sentimento igualmente natural, que desculpável, é que, no intento de deprimir o Tenório
do Minho, divulgava, como quem diz muito secretamente a coisa, que vários maridos.7
andavam enganados com Afonso de Teive; porém, como acontecia que os maridos
indigitados se satirizavam uns aos outros, observando e censurando cada um a
demasiada confiança do outro, é hoje coisa dificílima de tirar a limpo se algum dos
maridos se enganava, ou se todos se enganavam, ou se não se enganava nenhum. Se o
leitor considera que seria curioso esquadrinhar o caso, eu de mim entendo que a
humanidade não ganha com isso nada, e portanto neste, e em muitos outros artigos
advenientes de moral duvidosa, ponho, e porei ponto, quando não seja preciso à
contextura deste romance desvelar factos censuráveis.
Afonso saiu do Porto naquele mesmo ano de 1848, com destino à França, segundo
uns, e à Turquia, segundo outros. Os desta opinião diziam que ele, convencido de que
tinha uma cara oriental, ia para terra onde pudesse vestir-se de modo que o rosto lhe
saísse melhor do que entre uma gravata de laçarias portentosas e um canudo de felpo
lustroso. E certo era que o tipo fisionómico do cavalheiro minhoto era sobremaneira
árabe, por causa do nariz fino, dos olhos coruscantes, da tez azeitonada, do espesso
bigode negro e do comprimento e magreza do rosto. Se juntarmos a este composto de
venturosas e aventureiras feições o estar ele sempre fumegando por cachimbo turco, dir-
se-á que os Turcos é que propriamente, lá na sua terra, o andavam imitando a ele.
Se foi à Turquia, é de presumir que rivalidades com o sultão, ou - pior ainda -
tentativas de invasão ao harém, o obrigaram a voltar a Portugal, onde os direitos de cada
homem e de cada mulher estão muito mais razoavelmente definidos e garantidos. A
verdade é que eu, no fim do ano seguinte, encontrei Afonso de Teive em Lisboa, caval-
gando um donairoso alazão ao lado de uma amazona, cujo murzelo fazia admiráveis
gentilezas de picaria. Deu-se este encontro no Campo Grande, numa tarde de corridas
equestres. Alguém cuidaria que a soberba cavaleira, de uma formosura invejável tia
Circássia, devia de ser a esposa raptada de algum grão-vizir; pessoas, porém, melhor
informadas disseram-me que a esbelta dama era portuguesa do Minho, dos arrabaldes de
Braga, onde os reais sensualistas do Islão mandariam subornar as suas sultanas se
soubessem que nestas regiões as mulheres que, por acaso, saem feias das mãos da
natureza aprendem a ser bonitas com as flores. Releve-se, este orientalismo a quem está
tratando de coisas asiáticas como a cara de Afonso e o garbo peregrino de Palmira.
Palmira me disseram que se chamava a gentil criatura.
Posto que eu, em Coimbra e no Porto, me houvesse relacionado algum tanto
intimamente com Afonso de Teive, ainda assim, azado o ensejo de perguntar-lhe
pormenores daquela conquista - conquista se diz vulgarmente do que devera mais de siso
chamar-se, farta vezes, derrota -, nada indaguei, visto que ele, com insólito resguardo, se
absteve de me dar ansa a esgaravatar-lhe coisas particulares da vida - particulares,
dissemos, para sustentar à palavra a fama que o dicionário faz correr; sendo aliás de toda
a evidência que não há aí coisa mais nua, mais pública e assoalhada que tudo quanto se
chamam particularidades da vida privada, mormente quando o divulgarem-se torna e
redunda em filáucia de uns tolos célebres, que seriam invejáveis, se as próprias coroas,
com que cingem as frontes, lhes não dessem muito que doer com espinhos escondidos -
quero dizer em estilo espalmado: se as próprias mulheres, que lhes dão os triunfos, não
fossem os instrumentos com que a justiça infinita inflige aos vangloriosos o castigo
infernal do. seu orgulho.
Foi-me preciso escutar os boatos correntes à conta da mulher que Afonso de Teive
me não apresentou. Observei que ninguém a julgava honestamente, e assim mesmo
ninguém lhe dava um epíteto indecoroso. A civilização beneficia assim as mulheres que
não podem adjectivar-se publicamente virtuosas, nem mesmo quando visitam com a
esmola a mansarda do doente desvalido. Nesta especialidade, o jornalismo comporta-se
louvavelmente. Quando um localista apregoa o donativo de alguns lençóis que opulenta