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Vera Silveira Regert
EM DEFESA DA HERANÇA DE AUSCHWITZ: RELEITURA
DA HISTÓRIA DO HOLOCAUSTO POR MEIO DA
ESCRITURA AUTOBIOGRÁFICA DAS VÍTIMAS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Mestrado, Área de
Concentração em Leitura e Cognição, Universidade
de Santa Cruz do Sul UNISC, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientador: Prof. Dr. Alba Olmi
Santa Cruz do Sul, março de 2007
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Bibliotecária : Muriel Thürmer CRB 10/1558
2
R333d Regert, Vera Silveira
Em defesa da herança de Auschwitz : releitura da história do holocausto por
meio da escritura autobiográfica das vítimas / Vera Silveira Regert; orientadora, Alba Olmi.
- 2007.
200 p. : il.
Dissertação (mestrado) – Universidade de Santa Cruz do Sul, 2007.
Bibliografia.
1. Holocausto judeu, 1939-1945. 2. Testemunhas. 3. Holocausto
Sobreviventes biografia. 4.Auschwitz (Campo de concentração). 5.Negação do
holocausto. I. Olmi, Alba. II. Universidade de Santa Cruz do Sul. Programa de Pós-
graduação em Letras.
CDD: 940.5318
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COMISSÃO EXAMINADORA
Titulares
Profª. Dr. Alba Olmi – Orientadora
Profª. Dr. Flávia Brocchetto Ramos – UNISC
Profª Dr. Jane Tutikian - UFRGS
3
AGRADECIMENTOS
Esta pesquisa é resultado direto da presença oportuna de várias pessoas em
minha trajetória como aluna e como pessoa.
Dedico-a, primeira e especialmente, à minha companheira de andanças,
professora e orientadora, Dra. Alba Olmi, pelas incontáveis vezes nas quais me
recebeu em sua casa e me pegou pela mão e apontou no horizonte as
possibilidades de leitura, abordagens, caminhos... Todo o meu carinho e
reconhecimento a ela que viveu a empolgação da discussão e a tristeza e
indignação de umas verdades duras que desvendamos.
Aos professores do Mestrado em Letras e ao coordenador do curso, professor
Dr. Norberto Perkoski, saibam o quanto me fizeram feliz nesses dois anos:
satisfação em reencontrá-los e orgulho em tê-los tido como mestres.
Um abraço especial ao amigo e colega de graduação e de mestrado, Romar
Beling, por ter me instigado a conhecer e ler sobre o assunto, por ter partilhado
comigo algumas de suas descobertas, dicas, idéias, indagações, sugestões.
Aos demais colegas do curso: valeram os encontros, as discussões para
amenizar as “angústias dissertativas”, os e-mails, as trocas, os contatos, as
mensagens, as ligações, as jantas, as risadas... Beijos a todos!
À direção, supervisão e professores colegas da Escola Estadual de Ensino
Fundamental Affonso Pedro Rabuske, Santa Cruz do Sul, pelo companheirismo no
período em que estive junto do grupo e pela paciência em escutar as minhas
divagações teóricas: obrigada!
À direção, supervisão e colegas docentes da Escola Estadual de Ensino Médio
Guararapes, Arroio do Meio, por terem novamente me acolhido com tanto carinho,
alegria, respeito e consideração.
Lembrança aos meus queridos alunos da turma do ensino médio da Escola
Guararapes, que abraçaram comigo os trabalhos escritos, os filmes, as
4
apresentações, auxiliando-me e acrescentando às minhas descobertas acerca do
assunto.
Para os amigos todos, aos quais seria impossível listar, obrigada pela
participação que têm na minha vida.
Aos meus pais que estarão sempre comigo: sou muito grata pelos seus
ensinamentos, gravados perenemente na alma.
Aos meus filhos, Ana Carolina e Miguel, pela presença constante a lembrar-me
do compromisso que tenho em fazer do mundo um lugar melhor para eles viverem.
Pelo apoio incondicional, pelo incentivo insistente de que eu mostre o potencial
que acredita que tenho, por confiar em mim tanto e sempre: um beijo ao querido
João, meu escolhido.
5
O que precisa ser erradicado é o mal no
homem, não o próprio homem.
Os diários, de Etty Hillesum
6
RESUMO
O Holocausto é tema relevante de estudos em diversas universidades da Europa e
dos Estados Unidos, tema de inúmeras pesquisas e teses de doutoramento; é foco
central de incontáveis publicações. Comparando com as instituições européias, no
Brasil pouco se privilegiam esses estudos, porque considerados de insignificante
proximidade para os brasileiros, tanto no tempo quanto na relação de espaço. Esta
dissertação procura aproximar e ampliar o conhecimento do Holocausto, resgatando
a reflexão que ele suscitou e continua provocando entre os mais diversos teóricos do
conhecimento humano: retrata a visão de historiadores, sociólogos, psicanalistas,
cientistas políticos sobre o assunto, demonstrando quão presentes estão o fato
histórico e seus desdobramentos também no Brasil e no mundo. Além do
acontecimento histórico, aborda-se as falas das vítimas do Holocausto, comparando-
lhes as narrativas, intentando compreender o que significou a vivência da
experiência e o resgate das memórias na escritura. Procurou-se refletir sobre as
perdas e ganhos legados à humanidade pelo Holocausto, alertando para a
necessidade de repensar os fatos no século XXI, considerando-se a materialização,
cada vez mais evidente, das manifestações revisionistas e negacionistas no mundo
e, inegavelmente, no Brasil, particularmente no Sul e Sudeste.
Palavras-chave: Holocausto. Literatura de Trauma e Testemunho. Narrativa das
vítimas. A herança de Auschwitz. Revisionismo. Negacionismo.
7
ABSTRACT
The Holocaust is a relevant theme studied in several Universities of Europe and
United States, subject of countless researches, and it is the central focus of
countless issues. Comparing it with the European Educational Institutions, in Brazil
that study is not so privileged, because it is considered far from South America´
concerns, in terms of History, time and space. For that reason this dissertation tries
to approach the knowledge of the Holocaust, rescuing the thoughts that it raised and
continues provoking in a large group of theoreticians of human knowledge. In fact,
the subject is approached by historians, sociologists, psychoanalysts, political
scientists, demonstrating how the historical fact and their unfolding are present, also
in Brazil, in Argentina and all around the Western world. Besides the historical event,
we approach the victims' of the Holocaust speeches, comparing their narratives,
attempting to understand what the experience meant to them and what their writings
memories meant to their lives. The objective of the dissertation is also contemplate
losses and knowledge´ legacies to the Humanity through Holocaust, alerting the
reader about the need of rethinking the facts in XXI century, considering the
materializations, more and more evident, of nazi manifestations and History
Revisions, including Negationism in the United States, Canada and, undeniably, in
Brazil, mainly in the South and South-East.
Keywords: Holocaust. Trauma Literature. Victims´ narratives. Auschwitz Heritage.
Revisionism. Negationism.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 10
1 O HOLOCAUSTO: PORÕES E SÓTÃOS ............................................................... 16
1.1 Como o Holocausto tece redes com a Modernidade: a genealogia da violência
nazista ................................................................................................................. 18
1.2 O sentimento anti-semita de cunho eliminacionista ............................................. 26
1.3 O espetáculo da banalidade do mal ..................................................................... 35
2 SER SOBRE-VIVENTE: É ISTO UM HOMEM? ...................................................... 40
2.1 Pensem se isto é um homem: trauma e identidade ............................................. 41
2.2 Paisagens da vida na memória de papel .............................................................. 44
2.3 Ver a si mesmo no espelho da narração .............................................................. 47
3 A PALAVRA ÀS VÍTIMAS ........................................................................................ 53
3.1 O registro impossível do “invivível” ....................................................................... 55
3.2 A noite ou o regresso sem fim .............................................................................. 64
3.3 Pontos de contato e distanciamentos nas escrituras de homens e mulheres
vítimas do Holocausto ......................................................................................... 74
3.4 Perdas e ganhos: o que resta de Auschwitz? ....................................................... 94
4 HOLOCAUSTO: MAIS DO QUE UM QUADRO NA PAREDE .............................. 103
4.1 A educação depois de Auschwitz ....................................................................... 104
4.2 A herança de Auschwitz ...................................................................................... 108
CONCLUSÕES ....................................................................................................... 114
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 133
ANEXOS ................................................................................................................... 138
Anexo 1 – Leis de Nüremberg ................................................................................ 139
Anexo 2 – Cronologia do Holocausto ..................................................................... 141
9
INTRODUÇÃO
Num de seus últimos romances
1
, recentemente traduzido e publicado no Brasil,
o renomado escritor italiano Umberto Eco apresenta-nos um personagem intrigante,
cujo esforço em reconstruir suas lembranças é significativo e exemplar. Vítima de
um colapso cardíaco, Giambattista Bodoni acorda depois de ter estado algum tempo
em coma e constata não se lembrar de nada relativo à sua biografia, como seu
próprio nome, o de sua esposa, de que tenha filhos ou de como foi a sua infância. É
necessário redescobrir coisas muito aprendidas, porém, esquecidas, como o
sabor dos alimentos, a textura dos tecidos ou o que se sente ao escovar os dentes.
Percebe, entretanto, que o conhecimento adquirido nas incontáveis leituras ao longo
de seus sessenta anos emerge das névoas que recobrem a sua memória em
inusitadas citações poéticas e fragmentos de textos clássicos conhecidos.
Verifica que a sua memória semântica não foi alterada no acidente, e passa a
empenhar-se bravamente na busca desses livros, almanaques, histórias em
quadrinhos, enciclopédias, revistas e jornais dos quais recorda trechos, intuindo que
esses materiais podem reconstituir-lhe outras lembranças de infância e juventude,
reconstruindo-lhe, assim, a própria identidade e a possibilidade de projetar o seu
futuro.
O personagem, que afirma possuir “uma memória de papel” (2005:92),
procurará, no sótão da antiga casa dos seus pais e avós, o material precioso que
1 Referimo-nos ao romance ilustrado de Eco: A misteriosa chama da rainha Loana, publicado no
Brasil em 2005, pela Record.
10
poderá ajudá-lo a encontrar-se consigo, com sua história, com episódios importantes
que marcaram sua família, com a história do seu tempo.
Essa empreitada de Bodoni, o protagonista do romance ilustrado A misteriosa
chama da Rainha Loana (2005), de Umberto Eco, é emblemática daquilo que
procuramos realizar nesta pesquisa. A exemplo dele, também queremos visualizar
formas no nevoeiro, também rastrear os porões e sótãos que conseguirmos
adentrar, também tomar de empréstimo as recordações alheias inscritas nas
memórias de papel de várias pessoas que buscam estudar e responder aos
questionamentos que tentamos reforçar.
Das metáforas utilizadas no romance, com as formas no nevoeiro, os porões e
sótãos, com a memória de papel, queremos estabelecer pontes e referências ao
acontecimento do Holocausto judeu ocorrido durante a 2ª Grande Guerra, a partir da
ótica dos segregados e sobreviventes escritores que se permitiram registrar suas
experiências, e de outros que colheram seus depoimentos.
O termo guerra é de origem germânica, werra, e vem para substituir o vocábulo
latino bellum. Utilizada em inúmeras situações lingüísticas para definir as relações
entre pessoas ou o teor de certos acontecimentos, a palavra assume várias
conotações em expressões que podem ser até corriqueiras, entre outras: “guerra
dos sexos” quando se refere à conflituosa convivência entre homens e mulheres;
“guerra fria”: desentendimento entre adversários sem confronto armado; “guerra
aberta”: hostilidade de caráter evidente e constante; “nome de guerra”, apelido ou
pseudônimo atribuído a alguém dependendo da atividade que exerce; “homem de
guerra” quando se quer remeter a “perito na arte militar”
2
. Apesar dos diferentes
empregos da palavra “guerra”, todas as expressões mantêm um contato entre si,
porque a palavra possui, invariavelmente, atributos semânticos referentes a conflito,
luta, oposição, perseguição, mal ou dano.
A guerra é um mecanismo usado historicamente para modificar e moldar o
perfil da organização sociopolítica do planeta, redesenhando fronteiras e
demarcando territórios, apontando novos critérios de valoração cultural e étnica, vão
2 Cf. Grande Enciclopédia Larousse Cultural, 1999:2854-2855.
11
definindo o mundo em vencedores e vencidos, os melhores e os indesejáveis.
Freqüente na trajetória da humanidade, sabemos das suas datas, dos nomes de
seus militares e líderes políticos que se sobressaíram pela ousadia e
empreendimentos, estudamos e localizamos no mapa os países envolvidos, bem
como decoramos os números dos mortos contabilizados nos conflitos. No entanto,
além dos dados oficiais, tidos como representativos da verdade, pouco sabemos a
respeito do outro lado da história: o que os vencidos e marginalizados têm a dizer?
Qual é o seu entendimento do fato com o qual foram diretamente envolvidos? Como
significam os acontecimentos vistos e vividos por eles na guerra?
Apesar de haver estudos na área e de maneira acanhada estarem aumentando
as publicações sobre o assunto no Brasil, o espaço concedido no país à Literatura
Testemunhal, e particularmente à Literatura do Holocausto, é pequeno. Devido à
falta de traduções dos textos originais, a maioria dos leitores brasileiros é
distanciada desses textos pela dificuldade de entender outro idioma, é privada de
conhecer os relatos de homens e mulheres vítimas do Holocausto, lhe são negadas
outras possibilidades de compreensão do fato histórico.
Em âmbito internacional, vários escritores são reconhecidos pelos relatos
autobiográficos de vivências que tiveram durante a Guerra Mundial, frutos do
isolamento nos guetos, da prisão nos campos de concentração ou da angustiante
espera de parentes, amigos e conhecidos feitos prisioneiros durante o período do
conflito. Como expoentes da Literatura Memorial ou de Testemunho, citamos alguns
autores sobreviventes do Holocausto “que constituem o cânone testemunhal da
Shoah”
3
(SELIGMANN-SILVA, 2006:60), estes traduzidos para o português e
notoriamente considerados referência para conhecimento do assunto: Primo Levi,
Paul Celan, Nelly Sachs, Jorge Semprún, Georges Perec, Elie Wiesel, Ruth Klüger,
Marguerite Duras, Anne Frank, Ida Fink, Art Spiegelman, Imre Kertész, entre outros.
Se fizermos um levantamento, perceberemos que grande parte das obras
traduzidas para diversas línguas e, inclusive, para o português, é produção de
homens escritores sobreviventes ou não, somando poucas obras de mulheres
3 Palavra de origem hebraica que significa “aniquilamento”. Segundo alguns teóricos, esse termo
seria o mais adequado para substituir “holocausto”, principalmente após o lançamento do filme de
Claude Lanzmann, em 1985, intitulado “Shoah”.
12
também escritoras de suas experiências enquanto vítimas do Holocausto. Assim, no
parágrafo anterior, mencionamos autores importantes cujos textos constam
traduzidos no mundo e no Brasil, porém, inúmeros outros que figuram nesse espaço
não são mencionados aqui porque não tradução nem publicação de suas obras
em português. Indicamos algumas escritoras para dar a idéia da dimensão da
ausência: Roberta Ascarelli, Inge Auerbacher, Mary Berg, Trudi Birger, Titti Marrone,
Leila Berg, por exemplo. Infelizmente, um grande número de leitores é privado de
conhecer e aprender com os textos dessas escritoras por não ter acesso a eles, aqui
no Brasil.
Assim sendo, tendo em vista que a maior parte da Literatura de Testemunho
sobre o Holocausto judeu tem procedência do relato de homens escritores
sobreviventes, gostaríamos de conhecer mais também do depoimento das mulheres
que sobreviveram ao fato traumático, suas angústias, suas vivências, seu modo de
superação da catástrofe, seu jeito de viver a vida e de narrar a sua experiência.
Pretendemos verificar também a narrativa feminina do Holocausto, tencionando
identificar e relacionar semelhanças e diferenças entre as vozes de homens e
mulheres que vivenciaram esta experiência, ao mesmo tempo em que buscamos um
conhecimento mais amplo e sob novas perspectivas do histórico acontecimento.
Afinal, estamos falando de História e de histórias, de relatos e textos que se
entrecruzam nos fios de uma mesma rede; estamos falando de um acontecimento
que, de uma ou outra forma, nos constitui enquanto pessoas do século XXI.
Para obtermos sucesso em nossa investigação, consideramos de fundamental
importância conhecer diferentes posicionamentos sobre o Holocausto. Num primeiro
segmento do estudo, pretendemos apresentar a releitura de pontos relevantes
assinalados por teóricos de diversas áreas do conhecimento: historiadores,
sociólogos, filósofos, psicanalistas, políticos. Os autores que sustentam esta
primeira parte do trabalho, entre outros, são os seguintes: Zygmunt Bauman,
sociólogo que investiga os diversos fatores implicados na concretização do
genocídio; Enzo Traverso, historiador preocupado em delimitar uma genealogia da
violência emblemática do nazismo; Daniel Goldhagen, cientista político que aponta o
nível de envolvimento do povo germânico na efetivação dos planos de eliminação
dos judeus; Jean Paul Sartre que procura, através da Filosofia, refletir sobre o anti-
13
semitismo e seus seguidores; Hannah Arendt, pensadora alemã que desmistifica o
totalitarismo, o fascismo, o regime nazista e reflete sobre as estruturas que tornaram
possível a “banalidade do mal”.
O segundo bloco aborda conceitos-chave para compreender o Holocausto e
sua relação inextricável com os sobreviventes. Conceituações como: sobrevivência,
memória, trauma, identidade, pensamento narrativo, as fases da produção literária
das vítimas, são explorados nesse espaço. Nossas bases teóricas são sustentadas
por idéias de estudiosos como: Márcio Seligmann-Silva, Ivan Izquierdo, Nestor
Braunstein, Jerome Bruner, Stefano Zampieri, Harald Welzer, Shoshana Felman,
entre as proposições de muitos outros autores.
Além dos posicionamentos dos teóricos sobre o assunto, foi necessário
empreender um estudo comparado entre obras de escritores sobreviventes do
Holocausto, para evidenciar as repercussões do contexto histórico da perseguição
nazista em suas narrativas, procurando contextualizar os seus testemunhos no
espaço e no tempo. Oferecer um espaço privilegiado para que as vítimas fizessem
uso da palavra: este direcionamento caracterizou o terceiro bloco de reflexão, no
qual utilizamos as produções textuais de Primo Levi, Elie Wiesel, Jorge Semprún,
Etty Hillesum, Ruth Klüger, Victor Klemperer, Anette Wieviorka, Janina Bauman.
Esses autores foram em princípio priorizados no estudo, porém outros acabaram
tomando parte, enriquecendo o trabalho, como: Anne Frank, Ida Fink, Imre Kertész,
Erica Fischer, Georges Perec, Marguerite Duras, Aleksander Laks.
O quarto bloco acentua o caráter dinâmico e atual do Holocausto, retratando a
preocupação que temos com o que sobrou, em termos de educação e reflexão para
a humanidade depois do genocídio. Também aqui, são os pesquisadores que nos
ajudam a iluminar este problema, mostrando-nos o quanto ele é presente. Contamos
com as idéias daqueles que especificamos a seguir, entre outros: Theodor Adorno,
filósofo que propõe a reconsideração da Educação na sociedade após o Holocausto;
Shoshana Felman, professora e psicanalista que sugere a educação como um
resultado viável da crise; Ida Dominijanni, jornalista e professora universitária,
convoca a um resgate da memória do Holocausto privilegiando seu aspecto
genealógico; Georges Bensoussan, teórico abordado pela professora Amélia Cidro,
14
que reflete sobre a importância das pessoas superarem as celebrações ritualísticas
dedicadas à Shoah, compreender de fato o passado e evitar que ele volte a se
repetir.
Para isso, lançamos mão de instrumentos que puderam, direta ou
indiretamente, manter relação com o tema visado: buscas na Internet, poemas, e
outros textos como biografias, diários íntimos, autobiografias, literatura ficcional,
enfim, todo material acessível que pôde ser utilizado como referência e suporte para
o estudo.
Propusemo-nos a uma análise comparativa, procurando, através de
contrapontos teóricos, iluminar, favorecer e suscitar novos olhares aos textos-base,
pois entendemos o exercício da releitura da obra como sendo momento de
“atividade crítica”, “que lida amplamente com dados literários e extraliterários”, com a
“finalidade de interpretar variadas questões”, nos termos de Carvalhal (1986:39;82),
contribuindo, assim, para a produção de um conhecimento mais sólido e
preeminente acerca das narrativas sobre o Holocausto.
Indubitavelmente, o conhecimento e o estudo da escritura das vítimas do
Holocausto vêm propiciar uma oportunidade ímpar de entrar em contato com ótima
literatura, de caráter distintamente testemunhal, o que resulta em conhecimento, em
superação e respeito às individualidades, em processo de autoconhecimento, em
reivindicação e conquista de maior abertura ao imaginário do “outro”, de condição
para o diálogo. Em outras palavras, tencionamos possibilitar divulgação mais ampla
à Literatura de Testemunho, arriscando na conquista de um espaço mais seu, mais
próprio, respeitadas suas abrangências e peculiaridades de reflexão, entendendo a
Literatura como espaço privilegiado de pensar. Além das produções escritas, que
são objeto de estudo, também queremos visualizar a relação que essas produções
estabelecem com o homem contextualizado, fruto de seu tempo social e cultural,
também co-responsável pelos acontecimentos que marcam a história da
humanidade.
15
Recortando as palavras de Levi
4
enunciadas na abertura à obra É isto um
homem? (1988:9), texto considerado parâmetro para conhecimento da literatura
produzida pós-Holocausto, transmitimos o apelo que este sobrevivente faz, num
verdadeiro e doloroso eco da sua memória pessoal à memória coletiva:
Vocês que vivem seguros
Em suas cálidas casas,
Vocês que voltando à noite,
Encontram comida quente e rostos amigos,
Pensem se isto é um homem
Que trabalha no meio do barro,
Que não conhece paz,
Que luta por um pedaço de pão,
Que morre por um sim ou por um não.
Pensem se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome,
Sem mais força para lembrar,
Vazios os olhos, frio o ventre,
Como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
Eu lhes mando estas palavras.
Gravem-na em seus corações,
Estando em casa, andando na rua,
Ao deitar, ao levantar;
Repitam-na a seus filhos.
Ou senão, desmorone-se a sua casa,
A doença os torne inválidos,
Os seus filhos virem o rosto para não vê-los.
1 O HOLOCAUSTO: PORÕES E SÓTÃOS
4 Primo Levi (1919-1987): judeu nascido em Turim, na Itália, tinha vinte e três anos quando foi
capturado e deportado para Auschwitz. Referência mundial da produção literária testemunhal pós-
Holocausto.
16
Considerado por muitos como o acontecimento mais degradante e desumano
que figurou no cenário da Grande Guerra, o Holocausto judeu inquieta, causa
dúvida, indignação e produz controvérsias entre os estudiosos do assunto. De um
lado, cada vez mais, e com maior evidência, os chamados revisionistas
5
e/ou
negacionistas
6
que procuram, através de diferentes argumentos, pôr em dúvida a
veracidade, as proporções, a intensidade e as conseqüências do horror do
Holocausto para os judeus e demais vítimas e, por extensão, para toda a
humanidade, procurando suscitar a desconfiança inclusive quanto aos relatos dos
sobreviventes. Temos os grupos que se autodenominam neonazistas que
despontam, ainda acanhada e isoladamente, em locais diversos do planeta,
proclamando os ditos e preceitos nazistas, insurgindo com as idéias hitleristas da
limpeza étnico-racial para a construção de uma sociedade livre dos indesejáveis e
inconvenientes. Esses grupos divulgam suas idéias pela internet, ou ostentando o
símbolo nazista, ou em manifestações nas quais algum grupo étnico é ofendido,
constrangido e, inclusive, violado.
De outro lado, temos os estudiosos de diferentes áreas do conhecimento que
desaprovam as posturas mencionadas, e apresentam seus contra-argumentos
que vão na direção da importância e urgência de se refletir sobre o que foi e o que
possibilitou a loucura nazista da Solução Final
7
, porque indícios de ela estar
latente e à espreita de uma nova oportunidade para acontecer como evento análogo
ao que incidiu décadas atrás. A esses teóricos, unem-se as vozes dos
sobreviventes, poucos, se comparados aos números estarrecedores dos que
pereceram durante a guerra e em conseqüência do Holocausto, vozes perfeitamente
audíveis e das quais não podemos omitir a escuta e a compreensão.
Em sua origem etimológica, a palavra grega holokauston significa “Entre os
hebreus, sacrifício em que a vítima (um animal) era totalmente consumida pelo fogo;
imolação”; e em outras acepções que reforçam a primeira: “Oferenda completa e
5 São assim chamados os adeptos da teoria do Revisionismo. Como o nome sugere, essa teoria
prega a revisão de idéias, doutrinas, valores, fatos históricos. No caso do Holocausto, os revisionistas
questionam a veracidade do acontecimento, ou a sua intensidade e proporção.
6 Adeptos da doutrina que “questiona a veracidade do genocídio dos judeus pelos nazistas durante a
II Guerra Mundial e negam a existência das câmaras de gás”. Cf. Larousse Cultural, 1999:4174.
7 Expressão que nomeia o projeto nazista de exterminar os judeus da Europa.
17
generosa, sacrifício”; também “Imolação de si mesmo”
8
. Com o acontecimento da
Guerra Mundial, a palavra Holocausto passou a designar os assassinatos em massa
de crianças, mulheres e homens, judeus e não judeus. Para alguns, o nome mais
adequado para referenciar tantas mortes e tamanha atrocidade é Shoah, “palavra
hebraica que significa ‘aniquilamento’”
9
. Para a escritora vienense e sobrevivente
Ruth Klüger, o essencial é nomear para entender o que aconteceu, definindo melhor
os contornos do fato:
Se a palavra Shoah é adequada, como se tem afirmado recentemente, não
me importa, basta que haja uma palavra qualquer que possa ser utilizada
sem rodeios e explicações complementares. Pois as palavras, as palavras
simples que aparecem em definições nos dicionários, [...] são as que
cercam e criam o assunto em discussão. (KLÜGER, 2005:207-208)
Independentemente da importância de nomear ou definir, a primeira parte do
estudo presentifica o fato do Holocausto, procurando apresentar as considerações
de filósofos a historiadores, de psicólogos a sociólogos que oferecem distintos e, às
vezes, convergentes, caminhos de abordagem sobre o assunto, contribuindo, cada
um, para ampliar e perfilar com maior nitidez o que aconteceu mais de 60 anos e
marcou, indelével e inexoravelmente, o século XX como um dos mais sangrentos da
História.
1.1 Como o Holocausto tece redes com a Modernidade: a genealogia da
violência nazista
Nada mais significativo que iniciar nossa explanação sobre o Holocausto com a
assertiva de Primo Levi: de todos os nomes-testemunho do Holocausto,
merecidamente entre os mais conhecidos e importantes, indispensável para o
estudo sobre o assunto. De forma direta e contundente, chama a atenção para a
dificuldade que ele e outros sobreviventes têm de serem ouvidos, da urgência de ser
compreendida a situação no seu cerne e da necessidade de as pessoas encararem
o fato, pois, como conclama e insiste Levi, se o genocídio judeu foi novidade no
século XX, pode não ser surpresa no século XXI e subseqüentes, porque talvez
8 Definições essas que constam na Enciclopédia Larousse Cultural, 1999:3009.
9 Cf. Larousse Cultural, 1999:5360.
18
venha a repetir-se por estar mais presente entre nós do que somos capazes de
avaliar. Nas palavras do escritor italiano:
Para nós, falar com os jovens é cada vez mais difícil. Percebemos que falar
com eles é, simultaneamente, um dever e um risco: o risco de parecer
anacrônico, de não ser escutado. Devemos ser escutados: acima de
nossas experiências individuais, fomos coletivamente testemunhas de um
evento fundamental e inesperado, fundamental justamente porque
inesperado, não previsto por ninguém. Aconteceu contra toda a previsão;
aconteceu na Europa; incrivelmente, aconteceu que todo um povo
civilizado, recém-saído do intenso florescimento cultural de Weimer,
seguisse um histrião cuja figura, hoje, leva ao riso; no entanto, Adolf Hitler
foi obedecido e incensado até a catástrofe. Aconteceu, logo pode
acontecer de novo: este é o ponto principal de tudo quanto temos a dizer.
(LEVI, 2004:172)
Por ser um evento sem par ou sem referente semelhante na História da
humanidade, por sua complexidade e abrangência, como esclarece Levi em sua
fala, o Holocausto foi interpretado de diferentes maneiras ao longo das análises
empreendidas por estudiosos de diferentes áreas. Inicialmente, o Holocausto foi
entendido como sendo uma espécie de anomalia no sistema, ou seja, um defeito na
engrenagem, um desvio moral e ético do sistema alemão democrático e
racionalizado, considerado, apesar disso, funcional e idealmente o melhor até
aquele momento na história da organização social humana.
Para justificar essa concepção do Holocausto como “deformidade na
engrenagem”, numa linguagem que se pretende científica, bastante divulgada na
época, o Holocausto foi comparado a um câncer, uma doença ou disfunção no
organismo social que, uma vez tratado ou extirpado, seria um problema erradicado e
resolvido. Nesse raciocínio, os perpetradores são pessoas consideradas sádicas,
amorais, desvirtuadas, descontroladas e capazes de atos insanos e incontidos.
Bastaria apontá-los, isolar e punir os responsáveis que estaria paga a dívida social
que contraíram. Por outro lado, as vítimas são as únicas prejudicadas pela “loucura
momentânea” (que durou décadas) dos criminosos, o que constitui o Holocausto
como um problema delas, devido ao seu específico grupo étnico-social, é um
problema dos judeus (BAUMAN, 1998:11).
No entanto, estudos posteriores sinalizam para outro direcionamento. O que, de
certa forma, a sociedade intui e procura ignorar, é que o Holocausto pode ter sido
19
mais que uma falha no sistema, pode ter sido fruto desse sistema ideal pensado e
aprimorado nas últimas centenas de anos, mais especificamente, desde o
Iluminismo antropocêntrico do século XVIII
10
até o requinte tecnológico da
Modernidade do século XX.
Em defesa dessa idéia, o sociólogo Zygmunt Bauman, na obra Modernidade e
Holocausto, ao demonstrar o quanto a Sociologia deixou a desejar numa análise
mais atenta e profunda do Holocausto, em relação a outras áreas de conhecimento,
como, por exemplo, a Teologia e a Historiografia, nos apresenta importantes
considerações teóricas sobre os fatos.
no prefácio de seu trabalho, Bauman (1998:12) sustenta que “o Holocausto
nasceu e foi executado na nossa sociedade moderna e racional, em nosso alto
estágio de civilização e no auge do desenvolvimento cultural humano, e por essa
razão é um problema dessa sociedade, dessa civilização e cultura”
11
. Constitui-se,
então, em veículo importante para conhecermos melhor a sociedade da qual
fazemos parte e da qual tanto nos orgulhamos. O sociólogo acrescenta, na
introdução, a assustadora possibilidade de que o Holocausto constitua duas faces
do mesmo corpo, talvez indissociáveis, talvez indispensáveis uma à existência da
outra. Dizendo de maneira diferente: talvez o Holocausto seja uma das faces e a
Modernidade a outra e que uma não possa existir sem a presença daquela que a
complementa. Assim sendo, torna-se impossível continuarmos insensíveis ao
morticínio, negando-lhe a relevância e a sua ligação estreita conosco.
Questionamentos constantes e incômodos serão mais dolorosos para serem
satisfatoriamente respondidos: “como foi autorizada a matança dos judeus e de
outros indesejáveis num dos países considerado padrão de modernidade, de
progresso científico e tecnológico? Como foi tolerado o horror dos assassinatos em
massa de crianças e mulheres durante vários anos?”; e ainda, “como foi possível
que pessoas comuns pudessem se transformar em carrascos e assassinos?” (id.,
ibid.).
10 Movimento intelectual baseado na razão como instrumento ideal para solucionar os problemas
sociais. Desenvolveu-se na Europa, principalmente na França, Inglaterra e Alemanha.
11 Em relação à tecnologia e modernidade de seu tempo, comenta o sobrevivente da perseguição
nazista, professor Victor Klemperer, em seus diários: “Curioso, no momento em que a técnica
moderna elimina todas as fronteiras e distâncias (avião, rádio, televisão, laços econômicos), grassa o
mais terrível nacionalismo” (1999:258).
20
Em nosso entendimento, compreendemos que Bauman argumenta de forma
esclarecedora quanto aos dois primeiros questionamentos, que seguimos
procurando explicitar. Quanto à terceira interrogação, a abordaremos, no próximo
item de estudo, contemplando o enfoque do cientista político Goldhagen que, em
sua tese de doutoramento, analisa com autoridade o envolvimento do povo alemão
na execução do Holocausto.
Conforme Bauman, o Ocidente concebe o mundo a partir de uma visão
mitológica, entendendo que a história da humanidade se de maneira evolutiva,
emergindo da barbárie e da ignorância, assim definida pelo avanço e progresso da
civilização. Nesse esquema predomina a organização, a burocracia, o planejamento
social, a produção seriada, o lucro, os gráficos e seus indicadores. Para que tudo
funcionasse, a civilização moderna criou e forneceu as barreiras e os obstáculos à
preservação da estrutura, estabeleceu as instituições que regem o sistema e primam
pela segurança de seus componentes.
Apenas a traidores e apátridas, impuros, criminosos, enfermos sociais ou
grupos estranhos e hostis, o processo civilizatório não protege, pois estes são
considerados indesejáveis e descartáveis para o que deve ser perfeito e harmônico.
Leia-se: judeus, opositores políticos, doentes mentais, homossexuais, ciganos,
existentes na Alemanha de Hitler. Por extensão, atualmente, poderíamos ler:
marginalizados, negros, mulheres, pobres, idosos, etc. O maior legado do
Holocausto é permitir reler a sociedade e os elementos que a estruturam e pôr em
xeque sua eficiência de promover a igualdade e a justiça para todos, filosofia maior
que legitima a existência do Estado Moderno.
Evidencia-se, assim, a primeira grande deficiência problemática da
Modernidade: os mecanismos criados para a proteção e segurança do homem
podem anular-se quando da necessidade de atuar em seu favor, no que se refere a
alguns grupos específicos de indivíduos (como os judeus na Alemanha hitlerista ou
os negros nos Estados Unidos, por exemplo), na verdade, para selecionar, isolar e
condená-los à obnubilação, à marginalidade e à exclusão. No caso dos judeus, o
povo foi, literalmente, selecionado para o extermínio. Bauman afirma que “no
21
período que levou à Solução Final
12
, as salvaguardas mais confiáveis [a Ciência, a
Igreja, a Escola, por exemplo] foram colocadas à prova. Todas falharam, cada uma
delas e todas ao mesmo tempo” (p. 132).
O segundo aspecto importante analisado pelo sociólogo é a existência da
íntima ligação entre a burocracia moderna e o Holocausto. Consoante seu estudo, a
ligação entre eles não é casual nem transgressão desvirtuada do sistema, pelo
contrário, é condição necessária para a efetivação do Holocausto e sua Solução
Final. Assim, a burocracia, com suas características de tecnicidade, capacidade de
traçar projetos e torná-los eficazes, aliada à irrelevância dos padrões morais para
aplicabilidade e consumação dos objetivos na obtenção dos fins desejados, serviu
de ferramenta essencial na elaboração e concretização dos planos de afastamento
social dos judeus, seguido de isolamento físico em guetos, depois a extradição para
os campos de concentração e, por fim, a aniquilação através do extermínio. Essas
resoluções não foram mais do que procedimentos burocráticos de rotina, sem
conflito com os princípios da racionalidade, pelo contrário, resultantes dela.
Bauman salienta a sistematicidade do intento dos nazistas, mostrando-nos que
a operação burocrática para a “solução do problema judeu” foi meticulosamente
planejada, incluindo o controle e a avaliação dos resultados. O que seria mais
barato: exterminar os judeus a metralhadas ou pelas chaminés de Auschwitz? Como
aumentar mais a fortuna do Reich: saqueando as casas das vítimas ou limitando em
listas próprias os objetos que elas levariam em “viagem”? O que resultaria em lucro
maior: usar os judeus como trabalho escravo ou deixá-los perecer à fome no
Lager
13
? Qual a melhor maneira de evitar o tumulto da multidão ao chegar a
Treblinka
14
: contar com a colaboração de prisioneiros calejados do campo para a
manobra até as câmaras de gás, nas quais supostamente os que chegavam
tomariam banho e seriam desinfetados, ou arrastá-los aos pontapés, com cassetetes
e cães ferozes para a seleção? Perguntas como essas são produtos de um
raciocínio moderno e técnico: análise da situação na busca de resolução de
12 Conferir estudo do professor Mark Roseman na obra Os nazistas e a solução final (2003), que
aborda, entre outros itens: emigração, morte e deportações, assassinatos em massa e, finalmente, o
genocídio como “solução final para o problema judaico”.
13 Palavra alemã utilizada para nomear “campo de concentração”.
14 Campo de extermínio alemão, construído em junho de 1942. Aproximadamente 750.000 judeus
foram assassinados ali. (Cf. Larousse Cultural, 1999:5748).
22
problemas, para a almejada obtenção de “um mundo ordenado, planejado e
controlado”.
Ainda um terceiro item para a reflexão que o estudo nos oferece é a visão de
que, para ser efetivado o Holocausto, inúmeros elementos se combinaram e, com a
ausência de um ou mais, não teria sido possível a catástrofe: o sentimento anti-
semita exterminador, o racismo atuante segundo as especificações de um projeto de
sociedade perfeita, a burocracia eficiente, o ufanismo nacionalista excludente, a
ciência inescrupulosa e sem limites, a Igreja omissa, um líder carismático e
empreendedor, a situação alemã decadente pós-Primeira Grande Guerra, a
tecnologia a serviço da vilania, entre outros. Nas palavras de Bauman:
A verdade é que todos os “ingredientes” do Holocausto todas as
inúmeras coisas que o tornaram possível foram normais; “normais” não
no sentido do que é familiar, do que não passa de mais um exemplo de
vasta categoria de fenômenos de muito plenamente descritos,
explicados e assimilados (ao contrário, a experiência do Holocausto era
nova e desconhecida), mas no sentido de plenamente acompanhar tudo o
que sabemos sobre nossa civilização, seu espírito condutor, suas
prioridades, sua visão imanente do mundo e dos caminhos adequados
para buscar a felicidade humana e uma sociedade perfeita. (BAUMAN,
1998:27)
Como explica o historiador italiano Enzo Traverso (2002), os nazistas não
inventaram nada que não existisse antes para a preparação e execução dos seus
planos violentos. Na verdade, os “ingredientes” que se combinaram para culminar no
Holocausto haviam se manifestado no passado da sociedade européia e
encontraram solo fértil, especialmente, na sociedade alemã. Nesse raciocínio, o
nazismo conseguiu sintetizar os elementos existentes e perceptíveis na estrutura
social positivista da Europa entre os anos de 1870 a 1933: o capitalismo industrial, o
imperialismo, o colonialismo, a política de eugenia, o desejo de limpeza étnica ou
higiene racial e suas ligações com o darwinismo.
Traverso sinaliza a experiência da Primeira Guerra Mundial como sendo
responsável pelo surgimento de uma nova consciência em relação à violência,
marcada pela desumanização das vítimas e pela desvalorização da vida. Ele
comenta que a geração dos ex-combatentes, traumatizados com a guerra e
impossibilitados de se reintegrarem à vida do pós-guerra alemão, foi que permitiu
23
que Hitler assumisse o poder, implantasse o nacional-socialismo e fomentasse uma
guerra mais violenta do que tinha sido a primeira. Segundo o pesquisador, a
Primeira Guerra condensou toda a violência do século anterior, demonstrando
diversas tendências na maneira nazista de governar. Alguns aspectos dessa
violência podem ser exemplificados: no exército que industrializa a guerra através da
autoridade, na imposição da hierarquia e da disciplina incondicional, da
racionalidade instrumental, da morte seriada. Do mesmo modo, nas experiências
dos campos para prisioneiros de guerra, na animalização do inimigo e na sua
condição reduzida de objeto (concepção transmitida por novas formas de
propaganda que visavam à discriminação racial), na guerra total que não faz
distinções entre militares e civis que também são presos e deportados.
Para Traverso, é necessário investigar desde as primeiras manifestações de
violência encontradas no passado da civilização européia, traçar uma genealogia
dessa violência e compreender de que modo ela foi ferramenta para incrementar as
práticas nazistas. O primeiro elemento importante citado pelo escritor é o uso da
guilhotina, tida por ele como um símbolo da morte mecanizada, em série, que isenta
o carrasco, uma vez que ele não assassina a vítima diretamente, tornando-o um
mero funcionário que executa ordens. O segundo elemento abordado por Traverso é
a cadeia caracterizada pela desumanização do prisioneiro, onde imperam a
disciplina do corpo e a humilhação do sujeito; e ainda, a submissão hierárquica e a
racionalidade da administração. O terceiro elemento: o padrão da fábrica taylorista
15
que serviu de base para a organização sistemática do extermínio nazista, com seu
caráter de técnica e exatidão de resultados. Como último elemento importante a ser
refletido, Traverso cita o padrão de administração racional, que preconizou a
indiferença moral e que possibilitou o processo de deportação em massa e ao
posterior extermínio das vítimas.
Os elementos listados, ao se encontrarem com os preceitos nazistas,
ajustaram-se a ele e possibilitaram “um sistema industrial voltado ao morticínio no
qual a tecnologia moderna, a divisão de tarefas e a racionalidade administrativa se
15 Referência ao engenheiro norte-americano, Frederick Winslow Taylor, “autor do método de
organização científica do trabalho que leva o seu nome (taylorismo)”. (Cf. Larousse Cultural,
1999:5600).
24
integravam eficazmente, como numa empresa” (TRAVERSO, 2002:57).
16
Na
verdade, a relação entre massacre e administração preconizou a estrutura da
organização e administração dos Lagers nazistas.
Traverso continua sua exposição indicando que as idéias relativas à evolução e
seleção das espécies, do “direito” de as últimas disporem das outras, configuram
conceitos de cunho colonialista, e são tão importantes quanto os primeiros
elementos para entendermos o nazismo. Mesmo as Leis de Nüremberg que, como
sabemos, são basicamente raciais, alicerçadas em preceitos de superioridade
étnica, têm seu precedente histórico na África, ao longo das guerras coloniais, no
séc. XIX, quando foram experimentadas e aplicadas. Também por ocasião dessas
guerras, foram utilizadas as metralhadoras e as armas automáticas. Lembra
Traverso que o próprio Hitler comparou a Segunda Guerra com uma guerra colonial.
É salientado por Traverso que, na genealogia da violência nazista, foi de
fundamental importância o programa da eugenia, através da aplicação de doutrinas
de limpeza étnica e da “biologização” do anti-semitismo, difundido e arraigado
dezenas de anos antes. Os nazistas conseguiram evidenciar uma oposição própria
do anti-semitismo: o conceito de judeu como sendo comerciante ávido por dinheiro,
calculista, astuto, ligado às finanças, controlador e detentor do dinheiro,
representante, portanto, da civilização ocidental capitalista e iluminista. O homem
ariano, ao contrário, é concebido como guardião da tradição, isto é, com suas raízes
na terra, tido como agricultor, heróico, criador. Nessa perspectiva, Traverso sustenta
que o nazismo tornou-se “uma forma de modernismo reacionário” (p. 173).
17
Numa síntese da proposição teórica de Traverso, o Holocausto foi singular não
pelo fato de não ter precedentes na História, mas sim por ser “uma síntese única de
um vasto conjunto de formas de opressão e de extermínio experimentadas, cada
uma separadamente das outras, ao longo da história moderna” (p. 181, grifo do
autor)
18
. O genocídio foi possível pela conjunção de diversos fatores políticos,
sociais e históricos. E, para uma sólida compreensão do assunto, é necessário voltar
16 “un sistema industriale di messa a morte nel quale tecnologia moderna, divisione del lavoro e
razionalità amministrativa si integravano efficacemente, come in un´ impresa.” Tradução original do
italiano pela Profa. Alba Olmi, orientadora da dissertação. A partir daqui, todas as demais traduções
dos originais italianos são da mesma autoria.
17 “[...] una forma di modernismo reazionario [...]”
25
os olhos para a História européia, conhecer a genealogia da violência e perceber
que o nazismo foi mais do que uma irrupção da irracionalidade e do Mal na
sociedade contemporânea.
1.2 O sentimento anti-semita de cunho eliminacionista
Ao procurar responder à pergunta “Por que este anti-semitismo?”, formulada
por Mathilde, sua filha de treze anos, a historiadora Annette Wieviorka percebeu
que, apesar de lidar com o assunto do Holocausto vários anos, mesmo dispondo
em casa de inúmeros periódicos, revistas e livros, ainda que tendo palestrado em
diversas oportunidades em rádio e televisão, abordando o tema, responder
coerentemente aos questionamentos da filha seria deveras complicado. Mesmo
nessa condição difícil, procura corresponder à dúvida que Mathilde lhe apresenta,
explicando-lhe:
- Por que este anti-semitismo?
- O anti-semitismo é antigo. Para alguns, é contemporâneo do próprio
momento em que nasceu o judaísmo, três milênios! Outros acham que
sua fonte é o cristianismo. Fala-se assim principalmente de antijudaísmo.
Em essência, culpam-se os judeus de não terem admitido que Jesus é o
Messias, de recusarem esta “boa-nova”, de resistirem à conversão. Pior
ainda, acusam os judeus de serem responsáveis pela morte de Cristo. Esta
responsabilidade é coletiva todos os judeus e eterna, pois se transmite
a todas as gerações de judeus dois mil anos. Foi na Idade Média que
este antijudaísmo cristão floresceu e alimentou todo o tipo de mitos. O
judeu tornou-se um personagem demoníaco, que tinha parte com o diabo.
Quando a Europa foi vítima de uma epidemia de peste negra, foi culpa dos
judeus, que teriam envenenado os poços; acusaram-nos também de
assassinatos rituais: todos os anos, no momento da Páscoa judaica, eles
assassinariam uma criança cristã para misturar seu sangue ao pão ázimo
que os judeus comem durante todo o período da Páscoa. Mas naquela
época, principalmente durante os massacres, como os que foram
cometidos na época das Cruzadas, era possível a um judeu escapar do
seu destino pela conversão. Os que se recusaram a trair suas crenças
foram, então, mártires que sacrificaram sua vida, como se diz, pela
santificação do Nome, ou seja, de Deus. (WIEVIORKA, 2000:59-60)
Instigada pelo interesse que a filha demonstra, Wieviorka procura dar-lhe
retorno a respeito dessa e outras inquirições no livro Auschwitz explicado à minha
filha (2000) e, por sua vez, indaga-se: como explicar a uma criança sobre o uso
18 “[...]“una sintesi unica di un vasto insieme di forme di oppressione e di sterminio già sperimentate,
ciascuna separatamente dalle altre, nel corso della storia moderna.”
26
obrigatório da Estrela de Davi; a fumaça das chaminés de Auschwitz
19
e Birkenau; os
números tatuados nos braços dos prisioneiros; e sobre as câmaras de gás; e a
morte de velhos, crianças, mulheres; e da guerra; e da crueldade humana? O mais
assustador, ela revela, é que os questionamentos que Mathilde lhe dirige são os
mesmos formulados desde sempre por ela mesma e por vários outros historiógrafos
e filósofos, há mais de meio século.
Queremos principiar a abordagem deste bloco de estudo, citando, a propósito,
a fala de Raul Hilberg
20
(apud BAUMAN, 1998:106), considerado o “historiador do
Holocausto” por excelência, e que propõe a mais contundente indagação que surge
do Holocausto: “Vocês não ficariam mais felizes se eu pudesse mostrar que todos os
que perpetraram [o crime] eram loucos?”. No entanto, a tendência que se evidencia
como confirmação de pesquisas e esforços teóricos aponta para a direção adversa:
os criminosos (em sua larga maioria) eram pessoas “normais”, agradáveis com
outros sujeitos, preocupados com seus filhos, amados por suas esposas, zelosos
por seus animais de estimação, e funcionários aplicados, ou seja, cidadãos que
agiam naturalmente e de acordo com o que social, cultural e profissionalmente era
esperado deles.
O professor norte-americano Daniel Jonah Goldhagen (1997), em empenho
acirrado para responder à questão proposta por Hilberg, fornece-nos algumas
conjeturas imprescindíveis para entendermos o envolvimento voluntário de, além de
os alemães nazistas, também da maior parte do povo germânico no massacre dos
judeus. Para esclarecimento, sua busca por documentos, registros, dados que
pudessem auxiliar na ratificação (ou não) das hipóteses foi intensa e, como
resultado, temos uma extensa e consistente tese de doutoramento.
Partindo da premissa de que o anti-semitismo é um axioma, ou seja, uma
verdade incontestável que faz parte das crenças do povo alemão, Goldhagen
comprova que a crueldade para com os judeus e o projeto de eliminá-los da
sociedade alemã nazista não deveria causar espanto. Afinal, endossando as
19 Maior conjunto de campos de concentração destinados ao extermínio de judeus e outros
prisioneiros (Cf. Larousse Cultural, 1999:523). Passou a ser nome-símbolo para designar a destruição
dos judeus na Europa.
20 Autor da obra The Destruction of the European Jews. New York: Holmes & Meier, 1983.
27
informações de Wieviorka, o pesquisador também reforça que esse sentimento de
ódio aos judeus é bem antigo, datando da Idade Média.
No período medieval, porém, o anti-semitismo apresentou um cunho
diferenciado daquele de que temos notícia no século XX. Também os judeus eram
responsabilizados pelos mais diversos males e calamidades, acusados de serem o
povo que “assassinou Jesus” e que fechou os ouvidos à “Boa nova” que Ele veio
trazer ao mundo. Entretanto, sua influência maléfica era entendida de forma
periférica, situada nas bordas sociais e espaciais, relacionada diretamente com o
aspecto teológico da cristandade em oposição ao judaísmo, sendo que era admitida
a conversão de um judeu se ele se submetesse ao batismo cristão e renunciasse a
sua pervertida religião. Esses motivos de aversão aos judeus, além de serem
potencializados na Modernidade, vão ser acrescidos de outros fatores que
inviabilizam a relação daqueles com os alemães: a raça como critério determinante
de divisão entre os dois povos, uma vez que é elemento intrínseco ao povo judeu e,
independente de quaisquer fatores, é imutável; os judeus, que jamais poderiam se
tornar alemães, são considerados a causa central da desordem e da decadência da
Alemanha pós-Primeira Guerra, que poderá ser “salva” mediante o extermínio
desses invasores e traidores. Essas idéias, na verdade, funcionaram como álibis e
argumentos para justificar a perseguição aos judeus e convencer a sociedade da
“necessidade” de seu sacrifício no Holocausto.
Goldhagen afirma que o anti-semitismo não foi apenas uma manifestação
isolada no espaço e tempo germânico moderno, mas é, historicamente, desde a
Idade Média até o Século das Luzes, uma idéia compartilhada tanto pela elite e
pessoas importantes quanto pelas comuns. O pesquisador classifica o anti-
semitismo como um modelo cognitivo de “crenças, pontos de vista e valores que
estruturam a conversação da sociedade” (1997:42), que, edificado socialmente,
constituiu aspecto integrante da cultura germânica e foi transmitido de geração a
geração através das instituições responsáveis pela educação (família e demais
entidades ligadas à socialização). Modelo cognitivo confirmado continuamente
através dos “contos folclóricos, literatura, a imprensa popular, panfletos políticos e
caricaturas, os condutores das potentes imagens anti-semitas forneciam a venenosa
Bildung sobre os judeus, localizada no núcleo da cultura alemã” (p. 90). Assim que o
28
anti-semitismo estava totalmente assimilado e profundamente arraigado no
imaginário alemão.
O anti-semitismo é, portanto, um sentimento antigo e remonta à Idade Média.
Para se ter uma idéia mais exata da densidade das conseqüências desse
sentimento, transcrevemos alguns trechos muito significativos escritos no século
XII. O texto a que nos referimos é um fragmento de O diálogo entre um filósofo, um
judeu e um cristão
21
, de Pierre Abelard,
22
sendo que as palavras destacadas abaixo
são as do judeu, contando o modo como é visto e tratado pelos demais, e como ele
se sente com isso. Começa denunciando a opressão a que é submetido por meio
dos pesados tributos exigidos, a fim de manter a própria vida. Sem ter a proteção de
um soberano, nem um lugar para onde ir ou regressar, diz o judeu: “todos pensam
que seja justo praticar o ódio contra nós e desprezar-nos; e quando alguém nos
ofende está persuadido de que cumpriu um ato de justiça”.
O depoimento do judeu segue procurando entender a raiva dos cristãos que o
acusam de ter assassinado o seu Deus e desabafa: “Não conheço outro povo que
tenha suportado tantas provas dolorosas em nome de Deus”. Se havia algum
pecado, fala o judeu no diálogo, este foi redimido com tanta dor que fora infligida
ao seu povo. Dispersos pelo mundo, subjugados pelos impostos e pelas leis que os
proíbem de ter direitos garantidos aos demais, o judeu conclui sua reflexão
colocando que: “nosso estado, mais do qualquer palavra, mostra com evidência a
todos quanto nossa vida é dura e infeliz”. Citamos, a seguir, o texto integral:
Não conheço outro povo que tenha suportado tantas provas dolorosas em
nome de Deus quanto nós suportamos todos os dias.
A fornalha da nossa dor sem dúvida apagou qualquer pecado da nossa
alma.
Estamos dispersos em todas as regiões do mundo, sem ter o apoio ou
proteção de um soberano. Somos oprimidos por pesados tributos e, para
salvar nossa vida miserável, pagamos um preço exorbitante.
Todos pensam que seja justo praticar o ódio contra nós e desprezar-nos; e
quando alguém nos ofende está persuadido de que cumpriu um ato de
justiça.
Nossos perseguidores acreditam que nossa desgraçada escravidão seja
conseqüência do ódio que Deus sente por nós e julgam que as crueldades
que nos foram infligidas sejam uma justa punição divina.
Assim pensam os pagãos (os muçulmanos e a tribo de Ismael), lembrando
a opressão que um tempo nós exercitamos sobre eles, ocupando suas
21 Cf. BROCCHIERI, Maria Teresa. L`alibi del deicidio. Excerto de O diálogo entre um filósofo, um
judeu e um cristão, de Pierre Abelard (século XII).
22 Filósofo e teólogo nascido em Palet (Bretanha), em 1079, Pierre Abelard foi seguidor da
Escolástica Medieval.
29
terras e destruindo suas casas. E assim pensam os cristãos acreditando e
afirmando que nós matamos seu Deus.
Eis entre quais pessoas temos que errar sem destino, em quais protetores
precisamos confiar, obrigados que somos a colocar nossas vidas nas mãos
de nossos inimigos.
Também o sono que conforta nossos corpos é para nós inquieto e cheio de
temores. Dormindo, tememos os passos que se aproximam e o punhal que
ameaça nossas gargantas. Para viajar precisamos pagar caro preço os
guias nos quais não podemos confiar e cara também a proteção dos
príncipes donos das terras em que moramos. Sabemos bem que eles
desejam nos matar para apropriar-se dos nossos bens.
As leis nos proíbem de possuir terras e casas e assim, para viver, nos resta
apenas o lucro que conseguimos emprestando algum dinheiro a outros
povos. E isto nos torna ainda mais odiosos: nosso estado, mais do que
qualquer palavra, mostra com evidência a todos quanto nossa vida é dura e
infeliz.
23
Então, na Modernidade, mesmo antes que o Partido Nacional-Socialista
ascendesse ao poder instituído, os judeus eram submetidos a toda variedade de
infortúnios devido às idéias de serem perigosos engenheiros do Mal, destruidores da
ordem moral, demonizados (pensamento mítico que contesta o princípio da
racionalidade, norteador da Modernidade), em clara correspondência ao testemunho
do judeu do século XII. Eles sofriam, social, psicológica e fisicamente, por serem
considerados negativamente opostos aos alemães. A situação de disparidade
agravou-se e oficializou-se, com o apoio de programas e instituições
governamentais, quando Hitler assumiu e implantou o Nazismo. Identificados por
sua “natureza criminosa, raízes criminosas, demônio terrestre, astuto e cruel,
históricos malfeitores mundiais, depravados, subumanos, pseudo-povo reunido”
(GOLDHAGEN, 1997:420), relacionados com “vermes, doença virulenta e mortal no
corpo da Alemanha” (grifo nosso), não é de surpreender que as agressões verbais e
físicas infligidas aos judeus fossem tão corriqueiras e aceitas amplamente, que
23“Non conosco un altro popolo che abbia sopportato tante prove dolorose in nome di Dio quante noi
ne sopportiamo ogni giorno. La fornace del nostro dolore ha senz'altro cancellato qualsiasi peccato
dalla nostra anima. Siamo dispersi in tutte le regioni del mondo, privi della guida di un sovrano, siamo
oppressi da gravi tributi e paghiamo per salvare la nostra miserabile vita un prezzo esorbitante. Tutti
pensano che sia giusto odiarci e disprezzarci e quando qualcuno ci reca offesa è persuaso di
compiere un atto di giustizia... I nostri persecutori sono convinti che la nostra disgraziata schiavitù sia
la conseguenza dell'odio che Dio ha per noi e giudicano che le crudeltà che ci sono inflitte siano una
giusta punizione divina. Così pensano i pagani [i musulmani, i "fratelli della tribù di Ismaele", a mio
parere] ricordando la oppressione che noi esercitavamo un tempo su di loro occupando la loro terra e
distruggendo le loro case; così pensano anche i cristiani che affermano che abbiamo ucciso il loro Dio.
Ecco fra quale gente erriamo senza meta, in quali protettori dobbiamo confidare, costretti a mettere la
nostra vita nelle mani dei nostri nemici. Anche il sonno che conforta le membra stanche è per noi
inquieto e pieno di paura: dormendo temiamo i passi che si avvicinano e il pugnale che minaccia la
nostra gola. Per viaggiare dobbiamo pagare cara la scorta della quale poi non possiamo fidarci e cara
paghiamo anche la protezione dei principi delle terre dove abitiamo: sappiamo bene che desiderano
ucciderci per impadronirsi dei nostri beni... Le leggi ci proibiscono di possedere campi e case e così
per vivere ci resta solo il guadagno che otteniamo prestando denaro agli altri popoli. E questo ci rende
ancora più odiosi : il nostro stato più che qualsiasi parola mostra con evidenza a tutti quanto la nostra
vita è infelice."
30
incidentes desse tipo não tinham a menor importância, não chamavam a atenção
nem causavam indignação: “Ser um anti-semita na Alemanha de Hitler, durante o
período nazista era tão comum, que o fato não virava notícia”, comenta Goldhagen
(p. 42).
A convivência entre alemães e judeus, impossível de ser pacífica e tolerante,
tornou-se incompatível e era imperativo achar “uma solução para o problema judeu”.
Após as tentativas de isolar os judeus socialmente (com inúmeras restrições quanto
ao acesso a diversos espaços e âmbitos sociais, depreciação de estabelecimentos
dos judeus, retirada dos profissionais judeus da rede pública de trabalho, entre
outras
24
), de confiná-los nos guetos à sua revelia e sorte, de deportá-los da
Alemanha, era urgente uma atitude que decidisse o impasse definitivamente: eis o
fortalecimento do anti-semitismo de caráter eliminacionista, com a clara postura de
fazer desaparecer os judeus. Transcrevemos a declaração de um anti-semita
convicto chamado Friedrich Lange, citado por Goldhagen, e que ilustra o desejo de
livrar-se dos judeus: “O problema judeu não é mais uma questão de se, mas
somente de como” (1997:93, grifo do autor).
Pelo encontro e junção de dois fatores, anti-semitismo germânico combinado à
circunstância histórica, acontece a decisão nazista de concretizar o Holocausto, mas
também de motivar a participação voluntária da população no extermínio, e a
população se mostra favorável às medidas drásticas e necessárias para a “limpeza
da Alemanha”. Em elucidação de Daniel Golghagen: “A verdade inexorável é que,
em relação aos judeus, a cultura política germânica havia evoluído a um ponto tal
que alemães comuns, alemães representativos, em número enorme e a maior
parte de seus concidadãos alemães estava apta para tanto tornaram-se carrascos
voluntários de Hitler” (p. 483). Deste modo, não são convincentes e estão
invalidados os argumentos utilizados pelos perpetradores de estar obedecendo
cegamente a ordens, de ignorância do que realmente estava acontecendo, de suas
atitudes como fruto de pressões psicológicas e sociais, perspectivas de ganhos
pessoais, de não se sentirem diretamente responsáveis pelo que eles fizeram, etc.
24 Essas e outras proibições são regulamentadas pelas conhecidas Leis de Nüremberg (proclamadas
em 15 de setembro de 1935). Baseadas essencialmente em critérios de superioridade racial, as leis
normatizaram principalmente os casamentos entre judeus e arianos. As Leis de Nüremberg,
propriamente ditas, podem ser consultadas ao final do trabalho, no anexo 1.
31
Finalmente, o estudioso norte-americano apresenta-nos a idéia de que o anti-
semitismo não é novo, mas constante, embrenhado na história germânica,
permanecendo na sociedade ocidental e tornando-se mais ou menos manifesto
devido às condições sócio-culturais e históricas que o encorajam ou não a
evidenciar-se. Insurgiu no século XX por ter encontrado terreno fértil, receptivo e
amplo no qual pudesse se fortalecer e levar a cabo o propósito extremo da
aniquilação de um povo. O sentimento do anti-semitismo não é inédito, e sim
perfeitamente compatível com o contexto do novo e do moderno, marcado pela
tecnologia, ciência e razão. Numa tentativa de resposta direta ao questionamento de
Hilberg, selecionamos e mencionamos uma última fala do professor Goldhagen:
O genocídio
25
era imanente à conversação na sociedade alemã. Era
imanente a suas linguagens e emoções. Era imanente a sua estrutura
cognitiva. E era também imanente às práticas de uma sociedade
protogenocida durante os anos 30. Sob circunstâncias apropriadas, o anti-
semitismo eliminacionista se transformou através de metástase em sua
forma mais virulenta exterminadora e os alemães comuns tornaram-se
assassinos genocidas voluntários. (GOLDHAGEN, 1997:477)
De modo a acrescentar outros pontos de vista às colaborações de Goldhagen,
trazemos presente na discussão o filósofo Jean-Paul Sartre que, em tom
profundamente existencialista, também reflete sobre o anti-semitismo. Numa breve,
porém não menos importante abordagem contemplando esse assunto, o texto A
questão judaica é produzido na França de 1946, pós-guerra, e escrito partindo
exclusivamente da opinião do autor e sem leituras prévias nem documentação que
sejam mencionadas ao final da redação: nele temos um documento filosófico
obrigatório para maior entendimento da questão.
Se pudéssemos sintetizar numa palavra-chave quem é o anti-semita,
apontaríamos “escolha” como o termo que determina a sua identidade, segundo a
proposição teórica do filósofo. Escolha motivada por diversos fatores, mas, ainda
assim, uma escolha apaixonada, livre e total de si mesmo, do seu modo de ser no
mundo e de explicar o mundo. Para Sartre, o anti-semita “é um homem que tem
25 Em definição da historiadora, Anette Wieviorka:”É uma palavra recente, pois foi inventada em
1944, precisamente para denominar o extermínio dos judeus, por um professor de Direito
Internacional, Raphael Lemkin, que tinha emigrado da Polônia para os Estados Unidos. Esta palavra
se compõe da raiz grega genos, raça, e do verbo latino coedere, matar. Designa a tentativa de fazer
um povo desaparecer” (2000:29).
32
medo [...] de si mesmo, de sua consciência, de sua liberdade, da solidão, da
mudança, da sociedade e do mundo” (1995:36). Conforme o filósofo, co-existir no
mundo com as verdades e modelos propostos pela modernidade é possível com
a presença de um forte preconceito (que é uma certeza incontestável, amplamente
aceita), pois ela é capaz de afugentar o medo fruto da incerteza, da dúvida,
inerentes à condição de ser humano em relação à vida, às conseqüências de suas
atitudes. Sartre acrescenta que o anti-semita tem medo de descobrir e admitir que o
mundo moderno não é nem está perfeito e que, para modificá-lo, faz-se imperativa a
atuação de todos: “seria necessário inventar, modificar, e o homem voltaria a ver-se
como senhor do seu próprio destino, com uma responsabilidade angustiante e
infinita. Por isso, o anti-semita concentra no judeu todo o mal do universo” (1995:28).
Assim, a maneira que o anti-semita encontrou para esclarecer o contexto
existencial da modernidade e superar o seu peso, está na concepção maniqueísta
da determinante oposição do Bem contra o Mal, que exime as pessoas das
responsabilidades individuais, e o “ninguém” legitima a ação de todos. É claro que o
anti-semita representa o que de justo, positivo, nobre, aquele que heroicamente
se livra do mal, e o judeu, aquilo que é perverso, que deve ser dominado e
destruído. Assim procedendo, o anti-semita age promovendo a si como senhor e
dono da vida alheia, pois, tratando os judeus como seres inferiores, estes passam a
pertencer a uma coletividade, na denominação de Sartre (1995:17), a uma “elite de
medíocres”, a um grupo de pessoas que supera seu marasmo diante da vida e o seu
medo dela, pela afirmação de sua “superioridade” através da subjugação de outro
grupo étnico.
Desde o início de sua explanação, Sartre insiste na essencialidade de
percebermos a idéia geral que se tem do judeu, seja na História (p. 12), seja na
Literatura (p. 33), pois “o judeu é um homem que os outros consideram judeu” (p.
46). O estudioso explica que o homem define-se como um “ser em situação” (p. 40),
porque compõe a si através de um todo sintético que compreende sua situação
biológica, econômica, cultural, e outros fatores diversos que o constituem: “estar em
situação significa escolher-se em situação” (p. 40), o que permite aos homens
diferenciarem-se entre si e assumirem escolhas diferentes de sua própria pessoa.
Os judeus compartilham de uma mesma situação de judeu, explica Sartre, porque
33
vivem numa comunidade que os considera judeus, o que significa ter uma sabedoria
resignada, retraída, sentir a hostilidade, a malevolência, a indiferença sempre pronta
a radicalizar-se, sentir-se em constante ameaça. Em tempos de paz, procuram
universalizar-se, esconder-se na multidão, não serem notados para não serem
perseguidos, têm uma inquietude que não é metafísica, é social.
Para os anti-semitas, o judeu é entendido como “atitude”, presente em todas as
suas condutas, em seu jeito de ser, de pensar, de comer, de dormir (p. 50), e
indissociável delas. Tentam mostrar a ele que lhe falta a verdadeira essência de ser,
os verdadeiros valores, a verdadeira moralidade, bens inatingíveis ao judeu, pois
não pode renunciar a uma condição que lhe é inerente e inalterável. Segundo o
filósofo, essa “deficiência” causa nos judeus o que chamou de “situação de
culpabilidade”, na qual eles se sentem culpados se não fizerem mais que todos os
outros, se não provarem continuamente serem merecedores, por exemplo, do seu
trabalho e de sua cidadania reconhecida em determinado país. E, mesmo assim,
encontram-se continuamente “à mercê dos humores, das paixões da sociedade
‘real’” (p. 57).
Para reverter esta situação, Sartre propõe que haja um liberalismo concreto,
entendido como pleno direito de cidadania para quem ajuda a construir o seu país,
com participação ativa na vida social, “isso significa, portanto, que os judeus, assim
como os árabes ou os negros, têm direito de intervir na empreitada nacional porque
também são responsáveis por ela” (p. 92). Pontua ser indispensável determinar
exatamente os meios para atingir este liberalismo. Primeiro, atuando sobre o anti-
semitismo e os anti-semitas, oferecendo-lhes novas bases para suas escolhas para
que elas se transformem, através da propaganda, educação e proibições legais, e
indo além destas. Segundo, procurando construir uma sociedade baseada na
produção coletiva dos meios de trabalho. Sartre finaliza esclarecendo que é
necessário lutar pelos judeus como por nós mesmos: “Nenhum francês estará em
segurança enquanto um judeu, na França e no mundo inteiro, puder temer pela
própria vida” (p. 96, grifo do autor).
34
1.3 O espetáculo da banalidade do mal
O Holocausto se notabilizou pelas proporções gigantescas que assumiu em,
aproximadamente, quatro ou cinco anos na Alemanha nazista. A prisão, as
audiências, o julgamento dos indivíduos diretamente ligados ao planejamento e
execução do Holocausto também foram, na esfera jurídica, algo imensamente novo
e diferente, enfadonho e cansativo, assustadoramente superficial e insensato em
muitos momentos. Na introdução da obra As entrevistas de Nüremberg
(GOLDENSOHN, 2005), temos uma noção da estrutura legal montada para que os
julgamentos pós-guerra acontecessem:
O Tribunal Militar Internacional responsável por processar os principais
criminosos de guerra resultou de longos debates políticos e judiciais. Após
uma sessão preliminar em Berlim, a 18 de outubro de 1945, os julgamentos
se transferiram para o Palácio da Justiça de Nüremberg, onde as sessões
transcorreram a partir de 14 de novembro. Os principais procedimentos,
compreendendo as apresentações da acusação e da defesa, duraram
pouco mais de nove meses, de 22 de novembro de 1945 a 31 de agosto de
1946. Os julgamentos foram um empreendimento gigantesco. Havia quatro
juízes e quatro promotores (com suplentes), cada qual com sua própria
equipe, e todos oriundos das potências vitoriosas os Estados Unidos, a
Grã-Bretanha e a União Soviética bem como da França. A corte reuniu-
se em 403 sessões abertas, ouviu um total de 166 testemunhas e
examinou literalmente milhares de declarações juramentadas e centenas
de milhares de documentos. Os julgamentos eram enfadonhos e lentos, até
porque eram conduzidos em quatro línguas e exigiam um enorme trabalho
de tradução simplesmente para registrar o depoimento, os interrogatórios,
as apresentações por escrito e muitos documentos. Uma idéia da escala
dos julgamentos é dada pelo fato de que os termos da audiência e uma
mera seleção dos documentos apresentados como provas foram
publicados (também em quatro línguas) em 42 grossos volumes.
(GELLATELY apud GOLDENSOHN, 2005:18)
Em abril de 1961, vários anos após os julgamentos de Nüremberg, novo
julgamento ligado ao Holocausto está acontecendo: levado ao banco dos réus,
agora em Jerusalém, vê-se a figura comum de Adolf Eichmann
26
. Descoberto
morando com a família em Buenos Aires, ele é seqüestrado por um comando
israelense. Responsabilizado legalmente pela deportação de milhares de judeus
para os campos de concentração, é acusado de crimes contra o povo judeu, contra
a humanidade e de crimes de guerra.
26 Funcionário nazista alemão responsável pela deportação e o extermínio dos judeus da Europa
Oriental e da Alemanha. Vários anos foragido na Argentina, foi capturado, julgado e condenado à
morte por enforcamento, pela Suprema Corte de Israel. (Cf. Larousse Cultural, 1999:2040).
35
Se, até esse momento, o mundo mantinha-se distante e alheio aos
acontecimentos do Holocausto, com o julgamento de Eichmann essa atitude se
modificou drasticamente, como percebemos na pesquisa de Yehuda Koren e Eilat
Negev, ambos moradores em Jerusalém, e autores da biografia dos “sete anões da
família Ovitz”, presos em Auschwitz durante o Holocausto e cobaias das pesquisas
de Josef Menguele no campo. Na sua obra, os autores comentam das mudanças
ocorridas em Jerusalém, por conta do julgamento do nazista:
A partir do instante em que começou o julgamento de Adolf Eichmann em
Jerusalém, no dia 11 de abril de 1961, a atitude dos israelenses frente ao
Holocausto mudou de forma dramática. [...] As pessoas juntavam-se nas
ruas; coladas nos alto-falantes, elas acompanhavam os procedimentos. As
declarações de 110 testemunhas, cada uma representando uma
comunidade aniquilada, revelavam pela primeira vez ao público israelense,
e estabeleciam para a história, toda a extensão da “solução final”. O
Holocausto agora estava na lista de calamidades nacionais de Israel. Pela
primeira vez, os sobreviventes podiam desafogar seus corações, e o país
chorava com eles. (KOREN; NEGEV: 2006:207)
O julgamento de Eichmann, como aconteceu com os criminosos julgados em
Nüremberg, é acompanhado com grande interesse pela imprensa do mundo, e entre
os repórteres que cobrem o acontecimento, está a correspondente Hannah Arendt,
fazendo a reportagem para a revista The New Yorker. Enquanto ocorrem as sessões
do julgamento de Eichmann na Casa da Justiça, as inquirições que são dirigidas a
ele, as suas alegações que defendem os motivos e justificativas para a solução final
que organizou e comandou, tudo está sendo analisado e profundamente re-
elaborado por Arendt. Das suas impressões e constatações mais incisivas, nasce o
livro Eichmann em Jerusalém: um relato sobre “a banalidade do mal” (2000), do qual
apresentamos a seguir alguns pontos teóricos importantes para nossa compreensão
do Holocausto.
A expectativa em torno da figura de Eichmann era muito grande. Primeiro por
ter sido apontado, inclusive por companheiros acusados e punidos nos julgamentos
pós-guerra, como sendo o mentor responsável por arquitetar e viabilizar a solução
final que dizimou milhões de judeus. Segundo, esperava-se conhecer, por ocasião
do julgamento, o pensamento do “monstro” cuja mente sádica e desumana foi capaz
de conceber o projeto burocrático de concentração, transporte e eliminação dos
judeus no Leste.
36
Qualificado por Arendt de “Espetáculo!!” (ARENDT apud COHEN-GEWERC,
2006:56), o julgamento revelou ser Eichmann um “instrumento da monstruosa
máquina administrativa do regime nazista, um pequeno funcionário da ideologia
dentro dessa banalidade do mal”. Ao contrário do homem diabólico que se esperava,
ele mostrou ser mediano, medíocre até, pouco inteligente, pronto a obedecer a
qualquer comando como funcionário cegamente dedicado, um homem sem
originalidade própria. Justamente da sua falta de personalidade advém sua
vantagem no tribunal: várias vezes, durante os interrogatórios, afirmou não aceitar a
acusação de ter assassinado judeus, considerando-se que ele “apenas” organizava
os grupos de transporte para os campos de concentração e extermínio no
cumprimento de ordens superiores, porém, jamais pegou em armas ou agrediu
algum judeu, nem ordenou para que qualquer funcionário seu o fizesse. Conforme
enfatiza Arendt, Eichmann se sentia culpado somente “quando deixava de cumprir
alguma ordem” (2000:37).
Tentando construir “um relato sobre a consciência de Eichmann” (p. 128), a
filósofa demonstra em diversos momentos que o acusado não era um anti-semita
fanático, mas um cidadão comum que na afiliação às organizações
governamentais da época uma oportunidade de promover-se profissionalmente.
Arendt chega a afirmar que Eichmann “não percebeu o que realmente estava
fazendo” e “o que o levou a fazer o que fez foi pura irreflexão” (p. 310), pois mostrou
uma “distância” e um “desapego” (p. 311) da realidade que podem ser mais
prejudiciais do que estar diretamente inserido, consciente e sentindo-se responsável
pelos acontecimentos. Exemplifica a isenção que ele sente em relação aos fatos por
ocasião da Conferência de Wannsee (1942), reunião de pessoas ilustres
representantes de instituições ligadas a Hitler, na qual Eichmann atuou como
secretário. Como havia profissionais importantes nesse encontro, dando opiniões
concretas acerca da implementação da Solução Final, concorrendo entre si para ver
quem teria o privilégio de assumir essa “questão sangrenta”, Eichmann dispensou
qualquer culpa que pudesse afligi-lo, pois, como declarou no tribunal: “Naquele
momento, eu tive uma espécie de sensação de Pôncio Pilatos, pois me senti livre de
toda a culpa”; e Arendt arremata: Quem haveria de ser o juiz?” (p. 130, grifo da
autora).
37
Segundo Arendt, das duas primeiras alternativas frustradas de limpar a
Alemanha, a expulsão e a concentração dos judeus, quando Eichmann ainda era um
perito em “emigração forçada”, evidencia-se a terceira solução, o assassinato, que
promove o acusado a “perito em evacuação forçada” (p. 131). Isso significava
organizar um esquema eficaz para transportar os judeus até os campos do Leste:
“Em país após país, os judeus tinham de registrar-se, eram reunidos e deportados,
sendo os vários carregamentos dirigidos para um ou outro centro de extermínio no
Leste, dependendo da capacidade relativa de cada um no momento; quando um
trem carregado de judeus chegava a um centro, os mais fortes eram escolhidos para
trabalhar, e todos os outros eram imediatamente mortos” (p. 131). E o que sabemos
é que Eichmann empenhou-se em realizar perfeitamente o seu trabalho, cumprindo
“deveres de um cidadão respeitador das leis” (p. 152).
O processo de deportação, seleção e extermínio é bastante simples e exato na
fala de Eichmann. Apesar de ele não ter assassinado nenhum judeu pessoalmente,
estamos cientes de que existem situações piores que a morte física propriamente
dita: a tortura, a perda da identidade, a padronização, a renúncia de si, o abandono
da vida, a indiferença. Arendt cita o testemunho de um ex-prisioneiro de
Buchenwald
27
, David Rousset, que afirma: “Eles [os nazistas] sabem que o sistema
que consegue destruir as vítimas antes que elas subam ao cadafalso... é
incomparavelmente melhor para manter todo um povo em escravidão. Em
submissão. Nada é mais terrível do que essas procissões de seres humanos
marchando como fantoches para a morte” (p. 22).
Corroborando Rousset, a psicóloga e professora Shoshana Felman (2000)
confirma que o aniquilamento anterior à morte é a marca registrada do nazismo:
“Aquilo em que consiste a violência do Holocausto a própria essência do apagar e
do aniquilar não é tanto a morte em si, mas o fato ainda mais obsceno de que a
própria morte não faz diferença, o fato da morte ser radicalmente indiferente: todos
são colocados num mesmo plano, pessoas morrem como números, não como
nomes próprios” (p. 64, grifos da autora).
27 Aldeia da Alemanha, onde foi instalado um campo de concentração (1937) que forneceu mão-de-
obra escrava para as fábricas subterrâneas das bombas V-1 e V-2. Chegou a conter 240.000 presos,
dos quais 52.500 morreram. (Cf. Larousse Cultural, 1999:976).
38
Hannah Arendt afirma que o grande mérito do julgamento foi ter suscitado
novos questionamentos perturbadores em toda a sociedade, a partir do esboço
traçado de um Eichmann que, envolvido de maneira banal pelo Mal, foi capaz de
determinar atrocidades inomináveis a outros seres humanos:
Hoje parece que a era do regime de Hitler, com seus crimes gigantescos e
sem precedentes, constituiu um “passado indomado” não apenas para o
povo alemão ou para os judeus do mundo, que tampouco esqueceu essa
catástrofe no coração da Europa, e também não conseguiu aceita-la. Além
disso e isso foi talvez o mais inesperado -, questões morais gerais, com
todo seu intrincamento e complexidades modernas, que nunca suspeitei
que fossem assombrar as mentes dos homens de hoje e pesar tanto em
seus corações, repentinamente passaram a primeiro plano da opinião
pública. (ARENDT, 2000:306)
39
2 SER SOBRE-VIVENTE: É ISTO UM HOMEM?
Depois de apresentarmos um embasamento que privilegiou aspectos filosóficos
e históricos acerca do Holocausto (enquanto fato sem antecedentes na História,
sendo que algumas causas e conseqüências seguem manifestas no presente),
nosso trabalho investe, no atual capítulo, em esclarecer outro ponto, agora centrado
nas vítimas: quem são os sobreviventes? Como eles entendem sua experiência sem
equivalentes? Como essa experiência persiste nas suas memórias? Do que eles
lembram? De que modo eles narram o que vivenciaram? Como cada um viveu o
evento? Como sobreviveram?
Numa de suas afirmações, a escritora e sobrevivente Ruth Klüger esclarece:
“Deve-se recordar que cada um de nós, seja objetivamente, seja subjetivamente,
viveu o Lager a seu modo” (2005:65). Apesar disso, nós, leitores, podemos conhecer
um pouco mais sobre a realidade vivida nos guetos, nos campos de concentração,
as situações adversas a que foram submetidas as vítimas do nazismo através dos
seus próprios relatos que, em diversos aspectos, mostram-se convergentes.
Neste bloco, revemos conceitos teóricos que nos permitem compreender sobre
memória, trauma, literatura, testemunho dos sobreviventes e de vítimas diretas ou
indiretas do Holocausto, procurando estabelecer pontes entre as “paisagens da
memória” dessas pessoas e refletir no presente sobre as suas experiências, suas
escolhas, as suas motivações, os seus sofrimentos, os seus pensamentos, enfim, o
que lhes foi possível elaborar a partir do Holocausto.
40
2.1 Pensem se isto é um homem: trauma e identidade
Georges Perec teve uma infância conturbada, pois seu pai foi morto no front e
sua mãe foi assassinada em Auschwitz. Procurando reconfigurar sua própria
história, juntamente com a de seus pais, escreve o ilustrativo W ou a memória da
infância (1995). A obra é escrita a partir de dois planos o da autobiografia e o do
relato dos acontecimentos na imaginária ilha de W onde impera o Esporte. Perec
recupera fragmentos de sua memória infantil, bem como recria ficcionalmente o
ambiente do campo de concentração. É dessa obra que retiramos o trecho a seguir,
ingresso para a discussão que queremos suscitar acerca da sobrevivência das
vítimas, enquanto condição marcada pelo trauma e pela busca de re-construção da
identidade:
Como explicar que o que ele descobre não é algo pavoroso, não é
um pesadelo do qual irá despertar bruscamente, algo que
expulsará do seu espírito? Como explicar que aquilo é a vida, a
vida real, que aquilo é o que haverá todos os dias, que é aquilo que
existe e nada mais, que é inútil acreditar que alguma outra coisa
existia, fingir acreditar noutra coisa, que nem mesmo vale a pena
tentar disfarçar, tentar enfarpelar aquilo, que não vale a pena fingir
acreditar em algo que haveria por trás, abaixo ou acima? Há aquilo
e pronto. [...] Não outra escolha. Não existe alternativa. Não é
possível tapar os olhos, não é possível recusar. Não recurso,
nem piedade, nem salvação a esperar de alguém. Não a
esperar sequer que o tempo traga uma solução. aquilo, o
que ele viu, e às vezes será menos terrível que o que viu, às vezes
será muito mais terrível que o que viu. Mas, para onde quer que
volte os olhos, é aquilo que verá e nada mais, e somente aquilo
será verdadeiro. (PEREC, 1995:169-170).
Como realmente entender e assimilar o que aconteceu? Como descobrir a si
novamente? Como seguir sobrevivendo? É possível superar a experiência? E
explicá-la a si mesmo?
Primo Levi escreve em dois livros seus, É isto um homem? (1988) e no A
trégua (1997), de um sonho freqüente que teve (e esclarece que outros prisioneiros
tinham sonhos semelhantes) sobre estar de volta à sua casa, junto dos familiares e,
ao contar-lhes o que vivenciara, ver a irmã levantar-se do sofá e dar-lhe as costas,
incrédula quanto à verdade do relato, e indiferente ao sofrimento de Levi. Ela se
41
retira da sala onde o irmão permanece atônito, abandonado e solitário. Ao despertar,
confuso entre o que era sonho e realidade, o prisioneiro via-se projetado novamente
na dura situação do campo de Auschwitz, com toda a crueza da violência, da fome,
da morte, do Mal. Esclarece que o sonho aconteceu muitas vezes enquanto vivia,
e também quando já estava em liberdade, de volta à Itália.
Outro sobrevivente, autor de diversas obras sobre a sua experiência no Lager
de Buchenwald, Jorge Semprún, comenta em A escrita ou a vida (1995) do sonho
que ele tem: após a libertação, com variável incidência, sonhou que estava de volta
ao local onde fora mantido preso, tendo presentes e próximas todas as sensações
registradas nos meses em que ali viveu a neve brilhante, as chamas e a fumaça
das chaminés do crematório, as ordens gritadas pelos soldados nazistas nos alto-
falantes, a presença constante da morte na perda de amigos e companheiros de
infortúnio. Semprún conta que, ao revisitar o campo para auxiliar em um
documentário, o sonho retornou com toda a força e o embriagou de tal forma que lhe
foi difícil distinguir o que era sonho e realidade, o que era passado e presente.
Consternado, chega a indagar-se sobre quem é Semprún em março de 1992, data
do seu retorno ao campo: o mesmo jovem de 20 anos de idade, como em 29 de
janeiro de 1944, quando ingressou em Buchenwald?
Levi, sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, cujo nome é
paradigma para a literatura sobre todos os Lagers nazistas e seus horrores;
Semprún, sobrevivente do campo de Buchenwald, construído a poucos quilômetros
da cidade alemã chamada Weimar, antes do Holocausto considerada república da
cultura e berço de civilização germânica. Semprún, questionando-se: “tínhamos
realmente sobrevivido?” (1995:240), responde à sua própria pergunta remetendo-se
à fala de Primo Levi: “Nada era verdadeiro fora do campo, pura e simplesmente. O
resto terá sido breve vacância, ilusão dos sentidos, sonho incerto: é isso”
(1995:244).
O que é sobreviver a uma catástrofe? Qual o limite entre passado e presente?
Sonho e realidade? Vida e morte? Conforme Braunstein, diz-se “sobre-vivente”
daquele que, tendo vivido experiência extrema e inenarrável, não se concebe mais
inteiro, como se uma parte imprescindível sua tivesse morrido e a outra parte que se
42
lhe afigura fosse sua desconhecida e, em conseqüência, irreconhecível. Em
catástrofes coletivas que, obviamente, são sempre pessoais também, a questão que
aflige os sobreviventes, constante nos relatos biográficos e autobiográficos é “por
que eu?”. Pergunta-se sobre que estigma ou culpa carrega para ter como resposta o
castigo físico ou psicológico da fome, do frio, das doenças, da deportação ou da
“solução final” das câmaras de gás e dos fornos crematórios? Ou ainda, por que
sobrevivente, muitas vezes o único, de uma família ou comunidade? Na definição
dada pelo psicanalista estudioso do assunto, Braunstein afirma:
Um morreu; outro, sem havê-lo pedido, usurpa o seu nome e seu lugar. O
sobrevivente é um morto camuflado. Tal é o significado da sobrevivência.
Vive-se um cadáver. Depois do trauma o sujeito volta a nascer e se
pergunta, não sem surpresa, como é possível que continue “vivenciando”,
sentindo. Nas catástrofes coletivas, a pergunta é “Por que eu e não outro
em meu lugar?” (BRAUNSTEIN, 2003)
28
Conforme Braunstein, a experiência imposta aos sobreviventes é revivida em
cada sonho que reproduz os encontros com a morte que foram abundantes nos
campos de concentração. O psicanalista define o sobrevivente como aquele que
perdeu sua identidade “apesar do nome próprio ter sido preservado”. Não se
reconhece no que foi antes da catástrofe, um sujeito para o qual “o espelho deixou
de funcionar”, que volta das entranhas da morte e, apesar disso, não vive porque
está além dela, um cadáver que vaga pela vida e que “segue sonhando”.
O sobrevivente sente-se um estranho em relação a si e aos demais. Entende-
se inadequado ao antigo universo contextual do qual foi integrante. Primo Levi
verbaliza esse rompimento de si: “Sentia-me mais perto dos mortos do que dos
vivos” (citado por SEMPRÚN, 1995:242). A mudança física e de identidade dos
sobreviventes é evidente do mesmo modo para os seus entes queridos, também
vítimas do nazismo. Marguerite Duras, ao reencontrar-se com o seu homem
amado
29
, depois de muita espera, sofrimento e incertezas, escreve em seu diário:
“Na minha lembrança, em um determinado momento, os ruídos se extinguem e eu o
28Publicado em Tempo Psicanalítico, n. 35, 2003. Disponível em: <http://nestorbraunstein.com/
trauma.html>, acesso em: 26 mar. 2006. As citações feitas aqui são do material veiculado no
endereço eletrônico.
29 Marguerite Duras refere-se a Robert Antelme, comunista francês, autor de A espécie humana.
43
vejo. Imenso. À minha frente. Não o reconheço. Ele me olha. Sorri. [...] É um sorriso
de confusão. Ele se desculpa por estar assim, reduzido àquele objeto” (1986:64).
Na fala do professor da Unicamp, Seligmann-Silva, pesquisador do assunto, o
sobrevivente é “como alguém que habita na clausura de um acontecimento que o
aproximou da morte” (2006:58), pois atravessou uma experiência traumática que o
assinalou para sempre. Seligmann-Silva explica que: “A experiência traumática é,
para Freud, aquela que não pode ser totalmente assimilada quando ocorre. Os
exemplos de eventos traumáticos são batalhas e acidentes [...]” (1999:43). Esse
trauma rompe a vida e o ser do sobrevivente em duas instâncias irreconciliáveis: o
que era antes e o que ficou sendo depois, partes não assimiláveis nem totalmente
acessíveis. Em acontecimentos traumáticos, o sobrevivente está condenado a não
mais reconhecer-se porque “o espelho não funciona” (BRAUNSTEIN, 2003) e a
existir numa sobre-vida.
2.2 Paisagens da vida na memória de papel
A faculdade da memória é grandiosa, ó meu Deus, sua infinita e profunda
complexidade inspira um sentimento como de terror, e isso é o espírito, e
isso sou eu mesmo... (ECO, 2005:42)
Referindo-nos mais uma vez à idéia de que cada indivíduo viveu o campo de
concentração a seu modo, acrescentamos que cada um recorda o Lager também a
seu modo, particularizando o seu relato, ainda que haja correspondência quanto a
vários pontos. Isto acontece porque existe a possibilidade de lembrar (ou esquecer)
fatos significativos de nossa narrativa pessoal, pois somos dotados de faculdade
excepcional: referimo-nos à Memória. Segundo Izquierdo, pesquisador desse tema
na América Latina: “Eu sou eu, você é você porque cada um tem sua própria história
para lhe dizer isso. O conjunto das memórias que cada um de nós tem é o que nos
caracteriza como indivíduos. Mas também nos caracteriza como indivíduos aquilo
que resolvemos ou desejamos esquecer” (2004:13).
Mesmo em relação a acontecimentos coletivos, a memória revela-se
individualmente seletiva do que será possível lembrar ou daquilo que virá a ser
44
esquecido por irrelevância ou por ser extremamente desagradável, dramático ou
traumático: “Gravamos melhor, e temos muito menos tendência a esquecer, as
memórias de alto conteúdo emocional” (IZQUIERDO, 2004:37).
Conforme aponta Izquierdo, a faculdade da memória possibilita o aprendizado,
a comparação, a avaliação e nova aplicação desse aprendizado em circunstâncias a
serem vivenciadas futuramente, no intuito de compreendê-las e superá-las,
garantindo a sobrevivência. Portanto, o propósito da memória é o de orientar nas
tomadas de decisão, no presente, para melhor projetar o futuro. São vários os tipos
de memória que temos. Em breve diferenciação: 1) memória procedural,
responsável por diferentes procedimentos que somos capazes de realizar, como:
andar, escovar os dentes, abrir a fechadura, chegar à escola; 2) memória de
trabalho, de caráter momentâneo ou de curta duração, permite resolver situações
problemáticas imediatas; 3) semântica, relacionada à língua, sua construção e
significações lingüísticas; 4) de longo prazo, permite o arquivamento de informações
que, possivelmente, serão retomadas até o final de nossa vida; 5) a memória
autobiográfica, que é considerada: “bem mais complexa que outros sistemas de
memória. Lembrar-se da própria biografia significa saber como vivemos determinada
situação e como nos sentimos ao vivê-la” (MARKOWITSCH, 2006:53).
A memória autobiográfica, “característica própria e exclusiva do homem”
(WELZER, 2006:49), está intimamente ligada ao fator emocional, não retrata
necessariamente o ocorrido, mas o vestígio emocional do ocorrido, que passa por
reformulações sucessivas. Justamente por ser das memórias o tipo mais complexo e
intrincado, a memória autobiográfica é “a mais fácil de ser perturbada: toda uma
multiplicidade de lesões cerebrais e, mesmo uma pequena lesão, é capaz de
confundi-la” (MARKOWITSCH, 2006:52), tornando as lembranças, muitas vezes,
confusas e disparatadas.
Lembranças são fundamentais por se constituírem em subsídios decisivos da
história das pessoas. Paradoxalmente, podem ser contraditórias e passíveis de
modificações e até de reinvenções. São as chamadas “falsas memórias” que podem
se alimentar das “fontes mais diversas, para além daquilo que efetivamente se viveu:
45
histórias de outras pessoas, romances, documentários ou filmes e mesmo aquilo
que se sonhou ou fantasiou” (WELZER, 2006:47).
Na verdade, pesquisadores do assunto indicaram ser possível ocorrer a
fusão de novas experiências com lembranças pré-existentes:
Cada evocação de uma lembrança tem por conseqüência seu novo
armazenamento. E é arquivado também o contexto de cada situação
rememorativa, o que faz com que a lembrança original seja enriquecida de
novas nuances, corrigida ou centrada em determinados aspectos, podendo
mesmo ser reescrita. (WELZER, 2006:46)
A memória autobiográfica, vinculada fortemente às experiências cujas
lembranças são de conteúdo altamente emocional, por vezes difíceis e dolorosas,
não pode ser encarada como fonte absoluta de verdades indiscutíveis, e sim, deve
ser concebida como bagagem íntima que facilita o entendimento da situação vivida.
No caso de qualquer indivíduo e, em especial, em relação aos sobreviventes do
Holocausto, a memória autobiográfica vai sendo elaborada por cada um, para que,
efetivamente, possam adaptar-se do melhor modo à sua realidade. Assim, conforme
o professor e pesquisador de psicologia social, Harald Welzer: “[...] as lembranças
traumáticas não são ‘mais verdadeiras’ ou ‘mais autênticas’ que as demais. Mas os
sentimentos associados a elas contêm e mantêm o vestígio emocional do
acontecimento passado” (2006:48).
É na busca de preservar sua memória autobiográfica, entendida como sua
própria identidade, que inúmeras vítimas do Holocausto optaram ou por “esquecer” o
que fora experimentado durante sua perseguição até a chegada aos campos de
concentração, ou por registrar em textos testemunhais ou ficcionais o que
aprenderam em função do aprisionamento nos campos e de outras situações
impostas pelo nazismo.
As nossas memórias, dolorosas ou não, definem quem somos, diferenciando-
nos. A sobrevivente vienense, Ruth Klüger, ao ser interpelada por uma tia distante
que a acolhe e sugere que ignore o que viu e viveu durante a Segunda Guerra,
46
percebe a inextricável relação entre as suas memórias e sua identidade e recusa-se
a esquecer:
Na escuridão, sentada no confortável banco traseiro [do carro], a tia distante
disse para mim: “Você precisa apagar da mente o que aconteceu na
Alemanha e fazer um novo começo. Você tem de esquecer tudo o que
ocorreu na Europa. Apagar, como se apaga o giz da lousa com um
apagador”. E para que eu entendesse com meus fracos conhecimentos de
inglês, fez o gesto de apagar. Pensei que ela queria tomar de mim a única
coisa que tinha, ou seja, minha vida, a vida que vivera. Não se pode jogar
isso fora como se tivéssemos uma outra guardada no armário. Ela também
não desejaria jogar sua infância fora, essa é minha e pronto, não posso
inventar uma outra vida para mim. (KLÜGER, 2005:203)
2.3 Ver a si mesmo no espelho da narração
[...] nossa geração inventou uma nova literatura, aquela do testemunho.
(WIESEL apud FELMAN, 2000:18)
Os sobreviventes dos campos de concentração, quando se sentem capazes,
contam as suas histórias. Falam de horrores vistos e vividos no período da guerra e
da perseguição nazista aos seus pais, mães, irmãos, tios, avós, judeus e não
judeus, e a si mesmos que, inevitavelmente, constituem suas memórias de infância
e juventude. Essas lembranças são as histórias relatadas pelos sobreviventes e são
marcadas pelo medo, pelo sofrimento, pela crueldade, por inúmeros fantasmas que
insistem em compartilhar espaço nessas narrativas pessoais, como Georges Perec
nos explica:
[...] sempre irei encontrar, em minha própria repetição, apenas o último
reflexo de uma fala ausente na escrita, o escândalo do silêncio deles e do
meu silêncio: não escrevo para dizer que não direi nada, não escrevo para
dizer que não tenho nada a dizer. Escrevo: escrevo porque vivemos juntos,
porque fui um no meio deles, sombra no meio de suas sombras, corpo
junto de seus corpos; escrevo porque eles deixaram em mim sua marca
indelével e o vestígio disso é a escrita: a lembrança deles está morta na
escrita; a escrita é a lembrança de sua morte e a afirmação de minha vida.
(PEREC, 1995:54)
Alguns sobreviventes relutam durante muito tempo em lembrar e narrar o que
lhes aconteceu, preferindo optar pelo esquecimento e pelo silêncio. Um exemplo
disso é a trajetória de Janina Bauman, que levou cerca de quarenta anos para
47
escrever sua história. Ao sentir-se impelida e decidir-se pelo relato, reviveu “o
passado, ano após ano, mês após mês, experiência após experiência”, querendo
reingressar na sua narrativa e resgatar “o pequeno e limitado mundo de uma
adolescente vivendo no medo, no isolamento, na ignorância de muitos fatos e
ocorrências importantes” (2005:7-8).
Partimos da metáforaconhecida de que “a vida é um livro” para a proposição
teórica de Bruner (1997) de que somos contadores de histórias que nos auxiliam no
modo de entender, organizar e valorar os acontecimentos no mundo e,
especialmente, somos narradores capazes de significar e compreender a própria
história individual. Essa narrativa é intensamente “centrada em um si-mesmo” (p. 97)
e resgata episódios de vida, muitas vezes indescritíveis; é contada para si, também
é construída com a contribuição e interferência decisiva dos outros e relatada para
eles. A nossa narrativa tem, por conseguinte, as facetas de ser,
complementarmente, individual e coletiva, pessoal e socialmente constituída.
Se a narrativa pessoal é o mecanismo capaz de nos representar no mundo,
assim como nos permite compreender melhor os fatos deste mundo, nomeá-los,
organizá-los, cabe perguntar: por que algumas narrativas são contadas e outras
não? Por que umas são consideradas importantes e merecedoras de partilha e
outras não são? Na proposição de Bruner: “Uma vez que assumamos uma visão
narrativa, podemos indagar por que uma história é contada e outra não” (BRUNER,
1999:99).
Uma possível resposta encontramos na fala do médico psiquiatra e professor
universitário Luis Gustavo Guilhermano. Ele afirma que “um dos fortes elementos na
formação da civilização é a transmissão de conhecimento entre os seres humanos,
que decorre, em grande parte, do relato de experiências de vidas exemplares”
(GUILHERMANO apud DINIZ, 2002:177). Esclarece o professor que assim, nascem
os mitos e as lendas com os seus heróis, de presença importante em todas as
culturas para “formar e divulgar costumes”. Por histórias de vida exemplares,
Guilhermano entende aquelas “de pessoas que enfrentaram e superaram grandes
adversidades, não pelos seus atributos físicos e inteligência, como também por
48
suas qualidades de caráter” (p. 177). São histórias que devem ser narradas,
divulgadas, transmitidas, por serem de “grande valor para os leitores” (p. 178).
Voltando a Bruner, este continua seu estudo mencionando a visão de
Polkinghorne de que a nossa identidade é construída com base numa “configuração
narrativa” e que entendemos nossa existência como uma extensa e intrincada
história, que não se sabe como acaba, mas que permite ser revisitada e revista, ser
acrescida de “novos eventos” (p. 100) para projetar o futuro.
A história pessoal e/ou coletiva confunde-se com a própria linguagem, que
possibilita narrar e atribuir significados específicos a essa história. Para Alberto
Manguel, escritor judeu, “somos a língua em que somos falados, somos as imagens
em que somos reconhecidos, somos a história em que somos condenados a lembrar
[...], mas somos também a língua em que questionamos essas pressuposições”
(2000:35). Portanto, aquilo que não é nomeado não existe enquanto fato lingüístico,
não é compreensível nem passível de repercussão e, conseqüentemente, priva do
aprendizado. Ao apropriar-se da palavra e derrubando a barreira da incógnita, do
indizível, do antes não nomeado, as mulheres e os homens escritores do tema do
Holocausto permitem-se ouvir a própria fala e desenhar a sua identidade ao
autonarrar-se. Reconhecendo-se enquanto individualidade, colaboram com o
amadurecimento humano coletivo com seu modo peculiar de encarar a vida, de
contornar os acontecimentos problemáticos, de superar seus traumas e de
sobreviver apesar deles.
Para Georges Perec (1995:54): “o indizível não está escondido na escrita, é
aquilo que muito antes a desencadeou”. Ou, na definição de Jorge Semprún, a
experiência: “ela foi invivível” (1995:22). Daí, e por isso mesmo, a função da
linguagem como instrumento que sinaliza o indizível ou o invivível, aquilo que não
tem aparência definida (às vezes por falta de referenciais históricos precedentes,
como o Holocausto, por exemplo), mas cujos contornos a palavra pode insinuar.
Segundo Seligmann-Silva: “A linguagem tenta cercar e dar limites àquilo que não foi
submetido a uma forma no ato de sua recepção” (1999:43, grifo do autor).
49
Das experiências traumáticas, afigura-se, então, presente a necessidade de
narrar o vivenciado. Porém, dois entraves são imanentes ao ato de contar: primeiro,
a insuficiência das palavras em abarcar as significações da experiência inominável;
segundo, a descrença de outrem (ou a sua ignorância) acerca da veracidade do
relato que, de tão absurdo, é deveras inacreditável.
Não obstante os sérios empecilhos existentes para a escritura das experiências
dos sobreviventes, o desejo de colocar cada leitor frente a frente e em confronto
com elas é maior do que a vontade de acomodação-instalação na “nova vida” e da
fuga das lembranças. É preciosa a fala de Kertész, Nobel da Literatura em 2002, ao
expor a necessidade de escrever para si e para os outros:
Eu escrevo porque tenho que escrever e, quando escrevemos,
conduzimos um diálogo, assim li em algum lugar, enquanto havia
Deus conduzíamos com ele, provavelmente, um diálogo, agora,
como ele não mais existe, é mais provável se conduzir um diálogo
apenas com outros homens ou, na melhor das hipóteses, apenas
consigo mesmo. (KERTÉSZ, 1995:24)
É a tentativa de nomear que impulsiona os sobreviventes da ocorrência
traumática a narrar as lembranças da experiência vivida e sentida. Revela
necessidade de resgate e reorganização das experiências na intenção de transmiti-
las e atribuir-lhes crédito. Testemunha é, na definição de Klüger, alguém que “vivia
algo de que valia a pena dar testemunho” (2005:106) e para tanto precisa recorrer a
“uma seleção, deletar, penosa procura por palavras diurnas para pensamentos
imaturos de semipenumbra” (p. 251).
Para a psicanalista Shoshana Felman (2000), a testemunha de um
acontecimento com a gravidade do Holocausto não pode ser entendida como sendo
“dona da verdade”, mas sim como alguém que vivenciou a experiência e que “de
fato testemunha” e “gera a verdade, por meio do processo discursivo” (p. 27-28, grifo
nosso). Portanto, é primordial recuperar a fala das vítimas para que o conhecimento
que se tem do Holocausto não seja unilateral e parcial, para abarcar o significado
que ele teve na 2ª Guerra Mundial e redesenhar o espaço que ele tem na História da
Humanidade.
50
Conforme Felman, ser testemunha é ter diante de si uma tarefa penosa, de
enorme responsabilidade, cujo caráter é pessoal, intransferível e solitário porque
mais ninguém pode testemunhar em seu lugar: ela “fala de si e para além de si”.
Suas “práticas discursivas” ou literárias são “apanhados culturais” de si mesmos,
repletos de palavras ditas e lacunas feitas de silêncio, de sentimentos de
perplexidade e incompreensão, mas, que ainda assim, funcionam como “modalidade
de relação com os acontecimentos” e permitem uma fusão entre texto e vida,
podendo penetrar o leitor “como uma verdadeira vida” (p. 14-18).
Oportunidade de reflexão e aprendizado, o testemunho é, para muitos
escritores, urgência e requisito para a sua sobrevivência, para a preservação da
sanidade, para a ordenação das suas idéias, para a restauração da sua identidade
pós-Holocausto, para a sua reintegração na vida. A agonia presente no gesto da
escritura/testemunho de Elie Wiesel é representativa da condição aflitiva dos demais
sobreviventes de situações de trauma:
Por que escrevo? Talvez para não enlouquecer. Ou, ao contrário, para
atingir o âmago da loucura.
Como Samuel Beckett, o sobrevivente se exprime “em desespero de
causa”; escreve porque não pode deixar de fazê-lo. Suas experiências,
tudo o que aconteceu, o isolam: ele não pode deixar de dividi-las com
outrem. (WIESEL, 1984:7)
Dessa forma a Literatura de Testemunho caracteriza-se por apresentar
diversas propriedades de funcionamento: pode atuar como momento de revisão da
História, oportunizando que venham à tona e sejam ouvidos, como contraponto ao
oficialmente aceito, os apelos dos menos favorecidos social e historicamente. Ou
propiciar a crítica a verdades tidas como absolutas. Ou favorecer a (re)-vista a um
passado e situação não elaborados nem assimilados. Como procuramos salientar,
os escritores sobreviventes e vítimas do Holocausto são relevantes enquanto
autobiógrafos e tanto mais autoridades enquanto representantes da Literatura de
Testemunho, pois, segundo Seligmann-Silva, “aquele que testemunha se relaciona
de modo excepcional com a linguagem: ela desfaz os lacres da linguagem que
tentavam encobrir o ‘indizível’ que a sustenta”. Então:
51
Literatura de Testemunho é um conceito que nos últimos anos tem feito
com que muitos teóricos revejam a relação entre a literatura e a “realidade”.
O conceito de testemunho desloca o “real” para uma área de sombra:
testemunha-se, via de regra, algo de excepcional e que exige relato.
(SELIGMANN-SILVA, 1999:41)
A construção literária é a forma primordial para o registro das memórias e o
testemunho permite que uma experiência pessoal seja transformada em memória
cultural de irrestrito acesso. Segundo Wiesel, como referenciamos ao início, a
Literatura de Testemunho é invenção do século XX, desponta no cenário literário
como tipo de produção com cunho específico, aquele que possibilita a escritura, o
reconhecimento e o assumir-se de si mesmo com certo distanciamento que é
preciso para olhar, ver e relatar-se no agora e em relação ao passado. É, portanto,
uma espécie de espaço concreto onde pode ocorrer o encontro-diálogo consigo e
repercutir suas reflexões ao domínio social e coletivo. A arte literária como veículo
eficiente das verdades mais humanas e inexplicáveis, é o que ilustra a conversa de
Semprún com um amigo, professor universitário, que declara:
- O outro tipo de compreensão, a verdade essencial da experiência, não é
transferível... Ou melhor, só o é pela escrita literária...
Vira-se para mim, sorri.
- Pelo artifício da obra de arte, é claro! (SEMPRÚN, 1995:126)
Para o estudioso Stefano Zampieri, literatura é o instrumento capaz de “tornar
comum o que é particular, de colocar à disposição de todos aquilo que, de outra
forma, permaneceria como experiência individual”. Uma vez de responsabilidade
comum, as palavras serão de todos, permitindo “revivê-las como se as tivesse
vivenciado realmente, experimentar de novo aquelas sensações como se lhes
tivessem pertencido desde o começo”.
30
30 “La letteratura [...] dunque, racconta la nostra esistenza che diventa storia. Ogni evento, ogni
individuo, ogni sentimento, strappato alla particolarità quotidiana di chi l´ha vissuto, diventa un
discorso comune, parola di tutti perché a tutti appartiene.” “[...] riviverle come se le avesse vissute
realmente, di riprovare quelle sensazioni come se gli fossero appartenute fin dall´inizio.” Cf.
ZAMPIERI, Stefano. Scrivere, testimoniare. Disponível em:
http://members.tripod.com/littera/scrivere.htm. Acesso em: 16 set. 2006. (Excertos de ZAMPIERI,
Stefano. In:___. Il flauto d´osso: Lager e letteratura. Firenze: La Giuntina, 1996).
52
3 A PALAVRA ÀS VÍTIMAS
Provavelmente vale bem a pena estar pessoalmente envolvida no escrever
da História. Você pode então dizer o que os livros de História deixam de
fora.
Uma vida interrompida: os diários de Etty Hillesum
31
É preciso, amigo, ouvir pacientemente o discurso oficial da História sobre a
página que acaba de ser aberta.
O diário do gueto, de Janusz Korczak
32
Os livros didáticos de história procuram oferecer aos estudantes um apanhado
geral de como foi sendo construída a trajetória do homem no mundo e como foi
sendo acumulado o conhecimento que temos: as descobertas científicas, as
conquistas territoriais, os governantes e suas gestões políticas, as relações sociais
entre os povos, os conflitos, etc. Inúmeros são os dados sobre a humanidade aos
quais temos acesso pelo estudo da história. É comum, entretanto, que tenhamos
uma visão deturpada dos acontecimentos históricos por diferentes variantes: falta de
leitura e aprofundamento dos fatos, dificuldade de acesso às informações, problema
em comparar divergentes pontos de vista em relação a determinado ponto, material
superficial e precário, informações manipuladas e deturpadas em prol de uns poucos
favorecidos, prejudicando assim a confiabilidade histórica para a grande maioria.
No que diz respeito às guerras, na quase totalidade das vezes, a História é
contada pelo mais forte, pelo que venceu a batalha e sobrepujou o outro. O que
passa a ser testamento legado às gerações posteriores é o que foi legado pelos
31 Jovem judia, nascida em Amsterdã, cujos diários cobrem os anos de 1941 a 1943, quando morreu
em Auschwitz.
32 Educador que mantinha um orfanato com duzentas crianças, aproximadamente. Em 1942, tanto o
professor quanto seus pupilos pereceram no campo de extermínio de Treblinka.
53
vencedores. Nas palavras de um profissional da área, o historiador Ignacy Schiper,
que foi vítima dos nazistas e morto em Majdanek, um dos vários campos de
concentração espalhados pelo interior da Alemanha e países de ocupação nazista:
Em geral, a História é escrita pelos vencedores. Tudo o que sabemos dos
povos assassinados é o que seus assassinos quiseram dizer. Se nossos
assassinos conseguirem a vitória, se forem eles a escrever a história desta
guerra, nossa destruição será apresentada como uma das páginas mais
belas da história mundial, e as gerações futuras prestarão homenagens à
coragem desses cruzados. Cada uma de suas palavras será palavra de
Evangelho. Podem assim decidir nos apagar completamente da memória
do mundo, como se jamais tivéssemos existido, como se jamais tivesse
existido judaísmo polonês, gueto de Varsóvia, Majdanek. (SCHIPER apud
WIEVIORKA, 2000:37)
Em geral, sabemos daquilo que se transforma em notícia, o que é de interesse
comum, o que nos atinge de modo mais imediato, aquilo que está mais presente e
perceptível, aquilo que nos foi sugerido conhecer. Mas, o que saber do Holocausto
judeu na Alemanha, acontecido décadas, durante a Grande Guerra? O que
dominar além das datas dos acontecimentos mais marcantes? O que conhecer mais
do que nomes de pessoas importantes envolvidas e eternamente lembradas? Da
divisão da Europa depois da guerra? Dos países que participaram da guerra como
aliados ou do “eixo”? O que refletir além da Alemanha reerguida como potência
econômica e cultural no pós-guerra?
Nosso posicionamento é no sentido de que devemos responder
satisfatoriamente a todos os questionamentos levantados, bem como acrescentar
outros ao inventário: considerando todas essas interrogações e suas respostas, o
que realmente chegamos a conhecer e saber sobre o Holocausto, para ultrapassar a
versão oficial que os livros de história nos apresentam? Em que medida esse fato
nos afeta e nos preocupa? O quanto sabemos a respeito das vítimas? Qual a versão
que as vítimas assumem para interpretar e contar o Holocausto? O que o relato
dessas mulheres e homens tem a contribuir com a história coletiva e pessoal de
cada um de nós? Num momento em que aumenta o pronunciamento dos ditos
“revisionistas”, contestando a veracidade e a proporção do Holocausto, negando a
legitimidade de incontáveis pesquisas sobre o assunto e a boa dos testemunhos,
refletir sobre todas essas perguntas ligadas às timas torna-se, para nós,
impreterível.
54
As dúvidas que surgem em relação aos marginalizados pelo Holocausto: de
que maneira abordam o fato, quais pontos nevrálgicos indicam como indispensáveis
para entender o que foi o Holocausto, como definem a experiência, que papel
assume o relato nessa revisitação à experiência, seus variados discursos são itens
que abordamos com maior insistência neste terceiro bloco que tem como objetivo
primeiro trazer a fala das vítimas à tona, numa busca de diálogo com o presente e
conosco.
Cada obra que vai sendo conhecida e lida, mesmo versando sobre o centro
comum que foi o horror do Holocausto, vai se acrescendo de aspectos
diferenciados, de novos vieses, do conhecimento que vamos construindo a partir do
relato de quem viveu, na posição de vítima, direta ou indiretamente, sobre a
realidade do nazismo. Cada autor, a seu modo, lança luzes e esclarece a si e a nós,
leitores, que valor atribui ao Holocausto e o que foi possível aprender com ele. O
intento expresso dos escritores, que sustentamos como nosso também, é:
iluminando o passado do Holocausto, poder-se evitar o seu esquecimento no
presente e tê-lo como ponto de referência para o futuro. Nesse sentido, citamos o
alerta de Jorge Semprún, em A escrita ou a vida:
Chegaria um dia, relativamente próximo, em que não restaria mais nenhum
sobrevivente de Buchenwald. Não haveria mais memória imediata de
Buchenwald: mais ninguém saberia contar com as palavras vindas da
memória carnal, e não de uma reconstituição teórica, o que terão sido a
fome, o sono, a angústia, a presença ofuscante do Mal absoluto – na exata
medida em que ele está aninhado em cada um de nós, como liberdade
possível. Mais ninguém teria em sua alma e seu cérebro, indelével, o
cheiro de carne queimada dos fornos crematórios. (SEMPRÚN, 1995:282)
3.1 O registro impossível do “invivível”
Qualquer coisa sobre a qual não se leia ou escreva permanece em
suspenso, sem solução.
Paisagens da memória, de Ruth Klüger
Às vezes sinto vontade de fugir com tudo que possuo para dentro de
algumas palavras, procurando refúgio nelas. Mas ainda não existem
palavras para abrigar-me.
55
Uma vida interrompida, de Etty Hillesum
Para conhecer uma face outra do Holocausto, para além daquela retratada nos
livros de História, para pormenorizar aquela apresentada pelos teóricos, para pôr em
xeque a faceta mascarada proposta pelos revisionistas ou negacionistas,
recorremos aos testemunhos de sobreviventes e de outras vítimas que nos
oferecem seu depoimento. Podemos ter acesso a eles através de diversos meios:
gravações de entrevistas (como o documentário Shoah, dirigido por Steven
Spielberg); poemas marcadamente autobiográficos (conferir produção poética de
Nelly Sachs ou de Paul Celan, entre outros); ou então em filmes que recuperam
alguns acontecimentos rotineiros nos campos de concentração ou extermínio (como
os conhecidos sucessos cinematográficos: A lista de Schindler, A escolha de Sophia
ou As cinzas da guerra). Temos os romances que abordam o tema (Suíte francesa,
de Irène Némirovsky, ou A viagem, de Ida Fink); os registros escritos em caráter
biográfico ou autobiográfico (Uma história para meus netos, de Fiszel Czeresnia,
também Meu coração ferido: a vida e as cartas de Lili Jahn, organizado por Martin
Doerry) e, ainda, o Holocausto expresso também em histórias em quadrinhos (ver
Maus, de Art Spiegelman).
Independente do veículo escolhido, (filmes, reportagens, livros), o apelo para
que fiquemos cientes dos horrores da guerra existe e se presentifica na fala
protagonizada pelos segregados:
Muitos de nossos mais promissores e vigorosos jovens estão morrendo dia
e noite. Não sei como encarar isso. Com todo o sofrimento à nossa volta,
sentimo-nos envergonhados de nos levar, e aos nossos humores, por
demais a sério. Mas você precisa continuar a levar-se a sério, deve
permanecer como sua própria testemunha, marcando bem tudo o que
acontece neste mundo, jamais fechando seus olhos à realidade. Deve
enfrentar esses tempos, e tentar encontrar as respostas para as muitas
perguntas que eles propõem. E talvez as respostas ajudarão não a você
mesma como também aos outros. (HILLESUM, 1981:52)
Como mencionamos, vários são os recursos que podem ser utilizados para o
conhecimento do Holocausto, mas nenhum é o contundente e incisivo, com poder
de marcar de forma indelével a mente, quanto os textos que inscrevem o
testemunho das vítimas. Nada mais revelador do que retomar os caminhos
56
percorridos por eles no passado e com eles partilhar os pensamentos e vivências.
enorme distância entre ler sobre o genocídio judeu e ler as memórias de quem
viveu na pele, na cabeça e no coração as insanidades nazistas e, ainda assim,
superou-se, sobrevivendo ou não, para contar.
Recordamos que os sobreviventes, ao retornarem às cidades onde nasceram,
não recebiam crédito ao contarem sua experiência, pois os fatos que relatavam
eram por demais absurdos e inconcebíveis. Da reação de incredulidade das
pessoas, muitas vezes amigos íntimos e parentes, toma forma a questão: escrever
ou não? Tornar-se-ia real a profecia feita por um soldado SS, citada em Os
afogados e os sobreviventes?
Seja qual for o fim da guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos;
ninguém restará para dar testemunho, mas, mesmo que alguém escape, o
mundo não lhes dará crédito. Talvez haja suspeitas, discussões,
investigações de historiadores, mas não haverá certezas, porque
destruiremos as provas junto com vocês. E ainda que fiquem algumas
provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos narrados são tão
monstruosos que não merecem confiança: dirão que são exageros da
propaganda aliada e acreditarão em nós, que negaremos tudo, e não em
vocês. Nós é que ditaremos a história dos Lager [...]. (LEVI, 2004:09)
O teórico italiano Stefano Zampieri
33
propõe uma nomenclatura específica para
a produção textual dos que testemunharam sobre a experiência do Holocausto:
Literatura do Lager (2004:74)
34
ou narrativa do Lager. Isso porque, para Zampieri, “a
literatura do Lager é um conjunto de espaços muito articulado”, tal qual “um
arquipélago” delineado por limites bem definidos. Conforme o teórico, os limites são
tão perceptíveis que ele convencionou três fases que caracterizam os testemunhos
das vítimas.
33 ZAMPIERI, Stefano. Lager e letteratura. In: Atas do Seminario Figure della Memoria. Firenze, 8-15,
jan. 2004. Publicadas por Edizioni Plus/Universitá di Pisa, dez. 2004, p. 73-81. Também disponível
em: http://rete.toscana.it.sett/lefp/pubblicazioni/allegati/edu05op. pdf. Acesso em out. 2006.
34 O texto de Zampieri, juntamente com os demais papers apresentados no Seminario Figure della
Memória, se constituiu de uma preparação coletiva, tendo em vista uma viagem ao campo de
extermínio de Majdanek, que representou a segunda etapa de uma primeira viagem de estudos
realizada em 2002 para Auschwitz. Essas viagens de estudo junto a outras iniciativas de reflexão e de
atualização dos temas históricos ligados ao Holocausto, e a alguns eventos que possuem valor
constitutivo na história italiana e européia do séc. XX, são promovidas e financiadas pelo Ministério da
Educação da Itália para professores de todos os níveis de ensino e de todas as áreas de. (Cf. Paolo
Benesperi, Assessor da Educação, Formação, Políticas do Trabalho e Concertação da Região
Toscana/Itália, na Apresentação do Seminario Figure della Memoria, p. 7-8)
57
A primeira fase corresponde aos testemunhos dados logo após o fim da guerra,
nos anos finais da década de 40, publicados por pequenos editores e direcionados a
um reservado e acanhado grupo de leitores representados pelas pessoas de amigos
e parentes das vítimas. A reação desses leitores foi comentada anteriormente e
ilustrada no sonho apreensivo de Levi, em contar a sua história e esta ser
desprezada. Período histórico marcado pela reconstrução de cidades inteiras
dizimadas durante o conflito, por pessoas preocupadas em se refazer de um
momento decadente e de se manterem afastadas do conhecimento desse passado
tão recente. Para os sobreviventes, resta o desconforto e o sentimento de culpa por
terem escapado com vida da guerra, o que culmina numa “política do silêncio”.
Zampieri menciona, como representantes da primeira fase, os conhecidos escritores:
Primo Levi, Robert Antelme e David Rousset, entre outros.
A segunda fase, compreendida entre dez e quinze anos mais tarde, portanto,
final da década de 50, quando a Europa consegue recuperar sua estabilidade e
garantir seu crescimento econômico, vai se configurar como momento mais propício
para a escuta dos sobreviventes. Zampieri (2004:76) comenta que o grande nome
da narrativa do Lager nessa fase é Elie Wiesel, que escreve A noite, primeiramente
em sua língua materna, o yiddish, porém de difícil alcance para os leitores. A noite
precisará ser publicada em francês (ainda no ano de 1958) para que haja público
leitor de sua obra e porque, para ele, o francês era língua da liberdade.
A prisão e julgamento de Adolf Eichmann, refletidos sob a perspectiva de
Hannah Arendt no cap. I deste trabalho, são o marco para o início da terceira fase.
Nos anos 60, é estabelecido “o novo papel do testemunho, uma nova dignidade das
vítimas que são chamadas como protagonistas e cujas palavras agora têm valor,
constituem um legítimo ato de acusação” (ZAMPIERI, 2004:77). A conhecida Guerra
dos Seis Dias ou Terceira Guerra Árabe-israelense
35
(em junho de 1967) é, segundo
Zampieri, evento histórico importante nesta fase porque mobiliza sobreviventes e
demais pessoas a “repensar a Shoah”. Jorge Semprún é citado como o nome de
peso nessa fase, com a publicação de A grande viagem (1963).
35 Cf. Larousse Cultural, 1999: 2864.
58
Temos ainda uma fase final, conforme Zampieri, nos anos 90, manifestando-se
surpreendente, porque se somam sessenta anos de distância do Holocausto. Com
novo fôlego, aos sessenta e cinco anos, Wiesel publica, em 1995, o primeiro volume
de sua autobiografia, All rivers run to sea, (“Todos os rios levam ao mar”, obra ainda
sem tradução para o português), que abarca os anos de 1928 a 1969. O segundo
volume, And the see is never full, cujo título quer dizer que “o mar das lembranças
nunca se encherá”, foi publicado em 1999, resgatando a vida do escritor de 1969 em
diante. Os sobreviventes, mesmo idosos, retomam a narrativa do Lager e da sua
repercussão, confirmando a necessidade de dizer a experiência novamente e
também de forma nova, até porque o público leitor é também outro.
Assim, da “intimidade da memória individual” se parte em busca e conquista de
uma escritura ética”, isto é, capaz de questionar os grandes valores existenciais do
homem, suas escolhas e, de alguma forma, sua própria natureza humana
(ZAMPIERI, 2004:79, grifo do autor).
Através da contribuição de Zampieri, percebemos que a escolha ou decisão de
escrever ou não sobre a experiência do genocídio foi diferente na postura dos
escritores. Por diferentes motivos, uns, impelidos pela lembrança recente, colocam-
se imediatamente a escrever após a libertação. Temos, como vimos, o exemplo do
escritor italiano Primo Levi, formado em química e deportado para Auschwitz, na
Polônia, em 1944, que escreve sua emblemática obra É isto um homem? em 1947,
no calor dos acontecimentos. Outros optam pelo silêncio e somente vêm a escrever
décadas mais tarde. A escritora e sobrevivente Ruth Klüger, ao voltar para a
Alemanha a trabalho, em novembro de 1988, é atropelada por um jovem alemão
que, em disparada com sua bicicleta, a deixa impotente, caída na rua, e lembrando
dos anos infames de repressão e humilhação na infância. Esse evento a perturba
imensamente e ela decide redigir a sua autobiografia.
também aquelas obras contextualizadas em meio à perseguição nazista,
revelando anseios e dúvidas em tempo real, trazendo à tona o dia-a-dia de quem
não sabe se viverá mais um dia e se terá oportunidade de contar o que está
vivenciando. São os diários das vítimas que, depois de vários anos da guerra, são
divulgados para o conhecimento público. Apesar de ser extremamente perigoso se
59
fosse descoberta e denunciada aos nazistas, sujeita a penas severas, a jovem
Janina Bauman tem clara consciência da importância de registrar em seu diário os
acontecimentos que lhe causam indignação ou surpresa:
Sei que manter um diário significa assumir um grande e desnecessário
risco ele contém a afirmação, preto no branco, de tudo aquilo que
estamos tentando esconder. Mas não quero que minhas experiências
caiam no esquecimento, de modo que continuarei escrevendo, se não para
a posteridade, ao menos para mim mesma. Agora vou enterrá-lo no fundo
do catre e dormir em cima dele. (BAUMAN, 2005:206)
Escrever ou não? Além do risco de não ser “confiável”, existem outros dois
impasses que imobilizam a ação: primeiro, a impossibilidade de a palavra revelar
literalmente o que foi a tortura nazista nos guetos e no Lager, por falta de vocábulos
apropriados para nomear o que não tem nome, para narrar tamanho estranhamento,
espanto, horror, absurdo. Conforme explica o escritor romeno Elie Wiesel, enviado
ainda adolescente para os campos de concentração de Auschwitz depois a
Buchenwald, na obra Palavras de estrangeiro:
Nós todos sabíamos que nunca, nunca diríamos o que era preciso dizer,
nunca exprimiríamos em palavras coerentes, inteligíveis, nossa experiência
de loucura absoluta. A caminhada pela noite abrasadora, o silêncio antes e
durante as seleções, a prece monótona dos condenados, o Kaddish dos
moribundos, o medo e a fome dos doentes, a dor e a vergonha, os olhares
alucinados, os olhos esgazeados: nunca saberia dizê-los. As palavras me
pareciam gastas, bobas, inadequadas, maquiadas, anêmicas; eu as queria
ardentes. (WIESEL, 1984:8)
Em segundo lugar, o outro entrave para a escrita refere-se à maneira mais
conveniente de colocar no papel a experiência do Lager, qual modo, estrutura, estilo
mais apropriado para conduzir a narrativa e fazer com que o leitor, que não teve a
mesma vivência, possa entender, através da memória e relato do sobrevivente, o
que aconteceu. O escritor sabe que sua tarefa será penosa, caso decida expor a sua
história. O espanhol Jorge Semprún reflete sobre as escolhas que tem de fazer para
escrever a respeito do que experimentou nos campos de concentração:
obstáculos de todo o tipo à escrita. Puramente literários, alguns. Pois
não pretendo fazer um simples depoimento. de início, quero evitar,
evitar-me a enumeração dos sofrimentos e dos horrores. Outros se
aventurarão, de toda maneira... Por outro lado, sou incapaz, hoje, de
imaginar uma estrutura romanesca na terceira pessoa. Não desejo sequer
enveredar por esse caminho. Portanto, preciso de um “eu” da narração,
60
nutrido com a minha experiência, mas ultrapassando-a, capaz de nela
inserir o imaginário, a ficção... Uma ficção que seria tão esclarecedora
quanto a verdade, sem dúvida. (SEMPRÚN, 1995:163)
Escrever ou não? Os registros das memórias das vítimas podem significar para
seus autores a possibilidade de reencontro com eles mesmos, percorrendo
novamente os caminhos do passado. Ou tentativa de organização do caos que os
acompanha desde sempre. Pode significar a direção para alguns, pode funcionar
como recurso último de manter a vida para outros. Pode ser sinônimo de salvação
ou de tortura pelo reviver constante das lembranças. As ressonâncias da escrita
sobre o Holocausto apresentam grande variação para os seus narradores.
Apesar das diferenças (algumas complementares, outras incompatíveis), no
entanto, em alguns pontos consenso para a grande maioria dos escritores. Para
o sobrevivente Elie Wiesel é premente escrever porque ele não fala apenas de si,
mas especialmente dos mortos que povoam suas memórias e seu presente:
E uma criança. E um velho. E um mendigo. E um louco. Eles fazem parte
de minha paisagem interior. A razão? Caçados, perseguidos pelos
matadores, eu lhes ofereço refúgio. O inimigo queria uma sociedade sem
eles? Arranjo-me para trazer alguns de volta. O mundo os renegava, os
repudiava; pois bem, que eles vivam ao menos nos sonhos doentios de
meus personagens. É para eles que escrevo. (WIESEL, 1984:13)
O entendimento de débito para com os mortos, o sentir-se compelido a
emprestar-lhes a sua voz, dar-lhes espaço nas narrativas, tentar resgatar-lhes a
trajetória pessoal interrompida antes que pudessem comunicá-la, garantir-lhes um
corpo mais concreto do que o de pessoa fantasma e anônima é compartilhado em
vários textos. Esse sentimento vem acompanhado de uma estranha sensação de
dever algo (o quê?) para alguém (quem exatamente?) por ter sobrevivido (por que
eu?). Nas considerações de Klüger:
Os sentimentos de culpa dos sobreviventes não giravam em torno do fato
de que acreditássemos não ter direito à vida. Eu, pelo menos, nunca
acreditei que deveria ter morrido porque outros haviam sido assassinados.
Não tinha feito nada de mal, por que deveria pagar? O termo deveria ser
sentimento de “dívida”. Fica-se empenhado de maneira estranha, não se
sabe a quem. A vontade é tirar dos algozes para dar aos mortos, e não se
sabe como. A sensação é a de ser, ao mesmo tempo, credor e devedor, e
se praticam ações compensatórias dando e exigindo, que não fazem
sentido à luz da razão. (KLÜGER, 2005:165)
61
Escrever ou não? Persistente questão, ela continua figurando, peremptória.
Alguns escritores, apesar de contarem suas histórias, recuperando o equilíbrio
interior por alguns anos, sucumbem aos efeitos do Mal absoluto. A esses, a escrita
foi incapaz de salvar. Utilizando-nos de palavras do poeta Paul Celan, que cometeu
suicídio jogando-se nas águas do rio Sena: depois de “beber o leite-breu d’aurora”,
de reconhecer que “a morte é uma mestra d’Alemanha”, de cavar “uma cova grande
nas nuvens” a ser ocupada quando subir “aos ares como fumaça”, como resultado
desse canto macabro do Holocausto resta escolher a morte (CELAN apud
GAGNEBIN).
36
O escritor Semprún reserva em seu livro A escrita ou a vida um capítulo inteiro
dedicado a Primo Levi, que se suicidou em 11 de abril de 1987, em sua casa.
Semprún questiona-se sobre o porquê do escritor italiano ter conseguido esquivar-se
da morte através da escrita durante tanto tempo e, quarenta anos depois da
libertação, ter cedido ao desamparo radical. Numa reflexão muito sensível, Semprún
produz as perguntas a si, lança-as para nós, leitores, e já as responde:
Por que quarenta anos depois, suas recordações deixaram de ser uma
riqueza? Por que ele perdeu a paz que a escrita parecia ter lhe devolvido?
O que ocorreu na sua memória, que cataclismo, naquele sábado? Por que
lhe foi de repente impossível assumir a atrocidade de suas recordações?
Uma última vez, sem recurso, sem remédio, a angústia se impusera, pura e
simplesmente. Sem esquiva nem esperança possíveis. A angústia cujos
sintomas ele descrevia nas últimas linhas de A trégua. (SEMPRÚN,
1995:244)
Escrever ou não? O próprio Semprún (1995) é um exemplo de sobrevivente e
escritor que se desviou durante muitos anos da escrita, optando pelo “silêncio de
sobrevivência” (p. 110), um calar-se quase absoluto, não fosse o seu “olhar
alucinado, devastado” (p. 111) que denunciava sua agonia. Para poder aceitar-se de
volta à vida, somente o “esquecimento poderia salvá-lo” (p. 160) e foi preciso
renunciar a duas coisas que o afastavam dela: “a escrita, o prazer” (p. 111), durante
muito tempo.
Dizer sim à escrita significaria para Semprún a “morte voluntária, deliberada” (p.
155) que seria capaz de desviá-lo da dor, fazendo-o livrar-se dela, evidência que o
36 Artigo intitulado A (im)possibilidade da poesia. Dossiê Cult, 1999:50.
62
acometeu após um sonho que teve e do qual acordou não sabendo mais se estava
em Paris ou novamente em Buchenwald. Deu-se conta de que “tudo recomeçaria
enquanto estivesse vivo: assombração na vida” (p. 160). Precisava optar,
solitariamente, “apesar dos desvios, das censuras voluntárias e involuntárias, da
estratégia do esquecimento” (p. 225) entre tentar exorcizar a experiência do campo
de concentração ou silenciar-se para sempre. Ao escolher escrever, Semprún
arranca da memória, “fiapo por fiapo, frase por frase” (p. 190) suas lembranças,
percebendo que “A felicidade da escrita, eu começava a saber, jamais apagava essa
desgraça da memória. Muito pelo contrário: aguçava-a, escavava-a, reavivava-a” (p.
160). Sabe, porém, que é necessário “fabricar a vida com toda essa morte. E a
melhor maneira de conseguir é a escrita” (p. 162).
Para Etty Hillesum, a escrita foi fundamental para mantê-la sóbria em meio a
tantas situações de opressão, humilhação e pavor que presenciou: “As pessoas
estão morrendo aqui neste exato momento por terem seus espíritos destruídos,
porque não podem mais encontrar nenhuma significação na vida... e são pessoas
jovens!” (1981:231). Para evitar fraquejar diante das várias faces da morte, ela
acompanha, em toda a sua extensão, a dominação dos judeus e a convulsão que a
guerra provoca naqueles escolhidos como suas vítimas, desde que inicia o estudo
de Psicologia até ser assassinada no campo de concentração. Sua busca
incessante da consciência profunda de si mesma, os amores e desencantos, a
procura de entendimento da alma do outro, as sevícias da guerra, o testemunho da
violência desmedida, tudo está registrado em seu diário, publicado a primeira vez
trinta e oito anos após a sua morte.
Hillesum menciona em vários pontos do relato que a escrita lhe permite tecer
sua “teia”, unindo sua vida à realidade, como “uma linha contínua” (p. 115),
constituindo-se “um espaço inspirado” onde é possível dizer “as poucas grandes
coisas que importam na vida” (p. 141). Escrever, nas horas mais inusitadas (como
aponta no seu diário), sempre que foi possível fazê-lo, significou para Etty estar “em
dia” consigo, procurando não “perder” o seu caminho (p. 32), pois a “vida é
composta de histórias que esperam ser contadas por mim” (p. 55), como explica.
“Sempre à cata de algumas palavras” (p. 65), procura suprir suas necessidades
63
internas (p. 125) e legar ao mundo, por meio do seu registro, o argumento de quem
foi posto à margem da sociedade nacional-socialista:
E tenho que usar esta frágil caneta-tinteiro como se fosse um martelo, e
minhas palavras serão outras tantas marteladas com as quais divulgar a
história de nosso destino e um pedaço da História como ele é e como
nunca foi antes. Não nesse totalitarismo, de uma forma maciçamente
organizada, abrangendo toda a Europa. Mesmo assim, algumas pessoas
deverão sobreviver pelo menos para serem cronistas desta era. Eu gostaria
muito de ser uma delas. (HILLESUM, 1981:174)
Falando em nome de si, falando em nome dos seus, relatar as memórias da
guerra, recuperar o passado e suas histórias, trazer à tona e à mostra essas
experiências é tarefa extenuante, trabalhosa, exigente, como define a escritora
polonesa Ida Fink:
A reconstrução desses dias é um trabalho árduo de exploração através dos
territórios nebulosos da memória. A névoa definha, se adensa, ora uma
imagem clara, ora uma lacuna, a reconstrução desses dias é um duro
esforço de arranjo de pedaços e fragmentos numa continuidade e
totalidade. É também, acima de tudo, um trabalho doloroso. (FINK,1998:34)
Escrever ou não? Se o sobrevivente não escolhe fazê-lo por si mesmo, para
confrontar as mais recônditas das suas lembranças, que o faça, então, para
estabelecer liames com as memórias e o conhecimento dos leitores, para que
possamos ter a oportunidade de contatar, ainda que tangencialmente, com as
experiências limiares dos sobreviventes através dos seus testemunhos. Afinal,
segundo Levi, a partilha de vivências e a comunicação não são realizáveis
quando houver alguma “incapacidade patológica”, do contrário elas são saudáveis e
indispensáveis, posto que são próprias do homem:
Salvo casos de incapacidade patológica, pode e deve comunicar-se: é um
modo útil e fácil de contribuir para a paz alheia e a própria, porque o
silêncio a ausência de sinais, é por vez um sinal, mas ambíguo, e a
ambigüidade gera inquietude e suspeição. [...] Recusar a comunicação é
crime; para a comunicação, e especialmente para aquela sua forma
altamente evoluída e nobre que é a linguagem, somos biologicamente e
socialmente predispostos. (LEVI, 2004:78)
3.2 A noite ou o regresso sem fim
64
Procuramos, nos capítulos iniciais do trabalho, apresentar as várias acepções
que o Holocausto assumiu para sobreviventes e não-sobreviventes, com a
elaboração teórica de diversos estudiosos do tema. Neste espaço do texto,
abordamos preferencialmente, de uma gama de opções possíveis para a análise das
repercussões do Holocausto, alguns aspectos sobre os quais nos parece relevante
refletir a partir das falas das vítimas. Os itens estudados são, a saber: a
impossibilidade de o sobrevivente esquecer o Lager e o sentimento que lhe restou
em relação à Alemanha; a violência sem igual infligida aos prisioneiros, sua quebra
da resistência nas mortes (da identidade religiosa, da força de vontade, do corpo)
produzidas pelos nazistas, e a necessidade e urgência da ampla discussão sobre o
Holocausto. Como ponto de partida, escolhemos um fragmento de A noite, do
escritor Elie Wiesel:
Nunca me esquecerei daquela noite, a primeira noite de campo, que fez de
minha vida uma noite longa e sete vezes aferrolhada. Nunca me esquecerei
daquela fumaça.
Nunca me esquecerei dos rostos das crianças cujos corpos eu vi se
transformarem em volutas sob um céu azul e mudo.
Nunca me esquecerei daquelas chamas que consumiram minha para
sempre. Nunca me esquecerei daquele silêncio noturno que me privou por
toda a eternidade do desejo de viver.
Nunca me esquecerei daqueles momentos que assassinaram meu Deus,
minha alma e meus sonhos, que se tornaram deserto.
Nunca me esquecerei daquilo, mesmo que eu seja condenado a viver tanto
tempo quanto o próprio Deus. Nunca. (WIESEL, 2006:42)
Assim como Wiesel, nascido em 1928, num lugarejo chamado Sighet, na
Romênia, deportado em 1944 para os campos de concentração, quando contava
dezesseis anos e libertado em 1945, nunca mais pôde livrar-se do que presenciou e
experenciou enquanto prisioneiro, as outras vítimas da guerra e do sofrimento
desmedido são categóricas em declarar que é impossível esquecer a Shoah
pessoal, familiar, coletiva que o Holocausto representou. Incisiva a pergunta feita por
Semprún em A escrita ou a vida: “Aliás, tínhamos realmente sobrevivido?”
(1995:240).
O primeiro grande e irrevogável legado do Holocausto: nunca esquecer o Lager
- fardo a ser carregado para todo o sempre pelo sobrevivente. Mesmo procurando
adequar-se à “normalidade” da vida pós-guerra, as marcas da experiência
traumática sobrevêm, nítidas e sensíveis, cada vez que algum fato no momento
65
presente alude, em maior ou menor grau, a um algo contido no passado do Lager: a
fumaça de alguma chaminé num vilarejo perdido no mapa, a luz refletida na neve
macia, algum nome pronunciado ao acaso ou um rosto percebido de perfil, como
recorda Semprún: “Haveria sempre essa memória, essa solidão: essa neve em
todos os sóis, essa fumaça em todas as primaveras” (1995:140).
Através do seu testemunho, o sobrevivente polonês naturalizado brasileiro,
Aleksander Laks, vai ao encontro da declaração do escritor espanhol e endossa:
“Não sei a respeito de datas, horários, nomes ou números. Não sei quanto tempo
durou, quem eram as pessoas ou o número do meu uniforme. Isso não me importa.
[...]. Eu estava lá, eu estava lá, eu estava lá” (LAKS, 2005:166).
Muitos “estiveram lá” e não voltaram (ou regressaram silenciosos) para contar a
sua experiência extrema de encontro com a humilhação, a dor, a aniquilação, com a
face da morte. Segundo o posicionamento de vários sobreviventes, entre estes,
Primo Levi, os que pereceram ou os “afogados” é que seriam as vítimas mais
legítimas do Holocausto, porque vivenciaram o sacrifício até o seu âmago mais
radical, que foi a experiência da morte. “Quem o fez, quem fitou a górgona, não
voltou para contar, ou voltou mudo; [...] são eles as testemunhas integrais, cujo
depoimento teria significado geral. Eles são a regra, nós, a exceção” (LEVI,
2004:72).
Porém, “ter estado lá”, ter conseguido voltar e procurar transmitir o que se viveu
é extremamente difícil, pois, como vimos, aquele que volta está traumatizado, com a
alma alquebrada. Completa e irreversivelmente marcado, como lembra Braunstein
(op. cit.), além de o sobrevivente ter tido sua vida cindida entre o antes e o depois,
esse que volta não pode ser o mesmo de outrora. Aquilo que ele foi está morto, e o
que sobreviveu permanece em constante luto pelo “que ele nunca mais poderá
voltar a ser”.
É o mesmo, continua Braunstein, que ser condenado a “viver entre duas
mortes”, a primeira imposta pelo carrasco (o Outro), a segunda, aquela que se
constitui evento inevitável da existência. A primeira morte, talvez, possa ser
superada pelo testemunho que “viveria no lugar da testemunha”. Mesmo ressaltando
66
sua experiência ímpar, para o sobrevivente, seu “livro da vida se petrificou”, suas
páginas vividas lhe são ilegíveis, irreconhecíveis, irrecuperáveis, insuficientemente
expressivas.
Ter “estado lá”, vivenciado de muito perto ou pessoalmente o Holocausto,
desde as primeiras manifestações anti-semitas acirradas até o extremismo dos
campos de concentração, significa ter cicatrizes impossíveis de serem eliminadas.
“Meus sentimentos nunca se recuperaram”, afirma a sobrevivente Lotte Paepcke,
prima de Lilli Jahn, médica judia na Alemanha de Hitler que não escapou com vida à
guerra (PAEPCKE apud DOERRY, 2004: 352).
Sentimentos de descrença, de incerteza, de incredulidade, de insegurança, de
desconfiança, instalaram-se indeléveis nas vítimas. Sentimentos que questionam a
sua identidade enquanto judeus-alemães, cidadãos educados conforme os padrões
assimilados da cultura germânica, enquanto trabalhadores incorporados no sistema
de produção econômica, enquanto pessoas integrantes de vários círculos de
amizade e de convívio. Os perseguidos demonstram a sua decepção em relação à
pátria que os despreza, apesar de fazerem parte dessa comunidade.
Nas declarações de Victor Klemperer, professor de Filologia, intimidado durante
o regime do nacional-socialismo, sobrevivente pela “proteção” que seu casamento
com uma ariana pôde lhe assegurar: “Quanto a mim, jamais voltarei a ter confiança
na Alemanha” (1999:16). E ainda: “Fantástica Idade Média: ‘Nós’ judeus
ameaçados. De fato, sinto mais vergonha do que medo, vergonha, pela Alemanha.
Verdadeiramente, sempre me senti alemão” (p. 18). Em outro trecho de seu diário, o
professor comenta, ironizando: “[...] O Ministério da Educação da Espanha ofereceu
a Einstein um cargo de professor titular numa universidade espanhola, ele aceitou.
Esta é a piada mais curiosa da história da humanidade. A Alemanha realiza limpieza
de la sangre – a Espanha convida o judeu alemão” (p. 23, grifo do autor).
Junta-se ao desabafo de Klemperer, a observação de Klüger ao referir-se à sua
cidade natal, após a experiência da perseguição e prisão em Theresienstadt,
Auschwitz – Birkenau e, por fim, Christianstadt, quando ainda menina:
67
Viena é uma cidade cosmopolita, cada um tem sua própria imagem de
Viena. Para mim, a cidade não é estranha nem familiar, o que por sua vez
significa que ela é ambas as coisas para mim, portanto, familiarmente
estranha ou estranhamente familiar. Viena era, sobretudo, triste, e inimiga
das crianças. Inimiga até o âmago, das crianças judias. (KLÜGER,
2005:63).
O escritor Elie Wiesel retorna a Buchenwald, em 1979, no papel de
sobrevivente e integrante da Comissão Presidencial sobre o Holocausto e conta, no
livro Palavras de estrangeiro (1984), suas impressões sobre o local onde fora
prisioneiro durante vários meses. Nessa visita, outras vezes adiada para “um dia...”
(p. 17), dá-se conta da beleza da paisagem em torno do antigo campo de
concentração, pergunta-se sobre a escolha de cenário tão belo para as atrocidades
perpetradas. Seria “acaso da natureza ou cálculo dos algozes?” (p. 15).
Constata que esse esplendor da natureza havia lhe passado despercebido,
pois “trinta e cinco anos atrás” via somente “os arames farpados”, num mundo sem
céu que acabava ali mesmo. E explica: “Dante nada compreendeu. O inferno se
insere num cenário cujo esplendor sereno nos tira o fôlego” (p. 15). Voltar ao campo
de concentração de Buchenwald, numa aldeia da Alemanha, lugar em que viu sua
família e amigos perecerem, resulta numa situação perturbadora e dolorosa: “[...] é
natural que um judeu se sinta deslocado hoje, nesse país. Ele procura seus irmãos e
não os encontra, não os encontra nem mesmo entre os mortos” (p. 18).
As proporções adquiridas pelo Holocausto empreendido na Alemanha hitlerista
foram notáveis. Não menos surpreendentes foram as demonstrações, tão bem
programadas e aprimoradas, daquilo que Primo Levi chamou de “violência inútil”, em
Os afogados e os sobreviventes (2004). O sobrevivente italiano dedica todo um
capítulo para refletir sobre a violência infligida sem outro propósito maior que o de
suscitar a dor e a humilhação das vítimas (p. 91). Enumera e questiona-se sobre o
porquê dos encaminhamentos feitos pelos nazistas, além da “crueldade gratuita” (p.
93) evidente nessas ações: os transportes para os campos abarrotados de pessoas,
o pudor violado, as privações de todo tipo, as exaustivas chamadas na praça de
contagem, a arrumação sádica das camas, a tatuagem de identificação, o
tratamento atroz dado aos moribundos, o trabalho escravista, as experiências
médicas praticadas com humanos.
68
Destacamos a “violência inútil” como sendo um segundo aspecto que marca as
vítimas na sua tentativa de compreender o Holocausto. Levi inicia suas colocações
chamando a atenção do leitor para as condições insanas da “viagem”, cuja
preparação era feita aos tropeços pelos deportados que, com vaga idéia do que os
aguardava, separavam para a bagagem os itens listados pelos alemães (como jóias,
peles, ouro, moedas fortes...) e deixavam, ironicamente, o indispensável e
primariamente necessário (como um recipiente para os excrementos, provisões para
vários dias de viagem, água...). O suplício iniciava no transporte: em trens de
carga para animais, os deportados eram amontoados em número muito superior à
capacidade da lotação. Vários prisioneiros enlouqueciam, adoeciam e morriam por
falta de ar, de comida, de movimento, “e muitas vezes, entre os viajantes, existem
velhos, doentes, crianças, mulheres em período de aleitamento...” (LEVI, 2004:94).
O fato degradante de não ter local apropriado no trem para aliviar suas
necessidades fisiológicas foi, segundo o escritor italiano, um “prólogo” ou uma
amostra do que estava por vir no campo de concentração. “Não era fácil nem indolor
habituar-se à enorme latrina coletiva, ao limite de tempo estrito e obrigatório, à
presença, à sua frente, do aspirante à sucessão; em pé, às vezes suplicante, outras
vezes prepotente” (id., ibid.). Todavia, conforme Levi, o melhor seria acostumar-se
rapidamente ao esquema, ou o sofrimento seria ainda maior, constatando que “a
transformação de seres humanos em animais estava a meio caminho” (p. 97). A
esse processo de animalização inclui-se a humilhação de continuamente ser
obrigado a ficar nu, “privado não das roupas e dos sapatos [...], mas dos cabelos
e de outros pêlos” (p. 98) e a falta básica de uma colher, com a qual pudesse tomar
a sopa diária sem assemelhar-se aos cães.
Também os momentos intermináveis à espera da finalização das rotineiras
chamadas dos prisioneiros, em alguns campos de concentração com a presença,
inclusive, dos cadáveres agrupados para a contagem, são apontados por Levi como
de “redundância inútil” (p. 98) e exemplo de ações ofensivas com objetivo de vexar
os internos do Lager. A chamada acontecia ao ar livre, com ou sem chuva, com ou
sem neve, invariavelmente. Constituía-se numa espécie de tortura que “provocava
alguns colapsos ou algumas mortes” (p. 100), que poderia se estender durante
69
horas, caso persistisse qualquer dúvida quanto ao número de detentos ou diante da
suspeita de alguma evasão.
Antes de saírem para as jornadas de trabalho, os prisioneiros eram obrigados a
“arrumar a sua cama”: esticar, com precisão milimétrica, o emaranhado do colchão
“que não tinha nenhuma consistência e, de noite, sob o peso do corpo, achatava-se
imediatamente até as tábuas que o sustentavam” (p. 102). Caso houvesse
negligência na organização da cama, o prisioneiro era severamente punido.
Segundo Levi, a tatuagem foi invenção de Auschwitz e era feita por
“escreventes” (p. 102) especializados, ágeis e rápidos. Classificada por Levi como
exemplo de violência inútil devido à gratuidade cruel e à motivação pela pura ofensa,
ele analisa o valor simbólico que a tatuagem carrega e que proclama aos
prisioneiros: “este é um sinal indelével, daqui não sairão mais; esta é a marca que se
imprime nos escravos e nos animais destinados ao matadouro, e vocês se tornaram
isso. Vocês não têm mais nome: este é o seu nome” (p. 103).
Levi menciona, na sua lista, a desconsideração e violência inútil para com os
doentes, para com os velhos e, especialmente, no tratamento dispensado aos
moribundos: “Por que se meteram a arrastá-los até os trens, para levá-los a morrer
longe, após uma viagem insensata, na Polônia, no limiar das câmaras de gás?” (p.
103), deduzindo que o raciocínio dos nazistas era de que: “O ‘inimigo’ não devia
apenas morrer, mas morrer no tormento”. Junte-se a essa postura dos alemães: o
trabalho “aflitivo”, sem finalidade em si, a exemplo do trabalho dos “animais de
carga, puxar, empurrar, levar peso, vergar sobre a terra” (p. 104); e as experiências
metodicamente bárbaras feitas com cobaias humanas nos campos de concentração,
no entendimento de Levi, atestando o “corpo humano como um objeto, uma coisa de
ninguém, da qual se podia dispor de modo arbitrário” (p. 106).
A disposição irrestrita aos propósitos dos nazistas, psicológica e fisicamente
por parte das vítimas, é confirmada na trajetória da judia alemã Lilli Jahn que, ao ser
abandonada pelo marido alemão, é separada arbitrariamente de seus cinco filhos
(que ficam praticamente órfãos, que o pai constitui nova família “ariana”) é levada
ao campo de trabalhos forçados de Breitenau e depois a Auschwitz, onde é
70
assassinada nas câmaras de gás na primavera de 1944. Seu neto, Martin Doerry, é
quem organiza as cartas da avó, da mãe dele e dos seus tios, trocadas entre eles
durante o período que vai de 1943 até 1944, e explica sobre a falta de motivo
convincente e legal para a prisão de Lilli e para a sua manutenção em Breitenau:
Se os nazistas tivessem sido coerentes na implementação de sua
desumana política penal, Lilli teria sido libertada quatro semanas depois de
sua detenção. Uma contravenção à regulamentação policial implementada
em 17 de agosto de 1938 dificilmente teria garantido uma pena longa. No
entanto, à medida que a guerra avançava, o sistema penal perdia seu
verniz de legalidade. Discernia-se apenas um objetivo principal: o
extermínio dos judeus. Lilli acabou passando quase sete meses presa em
Breitenau, sem nenhuma explicação oficial. (DOERRY, 2004:337)
As atrocidades nazistas têm a óbvia intenção de instalar a confusão, a
desorientação, a violação dos direitos mais básicos das pessoas, disseminar o
terror, destruir as resistências das vítimas, reduzindo-as à categoria de objeto, antes
de eliminá-las. Algumas sucumbem à morte, lentamente, seja à morte da sua
(descrença em Deus), à morte da esperança (para os “muçulmanos”
37
presentes nos
campos de concentração), à morte física (o extermínio).
A perda da crença em Deus, em Sua infinita bondade, constante orientação e
presença divina em todas as coisas e em todas as pessoas, marcou para sempre o
jovem Wiesel que, encarcerado em Birkenau, vê seu Deus ser morto no
enforcamento de uma criança, “de rosto fino e belo, inimaginável naquele campo”
(2006:71), castigada pelos nazistas. Todos os detentos foram obrigados a desfilar e
contemplar o morto. Wiesel transcreve, em A noite, uma breve conversa que teve
com outro prisioneiro:
Atrás de mim, ouvi o mesmo homem perguntar:
-E então, onde está Deus?
E senti em mim uma voz que lhe respondia:
-Onde Ele está? Ei-Lo – está aqui, nesta forca.
Naquela noite, a sopa tinha gosto de cadáver. (WIESEL, 2006:72)
37 Mencionado em várias narrativas de sobreviventes, o termo “muçulmano” refere-se, grosso modo,
aos que sucumbiram psicologicamente às atrocidades nazistas, antes mesmo de perecerem
fisicamente. O termo deriva de Musselmanner (do polonês Moslems) e se tornou palavra de gíria nos
Lagers significando pessoas próximas da morte pela fome e pelas privações sofridas.
71
Depois desse episódio, Wiesel comenta que não teve mais vontade de rezar,
assegurando que seu credo mais íntimo - os ensinamentos da em um Deus de
Amor - que aprendera na doutrina junto à família num passado longínquo da
infância, fora assassinado junto com aquele menino de rosto angelical.
Além da morte da fé, a situação extrema do Lager levou muitas pessoas à
morte da esperança de que aquela realidade pudesse reverter e melhorar, de que
houvesse possibilidade, mesmo que remota, de serem libertas do campo, de
reencontrarem fora dele os familiares, os companheiros feitos ali, comida, água,
oportunidade para recomeçar. Essa atitude de descrença total e irremediável, sem
perspectivas de qualquer tipo de solução para o contexto do Lager, fez com que
muitos prisioneiros estivessem psicologicamente mortos antes do perecimento total
do corpo, andando e trabalhando como autômatos, ainda tomando a rala sopa,
raramente falando, locomovendo-se com imensa dificuldade pelo espaço do campo.
Eram verdadeiros “mortos vivos”, indiferentes à circunstância, esperando, alheios,
entregues, à morte física que fatalmente viria.
A esses, impregnados da morte na mente e na força de vontade de continuar
resistindo, deu-se o nome de “muçulmanos”. Segundo Levi, na obra É isto um
homem?:
[...] são eles, os “muçulmanos”, os submersos, são eles a força do Campo:
a multidão anônima, continuamente renovada e sempre igual, dos não-
homens que marcham e se esforçam em silêncio; se apagou neles a
centelha divina, estão tão vazios, que nem podem realmente sofrer.
Hesita-se em chamá-los vivos; hesita-se em chamar “morte” à sua morte,
que eles nem temem, porque estão esgotados demais para poder
compreendê-la. (LEVI, 1988:91)
O sobrevivente espanhol Semprún relata que sempre tentou preocupar-se
consigo, nos meios de manter da melhor forma possível a sua saúde e os cuidados
com a higiene (acordar e sair correndo para as latrinas coletivas antes de os outros
prisioneiros chegarem no local, lavar-se rapidamente, já que o tempo reservado para
isso era controlado), pois “o desinteresse, a falta de amor próprio, de uma certa idéia
de si, era o primeiro passo no caminho do abandono” (2005:131). O primeiro passo
para tornar-se um “muçulmano” entre tantos outros. O escritor ressalta que uma
72
marca que evidencia quando um companheiro de bloco ou de beliche está prestes a
se entregar ao vazio da espera da sua morte: o olhar. Semprún, em O morto certo,
escreve:
É pelo olhar que percebemos a mudança súbita, o dilaceramento, quando a
aflição atinge um ponto de não-retorno. Pelo olhar subitamente apagado,
átono, diferente. Quando o olhar não é a prova, até mesmo dolorosa,
angustiada, de uma presença; quando não passa de um sinal de ausência
de si mesmo e do mundo. Então, compreende-se, efetivamente, que o
homem está soltando a presa, perdendo o pé, como se não tivesse mais
sentido se obstinar em viver; então, apreende-se na ausência a que se
resume o olhar que talvez tenhamos conhecido vivo, curioso, indignado,
risonho, compreendemos que o homem, desconhecido, anônimo ou
camarada, cuja história pessoal conhecemos, está sucumbindo à vertigem
do nada, ao fascínio petrificante da Medusa. (SEMPRÚN, 2005:123)
Como ignorar e esquecer o que os sobrepujados foram obrigados a
experimentar? De que forma extirpar o Holocausto e suas conseqüências imediatas
e retardatárias das vidas e da perspectiva de futuro das vítimas? Decididamente,
não é possível agir de maneira indiferente, nem os sobreviventes, nem as demais
pessoas que se propõem a aprofundar o conhecimento do Holocausto. No
esclarecimento de Klüger: é necessário suscitar “a discussão, a argumentação, o
confronto” (2005:129) e não ceder fria e cinicamente à descrença, à apatia, à
indiferença, porque “quem quer se aproximar do que aconteceu, com a mente e o
coração, necessita de interpretação dos fatos. Os fatos por si não bastam” (p.
116).
Considerando a fala de Levi (2004) “é natural e óbvio que o material mais
consistente para a reconstrução da verdade sobre os campos seja constituído pelas
memórias dos sobreviventes”, que devem ser conhecidas por todos, lidas “com olho
crítico” (p. 13), a despeito da emoção que despertam. Até porque, o fato se distancia
das novas gerações pela passagem do tempo, fazendo com que seja facilmente
deturpado e mal-entendido, se não for resgatado com responsabilidade e
profundidade pelos historiadores (p. 134). Comentando sobre a sugestão de “plano
infalível” dado por um jovem interlocutor que assistiu a uma palestra do escritor,
sobre como ele deveria proceder para fugir do campo de concentração, caso o
aprisionamento acontecesse novamente, Levi sustenta :
73
[...] o episódio ilustra bem a discrepância que existe, e que se amplia de
ano para ano, entre as coisas como eram “lá embaixo” e as coisas como
são representadas pela imaginação corrente, alimentada por livros e mitos
aproximativos. Essa imaginação, fatalmente, desliza para a simplificação e
o estereótipo; gostaria de levantar aqui uma barreira contra essa derivação.
Mas, ao mesmo tempo, gostaria de recordar que não se trata de um
fenômeno restrito à percepção do passado próximo nem das tragédias
históricas: é muito mais geral, faz parte de uma nossa dificuldade ou
incapacidade para perceber as experiências alheias, o que é tão mais
pronunciado quanto mais nossas experiências são distantes das nossas no
tempo, no espaço ou na qualidade. (LEVI, 2004:134).
3.3 Pontos de contato e distanciamentos nas escrituras de homens e
mulheres vítimas do Holocausto
Cronologicamente, sabemos que a intimidação e perseguição nazista às
vítimas iniciaram, com apoio e incentivo governamental, em 30 de janeiro de 1933,
quando Adolf Hitler é nomeado chanceler do Reich. Em março do mesmo ano, é
anunciada a instalação do primeiro campo de concentração destinado aos
opositores políticos do regime, na localidade de Dachau. Entre várias sanções e
proibições aos judeus, em 15 de setembro de 1935 são proclamadas as Leis de
Nüremberg, legalizando, em especial, o casamento e as relações sexuais entre
judeus e não-judeus. Em seguida, instalação e isolamento nos guetos e, em 1940, é
construído o campo de concentração de Auschwitz, onde, um ano após a sua
edificação, será efetivado, pela primeira vez, o assassinato de prisioneiros
utilizando-se o mortal gás Zyclon B
38
. Até a capitulação da Alemanha e a libertação
dos últimos sobreviventes das marchas da morte e dos campos de extermínio, em
maio de 1945, totalizam-se doze anos marcados pela intolerância, pela perseguição
e morte.
Em mais de uma década de duração, período marcado por diversas fases e
momentos, novas vítimas, de idade, sexo, classe social, formação cultural e
profissional diferentes, recrutadas em lugares díspares da Europa, vão sendo
submetidas a novas situações da guerra, resultando, obviamente, em testemunhos
também marcados por essas diferenças, por tempos e espaços variáveis. É
38 Ácido prússico fabricado por uma indústria química especializada no combate de vermes. Antes
usava-se o monóxido de carbono, cujo efeito letal era muito mais demorado. (Cf. CARNEIRO, Maria
Luiza Tucci. Holocausto: crime contra a humanidade, 2005:56).
74
importante termos em mente, ao estudarmos os testemunhos produzidos pelas
vítimas do Holocausto, as variantes que os acompanham e os determinam nas suas
caracterizações.
Tanto Ruth Klüger quanto Primo Levi apontam a necessidade de reconhecer
que o entendimento construído acerca do Lager é diferente de pessoa para pessoa,
de relato para relato. Klüger pondera que Levi, ao chegar no campo de
concentração, tinha “a autoconfiança de um europeu adulto, sólido, arraigado
espiritualmente no racionalismo e fixado geograficamente em sua pátria italiana”. Ao
contrário dela mesma, que vai para Birkenau com doze anos de idade: “Para uma
criança era diferente, pois nos poucos anos em que pude existir como pessoa
consciente, fui sendo privada gradualmente do direito à vida, de maneira que
Birkenau para mim não carecia de uma certa lógica” (KLÜGER, 2005:103).
Levi, por sua vez, declara, no prefácio de É isto um homem, que, quando é
transportado para o Lager, que a situação ali se mostra sensivelmente mudada em
relação a anos anteriores:
Por minha sorte, fui deportado para Auschwitz em 1944, depois que o
governo alemão, em vista da crescente escassez de mão-de-obra, resolveu
prolongar a vida média dos prisioneiros a serem eliminados, concedendo
sensíveis melhoras em seu nível de vida e suspendendo temporariamente
as matanças arbitrárias. (LEVI, 1988:7).
É ainda a autora de Paisagens da memória que esclarece o imperativo de
contrapor informações dos diversos relatos para se obter um conhecimento mais
detalhado e rico sobre o que foi e significou o Holocausto para as vítimas e para a
Humanidade: “[...] se não fazemos comparações, não surgem idéias e tudo cai no
ponto morto das frases feitas, como na maioria dos discursos laudatórios”,
estabelecendo-se, assim, “pontes” entre a experiência daquelas pessoas e a dos
leitores. Como elucida Klüger em seguida: “No entanto, se não houver ponte alguma
entre minhas lembranças e as suas, por que, afinal de contas, escrevo isto?”
(KLÜGER, 2005:101).
Cada relato é, concomitantemente, pessoal e coletivo. Pessoal e íntimo porque
parte da visão individual da experiência, carregada de vivências próprias que
75
caracterizam cada um como é. Coletivo porque, no caso da Shoah, não se trata
apenas de uma criatura, mas de milhares de pessoas com um destino semelhante
ou comum, pois pertencentes ao mesmo grupo étnico ou à mesma condição de
indesejados. Entendido como produto de nossa História e de nossa humanidade, o
relato do Holocausto é também coletivo porque se constitui como herança histórico-
cultural para as gerações por vir.
Tendo presentes essas considerações introdutórias, esclarecemos que, neste
bloco, procuramos atentar para alguns aspectos específicos definitivos nos
testemunhos, como, por exemplo: o que foi comum à grande maioria das vítimas e
pode ser depreendido de seus escritos; que diferenciação pode ser estabelecida
entre o tratamento dado a mulheres e homens nos campos; como foram situadas as
relações familiares e de afeto na prisão; que valor pode ser atribuído à linguagem
num contexto concentracionário. Explicamos que, como vários aspectos são
passíveis de análise, os itens que abordamos são todos limitados ao espaço do
campo de concentração, em língua alemã, o Lager. Por que dar um enfoque
especial à vida no Campo? Respondemos a esta pergunta com a argumentação de
Primo Levi:
Estamos convencidos de que nenhuma experiência humana é vazia de
conteúdo, de que todas merecem ser analisadas; de que se podem extrair
valores fundamentais (ainda que nem sempre positivos) desse mundo
particular que estamos descrevendo. Desejaríamos chamar a atenção
sobre o fato de que o Campo foi também (e marcadamente) uma notável
experiência biológica e social. (LEVI, 1988:88)
Lager, vocábulo alemão que abarca, como podemos conferir a seguir, várias
significações no sentido “puro” do dicionário: “jazigo; cama, leito; cova; armazém;
depósito; abastecedouro; sortido; sortimento; estoque; caixa; mancal; chumaceira;
acampamento; campo; arraial...”.
39
Em língua portuguesa, como correspondente, chamamos o Lager de campo de
concentração, campo da morte ou de matança, campo de extermínio, campo de
triagem. De fato, as denominações são diferentes, pois, segundo estudos de vários
39 Cf. definição do dicionário Langescheidts Taschenwörterbuch Portugiesisch, 2000:907.
76
pesquisadores, elas classificam de forma mais específica o campo, dependendo da
função exercida no lugar. Assim, alguns eram utilizados com o objetivo de trânsito
de prisioneiros no aguardo do transporte para os campos de extermínio, onde
encontrariam a morte. Noutros, cujo objetivo era manter o trabalho escravo, os
prisioneiros encontrariam uma rotina extenuante de atividades forçadas.
Conforme a professora do Departamento de História e dos programas de Pós-
Graduação em História Social e Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas da
Universidade de São Paulo, Doutora Maria Luiza Tucci Carneiro (2005): “Uma
verdadeira rede de campos espalhou-se por toda a Europa ocupada pelos nazistas
durante o período do III Reich”. Ela esclarece que é difícil classificá-los em
categorias, porque a morte estava presente em todos eles, devido às péssimas
condições de vida, incluindo castigos corporais, fome constante, instalações
sanitárias precárias, contato com epidemias, etc. Porém, sugere que “quanto à
terminologia podemos nos referir a campos de concentração, campos de trabalho e
campos de extermínio”. Acrescenta logo após que outros campos foram construídos
ao longo dos anos de domínio pelos nazistas, variando a denominação conforme a
especificidade de cada um: “campos de trânsito, campos para prisioneiros de guerra,
campos para prisioneiros civis, campos para poloneses, campos penais (p. 45,
grifos da autora).
Carneiro prossegue sua explanação sobre os campos, clareando a idéia de
que, inicialmente, eles serviram para intimidar diretamente os judeus e fazer com
que deixassem a Alemanha, facilitando o confisco dos seus bens pelo Estado.
Coloca que os campos com a função de explorar o trabalho dos prisioneiros
intensificaram seu funcionamento após 1942, durante o conflito mundial. Carneiro
especifica o propósito do campo de Ravensbrück
40
, destinado às mulheres, “que
chegou a abrigar cerca de 21.000 internas” (2005:46). A historiadora descreve ainda
a existência de “campos modelos”, organizados a fim de impressionar as
autoridades internacionais pela eficiência, capricho, funcionalidade que
demonstravam, como no caso do campo de concentração de Terezén:
40 Criado em 1939, próximo a Berlim, o campo nazista era destinado a mulheres, onde “115.000
deportadas, de vários países estiveram presas antes de irem trabalhar como escravas, ou antes de
serem exterminadas” (cf. Larousse Cultural, 1999:4925).
77
Terezén funcionou como um campo de concentração “modelo” para fins de
propaganda e demonstração a comissões internacionais, dentre as quais a
Cruz Vermelha. Ali os nazistas criaram um gueto habitado por artistas e
intelectuais judeus, que eram apresentados às autoridades forjando a
verdadeira realidade anti-semita. (CARNEIRO, 2005:46).
O sobrevivente Jorge Semprún, ao comentar que lia sempre que possível no
campo de Buchenwald, esclarece que era mantida uma biblioteca, pois os
nazistas tencionavam fazer com que o local tivesse cunho de reeducação dos
prisioneiros (dos militantes e dos antifascistas), sendo que uma considerável coleção
de livros era mantida ali, inclusive inúmeros exemplares de Mein Kampf
41
, de Adolf
Hitler. “Mas o objetivo de reeducação dos adversários políticos do regime nazista foi
logo abandonado. O campo tornou-se o que não deixou mais de ser: um campo
punitivo, de extermínio pelo trabalho forçado. Extermínio indireto, se preferir, na
medida em que não havia câmaras de gás em Buchenwald”, pondera Semprún em
O morto certo (2005:69).
O escritor espanhol é um dos sobreviventes que chama a atenção do leitor para
a existência de diferenças visíveis entre os campos, porém, é o mesmo que aponta
para a estrutura básica que havia em comum entre eles. Em palavras suas, a partir
da reflexão que faz comparando dois campos, em específico, Buchenwald e
Mauthausen:
Por certo, entre Buchenwald e Mauthausen houve diferenças: em cada um
dos campos nazistas a vida dos deportados foi submetida a circunstâncias
específicas. O essencial do sistema, porém, era idêntico. A organização
dos dias, o ritmo do trabalho, a fome, a falta de sono, as humilhações
eternas, o sadismo dos SS, a loucura dos velhos detidos, as lutas de faca
para controlar parcelas do poder interno: o essencial era idêntico.
(SEMPRÚN, 1995:234)
Semprún principia sua fala, transcrita acima, declarando que há, primeiramente,
diferenças nos campos e, depois, que inegavelmente semelhanças. Em nossa
explanação, faremos um movimento contrário ao da citação, pois, num primeiro
momento, queremos ilustrar aquilo que se repete nos locais de aprisionamento,
para, numa segunda abordagem, ressaltar o que diferenciava um de outro.
41 A obra foi idealizada em 1924, durante o confinamento de Hitler. É considerada como fonte de
informações acerca das idéias que sustentaram o nacional-socialismo. Título em português: Minha
luta.
78
Iniciamos pela chegada dos deportados nos campos. Os testemunhos, com
pequenas variações que não interferem de forma significativa na compreensão do
relato, na maioria das vezes começam por descrever a viagem de trem e a chegada
nos campos de concentração. Chegada acompanhada pela abertura tão esperada
das portas do trem, seguida pela recepção de gritos em alemão e do latido de cães
ferozes. Muitas vezes, à noite, a chegada seria iluminada com potentes holofotes
que ofuscavam a visão e confundiam os novatos que, desorientados, perdiam-se de
seus familiares que eram coagidos a seguir em direções diferentes.
A historiadora Anette Wieviorka, em Auschwitz explicado à minha filha (2000),
resgata informações sobre a chegada de Berthe, amiga sua e deportada para o
campo de Auschwitz com 16 anos, de quem recolheu o testemunho, e explica a
Mathilda, sua filha, e a nós:
Como tinha vivido [Berthe] na Alemanha, país que deixara aos dez anos,
em 1933, depois que Adolf Hitler chegara ao poder, entendeu o que diziam
os gritos: mandavam que se apressassem, que abandonassem suas malas
e pacotes na plataforma onde se agitavam homens de uma magreza
inacreditável, de cabeça raspada e vestidos com roupas listradas como
pijamas. Os alemães haviam anunciado que os que estivessem
cansados podiam ir para o campo de caminhão, e separaram os que
tinham chegado em dois grupos. Os mais cansados, os mais idosos, as
crianças, as mulheres com gravidez adiantada foram colocados nos
caminhões. Os outros, entre eles Berthe, partiram a pé. Depois, homens e
mulheres foram também separados. Cada um em seu campo. No caso de
Berthe, foi o campo de mulheres de Birkenau, a três quilômetros do campo
principal de Auschwitz, ao qual era ligado. (WIEVIORKA, 2000:11-12)
Wieviorka continua falando com base no relato da amiga sobrevivente: conta
que as mulheres eram obrigadas a se despir, apesar do grande constrangimento.
Eram revistadas, inclusive em partes íntimas do corpo e depois passavam por
duchas desinfetantes e tinham os pêlos raspados. Recebiam verdadeiros trapos
para vestirem e eram encaminhadas aos blocos.
O escritor italiano, Primo Levi, dedica, em seu primeiro livro É isto um homem,
um capítulo chamado sugestivamente de “Iniciação”, aos primeiros dias de campo,
marcados essencialmente pelo espanto, pela fome, pela confusão com as diferentes
línguas, pelas perguntas sem resposta. Depois de “caprichosas mudanças de Bloco
79
a Bloco”, enfim, instalaram-no naquele de número 30. É noite e ele não consegue
dormir, tamanha perturbação o acompanha, pensa na sopa do dia seguinte e em
como irá tomá-la, que não dispõe de colher ou de qualquer outro utensílio.
Questiona. Os companheiros exaustos mandam que cale a boca. Na “torre de
Babel”, deu para entender a ordem. Dorme um sono tenso. Acorda quando “o bloco
inteiro estremece”, enquanto os prisioneiros mais experientes se levantam de um
salto, sacodem os cobertores fétidos, vestem-se e saem em disparada para as
latrinas de cheiro nauseante e lavatórios de água não-potável. Toda a pressa
“porque dentro de cinco minutos começa a distribuição do pão”, na verdade, um
“sagrado tijolinho cinzento” (LEVI, 1988:36-40).
Após o café, sob o sol ou abaixo de neve, chamada para a contagem dos
prisioneiros. Depois, em fileiras organizadas, seguem para os locais de trabalho.
Semprún enfatiza que “as corvéias eram muitas, sempre duras, às vezes,
insuportáveis. Inúteis, além de tudo” (2005:43). Campanhas de trabalho realizadas
nas pedreiras, nos jardins no próprio campo, para a manutenção do Lager, nas
costuras de roupas dos soldados SS, na cozinha para o preparo das refeições.
Trabalho forçado e exaustivo no geral, depois de um dia todo, os prisioneiros
retornavam à noite para os barracões, aguardando a sopa rala, antes de desfalecer
por algumas horas, até o toque de despertar na próxima manhã. Jorge Semprún
sintetiza, em O morto certo, o que era a rotina diária de um prisioneiro, desde o café
da manhã até o final dos trabalhos:
Pela manhã, às quatro e meia, antes da chamada e da reunião dos
comandos de trabalho, o Stubendienst, o serviço dos alojamentos, primeiro
escalão da administração interna feita pelos próprios presos, distribui um
copo com uma bebida quente e escura que chamamos de café, para ser
breve e entendido por todos.
Ganhamos, ao mesmo tempo, a ração de pão e margarina do dia, à qual se
acrescenta, de modo irregular, uma fatia de uma espécie de salsicha, de
consistência estranhamente esponjosa, claro, mas prodigiosamente
apetitosa: dá água na boca nessas manhãs.
Depois de um dia de trabalho, a chamada noturna e a volta aos barracões,
o Stubendienst distribui a ração de sopa [...].
Cada um dispõe como quer de sua ração diária.
Alguns a devoram imediatamente. Às vezes, até mesmo em pé, quando
não mais lugar nas mesas dos refeitórios. Não terão mais nada para
comer até a sopa da noite. Doze horas de trabalho forçado, mais duas
horas, em média, de chamada e de transporte.
Seriam quatorze horas com a barriga vazia. (SEMPRÚN, 2005:22)
80
Temos, nas descrições de Levi e Semprún, caracterizações representativas do
campo de concentração nos aspectos referentes à organização dos dias, dos
trabalhos, das precárias condições de alimentação e higiene, à falta de sono.
Lembramos ainda das inúmeras atrocidades cometidas nos campos, o que
aumentava o clima tenso entre os prisioneiros e soldados: os espancamentos, os
enforcamentos públicos, as temidas seleções sob inspeção médica. Atos violentos e
desumanos presentes em todos os campos, ilustramos especialmente as seleções,
no testemunho da sobrevivente Hertha Spier, em biografia intitulada A Sobrevivente
A21646, escrita por Tailor Diniz, sobre como ela e a irmã escaparam à inspeção de
Josef Menguele
42
, na seleção de chegada a Auschwitz:
Hertha e Gisi
43
mantiveram o ritmo da caminhada, acompanhando o fluxo
rumo ao portão de entrada. Viriam a saber, mais tarde, que ali funcionavam
câmaras de gás e fornos crematórios. A seleção dos que deviam morrer ou
não era feita por um jovem médico chamado Josef Menguele, então com
32 anos de idade, conhecido como “anjo da morte”. Durante um ano e
meio, Menguele realizou em Auschwitz o que ele próprio chamava de
“experiências médicas”, utilizando para isso milhares de prisioneiros, a
maioria judeus e ciganos. Cabia a ele a decisão de quem iria morrer ou
não, era ele quem gritava “Esquerda!”, “Direita!”, após examinar
rapidamente o aspecto físico dos seus prisioneiros. (DINIZ, 2002:126).
Descritos como momentos carregados de tensão e expectativa, sofrimento e
medo, as seleções marcaram profundamente as pessoas que foram submetidas a
elas. Wiesel conta do dia em que aconteceu “uma seleção decisiva” e seu pai foi
obrigado a permanecer no campo, pois “tinham anotado o seu número sem que ele
tivesse sido percebido” num outro momento e, naquele dia, ele fora lido juntamente
com muitos outros números de outros prisioneiros. O jovem judeu, então contava
Wiesel com 16 anos, confessa que foi praticamente impossível trabalhar naquele
dia, vagando “como um sonâmbulo o dia inteiro”. Depois do trabalho, corre pelo
campo até o seu barracão, onde, felizmente, a morte havia sido ludibriada uma vez
mais e o pai apareceu, ainda vivo: fora poupado (WIESEL, 2006:81-82).
Primo Levi também comenta das seleções (1988:126-132). Menciona a “grande
seleção de outubro de 1944”. Explica que “os alemães executavam essas tarefas
séria e cuidadosamente”, e que a apreensão se espalhava pelo campo quando
42 Conhecido pelas experiências médicas monstruosas feitas com prisioneiros nos campos de
concentração. Viveu na Argentina, Paraguai e no Brasil sem nunca ter sido preso.
43 Apelido de Gisella Gruber, irmã mais nova de Hertha.
81
ficavam sabendo das selekcja
44
. Todos são trancados no bloco, esperando até que a
comissão chegue. “Passei, como todos, com andar enérgico e elástico, procurando
manter a cabeça erguida, o peito estofado, os músculos enrijecidos e salientes” (p.
130). Escapara a mais uma selekcja, ou seleção.
Tanto a experiência do Lager marcou os prisioneiros que, entre outros
momentos vividos, é para esse espaço e tempo do Lager que os sobreviventes
retornam, em inúmeras situações de suas vidas. Como Semprún nos diz depois de
um pequeno acidente que teve: num lampejo de iluminada certeza, ao invés de ter
caído de um trem de Paris numa pequena estação francesa, havia saído do vagão
direto para o frio e a neve de Buchenwald: “O essencial era que havia pulado, em
meio a uma barulheira de cachorros e de berros dos SS, para a plataforma da
estação de Buchenwald. Era ali que tudo começara. Que tudo sempre recomeçava”
(SEMPRÚN, 1995:214).
“Mesmo o maior horror necessita de uma investigação minuciosa. Por trás da
cortina de arame farpado, nem todos são iguais, campo de concentração não é igual
a campo de concentração. Na realidade, também essa realidade foi diferente para
cada um” (KLÜGER, 2005:77). Recorremos à fala da sobrevivente vienense para
introduzir a discussão sobre alguns aspectos que foram próprios de um campo e não
de outro. Como afirma Klüger, nem as pessoas, por mais que se tentasse anular
suas identidades, eram iguais, nem o eram os campos.
Recuperamos dados importantes da realidade dos campos, em evidência, os
especificamente femininos, ou os que, em seu conjunto, tivessem um espaço
destinado às mulheres, lembrando que, nessa guerra, também o modo como as
mulheres eram tratadas foi inédito. Como destaca a pesquisadora Rochelle Saidel
45
,
que estuda vinte anos sobre a situação das mulheres no Holocausto, em outras
guerras, elas ficavam à espera de seus maridos e filhos recrutados, junto de seus
familiares e outros filhos menores. Na Grande Guerra foram enviadas, com o
resto da família, aos campos de concentração e ao extermínio. Longe de serem
44 “Palavra híbrida, latina e polonesa”. Definição de Levi in: É isto um homem? (1988:126).
45 Cf. Michèlle Canes, da Agência Brasil. Pesquisadora lembra o sofrimento das mulheres no
Holocausto. Disponível em: <http://www.radiobras.gov.br/abrn/brasilagora/materia.phtml?materia=
254255>. Acesso em: 29 out. 2006.
82
poupadas ou amenizado o seu sofrimento, “as judias executavam trabalhos
semelhantes aos feitos pelos homens. Elas carregavam muito peso e eram usadas
como mão-de-obra em fábricas da época”, informa Saidel.
Pelo relato dos sobreviventes, percebemos que grupos familiares inteiros
chegavam aos campos, porém eram imediatamente separados. Geralmente, isso
significava que as mulheres e as crianças ou iam para o lugar do campo que lhe fora
destinado, ou para as câmaras de gás.
Uma vez no Lager feminino, vários poderiam ser os destinos. É o caso da
médica e mãe de cinco filhos, Lilli-Sara
46
Jahn, abandonada pelo marido ariano,
separada dos filhos em 3 de setembro de 1943 e aprisionada na ala feminina do
campo de Breitenau, onde trabalhou até ser enviada para Auschwitz, em 17 de
março de 1944. Em Breitenau, onde ficou praticamente durante sete meses, “Lilli
tinha que trabalhar doze horas diárias” (DOERRY, 2004:169), com pouca comida e
nenhum conforto: “as mulheres dormiam sobre tábuas de madeira, sacos de palha
ou simples esteiras de palha”. O único meio de comunicar-se com os filhos, nesse
meio tempo, órfãos de mãe (e também de pai, uma vez que Ernest, abandonou a
família mestiça para viver com outra médica ariana), era através de cartas,
permitidas uma vez por mês e com supervisão dos oficiais do campo. Lilli, não
suportando a distância e a saudade dos filhos, consegue enviar, clandestinamente, a
maior parte das cartas posteriormente preservadas pelo filho mais velho, Gerhard.
Sempre discreta em relação às péssimas condições do lugar (p. 187), em
algumas menciona brevemente que passa frio, ou que sente fome, como na carta
escrita em 3 de outubro de 1943, da qual transcrevemos o fragmento a seguir:
Em todo caso, estou muito agradecida por tudo que me mandam, porque
aqui recebemos muito pouco para comer, nunca manteiga, nem carne, um
pedacinho de salsicha de duas em duas semanas e, no mais, sopa, e
aos domingos é pior ainda. Às 6h30, recebemos um pedaço de pão seco e
esse terrível café de lavagem, às 11h, ou uma sopa rala ou batatas cozidas
com casca, com molho e picles, e às quatro horas, outra vez um pedaço de
pão seco com salsicha ou uma colher de ricota e junto o café, e depois
nada mais até a manhã seguinte. De modo que fico muito agradecida de
ter algum pão e queijo à noite e, entre as refeições, as suas deliciosas
46 A partir de 17 de agosto de 1938, os judeus foram obrigados a acrescentar a seus nomes: “Sara”,
para as mulheres, e, para os homens, “Israel”, como mais uma maneira de identificação dos judeus.
83
maçãs. Mas pelo amor de Deus não mencionem nada disto em suas
cartas. (LILLI apud DOERRY, 2005:184-185, grifo da autora).
Essas palavras transcritas acima são de Lilli, numa carta clandestina enviada
para os seus filhos, na qual conta-lhes um pouco de sua rotina no campo, porém
sempre com o cuidado para não chocá-los com a violenta situação. Em outra carta à
sua cunhada Lore, Lilli confessa:
Naturalmente, as coisas são muito piores do que relato nas cartas para as
crianças. Alimentação mais que insuficiente, falta de roupas. Não podemos
usar sobretudos, nem casacos, nem luvas, e pela manhã muitas vezes
temos que esperar em pé, no frio, por 45 minutos ou até por uma hora na
estação, pois os trens atrasam muito, e acontece o mesmo à noite. A casa
ainda não tem aquecimento. E o simples fato de estar encarcerada. Você
não tem como imaginar como é. (LILLI apud DOERRY, 2005:208-209).
Não sabemos com exatidão quais as atividades desempenhadas por Lilli, pois
ela não entra em maiores detalhes sobre isso, apenas faz referências superficiais,
como na carta onde escreve que “com tanto trabalho na fábrica, não me sobra
tempo...” (p. 321).
a sobrevivente Hertha Spier, de A sobrevivente A21646, pôde testemunhar
pessoalmente acerca dos trabalhos que empreendia nos campos. No primeiro
campo em que foram prisioneiras, chamado Plaszow, Hertha e sua irmã Gisi “foram
para as oficinas do campo, no setor de tapeçarias, pois haviam demonstrado
serem hábeis nessa atividade quando, ainda no gueto, trabalharam na fábrica de
uniformes e cerziam tecidos roídos pelos ratos” (DINIZ, 2002:103-104). Utilizando-se
de retalhos de pano e couro, Hertha passa a desenvolver mais as habilidades do
ofício de costureira aprendidas com a irmã estilista, confeccionando bonequinhos
com os retalhos. Chama a atenção de soldados que pedem para ela fazer novos
bonecos com uniformes completos para presentearem os filhos, no Natal. Em
Plaszow, as duas irmãs foram poupadas dos trabalhos forçados por se destacarem
nas oficinas de tapeçaria e costura.
O segundo campo para o qual as irmãs foram levadas foi Auschwitz. Ao chegar
ali, foram encaminhadas à praça central, onde ficaram sentadas, expostas ao frio e à
chuva misturada com neve, impedidas de se levantarem, esperando a primeira
84
seleção no novo campo. Após várias horas aguardando, “foram obrigadas a se
despir e entregar a roupa que vestiam” (p. 128). Tiveram, em seguida, as cabeças
raspadas, passaram por jatos desinfetantes e vestiram velhos uniformes sujos.
Depois de mais outra longa espera, “receberam no braço as suas respectivas
tatuagens de identificação” (p. 129), e depois de transitarem, em grupos de cinco,
por valas, “onde jaziam os restos de corpos carbonizados” (p. 130), foram, enfim,
levadas aos alojamentos conjuntos.
Em Auschwitz, a sensação de que o tempo demorava dolorosamente a passar
era maior, pois Hertha e a irmã foram privadas de costurar, atividade que as
mantinha ocupadas e proporcionava-lhes a satisfação de conseguir produzir alguma
coisa criativa e útil. Conta o biógrafo de Hertha que, no campo de Auschwitz,
“chegaram a fazer algum trabalho forçado, carregando pedras para um campo
vizinho, de Birkenau”. Relata também que “de madrugada, elas iam até o refeitório
para buscar o café. Com duas varas de madeira enfiadas na alça de um pesado
panelão, atravessavam o campo até chegarem às barracas” (p. 135).
Depois de algum tempo em Auschwitz, Hertha e sua irmã, mais uma vez são
transferidas para um novo campo, agora de Bergen-Belsen, onde Hertha chama a
atenção para a ociosidade sem escolha a que são submetidas na praça de
chamada. Já no final da guerra, com o campo em estado de abandono por parte dos
nazistas, foi ali para elas mais difícil ainda que nos demais campos, quase
impossível, conseguir alimento ou vestes adequadas para se cobrirem. As
epidemias varriam o local. Gisi, não conseguindo mais sobreviver em meio a tanta
precariedade, morre nos braços de Hertha duas semanas antes da libertação, em 29
de março de 1945.
A pesquisadora, Rochelle Saidel
47
esclarece que, além das horríveis condições
de vida nos campos, além dos trabalhos forçados, “as mulheres ainda eram
abusadas sexualmente”. Muitas delas eram “levadas para uma espécie de bordel
47 Disponível em: <http://www.radiobras.gov.br/abrn/brasilagora/materia.phtml?materia=254255>.
Acesso em: 29 out. 2006.
85
dentro dos campos para satisfazer alguns homens”, possivelmente oficiais SS e
kapos
48
(SAIDEL apud CANES, op. cit.).
Uma vez mais, a informação da pesquisadora é confirmada no relato dos
sobreviventes. Hertha Spier conta que, ao chegar ao campo de Plaszow, o
comandante chamado Amon Goeth, num ritual que se repetia todas as manhãs,
caminhava entre as prisioneiras, escolhendo dentre elas as mais bonitas. Estas
eram obrigadas a acompanhá-lo até a “Casa Branca”, como nomeavam o bordel de
Plaszow, onde aconteciam festas até a madrugada. “As mulheres escolhidas não
voltavam mais para o campo, o que deixava entre as demais a convicção de que
eram eliminadas para não revelarem o que lá acontecia” (DINIZ, 2002:103).
Importante instrumento para conhecer a situação feminina nos campos de
concentração, indicamos a pesquisa da jornalista Erica Fischer, responsável por
resgatar a história amorosa de Elisabeth Wust (Lilly) e Felice Schragenheim, na obra
Aimée & Jaguar (1999). Elisabeth ou Aimée é uma “ariana” casada com um
funcionário do governo nazista, mãe de quatro filhos, mora em Berlim, ano de 1942.
Nesse mesmo ano, Lilly conhece e se apaixona por Felice, de apelido Jaguar, moça
de 21 anos, independente e segura de si, culta, vive na clandestinidade para não ser
presa, afinal, é judia. As duas mulheres envolvem-se, têm um caso amoroso
registrado em poemas, fotografias e cartas trocadas que dura, aproximadamente,
dois anos. Em 21 de agosto de 1944, a história das duas mulheres sofre uma
reviravolta quando Felice é capturada pelos policiais da Gestapo. A jovem é levada
inicialmente para o campo de Theresienstadt e, em 1945, para outro campo
chamado Gross-Rosen. O contato entre elas é mantido apenas pelas cartas, que
chegam por algum tempo e através das quais é possível conhecermos a realidade
em que Felice sucumbe.
Escreve Felice de Theresienstadt sobre as restrições para comunicar-se com
qualquer pessoa de fora: “o que significa que eu posso escrever uma vez a cada
oito semanas, enquanto cada remetente diferente pode me escrever uma vez por
mês”. Nesta correspondência, datada de 14 de setembro de 1944, também
48 Na linguagem própria dos campos, este era o nome dados aos prisioneiros que detinham algum
cargo de autoridade entre os demais. Comenta-se que estes, muitas vezes, eram mais cruéis com os
detentos que os próprios soldados.
86
agradece a Aimée “pelo pão, arroz, e pasta para colocar no pão! (p. 202) e
comenta, veladamente, que sua avó morreu nesse mesmo Lager, em setembro de
1942.
“Felice foi transferida de Theresienstadt para Auschwitz no dia 9 de outubro de
1944” (FISCHER, 1999:222) e, apenas em 5 de janeiro de 1945 é que Aimée recebe
a primeira breve carta de Felice com carimbo de Auschwitz, em que esclarece:
“ainda estou exausta, mas trabalhando ‘feito um mouro’” (p. 232). Na carta seguinte,
datada um dia após o Natal, ela relata: “mais uma vez estou indo sem piolhos
para ser ‘despiolhada’” e que a chegada dos alimentos enviados por Aimée fora tão
retardada pela vigilância do campo que aconteceu de lhe serem entregues
estragados. Agradece pelas luvas e meias, “pois estou sempre fora, e aqui estão
15 graus abaixo de zero” (p. 233).
Fischer comenta em Aimée & Jaguar que existe pouca documentação sobre os
campos femininos, cujo destino fica, e em muito, desconhecido (p. 218). Acrescenta,
então, dados fornecidos por outra sobrevivente que passou pelo campo feminino de
Peterswaldau, no final de 1944. No dia seguinte à chegada no campo, ela e outras
prisioneiras foram levadas “a uma fábrica de munição” onde se fabricavam bombas:
“Mais pesado ainda era o trabalho na seção em que os assim chamados corpos de
bomba eram banhados em substâncias ácidas. Um trabalho nocivo para a saúde...”.
Tinham que transportar caixas com equipamentos muito pesados: “as caixas eram
tão pesadas que muitas vezes chegávamos semidesmaiadas”. Quanto à comida no
campo, suas informações vêm ao encontro de outras semelhantes que lemos: as
refeições por pessoa eram “rações de fome”, um pedaço mínimo de pão preto por
dia, pedacinhos mínimos de margarina e de presunto, queijo ou geléia ou um
“xarope preto de cenouras” (p. 219). Uma alimentação tão precária e insuficiente
como esclarece Fischer, “todas as mulheres estavam tão subnutridas que não
menstruavam” (p. 224). A sobrevivente de Peterswaldau conta que as mulheres
ficavam trancadas no prédio, à noite, e havia um único balde para as necessidades
de vinte mulheres; que foi espancada por uma supervisora ao tentar ajudar uma
colega de trabalho que caiu e torceu o pé; que “as supervisoras se deleitavam em
empurrar as meninas escada abaixo” (p. 221) quando os degraus estavam cobertos
de gelo. A sobrevivente explica que, enquanto esteve no campo, por volta de
87
quatorze meses, “houve três ou quatro transferências de gente para Gross-Rosen” e
acrescenta que as mais fracas e exaustas nunca chegaram lá, pois “todas elas
foram levadas para um campo vazio e executadas” (p. 221).
Entre as sobreviventes que relatam suas passagens pelos campos, temos
novamente o depoimento de Ruth Klüger, enviada a diversos campos de
concentração durante a infância tumultuada. O primeiro que retrata em suas
memórias é o de Theresienstadt que, primeiramente, era considerado um gueto.
Local superlotado e sem liberdade de movimento, ela viveu ali juntamente com 40
ou 50 mil pessoas onde caberiam 3.500, dificilmente era possível encontrar um
espaço mínimo com um pouco de privacidade. Daí que, ao referir-se ao campo de
Theresienstadt, relaciona-o diretamente com “gente”, todos usando a estrela-de-
Davi, sofrendo com a fome, com as epidemias e a falta de espaço. Segundo dados
levantados pela autora, dos quase 140 mil que passaram por lá, destes nem 18 mil
foram libertados ao final da guerra: “Comboios chegavam, comboios partiam, camas
eram desocupadas outra vez” (2005:77).
Theresienstadt “tinha como limite uma muralha fortificada que eu não podia
ultrapassar” e onde se corria o risco de ser deportado a qualquer momento para
outro “campo do terror”. Quando chegou, Klüger foi separada de sua mãe e
colocada em um dos alojamentos para as crianças, o L 414: “é o único dos meus
muitos endereços que jamais esqueci”. Um lugar pequeno que acomodava em seu
interior “trinta meninas da mesma idade em um espaço onde deveriam caber duas
ou três com algum conforto” (p. 80). No domicílio, que era também o lavatório,
depois de um primeiro contato difícil com as outras crianças, pois foi considerada “a
novata, a deslocada, a tolinha, a desajeitada” (p. 81), Klüger integra-se ao grupo e
conta que elas tinham orgulho por morar no alojamento das crianças, onde podiam,
de certa forma, se organizarem como “um braço do movimento juvenil”, aprendendo
sobre o movimento sionista, canções e saudações sionistas, sobre a Palestina (p.
82), apesar de aulas serem proibidas ali: “Professores primários e universitários se
alegravam quando reuniam em torno de si um grupo de crianças às quais podiam
transmitir algo belo sobre a cultura européia” (p. 91). Klüger também menciona a
existência de músicos, artistas famosos, diretores de cinema e teatro, comediantes
no campo (p. 93). Foi em Theresienstadt que descobriu “que velhos textos podem
88
ser colocados a serviço de situações atuais” (p. 94), referindo-se aos textos que
conheceu ali através da intervenção dos professores, ou rabinos, ou ainda das
colegas de alojamento. A passagem pelo campo fez com que, definitivamente, se
sentisse e se assumisse como judia (p. 95).
Klüger viajou, depois dos dezenove ou vinte meses passados em
Theresienstadt (p. 94), para Auschwitz-Birkenau
49
. Em vagões superlotados, com
portas “hermeticamente fechadas, o ar entrava por um pequeno espaço
quadrangular, uma janela” (p. 99), essa foi a viagem mais longa de todas (p. 100).
Ao chegar, empurrada para frente, a menina caiu do vagão muito alto para ela, quis
chorar, porém percebeu que o melhor era não chamar a atenção para si. Quis sentir
o alívio de ver-se livre da “lata de sardinhas” na qual estivera confinada até ali,
queria respirar ar puro, “mas o ar não era puro, cheirava como nenhuma outra coisa
neste mundo” (p. 102). Era o verão de 1944 e Klüger tinha apenas doze anos de
idade.
A então menina conta que a sede e o medo eram constantes em Birkenau:
“ficávamos de pé durante o toque de reunir. Assim fiquei em Birkenau, sentindo sede
e pavor da morte. E era isso, era isso” (p. 109). Num outro trecho de sua
autobiografia, acrescenta: ”As lembranças físicas de Auschwitz são o calor (durante
o toque de reunir), o fedor (a fumaça sobre o campo) e, sobretudo, a sede” (p. 110).
Especificamente em relação à situação das mulheres, Klüger observa, a partir
de uma briga que presenciou envolvendo três mulheres e que culmina, na dedução
da escritora, em “dissolução da convivência entre as pessoas”:
Mulheres velhas em Auschwitz, sua nudez e desamparo, as necessidades
de gente idosa, o pudor roubado. Mulheres velhas nas latrinas comuns,
como seria difícil para elas fazer suas necessidades, ou ao contrário, em
caso de diarréia. Tudo público. O que dizia respeito ao corpo era muito
menos natural para elas do que para os jovens e crianças: sobretudo para
a geração de minha avó que nascera no século XIX, cheia de recato e
pudor. (KLÜGER, 2005:111)
49 “Birkenau foi o campo de extermínio de Auschwitz e constituía-se de vários pequenos campos ou
subdivisões de campos. Em todos eles havia uma rua e galpões de ambos os lados. Mais atrás, o
arame farpado e outro campo similar” (KLÜGER, 2005:104).
89
Klüger também viveu a angústia das seleções, e relata, ao sobreviver a mais
uma delas, que vai transferida para um novo bloco, agora de mulheres prisioneiras
políticas, e ali também o ambiente mostra-se hostil às judias, desprezadas e
inferiorizadas pelas companheiras. Conta que, depois de inúmeros insultos, sua mãe
se descontrola e revida a afronta, sendo que é castigada ficando de joelhos, durante
horas, na parte central do galpão. Segundo Klüger, presenciar a mãe sofrendo uma
ofensa tão dolorosa, foi desconcertante: “Talvez esta seja a cena mais viva, mais
gritante de Birkenau” (p. 125). A escritora conclui sua explanação sobre Auschwitz,
informando: “Em 7 de julho de 1944, os prisioneiros remanescentes do Campo
Familiar de Theresienstadt foram mortos na câmara de gás de Birkenau. Está escrito
nos livros, eu os consultei” (p. 126). Em um dia de verão de junho, as duas foram
transportadas para um novo (seria o último) campo de concentração.
Assim, removidas mais uma vez em um vagão de cargas, foram transferidas
para Christianstadt, descrito pela autora como sendo um lugar idílico e tranqüilo,
com a novidade de os alojamentos oferecerem divisões para grupos de seis a doze
mulheres (p. 132). Ali, as prisioneiras eram supervisionadas pelas chamadas
“mulheres da SS”. Segundo pesquisa de Klüger, a tendência era de que as mulheres
fossem menos violentas que os homens, o que não se confirma em todos os casos,
porém foi o que se deu com ela. Ficando entre as crianças escolhidas do campo, era
levada com as guardas para colher frutas silvestres num bosque próximo, mas a
apelidaram de “Mico Preto”, o que a depreciava e desagradava. “Provavelmente
éramos como animais para elas, mas animais necessários”, ali também as mulheres
estavam condenadas a realizar tarefas extenuantes: roçar o mato na floresta,
desenterrar os troncos de árvores e levar embora, cortar lenha, carregar trilhos. Às
vezes, eram levadas a servir a população civil, ficando horas montando réstias de
cebolas com barbante e as pessoas as olhando “como se fôssemos selvagens” (p.
137). Diz mais adiante, referindo-se à condição feminina de trabalho: “Nós,
mulheres, éramos a força de trabalho pior, mais barata, mais fácil de substituir e, por
conseguinte, mal nutrida” (p. 138). Dessa realidade malograda, Klüger e a mãe
fogem durante a evacuação do campo, numa das conhecidas “marchas da morte”.
50
50 Com a aproximação dos aliados às cidades alemãs, sob seu domínio ou não, os nazistas
organizaram os detentos para evacuarem o lugar, dirigindo-os para outro campo no interior do país.
Em caminhada de vários quilômetros que durava muitas horas, um sem número de prisioneiros
morreram devido à fraqueza, à fome, ao frio.
90
Nunca mais Klüger voltou ao campo de Auschwitz, apesar de ter visitado outros
em que viveu parte de sua infância, e outros ainda que conheceu de visita. A
sobrevivente de Viena apresenta uma reflexão muito pertinente para os leitores de
hoje, acerca desses campos. Convida cada um a repensar o que foi esse espaço do
Lager, superando a tendência moderna de transformá-los em museus ou
monumentos acabados e rígidos. Com tudo limpo, especialmente organizado para
as incursões de turistas, professores, estudantes, os campos-museus perdem a real
essência do que foram e, distanciando-se cada vez mais das novas gerações,
acabam muitas vezes ocultando tanto quanto revelando, conforme opinião da
sobrevivente. “É absurdo querer apresentar os campos, tal qual foram outrora, no
sentido espacial. Entretanto, é quase tão absurdo querer descrevê-los com palavras
como se nada houvesse entre nós e o tempo em que existiram” (KLÜGER, 2005:73).
Finaliza a explanação do que intitulou “Os campos” na sua autobiografia (p. 65-74),
convidando em particular as mulheres leitoras (“e até mesmo alguns leitores”), para
rememorar sua história, revisitar tudo outra vez, encontrar conexões entre as
memórias onde elas existem e estabelecer nós onde forem necessários para uma
evocação conjunta.
Inúmeros valores éticos, morais, religiosos e culturais importantes, cultivados e
conquistados a duras penas pela humanidade, foram ignorados, deturpados, ou
mesmo violentados e exterminados no campo de concentração: o respeito ao outro,
a consideração pela vida e sua preservação, a dignidade do humano, a expressão
plena das pessoas através da linguagem, o culto à crença religiosa pessoal, as
relações familiares e de afeto, mesmo estando a sociedade alemã, e o restante da
Europa, num alto grau de civilidade.
O sobrevivente Elie Wiesel conta que, na chegada ao campo de concentração,
viu sua mãe e irmãs pela última vez, pois, após a primeira seleção, elas são
encaminhadas diretamente para o gás. Escreve ele em A noite: “Em uma fração de
segundo, pude ver minha mãe, minhas irmãs partirem para a direita. [...] E nem
suspeitava de que naquele lugar, naquele instante, estava deixando minha mãe e
Tzipora para sempre” (2006:37). Décadas depois que isso aconteceu, ele escreve,
em Palavras de estrangeiro, um comovente diálogo de uma criança com sua mãe,
91
do qual transcrevemos alguns trechos aqui, para ilustrar o sofrimento inominável
causado pela separação imposta às famílias, ao ingressar nos campos:
- Eu a vi, você sabe.
- ...
- Eu a vi na multidão.
- ...
- Ela se afastava, a multidão, como o mar sombrio se afasta da margem.
- ...
- Eu não sabia.
- O que você não sabia?
- Era a última vez que eu a via.
- Sim, a última vez.
- Você não se virou.
- ...
- Nem mesmo uma vez. [...]
- Nos separaram. O tempo de um grito abafado. De um bater do
coração. Dispersada, separada, nossa família. Quando foi, o embarque
do vagão? A descoberta dos arames farpados? Quando foi a ordem:
“Famílias, fiquem juntas!” Em menos de uma fração de segundo, eu
não era mais o mesmo. Separação total, definitiva: sentimento de
perda, de abandono. Eu fazia procurar você na multidão, eu a
procurava com o olhar para chamá-la, para segui-la, para dizer-lhe o
que um filho deve dizer à sua mãe e que eu não iria mais poder. Desde
então, sufoco. (WIESEL, 1984:44-45)
Marcado pelo sofrimento, esse diálogo, muito mais um monólogo, é construído
com o silêncio e com a mudez de quem foi carregado com a multidão para a morte e
não pôde mais voltar. Muitas das relações de afeto terminaram, no universo do
campo de concentração, sem despedidas, sem a consciência de que estavam se
esvaindo, até sem corpos para comprovar e atestar a separação e morte dos entes
queridos, transformados em cinza nos crematórios. Sobre isso, declara Klüger que
“onde não existe túmulo, o trabalho de luto nunca termina. Ou então fazemos como
os animais e não pranteamos ninguém. Quando digo túmulo não me refiro a um
local fixo em um cemitério, mas sim ao fato de saber que a morte ocorreu, que a
pessoa querida morreu” (KLÜGER, 2005:87).
Além das relações familiares e de amizade dissolvidas abruptamente no Lager,
a palavra também sofre um desvirtuamento nesse lugar. Tanto que quase foi
impossível conceber poesia depois de Auschwitz, como nos diz a frase célebre de
Adorno, embora Paul Celan e Nelly Sachs o tenham desmentido.
92
Dentro do campo, com prisioneiros vindos de vários lugares da Europa,
portanto, com nacionalidades e idiomas diversos, “saber ou não o alemão, era um
divisor de águas” (LEVI, 2004:78)
51
.Ser capaz de entender as ordens gritadas dos
soldados era ter um elemento a mais em prol de sua sobrevivência. Para os que não
sabiam o idioma, ironiza Levi, existia o der Dolmetscher ou o intérprete (p. 80), nome
dado ao chicote, porque a linguagem da violência todos compreendiam e
obedeciam. O alemão do Lager era uma língua própria, uma variante bárbara do
alemão dos textos literários ou dos textos de química, era uma linguagem setorial,
vinculada ao tempo e ao lugar, continua o sobrevivente italiano que tinha um limitado
conhecimento da língua alemã adquirido na época de estudante. Também conforme
a fala de Wiesel, em Palavras de estrangeiro, após uma de suas visitas a Auschwitz:
“Aqui as palavras, mesmo as mais profundas e mais humanas, contam pouco. Como
outrora. Apenas a força contava como outrora no reino dos arames farpados e das
sombras. A única linguagem era a violência” (WIESEL, 1984:23).
O alemão era a língua materna em que foram educadas milhares de vítimas
que pereceram de joelhos diante da morte, e a mesma língua que se mostrou
violenta e capaz de significações humilhantes e inomináveis. Para descrever
posteriormente a realidade do campo, também a linguagem teve que ser esfacelada,
como o estavam de corpo e alma as testemunhas, pois assim adverte Levi: “É óbvia
a observação de que, quando se violenta o homem, também se violenta a
linguagem” (p. 85).
Segundo Edelyn Schweidson
52
, para muitas das vítimas era extremamente
conflituoso conciliar a escrita do seu testemunho na língua materna, sentindo-se
impostores e traidores utilizando-a para expressarem o absurdo que fora vivido.
Associando língua e realidade do Lager como partes de um “corpo dividido”,
Schwiedson cita Paul Celan, conhecido poeta sobrevivente do Holocausto, quando
este afirma que em Auschwitz foi “Onde a palavra que era imortal, caiu” e ainda
“Toda a palavra que você pronuncia/ Você a deve/ à destruição” (CELAN apud
SCHWEIDSON). Assim, o poeta foi em busca da construção-desconstrução de um
51 Primo Levi dedica, em sua obra Os afogados e os sobreviventes (2004:77-90), um capítulo
chamado “Comunicar”, no qual reflete sobre a linguagem utilizada nos campos do Terceiro Reich.
52Cf. O silêncio de um passado petrificado. Disponível em: http://www.geocities.com/hotsprings/villa/
3170/EdelynSchweidson.htm. Acesso em ag. 2006. Artigo publicado originalmente em International
Forum of Psychoanalysis 7, Scandinavian University Press, 1998.
93
verso “mais dilacerado e mais elipticamente dilacerador” (FELMAN citada por
SCHWEIDSON), assim para haver uma aproximação entre a linguagem, o vivido
e o leitor.
3.4 Perdas e ganhos: o que resta de Auschwitz?
O que provavelmente é verdade é que uma experiência como a dos
campos amadurece mais rapidamente as pessoas e lhes ensina lições que
não aprenderiam de outra maneira: os sobreviventes têm a impressão de
haver estado, durante esse período, mais próximos da verdade que
durante todo o resto de suas vidas.
Em face do extremo, de T. Todorov
Apropriando-nos das falas dos sobreviventes e também daqueles que caíram,
escutando as vozes dos segregados e não apenas dos dominantes, temos
conhecimento do destino, coincidente, de milhares de vítimas do Holocausto.
assistimos aos filmes, vimos as fotos, lemos as memórias. O modo como os
judeus foram tratados, com mais brutalidade e abuso que outros prisioneiros, foi
denunciado pelos narradores. sabemos das diversas restrições a que foram
obrigados a se submeterem (confisco dos bens, estabelecimentos fechados, uso da
identificação com a Estrela de Davi costurada à roupa, proibição do acesso a
escolas e universidades, limitação da circulação em espaços públicos, o
confinamento e a miséria do gueto, etc.); da extradição de seus países de origem e
transportes em vagões de carga animal até os campos de aprisionamento. Sabemos
também que, chegando aos campos, homens, mulheres, crianças e idosos eram
separados, famílias inteiramente desmanteladas e muitos jamais se viram
novamente.
Temos consciência de que os prisioneiros eram levados aos berros e em meio
ao latido de cães ferozes para as câmaras, que podiam ser chuveiros ou gás letal.
Os prisioneiros tinham seus cabelos raspados, eram tatuados com o número que
passaria a ser sua identidade dentro do Lager, ganhavam farrapos com os quais
teriam de abrigar o corpo de frios congelantes. Também temos ciência de que iam
para galpões onde passariam a “morar” e a disputar os beliches de madeira e as
sopas ralas com pessoas desconhecidas e que falavam diferentes idiomas, o que
94
impossibilitaria ou dificultaria ao máximo a comunicação. Sabemos, por fim, das
inúmeras vezes em que perderam pessoas queridas para as epidemias, para a
exaustão, para a fome, para as câmaras de gás, para as armas dos soldados.
Como resultado dessa vivência sem par, permanecem cicatrizes de todos os
tipos nas vítimas do Holocausto. As feridas persistirão junto dessas pessoas até o
momento em que, percorrido o trajeto de vida que lhes foi possível, se encontrem,
enfim, com a morte inevitável. Porém, no tempo que durarem suas vidas, elas terão
sempre a presença constante dessas marcas da experiência, parte indissociável da
própria identidade dos sobreviventes:
Tenho muitas marcas. Tenho cicatrizes de todo o tipo. Minha alma está
cheia delas. Meu corpo também. Minha memória, meu pensamento, meu
sono, meus sonhos, meus dias e minhas noites. (LACKS e SANDER,
2000:111)
Marcas no rosto, no corpo, na mente, no coração e na alma, que delineiam um
cidadão outro, diferente e estranho daquele que lutou a guerra nos guetos e nos
campos de extermínio, por vezes, sem reconciliação possível com a antiga imagem
de si; um novo e sofrido rosto no espelho:
Um dia pude me levantar, depois de reunir todas as minhas forças. Queria
me ver no espelho pendurado na parede em frente. Não via meu rosto
desde o gueto.
Do fundo do espelho, um cadáver me contemplava.
Seu olhar nos meus olhos não me deixa mais. (WIESEL, 2006:119)
Como nos esclarece, uma vez mais, o psicanalista Nestor A. Braunstein, o
espelho deixou de funcionar para quem é sobrevivente. Ele observa o sujeito cujo
rosto tem refletido diante de si, mas não se reconhece na imagem que vê, é outro
que está ali, tomou um rosto e um lugar que foram seus. “O trauma deixa
cicatrizes inapagáveis”, explica Braunstein, constituindo “sua nova e irrenunciável
identidade” (op. cit.), uma identidade cindida e metafórica.
A cisão entre aquele que se foi e o que restou de si ao ser liberto do Lager não
pode mais ser contornada. Há, por parte dos sobreviventes, o esforço de emergir
dos escombros, buscando recomeçar e reconstruir uma vida alternativa, que à
95
antiga não é possível voltar, e a recente é inconcebível. Para narrar esse esforço de
re-encontro de si com uma possível nova vida, o escritor recorre ao uso lingüístico
da metáfora: a imagem da vida em ruínas que necessita ser refeita, reerguida tal
qual uma construção bombardeada e desfigurada. No depoimento de Klüger, os
sobreviventes estavam “começando algo novo, demolindo velhas estruturas sem
muitas vezes ter o que colocar no lugar” e, na verdade, “os velhos edifícios” não
estavam vazios nem prontos para serem preenchidos com o vigor de novo contexto,
mas sim, “estavam carregados de memórias” (2005:191).
O impossível reencontro consigo, o retorno a casa que muitas vezes não mais
ocorre, a volta para os seus e o encontro impraticável com seus mortos, são
reflexões importantes elaboradas por diversas vítimas do Lager que não
sucumbiram ali e viveram a experiência da volta. Para Primo Levi:
Naquele momento, quando voltávamos a nos sentir homens, ou seja,
responsáveis, retornavam as angústias dos homens: a angústia da família,
dispersa ou perdida: da dor universal ao redor; do próprio cansaço, que
parecia definitivo, não mais remediável; da vida a ser recomeçada, em
meio às ruínas, muitas vezes só. (LEVI, 2004:61)
Impossíveis de serem quantificadas ou medidas com exatidão, essas cicatrizes
e suas conseqüências não podem ser simplesmente negociadas em positivas ou
negativas, em perdas e ganhos, em débito ou saldo. Contudo, os relatos apontam
que, de certa forma, foi possível estabelecer aprendizados pessoais importantes a
partir do Holocausto.
O primeiro grande aprendizado, sintetizado pela fala de Hillesum, diz respeito à
teimosa perseverança das vítimas em meio à miséria e sofrimento, à violência e à
desumanização. Esta mulher jovem, que não sobreviveu a Auschwitz onde morreu
em 1943, registra em seu diário o apelo que mobilizará e fortificará muitos judeus no
movimento contrário ao Holocausto: “Nunca desista, nunca fuja, agüente tudo, [...]
nunca, nunca desista” (1981:133).
A persistência, a resistência, a fortaleza das vítimas na luta pela sobrevivência
é traduzida em um metáfora belíssima do pintor francês André Elbaz, também
sobrevivente, que retratou o Holocausto em suas obras:
96
[...] para além dos assassinatos, dos massacres e das ruínas, debaixo do
amontoado de pedras ou da estratificação dos corpos, aqueles que
insistiram em destruir as raízes, embora tenham conseguido queimar e
dizimar milhares de florestas, massacrar horrendamente milhões de
arbustos e cinco milhões de árvores, não foram capazes de arrancar as
raízes. (ELBAZ apud ZAMPIERI)
53
Apesar de todo o movimento ferrenho contrário à sua sobrevivência, o cerne do
humano, seu ser e âmago permanece, resiste teimosa e bravamente presente nas
denúncias e testemunhos, reinante na arte que, “em outras palavras, pode
assumir esta tarefa, a de revelar a raiz indestrutível do humano, aquilo que resiste
ao peso desmesurado da violência” (ZAMPIERI, 2004).
Não permitir a dominação da vontade, nem esmorecer diante do infortúnio, nem
deixar alquebrar a esperança, jamais desistir, prosseguir resistindo, continuar
teimando. Certamente essa postura de resistência fez com que muitas pessoas
persistissem e sobrevivessem, ou, no mínimo, tivessem uma morte digna, apesar de
toda a situação insuportável de animalização das vítimas. O sobrevivente Michael
Stivelman, autor de A marcha (1998), questiona-se: “O que lhes dava força, o que os
fazia continuar?” (p. 144), e em seguida responde, indicando que a oposição
obstinada foi o caminho escolhido por muitos: “Não, com certeza, a esperança
consciente e lógica num futuro melhor, pois não acreditávamos em mais nada;
apenas uma teimosa recusa intuitiva de obedecer à ordem universal ‘morra!’, e um
fortalecimento que parecia advindo do próprio sofrimento” (id., ibid.). Reforçando a
opinião de Stivelman, Semprún fala da sua reação ao insano desejo de morte que
percebe na conduta dos soldados nazistas: “Em compensação, o olhar do SS,
carregado de ódio inquieto, assassino, remetia-me à vida. Ao louco desejo de durar,
de sobreviver: de lhe sobreviver. À vontade ferrenha de conseguir” (1995:33).
No fortalecimento dessa idéia de não ceder ao algoz e a sua tentativa de
desumanização, mas procurar manter-se firme, protegendo-se como pôde da
53 “[...] al di degli assassinii, dei massacri e delle rovine, sotto l´ammasso di pietre o la
stratificazione dei corpi, coloro che si accanirono sulle radici se arrivarono a bruciare e a disboscare
migliaia di foreste, a massacrare orrendamente milioni di arbusti e cinque milioni di alberi, non sono
stati capaci di strappare le radici”.Cf. ZAMPIERI, Stefano. Scrivere, testimoniare. (Excertos de
ZAMPIERI, Stefano. In:___. Il flauto osso: Lager e letteratura. Firenze: La Giuntina, 1996).
Disponível em: http://members.tripod.com/littera/scrivere.htm. Acesso em: 16 set. 2006.
97
aniquilação e morte arquitetada pelo outro, a sobrevivente Janina Bauman fala do
que percebeu enquanto vivenciou a perseguição nazista no gueto de Varsóvia:
“Durante a guerra aprendi uma verdade que geralmente preferimos não enunciar:
que a coisa mais brutal da crueldade é que ela desumaniza as vítimas antes de
destruí-las. E que a luta mais árdua de todas é permanecer humano em condições
desumanas” (2005:8).
Preservar-se humano. Superar-se. Superar a própria morte. Alguns
sobreviventes declaram que, após passarem por inúmeras circunstâncias
assinaladas pela presença da morte, nem tinham receio dela. Sentiam-se imunes
aos seus efeitos, por tê-la vivenciado tão de perto nos assassinatos de pais, irmãos,
bebês, companheiros de bloco, de campo... Nas palavras de Wiesel (2006:68): “Mas
não temíamos mais a morte; em todo caso, não aquela morte”, referindo-se às
explosões de bombas perto do campo, em Buna. O escritor também explica que
“Desde a morte de meu pai, nada mais me atingia” (p. 117) e que “A morte me
envolvia até sufocar. Estava colada em mim. Eu sentia que poderia tocá-la” (p. 92).
Transpassar a morte, conseguir subjugá-la, tê-la como companheira assídua e
fraterna em todos os momentos, seja no clarão insistente da chaminé do crematório
(p. 21) ou no suspiro derradeiro de um antigo professor seu chamado Maurice
Halbwachs (p. 33), para Semprún a morte significou elo de comunhão, condição
inevitável que propiciou a identificação de uns para com os outros, elemento de
ligação:
Esta era a substância de nossa fraternidade, chave de nosso destino, sinal
de pertencer à comunidade dos vivos. Vivíamos juntos essa experiência da
morte, essa compaixão. Nosso ser era definido por isso: estar com o outro
na morte que se aproximava. Ou melhor, que amadurecia dentro de nós,
que nos invadia como um mal luminoso, como uma luz aguda que nos
devoraria. Nós todos que íamos morrer havíamos escolhido a fraternidade
dessa morte por gosto de liberdade. (SEMPRÚN, 1995:32-33)
A sobrevivente Ruth Klüger sugere driblar a morte, enganá-la, escapar-lhe:
“Quando se espera muito, o que vem é a morte. É preciso aprender a fugir”
(2005:23). A escritora de Viena alerta também sobre o valor de aprofundar esse
conhecimento acerca da morte: “É importante saber como e quando as coisas
98
acontecem a alguém, e não só o que aconteceu. Até mesmo a morte.
Principalmente esta, principalmente as mortes; como existem tantas, é importante
saber de que morte se morre” (p. 34).
É ainda Klüger que chama a atenção para outra metáfora que passou a fazer
parte de sua vida após a guerra. Conta que, ao fugirem, ela e a mãe, do campo de
Christianstadt, tiveram de desfazer-se dos velhos cobertores que traziam consigo,
apesar do frio intenso e de correrem o risco de congelarem no inverno europeu.
Comenta que, devido à ajuda de pessoas não “tão raivosas” (p. 158), resistiram ao
clima inóspito e não pereceram ao frio. A relação entre decisões dolorosas e difíceis
e os “cobertores” a serem abandonados no meio da jornada lhe é muito particular e
relevante:
Essa idéia de livrar-se dos cobertores tornou-se para mim desde então
uma metáfora para decisões difíceis de tomar mas necessárias, decisões
em que se sacrifica algo de grande valor na esperança de que os deuses
misericordiosos não desdenhem do sacrifício. (KLÜGER, 2005:158)
O filósofo, teórico da literatura, historiador da cultura, antropólogo búlgaro
Tzvetan Todorov, sentindo-se inquieto após duas visitas que fez ao que sobrou do
gueto de Varsóvia, decide-se por “ler alguns livros que contassem histórias
polonesas” (1995:13) e conhecer melhor sobre as insurreições acontecidas ali, em
1944 e em 1945. De um estudo que aborda vários elementos importantes, Todorov
traz uma constatação vital para a explicação da sobrevivência de várias vítimas da
guerra, fora e dentro dos campos –, gestos de solidariedade entre eles: “Não é
verdade que a vida no campo de concentração obedeça unicamente à lei da selva:
as regras de sociabilidade não são mais as mesmas, mas nem por isso deixam de
existir”. Cita a fala de uma sobrevivente de Auschwitz que esclarece: “Os dez
mandamentos não tinham desaparecido, mas eram reinterpretados”
(PAWELCZYNSKA apud TODOROV, p. 45).
À lógica desumana, funcional e extremamente racional opõem-se expressões
de amizade, afeto, consideração, solidariedade, que são mencionadas pelas vítimas.
Em exemplos menos abundantes do que as atrocidades, é verdade, mas elas
existem. Enquanto se desenrolava a guerra, Anne Frank, no seu clássico diário,
99
escreve em várias passagens do auxílio prestado por conhecidos de seu pai, Otto
Frank, para manter a família num esconderijo durante três anos. Resgatamos uma
delas, que nos parece especialmente significativa, relativa ao alcance de livros para
os prisioneiros, a fim de satisfazer-lhes as necessidades intelectuais: “De vez em
quando o Sr. Kleiman traz uns livros escritos para garotas da minha idade. Estou
entusiasmada com a série Joop ter Heul. Gostei demais de todos os livros de Cissy
van Marxveldt. li quatro vezes O verão mais louco, e as situações ridículas ainda
me fazem rir” (FRANK, 2005:47). Além dos livros que a família recebe, Anne registra
em sua “amiga Kitty” (p. 17), na verdade o seu diário, todas as pequenas alegrias e
amarguras que vivencia, confidenciando-lhe: “Espero poder contar tudo a você,
como nunca pude contar a ninguém, e espero que você seja uma grande fonte de
conforto e ajuda” (p. 11). A jovem de treze anos relata que, além das leituras das
obras que chegam até ela, mais do que as anotações quase diárias em Kitty, cabe-
lhe aproveitar o tempo no “anexo secreto” (p. 34) estudando e fazendo lições que o
pai ministra, exigindo de Anne dedicação de aluna comprometida com seu próprio
aprendizado. Conta Anne em 14 de outubro de 1942:
Estou terrivelmente ocupada. Ontem comecei a traduzir um capítulo de La
Belle nivernaise e a escrever palavras do vocabulário. Em seguida trabalhei
num problema medonho de matemática e traduzi três páginas de gramática
francesa. Hoje é gramática francesa e história. [...] Também estou
estudando taquigrafia, coisa de que eu gosto.
Além disso, li um bocado das peças de Körner. Gosto do modo como ele
escreve. Por exemplo, Hedwig, Os primos de Bremen, A governanta, O
dominó verde, etc. (FRANK, 2005:65-66)
A sobrevivente Janina Bauman reforça a fala de Frank ao relatar que, no gueto
de Varsóvia, em meio à privação generalizada de tudo liberdade, comida,
informação, trabalho – a preocupação das famílias em garantir a instrução dos filhos,
mesmo em situação crítica, é proeminente. Janina Bauman escreve que havia
professores dispostos a transmitir o que sabiam aos inúmeros adolescentes reclusos
no gueto. “Havia muitos professores bons aprisionados no gueto, assim como um
monte de crianças desejando aprender”, conta Bauman, e explica: “Descobri
algumas de minhas antigas colegas morando agora perto de mim, fizemos contato
com alguns professores [...] e dentro de alguns dias havíamos começado o
terceiro ano do curso secundário” (2005:51).
100
Então, como mostram os relatos de Frank, Bauman e Semprún, outro
aprendizado importante é relativo à demonstração de amizade e consideração para
com o outro, até mesmo na degradação do campo, marcado pela concorrência e
pela lei do egoísmo que deveria impelir cada um a importar-se e a cuidar apenas de
si mesmo. Temos, em um fato rememorado por Semprún (2005:44-48), um exemplo
de solidariedade, possível nos momentos mais tenebrosos. Conta o sobrevivente
que, numa das jornadas de trabalhos forçados, um soldado nazista indicou-lhe uma
pedra enorme que deveria carregar vários metros e depois depositá-la num monte,
para mais tarde ser trazida de volta por outro grupo de prisioneiros. Deu alguns
passos e percebeu que essa função estava além de suas forças. Um “jovem russo
de olhos claros, com ombros largos, muito forte” (p. 45) e companheiro de corvéia,
aproveitando-se da desatenção do soldado SS, dirige-se a Semprún no idioma do
qual conhece apenas algumas palavras isoladas. Entende, por meio dos gestos do
outro e de seu precário vocabulário, que o homem lhe oferece uma permuta: trocar a
pedra menor que carrega pela do espanhol. que o companheiro russo é bem
maior e mais forte que Semprún, eles mudam entre si os carregamentos; o escritor
espanhol sente-se eternamente grato ao desconhecido que lhe oferta ajuda e reflete:
Gesto inaudito, totalmente gratuito. Ele não me conhecia, nunca mais me
veria, não podia esperar nada de mim. Membros anônimos, impotentes da
plebe do campo, estávamos em um mesmo plano de igualdade desprovida
de poder. Gesto de pura bondade, portanto, quase sobrenatural. Ou seja,
exemplar da radical liberdade de fazer o bem, inerente à natureza humana.
(SEMPRÚN, 2005:46)
Em Palavras de estrangeiro (1984:60), Wiesel relaciona diversas ações de
companheiros do campo, ações significativas por sua simplicidade e gratuidade,
pelo seu caráter de fraternidade no sofrimento. Conta do homem que entoava,
durante a noite, canções do seu país aos “muçulmanos” selecionados; do anão
mudo que oferecia, todas as manhãs, um pedaço do seu pão a um companheiro
mais fraco e faminto do que ele próprio; de um pai que se sacrificou para salvar o
filho de um amigo; de um adolescente que aceitou ser chicoteado no lugar de um
velho, por demais debilitado. Na seqüência, Wiesel relata a reflexão de um colega
seu, professor e também sobrevivente: “Mas, mesmo impondo sua Lei, o inimigo não
obteve vitória definitiva. Em seu universo de horror frio, de humilhação total e abjeta,
101
a solidariedade humana permanecia possível. E a compaixão. E a bondade. E a
abnegação de si mesmo” (p. 60).
Para finalizar este bloco de considerações, gostaríamos de pontuar um
episódio que Janina Bauman registrou em seu diário que, como mencionamos,
levou 40 anos para ser escrito. Bauman comenta um fato ocorrido no final da guerra
e que apontamos como um aspecto para reflexão, muito mais que um aprendizado,
propriamente dito. Conta que, ao dirigir-se até o galpão a pedido de sua protetora,
Sra. Pietrzyk, para levar comida a um refugiado que fora acolhido por ela, depara-se
com um jovem soldado alemão. A menina judia chega ali e observa o rapaz,
amedrontado e faminto, agora no papel invertido de perseguido dos aliados.
Bauman constata:
Vi o rosto pálido do alemão, mais um garoto que um homem, olhando para
mim, aterrorizado. Tomou de minhas mãos a tigela quente e devorou a
comida com uma ânsia indescritível. Ainda tremia de fome e medo. Por um
longo tempo eu o observei sem emoção. Não senti nem pena, nem ódio,
nem prazer. (BAUMAN, 2005:224)
Esse fato que a autora pormenoriza nas suas memórias evidencia e lança-nos
um novo questionamento: quem algoz? Quem subjugado? No momento final da
guerra, em que Bauman encontra o jovem soldado alemão não mais na condição de
perseguidor, mas na de procurado como criminoso, percebemos quanto os papéis e
funções sociais atribuídos aos indivíduos podem sofrer drásticas modificações e
mesmo inversões.
Considerando-se essa possibilidade de “troca de papéis”, projetam-se outros
novos questionamentos que somam ao primeiro. Essas indagações,
contextualizadas em nossa época, poderiam ser traduzidas: quem viria a ser o novo
perseguido no século XXI? Quem poderia ser o indesejado, o inadequado, com
espaço negado em nossa configuração sócio-cultural? Quais seriam as próximas
vítimas: os pobres, as mulheres, os negros, os idosos, as crianças? Quem
potencialmente poderia vir a constituir-se dominante?
102
4 HOLOCAUSTO: MAIS DO QUE UM QUADRO NA PAREDE
Ao começarmos este estudo sobre o Holocausto, era possível identificar a
nossa postura em relação ao assunto, a exemplo do posicionamento de Zygmunt
Bauman, no prefácio de sua obra, Modernidade e Holocausto (1998:9-17). Ali o
sociólogo comenta que, antes de refletir profundamente a respeito do Holocausto, o
que sucedeu mais precisamente com a publicação do livro de sua esposa
sobrevivente da Guerra, Janina Bauman, considerava o Holocausto como se ele
constituísse um quadro emoldurado na parede da História, diferente do restante da
decoração, no entanto, integrado ao todo. Dito de outra maneira, ele e outros
estudiosos entendiam o Holocausto como um fato já concluído, resolvido, dissecado,
apropriado para a contemplação e vaga lembrança. Um acontecimento que merecia
respeito e rememoração, com um dia dedicado especialmente à celebração da
memória das vítimas, e só. Estaria cumprida a tarefa de preservação do Holocausto
como uma paisagem do século XX, mas ainda um quadro na parede.
Mergulhando na leitura de Inverno na manhã (2005), o sociólogo de origem
polonesa percebeu que tinha pouco conhecimento sobre o Holocausto, que havia
pensado precariamente sobre ele, que aquilo que dominava mostrava ser superficial
e não elucidava a moldura que limitava a figura, menos ainda a própria figura,
precisando ser primeiro decifrado em códigos bem próprios para possibilitar uma
verdadeira compreensão. A partir da força propulsora encontrada no texto de Janina,
Bauman vasculhou em inúmeros outros textos teóricos e de sobreviventes e chegou
103
à máxima: “O Holocausto era uma janela, mais do que um quadro na parede”
(BAUMAN, 1998:10).
Uma janela na parede que permite o contato real entre o ambiente interno e o
que se percebe vivo fora. Possibilidade de interação do hoje com o Holocausto
acontecido várias décadas. Uma paisagem que se modifica com os ares, as
chuvas, as estações, com o tempo que passa. Assim, o que se vislumbra na
abertura não é estanque, nem pode ficar alheio às mudanças certas na paisagem
aquele que as observa.
A exemplo de Zygmunt Bauman, também nós percebemos a imperativa
necessidade de abrir a janela, enxergar o que está presente fora dela, e pensar com
muito cuidado sobre as alterações que visualizamos na paisagem da História. Neste
bloco, abordamos dois elementos que se desenham nitidamente neste cenário e que
precisam ser definitivamente traçados para que esta pintura seja mais completa e
clara, portanto de propriedade e entendimento ao alcance de todos. O primeiro item
do qual nos aproximamos procura elucidar como fica a Educação das gerações pós-
Holocausto; o segundo item procura respostas ao questionamento: qual é a nossa
herança da Shoah?
4.1 A educação depois de Auschwitz
Um dos fortes elementos na formação da civilização é a transmissão de
conhecimento entre os seres humanos, que decorre, em grande parte, do
relato de experiências de vida exemplares.
Luis Gustavo Guilhermano
54
Preocupo-me com a nova geração. Espero que o meu passado não seja o
futuro das gerações que estão por vir.
Laks e Sender
55
54 Posfácio de A sobrevivente A 21646, 2002:177.
55 Como esclarece Aleksander Henryk Laks, radicado muitos anos no Brasil, o livro O
sobrevivente foi escrito com Tova Sender, psicóloga e educadora (grifo do autor na capa da obra).
104
As aquisições de conhecimento acerca da natureza, dos fenômenos científicos,
de nosso próprio funcionamento psíquico e fisiológico, de nossa organização social,
de aparatos tecnológicos complexos e sofisticados que modificam nossas vidas,
chegam, em nosso tempo, a um patamar nunca visto anteriormente. Com os
conhecimentos que foram sendo acumulados e aperfeiçoados historicamente pela
humanidade, atingimos possibilidades de vida que ainda não haviam sido estimadas.
A modernidade traz consigo perspectivas inéditas de sobrevivência, resultantes do
esforço humano em empreender tentativas que envolvem acertos e erros, com
pesquisa e leitura, mas também é uma época marcada pelas catástrofes, pelas
crises, pela dificuldade de convivência entre as pessoas, pela intensa manifestação
de intolerância e desconsideração pela vida e pelo outro, numa demonstração de
inaptidão no uso de ferramentas cognitivas que deveriam auxiliar a preservar a vida.
foi esclarecido como Auschwitz é resultado direto da tecnologia, com efeitos
cada vez mais fortalecidos pelo emprego pernicioso de seus mecanismos modernos.
Portanto, o conhecimento utilizado para legitimar e potencializar o Mal. Cabe, então,
o questionamento: como deve ser conduzido o conhecimento pelas próximas
gerações no sentido de não permitir a repetição das atrocidades de Auschwitz e de
outras crueldades ocorridas e que continuam acontecendo? Ou então: que papel
a educação pode exercer no sentido de a humanidade usufruir positiva e
coletivamente das vantagens que a tecnologia pode oferecer?
No sentido de responder a esse questionamento, valemo-nos de algumas
declarações de Adorno, filósofo e diretor do Instituto de Pesquisas Sociais da
Universidade Johann Wolfgang Goethe. O professor pauta seu estudo a partir de
uma premissa: a de que Auschwitz não se repita, pois toda a barbárie se opõe à
educação, apesar de o barbarismo estar no princípio da civilização. Defende que é
necessário ter clareza quanto aos mecanismos capazes de tornar as pessoas
genocidas, esclarecê-las e à sociedade em geral sobre esses mecanismos, para
despertar a consciência de todos e impedir que funcionem novamente.
Adorno indica que a Educação é a maneira pela qual se podem conhecer os
dispositivos que possibilitam a barbárie e ajudam a evitá-la. Entende educação como
postura de auto-reflexão crítica que deve ser estimulada desde a infância, sobretudo
105
na primeira (1995:108), com a autonomia como força para a reflexão, para a
autodeterminação, para gerir e assumir as próprias decisões e atitudes sem se
deixar influenciar pela coletividade massiva. Para isso, esclarece que a sociedade
deve ocupar-se dos impactos produzidos pelos meios de comunicação de massa
sobre um “estado de consciência primitivo e não liberal”, sugerindo a formação de
“grupos e colunas móveis de educação” (1995:112) como maneiras de aprendizado
coletivo, apesar de toda a resistência social que, segundo ele, certamente haverá.
Propõe, ainda, a necessidade de enfrentarmos o problema da coletivização (p. 113)
e da civilização que amarra e sufoca as pessoas, tornando-as sádicas, incapazes de
amar e cegas na identificação com o coletivo.
O filósofo atenta para o fato de que, num mundo que prima pela técnica e
produz “pessoas tecnológicas” (1995:118), nem mesmo o Cristianismo foi capaz de
acabar com a frieza que permeia os homens porque não aboliu “a ordem social que
produz e reproduz a frieza” (p. 120). E que, por isso, devemos investir numa
“educação que não mais premie a dor e a capacidade de suportá-la” (p. 114). Em
outras palavras, não devemos reprimir a angústia resultante do contexto moderno,
mas encará-la reflexivamente e elaborá-la, como há muito orienta a filosofia.
Adorno finaliza seu raciocínio apontando um item como urgente para análise: o
sentimento de nacionalismo agressivo. Afirma que este foi um fator importante para
o surgimento do genocídio, bem como pode estar na base de um ressurgimento da
perseguição e eliminação dos judeus e de outros povos: “Amanhã pode ser a vez de
outro grupo que não seja o dos judeus; o dos velhos, por exemplo, que ainda foram
poupados - em parte - no Terceiro Reich, ou os intelectuais, ou simplesmente os
grupos dissidentes. O clima e saliento esse ponto que mais favorece a repetição
de Auschwitz é o re-despertar do nacionalismo” (1995:122). E o que é urgentemente
relevante, como Adorno assinalou no início do seu texto e enfatiza novamente no
final, é a idéia primeira de que Auschwitz não se repita (grifo nosso).
A professora Shoshana Felman também reflete sobre a educação e sua ligação
com situações traumáticas como o Holocausto, por sua vez, relacionando a
educação à crise que se instala no ser humano por ocasião do questionamento de
suas certezas. Interrogações que surgem nos momentos trágicos e sinistros.
106
Acreditando que possibilidade de aprendermos com e por meio de crises
vivenciadas, ela aplicou a teoria à prática com um grupo de alunos seus, obtendo
resultados inesperados inclusive para si mesma. E apresenta algumas
considerações importantes quanto à conexão possível entre crise, aprendizagem e o
papel pedagógico do professor-orientador nesse processo.
Partindo de leituras significativas sobre testemunhos de crise de escritores
como Kafka, Camus, Dostoievski, Freud, Mallarmé, Celan; depois assistindo com
sua classe de alunos a documentários e a entrevistas de sobreviventes do
Holocausto, percebeu que algo inédito estava ocorrendo: seus alunos estavam,
literalmente, em crise, com o trabalho que fora conduzido, tendo, eles mesmos,
vivenciado momentos de angústia, de incompreensão, de deslocamento e desajuste
semelhante aos experimentados pelos escritores e sobreviventes (esse aspecto do
trauma da sobrevivência abordamos com maior especificidade no capítulo 2).
Felman esclarece que: “os estudantes emergiam de alguma forma mudados do
encontro com cada um dos textos” (2000:51); e acrescenta: “Parece-me que esta
dimensão acrescida do real [vídeos] foi, neste momento, igualmente relevante e
necessária para o insight que estávamos adquirindo em relação ao testemunho” (p.
55, grifos da autora).
E Felman constatou que, justamente a partir dessa situação de incômodo
produzida pela experiência didática das leituras e filmes, foi possível aos alunos
compreenderem em profundidade a situação extrema do Holocausto e de outros
fatos devastadores nas vidas das pessoas destacadas nos estudos, culminando no
aprendizado dos seus alunos, bem como na correspondência aos objetivos que ela
se propôs e à turma. Felman chama a atenção para o aspecto de vivermos um
momento histórico marcado por crises intensas, e é justamente delas que podemos
tirar uma “lição genérica” que auxilia na construção de conhecimento:
Aventuraria-me a propor, hoje, com a lição acidental, mas ainda assim,
genérica, que aprendi com a classe, que ensinar, em si mesmo, enquanto
tal, ocorre apenas através de uma crise: se o ensinar não se depara com
uma espécie de crise, se ele não encontra nem a vulnerabilidade nem a
explosividade de uma dimensão crítica e imprevisível (explícita ou
implícita), ele provavelmente não ensinou verdadeiramente: ele talvez
tenha transmitido alguns fatos, transmitido algumas informações e alguns
documentos, com os quais o estudante ou o público os receptores
possam, por exemplo fazer exatamente o que as pessoas fizeram com a
107
informação durante o Holocausto, que deixavam fluir, mas que ninguém
podia reconhecer, e que ninguém podia, portanto, verdadeiramente,
aprender ou pôr em prática. (FELMAN, 2000:67, grifos da autora)
Segundo Felman, é condição própria da vida o aprendizado constante do
homem. E cabe ao professor promover momentos de crise e reflexão sobre ela para
que o ensinar e o aprender realmente aconteçam: “penso, portanto, que meu
trabalho de professora, por mais paradoxal que possa soar, foi de fato aquele de
criar o estado de crise mais agudo que a classe pudesse tolerar, sem ‘enlouquecer
os estudantes’, sem comprometer os vínculos dos estudantes” (p. 67, grifos da
autora).
Conforme apontam os autores aprofundados nesse ponto, a Educação deve
orientar-se a partir das vivências históricas, traumáticas ou não, para reformular-se,
constituir, realmente, ferramenta de reflexão, autocrítica, libertação para esta e para
as próximas gerações. A Educação deve ser instância privilegiada para a
preocupação com o humano e o social, o particular e o coletivo, o respeito e a
tolerância, no sentido de garantir a todos uma vida digna e plena neste nosso tempo
e no vindouro.
4.2 A herança de Auschwitz
Na Europa e também nos Estados Unidos –, o Holocausto tem espaço
garantido para o estudo nas escolas e em cursos organizados especialmente com
esse objetivo: resgatar continuamente o acontecimento, não deixando que ele caia
no esquecimento coletivo. Na Itália, existe uma data especial, conhecida como o Dia
da Memória [Giorno della Memória]
56
, na qual são lembradas as vítimas e pessoas
que as auxiliaram durante a guerra. em Israel, instituiu-se o Dia da Recordação
do Holocausto
57
quando o tráfego pára e as pessoas ficam imóveis no mesmo lugar,
durante dois minutos. Delegações de escolas israelenses (e de outros países)
56 Em virtude de uma lei italiana, o dia 27 de janeiro se tornou o Dia da Memória (dia da libertação do
campo de Auschwitz em 1945). Conforme Cidro (2004), nos últimos anos, a data reverencia muito
mais os “justos”, pessoas que arriscaram suas vidas para salvar alguns judeus, do que as próprias
vítimas.
57 Data comentada no livro dos jornalistas Yehuda Koren e Eilat Negev: Gigantes no coração,
2006:212-214.
108
visitam Auschwitz-Birkenau anualmente, também o fazem os estudantes poloneses.
levas, inúmeras levas de turistas visitando o pátio de Auschwitz durante todo o
ano. Cerimônias oficiais acontecem em datas significativas nos países europeus
para lembrar as vítimas do Holocausto. Inúmeras publicações de autobiografias,
diários, cartas, biografias de sobreviventes ou não, fazem parte da bagagem cultural
de quem se dispõe a ler em alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, iídiche,
português, entre outras línguas.
Numa época notadamente contraditória, marcada pelos questionamentos e
suspeitas levantadas quanto à autenticidade e/ou alcance do Holocausto,
formulados com freqüência por “revisionistas” e “negacionistas”, num momento
histórico em que a Europa e também outras partes do globo, entre elas o Brasil, são
abaladas por manifestações anti-semitas e de cunho essencialmente
preconceituoso, evidentes e violentas, torna-se cada vez mais importante e
necessário manter viva a memória do fato.
Primo Levi comenta, em Os afogados e os sobreviventes (2004), de uma
pergunta comum formulada e dirigida a ele em suas palestras, sobre a possibilidade
de acontecer no futuro um genocídio semelhante ao infligido aos judeus no séc.XX.
E ele respondia que o Holocausto aconteceu como resultado de vários elementos
que se combinaram: o estado de guerra, o perfeccionismo tecnológico e organizativo
alemão, a vontade e carisma de Hitler, a ausência de sólidas raízes democráticas na
Alemanha. Segundo Levi, esses elementos tiveram que compactuar e ocorrer
simultaneamente para a concretização do Holocausto, sendo improvável que todos
eles venham a figurar novamente, numa sincronia de tempo e espaço, mas, alerta,
isso não é impossível. “Esses fatores podem reproduzir-se, e parcialmente estão
se reproduzindo em várias partes do mundo” (p. 75). Portanto, a idéia de lembrar
para não deixar cair no esquecimento, tornando real o recado de que nunca mais
aconteça, é essencial para nossa postura de humanidade que aprende com suas
falhas e procura, a partir delas, projetar e viabilizar um mundo melhor a ser deixado
para quem virá depois de nós.
Porém, celebrar a memória e cantar um “nunca mais”, em algumas datas
específicas do ano, é muito pouco. Segundo a professora de origem francesa Amelia
109
Cidro, em resenha redigida a partir da obra de Georges Bensoussan, Auschwitz en
héritage. D’un bon usage de la mémoire (1998), a celebração coletiva, em relação
principalmente a uns poucos que tiveram a iniciativa de rejeitar a ordem vigente na
época e se dispuseram a salvar algumas centenas de judeus, corre o risco de
neutralizar as ações que deveriam ser enaltecidas, traduzindo-se numa narrativa de
cunho comum, tranqüilizadora e pacificadora, na qual uns poucos passam a ser
tidos como heróis enquanto se ignora a atitude da grande maioria. Cidro, a partir de
proposição de Bensoussan, questiona: alguns indivíduos realmente ajudaram os
judeus durante o Holocausto, mas, e todos os demais? E os amigos e vizinhos e
colegas de escola? E os colegas de trabalho? E os parceiros de negócios? E todos
os outros? O herói que deveria ser a norma, na verdade representa a exceção, e
esse é um dado que precisa ser analisado com profundidade. Cidro comenta que as
datas de celebração do Holocausto, como o Dia da Memória na Itália, e em outros
países europeus, acabam absolvendo uma massa de culpados, devido ao caráter
anônimo dessa massa, marcada pela generalidade e pelo pouco efeito dos atos
individuais perdidos numa gama imensa de atos comuns.
Conforme Cidro ressalta das idéias de Bensoussan, é imprescindível a análise
histórica para se determinar o que realmente possibilitou o Holocausto, se foi uma
barbárie imprevista na trajetória da humanidade ou se potencialmente inerente à
evolução e organização civilizatória, além de esclarecer o sentido do que veio antes
e depois, evitando os nivelamentos generalizantes e colocando em relevo o que o
acontecimento apresentou de singular e inédito. Caso contrário, “Chegará o dia,
quando os contemporâneos do desastre tiverem desaparecido, no qual essa saída
da História favorecerá a mitificação, isto é, a banalização do fato, de resto
iniciada, que consiste em não diferenciar sua especificidade” (BENSOUSSAN, 2002,
p. 102 apud CIDRO).
58
Essa catástrofe é particularmente diferente, e é assim que
deve ser refletida pela História, e transmitida às gerações: em toda a sua
singularidade.
“A memória de Auschwitz, ao colocar interrogativos sobre as estruturas do
nosso presente, é uma memória viva, não apenas ligada ao martiriológio”
58 “Verrà il giorno quando i contemporanei del disatro saranno tutti scomparsi, in cui questa uscita
dalla Storia favorirà la mitizzazione, vale a dire, l´ulteriore banalizzazione del fatto, del resto già
avviata, che consiste nel non distinguerne la specificità [...].”
110
(BENSOUSSAN, 2002, p. 102, apud CIDRO).
59
Estruturas entendidas como
mecanismos de controle e de gestão de todos os homens. Em tempos tranqüilos, é
possível prever como esses mecanismos atuam, porém, suspensas a tranqüilidade e
a normalidade, como em períodos de guerra por exemplo, torna-se complicado
antever como funcionarão os mecanismos. A memória de Auschwitz favorece a
desconfiança em relação à autoridade e ao controle do grupo, e também estimula a
crítica à ordem estabelecida, “Porque examina os mais diversos comportamentos
sociais. Ilumina as relações entre crime e normalidade” (id., ibid.).
60
Como esclarece Cidro em sua resenha, Bensoussan propõe uma análise dos
conflitos acontecidos no século XX, em especial da Guerra, e aponta indícios
comprometedores como as novidades bélicas na trincheira ou o uso de gases sobre
vítimas amontoadas, afirmando que as guerras do século foram desejadas,
arquitetadas, planejadas e aperfeiçoadas pelos estados e pelas nações, numa
verdadeira “legalidade do horror”. E é esse aspecto que legitima a violência e a
banaliza que deve deixar a todos atentos e cautelosos, uma vez que não é um
acidente, nem uma calamidade histórica, e sim, um projeto institucional resultante da
sociedade de massa, de sua estrutura e pressupostos. O relevante legado que
recebemos de Auschwitz é a chance de questionarmos esses pressupostos, essa
estrutura social através da análise histórica.
É a pesquisa histórica a atividade que permite a análise e a reflexão geral, que
“devolve o nome às pessoas e também aos algozes”, sejam estes últimos “feras”,
“burocratas” ou apenas pessoas comuns que optaram pelo papel de ignorantes do
fato ou de carrascos das vítimas. A pesquisa histórica permite resgatar a voz das
vítimas e conceder-lhes seu devido espaço, favorecendo que conheçamos as suas
verdades.
Bensoussan alerta para o perigo de uma certa pornografia do horror ou do mal,
na qual a ênfase se na circulação de fotos e imagens com a única função de
59“La `memoria di Auschwitz´, ponendo interrogativi alle strutture del nostro presente, è una memoria
viva, non legata al solo martiriologio. Essa educa alla diffidenza nei confronti dell'autorità e del gruppo,
così come alla critica dell'ordine costituito.”
60“Poiché esamina i più diversi comportamenti sociali, mette in luce i legami fra il crimine e la
normalità.”
111
ofender e humilhar indefinidamente as vítimas, não favorecendo em nada o pensar e
rememorar a Shoah. Divulgar fotos de corpos calcinados, cadáveres expostos,
montanhas de mortos “são elementos de uma dessacralização da pessoa no próprio
coração da sociedade de massa”, (BENSOUSSAN, 2002, p. 101 apud CIDRO)
61
,
produzindo um sentimentalismo que favorece a tolerância diante do que deveria
chocar, indignar porque intolerável, diz o historiador francês.
Questiona-se, então: o que comemorar, o que lembrar, o que ensinar? Nas
palavras de Cidro, “longe de ser uma ocasião para celebrações, a herança de
Auschwitz se configura como uma lição de História e de Política tremendamente
atual”.
62
Sua lembrança deve ser capaz de questionar o nosso presente político, não
apenas nossa atitude moral, pois lembrar e ensinar Auschwitz significa colocar “em
discussão a arqueologia da nossa modernidade, as estruturas disciplinares e de
exclusão social, o peso do conformismo numa sociedade individualista de massa, o
primado da visão biológica sobre a política” (BENSOUSSAN, 2002:118). O
historiador assinala a necessidade de avançar além da questão do dever moral da
comemoração, por si desprovida de valor reflexivo, para um nível mais elevado
de comprometimento, de modo que “o dever de História deve prevalecer sobre o
dever de memória” (BENSOUSSAN, 2002:101).
63
No ano de 2004, o sobrevivente de Auschwitz e Buchenwald, Nobel da Paz de
1986, Elie Wiesel, foi o protagonista do Dia da Memória na Itália. Em entrevista
acompanhada por Ida Dominijanni
64
pelo Telejornal, ela transcreve uma das falas do
sobrevivente, na qual ele declara:
Ninguém pode imaginar o que significou estar num campo de
concentração. Os jovens de hoje podem perguntar-se por que aconteceu;
por que os aliados não bombardearam as estradas de ferro que conduziam
a Buchenwald; por que Pio XII não disse aquilo que poderia ter dito contra
a persecução hebraica; por que o povo alemão, em sua totalidade ou
quase, apoiou as idéias e a política de extermínio de Hitler. Mas, de
maneira alguma, podem ensimesmar-se naquilo que as vítimas viveram
diretamente. A experiência de Auschwitz permanece não-cognoscível.
(WIESEL apud DOMINIJANNI, 2004)
65
61 “sono elementi di una desacralizzazione della persona nel cuore stesso della società di massa”,
62 “Ben lontana dall'essere occasione di celebrazioni, l'eredità di Auschwitz si configura così come
una lezione di storia e di politica maledettamente attuale”.
63 Cf. edição italiana consultada: L´eredità di Auschwitz.Come ricordare? Tradução de Camilla Testi.
Torino, Einaudi, 2002.
64 Ida Dominijanni é pesquisadora, jornalista e docente universitária.
112
Apesar de todos os filmes, os documentários, as imagens, os estudos, a
experiência e a herança de Auschwitz precisam ser profundamente rememoradas,
refletidas, na busca de “um trabalho genealógico, não na descoberta de um passado
objetivado, mas da nossa proveniência, daquilo que nos constitui da maneira como
somos” (DOMINIJANNI, 2004). Ela propõe um trabalho de resgate dessa memória,
não mais como uma atividade arqueológica, mas, sobretudo, como uma atividade de
característica genealógica. Isso porque, pelo que Dominijanni observa, a
comemoração do Dia da Memória pode acabar sendo fixada como algo
definitivamente pertencente à esfera do passado, relegada a um segundo plano de
importância. Auschwitz é “uma recordação da qual não deveríamos nos isentar em
nenhum dia do ano”, pois, completa, é “um evento cuja atualidade espectral reside
no fato de que foi e não é mais, mas pode voltar”.
66
A escritora, mais adiante na sua reflexão, afirma: “O campo nasce antes do
nazismo”,
67
e ele foi e é possível cada vez que houve e a suspensão dos direitos
fundamentais estabelecidos, num verdadeiro “estado de exceção” que, por sua vez,
também é resultado da normatização. Dominijanni enfatiza a importância de
estarmos atentos aos regimes políticos, em especial, à democracia que é
massificante, revelando até uma certa afinidade desta com o totalitarismo.
Dominijanni finaliza seu artigo citando o filósofo Giorgio Agamben em Homo Sacer.
Auschwitz é “uma anomalia que pertence ao passado, porém, de alguma maneira,
representa a matriz escondida, o nomos do espaço político no qual ainda vivemos”
(AGAMBEN apud DOMINIJANNI).
68
65“Nessuno può immaginare che cosa significasse trovarsi in un campo di sterminio; i giovani di oggi
possono chiedersi perché è successo; perché gli alleati non bombardarono le ferrovie che portavano a
Buchenwald; perché Pio XII non disse quello che poteva dire contro la persecuzione ebraica; perché il
popolo tedesco nella sua interezza o quasi appoggiò le idee e la política di sterminio di Hitler; ma non
possono in nessun modo immedesimarsi in ció che le vittime dello sterminio vissero direttamente. L
´esperienza di Auschwitz resta inconoscibile”.
66“un ricordo dal quale non dovremmo esentarci in nessun giorno dell`anno [...] un evento la cui
attualità spettrale sta nel fatto che è stato e non è più, ma può tornare.”
67 “Il campo nasce prima del nazismo [...]”.
68 “[...] una anomalia appartenente al passato, ma, in qualche modo, la matrice nascosta, il nomos
dello spazio político in cui ancora viviamo”.
113
CONCLUSÕES
Naquele momento, depois de um tempo que foi ao mesmo tempo
de chamas e vapores, a névoa se tornara rarefeita e eu agora via a
escadaria, livre de qualquer monstro, branca no sol de abril. (ECO, 2005:
431)
O limbo: névoa. Perguntas. A mão e o tempo. O caminho (monstros). Escolhas.
Luzes nos degraus. O sol. Eu. Ao início do trabalho, afirmávamos a intenção de
empreender trajeto semelhante ao do Sr. Giambattista Bodoni, personagem de
Umberto Eco. Ele, a quem conhecemos a partir do momento em que acorda envolto
pelas brumas do desconhecimento de si mesmo. Ele que, perguntando sobre a sua
identidade, submerge em seus livros para resgatar-se e flagrar a si mesmo menino
nos porões e sótãos da antiga casa que fora de seus pais. Angústia, curiosidade,
medo, descobertas, surpresa, persistência, marcam a procura frenética e o provável
encontro consigo.
De certa forma, esse parece ser o trajeto de todo aquele que, certo apenas de
sua incompletude humana, lança-se em busca do desconhecido para compreendê-lo
e aproximar-se dele. O Sr. Bodoni embrenha-se de corpo e alma nas névoas
impregnadas de esquecimento e lembranças para redefinir-se numa memória de
papel. Nós nos lançamos nas leituras e discussões para iluminar o Holocausto, fato,
até a realização deste trabalho, de pouca visibilidade para nós.
Acreditamos que algumas luzes puderam ser lançadas a fim de que o tema do
Holocausto se tornasse mais inteligível, através desta pesquisa. Realizada no breve
período de dois anos, correspondentes à duração do Curso de Mestrado, a mais
contundente afirmação que podemos fazer é de que a investigação não se esgota
114
aqui, nem o problema está definitivamente equacionado. E que não temos a
pretensão de declará-lo resolvido. Muitas coisas importantes foram aprendidas, mas
é certo que o assunto não se fecha e acaba em si mesmo, pelo contrário, abre
inúmeras portas e janelas para que adentremos e reconstruamos o nosso pessoal e
coletivo entendimento da guerra e da História, da solidariedade ou de sua falta, do
medo, da morte, do desrespeito às diferenças, da intolerância, da organização
social, da vida. Ou ainda e essencialmente, para repensar acerca do
questionamento elaborado por Etty Hillesum que, no fundo, é próprio das pessoas
que adotam a postura de eternos aprendizes: “Os seres humanos não sabem muito
acerca de si mesmos, não é verdade?” (HILLESUM, 1981:58).
Apostamos no fato de que nosso trabalho possa colaborar a pensar realmente
o Holocausto, pois, refletir com profundidade sobre ele permite e resulta em
conhecimento e aprendizado. nos apropriamos daquilo que investigamos com
afinco.
Num momento em que “falar com os jovens é cada vez mais difícil” (LEVI,
2004:172), em que se despedem da vida os últimos sobreviventes e vítimas diretas
do Holocausto, época em que se bombardeiam com dúvidas revisionistas e
negacionistas os depoimentos das vítimas, são imprescindíveis os resgates
empreendidos nos meios acadêmicos e na mídia, com o estímulo de professores e
outros profissionais comprometidos com a História, nas sugestões de leituras
indispensáveis, na angústia positiva que impregna a nossa alma de principiantes
que precisam saber mais sobre a trajetória da sua Humanidade.
De fato, a nossa história é também a do Holocausto. Nas palavras do doutor
em Filosofia, professor Luis Milman (2004)
69
, “[...] é fundamental fazer uma
observação: o Holocausto não diz respeito apenas aos judeus. Ele é parte da
história humana e sua incidência na história demanda uma capacidade de análise
crítica sobre os alicerces da própria civilização moderna e seus valores” (MILMAN).
Nossa aproximação com o Holocausto não se por sermos vítimas ou envolvidos
diretos no fato, mas na condição de modernos homens e mulheres ocidentais que
69“O Holocausto: verdade e preconceito”, por Luis Milman. Disponível em:
http://www.espacoacademico.com.br. Acesso em 30 nov. 2006.
115
recebem a Shoah como herança memoralística e histórica. É de responsabilidade da
nossa geração e das vindouras manter viva a lembrança do Holocausto, uma vez
que aqueles que o vivenciaram, na pele, estão desaparecendo.
“[...] observamos uma mudança de paradigma na atual literatura do
Holocausto”, deduz a crítica literária alemã, Sigrid Löffler
70
. “Não são mais as
próprias vítimas sobreviventes que narram” e, sim, uma nova geração de narradores
preocupados em resgatar a reminiscência biográfica das vítimas, evitando que ela
se perca ou desapareça da memória coletiva. “Afinal, é preciso transferir a
lembrança pessoal do testemunho de época para a forma duradoura da construção
literária”, continua Löffler.
Na verdade, o tema do Holocausto nunca foi tão presente como em nossa
época. Contundente em cada obra original ou traduzida para acesso dos mais
diversos leitores. Um apelo à reflexão em cada filme que aborda o assunto. Uma
chama que queima e machuca a mente nas entrevistas ou documentários assistidos
e lidos. Também é relembrado a cada manifestação neonazista, em cada artigo
ofensivo e inescrupuloso escrito por indivíduos ou organizações negacionistas e
revisionistas. São textos, na maioria das vezes, propagados em caráter de verdades
absolutas, difundidas inclusive na internet. O forte e incontrolável anti-semitismo que
instigou e permitiu o genocídio está evidente, mais uma vez. Como analisa o
pesquisador, historiador e jornalista, que morou no Brasil durante 50 anos,
atualmente residindo em Belluno (Itália), Giulio Sanmartini:
71
O anti-semitismo na Europa está recomeçando prepotentemente.
Sinagogas são queimadas na França, cemitérios hebreus são destruídos
na Suécia, outro dia mesmo, um príncipe inglês, neto da Rainha, foi a uma
festa fantasiado de nazista; um time de futebol holandês, ligado
historicamente aos judeus, resolveu tirar qualquer sinal dessa religião para
evitar ser vaiado pelos adversários. Conversando com um grupo de
intelectuais bellunenses, tive que ouvir de um deles, a seguinte
imbecilidade: “Os judeus têm que parar com essa coisa de Holocausto,
passou”. (SANMARTINI, 2005, grifo do autor)
70 Sigrid Löffler (1942), de ampla atuação na imprensa alemã e austríaca, participou até 2000 do
extinto programa literário de televisão Literarisches Quartett e fundou a revista Literaturen em 2001.
Citamos aqui trechos do artigo de Löffler, intitulado “Holocausto vira objeto de ficção”. Disponível em:
http://www.dw-world.de/dw/article/0,2144,1470087,00.html. Acesso em: jul.2006.
71 O jornalista Giulio Sanmartini é autor do artigo “Holocausto I”. Disponível em:
http://www.visaojudaica.com.br/Fevereiro/2005/artigo/8.htm. Acesso em 10 dez. 2006.
116
“O Holocausto passou, chega de os judeus incitarem a compaixão da
humanidade para si”; ou “os campos de concentração nunca existiram nem
funcionaram da maneira como são descritos pelos judeus, interessados em
manipular os dados a seu favor”. Estes são dois dos conhecidos argumentos dos
quais se valem revisionistas e negacionistas para justificar as suas opiniões sobre o
Holocausto.
Conforme a professora Valentina Pisanty
72
, cabe fazer uma distinção entre
revisionistas e negacionistas. No entanto, antes de esclarecer as diferenças e
semelhanças entre eles, Pisanty reflete sobre o discurso histórico, suas implicações
e particularidades, apresentando-nos pontos teóricos importantes: “[...] sabe-se que
todo discurso histórico”, afirma ela, “bem como toda crônica de jornal, todo
testemunho jurídico, toda reportagem televisiva, etc., são fruto de uma reconstrução
eminentemente falível de eventos, por si sós de difícil apreensão em sua totalidade”
(PISANTY, 2004, p. 41).
73
Como o fato histórico é algo que aconteceu, cujo discurso não é
transparente, nem óbvio, nem pode ser reduzido, cabe aos historiadores
empreenderem o esforço de elucidá-lo, considerando a sua complexidade: “[...] o
que o historiador pode fazer é partir dos sinais ou marcas que o evento deixou no
presente, sob forma de documentos, de testemunhos, de resíduos materiais e assim
por diante, para reconstruir, de forma conjetural, uma versão verossímil dos fatos”
(PISANTY, 2004, p. 41).
74
Assim, o historiador deverá selecionar, dentre as mais
variadas informações, registros, documentos, as mais diversas versões de um
mesmo fato, para apresentar à sociedade uma reconstrução confiável desse fato,
embasada na investigação minuciosa e comprometida do profissional.
72“Revisionismo e Negazionismo”, por Valentina Pisanty. Università di Bologna (Itália) Atas do
Seminario Figure della Memoria, Università di Firenze, 8-15 Gennaio, 2004, p. 41-51. Disponível em:
http://www.rete.toscana.it/sett/lefp/publicazioni/allegati/edu05op. pdf. Acesso em 31 out. 2006.
73 “[...] si sa che ogni discorso storico così come ogni cronaca giornalistica, ogni testimonianza
giuridica, ogni reportage televisivo, eccetera è il frutto di una ricostruzione eminentemente fallibile, di
eventi di per sé inafferrabili nella loro totalitá.”
74 “[...] ciò che lo storico può fare è di partire dai segni che l´evento ha lasciato nel presente, sotto
forma di documenti, di testimonianze, di residui materiali, e così via, per ricostruire congetturalmente
una versione di come verosimilmente si sono svolti i fatti.”
117
Sustentando essa postura, na verdade, todo historiador deveria estar disposto a
expor as suas convicções teóricas e deixar-se provocar por questionamentos que
poderiam suscitar a discussão interessada em melhorar a reconstrução do evento
histórico. Nessa medida, afirma Pisanty, todo historiador é um pouco revisionista.
Entretanto, alerta Pisanty, isso não significa estar “disposto a recolocar
constantemente em jogo sua própria reconstrução do passado, sempre que emerge
algum novo indício ou alguma nova hipótese que se apresente incompatível com a
interpretação anterior dos fatos [...]” (p. 41).
75
Conforme a autora, os revisionistas “propõem, em suma, hipóteses
provocatórias que aspiram a minar ou reverter certas crenças históricas
consolidadas” (p. 42).
76
Alguns são mais radicais e sugerem interpretações
totalmente contrárias às sustentadas pela historiografia, “introduzindo nexos causais
inéditos na representação dos fatos [...]” (p. 42)
77
, o que vem a ser, de certa forma,
menos nocivo do que pretendem os negacionistas.
“Mas os piores de todos são os chamados ‘negativistas’, aqueles que negam a
existência da Shoah [...]. Afirmando que os campos de concentração não existiram,
que tudo foi propagado pela imprensa mundial nas mãos dos judeus”, comenta o
italiano Giulio Sanmartini (op. cit.). Apesar de alguns negacionistas se
autodenominarem revisionistas, os historiadores contestam essa identificação, pois
“enquanto o historiador respeitável é revisionista, no sentido de que está disposto a
questionar constantemente seus próprios conhecimentos adquiridos sempre que a
evidência documental o induza a rever suas posições -, o negacionista é aquele que
nega a própria evidência histórica” (PISANTY, 2004, p. 44).
78
Segundo Pisanty, o negacionismo não é um fenômeno novo, havendo
manifestações de contestação ao Holocausto logo após a libertação dos campos no
75 “[...] è disposto a rimettere costantemente in gioco la propria ricostruzione del passato qualora
emerga qualche nuovo indizio o qualche nuova ipotesi che si dimostri incompatibile con la sua
precedente interpretazione dei fatti.”
76 “[...]propongono insomma ipotesi provocatorie che aspirano a minare o a capovolgere certe
credenze storiche consolidate”.
77 “[...] introducendo nessi causali inediti nella rappresentazione dei fatti.”
78 “[...] mentre ogni storico che si rispettti è revisionista, nel senso che è disposto a rimettere
costantemente in gioco le proprie conoscenze acquisite qualora l´evidenza documentaria lo induca a
rivedere le sue posizioni, il negazionista è colui che nega l´evidenza storica stessa.”
118
final da guerra, porém, eram isoladas e menos evidentes. Desde 1978, a situação se
modificou com a fundação do Institute for Historical Review (IHR), Califórnia. Antes
isolados e sem grande crédito, agora organizados num instituto pseudo-acadêmico
(afinal, nenhum revisionista é historiador), no qual negacionistas publicam seus
textos numa revista chamada The Journal of Historical Review, sob responsabilidade
do instituto.
A pesquisadora indica a existência de, pelo menos, três grupos distintos de
negacionistas. O primeiro é formado pelos “precursores”, seriam os primeiros que se
aventuraram a negar o Holocausto. Nesse rol, a autora menciona, na França, os
nomes de Maurice Bardèche e Paul Rassinier (p. 44). Os próximos seriam os
“pesquisadores”. Para Valentina Pisanty, são basicamente oito as principais idéias
difundidas pelos negacionistas “pesquisadores”, citadas a seguir:
1. a Solução Final consistia na emigração e não no extermínio;
2. não houve nenhum morto com gás;
3. a maior parte dos judeus desaparecidos emigrou para a América ou União
Soviética, o que impede um controle rigoroso das suas origens;
4. os poucos judeus justiçados pelos nazistas eram criminosos subversivos;
5. a comunidade hebraica mundial persegue todos aqueles que desejam
desenvolver um trabalho de pesquisa histórica honesta ao redor da II
Guerra Mundial, por temerem que a verdade dos fatos seja revelada;
6. não há provas do genocídio;
7. o ônus da prova cabe aos “exterminiosistas”;
8. as contradições evidentes nos cálculos demográficos que os historiógrafos
apresentam atestam a fraude desses dados. (p. 45)
79
Um terceiro e mais agressivo grupo, composto pelo que ela propõe denominar
“divulgadores”, são os que operam, sobretudo, nos Estados Unidos e no Canadá,
devido à flexibilidade das leis nesses países. Pisanty esclarece:
79 “1. La soluzione finale consisteva nell´emigrazione e non nello steminio; 2. non ci furono
gassazioni; 3. la maggior parte degli ebrei scomparsi emigrarono in America e in Unione Sovietica
facendo perdere le loro tracce; 4. i pochi ebrei giustiziati dai nazisti erano criminali sovversivi; 5. la
comunità ebraica mondiale perseguita chiunque voglia svolgere un lavoro di ricerca storica onesta
attorno alla seconda guerra mondiale per timore che emerga la verità dei fatti; 6. non vi sono prove del
genocidio; 7. l´onere dela prova sta dalla parte degli “sterminazionisti”; 8. le contraddizioni presenti nei
calcoli demografici della storiografia ufficiale dimostrano con certezza il carattere menzognero delle
loro tesi.”
119
O que caracteriza o trabalho dos divulgadores é a extrema grosseria de
suas argumentações, expressas de acordo com o estilo vulgar da
propaganda anti-semita mais chula é preciso dizer que nos Estados
Unidos os negacionistas são protegidos pela Primeira Emenda da
Constituição (liberdade de opinião) e, portanto, não têm problemas em
driblar a censura como, pelo contrário, precisam fazer seus colegas e
parceiros de cruzada europeus. Os divulgadores são particularmente ativos
nos campi universitários, onde fazem proselitismo a partir das páginas das
revistas estudantis e na internet, onde existe uma proliferação de sites
negacionistas, impossíveis de serem censurados. [...] eles dificilmente
perdem tempo polemizando com uma testemunha pouco conhecida de
quem se ocupa profissionalmente da historiografia concentracionária. Pelo
contrário, escolhem alvos de efeito garantido [...] como Elie Wiesel e Anna
Frank. O que estimula os negacionistas a denegrir os testemunhos desses
personagens célebres deve ser buscado no impacto midiático que eles
têm. Insinuando dúvidas sobre a credibilidade das testemunhas, esperam
estender essa atitude de desconfiança a qualquer outro aspecto da história
da II Guerra Mundial, inclusive às câmaras de gás. [...] (PISANTY, 2004, p.
46-48)
80
A seleção, alteração e manipulação aleatória, sem qualquer preocupação moral
e ética para com as fontes, é a primeira característica, evidenciada por Pisanty, que
diferencia o “método interpretativo adotado pelos negacionistas” (p. 47-48). Esse tipo
de interpretação arbitrária e ilegítima, diretamente divergente em relação ao aceito
pela maioria, não pode ser acolhida como viável. Quem contesta um consenso
histórico, deve apresentar provas que ratifiquem as hipóteses levantadas,
“responder de forma límpida e exaustiva diante das objeções que o resto da
comunidade, pautada na riqueza da documentação disponível, poderia levantar. [...]”
(p. 51).
81
80 “Ciò che caratterizza il lavoro dei divulgatori è l´estrema grossolanità delle loro argomentazioni, che
vengono espresse secondo lo stile rozzo della propaganda antisemita più dozzinale – c´`e da dire che
negli Stati Uniti i negazionisti sono protetti dal Primo Emendamento della costituzione (libertà di
opinione), e quindi non hanno problemi di dribblare la censura, come invece devono fare i loro colleghi
e compagni di crociata europei. I divulgatori sono particolarmente attivi nei campus universitari, dove
fanno proseliti dalle pagine delle riviste studentesche e su internet, dove c´è una proliferazione di siti
negazionisti impossibili da censurare. [...] difficilmente un negazionista perderà tempo a polemizzare
con un testimone poco noto a chi non si occupa professionalmente della storiografia
concentrazionaria. Piuttosto scieglierà bersagli di sicuro effetto [...] come Elie Wiesel e Anna Frank.
Ciò che stimola i negazionist a denigrare le testimonianze di questi personaggi celebri va cercato nell
´impatto mediatico che essi hanno. Insinuando dubbi sulla attendibilità dei testimoni in questione,
sperano di estendere l´atteggiamento diffidente a ogni altro aspetto della storia della seconda guerra
mondiale, camere a gas comprese.”
81 “[...] rispondere in modo limpido ed esaustivo alle obiezioni che il resto della comunità, sulla scorta
dei documenti di cui dispone, con ogni probabilità gli rivolgerebbe.”
120
Trazemos também presente a esta reflexão o posicionamento do conhecido
negacionista Arthur R. Butz
82
, que foi professor associado de Engenharia
Electrotécnica, em Chicago. Em artigo publicado no jornal Daily Northwestern,
datado de 13 de maio de 1991, Butz defende os seus argumentos de forma
eloqüente e irônica. Começa falando sobre a “lenda de milhões de judeus mortos
pelos alemães durante a Guerra Mundial”: no fato de os aliados terem
encontrado, ao final da guerra, nos campos alemães, pilhas de cadáveres, e de ser
reduzido o número de judeus sobreviventes a voltar para a Polônia. Esclarece a
preocupação alemã em erradicar o tifo, moléstia epidêmica que assolou o país
durante as duas guerras mundiais. A doença teria, na explicação de Butz, sido a
responsável por tantas mortes. Também se deve à epidemia o encaminhamento
dado aos judeus quando chegavam aos campos: raspar o cabelo, banhos de
chuveiro e o uso de gás Zyklon para matar os piolhos.
Conforme o negacionista Butz, o que foi visto e registrado após a abertura dos
campos, nada tinha a ver com extermínio. Os próprios campos teriam abrigado, na
sua versão, apenas “prisioneiros políticos, criminosos comuns, homossexuais,
objectores de consciência e judeus recrutados para o trabalho”. Em relação à
“Solução Final”, Butz comenta que, ao contrário do caráter de extermínio que é
atribuído aos alemães, “era um programa de evacuação, recolocação e deportação
de judeus, que tinha como último objetivo a sua expulsão da Europa”. Continua
afirmando não serem apenas alemães os envolvidos nas movimentações de judeus,
que também os russos partilharam da mesma tática, em 1940, deslocando os judeus
da Polônia para o Leste, o que seria a razão para a quase inexistência de
comunidades judaicas na Polônia. Depois da guerra, muitos judeus foram
absorvidos por outros países, o que acarreta a impossibilidade de indicar,
numericamente, a quantidade de judeus que passaram pelos campos e
sobreviveram.
Butz ainda menciona a “incompreensível cegueira” que toma conta da grande
maioria dos historiadores que apóia a “lenda” do Holocausto e que, em alguns
países, os revisionistas têm sido processados, o que resulta numa postura favorável
82 Cf. Pequena introdução ao estudo do Holocausto, por Arthur R. Butz. Disponível em:http://aaargh-
international.org/port/butz.html, e também em: http://www.radioislam.org/islam/portugues/revision/
butz1/htm. Acesso em agosto de 2006.
121
ao Holocausto por pressão política. É difícil aceitar a idéia de judeus sendo
massacrados em série, sistematicamente, e outros países da Europa não terem se
apercebido, afirma Butz. Conclui o seu artigo afirmando sarcasticamente que, para
atestar a realidade do Holocausto, foram necessários os julgamentos pós-guerra,
caso contrário, não seriam legitimados pela sociedade.
Queremos, ainda, apresentar alguns elementos defendidos pelo negacionista
francês Robert Faurisson
83
, em artigo veiculado na internet, no qual contesta
rudemente a Elie Wiesel, a quem Faurisson chama de “testemunha falsa”. Faurisson
começa seu texto mencionando que, dos mitos relativos a Auschwitz e Buchenwald
de que os judeus eram queimados vivos, mortos por eletrocussão ou pelo uso de
água fervente, o mito das supostas câmaras de gás é o único que sobrevive. E
afirma que Wiesel teve muita sorte em não ter perecido em alguns desses falsos
tratamentos dados aos judeus: “A personalidade de Wiesel ter sobrevivido foi,
evidentemente, o resultado de um milagre”, comenta ironicamente Faurisson.
Mencionando nomes que depreciam a obra de Wiesel e de outros
sobreviventes, Faurisson atribui os textos das vítimas a novelistas ou a escritores
fantasmas dispostos a produzir e lucrar com plágios. Voltando a Elie Wiesel,
Faurisson coloca:
Elie Wiesel anda alarmado e faz apelos inflamados contra autores
Revisionistas. Ele sente que as coisas começam a ficar fora de controle.
Começará a ficar mais e mais difícil para ele manter a maldita crença de
que os judeus foram exterminados nas chamadas câmaras de gás. (Id.,
ibid.)
84
Idéias como as de Butz e Faurisson correm, “metódica e regularmente”, à solta
pelo mundo, 30 anos, “nos principais países do mundo”, declara Milman
(2004,op. cit.). As afirmações negacionistas, arraigadas em um anti-semitismo
integrado “em programas políticos radicais, de direita, esquerda ou fundamentalistas
83 Dados retirados de artigo divulgado na internet, intitulado “Elie Wiesel: uma notável testemunha”.
Disponível em: http://www.radioislam.org/isalm/portugues/revision/eliewiesel.htm. Acesso em 26 nov.
2006. No endereço eletrônico da Radio Islam, encontramos informações sobre Robert Faurisson: “é o
revisionista Europeu do Holocausto mais conhecido. Nascido em 1929, foi educado na Sorbonne de
Paris, e serviu como professor na Universidade de Lyon em França de 1974 a 1990. Ele é
especialista na análise de textos e documentos”.
84 Disponível em: http://www.radioislam.org/isalm/portugues/revision/eliewiesel.htm.
122
religiosos”, como percebido na Europa, Estados Unidos, Argentina, países do Leste
europeu, nações muçulmanas e, inclusive, no Brasil, “[...] repetem que, na década
de 40, a Alemanha foi levada à guerra pelos judeus; os campos de extermínio não
existiram e o regime hitlerista jamais cometeu as atrocidades que lhe são atribuídas”
(MILMAN, 2004).
Num tom menos agressivo do que o adotado por Butz e Faurisson, o escritor
alemão, Martin Walser
85
, em discurso proferido em outubro de 1998 - ao receber o
Prêmio da Paz dos Livreiros Alemães -, questiona e polemiza o que denominou de
“instrumentalização do Holocausto”. Segundo Walser, o tema é exaustivamente
explorado pela mídia, utilizado para a “rotina da culpa” e para a “apresentação
duradoura da vergonha alemã”. Afirma que “nenhum homem sério, nenhum homem
gozando de plenas faculdades mentais nega Auschwitz”, mas que quando o
passado alemão vem à tona, insistentemente revigorado pela mídia, o escritor deduz
que essa obstinação não se deve ao respeito à memória, e sim, à
“instrumentalização de nossa culpa para causas do presente. Sempre causas
honrosas. Ainda assim, instrumentalização”.
Da discussão acirrada entre Martin Walser e Ignatz Bubis, líder da comunidade
judaica da Alemanha na época das declarações, houve apenas um consenso: de
que “não há ainda uma linguagem adequada para tratar do passado alemão”.
Contraditória, pois, parece ser a publicação de A indústria do Holocausto
86
, de
Norman Finkelstein. Filho de judeus perseguidos pelos nazistas, porém
sobreviventes do Gueto de Varsóvia e dos campos de concentração, o polêmico
escritor não nega o Holocausto, mas aponta alguns elementos perturbadores que
vêm, alguns anos, assombrando a comunidade judaica espalhada pelo mundo e
contribuindo para as citações de diversos revisionistas que recorrem ao seu livro
como instrumento de questionamento do Holocausto. Apresentamos, na seqüência,
alguns dos posicionamentos revelados por Finkelstein em sua obra. A seguir, a
85 O polêmico discurso de Martin Walser sobre a instrumentalização do Holocausto pode ser
conferido na íntegra em: http://www.ig.com.br/paginas/igler/especiais/finkel/walser.html. Acesso em
15 dez. 2006. Walser é autor de diversos livros, e considerado herdeiros dos grandes literatos
alemães clássicos.
86 FINKELSTEIN, Norman. A indústria do Holocausto: reflexões sobre a exploração do sofrimento
dos judeus. Tradução de Vera Gertel. São Paulo: Record, 2001.
123
opinião do eminente historiador Raul Hilberg sobre o livro e, concluindo, trechos da
resenha escrita pela historiadora e professora da Universidade de São Paulo, Maria
Luiza Tucci Carneiro
87
.
Filkenstein discute, em seu livro, a idéia propagada de o Holocausto ser único,
apesar de admitir que alguns aspectos sejam singulares. Assim, o Holocausto
“deveria estar sujeito aos procedimentos fundamentais de contraste e comparação”,
como todos os demais temas de investigação histórica. Continua afirmando que “o
ponto de partida da indústria do Holocausto é: ‘não compare’”. O autor considera a
sua obra como representativa de “um acerto de contas com os ‘publicitários’ do
Holocausto que corromperam e rebaixaram a memória do sofrimento do povo
judeu”, o que define em crime e desgraça. “A indústria do Holocausto”, assegura
Finkelstein, “é uma das maiores fomentadoras do anti-semitismo e da negação do
Holocausto no mundo hoje. Ela deve ser exposta, repudiada e banida da vida
pública”.
Perguntado sobre a recepção de seu livro nos Estados Unidos, na Alemanha,
em Israel, Finkelstein respondeu que poucas críticas sérias foram feitas em relação
a sua obra. No geral, dirigiram-lhes ataques pessoais, rejeitaram e boicotaram seu
texto. Foi acusado de vingativo porque sua mãe não recebeu qualquer indenização
de guerra. Em especial nos EUA, “o quartel-general da indústria do Holocausto”, na
explicação dele. A exceção foi a Alemanha, onde a reação do público foi positiva,
considerando-se as 130 mil cópias vendidas e as mensagens via e-mail que o autor
recebe: “Acho que muitos alemães estão gratos que um judeu finalmente tenha
publicado o que quase todo mundo pensa privativamente: o negócio do holocausto
fugiu do controle”.
Em relação à manifestação de Martin Walser, Finkelstein declarou concordar
com o escritor alemão, pois “a exploração do holocausto nazista e a coerção moral
da Alemanha são, francamente, um espetáculo nauseante”. É momento dos
moralizadores “olharem para o espelho” e serem honestos.
87Entrevista com o escritor Norman Filkenstein. Disponível em: http://www.ig.com.br/paginas/
igler/especiais/finkel/entrevista.html. Opinião de Raul Hilberg. Disponível em: http://www.ig.com.br/
paginas/igler/especiais/finkel/hilberg.html. Resenha de Maria Tucci Carneiro. Disponível em:
http://www.ig.com.br/paginas/igler/especiais/finkel/tucci.html. Artigos acessados em 15 dez. 2006.
124
Finkelstein esclarece que seu livro objetiva “expor todas as bobagens que a
‘educação do holocausto’ vem promovendo, que são, na verdade, propaganda pura
uma arma ideológica em uma ação política corrupta”. Isso numa linguagem clara,
direta, dirigida ao grande público, “daí sua brevidade e aparato acadêmico modesto”.
O escritor de A indústria do Holocausto menciona, seguidas vezes, o nome de
Hilberg durante a entrevista da qual transcrevemos alguns fragmentos acima. O
reconhecido pesquisador do Holocausto, Raul Hilberg, também expôs sua opinião
acerca do livro de Filkenstein em entrevista concedida ao jornal alemão Berliner
Zeitung. Quanto à acusação de Finkelstein de que as indenizações não chegam até
as vítimas, Hilberg comenta que “há judeus conservadores que corroboram suas
críticas de que o dinheiro das indenizações não vai diretamente para os
sobreviventes” e cita artigo da revista do American Jewish Comittee, que define
como um “escândalo crescente” a questão das indenizações.
“Sobre o fato de as exigências de indenização terem sido feitas tantos anos
após o final da Segunda Guerra Mundial”, pergunta feita pelo entrevistador, Hilberg
explica que, durante a Guerra Fria, os EUA tinham interesse em tratar bem seus
aliados, “mas hoje as organizações judaicas podem pressionar os europeus sem
que isso comprometa a seguranças dos EUA”.
Hilberg comenta que o interesse em estudar o Holocausto nos EUA é recente,
surgiu cerca de 15 a 20 anos e favorece a realização de palestras e venda de
livros que explorem o assunto. Inclusive, “há muitos intelectuais americanos que
utilizam o holocausto para conseguir empregos em museus e universidades”.
Conforme Hilberg, não existe controle a respeito da qualidade dos debates feitos nas
universidades americanas, e exemplifica com o fato de Goldhagen (autor de Os
carrascos voluntários de Hitler) ter alcançado o doutorado em Harvard “sem que
ninguém na banca de examinadores fosse especialista no assunto”.
A historiadora de São Paulo, Prof.a Carneiro, é mais enfática em seu
posicionamento. Inicia sua resenha sobre o livro afirmando ser este “um verdadeiro
convite ao anti-semitismo”, até porque a própria comercialização de A indústria do
125
Holocausto é uma forma de captar recursos através da abordagem de um tema que,
para nós, ainda é “um fenômeno humanamente inexplicável”.
Segundo Carneiro, a narrativa de Finkelstein é dúbia: “de um lado, por tratar a
questão judaica sobre um viés acusatório, anti-sionista e recuperar [...] o mito da
conspiração judaica”. Em outro momento, o autor protesta “contra a elite judaica
americana que ‘explora’ economicamente o Holocausto”, visando lucros.
Carneiro comenta a idéia básica de Finkelstein que diferencia os judeus norte-
americanos em dois grupos distintos: os que foram vítimas do Holocausto, e os que
foram vítimas e usaram dessa condição para transformarem o acontecido numa
verdadeira “indústria da corrupção”, resultando na memória do Holocausto
transformada em “negócio”. Tais foram os desdobramentos dessa “catástrofe”, que
permitiu que o Estado de Israel pudesse “projetar-se como um Estado ‘vítima’”,
Carneiro comenta, citando a fala de Finkelstein.
Segundo a historiadora, a obra é uma ferramenta perigosa, num momento
histórico em que os noticiários enfocam a paz no Oriente Médio, enfatizando “uma
abordagem anti-Israel”, em que ressurgem grupos neonazistas que duvidam das
câmaras de gás. O livro resgata alguns conceitos anti-semitas historicamente
difundidos, como a imagem dos judeus relacionada a preconceitos de que eles
sejam exploradores natos, conspiradores e também oportunistas. O que estaria
contribuindo para retomar e atualizar esses preconceitos no “espaço e tempo
histórico”.
Primo Levi chama a atenção, em Os afogados e os sobreviventes, sobre
militares do alto escalão de Hitler, ligados diretamente à efetivação do Holocausto e
que, por ocasião de seu julgamento, negaram veementemente as deportações e sua
relação com a Solução Final para a questão judaica, bem como as mortes em
massa nas câmaras de gás. Cita como exemplo a declaração de Louis Darquier de
126
Pellepoix
88
, em 1942, encarregado, no governo de Vichy
89
, da deportação de setenta
mil judeus:
Darquier nega tudo: as fotografias das pilhas de cadáveres são montagens;
as estatísticas dos milhões de mortos foram fabricadas pelos judeus,
sempre ávidos de publicidade, de comiseração e de indenizações; talvez
tenha havido deportações (ser-lhe-ia difícil contestá-las: sua assinatura
está exposta em muitos ofícios que dispõem sobre as próprias
deportações, inclusive de crianças), mas ele não sabia nem para onde nem
com qual desfecho; em Auschwitz havia decerto câmaras de gás, mas
serviam para matar piolhos e, de resto (note-se a coerência!), foram
construídas com o objetivo de propaganda após o final da guerra. (LEVI,
2004:23)
Com relação às contestações enunciadas especialmente pelos negacionistas, o
professor Luis Milman apresenta um levantamento significativo, que invalida, se não
a todos, a grande maioria dos argumentos apresentados por aqueles. Ele inicia sua
contra-argumentação referindo-se aos números que quantificam o Holocausto, cuja
oscilação é percebida em diversos materiais sobre o assunto: em Nüremberg foi
indicada a cifra de seis milhões de judeus mortos, mas bibliografia que indica 5,1
e 5,7 milhões de judeus dizimados na Europa.
Segundo Milman, isso se deve ao uso da “metodologia de escala numérica”
para quantificar as vítimas, método por si só oscilante. De algo podemos ter certeza,
esclarece o professor: “[...] não há um número exato de vítimas, e a razão para tanto
é simples: o genocídio foi praticado em escala total. Jamais houve condições para
estabelecer um número definitivo porque é impossível identificar individualmente
todas as vítimas do Holocausto”.
Ainda em relação ao número controverso de judeus mortos, Milman considera
que “em menos de quatro anos, foi assassinada metade dos judeus europeus e mais
de um terço de toda a população judaica mundial na época”. Onde antes existiam
milhões de judeus, depois de 1945, restaram apenas alguns milhares de
sobreviventes.
88 Cf. Primo Levi (2004:23), declarações dadas à L’Express, em 1978, pelo ex-comissário
encarregado das questões judaicas do governo de Vichy, Darquier.
89 O Governo de Vichy foi: “o governo do Estado francês instalado em Vichy (1940-1944) que, sob o
comando do Marechal Pétain, dirigiu a França durante a ocupação alemã” (Cf. Larousse Cultural,
1999:5936).
127
Os nazistas não foram os primeiros nem os únicos a praticarem o assassinato e
a violência, a matança de ocupação, o genocídio, “mas se especializaram nessa
atrocidade, porque a tornaram essencial para sua geopolítica racial, fundamentada
na agressão militar, numa obstinada determinação de eliminar um povo inteiro e na
conquista e ‘arianização’ territorial” (MILMAN, 2004)
90
.
“[...] Dizimaram massivamente, além de judeus, pessoas de ‘raças’ que
consideravam inferiores”. Nesse ponto da explanação, Milman rebate um outro
argumento negacionista, o de que os judeus se julgam dignos de comiseração
eterna pelo sofrimento que lhes foi infligido na Guerra, o argumento de que
sofreram mais que os demais presos políticos. Na verdade, como vimos, essa
guerra não envolveu apenas presos políticos, mas a população civil,
indiscriminadamente. Seria desconhecimento afirmar que apenas os judeus
sofreram com a guerra. Também outros grupos foram perseguidos e massacrados:
homossexuais, opositores do nazismo, doentes mentais, Testemunhas de Jeová,
ciganos, etc.
No entanto, o Holocausto apresenta particularidades sem precedentes em
comparação com qualquer outro acontecimento histórico, e sua especificidade está
diretamente ligada ao modo como os judeus foram tratados pelo governo alemão:
[...] primeiro, porque contra os judeus foram aplicados os métodos jamais
imaginados de extermínio; segundo, porque os judeus foram destinados a
desaparecer completamente como povo; terceiro, porque contra os judeus,
os nazistas travaram uma guerra racial, sem qualquer outro objetivo que
não fosse o de exterminá-los completamente; quarto, porque nunca se
configurou uma burocracia e uma indústria voltada para a matança de
seres humanos tal qual como a construída pelos nazistas; quinto, não havia
salvação dessa matança, que ocorreu em fases distintas e foi sendo
paradoxalmente incrementada na medida em que os alemães percebiam
que não tinham mais qualquer chance de vencer a guerra. (MILMAN, 2004)
O marco documental para o início programado e sistemático do genocídio foi o
“Protocolo de Wannesse” de cujas dezoito atas redigidas durante o encontro,
apenas uma conseguiu ser resgatada, esta secretariada por Adolf Eichmann. Com o
90 Essa idéia é corroborada na obra A memória (1990), do importante filósofo francês Alain
Finkielkraut, quando cita Saul Friedländer: “a partir do momento em que um regime decide,
baseando-se em qualquer tipo de critério, que certos grupos devem ser inteiramente aniquilados e
nunca mais autorizados a viver na terra, deu-se um passo fundamental. E penso que na história
moderna, esse limite só foi alcançado uma vez: pelos nazistas” (p. 25-26, grifo do autor).
128
intuito de superar o resultado das experiências feitas com gás no campo de
Chelmno, datadas de dezembro de 1941, a Conferência, realizada em janeiro de
1942, objetivou operacionalizar a “solução final para a questão judaica” e ”[...] o
genocídio tomaria as proporções que hoje conhecemos quando os alemães
invadiram a União Soviética, com o propósito de varrer do mundo o bolchevismo e o
judaísmo, que eles tinham como irmãos políticos”, elucida Milman.
Milman comenta sobre a forte e perigosa divulgação de uma outra imagem de
Hitler, procurando salientar aspectos humanos e idealizados do nazista, bem como
do seu regime. Em contraponto, divulga-se, em nível mundial, o conceito de
“satanização” dos judeus, generalizando a idéia de que eles estão na raiz dos
problemas políticos, econômicos, culturais, etc. Apesar de aparentemente ser uma
posição reducionista e primária, essa concepção acaba ganhando adeptos e
alargando o preconceito, que é a base do sentimento anti-semita.
“A indiferença intelectual e acadêmica quanto ao negacionismo e, pior, uma
certa complacência desses meios com respeito a formas de anti-semitismo que
freqüentam meios políticos mais à esquerda é sintomática” (MILMAN, 2004). O anti-
semitismo está presente, inclusive em declarações e decisões políticas, motivando-
as e determinando-as. Ser ideologicamente indiferente ao fato é oportunizar e
fortalecer o anti-semitismo. Não conhecer o Holocausto a fundo, é ser complacente
com ele.
Não conhecer o Holocausto com mais profundidade, agregar-se a grupos
neonazistas sem discernir-lhes os conceitos, ignorar ou alimentar uma idéia
equivocada de quem sejam os judeus, apoiar-se em imagens construídas sobre
esse grupo da população, são alguns dos elementos que favorecem uma postura
anti-semita na América Latina, em especial no Sul do Brasil e em São Paulo
91
.
Classificando “como ilusão pensar que não pudesse existir anti-semitismo ou
racismo no Brasil”, o professor alemão Wolfgang Benz
92
(apud PESSOA) comenta
91 As cidades de São Paulo e Porto Alegre são os locais de maior concentração de comunidades
judaicas do Brasil, conforme Benz.
92 Artigo produzido pelo premiado jornalista brasileiro Márcio Pessoa, disponível em: http://www.
deutsche-welle-de/dw/article/o,21441/1783117,00.htm. Publicado em 23 nov. 2003. Acesso em: dez.
2006.
129
que a polícia brasileira identificou focos de grupos neonazistas no Rio Grande do
Sul, Santa Catarina, Paraná, Rio de Janeiro e São Paulo. Para Benz, o fenômeno é
generalizado no mundo e funciona como uma válvula de escape para os problemas
sociais: “Quando problemas econômicos e sociais, em qualquer que seja a
nação, a culpa é atribuída às minorias e, principalmente, aos judeus”.
O professor explica acerca de manifestações anti-semitas ocorridas nas
cidades brasileiras de Porto Alegre, São Paulo e Curitiba (universitários presos por
agressões físicas ou verbais a judeus; pessoas que foram denunciadas devido às
suas ações claramente anti-semitas; neonazistas que espancaram e esfaquearam
jovens judeus que usavam quipá, em Porto Alegre, quando lembravam os 60 anos
do final da Segunda Guerra Mundial; homossexuais agredidos com tesouradas em
Curitiba), colocando que, comumente, os brasileiros envolvidos com grupos
neonazistas o fazem por ignorância ou por medo de uma derrocada social
provocada pela crise geral no Brasil que afetaria diretamente a classe média. Para
ele, “esse medo levaria facilmente a manifestações contra minorias, inclusive
judeus”.
“Sites de relacionamento com comunidades neonazistas têm proliferado na
internet. O Orkut abriga dezenas de comunidades formadas por jovens brasileiros,
com fóruns de discussões anti-semíticas ou neonazistas”, esclarece Benz,
apontando que os jovens são mais suscetíveis à ideologia do nacional-socialismo
com suas frases feitas, suas idéias sobre honra e nação, pelo toque marcial e pelos
uniformes. É difícil qualquer punição, porque não legislação internacional e os
autores desses artigos se escondem no anonimato.
O discurso argumentativo de revisionistas e negacionistas, como é inerente a
qualquer ato discursivo, é uma luta pelo poder, no sentido de quem convence mais e
melhor. Contrapostas com as falas das testemunhas que, como já comentado, estão
se calando aos poucos, pois estão desaparecendo, aquelas falas se elevam e se
evidenciam, confundindo os interlocutores. Apela-se, especialmente, para a idéia de
“ver para crer”: não como ver, porque o fato histórico se consumou, apenas
a possibilidade de RE-VER. No mínimo, ouvir os dois lados e jamais optar e permitir
a violência e a coisificação da pessoa.
130
de se partir para a análise, do princípio de que nada justifica o genocídio e
os seus horrores, que são validados e legitimados em situações extremas como foi o
Holocausto. E o que está em jogo não é a crença ou não sobre a existência das
câmaras de gás e do genocídio de fato, mas a própria intenção, o que não é menos
violento e cruel do que executar um plano: desejar e idealizar uma Alemanha sem
judeus é anti-semita, também antiético, inumano.
O Holocausto terminou décadas. Mas as idéias anti-semitas transitam, tal
qual monstros disfarçados, rondando o século XXI. Povos que se autodenominam
superiores a outros, pessoas que se consideram imbuídas do direito de dominar os
menos “aptos”, a ignorância geral quanto aos fatores que possibilitaram a Shoah, a
memória do Holocausto sendo denegrida e deturpada ao bel prazer do interesse de
alguns, o desinteresse e a falta de perguntas da sociedade.
Considerando-se a investigação dos relatos autobiográficos e das biografias
das vítimas do Holocausto, várias delas reconhecidas mundialmente pela
legitimidade de seu testemunho e idoneidade de seu caráter, com base em
documentários de teóricos comprometidos na verificação mais próxima possível da
verdade histórica, nas pesquisas sérias e minuciosas de diversas áreas de
conhecimento, alicerçadas na busca incessante de compreensão do Holocausto
que, mesmo hoje, apresenta pontos inacessíveis, ainda cabe perguntar: como
puderam os negacionistas simplesmente negar o Holocausto e tudo o que ele
implica, quando os próprios sobreviventes e os historiadores honestos confirmam os
fatos? É preciso questionar sempre, mas com a postura de procurar respostas
viáveis, não apenas invalidar e pôr em descrédito o que já foi possível construir.
Nosso trabalho tencionou, precisamente, responder aos problemas e às
hipóteses formuladas antes de iniciar a pesquisa, propriamente dita. Quanta coisa
para descobrir sobre o Holocausto: como aconteceu, o que significou, por quê? De
que maneira o definiram e explicaram os diferentes estudiosos, das diversas áreas
do conhecimento humano? Como seria a escritura de quem foi vítima? Poderiam
essas obras constituir instrumentos na valorização do texto de testemunho? A
131
literatura do Lager questionaria a versão oficial da história do Holocausto? O que
privilegiariam esses narradores e suas narrativas?
Na medida do possível, no entanto, de modo que avaliamos como satisfatório,
conseguimos finalizar esse trabalho, concretizando nossos objetivos principais:
conhecemos várias obras nas quais pudemos analisar as repercussões da
experiência do Holocausto sobre homens e mulheres autores de suas narrativas e
percebemos o fato histórico com maior profundidade, inclusive pelas falas das
mulheres que foram vítimas e que expuseram, nos relatos, sua especificidade.
Mais ao final da pesquisa, evidenciaram-se, com muita força, as questões
relativas ao Revisionismo e ao Negacionismo, que não haviam sido contempladas
nas hipóteses ou objetivos iniciais da dissertação. Aspectos extremamente
relevantes, o Revisionismo e o Negacionismo foram abordados nas considerações
finais no trabalho, mas, certamente, poderiam essas questões comporem problemas
a serem refletidos numa futura tese de doutoramento.
É preciso perguntar para formular ou encontrar respostas. Levantar hipóteses e
suscitar a reflexão. Investigar para promover conhecimento. Estar em sintonia com
outros teóricos que buscam entender o Holocausto. Instigar as novas gerações a
considerarem o assunto. Assegurar o espaço devido à memória e à verdade
histórica. Por essas razões, esperamos que nosso trabalho tenha constituído
instrumento em favor da Educação e em favor da História. Com a fala de Stefano
Zampieri, queremos conjugar nossa voz à dele e reafirmar:
Eis que, para mim, o sentido mais autêntico da memória, dessa memória
especial que é a memória encarnada pela literatura do Lager, seja este:
recordar para interrogar, não apenas lembrar, lembrar para interrogar, que
é uma coisa muito mais complexa e muito mais envolvente, fazer perguntas
a nós mesmos, porque somos nós, agora, nós, no sentido de leitores,
ouvintes, neste momento, somos nós que precisamos juntar os
interrogativos, e somos nós, obviamente, que precisamos tentar
responder.Trazer de volta a lembrança, fazer circular de novo uma
memória que está sempre a ponto de desaparecer, assim como, aos
poucos, se apagam as vozes dos que poderiam dizer “eu estava lá”.
(ZAMPIERI, 2004, p. 79, grifos do autor)
93
93 “E allora, secondo me, il senso più autentico di questo tipo di memoria, di questa speciale memoria
che è la memoria incarnata dalla letteratura del Lager, può essere sintetizzato con questa formula:
ricordare per interrogare, non ricordare semplicemente, ricordare per interrogare che è una cosa molto
più complessa, e molto più coinvolgente: porre delle domande a noi perché siamo noi, ora, noi, nel
senso di lettori, ascoltatori, noi dobbiamo ovviamente provare a rispondere. Richiamare il ricordo,
132
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137
ANEXOS
138
Anexo 1 – Leis de Nüremberg
AS LEIS DE NÜREMBERG SÃO LEIS ESCRITAS PARA DEFENDER A RAÇA ALEMÃ E
DITAVAM O COMPORTAMENTO A SER ADOTADO EM RELAÇÃO AOS JUDEUS,
SOBRETUDO OS DE SANGUE MISTO.
LOGO ESSAS LEIS SE TORNARAM A “CONSTITUIÇÃO” DO REICH.
Obcecado pela crença de que a pureza do sangue alemão é a premissa para a preservação
do povo alemão, e animado pelo propósito irredutível de assegurar o futuro da nação alemã,
o Reichstag aprovou por unanimidade a seguinte lei que aqui é promulgada.
(par.1)
1. Estão proibidos os casamentos entre judeus e cidadãos da nação que tenham
sangue alemão ou afim. Os matrimônios celebrados são nulos mesmo que
celebrados no exterior, para fugir desta lei.
2. A ação legal para a anulação pode ser solicitada somente pelo Procurador do
Estado.
(par. 2)
Estão proibidas as relações extra-matrimoniais entre judeus e cidadãos do
estado que tenham sangue alemão ou afim.
(par. 3)
Os judeus não poderão contratar domésticas de sangue alemão ou afim abaixo
dos 45 anos.
(par. 4)
1. Aos judeus é proibido hastear a bandeira do Reich e a bandeira nacional, alem
de expor as cores do Reich.
2. É permitido aos judeus expor as cores judaicas. O exercício desta faculdade
está protegido pelo estado.
(par. 5)
1. Quem não obedecer à proibição citada no parágrafo 1 será punido com o
cárcere fechado.
139
2. Quem não obedecer às normas do parágrafo 2 será punido com a prisão e o
cárcere fechado.
3, Quem não obedecer às normas do par. 3 ou 4 será punido com a prisão até
um ano e com uma multa ou penas alternativas.
(par. 6)
O Ministro do Interior do Reich, de acordo com o substituto do Führer e o Ministro
da Justiça do Reich emana as normas jurídicas e administrativas necessárias
para o cumprimento e a integração da lei.
(par. 7)
Esta lei entra em vigor no dia de sua promulgação. O parágrafo 3, entra em vigor
a partir do 1 de janeiro de 1936.
Fonte: http://it.geocities.com/difensoridellarazza/legge.htm
140
Anexo 2 – Cronologia do Holocausto
(Fonte: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Holocausto: crime contra a humanidade. São Paulo: Ática,
2005, p. 86-93.)
141
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