blandine. L´Histoire à l´Age Classique. La défaite de l´erudition. Paris: PUF, 1988, v.2. p. 130
138
Antonio Caetano de Sousa tornou-se clérigo regular da Divina Providência, tendo feito a sua profissão em
1671, aos 17 anos. José Barbosa aprendeu gramática, poesia e retórica no Colégio de Santo Antão, dos padres
jesuítas. Quando tinha apenas 14 anos, decidiu-se tornar clérigo regular teatino. Já Manuel Caetano de Sousa,
embora tenha aprendido as primeiras letras em casa, com o auxílio de sua avó, seguiu os estudos filosóficos no
mesmo colégio de Santo Antão. Seu pai insistiu para que continuasse a sua formação em Lisboa, mas o
acadêmico decidiu largar o século e abraçar a religião dos regulares teatinos em 1675, com apenas 17 anos.
(MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana. Lisboa Occidental: Officina de Antonio Isidoro da Fonseca,
1741-1759. v. 1, p. 230; v. 2, p. 825-9 e v. 3, p. 200-211, respectivamente).
139
Diogo de Mendonça Corte-Real estudou direito pontifício na Universidade de Coimbra, foi enviado
extraordinário à Holanda, provedor da Casa da Índia e conselheiro da Real Fazenda. Fernando Mascarenhas,
91
Assim como os religiosos, eles também viam a importância dos papéis e documentos. Neste
caso, não exatamente por conta de debates em torno de questões de fé, mas em questões
políticas, territoriais e assuntos de interesse monárquicos. Além disso, a posição social deste
grupo, como a do anterior, lhe dava acesso a papéis de vários tipos, seja a partir da sua própria
aquisição, seja através de contatos que poderiam estabelecer a fim de conseguir os
documentos de que necessitavam. No capítulo anterior, destacamos como o próprio Diogo
Barbosa conseguiu algumas de suas gravuras graças a conhecimentos que mantinha fora do
reino e a cartas que enviou a alguns de seus amigos, que lhe mandavam os retratos e
informações pedidas.
Eruditos ligados ao governo e à Igreja – eram eles que compunham os quadros da Real
Academia. Muitos ligados à alta nobreza, outros, como o próprio Barbosa Machado, tentando
angariar alguma posição e reconhecimento. A partir de seus estudos e contatos, eles obtinham
documentos e, mais do que isso, sabiam organizá-los e criticá-los. Trata-se de um projeto
pautado na idéia de exaustividade. Era necessário recolher tudo que se pudesse, de todas as
partes do reino, catalogar tudo, todos os nomes, abadias, dioceses e prelados. Era fundamental
definir os documentos, redigir dicionários, organizar, catalogar, colecionar. O que hoje
consideramos como o início da prática do historiador, isto é, a tarefa de procurar e selecionar
documentos, era, no século XVIII, a finalidade deste mesmo ofício. Ser historiador
significava repertoriar os papéis e restos materiais, verificar sua autenticidade, agrupar as
peças em unidades maiores e, em alguns casos, publicar os documentos. Tratava-se, portanto,
de um trabalho de composição de coleções que envolvia um grande número de eruditos
espalhados em diversas cidades. Este labor em equipe era, em alguns casos, feito nas abadias.
Em outros, em academias, como a portuguesa. Dentro delas, desenvolvia-se um trabalho de
marquês de Fronteira, foi governador de várias províncias, entre elas Beira e Alentejo, e conselheiro de Estado e
Guerra. Por fim, Rodrigo Annes de Sá Almeida, marquês de Abrantes e 3º marquês de Fontes, foi embaixador
em Roma, vedor da fazenda e embaixador extraordinário em Madri. (Ibid. vols 1 (p. 677), 2 (p. 36-7) e 3 (p. 637-
9), respectivamente).
92
erudição, de constituição de uma escrita da história associada ao trabalho colecionista. Como
lembra Kriegel, falamos de um momento em que as tarefas de antiquário e historiador
andavam de mãos dadas e a história era um conhecimento savant, um saber erudito cuja
função era recolher pacientemente os restos.
140
A existência de experiências passadas e de seus resquícios arqueológicos ou escritos,
não garante uma escrita da história.
141
Papéis, vasos, edifícios, colunas romanas, moedas,
nada disso tinha um valor documental intrínseco, mas lhes foram atribuídos este valor. O ato
de olhar estes resquícios e considerá-los testemunhos, objetos que nos permitem conhecer
algo (o passado), não era natural, mas datado, construído em dado momento. Quando o
Decreto de 1721 referiu-se à “incúria e ignorância do povo” e quando Martinho de Mendonça
perguntou o que fazer com as inscrições romanas gravadas em pedras encontradas em uma
região de Portugal, foi estabelecida uma divisão entre dois olhares sobre os resquícios do
passado: um dos “ignorantes” (no sentido de aqueles que ignoravam alguma coisa), não
letrados que viam esses materiais como objetos comuns; e outro, dos eruditos, que percebiam
os mesmos materiais como testemunhos de um passado invisível. Essa percepção não era
generalizada, mas pertencente a um grupo erudito e que pretendia se destacar como tal, cujos
membros tinham suas relações intelectuais estabelecidas ali mesmo. O que escreviam,
produziam e adquiriam ficava restrito a um público composto por eles mesmos.
Ao construir sua coleção, Barbosa Machado soube reconhecer um documento. Ele
selecionou as versões interessantes, os homens que deviam ser lembrados e o território que
delimitava aquela história, juntando e organizando tudo o que era encontrado em sua coleção.
Provavelmente apenas ele e seus pares deveriam ter acesso a ela. Por outro lado, somente
quem partilhasse de um mesmo universo de significações poderia dar àquele conjunto o seu
140
KRIEGEL, Blandine. Op. Cit. p. 208.
141
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Reinventando a Tradição: sobre antiquariado e escrita da história.
Humanas, Porto Alegre, v. 23, n. 1/2, p. 111-143, 2000. p.115.
93
devido valor documental. Apenas seus pares poderiam reconhecer aqueles testemunhos como
autoridades. Era, portanto, um arquivo feito por um letrado para outros letrados.
A autoridade do documento: o arquivo de Barbosa Machado
É muito difícil precisar quando começou efetivamente o interesse de Barbosa
Machado em colecionar documentos sobre o passado português. Talvez tivesse início na
década de vinte, quando foi nomeado para a Academia Real. Certo, no entanto, é o fato de ter
se dedicado a este trabalho até o fim de sua vida. Pelo volume da coleção, podemos supor que
tenha sido uma tarefa constante e diária, de recolhimento, trocas, seleção, organização e
reorganização dos textos, mapas e retratos. Em meio ao trabalho, critérios devem ter mudado,
novos interesses aparecidos. E assim Barbosa Machado montava sua obra.
Hoje, ao nos depararmos com estes materiais, sempre fica a interrogação: para que?
Por que Barbosa se dedicou a isso? Que utilidade esse trabalho tinha? Qual o sentido em fazer
coleções? Estranhamento de um tempo moderno, cuja velocidade cotidiana não abre a
possibilidade para a compreensão de um trabalho lento, cuidadoso, cotidianamente agradável
e concebido não apenas para ser feito, mas também refeito a cada descoberta de uma imagem
primorosa ou documento revelador e verdadeiro. Um certo rigor certamente estava presente
no trabalho dos historiadores-antiquários da Academia Real, mas o prazer também motivava
aqueles homens a montar e ampliar suas coleções.
Na sua própria casa, Barbosa Machado guardava o passado. Percorria séculos de
história portuguesa dentro de sua biblioteca, folheando seus álbuns de retratos e seus tomos de
folhetos. Não viajava pelas violentas batalhas, suntuosos casamentos e desejados
nascimentos, mas visualizava, pelas imagens, o rosto dos homens e mulheres protagonistas e
coadjuvantes das histórias que seus papéis contavam. Mais ainda: os materiais colecionados
94
possibilitavam sair do reino, saber o que acontecia em terras que Diogo nunca havia pisado.
Os documentos eram, assim, o seu caminho para um mundo invisível.
Tempos invisíveis, mas também espaços invisíveis. Toda coleção, quaisquer que
sejam seus materiais ou o momento em que foi montada, teria a capacidade, segundo
Krzysztof Pomian, de ligar o visível ao invisível.
Expostos ao olhar, os objetos de uma
coleção permitiriam a comunicação entre dois mundos distantes, seja no espaço (outros
países, “terras exóticas”), seja no tempo (presente, passado e futuro):
Todos estes objetos são portanto intermediários entre os espectadores e o
invisível: as estátuas representam os deuses e os antepassados; os quadros,
as cenas da vida dos imortais ou os acontecimentos históricos; as pedras, a
potência e a beleza da natureza, etc.
142
Essa mediação entre dois mundos não é específica das compilações históricas.
Conjunto de objetos do mundo natural, tais como conchas, plantas e animais exóticos, teriam
o poder de transportar os homens para o invisível da criação divina, por exemplo, ou ainda
para “terras exóticas”, representadas no microcosmo das coleções. Mas as antiguidades, por
sua vez, possibilitavam uma viagem no tempo e um caminhar por momentos passados, já
perdidos (ou invisíveis), mas ao mesmo tempo presentes em seus vestígios. No caso da
coleção de Barbosa Machado, o invisível começava ainda na Idade Média, chegando até o
tempo do abade. Afinal, um dia o presente visível tornar-se-ia passado invisível. Por isso era
conveniente guardá-lo em sua compilação.
O tempo pretérito era algo terminado, invisível. A única maneira de ter acesso a ele era
a partir daquilo que ficou. Os mapas, imagens e folhetos, que anteriormente eram distribuídos
de forma separada e esporádica, ao serem tocados e escolhidos por Barbosa Machado,
mudavam o seu estatuto, tornavam-se testemunhos. A partir da sua posição de acadêmico real,
142
POMIAN, Krzysztof. Coleção. In: Enciclopédia Einaudi. Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional -
Casa da Moeda, 1984, v. 1. p.65.
95
esses papéis, não apenas constituíam-se documentos, mas também provas confiáveis, pois
haviam passado por uma crítica documental. Caso contrário, sequer figurariam na coleção.
Neste ponto, história e colecionismo se relacionavam. Ao perceber folhetos, mapas e
retratos como testemunhos de um passado, Barbosa Machado os recolhia, deixava-os perto de
si e mudava os seus usos. Os vários jornais que compunham a sua coleção de folhetos – como
o conhecido Mercúrio Portuguez perdiam sua razão de ser como periódicos efêmeros, e
tornavam-se portadores de notícias importantes, que deviam ser lembradas para figurar na
história portuguesa.
143
Assim como outros colecionadores poderiam tocar nas plantas e
minerais que guardavam, como se, através do toque, se aproximassem da natureza ou do
mundo do qual eles foram retirados, ao conviver em sua casa com aqueles vários papéis, o
Abade de Sever se configurava como testemunha, se não do evento propriamente dito, pelo
menos do testemunho que indicava que algo outrora aconteceu. Ele tinha em mãos
documentos, tratados, sermões lidos em um acontecimento, e retratos que representavam
pessoas. O passado estava ali com ele séculos da história portuguesa guardados em sua
biblioteca. O historiador colecionista sentia a história e tinha o poder de tocá-la. Tempos
depois, o passado seria conquistado para o mundo da razão, mas, naquele momento, ele
pertencia aos sentidos e à memória.
É preciso adentrar na coleção para entendermos, então, que arquivo aquele abade
possuía e como ele organizou os seus testemunhos do invisível. Discriminamos no capítulo
anterior os títulos dos tomos dos retratos, mapas e opúsculos, bem como a divisão que Diogo
Barbosa Machado deu à sua própria coleção no catálogo manuscrito que produziu. Partindo
da organização que o abade conferiu aos seus álbuns de gravuras e papéis, é possível perceber
143
Esse periódico, presente especificamente nos tomos dedicados às notícias militares, traz descrições de
batalhas, ressaltando sempre as vitórias portuguesas, além de outras notícias, como a entrada de navios nos
portos portugueses e prognósticos e informações sobre as possessões do reino.
96
alguns critérios de organização seguidos pelo colecionador, critérios estes importantes para
pensar como aquela coleção se constituiu como um arquivo.
144
O primeiro critério de divisão utilizado por Barbosa Machado separava o espaço de
atuação de cada personagem. Sua primeira organização é, portanto, social. Nos retratos, por
exemplo, as funções são bem repartidas nos seis primeiros volumes da coleção. Os dois
primeiros são exclusivamente de reis, rainhas e príncipes, enquanto os demais se dividem
entre os vassalos, respeitando também os seus papéis naquela sociedade: um volume dedicado
aos santos e religiosos portugueses, outro aos letrados, e os dois seguintes aos homens ligados
à guerra e à administração.
145
Nos folhetos, por sua vez, uma divisão social semelhante se
mantém, havendo uma separação entre monarcas, nobres (fidalgos, duques, marqueses e
condes) e eclesiásticos (cardeais, bispos e arcebispos), ordem repetida também na arrumação
dos sermões.
146
Se folhetos e retratos diferenciavam reis de seus súditos, parece que nas
imagens, o lugar de atuação dos vassalos letras, guerra e governo é mais bem definido em
um primeiro momento. No caso dos folhetos, essa divisão se estrutura ao longo da narrativa.
Na leitura do opúsculo, o leitor vai descobrindo quem é que está sendo lembrado no texto e
qual seu lugar de atuação. No entanto, é possível perceber que tanto nas imagens quanto nos
144
Ampliamos aqui algumas reflexões que desenvolvi, em parceria com Rodrigo Bentes Monteiro, no artigo A
Ordem de um Tempo: Folhetos na Coleção Barbosa Machado. Topoi (Revista do Programa de Pós-graduação
em História Social da UFRJ), no prelo.
145
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Coleção de Retratos Colligidos pelo Abade Diogo Barbosa Machado.
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. 8v.
146
Os sermões coligidos por Barbosa Machado foram divididos da seguinte maneira, de acordo com uma ordem
social que iniciava do monarca, passava pela nobreza e terminava com os representantes da Igreja: Sermões de
aclamação Del rey D. João IV 2 tomos; Sermões do Nascimento de reys, e príncipes de Portugal 4 tomos;
Sermões de desposorios de príncipes de Portugal 1 tomo; Sermões gratulatros pella vida, e saúde dos reys de
Portugal 5 tomos; Sermões de exéquias dos reys de Portugal 7 tomos; Sermões de exéquias de raynhas de
Portugal 3 tomos; Sermões de exéquias de príncipes e infantes de Portugal 3 tomos; Sermões de exéquias de
duques de Portugal 1 tomo; Sermões de exéquias de marqueses e condes de Portugal 2 tomos; Sermões de
exéquias de duquesas, marquesas e condessas de Portugal – 1 tomo; Sermões de exéquias de senhoras de
Portugal; Sermões de exéquias de varoeñs portugueses; Sermões de exéquias de cardeais e arcebispos
portugueses – 2 tomos; Sermões de exéquias de bispos portugueses – 3 tomos; Sermões de exéquias de
eclesiásticos portugueses 1 tomo; Sermões de exéquias de fidalgos portugueses 1 tomo; Sermões pregados
nos autos de fee celebrados em Lisboa, Coimbra, Évora e Goa 6 tomos. Somam-se a estes, dois volumes de
sermões pronunciados por José Barbosa, irmão de nosso abade. O erudito, como mostramos no capítulo 1, não os
relacionou junto aos demais em seu catálogo manuscrito, mas hoje eles são considerados, na seção de Obras
Raras da Biblioteca Nacional, parte da Coleção Diogo Barbosa Machado.
97
folhetos, há uma separação entre os vassalos que atuaram no campo da fé e os que se
destacaram nas letras ou armas.
Na organização de suas gravuras a partir de um critério social, Barbosa Machado
conferiu um rosto à história portuguesa. Fixou em imagens os homens e mulheres
responsáveis, junto com os monarcas, pela grandeza não só do reino, mas do império
português. Depois de ter destacado os rostos, o abade, nos opúsculos, contou, de diversas
formas, o que cada um deles fez. Em outras palavras, configurou uma narrativa,
147
que
poderia começar, é claro, pelo nascimento daqueles que estavam no topo da hierarquia social:
os reis e sua família.
148
Aqui entra uma segunda divisão sugerida pela coleção de Barbosa
Machado, especialmente para os opúsculos: a separação dos folhetos pelo gênero literário e
natureza do evento. Os monarcas nascem, fazem aniversário, visitam cidades, casam-se,
adoecem e morrem.
149
Ciclo semelhante se entre a nobreza, próximo grupo social que
aparece em sua coleção.
150
Cada momento era descrito em textos: genetilíacos, aplausos,
entradas, epitalâmios, exéquias, entre outros. Embora possuíssem regras próprias, uma valia
para todos: elogiar engrandecer cada uma das etapas pelas quais os homens passavam, mas
poucos tinham o privilégio de tê-las imortalizadas pela escrita. Primeiramente, Barbosa
Machado separou os personagens pelo grupo ao qual pertencia. A partir desta divisão, iniciou
147
Em relação à narrativa composta pelo abade e à sua coleção como uma forma de escrita da história, nos
deteremos no próximo capítulo.
148
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Genethiliacos de Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal. Rio de Janeiro:
Biblioteca Nacional, 5v.
149
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Aplausos Oratórios e Poéticos no Complemento de Anos dos
Serenissimos Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 2v; _____. Entradas
em Lisboa de Reis e Rainhas. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 2v; ______. Epithalâmios de Reis e Rainhas
de Portugal. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 5v; ______. Aplausos Oratórios e Poéticos pela Restituição da
Saúde dos Serenissimos Reis de Portugal. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1v; ______. Elogios Fúnebres
Oratórios e poéticos dos Serenissimos Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal. Rio de Janeiro, Biblioteca
Nacional, 4v; ______. Notícias das Últimas Ações e Exéquias dos Sereníssimos Reis, Rainhas e Infantes de
Portugal. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 3v.
150
Os Aplausos Genethiliacos de Fidalgos Portugueses abrem os volumes referentes à nobreza na Coleção
Barbosa Machado. Os demais são os seguintes: Epithalamios de Duques, Marqueses e Condes de Portugal (2
volumes), Elogios de Duques, Marqueses de Condes de Portugal (2 tomos), Elogios Fúnebres de Duques,
Marqueses de Condes de Portugal (2 tomos), Elogios Fúnebres de Duquesas e Marquesas de Portugal (1 tomo).
98
a organização das unidades textuais em corpos maiores.
151
Neste sentido, as duas divisões
social e por gêneros literários – caminhavam juntas na coleção.
Entre os ciclos de vida dos reis e da nobreza, um conjunto de 20 tomos de Notícias
Militares destacavam os conflitos bélicos em que guerreiros valorosos mostraram sua
fidelidade ao rei.
152
Esse gênero intermediava, na compilação de opúsculos do abade, a
passagem da realeza para a aristocracia, além de justificar, naquela narrativa, a importância
dos nobres varões, cujas vidas seriam contadas nos tomos seguintes.
Após a nobreza, o próximo grupo a ser representado na coleção é o clero. Aqueles
homens não nasceram religiosos, mas morreram como tal. Dessa forma, foram justamente em
cinco tomos de elogios fúnebres que cardeais, bispos e arcebispos tiveram suas trajetórias
contadas.
153
A morte como momento que clareia e glorifica uma vida dedicada à religião e aos
pobres de Cristo. O número de folhetos sobre a vida de clérigos de forma alguma chama
atenção pela quantidade. No entanto, a presença religiosa reside em outro conjunto de textos
de destaque na coleção: os 46 tomos de sermões. É ali que a voz da autoridade religiosa e a
principal função deste grupo na sociedade apareciam. Nos vários discursos proferidos nas
aclamações de reis, nos seus nascimentos e casamentos, nas suas mortes, bem como no ciclo
de vida da nobreza, estavam eles, presentes em corpo e em oratória.
154
Se nos retratos,
Barbosa Machado, preferiu representar os santos e mártires, nos folhetos, o clero é
representado pela autoridade da sua palavra.
151
KRIEGEL, Blandine. L´Histoire à l´Age Classique. La défaite de l´erudition. Paris: PUF, 1988, v.2, p.205.
152
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias Militares de D. João IV. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional,
2v; ______. Notícias Militares de D. Afonso VI. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 3v; ______. Notícias
Militares de D. Pedro II. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 2v; ______. Notícias Militares de D. João V. Rio
de Janeiro, Biblioteca Nacional, 2v; ______. Notícias Militares de D. José I. Rio de Janeiro, Biblioteca
Nacional; 1v; ______. Notícias das Proezas Militares Obradas pelos Portugueses em a Índia Oriental. Rio de
Janeiro, Biblioteca Nacional, 3v; ______. Notícias Históricas e Militares da América. Rio de Janeiro, Biblioteca
Nacional, 1v; ______. Notícias Históricas e Militares da África. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1v.
153
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Elogios Fúnebres de Cardeais e Arcebispos de Portugal. Rio de Janeiro,
Biblioteca Nacional, 1v. ______. Elogios Fúnebres de Eclesiásticos Portugueses. Rio de Janeiro, Biblioteca
Nacional, 4v.
154
Ver nota 142.
99
A coleção do abade de Sever é uma compilação sobre a elite portuguesa secular e
eclesiástica e buscou contemplar as várias dimensões da vida daqueles personagens. Os
documentos estavam todos ali, testemunhos da grandeza e da importância de cada grupo
social, representados pelos seus mais valorosos homens e mulheres. De acordo com Pomian,
as coleções antiquárias tendiam a se preocupar com o evento, aquilo que era raro e único na
história. Daí a importância dos retratos e das narrativas sobre grandes varões e seus feitos.
Postos em série, os testemunhos permitiam ver não as cenas do passado diante dos olhos,
mas também visualizar aqueles que atuaram nelas.
155
Uma memória dos homens do passado era construída nas imagens e textos escolhidos.
Em seu trabalho de lembrança/ esquecimento, Barbosa Machado não lidava com a
hierarquia social, possibilitando ou não que seus membros alcançassem posições, mas, como
historiador-antiquário, por meio de sua coleção, também conferia à história de Portugal um
cânone de personagens, em que uns se destacavam em relação a outros.
Tomemos o exemplo somente da coleção de retratos do abade. Em um levantamento
feito, percebemos que os reis que mais aparecem ali são D. Afonso Henriques (26 imagens),
D. Sebastião (22), D. João IV (31) e D. João V (37).
156
Três reis marcantes no relacionamento
entre Portugal e Castela e um monarca, o Fidelíssimo, patrocinador da Real Academia. Em
relação aos varões insignes em artes, letras e ciências, alguns dos personagens que mais se
destacam numericamente neste volume foram Manuel de Faria e Souza, Padre António
Vieira, Padre Bartolomeu de Quental e o médico João Curvo Semmedo.
157
No entanto, a
figura de maior destaque é Luiz de Camões. Presente em 11 imagens, ele é o grande
referencial da grandeza literária de Portugal. Barbosa Machado ainda inseriu alguns de seus
155
POMIAN, Krzysztof. Collectionneurs, Amateurs et Curieux. Paris, Venice: XVIe-XVIIIe siècle. Paris:
Gallimard, 1987. p.64.
156
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Retratos de Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal. Rio de Janeiro,
Biblioteca Nacional, 2v.
157
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Retratos de Varões Portugueses Insignes em Artes e Ciências. Rio de
Janeiro, Biblioteca Nacional.
100
pares na Academia Real da História, como Manuel Telles da Silva. Mas, ao contrário do que
poderíamos esperar, poucos deles são contemplados.
158
O primeiro tomo de retratos dos
varões insignes em Campanha e Gabinete traz os duques de Bragança, alguns mestres da
Ordem de São João de Jerusalém, navegadores e embaixadores. No entanto, o destaque está
na família Sousa, representada por 31 de seus membros.
159
O livro seguinte, também referente
aos homens de campanha e gabinete, é exclusivamente dedicado a governadores e vice-reis da
Índia. É possível, no entanto, perceber a ausência de alguns governantes das possessões
portuguesas naquela região. É interessante observar estas ausências ou esquecimentos, bem
como a importância conferida, no século XVIII, por Barbosa Machado à Índia, momento em
que o Brasil já tinha reconhecida importância econômica no império português.
160
Não foi apenas um cânone de personagens – de rostos – que Barbosa Machado
confirmou com seu trabalho de memória. Ele ainda estabeleceu para história portuguesa uma
cronologia, pois o critério temporal também foi utilizado pelo abade para organizar seus
materiais. A cronologia muitas vezes é tida como algo natural e é pouco problematizada como
objeto de disputa e construção. Anos, séculos e reinados se sucedem, constituindo-se como a
matéria-prima do historiador. No entanto, o estabelecimento da história cronológica de
Portugal ocupou parte do tempo de alguns acadêmicos reais, que se dedicaram a fazer uma
tábua cronológica que todos deveriam seguir.
161
Nesta elaboração, surgiam dúvidas. O Padre
Manoel do Tojal da Silva, por exemplo, ao elaborar uma cronologia dos reis de Portugal,
sentiu a necessidade de perguntar aos censores da academia se os três reis de Castela que
158
Ibid.
159
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Retratos de Varões Portugueses Insignes na Campanha e Gabinete. Rio
de Janeiro, Biblioteca Nacional. v.1.
160
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Retratos Colligidos de Varões Portugueses Insignes em Campanha e
Gabinete. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional. v. 2.
161
Sistema da historia ecclesiástica e secular de Portugal, que de escrever a Academia Real da Historia
Portugueza. In: Colleccam dos Documentos, estatutos, e memórias da Academia Real da Historia Portugueza
que neste ano de 1721 a compuzerão, e se imprimirão por ordem dos seus censores. Dedicada a ElRey nosso
senhor, seu augustissimo protector e ordenada pelo conde de Villarmayor secretario da mesma academia.
Lisboa Occidental: Officina de Pascoal da Sylva, 1721.
101
governaram o reino durante a união das coroas, deveriam ou não figurar nela.
162
Além de um
problema de lembrança e esquecimento a lembrança de que outrora Portugal foi governado
por reis “estrangeiros” –, a dúvida do acadêmico nos leva a problematizar a própria
cronologia, percebendo, em primeiro lugar, que ainda no século XVIII ela não era bem
definida, tampouco naturalizada, e, em segundo lugar, que havia um interesse, dentro da
Academia, em uniformizar um método e um tempo para a história portuguesa.
Barbosa Machado estabeleceu uma ordem cronológica para a história lusitana com a
sua coleção. Seus volumes foram divididos por grupos sociais, mas os documentos estão
dispostos na ordem temporal de cada reinado. Nos retratos, o marco inicial foi o rei visigodo
Wamba, primeiro rei ungido.
163
Em seguida, cada rei abre uma série de imagens em que é
representado sozinho e também junto com suas mulheres e filhos, com exceção do
primogênito, que, como herdeiro da coroa, abre uma nova série de imagens. Independente da
resolução tomada pela Academia Real, os reis castelhanos também foram contemplados
dentro desta lógica.
164
Como parte o passado luso, eles também deveriam ser lembrados e
figurar entre os monarcas lusitanos.
nos folhetos, Barbosa Machado dispôs os documentos obedecendo o ano em que
aconteceu um dado evento. Os Elogios Fúnebres de Varões Insignes em Letras e Armas, por
exemplo, traz dois tomos. O primeiro, sobre personagens que morreram entre 1579 e 1738.
Inicia com Camões e, em seguida, trata de outras figuras, como Manoel de Faria e Souza, o
acadêmico José do Couto Pestana ou ainda Diogo de Mendonça Corte-Real, procurando
162
Notícias da conferência que a Academia Real da Historia Portugueza fez em 19 de janeiro de 1721. In:
Colleccam dos Documentos, estatutos, e memórias da Academia Real da Historia Portugueza que neste ano de
1721 a compuzerão, e se imprimirão por ordem dos seus censores. Dedicada a ElRey nosso senhor, seu
augustissimo protector e ordenada pelo conde de Villarmayor secretario da mesma academia. Lisboa
Occidental: Officina de Pascoal da Sylva, 1721. Este mesmo documento afirma que os acadêmicos acabaram não
tomando nenhuma decisão a respeito daquela matéria no encontro.
163
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Retratos de Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal. Rio de Janeiro,
Biblioteca Nacional, v.1.
164
Os reis Habsburgo abrem o segundo volume dos Retratos Colligidos de Reis, Rainhas e Príncipes de
Portugal. Felipe I de Portugal é representado em 23 imagens, Felipe II em 18 e Felipe III em 30 gravuras.
(MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Retratos de Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal. Rio de Janeiro,
Biblioteca Nacional, v. 2)
102
seguir sempre uma cronologia. O volume seguinte, aborda o período compreendido ente 1739
e 1757, em que morreram homens como Francisco Xavier Leitão e Alexandre de Gusmão.
165
Nos opúsculos, a história portuguesa era ordenada não apenas no sentido de localizar
no tempo os nascimentos, casamentos e mortes, mas de estabelecer também os marcos e os
principais eventos e personagens sob cada um dos governos. Um exemplo são as notícias
militares, divididas pela cronologia dos reinados: Notícias Militares de D. João IV, D. Afonso
VI, D. Pedro II etc. O rei servia como definidor do tempo e, sob cada um deles, batalhas,
eventos, homens e mulheres eram localizados temporalmente.
Se a cronologia era um dos olhos da história, o outro era a geografia. Tempo e espaço
eram as duas coordenadas fundamentais para a narrativa do passado.
166
Também o local foi
um critério de ordenação dos documentos coletados por Barbosa Machado. Além do reino
português certamente o espaço privilegiado pela coleção –, volumes inteiramente
dedicados à Índia, América, África e ainda três tomos relativos aos cercos que se sustentaram
os portugueses nas quatro partes do mundo.
167
São notícias de batalhas em que os valorosos
guerreiros lusos, sempre inferiores em número, conseguem combater os infiéis e expandir a fé
cristã.
168
Mas não as guerras constituem o assunto desses opúsculos. Eles também trazem
relações, geralmente escritas por missionários, daquelas terras exóticas, distantes e invisíveis,
bem como dos hábitos e costumes de seus nativos. O volume referente às terras africanas é
um dos mais interessantes em termos visuais, trazendo imagens sobre a natureza e a
população local.
169
A história de Portugal e de seu império deveria ser escrita levando em
165
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Elogios Fúnebres de Varões Insignes em Letras e Armas. Rio de
Janeiro, Biblioteca Nacional, 2v.
166
CUNHA, Norberto da. Op. Cit. p. 41.
167
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias das Proezas Militares Obradas pelos Portugueses e a Índia
Oriental. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 3v; ______. Notícias Históricas Militares da América, Rio de
Janeiro, Biblioteca Nacional, 1v; ______. Notícias Históricas Militares da África. Rio de Janeiro, Biblioteca
Nacional, 1v; ______. História dos Cercos que Sustentaram os Portugueses nas Quatro Partes do Mundo. Rio
de Janeiro, Biblioteca Nacional, 5v.
168
Falaremos de maneira mais específica desses folhetos no capítulo 3.
169
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias Históricas Militares da África. Rio de Janeiro, Biblioteca
Nacional, 1v.
103
consideração não o tempo, mas também um solo terras, natureza e habitantes conhecidos
por meio de textos e imagens formadores de uma memória daquelas regiões do território
imperial.
As divisões utilizadas por Barbosa Machado acabaram construindo, por meio dos
documentos selecionados, um cânone de fatos e personagens que deveriam figurar na história
de Portugal em um momento em que, como destaca Blandine Kriegel, as distinções
cronológicas entre as épocas não eram tão claras, os arquivos tão estáveis e as bibliotecas
ainda não tinham sido organizadas e as fontes repertoriadas.
170
Tratava-se, no caso da
compilação de Barbosa Machado, de um arquivo ordenado, cujos documentos são separado
pela função social, tipos de textos, datas e espaços. Para Pomian, a história das coleções na
Europa é também uma história das relações dos europeus com o passado (invisível), cada vez
mais preso a uma reconstrução por intermédio dos vestígios deixados.
171
Se durante alguns
séculos a referência eram os auctores antigos, o trabalho dos antiquários dos séculos XVII e
XVIII de coletar e reunir textos históricos e jurídicos em grandes fólios, teria ajudado a fixar a
autoridade no testemunho, já constituído como um arquivo. De acordo com Anthony Grafton,
a difusão das notas de rodapé no século XVIII evidencia uma demanda sobre o historiador. A
ele não cabia apenas contar histórias, mas também citar suas provas. O documento ganhava o
direito de falar sobre o passado. Recebia, aos poucos, o estatuto de autor da história.
172
Os testemunhos são peças fundamentais para Barbosa Machado. Referimo-nos não
apenas a sua coleção, composta propriamente por eles, mas às suas obras como um todo. Nas
Memórias para a História DelRey D. Sebastião, por exemplo, a escrita do abade de Sever,
bem como a divisão de seus capítulos, podiam, num primeiro olhar, não se diferenciar muito
da narrativa de cronistas anteriores a ele, como Diogo do Couto. Deste autor, tomemos como
170
KRIEGEL, Blandine. Jean Mabillon. Paris: PUF, 1988, v.1.
171
POMIAN, Krzysztof. Des Saintes Reliques à l´art Moderne. Venise-Chicago XIIIe-XXe siècle. Paris:
Gallimard, 2003. p.353.
172
GRAFTON, Anthony. As Origens Trágicas da Erudição. Pequeno tratado sobre a nota de rodapé.
Campinas, Papirus, 1998.
104
exemplo a Crônica dos feitos de Vasco da Gama, terminada em 1599. Assim como Barbosa
Machado fez com D. Sebastião, Diogo do Couto narrou os feitos de Vasco da Gama e seus
filhos de maneira a exaltar a gloriosa ação dos portugueses no Oriente.
173
A estrutura narrativa
e a disposição das matérias nos capítulos também são pontos em comum entre o cronista e o
acadêmico real. No entanto, apesar da semelhança, distinções no que se refere à técnica
historiográfica, mais precisamente ao uso dos testemunhos. Diogo do Couto, como outros
cronistas, se amparava em documentos escritos, mas não com o valor que será conferido a
eles posteriormente, sobretudo com a Academia Real. A cada capítulo, Barbosa Machado não
citava uma pilha de documentos, como também o reproduzia.
174
Diogo do Couto não fazia
o mesmo (embora consultasse textos e os citasse entremeados a sua narrativa), pois aquela
não era uma demanda de seu tempo. Barbosa Machado, como antiquário, os destacava,
conferindo a eles o estatuto de prova que legitimava a narrativa sobre D. Sebastião. Em sua
coleção particular, o erudito recolhera outras provas que possibilitavam novas narrativas. Os
testemunhos escolhidos, passavam a constituir uma autoridade.
175
Por outro lado, para Barbosa Machado, a autoridade do testemunho ligava-se também
àquele que o escrevia: a autoridade do missionário que descreve uma região distante, dos
clérigos em seus sermões, dos acadêmicos em seus panegíricos. Textos confiáveis, porque
escritos por pessoas confiáveis e jamais contrárias a fé cristã. Essa autoridade do nome
173
COUTO, Diogo do. Tratado dos Feitos de Vasco da Gama e seus filhos na Índia. Lisboa: Cosmos, 1998.
174
Barbosa Machado citou vários tipos de documentos ao longo da sua narrativa, como cartas, elogios, cópias de
bulas papais, alvarás etc. No capítulo 3, por exemplo, onde trata da morte de D. João III, nosso abade informa
que, por conta da morte do monarca, a administração do reino ficou nas mãos de D. Catarina. Logo em seguida,
ele citou o “instrumento da tutela, e regência da rainha D. Catarina” e ainda indicou que tal documento poderia
ser encontrado na “Torre do Tombo, na gaveta 13, masso 9”. É interessante observar que o erudito, para escrever
esta obra, parece ter utilizado alguns documentos que juntou em sua coleção. Nela, existem papéis, por exemplo,
sobre a morte de missionários no Japão à época do reinado de D. Sebastião, assunto ao qual ele se referiu nas
Memórias.
175
Um cronista que recebeu a estima dos acadêmicos reais foi Duarte Nunes Leão. Nas Crônicas dos Reis de
Portugal, este autor reformulou crônicas antigas, corrigindo seus erros e procurando, por meio de documentos,
demonstrar a verdade, nem que para isso tivesse de contestar tradições invioláveis. Ele discutiu, por exemplo,
quem foi o pai de D. Henrique, discordando de uma versão que dizia ser ele filho de um rei da Hungria e outras
que afirmavam ser ele grego ou alemão. Por fim, contestou Damião de Góes, que teria afirmado que o conde D.
Henrique era da casa de Lorreine. Para refutar as autoridades, Nunes Leão citou documentos, tais como
escrituras e testamentos, pois o testemunho poderia desmentir as fábulas em torno daquele monarca. (LEÃO,
Duarte Nunes. Crônicas dos Reis de Portugal. Porto: Lello-Irmãos Editores, 1975).
105
recebeu destaque, sobretudo, em outra obra de Barbosa Machado, a Bibliotheca Lusitana,
preocupada em organizar e novamente trazer à lembrança os escritores portugueses.
Organização e memória parecem perpassar todos os trabalhos do erudito Diogo
Barbosa Machado. Memória do rei Desejado, memória dos autores portugueses e organização
de sua produção e, por fim, memória dos fatos e dos personagens da história portuguesa
acompanhada da seleção e ordenação dos vestígios do passado, principalmente escritos.
Ao nos depararmos hoje com os materiais de Diogo Barbosa, divididos nas seções da
Biblioteca Nacional, nem sempre nos damos conta de que eles constituem uma coleção
ordenada e selecionada pelo seu compilador. O que sobreviveu foi aquilo que ele escolheu
para vencer a finitude. Como lembra Bouza Álvarez na epígrafe deste capítulo, arquivos “são
depósitos que forjam uma memória e, ao mesmo tempo, apagam outra. (...) No fundo,
encontramos apenas no arquivo o que está nos esperando, o que séculos está disposto com
todo o cuidado para que encontremos”. O que nos espera é uma seleção de personagens
ilustres e eventos tidos por um antiquário como memoráveis, dispostos não no tempo e
espaço, mas também pela atuação de seus personagens, representada nos retratos e narrada
por textos confiáveis. Se hoje a coleção de nosso abade é consultada como um arquivo para a
pesquisa, ela, na verdade, foi concebida como um arquivo de memória de eventos e
personagens da memória das elites portuguesas. Aqueles documentos serviriam para
escrever uma história de Portugal, mas trata-se de uma escrita que não dissociava memória e
história.
106
CAPÍTULO 3:
A COLEÇÃO COMO ESCRITA DA HISTÓRIA
107
De fato, a escrita histórica – ou historiadora – permanece controlada pelas
práticas das quais resulta; bem mais do que isto, ela própria é uma prática
social que confere ao seu leitor um lugar bem determinado, redistribuindo
os espaços das referências simbólicas e impondo, assim, uma “lição”; ela é
didática e magisterial. Mas ao mesmo tempo funciona como imagem
invertida; dá lugar à falta e a esconde; cria esses relatos do passado que são
o equivalente dos cemitérios nas cidades; exorciza e reconhece uma
presença da morte no meio dos vivos. (...) ela tem o estatuto ambivalente de
“fazer a história” (...) e, não obstante, de “contar histórias”.
(CERTEAU, Michel de. A Operação historiográfica. In: A Escrita da
História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 95).
(...) percebe-se pela maneira como Raimundo Silva está a sorrir neste
momento, com uma expressão que não esperaríamos dele, de pura
malignidade, desapareceram-lhe do rosto todos os traços de Dr. Jekill, é
evidente que acabou de tomar uma decisão, e que má ela foi, com a mão
firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à página, uma palavra
que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não
poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é
que os cruzados Não auxiliaram os portugueses a conquistar Lisboa, assim
está escrito e portanto passou a ser verdade sobre o que chamamos
verdadeiro, tomou o seu lugar, alguém teria de vir contar a história nova, e
como. (SARAMAGO, José. História do Cerco de Lisboa. São Paulo: Cia
das Letras, 1989, p. 49-50).
Nos capítulos anteriores pretendemos, em primeiro lugar, detalhar a coleção Barbosa
Machado, descrevendo seus materiais e a maneira como foram dispostos dentro da biblioteca
pessoal do abade. Montada em Portugal no século XVIII, a coleção acabou vindo parar no
Rio de Janeiro e hoje fornece documentos para as pesquisas de historiadores, que muitas
vezes manuseiam seus folhetos e retratos sem se interrogarem como eles foram parar ali.
Buscamos, então, mostrar a trajetória desta coleção, da sua montagem, em Lisboa, até a sua
constituição como fonte e acervo da Biblioteca Nacional. Em seguida, demos um primeiro
sentido àqueles materiais, entendendo-os como um arquivo, que, além de trazer à lembrança
alguns eventos e personagens, poderia servir ao propósito de escrever a história de Portugal
não mais se pautando na tradição, mas em documentos. Neste capítulo, buscaremos dar uma
segunda interpretação à coleção de Barbosa Machado, entendendo-a como uma escrita da
história, isto é, uma maneira própria de escrever e dar sentido ao passado português.
108
O século XIX criou uma certa forma de contar os eventos pretéritos: a história como
ciência. Não apenas contá-los, mas narrá-los verdadeiramente, por meio de um trabalho
pautado em vestígios analisados de forma metódica. Para esta tradição historiográfica, a
história era concebida como algo em si”, uma linha reta onde acontecimentos tinham um
encadeamento próprio e independente do trabalho do historiador. A este último, bastava ter
um método eficaz não para desvelar o que os fatos e a realidade queriam dizer por eles
mesmos, mas, inclusive, para entender um certo caminhar da história da humanidade.
No entanto, quando pensamos Barbosa Machado como historiador e a sua coleção
como uma maneira de dar sentido ao passado, estamos lidando com uma concepção de
história diferente desta. Procuramos, antes, entender este conceito da maneira sugerida por
Michel de Certeau, isto é, como uma operação historiográfica que precisa necessariamente de
um sujeito para realizá-la: o historiador.
176
É ele que, segundo o filósofo alemão Friedrich
Nietzsche, “a partir da suprema força do presente, [tem] o direito de interpretar o passado”,
doando-lhe sentido.
177
Temos, portanto, como pressuposto do nosso trabalho que uma suposta
realidade histórica não existe em estado bruto, esperando ser desvelada. Dessa forma, se o
passado não é algo dado a priori, antes, é constituído a partir de um certo esforço do
historiador, que se realiza no exercício da escrita, atividade capaz de produzir um significado
a uma experiência.
178
A própria noção de escrita que tomamos aqui não se resume a um texto escrito
propriamente dito, mas compreende também qualquer maneira de tornar o passado inteligível
para o presente, o que pode ser feito por meio de um filme, uma pintura, a organização de um
museu ou mesmo uma coleção. Concebidas por sociedades e momentos históricos distintos,
176
CERTEAU, Michel de. A Operação historiográfica. In: A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2002. p. 65-119.
177
NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva Da Utilidade e Desvantagem da História
para a Vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. p. 56.
178
CERTEAU, Michel de. Op. Cit; HUMBOLDT, Wilhelm von. Sobre a tarefa do historiador. Rio de Janeiro.
Anima 1(2):79-89. 2001.
109
essas formas de escrita não têm o poder de trazer até nós o tempo pretérito tal como ele foi,
mas, ao contrário, são capazes de, a partir de seus limites, dar sentido a uma experiência de
maneiras diferentes. Não se trata de tentar ultrapassar esses limites, mas de entender que eles
são a condição de possibilidade para a reescrita constante do passado.
179
Como vimos anteriormente, o trabalho de Diogo Barbosa Machado foi criterioso na
organização dos documentos e dos rostos que mereciam chegar a um futuro para ele
desconhecido e invisível. Tempos mais tarde, aqueles testemunhos poderiam servir para
construir a história do reino e das possessões portuguesas. No entanto, como coleção, ela, por
si mesma, conferia inteligibilidade ao passado. Sendo ou não a intenção de nosso
colecionador, até que ponto não poderíamos ler o seu conjunto de materiais como lemos um
livro onde o passado é dotado de sentido pelo “sujeito” Barbosa Machado? Até que ponto a
seleção, a arrumação e a ordenação dos folhetos, mapas e retratos não nos contam, no seu
modo próprio de escrita, uma certa história de Portugal na perspectiva do erudito? O que essa
história comporta? Se no capítulo anterior destacamos como Diogo Barbosa Machado
organizou sua coleção, cabe agora abrir seus tomos e entendermos as histórias que aquele
abade foi capaz de contar.
Temos um objetivo principal neste capítulo: refletir sobre um tipo de escrita peculiar
que é a coleção. Para isso, partimos de suas próprias histórias, narradas pelos documentos que
Barbosa Machado coletou. Dentre as imagens e os opúsculos compilados, os exemplos e os
aspectos ressaltados poderiam ser muitos. Optamos, então, por fazer um recorte, que
certamente traz consigo um certo grau de subjetividade, afinal, as narrativas ressaltadas neste
capítulo foram aquelas que saltaram aos nossos olhos enquanto trabalhávamos com o grande
volume de materiais coletados por Barbosa Machado. Antes de considerar esta subjetividade
como um limite a ser transposto, entendemos que o contato diário com aqueles documentos
179
CERTEAU, Michel de. Op. Cit.; GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Reinventando a Tradição: sobre
antiquariado e escrita da história. Humanas, Porto Alegre, v. 23, n. 1/2, p. 111-143, 2000.
110
tenha nos dado uma certa sensibilidade para interpretar esta coleção e mostrar ao nosso leitor
aquilo que, para nós, é mais significativo se quisermos compreendê-la como uma forma de
escrita. Sendo assim, escolhemos trabalhar aqui especificamente com os folhetos, onde a
narrativa se estabelece de forma mais clara.
180
Dentre eles, privilegiaremos os tomos que
tratam da monarquia, das notícias militares e de acontecimentos e descrições de outras
regiões do império. Cremos que os livros referentes aos elogios de reis, rainhas e príncipes,
bem como as batalhas militares, além de constituírem uma parte significativa da coleção e
tratarem do grupo social privilegiado dentro dela, são capazes de nos fazer entender o tipo de
história que aqueles materiais pretendem contar. Dessa forma, primeiramente, vamos nos
deter na narrativa desses volumes, destacando, a partir do conjunto de opúsculos e da
arrumação que o abade deu a eles, que a sua história é feita de muitos elogios, mas também
de momentos de tensão e conflito. Esta narrativa ainda será importante para pensarmos as
singularidades de um tipo de escrita que é a coleção. Já os volumes referentes a outras regiões
do império serão importantes para o segundo item deste capítulo, onde veremos que as
histórias de Barbosa Machado não se resumem ao reino português, mas aconteceram em
vários lugares, ajudando a constituir, assim, por meio da escrita, uma certa noção de
territorialidade da monarquia lusitana.
A escrita de Diogo Barbosa Machado: os elogios
No capítulo anterior, a partir dos critérios utilizados por Diogo Barbosa Machado,
caracterizamos a sua coleção como um arquivo que se ligava a uma preocupação da época em
escrever a história pautada em vestígios verdadeiros e irrefutáveis. Destacamos alguns
critérios utilizados pelo abade de Sever para organizar tanto os opúsculos quanto os retratos
que amealhou: a separação social, por gênero literário, cronológica e espacial. Gostaríamos
180
Baseamo-nos aqui nos resumos dos folhetos feitos por mim e também pelos outros membros da equipe do
projeto Recortes de Memória: Pedro Fonseca de Araujo, Gustavo Kelly de Almeida, Jerônimo Duque Estrada de
Barros, Jorge Miranda Leite e Guido Fabiano Pinheiro Queiróz.
111
de retomar esta discussão e alguns destes critérios para irmos um pouco mais adiante e
pensarmos aquela coleção como uma escrita. Cremos que a lógica de organização dos
materiais numa determinada ordem acabava conduzindo o seu leitor a lê-la de certa maneira.
Em outras palavras: os dois sentidos que propomos dar à coleção como arquivo e como
escrita acabam se imbricando quando percebemos que, ao dividir seus materiais, Barbosa
Machado, paralelamente, domesticava o passado, atribuía um certo encadeamento e coerência
aos eventos pretéritos, e indicava também um percurso a ser seguido pelo seu leitor. A
história vai se escrevendo na forma de coleção, na forma daquele arquivo, tal qual um
quebra-cabeças: os documentos localizados em tomos diferentes, quando juntos, parecem
constituir uma narrativa na qual histórias se cruzam e momentos de suspense, tensão, paz,
casamentos e religiosidade se alternam em meio a muitos elogios.
Os elogios constituem o ponto importante da coleção e são eles que abrem a história
que Barbosa Machado parece querer contar. Mesmo numericamente, esses livros ocupam
uma parte considerável da compilação de opúsculos. Dos 146 volumes que compõem a
coleção de folhetos, 25 ganham o título de Elogios, o que representaria 18% da coleção.
181
Por outro lado, se considerarmos outros volumes, como os Genetilíacos e os Aplausos, que
também possuem um viés de exaltação, esse número alcança os 25%.
182
Isso significa que,
grosso modo, um quarto da coleção seria dedicado exclusivamente a elogiar e engrandecer os
reis e os grandes varões portugueses.
181
Os tomos referentes aos elogios são os seguintes: Elogios de Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal (4 tomos),
Elogios Fúnebres Oratórios e Poéticos dos Serenissimos Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal (4 tomos),
Elogios de Duques, Marqueses e Condes de Portugal (2 tomos), Elogios Fúnebres de Duques, Marqueses e
Condes de Portugal (4 tomos), Elogios Fúnebres de Duquesas e Marquesas de Portugal (1 tomo), Elogios
Oratórios e Poéticos de Cardeais e Bispos (2 tomos), Elogios fúnebres de Cardeais e Arcebispos de Portugal (1
tomo), Elogios nebres de Eclesiásticos Portugueses (4 tomos), Elogios Fúnebres de Diversos Portugueses (2
tomos), Elogios Históricos e Poéticos de Diversos Portugueses ( 2 tomos), Elogios Históricos e Poéticos de
Eclesiásticos e Seculares (1 tomo).
182
Os Genethiliacos de Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal são compostos por 5 tomos. Os Aplausos
Oratórios e Poéticos no Complemento de Anos dos Serenissimos Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal por 2, os
Aplausos Oratórios e Poéticos pela Restituição da Saúde dos Serenissimos Reis de Portugal por 1, e os Aplausos
Genethliacos de Fidalgos Portugueses também por 1 volume.
112
Engrandecer, primeiramente os reis, desde o seu nascimento. Barbosa Machado abre a
sua coleção com a monarquia e no momento em que ela se assegura: nos nascimentos de seus
herdeiros. O primeiro volume desta matéria traz os nascimentos que ocorreram entre 1601 e
1648, isto é dos filhos de Felipe III, Felipe IV e D. João IV. O segundo tomo, que
compreende os anos de 1669-1699, refere-se aos filhos de Pedro II.
183
O terceiro, com
folhetos datados de 1711 a 1746, é dedicado à prole de D. João V e também à D. Maria, filha
de D. José, portanto neta do Fidelíssimo. O quarto, com opúsculos somente do ano de 1761, é
inteiramente sobre o nascimento do neto de D. José, herdeiro da coroa. Por fim, o quinto
entre 1761 e 1765, mostra o nascimento dos demais infantes filhos de D. Maria.
184
Nos genetilíacos, cada nascimento de um infante português era considerado uma
glória para todo o reino. Para aquelas ocasiões, o Paço era ricamente ornado, as ruas
enchiam-se de enfeites e luzes, festas aconteciam em vários lugares, pois um pilar da
monarquia portuguesa tinha sido erguido no nascimento de mais um príncipe.
O clima de suspense e apreensão que envolvia alguns nascimentos tornava o evento
ainda mais aguardado e a história de Barbosa Machado ainda mais interessante. A coleção
conta o episódio do nascimento do neto de D. José. Narram os folhetos que, não havendo até
então um herdeiro para o trono, Portugal passava por um período de grande apreensão e medo
de ver-se cair novamente em mãos alheias. Mas Deus sempre esteve ao lado dos portugueses
e não faria falhar a promessa que fez a Afonso Henriques no campo de Ourique: em 1761,
nasceu o tão esperado filho de D. Maria e D. Pedro. Um dos opúsculos diz que “nem o
ministro Pombal conteve a sua emoção e chorou ao receber as boas novas” do nascimento do
183
Lembremos que D. Afonso VI, que governou antes de seu irmão, D. Pedro II, não deixou herdeiro para o
trono.
184
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Genethilíacos de Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal. Rio de Janeiro,
Biblioteca Nacional, 5v.
113
príncipe-herdeiro.
185
A alegria foi imensa em Portugal e as celebrações proporcionais ao
tempo de espera, chegando algumas solenidades a durar por toda semana. Alguns
documentos recolhidos por Barbosa Machado comentam de maneira engraçada o acontecido,
narrando situações inusitadas que mostram a vontade dos súditos em comemorar o episódio.
Um deles, que saiu anônimo, descrevia os festejos que se fizeram em Belém, Portugal, pelo
nascimento do primogênito de D. Maria e afirma que as celebrações atraíram toda a plebe: o
aprendiz desafiou o mestre, o criado desatinou seu amo, os filhos perturbaram os pais, enfim,
todos queriam participar de tal festa, gastando tudo o que possuíam para chegar até o local.
Era tanta gente por terra e por mar, afirma o opúsculo, que mais parecia que a corte se
mudava. Houve notícias até mesmo de pancadaria, tudo para celebrar o nascimento do tão
esperado infante.
186
A cada ano a data do evento inaugural, o nascimento, era comemorada nos
aniversários. Naquele momento, os súditos corriam a escrever folhetos exaltando as
qualidades dos monarcas, sobretudo de D. João V, rei mais contemplado nesses volumes.
Aqui, os textos que Barbosa Machado mais se empenhou em amealhar foram os de seus pares
acadêmicos, que, além de exaltarem o monarca, mostravam também os projetos daquela
instituição a qual pertenciam. É interessante perceber como a escolha desses folhetos não foi
aleatória: o elogio do rei vem daquela que, aos olhos de um erudito como Barbosa Machado,
seria a sua obra mais importante, a Real Academia.
187
Em seguida, mais uma etapa da vida real era escrita e narrada nos tomos que tratam
dos casamentos dos monarcas portugueses com princesas de toda a Europa. Barbosa
185
VERISSIMO PORTUGUÊS. Romance Genetilíaco no Nascimento do Real Príncipe da Beira. Coimbra:
Officina da Universidade, 1761. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Genethilíacos de Reis, Rainhas e
Príncipes de Portugal. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v 5. p. 62-5.
186
Histórica relação da alegria da Corte, e contentamento do povo, pelas grandiosas, e admiráveis festas de
Touro, que em três dias se celebrarão na magnífica Praça de Belém, pelo feliz nascimento do sereníssimo senhor
D. Jozé Francisco Xavier de Paula Domingos Antonio Agostinho Anastásio, Príncipe da Beira Nosso Senhor.
Lisboa: Officina de Ignácio Nogueira Xisto, 1761. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Genethiliacos de
Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v 4. p.119-22.
187
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Aplausos dos Annos dos Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal. Rio de
Janeiro, Biblioteca Nacional, 2v.
114
Machado reuniu 113 folhetos sobre este evento, divididos cronologicamente em 5 tomos. O
primeiro sobre os matrimônios que se realizaram entre 1537 e 1682, entre eles os desposórios
de duas infantas portuguesas. A primeira é D. Catarina, que se casou com Carlos II, de
Inglaterra. A segunda, por sua vez, é D. Elisabeth Maria Francisca, em núpcias com Vitor III.
Constam ainda alguns folhetos sobre o casamento do rei D. João III com D. Joana. O
segundo, referente aos matrimônios de D. Afonso VI e D. Maria Francisca de Sabóia e o de
D. Pedro II com D. Maria Sofia. Note-se que aqui nosso abade suprime qualquer notícia
sobre o fato de D. Pedro ter desposado a mulher de seu irmão, Afonso VI, que não chegou a
consumar seu casamento. O livro seguinte, além de continuar relatando a segunda boda de D.
Pedro, prossegue tratando do casamento de D. João V e D. Mariana de Áustria. Em seguida,
no próximo livro, nosso abade narra um duplo matrimônio, dos filhos do Fidelíssimo, D. José
e D. Maria Bárbara, com os filhos do rei espanhol Felipe V, D. Fernando e D. Mariana
Victória. Por fim, os últimos desposórios são os de D. Maria, filha de D. José, com D. Pedro,
seu tio.
O matrimônio era um evento importante na coleção de nosso abade, pois não era
condição de possibilidade para que a coroa conquistasse herdeiros legítimos, mas também
uma maneira de selar alianças e trazer a paz para o reino. Nos epitalâmios, o casamento duplo
entre os filhos de João V e Felipe V é emblemático neste sentido, pois tornava-se o símbolo
do fim de qualquer ressentimento entre os dois reinos, que vivenciaram, em lados opostos, a
Guerra de Sucessão de Espanha, conflito que terá lugar na história de Barbosa Machado e ao
qual nos remeteremos mais adiante. Se o evento era importante, estava o nosso abade
recolhendo textos em que os autores narravam em detalhes a boda, a cerimônia, além de
comentarem a negociação, a nomeação dos plenipotenciários, os contratos de casamento e o
115
encontro emocionado dos dois monarcas nas fronteiras de suas terras para, enfim, trocarem as
suas filhas.
188
Este casamento, em especial, se deu por procuração. Mas quando a noiva chegou em
Lisboa, logo os consortes corriam para entrarem juntos na cidade. As entradas de D. José com
sua esposa, D. Mariana Victória, foram narradas nos tomos das Notícias Históricas e
Poéticas das Entradas de Reis e Rainhas de Portugal em Lisboa. O futuro monarca, que à
época de seu casamento era ainda príncipe da Beira, fez exatamente como seu pai, D. João V:
logo que recebeu D. Mariana de Áustria, levou-a para que toda Lisboa pudesse contemplá-la
gloriosamente. Mas esses volumes trazem também outras notícias, referentes a entradas de
monarcas como D. Sebastião, os Felipes I e II, além de D. João IV em cidades como Évora
ou ainda Lisboa.
Nos folhetos sobre a entrada em Portugal feita por Felipe II, os folhetos enfatizam o
argumento religioso, segundo o qual o reinado Habsburgo seria fruto da vontade divina, mas
destacam também a total independência portuguesa frente ao reino espanhol. Mas quando
chegamos aos opúsculos sobre D. João IV, o episódio da Restauração é abertamente tratado,
e aquele monarca é tido como o restituidor da liberdade lusitana.
189
É interessante
observarmos que, embora Barbosa Machado tenha se silenciado em relação a Felipe IV, não
esqueceu de adicionar ali opúsculos tratando das entradas triunfais dos outros dois
Habsburgos. Segundo os testemunhos, tanto eles quanto os reis da dinastia de Bragança
foram recebidos com muita festa pelos seus súditos, sempre fiéis servidores de seus
monarcas.
Mas nem só de festas e alegria era a vida dos reis. Havia também momentos de grande
tristeza e apreensão, sobretudo quando envolvia a sua saúde. Essas ocasiões são relatadas nos
188
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Epithalâmios de Reis, e Rainhas de Portugal. Rio de Janeiro, Biblioteca
Nacional, 5v.
189
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias Históricas e Poéticas das Entradas de Reis e Rainhas de
Portugal em Lisboa. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 2v.
116
tomos que vêm logo em seguida na coleção. O único volume de Aplausos Oratórios pela
Saúde dos Reis, trata apenas de dois monarcas, cuja fragilidade de suas vidas gerou apreensão
em Portugal. Um deles é D. João V, que sofreu uma doença grave durante seis longos anos, o
que, segundo os folhetos, foi motivo de extrema comoção por parte de todos os vassalos
portugueses, que acompanhavam de maneira apreensiva as variações no estado de saúde do
monarca, que ora melhorava, ora recaía. Os folhetos elogiavam o rei pela sua força e
salientavam o papel da fé dos súditos.
Quando o rei melhorava, mais eventos eram feitos para comemorar tal acontecimento,
e Barbosa Machado os recolhia como testemunho para sua coleção. Um episódio
particularmente interessante ressaltado nesse volume foi o certame organizado pelos eruditos
da Academia dos Escolhidos por ocasião da melhora do rei. As obras apresentadas naquele
concurso literário travavam discussões a respeito da solidariedade do povo perante a moléstia
do monarca, a inspiração divina do certame e a dúvida se foi maior o sofrimento de todos
perante a doença do rei ou alegria diante da notícia da sua melhora.
Outro evento que ocupou as páginas desse volume foi o atentado contra D. José em 3
de setembro de 1758. Os folhetos evitam comentar os aspectos políticos da tentativa de
regicídio, mostrando apenas que o acontecido foi motivo de comoção e prece por parte de
todos, assim como uma oportunidade de lembrar que a providência divina sempre esteve a
favor dos monarcas lusitanos.
A justiça tinha sido feita: os conspiradores foram descobertos e
levados à fogueira e o rei continuava governando o seu reino.
190
Por fim, chegava o momento do qual ninguém, nem mesmo o rei, poderia escapar: a
morte. Se nos tomos sobre a saúde dos monarcas o sofrimento e a doença acabavam
humanizando suas figuras, mostrando que eram capazes de padecer como qualquer outro
homem, na morte, eles deviam merecer as glórias que lhes cabiam, com direito a festejos,
190
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Aplausos Oratórios e Poéticos pela Restituição da Saúde dos
Serenissimos Reis de Portugal. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1v.
117
cerimônias de luto, missas, procissões, todas fielmente relatadas pelos opúsculos que Barbosa
Machado selecionou. Mesmo os últimos desejos do morto, que costumava fazer boas ações
em seu leito de morte (como, por exemplo, dar esmolas), estão explícitos naqueles
documentos, mostrando que até o último minuto, foi o monarca liberal para com seus súditos,
cumprindo seu pacto com o povo. Mais uma vez, o abade destacou folhetos que falavam das
cerimônias mandadas realizar, mausoléus erguidos em sua memória, além de poesias escritas
para louvar os reis que se foram. O Convento de Nossa Senhora e Santo Antônio, por
exemplo, fundado por Mariana de Áustria, não perdeu a oportunidade de celebrar exéquias
em homenagem àquela rainha.
O momento da morte tornava-se fundamental não apenas para preservar, mas formar
uma memória do personagem que se foi. Dessa forma, seguem-se às exéquias quatro volumes
dos Elogios Fúnebres dos Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal, que reúnem 161 folhetos
divididos em quatro tomos, exaltando as qualidades e virtudes dos monarcas mortos, sempre
comparados aos grandes homens da Antiguidade, como Carlos Magno ou um imperador
romano. A associação entre memória e escrita torna-se muito clara nos panegíricos e elogios
reunidos aqui, que, a todo momento, mostram a preocupação não em homenagear, mas
também imortalizar pelas palavras. Os reis, na coleção de Barbosa Machado, nasciam
gloriosos e morriam gloriosos; vinham ao mundo amados e comemorados pelos seus vassalos
e padeciam da mesma maneira. Dos genetilíacos aos elogios fúnebres, um ciclo de vida se
fechava e se iniciava a cada momento naqueles textos.
destacamos anteriormente que tanto o projeto da Academia Real da História quanto
a própria coleção de Barbosa Machado estavam preocupados com os exemplos e com a
necessidade de retirar do esquecimento e trazer à memória aqueles que ajudaram a
engrandecer o reino português.
191
Numa concepção de história como mestra da vida, os
191
No capítulo 1, trabalhamos como as questões da exemplaridade e da finitude marcavam os interesses de
Barbosa Machado e de seus pares acadêmicos pelo passado.
118
grandes atos do passado, seja dos reis, dos nobres ou dos clérigos, poderiam inspirar e ensinar
os súditos do presente. Sendo assim, à história cabia aconselhar, acusar, defender, elogiar,
censurar, ensinar o que era virtuoso e propagar determinados valores. Esse papel pedagógico
da história, perdido diante da sua cientifização no Oitocentos e com a ruptura entre passado e
presente, era perfeitamente comum e aceitável. De acordo com Luiz Cristiano Oliveira de
Andrade, os gêneros históricos fortaleciam a ligação entre o exercício político e a moral
católica. Neste sentido, os procedimentos retóricos daqueles textos, ao mesmo tempo que
deleitavam os seus ouvintes leitores, narrando-lhes a vida e as ações de uma dada pessoa,
ensinavam-lhes as virtudes de um bom rei e de um fiel súdito católico.
192
Os atos dos grandes varões insignes e reis de outrora inspiravam a fidelidade dos
portugueses do século XVIII para com o seu reino e sua monarquia. Esta concepção de
história amarrava presente, passado e futuro. Era preciso tirar os homens valorosos do
esquecimento, primeiramente porque eles mereciam ser eternos e vencer a finitude e,
posteriormente, porque as ações do passado serviam como espelho e estímulo para os homens
coevos e das futuras gerações.
Por outro lado, em se tratando de uma sociedade de corte, ser lembrado ou esquecido
em uma coleção como a de Barbosa Machado tinha um importante significado não apenas no
que se refere ao exemplo para a posteridade. Certamente ter o seu nome ou a história de um
antepassado contada em algum dos folhetos, conferia um certo prestígio, ao mesmo tempo
que configurava um ideal de virtude e uma imagem dos reis frente aos seus súditos. Mas,
devemos destacar que algumas pessoas, grupos e lugares eram lembrados ali de maneira mais
indireta, isto é, pela composição de uma descrição, de uma poesia ou ainda pela celebração de
uma exéquia ou festa que mandaram fazer em memória de um rei ou nobre. A lembrança não
era uma questão apenas de conquistar imortalidade, mas, sobretudo, de ser reconhecido e
192
ANDRADE, Luiz Cristiano Oliveira de. A Narrativa da Vontade de Deus: A História do Brasil de frei
Vicente do Salvador (c. 1630). (Dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-graduação em História
Social). Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2004). p. 44.
119
existir socialmente. Mais ainda: significava a possibilidade de participar da lógica de uma
economia política de privilégios, sobretudo em uma sociedade em que o indivíduo era
relacionado diretamente à casa em que nasceu.
193
D. João V e D. José, monarcas liberais
como seus antepassados, saberiam reconhecer, premiando com mercês, o esforço de seus
varões em prol do império, seja por meio das letras, das armas ou da fé. Rei e súditos
partilhavam de um ideal de virtude, de saber dar e receber, e do desejo de, assim como os
antepassados, terem também seu lugar no edifício da memória.
Barbosa Machado, ao montar a sua coleção, não estava alheio a esta lógica. Cabe aqui
lembrar a própria trajetória social do nosso abade. Ele não vinha de família nobre ou
importante do reino. Mas tanto ele quanto seus irmãos José e Inácio ascenderam
socialmente por meio de sua erudição. Barbosa Machado, como historiador-antiquário,
conseguiu visibilidade junto ao rei a ponto de, após o terremoto de 1755, o monarca se
interessar em adquirir seus materiais. O erudito conseguiu não uma boa pensão, mas
também prestígio. Nosso abade teve seu trabalho reconhecido e sua trajetória como erudito
coroada: a coleção que montou passou a fazer parte da Biblioteca Real. Nela estava seu
retrato, justamente entre os varões insignes em artes e ciências. Estavam também folhetos
seus, afinal, ninguém tinha dúvidas de que ele era um homem das letras. Por meio delas
tornou famosas as glórias da monarquia, ganhou distinção e foi reconhecido. Em sua própria
coleção, ele fora imortalizado como os personagens que ele trouxe à lembrança.
194
Dessa
forma, convém perceber que a preocupação com o passado, a coleta de documentos e a
constituição de uma história elogiosa e exultante não estavam dissociadas da cultura política
do Antigo Regime. Tratava-se de uma preocupação presente tanto na Academia Real da
História quanto na coleção montada pelo abade de Sever.
193
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O Crepúsculo dos Grandes. A casa e o patrimônio da aristocracia em Portugal
(1750-1832). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998.
194
MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Reis, príncipes e varões insignes na coleção Barbosa Machado, in Anais de
História de Além-Mar. Lisboa: Centro de História de Além-Mar, 2005, v. VI, p. 215-51.
120
A dimensão do conflito: combates nos campos de batalha e embates de testemunhos
Considerar apenas os elogios pode nos deixar a falsa impressão de que os folhetos aos
quais Barbosa Machado deu voz nos contam uma história puramente exultante e sem
momentos de conflito. De acordo com Kantor, as genealogias, exéquias e panegíricos – textos
largamente presentes nesta primeira parte da coleção de nosso erudito compunham um
gênero mais epidítico, ligado à chamada arte da memória.
195
Seguindo-se aos elogios, havia
naquela coleção outros relatos, como os de batalhas, que não informavam, mas
comprovavam os serviços prestados pelos vassalos portugueses nos momentos de tensão
pelos quais a monarquia passou. Dessa forma, o abade, além de elogiar, mostrava também, a
partir de seus textos, os conflitos que constituíram a história de Portugal. Vinte dos volumes
existentes na coleção de folhetos de Barbosa Machado são dedicados à guerra, isto é, às
notícias militares e aos cercos que os portugueses sustentaram na Europa, África, América e
Ásia.
196
Nestes volumes, rios textos descrevem e narram batalhas nas quais os portugueses
lutaram valorosamente. Em meio a estas narrativas, poderíamos ressaltar alguns conflitos que
ocupam um lugar importante na história contada pelo erudito. Um deles foi a separação entre
Portugal e Espanha em 1640 e as lutas que se seguiram pela Restauração portuguesa.
Este tema aparece tanto nas notícias militares referentes aos reinados de D. João IV e
D. Afonso VI, mas também em alguns genetilíacos, que comemoravam o nascimento do
primogênito do duque de Bragança, o que garantia um sucessor para a coroa portuguesa,
livrando-a, portanto, da sujeição e do jugo castelhano.
197
Mas é nas descrições de batalhas
195
KANTOR, Íris. Esquecidos e Renascidos. Historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759). São Paulo:
Hicitec; Salvador: Centro de Estudos Baianos/ UFBA, 2004. p. 244.
196
Os tomos dedicados aos conflitos bélicos são os seguintes: Notícias Militares de D. João IV (2 tomos),
Notícias Militares de D. Afonso VI (3 tomos), Notícias Militares de D. Pedro II (2 tomos), Notícias Militares de
D. João V (2 tomos), Notícias Militares de D. JoI (1 tomo), Notícias das Proezas Militares obradas pelos
Portugueses em a Índia Oriental (3 tomos), Notícias Históricas e Militares da América (1 tomo), Notícias
Históricas e Militares da África (1 tomo) e História dos Cercos que Sustentaram os Portugueses nas Quatro
Partes do Mundo (5 tomos).
197
MACEDO, João Campello de. Disposição e ordem pela qual se mostra como se celebrou o baptismo do
senhor infante Afonso, filho Del Rey D. João o IV nosso senhor, na sua Capella Real de Lisboa. De mando
121
que a guerra se mostra propriamente. Os 55 folhetos presentes no primeiro tomo das Notícias
Militares de D. João IV exaltam os combates nas regiões fronteiriças e as vitórias
portuguesas sobre os castelhanos, apesar da grande desvantagem numérica dos primeiros.
Num dos folhetos relatando a batalha na cidade de Elvas, o autor enfatiza a desigualdade
entre os exércitos castelhano e português, destacando que, enquanto este tinha apenas oitenta
homens, aquele chegava a quatrocentos.
198
Outro opúsculo chega a falar de “sinquo mil
homes de infantaria, e outocentos cavallos” na frente espanhola.
199
A voz dominante nos folhetos que Barbosa Machado juntou sobre o conflito da
Restauração é, sem dúvida, portuguesa. No entanto, é curioso perceber que, no volume um
das Notícias Militares de D. Afonso VI, logo entre os primeiros folhetos, temos um manifesto,
escrito em ngua portuguesa, no qual Felipe IV, rei de Espanha, conclamava seus vassalos à
obediência em meio à guerra que se desenrolava:
Por quanto (como he notório) o Reyno de Portugal faltou à obediencia, que
me devia, no anno de mil e seiscentos e quarenta, por haverlo tumultuado
alguns sediciosos (...) em companhia de Dom Ioão Duque de Bragança,
vassalo que por sua casa, e por sua pessoa, a mi, e a meus gloriosos
progenitores se recõhecia pussuidor de mayores benefícios, que outro
algum de aquella coroa.
200
Nesta versão de Felipe IV sobre o conflito, o monarca destacou que nem todos do
reino concordavam com a separação das coroas. Na verdade, os sediciosos publicavam
“diferentes manifestos para persuadir o mundo”, no entanto, segundo o Rei Católico, não
faltavam vassalos afeitos a sua obediência, pois muytos intentarão libertar sua pátria
do illustrissimo, e reverendíssimo senhor Dom Manoel da Cunha, Bispo capelão mor de sua magestade,
ordinário da capella, Casa Real e toda a corte. Lisboa: Officina de Pedro Craesbeck, 1644. In: MACHADO,
Diogo Barbosa (Org.). Genethilíacos de Reis, Rainhas e Príncipes de Portugal. Rio de Janeiro, Biblioteca
Nacional, v.1. p. 210.
198
Relaçam do felice sucesso e milagrosa vitória que ouve o capitão Luis Mendes de Vasconcellos, contra o
inimigo castellano, no termo da cidade de Elvas em 30 de julho de 1641. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.).
Notícias Militares de D. João IV. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v. 1. p. 13.
199
Relaçam verdadeira da milagrosa Victoria que alcançarão os portugueses que assistem na Fronteira de
Olivença a 17 de setembro de 1641. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Op. Cit. p. 58.
200
FELIPE IV. (Sem título). In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias Militares de D. Afonso VI. Rio de
Janeiro, Biblioteca Nacional, v. 1. p. 30v.
122
daquella tirania, e outros com louvável exemplo a deixarão, com sumo risco de suas pessoas,
passandose à minha obediência, por não consentir naquella traição”.
201
O manifesto de Felipe IV que Barbosa Machado escolheu salvaguardar, acentua ainda
a cordialidade e a clemência do rei, disposto a perdoar os portugueses pelos “tantos e tão
graves delitos”, afinal, prossegue o rei Habsburgo, todos aqueles vassalos (que amou como
filhos) não podiam pagar pela “culpa de tão poucos”. O monarca enfatizou a pouca inclinação
ao conflito por parte da Espanha, destacando, inclusive, que chegou a suspender as suas
armas, mas o exército português, passando por cima da clemência do rei, entrou em Castela e
se atreveu a sitiar Badajoz, praça de armas de Estremadura.
202
Os folhetos que se seguem ao manifesto, por sua vez, parecem colocar em xeque
alguns dos elementos que Felipe IV evidenciou em seu escrito. Um fator acentuado não é
exatamente a cordialidade ou a clemência do monarca castelhano, mas, pelo contrário, a fúria
e o barbarismo de seus soldados. De acordo com um dos folhetos, o exército inimigo:
Trazia este poder e gente muito preparada, e em boa ordem, com a qual
vindo marchando entrou pella Arraya em Portugal, e com seu exercito
chegou à vista dos muros da villa, deixando abrazados três lugares nossos,
que distava meia legoa della o mais chegado, e os outros dous fiquavão
também perto, aonde excitarão crueldades tão horrendas, q excedem a todas
as que se uzarão entre gentios, e mouros, e parecem [ilegível], porquem não
bastanto o desapiadado incêndio, co que entregarão ao fogo, e chamas, o
que naquellas piquenas aldeãs havia, à vista dos próprios naturaes, e não
perdoando ao sagrado e Igrejas, nem aos santos e imagens, a que alguas
vezes os mouros guardarão mais respeito, matavão co desusadas cruezas os
mininos e molheres, que acharão não lhe valendo a aquelles a tenra idade, e
simplez innocencia, nem a estas a qualidade de algumas, nem o estarem
prenhes deixando algumas nuas e despidas vergonhosamente, e
escalandoas. Aos homens, que por feridos, e já cansados não podere usar de
seu valor natural; se rendião, e entregavão aos ímpios soldados castellanos
entre vários gêneros de mortes, q lhes davão, estudou o ódio endurecido, e
pertinaz alentado da malicia cruel hum tão exquesito, que até o presente
não temos nas vitórias, q os bárbaros mais deshumanos alcançarão, qual era
encheremlhe por força as bocas de pólvora, e dandolhe fogo rebentavão
aquellas animadas minas saltandolhe os olhos, e miolos fora. A outros
201
Ibid. p.30.
202
Ibid.
123
cortavão as partes vergonhosas, e lhas metião por bocas, torpe
crueldade.
203
A passagem, embora extensa, mostra uma outra atitude do exército de Felipe IV muito
menos amistosa do que aquela que o monarca espanhol parecia ressaltar. As barbaridades
castelhanas, na narrativa dos portugueses, são sem precedentes: nem pagãos, tampouco os
mouros, foram capazes de ir tão longe, incendiando igrejas, saqueando lugares sagrados e
desrespeitando mulheres e crianças. Além disso, nas narrativas selecionadas, a sublevação
não parece ter sido restrita a poucos, como dizia Felipe IV, mas, pelo contrário, ganhou um
extremo apoio popular. Homens e mulheres comuns apoiavam a causa da Restauração e
chegavam a pegar em armas para lutar:
Para notar foi neste primeiro rebate, primeira mostra dos ânimos dos
vassalos, q se acharão nelle todos sem exceição de pessoa, velhos e moços,
e ecclesiasticos e alguas molheres, co tal esforço q dizião as puzessem no
maior perigo huas com fouces, outras com paos, significavão q na alma
trazião desejo de morrer na defensão de V. Magestade.
204
Barbosa Machado, embora tenha ressaltado as vitórias portuguesas e o apoio popular
ao exército lusitano em meio à temática das guerras de Restauração, não deixou de compilar
também um folheto que seria a voz do inimigo. Um olhar mais generalista, preocupado
apenas com as disposições dos materiais da coleção acabaria não percebendo quais
testemunhos o erudito colecionou. Não se trata de pensar qual a versão correta – se a
203
Relaçãm de hua carta do Doutor Ignasio Ferreira, do Dezembargo Del rey Nosso Senhor e outra de hum
religioso do Mosteiro de Bouro, em q se referem alguas entradas, q se fizerão no Reyno de Galiza. Lisboa:
Officina de Jorge Rodrigues, 1641. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias Militares de D. João IV.
Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v. 1. p. 86-87.
204
SOUSA, Pedro Vas Cirne de. Relaçam do que se fez a Villa de Guimarães do tempo da felice aclamação de
sua magestade, até o mês de octubre de 1641. Lisboa: Jorge Rodrigues, 1641. In: MACHADO, Diogo Barbosa
(Org.). Op. Cit. p. 93. A presença popular é a nica dos folhetos cuja temática é a Restauração. No entanto, é
interessante observar que, entre os moradores das diversas vilas e cidades que lutaram contra os espanhóis, os
autores destacam a marcante presença feminina. Um dos opúsculos ressalta os feitos de uma mulher que matou
com uma cachaporra sete castelhanos. No entanto, ela não conseguiu sair da batalha com vida, pois a acertaram
de cima de um telhado. O surpreendente foi que, “depois de morta foy achada hua criança de peito
mamandolhe nos seus” (Facções venturosas que tiverão na fronteira de Almeida o general Fernão Telles de
Menezes, e o mestre de campo D. Sancho Manoel, contra o inimigo castelhano, em 2 e 4 deste mês de novembro
do anno presente 1642. Lisboa: Officina de Domingos Lopes Rosa, 1642. In: MACHADO, Diogo Barbosa
(Org.). Op. Cit. p. 352).
124
castelhana, se a portuguesa nem de enveredar pelos estudos sobre Restauração, mas de
atentarmos para a importância da temática castelhana na coleção de Barbosa Machado, para
os documentos que foram coletados e como o abade montou-os em meio ao seu quebra-
cabeça.
O conflito que aparece logo após o tema da Restauração nos opúsculos colecionados
por Barbosa Machado também envolve o reino vizinho a Portugal. Em 1700, morreu o rei de
Espanha, Carlos II, o último Habsburgo. Começava, então, uma disputa pelo trono espanhol
entre o duque de Anjou (que chegou a ser coroado Felipe V de Espanha), apoiado pela
França, e o arquiduque Carlos de Áustria, apoiado pela Inglaterra e Países Baixos. Em meio à
possibilidade de união das monarquias francesa e castelhana, Portugal deixou de dar seu
apoio ao duque e à França, e acabou por se aliar aos britânicos no conflito que seria
conhecido como Guerra de Sucessão Espanhola, tema das Notícias Militares de D. Pedo II e
das Notícias Militares de D. João V.
Os dois tomos das notícias militares de D. Pedro II trazem ao todo 121 folhetos, todos
eles sobre ao conflito sucessório na Espanha. O tomo se inicia com textos relacionados ao
posicionamento de Portugal naquela guerra. A mudança de posição portuguesa e o apoio que
D. Pedro deu à Inglaterra suscitaram uma série de discussões presentes nos opúsculos. Um
dos folhetos apresenta um discurso do estado Eclesiástico, alertando o rei dos riscos de entrar
em um conflito ao lado dos infiéis britânicos.
205
A monarquia portuguesa, no entanto,
justifica o seu posicionamento argumentando que a união das coroas francesa e espanhola
seria um perigo e que cabia a Portugal libertar os seus vizinhos daquela servidão.
206
Logo a
seguir ao texto que justifica a entrada de Portugal na guerra, Barbosa Machado adicionou um
205
Zelo Christiano, y Politica desinteressada, que apresenta a la magestad del muy alto, y poderoso señor Don
Pedro II, Rey de Portugal nuestro señor (que Dios guarde) el Estado Eclesiástico del mismo reyno. Lisboa, 1703.
In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias Militares de D. Pedro II. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional,
v. 1. p. 26-31.
206
Justificación de Portugal en la resolución de ayudar a la inclita nacion Espanhola a sacudir el yugo francês, y
poner em el trono real de su monarquia al Rey Catholico Carlos III. Lisboa: Valentin de Acosta Deslandes, 1704.
In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Op. Cit. p. 43-48.
125
outro folheto, escrito por Jerônimo Juliano, em que ele rebate o manifesto de D. Pedro II.
Colocando-se claramente contra a posição do monarca, o autor insinua que “alguna sediciosa
pluma” estava influenciando na escrita do documento de D. Pedro. Diz ainda que o rei
português estava “abriendo la puerta à los auxiliares enemigos de el norte”, os heréticos
britânicos.
207
Apesar das contendas relatadas nos folhetos iniciais, Portugal entrou na guerra.
Seguem-se, então, descrições e mais descrições sobre os sucessos dos portugueses no
conflito. Uma relação narra a vitória que o batalhão liderado pelo marquês das Minas,
Antonio Luís de Sousa, alcançou na província do Alentejo:
Mas sabendo o Marquez [das Minas] por alguns desertores, e pelos avisos
de nossas guardas, e batedores, que a cavallaria inimiga se avistava ainda, e
se não tinha recolhido todas para o bosque, lhe mandou investir a
retaguarda o que se fez com tal vigor, que se achou obrigado o Duque [de
Bervvick, que lutava pelo exército inimigo] a passar da vanguarda à
retaguarda com todos os clavineiros, onde se travou um furioso conflitcto, e
chegou o Duque a perder o cavallo, e se vio obrigado a tirar a pluma do
chapeo que trazia para diviza, que foy causa de correr a voz de ser morto ou
mal ferido; e assim cedendo o campo ao valor dos nossos, se poz em fuga
(...). O número certo de mortos do inimigo se não averigou, mas consta que
forão muitos, e a maior quantidade de feridos, e entre elles o Márquez de S.
Vicente. Aprizionarãose muitos officiaes, e soldados com o Conde de
Canillejas.
208
Mas a guerra se alongava, adentrando o reinado de D. João V, e as derrotas
começavam a aparecer em folhetos que defendiam a causa espanhola. Um opúsculo relatava
os sucessos espanhóis nos Campos de Almansa:
Aunque no se sabe com certeza el numero de los muertos enemigos, se
supone sean de seis a ocho mil hombres, com um gran numero de
prisioneros, que llegarán hasta cinco mil. Veinte coroneles prisioneros, dos
207
JULIANO, Jerônimo. Respuesta breve al manifiesto em que el rey Don Pedro Segundo de Portugal, pretexto
los motivos que tuvo para romper la guerra a las coronas. Escriviola el español professor de Minerva. In:
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Op. Cit. p. 60v e 61.
208
Segunda Relaçam verdadeyra da marcha, e operaçoens do exercito da Província de Alentejo governado pelo
Márquez das Minas D. Antonio Luis de Sousa, dos Conselhos de Estado, e Guerra delRey nosso Senhor, e
Governador das Armas da dita província; rendimento da Praça de Alcântara, e diversão intentada pelo inimigo na
Praça de Elvas. Lisboa: Antonio Pedrozo Galram, 1706. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias
Militares de D. Pedro II. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v. 2. p. 116.
126
mariscales de campo, diez batallones portugueses, enteramente
aruynados”.
209
Outra notícia contava ainda que foram confiscadas cartas que o rei de Portugal teria
mandado ao Marquês das Minas. Por elas, ficava-se sabendo que o batalhão do dito nobre
sofreu um grande susto na província do Alentejo. O monarca, então, teria enviado “estrechos
ordenes al de las Minas para que luego luego se embarque com todas las tropas portuguesas,
que tiene, e se venga a Portugal defender su propria casa”.
210
Em meio às derrotas, um folheto intitulado ironicamente “El despertador de los
portugueses, o el general desembobado”, traz um suposto diálogo entre o Marquês das Minas
e o Conde de Atalaya em que o primeiro defendia que Portugal não deveria permanecer na
guerra, pois ela não lhe traria nenhum benefício. O conflito é visto como um engano e, mais
do que isso, uma luta entre católicos e infiéis protestantes em que Portugal estaria apoiando o
lado errado.
211
Haveria, portanto, uma crítica ao rei, figura sempre tão elogiada na coleção de
Barbosa Machado? Estaria o erudito coletando documentos que criticavam D. Pedro II por ter
entrado na guerra e D. João V por ter permanecido nela? A resposta pode ser encontrada em
outro opúsculo, presente no segundo volume das Notícias Militares de D. João V. Nele, o
autor conta que, enquanto dormia, sonhou que estava caminhando. Foi então que entrou em
um buraco e chegou ao inferno. Acabou caindo em uma sala onde demônios terríveis estavam
reunidos discutindo a sucessão do trono espanhol. O objetivo deles era dar início a uma
209
Relacion breve de la feliz Victoria que han conseguido las armas de su magestade mandadas por el señor
mariscal Duque de Bervvik, contra el exercito de los aliados em los campos de Almansa, el dia veinte y cinco de
abril de este presente año de mil setecientos y siete. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias Militares
de D. Pedro II. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v. 1. p. 115-115v.
210
Prosiguen las noticias diária, de Espana, Valencia, Aragon, Itália, el Norte, lo del Rin, y el estado de las armas
de nuestro católico monarca Don Felipe Quinto (que Dios guarde). In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Op.
Cit. p. 127.
211
El despertador de los portugueses, o el general desembobado, dialogo político, y entretenido, entre el Marques
de las Minas, y el Duque de Cadaval, sobre las consequecias de la guerra presente. Lisboa: Pedro Enganado, em
la calle de los Embustes, 1707. MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias Militares de D. João V. Rio de
Janeiro, Biblioteca Nacional, v. 1. p. 54-81.
127
guerra que contaminasse toda a Europa. Para isso, embaixadores do inferno foram enviados a
vários reinos a fim de suscitar desentendimentos e inclinar alguns monarcas a favorecer ao
arquiduque e, outros, a Felipe V. Esses pequenos demônios (talvez a “sediciosa pluma” a
qual se referia Jerônimo Juliano) manipulariam os reis, que acabariam por tomar decisões
equivocadas sem a sua vontade.
212
Dessa forma, se D. Pedro II e D. João V cometeram algum
erro, eles eram atribuídos a seus conselheiros, e não exatamente aos monarcas.
A narrativa que propomos acima, dos elogios aos conflitos, e os dois exemplos
trabalhados das guerras de Restauração e de Sucessão Espanhola podem nos ajudar a
pensar elementos importantes referentes às singularidades de um tipo de escrita da história
como esta coleção. Michel de Certeau, na passagem que usamos como epígrafe deste
capítulo, afirma que a escrita, ao mesmo tempo que conta, é capaz de fazer a história. A partir
desta idéia, bem como da coleção de Barbosa Machado retornamos à questão da construção
do passado por meio da escrita.
Ao escrever um livro, um historiador escolhe cuidadosamente palavras e frases para
poder “fazer” a sua história. No entanto, quando nos deparamos com a coleção montada pelo
abade de Sever, parece-nos que a sua escrita é de outra ordem, o que lhe confere uma
primeira peculiaridade. Os opúsculos presentes em sua coleção, com algumas poucas
exceções, não são dele. Não foi Barbosa Machado que escreveu sobre o nascimento do
primogênito de D. Maria, não foi ele que exaltou D. Pedro II no momento de sua morte,
assim como o nosso abade não esteve presente ou narrou as batalhas entre portugueses e
castelhanos. Na verdade, a sua narrativa se pelas vozes de outros, isto é, daqueles que
compuseram os opúsculos, cabendo a ele “apenas” coletar.
Vimos também que esses opúsculos são de diversas ordens e tipos: panegíricos, cartas,
elogios, descrições, poesias, diálogos, histórias, memórias, várias escritas que compunham a
212
Junta de Diablos, y anamblea en el infierno. Nuevos tratados para la futura campana. Compuesto por el Lic.
Sotana estando soñando. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias Militares de D. João V. Rio de
Janeiro, Biblioteca Nacional, v. 2. p. 140-7.
128
narrativa do nosso erudito. Ao longo do século XIX, quando a história se constituiu como
disciplina, os diversos gêneros históricos que existiam anteriormente se unificaram. As
histórias, no plural, (de Portugal, do Algarve, de um dado personagem) tornaram-se a
História, com “hmaiúsculo e no singular. A partir de então, tudo seria entendido dentro de
um movimento único, uma espécie de força que levava a humanidade a atingir seu fim. No
século XVIII, por outro lado, várias formas historiográficas falavam sobre o passado, embora
mantivessem diferenças entre si. Os panegíricos, por exemplo, eram utilizados como
repertórios de virtudes, destacando a qualidade moral dos grandes homens, num tempo coevo
ou pretérito. Estes textos distinguiam-se de outras formas de história por compor um louvor
ao merecimento de uma dada pessoa. As crônicas, por sua vez, eram diferentes. O tempo de
seu enunciado era o passado, referindo-se ao que se ouviu a respeito das ações de alguém.
213
Barbosa Machado não escolheu palavras, como tantos historiadores, mas opúsculos
dos mais variados tipos. Coletando documentos e colocando-os sob os olhos de seus leitores,
o abade fazia acontecimentos e testemunhos falarem por si mesmos, sem sua intervenção
aparente. As diversas histórias contadas ali eram vistas pelos olhos de seus leitores quando
percorriam os indícios do passado.
Chegamos, assim, a um segundo ponto de reflexão sobre a coleção e, portanto, uma
segunda peculiaridade deste tipo de escrita, que comporta um certo conflito que não se
restringe aos campos de batalha, mas que se faz presente também em seus testemunhos.
Vimos que o erudito entremeou em seus volumes opúsculos que justificavam os interesses
portugueses em um conflito pelo trono espanhol com outros, que refutavam todos aqueles
argumentos e mostravam que era um erro Portugal se envolver naquela disputa. Ainda na
narração deste evento, o abade não silenciou a notícia de derrotas portuguesas e o
213
PÉCORA, Alcir. A história como colheita rústica de excelências. ____ e SCHWARTZ, Stuart (Org.). As
Excelências do Governador. O panegírico fúnebre e D. Afonso Furtado de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676). São
Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 48. Neste estudo sobre o panegírico de autoria de Juan Lopes Sierra,
Alcir Pécora refere-se ao conjunto heteróclito das formas historiográficas, que admitiam, além das crônicas e
histórias, tratados, cosmografias, corografias e panegíricos.
129
descontentamento expresso em alguns folhetos em relação à participação lusa no conflito. No
entanto, nos relatos militares sobre a Guerra de Restauração, ele preferiu destacar as vitórias e
as notícias favoráveis aos portugueses. Será que não houve derrotas neste conflito? Será que
os espanhóis, assim como os portugueses, não produziram folhetos tratando do mesmo
embate, mas numa perspectiva diferente? Certamente sim.
Jorge Miranda Leite e Rodrigo Bentes Monteiro, em um artigo conjunto, debruçaram-
se sobre os três tomos intitulados Manifestos de Portugal, que também fazem parte da
coleção Barbosa Machado. Neste estudo, os autores destacaram, por exemplo, que, no
primeiro volume, no qual Barbosa Machado organizou os folhetos sobre a sucessão do trono
luso em 1580, o abade dispôs ali textos favoráveis à candidatura de D. Antônio, prior do
Crato e neto de D. Manuel I, ao trono português. Porém, também não esqueceu de adicionar
àquela coleção um folheto de apoio à candidatura de Felipe II, rei de Espanha. Além disso, no
segundo tomo dos Manifestos, nosso abade guardou também um opúsculo que afirmava ser
Portugal, inicialmente, um feudo de Castela. No entanto, logo em seguida, não esqueceu de
adicionar outro texto que, por sua vez, rebatia esta afirmação.
214
Concomitantemente a uma narrativa elogiosa, onde folhetos são selecionados para
exaltar o passado português, é possível ver na coleção momentos de tensão, expressos não
nas guerras e batalhas propriamente ditas, mas também nos testemunhos. Cremos que esta
seja também uma característica própria de uma escrita antiquária, em que os vestígios
dialogam entre si, respondendo uns aos outros. Aquele tipo de escrita (a coleção) não exigia
de Barbosa Machado que ele constituísse ali uma história de Portugal fechada e coerente, mas
antes, que expusesse os testemunhos, as diversas opiniões, deixando os textos falarem e
discutirem entre si. Dessa forma, ele conferia ao seu leitor a possibilidade de confrontar
opiniões e, a partir dos indícios, ver um passado invisível na sua complexidade.
214
MONTEIRO, Rodrigo Bentes e LEITE, Jorge Miranda. Os manifestos de Portugal: reflexões acerca de um
Estado moderno, in ABREU, Martha; SOIHET, Rachel & GONTIJO, Rebeca (Org.). Cultura Política,
Historiografia e Ensino de História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p.113-131.
130
Inicialmente poderia parecer uma atitude bastante neutra de Barbosa Machado, mas o
interessante é perceber como ele organizou esta discussão entre os testemunhos. Colecionar
documentos distintos poderia nos indicar um certo desejo de neutralidade de nosso abade,
porém nem sempre parece ser assim. Lembremos que o Manifesto de Felipe IV é soterrado
pelas dramáticas e minuciosas versões portuguesas da Guerra de Restauração, presentes nos
volumes das Notícias Militares de D. João IV e D. Afonso VI. Nos Manifestos de Portugal,
folhetos lusos figuram lado a lado com folhetos espanhóis, no sentido de respondê-los, e de
induzir o leitor a perceber qual a versão mais verdadeira.
215
Apesar de todo um projeto da Academia Real preocupado com uma certa
imparcialidade do historiador, que não deveria mentir para exaltar sua pátria, Barbosa
Machado, ao selecionar e organizar os documentos, acabou ele mesmo por fazer escolhas e,
portanto, fazer a sua própria história. Essas escolhas possibilitavam aos seus leitores uma
certa narrativa do passado português, com silêncios e interdições que ocorriam quando um
folheto ou autor era simplesmente silenciado, soterrado ou desacreditado por outras
narrativas. A escrita de Barbosa Machado revela, portanto, duas importantes singularidades.
Em primeiro lugar, ela é constituída a partir de outros tipos de escritas, das mais variadas
formas, expressas naqueles folhetos. Em segundo lugar, essa escrita comporta o diálogo entre
testemunhos, que muitas vezes complementam-se, conversam, mas também rebatem-se e
lutam entre si. Barbosa Machado mostrava pelos seus materiais aquilo que as pessoas não
viram, mas poderiam ver a partir dos testemunhos que selecionou. Percebiam, então, como os
personagens portugueses foram grandiosos, as batalhas magníficas e a conquista no ultramar
bem sucedida. Essa diversidade de narrativas e de testemunhos parece se juntar na coleção,
como palavras e frases se juntam em um livro, configurando uma história elogiosa por si
mesma, como se não precisasse de Barbosa Machado para ser percebida dessa forma. Seu
215
Ibid.
131
trabalho tinha, portanto, um interesse. As histórias trazidas à lembrança tinham um objetivo,
e a partir dele o colecionador selecionava e dispunha seus documentos, contando ao mesmo
tempo em que fazia a sua história.
216
Os episódios que contamos até agora, dos nascimentos às batalhas, se passaram nas
terras européias. nasceram reis e rainhas, e lá estavam alguns dos inimigos, os “outros”,
contra quem os portugueses lutaram com armas e palavras. Mas Portugal enfrentou outros
percalços, muitos deles em lugares desconhecidos, onde batalhas pela cruz e pela espada
também aconteceram e serviram para engrandecer os varões e a monarquia daquele reino. As
histórias narradas e construídas a partir dos vestígios que aquele colecionador punha ao olhar
de seu público não se restringiam ao reino, mas passavam-se também nas possessões
portuguesas de Ásia, África e América.
Os lugares da história
Manoel Telles da Sylva, na História da Academia Real da História Portuguesa, conta
que aquela instituição nasceu para melhorar a história eclesiástica e secular de Portugal e de
suas conquistas. Dessa forma, seu projeto historiográfico parecia ir além das fronteiras do
reino, alcançando também as possessões no além-mar.
217
De acordo com Íris Kantor, o discurso da Academia Real, associado às questões
políticas da época, preocupava-se em glorificar o espaço imperial. A escrita projetada pelos
acadêmicos deveria não exaltar o rei e a monarquia, dar visibilidade aos vassalos, mas
também constituir uma história do ultramar. A proposta da Real Academia, assumida pelos
216
Sobre a questão da evidência, ver HARTOG, François. Évidence de l´histoire. Ce que voient les historiens.
Paris: Éditions de l´École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2005.
217
SYLVA, Manoel Telles da. Historia da Academia Real da Historia Portugueza. Lisboa: Officina de Joseph
Antonio da Sylva, 1727, v.1. Prólogo
132
seus acadêmicos, tinha uma temporalidade marcada pelos reinados dos monarcas
portugueses:
Cada reinado deveria ser tratado em quatro partes: uma primeira dedicada
às origens da monarquia e da nobreza; uma segunda, sobre o governo civil;
uma terceira, sobre o governo militar; e a última referente aos
descobrimentos e conquistas. Nessa última, a sugestão era de que se
iniciasse pelo continente africano, seguindo o critério da contigüidade
espacial, terminando com a descrição das conquistas asiáticas.
218
Como nos referimos no capítulo dois, Kantor ressalta que, após a Paz de Westfália,
os reinos europeus assumiram uma atitude mais secularizante em relação ao problema do
domínio de uma certa região. Tratados como o de Madri, que estabeleciam o princípio da
posse efetiva, chamado uti possidetis, aboliam definitivamente as doações pontificiais e o
Tratado de Tordesilhas.
219
A partir de então, os reinos deveriam comprovar essa posse efetiva
por meio de documentos. Neste sentido, a coroa portuguesa, que naquele momento ainda não
tinha um domínio pleno dos territórios sob o seu poder, convocava seus historiadores e
eruditos para constituir um certo conhecimento das regiões longínquas que pertenciam ao
reino.
220
Tornaram-se importantes para essas questões territoriais textos de viajantes, de
eclesiásticos mandados para evangelizar os gentios, descrições de batalhas, além de outros
que mostrassem a presença efetiva e a ocupação portuguesa de um território. Não esses
documentos deveriam ser recolhidos e criticados pelos historiadores, mas essas regiões e
temas incorporados em seu trabalho e suas histórias.
Se no culo seguinte teríamos duas disciplinas separadas a história e a geografia,
uma relacionada ao tempo, outra ao espaço – no século XVIII, questões envolvendo a
descrição de lugares e regiões, costumes de seus nativos, topografia e riquezas naturais
218
Ibid. p. 269.
219
KANTOR, Íris.A Academia Real da História Portuguesa e a defesa do patrimônio ultramarino: da paz de
Westfália ao Tratado de Madri (1648-1750). In: BICALHO, Maria Fernanda e FERLINI, Lúcia Amaral (Org.).
Modos de Governar. Idéias e práticas políticas no Império português. Séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda,
2005. p. 260 e 266.
220
KANTOR, Íris. Esquecidos e Renascidos. Historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759). São Paulo:
Hucitec; Salvador: Centro de Estudos Baianos/ UFBA, 2004. p. 62.
133
diziam respeito ao trabalho dos historiadores.
221
Mesmo no século XIX, no Brasil, as
fronteiras ainda eram muito ambíguas. O conhecimento das regiões e de suas características
naturais pertencia ao saber dos geógrafos, mas segundo Temístocles César, a história, no
Oitocentos, ainda preocupava-se em estudar essas questões, tornando-as parte integrante da
constituição de sua disciplina e importante para um projeto de afirmação do Estado-Nação no
Brasil.
222
Voltando ao século XVIII, mas saindo um pouco do âmbito da Academia Real
Portuguesa, podemos citar um exemplo dessa ambigüidade neste lado do Atlântico. Em 1759,
foi fundada, pela vontade das elites coloniais, uma academia na Bahia, a dos Renascidos, que,
além de desejar escrever uma história da América, dedicava-se também a dar visibilidade aos
súditos daquele território, fazendo com que o rei conhecesse melhor os seus vassalos e
pudesse premiar os serviços que prestaram à coroa.
223
Embora esta instituição não seja nosso
objeto de estudo, convém destacar uma passagem interessante presente em seus estatutos. Ali
é dito que os Renascidos vieram “para escrever a história eclesiástica, secular, geográfica,
natural, militar, enfim uma história universal de toda a América Portugueza” (grifo nosso).
224
Este termo, “história universal”, que posteriormente foi utilizado no sentido de história da
humanidade, tem neste caso um outro significado: o estudo de um território sob diversos
aspectos. Aqui a expressão aparece como sinônimo de um saber enciclopédico que exigia do
historiador da época um conhecimento vasto e horizontal, abarcando não a cronologia
histórica, mas exigindo também conhecimentos políticos, militares e geográficos. Todos
esses elementos eram fundamentais para entender de forma ampla a história de um
determinado reino ou região (no caso dos Renascidos, a América Portuguesa).
221
CLEN, Adriana Mattos. As Corografias e a Cultura Histórica Oitocentista. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.
(Dissertação defendida pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ).
222
CEZAR, Temístocles. A geografia servia, antes de tudo, para unificar o império. Escrita da história e saber
geográfico no Brasil oitocentista. Agora, Santa Cruz do Sul –RS, v.11, n.1, p. 79-99, 2005.
223
KANTOR, Íris. Op. Cit. p. 94.
224
Estatutos da Academia Brazilica dos Acadêmicos Renascidos, estabelecida na cidade de Salvador B
a
de
Todos os Sanctoz, capital de toda a América Portugueza, da qual e a de escrever a história universal. Rio de
Janeiro, Biblioteca Nacional. Sobre esta academia, ver KANTOR, Íris. Op. Cit.
134
À escrita tanto da Academia Real quanto da Academia dos Renascidos importava não
apenas os eventos, os episódios, mas também os lugares onde eles se desenrolaram. Como era
intenção da Academia Portuguesa exaltar as glórias lusitanas nas quatro partes do mundo,
cabia, então, ir além das fronteiras do reino e procurar os testemunhos das grandes ações
lusas em outras regiões. Assim, os lugares ou as paisagens serviam como cenários de grandes
acontecimentos históricos e, portanto, como um testemunho do passado.
225
De acordo com
Arnaldo Momigliano, os antiquários, muitas vezes, retiravam da natureza um determinado
objeto não apenas por suas propriedades naturais, mas porque, naquele lugar, ocorreu algum
evento do qual plantas, rios, árvores e montanhas foram testemunhos.
226
Seria difícil para
Barbosa Machado ter consigo uma planta que tivesse “presenciado” a expulsão dos
holandeses no nordeste brasileiro. Mas ele tinha uma outra maneira de trazer lugares como
aquele para a sua história e para os olhos de seus leitores: a partir da escrita, isto é, por meio
dos testemunhos e relatos que coletou produzidos por aqueles que vivenciaram ou assistiram
um evento. Esses textos eram capazes de produzir imagens, de fazer o seu leitor visualizar
um acontecimento e acreditar que ele aconteceu de uma determinada maneira.
É preciso nos deter por um momento na importância que tinham os lugares tanto para
a Academia Real quanto para o nosso acadêmico-antiquário. A história contada pelo nosso
erudito acontece em várias partes do chamado império português. Nas Memórias para as
histórias de Portugal que comprehendem o governo Del Rey D. Sebastião, cujo enredo está
longe de se centrar apenas na vida e no reinado do Desejado, Barbosa Machado destacou a
atuação dos vassalos daquele tempo em várias possessões portuguesas, aproveitando para
mostrar ao seu leitor o exotismo e os perigos daqueles lugares, bem como os costumes de
suas populações. Uma história que levasse em conta outras regiões além do reino era algo
contemplado nesta obra do acadêmico.
225
CLEN, Adriana Mattos. Op. Cit.
226
MOMIGLIANO, Arnaldo. As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna. São Paulo: EDUSC, 2004. p. 85-
117.
135
Logo no início, o abade oferece ao seu leitor um panorama daquilo que acontecia nos
quatro cantos do mundo nos tempos de D. Sebastião. A Europa vivia o Concílio de Trento,
para o qual Portugal enviou embaixadores e teólogos. A África era palco de inúmeras
batalhas e conquistas, como na Praça de Mazagão, sitiada pelos mouros. Na Ásia, os
portugueses expandiam a católica. Por fim, na América, Mem de Sá e Estácio de
triunfavam não só sobre a rebeldia dos Tamoios, Tupis e Aimorés, mas também defendendo a
região da cobiça francesa.
227
Barbosa Machado ainda dedicou alguns capítulos
exclusivamente a personagens que viveram suas façanhas fora do reino. Tratou de temas
como a eleição e as primeiras medidas de D. Constantino de Bragança como vice-rei da
Índia; o martírio do Pe. Afonso de Castro, da Cia de Jesus, quando tentava expandir a religião
cristã no Oriente; as vitórias de Mem de Sá sobre os índios rebeldes da Bahia; a tentativa
turca de conquistar a fortaleza de Bahaem, impedida por D. Álvaro da Silveira, que morreu
valorosamente na batalha; e a conversão do imperador Monomotapa à fé católica, conseguida
pelo missionário Pe. Gonçalo da Silveira, que, também heroicamente, padeceu ao martírio.
228
Em outro momento, quando tratou da entrada de D. André de Oviedo na Etiópia, Barbosa
Machado foi além, passando da narração dos sucessos à descrição da região africana e de
seus habitantes.
229
A narrativa heróica cedia espaço à constituição da imagem de um lugar
que nosso abade certamente nunca viu, mas pode edificá-la em seu texto a partir dos
documentos que consultou. Podia ainda mostrá-la ao seu leitor, que, pelas descrições,
visualizava os distantes nativos etíopes e a região em que viviam.
Esta obra de Barbosa Machado foi desenvolvida dentro do projeto da Real Academia
de História. A instituição lhe deu como tema este reinado e ele, então, compôs suas memórias
históricas considerando nelas vários espaços que à época estavam sob o domínio português.
227
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Memórias para a História de Portugal, que comprehendem o governo
delRey D. Sebastião. V. 1. Lisboa: Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1736. p. 3.
228
Ibid. Caps: 10, 11, 13, 15, 21.
229
Ibid. Cap. 12.
136
Embora fosse uma preocupação daquela instituição incorporar o ultramar em seu projeto,
nem sempre vemos esse assunto contemplado nas obras de seus acadêmicos. Pedro de
Almeida Portugal, embora tenha atuado nas possessões portuguesas na Ásia, não chegou a
escrever nenhuma obra do porte das Memórias de D. Sebastião. Limitou-se a proferir elogios
e orações na Academia.
230
O conde da Ericeira ficou incumbido de compor a história do
arcebispado de Évora, tema que se limitava a uma região do reino.
231
Coube ainda a outro
acadêmico, Antonio Caetano de Souza, fazer um catálogo dos bispos de Funchal, Baía, Goa,
Cochim, Maliapor, China, Japão, Macau, Nankim, Malaca, S. Tomé, Angola e Angra.
232
Certamente, a obra, além de listar os prelados da região, poderia trazer informações
relevantes sobre as mesmas, seja em relação aos eventos que lá aconteceram, seja sobre suas
características geográficas. No entanto, este livro não pode ser concluído pelo erudito.
Justamente por não receber notícias do ultramar necessárias para continuar a sua empresa,
Caetano de Souza acabou se voltando para um outro espaço, o reino, desenvolvendo o projeto
de composição da História Genealógica da Real Casa de Portugal, obra monumental que lhe
rendeu muitos méritos e pensões.
233
O projeto da Academia Real era extenso e vasto. Levantar documentos e personagens
importantes não do reino, mas de suas possessões e até mesmo que atuaram em outras
partes da Europa não era trabalho que uma ou duas gerações pudessem desenvolver. E, de
fato, não desenvolveram. Os acadêmicos reclamavam da falta de material, (como vimos fazer
Caetano de Souza, que teve de desviar totalmente seu tema por conta disso). Outros talvez
estivessem envolvidos mais com os assuntos administrativos que eruditos, não sobrando
tempo para se dedicarem à escrita das memórias históricas. Certo é que uma história de
230
MACHADO, Diogo Barbosa. Bibliotheca Lusitana. Lisboa Occidental: Officina de Antonio Isidoro da
Fonseca, 1741-1759, v. 3. p.552-3.
231
MOTA, Isabel Ferreira da. A Academia Real da História. Os intelectuais, o poder cultural e o poder
monárquico no século XVIII. Coimbra: Edições Minerva Coimbra, 2003. p.152.
232
Ibid. p. 157.
233
Ibid.
137
Portugal acabou não sendo produzida, menos ainda uma história das possessões portuguesas
no ultramar. Isabel Mota atribui o declínio daquela instituição não a conflitos internos, mas
ao alargamento de horizontes culturais que se nota, sobretudo, a partir de 1740, com a
influência de novas formas de expressão mais vivas e mais populares, como na música, no
teatro e na poesia.
234
O tradicional ritual em que os acadêmicos proferiam orações no
aniversário dos monarcas ainda durou muito tempo. No entanto, o teor de seus discursos
mudou ao mesmo tempo em que a importância da Academia diminuía. É possível sentir essa
mudança nos folhetos que Barbosa Machado reuniu nos tomos dos Aplausos Oratórios e
Poéticos no Complemento de Anos dos Sereníssimos Reis, rainhas e Príncipes de Portugal.
No primeiro volume, elas trazem discussões vigorosas sobre o projeto da instituição, a função
do historiador, o uso de documentos, além de questões envolvendo memória/
esquecimento.
235
Seus eruditos aproveitavam aquele espaço não apenas para elogiar, mas
para refletir sobre seu próprio trabalho. No segundo volume, que traz opúsculos publicados
entre 1731 e 1769, quando se passaram alguns anos da fundação da Real Academia e
alguns de seus membros fundadores já tinham morrido, os textos mudam de tom. Eles deixam
de falar propriamente de história e de seus trabalhos e se tornam meramente exultantes e
elogiosos.
A Academia teve uma vida produtiva curta, mas um projeto promissor. a coleção
de Barbosa Machado, como vimos no capítulo 1, foi montada pelo abade até bem perto de
sua morte, isto é, até cerca de 1770, quando a Real Academia já não tinha influência e quando
a história já havia perdido o seu reinado para a história natural. Sem dúvida, o abade carregou
consigo muito daquele projeto. No entanto, ele parece ter inovado em alguma medida ao
considerar, naquela coleção e na história de Portugal, outros lugares além do reino. Cabe
perguntar de que maneira aqueles lugares apareciam em sua história e até que ponto a sua
234
Ibid. p. 118.
235
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Aplausos Oratórios e Poéticos no Complemento de Anos dos
Sereníssimos Reis, rainhas e Príncipes de Portugal. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v.1.
138
escrita, constituída a partir de várias outras escritas, não produzia também uma imagem e
uma memória daqueles espaços. Não se trata de superestimar o critério espacial na coleção do
abade de Sever, que, como vimos, não era o principal na sua ordenação dos folhetos, mas
pensar como ele levou a cabo uma questão que, embora existisse no projeto historiográfico da
Real Academia não conseguiu ser plenamente desenvolvida pela instituição.
Curiosamente, não foi na sua coleção de mapas que Barbosa Machado trouxe os
lugares para a sua narrativa. As cartas geográficas ocupam um espaço muito tímido em sua
biblioteca, se comparadas aos retratos e folhetos. Das 81 peças que compõem a sua coleção
cartográfica, apenas 8 se referem a localidades do ultramar.
236
Todas as outras representam
províncias do reino, como Açores, Tejo, Algarve, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura e
Entre Douro e Minho.
237
Por algum motivo, Barbosa Machado acabou por se empenhar mais
em coletar opúsculos que mapas, e foi justamente entre os folhetos que o colecionador deixou
clara a presença e atuação portuguesa em rios lugares do mundo, bem como sua
preocupação em abordar em sua história não o reino português, mas também as suas
possessões.
A presença lusitana nas quatro partes do mundo é narrada em alguns volumes da
coleção de opúsculos, como nas Notícias das Proezas Militares Obradas pelos Portugueses
em a Índia Oriental, Notícias Históricas e Militares da África, Notícias Históricas e
Militares da América, História dos Cercos Sustentados pelos Portugueses nas Quatro Partes
do Mundo, Tratados de Pazes de Portugal Celebrados com os Soberanos da Europa,
Notícias das Sagradas Missões Executadas por Varões apostólicos na China, Japão e
Etiópia e Notícias das Embaixadas que os Reys de Portugal Mandarão aos Soberanos da
236
São elas as seguintes: Carte du Perou, de fleuves des Amazones e du Bresil, de Guillaume de L´isle; Brazil,
de Antonio Sanches; Cuidad de Goa, sem autoria; Delineatio ominium oratum totius Australis partis Americae...,
de Jan Huygen van Linschoten; Guiana sive Amazonum Régio e Accuratissima Brasiliae Tabula, de Jan Jansson;
Delineatio orarum maritimarum terrae vulgo indigetatae terra do natal item sofalae mozambicae e melindae...,
de Robert Beckit; e Insulae mollucae celebérrima sunt..., sem indicação do cartógrafo.
237
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Mapas do Reino de Portugal e suas Conquistas. Rio de Janeiro,
Biblioteca Nacional.
139
Europa. Seguindo a ordem que o próprio Barbosa Machado deu a estes volumes, vemos que
a sua história partia das ações militares do reino para o ultramar e, quando chegava a essas
novas terras, ele começava tratando das Índias, o que significa que o colecionador não seguiu
um critério cronológico da expansão, pois, neste caso, ele teria começado pela África.
Tampouco seguiu o critério de importância econômica, pois, no século XVIII, esta primazia
cabia à América. Devemos lembrar que à Índia é reservado um lugar importante nesta
coleção, a ponto de nosso abade ter dedicado um volume inteiro de seus retratos aos
governadores e vice-reis da região.
238
Também nos folhetos, a Ásia ganhou destaque
numérico, pois às suas batalhas Barbosa Machado reservou três volumes de opúsculos,
enquanto a África e a América tiveram apenas um cada.
Mesmo quando aos volumes dedicados ao ultramar lhe são reservados títulos de
“Notícias Militares”, Barbosa Machado não se limitou a compilar ali apenas folhetos
descritivos de batalhas. Ele foi além, preservando testemunhos sobre a atuação evangélica nas
regiões, a natureza, os costumes locais e as fronteiras. Dessa forma, quando nos perguntamos
sobre a importância dos lugares na história que Barbosa Machado contou por meio de seus
folhetos, podemos ressaltar dois aspectos: o espaço constituía-se como palco das grandes
aventuras portuguesas e também como objeto de conhecimento. Esses dois temas não estão
separados entre si, tampouco são tratados em volumes diferentes, mas são duas questões
recorrentes nos vários folhetos e tomos.
Um dos documentos recolhidos por Barbosa Machado, intitulado Epanaphora Indica,
conta os feitos do conde de Assumar, que foi governador de Estado na Índia portuguesa no
século XVIII. Inicialmente, o que gostaríamos de destacar aqui não é exatamente a narração
do opúsculo, mas o motivo que o autor, José Freire de Monterroio Mascarenhas, encontrou
para descrever as ações daquele homem naquela região. Ele afirma que:
238
MONTEIRO, Rodrigo Bentes e CALDEIRA, Ana Paula Sampaio. A Ordem de um Tempo: Folhetos na
Coleção Barbosa Machado. Topoi (Revista do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ), no
prelo.
140
Para melhor se comprehender a relaçam, que esperamos dar das novas
gloriosas acçoens da naçam portugueza, parece precizo expor tambem ao
conhecimento dos que as lerem, o theatro, em que se representáram (grifo
nosso).
239
As magníficas ações dos varões portugueses em prol de sua monarquia se davam não
apenas no reino, mas fora dele, em terras distantes que serviram como cenário onde se
desenrolaram cenas memoráveis. Alguns dos personagens principais delas eram justamente
os guerreiros portugueses, que combateram valorosamente nas terras desconhecidas. Na
Índia, eles tiveram de lutar contra inimigos externos e internos. Os dois primeiros volumes
dos Cercos, narram os acontecimentos na Fortaleza de Diu entre os anos de 1535 e 1549,
destacando os combates que Nuno da Cunha e, posteriormente, João de Mascarenhas,
travaram contra os turcos, que atacaram duas vezes a região. A relação amistosa com
governos locais e as ações incansáveis daqueles varões pela defesa do território são
mostradas em detalhe. Jerônimo Corte-Real, autor de um dos folhetos que narram o segundo
cerco, diz que sua intenção era fazer como Virgílio e Homero fizeram, isto é, registrar por
escrito as ações memoráveis dos portugueses.
240
Dentre os personagens que receberam destaque pelas suas proezas na Ásia, um dos
principais foi Pedro de Almeida Portugal. Ele recebeu um volume das Notícias Militares da
Índia totalmente dedicado a ele e às medidas que tomou enquanto foi vice-rei da região. Um
dos maiores desafios do conde foi enfrentar Zeiramo, rei Bonsulo que invadiu Goa durante o
seu período de atuação. De acordo com os folhetos, o poder daquele monarca nativo era
insuperável. No entanto, o conde de Assumar, disciplinando ele mesmo suas tropas, pôs em
239
MASCARENHAS, José Freire de Monterroio. Epanaphora Índica Parte II em que se referem os progressos,
que tem feito no governo do estado da índia Portuguesa, o illustrissimo e excellentissimo senhor Márquez de
Castelo Novo. Lisboa, 1747. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias das proezas Militares Obradas
pelos Portugueses em a Índia Oriental. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v. 2. p. 46.
240
CORTE REAL, Jerônimo. Sucesso do segundo cerco de Diu: estando Don Joham Mazcarenhas por Capitam
da Fortaleza. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). História dos Cercos Sustentados pelos Portugueses nas
Quatro Partes do Mundo. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v. 4. p. 97-346.
141
prática um plano para castigar Zeiramo e acabou obtendo vitória, preservando a região nas
mãos dos portugueses.
241
Mas os inimigos enfrentados no além-mar não eram apenas locais. Portugal teve de
defender suas possessões dos holandeses, que invadiram regiões como Macau e Ceilão, na
Ásia, mas também Angola e Moçambique, no continente africano. O tomo referente aos
sucessos históricos e militares na África também preserva folhetos que descrevem a atuação
dos vassalos portugueses na defesa da região contra os inimigos externos, sobretudo o
flamenco. É interessante observar que, em muitos casos, aquele que escreve sobre o evento
geralmente também vivenciou a situação. Francisco Souto Maior, governador da Fortaleza de
S. Jorge da Mina, interessou-se em colocar por escrito suas próprias ações e o êxito que
alcançou sobre aqueles inimigos em 1625. D. Francisco tinha apenas cinqüenta e sete
soldados, sem muitas habilidades, além de “novecentos pretos”. Já o exército rival tinha cerca
de dois mil homens. Quando os holandeses desembarcaram na região, os nativos com
“valoroso animo, e numantino, os romperão por meyo de lanças, alabardas, partazanas,
pistolas, e os poserão em disbarate e fugida”. A vitória, contada pelo personagem (que não
assistiu, mas lutou no conflito) foi, segundo ele, milagrosa e dada pela virgem e os mártires
São Crispim e São Crispiniano, pois só houve treze baixas entre os portugueses.
242
A fúria holandesa no continente africano não se restringiu à fortaleza de São Jorge. As
Notícias Históricas e Militares da África contam também as batalhas que a Companhia
Ocidental da Holanda travou com os portugueses de Angola, conflito que contou com a
241
Esses feitos do conde de Assumar contra o rei Bonsulo são narrados por José Freire de Monterroio nas três
partes das Epanaphoras Indicas. MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias das proezas Militares Obradas
pelos Portugueses em a Índia Oriental. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v. 2. p. 14-125.
242
SOUTO MAIOR, Francisco de. Relaçam da milagrosa vistoria que alcansou don Francisco Souto Mayor,
governador da Fortaleza de S. Jorge da Mina contra os rebeldes, e inimigos olandeses, de dezenove naos, o anno
de mil seiscentos e vintecinco, aos vintecinco de octubro, sabbado, dia dos gloriosos martyres S. Crispim e
Crispiniano. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias Históricas e Militares da África. Rio de Janeiro,
Biblioteca Nacional. p. 192v.
142
participação de Salvador Correa de e Benevides.
243
A querela com o reino estrangeiro
também aparece nos Cercos, em um folheto que narra a invasão flamenca em Moçambique
no ano de 1607.
244
Os holandeses alcançaram também a América. Estes eventos, assim como os outros,
foram mais uma vez contados em vários folhetos, pacientemente coletados por Diogo
Barbosa Machado e dispostos nas Notícias Históricas e Militares da América. Neste volume,
relatos descrevem as invasões holandesas na Bahia e no Recife. Aqui a força do inimigo é
exaltada para transformar a vitória portuguesa naquele espaço em um evento ainda mais
importante e dramático. O texto que narra a Restauração de Pernambuco, informa que, no dia
9 de fevereiro de 1630, a vila de Olinda viu chegar uma armada de 67 naus flamencas tendo à
frente o general Henriques Cornelles Lont. Só uma dessas embarcações chegava a pesar
oitocentas toneladas. No entanto, a agilidade e inteligência lusas foram superiores ao número
dos inimigos: rapidamente Mathias de Albuquerque, superintendente de Guerra daquela
capitania, preparou tudo para o embate. Quando os primeiros navios inimigos foram
avistados em Pernambuco, Albuquerque estava à espera, defendendo o forte. Os
holandeses, por sua vez, não pouparam esforços e de longe era possível ouvir a fúria da
artilharia. O general português, conta o folheto, correu por entre as balas que choviam da
frente inimiga, metendo-se dentro do Forte do Recife, e lutou não só como general, mas como
um soldado particular, “enchendo com suas próprias mãos os cartuxos de pólvora”. A batalha
durou sete horas seguidas, que foram assistidas pelo mesmo religioso que escreveu esta
243
CRUZ, Luis Fellis. Manifesto das ostillidades, que a gente, que serve a Companhia Occidental de Olanda
obrou contra os vassalos Del Rei de Portugal neste reyno de Angola, debaixo das tregas celebradas entre os
príncipes; e dos motivos que obrigarão ao general Salvador Correa de Sá, e Benevides, a dezalojar esses
soldados olandezes delle, sendo mandado a esta posta por sua megestade a differente fim. Lisboa: Officina
Craesbeeckiana, 1651. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Op. Cit. p. 202-221.
244
DURÃO, Antonio. Cercos de Moçambique defendidos por Don Estevan de Atayde, capitan general, y
governador de aquella plaça. Escritos por Antonio Duran soldado antiguo de la Índia. Al excellentissimo señor
conde de Olivares, duque de Sanlucar la mayor, gran canciller de índias. Cavallerizo mayor de su magestade, y
de sus consejos de Estado y guerra. Madri: Viuda de Alonso Martin, 1633. In: MACHADO, Diogo Barbosa
(Org.). História dos Cercos Sustentados pelos Portugueses nas Quatro Partes do Mundo. Rio de Janeiro,
Biblioteca Nacional, v. 4. p. 162-251.
143
relação e que serviu como testemunha ocular do evento e da grandeza portuguesa.
245
Barbosa
Machado escolheu guardar dois exemplares desse folheto, um foi inserido nas Notícias
Militares de América, outro no quinto tomo dos Cercos, que traz ainda outros opúsculos
sobre os sucessos portugueses contra os holandeses em Salvador, Bahia e Paraíba.
246
Mas não apenas os guerreiros e os conflitos bélicos foram contemplados nas
narrativas. Os cenários selvagens do ultramar também foram o teatro das ações de outros
personagens, mais pacíficos, os missionários, cuja primeira tarefa era levar a verdadeira
religião para aqueles povos gentios. Em alguns casos, eles eram extremamente bem recebidos
e obtinham grandes êxitos em suas jornadas. Um dos folhetos coligidos no tomo das notícias
das missões, narra, com muito gosto, a conversão e o batismo de toda a família real chinesa.
O sucesso de evangelização daquele império asiático é comemorado, pois a China era tida
como o maior reino de todo o mundo. O padre Matias Maia, que narrou e acompanhou o
evento, afirmava que os monarcas chineses, sem saber o que fazer diante do avanço dos
tártaros sobre seu território, apegaram-se de maneira muito forte à religião cristã, que entrara
ali a partir do esforço dos jesuítas.
247
No volume dedicado à América, o tema da evangelização não é uma questão que salte
aos olhos, mas, quando chegamos à África, o êxito da religião cristã é narrado com muita
alegria pelos testemunhos. O Congo foi o cenário privilegiado para descrever a entrada desses
religiosos no continente e foi justamente um desses missionários que escreveu sobre a
chegada de frades capuchinhos ao reino congolês. Diz o autor que aquela região tinha sido
245
Relaçam verdadeira, e breve da tomada da villa de Olinda e lugar do recife na Costa do Brasil pellos rebeldes
de Olanda, tirada de huma carta que escreveo hum religioso de muyta autoridade, e que foy testemunha de vista
de quase tosdo o sucedido, e assi o afirma, e jura, e do mais que depois disso socedeo te os dezoito de abril deste
prezente e fatal anno de 1630. Lisboa: Matias Rodrigues, 1630. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias
Históricas e Militares da América. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional. p. 150-150v.
246
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). História dos Cercos que Sustentaram os Portugueses nas Quatro Partes
do Mundo. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v.5.
247
MAIA, Pe. Matias. Relaçam da Conversão da nossa Santa da rainha, e príncipe da China, e de outras
pessoas da casa real, que se baptizarão o anno de 1648. Lisboa: Officina Craesbeecckiana, 1650. In:
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias das Sagradas Missões Executadas por Varões Apostólicos na
China, Japão e Etiópia. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v.1. p. 268.
144
ignorada durante muito tempo. Precisou que D. João II, rei português, desse prosseguimento
às descobertas iniciadas pelo infante D. Henrique para que Diogo o Cão chegasse com sua
armada àquele território. Tempos depois, fixaram-se ali quatro religiosos e muitos
portugueses que “fueron cultivando aquella christandad reciente, labrãndo templos, i
altares”.
248
O trabalho daqueles missionários foi árduo, pois era difícil estabelecer entre os
nativos a temperança dos costumes, a castidade conjugal, o perdão das injúrias, o fim das
superstições e o costume de não cobiçar a mulher do próximo, elementos tão importantes no
cristianismo, porém estranhos àquela cultura. Mas a cristianização foi seguindo lentamente, a
ponto de conseguir a conversão do rei congolês. A do monarca nativo foi tamanha que, de
acordo com a relação, ele solicitou ao papa que mandasse para a região mais evangelizadores.
Foi neste momento que seis religiosos capuchinhos saíram de Lisboa e se dirigiram para a
África. Quando chegaram lá, foram recebidos com muitas festas pelo rei e a nobreza local,
mas não perderam tempo com comemorações e logo construíram igrejas, fizeram pregações e
trouxeram novos adeptos para a religião cristã.
249
Pessoas saíam de diversas partes para
encontrar os frades, implorando pelo batismo.
250
Como se vê, a missão foi um grande sucesso
a ponto do narrador do opúsculo, impressionado com tamanho êxito, conclamar mais e mais
evangelizadores para desembarcar na região:
O quantos obreros evangélicos están ociosos em Europa, que en esta parte
de África, que tanto los desea, i llama, pudieran hazer inmenso fruto,
cultivando unos hombres troncos, que no spiran a mas que a beber el riego
e rocio de la palavra divina.
As regiões do ultramar não aparecem nas narrativas selecionadas por Barbosa
Machado apenas como o palco de grandes batalhas pela posse ou presença portuguesa em um
248
PELLICER DE OSSAU SALAS Y TOVAR, José. Mission Evangélica al reyno de Congo por la Seráfica
religion de los capuchinhos. Dedicala al rey nuestro señor: que Dios guarde. Don Joseph Pellicer de Tovar señor
de la casa de Pellicer i de Ossau, cronista mayor de su magestad, i de su consejo. Madrid: Domingos Garcia i
Morras, 1649. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias Históricas e Militares da África. Rio de Janeiro,
Biblioteca Nacional. p. 109.
249
Ibid. p. 131-2.
250
Ibid. p. 134.
145
território. Aquelas longínquas terras são também o lugar de um outro tipo de atuação dos
varões portugueses a partir do nobre labor de tornar conhecida ali a verdadeira e, portanto,
salvar as almas daqueles nativos. O poder da religião cristã se manifestava nas novas terras e
abria espaço para narrativas de caráter maravilhoso e sobrenatural, como a de um folheto,
escrito por André de Santa Maria, no qual conta a história de um homem de nação bengala
que, após carregar nos braços São Francisco de Assis, nunca mais envelheceu. Em 1605, aos
trezentos e oitenta anos, conservava a aparência de um homem entre trinta e quarenta anos de
idade. Nos opúsculos, o autor explica ao seu leitor que ele ficou sabendo de tal história por
meio de um escrito que lhe enviou o padre Melchor de Fonseca, afirmando ter visto, com
seus próprios olhos, aquele nativo e confirmado que a história era, de fato, verdadeira.
251
Nem sempre os documentos dão testemunho das boas recepções do cristianismo nas
terras do ultramar. Eles também mostravam momentos de perseguições que custaram a vida
dos religiosos portugueses. Na Ásia, a região que mais se mostrou hostil aos missionários foi
o Japão. Um dos opúsculos, produzido a partir de cartas de pessoas “dignas de crédito”, conta
que no ano de 1619, foram oitenta e seis o número de mártires naquela região. Na cidade
de Miaco, o imperador mandou que cinqüenta e nove cristãos fossem queimados vivos num
espetáculo nunca visto na Roma de Nero e Dioclesiano.
252
Os nomes dos mártires eram
postos em destaque nas narrativas e listados um a um, para lembrar aqueles que morreram no
Oriente pela fé em Cristo.
251
SANTA MARIA, André de. Verissima relacion embiada a don Fray Andrés de Sancta Maria obispo de
cochim, laqual trata de como em lãs índias de Portugal ay um hombre casado que tiene trezientos y ochenta años,
y assido ocho vezes casado, y se han cayado todos los dientes dos vezes y volvieron a razer. Este es el
verdadero retrato Del hombre que paso em brazos al glorioso San Francisco em el Rio de Ganga, el qual fue
sacado a instancia Del reverendo padre Don Andrés de Sancta Maria Obispo de cochim. Salamanca: Antonia
Ramirez, 1609. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias das proezas Militares Obradas pelos
Portugueses em a Índia Oriental. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v. 1. p. 70.
252
Relação sumaria das novas que vierão do Japão, China, Cochinchina, Índia, e Etiópia este anno de 622 tiradas
de alguas cartas de pessoas dignas de credito. Lisboa: Giraldo da Vinha, 1622. In: MACHADO, Diogo Barbosa
(Org.). Notícias das Sagradas Missões Executadas por Varões Apostólicos na China, Japão e Etiópia. Rio de
Janeiro, Biblioteca Nacional, v.1. p. 72-73.
146
Na África, os portugueses também encontraram momentos de tensão, sobretudo na
Etiópia. O império Habassia, um dos primeiros a receber a doutrina evangélica, viu ascender
ao seu trono o imperador Basílio, que se opôs não aos católicos, mas mostrou-se também
favorável à crença maometana. Percebendo o perigo que rondava a região, o papa Clemente
XI mandou para lá, em 1704, alguns religiosos. Inicialmente, a população mostrava-se
disposta a conhecer a nova doutrina, mas acabou manipulada pelo seu governante e,
voltando-se contra os missionários, apedrejaram-nos até a morte.
253
Os testemunhos que Barbosa Machado coletou em seus tomos, seja sobre as proezas
militares, seja sobre a expansão da cristã nas novas terras não fazem do lugar um
elemento importante em sua narrativa, na medida em que a região torna-se palco das ações
dos guerreiros e missionários portugueses, além de testemunhas de sua coragem e valentia em
prol da monarquia e da cristandade, mas também novamente traz à tona a questão dos
testemunhos para a sua história. Se a escrita da história proposta pela coleção de nosso abade
se a partir de outras escritas, é interessante verificarmos que o colecionador compilou
relatos de pessoas que presenciaram o evento ou, no máximo, que a partir de uma testemunha
ocular digna de crédito, construíram uma narrativa. A escrita de Barbosa Machado se
praticamente a partir de testemunhos de primeira mão, de textos deixados por aqueles que
vivenciaram uma batalha, participaram de uma missão evangelizadora e escreveram suas
memórias. Neste caso, a visão aparecia como um operador de crença: Barbosa Machado não
estava no momento do evento, mas colecionou testemunhos de alguém que viu, que esteve
presente ali. Dessa forma, ele estabeleceu com seu leitor uma relação de confiança. Para
aqueles que manuseavam e liam os materiais da coleção, as narrativas não apenas faziam ver
253
MASCARENHAS, José Freire de Monterroio. Novo Triunfo da religiam seráfica, ou noticia summaria do
martyrio, e morte que padeceram em ódio de nossa santa o venerável Padre Fr. Liberato de Weis com dous
companheiros seus, todos religiosos da Ordem de S. Francisco, missionários e pregadores apostólicos no império
de Habassia, no dia 3 de março do anno de 1716. Lisboa Ocidental: Officina de Pascoal da Sylva, 1718. In:
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias das Sagradas Missões Executadas por Varões Apostólicos na
China, Japão e Etiópia. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v.2. p. 28-31.
147
os atos dos portugueses, mas iam além, constituindo um conhecimento sobre aqueles povos e
aquela natureza tão distantes dos europeus. Enquanto os portugueses guerreavam e
evangelizavam, os narradores construíam, a partir de seus textos, um certo conhecimento das
regiões, importante para criar um saber sobre elas e também definir as fronteiras geográficas
das possessões portuguesas.
No volume dedicado aos conflitos na Ásia, Barbosa Machado salvaguardou um
folheto escrito por Manuel da Silva de Ataíde. Este homem fora capitão da fragata Nossa
Senhora da Conceição, que levava para as ilhas de Timor e Solor o visitador geral Antônio de
Mesquita Pimentel em 1695. Desta viagem, acabou resultando uma relação manuscrita, em
que Manuel de Ataíde localizava aquelas terras espacialmente e também descrevia a natureza
e as riquezas locais. Quando se referiu à ilha de Sólor, ele explicou a seu leitor que era
possível encontrar
Cajus, mangostoins e muy doces e suaves annanazes, como os de Malaca
(...). As couzas de preço, e riquezas q. tem são as seguintes: m
ta
canella, q
cultivandose, será melhor, q senão differença da de Ceilão, algum azougue,
q se achou muito salitre bom, de q os naturaes fazem pólvora p
a
cassarem, [ilegível] e no mesmo sumo de salitre dizem haver muita prata.
254
As desconhecidas regiões africanas também foram descritas pelos viajantes que por lá
se aventuraram. Mais uma vez o reino do Congo foi privilegiado, pois sobre ele Barbosa
Machado reuniu folhetos com informações minuciosas. O opúsculo que abre o tomo das
notícias sobre a África, datado de 1591, encontra-se em italiano e foi escrito por Duarte
Lopes com o objetivo de narrar a sua própria entrada naquela região. Mas o texto vai muito
além, pois o viajante introduziu ali gravuras que pudessem explicar e mostrar ao seu leitor
254
ATAÍDE, Manuel da Silva de. Relaçam das ilhas de Timor, e Solor e da viagem que fes Manoel da Sylva de
Att
e
Cavaleiro professo de Christo cappitão de mar e guerra da fragata Nossa Sra da Conceipção de Panguim e
Cabo dos navios da China, aquellas ilhas depois de muitos annos estarem rebeladas, alevar o governador
comissário, e vizitador geral para ellas Ant
o
de Mesquita Pimentel no ano de 1695. In: MACHADO, Diogo
Barbosa (Org.). Notícias das Proezas Militares Obradas pelos Portugueses em a Índia Oriental. Rio de Janeiro,
Biblioteca Nacional, v. 1. p. 236-236v.
148
aquilo que viu por lá. São desenhos que tratam da natureza e da população da região. As
imagens, gravadas em metal, mostram as roupas usadas pelos soldados daquele reino; as
maneiras como os nobres da região eram transportados pelos seus serviçais; os diferentes
tipos de trajes, que distinguiam os servos e a nobreza, bem como a paisagem local. Uma das
ilustrações mostrava a diferença na maneira de se vestir entre uma serviçal, uma mulher do
povo e uma “gentildonna”: a primeira andava com os seios nus, a segunda, vestia-se de forma
simples e levava um pano na cabeça. Já a última, trazia um chapéu e um belo vestido
enfeitado com franjas e um laçarote. Esses folhetos descrevendo terras desconhecidas,
circulavam pela Europa e serviam como um importante veículo que dava significado a uma
experiência nova, a uma outra natureza, a um outro espaço e a outras culturas. A própria
maneira de descrever a fauna local partia de referenciais europeus. Este é o caso de uma das
imagens, que retratava um animal desconhecido, uma zebra, como um cavalo com listras pelo
corpo.
255
Mas foi no tomo das Notícias Históricas e Militares da América que Barbosa
Machado guardou o folheto mais interessante, não pela detalhada descrição que fez sobre
o Rio Amazonas, mas pela clara finalidade estratégica e política que o permeava. Trata-se de
um estudo feito por Cristóvão de Acuña intitulado Nuevo Descubrimiento del gran rio de las
Amazonas. O título não é por acaso. Conta o autor que Francisco Orellana descobriu aquele
rio em 1540. No entanto, nesta descrição, produzida a partir de uma longa jornada em que o
viajante pode ver com seus próprios olhos aquele cenário, Acuña coletou tantas informações
que era como se ele tivesse descoberto novamente o Amazonas, definido por ele como um
espaço de quase quatro mil léguas de contorno, onde encerrava-se mais de 150 nações de
línguas diferentes, suficiente, cada uma delas, a fazer por si um dilatado reino. O
255
LOPES, Duarte. Relatione del reame di Congo et delle circonvicine contrade tratta dalli scriti e raggionamenti
di Odoardo Lopes Portoghese. Per Filippo Pigafetta com dessegne vari di geografia, di plante, d´habiti,
d´animali, e altro. Al monto Ill
re
e R
mo
Mons
re
Antonio Migliore Vescovo di S. Marco, e commendatore di S.
Spirito. Roma: Bartolomeu Grassi, 1591. In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias Históricas e Militares
da África. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional. p. 1-55.
149
conhecimento adquirido na viagem que muitos tentaram fazer antes dele, mas ninguém havia
conseguido, foi posto em um texto, que descrevia o curso do rio, sua latitude e longitude,
fertilidade, os índios que habitavam as ilhas ao seu redor, a fauna e a flora, as entradas que
alimentavam o rio e também suas fontes de riqueza. O autor deu informações preciosas, como
as regiões em que metais preciosos poderiam ser encontrados:
Ao norte, entra un rio llamado yurupazi, subiendo por ele qual, y
atravesando en cierto parage por tierra três dias de camino hasta llegar a
outro que se llama Yupura, por ele se entra en el Yquiari que es el rio de el
oro, donde de el pie de una sierra que alli está le sacan los naturales en gran
cantidad, y este oro todo es un puntas y granos de buen tamaño.
256
Este texto poderia ser como outras descrições compiladas por Barbosa Machado sobre
as regiões do ultramar. Mas o que torna a sua presença nesta coleção ainda mais interessante
é o fato deste estudo ter sido feito a mando de Felipe IV em uma data bastante significativa:
1641. A viagem de Acuña mostrava ao monarca espanhol que a principal porta de entrada
para aquele “novo mundo descoberto” era, de fato, a partir da costa do Brasil. No entanto,
dizia ele, o rei Habsburgo não devia desistir, pues com mas facilidade, y mucho menos
gastos lo podrá hazer [a viagem] por la Província de Quito, en los reynos del Peru”.
257
O governo espanhol mandou destruir a maior parte dos exemplares deste folheto
quase imediatamente após a sua publicação para evitar que os portugueses, em luta contra os
seus vizinhos e recém senhoreados do Brasil e do Prata, se apoderassem dos argumentos e
das descrições de Acuña.
258
O interessante é perceber que Barbosa Machado, cerca de um
século depois, interessou-se por ele, esforçou-se por adquirir um dos poucos exemplares que
sobreviveram à destruição de Felipe IV e o adicionou à sua coleção de folhetos.
256
ACUÑA, Cristobal. Nuevo descubrimiento del gran rio de las Amazonas. Madrid: Imprenta del Reyno, 1641.
In: MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Notícias Históricas e Militares da América. Rio de Janeiro, Biblioteca
Nacional. p. 200.
257
Ibid. p. 215.
258
HORCH, Rosemarie. Catálogos de Folhetos da Coleção Barbosa Machado. In: ABN-RJ, 1974, v. 2. p. 9.
150
Pela guerra, pela fé e pelas viagens que descreviam minuciosamente as novas terras,
Barbosa Machado incorporou à sua história outras regiões além do reino português. Ao
recolher relatos dos mais diversos tipos, alocá-los sob critérios cronológicos e espaciais,
nosso abade mostrava ao seu leitor, a partir de documentos, que a valentia dos vassalos não
tinha fronteiras: portugueses estiveram dispostos a lutar e morrer em qualquer lugar não
pelo seu rei, mas também pela cristã. As narrativas de batalhas, bem como as de
evangelização, serviam como elogios ao pioneirismo e à memória lusitana. Mas quando
Barbosa Machado trouxe outros lugares para sua narrativa ele fez ainda mais do que elogiar:
ele acabou considerando em sua história a dimensão do novo. São outras experiências, outra
natureza, outra população, outros territórios. Assim como sua narrativa englobou conflitos,
ela trouxe também a perspectiva da descoberta, e não só da repetição e do exemplo.
Como colecionador, certamente fazia parte do desejo de Barbosa Machado possuir
documentos interessantes e admiráveis. Ter em sua coleção uma cópia de um texto cuja
maior parte dos exemplares fora destruída por Felipe IV, dava ainda mais distinção a ela.
Dentro da lógica colecionista, cada peça, em todos os seus detalhes, possuía um certo valor
que variava de uma para outra: um folheto raro, um exemplar único, uma prova cabal, esses
eram os objetos dos sonhos de todo antiquário. Quando a coleção se ligava ao desejo futuro
de escrever uma história de Portugal, os documentos ganhavam um sentido ainda mais forte.
Eles podiam ressaltar um evento esquecido, fazer justiça a um personagem, mostrar
momentos de suspense e tensão, opiniões divergentes, ou ainda servir para fins estratégicos,
justificando a posse e os direitos sobre um certo lugar ou território. A defesa de uma região, a
conversão dos gentios, o povoamento e o conhecimento de um dado espaço constituíam-se
fundamentos que poderiam legitimar a presença portuguesa na África, Ásia e América. Como
comprovar tudo isso? Pelos documentos escritos, sejam eles descrições dos eventos, dos
povos que se conheceram ou dos fenômenos naturais e sobrenaturais encontrados nas novas
151
terras, ou ainda pelos tratados oficiais assinados pelos reis portugueses com outros
monarcas.
259
Certa vez, preocupado em garantir o direito lusitano sobre suas possessões no
ultramar, o acadêmico Pedro de Almeida Portugal chegou a destacar a necessidade de se
fazer uma coleção de tratados de paz, que teria ficado a cargo de José da Cunha Brochado e
Manoel de Azevedo Soares.
260
Em nossas pesquisas, não conseguimos localizar se essa
empresa foi ou não levada à frente pela Academia. Mas, de certa forma, o foi por Barbosa
Machado. Além dos relatos de batalhas e de evangelização, bem como das descrições
coletadas por nosso abade, ele ainda compilou dois volumes dedicados a acordos que
Portugal assinou com outras monarquias européias. Todo o conflito com a Holanda, sobre o
qual nos referimos anteriormente, foi passo a passo mostrado pelo colecionador no
primeiro volume dos Tratados de Pazes. O folheto inicial traz uma cópia do primeiro tratado
de tréguas assinado entre os reinos no ano de 1641. Os opúsculos seguintes, mostram o
choque diplomático que ocorreu entre os dois países um ano depois, decorrente da ocupação
holandesa de territórios coloniais portugueses. Barbosa Machado coletou dois discursos de
Francisco Leitão Ferreira, embaixador português, reclamando que os holandeses passavam
por cima daquilo que fora negociado, invadindo novas terras e recusando-se a sair das
possessões lusas.
261
Em seguida, um opúsculo indica que a rebeldia flamenca levou Portugal
a iniciar novamente uma guerra contra a Holanda. No entanto, a história tem um final feliz,
pois, a seguir, Barbosa Machado inseriu em sua coleção de tratados de paz, o documento que
pôs fim às hostilidades e selou a amizade entre os dois reinos.
262
No segundo volume, o
colecionador compilou diversos tratados assinados entre os reis espanhol e português, entre
259
MEGIANI, Ana Paula. Política e letras no tempo dos Filipes: o Império português e as conexões de Manoel
Severim de Faria e Luís Mendes de Vasconcelos. In: BICALHO, Maria Fernanda e FERLINI, Vera Lúcia
Amaral (Org.). Modos de Governar. Idéias e práticas políticas no Império português. Séculos XVI- XIX. São
Paulo: Alameda, 2005. p. 239.
260
SYLVA, Manoel Telles da. Op. Cit. p. 351.
261
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Tratados de Pazes de Portugal Celebradas com os Soberanos da
Europa. Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, v.1. p. 35-68.
262
Ibid. p. 123-137.
152
os quais o de Utrecht. O Tratado de Madri também está presente neste tomo em um folheto
que traz, além deste documento propriamente dito, as negociações anteriores que foram
anuladas, como a Bula Papal de 1493, o Tratado de Tordesilhas e a Escritura de Saragoça.
Todos eles eram importantes no que se refere à definição das possessões e das fronteiras
portuguesas.
263
John Elliott em seus trabalhos sobre a Espanha no período Habsburgo destacou que a
escrita foi um elemento importante para o império espanhol. De acordo com este autor, a
tarefa de governar um domínio tão grande e disperso em termos territoriais, acabou impondo
àquela coroa a necessidade de novos métodos burocráticos e procedimentos pautados na
palavra escrita, o que ele chama de governo de papel, caracterizado, sobretudo, pelo reinado
de Felipe II, monarca que passava seus dias rodeado por montanhas de documentos.
264
Uma
concepção de império espanhol pensado na sua dimensão territorial existia desde muito
cedo, o que não pode ser dito em relação a Portugal, onde esta idéia começou a ser
formulada na segunda metade do século XVIII. No entanto, neste momento, embora a
Academia Real de História tivesse perdido o seu brilho, Barbosa Machado continuava em
plena atividade, compilando folhetos, recortando imagens, preocupando-se com o passado,
mas com os olhos no presente. Criteriosamente, recolheu documentos que promoviam o
conhecimento das diversas regiões nas quais os portugueses estiveram, dos costumes exóticos
das populações ultramarinas e dos responsáveis pela conquista e pela primazia portuguesa
sobre um dado espaço. O texto escrito por Acuña talvez não tivesse a importância estratégica
que tinha quando foi escrito. É possível que as descrições dos lugares e da natureza não
causassem a mesma sensação de estranhamento que produziram nos séculos XVI e XVII,
quando foram produzidas. Mas todos aqueles documentos eram testemunhos de um contato,
dos lugares até onde os portugueses conseguiram chegar, estabelecendo uma única e o
263
MACHADO, Diogo Barbosa (Org.). Tratados de Pazes de Portugal celebradas com os soberanos da Europa.
Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 2v.
264
ELLIOTT, John. La España Imperial 1469-1716. Barcelona: Vicens-Vives, 1998. p. 180.
153
domínio de um único rei. Isso nos leva a pensar que a escrita de Barbosa Machado, na sua
forma de coleção, acabou também tendo uma dimensão criativa e domesticadora. Por um
lado, ela domesticava na medida em que dava um norte, uma coerência a histórias diversas e
difusas em documentos. Por outro, na domesticação, ela produzia não um sentido elogioso
para o passado português, mas também uma dimensão territorial para o império. Assim, ela
foi além (ou quem sabe, teria cumprido) o projeto da Academia Real da História.
Não se trata de inferir que foi Barbosa Machado o primeiro a pensar a idéia de uma
monarquia portuguesa constituída em sua territorialidade ou mesmo que tenha sido ele o
primeiro a formular a noção de império. Na verdade, o que queremos dizer é que nosso
abade, como erudito, tinha uma arma importante em suas mãos, a escrita, e por meio do seu
trabalho poderia projetar o império português na história, isto é, dar-lhe uma tradição, um
passado que justificasse no presente as demandas territoriais portuguesas.
Na Antiguidade, Platão contou num de seus diálogos o mito do deus Teuth que, certo
dia, foi mostrar ao rei egípcio Thamos suas invenções, entre elas a escrita. O monarca
observou tudo com muita atenção e fez comentários sobre cada um dos inventos. Mas um
deles, justamente a escrita, foi objeto de críticas. Teuth a tinha inventado para que auxiliasse a
memória, mas, aos olhos do rei, ela teria, na verdade, o efeito contrário, isto é, de destruição
da lembrança. Quando uma história é fixada pelas letras em um papel, os homens se dariam
ao luxo de esquecê-la, não precisando mais rememorá-la pela tradição oral. Além disso, a
escrita fixa, congela. A oralidade, por seu turno, reinventa e reelabora.
265
Essa aversão à
escrita era compartilhada pelo famoso personagem de Platão, Sócrates, que, segundo o autor
de A República, nunca se interessou em deixar obras por escrito.
Embora a escrita tenha se desenvolvido bastante ao longo da Idade Moderna,
ocupando cada vez mais o terreno antes dominado pela oralidade, não podemos considerá-la
265
PLATÃO. Fedro. In: ____. Obras Completas. Madrid: Aguilar Editor, 1974; WEINRICH, Harald. Lete. A
arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 44.
154
uma prática difundida em todos os grupos sociais. No século XVIII português, ela restringiu-
se a uma camada letrada bastante diversificada.
266
O interessante, no entanto, é perceber
como, para os letrados portugueses do século XVIII, especificamente para os historiadores
eruditos deste grupo no qual se inseria o próprio Barbosa Machado, a escrita não estava
ligada ao esquecimento, como dizia Platão, mas à lembrança e à memória. Bouza Álvarez
acrescenta que a escrita era, à Época Moderna, uma forma de poder, além da coerção pela
força.
267
Neste sentido, aqueles que sabiam manejar esta arte guardavam também um poder
em suas mãos.
As batalhas propriamente ditas, as missões de evangelização, bem como as viagens
realizadas, por si o dariam argumento nenhum para constituir aquelas regiões como
possessões de Portugal. Elas passaram a figurar como exemplos, e o império pode ter
chance de se configurar em sua dimensão territorial, porque toda aquela experiência fora
escrita, fixada, organizada dentro de um sentido, e, portanto, constituída como história. Dessa
forma, se podemos falar de uma idéia de império português a partir da segunda metade do
Setecentos, devemos levar em consideração que ele não foi construído somente pelos poderes
governantes, mas também por eruditos como Barbosa Machado, que, por meio da história,
criaram noções de virtude e território, além de, munidos de documentos e papéis, terem
construído um passado que fundava o império luso no tempo e no espaço. Não foi à toa,
portanto, que nosso erudito preocupou-se com os testemunhos oculares, e com a sua
disposição nos tomos: aqueles que presenciaram um evento poderiam dizer de forma mais
verdadeira como ele se deu. Ao mesmo tempo, eram eficazes no trabalho de combater
narrativas duvidosas ou falsas. A sua escrita em forma de coleção conferia à monarquia
266
Sobre a diversidade no que se refere ao campo historiográfico, ver MOTA, Isabel Ferreira da. Op. Cit.
267
Bouza Álvarez em seus trabalhos, estabeleceu uma relação entre poder e escrita. O poder é compreendido por
este autor através da fusão de duas práticas. Uma delas, talvez a mais conhecida, é definida pelo próprio uso da
força, materializada na constituição de exércitos, por exemplo. No entanto, ele atentou também para o uso de
formas mais brandas de poder, igualmente eficazes, como a escrita. ÁLVAREZ, Fernando Bouza. Del Escribano
a la Biblioteca. Madrid: Síntesis, 1997; Corre Manuscrito. Madrid: Marcial Pons, 2001; Palabra e Imagen en la
Corte. Madrid: Abada, 2003.
155
portuguesa uma tradição, um passado sobre o qual se assentar e varões virtuosos que
defenderam os interesses da coroa, enfrentando desafios no reino e no ultramar.
Pensando esta coleção como uma escrita da história, vimos, portanto, que ela é, ao
mesmo tempo, peculiar e comum. O que a torna igual a qualquer outra escrita da história é o
fato de ela construir um passado, inventá-lo, dotar diversas experiências que, isoladamente
seriam caóticas, em um todo coerente. Barbosa Machado nos contou uma pluralidade de
histórias – da vida de um rei, de uma batalha, de uma região, de um personagem –, mas todas
elas acabaram se unindo e formando uma história de Portugal e de suas possessões,
abrangendo, portanto, diversos mundos, territórios de um vasto império oceânico. Sua
singularidade advém do modo como nosso abade escreveu sobre o passado. Se a coleção é
uma escrita, ela possui regras próprias e a principal delas é ser pautada nas vozes dos
testemunhos. Dessa forma, nosso abade não resgatou um passado, mas o configurou folheto a
folheto. No interior da biblioteca, selecionando e ordenando seus materiais, o antiquário e o
historiador se uniam na figura de Diogo Barbosa Machado.
156
CONCLUSÃO
157
Trabalhar com a coleção de Diogo Barbosa Machado em uma dissertação de mestrado
trazia alguns pontos positivos, mas também riscos. Tratava-se de uma documentação que
nunca tinha sido estudada em seu conjunto. Ramiz Galvão produziu alguns estudos sobre
Barbosa Machado, mas nenhum deles tinha pensado exatamente aqueles materiais como uma
coleção e, principalmente, tentado entendê-la como uma maneira específica de se relacionar
com o passado. De certo modo, foi isso que tentamos fazer aqui. Ao longo do percurso, às
vezes perguntavam-nos se não era melhor analisar uma parte da coleção, escolher apenas os
retratos ou somente os folhetos, o que geraria um estudo mais específico. No entanto, apesar
de termos feito um recorte para a elaboração do último capítulo, insistimos em continuar
lidando com todos aqueles materiais, afinal, era por meio da prática de colecionar objetos
diferentes que nosso abade lidava com o passado. Dessa forma, para as questões
historiográficas que tínhamos em mente, não era possível compartimentar a coleção. Antes,
era necessário pensá-la em sua integridade.
Para isso, foi preciso, portanto, iniciarmos com a trajetória daquele próprio acervo,
abordando as mudanças que sofreu em outra sociedade e sua resignificação diante de novas
demandas sobre o passado. Entre Barbosa Machado e nós mesmos, uma série de pessoas,
como Manuel do Cenáculo, Ramiz Galvão, Zephyrino Brum, Lygia Cunha e Rosemarie
Horch mantiveram algum tipo de relação com aqueles materiais, modificando-os ou
simplesmente dotando-os de significados novos. Foi por meio da própria história daquela
coleção que pudemos voltar ao século XVIII e perceber que aqueles objetos, em sua época,
serviram como um arquivo, em consonância com um tipo de demanda historiográfica que
exigia do historiador o contato e a crítica dos testemunhos do passado. Esta, poderíamos
dizer, foi uma primeira interpretação que buscamos dar aos mapas, folhetos e imagens
coligidos por Barbosa Machado. No entanto, percebemos que aquela coleção poderia ser
entendida também como uma escrita da história, se pensarmos nestes termos qualquer
158
maneira de atribuir sentidos ao passado. Certamente, ela está ligada às demandas de sua
época e ao ambiente erudito no qual Barbosa Machado se inseria. Por outro lado, era uma
coleção pessoal, que embora partilhasse do projeto acadêmico de uma história exultante,
trazia também as marcas de seu artífice e regras próprias de um tipo de escrita peculiar.
Vimos, entre outras coisas, que nosso colecionador teria levado adiante o projeto
historiográfico da instituição da qual fazia parte ao considerar outros espaços e outros povos
na história de Portugal, ajudando, com isso, a dimensionar o império luso dentro de uma certa
noção de território.
Para concluirmos nosso trabalho, gostaríamos apenas de retomar duas discussões que
julgamos importantes e que a nossa pesquisa, sobre uma coleção específica, talvez nos ajude
a pensar. Aproveitamos também para ressaltar alguns pontos que podem ser aprofundados em
possibilidades futuras de pesquisa. Uma primeira questão refere-se à constituição dos
vestígios de épocas passadas como documentos históricos. Vimos no capítulo dois o esforço
dos eruditos portugueses setecentistas no sentido de preservar testemunhos e restos
arqueológicos do passado, entendendo-os não como papéis velhos ou meros escombros, mas
como uma possibilidade de acesso a um tempo invisível. A escrita do passado ficava ligada,
portanto, ao documento, que, aos poucos, ganharia o estatuto de autor da história, como se
fosse um veículo de acesso direto a um tempo pretérito.
Não se trata de pensar que esta relação entre escrita do passado e documentos foi
cumulativa e progressiva dentro de um suposto desenvolvimento da história até a sua
constituição como ciência. Trata-se, antes, de ressaltar o papel que a Academia Real e
eruditos como Barbosa Machado tiveram na medida em que associaram o trabalho do
historiador e o contato com testemunhos, percebendo esses últimos como elementos
fundamentais para escrever sobre um personagem ou evento acontecido. A autoridade
passava a residir no vestígio e a credibilidade daqueles eruditos no fato de que eles viam e
159
detinham os testemunhos. Não foi à toa, portanto, que Barbosa Machado compilou, além de
tratados, poesias e elogios, narrativas de testemunhas oculares, que poderiam fornecer uma
dimensão exata do que outrora aconteceu nos campos de batalhas, funerais, casamentos e
festas.
Neste trabalho em que textos e outros papéis mudavam seus estatutos, tornando-se
documentos capazes de ligar um presente visível a um passado invisível, Barbosa Machado
selecionava de forma ativa o que deveria sobreviver ao tempo. Seu trabalho acabou sendo
bem sucedido, pois os testemunhos que organizou nos servem hoje como materiais que
possibilitam inúmeros estudos. Dessa forma, nosso colecionador acabou colocando para nós,
hoje, um problema que foi ressaltado pelo historiador Marc Bloch: dos arquivos como
meios de transmitir lembranças e propagar uma certa memória através das gerações.
268
Uma segunda questão que nos parece importante foi a necessidade de retomar e
estudar uma certa tradição antiquária e uma formação erudita do historiador que acabou se
perdendo no momento em que a história foi conquistada para o mundo da razão.
269
Neste
sentido, os filósofos iluministas ajudaram a formar uma visão caricatural do trabalho dos
antiquários. Voltaire, por exemplo, entendia a atividade destes últimos como inútil e estéril.
Frente a um saber que ele considerava apenas como “de fatos e datas”, propunha a sua
substituição pela história do “espírito humano”. Subjacente à crítica, havia uma concepção
historiográfica distinta daquela dos antiquários eruditos, esta última preocupada com o
evento, com o singular e valorizadora dos sentidos – o ato de tocar em um vestígio como se, a
partir dele, fosse possível tocar o próprio passado. Um novo regime de historicidade se
impunha, preocupado em buscar, por meio da razão, um movimento para a história
268
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001;
MASTROGREGORI, Massimo. Historiografia e tradição das lembranças. In: MALERBA, Jurandir (Org.). A
História Escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006.
269
CASSIRER, Ernst. Filosofia de la Ilustración. México-Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1974.
160
humana.
270
Sendo assim, dentro desta nova concepção de história que se formava, as coleções
e a maneira dos antiquários em lidar com o passado perdiam, aos poucos, sua razão de ser.
271
No século XIX, Nietzsche, observando a sociedade que vivia, fez severos julgamentos
ao conhecimento e à cultura histórica de sua época, não poupando os colecionistas. Criticava
o desejo frenético pelo passado que, segundo o filósofo, acabava por atrofiar os homens do
século XIX. O homem moderno, na concepção daquele filósofo, se alimentava de
conhecimento, mas era incapaz de agir; estava o preocupado com o passado, que nascia
um ancião. A história, ao invés de se constituir como instrumento para mover as pessoas à
ação, tornava-se, antes, um fardo. Nietzsche ressaltou três tipos de história, uma delas, que
chamou de antiquária, caracterizava-se pelo seu sentido de preservação e veneração. O
antiquário era aquele que olhava para o passado com fidelidade e amor, sentindo-se parte
daquela história. Seu trabalho tinha, inclusive, uma utilidade: a de preservar para aqueles que
viriam depois. No entanto, o filósofo alertava que, em excesso, este tipo de relação com o
tempo pretérito poderia ser perigosa, pois criaria uma cega figura colecionista, meramente
curiosa, incapaz de criar algo novo, mas somente de conservar o velho.
272
Uma herança desta crítica voraz à história erudita que pensadores tão diferentes como
Nietzsche e Voltaire fizeram, pode ser vista no quase desaparecimento de saberes que antes
eram considerados fundamentais para a compreensão das sociedades do passado e para a
formação do historiador, entre eles a numismática, a geografia, a diplomática, a cronologia e
a paleografia. Primeiramente, foram rebaixadas ao estatuto de “disciplinas auxiliares da
história”. Com o tempo, esses saberes foram sendo considerados conhecimentos frívolos, sem
utilidade, erudição vazia, e hoje essas disciplinas estão praticamente extintas de nossos
270
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Para uma semántica de los tiempos históricos. Barcelona, Buenos
Aires, México: Paidos, s/d; HARTOG, François. Régimes d´Historicité. Présentisme et expérie nces du temps.
Paris: Seuil, 2003.
271
KRIEGEL, Blandine. L´Histoire à l´age Classique. La défaite de l´erudition. Paris: PUF, 1988, v.2
272
NIETZCHE, Friedrich. Sobre la Utilidade y los Prejuicios de la Historia para la Vida. Buenos Aires: Edaf,
2000.
161
currículos universitários. Esse movimento, chamado por Blandine-Kriegel de derrota da
erudição, nada mais foi do que o apagamento de uma forma legítima de lidar com as
experiências de outrora, mas que acabou sendo esquecida, como se não fizesse parte do
passado da história.
273
Dessa forma, pretendemos com nosso trabalho compreender a prática do antiquariado
no século XVIII português, tendo com isso um duplo objetivo. Em primeiro lugar, ressaltar
uma outra possibilidade de se relacionar com o passado, poucas vezes considerada e, em
larga medida, diferente da nossa. Em segundo lugar, procuramos destacar também a presença
desta tradição no interior de uma instituição importante no que se refere à escrita da história
no Brasil, a saber, o IHGB. Vimos que, no caso brasileiro, a passagem de uma história
aristocrática para uma história nacional guardou algumas continuidades, uma vez que a
herança das academias literárias marcou a produção do IHGB. Uma possibilidade futura de
pesquisa seria aprofundar esta questão, ressaltando a influência antiquária naquele instituto e
em outros de seus membros, além de Ramiz Galvão, já estudado por nós.
Os materiais coligidos por Barbosa Machado abrem ainda muitas outras
possibilidades de estudo. Certamente, nenhuma delas esgotaria todos aqueles documentos.
Tampouco tivemos a pretensão de fazer isso. Antes, optamos por, a partir deles, realizar um
trabalho de cunho mais historiográfico. Ainda nesta área de pesquisa, outras interrogações
poderiam ser lançadas no sentido de pensar os usos políticos de um tipo de história como a
praticada por aqueles acadêmicos. Sobre esta questão, cremos que a coleção de Diogo
Barbosa Machado abre ainda duas possibilidades de estudo. Uma delas seria nos aprofundar
em alguns personagens para pensarmos como o trabalho de lembrança e esquecimento em
uma coleção como aquela poderia mexer com uma certa economia de privilégios numa
sociedade de corte. Outra possibilidade, seria aprofundar a idéia de um império português
273
KRIEGEL, Blandine. Op. Cit.; GUIMARÃES, Manoel Luíz Salgado. Reinventando a Tradição: sobre
antiquariado e escrita da história. Humanas, Porto Alegre, v. 23, n. 1/2, p. 111-143, 2000.
162
constituído não apenas por meio das armas, mas também pelas letras, na medida em que
eruditos como Diogo Barbosa Machado, a partir da construção de um certo passado,
fundavam uma tradição para este mesmo império.
Para além das duas questões levantadas por nós e das possibilidades futuras de
trabalho, se quisermos tirar ainda uma conclusão mais geral desta dissertação, diríamos que
foi nosso objetivo mostrar que, ao longo do tempo, as sociedades lidaram de modos diversos
com o seu passado, construindo-o e rememorando-o a partir das interrogações do seu presente
e das expectativas que guardavam em relação ao seu futuro. Assim como Barbosa Machado
um dia deu sentido a uma experiência passada, hoje nós também fazemos esse exercício.
Apesar de nossas diferenças, algo nos une a eles: continuamos a nos debruçar sobre papéis
velhos e, mais do que isso, nosso trabalho tem como pressuposto a ausência, a tarefa de lidar
com uma experiência invisível e torná-la dotada de significado para o presente. As histórias
contadas em uma coleção, bem como a narrativa lógica presente em nossos livros e artigos,
isto é, esse todo harmonioso que os antiquários de ontem e os historiadores de hoje
constroem, bem como disse Schiller, só deve existir, na verdade, em nossas imaginações.
274
274
Lição inaugural de Schiller como professor de História na Universidade de Jena proferida em 26 de maio de
1789.Cf. NIETZCHE, Friedrich. Op. Cit, p. 98.
163
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