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Do "Livro do Desasassocego.
composto por Bernardo
Soares, ajudante de guarda-
livros na cidade de Lisboa
por
Fernando Pessoa
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1
Autobiografia
sem fatos
L. do D. {Prefácio)
H á em Lisboa um pequeno número de restaurantes ou
casas de pasto [em] que, sobre uma loja com feitio de taberna
decente se ergue uma sobreloja com uma feição pesada e ca-
seira de restaurante de vila sem comboios. Nessas sobrelojas,
salvo ao domingo pouco freqüentadas, é freqüente encon-
trarem-se tipos curiosos, caras sem interesse, uma série de
apartes na vida.
O desejo de sossego e a conveniência de preços levaram-
me, em um período da minha vida, a ser freqüente em uma
sobreloja dessas. Sucedia que quando calhava jantar pelas
sete horas quase sempre encontrava um indivíduo cujo as-
pecto,o me interessando a princípio, pouco a pouco pas-
sou a interessar-me.
Era um homem que aparentava trinta anos, magro,
mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sen-
tado, mas menos quando de, vestido com um certo des-
leixoo inteiramente desleixado. Na face pálida e sem inte-
resse de feições um ar de sofrimentoo acrescentava inte-
resse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar
indicava parecia indicar vários, privações, angústias, e
aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de
ter sofrido muito.
Jantava sempre pouco, e acabava fumando tabaco de
onça. Reparava extraordinariamente para as pessoas que es-
FERNANDO PESSOA
tavam,o suspeitosamente, mas com um interesse espe-
cial; maso as observava como que perscrutando-as, mas
como que interessando-se por elas sem querer fixar-lhes as
feições ou detalhar-lhes as manifestações de feitio. Foi esse
traço curioso que primeiro me deu interesse por ele.
Passei a vê-lo melhor. Verifiquei que um certo ar de
inteligência animava de certo modo incerto as suas feições.
Mas o abatimento, a estagnação da angústia fria, cobriao
regularmente o seu aspecto que era difícil descortinar outro
traço além desse.
Soube incidentalmente, por um criado do restaurante,
que era empregado de comércio, numa casa ali perto.
Um dia houve um acontecimento na rua, por baixo das
janelas uma cena de pugilato entre dois indivíduos. Os
que estavam na sobreloja correram às janelas, e eu também,
e também o indivíduo de quem falo. Troquei com ele uma
frase casual, e ele respondeu no mesmo tom. A sua voz era
baça e trêmula, como a das criaturas queo esperam nada,
porque é perfeitamente inútil esperar. Mas era porventura
absurdo dar esse relevo ao meu colega vespertino de restau-
rante.
o sei porquê, passamos a cumprimentarmo-nos desde
esse dia. Um dia qualquer, que nos aproximara talvez a cir-
cunstância absurda de coincidir virmos ambos jantar às nove
e meia, entramos em uma conversa casual. A certa altura ele
perguntou-me se eu escrevia. Respondi que sim. Falei-lhe da
revista "Orpheu", que havia pouco aparecera. Ele elo-
giou-a, elogiou-a bastante, e eu então pasmei deveras. Per-
miti-me observar-lhe que estranhava, porque a arte dos que
escrevem em "Orpheu"i ser para poucos. Ele disse-me
que talvez fosse dos poucos. De resto, acrescentou, essa arte
o lhe trouxera propriamente novidade: e timidamente ob-
servou que,o tendo para onde ir nem que fazer, nem ami-
gos que visitasse, nem interesse em ler livros, soía gastar as
suas noites, no seu quarto alugado, escrevendo também.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Invejo maso sei se invejo aqueles de quem se
pode escrever uma biografia, ou que podem escrever a pró-
pria. Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, nar-
ro indiferentemente a minha autobiografia sem fatos, a mi-
nha história sem vida.o as minhas Confissões, e, se nelas
nada digo, é que nada tenho que dizer.
Que há (de alguém) confessar que valha ou que sirva?
O que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós;
num casoo é novidade, e no outroo é de compreender.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de
sentir. O que confessoo tem importância, pois nada tem
importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das
sensações. Compreendo bem as bordadoras por mágoa e as
que fazem meia porque há vida. Minha tia velha fazia pa-
ciências durante o infinito do serão. Estas confissões de sen-
tiro paciências minhas.o as interpreto, como quem
usasse cartas para saber o destino.o as ausculto, porque
nas paciências as cartasom propriamente valia. Desen-
rolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figu-
ras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se
passam de umas crianças para as outras. Cuido só de que o
polegaro falhe o laço que lhe compete. Depois viro ao
e a imagem fica diferente. E recomeço.
Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas,
ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encan-
tados podem passear nos seus parques entre mergulho e mer-
gulho da agulha de marfim com bico reverso. Crochê das
coisas... Intervalo... Nada...
De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade
horrível das sensações, e a compreensão profunda de estar
FERNANDO PESSOA
sentindo... Uma inteligência aguda para me destruir, e um
poder de sonho sôfrego de me entreter... Uma vontade morta
e uma reflexão que a embala, como a um filho vivo... Sim,
crochê...
e do alto da majestade de todos os sonhos, ajudante de
guarda-livros na cidade de Lisboa.
Mas o contrasteo me esmaga liberta-me; e a iro-
nia que há nele é sangue meu. O que devera humilhar-me é a
minha bandeira, que desfraldo; e o riso com que deveria rir
de mim, é um clarim com que saúdo e gero uma alvorada em
que me faço.
A glória noturna de ser grandeo sendo nada! A ma-
jestade sombria de esplendor desconhecido... E sinto, de re-
pente, o sublime do monge no ermo, do eremita no retiro,
inteirado da substância do Cristo nas pedras e nas cavernas
do afastamento.
E na mesa do meu quarto sou menos reles, empregado e
anônimo, escrevo palavras como a salvação da alma [...] anel
de renúcia em meu dedo evangélico, jóia parada do meu des-
m extático.
A personagem individual e imponente, que os român-
ticos figuravam em si mesmos, várias vezes, em sonho, a
tentei viver, e, tantas vezes, quantas a tentei viver, me en-
contrei a rir alto, da minha idéia de vivê-la. O homem fatal,
afinal, existe nos sonhos próprios de todos os homens vulga-
res, e o romantismoo é senão o virar do avesso do domínio
quotidiano des mesmos. Quase todos os homens sonham,
nos secretos do seu ser, um grande imperialismo próprio, a
sujeição de todos os homens, a entrega de todas as mulheres,
LIVRO DO DESASSOSSEGO
a adoração dos povos, e, nos mais nobres, de todas as eras...
Poucos (são) como eu habituados ao sonho,o por isso-
cidos bastante para rir da possibilidade estética de se sonhar
assim.
A maior acusação ao romantismoo se fez ainda: é a
de que ele representa a verdade interior da natureza humana.
Os seus exageros, os seus ridículos, os seus poderes vários de
comover e de seduzir, residem em que ele é a figuração exte-
rior do que há mais dentro na alma, mas concreto, visuali-
zado, até possível, se o ser possível dependesse de outra coisa
queo o Destino.
Quantas vezes eu mesmo, que rio de tais seduções da
distração, me encontro supondo que seria bom ser célebre,
que seria agradável ser ameigado, que seria colorido ser
triunfal! Maso consigo visionar-me nesses papéis de pín-
caro senão com uma gargalhada do outro eu que tenho sem-
pre próximo como uma rua da Baixa. Vejo-me célebre? Mas
vejo-me célebre como guarda-livros. Sinto-me alçado aos
tronos do ser conhecido? Mas o caso passa-se no escritório
da Rua dos Douradores e os rapazeso um obstáculo. Ouço-
me aplaudido por multidões variegadas? O aplauso chega ao
quarto andar onde moro e colide com a mobília tosca do meu
quarto barato, com o que me rodeia, e me amesquinha desde
a cozinha [...] ao sonho.o tive sequer reles castelos em
Espanha, como os grandes espanhóis de todas as ilusões. Os
meus foram de cartas de jogar, velhas, sujas, de um baralho
incompleto com que seo poderia jogar nunca; nem caí-
ram, foi preciso destruí-los, com um gesto de mão, sob o
impulso impaciente da criada velha, que queria recompor
sobre a mesa inteira, a toalha atirada sobre a metade de,
porque a hora do chá soara como uma maldição do Destino.
Mas até isto é uma visão improfícua, poiso tenho a casa de
província, ou as tias velhas, a cuja mesa eu tome, no fim de
uma noite de família, um chá que me saiba a repouso. O meu
FERNANDO PESSOA
sonho falhou até na metáforas e nas figurações. O meu im-
pério nem chegou às cartas velhas de jogar. A minha vitória
falhou sem um bule sequer nem um gato antiqüíssimo. Mor-
rerei como tenho vivido, entre o bric-à-brac dos arredores,
apreçado pelo peso entre os pós-escritos do perdido.
Como uma esperança negra, qualquer coisa de mais
antecipador pairou; a mesma chuva pareceu intimidar-se;
um negrume surdo calou-se sobre o ambiente. E súbito,
como um grito, um formidável dia estilhaçou-se. Uma luz de
inferno frio visitara o conteúdo de tudo, e enchera os cére-
bros e os recantos. Tudo pasmou. Um peso caiu de tudo
porque o golpe passara. A chuva triste era alegre com o seu
ruído bruto e humilde. Sem querer, o coração sentia-se e pen-
sar era um estonteamento. Uma vaga religião formava-se no
escritório. Ninguém estava quem era, e o patrão Vasques
apareceu à porta do gabinete para pensar em dizer qualquer
coisa. O Moreira sorriu, tendo ainda nos arredores da cara o
amarelo do medo súbito. E o seu sorriso dizia que sem-
vida o trovão seguinte deveria ser já mais longe. Uma car-
roça rápida estorvou alto os ruídos da rua. Involuntariamente
o telefone tiritou. O patrão Vasques, em vez de retroceder
para o escritório, avançou para o aparelho da sala grande.
Houve um repouso e um silêncio e a chuva caía como um
pesadelo. O patrão Vasques esqueceu-se do telefone, queo
tocara mais. O moço mexeu-se, ao fundo da casa, como uma
coisa incômoda.
Uma grande alegria, cheia de repouso e de livração, des-
concertou-nos a todos. Trabalhamos meio tontos, agradá-
veis, sociáveis com uma profusão natural. O moço, sem que
ninguém lho dissesse, abriu amplas as janelas. Um cheiro a
qualquer coisa fresca entrou, com o ar de água, pela grande
sala dentro. A chuva, já leve, caía humilde. Os sons da rua,
LIVRO DO DESASSOSSEGO
que continuavam os mesmos, eram diferentes. Ouvia-se a
voz dos carroceiros, e eram realmente gente. Nitidamente,
na rua ao lado, as campainhas dos elétricos tinham também
uma socialidade conosco. Uma gargalhada de criança deserta
fez de canário na atmosfera limpa. A chuva leve decresceu.
Eram seis horas. Fechava-se o escritório. O patrão Vas-
ques disse, do guarda-vento entreaberto, "Podem sair", e
disse-o como uma bênção comercial. Levantei-me logo, fe-
chei o livro e guardei-o. Pus a caneta visivelmente sobre a
depressão do tinteiro, e, avançando para o Moreira, disse-
lhe um "até amanhã" cheio de esperança, e apertei-lhe a
o como depois de um grande favor.
Quando outra virtudeo haja em mim, há pelo menos
a da perpétua novidade da sensação liberta.
Descendo hoje a Rua Nova do Almada, reparei de re-
pente nas costas do homem que a descia adiante de mim.
Eram as costas vulgares de um homem qualquer, o casaco de
um fato modesto num dorso de transeunte ocasional. Levava
uma pasta velha debaixo do braço esquerdo, e punha no
chão, no ritmo de andando, um guarda-chuva enrolado, que
trazia pela curva nao direita.
Senti de repente uma coisa parecida com ternura por
esse homem. Senti nele a ternura que se sente pela comum
vulgaridade humana, pelo banal quotidiano do chefe de fa-
mília que vai para o trabalho, pelo lar humilde e alegre dele,
pelos prazeres alegres e tristes de que forçosamente se com-
e a sua vida, pela inocência de viver sem analisar, pela
naturalidade animal daquelas costas vestidas.
Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde
vi estes pensamentos.
FERNANDO PESSOA
A sensação era exatamente idêntica àquela que nos as-
salta perante alguém que dorme. Tudo o que dorme é criança
de novo; Talvez porque no sonhoo se possa fazer mal, e se
o dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado
egoísla é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme.
Entre matar quem dorme e matar uma criançao conheço
diferença que se sinta.
Ora as costas deste homem dormem. Todo ele, que ca-
minha adiante de mim com passada igual à minha, dorme.
Vai inconsciente. Vive inconsciente. Dorme, porque todos
dormimos. Toda a vida é um sonho. Ninguém sabe o que
faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe.
Dormimos a vida, eternas crianças do Destino. Por isso sinto,
se penso com esta sensação, uma ternura informe e imensa
por toda a humanidade infantil, por toda vida social dormen-
te, por todos, por tudo.
É um humanitarismo direto, sem conclusões nem pro-
pósitos, o que me assalta neste momento. Sofro uma ternura
como se um deus visse. Vejo-os a todos através de uma com-
paixão de único consciente, os pobres-diabos homens, o po-
bre-diabo humanidade. O que está tudo isto a fazer aqui?
Todos os movimentos e intenções da vida, desde a sim-
ples vida dos pulmões até à construção de cidades e a fron-
teiração de impérios, considero-os como uma sonolência,
coisas como sonhos, ou repousos, passadas involuntaria-
mente no intervalo entre uma realidade e outra realidade,
entre um dia e outro dia do Absoluto. E, como alguém abs-
tratamente materno, debruço-me de noite sobre os filhos
maus como sobre os bons, comuns no sono em queo
meus. Enterneço-me com uma largueza de coisa infinita.
Desvio os olhos das costas do meu adiantado, e passan-
do-os a todos mais, quantoso andando nesta rua, a todos
abarco nitidamente na mesma ternura absurda e fria que me
LIVRO DO DESASSOSSEGO
veio dos ombros do inconsciente a quem sigo. Tudo isto é o
mesmo que ele; todas estas raparigas que falam para o ate-
lier, estes empregados jovens que riem para o escritório, es-
tas criadas de seios que regressam das compras pesadas, estes
moços dos primeiros fretes tudo isto é uma mesma in-
consciência diversificada por caras e corpos que se distin-
guem, como fantoches movidos pelas cordas queo dar aos
mesmos dedos dao de quem é invisível. Passam com toda
as atitudes com que se define a consciência, eom cons-
ciência de nada, porqueom consciência de ter consciên-
cia. Uns inteligentes, outros estúpidos,o todos igualmente
estúpidos. Uns velhos, outros jovens,o da mesma idade.
Uns homens, outros mulheres,o do mesmo sexo queo
existe.
Há dias em que cada pessoa que encontro, e, ainda mais,
as pessoas habituais do meu convívio forçado e quotidiano,
assumem aspectos de símbolos, e, ou isolados ou ligando-se,
formam uma escrita profética ou oculta, descritiva em som-
bras da minha vida. O escritório torna-se-me uma página
com palavras de gente; a rua é um livro; as palavras trocadas
com os usuais, os desabituais que encontro,o dizeres para
que me falta o dicionário maso de todo o entendimento.
Falam, exprimem, porémo é de si que falam, nem a si que
exprimem;o palavras, disse, eo mostram, deixam trans-
parecer. Mas, na minha visão crepuscular, só vagamente
distingo o que essas vidraças súbitas, reveladas na superfície
das coisas, admitem do interior que velam e revelam. En-
tendo sem conhecimento, como um cego a quem falem de
cores.
Passando às vezes na rua, ouço trechos de conversas
íntimas, e quase todaso da outra mulher, do outro ho-
mem, do rapaz da terceira ou da amante daquele, (...)
FERNANDO PESSOA
Levo comigo, só de ouvir estas sombras de discurso hu-
mano que é afinal o tudo em que se ocupam a maioria das
vidas conscientes, um tédio de nojo, uma angústia de exílio
entre aranhas e a consciência súbita do meu amarfanhamento
entre gente real; a condenação de ser vizinho igual, perante
o senhorio e o sítio, dos outros inquilinos do aglomerado,
espreitando com nojo, por entre as grades traseiras do ar-
mazém da loja, o lixo alheio que se entulha à chuva no sa-
guão que é a minha vida.
Senti-me inquieto. De repente, o silêncio deixara de
respirar.
Súbito, de aço, um dia infinito estilhaçou-se. Agachei-
me, animal, sobre a mesa, com as mãos garras inúteis sobre
a tábua lisa. Uma luz sem alma entrara nos recantos e nas
almas, e um som de montanha próxima desabara do alto,
rasgando num grito sedas do abismo. Meu coração parou.
Bateu-me a garganta. A minha consciência viu só um borrão
de tinta num papel.
Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer
de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhe-
cidas. A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho
calma só onde já tenho estado.
Quando me sentei na cadeira, perguntei, por um acaso
que lembra, ao rapaz barbeiro que me ia colocando no pes-
coço um linho frio e limpo, como ia o colega da cadeira da
direita, mais velho e com espírito, que estava doente. Per-
guntei-lhe sem que me pesasse a necessidade de perguntar:
LIVRO DO DESASSOSSEGO
ocorreu-me a oportunidade pelo local e a lembrança. "Mor-
reu ontem", respondeu sem tom a voz que estava por trás da
toalha e de mim, e cujos dedos se erguiam da última inserção
na nuca, entre mim e o colarinho. Toda a minha boa dispo-
sição irracional morreu de repente, como o barbeiro eterna-
mente ausente da cadeira ao lado. Fez frio em tudo quanto
penso.o disse nada.
Saudades! Tenho-as até do que meo foi nada, por
uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da
vida. Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais
se deixo de vê-las entristeço; eo me foram nada, ao
ser o símbolo de toda a vida.
O velho sem interesse das polainas sujas, que cruzava
freqüentemente comigo às nove e meia da manhã? O caute-
leiro coxo que me maçava inutilmente? O velhote redondo e
corado do charuto à porta da tabacaria? O dono pálido da
tabacaria? O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os
tornei a ver, foram parte da minha vida? Amanhã também
eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da
Rua dos Fanqueiros. Amanhã também eu — a alma que
sente e pensa, o universo que sou para mim sim, amanhã
eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que
outros vagamente evocarão com um "o que será dele?". E
tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo,o
será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de
ruas de uma cidade qualquer.
Qualquer deslocamento das horas usuais traz sempre ao
espírito uma novidade fria, um prazer levemente desconfor-
tante. Quem tem o hábito de sair do escritório às seis horas,
e por acaso saia às cinco, tem desde logo um feriado mental e
uma coisa que parece pena deo saber o que fazer de si.
FERNANDO PESSOA
Ontem, por ter de que tratar longe, saí do escritório às
quatro horas, e às cinco tinha terminado a minha tarefa afas-
tada.o costumo estar nas ruas àquela hora, e por isso
estava numa cidade diferente. O tom lento da luz nas fron-
tarias usuais era de uma doçura improfícua, e os transeuntes
de sempre passavam por mim na cidade ao lado, marinheiros
desembarcados da esquadra de ontem à noite.
Eram ainda horas de estar aberto o escritório. Recolhi a
ele com um pasmo natural dos empregados, de quem me
havia já despedido. Então de volta? Sim, de volta. Estava ali
livre de sentir, sozinho com os que me acompanhavam sem
que espiritualmente ali estivessem para mim... Era em certo
modo o lar, isto é, o lugar onde seo sente.
Sempre que podem, sentam-se defronte do espelho. Fa-
lam conosco e namoram-se de olhos a si mesmos. Por vezes,
como nos namoros, distraem-se da conversa. Fui-lhes sem-
pre simpático, porque a minha aversão adulta pelo meu as-
pecto me compeliu sempre a escolher o espelho como coisa
para onde virasse as costas. Assim, e eles de instinto o reco-
nheciam tratando-me sempre bem, eu era o rapaz escutador
que lhes deixava sempre livres a vaidade e a tribuna.
Em conjuntoo eram maus rapazes; particularmente
eram melhores e piores. Tinham generosidades e ternuras
insuspeitáveis a um tirador de médias, baixezas e sordidezas
difíceis de adivinhar por qualquer ente humano normal. Mi-
séria, inveja e ilusão assim os resumo, e nisso resumiria
aquela parte desse ambiente que se infiltra na obra dos ho-
mens de valor que alguma vez fizeram dessa estância de res-
saca um pousio de enganados., na obra de Fialho, a inveja
flagrante, a grosseria reles, a deselegância nauseante...).
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Unsm graça, outrosm só graça, outros aindao
existem. A graça dos cafés divide-se em ditos de espírito so-
bre os ausentes e ditos de insolência aos presentes. A este
gênero de espírito chama-se ordinariamente apenas grosse-
ria. Nada há mais indicador da pobreza da mente do queo
saber fazer espírito senão com pessoas.
Passei, vi, e, ao contrário deles, venci. Porque a minha
vitória consistiu em ver. Reconheci a identidade de todos os
aglomerados inferiores: vim encontrar aqui, na casa onde te-
nho um quarto, a mesma alma sórdida que os cafés me reve-
laram, salvo, graças aos deuses todos, a noção de vencer em
Paris. A dona desta casa ousa Avenidas Novas em alguns
dos seus momentos de ilusão, mas do estrangeiro está salva,
e o meu coração enternece-se.
Conservo dessa passagem pelo túmulo da vontade a me-
mória de um tédio nauseado e de algumas anedotas com es-
pírito.
o a enterrar, e parece que já no caminho do cemitério
se esqueceu no café o passado, pois vai calado agora.
... e a posteridade nunca saberá deles, escondidos dela
para sempre sob a mole negra dos pendões ganhados nas suas
vitórias de dizer.
Tudo ali é quebrado, anônimo e impertencente. Vi ali
grandes movimentos de ternura, que me pareceram revelar o
fundo de pobres almas tristes; descobri que esses movimen-
toso duravam mais que a hora em que eram palavras, e
que tinham raiz quantas vezes o notei com a sagacidade
dos silenciosos na analogia de qualquer coisa com o pie-
doso, perdida com a rapidez da novidade da notação, e, ou-
FERNANDO PESSOA
tras vezes, no vinho do jantar do enternecido. Havia sempre
uma relação sistematizada entre o humanitarismo e a aguar-
dente de bagaço, e foram muitos os grandes gestos que so-
freram do copo supérfluo ou do pleonasmo da sede.
Essas criaturas tinham todas vendido a alma a um diabo
da plebe infernal, avarento de sordidezas e de relaxamentos.
Viviam a intoxicação da vaidade e do ócio, a morriam mo-
lemente, entre coxins de palavras, num amarfanhamento de
lacraus de cuspo.
O mais extraordinário de toda essa gente era a nenhuma
importância, em nenhum sentido, de toda ela. Uns eram re-
datores dos principais jornais, e conseguiamo existir; ou-
tors tinham lugares públicos em vista do anuário e conse-
guiamo figurar em nada da vida; outros eram poetas até
consagrados, mas uma mesma poeira de cinza lhes tornava
lívidas as faces párvoas, e tudo era um túmulo de embalsa-
mados hirtos, postos com ao nas costas em posturas de
vidas.
Guardo do pouco tempo que me estagnei nesse exílio da
esperteza mental uma recordação de bons momentos de graça
franca, de muitos momentos monótonos e tristes, de alguns
perfis recortados no nada, de alguns gestos dados às serven-
tes do acaso, e, em resumo, um tédio de náusea física e a
memória de algumas anedotas com espírito.
Neles se intercalavam, como espaços, uns homens de
mais idade, alguns com ditos de espírito pregresso, que di-
ziam mal como os outros, e das mesmas pessoas.
Nunca senti tanta simpatia pelos inferiores da glória-
blica como quando os vi malsinar por estes inferiores sem
querer essa pobre glória. Reconheci a razão do triunfo por-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
que os párias do Grande triunfavam em relação a estes, eo
em relação à humanidade.
Pobres-diabos sempre com fome ou com fome de al-
moço, ou com fome de celebridade, ou com fome das sobre-
mesas da vida. Quem os ouve, e oso conhece, julga estar
escutando os mestres de Napoleão e os instrutores de Sha-
kespeare.
Há os que vencem no amor, há os que vencem na polí-
tica, há os que vencem na arte. Os primeirosm a vantagem
da narrativa, pois se pode vencer largamente no amor sem
haver conhecimento célebre do que sucedeu. É certo que, ao
ouvir contar a qualquer desses indivíduos as suas Maratonas
sexuais, uma vaga suspeita nos invade, pela altura do sétimo
desfloramento. Os queo amantes de senhoras de título, ou
muito conhecidas (são, aliás, quase todos), fazem um tal
gasto de condessas que uma estatística das suas conquistas
o deixaria sérias e comedidas nem as bisavós dos títulos
presentes.
Outros especializam no conflito físico, e mataram os
campeões de box da Europa numa noite de pândega, á es-
quina do Chiado. Unso influentes junto de todos os mi-
nistros de todos os ministérios, e esteso aqueles de que
menos há que duvidar, poiso repugna.
Unso grandes sádicos, outroso grandes pederas-
tas, outros confessam, com uma tristeza de voz alta, queo
brutais com mulheres. Trouxeram-nas ali, a chicote, pelos
caminhos da vida. No fim ficam a dever o café.
Há os poetas, há os (...)
FERNANDO PESSOA
o conheço melhor cura para toda esta enxurrada de
sombras que o conhecimento direito da vida humana cor-
rente, na sua realidade comercial, por exemplo, como a que
surge no escritório da Rua dos Douradores. Com que alívio
eu volvia daquele manicômio de títeres para a presença real
do Moreira, meu chefe, guarda-livros autêntico e sabedor,
mal vestido e maltratado, mas, o que nenhum dos outros
conseguia ser, o que se chama um homem...
Comparados com os homens simples e autênticos, que
passam pelas ruas da vida, com um destino natural e calhado,
essas figuras dos cafés assumem um aspecto queo sei defi-
nir senão comparando-as a certos duentes de sonhos figu-
ras queoo de pesadelo nem de mágoa, mas cuja recor-
dação, quando acordamos, nos deixa, sem que saibamos por-
que, um sabor a um nojo passado, um desgosto de qualquer
coisa que está com eles mas que seo pode definir como
sendo deles.
Vejo os vultos dos gênios e dos vencedores reais, mes-
mo pequenos, singrar na noite das coisas sem saber o que
cortam as suas proas altivas, nesse mar de sargaço de palha
de embalagem e aparas de cortiça.
Ali se resume tudo, como no chão do saguão do prédio
do escritório, que, visto através das grades da janela do ar-
mazém, parece uma cela para prender lixo.
Hoje, em um dos devaneios sem propósito nem digni-
dade que constituem grande parte da substância espiritual da
minha vida, imaginei-me liberto para sempre da Rua dos
Douradores, do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira,
dos empregados todos, do moço, do garoto é do gato. Senti
LIVRO DO DESASSOSSEGO 59
em sonho a minha libertação, como se mares do Sul me hou-
vessem oferecido ilhas maravilhosas por descobrir. Seria en-
o o repouso, a arte conseguida, o cumprimento intelectual
do meu ser.
Mas de repente, e no próprio imaginar, que fazia num
café no feriado modesto do meio-dia, uma impressão de desa-
grado me assaltou o sonho: senti que teria pena. Sim, digo-o
como se o dissesse circunstaciadamente: teria pena. O patrão
Vasques, o guarda-livros Moreira, o caixa Borges, os bons
rapazes todos, o garoto alegre que leva as cartas ao correio, o
moço de todos os fretes, o gato meigo tudo isso se tornou
parte da minha vida;o poderia deixar tudo isso cem cho-
rar, sem compreender que, por mau que me parecesse, era
parte de mim que ficava com eles todos, que o separar-me
deles era uma metade e semelhança da morte.
Aliás, se amanhã me apartasse deles todos, e despisse
este trajo da Rua dos Douradores, a que outra coisa me che-
garia por que a outra me haveria de chegar?, de que outro
trajo me vestiria por que de outro me haveria de vestir?
Todos temos o patrão Vasques, para uns visível, para
outros invisível. Para mim chama-se realmente Vasques, e é
um homem sadio, agradável, de vez em quando brusco mas
sem lado de dentro, interesseiro mas no fundo justo, com
uma justiça que falta a muitos grandes gênios e a muitas
maravilhas humanas da civilização, direita e esquerda. Para
outros será a vaidade, a ânsia de maior riqueza, a glória, a
imortalidade... Prefiro o Vasques homem meu patrão, que é
mais tratável, nas horas difíceis, que todos os patrões abstra-
tos do mundo.
Considerando que eu ganhava pouco, disse-me o outro
dia um amigo, sócio de uma firma que é próspera por negó-
cios com todo o Estado: "você é explorado, Borges" [sic],
60
FERNANDO PESSOA
Recordou-me isso de que o sou; mas como na vida temos
todos que ser explorados, pergunto se valerá menos a pena
ser explorado pelo Vasques das fazendas do que pela vaidade,
pela glória, pelo despeito, pela inveja ou pelo impossível.
Há os que Deus mesmo explora, eo profetas e santos
na vacuidade do mundo.
E recolho-me, como ao lar que os outros têm, à casa
alheia, escritório amplo, da Rua dos Douradores. Achego-
me à minha secretária como a um baluarte contra a vida.
Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros de
outros em que escrituro, pelo tinteiro velho de que me sirvo,
pelas costas dobradas do Sérgio, que faz guias de remessa um
pouco para além de mim. Tenho amor a isto, talvez porque
o tenha mais nada que amar ou talvez, também, porque
nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento
que o dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tin-
teiro como à grande indiferença das estrelas.
Irrita-me a felicidade de todos estes homens queo sa-
bem queo infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo
quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibi-
lidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vege-
tativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e
vivem uma vida que se pode comparar somente a de um ho-
mem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna
a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o
maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes
ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro
modo) à alegria e à dor.
Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos ve-
getais!
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é,
aliás, a única que. E capricho, às vezes, em aprofundar
essa náusea, como se pode provocar um vômito para aliviar a
vontade de vomitar.
Um dos meus passeios prediletos, nas manhãs em que
temo a banalidade do dia que vai seguir como quem teme a
cadeia, é o de seguir lentamente pelas ruas fora, antes da
abertura das lojas e dos armazéns, e ouvir os farrapos de fra-
ses que os outros de raparigas, de rapazes, e de uns com
outras, deixam cair, como esmolas da ironia, na escola invi-
sível da minha meditação aberta.
E é sempre a mesma sucessão das mesmas frases... "E
então ela disse..." e o tom diz da intriga dela. "Seo for
ele, foste tu..." e a voz que responde ergue-se no protesto
que jáo ouço. ' 'Disseste, sim senhor, disseste..." e a voz
da costureira afirma estridentemente "minhae diz que
o quer..." "Eu?" e o pasmo do rapaz que traz o lanche
embrulhado em papel manteigao me convence, nem deve
convencer a loura suja. "Se calhar era..." e o riso de três
das quatro raparigas cerca do meu ouvido a obscenidade que
(...) "E então pus-me mesmo diante do gajo, e ali mesmo na
cara dele na cara dele, hein, ó Zé..." e o pobre-diabo
mente, pois o chefe do escritório sei pela voz que o outro
contendor era chefe do escritório que desconheçoo lhe
recebeu na arena entre as secretárias o gesto de gladiador de
palhinhas [?]"... E então eu fui fumar para a retrete..." ri
o pequeno de fundilhos escuros.
Outros, que passams ou juntos,o falam, ou falam
e euo ouço, mas as vozes todas são-me claras por uma
FERNANDO PESSOA
transparência intuitiva e rota.o ouso dizero ouso
dizê-lo a mim mesmo em escrita, ainda que logo a cortasse
o que tenho visto nos olhares casuais, na sua direção in-
voluntária e baixa, nos seus atravessamentos sujos.o ouso
porque, quando se provoca o vômito, é preciso provocar só
um.
' 'O gajo estavao grosso que nem via a escada''. Ergo
a cabeça. Este rapazote, ao menos descreve. E esta gente
quando descreve é melhor do que quando sente, porque por
descrever esquece-se de si. Passa-me a náusea. Vejo o gajo.
Vejo-o fotograficamente. Até o calão inocente me anima.
Bendito ar que me dá na fronte o gajoo grosso que nem
via que era de degraus a escada talvez a escada onde a
humanidade sobe aos tombos, apalpando-se e atropelando-se
na falsidade regrada do declive aquém do saguão.
A intriga, a maledicência, a prosápia falada do que se
o ousou fazer, o contentamento de cada pobre bicho ves-
tido com a consciência inconsciente [?] da própria alma,
a sexualidade sem lavagem, as piadas como cócegas de ma-
caco, a horrorosa ignorância da inimportância do que são...
Tudo isto me produz a impressão de um animal monstruoso
e reles, feito no involuntário dos sonhos, das códeas úmidas
dos desejos, dos restos trincados das sensações.
Às vezes, quando ergo a cabeça estonteada dos livros
em que escrevo as contas alheias e a ausência de vida própria,
sinto uma náusea física, que pode ser de me curvar, mas que
transcende os números e a desilusão. A vida desgosta-me
como um remédio inútil. E é então que eu sinto com visões
claras como seria fácil o afastamento deste tédio se eu tivesse
a simples força de o querer deveras afastar.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Vivemos pela ação, isto é, pela vontade. Aos queo
sabemos querer sejamos gênios ou mendigos irmana-
nos a impotência. De que me serve citar-me gênio se resulto
ajudante de guarda-livros? Quando Cesário Verde fez dizer
ao médico que era,o o Sr. Verde empregado no comércio,
mas o poeta Cesário Verde, usou de um daqueles verbalis-
mos do orgulho inútil que suam o cheiro da vaidade. O que
ele foi sempre, coitado, foi o Sr. Verde empregado no comér-
cio. O poeta nasceu depois de ele morrer, porque foi depois
de ele morrer que nasceu a apreciação do poeta.
Agir, eis a inteligência verdadeira. Serei o que quiser.
Mas tenho que querer o que for. O êxito está em ter êxito, e
o em ter condições de êxito. Condições de palácio tem
qualquer terra larga, mas onde estará o palácio se oo fica-
rem
ali ?
Pedio pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me
negou. Uma réstia de parte do sol, um campo [...], um bo-
cado de sossego com um bocado de pão,o me pesar muito
o conhecer que existo, eo exigir nada dos outros nem
exigirem eles nada de mim. Isto mesmo me foi negado, como
quem nega a sombrao por falta de boa alma mas parao
ter que desabotoar o casaco [... ]
Escrevo, triste, no quarto quieto, sozinho como sempre
tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se, a minha
voz, aparentementeo pouca coisa,o encarna a substân-
cia de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares
de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a
minha no destino quotidiano ao sonho inútil, à esperança
sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais
alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo
maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espé-
FERNANDO PESSOA
cie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reação con-
tra mim desce-me da inteligência... Vejo-me no quarto an-
dar alto da Rua dos Douradores, sinto-me com sono; olho,
sobre o papel meio escrito, a vida vã sem beleza e o cigarro
barato [...] sobre o mata-borrão velho. Aqui eu, neste quar-
to andar, a interpelar a vida! a dizer o que as almas sentem!
afazer prosa [...]
Penso às vezes que nunca sairei da Rua dos Douradores.
E isto escrito, então, parece-me a eternidade.
O patrão Vasques. Tenho, muitas vezes, inexplicavel-
mente, a hipnose do patrão Vasques. Que me é esse homem,
salvo o obstáculo ocasional de ser dono das minhas horas,
num tempo diurno da minha vida? Trata-me bem, fala-me
com amabilidade, salvo nos momentos bruscos de preocupa-
ção desconhecida em queo fala bem a alguém. Sim, mas
por que me preocupa? É um símbolo? É uma razão? O que é?
O patrão Vasques. Lembro-me já dele no futuro com a
saudade que sei que hei de ter então. Estarei sossegado numa
casa pequena nos arredores de qualquer coisa, fruindo um
sossego ondeo farei a obra queo faço agora, e buscarei,
para a continuar ao ter feito, desculpas diversas daquelas
em que hoje me esquivo a mim. Ou estarei internado num
asilo de mendicidade, feliz da derrota inteira, misturado com
a ralé dos que se julgaram gênios eo foram mais que men-
digos com sonhos, junto com a massa anônima dos queo
tiveram poder para vencer nem renúncia larga para vencer do
avesso. Seja onde estiver, recordarei com saudade o patrão
Vasques, o escritório da Rua dos Etouradores, e a monotonia
da vida quotidiana será para mim como a recordação dos
LIVRO DO DESASSOSSEGO 65
amores que meo foram advindos, ou dos triunfos que
o haveriam de ser meus.
O patrão Vasques. Vejo de lá hoje, como o vejo hoje de
aqui mesmo estatura média, atarracado, grosseiro com li-
mites e afeições, franco e astuto, brusco e afável chefe, à
parte o seu dinheiro, nas mãos cabeludas e lentas, com as
veias marcadas como pequenos músculos coloridos, o pes-
coço cheio maso gordo, as faces coradas e ao mesmo tem-
po tensas, sob a barba escura sempre feita a horas. Vejo-o,
vejo os seus gestos de vagar enérgico, os seus olhos a pensar
para dentro coisas de fora, recebo a perturbação da sua oca-
sião em que lheo agrado, e a minha alma alegra-se com o
seu sorriso, um sorriso amplo e humano, como o aplauso de
uma multidão.
Será, talvez, porqueo tenho próximo de mim figura
de mais destaque do que o patrão Vasques, que, muitas ve-
zes, essa figura comum e até ordinária se me emaranha na
inteligência e me distrai de mim. Creio que há símbolo. Creio
ou quase creio que algures, em uma vida remota, este ho-
mem foi qualquer coisa na minha vida mais importante do
que é hoje.
A tragédia principal da minha vida é, como todas as
tragédias, uma ironia do Destino. Repugno a vida real como
uma condenação; repugno o sonho como uma libertação ig-
nóbil. Mas vivo o mais sórdido e o mais quotidiano da vida
real; e vivo o mais intenso e o mais constante do sonho. Sou
como um escravo que se embebeda à sesta duas misérias
em um corpo.
Sim, vejo nitidamente, com a clareza com [que] os re-
lâmpagos da razão destacam do negrume da vida os objetos
FERNANDO PESSOA
próximos que nô-la formam, o que há de vil, de lasso, de dei-
xado e factício, nesta Rua dos Douradores que me é a vida
inteira este escritório sórdido até à sua medula de gente,
este quarto mensalmente alugado onde nada acontece senão
viver um morto, esta mercearia da esquina cujo dono co-
nheço como gente conhece gente, estes moços da porta da
taberna antiga, esta inutilidade trabalhosa de todos os dias
iguais, esta repetição pegada das mesmas personagens, como
um drama que consiste apenas no cenário, e o cenário esti-
vesse às avessas...
Mas vejo também que fugir a isto seria ou dominá-lo ou
repudiá-lo, e eu nem o domino, porque oo excedo aden-
tro do real, nem o repudio porque, sonhe o que sonhe, fico
sempre onde estou.
E o sonho, a vergonha de fugir para mim, a covardia de
ter como vida aquele lixo da alma que os outrosm só no
sono, na figura da morte com que ressonam, na calma com
que parecem vegetais progredidos!
o poder ter um gesto nobre queo seja de portas a
dentro, nem um desejo inútil queo seja deveras inútil!
Definiu César toda a figura da ambição quando disse
aquelas palavras: "Antes o primeiro na aldeia do que o se-
gundo em Roma!'' Euo sou nada nem na aldeia nem em
Roma nenhuma. Ao menos, o merceeiro da esquina é res-
peitado na Rua da Assunção até à Rua da Vitória; é o César
de um quarteirão. Eu superior a ele? Em quê, se o nadao
comporta superioridade, nem inferioridade, nem compa-
ração?
É César de todo um quarteirão e as mulheres gostam
dele condignamente.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
E assim arrasto a fazer o queo quero, e a sonhar o
queo posso ter, a minha vida (...), absurda como um reló-
gio público parado.
Aquela sensibilidade tênue, mas firme, o sonho longo
mas consciente (...) que forma no seu conjunto o meu privi-
légio de penumbra.
O relógio que está lá para trás, na casa deserta, porque
todos dormem, deixa cair lentamente o quádruplo som claro
das quatro horas de quando é noite.o dormi ainda, nem
espero dormir. Sem que nada me detenha a atenção, e assim
o durma, ou me pese no corpo, e por issoo sossegue,
jazo na sombra, que o luar vago dos candeeiros da rua torna
ainda mais desacompanhada, o silêncio amortecido do meu
corpo estranho. Nem sei pensar, do sono que tenho; nem sei
sentir, do sono queo consigo ter.
Tudo em meu torno é o universo nu, abstrato, feito
de negações noturnas. Divido-me em cansado e inquieto, e
chego a tocar com a sensação do corpo um conhecimento
metafísico do mistério das coisas. Por vezes amolece-se-me a
alma,e então os pormenores sem forma da vida quotidiana
bóiam-se-me à superfície da consciência, e estou fazendo lan-
çamentos à tona deo poder dormir. Outras vezes, acordo
de dentro do meio-sono em que estagnei, e imagens vagas,
de um colorido poético e involuntário, deixam escorrer pela
minha desatenção o seu espetáculo sem ruídos.o tenho os
olhos inteiramente cerrados. Orla-me a vista frouxa uma luz
que vem de longe;o os candeeiros públicos acesos lá em
baixo, nos confins abandonados da rua.
Cessar, dormir, substituir esta consciência intervalada
por melhores coisas melancólicas ditas em segredo ao que me
FERNANDO PESSOA
desconhecesse!... Cessar, passar fluido e ribeirinho, fluxo e
refluxo de um mar vasto, em costas visíveis na noite em que
verdadeiramente se dormisse!... Cessar, ser incógnito e ex-
terno, movimento de ramos em aléias afastadas, tênue cair
de folhas, conhecido no som mais que na queda, mar alto
fino dos repuxos ao longe, e todo o indefinido dos parques na
noite, perdidos entre emaranhamentos contínuos, labirintos
naturais da treva! .. Cessar, acabar finalmente, mas com
uma sobrevivência translata, ser a página de um livro, a ma-
deixa de um cabelo solto, o oscilar da trepadeira ao pé da
janela entreaberta, os passos sem importância no cascalho
fino da curva, o último fumo alto da aldeia que adormece,
o esquecimento do chicote do carroceiro à beira matutina do
caminho... O absurdo, a confusão, o apagamento tudo
queo fosse a vida...
E durmo, a meu modo, sem sono nem repouso, esta
vida vegetativa da suposição, e sob as minhas pálpebras sem
sossego paira, como a espuma quieta de um mar sujo, o re-
flexo longínquo dos candeeiros mudos da rua.
Durmo e desdurmo.
Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo, o si-
lêncio da casa toca no infinito. Ouço cair o tempo, gota a
gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair. Oprime-me fisi-
camente o coração físico a memória, reduzida a nada, de tudo
quanto foi ou fui. Sinto a cabeça materialmente colocada na
almofada em que a tenho fazendo vale. A pele da fronha tem
com a minha pele um contato de gente na sombra. A própria
orelha, sobre a qual me encosto, grava-se-me matematica-
mente contra o cérebro. Pestanejo de cansaço, e as minhas
pestanas fazem um som pequeníssimo, inaudível, na bran-
cura sensível da almofada erguida. Respiro, suspirando, e a
minha respiração aconteceo é minha. Sofro sem sentir
nem pensar. O relógio da casa, lugar certo lá ao fundo das
LIVRO DO DESASSOSSEGO 69
coisas, soa a meia-hora seca e nula. Tudo é tanto, tudoo
fundo, tudo éo negro eo frio!
Passo tempos, passo silêncios, mundos sem forma pas-
sam por mim.
Subitamente, como uma criança do Mistério, um galo
canta sem saber da noite. Posso dormir, porque é manhã em
mim. E sinto a minha boca sorrir, deslocando levemente as
pregas moles da fronha que me prende o rosto. Posso deixar-
me à vida, posso dormir, posso ignorar-me... E, através do
sono novo que me escurece, ou lembro o galo que cantou, ou
é ele, deveras, que canta segunda vez.
Do terraço deste café olho tremulamente para a vida.
Pouco vejo dela a espalhada nesta sua concentração
neste largo nítido e meu. Um marasmo, como um começo de
bebedeira, elucida-me a alma de coisas. Decorre fora de mim
nos passos dos que passam [...] a vida evidente e unânime.
Nesta hora os sentidos estagnaram-me e tudo me parece
outra coisa as minhas sensações um erro confuso e lúcido,
abro asas maso me movo, como um condor suposto.
Homem de ideais que sou, quem sabe se a minha maior
aspiraçãoo é realmenteo passar de ocupar este lugar a
esta mesa deste café?
Tudo é vão, como mexer em cinzas, vago como o mo-
mento em que aindao é antemanhã.
E a luz brotao serenamente e perfeitamente nas coi-
sas, doura-aso de realidade sorridente e triste! Todo o mis-
tério do mundo desce até ante meus olhos se esculpir em
banalidade e rua.
Ah, como as coisas quotidianas roçam mistérios por
nós! Como à superfície, que a luz toca, desta vida complexa
70 FERNANDO PESSOA
de humana [?], a Hora, sorriso incerto, sobe aos lábios do
Mistério! Que moderno que tudo isto soa! E, no fundoo
antigo,o oculto,o tendo outro sentido que aquele que
luz em tudo isto!
Tudo se me tornou insuportável, exceto a vida o es-
critório, a casa, as ruas — o contrário até, se o tivesse me
sobrebasta e oprime; só o conjunto me alivia. Sim, qualquer
coisa de tudo isto é bastante para me consolar. Um raio de
sol que entre eternamente no escritório morto; um pregão
atirado que sobe rápido até à janela do meu quarto; a exis-
tência de gente; o haver clima e mudança de tempo, a espan-
tosa objetividade do mundo...
O raio de sol entrou de repente para mim, que de re-
pente o vi... Era, porém, um risco de luz muito agudo, quase
sem cor a cortar à faca nua o chão negro e madeirento, a
avivar a roda de onde passava, os pregos velhos e os sulcos
entre as tábuas, negras pautas do não-branco.
Minutos seguidos segui o efeito insensível da penetra-
ção do sol no escritório quieto... Ocupações do cárcere! Só
os enclausurados vêem assim o sol mover-se, como quem
olha para formigas.
Nos primeiros dias do outono subitamente entrado,
quando o escurecer toma uma evidência de qualquer coisa
prematura, e parece que tardamos muito no que fazemos de
dia, gozo, mesmo entre o trabalho quotidiano, esta anteci-
pação deo trabalhar que a própria sombra traz consigo,
por isso que é noite e a noite é sono, lares, livramento.
Quando as luzes se acendem no escritório amplo que deixa
LIVRO DO DESASSOSSEGO 71
de ser escuro, e fazemos serão sem que cessássemos de traba-
lhar de dia, sinto um conforto absurdo como uma lembrança
de outrem, e estou sossegado com o que escrevo como se
estivesse lendo até sentir que irei dormir.
Somos todos escravos de circunstâncias externas: um
dia de sol abre-nos campos largos no meio de um café de vie-
la; uma sombra no campo encolhe-nos para dentro, e abri-
gamo-nos mal na casa sem portas des mesmos; um chegar
da noite, até entre coisas do dia, alarga, como um leque
[que] se abra lento, a consciência íntima de dever-se re-
pousar.
Mas com isso o trabalhoo se atrasa: anima-se. Jáo
trabalhamos; recreamo-nos com o assunto a que estamos
condenados. E, de repente, pela folha vasta e pautada do meu
destino numerador, a casa velha das tias antigas alberga, fe-
chada contra o mundo, o chá das dez horas sonolentas, e o
candeeiro de petróleo da minha infância perdida brilhando
somente sobre a mesa linho, obscurece-me, com a luz, a vi-
o do Moreira, iluminado a uma eletricidade negra infinitos
para além de mim. Trazem o chá é a criada mais velha
que as tias que o traz com os restos do sono e o mau humor
paciente da ternura da velha vassalagem — e eu escrevo sem
errar uma verba ou uma soma através de todo o meu passado
morto. Reabsorvo-me, perco-me em mim, esqueço-me a
noites longínquas, impolutas de dever e de mundo, virgens
de mistério e de futuro.
Eo suave é a sensação que me alheia do débito e do
crédito que, se acaso uma pergunta me é feita, respondo sua-
vemente, como se tivesse o meu ser oco, como seo fosse
mais que a máquina de escrever que trago comigo, portátil
de mim mesmo aberto.o me choca a interrupção dos
meus sonhos: deo suaves que são, continuo sonhando-os
por trás de falar, escrever, responder, conversar até. E atra-
72 FERNANDO PESSOA
s de tudo o chá perdido finda, e o escritório vai fechar...
Ergo do livro, que cerro lentamente, olhos cansados do cho-
ro queo tiveram, e, numa mistura de sensações, sofro que
ao fechar o escritório se me feche o sonho também; que no
gesto deo com que cerro o livro encubra o passado irrepa-
rável; que vá para a cama da vida sem sono, sem companhia
nem sossego, no fluxo e refluxo da minha consciência mis-
turada, como duas marés na noite negra, no fim dos destinos
da saudade e da desolação.
Encaro serenamente, sem mais nada que o que na alma
represente um sorriso, o fechar-se-me sempre a vida nesta
Rua dos Douradores, neste escritório, nesta atmosfera desta
gente. Ter o que me dê para comer e beber, e onde habite, e
o pouco espaço livre no tempo para sonhar, escrever dor-
mir que mais posso eu pedir aos Deuses ou esperar do
Destino?
Tive grandes ambições e sonhos dilatados mas esses
também os teve o moço de fretes ou a costureira, porque
sonhos tem toda a gente: o que nos diferença é a força de
conseguir ou o destino de se conseguir conosco.
Em sonhos sou igual ao moço de fretes e à costureira. Só
me distingue deles o saber escrever. Sim, é um ato, uma rea-
lidade minha que me diferença deles. Na alma sou eu igual.
Bem sei que há ilhas ao Sul e grandes paixões cosmopo-
listase (...).
Se eu tivesse o mundo na mão, trocava-o, estou certo,
por um bilhete para [a] Rua dos Douradores.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-li-
vros, e a poesia ou a literatura uma borboleta que, pousando-
me na cabeça, me torne tanto mais ridículo quanto maior for
a sua própria beleza.
Terei saudades do Moreira, mas o queo saudades pe-
rante as grandes ascensões?
Sei bem que o dia em que for guarda-livros da casa Vas-
ques e Cia. será um dos grandes dias da minha vida. Seio
corn uma antecipação amarga e irônica, mas sei-o com a van-
tagem intelectual da certeza.
Hoje como me oprimisse a sensação do corpo aquela
angústia antiga que por vezes extravasa,o comi bem, nem
bebi o costume, no restaurante, ou casa de pasto, em cuja
sobreloja baseio a continuação da minha existência. E, como
ao sair eu [?], o criado verificasse que a garrafa de vinho fi-
cara em meio voltou-se para mim e disse: "até logo, sr. Soa-
res, e desejo as melhoras".
Ao toque de clarim desta frase simples a minha alma
aliviou-se como se numu de nuvens o vento de repente as
afastasse. E então reconheci o que nunca claramente reco-
nhecera, que nestes criados de café e de restaurante, nos bar-
beiros, nos moços de frete das esquinas, eu tenho uma sim-
patia espontânea, natural queo posso orgulhar-me de re-
ceber dos que privam comigo em mais intimidade, impro-
priamente dita...
A fraternidade tem sutilezas.
Uns governam o mundo, outroso o mundo. Entre
um milionário americano, com bens na Inglaterra ou Suíça e
o chefe Socialista da aldeiao há diferença de qualidade
mas apenas de quantidade. Abaixo [...] destes, nós, os amor-
fos, o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o mes-
FERNANDO PESSOA
tre-escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, o moço de
fretes que me fez ontem o recado, ou o barbeiro que me conta
anedotas, o criado que acaba de me fazer a fraternidade de me
desejar aquelas melhoras, por euo ter bebido senão me-
tade do vinho.
O homem magro sorriu desleixadamente. Olhou-me
com uma desconfiança queo era malévola. Depois sorriu
novamente, mas com tristeza. Baixou, depois, outra vez, os
olhos sobre o prato. Continuou jantando em silêncio e ab-
sorção.
As carroças da rua ronronam, sons separados, lentos,
de acordo, parece, com a minha sonolência. É a hora do al-
moço mas fiquei no escritório. O dia é tépido e um pouco
velado. Nos ruídos, por qualquer razão, que talvez seja a
minha sonolência, a mesma coisa que há no dia.
Descobri que penso sempre, e atendo sempre, a duas
coisas no mesmo tempo. Todos, suponho, serão um pouco
assim. Há certas impressõeso vagas que só depois, porque
nos lembramos delas, sabemos que as tivemos; dessas im-
pressões, creio, se formará uma parte — a parte interna, tal-
vez da dupla atenção de todos os homens. Sucede comigo
quem igual relevo as duas realidades a que atendo. Nisto
consiste a minha originalidade. Nisto, talvez, consiste a mi-
nha tragédia, e a comédia dela.
Escrevo atentamente, curvado sobre o livro em que faço
a lançamentos a história inútil de uma firma obscura; e, ao
LIVRO DO DESASSOSSEGO
mesmo tempo, o meu pensamento segue, com igual atenção,
a rota de um navio inexistente por paisagens de um oriente
queo. As duas coisas estão igualmente nítidas, igual-
mente visíveis perante mim: a folha onde escreve com cui-
dado, nas linhas pautadas, os versos da epopéia comercial de
Vasques e Cia., e o convés onde vejo com cuidado, um pouco
ao lado da pauta alcatroada dos interstícios das tábuas, as
cadeiras longas alinhadas, e as pernas saídas que sossegam na
viagem.
(Se eu for atropelado por um bicicleta de criança, essa
bicicleta de criança torna-se parte da minha história.)
Intervém a saliência da casa de fumo; por isso só as per-
nas se vêem.
Avanço a pena para o tinteiro e da porta da casa de fumo
[...] mesmo ao pé de onde sinto que estou sai o vulto
do desconhecido. Vira-me as costas e avança para os outros.
O seu modo de andar é lento e as ancaso dizem muito
[...] Começo um outro lançamento. Tento ver porque ia en-
ganado. É a débito eo a crédito a conta do Marques
(Vejo-o gordo, amável, piadista e, num momento, o navio
desaparece [?]).
A vulgaridade é um lar. O quotidiano é materno. De-
pois de uma incursão larga na grande poesia, aos montes da
aspiração sublime, aos penhascos do transcendente e do
oculto, sabe melhor que bem, sabe a tudo quanto é quente na
vida, regressar à estalagem onde riem os parvos felizes, beber
com eles, parvo também, como Deus nos fez, contente do
universo que nos foi dado e deixando o mais aos que trepam
montanhas parao fazer nada lá no alto.
FERNANDO PESSOA
Nada me comove que se diga, de um homem que tenho
por louco ou néscio, que supera a um homem vulgar em
muitos casos e conseguimentos da vida. Os epiléticos são, na
crise, fortíssimos; os paranóicos raciocinam como poucos
homens normais conseguem discorrer; os delirantes com
mania religiosa agregam multidões de crentes como poucos
(se alguns) demagogos as agregam, e com uma força íntima
que esteso logram dar aos seus sequazes. E isto tudoo
prova senão que a loucura é loucura. Prefiro a derrota com o
conhecimento da beleza das flores, que a vitória no meio dos
desertos, cheia da cegueira da alma as com a sua nulidade
separada.
Que de vezes o próprio sonho fútil me deixa um horror
à vida interior, uma náusea física dos misticismos e das con-
templações. Com que pressa corro de casa, onde assim so-
nhe, ao escritório; e vejo a cara do Moreira como se chegasse
finalmente a um porto. Considerando bem tudo, prefiro o
Moreira ao mundo astral; prefiro a realidade à verdade; pre-
firo a vida, vamos, ao mesmo Deus que a criou. Assim ma
deu, assim a viverei. Sonho porque sonho, maso sofro o
insulto próprio de dar aos sonhos outro valor queo o de
serem o meu teatro íntimo, comoo dou ao vinho, de que
todavia meo abstenho, o nome de alimento ou de neces-
sidade da vida.
Repudiei sempre que me compreendessem. Ser com-
preendido é prostituir-se. Prefiro ser tomado a sério como o
queo sou, ignorado humanamente, com decência e natu-
ralidade.
Nada poderia indignar-me tanto como se no escritório
me estranhassem. Quero gozar comigo a ironia de meo
estranharem. Quero o cilício de me julgarem igual a eles.
Quero a crucifixão de meo distinguirem. Há martírios
mais sutis que aqueles que se registram dos santos e dos ere-
mitas. Há suplícios da inteligência como os há do corpo e do
desejo. E desses, como dos outros suplícios, há uma volúpia.
... reles como os fins da vida que vivemos, sem que
queiramoss tais fins.
A maioria, senão a totalidade, dos homens vive(m) uma
vida reles, reles em todas as suas alegrias, e reles em quase
todas as suas dores, salvo naquelas que se fundamentam na
morte, porque nessas colabora o Mistério (e a mesma vida se
desmente).
Ouço, coados pela minha desatenção, os ruídos que so-
bem, fluidos e dispersos, como ondas interfluentes ao acaso e
de fora como se viessem de outro mundo: gritos de vende-
dores, que vendem o natural, como hortaliça, ou o social,
como as cautelas; riscar redondo de rodas carroças e car-
ros rápidos por saltos; automóveis, mais ouvidos no mo-
vimento que no giro; o tal sacudir de qualquer coisa pano a
qualquer janela; o assobio do garoto; a gargalhada do andar
alto; o gemido metálico do elétrico na outra rua; o que de
misturado emerge do transversal; subidas, baixas, silêncios
do variado; trovões trôpegos do transporte; alguns passos;
princípios, meios, e fins de vozes e tudo isto existe para
mim, que durmo pensá-lo, como uma pedra entre erva, em
qualquer modo espreitando de fora de lugar.
Depois, e ao lado, é de dentro de casa que os sonos con-
fluem com os outros: os passos, os pratos, a vassoura, a can-
tiga interrompida (meio-fado); a véspera na combina-
ção da sacada; a irritação do que falta na mesa; o pedido dos
cigarros que ficaram em cima da cômoda tudo isto a reali-
dade, a realidade anafrodisíaca queo entra na minha ima-
ginação.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
FERNANDO PESSOA
Leves os passos da criada ajudante, chinelos que revi-
siono de trança encarnada e preta, e, se assim os visiono, o
som toma qualquer coisa da trança encarnada e preta; segu-
ros, firmes, os passos de bota do filho de casa que sai e se
despede alto, com o bater da porta cortando o eco do logo que
vem depois do até; um sossego, como se o mundo acabasse
neste quarto andar alto; ruído de louça que vai para se lavar;
correr de água;' 'entãoo te disse que"... e o silêncio apita
do rio.
Mas eu modorro, digestivo e imaginador. Tenho tem-
po, entre cenestesias. E é prodigioso pensar que euo que-
reria se agora perguntassem e eu respondesse, melhor breve
vida que estes lentos minutos, esta nulidade do pensamento,
da emoção, da ação, quase da mesma sensação, o ocaso-nato
da vontade dispersa. E então reflito, quase sem pensamento,
que a maioria, senão a totalidade, dos homens, assim vive,
mais alto ou mais baixo, parados ou a andar, mas com a
mesma modorra para os fins últimos, o mesmo abandono dos
propósitos formados, a mesma sensação da vida. Sempre que
vejo um gato ao sol lembra-me a humanidade. Sempre que
vejo dormir lembro-me que tudo é sono. Sempre que alguém
me diz que sonhou, penso se pensa que nunca fez senão so-
nhar. O ruído da rua cresce, como se uma porta se abrisse, e
tocam a campainha.
O que foi era nada, porque a porta se fechou logo. Os
passos cessam no fim do corredor. Os pratos levados erguem
a voz de água e louça. [..-.]
Coisas de nada, naturais da vida, insignificâncias do
usual e do reles, poeira que sublinha com um traço apagado e
grotesco a sordidez e a vileza da minha vida humana.
o Caixa aberto diante dos olhos cuja vida sonha com
todos os orientes; a piada inofensiva do chefe do escritório
LIVRO DO DESASSOSSEGO
que ofende todo o universo; o avisar o patrão que telefone,
que é a amiga, por nome e dona [...] no meio da meditação
do período mais insexual de uma teoria estética e mental.
Todosm um chefe de escritório com a piada sempre
inoportuna [?] e a alma fora do universo em seu conjunto.
Todosm um patrão e a amiga do patrão, e a chamada ao
telefone no momento sempre impróprio em que a tarde ad-
mirável desce e as amantes [...] arriscam falar contra o amigo
que está fazendo xixi como os outros sabemos.
Mas todos os que sonham, ainda queo sonhem em
escritórios da Baixa, nem diante duma escrita do armazém
de fazenda, todosm um Caixa diante de si seja a mulher
com quem casaram seja a [...] dum futuro que lhe vem por
herança, seja o que for logo que positivamente [?] seja.
Depois os amigos, bons rapazes, bons rapazes,o agra-
dável estar falando com eles, almoçar com eles, jantar com
eles, e tudo,o sei como,o sórdido,o reles,o pe-
queno, sempre no armazém de fazendas ainda que na rua,
sempre diante do livro caixa ainda que no estrangeiro, sem-
pre com o patrão ainda que no infinito.
Todos nós, que sonhamos e pensamos, somos ajudantes
e guarda-livros num Armazém de fazendas, ou de outra
qualquer fazenda em uma Baixa qualquer. Escrituramos e
perdemos; somamos e passamos; fechamos o balanço e o sal-
do invisível é sempre contra nós.
Escrevo sorrindo com as palavras, mas o meu coração
está como se se pudesse partir, partir como as coisas que se
quebram, em fragmentos, em cacos, em lixo, que o caixote
leva num gesto de por cima dos ombros para o carro do eter-
no [ ?] de todas as Câmaras Municipais.
E tudo espera, aberto e decorado, o Rei que virá, e já
chega, que a poeira do cortejo é uma nova névoa no oriente
FERNANDO PESSOA
lento, e as lanças luzem já na distância com uma madrugada
sua.
Quanto mais alta a sensibilidade, e mais sutil a capaci-
dade de sentir, tanto mais absurdamente vibra e estremece
com as pequenas coisas. É preciso uma prodigiosa inteligên-
cia para ter angústia ante um dia escuro. A humanidade, que
é pouco sensível,o se angustia com o tempo, porque faz
sempre tempo;o sente a chuva senão quando lhe cai em
cima.
O dia baço e mole escalda umidamente. Sozinho no es-
critório, passo em revista a minha vida, e o que vejo nela é
como o dia que me oprime e me aflige. Vejo-me criança con-
tente de nada, adolescente aspirando a tudo, viril sem alegria
nem aspiração. E tudo isto se passou na moleza e no emba-
ciado, como o dia que mo faz ver ou lembrar.
Qual des pode, voltando-se no caminho ondeo há
regresso, dizer que o seguiu como o devia ter seguido?
Para sentir a delícia e o terror da velocidadeo preciso
de automóveis velozes nem de comboios expressos. Basta-me
UM- carro elétrico e a espantosa faculdade de abstração que
tenho e cultivo.
Num carro elétrico em marcha eu sei, por uma atitude
constante e instantânea de análise, separar a idéia de carro da
idéia de velocidade, separá-las de todo, até serem coisas-reais
diversas. Depois, posso sentir-me seguindoo dentro do
carro mas dentro da mera-velocidade dele. E, cansado, se
acaso quero o delírio da velocidade enorme [?], posso trans-
portar a idéia para o Puro imitar da velocidade e a meu bom
LIVRO DO DESASSOSSEGO
prazer, aumentá-la ou diminuí-la, alargá-la para além de to-
das as velocidades possíveis de veículos comboios.
Correr riscos reais, além de me apavoraro é por medo
que eu sinta excessivamente perturba-me a perfeita aten-
ção às minhas sensações, o que me incomoda e me desper-
sonaliza.
Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos
perigos.
Um poente é um fenômeno intelectual.
Penso, muitas vezes, em como eu seria se, resguardado
do vento da sorte pelo biombo da riqueza, nunca houvesse
sido trazido, pelao moral de meu tio, para um escritório
de Lisboa, nem houvesse ascendido dele para outros, até este
píncaro barato de bom ajudante de guarda-livros, com um
trabalho como uma certa sesta e um ordenado que dá para
estar a viver.
Sei bem que, se esse passado queo foi tivesse sido, eu
o seria hoje o capaz de escrever estas páginas, em todo o
caso melhores, por algumas, do que as nenhumas que em me-
lhores circunstânciaso teria feito mais que sonhar. É que a
banalidade é uma inteligência e a realidade, sobretudo se é
estúpida ou áspera, um complemento natural da alma.
Devo ao ser guarda-livros grande parte do que posso
sentir e pensar como a negação e a fuga do cargo.
Se houvesse de inscrever, no lugar sem letras de res-
posta a um questionário, a que influências literárias estava
grata a formação do meu espírito, abriria o espaço ponteado
com o nome de Cesário Verde, maso o fecharia sem nele
82 FERNANDO PESSOA
inscrever os nomes do patrão Vasques, do guarda-livros Mo-
reira, do Vieira caixeiro de praça e do Antônio moço do es-
critório. E a todos poria, em letras magnas, o endereço-chave
LISBOA.
Vendo bem, tanto o Cesário Verde como estes foram
para a minha visão do mundo coeficientes de correção. Creio
que é esta a frase, cujo sentido exato evidentemente ignoro,
com que os engenheiros designam o tratamento que se faz à
matemática para ela poder andar até à vida. Se é, foi isso
mesmo. Seo é, passe por o que poderia ser, e a intenção
valha pela metáfora que falhou.
Considerando, aliás, e com a clareza que posso, o que
tem sido aparentemente a minha vida, vejo-a como uma coi-
sa colorida capa de chocolate ou anilha de charuto var-
rida, pela escova leve da criada que escuta de cima, da toalha
a levantar para a pá de lixo das migalhas, entre as côdeas da
realidade propriamente dita. Destaca-se das coisas cujo des-
tino é igual por um privilégio que vai ter a pá também. E a
conversa dos deuses continua por cima do escovar, indife-
rente a esses incidentes do serviço do mundo.
Sim, se eu tivesse sido rico, resguardado, escovado, or-
namental,o teria sido nem esse breve episódio de papel
bonito entre migalhas; teria ficado num prato da sorte
"não, muito obrigada" e recolheria ao aparador para en-
velhecer. Assim, rejeitado depois de me comerem o miolo
prático, vou com o pó do que resta do corpo de Cristo para o
caixote do lixo, e nem imagino o que se segue, e entre que
astros; mas sempre é seguir.
O moço atava os embrulhos de todos os dias no fim cre-
puscular do escritório vasto. "Que grande trovão", disse,
para ninguém, com um tom alto de "bons dias", o crude-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
líssimo bandido. Meu coração começa a bater novo. O apo-
calipse tinha passado. Fêz-se uma pausa.
E com que alívio luz forte e clara, espaço, trovão
duro este troar próximo já afastado nos aliviava do que
houvera. Deus cessara. Senti-me respirar com os pulmões
inteiros. Reparo que restava pouco ar no escritório. Notei que
havia ali outra gente, sem ser o moço. Todos haviam estado
calados. Soou uma coisa trêmula e crespa: era a grande folha
espessa do Razão que o Moreira virará para diante, brusca-
mente, para verificar.
a chuva caía ainda triste, mas mais branda, como num
cansaço universal;o havia relâmpagos, e apenas, de vez
em quando, com o som de já longe, um trovão curto res-
mungava duro, e às vezes como que se interrompia, cansado
* também. Como que subitamente, a chuva abrandou mais
ainda. Um dos empregados abriu as janelas para a Rua dos
Douradores. Um ar fresco, com restos mortos de quente,
insinuou-se na sala grande. A voz do patrão Vasques soou
alta no telefone do gabinete, "Então ainda está a falar?"
E houve um som de fala seca e à parte comentário, obs-
ceno (adivinha-se) á menina longínqua.
Vi e ouvi ontem um grande homem.o quero dizer
um grande homem atribuído, mas um grande homem que
verdadeiramente o é. Tem valia, se a há neste mundo; co-
nhecem que tem valia; e ele sabe que o conhecem. Tem,
pois, todas as condições para que eu o chame um grande ho-
mem. É, efetivamente, o que o chamo.
FERNANDO PESSOA
O aspecto físico é de um comerciante cansado. A cara
tem traços de fadiga, mas tanto poderiam ser de pensar de-
mais como deo viver higienicamente. Os gestoso quais-
quer. O olhar tem uma certa viveza privilégio de quem
o é míope. A voz é um pouco embrulhada, como se os
inícios da paralisia geral estragassem essa emissão da alma. E
a alma emitida discursa sobre a política de partidos, sobre a
desvalorização do escudo, e sobre o que há de reles nos cole-
gas da grandeza.
Se euo soubesse quem ele é,o o conheceria pela
estampa. Sei bem queo há que fazer dos grandes homens
aquela idéia heróica que as almas simples formam: que um
grande poeta há de ser um Apoio de corpo e um Napoleão de |
expressão; ou, com menos exigências, um homem de distin-
ção e um rosto expressivo. Sei bem que estas coisaso hu-
manidades naturais e absurdas. Mas, seo se espera tudo
ou quase tudo, espera-se todavia alguma coisa. E, quando se
passa da figura vista para a alma falada,o há sem dúvida
que esperar espírito ou vivacidade, mas há ao menos que
contar com inteligência, com, ao menos, a sombra da ele-
vação.
Tudo isto estas desilusões humanas nos faz pensar
no que pode realmente haver de verdade no conceito vulgar
de inspiração. Parece que este corpo destinado a comerciante
e esta alma destinada a homem educado são, quando estão a
sós, investidos misteriosamente de qualquer coisa interior
que lhes é externa, e queo falam, senão que se fala neles, e
a voz diz o que fora mentira que eles dissessem.
o especulações casuais e inúteis. Chego a ter pena de
as ter.o diminuí com elas a valia do homem;o aumenta
com elas a expressão do seu corpo. Mas, na verdade, nada
altera nada, e o que dizemos ou fazemos roça só os cimos dos
montes, em cujos vales dormem as coisas.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Acordei hoje muito cedo, num repente embrulhado, e
ergui-me logo da cama sob o estrangulamento de um tédio
incompreensível. Nenhum sonho o havia causado; nenhu-
ma realidade o poderia ter feito. Era um tédio absoluto e
completo, mas fundado em qualquer coisa. No fundo obs-
curo da minha alma, invisíveis, forças desconhecidas trava-
vam uma batalha em que meu ser era o solo, e todo eu tremia
do embate incógnito. Uma náusea física da vida inteira nas-
ceu com o meu despertar. Um horror a ter que viver ergueu-
se comigo da cama. Tudo me pareceu oco e tive a impressão
fria de queo há solução para problema algum.
Uma inquietação enorme fazia-me estremecer os gestos
mínimos. Tive receio, de endoidecer,o de loucura, mas de
ali mesmo. O meu corpo era um grito latente. O meu cora-
ção batia como se falasse.
Com passos largos e falsos, que emo procurava tor-
nar outros, percorri, descalço, o comprimento pequeno do
quarto, e a diagonal vazia do quarto interior, que tem a porta
ao canto para o corredor da casa. Com movimentos incoe-
rentes e imprecisos, toquei nas escovas em cima da cômoda,
desloquei uma cadeira, e uma vez bati com ao movida em
balouço o ferro acre doss da cama inglesa. Acendi um ci-
garro, que fumei por subconsciência, e só quando vi que ti-
nha caído cinza sobre a cabeceira da cama como, se euo
me debruçara ali? compreendi que estava possesso, ou
coisa análoga em ser, quandoo em nome, e que a cons-
ciência de mim, que eu deveria ter, se tinha intervalado com
o abismo.
FERNANDO PESSOA
Recebi o anúncio da manhã, a pouca luz fria que dá um
vago azul branco ao horizonte que se revela, como um beijo
de gratidão das coisas. Porque essa luz, esse verdadeiro dia,
libertava-me, libertava-meo sei de quê, dava-me o braço à
velhice incógnita, fazia festas à infância postiça, amparava o
repouso mendigo da minha sensibilidade transbordada. Ah,
que manhã é esta, que me desperta para a estupidez da vida,
e para a grande ternura dela! Quase que choro, vendo escla-
rear-se diante de mim, debaixo de mim, a velha rua estreita,
e quando os taipais da mercearia da esquina já se revelam
castanho escuro sujo na luz que se estravasa um pouco, o
meu coração tem um alívio de conto de fadas reais, e começa
a conhecer a segurança de seo sentir.
Que manhã esta mágoa! E que sombras se afastam? E
que mistérios se deram? Nada: o som do primeiro elétrico
como um fósforo que vai alumiar a escuridão da alma, e os
passos altos do meu primeiro transeunte queo a realidade
concreta a dizer-me, com voz de amigo, queo esteja assim.
o compreendo senão como uma espécie de falta de
asseio esta inerte permanência em que jazo da minha mesma
e igual vida, ficada como pó ou porcaria na superficie de
nunca mudar.
Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o des-
tino, mudar de vida como mudamos de roupao para
salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele
respeito alheio pors mesmos, a que propriamente chama-
mos asseio.
Há muitos em quem o desasseioo é uma disposição da
vontade, mas um encolher de ombros da inteligência. E há
muitos em quem o apagado e o mesmo da vidao é uma
forma de a quererem, ou uma natural conformação com o
o tê-la querido, mas um apagamento da inteligência de si
mesmos, uma ironia automática do conhecimento.
Há porcos que repugnam a sua própria porcaria, mas se
o afastam dela por aquele mesmo extremo de um senti-
mento, pelo qual o apavorado seo afasta do perigo. Há
porcos do destino, como eu, que seo afastam da banali-
dade quotidiana por essa mesma atração da própria impotên-
cia.o aves fascinadas pela ausência de serpente; moscas
que pairam nos troncos sem ver nada, até chegarem ao al-
cance viscoso da língua do camaleão.
Assim passeio lentamente a minha inconsciência cons-
ciente, no meu tronco de árvore do usual. Assim passeio o
meu destino que anda, pois euo ando; o meu tempo que
segue, pois euo sigo. Nem me salva da monotonia senão
estes breves comentários que faço a propósito dela. Con-
tento-me com a minha cela ter vidraças por dentro das gra-
des, e escrevo nos vidros, no pó do necessário, o meu nome
em letras grandes, assinatura quotidiana da minha escritura
com a morte.
Com a morte? Não, nem com a morte. Quem vive
como euo morre: acaba, murcha, desvegeta-se. O lugar
onde esteve fica sem ele ali estar, a rua por onde andava fica
sem ele lá ser visto, a casa onde morava é habitada por não-
ele. É tudo, e chamamos-lhe o nada: mas nem essa tragédia
da negação podemos representar com aplauso, pois nem ao
certo sabemos se é nada, vegetais da verdade como da vida,
pó que tanto está por dentro como por fora das vidraças,
netos do Destino e enteados de Deus, que casou com a Noite
Eterna quando ela enviuvou do Caos que nos procriou.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
88 FERNANDO PESSOA
Tenho diante de mim as duas páginas grandes do livro
pesado; ergo da sua inclinação na carteira velha, com olhos
cansados, uma alma mais cansada do que os olhos. Para além
do nada que isto representa, o armazém, até à rua Rua dos
Douradores, enfileira as prateleiras regulares, os empregados
regulares, a ordem humana e o sossesso do vulgar. Na vi-
draça há o ruído do diverso, e o ruído diverso é vulgar, como
o sossego que está ao pé das prateleiras.
Baixo olhos novos sobre as duas páginas brancas, em
que os meus números cuidadosos puseram resultados da so-
ciedade. E, com um sorriso que guardo para meu, lembro
que a vida, que tem estas páginas com nomes de fazendas e
dinheiro, com os seus brancos, e os seus traços á régua e de
letra, inclui também os grandes navegadores, os grandes san-
tos, os poetas de todas as eras, todos eles sem escrita, a vasta
prole expulsa dos que fazem a valia do mundo.
No próprio registro de um tecido queo sei o que seja
se em abrem as portas do Indo e de Samarcanda, e a poesia da
Pérsia, queo é de um lugar nem de outro, faz das suas
quadras, desrimadas no terceiro verso, um apoio longínquo
para o meu desassossego. Maso me engano, escrevo,
somo, e a escrita segue, feita normalmente por um empre-
gado deste escritório.
Depois de uma noite maldormida, toda a genteo gos-
ta de nós. O sono ido levou consigo qualquer coisa que nos
tornava humanos. Há uma irritação latente conosco, parece,
no mesmo ar inorgânico que nos cerca. Somos nós, afinal,
que nos desapoiamos, e é entres es que se fere a diplo-
macia da batalha surda.
LIVRO DO DESASSOSSEGO 89
Tenho hoje arrastado pela rua oss e o grande cansaço.
Tenho a alma reduzida a uma meada atada, e o que sou e fui,
que sou eu, esqueceu-se de seu nome. Se tenho amanhã,o
sei senão queo dormi, e a confusão de vários intervalos
e grandes silêncios na minha fala interna.
Ah, grandes parques dos outros, jardins usuais para
tantos, maravilhosas aléias dos que nunca me conhecerão!
Estagno entre vigílias, como quem nunca ousou ser supér-
fluo, e o que medito estremunha-se com um sonho ao fim.
Sou uma casa viúva, claustral de si mesma, sombrada de
espectros timidos e furtivos. Estou sempre no quarto ao lado,
ou estão eles, e há grandes ruídos de árvores em meu torno.
Divago e encontro; encontro porque divago. Meus dias de
criança vestidoss mesmos de bibe!
E, em meio de tudo isto, vou pela rua fora, dorminhoco
da minha vagabundagem folha. Qualquer vento lento me
varreu do solo, e erro, como um fim de crepúsculo, entre os
acontecimentos da paisagem. Pesam-me as pálpebras noss
arrastados. Quisera dormir porque ando. Tenho a boca fe-
chada como se fosse para os beiços se pegarem. Naufrago o
meu deambular.
Sim,o dormi, mas estou mais certo assim, quando
nunca dormi nem durmo. Sou eu verdadeiramente nesta
eternidade casual e simbólica do estado de meia-alma em que
me iludo. Uma ou outra pessoa olha-me como se me conhe-
cesse e me estranhasse. Sinto que os olhos também com ór-
bitas sentidas sob pálpebras que as roçam, eo quero saber
de haver mundo.
Tenho sono, muito sono, todo o sono!
FERNANDO PESSOA
O sócio capitalista aqui da firma, sempre doente em
parte incerta, quis,o sei por que capricho de que intervalo
de doença, ter um retrato do conjunto do pessoal do escritó-
rio. E assim, antes de ontem, alinhamos todos, por indicação
do fotógrafo alegre, contra a barreira branca suja que divide,
com madeira frágil, o escritório geral do gabinete do patrão
Vasques. Ao centro o mesmo Vasques; nas duas alas, numa
distribuição primeiro definida, depois indefinida, de catego-
rias, as outras almas humanas que aqui se reúnem em corpo
todos os dias para pequenos fins cujo último intuito só o se-
gredo dos Deuses conhece.
Hoje quando cheguei ao escritório, um pouco tarde, e,
em verdade, esquecido já do acontecimento estático da foto-
grafia duas vezes tirada, encontrei o Moreira, inesperada-
mente matutino, e um dos caixeiros de praça, debruçados
rebuçadamente sobre umas coisas enegrecidas, que reco-
nheci logo, em sobressalto, como as primeiras provas das
fotografias. Eram, afinal, duas só de uma, daquela que ficara
melhor.
Sofri a verdade ao vêr-me ali, porque, como é de supor,
foi a mim mesmo que primeiro busquei. Nunca tive uma
idéia nobre da minha presença física, mas nunca a sentio
nula como em comparação com as outras caras,o minhas
conhecidas, naquele alinhamento de quotidianos. Pareço um
jesuíta frusto. A minha cara magra e inexpressiva nem tem
inteligência, nem intensidade, nem qualquer coisa, seja o
que for, que a alce da maré morta das outras caras. Da maré
morta, não. Há ali rostos verdadeiramente expressivos. O
patrão Vasques está tal qual é o largo rosto prazenteiro e
duro, o olhar firme, o bigode rígido completando. A energia,
a esperteza, do homem afinalo banais, e tantas vezes
repetidas por tantos milhares de homens em todo o mundo
o todavia escritas naquela fotografia como num passa-
porte psicológico. Os dois caixeiros viajantes estão admira-
LIVRO DO DESASSOSSEGO 91
veis; o caixeiro de praça está bem, mas ficou quase por trás
de um ombro do Moreira. E o Moreira! O meu chefe Mo-
reira, essência da monotonia e da continuidade, está muito
mais gente do que eu! Até o moço reparo sem poder re-
primir um sentimento que busco supor queo é inveja
tem uma certeza de cara, uma expressão direta que dista sor-
risos do meu apagamento nulo de esfinge de papelaria.
O que quer isto dizer? Que verdade é esta que uma pelí-
culao erra? Que certeza é esta que uma lente fria docu-
menta? Quem sou, para que seja assim? Contudo... E o in-
sulto do conjunto?
'' Você ficou muito bem ", diz de repente o Moreira.
E depois, virando-se para o caixeiro de praça, "É mesmo a
carinha dele, hein?". E o caixeiro de praça concordou com
uma alegria amiga que atirou para o lixo.
Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida,
monótona e necessária, mandante e desconhecida. Este ho-
mem banal representa a banalidade da Vida. Ele é tudo para
mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora.
E, seo escritório da Rua dos Douradores representa para
mim a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma
Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a
Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar
diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é
o monótona como a mesma vida, mas só em lugar dife-
rente. Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim
todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas,
salvo o existirem enigmas, que é o queo pode ter solução.
92 FERNANDO PESSOA
Foi-se hoje embora, diz-se que definitivamente, para a
terra que é natal dele, o chamado moço do escritório, aquele
mesmo homem que tenho estado habituado a considerar co-
mo parte desta casa humana, e, portanto, como parte de mim
e do mundo que é meu. Foi se hoje embora. No corredor,
encontrando-nos casuais para a surpresa esperada da despe-
dida, dei-lhe eu um abraço timidamente retribuído, e tive
contra-alma bastante parao chorar, como, em meu cora-
ção, desejavam sem mim meus olhos quentes.
Cada coisa que foi nossa, ainda que só pelos acidentes do
convívio ou da visão, porque foi nossa se torna nós. O que se
partiu hoje, pois, para uma terra galega que ignoro,o foi,
para mim, o moço do escritório: for uma parte vital, porque
visual e humana, da substância da minha vida. Fui hoje di-
minuído. Jáo sou bem o mesmo. O moço do escritório
foi-se embora.
Tudo que se passa no onde vivemos é ems que se
passa. Tudo que cessa no que vemos é ems que cessa.
Tudo que foi, se o vimos quando era, é des que foi tirado
quando se partiu. O moço do escritório foi-se embora.
É mais pesado, mais velho, menos voluntário que me
sento à carteira alta e começo a continuação da escrita de on-
tem. Mas a vaga tragédia de hoje interrompe com medita-
ções, que tenho que dominar à força, o processo automático
da escrita como deve ser.o tenho alma para trabalhar se-
o porque posso com uma inércia ativa ser escravo de mim.
O moço do escritório foi-se embora.
Sim, amanhã, ou outro dia, ou quando quer que soe
para mim o sino sem som da morte ou da ida, eu também
serei quem aqui jáo está, copiador antigo que vai ser arru-
mado no armário por baixo doo da escada. Sim, amanhã,
ou quando o Destino disser, terá fim o que fingiu em mim
LIVRO DO DESASSOSSEGO
fui eu. Irei para a terra natal?o sei para onde irei.
Hoje a tragédia é visível pela falta, sensível poro merecer
que se sinta. Meu Deus, meu Deus, o moço do escritório
foi-se embora.
Tudo é absurdo. Este empenha a vida em ganhar di-
nheiro que guarda, e nem tem filhos a quem o deixe nem
esperança que umu lhe reserve uma transcendência desse
dinheiro. Aquele empenha o esforço em ganhar fama, para
depois de morto, eo crê naquela sobrevivência que lhe dê
o conhecimento da fama. Esse outro gasta-se na procura de
coisas de que realmenteo gosta. Mais adiante, há um que
(...)
Um lê para saber, inutilmente. Outro goza para viver,
inutilmente.
Vou num carro elétrico, e estou reparando lentamente,
conforme é meu costume, em todos os pormenores das pes-
soas queo adiante de mim. Para mim os pormenoreso
coisas, vozes, letras. Neste vestido da rapariga que vai em
minha frente decomponho o vestido em o estofo de que se
compõe, o trabalho com que o fizeram pois que o vejo
vestido eo estofo e o bordado leve que orla a parte que
contorna o pescoço separa-se-me em retrós de seda, com que
se o bordou, e o trabalho que houve de o bordar. E imedia-
tamente, como num livro primário de economia política,
desdobram-se diante de mim as fábricas e os trabalhos
a fábrica onde se fez o tecido; a fábrica onde se fez o retrós,
de um tom mais escuro, com que se orla de coisinhas retor-
cidas o seu lugar junto ao pescoço; e vejo as seções das-
bricas, as máquinas, os operários, as costureiras, meus olhos
virados para dentro penetram nos escritórios, vejo os geren-
tes procurar estar sossegados, sigo, nos livros, a contabilidade
94 FERNANDO PESSOA
de tudo; maso é só isto: vejo, para além, as vidas domés-
ticas dos que vivem a sua vida social nessas fábricas e nesses
escritórios... Todo o mundo se me desenrola aos olhos só
porque tenho diante de mim, abaixo de um pescoço moreno,
que de outro lado temo sei que cara, um orlar irregular
regular verde escuro sobre um verde claro de vestido.
Toda a vida social jaz a meus olhos.
Para além disto pressinto os amores, as secrecias [sic],
a alma, de todos quantos trabalharam para que esta mulher
que está diante de mim no elétrico, use, em torno do seu
pescoço mortal, a banalidade sinuosa de um retrós de seda
verde escura fazenda verde menos escura.
Entonteço. Os bancos do elétrico, de um entre-tecido de
palha forte e pequena, levam-me a regiões, distantes, multi-
plicam-se-me em indústrias, operários, casas de operários,
vidas, realidades, tudo.
Saio do carro exausto e sonâmbulo. Vivi a vida inteira.
Passaram meses sobre o último que escrevi. Tenho es-
tado num sono do entendimento pelo qual tenho sido outro
na vida. Uma sensação de felicidade translata tem-me sido
freqüente.o tenho existido, tenho sido outro, tenho vi-
vido sem pensar.
Hoje, de repente, voltei ao que sou ou me sonho. Foi
um momento de grande cansaço, depois de um trabalho sem
relevo. Pousei a cabeça contra as mãos, fincados os cotovelos
na mesa alta inclinada. E, fechados os olhos, retrovei-me.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Num sono falso longínquo relembrei tudo quanto fora,
e foi corn uma nitidez de paisagem vista que se me ergueu de
repente, antes ou depois de tudo, o lado largo da quinta ve-
lha, de onde, a meio da visão, a eira se erguia vazia.
Senti imediatamente a inutilidade da vida. Ver, sentir,
lembrar, esquecer tudo isso se me confundiu, numa vaga
dor nos cotovelos, com o murmúrio incerto da rua próxima e
os pequenos ruídos do trabalho sossegado no escritório
quedo.
Quando, depostas as mãos sobre a mesa ao alto, lancei
sobre o que lá via o olhar que deveria ser de um cansaço
cheio de mundos mortos, a primeira coisa que vi, com ver,
foi uma mosca varejeira (aquele vago zumbido queo era
do escritório!) pousada em cima do tinteiro. Contemplei-a do
fundo do abismo, anônimo e disperso. Ela tinha tons verdes
de azul preto, e era lustrosa de um nojo queo era feio.
Uma vida!
Quem sabe para que forças supremas, deuses ou demô-
nios da Verdade em cuja sombra erramos,o serei senão a
mosca lustrosa que pousa um momento diante deles? Reparo
fácil? Observação já feita? Filosofia sem pensamento? Tal-
vez, mas euo pensei: senti. Foi carnalmente, diretamente,
com um horror profundo e [...], que fiz a comparação risível.
Fui mosca quando me comparei a mosca. Senti-me mosca
quando supus que me o senti. E senti-me uma alma à mosca,
dormi-me mosca, senti-me fechado mosca. E o horror maior
é que no mesmo tempo me senti eu. Sem querer, ergui os
olhos para a direção do teto,o baixasse sobre mim uma
régua suprema, a esmagar-me, como eu poderia esmagar
aquela mosca. Felizmente, quando baixei os olhos, a mosca,
sem ruído que eu ouvisse, desaparecera. O escritório invo-
luntário estava outra vez sem filosofia.
FERNANDO PESSOA
Há mágoas íntimas queo sabemos distinguir por o
que contêm de sutil e de infiltrado, seo da alma ou do
corpo, seo o mal-estar de se estar sentindo a futilidade da
vida, seo a má disposição que vem de qualquer abismo
orgânico estômago, fígado ou cérebro. Quantas vêzes se
me tolda a consciência vulgar de mim mesmo, num sedi-
mento torvo de estagnação inquieta! Quantas vezes mei
existir, numa náusea a tal ponto incerta queo sei distin-
guir se é um tédio, se um prenúncio de vômito! Quantas
vezes...
Minha alma está hoje triste até ao corpo. Todo eu me
dôo, memória, olhos e braços. Há como que um reumatismo
em tudo quanto sou.o me influi no ser a clareza límpida
do dia,u de grande azul puro, maré alta parada de luz
difusa.o me abranda nada o leve sopro fresco, ou tonai
como se o estiloo esquecesse, com que o ar tem personali-
dade. Nada me é nada. Estou triste, maso com uma tris-
teza definida, nem sequer com uma tristeza indefinida. Estou
triste ali fora, na rua juncada de caixotes.
Estas expressõeso traduzem exatamente o que sinto
porque sem dúvida nada pode traduzir exatamente o que al-
guém sente. Mas de algum modo tento dar a impressão do
que sinto, mistura de várias espécies de eu e da rua alheia,
que, porque a vejo, também, de um modo íntimo queo sei
analisar, me pertence, faz parte de mim.
Quisera viver diverso em países distantes. Quisera mor-
rer outro entre bandeiras desconhecidas. Quisera ser acla-
mado imperador em outras eras, melhores hoje porqueo
o de hoje, vistas em vislumbre e colorido, inéditas a es-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
finges. Quisera tudo quanto pode tornar ridículo o que sou, e
porque torna ridículo o que sou. Quisera, quisera... Mas há
sempre o sol quando o sol brilha e a noite quando a noite
chega. Há sempre a mágoa quando a mágoa nosi e o so-
nho quando o sonho nos embala. Há sempre o que, e
nunca o que deveria haver,o por ser melhor ou por ser
pior, mas por ser outro. Há sempre...
Na rua cheia de caixoteso os carregadores limpando a
rua. Um a um, com risos e ditos,o pondo os caixotes nas
carroças. Do alto da minha janela do escritório eu os vou
vendo, com olhos tardos em que as pálpebras estão dormin-
do. E qualquer coisa de sutil, de incompreensível, liga o que
sinto aos fretes que estou vendo fazer, qualquer sensação des-
conhecida faz caixote de todo este meu tédio, ou angústia, ou
náusea, e o ergue, em ombros de quem chalaceia alto, para
uma carroça queo está aqui. E a luz do dia, serena como
sempre, luz obliquamente, porque a rua é estreita, sobre
onde estão erguendo os caixoteso sobre os caixotes,
que estão na sombra, mas sobre o ângulo lá ao fim onde os
moços de fretes estão a fazero fazer nada, indetermina -
damente.
Os classificadores de coisas, queo aqueles homens de
ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o
classificável é infinito e portanto seo pode classificar. Mas
o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência de clas-
sificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que es-
o nos interstícios do conhecimento.
Talvez porque eu pense demais ou sonhe demais, o
certo é queo distingo entre a realidade que existe e o so-
nho, que é a realidade queo existe. E assim intercalo nas
minhas meditações dou e da terra coisas queo brilham
FERNANDO PESSOA
de sol ou se pisam coms maravilhas fluidas da imagi-
nação.
Douro-me de poentes supostos, mas o suposto é vivo na
suposição. Alegro-me de brisas imaginárias, mas o imaginá-
rio vive quando se imagina. Tenho alma por hipóteses-
rias, mas essas hipótesesm alma própria, e meo por-
tanto a que têm.
o há problema senão o da realidade, e esse é insolúvel
e vivo. Que sei eu da diferença entre uma árvore e um so-
nho? Posso tocar na árvore; sei que tenho o sonho. Que é
isto, na sua verdade?
Que é isto? Sou eu que, sozinho no escritório deserto,
posso viver imaginando sem desvantagem da inteligência.
o sofro interrupção de pensar das carteiras abandonadas e
da seção de remessas só com papel e cordéis em rolos. Estou,
o no meu banco alto, mas recostado, por uma promoção
por fazer, na cadeira de braços redondos do Moreira. Talvez
seja a influência do lugar que me unge de distraído. Os dias
de grande calor fazem sono; durmo sem dormir por falta de
energia. E por isso penso assim.
Depois que os últimos pingos da chuva começaram a
tardar na queda dos telhados, e pelo centro pedrado da rua o
azul dou começou a espelhar-se lentamente, o som dos
veículos tomou outro canto, mais alto e alegre, e ouviu-se o
abriu de janelas contra o desesquecimento do sol. Então, pela
rua estreita, do fundo da esquina próxima, rompeu o convite
alto do primeiro cauteleiro, e os pregos pregados nos caixotes
da loja fronteira reverberavam pelo espaço claro.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Era um feriado incerto, legal e que seo mantinha.
Havia sossego e trabalho conjuntos, e euo tinha que fazer.
Tinha-me levantado cedo e tardava em preparar-me para
existir. Passeava de um lado ao outro do quarto e sonhava
alto coisas sem nexo nem possibilidade gestos que me es-
quecera de fazer, ambições impossíveis realizadas sem rumo,
conversas firmes e contínuas que, se fossem, teriam sido. E
neste devaneio sem grandeza nem calma, neste atardar sem
esperança nem fim, gastavam meus passos a manhã livre, e
as minhas palavras altas, ditas baixo, soavam múltiplas no
claustro do meu simples isolamento.
A minha figura humana, se a considerava com uma
atenção externa, era do ridículo que tudo quanto é humano
assume sempre que é íntimo. Vestira, sôbre os trajes simples
do sono abandonado, um sobretudo velho, que me serve para
estas vigílias matutinas. Os meus chinelos velhos estavam
rotos, principalmente o do pé esquerdo. E, com as mãos nos
bolsos do casaco póstumo, eu fazia a avenida do meu quarto
curto em passos largos e decididos, cumprindo com o deva-
neio inútil um sonho igual aos de toda a gente.
Ainda, pela frescura aberta da minha janela única, se
ouviam cair dos telhados os pingos grossos da acumulação da
chuva ida. Ainda, vagos, havia frescores de haver chovido.
O céu, porém, era de um azul conquistador, e as nuvens que
restavam da chuva derrotada ou cansada, cediam, retirando
para sobre os lados do Castelo, os caminhos legítimos dou
todo.
Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer
coisa, uma ânsia desconhecida, um desejo sem definição,
nem até reles. Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo.
E, quando me debrucei da janela altíssima, sobre a rua para
onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles tra-
pos úmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela
FERNANDO PESSOA
para secar, mas se esquecem, enrodilhadas, no parapeito que
mancham lentamente.
O silêncio que sai do som da chuva espalha-se, num
crescendo de monotonia cinzenta, pela rua estreita que fito.
Estou dormindo desperto, de pé contra a vidraça, a que me
encosto como a tudo. Procuro em mim que sensaçõeso as
que tenho perante este cair esfiado de água sombriamente
luminosa que destaca das fachadas sujas e, ainda mais, das
janelas abertas. Eo sei o que sinto,o sei o que quero
sentir,o sei o que penso nem o que sou.
Toda a amargura retardada da minha vida despe, aos
meus olhos sem sensação, o traje de alegria natural de que
usa nos acasos prolongados de todos os dias. Verifico que,
tantas vêzes alegre, tantas vezes contente, estou sempre tris-
te. E o que em mim verifica isto está por trás de mim, como
que se debruça sobre o meu encostado à janela, e, por sobre
os meus ombros, ou até a minha cabeça, fita, com olhos mais
íntimos que os meus, a chuva lenta, um pouco ondulada,
que filigrana de movimento o ar pardo e mau.
Abandonar todos os deveres, ainda os que nos.o exi-
gem, repudiar todos os lares, ainda os queo foram nossos,
viver do impreciso e do vestígio, entre grandes púrpuras de
loucura, e rendas falsas de majestades sonhadas... Ser qual-
quer coisa queo sinta o pesar de chuva externa, nem a
mágoa da vacuidade íntima... Errar sem alma nem pensamen-
to, sensação sem si-mesma, por estrada contornando monta-
nhas, por vales sumidos entre encostas íngremes, longínquo,
imerso e fatal... Perder-se entre paisagens como quadros.
o ser a longe e cores...
Um sopro leve de vento, que por trás da janelao sin-
to, rasga em desnivelamentos aéreos a queda retilínea da
LIVRO DO DESASSOSSEGO
chuva. Clareia qualquer parte dou queo vejo. Noto-o
porque, por trás dos vidros meio-Hmpos da janela fronteira,
já vejo vagamente o calendário na parede, lá dentro, que até
agorao via.
Esqueço.o vejo, sem pensar.
Cessa a chuva, e dela fica, um momento, uma poalha de
diamantes mínimos, como se, no alto, qualquer coisa como
uma grande toalha se sacudisse azulmente dessas migalhi-
nhas. Sente-se que parte dou está já azul. Vê-se, através
da janela fronteira, o calendário mais nitidamente. Tem uma
cara de mulher, e o resto é fácil porque o reconheço, e a pasta
dentifrícia é a mais conhecida de todas.
Mas em que pensava eu antes de me perder a ver?o
sei. Vontade? Esforço? Vida? Com um grande avanço de luz
sente-se que ou é já quase todo azul. Maso há sossego
ah, nem o haverá nunca! no fundo do meu coração,
poço velho ao fim da quinta vendida, memória de infância
fechada a pó no sótão da casa alheia.o há sossego e, ai
de mim!, nem sequer há desejo de o ter...
o sei porquê noto-o subitamente estou sozinho
no escritório., indefinidamente, o pressentira. Havia em
qualquer aspecto da minha consciência de mim uma ampli-
tude de alívio, um respirar mais fundo de pulmões diversos.
É esta uma das mais curiosas sensações que nos pode ser
dada pelo acaso dos encontros e das faltas: a de estarmoss
numa casa ordinariamente cheia, ruidosa ou alheia. Temos,
de repente, uma sensação de posse absoluta, de domínio fácil
e largo, de amplitude como disse de alívio e sossego.
Que bom estar só largamente! Poder falar alto conosco,
passear sem estorvo de vistas, repousar para trás num deva-
102 FERNANDO PESSOA
neio sem chamamento! Toda casa se torna um campo, toda
sala tem a extensão de uma quinta.
Os ruídoso todos alheios, como se pertencessem a um
universo próximo mas independente. Somos, finalmente,
reis. A isso todos aspiramos, enfim, e os mais plebeus des
quem sabe com maior vigor que os de mais ouro falso.
Por um momento somos pensionistas do universo, e vive-
mos, regulares do soldo dado, sem necessidades nem preocu-
pações.
Ah, mas reconheço, naquele passo na escada, subindo
até mimo sei quem, o alguém que vai interromper a mi-
nha solidão espairecida. Vai ser invadido pelos bárbaros o
meu império implícito.o é que o passo me diga quem é
que vem, nem que me lembre o passo deste ou daquele que
eu conheça. Há um mais surdo instinto na alma que me faz
saber que é para aqui que vem o que sobe, por enquanto só
passos, na escada que subitamente vejo, porque penso nele
que a sobe. Sim, é um dos empregados. Pára, a porta ouve-
se, entra. Vejo-o todo. E diz-me, ao entrar: "Sozinho, sr.
Soares?". E eu respondo:' 'Sim, já há tempo...". E ele então
diz, descascando-se do casaco com o olhar no outro, o velho,
no cabide: "Grande maçada a gente estar aqui, sr. Soares,
e de mais a mais...". "Grande maçada,o há dúvida",
respondo eu. "Até dá vontade de dormir", diz ele, já de
casaco roto, e encaminhando-se para a secretária. "E dá",
confirmo, sorridente. Depois, estendendo ao para a ca-
neta esquecida, reentro, gráfico na saúde anônima da vida
normal.
Dizem que o tédio é uma doença de inertes, ou que ata-
ca só os que nadam que fazer. Essa moléstia da alma é
porém mais sutil: ataca os quem disposição para ela, e
LIVRO DO DESASSOSSEGO
poupa menos os que trabalham, ou fingem que trabalham
(o que para o caso é o mesmo) que os inertes deveras.
Nada há pior que o contraste entre o esplendor natural
da vida interna, com as suas índias naturais e os seus paises
incógnitos, e a sordidez, ainda que em verdadeo seja sór-
dida, de quotidianidade da vida. O tédio pesa mais quando
o tem a desculpa da inércia. O tédio dos grandes esforça-
dos é o pior de todos.
o é o tédio a doença do aborrecimento de nada ter
que fazer, mas a doença maior de se sentir queo vale a
pena fazer nada. E, sendo assim, quanto mais há que fazer,
mais tédio há que sentir.
Quantas vezes ergo do livro onde estou escrevendo e
que trabalho a cabeça vazia de todo o mundo! Mais me va-
lera estar inerte, sem fazer nada, sem ter que fazer nada,
porque esse tédio, ainda que real, ao menos o gozaria. No
meu tédio presenteo há repouso, nem nobreza, nem bem-
estar em que haja mal-estar: há um apagamento enorme de
todos os gestos feitos,o üm cansaço virtual dos gestos por
o fazer.
oo as paredes reles do meu quarto vulgar, nem as
secretárias velhas do escritório alheio, nem a pobreza das
ruas intermédias da Baixa usual, tantas vezes por mim per-
corridas que já me parecem ter usurpado a fixidez da irrepa-
rabilidade, que formam no meu espírito a náusea, que nele é
freqüente, da quotidianidade enxovalhante da vida.o as
pessoas que habitualmente me cercam,o as almas que,
desconhecendo-me, todos os dias me conhecem com o conví-
vio e a fala, que me põem na garganta do espírito o nó salivar
do desgosto físico. É a sordidez monótona da sua vida, para-
FERNANDO PESSOA
leia à exterioridade da minha, é a sua consciência íntima de
serem meus semelhantes, que me veste o traje de forçado,
me dá a cela de penitenciário, me faz apócrifo e mendigo.
Há momentos em que cada pormenor do vulgar me in-
teressa na sua existência própria, e eu tenho por tudo a afei-
ção de saber ler tudo claramente. Então vejo como Vieira
disse que Sousa descrevia o comum com singularidade,
e sou poeta com aquela alma com que a crítica dos gregos
formou a idade intelectual da poesia. Mas também há mo-
mentos, e um é este que me oprime agora, em que me sinto
mais a mim que às coisas externas, e tudo se me converte
numa noite de chuva e lama, perdida na solidão de um apea-
deiro de desvio, entre dois comboios de terceira classe.
Sim, a minha virtude íntima de ser freqüentemente ob-
jetivo, e assim me extraviar de pensar-me, sofre, como todas
as virtudes, e até como todos os vícios, decréscimos de afir-
mação. Então pergunto a mim mesmo como é que me sobre-
vivo, como é que ouso ter a covardia de estar aqui, entre esta
gente, com esta igualdade certeira com eles, com esta con-
formação verdadeira com a ilusão de lixo deles todos? Ocor-
rem-me com um brilho de farol distante todas as soluções
com que a imaginação é mulher — o suicídio, a fuga, a re-
núncia, os grandes gestos da aristocracia da individualidade,
o capa e espada das existências sem balcão.
Mas a Julieta ideal da realidade melhor fechou sobre o
Romeu fictício do meu sangue a janela alta da entrevista lite-
rária. Ela obedece ao pai dela; ele obedece ao pai dele. Conti-
nua a rixa dos Montecchios e dos Capuletos; cai o pano sobre
o queo se deu; e eu recolho à casa àquele quarto onde é
sórdida a dona da casa queo está, os filhos que raras
vezes vejo, a gente do escritório que só verei.amanhã com
a gola de um casaco de empregado do comércio erguida sem
estranhezas sobre o pescoço de um poeta, com as botas com-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
oradas sempre na mesma casa evitando inconscientemente
os charcos da chuva fria, e um pouco preocupado, mistura-
damente, de me ter esquecido sempre do guarda-chuva e da
dignidade da alma.
Regra é da vida que podemos, e devemos, aprender com
toda a gente. Há coisas da seriedade da vida que podemos
aprender com charlatães e bandidos, há filosofias que nos
ministram os estúpidos, há lições de firmeza e de lei quem
no acaso e nos queo do acaso. Tudo está em tudo.
Em certos momentos muito claros da meditação, como
aqueles em que, pelo princípio da trade, vagueio observante
pela ruas, cada pessoa me traz uma notícia, cada casa me dá
uma novidade, cada cartaz tem um aviso para mim.
Meu passeio calado é uma conversa contínua, e todos
nós, homens, casas, pedras, cartazes e céu, somos uma gran-
de multidão amiga, acotovelando-se de palavras na grande
procissão do Destino.
Paisagem de chuva
Toda a noite, e pelas horas fora, o chiar da chuva
baixou. Toda a noite, comigo entredesperto, a monotonia
fria me insistiu nos vidros. Ora um rasgo de vento, em ar
mais alto, açoitava, e a água ondeava de som e passava mãos
rápidas pela vidraça; ora com som surdo só fazia sono no ex-
terior morto. A minha alma era a mesma de sempre, entre
lençóis como entre gente, dolorosamente consciente do mun-
do. Tardava o dia como a felicidade àquela hora parecia
que também indefinidamente.
106 FERNANDO PESSOA
Se o dia e a felicidade nunca viessem! Se esperar, ao
menos, pudesse nem sequer ter a desilusão [?] de conseguir.
O som casual de um carro tardo, áspero a saltar nas
pedras, crescia do fundo da rua, estralejou por baixo da vi-
draça, apagava-se para o fundo na rua, para o fundo do vago
sono que euo conseguia de todo. Batia, de quando em
quando, uma porta de escada. Às vezes havia um chapinhar
líquido de passos, um roçar por si-mesmos de vestes molha-
das. Uma ou outra vez, quando os passos eram mais, soava
alto e atacavam. Depois o silêncio volvia, com os passos que
se apagavam, e a chuva continuava, inumeravelmente.
Nas paredes escuramente visíveis do meu quarto, se eu
abria os olhos do sono falso, boiavam fragmentos de sonhos
por fazer, vagas luzes, riscos pretos, coisas de nada que tre-
pavam e desciam. Os móveis, maiores do que de dia, man-
chavam vagamente o absurdo da treva. A porta era indicada
por qualquer coisa nem mais branca, nem mais preta do que
a noite, mas diferente. Quanto à janela (eu) a ouvia.
Nova, fluida, incerta, a chuva soava. Os momentos tar-
davam ao som dela. A solidão da minha alma alargava-se,
alastrava-se, invadia o que eu sentia, o que eu queria, o que
eu ia sonhar. Os objetos vagos, participantes, na sombra, da
minha insônia, passavam a ter lugar e dor na minha deso-
lação.
Há muito tempo queo escrevo.m passado meses
sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia,
numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infeliz-
mente,o repousa: no apodrecimento há fermentação.
Há muito tempo queo sóo escrevo, mas nem se-
quer existo. Creio que mal sonho. As ruaso ruas para
mim. Faço o trabalho do escritório com consciência só para
ele, maso direi bem sem me distrair: por trás estou, em
LIVRO DO DESASSOSSEGO
vez de meditando, dormindo, porém estou sempre outro por
trás do trabalho.
Há muito tempo queo existo. Estou sossegadíssimo.
Ninguém me distingue de quem sou. Senti-me agora respi-
rar como se houvesse praticado uma coisa nova, ou atrasada.
Começo a ter consciência de ter consciência. Talvez amanhã
desperte para mim mesmo, e reate o curso da minha existên-
cia própria.o sei se, com isso, serei mais feliz ou menos.
o sei nada. Ergo a cabeça de passeante e vejo que, sôbre a
encosta do Castelo, o poente oposto arde em dezenas de ja-
nelas, num reverbero alto de fogo frio. À roda desses olhos
de chama dura toda a encosta é suave do fim do dia. Posso
ao menos sentir-me triste, e ter a consciência de que, com
esta minha tristeza se cruzou agora visto com ouvido
o som súbito do elétrico que passa, a voz casual dos conver-
sadores jovens, o sussurro esquecido da cidade viva.
Há muito tempo queo sou eu.
Atrás dos primeiros menos-calores do estio findo vie-
ram, nos acasos das tardes, certos coloridos mais brandos do
u amplo, certos retoques de brisa fria que anunciavam o
outono.o era ainda o desverde da folhagem, ou o despren-
derem-se das folhas, nem aquela vaga angústia que acompa-
nha a nossa sensação da morte externa, porque o há de ser
também a nossa. Era como um cansaço do esforço existente,
um vago sono Sobrevindo aos últimos gestos de agir. Ah,o
tardes de umao magoada indiferença, que, antes que co-
mece nas coisas, começa ems o outono.
Cada outono que vem é mais perto do último outono
que teremos, e o mesmo é verdade do verão ou de estio; mas
o outono lembra, por o que é, o acabamento de tudo, e no
verão ou no estio é fácil, de olhar, que o esqueçamos.o é
FERNANDO PESSOA
ainda o outono,o está ainda no ar o amarelo das folhas
caídas ou a tristeza úmida do tempo que vai ser inverno mais
tarde. Mas há um resquício de tristeza antecipada, uma-
goa vestida para a viagem, no sentimento em que somos va-
gamente atentos à difusão colorida das coisas, ao outro tom
do vento, ao sossego mais velho que se alastra, se a noite cai,
pela presença inevitável do universo.
Sim, passaremos todos, passaremos tudo. Nada ficará
do que usou sentimentos e luvas, do que falou da morte e da
política local. Como é a mesma luz que ilumina as faces dos
santos e as polainas dos transeuntes, assim será a mesma
falta de luz que deixará no escuro o nada que ficar de uns
terem sido santos e outros usadores de polainas. No vasto
redemoinho, como o das folhas secas, em que jaz indolente-
mente o mundo inteiro, tanto faz os reinos como os vestidos
das costureiras, e as tranças das crianças louraso no mes-
mo giro mortal que os cetros que figuraram impérios. Tudo
é nada, e no átrio do Invisível, cuja porta aberta mostra ape-
nas, defronte, uma porta fechada, bailam, servas desse vento
que as remexe sem mãos, todas as coisas, pequenas e gran-
des, que formaram, paras e em nós, o sistema sentido do
universo. Tudo é sombra e pó mexido, nem há voz senão a
do som que faz o que vento ergue e arrasta, nem silêncio
senão do que o vento deixa. Uns, folhas leves, menos presas
de terra por mais leves,o altas do redopio do Àtrio e caem
mais longe que o círculo dos pesados. Outros, invisíveis
quase, pó igual, diferente só se o víssemos de perto, faz cama
a si mesmo no redemoinho. Outros ainda, miniaturas de
troncos,o arrastados à roda e cessam aqui e ali. Um dia, no
fim do conhecimento das coisas, abrir-se-á a porta do fundo,
e tudo o que fomos lixo de estrelas e de almas será
varrido para fora da casa, para que o que há recomece.
Meu coração dói-me como um corpo estranho. Meu-
rebro dorme tudo quanto sinto. Sim, é o princípio do outono
LIVRO DO DESASSOSSEGO
que traz ao ar e à minha alma aquela luz sem sorriso que vai
orlando de amarelo morto o arredondamento confuso das
poucas nuvens do poente. Sim, é o princípio do outono, e o
conhecimento claro, na hora límpida, da insuficiência anô-
nima de tudo. O outono, sim, o outono, o que há ou o que
vai haver, e o cansaço antecipado de todos os gestos, a desi-
lusão antecipada de todos os sonhos. Que posso eu esperar e
de quê?, no que penso de mim, vou entre as folhas e os
s do átrio, na órbita sem sentido de coisa nenhuma, fa-
zendo som de vida nas lages limpas que um sol angular doura
de fimo sei onde.
Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto
fiz ouo fiz tudo isso irá no outono, como os fósforos
gastos que juncam o chão em diversos sentidos, ou os papéis
amarrotados em bolas falsas, ou os grandes impérios, as reli-
giões todas, as filosofias com que brincaram, fazendo-as, as
crianças sonolentas do abismo. Tudo quanto foi minha alma,
desde tudo a que aspirei à casa vulgar em que moro, desde os
deuses que tive ao patrão Vasques que também tive, tudo vai
no outono, tudo no outono, na ternura indiferente do ou-
tono. Tudo no outono, sim, tudo no outono...
Lisboa, meu lar!
Disse Amiel que uma paisagem é um estado de alma,
mas a frase é uma felicidade frouxa de sonhador débil. Desde
que a paisagem é paisagem, deixa de ser um estado da alma.
Objetivar é criar, e ninguém diz que um poema feito é um
estado de estar pensando em fazê-lo. Ver é talvez sonhar,
mas se lhe chamamos ver em vez de lhe chamarmos sonhar,
é que distinguimos sonhar de ver.
De resto, de que servem estas especulações de psicolo-
gia verbal? Independentemente de mim, cresce erva, chove
na erva que cresce, e o sol doura a extensão da erva que cres-
ceu ou vai crescer; erguem-se os montes de muito antiga-
mente, e o vento passa com o mesmo modo com que Ho-
mero, ainda queo existisse, o ouviu. Mais certa era dizer
que um estado da alma é uma paisagem; haveria na frase a
vantagem de não conter a mentira de uma teoria, mas tão-
somente a verdade de uma metáfora.
Estas palavras casuais foram-me ditadas pela grande ex-
tensão da cidade, vista à luz universal do sol, desde o alto de
S. Pedro de Alcântara. Cada vez que assim contemplo uma
extensão larga, e me abandono do metro e setenta de altura,
e sessenta e um quilos de peso, em que fisicamente consisto.
tenho um sorriso grandemente metafísico para os que so
nham que o sonho é sonho, e amo a verdade do exterior
absoluto com uma virtude nobre do entendimento.
FERNANDO PESSOA
O Tejo ao fundo é um lago azul, e os montes da Outra
Bandao de uma Suíça achatada. Sai um navio pequeno
vapor de carga preto dos lados do Poço do Bispo para a
barra queo vejo. Que os Deuses todos me conservem, até
à hora em que cesse este meu aspecto de mim, a noção clara
e solar da realidade externa, o instinto da minha inimpor-
tância, o conforto de ser pequeno e de poder pensar em ser
feliz.
o acredito na paisagem. Sim.o o digo porque creia
no "a paisagem é um estado de alma" do Amiel, um dos
bons momentos verbais da mais insuportável interiorice.
Digo-o porqueo creio.
Depois que os últimos calores do estio deixavam de ser
duros no sol baço, começava o outono antes que viesse,
numa leve tristeza, prolixamente indefinida, que parecia uma
vontade deo sorrir do céu. Era um azul umas vezes mais
claro, outras mais verde, da própria ausência de substância
da cor alta; era uma espécie de esquecimento nas nuvens,
púrpuras diferentes e esbatidas; era,o já um torpor, mas
um tédio, em toda a solidão quieta por onde nuvens atra-
vessam.
A entrada do verdadeiro outono era depois anunciada
por um frio dentro do não-frio do ar, por um esbater-se das
cores que ainda seo haviam esbatido, por qualquer coisa
de penumbra e de afastamento no que havia sido o tom das
paisagens e o aspecto disperso das coisas. Nada ia ainda mor-
LIVRO DO DESASSOSSEGO 115
rer, mas tudo, como que num sorriso que ainda faltava, se
virava em saudade para a vida.
Vinha, por fim, o outono certo: o ar tornava-se frio de
vento; soavam folhas num tom seco, ainda queo fossem
folhas secas; toda a terra tomava a cor e a forma impalpável
de um paul incerto. Descoloria-se o que fora sorriso último,
num cansaço de pálpebras, numa indiferença de gestos. E
assim tudo quanto sente, ou supomos que sente, apertava,
íntima, ao peito a sua própria despedida. Um som de rede-
moinho num átrio flutuava através da nossa consciência de
outra coisa qualquer. Aprazia convalescer para sentir verda-
deiramente a vida.
Mas as primeiras chuvas do inverno, vindas ainda no
outono já duro, lavavam estas meias-tintas como sem res-
peito. Ventos altos, chiando em coisas paradas, barulhando
coisas presas, arrastando coisas móveis, erguiam, entre os
brados irregulares da chuva, palavras ausentes de protesto
anônimo, sons tristes e quase raivosos de desespero sem
alma.
E por fim o outono cessava, a frio e cinzento. Era um
outono de inverno o que vinha agora, um pó tornado lama de
tudo, mas, ao mesmo tempo, qualquer coisa do que o frio do
inverno traz de bom verão duro findo, primavera por che-
gar, outono definindo-se em inverno enfim. E no ar alto, por
onde os tons baços jáo lembravam nem calor nem tris-
teza, tudo era propício à noite e à meditação indefinida.
Assim era tudo para mim antes que o pensasse. Hoje se
o escrevo é porque o lembro. O outono que tenho é o que
perdi.
FERNANDO PESSOA
Cantava, em uma voz muito suave, uma canção de um
país longínquo. A música tornava familiares as palavras in-
cógnitas. Parecia o fado para a alma, maso tinha com ele
semelhança alguma.
A canção dizia, pelas palavras veladas)e a melodia hu-
mana, coisas que estão na alma de todos e que ninguém co-
nhece. Ele cantava numa espécie de sonolência, ignorando
com o olhar os ouvintes, num pequeno êxtase de rua.
O povo reunido ouvia-o sem grande motejo visível. A
canção era de toda a gente, e as palavra falavam às vezes
conosco, segredo oriental de qualquer raça perdida. O ruído
da cidadeo se ouvia se o ouvíamos, e passavam as carroças
o perto que uma me roçou pelo solto do casaco. Mas senti-a
eo a ouvi. Havia uma absorção no canto do desconhecido
que fazia bem ao que ems sonha ouo consegue. Era um
caso de rua, e todos reparamos que o polícia virara a esquina
lentamente. Aproximou-se com a mesma lentidão. Ficou
parado um tempo por trás do rapaz dos guarda-chuvas, como
quem vê qualquer coisa. Nesta altura o cantor parou. Nin-
guém disse nada. Então o polícia interveio.
Como nos dias em que a trovoada se prepara e os ruídos
da rua falam alto com uma voz solitária.
A rua franzia-se de luz intensa e pálida e o negrume
baço tremeu, de leste a oeste do mundo, com um estrondo
feito de escangalhamentos ecoantes... A tristeza dura da
chuva bruta piorou o ar negro de intensidade feia. Frio,
morno, quente tudo ao mesmo tempo o ar em toda a
parte era errado. E, a seguir, pela ampla sala uma cunha de
luz metálica abriu brecha nos repousos dos corpos humanos,
e, com o sobressalto gelado um Pedregulho de som bateu em
LIVRO DO DESASSOSSEGO
toda a parte, esfacelando-se com silêncio(s) duro(s). O som
da chuva, diminui como uma voz de menos peso. O ruído
das ruas diminuiu angustiantemente. Nova luz, de um ama-
relado rápido, tolda o negrume surdo, mas houve agora uma
respiração possível antes que o punho [?] do som trêmulo
ecoasse súbito doutro ponto; como uma despedida zangada,
a trovoada começava a aquio estar.
com um sussurro arrastado e findo, sem luz na luz que
aumentava, o tremor da trovoada acalmava [?) nos largos
longes rodava [ ?] em Almada...
Uma súbita luz formidável estilhaça-se. [...] Tudo esta-
cou. Os corações pararam um momento. Todoso pessoas
muito sensíveis. O silêncio aterra como se houvera morte.
O som da chuva que aumenta, alivia como lágrimas de tudo.
[?] Há chumbo.
Desde o princípio baço do dia quente e falso nuvens es-
curas e de contornos mal rotos rondavam a cidade oprimida.
Dos lados a que chamamos da barra, sucessivas e torvas,
essas nuvens sobrepunham-se, e uma antecipação de tragé-
dia estendia-se com elas do indefinido rancor das ruas contra
o sol alterado.
Era meio-dia e, na saída para o almoço, pesava uma
esperança má na atmosfera empalidecida. Farrapos de nu-
vens esfarrapadas negrejavam na dianteira dela. O céu, para
os lados do Castelo, era limpo mas de um mau azul. Havia
sol maso apetecia gozá-lo.
À uma hora e meia da tarde, quando se regressara ao
escritório, parecia mais limpo o céu, mas só para um lado
antigo. Sobre os lados da barra estava de fato mais desco-
FERNANDO PESSOA
berto. De sobre a parte norte da cidade, porém, as nuvens
conjugavam-se lentamente numa nuvem só negra, impla-
cável, avançando lentamente com garras rombas de branco
cinzento na ponta de braços negros. Dentro em pouco atin-
giria o sol, e os ruídos da cidade parece que se abafavam com
o esperá-la. Era, ou parecia, um pouco mais límpido ou
para os lados de leste, mas o calor fazia mais desagrado. Sua-
va-se na sombra da sala grande do escritório. "Vem aí uma
grande trovoada", disse o Moreira, e voltou à página do
Razão.
Às três horas da tarde falhara já toda a ação do sol. Foi
preciso — e era triste porque era verão acender a luz elé-
trica primeiro ao fundo da sala grande, onde estavam em-
pacotando as remessas, depois já a meio da sala, onde se tor-
nava difícil fazer sem erro as guias de remessa e notar nelas os
números das senhas de caminho de ferro. Por fim, já eram
quase quatro horas, atés os privilegiados das janelas,
o víamos agradavelmente para trabalhar. O escritório fi-
cou iluminado. O patrão Vasques atirou com o guarda-vento
do gabinete e disse para fora saindo: "Ô Moreira, eu tinha
que ir a Benfica maso vou; vai-se fartar de chover''. "E é
lá desse lado", respondeu o Moreira, que morava ao pé da
Avenida. Os ruídos da rua destacaram-se de repente, altera-
ram-se um pouco, e era,o sei porquê, um pouco triste o
som das campainhas dos elétricos na rua paralela e próxima.
Depois que as últimas chuvas passaram para o sul, e só
ficou o vento que as varreu, regressou aos montões da cidade
a alegria do sol certo e apareceu muita roupa branca pendu-
rada a saltar nas cordas esticadas por paus médios nas janelas
altas dos prédios de todas as cores.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Também fiquei contente, porque existo. Saí de casa para
um grande fim, que era, afinal, chegar a horas ao escritório.
Mas, neste dia, a própria compulsão da vida participava da-
quela outra boa compulsão que faz o sol vir nas horas do
almanaque, conforme a latitude e a longitude dos lugares da
terra. Senti-me feliz poro poder sentir-me infeliz. Desci a
rua descansadamente, cheio de certeza, porque, enfim, o es-
critório conhecido, a gente conhecida nele, eram certezas.
o admira que me sentisse livre, sem saber de quê. Nos
cestos pousados à beira dos passeios da Rua da Prata as bana-
nas de vender, sob o sol, eram de um amarelo grande.
Contento-me, afinal, com muito pouco: o ter cessado a
chuva, o haver um sol bom neste Sul feliz, bananas mais
amarelas por terem nódoas negras, a gente que as vende por-
que fala, os passeios da Rua da Prata, o Tejo ao fundo, azul-
esverdeado a ouro, todo este recanto doméstico do sistema
do Universo.
Virá o dia em queo veja isto mais, em que me sobre-
viverão as bananas da orla do passeio, e as vozes das ven-
dedoras solertes, e os jornais do dia que o pequeno estendeu
lado a lado na esquina do outro passeio dá rua. Bem sei que
as bananas serão outras, e que as vendedoras serão outras, e
que os jornais terão, a quem se baixar para vê-los, uma
data queo é a de hoje. Mas eles, porqueo vivem,
duram ainda que outros; eu, porque vivo, passo ainda que
o mesmo.
Esta hora, poderia eu bem solenizá-la comprando bana-
nas, pois me parece que nestas se projetou todo o sol do dia
como um holofote sem máquina. Mas tenho vergonha dos
rituais, dos símbolos, de comprar coisas na rua. Podiamo
me embrulhar bem as bananas,o mas vender como devem
ser vendidas por eu aso saber comprar como devem ser
FERNANDO PESSOA
compradas. Podiam estranhar a minha voz ao perguntar o
preço. Mais vale escrever do que ousar viver, ainda que viver
o seja mais que comprar bananas ao sol, enquanto o sol
dura e há bananas que vender.
Mais tarde, talvez... Sim, mais tarde... Um outro, tal-
vez...o sei...
O calor, como uma roupa invisível, dá vontade de o
tirar.
Trovoada
Este ar baixo de nuvens paradas. O azul dou estava
sujo de branco transparente.
O moço, ao fundo do escritório, suspende um minuto o
cordel á roda do embrulho eterno...
'' Como está [...]," comenta estatisticamente.
Um silêncio frio. Os sons da rua como que foram cor-
tados á faca. Sentiu-se, prolongadamente, como um mal-es-
tar de tudo, um suspender cósmico da respiração. Parara o
universo inteiro. Momentos, momentos, momentos. A tre-
va encarvoou-se de silêncio.
Súbito,o vivo, (...)
Que humano era o toque metálico dos elétricos! Que
paisagem alegre a simples chuva na rua ressuscitada do
abismo!
Oh, Lisboa, meu lar!
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Amo, pelas tardes demoradas de verão, o sossego da
cidade baixa, e sobretudo aquele sossego que o contraste
acentua na parte que o dia mergulha em mais bulício. A Rua
do Arsenal, a Rua da Alfândega, o prolongamento das ruas
tristes que se alastram para leste desde que a da Alfândega
cessa, toda a linha separada dos cais quedos tudo isso me
conforta de tristeza, se me insiro, por essas tardes, na solidão
do seu conjunto. Vivo uma era anterior àquela em que vivo;
gozo de sentir-me coevo de Cesário Verde, e tenho em mim,
o outros versos como os dele, mas a substância igual à dos
versos que foram dele.
Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida
parecida com a dessas ruas. De dia elaso cheias de um
bulício queo quer dizer nada; de noiteo cheias de uma
falta de bulício queo quer dizer nada. Eu de dia sou nulo, e
de noite sou eu.o há diferença entre mim e as ruas para o
lado da Alfândega, salvo elas serem ruas e eu ser alma, o que
pode ser que nada valha, ante o que é a essência das coisas.
Há um destino igual, porque é abstrato, para os homens e
para as coisas uma designação igualmente indiferente na
álgebra do mistério.
Mas há mais alguma coisa... Nessas horas lentas e va-
zias, sobe-me da alma à mente uma tristeza de todo o ser,
a amargura de tudo ser ao mesmo tempo uma sensação mi-
nha e uma coisa externa, queo está em meu poder alterar.
Ah, quantas vezes os meus próprios sonhos se me erguem
em coisas,o para me substituírem a realidade, mas para se
me confessarem seus pares em eu oso querer, em me sur-
girem de fora, como o elétrico que dá a volta na curva ex-
trema da rua, ou a voz do apregoador noturno, deo sei que
122 FERNANDO PESSOA
coisa, que se destaca, toada árabe, como um repuxo súbito,
da monotonia do entardecer!
Passam casais futuros, passam os pares das costureiras,
passam rapazes com pressa de prazer, fumam no seu passeio
de sempre os reformados de tudo, a uma ou outra porta re-
param em pouco os vadios parados queo donos das lojas.
Lentos, fortes e fracos, os recrutas sonambulizam em molhos
ora muito ruidosos, [ ?] ora mais que ruidosos. Gente normal
surge de vez em quando. Os automóveis ali a esta horao
o muito freqüentes; [...] No meu coração há uma paz de
angústia, e o meu sossego é feito de resignação.
Passa tudo isso, e nada de tudo isso me diz nada, tudo é
alheio ao meu sentir, [...] quando o acaso deita pedras, ecos
de vozes incógnitas salada coletiva da vida.
O cansaço de todas as ilusões e de tudo o que há nas
ilusões — a perda delas, a inutilidade de as ter, o antecan-
saço de ter que as ter para perdê-las, a mágoa de as ter tido,
a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam
tal fim.
A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo
imposto à inteligência. Há inteligências inconscientes... bri-
lhos do espírito, correntes do entendimento, vozes [...] e
filosofias quem o mesmo entendimento que os reflexos
corpóreos, que a gestão que o fígado e os rins fazem de suas
secreções.
Escrevo num domingo, manhã alta, num dia amplo de
luz suave, em que, sobre os telhados da cidade interrompida,
o azul dou sempre inédito fecha no esquecimento a exis-
tência misteriosa de astros...
É domingo em mim também...
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Também meu coração vai a uma igreja queo sabe
onde é, e vai vestido de um traje de veludo infante, com a
cara corada das primeiras impressões a sorrir sem olhos tris-
tes por cima do colarinho muito grande.
Surge dos lados do oriente a luz loura do luar de ouro. O
rastro que faz no rio largo abre serpentes no mar.
No nevoeiro leve da manhã de meia-primavera, a Baixa
desperta entorpecida e o sol nasce como que lento. Há uma
alegria sossegada no ar com metade de frio, e a vida, ao sopro
leve da brisa queo, tirita vagamente do frio que já pas-
sou, pela lembrança do frio mais que pelo frio, pela compa-
ração com o verão próximo, mais que pelo tempo que está
fazendo.
o abriram ainda as lojas, salvo as leiterias e os cafés,
mas o repousoo é de torpor, como o de domingo; é de
repouso apenas. Um vestígio louro antecede-se no ar que se
revela, e o azul cora palidamente através da bruma que se
esfina. O começo do movimento rareia pelas ruas, destaca-se
a separação dos peões, e nas poucas janelas abertas, altas,
madrugam também aparecimentos. Os elétricos traçam a
meio-ar o seu vinco móbil amarelo e numerado. E, de mi-
nuto a minuto, sensivelmente, as ruas desdesertam-se.
Vogo, atenção só dos sentidos, sem pensamento nem
emoção. Despertei cedo; vim para a rua sem preconceitos.
Examino como quem cisma. Vejo como quem pensa. E uma
leve névoa de emoção se ergue absurdamente em mim; a
bruma que vai saindo do exterior parece que se me infiltra
lentamente.
FERNANDO PESSOA
Sem querer, sinto que tenho estado a pensar na minha
vida.o dei por isso, mas assim foi. Julguei que somente
via e ouvia, queo era mais, em todo este meu percurso
ocioso, que um refletor de imagens dadas, um biombo bran-
co onde a realidade projeta cores e luz em vez de sombras.
Mas era mais, sem que o soubesse. Era ainda a alma que se
nega, e o meu próprio abstrato observar era uma negação
ainda.
Tolda-se o ar de falta de névoa, tolda-se de luz pálida,
em a qual a névoa como que se misturou. Reparo subita-
mente que o ruído é muito maior, que muito mais gente
existe. Os passos dos mais transeunteso menos apressa-
dos. Aparece, a quebrar a sua ausência e a menor pressa dos
outros, o correr andado das varinas, a oscilação dos padeiros,
monstruosos de cesto, e [a] igualdade divergente das vendei-
ros de tudo mais desmonotoniza-se só no conteúdo das ces-
tas, onde as cores divergem mais que as coisas. Os leiteiros
chocalham, como chaves ocas e absurdas, as latas desiguais
do seu ofício andante. Os policiais estagnam nos cruzamen-
tos, desmentido parado da civilização ao movimento invisí-
vel da subida do dia.
Quem me dera, neste momento o sinto, ser alguém que
pudesse ver isto como seo tivesse com ele mais relação
que o vê-lo contemplar tudo como se fora o viajante adulto
chegado hoje à superfície da vida!o ter aprendido, da
nascença em diante, a dar sentidos dados a estas coisas todas,
poder vê-las na expressão quem separadamente da expres-
o que lhes foi imposta. Poder conhecer na varina a sua
realidade humana independente de se lhe chamar varina, e
de se saber que existe e que vende. Ver o polícia como Deus
o. Reparar em tudo pela primeira vez,o apocaliptica-
mente, como revelações do Mistério, mas diretamente como
florações da Realidade.
LIVRO DO DESASSOSSEGO 125
Soam devem ser oito as queo conto badaladas
de horas de sino ou relógio grande. Acordo de mim pela ba-
nalidade de haver horas, clausura que a vida social impõe à
continuidade do tempo fronteira no abstrato, limite no des-
conhecido. Acordo de mim e, olhando para tudo, agora já
cheio de vida e de humanidade costumada, vejo que a névoa
que saiu de todo do céu, salvo o que no azul ainda paira de
aindao bem azul, me entrou verdadeiramente para a alma,
e ao mesmo tempo entrou para a parte de dentro de todas as
coisas, que é por onde elasm contato com a minha alma.
Perdi a visão do que via. Ceguei com vista. Sinto já com a
banalidade do conhecimento. Isto agorao é já a Realidade:
é simplesmente a Vida.
... Sim, a vida a que eu também pertenço, e que tam-
m me pertence a mim;o já a Realidade, que é só de
Deus, ou de si mesma, queo contém mistério nem ver-
dade, que, pois que é real ou o finge ser, algures exista fixa,
livre de ser temporal ou eterna, imagem absoluta, idéia de
uma alma que fosse exterior.
Volvo lentos os passos mais rápidos do que julgo ao por-
o para onde subirei de novo para casa. Maso entro; he-
sito; sigo para diante. A Praça da Figueira, bocejando vende-
res [sic] de várias cores, cobre-me esfreguesando-se o hori-
zonte de ambulante. Avanço lentamente, morto, e a minha
visão jáo é minha, jáo é nada: é só a do animal humano
que herdou sem querer a cultura grega, a ordem romana,
a moral cristã e todas as mais ilusões que formam a civili-
zação em que sinto.
Onde estarão os vivos?
FERNANDO PESSOA
Sinfonia de uma noite inquieta
Dormia tudo como se o universo fosse um erro; e o
vento, flutuando incerto, era uma bandeira sem forma des-
fraldada sobre um quartel sem ser.
Esfarrapava-se coisa nenhuma no ar alto e forte, e os
caixilhos das janelas sacudiam os vidros para que a extremi-
dade se ouvisse. No fundo de tudo, calada, a noite era o-
mulo de Deus (a alma sofria com pena de Deus).
E, de repente, nova ordem das coisas universais agia
sobre a cidade — o vento assobiava no intervalo do vento, e
havia uma noção dormida de muitas agitações na altura. De-
pois a noite fechava-se como um alçapão, e um grande sos-
sego fazia vontade de ter estado a dormir.
o é nos largos campos ou nos jardins grandes que
vejo chegar a primavera. É nas poucas árvores pobres de um
largo pequeno da cidade. Ali a verdura destaca como uma
dádiva e é alegre como uma boa tristeza.
Amo esses largos solitários, intercalados entre ruas de
pouco trânsito, e eles mesmos sem mais trânsito que as ruas.
o clareiras inúteis, coisas que esperam, entre tumultos
longinquos.o de aldeia na cidade.
Passo por eles, subo qualquer das ruas suas afluentes,
depois desço de novo essa rua, para a ele[s] regressar. Visto
do outro lado é diferente, mas a mesma paz deixa dourar de
saudade súbita sol no ocaso — o lado queo vira na ida.
Tudo é inútil, e eu o sinto como tal. Quanto vivi se me
esqueceu como se o ouvira distraído. Quanto serei meo
lembra como se o tivera vivido e esquecido.
LIVRO DO DESASSOSSEGO 127
Um ocaso de mágoa leve paira vago em meu torno.
Tudo esfria,o porque esfrie, mas porque entrei numa rua
estreita e o largo cessou.
Ou do estio prolongado todos os dias despertava de
azul verde baço, e breve se tornava de azul acinzentado de
branco mudo. No ocidente, porém, era da cor que lhe costu-
mam chamar, a ele todo.
Dizer a verdade, encontrar o que se espera, negar a ilu-
o de tudo quantos o usam na subsidência e no declive, e
como os nomes ilustres mancham de maiúsculas, como as
de terras geográficas, as agudezas das páginas sóbrias e lidas!
Cosmorama de acontecer amanhã o queo poderia
ter sucedido nunca! Lápis-lazúli das emoções descontinuas!
Quantas memórias alberga uma suposição factícia, lembras-
te, visão somente? E num delírio intersticiado de certezas,
leve, breve, suave, o murmúrio da água de todos os parques
nasce, emoção do fundo da minha consciência de mim. Sem
ninguém os bancos antigos, e as aléias alastram onde eles
estão a sua melancolia de arruamentos vazios.
Noite em Heliópolis! Noite em Heliópolis! Noite em
Heliópolis! Quem te dirá as palavras inúteis, me compensará
a sangue e indecisão?
Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente
como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontemo é
sentir é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o
cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.
FERNANDO PESSOA
Apagar tudo do quadro de um dia para outro, ser novo
com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da
emoção isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou
ter o que imperfeitamente somos.
Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor
rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face
com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o
silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora,
nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra
coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios
de uma nova visão.
Altos montes da cidade! Grandes arquiteturas que as
encostas íngremes seguram e engrandecem, resvalamentos
de edifícios diversamente amontoados, que a luz tece de som-
bras e queimações sois hoje, sois eu, porque vos vejo sois
o que [...] e amo-vos da amurada como um navio que passa
por outro navio e há saudades desconhecidas [?] na pas-
sagem.
Sonho triangular
A luz tornara-se de um amarelo exageradamente lento,
de um amarelo sujo de lividez. Haviam crescido os intervalos
entre as coisas, e os sons, mais espaçados de uma maneira
nova davam-se desligadamente. Quando se ouviam acaba-
vam de repente, como que cortados. O calor, que parecia ter
aumentado, parecia estar, ele calor, frio. Pela leve frincha
das portas encostadas da janela via-se a atitude de exagerada
expectativa da única árvore visível. O seu verde era outro. O
silêncio entrara-lhe com a cor. Na atmosfera haviam-se fe-
chado pétalas. E na própria composição do espaço uma inter-
relação diferente de qualquer coisa como planos havia alterado
e quebrado o modo dos sons, das luzes e das cores usarem a
extensão.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
O gládio de um relâmpago frouxo volteou sombriamente
no quarto largo. E o som a vir, suspenso um hausto amplo,
retumbou, emigrando profundo. O som da chuva chorou
alto, como carpideiras no intervalo das falas. Os pequenos
sons destacaram-se cá dentro, inquietos.
Névoa ou fumo? Subia da terra ou descia do céu?o
se sabia: era mais como uma doença do ar que uma descida
ou uma emanação. Por vezes parecia mais uma doença dos
olhos do que uma realidade da natureza.
Fosse o que fosse ia por toda a paisagem uma inquieta-
ção turva, feita de esquecimento e de atenuação. Era como se
o silêncio do mau sol tomasse para seu um corpo imperfeito.
Dir-se-ia que ia acontecer qualquer coisa e que por toda a
parte havia uma intuição, pela qual o visível se velava.
Era difícil dizer se ou tinha nuvens ou antes névoa.
Era um torpor baço, aqui e ali colorido, um acinzentamento
imponderavelmente amarelado, salvo onde se esboroava em
cor-de-rosa falso, ou onde estagnava azulescendo, mas ali
o se distinguia se era ou que se revelava, se era outro
azul que o encobria.
Nada era definido, nem o indefinido. Por isso apetecia
chamar fumo à névoa, por elao parecer névoa, ou pergun-
tar se era névoa ou fumo, por nada se perceber do que era. O
mesmo calor do ar colaborava na dúvida.o era calor, nem
frio, nem fresco; parecia compor a sua temperatura de ele-
mentos tirados de outras coisas que o calor. Dir-se-ia, deve-
ras, que uma névoa fria aos olhos era quente ao tato, como se
tato e vista fossem dois modos sensíveis do mesmo sentido.
FERNANDO PESSOA
Nem era, em torno dos contornos das árvores, ou das
esquinas dos edifícios, aquele esbater de recortes ou de ares-
tas, que a verdadeira névoa traz, estagnando, ou o verdadeiro
fumo, natural, entreabre e entrescurece. Era como se cada
coisa projetasse de si uma sombra vagamente diurna, em to-
dos os sentidos, sem luz que a explicasse como sombra, sem
lugar de projeção que a justificasse como visível.
Nem visível era: era como um começo de ir a ver-se
qualquer coisa, mas em toda a parte por igual, como se o a
revelar hesitasse em ser aparecido.
E que sentimento havia? A impossibilidade de o ter, o
coração desfeito na cabeça, os sentimentos confundidos, um
torpor da existência desperta, um apurar de qualquer coisa
anímica como o ouvido, para uma revelação definitiva, inú-
til, sempre a aparecer, como a verdade, sempre, como a
verdade, gêmea de nunca aparecer.
Até a vontade de dormir, que lembra ao pensamento,
desapartei [?], por parecer um esforço o mero bocejo de a
ter. Até deixar de ver faz doer os olhos. E, na abdicação
incolor da alma inteira, só os ruídos exteriores, longe,o o
mundo impossível que ainda existe.
Ah, outro mundo, outras coisas, outra alma com que
senti-las, outro pensamento com que saber dessa alma! Tudo,
até o tédio, menos este esfumar comum da alma e das coisas,
este desamparo azulado da indefinição de tudo!
Depois dos dias todos de chuva, de novo ou traz o
azul, que escondera, aos grandes espaços do alto. Entre as
ruas, onde as poças dormem como charcos do campo, e a
alegria clara que esfria no alto, há um contraste que torna
agradáveis as ruas sujas e primaveril ou de inverno baço.
É domingo eo tenho que fazer. Nem sonhar me apetece,
deo bem que está o dia. Gozo-o com" uma sinceridade de
sentidos a que a inteligência se abandona. Passeio como um
LIVRO DO DESASSOSSEGO
caixeiro liberto. Sinto-me velho, só para ter o prazer de me
sentir rejuvenescer.
Na grande praça dominical há um movimento solene de
outra espécie de dia. Em S. Domingos há a saída de uma
missa, e vai principiar outra. Vejo uns que saem e os que
aindao entram, esperando por alguns queo estão vendo
quem sai.
Todas estas coisasom importância. São, como
tudo no comum da vida, um sono dos mistérios e das ameias,
e eu olho, como um arauto chegado à planície da minha me-
ditação.
Outrora, criança, eu ia a esta mesma missa, ou porven-
tura à outra, mas devia ser a esta. Punha, com a devida cons-
ciência, o meu único fato melhor, e gozava tudo até o que
o tinha razão de gozar. Vivia por fora e o fato era limpo e
novo. Que mais quer quem tem que morrer e oo sabe pela
o da mãe?
Outrora gozava tudo isto, por isso é só agora, talvez,
que compreendo quanto o gozava. Entrava para a missa
como para um grande mistério, e saía da missa como para
uma clareira. E assim é que verdadeiramente era, e ainda
verdadeiramente é. Só o ser queo crê e é adulto, com alma
que recorda e chora,o a ficção e o transtorno, o desalinho e
a laje fria.
Sim, o que eu sou fora insuportável, se euo pudesse
lembrar-me do que fui. E esta multidão alheia que continua
ainda a sair da missa, e o princípio da multidão possível que
começa a chegar para entrar para a outra tudo istoo
como barcos que passam por mim, rio lento, sob as janelas
abertas do meu lar erguido sobre a margem.
Memórias, domingos, missas, prazer de haver sido, mi-
lagre do tempo que ficou por ter passado, eo esquece nun-
ca porque foi meu... Diagonal absurda das sensações prová-
veis, som súbito de carruagem de praça que soa rodas no
fundo dos silêncios ruidosos dos automóveis, e de qualquer
modo, por um paradoxo maternal do tempo, subsiste hoje,
132 FERNANDO PESSOA
aqui mesmo, entre o que sou e o que perdi, no ântero olhar
de mim que sou eu...
Que sei? Que procuro? Que sinto? Que pediria se ti-
vesse que pedir?
Por entre a casaria, em intercalações de luz e sombra
ou, antes, de luz e de menos luz a manhã desata-se sobre a
cidade. Parece queo vem do sol mas da cidade, e que é dos
muros e dos telhados que a luz do alto se desprendeo
deles fisicamente, mas deles por estarem ali.
Sinto, ao senti-la, uma grande esperança; mas reco-
nheço que a esperança é literária. Manhã, primavera, espe-
rança estão ligados em música pela mesma intenção meló-
dica; estão ligados na alma pela mesma memória de uma
igual intenção. Não: se a mim mesmo observo, como ob-
servo à cidade, reconheço que o que tenho que esperar é que
este dia acabe, como todos os dias. A razão também vê a
aurora. A esperança que pus nela, se a houveo foi minha:
foi a dos homens que vivem a hora que passa, e a quem en-
carnei sem querer, o entendimento exterior neste momento.
Esperar? Que tenho eu que espere? O diao me pro-
mete mais que o dia, e eu sei que ele tem decurso e fim.
A luz anima-me maso me melhora, pois [?] sairei de
aqui como para aqui vim mais velho em horas, mais ale-
gre uma sensação, mais triste um pensamento. No que nasce
tanto podemos sentir o que nasce como pensar o que há de
morrer. Agora, à luz ampla e alta, a paisagem da cidade é
como de um campo de casas é natural, é extensa, é com-
binada. Mas, ainda no ver disto tudo, poderei eu esquecer
que existo? A minha consciência da cidade é, por dentro, a
minha consciência de mim.
Lembro-me de repente de quando era criança, e via,
como hojeo posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela
entãoo raiava para mim, mas para a vida, porque então eu
LIVRO DO DESASSOSSEGO
(não sendo consciente) era a vida. Via a manhã e tinha ale-
gria; hoje vejo a manhã, e tenho alegria, e fico triste. A
criança ficou mas emudeceu. Vejo como via, mas por trás
dos olhos vejo-me vendo; e só com isto se me obscurece o sol
e o verde das árvores é velho e as flores murcham antes de
aparecidas. Sim, outrora eu era daqui; hoje, a cada paisa-
gem, nova para mim que seja, regresso estrangeiro, hóspede
e peregrino da sua presentação, forasteiro do que vejo e ouço,
velho de mim.
Já vi tudo, ainda o que nunca vi, nem o que nunca ve-
rei. No meu sangue corre até a menor das paisagens futuras,
e a angústia do que terei que ver de novo é uma monotonia
antecipada para mim.
E debruçado ao parapeito, gozando do dia, sobre o vo-
lume vário da cidade inteira, só um pensamento me enche a
alma a vontade íntima de morrer, de acabar, deo ver
mais luz sobre cidade alguma, deo pensar, deo sentir,
de deixar atrás, como um papel de embrulho, o curso do sol e
dos dias, de despir, como um traje pesado, à beira do grande
leito, o esforço involuntário de ser.
Há sossegos do campo na cidade. Há momentos, sobre-
tudo nos meio-dias de estio, em que, nesta Lisboa luminosa,
o campo, como um vento, nos invade. E aqui mesmo, na
Rua dos Douradores, temos o bom sono.
Que bom à alma ver calar, sob um sol alto quieto, estas
carroças com palha, estes caixotes por fazer, estes transeun-
tes lentos, de aldeia transferida! Eu mesmo, olhando-os da
janela do escritório, onde estou, me transmuto: estou
numa vila quieta da província, estagno numa aldeia incóg-
nita, e porque me sinto outro sou feliz.
FERNANDO PESSOA
Bem sei: se ergo os olhos, está diante de mim a linha
sórdida da casaria, as janelas por lavar de todos os escritórios
da Baixa, as janelas sem sentido dos andares mais altos onde
ainda se mora, e, ao alto, no angular das trapeiras, a roupa de
sempre, ao sol entre vasos e plantas. Sei isto, mas éo suave
a luz que doura tudo isto,o sem sentido o ar calmo que me
envolve, queo tenho razão sequer visual para abdicar da
minha aldeia postiça, da minha vila de província onde o co-
mércio é um sossego.
Bem sei, bem sei... Verdade seja que é a hora de al-
moço, ou de repouso, ou de intervalo. Tudo vai bem pela
superfície da vida. Eu mesmo durmo, ainda que me debruce
da varanda, como se fosse a amurada de um barco sobre uma
paisagem nova. Eu mesmo nem cismo, como se estivesse
na província. E, subitamente, outra coisa me surge, me en-
volve, me comanda: vejo, por trás do meio-dia da vila toda a
vida em tudo da vila; vejo a grande felicidade estúpida da vida
doméstica, a grande felicidade estúpida da vida dos campos,
a grande felicidade estúpida do sossego na sordidez. Vejo,
porque vejo. Maso vi e desperto. Olho em roda, sorrindo,
e, antes de mais nada, sacudo dos cotovelos do fato, infeliz-
mente escuro, todo o pó do apoio da varanda, que ninguém
limpou, ignorando que teria um dia, um momento que fosse,
que ser a amurada sem pó possível de um barco singrando
num turismo infinito.
Ou negro ao fundo do sul do Tejo era sinistramente
negro contra as asas, por contraste, vividamente brancas das
gaivotas emo inquieto. O dia, porém,o estava tempes-
tuoso. Toda a massa da ameaça da chuva passara para por
sobre a outra margem, e a cidade baixa, úmida ainda do
pouco que chovera, sorria do chão a umu cujo Norte se
LIVRO DO DESASSOSSEGO
azulava ainda um pouco brancamente. O fresco da primavera
era levemente frio.
Numa hora como esta, vazia e imponderável, apraz-me
conduzir voluntariamente o pensamento para uma medita-
ção que nada seja, mas que retenha, na sua limpidez de nula,
qualquer coisa da frieza erma do dia esclarecido, com o fundo
negro ao longe, e certas intuições, como gaivotas, evocando
por constraste o mistério de tudo em grande negrume.
Mas, de repente, em contrário do meu propósito literá-
rio íntimo, o fundo negro dou do Sul evoca-me, por lem-
brança verdadeira ou falsa, outro céu, talvez visto em outra
vida, em um Norte de rio menor, com juncais tristes e sem
cidade nenhuma. Sem que eu saiba como, uma paisagem
para patos bravos alastra-se-me pela imaginação e é com a
nitidez de um sonho raro que me sinto próximo da extensão
que imagino.
Terra de juncais à beira de rios, terreno para caçadores e
angústias, as margens irregulares entram, como pequenos
cabos sujos, nas águas cor de chumbo amarelo, e reentram
em baías limosas, para barcos de quase brinquedo, em ribei-
ras quem água a luzir à tona de lama oculta entre as hastes
verde-negras dos juncos, por onde seo pode andar.
A desolação é de umu cinzento morto, aqui e ali arre-
panhando-se em nuvens mais negras que o tom do céu.o
sinto vento, mas há-o, e a outra margem, afinal, é uma ilha
longa, por trás da qual se divisa grande e abandonado rio!
a outra margem verdadeira, deitada na distância sem re-
levo.
Ninguém ali chega, nem chegará. Ainda que, por uma
fuga contraditória do tempo e do espaço, eu pudesse evadir-
me do mundo para essa paisagem, ninguém ali chegaria
FERNANDO PESSOA
nunca. Esperaria emo o queo saberia que esperava,
nem haveria senão, no fim de tudo, um cair lento da noite,
tornando-se todo o espaço, lentamente, da cor das nuvens
mais negras, que pouco a pouco se mergiam[sic] no con-
junto abolido do céu.
E, de repente, sinto aqui o frio de ali. Toca-me no cor-
po, vindo dos ossos. Respiro alto e desperto. O homem, que
cruza comigo sob a Arcada ao pé da Bolsa, olha-me com uma
desconfiança de quemo sabe explicar. Ou negro, aper-
tando-se desceu mais baixo sobre o Sul.
Alastra ante meus olhos saudosos a cidade incerta e si-
lente.
As casas desigualam-se num aglomerado retido, e o
luar, com manchas de incerteza, estagna de madrepérola os
solavancos mortos da profusão. Há telhados e sombras, ja-
nelas e idade média.o há de que haver arredores. Pousa
no que se vê um vislumbre de longínquo. Por sobre de onde
vejo há ramos negros de árvores, e eu tenho o sono da cidade
inteira no meu coração dissuadido. Lisboa ao luar e o meu
cansaço de amanhã!
Que noite! Prouvera a quem causou os pormenores do
mundo queo houvesse para mim melhor estudo ou melo-
dia que o momento lunar destacado em que me desconheço
conhecido.
Durmo, e nem brisa, nem gente interrompe o queo
penso. Tenho sono do mesmo modo que tenho vida. Só que
sinto nas pálpebras, como se houvesse o que fazer mas pesar.
Ouço a minha respiração.
Custa-me um chumbo dos sentidos o mover-me com os
s para onde moro. A carícia do apagamento, a flor dado
LIVRO DO DESASSOSSEGO
[sic] do inútil, o meu nome nunca pronunciado, o meu de-
sassossego entre margens, o privilégio de deveres cedidos, e,
na última curva do parque avoengo o outro sonho [?] como
um roseiral.
Lento, no luar lá fora da noite lenta, o vento agita coisas
que fazem sombra a mexer.o é talvez senão a roupa que
deixaram estendida no andar mais alto, mas a sombra, em si,
o conhece camisas e flutua impalpável num acordo mudo
corn tudo.
Deixei abertas as portas da janela, para despertar cedo,
mas até agora, e a noite é jáo velha que nada se ouve,o
pude deixar-me ao sono nem estar desperto bem. Um luar
está para além das sombras do meu quarto, maso passa
pela janela. Existe, como um dia de prata oca, e os telhados
do prédio fronteiro, que vejo da cama,o líquidos de bran-
cura enegrecida. Como parabéns do alto a quemo ouve,
há uma paz triste na luz dura da lua.
E sem ver, sem pensar, olhos fechados já sobre o sono
ausente, medito com que palavras verdadeiras se poderá des-
crever um luar. Os antigos diriam que o luar é branco, ou
que é de prata. Mas a brancura falsa do luar é de muitas
cores. Se me erguesse da cama, e visse por trás dos vidros
frios sei bem que, no alto ar isolado, o luar é de branco cin-
zento azulado de amarelo esbatido; que, sobre os telhados-
rios, em desequilíbrios de negrume de uns para outros, ora
doura de branco preto os prédios submissos, ora alaga de
uma cor sem cor o encarnado castanho das telhas altas. No
fundo da rua, abismo plácido, onde as pedras nuas se arre-
dondam irregularmente,o tem cor salvo um azul que vem
talvez do cinzento das pedras. Ao fundo do horizonte será
quase de azul escuro, diferente do azul negro dou ao fun-
do. Nas janelas onde bate, é de amarelo negro.
138 FERNANDO PESSOA
De aqui, da cama, se abro os olhos quem o sono que
o tenho, é um ar de neve tornada cor onde bóiam filamen-
tos de madrepérola morna. E, se o sinto com o que sinto, é
um tédio tornado sombra branca, escurecendo como se olhos
se fechassem sobre essa indistinta brancura.
Desde antes de manhã cedo, contra o uso solar desta
cidade clara, a névoa envolve, num manto leve, que o sol foi
crescentamente dourando, as casas múltiplas, os espaços
abolidos, os acidentes da terra e das construções. Chegada,
porém, a hora alta antes do meio-dia, começou a desfiar-se
a bruma branda, e, em hálitos de sombras de véus, a cessar
imponderavelmente. Pelas dez horas da manhã só um tênue
mau-azular dou revelava que a névoa fora.
As feições da cidade renasceram do escorregar da más-
cara do velamento. Como se uma janela se abrisse, o dia já
raiado raiou. Houve uma leve mudança nos ruídos de tudo.
Apareceram também. Um tom azul insinuou-se até nas pe-
dras das ruas e nas auras impessoais dos transeuntes. O sol
era quente, mas ainda umidamente quente. Coava-o invisi-
velmente a névoa que jáo existia.
O despertar de uma cidade, seja entre névoa ou de outro
modo, é sempre para mim uma coisa mais enternecedora do
que o raiar da aurora sobre os campos. Renasce muito mais,
há muito mais que esperar, quando, em vez de só dourar,
primeiro de luz obscura, depois de luz úmida, mais tarde de
ouro luminoso, as relvas, os relevos dos arbustos, as palmas
das mãos das folhas, o sol multiplica os seus possíveis efeitos
nas janelas, nos muros, nos telhados, [...] quando ma-
nhã [...] a tantas realidades diversas. Uma aurora no campo
faz-me bem; uma aurora na cidade bem e mal, e por isso me
faz mais que bem. Sim, porque a esperança maior que me
traz tem, como todas as esperanças, aquele travo longínquo e
LIVRO DO DESASSOSSEGO
saudoso deo ser realidade. A manhã do campo existe; a
manhã da cidade promete. Uma faz viver; a outra faz pensar.
E eu hei sempre de sentir, como os grandes malditos, que
mais vale pensar que viver.
Há sensações queo sonos, que ocupam como uma
névoa toda a extensão do espírito, queo deixam pensar,
queo deixam agir, queo deixam claramente ser. Como
seo tivéssemos dormido, sobrevive ems qualquer coisa
de sonho, e há um torpor do sol do dia a aquecer a superficie
estagnada dos sentidos. Ê uma bebedeira deo ser nada, e a
vontade é um balde despejado para o quintal por um movi-
mento indolente do pé à passagem.
Olha-se maso se. A longa rua movimentada de
bichos humanos é uma espécie de tabuleta deitada onde as
letras fossem móveis eo formassem sentidos. As casaso
somente casas. Perde-se a possibilidade de dar um sentido ao
que se, mas vê-se bem o que é, sim.
As pancadas de martelo à porta do caixoteiro soam com
uma estranheza próxima. Soam grandemente separadas,
cada uma com eco e sem proveito. Os ruídos das carroças pa-
recem de dia em que vem trovoada. As vozes saem do ar,
eo de gargantas. Ao fundo, o rio está cansado.
o é tédio o que se sente.o é mágoa o que se sente.
É uma vontade de dormir com outra personalidade, de es-
quecer com melhoria de vencimento.o se sente nada, a
o ser um automatismo cá embaixo, a fazer umas pernas
que nos pertencem levar a bater no chão, na marcha invo-
luntária, unss que se sentem dentro dos sapatos. Nem isto
se sente talvez. A roda dos olhos e como dedos nos ouvidos
há um aperto de dentro da cabeça.
140 FERNANDO PESSOA
Parece uma constipação na alma. E com a imagem lite-
rária de se estar doente nasce um desejo de que a vida fosse
uma convalescença, sem andar; e a idéia de convalescença
evoca as quintas dos arredores, mas lá para dentro, ondeo
lares, longe da rua e das rodas. Sim,o se sente nada. Pas-
sa-se, conscientemente, a dormir só com a impossibilidade de
dar ao corpo outra direção, a porta onde se deve entrar. Pas-
sa-se tudo. Que é do pandeiro, ó urso parado?
Leve, como uma coisa que começasse, a maresia da bri-
sa pairou de sobre o Tejo e espalhou-se sujamente pelos
princípios da Baixa. Nauseava frescamente, num torpor frio
de mar morno. Senti a vida no estômago, e o olfato tornou-
se-me uma coisa por detrás dos olhos. Altas, pousavam em
nada nuvens ralas, rolos, num cinzento a desmoronar-se
para branco falso. A atmosfera era de uma ameaça deu
covarde, como a de uma trovoada inaudível, feita de ar so-
mente.
Havia estagnação no próprioo das gaivotas; pareciam
coisas mais leves que o ar, deixadas nele por alguém. Nada
abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o ar refres-
cava intermitentemente.
Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que
tenho tido de ter!o como esta hora e este ar, névoas sem
névoas, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de
gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há
maresia no meu propósito, e o baixamar em mim deixou des-
coberto o negrume lodoso que está ali fora eo vejo senão
pelo cheiro.
Tanta inconseqüência em querer bastar-me! Tanta
consciência sarcástica das sensações justapostas! Tanto en-
redo da alma com as sensações, dos pensamentos com o ar e
LIVRO DO DESASSOSSEGO 141
o rio, para dizer que mei a vida no olfato e na consciência,
parao saber dizer, como na frase simples e ampla do Livro
de Jó,''Minha alma está cansada de minha vida!''.
Depois que o calor cessou, e o primeiro leve da chuva
cresceu para ouvir-se, ficou no ar uma tranqüilidade que o ar
do caloro tinha, uma nova paz em que a água punha uma
brisa sua.o clara era a alegria desta chuva branda, sem
tempestade nem escuridão, que aqueles mesmos, que eram
quase todos, queo tinham guarda-chuva ou roupa de de-
fesa, estavam rindo a falar no seu passo rápido pela rua lus-
trosa.
Num intervalo de indolência cheguei à janela aberta do
escritório o calor a fizera abrir, a chuvao a fizera fechar
e contemplei com a atenção intensa e indiferente, que é o
meu modo, aquilo mesmo que acabo de descrever com jus-
teza antes de o ter visto. Sim, lá ia a alegria aos dois banais,
falando a sorrir pela chuva miúda, com passos mais rápidos
que apressados, na claridade limpa do dia que se velara.
Mas, de repente, da surpresa de uma esquina que já lá
estava, rodou para a minha vista um homem velho e mes-
quinho, pobre eo humilde, que seguia impaciente sob a
chuva que havia abrandado. Esse, que por certoo tinha
fito, tinha ao menos impaciência. Olheio-o com a atenção,
o já desatenta, que se dá às coisas, mas definidora, que se
dá aos símbolos. Era o símbolo de ninguém; por isso tinha
pressa. Era o símbolo de quem nada fora; por isso sofria. Era
parte,o dos que sentem a sorrir a alegria incômoda da
chuva, mas da mesma chuva um inconsciente, tanto que
sentia a realidade.
142 FERNANDO PESSOA
o era isto, porém, que eu queria dizer. Entre a minha
observação do transeunte que, afinal, perdi logo de vista, por
o ter continuado a olhá-lo, e o nexo destas observações in-
seriu-se-me qualquer mistério da desatenção, qualquer emer-
gência da alma que me deixou sem prosseguimento. E ao
fundo da minha desconexão, sem que eu os ouça, ouço os
sons das falas dos moços da embalagem, lá no fundo do escri-
tório, na parte que é o princípio do armazém, e vejo sem ver
os cordéis enfardadores das encomendas postais, passados
duas vezes, com oss duas vezes corridos, à roda dos em-
brulhos em papel pardo forte, na mesa ao pé da janela para o
saguão, entre piadas e tesouras.
Ver éter visto.
Passo horas, às vezes, no Terreiro do Paço, à beira do
rio, meditando em vão. A minha impaciência constante-
mente me quer arrancar desse sossego, e a minha inércia
constantemente me detém nele. Medito, então, em uma
modorra de físico, que se parece com volúpia apenas como o
sussurro de vento lembra vozes, na eterna insaciabilidade dos
meus desejos vagos, na perene instabilidade das minhas ân-
sias impossíveis. Sofro, principalmente, do mal de poder so-
frer. Falta-me qualquer coisa queo desejo e sofro por isso
o ser propriamente sofrer.
O cais, a tarde, a maresia entram todos, e entram jun-
tos, na composição da minha angústia. As flautas dos pasto-
res impossíveisoo mais suaves do queo haver aqui
flautas e isso lembrar-mas.
Os idílios longínquos, ao pé de riachos, doem-me esta
hora análoga por dentro, (...)
LIVRO DO DESASSOSSEGO
O poente está espalhado pelas nuvens soltas separadas
que ou todo tem. Reflexos de todas as cores, reflexos bran-
dos, enchem as diversidades do ar alto, bóiam ausentes nas
grandes mágoas da altura. Pelos cimos dos telhados ergui-
dos, meio-cor, meio-sombras, os últimos raios lentos do sol
indo-se tomam formas de cor que nemo suas nem das coi-
sas em que pousam. Há um grande sossego acima do nível
ruidoso da cidade que vai também sossegando. Tudo respira
para além da cor e do som, num hausto fundo e mudo.
Nas casas coloridas que o solo, as cores começam
a ter tons de cinzento delas. Há frio nas diversidades dessas
cores. Dorme uma pequena inquietação nos vales falsos das
ruas. Dorme e sossega. E pouco a pouco, nas mais baixas das
nuvens altas, começam os reflexos a ser de sombra; só na-
quela pequena nuvem, que paira águia branca acima de tudo,
o sol conserva, de longe, o seu ouro rindo.
Tudo quanto tenho buscado na vida, eu mesmo o deixei
por buscar. Sou como alguém que procure distraidamente o
que, no sonho entre a busca, esqueceu já o que era. Torna-se
mais real que a coisa buscada ausente o gesto real das mãos
visíveis que buscam, revolvendo, deslocando, assentando, e
existem brancas e longas, com cinco dedos cada uma, exata-
mente.
Tudo quanto tenho tido é como esteu alto e diversa-
mente o mesmo, farrapos de nada tocados de uma luz dis-
tante, fragmentos de falsa vida que a morte doura de longe,
com seu sorriso triste de verdade inteira. Tudo quanto tenho
tido, sim, tem sido oo ter sabido buscar, senhor feudal de
pântanos à tarde, príncipe deserto de uma cidade de túmulos
vazios.
Tudo quanto sou, ou quanto fui, ou quanto penso do
que sou ou fui, tudo isso perde de repente nestes meus
FERNANDO PESSOA
pensamentos e na perda súbita de luz da nuvem alta — o se-
gredo, a verdade, a ventura talvez, que houvesse emo sei
quê que tem por baixo a vida. Tudo isso, como um sol que
falta, é que me resta, e sobre os telhados altos, diversamente,
a luz deixa escorregar as suas mãos de queda, e sai à vista,
na unidade dos telhados, a sombra íntima de tudo.
Vago pingo trêmulo, clareia pequena ao longe a pri-
meira estrela.
Sim, é o poente. Chego à foz da Rua da Alfândega, va-
garoso e disperso, e, ao clarear-me o Terreiro do Paço, vejo,
nítido o sem sol dou ocidental. Esseu é de um azul
esverdeado para cinzento branco, onde, do lado esquerdo,
sobre os montes da outra margem, se agacha, amontoada,
uma névoa acastanhada de cor de rosa morto. Há uma gran-
de paz queo tenho dispersa friamente no ar outonal abs-
trato. Sofro de ao ter o prazer vago de supor que ela exis-
te. Mas, na realidade,o há paz nem falta de paz:u ape-
nas,u de todas as cores que desmaiam azul branco,
verde ainda azulado, cinzento pálido entre verde e azul, va-
gos tons remotos de cores de nuvens que oo são, amare-
ladamente escurecidas de encarnado findo. E tudo isto é uma
visão que se extingue no mesmo momento em que é tida, um
intervalo entre nada e nada, alado, posto alto, em tonali-
dades deu e mágoa, prolixo e indefinido.
Sinto e esqueço. Uma saudade, que é a de toda a gente
por tudo, invade-me como um ópio do ar frio. Há em mim
um êxtase de ver, íntimo e postiço.
Para os lados da barra, onde o ter cessado o sol cada vez
mais se acaba, a luz extingue-se em branco lívido que se azu-
la de esverdeado frio. Há no ar um torpor do que seo con-
segue nunca. Cala alto a paisagem do céu.
LIVRO DO DESASSOSSEGO 145
Nesta hora, em que sinto até transbordar, quisera ter a
malícia inteira de dizer, o capricho livre de um estilo por des-
tino. Mas não, só ou alto é tudo, remoto, abolindo-se,
e a emoção que tenho, e que é tantas, juntas e confusas,o
é mais que o reflexo desseu nulo num lago em mim
lago recluso entre rochedos hirtos, calado, olhar de morto,
em que a altura se contempla esquecida.
Tantas vezes, tantas, como agora, me tem pesado sentir
que sinto sentir como angústia só por ser sentir, a inquie-
tação de estar aqui, a saudade de outra coisa que seo co-
nheceu, o poente de todas as emoções, amarelecer-me esba-
tido para tristeza cinzenta na minha consciência externa de
mim.
Ah, quem me salvará de existir?o é a morte que
quero, nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo
da ânsia como um diamante possível numa cova a que seo
pode descer. É todo o peso e toda a mágoa deste universo real
e impossível, desteu estandarte de um exército incógnito,
destes tons queo empalidecendo pelo ar fictício, de onde o
crescente imaginário da lua emerge numa brancura elétrica
parada, recortado a longínquo e a insensível.
É toda a falta de um Deus verdadeiro que é o cadáver
vácuo dou alto e da alma fechada. Cárcere infinito por-
que és infinito,o se pode fugir de ti!
Nas vagas sombras de luz por findar antes que a tarde
seja noite cedo, gozo de errar sem pensar entre o que a cidade
se torna, e ando como se nada tivesse remédio. Agrada-me,
mais à imaginação que aos sentidos, a tristeza dispersa que
146 FERNANDO PESSOA
está comigo. Vago, e folheio em mim, sem o ler, um livro
de texto intersperso [sic] de imagens rápidas, de que vou
formando indolentemente uma idéia que nunca se completa.
Há quem leia com a rapidez com que olha, e conclua
sem ter visto tudo. Assim tiro do livro que se me folheia na
alma uma história vaga por contar, memórias de um outro
vagabundo, bocados de descrições de crepúsculos ou luares,
com aléias de parques no meio, e figuras de seda várias, a
passar, a passar.
Indiscrimino a tédio e outro. Sigo, simultaneamente,
pela rua, pela tarde e pela leitura sonhada, e os caminhoso
verdadeiramente percorridos. Emigro e repouso, como se
estivesse a bordo com o navio já no mar alto.
Súbito, os candeeiros mortos coincidem luzes pelos pro-
longamentos duplos da rua longa e curva. Como um baque a
minha tristeza aumenta. É que o livro acabou. Há, na vis-
cosidade aérea da rua abstrata, um fio externo de sentimento,
como a baba do Destino idiota, a pingar-me sobre a cons-
ciência da alma.
Outra vida, da cidade que anoitece. Outra alma a de
quem olha a noite. Sigo incerto e alegórico, irrealmente sen-
tiente. Sou como uma história que alguém houvesse con-
tado, e, deo bem contada, andasse carnal maso muito
neste mundo romance, no princípio de um capítulo: "A essa
hora um homem podia ser visto seguir lentamente pela rua
de..."
Que tenho eu com a vida?
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Dia de chuva
O ar é de um amarelo escondido, como um amarelo
pálido visto através dum branco sujo. Mal há amarelo no ar
acinzentado. A palidez do cinzento, porém, tem um amarelo
na sua tristeza.
No alto ermo dos montes naturais temos, quando che-
gamos, a sensação do privilégio. Somos mais altos, de toda a
nossa estatura, do que o alto dos montes. O máximo da Na-
tureza, pelo menos naquele lugar, fica-nos sob as solas dos
pés. Somos, por posição, reis do mundo visível. Em torno de
s tudo é mais baixo: a vida é encosta que desce, planície
que jaz, ante o erguimento e o píncaro que somos.
Tudo ems é acidente e malícia, e esta altura que te-
mos,o a temos;o somos mais altos no alto do que a
nossa altura. Aquilo mesmo que calcamos, nos alça; e se
somos altos, é por aquilo mesmo de que somos mais altos.
Respira-se melhor quando se é rico; é-se mais livre
quando se é célebre; o próprio ter de um título de nobreza é
um pequeno monte. Tudo é artifício, mas o artifício nem
sequer é nosso. Subimos a ele, ou levaram-nos até ele, ou
nascemos na casa do monte.
Grande, porém é o que considera que do vale aou
ou do monte ao céu,'a distância que é diferençao faz dife-
rença. Quando o dilúvio crescesse, estaríamos melhor nos
montes. Mas quando a maldição de Deus fosse raios, como a
de Júpiter, de ventos como a de Èolo, o abrigo seria oo
termos subido, e a defesa o rastejarmos.
Sábio deveras é o que tem a possibilidade da altura nos
músculos e a negação de subir no conhecimento. Ele tem,
148 FERNANDO PESSOA
por visão, todos os montes; e tem, por posição, todos os va-
les. O sol que doura os pincaros, dourá-los-á para ele mais
[que] para quem ali o sofre; e o palácio alto entre florestas
será mais belo ao que o contempla do vale que ao que o es-
quece nas salas que o constituem de prisão.
Com estas reflexões me consolo, pois que meo posso
consolar com a vida. E o simbolo funde-se-me com a reali-
dade quando, transeunte de corpo e alma por estas ruas bai-
xas queo dar ao Tejo vejo os altos claros da cidade es-
plender, como a glória alheia, das luzes várias de um sol que
já nem está no poente.
Remoinhos, redemoinhos, na futilidade fluida da vida!
Na grande praça ao centro da cidade, a água sobriamente
multicolor da gente passa, desvia-se, faz poças, abre-se em
riachos, junta-se em ribeiros. Os meus olhos vêem-se desa-
tentamente, e construo em mim essa imagem áquea [sic]
que, melhor que qualquer outra, e porque pensei que viria
chuva, se ajusta a este incerto movimentos.
Ao escrever esta última frase, que para mim exatamente
diz o que define, pensei que seria útilr no fim do meu
livro, quando o publicar, abaixo das "Errata" umas "Não-
Errata", e dizer: a frase "a este incerto movimentos", na
página tal, é assim mesmo, com as vozes adjetivas no singu-
lar e o substantivo no plural. Mas que tem isto com aquilo
em que estava pensando? Nada, e por isso me deixo pensá-lo.
À roda dos meios da praça, como caixas de fósforos-
veis, grandes e amarelas, em que uma criança espetasse um
fósforo queimado inclinado, para fazer de mau mastro, os
carros elétricos rosnam e tinem; arrancados, assobiam a fer-
ro alto. À roda da estátua central as pombaso migalhas
LIVRO DO DESASSOSSEGO
pretas que se mexem, como se lhes desse um vento espalha-
dor.o passinhos, gordas sobres pequenos.
Eo sombras, sombras...
Vista de perto, toda a gente é monotonamente diversa.
Dizia Vieira que Frei Luiz de Sousa escrevia ' 'o comum com
singularidade". Esta gente é singular com comunidade, às
avessas do estilo da Vida do Arcebispo. Tudo isto me faz
pena, sendo-me todavia indiferente. Vim parar aqui sem ra-
zão, como tudo na vida.
Do lado do oriente, entrevista, a cidade ergue-se quase a
prumo falso, assalta estaticamente o Castelo. O sol pálido
molha de um aureolar vago essa mole súbita de casas que
para aqui o oculta. Ou é de um azul umidamente esbran-
quiçado. A chuva de ontem talvez se repita hoje, mas mais
branda. O vento parece leste, talvez porque aqui mesmo, de
repente, cheira vagamente ao maduro e verde do mercado
próximo. Do lado oriental da praça há mais forasteiros que
do outro. Como descargas alcatifadas, as portas onduladas
descem para cima;o sei porquê, é assim a frase que me
transmite aquele som. É talvez porque fazem mais esse som
ao descer, porém agora sobem. Tudo se explica.
De repente estou só no mundo. Vejo tudo isto do alto de
um telhado espiritual. Estou só no mundo. Ver é estar dis-
tante. Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro. Toda a
gente passa sem roçar por mim. Tenho só ar à minha volta.
Sinto-meo isolado que sinto a distância entre mim e o
meu fato. Sou uma criança, com uma palmatória mal acesa,
que atravessa, de camisa de noite, uma grande casa deserta.
Vivem sombras que me cercam só sombras, filhas dos
móveis hirtos e da luz que me acompanha. Elas me rondam
aqui ao sol, maso gente.
3
A ficção
de mim mesmo
Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas
recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha
personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que
fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquilo a que
assisto é um espetáculo com outro cenário. E aquilo a que
assisto sou eu.
Encontro às vezes, na confusão vulgar das minhas ga-
vetas literárias, papéis escritos por mim há dez anos, há
quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles me pare-
cem de um estranho; desreconheço-me neles. Houve quem
os escrevesse, e fui eu. Senti-os eu, mas foi como em outra
vida, de que houvesse agora despertado como de um sono
alheio.
É freqüente eu encontrar coisas escritas por mim quan-
do ainda muito jovem trechos dos dezessete anos, trechos
dos vinte anos. E algunsm um poder de expressão que me
o lembro de poder ter tido nessa altura da vida. Há em
certas frases, em vários períodos, de coisas escritas a poucos
passos da minha adolescência, que me parecem produto de
tal qual sou agora, educado por anos e por coisas. Reconheço
que sou o mesmo que era. E, tendo sentido que estou hoje
num progresso grande do que fui, pergunto onde está o pro-
gresso se então era o mesmo que hoje sou.
154 FERNANDO PESSOA
Há nisto um mistério que me desvirtua e me oprime.
Ainda há dias sofri uma impressão espantosa com um
breve escrito do meu passado. Lembro-me perfeitamente de
que o meu escrúpulo, pelo menos relativo, pela linguagem
data de há poucos anos. Encontrei numa gaveta um escrito
meu, muito mais antigo, em que esse mesmo escrúpulo es-
tava fortemente acentuado.o me compreendi no passado
positivamente. Como avancei para o que já era? Como me
conheci hoje o que me desconheci ontem? E tudo se me con-
funde num labirinto onde, comigo, me extravio de mim.
Devaneio com o pensamento, e estou certo que isto que
escrevo, já o escrevi. Recordo. E pergunto ao que em mim
presume do ser seo haverá no platonismo das sensações
outra anamnese mais inclinada, outra recordação de uma
vida anterior que seja apenas desta vida...
Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou?
Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?
Afinal deste dia fica o que de ontem ficou e ficará de
amanhã: a ânsia insaciável e inúmera de ser sempre o mesmo
e outro.
O meu hábito vital de descrença em tudo, especialmente
no instintivo, e a minha atitude natural de insinceridade,o
a negação de obstáculos em que eu faço isto constantemente.
No fundo o que acontece é que faço dos outros o meu
sonho, dobrando-me às opiniões deles para, expandindo-as
pelo meu raciocínio e a minha intuição, as tornar minhas e
LIVRO DO DESASSOSSEGO
(eu,o tendo opinião, posso ter as deles como quaisquer
outras) para as dobrar a meu gosto e fazer das suas persona-
lidades coisas aparentadas com os meus sonhos.
De tal modo anteponho o sonho à vida que consigo, no
trato verbal (outroo tenho), continuar sonhando, e per-
sistir, através das opiniões alheias e dos sentimentos dos ou-
tros, na linha fluida da vida individualidade amorfa.
Cada outro é um canal ou uma calha por onde a água do
mar só corre a gosto deles, marcado, com as cintilações da
água ao sol, o curso curvo da sua orientação mais realmente
do que a secura deles o poderia fazer.
Parecendo às vezes, à minha análise [?] rápida para-
sitar os outros, na realidade o que acontece é que os obrigo
a ser parasitas da minha posterior emoção. Habito de viver
as cascas das suas individualidades. Decalco as suas passadas
em argila do meu espírito e assim mais do que eles, to-
mando-as para dentro da minha consciência, eu tenho dado
os seus passos e andado no(s) seu(s) caminho(s).
Em geral, pelo hábito que tenho de, desdobrando-me,
seguir ao mesmo tempo duas, diversas operações mentais,
eu, ao passo que me vou adaptando em excesso e lucidez ao
sentir deles, vou analisando em mim o desconhecido estado
da alma deles, fazendo a análise puramente objetiva do que
eleso e pensam. Assim, entre sonhos, e sem largar o meu
devaneio ininterrupto, vou,o só vivendo-lhes a essência
requintada das suas emoções às vezes mortas, [ ?] mas com-
preendendo e classificando as lógicas interconexas das várias
forças do seu espírito que jaziam às vezes num estado simples
da sua alma.
E no meio disto tudo a sua fisionomia, o seu traje, os
seus gestos,o me escapam. Vivo ao mesmo tempo os seus
sonhos, a alma do instinto [?] e o corpo e atitudes deles.
Numa grande dispersão unificada, ubiquito-me neles e eu
crio e sou, a cada momento da conversa, uma multidão de
seres, conscientes e inconscientes, analisados e analíticos,
que se reúnem em leque aberto.
FERNANDO PESSOA
Minha alma é uma orquestra oculta;o sei que instru-
mentos tange e range, cordas e harpas, timbales e tambores,
dentro de mim. Só me conheço como sinfonia.
Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e
justa. Reparei, num relâmpago íntimo, queo sou nin-
guém. Ninguém, absolutamente ninguém. Quando brilhou
o relâmpago, aquilo onde supus uma cidade era um plaino
deserto; e a luz sinistra que me mostrou a mimo revelou
u acima dele. Roubarám-me o poder ser antes que o mun-
do fosse. Se tive que reencarnar, reencarnei sem mim, sem
ter eu reencarnado.
Sou os arredores de uma vila queo, o comentário
prolixo a um livro que seo escreveu.o sou ninguém,
ninguém.o sei sentir,o sei pensar,o sei querer. Sou
uma figura de romance por escrever, passando aérea, e des-
feita sem ter sido, entre os sonhos de quem meo soube
completar.
Penso sempre, sinto sempre; mas o meu pensamento
o contém raciocínios, a minha emoçãoo contém emo-
ções. Estou caindo, depois do alçapão lá em cima, por todo o
espaço infinito, numa queda sem direção, infinítupla e vazia.
Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda de
vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um
buraco em nada, e nas águas queo mais giro que águas
bóiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundoo
casas, caras, livros, caixotes, rastros de música e sílabas de
vozes, num rodopio sinistro e sem fundo.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
E eu, verdadeiramente eu, sou o centro queo há nisto
senão por uma geometria do abismo; sou o nada em torno do
qual este movimento gira, só para que gire, sem que esse
centro exista senão porque todo o círculo o tem. Eu, ver-
dadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosi-
dade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda.
E é, em mim, como se o inferno ele-mesmo risse, sem
ao menos a humanidade de diabos a rirem, a loucura gras-
nada do universo morto, o cadáver rodante do espaço físico,
o fim de todos os mundos flutuando negro ao vento, dis-
forme, anacrônico, sem Deus que o houvesse criado, sem ele
mesmo que está rodando nas trevas das trevas, impossível,
único, tudo.
Poder saber pensar! Poder saber sentir!
Minhae morreu muito cedo, e euo a cheguei a
conhecer...
Dar a cada emoção uma personalidade, a cada estado de
alma uma alma.
o tendo que fazer, nem que pensar em fazer, vour
neste papel a descrição dum ideal apontamento.
A sensibilidade de Mallarmé dentro do estilo de Vieira;
sonhar como Verlaine no corpo de Horácio; ser Homero ao
luar.
Sentir tudo de todas as maneiras; saber pensar com as
emoções e sentir com o pensamento;o desejar muito se-
FERNANDO PESSOA
o com a imaginação; sofrer com coquetterie; ver claro para
escrever justo; conhecer-se com fingimento e tática, natura-
lizar-se diferente e com todos os documentos; em suma, usar
por dentro todas as sensações, descascando-as até Deus; mas
embrulhar de novo e repor na montra como aquele caixeiro
que de aqui estou vendo com as latas pequenas da graxa da
nova marca.
Todos estes ideais, possíveis ou impossíveis, acabam
agora. Tenho a realidade diante de mimo é sequer o
caixeiro, é ao dele (a eleo vejo) tentáculo absurdo de
uma alma com família e sorte [ ?] que faz trejeitos de aranha
sem teia no esticar-se da reposição cá à frente.
E uma das latas caiu, como o Destino de toda a gente.
"Sentir é uma maçada". Estas palavras casuais deo
sei que conviva a conversa de uns minutos ficou-me sempre
brilhando no chão da memória. A própria forma plebéia da
frase lhe dá sal e pimenta.
Criar dentro de mim um estado com uma política, com
partidos e revoluções, e ser eu isso tudo, ser eu Deus no
panteísmo real desse povo eu, essência e ação dos seus cor-
pos, das suas almas, da terra que pisam e dos atos que fazem.
Ser tudo, ser eles eo eles. Ai de mi! este ainda é um dos
sonhos queo logro realizar. Se o realizasse morreria tal-
vez,o sei porque, maso se deve poder viver depois dis-
so, tamanho o sacrilégio cometido contra Deus, tamanha
usurpação do poder divino de ser tudo.
O prazer que me daria criar um jesuitismo das sensa-
ções!
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Há metáforas queo mais reais do que a gente que
anda na rua. Há imagens nos recantos de livros que vivem
mais nitidamente que muito homem e muita mulher. Há
frases literárias quem uma individualidade absolutamente
humana. Passos de parágrafos meus há que me arrefecem de
pavor,o nitidamente gente eu os sinto,o recortados de
encontro aos muros do meu quarto, na noite, na sombra,
(...) Tenho escrito frases cujo som, lidas alto ou baixo — é
impossível ocultar-lhes o som é absolutamente o de uma
coisa que ganhou exterioridade absoluta e alma inteiramente.
Por que exponho eu de vez em quando processos con-
traditórios e inconciliáveis de sonhar e de aprender a sonhar?
Porque, provavelmente, tanto me habituei a sentir o falso
como o verdadeiro, o sonhadoo nitidamente como o visto,
que perdi a distinção humana, falsa creio, entre a verdade e a
mentira.
Basta que eu veja nitidamente, com os olhos ou com os
ouvidos, ou com outro sentido qualquer, para que eu sinta
que aquilo é real. Pode ser mesmo que eu sinta duas coisas
inconjugáveis ao mesmo tempo.o importa.
Há criaturas queo capazes de sofrer longas horas por
o lhes ser possível ser uma figura dum quadro ou dum
naipe de baralho de cartas. Há almas sobre quem pesa como
uma maldição oo lhes ser possível ser hoje gente da idade
média. Aconteceu deste sofrimento em tempo. Hoje já me
o acontece. Requintei para além disso. Mas dói-me, por
exemplo,o me poder sonhar dois reis em reinos diversos,
pertencentes, por exemplo, a universos com diversas espé-
cies de espaços e de tempos.o conseguir isso magoa-me
verdadeiramente. Sabe-me a passar fome.
Poder sonhar o inconcebível visibilizando-o é um dos
grandes triunfos queo eu, que souo grande, senão raras
FERNANDO PESSOA
vezes atinjo. Sim, sonhar que sou por exemplo, simultanea-
mente, separadamente, inconfusamente, o homem e a mu-
lher dum passeio que um homem e uma mulhero à beira
rio. Vêr-me, ao mesmo tempo, com igual nitidez, do mesmo
modo, sem mistura, sendo as duas coisas com igual integra-
ção nelas, um navio consciente num mar do sul e uma-
gina impressa dum livro antigo. Que absurdo que isto pa-
rece ! Mas tudo é absurdo, e o sonho ainda é o que o é menos.
Criei-me eco e abismo, pensando. Multipliquei-me apro-
fundando-me. O mais pequeno episódio uma alteração
saindo da luz, a queda enrolada de uma folha seca, a pétala
que se despega amarelecida, a voz do outro lado do muro ou
os passos de quem a diz junta aos de quem a deve escutar,
o portão entreaberto da quinta velha, o pátio abrindo com
um arco das casas aglomeradas ao luar todas estas coisas,
que meo pertencem, prendem-me à meditação sensível
com laços de ressonância e de saudade. Em cada uma dessas
sensações sou outro, renovo-me dolorosamente em cada im-
pressão indefinida.
Vivo de impressões que meo pertencem, perdulário
de renúncias, outro no modo como sou eu.
Criei em mim várias personalidades. Crio personalida-
des constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo
ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que pas-
sa a sonhá-lo, e eu não.
Para criar, destrui-me; tanto me exteriorizei dentro de
mim, que dentro de mimo existo senão exteriormente.
Sou a cena viva onde passam vários atores representando-
rias peças.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Encontrar a personalidade na perda dela a mesma fé
abona esse sentido de destino [ ?].
Primeiro é um som que faz um outro som, no côncavo
noturno das coisas. Depois é um uivo vago, acompanhado
pelo oscilar rasco das tabuletas da rua. Depois, ainda, há um
alto de súbito na voz lavada [ ?] do espaço, e tudo estremece,
eo oscila e há silêncio no medo disto tudo com um medo
surdo que só [...] quando passado.
Depoiso há mais nada senão o vento só o vento,
e reparo com sono que as portas estremecem presas e as ja-
nelaso som de vidro que resiste.
o durmo. Entressou.
Tenho vestígios na consciência. Pesa em mim o sono
sem que a inconsciência pese...o sou. O vento... Acordo
e redurmo, aindao dormi. Há uma paisagem de som alto e
torvo para além de que me desconheço. Gozo, recatado a
possibilidade de dormir. Com efeito durmo, maso sei se
durmo. Há sempre no que julgamos [ ?] que é o som um som
de fim de tudo, o vento no escuro, e, se escuto ainda, o som
dos pulmões e do coração.
Tenho grandes estagnações.o é que, como toda a
gente, esteja dias sobre dias para responder num postal à car-
ta urgente que me escreveram.o é que, como ninguém,
adie indefinidamente o fácil que me é útil, ou o útil que me é
agradável. Há mais sutileza na minha desinteligência comigo.
162 FERNANDO PESSOA
Estagno na mesma alma. Dá-se em mim uma suspensão da
vontade, da emoção, do pensamento, e esta suspensão dura
magnos dias; só a vida vegetativa da alma a palavra, o
gesto, o hábito me exprimem eu para os outros, e, atra-
s deles, para mim.
Nesses períodos da sombra, sou incapaz de pensar, de
sentir, de querer.o sei escrever mais que algarismos, ou
riscos.o sinto, e a morte de quem amasse far-me-ia a
impressão de ter sido realizada numa língua estrangeira.o
posso; é como se dormisse e os meus gestos, as minhas pala-
vras, os meus atos certos,o fossem mais que uma respi-
ração periférica, instinto rítmico de um organismo qualquer.
Assim se passam dias sobre dias, nem sei dizer quanto
da minha vida, se somasse, seo haveria passado assim. Às
vezes ocorre-me que, quando dispo esta paragem de mim,
talvezo esteja na nudez que suponho, e haja ainda vestes
impalpáveis a cobrir a eterna ausência da minha alma verda-
deira; ocorre-me que pensar, sentir, querer também podem
ser estagnações, perante um mais íntimo pensar, um sentir
mais meu, uma vontade perdida algures no labirinto do que
realmente sou.
Seja como for deixo que seja. E ao deus ou aos deuses
que haja, largo dao o que sou, conforme a sorte manda e
o acaso faz, fiel a um compromisso esquecido.
Há quanto tempoo escrevo! Passei, em dias, séculos
de renúncia incerta. Estagnei, como um lago deserto, entre
paisagens queo.
No entretanto, corria-me bem a monotonia variada dos
dias, a sucessão nunca igual das horas iguais, a vida. Corria-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
me bem. Se dormisse,o me correria de outro modo. Es-
tagnei, como um lago queo, entre paisagens desertas.
É freqüente o desconhecer-me o que sucede com fre-
quência aos que se conhecem... Assisto a mim nos vários
disfarces com que sou vivo. Possuo de quanto muda o que é
sempre o mesmo, de quanto se faz tudo o que é nada.
Relembro, longínquo em mim, como se viajara para
dentro, a monotonia, todaviao diferente, daquela casa de
província... Ali passei a infância, maso saberia dizer, se
quisesse fazê-lo, se com mais ou menos felicidade do que
passo a vida de hoje. Era outro o quem sou que ali vivia:o
vidas diferentes, diversas, incomparáveis. As mesmas mono-
tonias, que as aproximam por fora, eram sem dúvida dife-
rentes por dentro.o eram duas monotonias, mas duas
vidas.
A que propósito relembro?
O cansaço. Lembrar é um repouso, porque éo agir.
Que de vezes, para maior descanso, relembro o que nunca
foi, eo há nitidez nem saudade nas minhas memórias das
províncias [ ?] onde estive como os que moram, tábua a tábua
do soalho, oscilo o oscilo de outras, nas vastas salas onde
nunca morei.
De tal modo me converti na ficção de mim mesmo que
qualquer sentimento natural, que eu tenho, desde logo, des-
de que nasce, se me transtorna num sentimento da imagi-
nação a memória em sonho, o sonho em esquecer-me
dele, o conhecer-me emo pensar em mim.
De tal modo me desvesti do meu próprio ser, que existir
é vestir-me. Só disfarçado é que sou eu. E, em torno de mim,
todos poentes incógnitos douram, morrendo, as paisagens
que nunca verei.
Sabendo como as coisas mais pequenasm com facili-
dade a arte de me torturar, de propósito me esquivo ao toque
das coisas mais pequenas. Quem, como eu, sofre porque uma
nuvem passa diante do sol, comoo há de sofrer no escuro
do dia sempre encoberto da sua vida?
O meu isolamentoo é uma busca de felicidade, que
o tenho alma para conseguir; nem de tranqüilidade, que
ninguém obtém senão quando nunca a perder, mas de sono,
de apagamento, de renúncia pequena.
As quatro paredes do meu quarto pobreo me, ao
mesmo tempo, cela e distância, cama e caixão. As minhas
horas mais felizeso aquelas em queo penso nada,o
quero nada,o sonho sequer, perdido num torpor de vege-
tal errado, de mero musgo que crescesse na superfície da
vida. Gozo sem amargor a consciência absurda deo ser
nada o ante sabor da morte e do apagamento.
Nunca tive alguém a quem pudesse chamar "Mestre",
o morreu por mim nenhum Cristo. Nenhum Buda me
indicou um caminho. No alto dos meus sonhos nenhum
Apoio ou Atena me apareceram, para que me iluminassem a
alma.
Ergo-me da cadeira com um esforço monstruoso, mas
tenho a impressão de que levo-a comigo, e que é mais pe-
sada, porque é a cadeira do subjetivismo.
Quantas vezes, presa da superfície e do bruxedo, me
sinto homem. Então convivo com alegria e existo com cla-
reza. Sobrenado. E é me agradável receber o ordenado e ir
para casa. Sinto o tempo sem o ver, e agrada-me qualquer
coisa orgânica. Se medito,o penso. Nesses dias gosto mui-
to dos jardins.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
o sei que coisa estranha e pobre existe na substância
íntima dos jardins citadinos que só a posso sentir bem quando
meo sinto bem a mim. Um jardim é um resumo da civi-
lização uma modificação anônima da natureza. As plan-
tas estão ali, mas há ruas ruas. Crescem árvores, mas há
bancos por baixo da sua sombra. No alinhamento virado para
os quatro lados da cidade, ali só largo, os bancoso maiores
em quase sempre gente.
o odeio a regularidade das flores em canteiros. Odeio,
porém, o emprego público das flores. Se os canteiros fossem
em parques fechados, se as árvores crescessem sobre recan-
tos feudais, se os bancoso tivessem alguém, haveria com
que consolar-me na contemplação inútil dos jardins. Assim,
na cidade, regrados mas úteis, os jardinso para mim como
gaiolas, em que as espontaneidades coloridas das árvores e
das floresom senão espaço para oo ter, lugar para
deleo sair, e a beleza própria sem a vida que pertence a
ela.
Mas há dias em que esta é a paisagem que me pertence,
e em que entro como um figurante numa tragédia cômica.
Nesses dias estou errado, mas, pelo menos em certo modo,
sou mais feliz. Se me distraio, julgo que tenho realmente
casa, lar, a onde volte. Se me esqueço, sou normal, poupado
para um fim, escovo um outro fato e leio um jornal todo.
Mas a ilusãoo dura muito, tanto porqueo dura
como porque a noite vem. E a cor das flores, a sombra das
árvores, o alinhamento de ruas e canteiros, tudo se esbate e
encolhe. Por cima do erro e de eu estar homem abre-se de
repente, como se a luz do dia fosse um pano de teatro que se
escondesse para mim, o grande cenário das estrelas. E então
esqueço com os olhos a platéia amorfa e aguardo os primeiros
atores com um sobressalto de criança no circo.
Estou liberto e perdido.
Sinto. Esfrio febre. Sou eu.
Nuvens... Hoje tenho consciência do céu, pois há dias
em que oo olho mas sinto, vivendo na cidade eo na
natureza que a inclui. Nuvens...o elas hoje a principal
realidade, e preocupam-me como se o velar dou fosse um
dos grandes perigos do meu destino. Nuvens... Passam da
barra para o Castelo, de Ocidente para Oriente, num tumul-
to disperso e despido, branco às vezes, seo esfarrapadas na
vanguarda deo sei quê; meio-negro outras, se, mais len-
tas, tardam em ser varridas pelo vento audível; negras de um
branco sujo, se, como se quisessem ficar, enegrecem mais da
vinda que da sombra o que as ruas abrem de falso espaço
entre as linhas fechadoras da casaria.
Nuvens... Existo sem que o saiba e morrerei sem que o
queira. Sou o intervalo entre o que sou e o queo sou, entre
o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstrata e
carnal entre coisas queoo nada, sendo eu nada também.
Nuvens... Que desassossego se sinto, que desconforto se
penso, que inutilidade se quero! Nuvens... Estão passando
sempre, umas muito grandes, parecendo, porque as casas
o deixam ver seo menos grandes que parecem, queo a
tomar todo o céu; outras de tamanho incerto, podendo ser
duas juntas ou uma que se vai partir em duas, sem sentido no
ar alto contra ou fatigado; outras ainda, pequenas, pare-
cendo brinquedos de poderosas coisas, bolas irregulares de
um jogo absurdo, só para um lado, num grande isolamento,
frias.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Nuvens... Interrogo-me e desconheço-me. Nada tenho
feito de útil nem farei de justificável. Tenho gasto a parte da
vida queo perdi em interpretar confusamente coisa ne-
nhuma, fazendo versos em prosa às sensações intransmissí-
veis corn que torno meu o universo incógnito. Estou farto de
mim, objetiva e subjetivamente. Estou farto de tudo, e do
tudo de tudo. Nuvens...o tudo, desmanchamentos do
alto, coisas hoje só elas reais entre a terra nula e ou que
o existe; farrapos indescritiveis do tédio que lhes imponho;
névoa condensada em ameaças de cor ausente; algodões de
rama sujos de um hospital sem paredes. Nuvens...o como
eu, uma passagem desfeita entre ou e a terra, ao sabor de
um impulso invisível, trovejando ouo trovejando, ale-
grando brancas ou escurecendo negras, ficções do intervalo e
do descaminho, longe do ruído da terra e sem ter o silêncio
do céu. Nuvens... Continuam passando, continuam sempre
passando, passarão sempre continuando, num enrolamento
descontínuo de meadas baças, num alongamento difuso de
falsou desfeito.
E por fim, por sobre a escuridão dos telhados lustrosos,
a luz fria da manhã tépida raia como um suplício do Apoca-
lipse. É outra vez a noite imensa da claridade que aumenta. É
outra vez o horror de sempre o dia, a vida, a utilidade
fictícia, a atividade sem remédio. É outra vez a minha per-
sonalidade física, visível, social, transmissível por palavras
queo dizem nada, usável pelos gestos dos outros e pela
consciência alheia. Sou eu outra vez, tal qualo sou. Com o
princípio da luz de trevas que enche de dúvidas cinzentas as
frinchas das portas das janelas bem longe de herméticas,
meu Deus!, vou sentindo queo poderei guardar mais o
meu refúgio de estar deitado, deo estar dormindo mas de
o poder estar, de ir sonhando, sem saber que há verdade nem
realidade, entre um calor fresco de roupas limpas e um des-
conhecimento, salvo de conforto, da existência do meu cor-
po. Vou sentindo fugir-me a inconsciência feliz com que es-
tou gozando da minha consciência, o modorrar de animal
com que espreito, entre pálpebras de gato ao sol, os movi-
mentos da lógica da minha imaginação desprendida. Vou
sentindo sumirem-se-me os privilégios da penumbra, e os
rios lentos sob as árvores das pestanas entrevistas, e o sus-
surro das cascatas perdidas entre o som do sangue lento nos
ouvidos e o vago perdurar de chuva. Vou-me perdendo até
vivo.
o sei se durmo, ou se só sinto que durmo.o sonho
o intervalo certo, mas reparo, como se começasse a despertar
de um sonoo dormido os primeiros ruídos da vida da ci-
dade, a subir, como uma cheia, do lugar vago, lá embaixo,
onde ficam as ruas que Deus fez.o sons alegres, coados
pela tristeza da chuva que, ou, talvez, que houve pois a
o ouço agora... só o cinzento excessivo da luz frinchada
até mais longe que me, nas sombras de uma claridade
frouxa, insuficiente para a altura da madrugada, queo sei
qual é.o sons alegres e dispersos e doem-me no coração
como se me viessem, com eles, chamar a um exame ou a
uma execução. Cada dia se o ouço raiar da cama onde ignoro,
me parece o dia de um grande acontecimento meu queo
terei coragem para enfrentar. Cada dia, se o sinto erguer-se
do leito das sombras, com um cair de roupas da cama pelas
ruas e as vielas, vem chamar-me a um tribunal. Vou ser
julgado em cada hoje que. E o condenado perene que há
em mim agarra-se ao leito como àe que perdeu, e acaricia
o travesseiro como se a ama o defendesse de gentes.
A sesta feliz do bicho grande à sombra de árvores, o
cansaço fresco do esfarrapado entre a erva alta, o torpor do
negro na tarde morna e longínqua a delícia do bocejo que
pesa nos olhos frouxos tudo que acaricia o esquecimento fa-
zendo sono, o sossego do repouso na cabeça, encostando, pé
FERNANDO PESSOA
LIVRO DO DESASSOSSEGO
ante, as portas da janela na alma, o afago anônimo de
dormir.
Dormir, ser longínquo sem o saber, estar deitado, es-
quecer com o próprio corpo; ter a liberdade de ser incons-
ciente, um refúgio do lago esquecido, estagnado entre fron-
des árvores, nos vastos afastamentos das florestas.
Um nada com respiração por fora, uma morte leve, de
que se desperta com saudade e frescura, um ceder dos tecidos
da alma à roupagem do esquecimento.
Ah, e de novo, como o protesto reatado de quem seo
convenceu, ouço o alarido brusco da chuva chapinhar no
universo aclarado. Sinto um frio até aos ossos supostos, como
se tivesse medo. E agachado, nulo, humano as comigo na
pouca treva que ainda me resta, choro, sim, choro, choro de
solidão e de vida, e a minha mágoa fútil como um carro sem
rodas jaz à beira da realidade entre os estercos do abandono.
Choro de tudo, entre perda do regaço, a morte dao que
me davam, os braços queo soube como me cingissem,
o ombro que nunca poderia ter... E o dia que raia definiti-
vamente, a mágoa que raia em mim como a verdade crua do
dia, o que sonhei, o que pensei, o que se esqueceu em mim
tudo isso, num amálgama de sombras, de ficções e de
remorsos, se mistura no rastro em queo os mundos e cai
entre as coisas da vida como o esqueleto de um cacho de
uvas, comido à esquina pelos garotos que o roubaram.
O ruído do dia humano aumenta de repente, como um
som de sineta de chamada. Estala a dentro de casa o fecho
suave da primeira porta que se abre para universo [ ?]. Ouço
chinelos num corredor absurdo que conduz até meu coração.
E num gesto brusco, como quem enfim se matasse, arrojo
de sobre o corpo duro as roupas profundas da cama que me
abriga. Despertei. O som da chuva esbate-se para mais alto
no exterior indefinido. Sinto-me mais feliz. Cumpri uma coi-
sa que ignoro. Ergo-me, vou à janela, abro as portas com
170
FERNANDO PESSOA
uma decisão de muita coragem. Luz um dia de chuva clara
que me afoga os olhos em luz baça. Abro as próprias janelas
de vidro. O ar fresco umedece-me a pele quente. Chove, sim,
mas, ainda que seja o mesmo é afinalo menos! Quero re-
frescar-me, viver, e inclino o pescoço à vida, como a uma
canga imensa.
Ó noite onde as estrelas mentem luz, ó noite, única coi-
sa do tamanho do Universo, torna-me, corpo e alma, parte
do teu corpo, que eu me perca em ser mera treva e me torne
noite também, sem sonhos que sejam estrelas em mim, nem
sol esperado que ilumine do futuro.
Floresce alto na solidão noturna um candeeiro incógnito
por trás de uma janela. Tudo mais na cidade que vejo está
escuro, salvo onde reflexos frouxos da luz das ruas sobem
vagamente e fazem aqui e ali pairar um luar inverso, muito
pálido. Na negrura da noite a própria casaria destaca pouco,
entre si, as suas diversas cores, ou tons de cores: só dife-
renças vagas, dir-se-ia abstratas, irregularizam o conjunto
atropelado.
Um fio invisível me liga ao dono anônimo do candeeiro.
o é a comum circunstância de estarmos ambos acordados:
o há nisso uma reciprocidade possível, pois, estando eu à
janela no escuro, ele nunca poderia vêr-me. É outra coisa,
minha, que se prende um pouco com a sensação de isola-
mento, que participa da noite e do silêncio, que escolhe aque-
le candeeiro para ponto de apoio porque é o único ponto de
apoio que. Parece que é por ele estar aceso que a noite é
o escura. Parece que é por eu estar desperto, sonhando na
treva, que ele está alumiando.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Tudo que existe existe talvez porque outra coisa existe.
Nada é, tudo coexiste: talvez assim seja certo. Sinto que eu
o existiria, nesta hora queo existiria, ao menos, do
modo em que estou existindo, com esta consciência presente
de mim, que por ser consciência e presente é neste momento
inteiramente eu se aquele candeeiroo estivesse aceso
além, algures, farolo indicando nada num falso privilégio
de altura. Sinto isto porqueo sinto nada. Penso isto por-
que isto é nada. Nada, nada, parte da noite e do silêncio e do
que com eles eu sou de nulo, de negativo, de intervalar, es-
paço entre mim e mim, coisa esquecimento de qualquer
deus...
Passei entre eles estrangeiro porém nenhum viu que eu
o era.Vivi entre eles espião, e ninguém, nem eu, suspeitou
que eu o fosse. Todos me tinham por parente: nenhum sabia
que me haviam trocado à nascença. Assim fui igual aos ou-
tros sem semelhança, irmão de todos sem ser da família.
Vinha de prodigiosas terras, de paisagens melhores que
a vida, mas das terras nunca falei, senão comigo, e das paisa-
gens, vistas se sonhava, nunca lhes dei notícia. Meus passos
eram como os deles nos soalhos e nas lages, mas o meu cora-
ção estava longe, ainda que batesse perto, senhor falso de um
corpo desterrado e estranho.
Ninguém me conheceu sob a máscara da igualha, nem
soube nunca que era máscara, porque ninguém sabia que
neste mundo há mascarados. Ninguém supôs que ao pé de
mim estivesse sempre outro, que afinal era eu. Julgaram-me
sempre idêntico a mim.
172 FERNANDO PESSOA
Abrigaram-me as suas casas, as suas mãos apertaram a
minha, viram-me passar na rua como se eu lá estivesse; mas
quem souo esteve nunca naquelas salas, quem vivoo
tem mãos que outros apertem, quem me conheçoo tem
ruas por onde passe, ao ser que sejam todas as ruas, nem
que nelas o veja, ao ser que ele mesmo seja todos os
outros.
Vivemos todos longínquos e anônimos; disfarçados, so-
fremos desconhecidos. A uns, porém, esta distância entre
um ser e ele mesmo nunca se revela; para outros é de vez
em quando iluminada, de horror ou de mágoa, por um re-
lâmpago sem limites; mas para outros ainda é essa a dolorosa
constância e quotidianidade da vida.
Saber bem que quem somoso é conosco, que o que
pensamos ou sentimos é sempre uma tradução, que o que
queremos oo quisemos, nem porventura alguém o quis
saber tudo isto a cada minuto, sentir tudo isto em cada senti-
mento,o será isto ser estrangeiro na própria alma, exilado
nas próprias sensações?
Mas a máscara, que estive fitando inerte, que falava à
esquina com um homem sem máscara nesta noite de fim de
Carnaval, por fim estendeu ao e se despediu rindo. O
homem natural seguiu à esquerda, pela travessa a cuja es-
quina estava. A máscara dominó sem graça caminhou
em frente, afastando-se entre sombras e acasos de luzes,
numa despedida definitiva e alheia ao que eu estava pen-
sando. Só então reparei que havia mais na rua que os can-
deeiros acesos, e, a turvar onde eleso estavam, um luar
vago, oculto, mudo, cheio de nada como a vida...
LIVRO DO DESASSOSSEGO
De repente, como se um destino médico me houvesse
operado de uma cegueira antiga com grandes resultados-
bitos, ergo a cabeça, da minha vida anônima, para o conheci-
mento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho
feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é
uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que
conseguio ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal
o sou.
Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a
minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como
todos os meus gestos mais certos, as minhas idéias mais cla-
ras, e os meus propósitos mais lógicos,o foram, afinal,
mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhe-
cimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui,
o o ator mas os gestos dele.
Tudo quanto tenho feito, pensado, sido, é uma soma de
subordinações, ou a um ente falso que julguei meu, por que
agi dele para fora, ou de um peso de circunstâncias que supus
ser o ar que respirava. Sou, neste momento de ver, um soli-
tário súbito, que se reconhece desterrado onde se encontrou
sempre cidadão. No mais íntimo do que penseio fui eu.
Vem-me, então, um terror sarcástico da vida, um desa-
lento que passa os limites da minha individualidade cons-
ciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que
existi somente porque enchi tempo com consciência e pensa-
mento. E a minha sensação de mim é a de quem acorda de-
pois de um sono cheio de sonhos reais, ou a de quem é li-
berto, por um terremoto, da luz pouca do cárcere a que se
habituara.
Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a
conhecer, esta noção repentina da minha individualidade
FERNANDO PESSOA
verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente
entre o que sente e o que.
Éo difícil descrever o que se sente quando se sente
que realmente se existe, e que a alma é uma entidade real,
queo sei quaiso as palavras humanas com que possa de-
fini-lo.o sei se estou com febre, como sinto, se deixei de
ter a febre de ser dormidor da vida. Sim, repito, sou como
um viajante que de repente se encontre numa vila estranha,
sem saber como ali chegou; e ocorrem-me esses casos dos que
perdem a memória, eo outros durante muito tempo. Fui
outro durante muito tempo desde a nascença e a consciên-
cia, e acordo agora no meio da ponte, debruçado sobre o
rio, e sabendo que existo mais firmemente do que fui até
aqui. Mas a cidade é me incógnita, as ruas novas, e o mal
sem cura. Espero, pois, debruçado sobre a ponte, que me
passe a verdade, e eu me restabeleça nulo e fictício, inteli-
gente e natural.
Foi um momento, e já passou. Já vejo os móveis que me
cercam, os desenhos do papel velho das paredes, o sol pelas
vidraças poeirentas. Vi a verdade um momento. Fui um mo-
mento, com consciência, o que os grandes homenso com a
vida. Recordo-lhes os atos e as palavras, eo sei seo
foram também tentados vencedoramente pelo Demônio da
Realidade.o saber de si é viver. Saber mal de si é pensar.
Saber de si, de repente, como neste momento lustrai, é ter
subitamente a noção da mônada íntima, da palavra mágica da
alma. Mas uma luz súbita cresta tudo, consome tudo. Deixa-
nos nus até de nós.
Foi só um momento, e vi-me. Depois jáo sei sequer
dizer o que fui. E, por fim, tenho sono, porque,o sei por-
quê, acho que o sentido é dormir.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Assim organizar a nossa vida que ela seja para os outros
um mistério, que quem melhor nos conheça, apenas nos des-
conheça de mais perto que os outros. Eu assim talhei a mi-
nha vida, quase que sem pensar nisso, mas tanta arte instin-
tiva pus em fazê-lo que para mim próprio me tornei umao
de todo clara e nítida individualidade minha.
Estética do Artificio
A vida prejudica a expressão da vida. Se eu vivesse um
grande amor nunca o poderia contar.
Eu próprioo sei se este eu, que vos exponho, por
estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um
conceito estético e falso que fiz de mim-próprio. Sim, é as-
sim. Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida
como a uma estátua de matéria alheia a meu ser. Às vezes
o me reconheço,o exterior me pus a mim, eo de modo
puramente artístico empreguei a minha consciência de mim
próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade?o sei.
Devo ser alguém. E seo busco viver, agir, sentir é
crede-me bem parao perturbar as linhas feitas da minha
personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser eo sou.
Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da
alma pelo menos, já que de corpoo posso ser. Por isso me
esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe
dos ares frescos e das luzes francas onde a minha artifi-
cialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza.
Penso às vezes no belo que seria poder, [...] os meus
sonhos, criar-me uma vida contínua, sucedendo-se, dentro
do decorrer de dias inteiros, com convivas imaginários com
gente criada, e ir vivendo, sofrendo, gozando essa vida falsa.
Ali me aconteceriam desgraças; grandes alegrias ali cairiam
FERNANDO PESSOA
sobre mim. E nada de mim seria real. Mas teria tudo uma
lógica soberba, séria, seria tudo segundo um ritmo de volup-
tuosa falsidade, passando tudo numa cidade feita da minha
alma, perdida até [ao] cais à beira de um comboio calmo,
muito longe dentro de mim, muito longe... E tudo nítido,
inevitável, como na vida exterior, mas, estética de Morte [ ?]
do Sol.
Busco-me eo me encontro. Pertenço a horas crisân-
temos, nítidas em alongamentos de jarros. Devo fazer da mi-
nha alma uma coisa decorativa.
o sei que detalhes demasiadamente pomposos e esco-
lhidos definem o feitio do meu espírito. O meu amor ao orna-
mental é, sem dúvida, porque sinto nele qualquer coisa de
idêntico à substância da minha alma.
Reconheço,o sei se com tristeza, a secura humana do
meu coração. Vale mais para mim um adjetivo que um pran-
to [ ?] real da alma. O meu mestre Vieira [...]
Mas às vezes sou diferente, e tenho lágrimas, lágrimas
das quentes, dos queom nem tiveram mãe; e meus
olhos que ardem dessas lágrimas mortas, ardem dentro do
meu coração.
o me lembro da minha mãe. Ela morreu tinha eu um
ano. Tudo o que há de disperso e duro na minha sensibili-
dade, vem da ausência desse calor e da saudade inútil dos
beijos de que meo lembro. Sou postiço. Acordei sempre
contra seios outros, acalentado por desvio.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Ah, é a saudade do outro que eu poderia ter sido que me
dispersa e sobressalta! Quem outro seria eu se me tivessem
dado carinho do que vem desde o ventre até aos beijos na
cara pequena?
Sou todas essas coisas, embora oo queira, no fundo
confuso da minha sensibilidade fatal.
Talvez que a saudade deo ser filho tenha grande parte
na minha indiferença sentimental. Quem, em criança, me
apertou contra a carao me podia apertar contra o coração.
Essa estava longe, num jazigo essa que me pertenceria,
se o Destino houvesse querido que me pertencesse.
Disseram-me, mais tarde, que minhae era bonita, e
dizem que, quando mo disseram, euo disse nada. Era já
apto de corpo e alma, desentendido de emoções, e o falar
aindao era uma notícia de outras páginas difíceis de ima-
ginar.
Meu pai, que vivia longe, matou-se quando eu tinha três
anos e nunca o conheci.o sei ainda porque é que vivia
longe. Nunca me importei de o saber. Lembro-me da notícia
da sua morte como de uma grande seriedade às primeiras
refeições depois de se saber. Olhavam, lembro-me, de vez
em quando para mim. E eu olhava de troco, entendendo es-
tupidamente. Depois comia com mais regra, pois talvez, sem
eu ver, continuassem a olhar-me.
Fluido, o abandono do dia finda entre púrpuras exaus-
tas. Ninguém me dirá quem sou, nem saberá quem fui. Des-
ci da montanha ignorada ao vale que ignoraria, e meus pas-
sos foram, na tarde lenta, vestígios deixados nas clareiras da
floresta. Todos quantos amei me esqueceram na sombra.
Ninguém soube do último barco. No correioo havia no-
tícia da carta que ninguém haveria de escrever.
FERNANDO PESSOA
Tudo, porém, era falso.o contaram histórias que
outros houvessem contado, nem se sabe ao certo do que par-
tiu outrora, na esperança do embarque falso, filho da bruma
futura e da indecisão por vir. Tenho nome entre os que tar-
dam, e esse nome é sombra como tudo.
Tenho assistido, incógnito, ao desfalecimento gradual
da minha vida, ao soçobro lento de tudo quanto quis ser.
Posso dizer, com aquela verdade queo precisa de flores
para se saber que está morta, queo há coisa que eu tenha
querido, ou em que tenha posto, um momento que fosse, o
sonho só desse momento, que se meo tenha desfeito de-
baixo das janelas como pó parecendo pedra caído de um vaso
de andar alto. Parece, até, que o Destino tem sempre procu-
rado, primeiro, fazer-me amar ou querer aquilo que ele mes-
mo tinha disposto para que no dia seguinte eu visse queo
tinha ou teria.
Espectador irônico de mim mesmo, nunca, porém, de-
sanimei de assistir à vida. E, desde que sei, hoje, por anteci-
pação de cada vaga esperança que ela há-de ser desiludida,
sofro o gozo especial de gozar já a desilusão com a esperança,
como um amargo com doce que torna o doce doce contra o
amargo. Sou um estratégico sombrio, que, tendo perdido to-
das as batalhas, traça, no papel dos seus planos, gozando-
lhe o esquema, os pormenores da sua retirada fatal, na vés-
pera de cada sua nova batalha.
Tem-me perseguido, como um ente maligno, o destino
deo poder desejar sem saber que terei queo ter. Se um
momento vejo na rua um vulto núbil de rapariga, e, indife-
rentemente que seja, tenho um momento de supor o que
seria se ele fosse meu, é sempre certo que, a dez passos do
LIVRO DO DESASSOSSEGO
meu sonho, aquela rapariga encontra o homem que vejo que
é o marido ou o amante. Um romântico faria disto uma tra-
gédia; um estranho sentiria isto como uma comédia: eu, po-
rém, misturo as duas coisas, pois sou romântico em mim e
estranho a mim, e viro a página para outra ironia.
Uns dizem que sem esperança a vida é impossível, ou-
tros que com esperança é vazia. Para mim, que hojeo
espero nem desespero, ela é um simples quadro externo, que
me inclui a mim, e a que assisto como um espetáculo sem
enredo, feito só para divertir os olhos bailado sem nexo,
mexer de folhas ao vento, nuvens em que a luz do sol muda
de cores, arruamentos antigos, ao acaso, em pontos descon-
formes da cidade.
Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo. De-
senrolo-me em períodos e parágrafos, faço-me pontuações, e,
na distribuição desencadeada das imagens, visto-me, como
as crianças, de rei com papel de jornal, ou, no modo como
faço ritmo de uma série de palavras, me touco, como os lou-
cos, de flores secas que continuam vivas nos meus sonhos.
E, acima de tudo, estou tranqüilo, como um boneco de serra-
dura que, tomando consciência de si mesmo, abanasse de vez
em quando a cabeça, para que o guiso no alto do boné em
bico (parte integrante da mesma cabeça) fizesse soar qual-
quer coisa, vida tinida do morto, aviso mínimo ao Destino.
Quantas vezes, contudo, em pleno meio desta insatis-
fação sossegada, meo sobe pouco a pouco à emoção cons-
ciente o sentimento do vácuo e do tédio de pensar assim!
Quantas vezeso me sinto, como quem ouve falar através
de sons que cessam e recomeçam, a amargura essencial desta
vida estranha à vida humana vida em que nada se passa
salvo na consciência dela! Quantas vezes, despertando de
mim,o entrevejo, do exílio que sou, quanto fora melhor
ser o ninguém de todos, o feliz que tem ao menos a amargura
FERNANDO PESSOA
real, o contente que tem cansaço em ver de tédio, que sofre
em vez de supor que sofre, que se mata, sim, em vez de se
morrer!
Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que
sinto é (sem que eu queira) sentido para se escrever que se
sentiu. O que penso está logo em palavras, misturado com
imagens que o desfazem, aberto em ritmos queo outra
coisa qualquer. De tanto recompor-me destruí-me. De tanto
pensar-me, sou já meus pensamentos maso eu. Sondei-me
e deixei cair a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não, sem
outra sonda agora senão o olhar que me mostra, claro a ne-
gro no espelho do poço alto, meu próprio rosto que me con-
templa contemplá-lo.
Sou uma espécie de carta de jogar, de naipe antigo e
incógnito, restando única do baralho perdido.o tenho
sentido,o sei do meu valor,o tenho a que me compare
para que me encontre,o tenho a que sirva para que me
conheça. E assim, em imagens sucessivas em que me des-
crevoo sem verdade, mas com mentiras vou ficando
mais nas imagens do que em mim, dizendo-me atéo ser,
escrevendo com a alma como tinta, útil para mais nada do
que para se escrever com ela. Mas cessa a reação, e de novo
me resigno. Volto em mim ao que sou, ainda que seja nada.
E alguma coisa de lágrimas sem choro arde nos meus olhos
hirtos alguma coisa de angústia queo houve me empola
asperamente a garganta seca. Mas ai, nem sei o que chorara,
se houvesse chorado, nem porque foi que oo chorei. A
ficção acompanha-me, como a minha sombra. E o que quero
é dormir.
Reconheço hoje que falhei, só pasmo, às vezes, deo
ter previsto que falharia. Que havia em mim que prognosti-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
casse um triunfo? Euo tinha a força cega dos vencedores
ou a visão certa [ ? ] dos loucos...
Era lúcido, triste como um dia frio.
Tenho elementos espirituais de boêmio, desses que dei-
xam a vida ir como uma coisa que se escapa das mãos e a tal
hora em que o gesto de a obter dorme na mera idéia de fazê-
lo. Maso tive a compensação exterior do espirito boêmio
o descuidado fácil das emoções imediatas e abandonadas.
Nunca fui mais que um boêmio isolado, o que é um absurdo;
ou um boêmio místico, o que é uma coisa impossível.
Certas horas-intervalos que tenho vivido, horas perante
a Natureza, esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-ão
para sempre como medalhas. Nesses momentos esqueci to-
dos os meus propósitos de vida, todas as minhas direções
desejadas. Gozeio ser nada com uma plenitude de bonança
espiritual, caindo no regaço azul das minhas aspirações.o
gozei nunca, talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo
espiritual de falência e de desânimo. Em todas as minhas
horas libertas uma dor dormia, floria vagamente, por detrás
dos muros da minha consciência, em outros quintais, mas o
aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam intui-
tivamente os muros, e o lado de lá deles, onde floriam as
rosas, nunca deixaram de ser, no mistério confuso do meu
ser, um lado de cá esbatido na minha sonolência de viver.
Foi num mar interior que o rio da minha vida findou.
À roda do meu solar sonhado todas as árvores estavam no
outono. Esta paisagem circular é a coroa-de-espinhos da mi-
nha alma. Os momentos mais felizes da minha vida foram
sonhos, e sonhos de tristeza, e eu via-me nos lagos deles
como um Narciso cego que gozou a frescura próximo da
água, sentindo-se debruçado nela, por uma visão anterior e
noturna, segredada às emoções abstratas, vivida nos recantos
da imaginação com um cuidado materno em preferir-se.
FERNANDO PESSOA
Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da falência
como quem dá um apreço exausto a uma febre que o enclau-
sura.
Invejo a todas as pessoaso serem eu. Como de todos
os impossíveis, esse sempre me pareceu o maior de todos, foi
o que mais se constituiu minha ânsia quotidiana, o meu de-
sespero de todas as horas tristes.
Sinto o tempo com uma dor enorme. É sempre com
uma comoção exagerada que abandono qualquer coisa. O po-
bre quarto-alugado onde passei uns meses, a mesa do hotel
de província onde passei seis dias, a própria triste sala de es-
pera da estação de caminho de ferro onde gastei duas horas à
espera do comboio sim, mas as coisas boas da vida, quan-
do as abandono e penso, com toda a sensibilidade dos meus
nervos, que nunca mais as verei e as terei, pelo menos na-
quele preciso e exato momento, doem-me metafisicamente.
Abre-se-me um abismo na alma e um sopro frio da hora de
Deus roça-me pela face lívida.
O tempo! O passado! [...] Aquilo que fui e nunca mais
serei! Aquilo que tive, eo tornarei a ter! Os Mortos! Os
mortos que me amaram na minha infância. Quando os evoco
toda a alma me esfria e eu sinto-me desterrado de corações,
sozinho na noite de mim-próprio, chorando como um men-
digo o silêncio fechado de todas as portas.
Deus criou-me para criança, e deixou-me sempre crian-
ça. Mas por que deixou que a Vida me batesse e me tirasse os
LIVRO DO DESASSOSSEGO. 183
brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com
mãoso fracas o bibe azul sujo de lágrimas comprimidas? Se
euo poderia viver senão acarinhado, por que deitaram fora
o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas ruas uma criança
a chorar, uma criança exilada dos outros, dói-me mais que a
tristeza da criança no horror desprevenido do meu coração
exausto. Dôo-me com toda a estatura da vida sentida, eo
minhas as mãos que torcem o canto do bibe,o minhas as
bocas tortas das lágrimas verdadeiras, é minha a fraqueza,
é minha a solidão, e os risos da vida adulta que passam usam-
me como luzes de fósforos riscados no estofo sensível do meu
coração.
Na minha alma ignóbil e profunda registro, dia a dia, as
impressões que formam a substância externa da minha cons-
ciência de mim. Ponho-as em palavras vadias, que me deser-
tam desde que as escrevo, e erram independentes de mim,
por encostas e relvados de imagens, por aléias de conceitos,
por azinhagas de confusões. Isto de nada me serve, pois nada
me serve de nada. Mas desapoquento-me escrevendo, como
quem respira melhor sem que a doença haja passado.
Há quem, estando distraído, escreva riscos e nomes ab-
surdos no mata-borrão de cantos entalados. Estas páginaso
os rabiscos da minha inconsciência intelectual de mim. Tra-
ço-as numa modorra de me sentir, como um gato ao sol, e
releio-as, por vezes, com um vago pasmo tardio, como o de
me haver lembrado de uma coisa que sempre esquecera.
Quando escrevo, visito-me solenemente. Tenho salas
especiais, recordadas por outrem, em interstícios da figura-
ção, onde me deleito analisando o queo sinto, e me exa-
mino como a um quadro na sombra.
FERNANDO PESSOA
Perdi, antes de nascer, o meu castelo antigo. Foram
vendidas, antes que eu fosse, as tapeçarias [d]o meu palácio
ancestral. O meu solar de antes da vida caiu em ruina, e só
em certos momentos, quando o luar nasce em mim de sobre
os juncos do rio, me esfria a saudade dos lados de onde o
resto desdentado das paredes se recorta negro contra ou de
azul escuro esbranquiçado a amarelo de leite.
Distingo-me a esfinges. E do regaço da rainha que me
falta, cai, como um episódio do bordado inútil, o novelo es-
quecido da minha alma. Rola para debaixo do contador com
embutidos, e há aquilo em mim que o segue como olhos até
que se perde num grande horror de túmulo e de fim.
Mas a exclusão, que me impus, dos fins e dos movimen-
tos da vida; a ruptura, que procurei, do meu contato com as
coisas levou-me precisamente àquilo a que eu procurava
fugir. Euo queria sentir a vida, nem tocar nas coisas, sa-
bendo, pela experiência do meu temperamento em contágio
do mundo, que a sensação da vida era sempre dolorosa para
mim. Mas ao evitar esse contato, isolei-me, e, isolando-me,
exacerbei a minha sensibilidade já excessiva. Se fosse possí-
vel cortar de todo o contato com as coisas, bem iria à minha
sensibilidade. Mas esse isolamento totalo pode realizar-se.
Por menos que eu faça, respiro, por menos que aja, movo-
me. E, assim, conseguindo exacerbar a minha sensibilidade
pelo isolamento, consegui que os fatos mínimos, que antes
mesmo a mim nada fariam, me ferissem como catástrofes.
Errei o método de fuga. Fugi, por um rodeio incômodo, para
o mesmo lugar onde estava, com o cansaço da viagem sobre
o horror de viver ali.
Nunca encarei o suicídio como uma solução, porque eu
odeio a vida por amor a ela. Levei tempo a convencer-me
LIVRO DO DESASSOSSEGO
deste lamentável equívoco em que vivo comigo. Convencido
dele, fiquei desgostoso, o que sempre me acontece quando
me convenço de qualquer coisa, porque o convencimento é
em mim sempre a perda de uma ilusão.
Matei a vontade de analisá-la. Quem me tornará à in-
fância antes da análise, ainda que antes da vontade!
Nos meus parques, sono morto, a sonolência dos tan-
ques ao sol-alto, quando os rumores dos insetos chusmam na
hora e me pesa viver,o como uma mágoa, mas como uma
dor física por concluir.
Palácios muito longe, parques absortos, a estreiteza das
aléias ao longe, a graça morna dos bancos de pedra para os
que foram pompas mortas, graça desfeita, ouropel per-
dido. Meu anseio que esqueço, quem me dera recuperar a
mágoa com que te sonhei.
Quando vim primeiro para Lisboa, havia, no andar lá de
cima de onde morávamos, um som de piano tocado em es-
calas, aprendizagem monótona da menina que nunca vi.
Descubro hoje que, por processos de infiltração que desco-
nheço, tenho ainda nas caves da alma, audíveis se abrem a
porta lá de baixo, as escalas repetidas, tecladas, da menina
hoje senhora outra, ou morta e fechada num lugar branco
onde verdejam negros os ciprestes.
Eu era criança, e hojeo o sou; o som, porém, é igual
na recordação ao que era na verdade, e tem, perenemente
presente, se se ergue de onde finge que dorme, a mesma
lenta teclagem, a mesma rítmica monotonia. Invade-me, de
o considerar ou sentir, uma tristeza difusa, angustiosa, mi-
nha.
FERNANDO PESSOA
o choro a perda da minha infância; choro que tudo, e
nele a (minha) infância, se perca. É a fuga abstrata do tempo,
o a fuga concreta do tempo que é meu, que mei no
cérebro físico pela recorrência repetida, involuntária, das es-
calas do piano lá de cima, terrivelmente anônimo e longín-
quo. É todo o mistério de que nada dura que martela repe-
tidamente coisas queo chegam a ser música, maso sau-
dade, no fundo absurdo da minha recordação.
Insensivelmente, num erguer visual, vejo a saleta que
nunca vi, onde a aprendiza queo conheci está ainda hoje
relatando, dedo a dedo cuidados, as escalas sempre iguais do
que já está morto. Vejo, vou vendo mais, reconstruo vendo.
E todo o lar lá do andar lá de cima, saudoso hoje maso
ontem, vem erguendo-se fictício da minha contemplação de-
sentendida.
Suponho, porém, que nisto tudo sou translado, que a
saudade que sintoo é bem minha, nem bem abstrata, mas
a emoção interceptada deo sei que terceiro, a quem estas
emoções, que em mimo literárias, fossem, di-lo-ia Viei-
ra literais. É na minha suposição de sentir que me magôo
e angustio, e as saudades, a cuja sensação se me mareiam os
olhos próprios, é por imaginação e outridade que as penso e
sinto.
E sempre, com uma constância que vem do fundo do
mundo, com uma persistência que estuda metafisicamente,
soam, soam, soam, as escalas de quem aprende piano, pela
espinha dorsal física da minha recordação.o as ruas anti-
gas com outra gente, hoje as mesmas ruas diversas;o pes-
soas mortas que me estão falando, através da transparência
da falta delas hoje;o remorsos do que fiz ouo fiz, sons de
regatos na noite, ruídos lá embaixo na casa queda.
Tenho ganas de gritar dentro da cabeça. Quero parar,
esmagar, partir esse impossível disco gramofônico que soa
LIVRO DO DESASSOSSEGO
dentro de mim, em casa alheia, torturador intangível. Quero
mandar parar a alma, para que ela, como veículo que me [...]
siga para diante só e me deixe. Endoideço de ter que ouvir.
E por fim sou eu, no meu cérebro odientamente sensível, na
minha pele peculiar nos meus nervos postos à superfície, as
teclas tecladas em escalas, ó piano horroroso e pessoal da
nossa recordação.
E sempre, sempre, como que numa parte do cérebro
que se tornasse independente, soam, soam, soam as escalas
lá embaixo, lá em cima, da primeira casa de Lisboa onde vim
habitar.
Durei horas incógnitas, momentos sucessivos sem rela-
ção, no passeio em que fui, de noite, à beira sozinha do mar.
Todos os pensamentos, quem feito viver homens, todas as
emoções, que os homensm deixado de viver, passaram por
minha mente, como um resumo escuro da história, nessa
minha meditação andada à beira-mar.
Sofri em mim, comigo, as aspirações de todas as eras, e
comigo passearam, à beira ouvida do mar, os desassossegos
de todos os. tempos. O que os homens quiseram eo fize-
ram, o que mataram fazendo-o, o que as almas foram e nin-
guém disse de tudo isto se formou a alma sensível com
que passeei de noite à beira-mar. E o que os amantes estra-
nharam no outro amante, o que a mulher ocultou sempre ao
marido de quem é, o que ae pensa do filho queo teve, o
que teve forma só num sorriso ou numa oportunidade, num
tempo queo foi esse ou numa emoção que falta tudo
isso, no meu passeio à beira-mar, foi comigo e voltou co-
migo, e as ondas estorciam magnamente o acompanhamento
que me fazia dormi-lo.
FERNANDO PESSOA
Somos quemo somos, e a vida é pronta e triste. O
som das ondas à noite é um som da noite; e quantos o ouvi-
ram na própria alma, como a esperança constante que se des-
faz no escuro com um som surdo de espuma funda! Que-
grimas choraram os que obtiveram, que lágrimas perderam
os que conseguiram! E tudo isto, no passeio à beira-mar, se
me tornou o segredo da noite e a confidência do abismo.
Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam
em nós, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos
nos alagamentos da emoção!
Aquilo que se perdeu, aquilo que se deveria ter querido,
aquilo que se obteve e satisfez por erro, o que amamos e per-
demos e, depois de perder, vimos, amando por tê-lo perdido,
que oo havíamos amado; o que julgávamos que pensáva-
mos quando sentíamos; o que era uma memória e críamos
que era uma emoção; e o mar todo, vindo, rumoroso e
fresco, do grande fundo de toda a noite, a estuar fino na
praia, no decurso noturno do meu passeio à beira-mar...
Quem sabe sequer o que pensa, ou o que deseja? Quem
sabe o que é para si-mesmo? Quantas coisas a música sugere
e nos sabe bem queo possam ser! Quantas a noite recorda
e choramos, eo foram nunca! Como uma voz solta da paz
deitada ao comprido, a enrolação da onda estoura e esfria e
há um salivar audível pela praia invisível fora.
Quanto morro se sinto por tudo! Quanto sinto se assim
vagueio, incorpóreo e humano, com o coração parado como
uma praia, e todo o mar de tudo, na noite em que vivemos,
batendo alto, chasco, e esfria-se, no meu eterno passeio no-
turno à beira-mar!
A vida pode ser sentida como uma náusea no estômago,
a existência da própria alma como um incômodo dos múscu-
los. A desolação do espírito, quando agudamente sentida, faz
marés, de longe, no corpo, ei por delegação.
Estou consciente de mim em um dia, em que a dor de
ser consciente é, como diz o poeta,
languidez, mareo
y angustioso afán
E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violen-
tos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de
um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que con-
tinue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a
tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da
alma consigo mesma, como com uma criança inoportuna;
um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me
interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sem-
pre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho
as entonações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas,
ao ouvi-lo,o o escuto, estou pensando noutra coisa, e o
que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse,
da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, mui-
tas vezes, repito a alguém o que ja lhe repeti, pergunto-lhe
de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descre-
ver, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular
com que ele disse o que meo lembra, ou a inclinação de
ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que meo
recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambosm a distância
irmãos siameses queo estão pegados.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
FERNANDO PESSOA
Mais '' pensamentos''
Dia de Natal (Humanismo. A "realidade" do Natal é
subjetiva. Sim, no meu ser. A emoção, como veio, passou.
Mas um momento convivi com as esperanças e as emoções
de gerações inúmeras, com as imaginações mortas de toda
uma linhagem morta de místicos.
Natal em mim!)
Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais
pungem,o os queo absurdos — a ânsia de coisas impos-
síveis, precisamente porqueo impossíveis, a saudade do
que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de
o ser outro, a insatisfação da existência do mundo. Todos
estes meios-tons da consciência da alma criam ems uma
paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos. O sen-
tirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, triste de
juncos ao pé de um rio sem barcos, négrejando claramente
entre margens afastadas.
o sei se estes sentimentoso uma loucura lenta do
desconsolo, seo reminiscência de qualquer outro mundo
em que houvéssemos estado reminiscências cruzadas e
misturadas, como coisas vistas em sonhos, absurdas na fi-
gura que vemos maso na origem se a soubéssemos.o
sei se houve outros seres que fomos, cuja maior completidão
sentimos hoje, na sombra que deles somos, de uma maneira
incompleta perdida a solidez es figurando-no-la mal
nas só duas dimensões da sombra que vivemos.
Sei que estes pensamentos da emoção doem como raiva
na alma. A impossibilidade de nos figurar uma coisa a que
correspondam, a impossibilidade de encontrar qualquer coisa
que substitua aquela a que se abraçam em visão tudo isto
LIVRO DO DESASSOSSEGO
pesa como uma condenação dadao se sabe onde, ou por
quem, ou porquê.
Mas o que fica de sentir tudo isto é com certeza um des-
gosto da vida e de todos os seus gestos, um cansaço anteci-
pado dos desejos e de todos os seus modos, um desgosto anô-
nimo de todos os sentimentos. Nestas horas de mágoa sutil,
torna-se-nos impossível, até em sonho, ser amante, ser he-
rói, ser feliz. Tudo isso está vazio, até na idéia de que é.
Tudo isso está dito e outra linguagem, paras incompreen-
sivel, meros sons de sílabas sem forma no entendimento. A
vida é oca, a alma é oca, o mundo é oco. Todos os deuses
morrem de uma morte maior que a morte. Tudo está mais
vazio que o vácuo. É tudo um caos de coisas nenhumas.
Se penso isto e olho, para ver se a realidade me mata a
sede, vejo casas inexpressivas, caras inexpressivas, gestos
inexpressivos. Pedras, corpos, idéias está tudo morto. To-
dos os movimentoso paragens, a mesma paragem todos
eles. Nada me diz nada. Nada me é conhecido,o porque
o estranhe mas por queo sei o que é. Perdeu-se o mundo.
E no fundo da minha alma como única realidade deste
momento há uma mágoa intensa e invisível, uma tristeza
como o som de quem chora num quarto escuro.
Sou daquelas almas que as mulheres dizem que amam, e
nunca reconhecem quando encontram; daquelas que, se elas
as reconhecem mesmo assimo as reconheceriam. Sofro a
delicadeza dos meu sentimentos com uma atenção desde-
nhosa. Tenho todas as qualidades, pelas quaiso admirados
os poetas românticos, mesmo aquela falta dessas qualidades,
pela qual se é realmente poeta romântico. Encontro-me des-
crito, (em parte), em vários romances como protagonista de
FERNANDO PESSOA
vários enredos; mas o essencial da minha vida, como da
minha alma, éo ser nunca protagonista.
o tenho uma idéia de mim próprio; nem aquela que
consiste em uma falta de idéia de mim-próprio. Sou um-
mada da consciência de mim. Tresmalharam-se a l.ª guarda
os rebanhos da minha riqueza íntima.
A única tragédia éo nos podermos conceber trágicos.
Vi sempre nitidamente a minha coexistência com o mundo.
Nunca senti nitidamente a minha falta de coexistir com
ele; por isso nunca fui um normal.
Agir é repousar.
Todos os problemaso insolúveis. A essência de haver
um problema éo haver uma solução. Procurar um fato
significao haver um fato. Pensar éo saber existir.
Milímetros {sensações us coisas mínimas)
Como o presente é antiqüíssimo, porque tudo, quando
existiu foi presente, eu tenho para as coisas, porque perten-
cem ao presente, carinhos de antiquário, e fúrias de colecio-
nador precedido para quem me tira os meus erros sobre as
coisas com plausíveis, e até verdadeiras, explicações cientí-
ficas e baseadas.
As várias posições que uma borboleta que voa ocupa
sucessivamente no espaçoo aos meus olhos maravilhados
várias coisas que ficam no espaço visivelmente. As minhas
reminiscênciasoo vividas que (...)
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Mas só as sensações mínimas, e de coisas pequeníssi-
mas, é que eu vivo intensamente. Será pelo meu amor ao
fútil que isto me acontece. Pode ser que seja pelo meu escrú-
pulo no detalhe. Mas creio maiso o sei, estaso as
coisas que eu nunca analiso que é porque o mínimo, por
o ter absolutamente importância nenhuma social ou prá-
tica, tem, pela mera ausência disso, uma independência ab-
soluta de associações sujas com a realidade. O mínimo sabe-
me a irreal. O inútil é belo porque é menos real que o útil,
que se continua e prolonga, ao passo que o maravilhoso fútil,
o glorioso infinitesimal fica onde está,o passa de ser o que
é, vive liberto e independente. O inútil e o fútil abrem na
nossa vida real intervalos de estática humilde. Quantoo
me provoca na alma de sonhos e amorosas delícias a mera
existência insignificante dum alfinete pregado numa fita!
Triste de quemo sabe a importância que isso tem!
Depois, entre as sensações que mais penetrantemente
doem até serem agradáveis o desassossego do mistério é uma
das mais complexas e extensas. E o mistério nunca transpa-
rece tanto como na contemplação das pequeninas coisas,
que, como seo movem,o perfeitamente translúcidas a
ele, que param para o deixar passar. É mais difícil ter o senti-
mento do mistério contemplando uma batalha, e contudo
pensar no absurdo que é haver gente, e sociedades e comba-
tes delas é do que mais pode desfraldar dentro do nosso pen-
samento a bandeira de conquista do mistério do que diante
da contemplação duma pequena pedra parada numa estrada,
que, porque nenhuma idéia provoca além da de que existe,
outra idéiao pode provocar, se continuarmos pensando,
do que, imediatamente a seguir, a do seu mistério de existir.
Benditos sejam os instantes, e os milímetros, e as som-
bras das pequenas coisas, ainda mais humildes do que elas!
Os instantes, (...) Os milímetros que impressão de assom-
bro e ousadia que a sua existência lado a lado e muito apro-
FERNANDO PESSOA
ximada numa fita métrica me causa. Às vezes sofro e gozo
com estas coisas. Tenho um orgulho tosco nisso.
Sou uma placa fotográfica prolixamente impressionável.
Todos os detalhes se me gravam desproporcionadamente [a]
haver um todo. Só me ocupa de mim. O mundo exterior
é me sempre evidentemente sensação. Nunca me esqueço
de que sinto.
o dado como sou ao tédio, é curioso que nunca, até
hoje, me lembrou de meditar em que consiste. Estou hoje,
deveras, nesse estado intermédio da alma em que nem ape-
tece a vida nem outra coisa. E emprego a súbita lembrança,
de que nunca pensei em o que fosse, em sonhar, ao longo de
pensamentos meio impressões, a análise, sempre um pouco
factícia, do que ele seja.
o o sei, realmente, se o tédio é somente a correspon-
dência desperta da sonolência do vadio, se é coisa, na ver-
dade, mais nobre que esse entorpecimento. Em mim o tédio
é freqüente, mas, que eu saiba, porque reparasse,o obe-
dece a regras de aparecimento. Posso passar sem tédio um
domingo inerte; posso sofrê-lo repentinamente, como uma
nuvem externa, em pleno trabalho atento.o consigo rela-
cioná-lo com um estado da saúde ou da falta dela;o al-
canço conhecê-lo como produto de causas que estejam na
parte evidente de mim.
Dizer que é uma angústia metafísica disfarçada, que é
uma grande desilusão incógnita, que é uma poesia surda da
alma aflorando aborrecida à janela que dá para a vida dizer
isto, ou o que seja irmão disto, pode colorir o tédio, como
uma criança ao desenho cujos contornos transborde e apa-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
gue, maso me traz mais que um som de palavras a fazer
eco nas caves do pensamento.
O tédio... Pensar sem que se pense, com o cansaço de
pensar; sentir sem que se sinta, com a angústia de sentir;o
querer sem que seo queira, com a náusea deo querer
tudo isto está no tédio sem ser o tédio, nem é dele mais que
uma paráfrase ou uma translação. É, na sensação direta,
como se de sobre o fosso do castelo da alma se erguesse a
ponte levadiça, nem restasse, entre o castelo e as terras, mais
que o poder olhá-las sem as poder percorrer. Há um isola-
mento des ems mesmos, mas um isolamento onde o
que separa está estagnado como nós, água suja cercando o
nosso desentendimento.
O tédio... Sofrer sem sofrimento, querer sem vontade,
pensar sem raciocínio... É como a possessão por um demô-
nio negativo, um embruxamento por coisa nenhuma. Dizem
que os bruxos, ou os pequenos magos, conseguem, fazendo
des imagens, e a elas inflingindo maus tratos, que esses
maus tratos, por uma transferência astral, se reflitam em
nós. O tédio surge-me, na sensação transposta desta ima-
gem, como o reflexo maligno de bruxedos de um demônio
das fadas, exercidas,o sobre uma imagem minha, senão
sobre a sua sombra. É na sombra íntima de mim, no exterior
do,interior da minha alma, que se colam papéis ou se espe-
tam alfinetes. Sou como o homem que vendeu a sombra, ou,
antes, como a sombra do homem que a vendeu.
O tédio... Trabalho bastante. Cumpro o que os mora-
listas da ação chamariam o meu dever social. Cumpro esse
dever, ou essa sorte, sem grande esforço nem notável desin-
teligência. Mas, umas vezes em pleno trabalho, outras ve-
zes, no pleno descanso que, segundo os mesmos moralistas,
mereço e me deve ser grato, transborda-se-me a alma de um
FERNANDO PESSOA
fel de inércia, e estou cansado,o da obra ou do repouso,
mas de mim.
De mim por quê, seo pensava em mim? De que outra
coisa, seo pensava nela? O mistério do universo, que baixa
às minhas contas ou ao meu reclínio? A dor universal de
viver que se particulariza subitamente na minha alma me-
diúnica? Para quê enobrecer tanto quemo se sabe quem é?
É uma sensação de vácuo, uma fome sem vontade de comer,
o nobre como estas sensações do simples cérebro, do sim-
ples estômago, vindas de fumar demais ou deo digerir
bem.
O tédio... É talvez, no fundo, a insatisfação da alma
íntima poro lhe termos dado uma crença, a desolação da
criança triste que intimamente somos, poro lhe termos
comprado o brinquedo divino. É talvez a insegurança de
quem precisao que o guie, eo sente, no caminho negro
da sensação profunda, mais que a noite sem ruído deo
poder pensar, a estrada sem nada deo saber sentir...
O tédio... Quem tem Deuses nunca tem tédio. O tédio é
a falta de uma mitologia. A quemo tem crenças, até a-
vida é impossível, até o ceticismoo tem força para descon-
fiar. Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capaci-
dade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexis-
tente por onde ele sobe sólido à verdade.
Antes que o estio cesse e chegue o outono, no cálido
intervalo em que o ar pesa e as cores abrandam, as tardes
costumam usar um traje sensível de gloríola falsa.o com-
paráveis àqueles artifícios da imaginação em que as saudades
o de nada, e se prolongam indefinidas como rastos de na-
vios formando a mesma cobra sucessiva.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Nessas tardes enche-me, como um mar em maré, um
sentimento pior que o tédio mas a queo compete outro
nome senão tédio um sentimento de desolação sem lugar,
de naufrágio de toda a alma. Sinto que perdi um Deus com-
placente, que a Substância de tudo morreu. E o universo
sensível é para mim um cadáver que amei quando era vida;
mas é tudo tornado nada na luz ainda quente das últimas nu-
vens coloridas.
O meu tédio assume aspectos de horror; o meu aborre-
cimento é um medo. O meu suoro é frio, mas é fria a
minha consciência do meu suor.o há mal-estar físico,
salvo que o mal-estar da alma eo grande que passa pelos
poros do corpo e o inunda a ele também.
Éo magno o tédio,o soberano o horror de estar vivo
queo concebo que coisa haja que pudesse servir de leni-
tivo, de antídoto, de bálsamo ou esquecimento para ele. Dor-
mir horroriza-me como tudo. Morrer horroriza-me como
tudo. Ir e pararo a mesma coisa impossível. Esperar e des-
crer equivalem-se em frio e cinza. Sou uma prateleira de fras-
cos vazios.
Contudo que saudade do futuro se deixo os olhos vulga-
res receber a saudação morta do dia iluminado que finda!
Que grande enterro da esperança vai pela calada dourada
ainda dos céus inertes, que cortejo de vácuos e nadas se es-
palha a azul rubro que vai ser pálido pelas vastas planícies do
espaço alvar!
o sei o que quero ou o queo quero. Deixei de saber
querer, de saber como se quer, de saber as emoções ou os
pensamentos com que ordinariamente se conhece que esta-
mos querendo, ou querendo querer.o sei quem sou ou o
que sou. Como alguém soterrado sob um muro que se des-
FERNANDO PESSOA
moronasse, jazo sob a vacuidade tombada do universo in-
teiro. E assim vou, na esteira de mim mesmo, até que a noite
entre e um pouco do afago de ser diferente ondule, como
uma brisa, pelo começo da minha impaciência de mim.
Ah, e a lua alta e maior destas noites plácidas, mornas
de angústia e desassossego! A paz sinistra da beleza celeste,
ironia fria do ar quente, azul negro enevoado de luar e tímido
de estrelas.
O desgosto deo encontrar nada encontro comigo pou-
co a pouco.o achei razão nem lógica senão a um ceti-
cismo que nem sequer busca uma lógica para se defender.
Em curar-me distoo pensei porque me havia eu de
curar disso. E o que era ser são? Que certeza tinha eu que
esse estado de alma deve pertencer á doença? Quem nos afir-
ma que, a ser doença, a doençao era mais desejável, ou
mais lógica ou mais (...) do que a saúde? A ser a saúde pre-
ferível, porque era eu doente seo por naturalmente o ser,
e se naturalmente o era porque ir contra a Natureza, que
para algum fim, se fim ela tem, me quereria decerto doente?
Nunca encontrei argumentos senão para a inércia. Dia
a dia mais e mais se infiltrou em mim a consciência sombria
da minha inércia de abdicador. Procurar modos de inércia,
apostar-me a fugir a todo o esforço quanto a mim, a toda a
responsabilidade social talhei nessa matéria de (...) a está-
tua pensada da minha existência.
Deixei leituras, abandonei casuais caprichos de este ou
aquele modo estético da vida. Do pouco que lia aprendi a ex-
trair só elementos para o sonho. Do pouco que presenciava,
apliquei-me a tirar apenas o que se podia, em reflexo dis-
tante e [...], prolongar mais dentro de mim. Esforcei-me
porque todos os meus pensamentos, todos os capítulos quo-
tidianos da minha experiência me fornecessem apenas sen-
sações. Criei à minha vida uma orientação estética. E orien-
tei essa estética para puramente individual. Fi-la minha
apenas.
Apliquei-me depois, no decurso procurado do meu he-
donismo interior, a furtar-me às sensibilidades sociais. Len-
tamente me couracei contra o sentimento do ridículo. Ensi-
nei-me a ser insensível quer para os apelos dos instintos, quer
para as solicitações (...)
Reduzi ao mínimo o meu contato com os outros. Fiz o
que pude para perder toda a afeição à vida, (...) Do próprio
desejo da glória lentamente me despi, como quem cheio de
cansaço se despe para repousar.
o sei que vaga carícia, tanto mais branda quantoo
é carícia, a brisa incerta da tarde me traz à fronte e à com-
preensão. Sei só que o tédio que sofro se me ajusta melhor,
um momento, como uma veste que deixe de roçar numa
chaga.
Pobre da sensibilidade que depende de um pequeno mo-
vimento do ar para o conseguimento, ainda que episódico, da
sua tranqüilidade! Mas assim é toda sensibilidade humana,
nem creio que pese mais na balança dos seres o dinheiro su-
bitamente ganho, ou o sorriso subitamente recebido, queo
para outros o que para mim foi, neste momento, a passagem
breve de uma brisa sem continuação.
Posso pensar sem dormir. Posso sonhar de sonhar. Vejo
mais claro a objetividade de tudo. Uso com mais conforto o
sentimento externo da vida. E tudo isto, efetivamente, por-
que, ao chegar quase à esquina, um virar no ar da brisa me
alegra a superfície da pele.
Tudo quanto amamos ou perdemos coisas, seres, sig-
nificações nos roça a pele e assim nos chega à alma, e o
episódioo é, em Deus, mais que a brisa que meo trouxe
LIVRO DO DESASSOSSEGO
nada salvo o alívio suposto, o momento propício e o poder
perder tudo esplendidamente.
o sei quantos terão contemplado, com o olhar que
merece, uma rua deserta com gente nele. Já este modo de
dizer parece querer dizer qualquer outra coisa, e efetiva-
mente a quer dizer. Uma rua desertao é uma rua ondeo
passa ninguém, mas uma rua onde os que passam, passam
nela como se fosse deserta.o há dificuldade em compreen-
der isto desde que se o tenha visto: uma zebra é impossível
para quemo conheça mais que um burro.
As sensações ajustam-se, dentro des a certos graus e
tipos da compreensão delas. Há maneiras de entender que
m maneiras de ser entendidas.
Há dias em que sobe em mim, como que da terra alheia
à cabeça própria, um tédio, uma mágoa, uma angústia de
viver que só meo parece insuportável porque de fato a su-
porto. É um estrangulamento da vida em mim mesmo, um
desejo de ser outra pessoa em todos os poros, uma breve
notícia do fim.
As coisas nítidas confortam, e as coisas ao sol confor-
tam. Ver passar a vida sob um dia azul compensa-me de mui-
to. Esqueço indefinidamente, esqueço mais do que podia
lembrar. O meu coração translúcido e aéreo penetra-se da
suficiência das coisas, e olhar basta-me carinhosamente.
Nunca eu fui outra coisa que uma visão incorpórea, despida
de toda a alma salvo um vago ar que passou e que via.
FERNANDO PESSOA
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Considerar a nossa maior angústia como um incidente
sem importância,o só na vida do universo, mas na da nos-
sa mesma alma, é o principio da sabedoria. Considerar isto
em pleno meio dessa angústia é a sabedoria inteira. No mo-
mento em que sofremos, parece que a dor humana é infinita.
Mas nem a dor humana é infinita, pois nada há humano de
infinito, nem a nossa dor vale mais que ser uma dor ques
temos.
Quantas vezes, sob o peso de um tédio que parece ser
loucura, ou de uma angústia que parece passar além dela,
paro, hesitante, antes que me revolte, hesito, parando, antes
que me divinize. Dor deo saber o que é o mistério do
mundo, dor de noso amarem, dor de serem injustos co-
nosco, dor de pesar a vida sobre nós, sufocando e prendendo,
dor de dentes, dor de sapatos apertados quem pode dizer
qual é maior em si mesmo, quanto mais nos outros, ou na
generalidade dos que existem?
Para alguns que me falam e me ouvem, sou um insensí-
vel. Sou, porém, mais sensível creio que a vasta maio-
ria dos homens. O que sou, contudo, é um sensível que se
conhece, e que, portanto, conhece a sensibilidade.
Ah,o é verdade que a vida seja dolorosa, ou que seja
doloroso pensar na vida. O que é verdade é que a nossa dor só
é séria e grave quando a fingimos tal. Se formos naturais, ela
passará assim como veio, esbater-se-á assim como cresceu.
Tudo é nada, e a nossa dor-nele.
Escrevo isto sob a opressão de um tédio que pareceo
caber em mim, ou precisar de mais que da minha alma para
ter onde estar; de uma opressão de todos e de tudo que me
estrangula e desvaira; de um sentimento físico da incom-
preensão alheia que me perturba e esmaga. Mas ergo a ca-
beça para ou azul alheio, exponho a face ao vento incons-
FERNANDO PESSOA
cientemente fresco, baixo as pálpebras depois de ter visto,
esqueço a face depois de ter sentido.o fico melhor, mas
fico diferente. Ver-me liberta-me de mim. Quase sorrio,o
porque me compreenda, mas porque, tendo-me tornado ou-
tro, me deixei de poder compreender. No alto do céu, como
um nada visível, uma nuvem pequeníssima é um esqueci-
mento branco do universo inteiro.
Ninguém ainda definiu, com linguagem com que com-
preendesse quem oo tivesse experimentado, o que é o-
dio. O a que uns chamam tédio,o é mais que aborreci-
mento; o que a outros o chamam,o é senão mal-estar; há
outros, ainda, que chamam tédio ao cansaço. Mas o tédio,
embora participe do cansaço, e do mal-estar, e do aborreci-
mento, participa deles como a água participa do hidrogênio
e oxigênio, de que se compõe. Inclui-os sem que a eles se
assemelhe.
Se unso assim ao tédio um sentido restrito e incom-
pleto, um ou outro lhe presta uma significação que em certo
modo o transcende como quando se chama tédio ao des-
gosto íntimo e espiritual da variedade e da incerteza do mun-
do. O que faz abrir a boca, que é o aborrecimento; o que faz
mudar de posição, que é o mal-estar; o que fazo se poder
mexer, que é o cansaço nenhuma destas coisas é o tédio;
mas também oo é o sentimento profundo da vacuidade das
coisas, pelo qual a aspiração frustrada se liberta, a ânsia desi-
ludida se ergue, e se forma na alma a semente, da qual nasce
o místico ou o santo.
O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar
de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tédio é, de-
veras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas. Mas
LIVRO DO DESASSOSSEGO
o tédio é, mais do que isto, o aborrecimento de outros mun-
dos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver,
ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro
mundo; o cansaço,o só de ontem e de hoje, mas de ama-
nhã também, (e) da eternidade, se a houver, (e) do nada, se é
ele que é a eternidade. Nem é só a vacuidade das coisas e dos
seres quei na alma quando ela está em tédio: é também a
vacuidade de outra coisa qualquer, queo as coisas e os
seres, a vacuidade da própria alma que sente o vácuo, que se
sente vácuo, e que nele de si se enoja e se repudia.
O tédio é a sensação física do caos, e de que o caos é
tudo. O aborrecido, o mal-estante, o cansado sentem-se pre-
sos numa cela estreita. O desgostoso da estreiteza da vida
sente-se algemado numa cela grande. Mas o que tem tédio
sente-se preso em liberdade frusta numa cela infinita. Sobre
o que se aborrece, ou tem mal-estar, ou fadiga, podem desa-
bar os muros da cela, e soterrá-lo. Ao que se desgosta da pe-
quenez do mundo, podem cair as algemas, e ele fugir; ou
doer de aso poder tirar, e ele, com sentir a dor, reviver-se
sem desgosto. Mas os muros da cela infinitao nos podem
soterrar, porqueo existem; nem nos podem sequer fazer
viver pela dor as algemas que ninguém nos pôs.
E é isto que eu sinto ante a beleza plácida desta tarde
que finda imperecivelmente. Olho ou alto e claro, onde
coisas vagas, róseas, como sombras de nuvens,o uma pe-
nugem impalpável de uma vida alada e longínqua. Baixo os
olhos sobre o rio, onde a água,o mais que levemente trê-
mula, é de um azul que parece espelhado de umu mais
profundo. Ergo de novo os olhos ao céu, e há, entre o que
de vagamente colorido se esfia sem farrapos no ar invisível,
um tom algendo de branco baço, como se alguma coisa tam-
m das coisas, ondeo mais altas e frustas, tivesse um
tédio material próprio, uma impossibilidade de ser o que é,
um corpo imponderável de angústia e de desolação.
FERNANDO PESSOA
Mas quê? Que há no ar alto mais que o ar alto, queo
é nada? que há nou mais que uma cor queo é dele? que
há nesses farrapos de menos que nuvens, de que já duvido,
mais que uns reflexos de luz materialmente incidentes de um
sol já submisso? Que há em tudo isto senão eu? Ah, mas o
tédio é isso, é só isso. E que em tudo isto céu, terra,
mundo, o que há em tudo istoo é senão eu!
Sossego enfim. Tudo quanto foi vestígio e desperdício
some-se-me da alma como seo fora nunca. Fico só e cal-
mo. A hora que passo é como aquela em que me convertesse
a uma religião. Nada porém me atrai para o alto, ainda que
nada já me atraia para baixo. Sinto-me livre, como se dei-
xasse de existir, conservando a consciência disso.
Sossego, sim, sossego. Uma grande calma, suave como
uma inutilidade, desce em mim ao fundo do meu ser. As-
ginas lidas, os deveres cumpridos, os passos e os acasos de
viver tudo isso se me tornou numa vaga penumbra, num
halo mal visível, que cerca qualquer coisa tranqüila queo
sei o que é. O esforço, em que pus, uma ou outra vez, o
esquecimento da alma; o pensamento, em que pus, uma vez
ou outra, o esquecimento da ação ambos se me volvem
numa espécie de ternura sem sentimento, de compaixão
frusta e vazia.
o é o dia lento e suave, nublado e brando.o é a
aragem imperfeita, quase nada, pouco mais do que o ar que
já se sente.o é a cor anônima dou aqui e ali azul, frou-
xamente. Não. Não, porqueo sinto. Vejo sem intenção
nem remédio. Assisto atento a espetáculo nenhum.o
sinto alma, mas sossego. As coisas externas, que estão níti-
das e paradas, ainda as que se movem,o para mim como
para o Cristo seria o mundo, quando, da altura de tudo, Satã
LIVRO DO DESASSOSSEGO
o tentou.o nada, e compreendendo que o Cristo seo
tentasse.o nada, eo compreendo como Satã, velho de
tanta paciência, julgasse que com isso tentaria.
Corre leve, vida que seo sente, riacho em silêncio
móbil sob árvores esquecidas! Corre branda, alma que seo
conhece, murmúrio que seo vê para além de grandes ra-
mos caídos! Corre inútil, corre sem razão, consciência que o
o é de nada, vago brilho ao longe, entre clareiras de folhas,
queo se sabe de onde vem nem onde vai! Corre, corre, e
deixa-me esquecer!
Vago sopro do queo ousou viver, hausto fruto do que
o pôde sentir, murmúrio inútil do queo quis pensar, vai
lento, vai frouxo, vai em torvelinhos que tens que ter e em
declives que te dão, vai para a sombra ou para a luz, irmão do
mundo, vai para a glória ou para o abismo, filho do Caos e da
Noite, lembrado ainda, em qualquer recanto teu, de que os
Deuses vieram depois, e de que os Deuses passam também.
Toda a vida da alma humana é um movimento na pe-
numbra. Vivemos, num lusco-fusco da consciência, nunca
certos com o que somos ou com o que nos supomos ser. Nos
melhores des vive a vaidade de qualquer coisa, e há um
erro cujo ânguloo sabemos. Somos qualquer coisa que se
passa no intervalo de um espetáculo; por vezes, por certas
portas, entrevemos o que talvezo seja senão cenário. Todo
o mundo é confuso, como vozes na noite.
Estas páginas em que registro com uma clareza que dura
para elas, agora mesmo as reli e me interrogo. Que é isto,
e para que é isto? Quem sou quando sinto? Que coisa morro
quando sou?
FERNANDO PESSOA
Como alguém que, de muito alto, tente distinguir as
vidas do vale, eu assim mesmo me contemplo de um cimo, e
sou, com tudo, uma paisagem indistinta e confusa.
É nestas horas de um abismo na alma que o mais pe-
queno pormenor me oprime como uma carta de adeus.
Sinto-me constantemente numa véspera de despertar,
sofro-me o invólucro de mim mesmo, num abafamento de
conclusões. De bom grado gritaria se a minha voz chegasse a
qualquer parte. Mas há um grande sono comigo, e desloca-se
de umas sensações para outras como uma sucessão de nu-
vens, das que deixam de diversas cores de sol e verde a relva
meio ensombrada dos campos prolongados.
Sou como alguém que procura ao acaso,o sabendo
onde foi oculto o objeto que lheo disseram o que é. Joga-
mos às escondidas com ninguém., algures, um subterfú-
gio transcendente, uma divindade fluida e só ouvida.
Releio, sim, estas páginas que representam horas po-
bres, pequenos sossegos ou ilusões, grandes esperanças des-
viadas para a paisagem, mágoas como quartos onde seo
entra, certas vozes, um grande cansaço, o evangelho por es-
crever.
Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o
seu esquecimento de que há outros com alma igual. A minha
vaidadeo algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas...
Releio? Menti!o ouso reler.o posso reler. De
que me serve reler? O que está ali é outro. Jáo com-
preendo nada...
E, hoje, pensando no que tem sido a minha vida, sinto-
me um qualquer bicho vivo, transportado num cesto de en-
curvar o braço, entre duas estações suburbanas. A imagem é
estúpida, porém a vida que defini é mais estúpida ainda do
que ela. Esses cestos costumam ter duas tampas, como meias
ovais, que se levantam um pouco em um ou outro dos ex-
tremos curvos se o bicho estrebucha. Mas o braço de quem
transporta, apoiado um pouco ao longo dos dobramentos cen-
trais,o deixa coisao débil erguer frustemente mais do
que as extremidades inúteis, como asas de borboleta que en-
fraquece.
Esqueci-me que falava de mim com a descrição do cesto.
Vejo-o nitidamente, e ao braço gordo e branco queimado da
criada que o transporta.o consigo ver a criada para além
do braço e a sua penugem.o consigo sentir-me bem senão
de repente uma grande frescura de (...) daqueles varais
brancos e nastros de (...) com que se tecem os cestos e onde
estrebucho, bicho, entre duas paragens que sinto. Entre elas
repouso no que parece ser um banco e falam lá fora do meu
cesto. Durmo porque sossego, até que me ergam de novo na
paragem.
A única maneira de teres sensações novas é construires-
te uma alma nova. Baldado esforço o teu se queres sentir
outras coisas sem sentires de outra maneira, e sentires-te de
outra maneira sem mudares de alma. Porque as coisaso
comos as sentimos há quanto tempo sabes tu isto sem
o saberes? — e o único modo de haver coisas novas, de sentir
coisas novas é haver novidade no senti-las.
Muda de alma como? Descobre-o tu.
Desde que nascemos até que morremos mudamos de
alma lentamente, como do corpo. Arranja meio de tornar
rápida essa mudança, como com certas doenças, ou certas
convalescenças, rapidamente o corpo se nos muda.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
FERNANDO PESSOA
o descer nunca a fazer conferências para queo se
julgue que temos opiniões, ou que descemos ao público para
falar com ele. Se ele quiser que nos leia.
De mais a mais o conferenciador semelha ator cria-
tura que o bom artista despreza, moço de esquina da Arte.
O homemo deve poder ver a sua própria cara. Isso é o
que há de mais terrível. A Natureza deu-lhe o dom deo a
poder ver, assim como deo poder fitar os seus próprios
olhos.
Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto.
E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era simbólica. Ti-
nha de se curvar, de se baixar para cometer a ignomínia de se
ver.
O criador do espelho envenenou a alma humana.
As cousas modernaso
(1) A evolução dos espelhos
(2) Os guarda-fatos
Passamos a ser criaturas vestidas, de corpo e
alma.
E, como a alma corresponde sempre ao corpo,
um traje espiritual estabeleceu-se. Passamos a ter a
alma essencialmente vestida, assim como passamos
homens, corpos à categoria de animais ves-
tidos.
o é só o fato de que o nosso traje se torna uma parte
de nós. É também a complicação desse traje e a sua curiosa
qualidade deo ter quase nenhuma relação com os elemen-
tos da elegância natural do corpo nem com as dos seus movi-
mentos.
Se me pedissem que explicasse o que é este meu estado
de alma, através de uma razão sensível, eu responderia mu-
damente apontando para um espelho, para um cabide e para
uma caneta com tinta.
O entusiasmo é uma grosseria.
A expressão do entusiasmo é, mais do que tudo, uma
violação dos direitos da nossa insinceridade.
Nunca sabemos quando somos sinceros. Talvez nunca
o sejamos. E mesmo que sejamos sinceros hoje, amanhã po-
demos sê-lo por coisa contrária.
Por mimo tive convicções. Tive sempre impressões.
Nunca poderia odiar uma terra em que eu houvesse visto um
poente escandaloso.
Exteriorizar impressões é mais persuadirmo-nos de que
as temos do que termo-las.
Foi sempre com desgosto que li no diário de Amiel as
referências que lembram que ele publicou livros. A figura
quebra-se ali. Seo fora isso, que grande!
O diário de Amiel doeu-me sempre por minha causa.
Quando cheguei àquele ponto em que ele diz que sobre
ele desceu o fruto do espírito como sendo "a consciência da
consciência'', senti uma referência direta à minha alma.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
4
O sonho
tem grandes cinemas
O que há de mais reles nos sonhos é que todos os têm.
Em qualquer coisa pensa no escuro o moço de fretes que
modorra de dia contra o candeeiro o intervalo dos carretos.
Sei em que entrepensa: é no mesmo em que eu me abismo
entre lançamento e lançamento no tédio estivai do escritório
quietíssimo.
Tenho mais pena dos que sonham o provável, o legí-
timo e o próximo, do que dos que devaneiam sobre o longín-
quo e o estranho. Os que sonham grandemente, ouo doi-
dos e acreditam no que sonham eo felizes, ouo devanea-
dores simples, para quem o devaneio é uma música da alma,
que os embala sem lhes dizer nada. Mas o que sonha o pos-
sível tem a possibilidade real da verdadeira desilusão.o
me pode pesar muito o ter deixado de ser imperador romano,
mas pode doer-me o nunca ter sequer falado à costureira que,
cerca das nove horas, volta sempre à esquina da direita. O
sonho que nos promete o impossível já nisso nos priva dele,
mas o sonho que nos promete o possível intromete-se com a
própria vida e delega nela a sua solução. Um vive exclusivo e
independente; o outro submisso das contingências do que
acontece.
Por isso amo as paisagens impossíveis e as grandes áreas
FERNANDO PESSOA
desertas dos plainos onde nunca estarei. As épocas históricas
passadaso de pura maravilha, pois desde logoo posso
supor que se realizarão comigo. Durmo quando sonho o que
o; vou despertar quando sonho o que pode haver.
Debruço-me, de uma das janelas de sacada do escritório
abandonado ao meio-dia, sobre a rua onde a minha distração
sente movimentos de gente nos olhos, e oso, da dis-
tância da meditação. Durmo sobre os cotovelos onde o corri -
o me dói, e sei de nada com um grande prometimento. Os
pormenores da rua parada onde muitos andam destacam-se-
me com um afastamento mental: os caixotes apinhados na
carroça, os sacos à porta do armazém do outro, e, na montra
mais afastada da mercearia da esquina, o vislumbre das gar-
rafas daquele vinho do Porto que sonho que ninguém pode
comprar. Isola-se-me o espírito de metade da matéria. Inves-
tigo com a imaginação. A gente que passa na rua é sempre a
mesma que passou há pouco, é sempre o aspecto flutuante de
alguém, nódoas de movimento, vozes de incerteza, coisas
que passam eo chegam a acontecer.
A notação com a consciência dos sentidos, antes que
com os mesmos sentidos... A possibilidade de outras coi-
sas... E, de repente, soa, de trás de mim no escritório, a
vinda metafisicamente abrupta do moço. Sinto que o poderia
matar por me interromper o que euo estava pensando.
Olho-o, voltando-me, com um silêncio cheio de ódio, escuto
antecipadamente, numa tensão de homicídio latente, a voz
que ele vai usar para me dizer qualquer coisa. Ele sorri do
fundo da casa e dá-me as boas tardes em voz alta. Odeio-o
como ao universo. Tenho os olhos pesados de supor.
Quando durmo muitos sonhos, venho para a rua, de
olhos abertos, ainda com o rastro e a segurança deles. E
LIVRO DO DESASSOSSEGO
pasmo do automatismo meu com que os outros me desco-
nhecem. Porque atravesso a vida quotidiana sem largar a
o da ama astral, e os meus passos na ruao concordes e
consoantes com obscuros desígnios da imaginação de dor-
mir. E na rua vou certo;o cambaleio; respondo bem;
existo.
Mas, quando há um intervalo, eo tenho que vigiar o
curso da minha marcha, para evitar veículos ouo estorvar
peões, quandoo tenho que falar a alguém, nem me pesa a
entrada para uma porta próxima, largo-me de novo nas águas
do sonho, como um barco de papel dobrado em bicos, e de
novo regresso à ilusão mortiça que me acalentara a vaga
consciência da manhã nascendo entre o som dos carros que
hortaliçam.
E então, em plena vida, é que o sonho tem grandes ci-
nemas. Desço uma rua irreal da Baixa e a realidade das vidas
queoo ata-me, com carinho, a cabeça num trapo branco
de reminiscências falsas. Sou navegador num desconheci-
mento de mim. Venci tudo onde nunca estive. E é uma brisa
nova esta sonolência com que posso andar, curvado para a
frente numa marcha sobre o impossível.
Cada qual tem o seu álcool. Tenho álcool bastante em
existir. Bêbado de me sentir, vagueio e ando certo. Seo
horas, recolho ao escritório como qualquer outro. Seoo
horas, vou até ao rio fitar o rio, como qualquer outro. Sou
igual. E por trás disso,u meu, constelo-me às escondidas e
tenho o meu infinito.
Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez
com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteli-
gência que há nessa estupidez.
A monotonia das vidas vulgares é, aparentemente, pa-
vorosa. Estou almoçando neste restaurante vulgar e olho,
para além do balcão para a figura do cozinheiro, e, aqui ao pé
de mim, para o criado já velho que me serve, como há trinta
anos, creio, serve nesta casa. Que vidaso as destes ho-
mens? Há quarenta anos que aquela figura de homem vive
quase todo o dia numa cozinha; tem umas breves folgas; dor-
me relativamente poucas horas; vai de vez em quando á ter-
ra, de onde volta sem hesitação e sem pena; armazena len-
tamente dinheiro lento, que seo propõe gastar; adoeceria
se tivesse que retirar-se da sua cozinha (definitivamente)
para os campos que comprou na Galiza; está em Lisboa há
quarenta anos e nunca foi sequer à Rotunda, nem a um tea-
tro, e há um só dia de Coliseu palhaços nos vestígios inte-
riores da sua vida. Casouo sei como nem porquê, tem
quatro filhos e uma filha, e o seu sorriso, ao debruçar-se de lá
do balcão em direção a onde eu estou, exprime uma grande,
uma solene, uma contente felicidade. E eleo disfarça, nem
que [tem?] razão para que disfarce. Se a sente é porque ver-
dadeiramente a tem.
E o criado velho que me serve, e que acaba de depor
ante mim o que deve ser o milionésimo café da sua deposição
de café em mesas? Tem a mesma vida que a do cozinheiro,
apenas com a diferença de quatro ou cinco metros os que
distam da localização de um na cozinha para a localização do
outro na parte de fora da casa de pasto. No resto, tem dois
filhos apenas, vai mais vezes à Galiza, já viu mais Lisboa que
o outro, e conhece o Porto, onde esteve quatro anos, e é
igualmente feliz.
Revejo, com um pasmo assustado, o panorama destas
vidas, e descubro, ao ir ter horror, pena, revolta delas, que
quemo tem nem horror, nem pena, nem revolta,o os
próprios que teriam direitos a tê-las,o os mesmos que vi-
FERNANDO PESSOA
vem essas vidas. É o erro central da imaginação literária:
supor que os outrosos e que devem sentir como nós.
Mas, felizmente para a humanidade, cada homem é só quem
é, sendo dado ao gênio, apenas, o ser mais alguns outros.
Tudo, afinal, é dado em relação àquilo em que é dado.
Um pequeno incidente de rua, que chama à porta o cozi-
nheiro desta casa, entretém-o mais que me entretém a mim a
contemplação da idéia mais original, a leitura do melhor li-
vro, o mais grato dos sonhos inúteis. E, se a vida é essencial-
mente monotonia, o fato é que ele escapou à monotonia mais
do que eu. E escapa à monotonia mais facilmente do que eu.
A verdadeo está com ele nem comigo, porqueo está
com ninguém; mas a felicidade está com ele deveras.
Sábio é quem monotoniza a existência, pois então cada
pequeno incidente tem um privilégio de maravilha. O caça-
dor de leõeso tem aventura para além do terceiro leão.
Para o meu cozinheiro monótono uma cena de bofetadas na
rua tem sempre qualquer coisa de apocalipse modesto. Quem
nunca saiu de Lisboa viaja ao infinito no carro até Benfica, e,
se um dia vai a Cintra, sente que viajou até Marte. O via-
jante que percorreu toda a terrao encontra de cinco mil
milhas em diante novidade, porque encontra só coisas novas;
outra vez a novidade, a velhice do eterno novo, mas o con-
ceito abstrato de novidade ficou no mar com a segunda delas.
Um homem pode, se tiver a verdadeira sabedoria, gozar
o espetáculo inteiro do mundo numa cadeira, sem saber ler,
sem falar com alguém, só com o uso dos sentidos e a alma
o saber ser triste.
Monotonizar a existência, para que elao seja monó-
tona. Tornar anódino o quotidiano, para que a mais pequena
coisa seja uma distração. No meio do meu trabalho de todos
os dias, baço, igual e inútil, surgem-me visões de fuga, ves-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
FERNANDO PESSOA
tígios sonhados de ilhas longínquas, festas em aléias de par-
ques de outras eras, outras paisagens, outros sentimentos,
outro eu. Mas reconheço, entre dois lançamentos, que se
tivesse tudo isso, nada disso seria meu. Mais vale, na ver-
dade, o patrão Vasquesque os Reis de Sonho; mais vale, na
verdade, o escritório da Rua dos Douradores do que as gran-
des aléias dos parques impossíveis. Tendo o patrão Vasques,-
posso gozar o sonho dos Reis de Sonho; tendo o escritório da
Rua dos Douradores, posso gozar a visão interior das paisa-
gens queo existem. Mas se tivesse os Reis de Sonho, que
me ficaria para sonhar? Se tivesse as paisagens impossíveis,
que me restaria de impossível?
A monotonia, a igualdade baça dos dias mesmos, a ne-
nhuma diferença de hoje para ontem isto me fique sem-
pre, com a alma desperta para gozar da mosca que me distrai,
passando casual ante meus olhos, da gargalhada que se ergue
volúvel da rua incerta, a vasta libertação de serem horas de
fechar o escritório, o repouso infinito de um dia feriado.
Posso imaginar-me tudo, porqueo sou nada. Se fosse
alguma coisa,o poderia imaginar. O ajudante de guarda-
livros pode sonhar-se imperador romano; o Rei de Inglaterra
o o pode fazer, porque o Rei de Inglaterra está privado de
ser, em sonhos, outro rei queo o rei que é. A sua reali-
dadeo o deixa sentir.
Cada vez que o meu propósito se ergueu, por influência
de meus sonhos, acima do nível quotidiano da minha vida, e
um momento me senti alto, como a criança num balouço,
cada vez dessas tive que descer como ela ao jardim munici-
pal, e conhecer a minha derrota sem bandeiras levadas para a
guerra nem espada que houvesse força para desembainhar.
Suponho que a maioria daqueles, com que cruzo no
acaso das ruas, traz consigo noto-lho no movimento si-
lencioso dos beiços e na indecisão indistinta dos olhos ou no
altear da voz com que rezam juntos uma igual projeção
para a guerra inútil do exército sem pendões. E todos viro-
me para trás a contemplar os seus dorsos de vencidos pobres
terão, como eu, a grande derrota vil, entre os limos e os
juncos, sem luar sobre as margens nem poesia de pauis, mi-
serável e marçana.
Todos têm, como eu, um coração exaltado e triste. Co-
nheço-os bem: unso moços de lojas, outroso emprega-
dos de escritório, outroso comerciantes de pequenos co-
mércios; outroso os vencedores dos cafés e das tascas, glo-
riosos sem saberem no êxtase da palavra egotista, [...].Mas
todos, coitados,o poetas e arrastam, a meus olhos, como
eu aos olhos deles, a igual miséria da nossa comum incon-
gruência.m todos, como eu, o futuro no passado.
Agora mesmo, que estou inerte no escritório, e foram
todos almoçar salvo eu, fito, através da janela baça, o velho
oscilante que percorre lentamente o passeio do outro lado da
rua.o vai bêbado; vai sonhador. Está atento ao inexis-
tente; talvez ainda espere. Os Deuses, seo justos em sua
injustiça, nos conservem os sonhos ainda quando sejam im-
possíveis, e nos dêem bons sonhos, ainda que sejam baixos.
Hoje, queo sou velho ainda, posso sonhar com ilhas do
Sul e com índias impossíveis; amanhã talvez me seja dado
pelos mesmos Deuses, o sonho de ser dono de uma tabacaria
pequena, ou reformado numa casa dos arredores. Qualquer
dos sonhos é o mesmo sonho, porqueo todos sonhos. Mu-
dem-me os Deuses os sonhos, maso o dom de sonhar.
No intervalo de pensar isto, o velho saiu-me da atenção.
Já oo vejo. Abro a janela para o ver.o o vejo ainda.
Saiu. Teve, para comigo, o dever visual de símbolo; acabou e
LIVRO DO DESASSOSSEGO
FERNANDO PESSOA
virou a esquina. Se me disserem que virou a esquina abso-
luta, e nunca esteve aqui, aceitarei com o mesmo gesto corn
que fecho a janela agora.
Conseguir?...
Pobres semideuses marçanos que ganham impérios com
a palavra e a intenção nobre em necessidade de dinheiro
com o quarto e a comida! Parecem as tropas de um exército
desertado cujos chefes houvessem um sonho de glória, de
que a estes, perdidos entre os limos de pauis, fica só a noção
de grandeza, a consciência de ter sido do exército, e o vácuo
de nem ter sabido o que fazia o chefe que nunca viram.
Assim cada um se sonha, um momento, o chefe do
exército de cuja cauda fugiu. Assim cada um, entre a lama
dos ribeiros, saúda a vitória que ninguém pôde ter, e de que
ficou como migalhas entre nódoas na toalha que se esque-
ceram de sacudir.
Enchem os interstícios da ação quotidiana como o pó
os interstícios dos móveis quandooo limpos com cui-
dado. Na luz vulgar do dia comum vêem-se a luzir como
vermes cinzentos contra o mogno avermelhado. Tiram-se
com um prego pequeno. Mas ninguém tem pressa [?] para
os tirar.
Meus pobres companheiros que sonham alto como os
invejo e desprezo! Comigo estão os outros os mais pobres,
os queom senão a si mesmos a quem contar os sonhos e
fazer o que seriam versos se eles os escrevessem os pobres-
diabos sem mais literatura que a própria alma, [...] que mor-
rem asfixiados pelo fato de existirem [...]
Unso heróis e prostram cinco homens a uma esquina
de ontem. Outroso sedutores e até as mulheres inexisten-
tes lheso ousaram resistir. Crêem isto quando o dizem e
LIVRO DO DESASSOSSEGO
todos os dizem porque o crêem. Outros (...) Para todos eles
os vencidos do mundo, porque quem sejamo gente.
E todos como enguias num alguidar, se enrolam entre
eles e se cruzam uns acima dos outros e nem saem dos algui-
dares. Às vezes falam deles os jornais [...] mas a fama nunca.
Esseso os felizes porque lhes é dado o sonho [...] da
estupidez. Mas aos que, como eu,m sonhos sem ilusões
(...)
Quem quisesse fazer um catálogo de monstros,o te-
ria mais que fotografar em palavras aquelas coisas que a noite
traz às almas sonolentas queo conseguem dormir. Essas
coisasm toda a incoerência do sonho sem a desculpa in-
cógnita de se estar dormindo. Pairam como morcegos sobre
a passividade da alma, ou vampiros que suguem o sangue da
submissão.
o larvas do declive e do desperdício, sombras que en-
chem o vale, vestígios que ficam do destino. Umas vezeso
vermes, nauseantes à própria alma que os afaga e cria; outras
vezeso espectros, e rondam sinistramente coisa nenhuma;
outras vezes ainda, emergem, cobras, dos recôncavos absur-
dos das emoções perdidas.
Lastro do falso,o servem senão para queo sirva-
mos.o dúvidas do abismo, deitadas na alma, arrastando
dobras sonolentas e frias. Duram fumos, passam rastros, e
o há mais que o haverem sido na substância estéril de ter
tido consciência deles. Um ou outro é como uma peça íntima
de fogo de artifício: faísca-se um tempo entre sonhos, e o
resto é a inconsciência da consciência com que o vimos.
Nastro desatado, a almao existe em si mesma. As
grandes paisagenso para amanhã, es já vivemos. Fa-
lhou a conversa interrompida. Quem diria que a vida havia
de ser assim?
Perco-me se me encontro, duvido se acho,o tenho se
obtive. Como se passeasse, durmo, mas estou desperto.
Como se dormisse, acordo, eo me pertenço. A vida, afi-
nal, é, em si mesma, uma grande insônia, e há um estremu-
nhamento lúcido em tudo quanto pensamos e fazemos.
Seria feliz se pudesse dormir. Esta opinião é deste mo-
mento, porqueo durmo. A noite é um peso imenso por
trás do afogar-me com o cobertor mudo do que sonho. Te-
nho uma indigestão na alma.
Sempre, depois de depois, virá o dia, mas será tarde,
como sempre. Tudo dorme e é feliz, menos eu. Descanso um
pouco, sem que ouse que durma. E grandes cabeças de mons-
tros sem ser emergem confusas do fundo de quem sou.o
dragões do Oriente do abismo, com línguas encarnadas de
fora da lógica, com olhos que fitam sem vida a minha vida
morta que oso fita.
A tampa, por amor de Deus, a tampa! Concluam-me a
inconsciência e vida! Felizmente, pela janela fria, de portas
desdobradas para trás, um fio triste de luz pálida começa a
tirar a sombra do horizonte. Felizmente, o que vai raiar é o
dia. Sossego, quase, do cansaço do desassossego. Um galo
canta, absurdo, em plena cidade. O dia lívido começa no meu
vago sono. Alguma vez dormirei. Um ruído de rodas faz
carroça. Minhas pálpebras dormem, maso eu. Tudo, en-
fim, é o Destino.
FERNANDO PESSOA
A vida é paras o que concebemos nela. Para o rústico
cujo campo próprio lhe é tudo, esse campo é um império.
Para o César cujo império lhe ainda é pouco, esse império é
um campo. O pobre possui um império; o grande possui um
campo. Na verdade,o possuímos mais que as nossas pró-
prias sensações; nelas, pois, queo no que elas vêem, te-
mos que fundamentar a realidade da nossa vida.
Istoo vem a propósito de nada.
Tenho sonhado muito. Estou cansado de ter sonhado,
porémo cansado de sonhar. De sonhar ninguém se cansa,
porque sonhar é esquecer, e esquecero pesa e é um sonho
sem sonhos em que estamos despertos. Em sonhos consegui
tudo. Também tenho despertado, mas que importa? Quan-
tos Césares fui! E os gloriosos, que mesquinhos! César, salvo
da morte pela generosidade de um pirata, manda crucificar
esse pirata logo que, procurando-o bem, o consegue prender.
Napoleão, fazendo seu testamento em Santa Helena, deixa
um legado a um facínora que tentara assassinar a Wellington.
Ó grandezas iguais às da alma da vizinha vesga! O grandes
homens da cozinheira de outro mundo! Quantos Césares fui,
e, sonho todavia ser [?].
Quantos Césares fui, maso dos reais. Fui verdadeira-
mente imperial enquanto sonhei, e por isso nunca fui nada.
Os meus exércitos foram derrotados, mas a derrota foi fofa,
e ninguém morreu.o perdi bandeiras.o sonhei até ao
ponto do exército, onde elas aparecessem ao meu olhar em
cujo sonho há esquina. Quantos Césares fui, aqui mesmo, na
Rua dos Douradores. E os Césares que fui vivem ainda na
minha imaginação; mas os Césares que foram estão mortos,
e a Rua dos Douradores, isto é, a Realidade,o os pode
conhecer.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Atiro com a caixa de fósforos, que está vazia, para o
abismo que a rua é para além do parapeito da minha janela
alta sem sacada. Ergo-me na cadeira e escuto. Nitidamente,
como se significasse qualquer coisa, a caixa de fósforos vazia
soa na rua que [se] me declara deserta.o há mais som
nenhum, salvo os da cidade inteira. Sim, os da cidade dum
domingo inteiro tantos, sem se entenderem, e todos
certos.
Quão pouco, no mundo real, forma o suporte das me-
lhores meditações. O ter chegado tarde para almoçar, o te-
rem-se acabado os fósforos, o ter eu atirado, individual-
mente, a caixa para a rua, mal disposto por ter comido fora
de horas, ser domingo a promessa aérea de um poente mau,
oo ser ninguém no mundo, e toda a metafísica.
Mas quantos Césares fui!
Na perfeição nítida do dia estagna contudo o ar cheio de
sol.o é a pressão presente da trovoada futura, mal-estar
dos corpos involuntários, vago baço dou azul deveras. É o
torpor sensível da insinuação do ócio, pluma roçando leve a
face a adormecer. É estio mas verão. Apetece o campo até a
quemo gosta dele.
Se eu fora outro, penso, este seria para mim um dia
feliz, pois o sentiria sem pensar nele. Concluiria com uma
alegria de antecipação o meu trabalho normal aquele que
me é monotonamente anormal todos os dias. Tomaria o car-
ro para Benfica, com amigos combinados. Jantaríamos em
pleno fim de sol, entre hortas. A alegria em que estaríamos
seria parte da paisagem, e por todos, quantos nos vissem, re-
conhecida como de ali.
FERNANDO PESSOA
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Como, porém, sou eu, gozo um pouco o pouco que é
imaginar-me esse outro. Sim, logo ele eu, sob parreira ou
árvore, comerá o dobro do que sei comer, bebera o dobro do
que ouso beber, rirá o dobro do que posso pensar em rir.
Logo ele, eu agora. Sim, um momento fui outro: vi, vivi, em
outrem, essa alegria humilde e humana de existir como ani-
mal em mangas de camisa. Grande dia que me fez sonhar
assim! É tudo azul e sublime no alto como o meu sonho efê-
mero de ser caixeiro de praça com saúde emo sei que-
rias de fim de dia.
Quando o estio entra entristeço. Parece que a luminosi-
dade, ainda que acre, das horas estivais deverá acarinhar
quemo sabe quem é. Mas não, a mimo me acarinha.
Há um contraste demasiado entre a vida externa que exubera
e o que sinto e penso, sem saber sentir nem pensar — o ca-
dáver perenemente insepulto das minhas sensações. Tenho a
impressão de que vivo, nesta pátria informe chamada o uni-
verso, sob uma tirania política que, ainda que meo oprima
diretamente, todavia ofende qualquer oculto princípio da mi-
nha alma. E então desce em mim, surdamente, lentamente,
a saudade antecipada do exílio impossível.
Tenho principalmente sono.o um sono que traz la-
tente, como todos os sonos, ainda os mórbidos, o privilégio
físico do sossego.o um sono que, porque vai esquecer a
vida, e porventura trazer sonhos, traz na bandeja com que
nos vem até a alma as oferendas plácidas de uma grande
abdicação. Não: este é um sono queo consegue dormir,
que pesa nas pálpebras sem as fechar, que junta num gesto
que se sente ser de estupidez e repulsa as comissuras sentidas
dos beiços descrentes. Este é um sono como o que pesa inu-
tilmente sobre o corpo nas grandes insônias da alma.
FERNANDO PESSOA
Só quando vem a noite, de algum modo sinto,o uma
alegria, mas um repouso que, por outros repousos serem
contentes, se sente contente por analogia dos sentidos. Então
o sono passa, a confusão do lusco-fusco mental, que esse
sono dera, esbate-se, esclarece-se, quase se ilumina. Vem,
um momento, a esperança de outras coisas. Mas essa espe-
rança é breve. O que sobrevém é um tédio sem sono nem es-
perança, o mau despertar de quemo chegou a dormir. E
da janela do meu quarto fito, pobre alma cansada de corpo,
muitas estrelas; muitas estrelas, nada, o nada, mas muitas
estrelas...
Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens ha-
viam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os
seus maiores a haviam tido sem saber por quê. E então,
porque o espírito humano tende naturalmente para criticar
porque sente, eo porque pensa, a maioria desses jovens
escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço,
porém, aquela espécie de homens que estão sempre na mar-
gem daquilo a que pertencem, nem vêem só a multidão de
que são, senão também os grandes espaços que há ao lado.
Por isso nem abandonei Deuso amplamente como eles,
nem aceitei nunca a Humanidade. Considerei que Deus,
sendo improvável, poderia ser; podendo pois dever ser ado-
rado; mas que a Humanidade, sendo uma mera idéia bioló-
gica, eo significando mais que a espécie humana,o era
mais digna de adoração do que qualquer outra espécie ani-
mal. Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade
e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cul-
tos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses
tinham cabeças de animais.
Assim,o sabendo crer em Deus, eo podendo crer
numa soma de animais, fiquei, como outros da orla das gen-
LIVRO DO DESASSOSSEGO 227
tes, naquela distância de tudo a que comumente se chama a
Decadência. A Decadência é a perda total da inconsciência;
porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração,
se pudesse pensar, pararia.
A quem, como eu, assim, vivendoo sabe ter vida,
que resta senão, como a meus poucos pares, a renúncia por
modo e a contemplação por destino?o sabendo o que é a
vida religiosa, nem podendo sabê-lo, porque seo tem fé
com a razão;o podendo ter fé na abstração do homem,
nem sabendo mesmo que fazer dela perante nós, ficava-nos,
como motivo de ter alma a contemplação estética da vida. E,
assim, alheios à solenidade de todos os mundos, indiferentes
ao divino e desprezadores do humano, entregamo-nos futil-
mente à sensação sem propósito, cultivada num epicurismo,
sutilizado, como convém aos nossos nervos cerebrais.
Retendo, da ciência, somente aquele seu preceito cen-
tral, de que tudo é sujeito a leis fatais, contra as quais seo
reage independentemente, por que reagir é elas terem feito
que reagíssemos; e verificando como esse preceito se ajusta
ao outro, mais antigo, da divina fatalidade das coisas, abdica-
mos do esforço como os débeis do entretenimento dos atle-
tas, e curvamo-no sobre o livro das sensações com um gran-
de escrúpulo de erudição sentida.
o tomando nada a sério, nem considerando que nos
fosse dada, por certo, outra realidade queo as nossas sen-
sações, nelas nos abrigamos, e a elas exploramos como a
grandes países desconhecidos. E, se nos empregamos assi-
duamente,o só na contemplação estética, mas também na
expressão dos seus modos e resultados, é que a prosa ou o
verso que escrevemos, destituídos de vontade de querer con-
vencer o alheio entendimento ou mover a alheia vontade, é
apenas como o falar alto de quem, feito para dar plena ob-
jetividade ao prazer subjetivo da leitura.
Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita, e
que a menos segura das nossas contemplações estéticas será a
de aquilo que escrevemos. Mas imperfeito é tudo, nem há
poenteo belo que oo pudesse ser mais, ou brisa leve que
nos dê sono queo pudesse dar-nos um sono mais calmo
ainda. E assim, contempladores iguais das montanhas e das
estátuas, gozando os dias como os livros, sonhando tudo, so-
bretudo, para o converter na nossa íntima substância, fare-
mos também descrições e análises, que, uma vez feitas, pas-
sarão a ser coisas alheias, que podemos gozar como se vies-
sem na tarde.
o é este o conceito dos pessimistas, como aquele de
Vigny, para quem a vida é uma cadeia, onde ele tecia palha
para se distrair. Ser pessimista é tomar qualquer coisa como
trágico, e essa atitude é um exagero e um incômodo.o
temos, é certo, um conceito de valia que apliquemos à obra
que produzimos. Produzimo-la, é certo, para nos distrair,
porémo como o preso que tece a palha, para se distrair do
Destino, senão da menina que borda almofadas, para se dis-
trair, sem mais nada.
Considero a vida uma estalagem onde tenho que me de-
morar até que chegue a diligência do abismo.o sei onde
ela me levará, porqueo sei nada. Poderia considerar esta
estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar
nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui
me encontro com outros.o sou, porém, nem impaciente
nem comum. Deixo ao queo os que se fecham no quarto,
deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao
que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e
as vozes chegam cômodas até mim. Sento-me à porta e em-
bebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem,
e canto lento, para mim, vagos cantos que componho en-
quanto espero.
FERNANDO PESSOA
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Para todoss descerá a noite e chegará a diligência.
Gozo a brisa que meo e a alma que me deram para gozá-
la, eo interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito
nolivros dos viajantes puder, relido um dia por outros, en-
tretê-los também na passagem, será bem. Seo o lerem,
nem se entretiverem, será bem também.
Quando nasceu a geração, a que pertenço, encontrou o
mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao
mesmo tempo coração. O trabalho destrutivo das gerações
anteriores fizera que o mundo, para o qual nascemos,o
tivesse segurança que nos dar na ordem religiosa, esteio que
nos dar na ordem moral, tranqüilidade que nos dar na ordem
política. Nascemos já em plena angústia metafísica, em plena
angústia moral, em pleno desassossego político. Ebrias das
fórmulas externas, dos meros processos da razão e da ciên-
cia, as gerações, que nos precederam, aluíram todos os fun-
damentos da fé cristã, porque a sua crítica bíblica, subindo de
crítica dos textos a crítica mitológica, reduziu os evangelhos
e a anterior hierografia dos judeus a um amontoado incerto
de mitos, de legendas e de mera literatura; e a sua crítica
científica gradualmente apontou os erros, as ingenuidades
selvagens da ' 'ciência'' primitiva dos evangelhos; e, ao mes-
mo tempo, a liberdade de discussão, ques em praça todos
os problemas metafísicos, arrastou com eles os problemas
religiosos onde fossem da metafísica. Ébrias de uma coisa in-
certa, a que chamaram "positividade", essas gerações criti-
caram toda a moral, esquadrinharam todas as regras de vi-
ver, e, de tal choque de doutrinas, só ficou a certeza de ne-
nhuma, e a dor deo haver essa certeza. Uma sociedade
assim indisciplinada nos seus fundamentos culturaiso po-
dia, evidentemente, ser senão vítima, na política, dessa indis-
ciplina; e assim foi que acordamos para um mundo ávido de
novidades sociais, e com alegria ia à conquista de uma liber-
dade queo sabia o que era, de um progresso que nunca
definira.
Mas o criticismo frusto dos nossos pais, se nos legou a
impossibilidade de ser cristãos,o nos legou o contenta-
mento com que a tivéssemos; se nos legou a descrença nas
fórmulas morais estabelecidas,o nos legou á indiferença à
moral e às regras de viver humanamente; se deixou incerto o
problema político,o deixou indiferente o nosso espírito a
como esse problema se resolvesse. Nossos pais destruíram
contentemente porque viviam em uma época que tinha ain-
da reflexos da solidez do passado. Era aquilo mesmo que eles
destruíam, que dava força à sociedade, para que pudessem
destruir sem sentir o edifício rachar-se.s herdamos a des-
truição e os seus resultados.
Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos
insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar con-
quista-se hoje quase pelos mesmos processos, por que se con-
quista o intemamento num manicômio: a incapacidade de
pensar, a amoralidade, e a hiperexcitação.
Pertenço a uma geração que herdou a descrença na fé
cristã e que criou em si uma descrença em todas as outras
fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que trans-
feriam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns
eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamora-
dos só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus
proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda, iam bus-
car a Orientes e Ocidentes outras formas religiosas, com que
entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente
viver.
Tudo issos perdemos, de todas essas consolações nas-
cemos órfãos. Cada civilização segue a linha íntima de uma
FERNANDO PESSOA
LIVRO DO DESASSOSSEGO
religião que a representa: passar para outras regiões é perder
essa, e por fim perdê-las a todas.
s perdemos essa, e às outras também.
Ficamos, pois, cada um entregue a si-próprio, na deso-
lação de se sentir viver. Um barco parece ser um objeto cujo
fim é navegar; mas o seu fimo é navegar, senão chegar a
um porto.s encontramo-nos navegando, sem a idéia do
porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim,
na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas:
navegar é preciso, vivero é preciso.
Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de
quemo pode ter ilusões. Vivendo des próprios, dimi-
nuímo-nos, porque o homem completo é o homem que se
ignora. Sem,o temos esperança, e sem esperançao
temos propriamente vida.o tendo uma idéia do futuro,
tambémo temos uma idéia de hoje, porque o hoje, para o
homem de ação,o é senão um prólogo do futuro. A ener-
gia para lutar nasceu morta conosco, porques nascemos
sem o entusiasmo da luta.
Uns des estagnaram na conquista alvar do quotidia-
no, reles e baixos buscando oo de cada dia, e querendo
obtê-lo sem o trabalho sentido, sem a consciência do esforço,
sem a nobreza do conseguimento.
Outros, de melhor estirpe, abstivemo-nos da coisa-
blica, nada querendo e nada desejando, e tentando levar até
ao calvário do esquecimento a cruz de simplesmente existir-
mos. Impossível esforço, em que[m]o tem, como o por-
tador da Cruz, uma origem divina na consciência.
Outros entregaram-se, atarefados por fora da alma, ao
culto da confusão e do ruído, julgando viver quando se ou-
viam, crendo amar quando chocavam contra as exteriorida-
des do amor. Viver doía-nos, porque sabíamos que estáva-
mos vivos; morrero nos aterrava porque tínhamos per-
dido a noção normal da morte.
Mas outros, Raça do Fim, limite espiritual da Hora
Morta, nem tiveram a coragem da negação e do asilo em
FERNANDO PESSOA
si-próprios. O que viveram foi em negação, em descon-
tentamento e em desconsolo. Mas vivemo-lo de dentro,
sem gestos, fechados sempre, pelo menos no gênero de vida,
entre as quatro paredes do quarto e os quatro muros deo
saber agir.
Tenho sido sempre um sonhador irônico, infiel às pro-
messas interiores. Gozei sempre, como outros e estrangeiro,
as derrotas dos meus devaneios, assistente casual ao que pen-
sei ser. Nunca dei crença àquilo em que acreditei. Enchi as
mãos de areia, chamei-lhe ouro, e abri as mãos dela toda,
escorrente. A frase fora a única verdade. Com a frase dita
estava tudo feito; o mais era a areia que sempre fora.
Seo fosse o sonhar sempre, o viver num perpétuo
alheamento, poderia, de bom grado, chamar-me um realista,
isto é, um indivíduo para quem o mundo exterior é uma
nação independente. Mas prefiroo me dar nome, ser o que
sou com uma certa obscuridade e ter comigo a malícia de me
o saber prever.
Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois,
o sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador
de mim mesmo, tenho que ter o melhor espetáculo que pos-
so. Assim me construo a ouro e sedas, em salas supostas,
palco falso, cenário antigo, sonho criado entre jogos de luzes
brandas e músicas invisíveis.
Guardo, íntima, como a memória de um beijo grato, a
lembrança de infância de um teatro em que o cenário azulado
e lunar representava o terraço de um palácio impossível. Ha-
via, pintado também, um parque vasto em roda, e gastei a
alma em viver como real aquilo tudo. A música, que soava
branda nessa ocasião mental da minha experiência da vida,
trazia para real de febre esse cenário dado.
O cenário era definitivamente azulado e lunar. No palco
o me lembro quem aparecia, mas a peça que ponho na pai-
sagem lembrada, sai-me hoje dos versos de Verlaine e de
Pessanha;o era a que deslembro, passada no palco vivo
aquém daquela realidade de azul música. Era minha e fluida,
(a) mascarada imensa e lunar, (o) interlúdio de prata e azul
findo.
Depois veio a vida. Nessa noite levaram-me a cear ao
Leão. Tenho ainda a memória dos bifes no paladar da sau-
dade bifes, sei ou suponho, como hoje ninguém faz ou eu
o como. E tudo se me mistura infância, vivida à distân-
cia, comida saborosa de noite, cenário lunar, Verlaine futuro
e eu presente numa diagonal difusa, num espaço falso
entre o que fui e o que sou.
Tudo quantoo é a minha alma é para mim, por mais
que eu queira que oo seja,o mais que cenário e decora-
ção. Um homem, ainda que eu possa reconhecer pelo pensa-
mento que ele é um ente vivo como eu, teve sempre, para o
que em mim, por me ser involuntário, é verdadeiramente
eu, menos importância que uma árvore, se a árvore é mais
bela. Por isso senti sempre os movimentos humanos as
grandes tragédias coletivas da história ou do que dela fazem
como frisos coloridos, vazios da alma dos que passam ne-
les. Nunca me pesou o que de trágico se passasse na China. É
decoração longínqua, ainda que a sangue e peste.
Relembro, com tristeza irônica, uma manifestação de
operários, feitao sei com que sinceridade (pois me pesa
sempre admitir sinceridade nas coisas coletivas, visto que é o
indivíduo, as consigo, o único ser que sente). Era um
grupo compacto e solto de estúpidos animados, que passou
LIVRO DO DESASSOSSEGO
FERNANDO PESSOA
gritando coisas diversas diante do meu indiferentismo de
alheio. Tive subitamente náusea. Nem sequer estavam sufi-
cientemente sujos. Os que verdadeiramente sofremo fa-
zem plebe,o formam conjunto. O que sofre sofre.
Que mau conjunto: Que falta de humanidade e de dor!
Eram reais e portanto incríveis. Ninguém faria com eles um
quadro de romance, um cenário de descrição. Decorriam
como lixo num rio, no rio da vida. Tive sono de vê-los, nau-
seado e supremo.
Desejaria construir um código de inércia para os supe-
riores nas sociedades modernas.
A sociedade governar-se-ia espontaneamente e a si
própria, seo contivesse gente de sensibilidade e de inteli-
gência. Acreditem que é a única coisa que a prejudica. As
sociedades primitivas tinham uma feliz existência mais ou
menos assim.
Pena é que a expulsão dos superiores da sociedade resul-
taria em eles morrerem, porqueo sabem trabalhar. E tal-
vez morressem de tédio, poro haver espaços de estupidez
entre eles. Mas eu falo do ponto de cura [?] da felicidade hu-
mana.
Cada superior que se manifestasse na sociedade seria ex-
pulso para a ilha [...] dos superiores. Os superiores seriam
alimentados, como animais em jaula, pela sociedade normal.
Acreditem: seo houvesse gente inteligente que apon-
tasse os vários mal-estares humanos, a humanidadeo dava
por eles. E as criaturas de sensibilidade fazem sofrer os ou-
tros por simpatia.
Por enquanto, visto que vivemos em sociedade, o único
dever dos superiores é reduzir ao mínimo a sua participação
na vida da tribo.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
o ler jornais, ou lê-los só para saber o que de pouco
importane e curioso passa;o ninguém imagina a volú-
pia que arranco ao noticiário sucinto das províncias. Os me-
ros nomes abrem-me portas sobre o vago.
O supremo estado honroso para um homem superior é
o saber quem é o chefe de estado do seu país, ou se vive sob
monarquia ou sob república.
Toda a sua atitude deve ser colocar a alma de modo
que a passagem das coisas, dos acontecimentoso o inco-
modem. Se oo fizer terá que se interessar pelos outros,
para cuidar [?] de si próprio.
Sempre neste mundo haverá a luta, sem decisão nem
vitória, entre o que ama o queo há porque existe, e o que
ama o que há porqueo existe. Sempre, sempre, haverá o
abismo entre o que renega o mortal porque é mortal, e o que
ama o mortal porque desejaria que ele nunca morresse. Vejo-
me aquele que fui na infância, naquele momento em que o
meu barco dado se virou no tanque da quinta, eo há filo-
sofias que substituam esse momento, nem razões que me ex-
pliquem porque passou. Lembro-o, e vivo; que vida melhor
tens tu para me dar?
Nenhuma, nenhuma porque também eu lembro.
Ah, lembro-me bem! Era na casa velha da quinta antiga
e ao serão; depois de coserem e fazerem meia, o chá vinha, e
as torradas, e o sono bom que eu haveria de dormir. Dá-me
isto outra vez, tal qual era, com o relógio a tictacar ao fun-
do, e guarda para ti os Deuses todos. Que me é um Olimpo
que meo sabe às torradas do passado? Que tenho eu com
deuses queo tem o meu relógio antigo?
FERNANDO PESSOA
Talvez tudo seja símbolo e sombra, maso gosto de
símbolos eo gosto de sombras. Restitui-me o passado e
guarda a verdade. Dá-me outra vez a infância e leva Deus
contigo.
Os teus símbolos! Se eu chorar na noite, como uma
criança com medo, nenhum dos teus símbolos me vem afa-
gar no ombro e embalar por ali até que eu durma. Se eu me
perder na estrada, tuo tens Virgem Maria melhor que me
venha buscar pela mão. Tenho frio das tuas transcendências.
Quero um lar no Além. Julgas que alguém tem sede na alma
de metafísicas ou de mistérios ou de altas verdades?
De que é que se tem sede nessa alma?
De qualquer coisa como tudo que foi a nossa infân-
cia. Dos brinquedos mortos, das tias velhas idas. Essas coisas
é queo a realidade, embora morressem. Que tem o Inefá-
vel comigo?
Uma coisa... Tiveste algumas tias velhas, e alguma
quinta antiga e algum chá e algum relógio?
o tive. Gostaria de ter tido. E tu viveste à beira-
mar?
Nunca.o o sabias?
Sabia, mas acreditava. Para que descrer do que só se
supõe?
o sabes que este é um diálogo no jardim do Palácio,
um interlúdio lunar, uma função em que nos entretemos en-
quanto as horas passam para os outros?
Pois sim, mas eu estou a raciocinar...
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Está bem: euo estou. O raciocínio é a pior espécie
do sonho, porque é aquele que nos transporta para o sonho a
regularidade da vida queo, isto é, é duplamente nada.
Mas o que quer isso dizer?
(Pondo-lhe ao no outro ombro, e envolvendo-o num
abraço) — O filho, o que quer qualquer coisa dizer?
Nunca durmo: vivo e sonho, ou, antes, sonho em vida e
a dormir, que também é vida.o há interrupção em minha
consciência: sinto o que me cerca seo durmo ainda, ou se
o durmo bem; entro logo a sonhar desde que deveras dur-
mo. Assim o que sou é um perpétuo desenrolamento de ima-
gens, conexas ou desconexas, fingindo sempre de exteriores,
umas postas entre os homens e a luz se estou desperto, ou-
tras postas entre os fantasmas e a sem-luz que se, se estou
dormindo. Verdadeiramente,o sei como distinguir uma
coisa da outra, nem ouso afirmar seo durmo quando estou
desperto, seo estou a despertar quando durmo.
A vida é um novelo que alguém emaranhou. Há um
sentido nela, se estiver desenrolada e posta ao comprido, ou
enrolada bem. Mas, tal como está, é um problema sem no-
velo próprio, um embrulhar-se sem onde.
Sinto isto, que depois escreverei, pois que vou já so-
nhando as frases a dizer, quando, através da noite de meio-
dormir, sinto, junto com as paisagens de sonhos vagos, o
ruído da chuva lá fora, a tornar-mos mais vagos ainda.o
adivinhas do vácuo, trêmulas de abismo, e através delas se
escoa, inútil, a plangência externa da chuva constante, mi-
núcia abundante da paisagem do ouvido. Esperança? Nada.
Dou invisível desce em som a mágoa água que vento alça.
Continuo dormindo.
FERNANDO PESSOA
Era, sem dúvida, nas alamedas do parque que se passou a
tragédia de que resultou a vida. Eram dois e belos e deseja-
vam ser outra coisa; o amor tardava-lhes no tédio do futuro,
e a saudade do que haveria de ser vinha já sendo filha do
amor queo tinham tido. Assim, ao luar dos bosques pró-
ximos, pois através deles se coava a lua, passeavam, mãos
dadas, sem desejos nem esperanças, através do deserto pró-
prio das aléias abandonas. Eram crianças inteiramente, pois
que oo eram em verdade. De aléia em aléia, silhuetas
entre árvore e árvore, percorriam em papel recortado aquele
cenário de ninguém. E assim se sumiram para o lado dos
tanques, cada vez mais juntos e separados, e o ruído da vaga
chuva que cessa é o dos repuxos de para onde iam. Sou o
amor que eles tiveram e por isso os sei ouvir na noite em que
o durmo, e também sei viver infeliz.
Com um charuto caro e os olhos fechados é ser rico.
Como quem visita um lugar onde passou a juventude,
consigo, com um cigarro barato, regressar inteiro ao lugar
da minha vida em que era meu uso fumá-los. E através do
sabor leve do fumo todo o passado revive-me.
Outras vezes será um certo doce. Um simples bombom
de chocolate escangalha-me às vezes os nervos com o excesso
de recordações que os estremece. A infância! E entre os
meus dentes que se cravam na massa escura e macia, trinco e
gosto as minhas humildes felicidades de companheiro alegre
do soldado de chumbo, de cavaleiro congruente com a cana
casual meu cavalo. Sobem-me as lágrimas aos olhos e junto
com o sabor do chocolate mistura-se a meu sabor a minha
felicidade passada, a minha infância ida e pertenço voluptuo-
samente à suavidade da minha dor.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Nem por simples é menos solene este meu ritual (do)
•paladar.
Mas é o fumo do cigarro o que mais espiritualmente me
reconstrói momentos passados. Ele apenas roça a minha
consciência de ter paladar. Por isso mais [...] me evoca as
horas que morri, mais longínquas as faz presentes, mais ne
voentas quando me envolvem, mais etéreas quando as cor-
porizo. Um cigarro mentolado, um charuto barato toldam de
suavidade alguns meus momentos. Com que sutil plausibili-
dade de sabor-aroma reergo os cenários mortos e empresto
outra vez as [...] de um passado,o século dezoito sempre
pelo afastamento malicioso e cansadoo medievais sempre
pelo inevitavemente perdido.
Somos morte. Isto, que consideramos vida, é o sono da
vida real, a morte do que verdadeiramente somos. Os mortos
nascem,o morrem. Estão trocados, para nós, os mundos.
Quando julgamos que vivemos, estamos mortos; vamos vi-
ver quando estamos moribundos.
Aquela relação que há entre o sono e a vida é a mesma
que há entre o que chamamos vida e o que chamamos morte.
Estamos dormindo, e esta vida é um sonho,o num sentido
metafórico ou poético, mas num sentido verdadeiro.
Tudo aquilo que em nossas atividades consideramos su-
perior, tudo isso participa da morte, tudo isso é morte. Que é
o ideal senão a confissão de que a vidao serve? Que é a
arte senão a negação da vida? Uma estátua é um corpo tuor-
to, talhado para fixar a morte, em matéria de incorrupção. O
mesmo prazer, que tanto parece uma imersão na vida, é an-
tes uma imersão ems mesmos, uma destruição das rela-
ções entres e a vida, uma sombra agitada da morte.
O próprio viver é morrer, porqueo temos um dia a
FERNANDO PESSOA
mais na nossa vida queo tenhamos, nisso, um dia a menos
nela.
Povoamos sonhos, somos sombras errando através de
florestas impossíveis, em que as árvoreso casas, costumes,
idéias, ideais e filosofias.
Nunca encontrar Deus, nunca saber, sequer, se Deus
existe! Passar de mundo para mundo, de encarnação para
encarnação, sempre na ilusão que acarinha, sempre no erro
que afaga.
A verdade nunca, a paragem [?] nunca! A união com
Deus nunca! Nunca inteiramente em paz mas sempre um
pouco dela, sempre o desejo dela!
A vida prática sempre me pareceu o menos cômodo dos
suicídios. Agir foi sempre para mim a condenação violenta
do sonho injustamente condenado. Ter influência no mundo
exterior, alterar coisas, transpor entes, influir em gente
tudo isto pareceu-me sempre de uma substância mais nebu-
losa que a dos meus devaneios. A futilidade imanente de to-
das as formas da ação foi, desde a minha infância, uma das
medidas mais queridas do meu desapego até de mim.
Agir é reagir contra si próprio. Influenciar é sair de
casa.
Sempre que meditei como era absurdo que, onde a rea-
lidade substancial é uma série de sensações, houvesse coisas
o complicadamente simples como comércios, indústrias,
relações sociais e familiares,o desoladoramente incom-
preensíveis perante a atitude interior da alma para com a
idéia de verdade.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Houve tempo em que me irritavam aquelas coisas que
hoje me fazem sorrir. E uma delas, que quase todos os dias
me lembram, é a insistência com que os homens quotidianos
e ativos na vida sorriem dos poetas e dos artistas. Nem sem-
pre o fazem, como crêem os pensadores dos jornais, com um
ar de superioridade. Muitas vezes o fazem com carinho. Mas
é sempre como quem acarinha uma criança, alguém alheio à
certeza e à exatidão da vida.
Isto irritava-me antigamente, porque supunha, como os
ingênuos, e eu era ingênuo, que esse sorriso dado às preocu-
pações de sonhar e dizer era um eflúvio de uma sensação in-
tima de superioridade. É somente um estalido de diferença.
E, se antigamente eu considerava esse sorriso como um in-
sulto, porque implicasse uma superioridade, hoje considero-o
como uma dúvida inconsciente; como os homens adultos
muitas vezes reconhecem nas crianças uma agudeza de espi-
rito superior à própria, assim nos reconhecem, as que so-
nhamos e o dizemos, uma qualquer coisa diferente de que
eles desconfiam como estranha. Quero crer que, muitas ve-
zes, os mais inteligentes deles entrevejam a nossa superiori-
dade; e então sorriem superiormente, para esconder que a
entrevêem.
Mas essa nossa superioridadeo consiste naquilo que
tantos sonhadoresm considerado como a superioridade
própria. O sonhadoro é superior ao homem ativo porque o
sonho seja superior à realidade. A superioridade do sonhador
consiste em que o sonhar é muito mais prático que viver, e
em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasto
e muito mais variado do que o homem de ação. Em melhores
e mais diretas palavras, o sonhador é que é o homem de ação.
Sendo a vida essencialmente um estado mental, e tudo,
quanto fazemos ou pensamos, válido paras na proporção
em que o pensamos válido, depende des a valorização. O
FERNANDO PESSOA
sonhador é um emissor de notas, e as notas que emite cor-
rem na cidade do seu espírito do mesmo modo que as da rea-
lidade. Que me importa que o papel-moeda da minha alma
nunca seja convertível em ouro, seo há ouro nunca na
alquimia factícia da vida? Depois de todoss vem o dilúvio,
mas é só depois de todos nós. Melhores, e mais felizes, os
que, reconhecendo a ficção de tudo, fazem o romance antes
que ele lhes seja feito, e, como Machiavelli, vestem os trajos
da corte para escrever bem em segredo.
Int[ervalo] Do/[oroso]
Nem no orgulho tenho consolação. De quê orgulhar-
me seo sou o criador de mim-próprio. E mesmo que haja
em mim de que envaidecer-me, quanto para meo envai-
decer.
Jazo a minha vida. E nem sei fazer com o sonho o gesto
de me erguer,o até à alma estou despido de saber ter um
esforço.
Os fazedores de sistemas metafísicos, os (...) de expli-
cações psicológicaso ainda piores no sofrimento. Sistema-
tizar, explicar o que é senão (...) e construir? E tudo isso
arranjar, dispor, organizar o que é senão esforço reali-
zado — e quão desoladoramente isso é vida!
Pessimista euo o sou. Ditosos os que conseguem
traduzir para universal o seu sofrimento. Euo sei se o
mundo é triste ou mau nem isso me importa, porque o que
os outros sofrem me é aborrecido e indiferente. Logo queo
chorem ou gemam, o que me irrita e incomoda, nem um en-
colher de ombros tenhoo fundo me pesa o meu desdém
por eles para o seu sofrimento.
LIVRO DO DESASSOSSEGO 243
Mas sou [?] quem crê que a vida seja meio luz meio
sombras. Euo sou pessimista.o me queixo do horror
da vida. Queixo-me do horror da minha. O único fato im-
portante para mim é o fato de eu existir e de eu sofrer e de
o poder sequer sonhar-me de todo por fora de me sentir
sofrendo.
Sonhadores felizeso os pessimistas. Formam o mundo
à sua imagem e assim sempre conseguem estar em casa. A
mim o que mei mais é a diferença entre o ruído e a alegria
do mundo e a minha tristeza e o meu silêncio aborrecido.
A vida com todas as suas dores e receios e solavancos
deve ser boa e alegre, como para uma viagem em velha dili-
gência para quem vai acompanhado (e o pode ver [?]).
Nem ao menos posso sentir o meu sofrimento como si-
nal de Grandeza.o sei se o é. Mas eu sofro em coisaso
reles, ferem-me coisaso banais, queo ouso insultar com
essa hipótese a hipótese de que eu possa ter gênio.
A glória de um poente belo, com a sua beleza entris-
tece-me. Ante eles eu digo sempre: como quem é feliz se
deve sentir contente ao ver isto!
E este livro é um gemido. Escrito ele já o Sóo é o
livro mais triste que há em Portugal.
Ao pé da minha dor todas as outras dores me parecem
falsas ou mínimas.o dores de gente feliz ou dores de gente
quo vive e se queixa. As minhaso de quem se encontra
encarcerado da vida, aparte...
Entre mime a vida...
De modo que tudo o que angustia vejo. E tudo o que
alegrao sinto. E reparei que o mal mais se vê que se sente,
a alegria mais se sente do que se. Porqueo pensando,
o vendo, certo contentamento adquire-se, como o dos mís-
ticos [?] e dos boêmios e dos canalhas. Mas tudo afinal entra
FERNANDO PESSOA
[em] casa pela janela da observação e pela porta do pensa-
mento.
(a child hand's playing with [?] cotton-reels,
etc.)
Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse ape-
nas, o sentido da minha vida. Nunca tive outra preocupação
verdadeira senão a minha vida interior. As maiores dores da
minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para
dentro de mim pude esquecer-me na visão do seu movi-
mento.
Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me
falou de viver nunca prestei atenção. Pertenci sempre ao que
o está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o queo
é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim.
Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o
que nem podia imaginar. A vida nunca pedi senão que pas-
sasse por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi
que nunca deixasse de ser um sonho longínquo. Nas minhas
próprias paisagens interiores, irreais todas elas, foi sempre o
longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumam
quase na distância das minhas paisagens sonhadas, tinham
uma doçura de sonho em relação às outras partes da paisa-
gem uma doçura que fazia com que eu as pudesse amar.
A minha mania de criar um mundo falso acompanha-me
ainda, e só na minha morte me abandonará.o alinho hoje
nas minhas gavetas carros de linha e peões de xadrez com
um bispo ou um cavalo acaso sobressaindo mas tenho
pena de oo fazer... e alinho na minha imaginação, confor-
tavelmente, como quem no inverno se aquece a uma lareira,
figuras que habitam, eo constantes e vivas, na minha vida
interior. Tenho um mundo de amigos dentro de mim, com
vidas próprias, reais, definidas e imperfeitas.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
AIguns passam dificuldades, outrosm uma vida boê-
mia, pitoresca e humilde. Há outros queo caixeiros-via-
jantes (poder sonhar-me caixeiro-viajante foi sempre uma
das minhas grandes ambições irrealizável infelizmente!).
Outros moram em aldeias e vilas lá para as fronteiras de um
Portugal dentro de mim;m à cidade, onde por acaso os
encontro e reconheço, abrindo-lhes os braços, numa atra-
ção... E quando sonho isto, passeando no meu quarto, fa-
lando alto, gesticulando... quando sonho isto, e me visiono
encontrando-os, todo eu me alegro, me realizo, me pulo,
brilham-me os olhos, abro os braços e tenho uma felicidade
enorme, real.
Ah,o há saudades mais dolorosas do que as das coisas
que nunca foram! O que eu sinto quando penso no passado
que tive no tempo real, quando choro sobre o cadáver da vida
da minha infância ida,... isso mesmoo atinge o fervor do-
loroso e trêmulo com que choro sobreo serem reais as
figuras humildes dos meus sonhos, as próprias figuras secun-
dárias que me recordo de ter visto uma só vez, por acaso, na
minha pseudovida, ao virar uma esquina na minha visiona-
ção, ao passar por um portão numa rua que subi e percorri
por esse sonho fora.
A raiva de a saudadeo poder reavivar e reerguer nun-
ca éo lacrimosa contra Deus, que criou impossibilidades,
do que quando medito que os meus amigos de sonho, com
quem passei tantos detalhes de uma vida suposta, com quem
tantas conversas iluminadas, em cafés imaginários, tenho
tido,o pertenceram, afinal, a nenhum espaço onde pudes-
sem ser, realmente, independente da minha consciência
deles!
Oh, o passado morto que eu trago comigo e nunca es-
teve senão comigo! As flores do jardim da pequena casa de
campo e que nunca existiu senão em mim. As hortas, os
pomares, o pinhal, da quinta que foi só um meu sonho! As
minhas vilegiaturas supostas, os meus passeios por um cam-
po que nunca existiu! As árvores de à beira da estrada, os
FERNANDO PESSOA
atalhos, as pedras, os camponeses que passam... tudo isto
que nunca passou de um sonho, está guardado em minha
memória a fazer de dor e eu, que passei horas a sonhá-los
passo horas depois a recordar tê-los sonhado e é, na verdade
saudade que eu tenho, um passado que eu choro, uma vida-
real morta que fito, solene, no seu caixão.
Há também as paisagens e as vidas queo foram intei-
ramente interiores. Certos quadros, sem subido relevo artís-
tico, certas oleogravuras que havia em paredes com que con-
vivi muitas horas passam a realidade dentro de mim. Aqui
a sensação era outra, mais pungente e triste. Ardia-meo
poder estar ali, quer eles fossem reais ou não.o ser eu, ao
menos, uma figura a mais, desenhada ao pé daquele bosque
ao luar que havia numa pequena gravura dum quarto onde
dormi já mais em pequeno!o poder eu pensar que estava
ali oculto, no bosque à beira do rio, por aquele luar eterno
(embora mal-desenhado), vendo o homem que passa num
barco por baixo do debruçar de um salgueiro! Aqui oo
poder sonhar inteiramente doía-me. As feições da minha
saudade eram outras. Os gestos do meu desespero eram dife-
rentes. A impossibilidade que me torturava era de outra or-
dem de angústia. Ah,o ter tudo isto um sentido em Deus,
uma realização conforme o espírito de nossos desejos,o sei
onde, por um tempo vertical, consubstanciado com a direção
das minhas saudades e dos meus devaneios!o haver, pelo
menos só para mim, um paraíso feito disto!o poder eu
encontrar os amigos que sonhei, passear pelas ruas que criei,
acordar, entre o ruído dos gaios e das galinhas e o rumorejar
matutino da casa, na casa de campo em que eu me supus...
e tudo isto mais perfeitamente arranjado por Deus, posto na-
quela perfeita ordem para existir, na precisa forma para eu o
ter que nem os meus próprios sonhos atingem senão na falta
de [...] consciência do espaço íntimo que entretém essas
pobres realidades.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Ergo a cabeça de sobre o papel em que escrevo... É cedo
ainda. Mal passa o meio-dia e é domingo. O mal da vida, a
doença de ser consciente, entra com o meu próprio corpo e
perturba-me.o haver ilhas para os inconfortáveis, alame-
das vetustas, inencontráveis de outros para os isolados no
sonhar! Ter de viver e, por pouco que seja, de agir; ter de
roçar pelo fato de haver outra gente, real também, na vida!
Ter de estar aqui escrevendo isto, por me ser preciso à alma
fazê-lo, e, mesmo isto,o poder sonhá-lo apenas, exprimi-
lo sem palavras, sem consciência mesmo, por uma constru-
ção de mim-próprio em música e esbatimento, de modo que
me subissem as lágrimas aos olhos só de me sentir expres-
sar-me, e eu florisse, como um rio encantado, por lentos
declives de mim próprio, cada vez mais para o inconsciente e
o Distante, sem sentido nenhum exceto Deus.
Tenho que escolher o que detesto ou o sonho, que a
minha inteligência odeia, ou a ação, que a minha sensibili-
dade repugna; ou a ação, para queo nasci ou o sonho, para
que ninguém nasceu.
Resulta que, como detesto ambos,o escolho nenhum;
mas, como hei-de, em certa ocasião, ou sonhar, ou agir, mis-
turo uma coisa com outra.
" Quem tenha lido as páginas deste livro, que estão antes
desta, terá sem dúvida formado a idéia de que sou um sonha-
dor. Ter-se-á enganado se a formou. Para ser sonhador falta-
me o dinheiro.
As grandes melancolias, as tristezas cheias de tédio,o
podem existir senão com um ambiente de conforto e de-
FERNANDO PESSOA
brio luxo. Por isso o Egeus de Poe, concentrado horas e ho-
ras numa absorção doentia, o faz num castelo antigo, ances-
tral, onde, para além das portas da grande sala onde jaz a
vida, mordomos invisíveis administram a casa e a comida.
O grande sonho requer certas circunstâncias sociais.
Um dia que, embevecido por certo movimento rítmico e do-
lente do que escrevera, me recordei de Chateaubriand,o
tardou que me lembrasse de que euo era visconde, nem
sequer bretão. Outra vez que julguei sentir, no sentido do
que dissera, uma semelhança com Rousseau,o tardou,
também, que me ocorresse que,o [tendo] tido o privi-
légio de ser fidalgo e castelão, também oo tivera de ser
suíço e vagabundo.
Mas, enfim, também há universo na Rua dos Doura-
dores. Também aqui Deus concede queo falte o enigma de
viver. E por isso, seo pobres, como a paisagem de carro-
ças e caixotes, os sonhos que consigo extrair de entre a ro-
das e as tábuas, ainda assimo para mim o que tenho, e o
que posso ter.
Alhures, sem dúvida, é que os poentes são. Mas até
deste quarto andar sobre a cidade se pode pensar no infinito.
Um infinito com armazéns embaixo, é certo, mas com estre-
las ao fim... É o que me ocorre, neste acabar de tarde, à
janela alta, na insatisfação do burguês queo sou e na tris-
teza do poeta que nunca poderei ser.
O homem vulgar, por mais dura que lhe seja a vida, tem
ao menos a felicidade de ao pensar. Viver a vida decorren-
temente, exteriormente, como um gato ou umo assim
fazem os homens gerais, e assim se deve viver a vida para que
possa contar a satisfação do gato e do cão.
Pensar é destruir. O próprio processo do pensamento o
indica para o mesmo pensamento, porque pensar é decom-
por. Se os homens soubessem meditar no mistério da vida, se
soubessem sentir as mil complexidades que espiam a alma
em cada pormenor da ação,o agiriam nunca,o vive-
riam até. Matar-se-iam de assustados, como. os que se suici-
dam parao ser guilhotinados no dia seguinte.
A leitura dos jornais, sempre penosa do ponto de ver
estético, é-o freqüentemente também do moral, ainda para
quem tenha poucas preocupações morais.
As guerras e as revoluções há sempre uma ou outra
em curso chegam, na leitura dos seus efeitos, a causaro
horror mas tédio.o é a crueldade de todos aqueles mortos
e feridos, o sacrifício de todos os que morrem batendo-se, ou
o mortos sem que se batam, que pesa duramente na alma;
é a estupidez que sacrifica vidas e haveres a qualquer coisa
inevitavelmente inútil. Todos os idéias e todas as ambições
o um desvário de comadres homens.o há império que
valha que por ele se parta uma boneca de criança.o há
ideal que mereça o sacrifício de um comboio de lata. Que
império é útil ou que ideal profícuo?, Tudo é humanidade,
e a humanidade é sempre a mesma variável mas inaper-
feiçoável, oscilante mas improgressiva. Perante o curso inim-
plorável das coisas, a vida que tivemos sem saber como e
perderemos sem saber quando, o jogo de dez mil xadrezes
que é a vida em comum e luta, o tédio de contemplar sem
utilidade o que seo realiza nunca (...) que pode fazer o
sábio senão pedir o repouso, oo ter que pensar em viver,
LIVRO DO DESASSOSSEGO
pois basta ter que viver, um pouco de lugar ao sol e ao ar e ao
menos o sonho de que há paz do lado de lá dos montes.
Desde que possamos considerar este mundo uma ilusão
e um fantasma, poderemos considerar tudo que nos acontece
como um sonho, coisa que fingiu ser porque dormíamos. E
então nasce ems uma indiferença sutil e profunda para
com todos os desaires e desastres da vida. Os que morrem
viraram uma esquina, e por isso os deixamos de ver; os que
sofrem passam perante nós, se sentimos, como um pesadelo,
se pensamos, como um devaneio ingrato. E o nosso próprio
sofrimentoo será mais que esse nada. Neste mundo dor-
mimos sobre o lado esquerdo, e ouvimos nos sonhos a exis-
tência opressa do coração.
Mais nada... Um pouco de sol, um pouco de brisa,
umas árvores que emolduram a distância, o desejo de ser
feliz, a mágoa de os dias passarem, a ciência sempre incerta
e a verdade sempre por descobrir... Mais nada, mais nada...
Sim, mais nada...
Algunsm na vida um grande sonho e faltam a esse
sonho. Outrosom na vida nenhum sonho, e faltam a
esse também.
A inação consola de tudo.o agir dá-nos tudo. Imagi-
nar é tudo, desde queo tenda para agir. Ninguém pode ser
rei do mundo senão em sonho. E cada um de nós, se deveras
se conhece, quer ser rei do mundo.
FERNANDO PESSOA
LIVRO DO DESASSOSSEGO
o ser, pensando, é o trono.o querer, desejando, é
a coroa. Temos o que abdicamos, porque o conservamos.
sonhando, intato.
O dinheiro é belo, porque é uma libertação.
Querer ir morrer a Pequim eo poder é das coisas que
pesam sobre mim como a idéia dum cataclismo vindouro.
Os compradores de coisas inúteis sempreo mais-
bios do que se julgam compram pequenos sonhos.o
crianças no adquirir. Todos os pequenos objetos inúteis cujo
acenar ao saberem quem dinheiro os faz comprá-los, pos-
suem-os na atitude feliz de uma criança que apanha cohchi-
nhas na praia imagem que mais do que nenhuma dá toda a
felicidade possível. Apanha conchas na praia! Nunca há duas
iguais para a criança. Adormece com as duas mais bonitas na
mão, e quando lhas perdem ou tiram o crime! roubar-lhe
bocados exteriores da alma! arrancar-lhe pedaços de sonho!
choram como um Deus a quem roubam um universo re-
cém-criado.
Pensar, ainda assim, é agir. Só no devaneio absoluto,
onde nada de ativo intervém, onde por fim até a nossa cons-
ciência de nós-mesmos se atola num lodo só, nesse
morno e úmido não-ser, a abdicação da ação competente-
mente se atinge.
o querer compreender,o analisar... Ver-se como a
natureza; olhar para as suas impressões como para um cam-
po — a sabedoria é isto.
FERNANDO PESSOA
Sociologia — a inutilidade das teorias e práticas polí-
ticas.
O governo do mundo começa ems mesmos.oo
os sinceros que governam o mundo, mas tambémoo os
insinceros.o os que fabricam em si uma sinceridade real
por meios artificiais e automáticos; essa sinceridade constitui
a sua força, e é ela que irradia para a sinceridade menos falsa
dos outros. Saber iludir-se bem é a primeira qualidade do
estadista. Só aos poetas e aos filósofos compete a visão prática
do mundo, porque só a esses é dadoo ter ilusões. Ver claro
éo agir.
Mais que uma vez, ao passear lentamente pelas ruas da
tarde, me tem batido na alma, com uma violência súbita e
estonteante, a estranhíssima presença da organização das
coisas.oo bem as coisas naturais que tanto me afetam,
queo poderosamente me trazem esta sensação:o antes
os arruamentos, os letreiros, as pessoas vestidas e falando, os
empregos, os jornais, a inteligência de tudo. Ou, antes, é o
fato de que existem arruamentos, letreiros, empregos, ho-
mens, sociedade, tudo a entender-se e a seguir e a abrir ca-
minhos.
Reparo no homem diretamente, e vejo que éo incons-
ciente como umo ou um gato; fala por uma inconsciência
de outra ordem; organiza-se em sociedade por uma incons-
ciência de outra ordem, absolutamente inferior à que empre-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
cam as formigas e as abelhas na sua vida social. E então,
tanto ou mais que da existência de organismos, tanto ou
mais que da existência de leis físicas rígidas e intelectuais,
se me revela por uma luz evidente a inteligência que cria e
impregna o mundo.
Bate-me então, sempre que assim sinto, a velha frase de
o sei que escolástico: Deus est anima brutorum, Deus é a
alma dos brutos. Assim entendeu o autor da frase, que,é
maravilhosa, explicar a certeza com que o instinto guia os
animais inferiores, em que seo divisa inteligência, ou mais
que um esboço dela. Mas todos somos animais inferiores
falar e pensaro apenas novos instintos, menos seguros que
os outros porque novos. E a frase do escolástico,o justa em
sua beleza, alarga-se, e digo, Deus é a alma de tudo.
Nunca compreendi que quem uma vez considerou este
grande fato da relojoaria universal pudesse negar o relojoeiro
em que o mesmo Voltaireo descreu. Compreendo que,'
atendendo a certos fatos aparentemente desviados de um
plano (e era preciso saber o plano para saber seo desvia-
dos), se atribua a essa inteligência suprema algum elemento
de imperfeição. Isso compreendo, se bem que oo acei-
te. Compreendo ainda que, atendendo ao mal que há no
mundo, seo possa aceitar a bondade infinita dessa inteli-
gência criadora. Isso compreendo, se bem que oo aceite
também. Mas que se negue a existência dessa inteligência,
ou seja de Deus, é coisa que me parece uma daquelas estu-
pidezas que tantas vezes afligem, num ponto da inteligência,
homens que, em todos os outros pontos dela, podem ser su-
periores; como os que erram sempre as somas, ou, ainda, e
pondo já no jogo a inteligência da sensibilidade, os queo
sentem a música, ou a pintura, ou a poesia.
o aceito, disse, nem o critério do relojoeiro imper-
feito, nem o do relojoeiro sem benevolência.o aceito o
critério do relojoeiro imperfeito porque aqueles pormenores
do governo e ajustamento do mundo, que nos parecem lap-
sos ou sem-razões,o podem como tal, ser verdadeiramente
dados sem que saibamos o plano. Vemos claramente um pla-
no em tudo; vemos certas coisas que nos parecem sem razão,
mas é de ponderar que se há em tudo uma razão, haverá
nisso também a mesma razão que há em tudo. Vemos a ra-
zão, porémo o plano; como diremos, então, que certas
coisas estão fora do plano queo sabemos o que é? Assim
como um poeta de ritmos sutis pode intercalar um verso ar-
rítmico para fins rítmicos, isto é, para o próprio fim de que
parece afastar-se, e um crítico mais purista do retilíneo que
do ritmo chamará errado esse verso, assim o Criador pode
intercalar o que nossa estreita [razão?] considera arritmias
no decurso majestoso do seu ritmo metafísico.
Nem aceito, disse, o critério do relojoeiro sem benevo-
lência. Concordo que é um argumento de mais difícil respos-
ta, mas é-o só aparentemente. Podemos dizer queo sabe-
mos bem o que é o mal,o podendo por isso afirmar se uma
coisa é má ou boa. O certo, porém, é que uma dor, ainda que
para nosso bem, é em si mesma um mal, e basta isso para que
haja mal no mundo. Basta uma dor de dentes para fazer des-
crer na bondade do Criador. Ora, o erro esencial deste argu-
mento parece residir no nosso completo desconhecimento do
plano de Deus, e nosso igual desconhecimento do que possa
ser, como pessoa inteligente, o Infinito Intelectual. Uma coi-
sa é a existência do mal, outra a razão dessa existência. A
distinção é talvez sutil ao ponto de parecer sofistica, mas o
certo é que é justa. A existência do malo pode ser negada,
mas a maldade da existência do mal podeo ser aceite. Con-
fesso que o problema subsiste, mas subsiste porque subsiste a
nossa imperfeição.
FERNANDO PESSOA
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Ah, é um erro doloroso e crasso aquela distinção que os
revolucionários estabelecem entre burgueses e povo, ou fi-
dalgos e povo, ou governantes e governados. A distinção é
entre adaptados e inadaptados: o mais é literatura, e má lite-
ratura. O mendigo, se é adaptado, pode amanhã ser rei, po-
rém: perdeu com isso a virtude de ser mendigo. Passou a
fronteira e perdeu a nacionalidade.
Isto me consola neste escritório estreito, cujas janelas
mal lavadaso sobre uma rua sem alegria. Isto me consola,
em o qual tenho por irmãos os criadores da consciência do
mundo o dramaturgo atabalhoado William Shakespeare, o
mestre-escola John Milton, o vadio Dante Alighieri, (...)
e até, se a citação se permite, aquele Jesus Cristo queo foi
nada no mundo, tanto que se duvida dele pela história. Os
outroso de outra espécie o conselheiro de estado Jo-
hann Wolf gang von Goethe, o senador Victor Hugo, o chefe
Lênin, o chefe Mussolini.
s na sombra, entre os moços de fretes e os barbeiros,
constituímos a humanidade.
De um lado estão os reis, com o seu prestígio, os impe-
radores, com a sua glória, os gênios, com a sua aura, os
santos, com a sua auréola, os chefes do povo, com o seu
domínio, as prostitutas, os profetas e os ricos... Do outro
estamoss — o moço de fretes da esquina, o dramaturgo
atabalhoado William Shakespeare, o barbeiro das anedotas,
o mestre-escola John Milton, o marçano da tenda, o vadio
Dante Alighieri, os que a morte esquece ou consagra, e
[a] vida esqueceu sem consagrar.
Muitosm definido o homem, e em geral om defi-
nido em contraste com os animais. Por isso, nas definições
FERNANDO PESSOA
do homem, é freqüente o uso da frase ' 'o homem é um ani-
mal. .." e um adjetivo, ou ' 'o homem é um animal que..." e
diz-se o quê. ' 'O homem é um animal doente'', disse Rous-
seau, e em parte é verdade. "O homem é um animal racio-
nal", diz a Igreja, e em parte é verdade. "O homem é um
animal que usa ferramentas", diz Carlyle, e em parte é ver-
dade. Mas estas definições, e outras como elas,o sempre
imperfeitas e laterais. E a razão é muito simples:o é fácil
distinguir o homem dos animais,o há critério seguro para
distinguir o homem dos animais. As vidas humanas decor-
rem na mesma íntima inconsciência que as vidas dos ani-
mais. As mesmas leis profundas, que regem de fora os ins-
tintos dos animais, regem, também de fora, a inteligência do
homem, que pareceo ser mais que um instinto em forma-
ção,o inconsciente como todo instinto, menos perfeito
porque ainda não-formado.
' 'Tudo vem da sem-razão'', diz-se na Antologia Grega.
E, na verdade, tudo vem da sem-razão. Fora da matemática,
queo tem que ver senão com números mortos e fórmulas
vazias, e por isso pode ser perfeitamente lógica, a ciênciao
é senão um jogo de crianças no crepúsculo, um querer apa-
nhar sombras de aves e parar sombras de ervas ao vento.
E é curioso e estranho que,o sendo fácil encontrar
palavras com que verdadeiramente se defina o homem como
distinto dos animais, é todavia fácil encontrar maneira de
diferenciar o homem superior do homem vulgar.
Nunca me esqueceu aquela frase de Haeckel, o biolo-
gista, que li na infância da inteligência, quando se lêem as
divulgações científicas e as razões contra a religião. A frase é
esta, ou quase esta: que muito mais longe está o homem
superior (um Kant ou um Goethe, creio que diz) do homem
vulgar que o homem vulgar do macaco. Nunca esqueci a
frase porque ela é verdadeira. Entre mim, que pouco sou na
ordem dos que pensam, e um camponês de Loures vai, sem
LIVRO DO DESASSOSSEGO
dúvida, maior distância que entre esse camponês e, jáo
digo um macaco, mas um gato ou um cão. Nenhum de nós,
desde o gato até mim, conduz de fato a vida que lhe é im-
posta, ou o destino que lhe é dado; todos somos igualmente
derivados deo sei quê, sombras de gestos feitos por ou-
trem, efeitos encarnados, conseqüências que sentem. Mas
entre mim e o camponês há uma diferença de qualidade, pro-
veniente da existência em mim do pensamento abstrato e da
emoção desinteressada; e entre ele e o gatoo, no espí-
rito, mais que uma diferença de grau.
O homem superior difere do homem inferior, e dos ani-
mais irmãos deste, pela simples qualidade da ironia. A ironia
é o primeiro indício de que a consciência se tornou conscien-
te. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio marcado por
Sócrates, quando disse "sei só que nada sei", e o estádio
marcado por Sanches, quando disse "nem sei se nada sei".
O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de
s dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e atinge.
O segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de
s e da nossa dúvida, e poucos homens om atingido na
curta extensão jáo longa do tempo que, humanidade, te-
mos visto o sol e a noite sobre a vária superfície da terra.
Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse "Conhece-
te" propôs uma tarefa maior que as de Hércules e um enig-
ma mais negro que o da Esfinge. Desconhecer-se consciente-
mente, eis o caminho. E desconhecer-se conscienciosamente
é o emprego ativo da ironia. Nem conheço coisa maior, nem
mais própria do homem que é deveras grande, que a análise
paciente e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o
registro consciente da inconsciência das nossas consciências,
a metafísica das sombras autônomas, a poesia do crepúsculo
da desilusão.
258 FERNANDO PESSOA
Mas sempre qualquer coisa nos ilude, sempre qualquer
análise se nos embota, sempre a verdade, ainda que falsa,
está além da outra esquina. E é isto que cansa mais que a
vida, quando ela cansa, e de que o conhecimento e meditação
dela, que nunca deixam de cansar.
Ergo-me da cadeira de onde, fincado distraidamente
contra a mesa, me entretive a narrar para mim estas impres-
sões irregulares. Ergo-me, ergo o corpo nele mesmo, e vou
até à janela, alta acima dos telhados, de onde posso ver a
cidade ir a dormir num começo lento de silêncio. A lua,
grande e de um branco branco, elucida tristemente as dife-
renças socalcadas da casaria. E o luar parece iluminar acida-
mente todo o mistério do mundo. Parece mostrar tudo, e
tudo é sombras com misturas de luz, intervalos falsos,
desniveladamente absurdos, incoerência do visível.o há
brisa, e parece que o mistério é maior. Tenho náuseas no
pensamento abstrato. Nunca escreverei uma página que me
revele ou que revele alguma coisa. Uma nuvem muito leve
paira vaga acima da lua, como um esconderijo. Ignoro, como
estes telhados. Falhei, como a natureza inteira.
Todo o dia, em toda a sua desolação de nuvens leves e
mornas, foi ocupado pelas informações de que havia revolu-
ção. Estas notícias, falsas ou certas, enchem-me sempre de
um desconforto especial, misto de desdém e de náusea física.
Dói-me na inteligência que alguém julgue que altera alguma
coisa agitando-se. A violência, seja qual for, foi sempre para
mim uma forma esbugalhada de estupidez humana. Depois,
todos os revolucionárioso estúpidos, como, em grau me-
nor, porque menos incômodo, oo todos os reformadores.
Revolucionário ou reformador o erro é o mesmo. Im-
potente para dominar e reformar a sua própria atitude para
LIVRO DO DESASSOSSEGO
corn a vida, que é tudo, ou o seu próprio ser, que é quase
tudo, o homem foge para querer modificar os outros e o
mundo externo. Todo o revolucionário, todo o reformador,
é um evadido. Combater éo ser capaz de combater-se.
Reformar éo ter emenda possível.
O homem de sensibilidade justa e reta razão, se se acha
preocupado com o mal e a injustiça do mundo, busca natu-
ralmente emendá-la, primeiro, naquilo em que ela mais perto
se manifesta; e encontrará isso em seu próprio ser. Levar-
lhe-á essa obra toda a vida.
Tudo para nós, está em em nosso conceito do mundo;
modificar o nosso conceito do mundo é modificar o mundo
para nós, isto é, é modificar o mundo, pois ele nunca será,
para nós, senão o que é para nós. Aquela justiça íntima pela
qual escrevemos uma página fluente e bela, aquela reforma-
ção verdadeira, pela qual tornamos viva a nossa sensibilidade
morta essas coisaso a verdade, a nossa verdade, a única
verdade. O mais que há no mundo é paisagem, molduras que
enquadram sensações nossas, encadernações do que pensa-
mos. E é-o quer seja a paisagem colorida das coisas e dos
seres os campos, as casas, os cartazes e os trajos, quer
seja a paisagem incolor das almas monótonas, subindo um
momento à superfície em palavras velhas e gestos gastos,
descendo outra vez ao fundo na estupidez fundamental da
expressão humana.
Revolução? Mudança? O que eu quero deveras, com
toda a intimidade da minha alma, é que cessem as nuvens
átonas que ensaboam cinzentamente o céu; o que eu quero é
ver o azul começar a surgir de entre elas, verdade certa e
clara porque nada é nem quer.
Declaração de Diferença
As coisas do estado e da cidadeom mão, sobre nós.
Nada nos importa que os ministros e os áulicos façam falsa
gerência das coisas da nação. Tudo isso se passa lá fora, como
a lama nos dias de chuva. Nada temos com isso, que tenha
que ver ao mesmo tempo conosco.
Semelhantemente noso interessam as grandes con-
vulsões, como a guerra e as crises dos países. Enquantoo
entram por nossa casa, nada nos importa a que portas batem.
Isto, que parece que se apóia num grande desprezo pelos ou-
tros, realmente tem apenas por base o nosso apreço cético
por nós-próprios.
o somos bondosos nem caritativoso porque se-
jamos o contrário, mas porqueo somos nem uma coisa,
nem a outra. A bondade é a delicadeza das almas grosseiras.
Tem paras o interesse de um episódio passado em outras
almas, e com outras formas de pensar. Observamos, e nem
aprovamos, nem deixamos de aprovar. O nosso mister éo
ser nada.
Seríamos anarquistas se tivéssemos nascido nas classes
que a si-próprias chamam desprotegidas, ou em outras quais-
quer de onde se possa descer ou subir. Mas, na verdades
somos, em geral, criaturas nascidas nos interstícios das clas-
ses e das divisões sociais quase sempre naquele espaço
decadente entre a aristocracia e a (alta) burguesia, o lugar
social dos gênios e dos loucos com quem se pode simpatizar.
A ação desorienta-nos, em parte por incompetência-
sica, ainda mais por inapetência moral. Parece-nos imoral
agir. Todo o pensamento nos parece degradado pela expres-
o em palavras, que o tornam coisa dos outros, que o fazem
compreensível aos que o compreendem.
FERNANDO PESSOA
LIVRO DO DESASSOSSEGO
A nossa simpatia é grande pelo ocultismo e pelas artes
do escondido.o somos, porém, ocultistas. Falha-nos para
isso a vontade inata, e ainda, a paciência para a educar de
modo a tornar-se o perfeito instrumento dos magos e dos
magnetizadores. Mas simpatizamos com o ocultismo, sobre-
tudo porque elei exprimir-se de modo a que muitos que
lêem, e mesmo muitos que julgam compreender, nada com-
preendem. É soberbamente superior essa atitude misteriosa.
É, além disso, fonte copiosa de sensações do mistério e de
terror: as larvas do astral, os estranhos entes de corpos di-
versos que a magia cerimonial evoca nos seus templos, as
presenças desencarnadas da matéria deste plano, que pairam
em torno aos nossos sentidos fechados, no silêncio físico do
som interior tudo isso nos acaricia com umao viscosa,
terrível, no desabrigo e na escuridão.
Maso simpatizamos com os ocultistas na parte em
que eleso apóstolos e amadores da humanidade; isso os
despe do seu mistério. A única razão para um ocultista fun-
cionar no astral é sob a condição de o fazer por estética su-
perior, eo para o sinistro fim de fazer bem a qualquer
pessoa.
Quase sem o sabermos morde-nos uma simpatia ances-
tral pela magia negra, pelas formas proibidas da ciência trans-
cendente, pelos Senhores do Poder que se venderam à Con-
denação e à Reencarnação degradada. Os nossos olhos de-
beis e de incertos perdem-se, com um cio feminino, na teoria
dos graus invertidos, nos ritos inversos, na curva sinistra da
hierarquia descendente.
Satã, sem que o queiramos, possui paras uma suges-
o como que de macho para a fêmea. A serpente da Inteli-
gência Material enroscou-se-nos no coração, como no Ca-
duceu simbólico do Deus que comunica Mercúrio, se-
nhor da Compreensão.
Aqueles des queoo pederastas desejariam ter a
coragem de o ser. Toda a inapetência para a ação inevitavel-
FERNANDO PESSOA
mente feminiza. Falhamos a nossa verdadeira profissão de
donas-de-casa e de castelãs sem que fazer por um transvio de
sexo na encarnação presente. Emborao acreditemos abso-
lutamente nisto, sabe ao sangue da ironia fazer ems como
se o acreditássemos.
Tudo istoo é por maldade, mas por debilidade apenas.
Adoramos, a sós, o mal,o por ele ser o mal, mas porque
ele é mais intenso e forte que o Bem, e tudo quanto é intenso
e forte atrai os nervos que deviam ser de mulher. Pecca
fortitero pode ser conosco, queo temos força, nem se-
quer a da inteligência, que é a que temos. Pensa em pecar
fortemente — é o mais que paras pode valer essa indica-
ção aguda. Mas nem mesmo isso às vezes nos é possível: a
própria vida interior tem uma realidade que às vezes nosi
por ser uma realidade qualquer. Haver leis para a associação
de idéias, como para todas as operações do espírito insulta a
nossa indisciplina nativa.
Se considero com atenção a vida que os homens vivem,
nada encontro nela que a diferencie da vida que vivem os
animais. Uns e outroso lançados inconscientemente atra-
s das coisas e do mundo; uns e outros se entretêm com
intervalos; uns e outros percorrem diariamente o mesmo
percurso orgânico; uns e outroso pensam para além do
que pensam, nem vivem para além do que vivem. O gato
espoja-se ao sol e dorme ali. O homem espoja-se à vida, com
todas as suas complexidades, e dorme ali. Nem um nem ou-
tro se liberta da lei fatal de ser como é. Nenhum tenta le-
vantar o peso de ser. Os maiores dos homens amam a glória,
mas amam-na,o como a uma imortalidade própria, senão
como a uma imortalidade abstrata, de que porventurao
participem.
LIVRO DO DESASSOSSFGO
Estas considerações, que em mimo freqüentes, le-
vam-me a uma admiração súbita por aquela espécie de indi-
víduos que instintivamente repugno. Refiro-me aos místicos
e aos ascetas aos remotos de todos os Tibetes, aos Simões
Stilitas de todas as colunas. Estes, ainda que no absurdo,
tentam, de fato, libertar-se da lei animal. Estes, ainda que
na loucura, tentam, de fato, negar a lei da vida, o espojar-se
ao sol e o aguardar da morte sem pensar nela. Buscam, ainda
que parados no alto de uma coluna; anseiam, ainda que numa
cela sem luz; querem o queo conhecem, ainda que no
martírio dado e na mágoa imposta.
s outros todos, que vivemos animais com mais ou
menos complexidade, atravessamos o palco como figurantes
queo falam, contentes da solenidade vaidosa do trajeto.
Cães e homens, gatos e heróis, pulgas e gênios, brincamos a
existir, sem pensar nisso (que os melhores pensam só em
pensar) sob o grande sossego das estrelas. Os outros os
místicos da má hora e do sacrifício sentem ao menos, com
o corpo e o quotidiano, a presença mágica do mistério.o
libertos, porque negam o sol visível;o plenos, porque se
esvaziaram do vácuo do mundo.
Estou quase místico, com eles, ao falar deles, mas seria
incapaz de ser mais que estas palavras escritas ao sabor da
minha inclinação ocasional. Serei sempre da Rua dos Doura -
dores, como a humanidade inteira. Serei sempre, em verso
ou prosa, empregado de carteira. Serei sempre no místico ou
no não-místico, local e submisso, servo das minhas sensa-
ções e da hora em que as ter. Serei sempre, sob o grande
palio azul dou mudo, pajem num rito incompreendido,
vestido de vida para cumpri-lo, e executando, sem saber por
quê, gestos e passos, posições e maneiras, até que a festa
acabe, ou o meu papel nela, e eu possa ir comer coisas de gala
nas grandes barracas que estão, dizem, lá embaixo no fundo
do jardim.
FERNANDO PESSOA
Desde que, conforme posso, medito e observo, tenho
reparado que em nada os homens sabem a verdade, ou estão
de acordo, que seja realmente supremo na vida ou útil ao
vivê-la. A ciência mais exata é a matemática, que vive na
clausura das suas próprias regras e leis; serve, sim, de, por
aplicação, elucidar outras ciências, mas elucida o que estas
descobrem,o as ajuda a descobrir. Nas outras ciênciaso
é certo e aceite senão o que nada pesa para os fins supremos
da vida. A física sabe bem qual é o coeficiente de dilatação do
ferro;o sabe qual é a verdadeira mecânica da constituição
do mundo. E quanto mais subimos no que desejaríamos sa-
ber, mais descemos no que sabemos. A metafísica, que seria
o guia supremo porque é ela e só ela que se dirige aos fins
supremos da verdade e da vida essa nem é teoria cientí-
fica, senão somente um monte de tijolos formando, nestas
mãos ou naquelas, casas de nenhum feitio que nenhuma ar-
gamassa liga.
Reparo, também, que entre a vida dos homens e a dos
animaiso há outra diferença queo a da maneira como se
enganam ou a ignoram.o sabem os animais o que fazem:
nascem, crescem, vivem, morrem sem pensamento, reflexo
ou verdadeiramente futuro. Quantos homens, porém, vivem
de modo diferente do dos animais? Dormimos todos, e a dife-
rença está só nos sonhos, e no grau e qualidade de sonhar.
Talvez a morte nos desperte, mas a isso tambémo há res-
posta senão a da, para quem crer é ter, a da esperança, para
quem desejar é possuir, a da caridade, para quem dar é rece-
ber.
Chove, nesta tarde fria de inverno triste, como se hou-
vesse chovido, assim monotonamente, desde a primeira-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
gina do mundo. Chove, e meus sentimentos, como se a chu-
va os vergasse, dobram seu olhar bruto para a terra da ci-
dade, onde corre uma água que nada alimenta, que nada lava,
que nada alegra. Chove, e eu sinto subitamente a opressão
imensa de ser um animal queo sabe o que é, sonhando o
pensamento e a emoção, encolhido, como num tugúrio,
numa região espacial do ser, contente de um pequeno calor
como de uma verdade eterna.
Nada me pesa tanto no desgosto como as palavras so-
ciais de moral. Já a palavra ' 'dever'' é para mim desagradá-
vel como um intruso. Mas os termos ' 'dever cívico", ' 'soli-
dariedade", "humanitarismo", e outros da mesma estirpe,
repugnam-me como porcarias que despejassem sobre mim de
janelas. Sinto-me ofendido com a suposição, que alguém por-
ventura faça, de que essas expressõesm que ver comigo, de
que lhes encontro,o só uma valia, mas sequer um sentido.
Vi há pouco, em uma montra de loja de brinquedos,
umas coisas que exatamente me lembram o que essas expres-
sões são. Vi, em pratos fingidos, manjares fingidos para me-
sas de bonecas. Ao homem que existe, sensual, egoísta, vai-
doso, amigo dos outros porque tem o dom da fala, inimigo
dos outros porque tem o dom da vida, a esse homem que há
que oferecer com que brinque às bonecas com palavras vazias
de some tom?
O governo assenta em duas coisas: refrear e enganar. O
mal desses termos lantejoulados é que nem refreiam nem
enganam. Embebedam, quando muito, e isso é outra coisa.
Se alguma coisa odeio, é um reformador. Um reforma-
dor é um homem que vê os males superficiais do mundo e se
propõe curá-los agravando os fundamentais. O médico tenta
FERNANDO PESSOA
adaptar o corpo doente ao corpo são; masso sabemos o
que éo ou doente na vida social.
o posso considerar a humanidade senão como uma
das últimas escolas na pintura decorativa da Natureza.o
distingo, fundamentalmente, um homem de uma árvore; e,
por certo, prefiro o que mais decore, o que mais interesse os
meus olhos pensantes. Se a árvore me interessa mais, pesa-
me mais que cortem a árvore do que o homem morra. Há
idas de poente que me doem mais que mortes de crianças.
Em tudo sou o queo sente, para que sinta.
Quase me culpo de estar escrevendo estas meias refle-
xões nesta hora em que dos confins da tarde sobe, colorindo-
se, uma brisa ligeira. Colorindo-se não, queo é ela que se
colora, mas o ar em que bóia incerta; mas, como me parece
que é ela mesma que se colora, é isso que digo, pois hei por
força de dizer o que me parece, visto que sou eu.
O mundo é de quemo sente. A condição essencial
para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade.
A qualidade principal na prática da vida é aquela qualidade
que conduz à ação, isto é, a vontade. Ora há duas coisas que
estorvam a ação — a sensibilidade e o pensamento analítico,
queo é, afinal, mais que o pensamento com sensibilidade.
Toda a ação é, por sua natureza, a projeção da personalidade
sobre o mundo externo, e como o mundo externo é em gran-
de e principal parte composto por entes humanos, segue que
essa projeção da personalidade é essencialmente o atravessar-
mo-nos no caminho alheio, o estorvar, ferir e esmagar os
outros, conforme o nosso modo de agir.
Para agir é, pois, preciso que noso figuremos com
facilidade as personalidades alheias, as suas dores e alegrias.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Ouem simpatiza pára. O homem de ação considera o mundo
externo como composto exclusivamente de matéria inerte
ou inerte em si mesma, como uma pedra sobre que passa ou
que afasta do caminho; ou inerte como um ente humano
que, porqueo lhe pôde resistir, tanto faz que fosse homem
como pedra, pois, como à pedra, ou se afastou ou se passou
por cima.
O exemplo máximo do homem prático, porque reúne a
extrema concentração da ação com a sua extrema importân-
cia, é a do estratégico. Toda a vida é guerra, e a batalha é,
pois, a síntese da vida. Ora o estratégico é um homem que
joga com vidas como o jogador de xadrez com peças do jogo.
Que seria do estratégico se pensasse que cada lance do seu
jogoe noite em mil lares e mágoa em três mil corações?
Que seria do mundo se fôssemos humanos? Se o homem
sentisse deveras,o haveria civilização. A arte serve de fuga
para a sensibilidade que a ação teve que esquecer. A arte é a
Gata Borralheira, que ficou em casa porque teve que ser.
Todo o homem de ação é essencialmente animado e oti-
mista porque quemo sente é feliz. Conhece-se um homem
de ação por nunca estar mal disposto. Quem trabalha embora
esteja mal disposto é um subsidiário da ação; pode ser na
vida, na grande generalidade da vida, um guarda-livros,
como eu sou na particularidade dela. O queo pode ser é
um regente de coisas ou de homens. A regência pertence a
insensibilidade. Governa quem é alegre porque para ser triste
é preciso sentir.
O patrão Vasques fez hoje um negócio em que arruinou
um indivíduo doente e a família. Enquanto fez o negócio es-
queceu por completo que esse indivíduo existia, exceto como
parte contrária comercial. Feito o negócio, veio-lhe a sensi-
bilidade. Só depois, é claro, pois, se viesse antes, o negócio
nunca se faria. "Tenho pena do tipo", disse-me ele. "Vai
FERNANDO PESSOA
ficar na miséria". Depois, acendendo o charuto, acrescen-
tou: "Em todo o caso, se ele precisar qualquer coisa de
mim" entendendo-se qualquer esmola "euo es-
queço que lhe devo um bom negócio e umas dezenas de
contos."
O patrão Vasqueso é um bandido: é um homem de
ação. O que perdeu o lance neste jogo pode, de fato, pois o
patrão Vasques é um homem generoso, contar com a esmola
dele no futuro.
Como o patrão Vasqueso todos os homens de ação
chefes industriais e comerciais, políticos, homens de guerra,
idealistas religiosos e sociais, grandes poetas e grandes artis-
tas, mulheres formosas, crianças que fazem o que querem.
Manda quemo sente. Vence quem pensa só o que precisa
para vencer. O resto, que é a vaga humanidade geral, amor-
fa, sensível, imaginativa e frágil, éo mais que o pano de
fundo contra o qual se destacam estas figuras da cena até que
a peça de fantoches acabe, o fundo-chato de quadrados sobre
o qual se erguem as peças de xadrez até que as guarde o
Grande Jogador que, iludindo a reportagem com uma dupla
personalidade, joga, entretendo-se sempre contra si mesmo.
Quanto mais contemplo o espetáculo do mundo, e o flu-
xo e refluxo da mutação das coisas, mais profundamente me
compenetro da ficção ingênita de tudo, do prestígio falso da
pompa de todas as realidades. E nesta contemplação, que a
todos, que refletem, uma ou outra vez terá sucedido, a mar-
cha multicolor dos costumes e das modas, o caminho com-
plexo dos progressos e das civilizações, a confusão grandiosa
dos impérios e das culturas tudo isso me aparece como um
mito e uma ficção, sonhado entre sombras e esquecimentos.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Maso sei se a definição suprema de todos esses propósitos
mortos, até quando conseguidos, deva estar na abdicação ex-
tática do Buda, que, ao compreender a vacuidade das coisas,
se ergueu do seu êxtase dizendo ' 'Já sei tudo'', ou na indife-
rença demasiado experiente do imperador Severo: "omnia
fui, nihil expedit fui tudo, nada vale a pena.
<*&>
Maneira de bem sonhar
Adia tudo. Nunca se deve fazer hoje o que se pode
deixar de fazer também amanhã.
Nem mesmo é necessário que se faça qualquer coisa,
amanhã ou hoje.
Nunca penses no que vais fazer.o o faças.
Vive a tua vida.o sejas vivido por ela.
Na verdade e no erro, no gozo e no mal-estar, sê o teu
próprio ser. Só poderás fazer isso sonhando, porque a tua
vida-real, a tua vida humana é aquela queo é tua, mas dos
outros. Assim, substituirás o sonho à vida e cuidarás apenas
em que sonhes com perfeição. Em todos os teus atos da vida-
real, desde o de nascer até ao de morrer, tuo ages: és
agido; tuo vives: és vivido apenas.
Torna-te para os outros, uma esfinge absurda. Fecha-
te, mas sem bater com a porta, na tua torre de marfim. E a
tua torre de marfim és tu próprio.
E se alguém te disser que isto é falso e absurdoo o
acredites. Maso acredites também no que eu digo, porque
seo deve acreditar em nada.
FERNANDO PESSOA
Despreza tudo, mas de modo que o desprezar teo
incomode.o te julgue superior ao desprezares. A arte do
desprezo nobre está nisso.
(Chapter on Indijference orsomething like that)
Toda a alma digna de si-própria deseja viver a vida em
Extremo. Contentar-se com o que lheo é próprio dos es-
cravos. Pedir mais é próprio das crianças. Conquistar mais é
próprio dos loucos, porque toda a conquista é (...)
Viver a vida em Extremo significa vivê-la até ao limite,
mas há três maneiras de o fazer, e a cada alma elevada com-
pete escolher uma das maneiras. Pode viver-se a vida em
extremo pela posse extrema dela, pela viagem ulisséa atra-
s de todas as sensações vividas, através de todas as formas
de energia exteriorizada. Raros, porém, são, em todas as
épocas do mundo, os que podem fechar os olhos cheios do
cansaço soma de todos os cansaços, os que possuíram tudo de
todas as maneiras.
Raros podem assim exigir da vida, conseguindo-o, que
ela se lhes entregue corpo e alma; sabendoo ser ciumentos
dela por saber ter-lhe o amor inteiramente. Mas este deve
ser, sem dúvida, o desejo de toda a alma elevada e forte.
Quando essa alma, porém, verifica que lhe] impossível
tal realização, queo tem forças para a conquista de todas as
partes do Todo, tem dois outros caminhos que siga um,
a abdicação inteira, a abstenção formal, completa, relegando
para a esfera da sensibilidade aquilo queo pode possuir
integralmente na região da atividade e da energia. Mais vale
supremamenteo agir que agir inutilmente, fragmentaria-
mente, imbastantemente, como a inúmera supérflua maioria
inane dos homens; outro, o caminho do perfeito equilíbrio,
a busca do Limite na Proporção Absoluta, por onde a ânsia
LIVRO DO DESASSOSSEGO
de Extremo passa da vontade e da emoção para a Inteligência,
sendo toda a ambiçãoo de viver toda a vida,o de sentir
toda a vida, mas de ordenar toda a vida, de a cumprir em
Harmonia e Coordenação inteligente.
A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres
substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade. Subs-
tituir a Inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e
a emoção, despindo de interesse todos os gestos da vida ma-
terial, eis o que, conseguido, vale mais que a vida,o difícil
de possuir completa, eo triste de possuir parcial.
Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que
vivero é preciso. Argonautas, nós, da sensibilidade doen-
tia, digamos que sentir é preciso, mas queo é preciso
viver.
5
Viagem nunca feita
I
listou num dia em que me pesa, como uma entrada no
cárcere, a monotonia de tudo. A monotonia de tudoo é,
porém, senão a monotonia de mim. Cada rosto, ainda que
seja o de quem vimos ontem, é outro hoje, pois que hojeo
é ontem. Cada dia é o dia que é, nunca houve outro igual no
mundo. Só em nossa alma está a identidade a identidade
sentida, embora falsa, consigo mesma pela qual tudo se
assemelha e se simplifica. O mundo é coisas destacadas e
arestas diferentes; mas, se somos míopes, é uma névoa insu-
ficiente e contínua.
O meu desejo é fugir. Fugir ao que conheço, fugir ao
que é meu, fugir ao que amo. Desejo partiro para as
índias impossíveis, ou para as grandes ilhas ao Sul de tudo,
mas para o lugar qualquer aldeia ou ermo que tenha
em si oo ser este lugar. Queroo ver mais estes rostos,
estes hábitos e estes dias. Quero repousar, alheio, do meu
fingimento orgânico. Quero sentir o sono chegar como vida,
eo como repouso. Uma cabana à beira-mar, uma caverna,
até, no socalco rugoso de uma serra, me pode dar isto. Infe-
lizmente, só a minha vontade moo pode dar.
A escravatura é a lei da vida, eo há outra lei, porque
esta tem de cumprir-se, sem revolta possível nem refúgio
que achar. Uns nascem escravos, outros tornam-se escravos,
e a outros a escravidão é dada. O amor covarde que todos
FERNANDO PESSOA
temos à liberdade que, se a tivéssemos, estranharíamos,
por nova, repudiando-a é o verdadeiro sinal do peso da
nossa escravidão. Eu mesmo, que acabo de dizer que dese-
jaria a cabana ou caverna onde estivesse livre da monotonia
de tudo, que é a de mim, ousaria eu partir para essa cabana ou
caverna, sabendo, por conhecimento, que, pois que a mono-
tonia é de mim, a haveria sempre de ter comigo? Eu mesmo,
que sufoco onde estou e porque estou, onde respiraria me-
lhor, se a doença é dos meus pulmões eo das coisas que
me cercam? Eu mesmo, que anseio alto pelo sol puro e os
campos livres, pelo mar visível e o horizonte inteiro, quem
me diz queo estranharia a cama, ou a comida, ouo ter
que descer os oito lances de escada até a rua, ouo entrar
na tabacaria da esquina, ouo trocar os bons dias com o
barbeiro ocioso?
Tudo que nos cerca se torna parte de nós, se nos infiltra
na sensação da carne e da vida, e, baba da grande Aranha, nos
liga sutilmente ao que está perto, enleando-nos num leito
leve de morte lenta, onde balouçamos ao vento. Tudo é nós,
es somos tudo; mas de que serve isto, se tudo é nada? Um
raio de sol, uma nuvem que a sombra súbita diz que passa,
uma brisa que se ergue, o silêncio que se segue quando ela
cessa, um rosto ou outro, algumas vozes, o riso casual entre
elas que falam, e depois a noite onde emergem sem sentido
os hieróglifos quebrados das estrelas.
Espaçado, um vagalume vai sucedendo(-se) a si mesmo.
Em torno, obscuro, o campo é uma grande falta de ruído que
cheira quase bem. A paz de tudoi e pesa. Um tédio in-
forme afoga-me.
Poucas vezes vou ao campo, quase nenhumas ali passo
um dia, ou de um dia para outro. Mas hoje, que este amigo,
LIVRO DO DESASSOSSEGO
em cuja casa estou, meo deixouo aceitar o seu convite,
vim para aqui cheio de constrangimento como um tímido
para uma festa grande cheguei aqui com alegria, gostei do
ar e da paisagem ampla, almocei e jantei bem, e agora, noite
funda, no meu quarto sem luz o lugar vago enche-me de an-
gústia.
A janela do quarto onde dormirei deita para o campo
aberto, para um campo indefinido, que é todos os campos,
para a grande noite vagamente constelada onde uma aragem
que seo ouve se sente. Sentado à janela, contemplo com
os sentidos, toda esta coisa nenhuma da vida universal que
está lá fora. A hora harmoniza-se numa sensação inquieta,
desde a invisibilidade visivel de tudo até à madeira vagamente
rugosa de ter estalado a tinta velha do parapeito branque-
jante, onde está estendidamente apoiada de lado a minhao
esquerda.
Quantas vezes, contudo,o anseio visualmente por
esta paz de onde quase fugiria agora, se fosse fácil ou decente!
Quantas vezes julgo crer lá embaixo, entre as ruas estrei-
tas de casas altas que a paz, a prosa,*b definitivo estariam
antes aqui, entre as coisas naturais, que ali onde o pano de
mesa da civilização faz esquecer o pinho já pintado em que
assenta! E, agora, aqui, sentindo-me saudável, cansado a
bem, estou intranqüilo, estou preso, estou saudoso.
o sei se é a mim que acontece, se a todos os que a
civilização fez nascer segunda vez. Mas parece-me que para
mim, ou para os que sentem como eu, o artificial passou a
ser o natural, e é o natural que é estranho.o digo bem:
o artificialo passou a ser o natural; o natural passou a ser
diferente. Dispenso e detesto veículos, dispenso e detesto os
produtos da ciência telefones, telégrafos que tornam a
vida fácil, ou os subprodutos da fantasia gramofonógrafos,
FERNANDO PESSOA
receptores hertzianos que, aos a quem divertem, a tornam
divertida.
Nada disso me interessa, nada disso desejo. Mas amo o
Tejo porque há uma cidade grande à beira dele. Gozo ou
porque o vejo de um quarto andar de rua da Baixa. Nada o
campo ou a natureza me pode dar que valha a majestade irre-
gular da cidade tranqüila, sob o luar, vista da Graça ou de S.
Pedro de Alcântara.o há para mim flores como, sob o sol,
o colorido variadíssimo de Lisboa.
A beleza de um corpo nu só o sentem as raças vestidas.
O pudor vale sobretudo para a sensualidade como o obstá-
culo para a energia.
A artificialidade é a maneira de gozar a naturalidade. 0
que gozei destes campos vastos, gozei-o porque aquio
vivo.o sente a liberdade quem nunca viveu constrangido.
A civilização é uma educação de natureza. O artificial é
o caminho para uma aproximação do natural.
O que é preciso, porém, é que nunca tomemos o artifi-
cial por natural.
É na harmonia entre o natural e o artificial que consiste
a naturalidade da alma humana superior.
Uma vista breve de campo, por cima de um muro dos
arredores, liberta-me mais completamente do que uma via-
gem inteira libertaria outro. Todo ponto de visão é um ápice
de uma pirâmide invertida, cuja base é indeterminável.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
O campo é ondeo estamos. Ali, só ali, há sombras
verdadeiras e verdadeiro arvoredo.
A vida é a hesitação entre uma exclamação e uma inter-
rogação. Na dúvida, há um ponto final.
O milagre é a preguiça de Deus, ou, antes, a preguiça
que Lhe atribuimos, inventando o milagre.
Os Deuseso a encarnação do que nunca poderemos
ser.
O cansaço de todas as hipóteses...
Prosa de Férias
A praia pequena, formando uma baía pequeníssima, ex-
cluída do mundo por dois promontórios em miniatura era,
naquelas férias de três dias, o meu retiro de mim mesmo.
Descia-se para a praia por uma escada tosca, que começava,
em cima, em escada de madeira, e a meio se tornava em
recorte de degraus na rocha, com corrimão de ferro ferru-
gento. E, sempre que eu descia a escada velha, e sobretudo
da pedra aoss para baixo, saía da minha própria existência,
encontrando-me.
Dizem os ocultistas, ou alguns deles, que há momentos
supremos da alma em que ela recorda, com a emoção ou com
parte da memória, um momento, ou um aspecto, ou uma
sombra de uma encarnação anterior. E então, como regressa
a um tempo que está mais próximo que o seu presente da
origem e do começo das coisas, sente, em certo modo, uma
infância e uma libertação.
Dir-se-ia que, descendo aquela escada pouco usada ago-
ra, e entrando lentamente na praia pequena sempre deserta
eu empregava um processo mágico para me encontrar mais
próximo da mônada possível que sou. Certos modos e feições
da minha vida quotidiana representados no meu ser cons-
tante por desejos, repugnâncias, preocupações sumiam-se
de mim como embuscados da ronda, apagavam-se nas som-
bras até seo perceber o que eram, e eu atingia um estado
de distância íntima em que se me tornava difícil lembrar-me
de ontem, ou conhecer como meu o ser que em mim está
vivo todos os dias. As minhas emoções de constantemente,
os meus hábitos regularmente irregulares, as minhas falas
com outros, as minhas adaptações à constituição social do
mundo tudo isto me parecia coisas lidas algures, páginas
inertes de uma biografia impressa, pormenores de um ro-
mance qualquer, naqueles capítulos intervalares que lemos
pensando em outra coisa, e o fio da narrativa se esbambeia
até cobriar pelo chão.
Então, na praia rumorosa só das ondas próprias, ou do
vento que passava alto, como um grande avião inexistente,
entregava-me a uma nova espécie de sonhos coisas infor-
mes e suaves, maravilhas da impressão profunda, sem ima-
gens, sem emoções, limpas como ou e as águas, e soando,
como as volutas desrendando-se do mar alçante do fundo de
uma grande verdade; tremulamente de um azul oblíquo ao
longe, es verdeando na chegada com transparências de outros
tons verde-sujos, e, depois de quebrar, chiando, os mil bra-
ços desfeitos, e os desalongar em areia amorenada e espuma
desbabada, congregando em si todas as ressacas, os regressos
à liberdade da origem, as saudades divinas, as memórias,
como esta que informemente meo doía, de um estado an-
terior, ou feliz por bom ou por outro, um corpo de saudade
com alma de espuma, o repouso, a morte, o tudo ou nada que
cerca como um grande mar a ilha de náufragos que é a vida.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
E eu dormia sem sono, desviado já do que via a sentir,
crepúsculo de mim mesmo, som de água entre árvores, cal-
ma dos grandes rios, frescura das tardes tristes, lento arfar do
peito branco do sono de infância da contemplação.
Gostava de estar no campo para poder gostar de estar na
cidade. Gosto, sem isso, de estar na cidade porém com isso o
meu gosto seria dois.
Nada pesa tanto como o afeto alheio nem o ódio
alheio, pois que o ódio é mais intermitente que o afeto; sendo
uma emoção desagradável, tende, por instinto de quem a
tem, a ser menos freqüente. Mas, tanto o ódio como o amor
nos oprime; ambos nos buscam e procuram, noso deixam
(sós).
O meu ideal seria viver tudo em romance, repousando
na vida ler as minhas emoções, viver o meu desprezo de-
las. Para quem tenha a imaginação à flor da pele, as aventu-
ras de um protagonista de romanceo emoção própria bas-
tante, e mais, pois queo dele e nossas.o há grande
aventura como ter amado Lady Macbeth, com amor verda-
deiro e direto; que tem que fazer que[m] assim amou senão,
por descanso,o amar nesta vida ninguém?
o sei que sentido tem esta viagem que fui forçado a
fazer, entre uma noite e outra noite, na companhia do uni-
verso inteiro. Sei que posso ler para me distrair. Considero a
leitura como o modo mais simples de entreter esta, como
outra, viagem; e, de vez em quando, ergo os olhos do livro
onde estou sentindo verdadeiramente, e vejo, como estran-
geiro, a paisagem que foge campos, cidades, homens e
FERNANDO PESSOA
mulheres, afeições e saudades e tudo issoo é mais para
mim do que um episódio do meu repouso, uma distração
inerte em que descanso os olhos das páginas demasiado lidas.
Só o que sonhamos é o que verdadeiramente somos,
porque o mais, por estar realizado, pertence ao mundo e a
toda a gente. Se realizasse algum sonho, teria ciúmes dele,
pois me haveria traído com o ter-se deixado realizar. Realizei
tudo quanto quis, diz o débil, e é mentira; a verdade é que
sonhou profeticamente tudo quanto a vida realizou dele.
Nada realizamos. A vida atira-nos como uma pedra, es
vamos dizendo no ar " Aqui me vou mexendo''.
Seja o que for este interlúdio mimado sob o projetor do
sol e as lantejoulas das estrelas,o faz mal decerto saber que
ele é um interlúdio; se o que está para além das portas do
teatro é a vida, viveremos; se é a morte, morreremos, e a
peça nada tem com isso.
Por isso nunca me sintoo próximo da verdade,o
sensivelmente iniciado, como quando nas raras vezes que
vou ao teatro ou ao circo: sei então que enfim estou assis-
tindo à perfeita figuração da vida. E os atores e as atrizes, os
palhaços e os prestidigitadoreso coisas importantes e fri-
teis, como o sol e a lua, o amor e a morte, a peste, a fome,
a guerra, na humanidade. Tudo é teatro. Ah, quero a ver-
dade? Vou continuar o romance...
A vida é uma viagem experimental, feita involuntaria-
mente. É uma viagem do espírito através da matéria, e, como
é o espírito que viaja, é nele que se vive., por isso, almas
contemplativas quem vivido mais intensa, mais extensa,
mais tumultuariamente do que outras quem vivido exter-
nas. O resultado é tudo. O que se sentiu foi o que se viveu.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Recolhe-seo cansado de um sonho como de um trabalho
visivel. Nunca se viveu tanto como quando se pensou muito.
Quem está ao canto da sala dança com todos os dança-
rinos. Vê tudo, e, porque vê tudo, vive tudo. Como tudo, em
súmula e ultimidade, é uma sensação nossa, tanto vale o
contato com um corpo como a visão dele, ou, até, a sua sim-
ples recordação. Danço, pois, quando vejo dançar. Digo,
como o poeta inglês, narrando que contemplava, deitado na
erva ao longe, três ceifeiros: "Um quarto está ceifando, e
esse sou eu".
Vem isto tudo, que vai dito como vai sentido, a propó-
sito do grande cansaço, aparentemente sem causa, que des-
ceu hoje súbito sobre mim. Estouo só cansado, mas amar-
gurado, e a amargura é incógnita também. Estou, de angus-
tiado, à beira de lágrimaso de lágrimas que se choram,
mas que se reprimem, lágrimas de uma doença da alma, que
o de uma dor sensível.
Tanto tenho vivido sem ter vivido! Tanto tenho pen-
sado sem ter pensado! Pesam sbre mim mundos de violên-
cias paradas, de aventuras tidas sem movimentos. Estou far-
to do que nunca tive nem terei, tediento de deuses por exis-
tir. Trago comigo as feridas de todas as batalhas que evitei.
Meu corpo muscular está moído do esforço que nem pensei
em fazer.
Baço, mudo, nulo... Ou ao alto é de um verão morto,
imperfeito. Olho-o como se ele alio estivesse. Durmo o
que penso, estou deitado andando, sofro sem sentir. A mi-
nha grande nostalgia é de nada, é nada, como ou alto que
o vejo, e que estou fitando impessoalmente.
FERNANDO PESSOA
Todos aqueles acasos infelizes da nossa vida, em que
fomos, ou ridículos, ou reles, ou atrasados, consideremo-los,
à luz da nossa serenidade íntima, como incômodos de via-
gem. Neste mundo, viajantes, volentes ou involentes entre
nada e nada ou entre tudo e tudo, somos somente passagei-
ros, queo devem dar demasiado vulto aos percalços do
percurso, às contundências da trajetória. Consolo-me com
isto,o sei se porque me consolo, se porque há nisto que
me console. Mas a consolação fictícia torna-se-me verdade se
o penso nela.
Depois, há tantas consolações! Há ou azul alto, lim-
po e sereno, onde bóiam sempre nuvens imperfeitas. Há a
brisa leve, que agita os ramos duros das árvores, se é no
campo; que faz oscilar as roupas estendidas, nos quartos an-
dares, ou quintos, se é na cidade. Há o calor ou fresco, se os
, e sempre, no fundo, vem [...] com sua saudade, ou sua
esperança, e um sorriso de magia à janela do mundo, o que
desejamos batendo à porta do que somos, como pedintes que
o o Cristo.
A idéia de viajar nauseia-me.
Já vi tudo que nunca tinha visto.
Já vi tudo que aindao vi.
O tédio do constantemente novo, o tédio de descobrir,
sob a falsa diferença das coisas e das idéias, a perene identi-
dade de tudo, a semelhança absoluta entre a mesquita, o tem-
plo e a igreja, a igualdade da cabana e do castelo, o mesmo
corpo estrutural a ser rei vestido e selvagem nu, a eterna
concordância da vida consigo mesma, a estagnação de tudo
que vivo só de mexer-se está passando.
Paisagenso repetições. Numa simples viagem de
comboio inútil e angustiadamente entre a inatenção à paisa-
gem e a inatenção ao livro que me entreteria se eu fosse ou-
tro. Tenho da vida uma náusea vaga, e o movimento acen-
tua-ma.
Sóo há tédio nas paisagens queo existem, nos li-
vros que nunca lerei. A vida, para mim, é uma sonolência
queo chega ao cérebro. Esse conservo eu livre para que
nele possa ser triste.
Ah, viagem os queo existem! Para quemo é nada,
como um rio, o correr deve ser vida. Mas aos que pensam e
sentem, aos que estão despertos, a horrorosa histeria [?] dos
comboios, dos automóveis, dos navioso o deixa dormir
nem acordar.
De qualquer viagem, ainda que pequena, regresso como
de um sono cheio de sonhos uma confusão tórpida, com
as sensações coladas umas às outras, bêbado do que vi.
Para o repouso falta-me a saúde da alma. Para o movi-
mento falta-me qualquer coisa que há entre a alma e o corpo;
negam-se-me,o os movimentos, mas o desejo [de] os ter.
Muitas vezes me tem sucedido querer atravessar o rio,
estes dez minutos do T[erreiro] do Paço a Cacilhas. E quase
sempre tive como que a timidez de tanta gente, de mim mes-
mo e do meu propósito. Uma ou outra vez tenho ido, sempre
opresso, sempre pondo somente o pé em terra de quando
estou de volta.
Quando se sente de mais, o Tejo é Atlântico sem-
mero, e Cacilhas, outro continente, ou até outro universo.
Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia,
como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou
do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os
gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como,
afinal, as paisagens são.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fra-
queza extrema da imaginação justifica que se tenha que des-
locar para sentir.
"Qualquer estrada, esta mesma estrada de Entepfuhl,
te levará até ao fim do mundo''. Mas o fim do mundo, desde
que o mundo se consumou dando-lhe a volta, é o mesmo
Entepfuhl de onde se partiu. Na realidade, o fim do mundo,
como o princípio, é o nosso conceito do mundo. É ems
que as paisagensm paisagem. Por isso, se as imagino, as
crio; se as crio, são; se são, vejo-as como às outras. Para que
viajar? Em Madri, em Berlim, na Pérsia, na China, nos-
los ambos, onde estaria eu senão em mim mesmo, e no tipo e
gênero das minhas sensações?
A vida é o que fazemos dela. As viagenso os viajan-
tes. O que vemos,o é o que vemos, senão o que somos.
O único viajante com verdadeira alma que conheci era
um garoto de escritório que havia numa outra casa, onde em
tempos fui empregado. Este rapazito colecionava folhetos de
propaganda de cidades, países e companhias de transportes;
tinha mapas uns arrancados de periódicos, outros que pe-
dia aqui e ali; tinha, recortadas de jornais e revistas, ilus-
trações de paisagens, gravuras de costumes exóticos, retratos
de barcos e navios. Ia às agências de turismo, em nome de
um escritório hipotético, ou talvez em nome de qualquer es-
critório existente, possivelmente o próprio onde estava, e pe-
dia folhetos sobre viagens para a Itália, folhetos de viagens
para a índia, folhetos dando as ligações entre Portugal e a
Austrália.
o só era o maior viajante, porque o mais verdadeiro,
que tenho conhecido: era também uma das pessoas mais fe-
FERNANDO PESSOA
lizes que me tem sido dado encontrar. Tenho pena deo
saber o que é feito dele, ou na verdade, suponho somente que
deveria ter pena; na realidadeo a tenho, pois hoje, que
passaram dez anos, ou mais, sobre o breve tempo em que o
conheci, deve ser homem, estúpido, cumpridor dos seus de-
veres, casado talvez, sustentáculo social de qualquer
morto, enfim, em sua mesma vida. É até capaz de ter viajado
com o corpo, ele queo bem viajava com a alma.
Recordo-me de repente: ele sabia exatamente por que
vias férreas se ia de Paris a Bucareste, por que vias férreas se
percorria a Inglaterra, e, através das pronúncias erradas dos
nomes estranhos, havia a certeza aureolada da sua grandeza
de alma. Hoje, sim, deve ter existido para morto, mas talvez
um dia, em velho, se lembre, como éo só melhor, senão
mais verdadeiro, o sonhar com Bordéus do que desembarcar
em Bordéus.
E, daí, talvez isto tudo tivesse outra explicação qual-
quer, e ele estivesse somente imitando alguém. Ou... Sim,
julgo às vezes, considerando a diferença hedionda entre a
inteligência das crianças e a estupidez dos adultos, que so-
mos acompanhados na infância por um espírito da guarda,
que nos empresta a própria inteligência astral, e que depois,
talvez com pena, mas por uma lei alta, nos abandona, como
as mães animais às crias crescidas, ao cevado que é o nosso
destino.
Há uma erudição do conhecimento, que é propriamente
o que se chama erudição, e há uma erudição do entendi-
mento, que é o que se chama cultura. Mas há também uma
erudição da sensibilidade.
FERNANDO PESSOA
A erudição da sensibilidade nada tem que ver com a ex-
periência da vida. A experiência da vida nada ensina, como a
história nada informa. A verdadeira experiência consiste em
restringir o contato com a realidade e aumentar a análise
desse contato. Assim a sensibilidade se alarga e aprofunda,
porque ems está tudo; basta que o procuremos e o saiba-
mos procurar.
Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é
o poente;o é mister ir vê-lo a Constantinopla. A sensação
de libertação, que nasce das viagens? Posso tê-la saindo de
Lisboa até Benfica, e tê-la mais intensamente do que quem
vá de Lisboa à China, porque se a libertaçãoo está em
mim,o está, para mim, em parte alguma. "Qualquer es-
trada' ', disse Carlyle,' 'até esta estrada de Entepfuhl, te leva
até ao fim do mundo". Mas a estrada de Entepfuhl, se for
seguida toda, e até ao fim, volta a Entepfuhl; de modo que o
Entepfuhl, onde já estávamos, é aquele mesmo fim do mundo
que íamos a buscar.
Condillac começa o seu livro célebre, "Por mais alto
que subamos e mais baixo que desçamos, nunca saímos das
nossas sensações". Nunca desembarcamos de nós. Nunca
chegamos a outrem, senão outrando-nos pela imaginação
sensível des mesmos. As verdadeiras paisagenso as que
s mesmos criamos, porque assim, sendo deuses delas, as
vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram
criadas.o é nenhuma das sete partidas do mundo aquela
que me interessa e posso verdadeiramente ver; a oitava par-
tida é que percorro e é minha.
Quem cruzou todos os mares cruzou somente a mono-
tonia de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Já vi
mais montanhas que as que há na terra. Passei já por cidades
mais que existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos
LIVRO DO DESASSOSSEGO
fluíram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos. Se
viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar.
Nos países que os outros visitam, visitam-nos anônimos
e peregrinos. Nos países que tenho visitado, tenho sido,o
só o prazer escondido do viajante incógnito, mas a majestade
do Rei que ali reina, e o povo cujo uso ali habita, e a história
inteira daquela nação e das outras. As mesmas paisagens, as
mesmas casas eu as vi porque as fui, feitas em Deus com a
substância da minha imaginação.
A renúncia é a libertação.o querer é poder.
Que me pode dar a China que a minha alma meo te-
nha já dado? E, se a minha alma moo pode dar, como mo
dará a China, se é com minha alma que verei a China, se a
vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, maso riqueza
de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou
onde estou, sem Oriente ou com ele.
Compreendo que viaje quem é incapaz de sentir. Por
issooo pobres sempre como livros de experiência os li-
vros de viagens, valendo somente pela imaginação de quem
os escreve. E se quem os escreve tem imaginação, tanto nos
pode encantar com a descrição minuciosa, fotográfica a es-
tandartes, de paisagens que imaginou, como com a descri-
ção, forçosamente menos minuciosa, das paisagens que su-
s ver. Somos todos míopes, exceto para dentro. Só o sonho
vê com (o) olhar.
No fundo, há na nossa experiência da terra duas coisas
só o universal e o particular. Descrever o universal é des-
crever o que é comum a toda a alma humana e a toda a
experiência humana — ou vasto, com o dia e a noite que
FERNANDO PESSOA
acontecem dele e nele; o correr dos rios todos da mesma
água sororal e fresca; os mares, montanhas tremulamente
extensas, guardando a majestade da altura no segredo da pro-
fundeza; os campos, as estações, as casas, as caras, os gestos;
o traje e os sorrisos; o amor e as guerras; os deuses, finitos e
infinitos; a Noite sem forma,e da origem do mundo; o
Fado, o monstro intelectual que é tudo... Descrevendo isto,
ou qualquer coisa universal como isto, falo com a alma a lin-
guagem primitiva e divina, o idioma adâmico que todos en-
tendem. Mas que linguagem estilhaçada e babélica falaria eu
quando descrevesse o Elevador de Santa Justa, a Catedral de
Rheims, os calções dos zuavos, a maneira como o português
se pronuncia em Trás-os-Montes? Estas coisaso acidentes
da superfície; podem sentir-se com o andar maso com o
sentir. O que no Elevador de Santa Justa é o universal é a
mecânica facilitando o mundo. O que na Catedral de Rheims
é verdadeo é a Catedral nem o Rheims, mas a majestade
religiosa dos edifícios consagrados ao conhecimento da pro-
fundeza da alma humana. O que nos calções dos zuavos é
eterno é a ficção colorida dos trajes, linguagem humana,
criando uma simplicidade social que é em seu modo uma
nova nudez. O que nas pronúncias locais é universal é o tim-
bre caseiro das vozes de gente que vive espontânea, a diver-
sidade dos seres juntos, a sucessão multicolor das maneiras,
as diferenças dos povos, e a vasta variedade das nações.
Transeuntes eternos pors mesmos,o há paisagem
seo o que somos. Nada possuímos, porque nem as
possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos es-
tenderei para que universo? O universoo é meu: sou eu.
Cada vez que viajo, viajo imenso. O cansaço que trago
comigo de uma viagem de comboio até Cascais, é como se
fosse o de ter, nesse pouco tempo, percorrido as paisagens de
campo e cidade de quatro ou cinco países.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Cada casa por que passo, cada chalé, cada casita isolada
caiada de branco e de silêncio em cada uma delas num
momento me concebo vivendo, primeiro feliz, depois te-
diento, cansado depois; e sinto que tendo-a abandonado, tra-
go comigo uma saudade enorme do tempo em que lá vivi. De
modo que todas as minhas viagenso uma colheita dolorosa
e feliz de grandes alegrias, de tédios enormes, de inúmeras
falsas saudades.
Depois, ao passar diante de casas, de ''Villas", de cha-
lés, vou vivendo em mim todas as vidas das criaturas que ali
estão. Vivo todas aquelas vidas domésticas ao mesmo tempo.
Sou o pai, a mãe, os filhos, os primos, a criada e o primo da
criada, ao mesmo tempo e tudo junto, pela arte espacial que
tenho de sentir ao mesmo [tempo] várias sensações diver-
sas, de viver ao mesmo tempo e ao mesmo tempo por
fora, vendo-as, e por dentro sentindo-mas as vidas de vá
rias criaturas.
Paisagens inúteis, como aquelas queo a volta às chá-
venas chinesas, partindo da asa. e vindo acabar na asa, de
repente. As chávenaso sempreo pequenas... Para onde
se prolongaria, e com que (...) de porcelana, a paisagem que
o se prolongou para além da asa da chávena?
É possível a certas almas sentir uma dor profunda por a
paisagem pintada num abano chinêso ter três dimensões.
Naufrágios? Não, nunca tive nenhum. Mas tenho a
impressão de que todas as minhas viagens naufraguei, a mi-
nha salvação escondida em [...]
Sonhos vagos, luzes confusas, paisagens perplexas
eis o que me resta na alma de tanto que viajei.
Tenho a impressão de que conheci horas de todas as
cores, amores de todos os sabores, ânsias de todos os tama-
nhos. Desmedi-me pela vida fora, e nunca me bastei nem me
sonhei bastando-me.
Preciso explicar-lhe que viajei realmente. Mas tudo
me sabe a constar-me que viajei, maso vivi. Levei de um
lado para outro, de norte para sul... de leste para oeste o
cansaço de ter tido um passado, o tédio de viver o presente,
e o desassossego de ter que ter um futuro. Mas tanto me
esforço que fico todo no presente matando dentro de mim o
passado e o futuro.
Passei pelas margens dos rios cujo nome me encon-
trei ignorando. As mesas dos cafés de cidades visitadas des-
cobri-me a perceber que tudo me sabia a sonho, a vago. Che-
guei a ter às vezes a dúvida seo continuava sentado à mesa
da nossa casa antiga, universal e deslumbrado por sonhos!
o lhe posso afirmar que issoo aconteça, que euo
esteja lá agora ainda, que tudo isto, incluindo esta conversa
consigo,o seja falso e suposto. O sr. que é? Dá-se o fato
ainda absurdo deo o poder explicar...
Viagem nunca feita
Foi por um crepúsculo de vago outono que eu parti para
essa viagem que nunca fiz.
Ou impossivelmente me recordo era dum resto
roxo de ouro triste, e a linha agônica dos montes, lúcida,
tinha uma auréola cujos tons de morte lhe penetravam, ama-
ciadores, na astúcia do seu contorno. Da outra amurada do
barco (estava mais frio e era mais noite sob esse lado do tol-
do) o oceano tremia-se até onde o horizonte leste se entriste-
cia, e onde, pondo penumbras de noite na linha líquida e
obscura do mar extremo, um hálito de treva pairava como
uma névoa em dia de calor.
FERNANDO PESSOA
LIVRO DO DESASSOSSEGO
O mar, recordo-me, tinha tonalidades de sombra, de
mistura com fugas ondeadas de vaga luz e era tudo mis-
terioso como uma idéia triste numa hora de alegria, profético
o sei de quê.
Euo parti de um porto conhecido. Nem hoje sei que
porto era, porque ainda nunca lá estive. Também, igual-
mente, o propósito ritual da minha viagem era ir em de-
manda de portos inexistentes portos que fossem apenas o
entrar-para-portos; enseadas esquecidas de rios, estreitos
entre cidades irrepreensivelmente irreais. Julgais, sem-
vida, ao ler-me, que as minhas palavraso absurdas. É que
nunca viajastes como eu.
Eu parti? Euo vos juraria que parti. Encontrei-me
em outras partes, noutros portos, passei por cidades queo
eram aquela, ainda que nem aquela nem essas fossem cidades
algumas. Jurar-vos que fui eu que parti eo a paisagem,
que fui eu que visitei outras terras eo elas que me visi-
taramo vô-lo posso fazer. Eu que,o sabendo o que é
a vida, nem sei se sou eu que a vivo se é ela que me vive
(tenha esse verbo ao "viver" o sentido que quiser ter), de-
certoo vos irei jurar qualquer coisa.
Viajei. Julgo inútil explicar-vos queo levei nem me-
ses, nem dias, nem outra quantidade qualquer de qualquer
medida de tempo a viajar. Viajei no tempo é certo, maso
do lado de cá do tempo, onde o contamos por horas, dias e
meses; foi do outro lado do tempo que eu viajei, onde o tem-
po seo conta por medida. Decorre, mas sem que seja pos-
sível medi-lo. É como que mais rápido que o tempo que vi-
mos viver-nos. Perguntais-me a vós, de certo, que sentido
m estas frases; Nunca erreis assim. Despedi-vos do erro
infantil de perguntar o sentido às coisas e às palavras. Nada
tem um sentido.
Em que barco fiz essa viagem? No vapor Qualquer.
Rides. Eu também, e des talvez. Quem vos diz, e a mim,
queo escrevo símbolos para os deuses compreenderem?
FERNANDO PESSOA
o importa. Parti pelo crepúsculo. Tenho ainda no
ouvido o ruído férreo de puxar a âncora a vapor. No soslaio
da minha memória movem-se ainda lentamente, para enfim
entrarem na sua posição de inércia, os braços do guindaste de
bordo que havia horas haviam magoado a minha vista de
contínuos caixotes e barris. Estes rompiam súbitos, presos
de roda por uma corrente, de por cima da amurada onde es-
barravam, arranhando, e depois,"oscilando, se iam deixando
empurrar, empurrar, até ficarem por cima do porão, para
onde, súbitos, desciam (...), até, com um choque surdo e
madeirento, chegarem esmagadoramente a um lugar oculto
do porão. Depois soavam lá embaixo o desatarem-nos; em
seguida subia só a corrente chincalhante no ar, e recomeçava
tudo, como que inutilmente.
Eu para vos que conto isto? Porque é absurdo estar-vos
a contá-lo, visto que é das minhas viagens que disse que fa-
laria.
Visitei Novas Europas, e Constantinoplas, outras aco-
lheram a minha vinda veleira em Bósforos falsos. Vinda ve-
leira espantais? É como vos digo, assim mesmo. O vapor em
que parti chegou barco de vela ao porto [...] Que isto é im-
possível dizeis. Por isso me aconteceu.
Chegaram-nos, em outros vapores, notícias de guerras
sonhadas em índias impossíveis. E, ao ouvir falar dessas ter-
ras tínhamos importunamente saudades da nossa, deixada
o atrás, quem sabe se naquele mundo.
Viagem nunca feita
E assim escondo-me atrás da porta, para que a Reali-
dade, quando entra, meo veja. Escondo-me debaixo da
LIVRO DO DESASSOSSEGO
mesa, donde subitamente, prego sustos à Possibilidade. De
modo que desligo de mim como aos dois braços de um am-
plexo, os dois grandes tédios que me apertam o tédio de
poder viver só o Real, e o tédio de poder conceber só o Pos-
sível.
Triunfo assim de toda a realidade. Castelos de areia, os
meus triunfos?.. De que coisa essencialmente divinao os
castelos queoo de areia?
Como sabeis que, viajando assim,o me segui [?] obs-
curamente?
Infantil de absurdo, revivo a minha meninice, e brinco
com as idéias das coisas como com soldados de chumbo com
os quais eu, quando menino, fazia coisas que embirravam
com a idéia de soldado.
Ébrio de erros, perco-me por momentos de sentir-me
viver.
o desembarcaro tem cais onde se desembarque.
Nunca chegar implicao chegar nunca.
A idéia de viajar seduz-me por translação, como se fosse
a idéia própria para seduzir alguém que euo fosse. Toda a
vasta visibilidade do mundo me percorre, num movimento
de tédio colorido, a imaginação acordada; esboço um desejo
como quem jáo quer fazer gestos, e o cansaço antecipado
das paisagens possíveis aflige-me como um vento torpe, a
flor do coração que estagnou.
FERNANDO PESSOA
E como as viagens as leituras, e como as leituras tudo...
Sonho uma vida erudita, entre o convívio mudo dos antigos e
dos modernos, renovando as emoções pelas emoções alheias,
enchendo-me de pensamentos contraditórios na contradição
dos meditadores e dos que quase pensaram, queo a maioria
dos que escreveram. Mas só a idéia de ler se me desvanece se
tomo de cima da mesa um livro qualquer, o fato físico de ter
que ler anula-me a leitura... Do mesmo modo se me estiola a
idéia de viajar se acaso me aproximo de onde possa haver
embarque. E regresso às duas coisas nulas em que estou cer-
to, de nulo também que sou — à minha vida quotidiana de
transeunte incógnito, e aos meus sonhos como insônias de
acordado.
E como as leituras tudo... Desde que qualquer coisa se
possa sonhar como interrompendo deveras o decurso mudo
dos meus dias, ergo olhos de protesto pesado para a sílfide
que me é própria, aquela, coitada que seria talvez sereia se
tivesse aprendido a cantar.
Devaneio entre Cascais e Lisboa. Fui pagar a Cascais
uma contribuição do patrão Vasques, de uma casa que tem
no Estoril. Gozei antecipadamente o prazer de ir, uma hora
para, uma hora para, vendo os aspectos sempre vários
do grande rio e da sua foz atlântica. Na verdade, ao ir, perdi-
me em meditações abstratas, vendo sem ver as paisagens
aquáticas que me alegrava ir ver, e ao voltar perdi-me na fi-
xação destas sensações.o seria capaz de descrever o mais
pequeno pormenor da viagem, o mais pequeno trecho de vi-
sível. Lucrei estas páginas, por olvido e contradição.o sei
se isso é melhor ou pior do que o contrário, que tambémo
sei o que é.
O comboio abranda, é o Cais do Sodré. Cheguei a Lis-
boa, maso a uma conclusão.
A Viagem na Cabeça
Do meu quarto andar sobre o infinito, no plausível ín-
timo da tarde que acontece, à janela para o começo das estre-
las, meus sonhoso por acordo de ritmo com distância ex-
posta para as viagens aos países incógnitos, ou supostos ou
somente impossíveis.
6
O amante visual
Talar é ter demasiada consideração pelos outros. Pela
boca morrem o peixe e Oscar Wilde.
Às vezes, sem que o espere ou deva esperá-lo, a sufoca-
cação do vulgar me toma a garganta e tenho a náusea física
da voz e do gesto do chamado semelhante. A náusea física
direta, sentida diretamente no estômago e na cabeça, mara-
vilha estúpida da sensibilidade desperta... Cada indivíduo
que me fala, cada cara cujos olhos me fitam, afeta-me como
um insulto ou como uma porcaria. Extravaso horror de tudo.
Entonteço de me sentir senti-los.
E acontece, quase sempre, nestes momentos de desola-
ção estomacal, que há um homem, uma mulher, uma crian-
ça até, que se ergue diante de mim como um representante
real da banalidade que me agonia.o representante por
uma emoção minha, subjetiva e pensada, mas por uma ver-
dade objetiva, realmente conforme de fora com o que sinto
de dentro que surge por magia analógica e me traz o exemplo
para a regra que penso.
Uma das minhas preocupações constantes é o com-
preender como é que outra gente existe, como é que há al-
FERNANDO PESSOA
mas queo sejam a minha, consciências estranhas à minha
consciência, que, por ser consciência, me parece ser a única.
Compreendo bem que o homem que está diante de mim, e
me fala com palavras iguais às minhas, e me fez gestos que
o como eu faço ou poderia fazer, seja de algum modo meu
semelhante. O mesmo, porém, me sucede com as gravuras
que sonho das ilustrações, com as personagens que vejo dos
romances, com as pessoas dramáticas que no palco passam
através dos atores que as figuram.
Ninguém, suponho, admite verdadeiramente a existên-
cia real de outra pessoa. Pode conceder que essa pessoa seja
viva e pense como ele; mas haverá sempre um elemento anô-
nimo de diferença, uma desvantagem materializada. Há figu-
ras de tempos idos, imagens espíritos em livros, queo para
s realidades maiores que aquelas indiferenças encarnadas
que falam conosco por cima dos balcões, ou nos olham por
acaso nos elétricos, ou nos roçam, transeuntes, no acaso
morto das ruas. Os outrosoo paras mais que paisa-
gem, e, quase sempre, paisagem invisível de rua conhecida.
Tenho por mais minhas, com maior parentesco e inti-
midade, certas figuras que estão escritas em livros, certas
imagens que conheci de estampas, do que muitas pessoas,
a que chamam reais, queo dessa inutilidade metafísica cha-
mada carne e osso. E "carne e osso", de fato, as descreve
bem: parecem coisas cortadas postas no exterior marmóreo
de um talho, mortes sangrando como vidas, pernas e coste-
letas do Destino.
o me envergonho de sentir assim porque já vi que
todos sentem assim. O que parece haver de desprezo entre
homem e homem, de indiferente que permite que se mate
gente sem que se sinta que se mata, como entre os assassi-
nos, ou sem que se pense que se está matando, como entre os
LIVRO DO DESASSOSSEGO
soldados, é que ninguém presta a devida atenção ao fato, pa-
rece que abstruso, de que os outroso almas também.
Em certos dias, em certas horas, trazidas até mim por
o sei que brisa, abertas a mim por o abrir deo sei que
porta, sinto de repente que o merceeiro da esquina é um ente
espiritual, que o marçano, que neste momento se debruça à
porta sobre o saco de batatas, é, verdadeiramente, uma alma
capaz de sofrer.
Quando ontem me disseram que o empregado da taba-
caria se tinha suicidado, tive uma impressão de mentira. Coi-
tado, também existia! Tínhamos esquecido isso,s todos
dos[,]s todos que o conhecíamos do mesmo modo que
todos que oo conheceram. Amanhã esquecê-lo-emos me-
lhor. Mas que havia alma, havia, para que se matasse. Pai-
xões? Angústias? Sem dúvida... Mas a mim, como à huma-
nidade inteira, há só a memória de um sorriso parvo por
cima de um casaco de mescla, sujo, e desigual nos ombros. É
quanto me resta, a mim, de quem tanto sentiu que se matou
de sentir, porque, enfim, de outra coisa seo deve matar
alguém... Pensei uma vez, ao comprar-lhe cigarros, que en-
calvecer ia cedo. Afinalo teve tempo para encalvecer. É
uma das memórias que me restam dele. Que outra me have-
ria de restar se esta, afinal,o é dele mas de um pensamento
meu?
Tenho subitamente a visão do cadáver, do caixão em
que o meteram, da cova, inteiramente alheia, a que o haviam
de ter levado. E vejo, de repente, que o caixeiro da tabacaria
era, em certo modo, casaco torto e tudo, a humanidade in-
teira.
Foi só um momento. Hoje, agora, claramente, como
homem que sou, ele morreu. Mais nada.
Sim, os outroso existem... É para mim que este
poente estagna, pesadamente alado, as suas cores nevoentas
e duras. Para mim, sob o poente, treme, sem que eu veja que
corre, o grande rio. Foi feito para mim este largo aberto so-
bre o rio cuja maré chega. Foi enterrado hoje na vala comum
o caixeiro da tabacaria?o é para ele o poente hoje. Mas,
de o pensar, e sem que eu queira, também deixou de ser para
mim...
Para compreender, destruí-me. Compreender é esque-
cer de amar. Nada conheço mais ao mesmo tempp falso e
significativo que aquele dito de Leonardo da Vinci, de que se
o pode amar ou odiar uma coisa senão depois de com-
preendê-la.
A solidão desola-me; a companhia oprime-me. A pre-
sença de outra pessoa descaminha-me os pensamentos; so-
nho a sua presença com uma distração especial, que toda a
minha atenção analíticao consegue definir.
O isolamento talhou-me à sua imagem e semelhança. A
presença de outra pessoa de uma só pessoa que seja
atrasa-me imediatamente o pensamento, e, ao passo que no
homem normal o contato com outrem é um estímulo para a
expressão e para o dito, em mim esse contato é um contra-
estímulo, se é que esta palavra composta é viável perante a
linguagem. Sou capaz, as comigo, de idear quantos ditos
de espírito, respostas rápidas ao que ninguém disse, fulgura-
ções de uma sociedade inteligente com pessoa nenhuma; mas
tudo isso se me some se estou perante um outrem físico,
perco a inteligência, deixo de poder dizer, e, no fim de uns
quartos de hora, sinto apenas sono. Sim, falar com gente-
me vontade de dormir. Só os meus amigos espectrais e ima-
FERNANDO PESSOA
ginados, só as minhas conversas decorrentes em sonho,m
uma verdadeira realidade e um justo relevo, e neles o espírito
é presente como uma imagem num espelho.
Pesa-me, aliás, toda a idéia de ser forçado a um contato
com outrem. Um simples convite para jantar com üm amigo
me produz uma angústia difícil de definir. A idéia de uma
obrigação social qualquer ir a um enterro, tratar junto de
alguém de uma coisa do escritório, ir esperar à estação uma
pessoa qualquer, conhecida ou desconhecida, só essa idéia
me estorva os pensamentos de um dia, e às vezes é desde, a
mesma véspera que me preocupo, e durmo mal, e o caso
real, quando se, é absolutamente insignificante,o justi-
fica nada; e o caso repete-se e euo aprendo nunca a apren-
der.
"Os meus hábitoso da solidão, queo dos ho-
mens";o sei se foi Rousseau, se Senancour, o que disse
isto. Mas foi qualquer espírito da minha espécieo po-
derei talvez dizer da minha raça.
Assim como, quer o saibamos quer não, temos todos
uma metafísica, assim também, quer o queiramos quer não,
temos todos uma moral. Tenho uma moral muito simples
o fazer a ninguém nem mal nem bem.o fazer a nin-
guém,mal, porqueo só reconheço nos outros o mesmo
direito que julgo que me cabe, de queo me incomodem,
mas acho que bastam os males naturais para mal que tenha
que haver no mundo. Vivemos todos, neste mundo, a bordo
de um navio saído de um porto que desconhecemos para um
porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros, uma
amabilidade de viagem.o fazer bem, porqueo sei o que
é o bem nem se o faço quando julgo que o faço. Sei eu que
males produzo se dou esmola? Sei eu que males produzo se
LIVRO DO DESASSOSSEGO
FERNANDO PESSOA
educo ou instruo? Na dúvida, abstenho-me. E acho, ainda,
que auxiliar ou esclarecer é, em certo modo, fazer o mal de
intervir na vida alheia. A bondade é um capricho tempera-
mental:o temos o direito de fazer os outros vítimas de
nossos caprichos, ainda que de humanidade ou de ternura.
Os benefícioso coisas que se infligem; por isso os abomino
friamente.
Seo faço o bem, por moral, tambémo exijo que mo
façam. Se adoeço, o que mais me pesa é que obrigo alguém a
tratar-me, coisa que me repugnaria de fazer a outrem. Nun-
ca visitei um amigo doente. Sempre que, tendo eu adoecido,
me visitaram, sofri cada visita como um incômodo, um in-
sulto, uma violação injustificável da minha intimidade deci-
siva.o gosto que me dêem coisas; parecem com isso obri-
gar-me a que as dê também aos mesmos ou a outros, seja
a quem for.
Sou altamente sociável de um modo altamente negativo.
Sou a inofensividade encarnada. Maso sou mais do que
isso,o quero ser mais do que isso,o posso ser mais do
que isso. Tenho para com tudo que existe uma ternura vi-
sual, um carinho da inteligência nada no coração.o
tenho fé em nada, esperança de nada, caridade para nada.
Abomino com náusea e pasmo os sinceros de todas as since-
ridades e os místicos de todos os misticismos ou, antes e
melhor, as sinceridades de todos os sinceros e os misticismos
de todos os místicos. Essa náusea é quase física quando esses
misticismoso ativos, quando pretendem convencer a inte-
ligência alheia, ou mover a vontade alheia, encontrar a ver-
dade ou reformar o mundo.
Considero-me feliz poro ter já parentes.o me vejo
assim na obrigação, que inevitavelmente me pesaria, de ter
que amar alguém.o tenho saudades senão literariamente.
Lembro a minha infância com lágrimas, maso lágrimas rít-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
micas, onde já se prepara a prosa. Lembro-a como uma coisa
externa e através de coisas externas; lembro só as coisas ex-
ternas.o é sossego dos serões de província que me enter-
nece da infância que vivi neles, é a disposição da mesa para o
chá,o os vultos dos móveis em torno da casa,o as caras e
os gestos físicos das pessoas. É de quadros que tenho sauda-
des. Por isso tanto me enternece a minha infância como a de
outrem:o ambas, no passado queo sei o que é, fenôme-
nos puramente visuais, que sinto com a atenção literária.
Enterneço-me, sim, maso é porque lembro, mas porque
vejo.
Nunca amei ninguém. O mais que tenho amadoo
sensações minhas estados da visualidade consciente, im-
pressões da audição desperta, perfumes queo uma maneira
de a humildade do mundo externo falar comigo, dizer-me
coisas do passado (tão fácil de lembrar pelos cheiros) isto
é, de me darem mais realidade, mais emoção, que o simples
o a coser lá dentro na padaria funda, como naquela tarde
longínqua em que vinha do enterro do meu tio que me amara
tanto e havia em mim vagamente a ternura de um alívio,o
sei bem de quê.
É esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu:
Transeunte de tudo até de minha própria alma,o
pertenço a nada,o desejo nada,o sou nada centro
abstrato de sensações impessoais, espelho caído sentiente vi-
rado para a variedade do mundo. Com isto,o sei se sou
feliz ou infeliz; nem me importa.
Aquela malícia incerta e quase imponderável que alegra
qualquer coração humano ante a dor dos outros, e o descon-
forto alheio, ponho-a eu no exame das minhas próprias do-
res, levo-ao longe que nas ocasiões em que me sinto ridí-
FERNANDO PESSOA
culo ou mesquinho, gozo-o como se fosse outro que o esti-
vesse sendo. Por uma estranha e fantástica transformação de
sentimentos, acontece queo sinto essa alegria maldosa e
humaníssima perante a dor e o ridículo alheio. Sinto perante
o rebaixamento dos outroso uma dor, mas um descon-
forto estético e uma irritação sinuosa.o é por bondade
que isto acontece, mas sim porque quem se torna ridículo
o é só para mim que se torna ridículo, mas para os outros
também, e irrita-me que alguém esteja sendo ridículo para os
outros, dói-me que qualquer animal da espécie humana ria à
custa de outro, quandoo tem direito de o fazer. De os
outros se rirem à minha custao me importo, porque de
mim para fora há um desprezo profícuo e blindado.
Mais terrível do que qualquer muro, pus grades altíssi-
mas a demarcar o jardim do meu ser, de modo que, vendo
perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e
mantenho outros.
Escolher modos deo agir foi sempre a atenção e o es-
crúpulo da minha vida.
o me submeto ao estado nem aos homens; resisto
inertemente. O estado só me pode querer para uma ação
qualquer.o agindo eu, ele nada de mim consegue. Hoje já
o se mata, e ele apenas me pode incomodar; se isso acon-
tecer, terei que blindar mais o meu espírito e viver mais lon-
ge a dentro dos meus sonhos. Mas issoo aconteceu nunca.
Nunca me apoquentou o estado. Creio que a sorte soube pro-
videnciar.
Tive um certo talento para a amizade, mas nunca tive
amigos, quer porque eles me faltassem, quer porque a ami-
zade que eu concebera fora um erro dos meus sonhos. Vivi
sempre isolado, e cada vez mais isolado, quanto mais dei por
mim.
Diário lúcido
A minha vida, tragédia caída sob a pateada dos anjos e
de que só o primeiro ato se representou.
Amigos, nenhum. Só uns conhecidos que julgam que
simpatizam comigo e teriam talvez pena se um comboio me
passasse por cima e o enterro fosse em dia de chuva.
O prêmio natural do meu afastamento da vida foi a inca-
pacidade, que criei nos outros, de sentirem comigo. Em tor-
no a mim há uma auréola de frieza, um halo de gelo que
repele os outros. Aindao conseguio sofrer com a mi-
nha solidão.o difícil é obter aquela distinção de espírito
que permita ao isolamento ser um repouso sem angústia.
Nunca dei crédito à amizade que me mostraram, como
oo teria dado ao amor, se mo houvessem mostrado, o que,
aliás, seria impossível. Embora nunca tivesse ilusões a res-
peito daqueles que se diziam meus amigos, consegui sempre
sofrer desilusões com eleso complexo e sutil é o meu
destino de sofrer.
Nunca duvidei que todos me traíssem; e pasmei sempre
quando me traíram. Quando chegava o que eu esperava, era
sempre inesperado para mim.
Como nunca descobri em mim qualidades que atraíssem
alguém nunca pude acreditar que alguém se sentisse atraído
por mim. A opinião seria de uma modéstia estulta, se fatos
sobre fatos aqueles inesperados fatos que eu esperava
ao viessem confirmar sempre.
Nem posso conceber que me estimem por compaixão,
porque, embora fisicamente desajeitado e inaceitável,o
LIVRO DO DESASSOSSEGO
FERNANDO PESSOA
tenho aquele grau de amarfanhamento orgânico com que
entre na órbita da compaixão alheia, nem mesmo aquela sim-
patia que a atrai quando elao seja patentemente merecida;
e para o que em mim merece piedade,o a pode haver,
porque nunca há piedade para os aleijados do espírito. De
modo que caí naquele centro de gravidade do desdém alheio,
em queo me inclino para a simpatia de ninguém.
Toda a minha vida tem sido querer adaptar-me a isto
sem lhe sentir demasiadamente a crueza e a abjeção.
É preciso certa coragem intelectual para um indivíduo
reconhecer destemidamente queo passa de um farrapo hu-
mano, aborto sobrevivente, louco ainda fora das fronteiras da
internabilidade; mas é preciso ainda mais coragem de espí-
rito para, reconhecido isso, criar uma adaptação perfeita ao
seu destino, aceitar sem revolta, sem resignação, sem gesto
algum, ou esboço de gesto, a maldição orgânica que a Natu-
reza lhe impôs. Querer queo sofra com isso, é querer de-
mais, porqueo cabe no humano o aceitar o mal, vendo-o
bem, e chamar-lhe bem; e, aceitando-o como mal,o é pos-
sívelo sofrer com ele.
Conceber-me de fora foi a minha desgraça — a desgraça
para a minha felicidade. Vi-me como os outros me vêem, e
passei a desprezar-meo tanto porque reconhecesse em
mim uma tal ordem de qualidades que eu por elas merecesse
desprezo, mas porque passei a vêr-me como os outros me
vêem e a sentir um desprezo qualquer que eles por mim sen-
tem. Sofri a humilhação de me conhecer. Como este calvário
o tem nobreza, nem ressurreição dias depois, euo pude
senão sofrer com o ignóbil disto.
Compreendi que era impossível a alguém amar-me, a
o ser que lhe faltasse de todo o senso estético e então eu
o desprezaria por isso; e que mesmo simpatizar comigoo
podia passar de um capricho da indiferença alheia.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Ver claro ems e em como os outros nos vêem! Ver
esta verdade frente a frente! E no fim o grito de Cristo no
calvário, quando viu, frente a frente, a sua verdade: Senhor,
senhor, porque me abandonaste?
Em todos os lugares da vida, em todas as situações e
convivências, eu fui sempre, para todos, um intruso. Pelo
menos, fui sempre um estranho. No meio de parentes, como
no de conhecidos, fui sempre sentido como alguém de fora.
o digo que o fui, uma só vez sequer, de caso pensado. Mas
fui-o sempre por uma atitude espontânea da média dos tem-
peramentos alheios.
Fui sempre, em toda a parte e por todos, tratado com
simpatia. A pouquíssimos, creio, teráo pouca gente er-
guido a voz, ou franzido a testa, ou falado alto ou de terça.
Mas a simpatia com que sempre me trataram, foi sempre
isenta de afeição. Para os mais naturalmente íntimos fui sem-
pre um hóspede, que, por hóspede é bem tratado, mas sem-
pre com a atenção devida ao estranho e a falta de afeição
merecida pelo intruso.
o duvido que tudo isto, da atitude dos outros, derive
principalmente de qualquer obscura causa intrínseca ao meu
próprio temperamento. Sou porventura de uma frieza comu-
nicativa, que involuntariamente obrigo os outros a refletirem
o meu modo de pouco sentir.
Travo, por índole, rapidamente conhecimentos. Tar-
dam-me pouco as simpatias dos outros. Mas as afeições nun-
ca chegam. Dedicações nunca as conheci. Amarem, foi
coisa que sempre me pareceu impossível, como um estranho
tratar-me por tu.
o sei se sofra com isto, se o aceito como um destino
indiferente, em queo há nem que sofrer nem que aceitar.
Desejei sempre agradar. Doeu-me sempre que me fos-
sem indiferentes. Órfão da Fortuna, tenho, como todos os
FERNANDO PESSOA
órfãos, a necessidade de ser o objeto da afeição de alguém.
Passei sempre fome da realização dessa necessidade. Tanto
me adaptei a essa fome inútil [?] que, por vezes, nem sei se
sinto a necessidade de comer.
Com isto ou sem isto a vida dói-me.
Os outrosm quem se lhes dedique. Eu nunca tive
quem sequer pensasse em se me dedicar. Servem os outros:
a mim tratam-me bem.
Reconheço em mim a capacidade de provocar respeito,
maso afeição. Infelizmenteo tenho feito nada com que
justifique a si próprio esse respeito começado [por] quem o
sente de modo que nunca chega a respeitar-me deveras.
Julgo às vezes que gozo sofrer. Mas na verdade eu pre-
feriria outra coisa.
o tenho qualidades de chefe, nem de sequaz. Nem
sequer as tenho de satisfeito, queo as que valem quando
essas outras faltam.
Outros, menos inteligentes que eu,o mais fortes.
Talham melhor a sua vida entre gente; administram,
mais habilmente, a sua inteligência. Tenho todas as quali-
dades para influir, menos a arte de o fazer, ou a vontade,
mesmo, de o desejar.
Se um dia amasse,o seria amado.
Basta eu querer uma coisa para ela morrer. O meu des-
tino, porém,o tem a força de ser mortal para qualquer
coisa. Tem a fraqueza de ser mortal nas coisas para mim.
Junta as mãos, põe-as entre as minhas e escuta-me,
ó meu amor.
Eu quero, falando numa voz suave e embaladora, como
a dum confessor que aconselha, dizer-te o quanto a ânsia de
atingir fica aquém do que atingimos.
Quero rezar contigo, a minha voz com a tua atenção,
a litania da desesperança.
o há obra de artista queo pudesse ter sido mais
perfeita. Lido verso por verso, o maior poema poucos versos
teria queo pudessem ser melhores, poucos episódios que
o pudessem ser mais intensos, e nunca o seu conjunto é
o perfeito que oo pudesse ser muitíssimo mais.
Ai do artista que repara para isto! que um dia pensa
nisto! Nunca mais o seu trabalho é alegria, nem o seu sono
sossego. É moço sem mocidade e envelhece descontente.
E para que exprimir? O pouco que se diz melhor fora
ficaro dito.
Se eu me pudesse compenetrar-me realmente de quanto
a renúncia é bela, que dolorosamente feliz para sempre que
eu seria!
Porque tuo amas o que eu digo com os ouvidos com
que eu me ouço dizê-lo. Eu próprio se me ouço falar alto, os
ouvidos com que me ouço falar altoo me escutam do
mesmo modo que o ouvido íntimo com que me ouço pensar
palavras. Se eu me erro, ouvindo-me, e tenho que pergun-
tar tantas vezes, a mim próprio o que quis dizer, os outros
quanto meo entenderão!
De quais complexas inteligênciaso é feita a com-
preensão dos outros de nós.
A delícia de se ver compreendido,o a pode ter quem
se quero compreendido, porque só aos complexos e in-
compreendidos isso acontece; e os outros, os simples, aque-
les que os outros podem compreender esses nuncam o
desejo de serem compreendidos.
Tu és do sexo das formas sonhadas, do sexo nulo das
figuras (...)
Mero perfil às vezes, mera atitude outras vezes, outras
LIVRO DO DESASSOSSEGO
FERNANDO PESSOA
gesto lento apenas és momentos, atitudes, espiritualizadas
em minha (s).
Nenhum fascínio do sexo se subentende no meu sonhar-
te, sob a tua veste vaga de madona dos silêncios interiores.
Os teus seiosoo dos que se pudesse pensar em beijar-se.
O teu corpo é todo ele carne-alma, maso é alma é corpo.
A matéria da tua carneo é espiritual mas é espiritualidade
s a mulher anterior à Queda) [...]
O meu horror às mulheres reais quem sexo é a es-
trada por onde eu fui ao teu encontro. As da terra, que para
serem (...)m de suportar o peso movediço de um homem
quem as pode amar, queo se lhe desfolhe o amor na
antevisão do prazer que serve [?] o sexo [...]? Quem pode
respeitar a Esposa sem ter de pensar que ela é uma mulher
noutra posição de cópula... Quemo se enoja de tere
por ter sidoo vulvar na sua origem,o nojentamente pa-
rido? Que nojo deso punge [ ?] a idéia da origem carnal
da nossa alma daquele inquieto (...) corpóreo donde a
nossa carne nasce, e, por bela que seja, se desfeia de origem e
se nos enoja de nata.
Os idealistas falsos da vida-real fazem versos á Esposa,
ajoelham à idéia de Mãe... O seu idealismo é uma veste que
tapa,o é um sonho que crie.
Pura só tu, Senhora dos Sonhos, que eu posso conceber
amante sem conceber mácula porque és irreal. A ti posso-te
conceber mãe, adorando-a, porque nunca te manchaste nem
do horror de seres fecundada, nem do horror de parires.
Gomoo te adorar se só tu és adorável? Gomoo te
amar se só tu és digna do amor?
Quem sabe se sonhando-te euo te crio, real noutra
realidade; seo serás minha ali, num outro e puro mundo
onde sem corpo táctil nos amemos, com outro jeito de abra-
ços e outras atitudes essenciais de posse(s)? Quem sabe mes-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
mo seo existirás já eo te criei nem te vi apenas, com
outra visão, interior e pura, num outro e perfeito mundo?
Quem sabe se o meu sonhar-teo foi o encontrar-se sim-
plesmente, se o meu amar-teo foi o pensar-em-ti, se o
meu desprezo pela carne e o meu nojo pelo amoro foram a
obscura ânsia com que, ignorando-te, te esperava, e a vaga
aspiração com que, desconhecendo-te, te queria?
o sei mesmo já (se)o te amei, num vago onde
cuja saudade este meu tédio perene talvez seja. Talvez sejas
uma saudade minha, corpo de ausência, presença de Distân-
cia, fêmea talvez por outras razões queo as de sê-lo.
Posso pensar-te virgem e tambéme porqueo és
deste mundo. A criança que tens nos braços nunca foi mais
nova para que houvesses de a sujar de a ter no ventre. Nunca
foste outra do que és e comoo seres virgem portanto?
Posso amar-te e também adorar-te porque o meu amoro te
possui e a minha adoraçãoo te afasta.
Sê o Dia-Eterno e que os meus poentes sejam raios do
teu sol, possuídos em ti.
Sê o Crepúsculo Invisível [?] e que as minhas ânsias
e desassossegos sejam as tintas da tua indecisão, as sombras
da tua incerteza.
Sê a Noite-Total, torna-te a Noite Única e que todo eu
me perca e me esqueça em ti, e que os meus sonhos brilhem,
estrelas, no teu corpo de distância e negação...
Seja eu as dobras do teu manto; as jóias da tua tiara, e o
ouro outro dos anéis dos teus dedos.
Cinza na tua lareira, que importa que eu seja? Janela
no teu quarto, que importa que eu seja espaço? Hora (...) na
tua clepsidra, que importa que eu passe se por ser teu ficarei,
que eu morra se por ser teuo morrer, que eu te perca se
o perder-te é encontrar-te?
Realizadora dos absurdos, seguidora [?] de frases sem
nexo. Que o teu silêncio me embale, que a tua (...) me ador-
meça, que o teu mero-ser me acaricie e me amacie e me
conforte, ó [...] do Além, ó imperial de Ausência; Virgo-
FERNANDO PESSOA
e de todos os silêncios, Lareira das almas quem frio,
Anjo da guarda dos abandonados, paisagem humana ir-
real [?] de triste eterna Perfeição.
Nossa Senhora do Silêncio
(trecho)
Tuo és mulher. Nem mesmo dentro de mim evocas
qualquer coisa que eu possa sentir feminina. É quando falo
de ti que as palavras te chamam fêmea, e as expressões te
contornam de mulher. Porque tenho de te falar com ternura
e amoroso sonho, as palavras encontram voz para isso apenas
em te tratar como feminina.
Mas tu, na tua vaga essência,o és nada.o tens
realidade, nem mesmo uma realidade só tua. Propriamente,
o te vejo, nem mesmo te sinto. És como que um senti-
mento que fosse o seu próprio objeto e pertencesse todo ao
íntimo de si-próprio. És sempre a paisagem que eu estive
quase para (poder) ver, a orla da veste que por pouco euo
pude ver, perdido num eterno Agora para além da curva do
caminho. O teu perfil éo seres nada, e o contorno do teu
corpo irreal desata em pérolas separadas o colar da idéia de
contorno. Já passaste, e já foste e já te amei o sentir-te
presente é sentir isto.
Ocupas o intervalo dos meus pensamentos e os inters-
tícios das minhas sensações. Por isso euo te penso nem te
sinto, mas os meus pensamentoso opiais de te sentir, e os
meus sentimentos góticos [?] de evocar-te.
Lua de memórias perdidas sobre a negra paisagem,-
tida de vazio [?], da minha imperfeição compreendendo-se.
O meu ser sente-te vazante como se fosse um cinto teu que te
sentisse. Debruço-me sobre o teu rosto branco nas águas no-
turnas do meu desassossego, no meu saber que és lua no meu
LIVRO DO DESASSOSSEGO
u para que o causes, ou estranha lua submarina para que,
o sei como, o finjas.
Quem pudesse criar o Novo Olhar com que te visse, os
Novos Pensamentos e Sentimentos que houvessem de te po-
der pensar e sentir!
Ao querer tocar no teu manto as minhas expressões
cansam o esforço estendido dos gestos de suas mãos, e um
cansaço rígido e doloroso gela-se nas minhas palavras. Por
isso, curva [?] umo de ave que parece que se aproxima e
nunca chega, em torno ao que eu quereria dizer de ti, mas a
matéria das minhas fraseso sabe imitar a substância ou do
som dos teus passos, ou do rasto dos teus olhares, ou da cor
triste e vazia da curva dos gestos queo fizeste nunca.
Final
E se acaso falo com alguém longínquo, e se, hoje nuvem
de possível, amanhã caíres, chuva de real sobre a terra,o
te esqueças nunca da tua divindade original de sonho meu.
Sê sempre na vida aquilo que possa ser o sonho de um isolado
e nunca o abrigo de um amoroso. Fazê o teu dever de mera
taça. Cumpre o teu mister de ânfora inútil. Ninguém diga de
ti o que o rio pode dizer das margens, que existem para o
limitar. Anteso correr na vida, antes secar de sonhar.
Que o teu gênio seja o ser supérflua, e a tua vida a arte
de olhares para ela, de seres a olhada, a nunca idêntica.o
sejas nunca mais nada.
Hoje é apenas o perfil criado deste livro, uma hora car-
nalizada e separada das outras horas. Se eu tivesse a certeza
de que o eras, ergueria uma religião sobre o (sonho de)
amar-te.
És o que falta a tudo. És o que a cada coisa falta para a
podermos amar sempre. Chave perdida das portas do Tem-
pio, caminho encoberto do Palácio, Ilha longínqua que a
bruma nunca deixa ver...
Euo sonho possuir-te. Para quê? Era traduzir para
plebeu o meu sonho. Possuir um corpo é ser banal. Sonhar
possuir um corpo é talvez pior, ainda que seja difícil sê-lo:
é sonhar-se banal horror supremo.
E já que queremos ser estéreis, sejamos também cas-
tos, porque nada pode haver de mais ignóbil e baixo do que,
renegando da Natureza o que nela é fecundado, guardar vilã-
mente dela o que nos praz no que renegamos.o há nobre-
zas aos bocados.
Sejamos castos como eremitas, puros como corpos so-
nhados, resignados a ser tudo isto, como freirinhas doidas...
Que o nosso amor seja uma oração... Unge-me de ver-
te que eu farei dos meus pensamentos de te sonhar um rosá-
rio onde os meus tédios serão padre-nossos e as minhas an-
gústias ave-marias.
Fiquemos assim eternamente como uma figura de ho-
mem em vitral defronte de uma figura de mulher noutro Vi-
tral... Entre nós, sombras cujos passos soam frios, a huma-
nidade passando... Murmúrios de rezas, segredos de (...)
passarão entre nós... Umas vezes enche-se bem o ar de (...)
de incensos. Outras vezes, para este lado e para aquele uma
figura de estátua [?] rezará aspersões... Es sempre os
mesmos vitrais, nas cores quando o sol nos bata, nas linhas
quando a noite caia... Os séculoso tocarão no nosso silên-
cio vítreo... Lá fora passarão civilizações, escacharão revol-
tas, turbilhonarão festas, correrão [?] mansos quotidianos
povos... E nós, ó meu amor viril, teremos sempre o mesmo
gesto inútil, a mesma existência falsa, e a mesma (...)
FERNANDO PESSOA
Até (que) um dia, no fim de vários séculos, de impérios
a Igreja finalmente rua e tudo acabe...
Mass queo sabemos dela ficaremos ainda,o sei
como,o sei em que espaço,o sei por que tempo, vitrais
eternos, horas de ingênuo desenho pintado por um qualquer
artista que dorme há muito sob um túmulo godo onde dois
anjos, de mãos postas, gelam em mármore a idéia de morte.
<^>
o o amor, mas os arredores é que vale a pena...
A repressão do amor ilumina os fenômenos dele com
muito mais clareza que a mesma experiência. Há virgindades
de grande entendimento. Agir compensa mas confunde.
Possuir é ser possuído, e portanto perder-se. Só a idéia atin-
ge, sem se estragar, o conhecimento da realidade.
Ser puro,o para ser nobre, ou para ser forte, mas para
ser si-próprio. Quem dá amor, perde amor.
Abdicar da vida parao abdicar de si próprio.
A mulher uma boa fonte de sonhos. Nunca lhe toques.
Aprende a desligar as idéias de voluptuosidade e de pra-
zer. Aprende a gozar em tudo,o o que ele é, mas as idéias
e os sonhos que provoca. Porque nada é o que é: os sonhos
sempreo os sonhos. Para isso precisaso tocar em nada.
Se tocares o teu sonho morrerá, o objeto tocado ocupará a
tua sensação.
Ver e ouviro as únicas coisas nobres que a vida con-
tém. Os outros sentidoso plebeus e carnais. A única aris-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
tocracia é nunca tocar.o se aproximar eis o que é fi-
dalgo.
Todo o homem de hoje, em quem a estatura moral e o
relevo intelectualo sejam de pigmeu ou de charro, ama,
quando ama, com o amor romântico. O amor romântico é
um produto extremo de séculos sobre séculos de influência
cristã; e, tanto quanto à sua substância, como quanto à se-
qüência do seu desenvolvimento, pode ser dado a conhecer a
quemo o perceba comparando-o com uma veste, ou traje,
que a alma ou a imaginação fabriquem para com ele vestir as
criaturas, que acaso apareçam, e o espírito ache que lhes
cabe.
Mas todo o traje, comoo é eterno, dura tanto quanto
dura; e em breve, sob a veste do ideal que formamos, que se
esfacela, surge o corpo real da pessoa humana, em quem o
vestimos.
O amor romântico, portanto, é um caminho de desilu-
são. Só oo é quando a desilusão, aceite desde o princípio,
decide variar de ideal constantemente, tecer constantemente,
nas oficinas da alma, novos trajes, com que constantemente
se renove o aspecto da criatura, por eles vestida.
Dois, três dias de semelhança de princípio de amor...
Tudo isto vale para o esteta pelas sensações que lhe cau-
sa. Avançar seria entrar no domínio onde começa o ciúme,
o sofrimento, a excitação. Nesta antecâmara da emoção há
toda a suavidade do amor sem a sua profundeza um gozo
leve, portanto, aroma vago de desejos, se com isso se perde a
grandeza que há na tragédia do amor, repare-se que, para o
esteta, as tragédiaso coisas interessantes de observar, mas
FERNANDO PESSOA
incômodas de sofrer. O próprio cultivo da imaginação é pre-
judicado pelo da vida. Reina quemo está entre os vulgares.
Afinal, isto bem me contentaria, se eu conseguisse per-
suadir-me que esta teoriao é o que é, um complexo baru-
lho que faço aos ouvidos da minha inteligência, quase para
elao perceber que, no fundo,o há senão a minha tris-
teza, a minha incompetência para a vida.
so podemos amar, filho. O amor é a mais carnal
das ilusões. Amar é possuir, escuta. E o que possui quem
ama? O corpo? Para o possuir seria preciso tornar nossa a
sua matéria, comê-lo, incluí-lo em nós... E essa impossibili-
dade seria temporária, porque o nosso próprio corpo passa e
se transforma, porqueso possuímos o nosso corpo,
(possuímos apenas a nossa sensação dele), e porque, uma vez
possuído esse corpo amado, tornar-se-ia nosso, deixaria de
ser outro, e o amor, por isso, com o desaparecimento do
outro-ente, desapareceria.
Possuímos a alma? Ouve-me em silêncioso
a possuímos. Nem a nossa alma é nossa sequer. Como, de
resto, possuir uma alma? Entre alma e alma há o abismo de
serem almas.
Que possuímos? que possuímos? Que nos leva a amar?
A beleza? Es possuímo-la amando? A mais feroz e domi-
nadora posse de um corpo o que possui dele? Nem o corpo,
nem a alma, nem a beleza sequer. A posse de um corpo lindo
o abraça a beleza, abraça a carne celulada e gordurosa;
o beijoo toca na beleza da boca, mas na carne úmida dos
lábios perecíveis em mucosas; a própria cópula é um contato
apenas, um contato esfregado e próximo, maso uma pene-
tração real, sequer de um corpo por outro corpo... Que pos-
suímos nós? que possuímos?
LIVRO DO DESASSOSSEGO
FERNANDO PESSOA
As nossas sensações, ao menos? Ao menos o amor é
um meio de nos possuirmos, a nós, nas nossas sensações?
é, ao menos, um modo de sonharmos nitidamente, e mais
gloriosamente portanto, o sonho de existirmos? e, ao menos,
desaparecida a sensação, fica a memória dela conosco sem-
pre, e assim, realmente possuímos.
Desenganemos até disto.s nem as nossas sensações
possuímos.o fales. A memória, afinal, é a sensação do
passado... E toda a sensação é uma ilusão...
Escuta-me, escuta-me sempre Escuta-me eo
olhes pela janela aberta a plana outra margem do rio, nem o
crepúsculo (...), nem esse silvo de um comboio que corta o
longe vago (...) Escuta-me em silêncio.
so possuímos as nossas sensações...so nos
possuímos nelas.
(Urna inclinada, o crepúsculo verte sobres um óleo
de (...) onde as horas, pétalas de rosas, bóiam espaçada-
mente)
Euo possuo o meu corpo como posso eu possuir com
ele? Euo possuo a minha alma como posso possuir com
ela?o compreendo o meu espírito como através dele com-
preender?
As nossas sensações passam como possuí-las pois
ou o que elas mostram muito menos. Possui alguém um rio
que corre, pertence a alguém o vento que passa?
LIVRO DO DESASSOSSEGO
o possuímos nem um corpo nem uma verdade
nem sequer uma ilusão. Somos fantasmas de mentiras, som-
bras de ilusões e a minha vida é vã por fora e por dentro.
Conhece alguém as fronteiras à sua alma, para que possa
dizer eu sou eu?
Mas sei que o que eu sinto, sinto-o eu.
Quando outro possui esse corpo, possui nele o mesmo
que eu? Não. Possui outra sensação.
Possuímoss alguma coisa ? Seso sabemos o que
somos, como sabemoss o que possuímos?
O Rio da Posse
Que somos todos diferentes, é um axioma da nossa na-
turalidade. Só nos parecemos de longe, na proporção, por-
tanto, em queo somos nós. A vida é, por isso, para os
indefinidos; só podem conviver os que nunca se definem, e
são, um e outro, ninguéns.
Cada um des é dois, e quando duas pessoas se encon-
tram, se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam
estar de acordo. O homem que sonha em cada homem que
age, se tantas vezes se malquista com o homem que age,
comoo se malquistará com o homem que age e o homem
que sonha no Outro.
Somos forças porque somos vidas. Cada um des tende
para si-próprio com escala pelos outros. Se temos pors
mesmos o respeito de nos acharmos interessantes, (...) Toda
a aproximação é um conflito. O outro é sempre o obstáculo
para quem procura. Só quemo procura é feliz; porque só
FERNANDO PESSOA
quemo busca, encontra, visto que quemo procura já
tem, e já ter, seja o que for, é ser feliz, (comoo pensar é a
parte melhor de ser rico).
Olho para ti, dentro de mim, noiva suposta, e já nos
desavimos antes de existires. O meu hábito de sonhar claro
dá-me uma noção justa da realidade. Quem sonha demais
precisa de dar realidade ao sonho. Quem dá realidade ao so-
nho tem que dar ao sonho o equilíbrio da realidade. Quem dá
ao sonho o equilíbrio da realidade, sofre da realidade de so-
nhar tanto como da realidade da vida (e do irreal do sonho
com o de sentir a vida irreal).
Estou te esperando, em devaneio, no nosso quarto com
duas portas, e sonho-te vindo e no meu sonho entras até
mim pela porta da direita; se, quando entras, entras pela por-
ta da esquerda, há já uma diferença entre ti e o meu sonho.
Toda a tragédia humana está neste pequeno exemplo de
como aqueles com [?] quem pensamos nuncao aqueles em
que pensamos.
O amor perde identidade na diferença, o que é impossí-
vel já na lógica, quanto mais no mundo. O amor quer pos-
suir, quer tornar seu o que tem de ficar fora para ele saber
que nem torna seu eo é ele. Amar é entregar-se. Quanto
maior a entrega, maior o amor. Mas a entrega total entrega
também a consciência do outro. O amor maior é por isso a
morte, ou o esquecimento, ou a renúncia [...]
No terraço antigo do palácio, alçado sobre o mar, medi-
taremos em silêncio a diferença entre nós. Eu era príncipe e
tu princesa, no terraço à beira do mar. O nosso amor nascera
do nosso encontro, como a beleza se criou do encontro da lua
com as águas.
O amor quer a posse, maso sabe o que é a posse. Se
euo sou meu, como serei teu, ou tu minha? Seo possuo
o meu próprio ser, como possuirei um ser alheio? Se sou já
LIVRO DO DESASSOSSEGO
diferente daquele de quem sou idêntico, como serei idêntico
daquele de quem sou diferente.
O amor é um misticismo que quer praticar-se, uma im-
possibilidade que só é sonhada como devendo ser realizada.
Metafísico. Mas toda a vida é uma metafísica às escu-
ras, com um rumor de deuses e o desconhecimento da rota
como única via.
A pior astúcia comigo da minha decadência é o meu
amor à saúde e à claridade. Achei sempre que um corpo belo
e o ritmo feliz de um andar jovem tinham mais competência
no mundo que todos os sonhos que há em mim. É com uma
alegria da velhice pelo espírito que sigo às vezes sem in-
veja nem desejo os pares casuais que a tarde junta e ca-
minham braço em braço para a consciência inconsciente da
juventude. Gozo-os como gozo uma verdade, sem que pense
se me diz ouo respeito. Se os comparo a mim, continuo
gozando-os, mas como quem goza uma verdade que o fere,
juntando à dor da ferida a consciência de ter compreendido
os deuses.
Sou o contrário dos espiritualistas simbolistas, para
quem todo o ser, e todo o acontecimento, é a sombra de uma
realidade de que é a sombra apenas. Cada coisa, para mim, é,
em vez de um ponto de chegada, um ponto de partida. Para o
ocultista tudo acaba em tudo; tudo começa em tudo para
mim.
Procedo, como eles, por analogia e sugestão, mas o jar-
dim pequeno que lhes sugere a ordem e a beleza da alma, a
mimo lembra mais que o jardim maior onde possa ser,
longe dos homens, feliz a vida que oo pode ser. Cada coisa
sugere-meo a realidade de que é a sombra, mas a realidade
para que é o caminho.
FERNANDO PESSOA
O jardim da Estrela, à tarde, é para mim a sugestão de
um parque antigo, nos séculos antes do descontentamento da
alma.
"Quero-te só para sonho'', dizem à mulher amada, em
versos que lheo enviam, os queo ousam dizer-lhe nada.
Este ' 'quero-te só para sonho'' é um verso de um velho poe-
ma meu. Registro a memória com um sorriso, e nem o sor-
riso comento.
Em mim todas as afeições se passam à superfície, mas
sinceramente. Tenho sido ator sempre, e a valer. Sempre
que amei, fingi que amei, e para mim mesmo o finjo.
Uma carta
Há um vago. número de muitos meses que me vê olhá-
la, olhá-la constantemente, sempre com o mesmo olhar in-
certo e solícito. Eu sei que tem reparado nisso. E como tem
reparado, deve ter achado estranho que esse olhar,o sendo
propriamente tímido, nunca esboçasse uma significação.
Sempre atento, vago e o mesmo, como que contente de ser
só a tristeza disso... Mais nada... E dentro do seu pensar
nisso seja o sentimento qual seja com que tem pensado em
mim deve ter perscrutado as minhas possíveis intenções.
Deve ter explicado a si própria, sem se satisfazer, que eu sou
ou um tímido especial e original, ou uma qualquer espécie de
qualquer coisa aparentado com o ser louco.
Euo sou, minha Senhora, perante o fato de olhá-la,
nem estritamente um tímido, nem assentemente um louco.
Sou outra coisa primeira e diversa, como, sem esperança de
LIVRO DO DESASSOSSEGO
que me creia, lhe vou expor. Quantas vezes eu segredava ao
seu ser sonhado: Faça o seu dever de ânfora inútil, cumpra o
seu mister de mera taça.
Com que saudade da idéia que quis forjar-me de si eu
percebi um dia que era casada! O dia em que percebi isso foi
trágico na minha vida.o tive ciúmes do seu marido. Nun-
ca pensei se acaso [?] o tinha. Tive simplesmente saudades
da minha idéia de si. Se eu um dia soubesse este absurdo
que uma mulher num quadro — sim essa era casada, a
mesma seria a minha dor.
Possuí-la? Euo sei como isso se faz. E mesmo que
tivesse sobre mim a mancha humana de sabê-lo, que infame
euo seria para mim próprio, que insultador agente de mi-
nha própria grandeza, ao pensar sequer em nivelar-me com o
seu marido!
Possuí-la? Um dia que acaso fosse sozinha numa rua
escura, um assaltante pode subjugá-la e possuí-la, pode fe-
cundá-la até e deixar atrás de si esse rasto uterino. Se pos-
sui-la é possuir-lhe o corpo que valor há nisso?
Queo lhe possui a alma?... Como é que se possui
uma alma? E pode haver um hábil e amoroso que consiga
possuir-lhe essa "alma''. (...) Que seja o seu marido esse...
Queria que eu descesse ao nível dele?
Quantas horas tenho passado em convívio secreto com a
idéia de si! Temo-nos amado tanto, dentro dos meus sonhos!
Mas mesmo, eu lho juro, nunca me sonhei possuindo-a.
Sou um delicado e um casto mesmo nos meus sonhos. Res-
peito até a idéia de uma mulher bela.
Carta
Euo saberia nunca como ajeitar a minha alma a levar
o meu corpo a possuir o seu. Dentro de mim, mesmo ao pen-
sar nisso, tropeço em obstáculos queo vejo, enredo-me
em teias queo sei o que são. Que muito mais meo
aconteceria se eu quisesse possuí-la realmente?
Que eu repito-lho era incapaz de o tentar fazer.
Nem sequer me ajeito a sonhar-me fazendo-o.
o estas, minha Senhora, as palavras que tenho a es-
crever à margem da significação do seu olhar involuntaria-
mente interrogativo. É neste livro que, primeiro, lera esta
carta para si. Seo souber que é para si, resignar-me-ei a
que assim seja. Escrevo mais para me entreter do que para
lhe dizer qualquer coisa... Só as cartas comerciaiso dirigi-
das. Todas as outras devem, pelo menos para o homem supe-
rior, ser apenas dele para si próprio.
Nada mais tenho a dizer-lhe. Creia que a admiro tanto
quanto posso. Ser-me-ia agradável que pensasse em mim às
vezes.
Duas vezes, naquela minha adolescência que sinto lon-
gínqua, e que, por assim senti-la, me parece uma coisa lida,
um relato íntimo que me fizessem, gozei a dor da humilha-
ção de amar. Do alto de hoje, olhando para trás, para esse
passado, que jáo sei designar nem como longínquo nem
como recente, creio que foi bom que essa experiência da desi-
lusão me acontecesseo cedo.
o foi nada, salvo o que passei comigo. No aspecto
externo do assunto íntimo, legiões humanas de homensm
passado pelas mesmas torturas. Mas (...)
Cedo demais, obtive, por uma experiência, simultânea e
conjunta, da sensibilidade e da inteligência, a noção de que a
vida da imaginação, por mórbida que pareça, é contudo aque-
la que calha aos temperamentos como é o meu. As ficções da
FERNANDO PESSOA
LIVRO DO DESASSOSSEGO
minha imaginação (posterior), podem cansar, maso doem
nem humilham. Às amantes impossíveis é também impos-
sível o sorriso falso, o dolo do carinho, a astúcia das carícias.
Nunca nos abandonam, nem de qualquer modo nos cessam.
Só uma vez fui verdadeiramente amado. Simpatias, tive-
as sempre, e de todos. Nem ao mais casual tem sido fácil ser
grosseiro, ou ser brusco, ou ser até frio para comigo. Algu-
mas simpatias tive que, com auxílio meu, poderia pelo
menos talvez ter convertido em amor ou afeto. Nunca
tive paciência ou atenção do espírito para sequer desejar em-
pregar esse esforço.
A princípio de observar isto em mim, julguei tanto
nos desconhecemos que havia neste caso da minha alma
uma razão de timidez. Mas depois descobri queo havia;
havia um tédio das emoções, diferente do tédio da vida, uma
impaciência de me ligar a qualquer sentimento contínuo, so-
bretudo quando houvesse de se lhe atrelar um esforço prosse-
guido. Para quê? pensava em mim o queo pensa. Tenho a
sutileza bastante, o tato psicológico suficiente para saber o
' 'como''; o ' 'como do como'' sempre me escapou. A minha
fraqueza de vontade começou sempre por ser uma fraqueza
da vontade de ter vontade. Assim me sucedeu nas emoções
como me sucede na inteligência, e na vontade mesma, e em
tudo quanto é vida.
Mas daquela vez em que uma malícia da oportunidade
me fez julgar que amava, e verificar deveras que era amado,
fiquei, primeiro, estonteado e confuso, como se me saíra
uma sorte grande em moeda inconvertível. Fiquei, depois,
porque ninguém é humano sem o ser, levemente envaide-
cido; esta emoção, porém, que pareceria a mais natural, pas-
FERNANDO PESSOA
sou rapidamente. Sucedeu-se um sentimento difícil de defi-
nir, mas em que se salientavam incomodamente as sensações
de tédio, de humilhação e de fadiga.
De tédio, como se o Destino me houvesse imposto uma
tarefa em serões desconhecidos. De tédio, como se um novo
dever o de uma horrorosa reciprocidade me fosse dado
com a ironia de um privilégio, que eu me teria ainda que
maçar, agradecendo-o ao Destino. De tédio, como se meo
bastasse a monotonia inconsistente da vida, para agora se lhe
sobrepor a monotonia obrigatória de um sentimento defi-
nido.
E de humilhação, sim, de humilhação. Tardei em per-
ceber que vinha um sentimento aparentementeo pouco
justificado pela sua causa. O amor a ser amado deveria ter-
me aparecido. Deveria ter-me envaidecido de alguém reparar
atentamente para a minha existência como ser amável. Mas,
à parte o breve momento de real envaidecimento, em que
todaviao sei se o pasmo teve mais parte que a própria
vaidade, a humilhação foi a sensação que recebi de mim.
Senti que me era dada uma espécie de prêmio destinado a
outrem prêmio, sim, de valia para quem naturalmente o
merecesse.
Mas fadiga, sobretudo fadiga a fadiga que passa o-
dio. Compreendi então uma frase de Chateaubriand que sem-
pre me enganara por falta de experiência de mim mesmo.
Diz Chateaubriand, figurando-se em René, "amarem-no
cansava-o" on le fatiguait en Vaimant. Conheci, com
pasmo, que isto representava uma experiência idêntica à mi-
nha, e cuja verdade portanto euo tinha o direito de negar.
A fadiga de ser amado, de ser amado deveras! A fadiga
de sermos o objeto do fardo das emoções alheias! Converter
LIVRO DO DESASSOSSEGO
quem quisera ver-se livre, sempre livre, no moço de fretes da
responsabilidade de corresponder, da decência de seo afas-
tar, para que seo suponha que se é príncipe nas emoções e
se renega o máximo que uma alma humana pode dar. A fa-
diga [de] se nos tornar a existência uma coisa dependente em
absoluto de uma relação com um sentimento de outrem! A
fadiga de, em todo o caso, ter forçosamente que sentir, ter
forçosamente, ainda que sem reciprocidade, que amar um
pouco também!
Passou de mim, como até mim veio, esse episódio na
sombra. Hojeo resta dele nada, nem na minha inteligên-
cia, nem na minha emoção.o me trouxe experiência al-
guma que euo pudesse ter deduzido das leis da vida hu-
mana cujo conhecimento instintivo albergo em mim porque
sou humano.o me deu nem prazer que eu recorde com
tristeza, ou pesar que eu lembre com tristeza também. Te-
nho a impressão de que foi uma outra coisa que li algures,
um incidente sucedido a outrem, novela de que li metade, e
de que a outra metade faltou, sem que me importasse que
faltasse, pois até onde a li estava certa, e, emborao tivesse
sentido, tal era já que lheo poderia dar sentido a parte fal-
tante, qualquer que fosse o seu enredo.
Resta-me apenas uma gratidão a quem me amou. Mas é
uma gratidão abstrata, pasmada, mais da inteligência do que
de qualquer emoção. Tenho pena que alguém tivesse tido
pena por minha causa; é disso que tenho pena, eo tenho
pena de mais nada.
o é natural que a vida me traga outro encontro com
as emoções naturais. Quase desejo que apareça para ver
como sinto dessa segunda vez, depois de ter atravessado toda
uma extensa análise da primeira experiência. É possível que
sinta menos; é também possível que sinta mais. Se o Destino
o der, que o. Sobre as emoções tenho curiosidade. Sobre
FERNANDO PESSOA
os fatos, quaisquer que venham a ser,o tenho curiosidade
alguma.
Onde está Deus, mesmo queo exista? Quero rezar e
chorar, arrepender-me de crimes queo cometi, gozar ser
perdoado como uma caríciao propriamente materna.
Um regaço para chorar, mas um regaço enorme, sem
forma, espaçoso como uma noite de verão, e contudo pró-
ximo, quente, feminino, ao pé de uma lareira qualquer...
Poder ali chorar coisas impensáveis, falências que nem sei
quais são, ternuras de coisas inexistentes, e grandes dúvidas
arrepiadas deo sei que futuro...
Uma infância nova, uma ama velha outra vez, e um
leito pequeno onde acabe por dormir, entre contos que em-
balam, mal ouvidos, com uma atenção que se torna morna,
de perigos que penetravam em jovens cabelos louros como o
trigo... E tudo isto muito grande, muito eterno, definitivo
para sempre, da estatura única de Deus, lá no fundo triste e
sonolento da realidade última das coisas...
Um colo ou um berço ou um braço quente em torno ao
meu pescoço... Uma voz que canta baixo e parece querer
fazer-me chorar... O ruído de lume na lareira... Um calor no
inverno... Um extravio morno da minha consciência... E
depois sem som, um sonho calmo num espaço enorme, como
a lua rodando entre estrelas...
Quando ponho de parte os meus [...] e arrumo a um
canto, com um cuidado cheio de carinho com vontade de
lhes dar beijos os meus brinquedos, as palavras, as ima-
gens, as frases ficoo pequeno e inofensivo,o só num
quartoo grande eo triste,o profundamente triste!...
Afinal eu quem sou, quandoo brinco? Um pobre ór-
o abandonado nas ruas das sensações, tiritando de frio às
LIVRO DO DESASSOSSEGO
esquinas da Realidade, tendo que dormir nos degraus da
Tristeza e comer oo dado da Fantasia. De um pai sei o
nome; disseram-me que se chamava Deus, mas o nomeo
me dá idéia de nada. Às vezes, na noite, quando me sinto,
chamo por ele e choro, e faço-me uma idéia dele a quem
possa amar... Mas depois penso que oo conheço, que tal-
vez eleo seja assim, que talvezo seja nunca esse o pai da
minha alma...
Quando acabará isto tudo, estas ruas onde arrasto a mi-
nha miséria, e estes degraus onde encolho o meu frio e sinto
as mãos da noite por entre os meus farrapos? Se um dia Deus
me viesse buscar e me levasse para sua casa e me desse calor
e afeição... Às vezes penso isto e choro com alegria a pensar
que o posso pensar... Mas o vento arrasta-se pela rua fora e
as folhas caem no passeio... Ergo os olhos e vejo as estrelas
queom sentido nenhum... E de tudo isto fico apenas eu,
uma pobre criança abandonada, que nenhum Amor quis para
seu filho adotivo, nem nenhuma Amizade para seu compa-
nheiro de brinquedos.
Tenho frio demais. Estouo cansado no meu aban-
dono. Vai buscar, ó Vento, a minha Mãe. Leva-me na Noite
para a casa queo conheci... Torna a dar-me ó Silêncio
[...], a minha ama e o meu berço e a minha canção com que
eu dormia.
Nunca deixo saber aos meus sentimentos o que lhes vou
fazer sentir... Brinco com as minhas sensações como uma
princesa cheia de tédio com os seus grandes gatos prontos e
cruéis...
Fecho subitamente portas dentro de mim, por onde cer-
tas sensações iam passar para se realizarem. Retiro brusca-
mente do seu caminho os objetos espirituais que lheso
vincar certos gestos.
FERNANDO PESSOA
Pequenas frases sem sentido, metidas nas conversas que
supomos estar tendo, afirmações absurdas feitas com [...]
de outras que já de sio significam nada.
O seu olhar tem qualquer coisa de música tocada a
bordo dum barco, no meio misterioso de um rio com flores-
tas na margem oposta...
o diga que é fria uma noite de luar. Abomino as
noites de luar... Há quem costume realmente tocar música
nas noites de luar...
Isso também é possível... E é lamentável, está cla-
ro... Mas o seu olhar tem realmente o desejo de ser saudoso
de qualquer coisa... Falta-lhe o sentimento que exprime...
Acho na falsidade da sua expressão uma quantidade de ilu-
sões que tenho tido...
Creia que sinto às vezes o que digo, e até, apesar de
mulher, o que digo com o olhar...
o está sendo cruel para consigo própria?s sen-
timos realmente o que pensamos que estamos sentindo? Esta
nossa conversa, por exemplo, tem visos de realidade?o
tem. Num romanceo seria admitida.
Com muita razão... Euo tenho a absoluta certeza
de estar falando consigo, repare... Apesar de mulher, criei-
me um dever de ser estampa de um livro de impressões de
um desenhista doido... Tenho em mim detalhes exagerada-
mente nítidos... Dá um pouco, bem sei, a impressão de reali-
dade excessiva e um pouco forçada... Acho que a única coisa
digna de uma mulher contemporânea é este ideal de ser es-
tampa-. Quando eu era criança queria ser a rainha dum naipe
qualquer num baralho de cartas antigo que havia em minha
casa... Achava esse mister duma heráldica realmente com-
passiva... Mas quando se é criança, tem-se aspirações morais
destas... Só depois, na idade em que as nossas aspiraçõeso
todas imorais, é que pensamos nisso a sério...
Eu como nunca falo a crianças creio no instinto ar-
tista delas... Sabe, enquanto estou falando, agora mesmo,
LIVRO DO DESASSOSSEGO
eu estou querendo penetrar o íntimo sentido dessas coisas
que me estava dizendo... Perdoa-me?
o de todo... Nunca se deve devassar os senti-
mentos que os outros fingem que têm.
o sempre demasiadamente íntimos... Acredite que
mei realmente estar-lhe fazendo estas confidencias ínti-
mas, que, se bem que todas elas falsas, representam verda-
deiros farrapos da minha pobre alma... No fundo, acredite, o
que somos de mais doloroso é o queo somos realmente, e
as nossas maiores tragédias passam-se na nossa idéia de nós.
Isso éo verdadeiro... Para que dizê-lo? Feriu-me.
Para que tirar à nossa conversa a sua irrealidade constante?
Assim é quase uma conversa possível, passada a uma mesa
de chá, entre uma mulher linda e um imaginador de sen-
sações.
Sim, sim... É a minha vez de pedir perdão... Mas
olhe que eu estava distraída eo reparei realmente em que
tinha dito uma coisa justa... Mudemos de assunto... Que
tarde que é sempre!o se torne a zangar... Olhe que esta
minha fraseo tem sentido absolutamente nenhum...
o me peça desculpas,o repare em que estamos
falando... Toda a boa conversa deve ser um monólogo de
dois... Devemos, no fim,o poder ter a certeza se conver-
samos realmente com alguém ou se imaginamos totalmente
a conversa... As melhores e as mais íntimas conversas, e
sobretudo as menos moralmente instintivas,o aquelas que
os romancistasm entre duas personagens das suas nove-
las... Como exemplo...
Por amor de Deus!o ia decerto citar-me um
exemplo... Isso só se faz nas gramáticas;o sei se se recorda
que até nunca os lemos.
Leu alguma vez uma gramática?
Eu nunca. Tive sempre uma aversão profunda a sa-
ber como se dizem as coisas... A minha única simpatia, nas
gramáticas, ia para as exceções e para os pleonasmos... Es-
FERNANDO PESSOA
capar às regras e dizer coisas inúteis resume bem a atitude
essencialmente moderna.o é assim que se diz?
Absolutamente... O que tem de antipático nas gra-
máticas (já reparou na deliciosa impossibilidade [?] de estar-
mos falando neste assunto?) o que há de mais antipático
nas gramáticas é o verbo, os verbos...o as palavras que
o sentido às frases... Uma frase honesta deve sempre poder
ter vários sentidos... Os verbos!... Um amigo meu que se
suicidou cada vez que tenho uma conversa um pouco lon-
ga suicido um amigo tinha tencionado dedicar toda a sua
vida a destruir os verbos...
(Ele por que se suicidou?)
Espere, aindao sei... Ele pretendia descobrir e fi-
xar o modo deo completar as frases sem parecer fazê-lo.
Ele costumava dizer-me que procurava o micróbio da signi-
ficação. .. Suicidou-se, é claro, porque um dia reparou na res-
ponsabilidade imensa que tomara sobre si... A importância
do problema, deu-lhe cabo do cérebro... Um revólver...
Ah, não... Isso de modo algum...o vê queo
podia ser um revólver?...
Um homem desses nunca dá um tiro na cabeça... O
senhor pouco se entende com os amigos que nunca teve... É
um defeito grande, sabe?... A minha melhor amiga uma
(deliciosa) rapaz que eu inventei.
Dão-se bem?
Tanto quanto é possível... Mas essa rapariga,o
imagina, (...)
As duas criaturas que estavam à mesa de cháo tive-
ram com certeza esta conversa. Mas estavamo alinhadas e
bem vestidas que era pena queo falassem assim... Por isso
escrevi esta conversa para elas a terem tido... As suas atitu-
des, os seus pequenos gestos, as suas criancices de olhares e
sorrisos nos momentos de conversa que ambos mantemos
[?] no sentimento de existirmos disseram nitidamente o que
falsamente finjo que riposto... Quando eles um dia forem
LIVRO DO DESASSOSSEGO
ambos e sem dúvida casados cada um para seu lado [...],
se eles por acaso olharem para estas páginas, acredite que
reconhecerão o que nunca disseram e queo deixarão de
me ser gratos por eu ter interpretadoo bem,o só o que
eleso realmente, mas o que eles nunca desejaram ser nem
sabiam que eram...
Eles, se me lerem, acreditem que foi isto que realmente
disseram. Na conversa aparente que eles escutaram um ao
outro faltavam tantas coisas que (...) faltou o perfume da
hora, o aroma do chá, a significação para o caso do ramo de
(...) que ela tinha ao peito... Tudo isso, que assim formou
parte da conversa eles se esqueceram de dizer... Mas tudo
isto lá estava e o que eu faço é, mais do que um trabalho
literário, um trabalho de historiador. Reconstruo, comple-
tando... e isso me servirá de desculpa junto deles, de ter es-
tadoo fixamente a escutar-lhes o queo diziam eo
quereriam dizer.
o se subordinar a nada nem a um homem, nem a
um amor, nem a uma idéia, ter aquela independência lon-
gínqua que consiste emo crer na verdade, nem, se a hou-
vesse, na utilidade do conhecimento dela tal é o estado
em que, parece-me, deve decorrer, para consigo mesma, a
vida íntima intelectual dos queo vivem sem pensar. Per-
tencer eis a banalidade. Credo, ideal, mulher ou profissão
tudo isso é a cela e as algemas. Ser é estar livre. A mesma
ambição seo orgulho e paixão é um fardo,o nos orgu-
lharíamos se compreendêssemos que é um cordel pelo qual
nos puxam. Não: nem ligações conosco! Livres des como
dos outros, contemplativos sem êxtase, pensadores sem con-
clusão, viveremos, libertos de Deus, o pequeno intervalo que
as distrações dos algozes concedem ao nosso êxtase na pa-
rada. Temos amanhã a guilhotina. Se ao tivéssemos ama-
nhã tê-la-íamos depois de amanhã. Passeemos ao sol o re-
FERNANDO PESSOA
pouso antes do fim, ignorantes voluntariamente dos propó-
sitos e dos perseguimentos. O sol dourará nossas frontes sem
rugas e a brisa terá frescura para quem deixar de esperar.
Atiro a caneta pela secretária fora e ela rola, regres-
sando, sem que eu a apanhe, pelo declive onde trabalho.
Senti tudo de repente. E a minha alegria manifesta-se
por este gesto da raiva queo sinto.
Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a idéia
que fazemos de alguém. É a um conceito nosso em suma é
as mesmos que amamos.
Isto é verdade em toda a escala do amor. No amor se-
xual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de um
corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um
prazer nosso dado por intermédio de uma idéia nossa. O ona-
nista é abjeto, mas, em exata verdade, o onanista é a perfeita
expressão lógica do amoroso. É o único queo disfarça nem
se engana.
As relações entre uma alma e outra, através de coisas
o incertas e divergentes como as palavras comuns e os ges-
tos que se empreendem,o matéria de estranha complexi-
dade. Na própria arte em que nos conhecemos, nos desco-
nhecemos. Dizem os dois "amo-te" ou pensam-no e sen-
tem-no por troca, e cada um quer dizer uma idéia diferente,
uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma
diferente, na soma abstrata de impressões que constitui a ati-
vidade da alma.
Estou hoje lúcido como seo existisse. Meu pensa-
mento é em claro como um esqueleto, sem os trapos carnais
da ilusão de exprimir. E estas considerações, que formo e
abandono,o nasceram de coisa alguma de coisa al-
guma, pelo menos, que me esteja na platéia da consciência.
Talvez aquela desilusão do caixeiro de praça com a rapariga
LIVRO DO DESASSOSSEGO
que tinha, talvez qualquer frase lida nos casos amorosos que
os jornais transcrevem dos estrangeiros, talvez até uma vaga
náusea que trago comigo e meo expeli [?] fisicamente...
Disse mal o escoliasta de Virgílio. Ê de compreender
que sobretudo nos cansamos. Viver éo pensar.
Ninguém compreende outro. Somos, como disse o poe-
ta, ilhas no mar da vida; corre entres o mar que nos define
e separa. Por mais que uma alma se esforce por saber o que é
outra alma,o saberá senão o que lhe diga uma palavra
sombra disforme no chão do seu entendimento.
Amo as expressões porqueo sei nada do que expri-
mem. Sou como o mestre de Santa Marta [?]: contento-me
com o que me é dado. Vejo, e já é muito. Quem é capaz de
entender?
Talvez seja por este ceticismo do inteligível que eu en-
caro de igual modo uma árvore e uma cara, um cartaz e um
sorriso (Tudo é natural, tudo artificial, tudo igual). Tudo o
que vejo é para mim o só visível, seja ou alto azul de verde
branco da manhã que há de vir, seja o esgar falso em que se
contrai o rosto de quem está a sofrer perante testemunhas a
morte de quem ama.
Bonecos, ilustrações, páginas que existem e se voltam.
Meu coraçãoo está neles nem quase minha atenção que os
percorre de fora, como uma mosca por um papel.
Sei eu sequer se sinto, se penso, se existo? Nada: só um
esquema objetivo de cores, de formas, de expressões de que
sou o espelho oscilante por vender inútil.
Pensaste, ó Outra, quão invisíveis somos uns para
os outros? Meditaste já em quanto nos desconhecemos? Ve-
FERNANDO PESSOA
mo-nos eo nos vemos. Ouvimo-nos e cada um escuta ape-
nas uma voz que está dentro de si.
As palavras dos outroso erros do nosso ouvir, naufrá-
gios do nosso entender. Com que confiança cremos no nosso
sentido das palavras dos outros. Sabem-nos a morte, volúpias
que outros põem em palavras. Lemos volúpia e vida no que
outros deixam cair dos lábios sem intenção de dar sentido
profundo.
A voz dos regatos que interpretamos [...] explicadora, a
voz das árvores onde pomos sentido no seu murmúrio ah,
meu amor ignoto, quanto tudo isso és e fantasias tudo de
cinza que se escoa pelas grades da nossa cela!
A alma humana é vítimao inevitável da dor que sofre
a dor da surpresa dolorosa, mesmo com o que devia esperar.
Tal homem, que toda a vida falou da inconstância e da volu-
bilidade feminina como de coisas naturais e típicas, terá toda
a angústia da surpresa triste quando se encontre traído em
amor tal qual,o outro, como se tivesse sempre tido por
dogma ou esperança a fidelidade e a firmeza da mulher. Tal
outro, que tem tudo por oco e vazio, sentirá como um raio
súbito a descoberta de que tem por nada o que escreve, ou
que é estéril o seu esforço por ensinar ou que é falsa a comu-
nicabilidade da sua emoção.
o há que crer que os homens, a quem estes desastres
acontecem, e outros desastres como estes, houvessem sido
pouco sinceros nas coisas que disseram, ou que escreveram,
e em cuja substância esses desastres eram previsíveis ou cer-
tos. Nada tem a sinceridade da afirmação inteligente com a
naturalidade da emoção espontânea. E isto parece poder ser
assim, a alma parece poder assim ter surpresas, só para que a
dor lheo falte, o opróbioo deixe de lhe caber, a mágoa
o lhe escasseie como quinhão igualitário na vida. Todos
LIVRO DO DESASSOSSEGO
somos iguais na capacidade para o erro e para o sofrimento.
Sóo passa quemo sente; e os mais altos, os mais no-
bres, os mais previdentes,o os quem a passar e a sofrer
do que previam e do que desdenhavam. É a isto que se chama
a Vida.
Máximas
Ter opiniões definidas e certas, instintos, paixões e ca-
ráter fixo e conhecido tudo isto monta ao horror de tornar
a nossa alma um fato, de a materializar e tornar exterior.
Viver é um doce e fluido estado de desconhecimento das coi-
sas e de si próprio (é o único modo de vida que a um sábio
convém e aquece).
Saber interpor-se constantemente entre si-próprio e
as coisas é o mais alto grau de sabedoria e prudência.
A nossa personalidade deve ser indevassável, mes-
mo por nós-próprios: daí o nosso dever de sonharmos sem-
pre, e incluirmo-nos nos nossos sonhos, para queo seja
possível ter opiniões a nosso respeito.
E especialmente devemos evitar a invasão da nossa per-
sonalidade pelos outros. Todo o interesse alheio pors é
uma indelicadeza ímpar. O que desloca a vulgar saudação
como está de ser uma indesculpável grosseria é o ser ela
em geral absolutamente vã e insincera.
Amar é cansar-se de estar: é uma covardia por-
tanto, e uma traição as próprios (importa soberanamente
queo amemos).
Dar bons conselhos é insultar a faculdade de errar
que Deus deu aos outros. E de mais a mais, os atos alheios
FERNANDO PESSOA
devem ter a vantagem deo serem também nossos. Apenas
é compreensível que se peça conselhos aos outros para
saber bem, ao agir ao contrário, quem somos bem nós, bem
em desacordo com a Outragem.
A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se
podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-
los a necessidade de dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o
amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na so-
lidãoo podem ter alimento. Se te é impossível viver,
nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito,
todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente:
o és livre. Eo está contigo a tragédia, porque a tragédia
de nasceres assimo é contigo, mas do Destino para si so-
mente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria te
força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, ca-
paz de te bastares e de te separares, a penúria te força a con-
viveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz
o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo,
que se bastam pela força, maso pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer éo precisar
de outrem. O pobre escravo vê-se livre à força dos seus pra-
zeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e continua.-
se livre o rei dos seus domínios, queo queria deixar. As
que espalharam amor vêem-se livres dos triunfos que ado-
ram. Os que venceram vêem-se livres das vitórias para que a
sua vida se fadou.
Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas
o pobre corpo absurdo. É que ali está um liberto, embora o
o quisesse ser. É que alio está um escravo, embora ele
chorando perdesse a servidão. Como um rei cuja maior pom-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
pa é o seu nome de rei, e que pode ser risível como homem,
mas como rei é superior, assim o morto pode ser disforme,
mas é superior, porque a morte o libertou.
Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o
mundo e um momento tenho a liberdade. Amanhã voltarei a
ser escravo; porém agora,, sem necessidade de ninguém,
receoso apenas que alguma voz ou presença venha interrom-
per-me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momen-
tos de excelsis.
Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me
oprime.o mei senão ter-me doído.
Nada se penetra, nem átomos, nem almas. Por isso
nada possui nada. Desde a verdade até a um lenço tudo é
impossível. (A propriedadeo é um roubo:o é nada.)
<^>
ANTEROS
O Amante Visual
Tenho do amor profundo e do uso proveitoso dele um
conceito superficial e decorativo. Sou sujeito a paixões vi-
suais. Guardo intato o coração dado a mais irreais destinos.
o me lembro de ter amado senão o "quadro" em
alguém, o puro exterior em que a almao entra para
mais que fazer esse exterior animado e vivo e assim dife-
rente dos quadros que os pintores fazem.
Amo assim: fixo, por bela, atraente, ou, de outro qual-
quer modo, amável, uma figura, de mulher ou de homem
ondeo há desejo,o há preferência de sexo — e essa
FERNANDO PESSOA
figura me obceca, me prende, se apodera de mim. Porémo
quero mais que vê-la, nem [...] nada mais [...] que a facul-
dade de vir a conhecer e a falar à pessoa real que essa figura
aparentemente manifesta.
Amo com o olhar, e nem com a fantasia. Porque nada
fantasio dessa figura que me prende.o me imagino ligado
a ela de outra maneira [...]o me interessa saber que é,
que faz, que pensa a criatura que me dá para ver o seu as-
pecto exterior.
A imensa série de pessoas e de coisas que forma o mun-
do é para mim uma galeria intérmina de quadros, cujo inte-
rior meo interessa.o me interessa, porque a alma é
monótona e sempre a mesma em toda a gente; diferentes
apenas as suas manifestações pessoais, e o melhor dela é o
que transborda para o sonho, para os modos, para os gestos,
e assim entra para o quadro que me prende, [...]
Assim vivo, em visão pura, o exterior animado das coi-
sas e dos seres, indiferente, como um deus de outro mundo,
ao conteúdo espírito deles. Aprofundo o ser próprio só em
extensão, e quando anseio a profundeza, é em mim e no meu
conceito das coisas que a procuro.
Que pode dar-me o conhecimento pessoal da criatura
que assim amo em décor}o uma desilusão, porque, como
nela só amo o aspecto, e nada dela fantasio, a sua estupidez
ou mediocridade nada tira, porque euo esperava nada se-
o o aspecto queo tinha que esperar, e o aspecto persiste.
Mas o conhecimento pessoal é nocivo porque é inútil, e o
inútil material é nocivo sempre. Saber .o nome da criatura
para quê? e é a primeira coisa que, apresentado a ela, fico
sabendo.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
O conhecimento pessoal precisa se*, também, de liber-
dade de contemplação, e que o meu gênero de amar deseja.
o podemos fitar, contemplar em liberdade quem conhe-
cemos pessoalmente.
O que é supérfluo é a menos para o artista, porque, per-
turbando-o, diminui o efeito.
O meu destino natural de contemplador indefinido e
apaixonado das aparências e da manifestação das coisas —
objetivista dos sonhos, amante visual das formas e dos aspec-
tos da natureza.
o é um caso do que os psiquiatras chamam onanismo
psíquico, nem sequer do que chamam erotomania.o fan-
tasio, como no onanismo psíquico;o me figuro em sonho
amante carnal, nem sequer amigo de fala, da criatura que fito
e recordo: nada fantasio dela. Nem, como o erotômano, a
idealizo e a transporto para fora da esfera da estética con-
creta:o quero dela, ou penso dela, mais que o que me dá
aos olhos e à memória direta e pura do que os olhos viram.
O Amante Visual
Nem em torno dessas figuras, com cuja contemplação
me entretenho, é meu costume tecer qualquer enredo da
fantasia. Vejo-as, e o valor delas para mim está só em serem
vistas. Tudo mais, que lhes acrescentasse, diminuí-las-ia,
porque diminuiria, por assim dizer, a sua "visibilidade".
Quanto eu fantasiasse delas, forçosamente, no próprio
momento de fantasiar, eu o conhecia como falso; e, se o so-
nhado me agrada, o falso me repugna. O sonho puro en-
canta-me, o sonho queo tem relação com a realidade, nem
FERNANDO PESSOA
ponto de contato com ela. O sonho imperfeito, com ponto de
partida na vida, desgosta-me, ou, antes, me desgostaria se eu
me embrenhasse nele.
Para mim a humanidade é um vasto motivo de decora-
ção, que vive pelos olhos e pelos ouvidos, e, ainda, pela emo-
ção psicológica. Nada mais quero da vida senão o assistir a
ela. Nada mais quero de mim, senão o assistir à vida.
Sou como um ser de outra existência que passa indefi-
nidamente interessado através desta. Em tudo sou alheio a
ela. Há entre mim e ela como um vidro. Quero esse vidro
sempre muito claro, para a poder examinar sem falha de meio
intermédio; mas quero sempre o vidro.
Para todo o espírito cientificamente constituído, ver
numa coisa mais que o que lá está é ver menos essa coisa. O
que materialmente se acrescenta, espiritualmente a diminui.
Atribuo a este estado de alma a minha repugnância
pelos museus. O museu, para mim, é a vida inteira, em que a
pintura é sempre exata, e só pode haver inexatidão na imper-
feição do contemplador. Mas essa imperfeição, ou faço por
diminuí-la, ou, seo posso, contento-me com que assim
seja, pois que como tudo,o pode ser senão assim.
Às vezes, nos meus diálogos comigo, nas tardes requin-
tadas da Imaginação, em colóquios cansados em crepúsculos
de salões supostos, pergunto-me, naqueles intervalos da con-
versa em que fico as com um interlocutor mais eu do que
os outros, por que razão verdadeirao haverá a nossa época
científica estendido a sua vontade de compreender até aos
assuntos queo artificiais. E uma das perguntas em que
com mais languidez me demoro é a porque seo faz, a par
da psicologia usual das criaturas humanas e subumanas, uma
LIVRO DO DESASSOSSEGO
psicologia também que a deve haver das figuras artifi-
ciais e das criaturas cuja existência se passa apenas nos tape-
tes e nos quadros. Triste noção tem da realidade quem a
limita ao orgânico, eoe a idéia de uma alma dentro das
estatuetas e dos lavores. Onde há forma há alma.
oo uma ociosidade estas minhas considerações co-
migo, mas uma elucubração científica como qualquer outra
que o seja. Por isso, antes de, e sem ter uma resposta, su-
ponho o possível atual e entrego-me, em análises interiores,
à visão imaginada de aspectos possíveis deste desideratum
realizado. Mal nisso penso, logo dentro da visão do meu es-
pírito surgem cientistas curvados sobre estampas, sabendo
bem que elaso vidas; microscopistas da tessitura surgem
dos tapetes, fisicistas do seu desenho largo e bruxuleante nos
contornos, químicos, sim, da idéia das formas e das cores nos
quadros; geologistas das camadas estráticas dos camafeus;
psicólogos, enfim e isto mais importa que uma a uma
notam e congregam as sensações que deve sentir uma esta-
tueta, as idéias que devem passar pelo psiquismo estreito de
uma figura de quadro ou de vitral, os impulsos loucos, as
paixões sem freio, as compaixões e ódios ocasionais e (...)
quem numa consciência [?] a espécie de fixidezas e morte
nos gestos eternos dos baixos-relevos, nas consciências [?]
ocasionais dos figurantes das telas.
Mais do que outras artes,o a literatura e a música
propícias às sutilezas de um psicólogo. As figuras de ro-
manceo como todos sabemo reais como qualquer
de nós. Certos aspectos de sonsm uma alma-alada e rápida,
mas suscetíveis de psicologia e sociologia. Porque bom é que
os ignorantes o saibam as sociedades existem dentro das
cores, dos sons, das frases e há regimes e revoluções, reina-
dos [?], políticas e (...) há-os em absoluto e sem metafí-
sica no conjunto instrumental das sinfonias, no todo orgâ-
nico das novelas, nos metros quadrados de um quadro com-
plexo, onde gozem, sofram, e misturem as atitudes coloridas
de guerreiros, de amorosos ou de simbólicos.
FERNANDO PESSOA
Quando se quebra uma chávena da minha coleção japo-
nesa eu sonho que mais que um descuido das mãos de uma
criada tinha sido a causa, ou tinham estado os anseios das
figuras que habitam as curvas daquela (...) de louça; a reso-
lução tenebrosa de suicídio que as tomao me causa es-
panto: Serviu-se da criada, como eu me sirvo [?] de um re-
vólver. Saber isto é estar além [...] e com que precisão eu sei
isto!
É uma oleografia sem remédio. Fito-a sem saber se vejo.
Na montra há outras e aquela. Está ao centro da montra do
o de escada.
Ela aperta a primavera contra o seio e os olhos com que
me fitao tristes. Sorri com brilho do papel e as cores da sua
faceo encarnado. Ou por trás dela é azul de fazenda
clara. Tem uma boca recortada e quase pequena por sobre
cuja expressão postal os olhos me fitam sempre com uma
grande pena. O braço que segura as flores lembra-me o de
alguém. O vestido ou blusa é aberto num decote ladeado. Os
olhoso realmente tristes: fitam-me do fundo da realidade
litográfica com uma verdade qualquer. Ela veio com a prima-
vera. Os seus olhos tristeso grandes, mas nem é por isso.
Separo-me de defronte da montra com uma grande violência
sobre os pés. Atravesso a rua e volto-me com uma revolta
impotente. Ela segura ainda a primavera que lhe deram e os
seus olhoso tristes como o que euo tenho na vida. Vista
à distância, a oleografia tem afinal mais cores. A figura tem
uma fita de cor de mais rosa contornando o alto do cabelo;
o tinha reparado. Há em olhos humanos, ainda que lito-
gráficos, uma coisa terrível: o aviso inevitável da consciên-
cia, o grito clandestino de haver alma. Com um grande es-
forço ergo-me do sono em que me molho e sacudo, como um
cão, os úmidos da treva de bruma. E por cima do meu deser-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
tar, numa despedida de outra coisa qualquer, os olhos tristes
da vida toda, desta oleografia metafisica que contemplamos à
distância, fitam-me como se eu soubesse de Deus. A gravura
tem um calendário na base. É emoldurada em cima e em-
baixo por duas réguas pretas de um convexo chato mal pin-
tado. Entre o alto e o baixo do seu definitivo, por sobre 1929
com vinheta obsoletamente caligráfica cobrindo o inevitável
primeiro de janeiro, os olhos tristes sorriem-me ironica-
mente.
É curioso de onde, afinal, eu conhecia a figura. No es-
critório, no canto do fundo, um calendário idêntico, que
tenho visto muitas vezes. Mas, por um mistério, ou oleo-
gráfico ou meu, a idêntica do escritórioo tem olhos com
pena. É só uma oleografia. (É de papel que brilha e que dor-
me por cima da cabeça do Alves canhoto o seu viver de esba-
timento.)
Quero sorrir de tudo isto, mas sinto um grande mal-
estar. Sinto um frio de doença súbita na alma.o tenho
força para me revoltar contra esse absurdo. A que janela para
que segredo de Deus me abeiraria eu sem querer? Para onde
dá a montra doo de escada? Que olhos me fitavam na
oleografia? Estou quase a tremer. Ergo involuntariamente os
olhos para o canto distante do escritório onde a verdadeira
oleografia está. Levo constantemente a erguer para lá os
olhos.
Pastoral de Pedro
o sei onde te vi nem quando.o sei se foi num
quadro ou se foi no campo real, ao pé de árvores e ervas
contemporâneas do corpo; foi num quadro talvez,o idílica
e legível é a memória que de ti conservo. Nem sei quando
FERNANDO PESSOA
isto [se] passou, ou se se passou realmente porque pode
ser que nem em quadro eu te visse, mas sei com todo o
sentimento da minha inteligência que esse foi o momento
mais calmo da minha vida.
Vinhas, boeirinha leve, ao lado de um boi manso e enor-
me, calmos pelo risco largo da estrada. Desde longe pa-
rece-me eu vos vi, e viestes até mim e passastes. Pare-
cesteo reparar na minha presença. Ias lenta e guardadora
descuidada do boi grande. O teu olhar esquecera-se de lem-
brar e tinha uma grande clareira de vida de alma; abando-
nara-te a consciência de ti própria. Nesse momento nada
mais eras do que um (...)
Vendo-te recordei que as cidades mudam mas os cam-
poso eternos. Chamam bíblicas às pedras e aos montes,
porqueo os mesmos, do mesmo modo que os dos tempos
bíblicos deviam ter sido.
É no recorte passageiro da tua figura anônima que eu
ponho toda a evocação dos campos, e a calma toda que eu
nunca tive chega-me à alma quando penso em ti. O teu andar
tinha um balouçar leve, um ondular incerto, em cada gesto
teu, pousava uma ave; tinhas trepadeiras invisíveis enrasca-
das no (...) do teu busto. O teu silêncio era o cair da tarde,
e balia um cansaço de rebanhos, chocalhando, pelas encostas
pálidas da hora o teu silêncio era o canto do último pegu-
reiro que, por esquecido de uma écloga nunca escrita de Vir-
gílio, ficou eternamente incantado, e eterna nos campos, si-
lhueta. Era possível que estivesses sorrindo; para ti apenas,
para a tua alma, vendo-te a ti na tua idéia, a sorrir. Mas os
teus lábios eram calmos como o recorte dos montes; e o ges-
to, que deslembro, de tuas mãos rústicas engrinaldado com
flores dos campos.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Foi num quadro, sim, que te vi. Mas donde me vem
esta idéia de que te vi aproximares-te e passares por mim e eu
seguir,o me voltando para trás por te estar vendo sempre
e ainda? Estaca o Tempo para te deixar passar, e eu amo-te
quando te quero colocar na vida ou na semelhança da
vida.
7
Dizer! Saber dizer!
Prefiro a prosa ao verso, como modo de arte, por duas
razões, das quais a primeira, que é minha, é queo tenho
escolha, pois sou incapaz de escrever em verso. A segunda,
porém, é de todos, eo é creio bem uma sombra ou
disfarce da primeira. Vale pois a pena que eu a esfie, porque
toca no sentido intimo de toda a valia da arte.
Considero o verso como uma coisa intermédia, uma
passagem da música para a prosa. Como a música, o verso é
limitado por leis rítmicas, que, ainda queo sejam as leis
rígidas do verso regular, existem todavia como resguardos,
coações, dispositivos automáticos de opressão e castigo. Na
prosa falamos livres. Podemos incluir ritmos musicais, e con-
tudo pensar. Podemos incluir ritmos poéticos, e contudo es-
tar fora deles. Um ritmo ocasional de versoo estorva a
prosa; um ritmo ocasional de prosa faz tropeçar o verso.
Na prosa se engloba toda a arte em parte porque na
palavra se contém todo o mundo, em parte porque na palavra
livre se contém toda a possibilidade de o dizer e pensar. Na
prosa damos tudo, por transposição: a cor e a forma, que a
pinturao pode dar senão diretamente, em elas mesmas,
sem dimensão íntima; o ritmo, que a músicao pode dar
senão diretamente, nele mesmo, sem corpo formal, nem
aquele segundo corpo que é a idéia; a estrutura, que o arqui-
teto tem que formar de coisas duras, dadas, externas, es
FERNANDO PESSOA
erguemos em ritmos, em indecisões, em decursos e fluide-
zas; a realidade, que o escultor tem que deixar no mundo,
sem aura nem transubstanciação; a poesia, enfim, em que o
poeta, como o iniciado em uma ordem oculta, é servo, ainda
que voluntário, de um grau e de um ritual.
Creio bem que, em um mundo civilizado perfeito,o
haveria outra arte queo a prosa. Deixaríamos os poentes
aos mesmos poentes, cuidando apenas, em arte, de os com-
preender verbalmente, assim os transmitindo em música in-
teligível de cor.o faríamos escultura dos corpos, que guar-
dariam próprios, vistos e tocados, o seu relevo móbil e o seu
morno suave. Faríamos casas só para morar nelas, que é,
enfim, o para que elas são. A poesia ficaria para as crianças
se aproximarem da prosa futura; que a poesia é, por certo,
qualquer coisa de infantil, de mnemônico, de auxiliar e
inicial.
Até as artes menores, ou as que assim podemos cha-
mar, se refletem, múrmuras, na prosa. Há prosa que dança,
que canta, que se declama a si mesma. Há ritmos verbais que
o bailados, em que a idéia se desnuda sinuosamente, numa
sensualidade translúcida e perfeita. E há também na prosa
sutilezas convulsas em que um grande ator, o Verbo, trans-
muda ritmicamente em sua substância corpórea o mistério
impalpável do Universo.
Tudo se penetra. A leitura dos clássicos, queo falam
de poentes, tem-me tornado inteligíveis muitos poentes, em
todas as suas cores. Há uma relação entre a competência
sintática, pela qual se distinguem os valores dos seres [?],
dos sons e das formas, e a capacidade de compreender quando
o azul dou é realmente verde, e que parte de amarelo exis-
te no verde azul do céu.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
No fundo é a mesma coisa a capacidade de distinguir
e de sutilizar. Sem sintaxeo há emoção duradoura. A
imortalidade é uma função dos gramáticos.
Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As pa-
lavraso para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensua-
lidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade realo
tem para mim interesse de nenhuma espécie nem sequer
mental ou de sonho, transmudou-se-me o desejo para
aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de ou-
tros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal-
gina de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em
todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um
prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Viei-
ra, na sua fria perfeição de engenharia sintática, me faz tre-
mer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa
movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da
perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteira-
mente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar,
num devaneio externo, deixando que as palavras me façam
festas, criança menina ao colo delas.o frases sem sentido,
decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esque-
cer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem,
tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim
as idéias, as imagens, trêmulas de expressão, passam por
mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de
idéia bruxuleia, malhado e confuso.
o choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém
páginas de prosa que mem feito chorar. Lembro-me, como
do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela
FERNANDO PESSOA
primeira vez numa seleta, o passo célebre de Vieira sobre o
Rei Salomão. "Fabricou Salomão um palácio..." E fui len-
do, até ao fim, trêmulo, confuso; depois rompi em lágrimas
felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como
nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento
hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir
das idéias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há
declive, aquele assombro vocálico em que os sonso cores
ideais tudo isso me toldou de instinto como uma grande
emoção política. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda
choro.o éo a saudade da infância, de queo
tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a
mágoa deo poder já ler pela primeira vez aquela grande
certeza sinfônica.
o tenho sentimento nenhum político ou social. Te-
nho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico.
Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que
invadissem ou tomassem Portugal, desde queo me inco-
modassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro,
com o único ódio que sinto,o quem escreve mal portu-
guês,o quemo sabe sintaxe,o quem escreve em orto-
grafia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa
própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a orto-
grafia sem ípsilon, como o escarro direto que me enoja inde-
pendentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é
completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-ro-
mana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora
e rainha.
Por mais que pertença, por alma, a linhagem dos ro-
mânticos,o encontro repouso senão na leitura dos clássi-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
cos. A sua mesma estreiteza, através da qual a sua clareza se
exprime, me confortao sei de quê. Colho neles uma im-
pressão álacre de vida larga, que contempla amplos espaços
sem os percorrer. Os mesmos deuses pagãos repousam do
mistério.
A análise sobrecuriosa das sensações por vezes das
sensações que supomos ter, a identificação do coração
com a paisagem, a revelação anatômica dos nervos todos,
o uso do desejo como vontade e da aspiração como pensa-
mento todas estas coisas meo demasiado familiares para
que em outrem me tragam novidade, ou me dêem sossego.
Sempre que as sinto, desejaria, exatamente porque as sinto,
estar sentindo outra coisa. E, quando leio um clássico, essa
outra coisa é me dada.
Confesso-o sem rebuço nem vergonha...o há trecho
de Chateaubriand ou canto de Lamartine trechos que tan-
tas vezes parecem ser a voz do que eu penso, cantos que
tanta vez parecem ser me ditos para conhecer que me
enleve e me erga como um trecho de prosa de Vieira ou uma
outra ode daqueles nossos poucos clássicos que seguiram de-
veras a Horácio.
Leio e estou liberto. Adquiro objetividade. Deixei de ser
eu e disperso. E o que leio, em vez de ser um trajo meu que
mal vejo e por vezes me pesa, é a grande clareza do mundo
externo, toda ela notável [?] o sol que vê todos, a lua que
malha de sombras o chão quieto, os espaços largos que aca-
bam em mar, a solidez negra das árvores que acenam verdes
em cima, a paz sólida dos tanques das quintas, os caminhos
tapados pelas vinhas, nos declives breves das encostas.
Leio como quem abdica. E, como a coroa e o manto
régios nuncaoo grandes como quando o Rei que parte os
deixa no chão, deponho sobre os mosaicos das antecâmaras
FERNANDO PESSOA
todos os meus triunfais do tédio e do sonho, e subo a esca-
daria com a única nobreza de ver.
Leio como quem passa. E é nos clássicos, nos calmos,
nos que, se sofrem, oo dizem, que me sinto sagrado tran-
seunte, ungido peregrino, contemplador sem razão do mun-
do sem propósito, Príncipe do Grande Exílio, que deu, par-
tindo-se, ao último mendigo, a esmola extrema da sua deso-
lação.
Detesto a leitura. Tenho um tédio antecipado das-
ginas desconhecidas. Sou capaz de ler só o que já conheço. O
meu livro de cabeceira é a Retórica do Padre Figueiredo,
onde leio todas as noites pela cada vez mais milésima vez a
descrição, em estilo de um português conventual e certo, as
figuras de retórica, cujos nomes, mil vezes lidos,o fixei
ainda. Mas embala-me a linguagem (...), e se me faltasse[m]
as palavras justas [?] escritas com C dormiria inquieto.
Devo contudo ao livro do Padre Figueiredo, com o seu
exagero de purismo, o relativo escrúpulo que tenho todo o
que posso ter de escrever a língua em que me registro com
a propriedade que (...)
E leio:
(um trecho do P. Figueiredo)
- [.]
e isto consola-me de viver
ou então
(um trecho sobre figuras)
que volta no prefácio
o exagero uma polegada verbal: sinto tudo isto.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Como outros podem ler trechos da Bíblia, leio-os desta
Retórica. Tenho a vantagem do repouso e da falta de de-
voção.
o conheço prazer como o dos livros, e pouco leio. Os
livroso apresentações aos sonhos, eo precisa de apre-
sentações quem, com a facilidade da vida, entre em conversa
com eles. Nunca pude ler um livro com entrega a ele; sem-
pre, a cada passo, o comentário da inteligência ou da imagi-
nação me estorvou a seqüência da própria narrativa. No fim
de minutos, quem escrevia era eu, e o que estava escritoo
estava em parte alguma.
As minhas leituras prediletaso a repetição de livros
banais que dormem comigo à minha cabeceira. Há dois que
meo deixam nunca A Retórica do Padre Figueiredo e
as Reflexões sobre a Língua Portuguesa, do Padre Freire.
Estes livros, releio-os sempre a bem; e, se é certo que já os li
todos muitas vezes, também é certo que a nenhum deles li
em seqüência. Devo a esses livros uma disciplina que quase
creio impossível em mim uma regra de escrever objeti-
vado, uma lei da razão de as coisas estarem escritas.
O estilo afetado, claustral, frusto, do Padre Figueiredo é
uma disciplina que faz as delícias do meu entendimento. A
difusão, quase sempre sem disciplina, do Padre Freire, en-
tretém o meu espírito sem o cansar, e educa-me sem me dar
preocupação.o espíritos de eruditos e de sossegados que
fazem bem à minha nenhuma disposição para ser como eles,
ou como qualquer outra pessoa.
Leio e abandono-me,o à leitura, mas a mim. Leio e
adormeço, e é como entre sonhos que sigo a descrição das
figuras de retórica do Padre Figueiredo, e por bosques de
FERNANDO PESSOA
maravilha que ouço o Padre Freire ensinar que se deve dizer
Magdalena, pois Madalena só o diz o vulgo.
Meditei hoje, num intervalo de sentir, na forma de pro-
sa de que uso. Em verdade, como escrevo? Tive, como mui-
tosm tido, a vontade pervertida de querer ter um sistema e
uma norma. E certo que escrevi antes da norma e do sis-
tema; nisso, porém,o sou diferente dos outros.
Analisando-me à tarde, descubro que o meu sistema de
estilo assenta em dois princípios, e imediatamente, e à boa
maneira dos bons clássicos, erijo esses dois princípios em
fundamentos gerais de todo estilo: dizer o que se sente exata-
mente como se sente claramente, se é claro; obscura-
mente, se é obscuro; confusamente, se é confuso; com-
preender que a gramática é um instrumento, eo uma lei.
Suponhamos que vejo diante des uma rapariga de
modos masculinos. Um ente humano vulgar dirá dela,
"Aquela rapariga parece um rapaz". Um outro ente hu-
mano vulgar, já mais próximo da consciência de que falar é
dizer, dirá dela, "Aquela rapariga é um rapaz". Outro ain-
da, igualmente consciente dos deveres da expressão, mas
mais animado do afeto pela concisão, que é a luxúria do pen-
samento, dirá dela, "Aquele rapaz". Eu direi, "Aquela ra-
paz", violando a mais elementar das regras da gramática,
que manda que haja concordância de gênero, como de-
mero, entre a voz substantiva e a adjetiva. E terei dito
bem; terei falado em absoluto, fotograficamente, fora da cha-
teza, da norma, e da quotidianidade.o terei falado: terei
dito.
A gramática, definindo o uso, faz divisões legítimas e
falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos e in-
transitivos; porém o homem de saber dizer tem muitas vezes
LIVRO DO DESASSOSSEGO
que converter um verbo transitivo em intransitivo para foto-
grafar o que sente, eo para, como o comum dos animais
homens, o ver às escuras. Se quiser dizer que existo, direi
' 'Sou". Se quiser dizer que existo como alma separada, direi
"Sou eu". Mas se quiser dizer que existo como entidade
que a si mesma se dirige e forma, que exerce junto de si
mesma a função divina de se criar, como hei de empregar o
verbo "ser" senão convertendo-o subitamente em transi-
tivo? E então, triunfalmente, antigramaticalmente supremo,
direi, "Sou-me". Terei dito uma filosofia em duas palavras
pequenas. Que preferívelo é isto ao dizer nada em qua-
renta frases? Que mais se pode exigir da filosofia e da dicção?
Obedeça à gramática quemo sabe pensar o que sente.
Sirva-se dela quem sabe mandar nas suas expressões. Conta-
se de Sigismundo, Rei de Roma, que, tendo, num discurso
público, cometido um erro de gramática, respondeu a quem
dele lhe falou, "Sou Rei de Roma, e acima da gramática".
E a história narra que ficou sendo conhecido nela como Sigis-
mundo "super-grammaticam". Maravilhoso símbolo! Cada
homem que sabe dizer o que diz é, em seu modo, Rei de
Roma. O títuloo é mau, e a alma é ser-se.
O olfato é um vista estranha. Evoca paisagens senti-
mentais por um desenhar súbito do subconsciente. Tenho
sentido isto muitas vezes. Passo numa rua.o vejo nada,
ou, antes, olhando tudo, vejo como toda a gente. Sei que
vou por uma rua eo sei que ela existe com lados feitos de
casas diferentes e construídas por gente humana. Passo numa
rua. De uma padaria sai um cheiro ao que nauseia por
doce no cheiro dele: e a minha infância ergue-se de determi-
nado bairro distante, e outra padaria me surge daquele reino
das fadas que é tudo que se nos morreu. Passo numa rua.
Cheira de repente às frutas do tabuleiro inclinado da loja es-
FERNANDO PESSOA
treita; e a minha breve vida de campo,o sei já quando nem
onde, tem árvores ao fim e sossego no meu coração, indis-
cutivelmente menino. Passo uma rua. Transtorna-me, sem
que eu espere, um cheiro aos caixotes do caixoteiro: ó meu
Cesário, apareces-me e eu sou enfim feliz porque regressei,
pela recordação, à única verdade, que é a literatura.
Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e
desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de
acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-
me e faço. O que consigo é um produto, em mim,o de
uma aplicação da vontade, mas de uma cedência dela. Co-
meço porqueo tenho força para pensar; acabo porqueo
tenho alma para suspender. Este livro é a minha covardia.
A razão por que tantas vezes interrompo um pensa-
mento com um trecho de paisagem, que de algum modo se
integra no esquema, real ou suposto, das minhas impressões,
é que essa paisagem é uma porta por onde fujo ao conheci-
mento da minha impotência criadora. Tenho a necessidade,
em meio das conversas comigo que formam as palavras deste
livro, de falar de repente com outra pessoa, e dirijo-me à luz
que paira, como agora, sobre os telhados das casas, que pa-
recem molhados de tê-la de lado; ao agitar brando das árvo-
res altas na encosta citadina, que parecem perto, numa pos-
sibilidade de desabamento mudo; aos cartazes sobrepostos
das casas ingremadas, com janelas por letras onde o sol mor-
to doura goma úmida.
Por que escrevo, seo escrevo melhor? Mas que seria
de mim seo escrevesse o que consigo escrever, por infe-
rior a mim mesmo que nisso seja? Sou um plebeu da aspira-
ção, porque tento realizar;o ouso o silêncio como quem
LIVRO DO DESASSOSSEGO
receia um quarto escuro. Sou como os que prezam a medalha
mais que o esforço, e gozam a glória na peliça.
Para mim, escrever é desprezar-me; maso posso dei-
xar de escrever. Escrever é como a droga que repugno e
tomo, o vício que desprezo e em que vivo. Há venenos ne-
cessários, e há-os sutilíssimos, compostos de ingredientes da
alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos sonhos, pa-
poulas negras achadas ao pé das sepulturas [...], folhas lon-
gas de árvores obscenas que agitam os ramos nas margens
ouvidas dos rios infernais da alma.
Escrever, sim, é perder-me, mas todos se perdem, por-
que tudo é perda. Porém eu perco-me sem alegria,o como
o rio na foz para que nasceu incógnito, mas como o lago feito
na praia pela maré alta, e cuja água sumida nunca mais re-
gressa ao mar.
Mesmo que eu quisesse criar, (...)
A única arte verdadeira é a da construção. Mas o meio
moderno torna impossível o aparecimento de qualidades de
construção no espírito.
Por isso se desenvolveu a ciência. A única coisa em que
há construção, hoje, é uma máquina; o único argumento em
que há encadeamento o de uma demonstração matemática.
O poder de criar precisa de ponto de apoio, da muleta da
realidade.
A arte é uma ciência...
Sofre ritmicamente.
FERNANDO PESSOA
o posso ler, porque a minha critica hiperacesao
descortina senão defeitos, imperfeições, possibilidades de
melhor.o posso sonhar, porque sinto o sonhoo viva-
mente que o comparo com a realidade, de modo que sinto
logo que eleo é real; e assim o seu valor desaparece.o
posso entreter-me na contemplação inocente das coisas e dos
homens, porque a ânsia de aprofundar é inevitável, e, desde
que o meu interesseo pode existir sem ela ou há-de morrer
às mãos dela ou secar.
o posso entreter-me com a especulação metafísica
porque sei de sobra, e por mim, que todos os sistemaso
defensáveis e intelectualmente possíveis; e, para gozar a arte
intelectual do construir sistemas, falta-me o poder esquecer
que o fim da especulação metafísica é a procura da verdade.
Um passado feliz em cuja lembrança torne a ser feliz;
sem nada no presente que me alegre ou me interesse, em
sonho ou hipótese de futuro que seja diferente deste pre-
sente, ou possa ter outro passado que esse passado jazo a
minha vida, consciente espectro de um paraíso em que nunca
estive, cadáver-nado das minhas esperanças por haver.
Felizes os que sofrem com unidade! Aqueles a quem a
angústia altera maso divide, que crêem, ainda que na des-
crença, e podem sentar-se ao sol sem pensamento reservado.
Fazer uma obra e reconhecê-la má depois de feita é uma
das tragédias da alma. Sobretudo é grande quando se reco-
nhece que essa obra é a melhor que se podia fazer. Mas ao ir
escrever uma obra, saber d'antemão que ela tem de ser im-
perfeita e falhada; ao está-la escrevendo estar vendo que ela é
imperfeita e falhada isto é o máximo da tortura e da humi-
lhação do espírito.o só dos versos que escrevo sinto que
LIVRO DO DESASSOSSEGO
meo satisfazem, mas sei que os versos que estou para es-
crever meo satisfarão, também. Sei-o tanto filosofica-
mente, como carnalmente, por uma entrevisão obscura e
gladiolada.
Por que escrevo então? Porque, pregador que sou da
renúncia,o aprendi ainda a executá-la plenamente.o
aprendi a abdicar da tendência para o verso e a prosa. Tenho
de escrever como cumprindo um castigo. E o maior castigo é
o de saber que o que escrevo resulta inteiramente fútil, fa-
lhado e incerto.
Em criança escrevia já versos. Então escrevia versos
muito maus, mas julgava-os perfeitos. Nunca mais tornarei
a ter o prazer falso de produzir obra perfeita. O que escrevo
hoje é muito melhor. É melhor, mesmo, do que o que pode-
riam escrever os melhores. Mas está infinitamente abaixo
daquilo que eu,o sei por quê, sinto, que podia ou talvez
seja, que devia escrever. Choro sobre os meus versos
maus da infância como sobre uma criança morta, um filho
morto, uma última esperança que se fosse.
Se algum dia me suceder que, com uma vida firmemente
segura, possa livremente escrever e publicar, sei que terei
saudades desta vida incerta em que mal escrevo eo pu-
blico. Terei saudades,o só porque essa vida frusta é pas-
sado e vida queo mais terei, mas porque há em cada es-
pécie de vida uma qualidade própria e um prazer peculiar, e
quando se passa para outra vida, ainda que melhor, esse pra-
zer peculiar é menos feliz, essa qualidade própria é menos
boa, deixam de existir, e há uma falta.
Se algum dia me suceder que consiga levar ao bom cal-
vário a cruz da minha intenção, encontrarei um calvário
nesse bom calvário, e terei saudades de quando era fútil,
frusto e imperfeito. Serei menos de qualquer maneira.
Tenho sono. O dia foi pesado de trabalho absurdo no
escritório quase deserto. Dois empregados estão doentes e os
outroso estão aqui. Estou, salvo o moço longínquo.
Tenho saudades da hipótese de poder ter um dia saudades, e
ainda assim absurdas.
Quase peço aos deuses que haja que ma guardem aqui,
como num cofre, defendendo-me das agruras e também das
felicidades da vida.
Como há quem trabalhe de tédio, escrevo, por vezes, de
o ter que dizer. O devaneio, em que naturalmente se perde
quemo pensa, perco-me eu nele por escrito, pois sei so-
nhar em prosa. E há muito sentimento sincero, muita emo-
ção legítima que tiro deo estar sentindo.
Há momentos em que a vacuidade de se sentir viver
atinge a espessura de uma coisa positiva. Nos grandes ho-
mens de ação, queo os santos, pois que agem com a emo-
ção inteira eo só com parte dela, este sentimento de a vida
o ser nada conduz ao infinito. Engrinaldam-se de noite e
de astros, ungem-se de silêncio e de solidão. Nos grandes
homens de inação, a cujo número humildemente pertenço,
o mesmo sentimento conduz ao infinitesimal; puxam-se as
sensações, como elásticos, para ver os poros da sua falsa con-
tinuidade bamba.
E uns e outros, nestes momentos, amam o sono, como
o homem vulgar que nem age nemo age, mero reflexo da
existência genérica da espécie humana. Sono é a fusão com
Deus, o Nirvana, seja ele em definições o que for; sono é a
análise lenta das sensações, seja ela usada como uma ciência
FERNANDO PESSOA
LIVRO DO DESASSOSSEGO
atômica da alma, seja ela dormida como uma música da von-
tade, anagrama lento da monotonia.
Escrevo demorando-me nas palavras, como por mon-
tras ondeo vejo, eo meios-sentidos, quase-expressões o
que me fica, como cores de estofos queo vi o que são,
harmonias exibidas compostas deo sei que objetos. Es-
crevo embalando-me, como umae louca a um filho morto.
Encontrei-me neste mundo certo dia, queo sei qual
foi, e até ali, desde que evidentemente nascera, tinha vivido
sem sentir. Se perguntei onde estava, todos me enganaram, e
todos se contradiziam. Se pedi que me dissessem o que faria,
todos me falaram falso, e cada um me disse uma coisa sua.
Se, deo saber, parei no caminho, todos pasmaram que eu
o seguisse para onde ninguém sabia o que estava, ouo
voltasse para trás eu, que, desperto na encruzilhada,o
sabia de onde viera. Vi que estava em cena eo sabia o
papel que os outros diziam logo, sem o saberem também. Vi
que estava vestido de pajem, eo me deram a rainha, cul-
pando-me de ao ter. Vi que tinha nas mãos a mensagem
que entregar, e quando lhes disse que o papel estava branco,
riram-se de mim. E aindao sei se riram porque todos os
papéis estão brancos, ou porque todas as mensagens se adi-
vinham.
Por fim sentei-me na pedra da encruzilhada como á la-
reira que me faltou. E comecei, as comigo, a fazer barcos
de papel com a mentira que me haviam dado. Ninguém me
quis acreditar, nem por mentiroso eo tinha lago com que
provasse a minha verdade.
Palavras ociosas, perdidas, metáforas soltas, que uma
vaga angústia encadeia a sombras... Vestígios de melhores
horas, vividaso sei onde em aléias... Lâmpada apagada
FERNANDO PESSOA
cujo ouro brilha no escuro pela memória da extinta luz...
Palavras dadas,o ao vento, mas ao chão, deixadas ir dos
dedos sem aperto, como folhas secas que neles houvessem
caído de uma árvore invisivelmente infinita... Saudade dos
tanques das quintas alheias... Ternura do nunca sucedido...
Viver! Viver! E a suspeita ao menos, se acaso no leito
de Proserpina haveria bem de me [?] dormir.
Releio, em uma destas sonolências sem sono, em que
nos entretemos inteligentemente sem a inteligência, algu-
mas das páginas que formarão, todas juntas, o meu livro de
impressões sem nexo. E delas me sobe, como um cheiro de
coisa conhecida, uma impressão deserta de monotonia. Sinto
que, ainda ao dizer que sou sempre diferente, disse sempre a
mesma coisa; que sou mais análogo a mim mesmo do que
quereria confessar; que, em fecho de contas, nem tive a ale-
gria de ganhar nem a emoção de perder. Sou uma ausência
de saldo de mim mesmo, de um equilíbrio involuntário que
me desola e enfraquece.
Tudo, quanto escrevi, é pardo. Dir-se-ia que a minha
vida, ainda a mental, era um dia de chuva lenta, em que tudo
é desacontecimento e penumbra, privilégio vazio e razão es-
quecida. Desolo-me a seda rota. Desconheço-me a luz e
tédio.
Meu esforço humilde, de sequer dizer quem sou, de re-
gistrar, como uma máquina de nervos, as impressões míni-
mas da minha vida subjetiva e aguda, tudo isso se me esva-
ziou como um balde em que esbarrassem, e se molhou pela
terra como a água de tudo. Fabriquei-me a tintas falsas, re-
sultei a império de trapeira. Meu coração, de quem fiei os
LIVRO DO DESASSOSSEGO
grandes acontecimentos da prosa vivida, parece-me hoje, es-
crito na distância destas páginas relidas com outra alma, uma
bomba de quintal de província, instalada por instinto e ma-
nobrada por serviço. Naufraguei sem tormenta num mar
onde se pode estar de.
E pergunto ao que me resta de consciente nesta série
confusa de intervalos entre coisas queo existem, de que
me serviu encher tantas páginas de frases em que acreditei
como minhas, de emoções que senti como pensadas, de ban-
deiras e pendões de exércitos que são, afinal, papéis colados
com cuspo pela filha do mendigo debaixo dos beirais.
Pergunto ao que me resta de mim a quem estas-
ginas inúteis, consagradas ao lixo e ao desvio, perdidas antes
de ser entre os papéis rasgados do Destino.
Pergunto, e prossigo. Escrevo a pergunta, embrulho-a
em novas frases, desmeado-a de novas emoções. E amanhã
tornarei a escrever, na seqüência do meu livro estúpido, as
impressões diárias do meu desconvencimento com frio.
Sigam, tais como são. Jogado o dominó, e ganho o jogo,
ou perdido, as pedras viram-se para baixo e o jogo findo é
negro.
... como um náufrago afogando-se à vista de ilhas mara-
vilhosas, em aqueles mesmos mares dourados de violeta de
que em leitos remotos verdadeiramente sonhara.
Suponho que seja o que chamam um decadente, que
haja em mim, como definição externa do meu espírito, essas
lucilações tristes de uma estranheza postiça que incorporam
FERNANDO PESSOA
em palavras inesperadas uma alma ansiosa e malabar. Sinto
que sou assim e que sou absurdo. Por isso busco, por uma
imitação de uma hipótese dos clássicos, figurar ao menos em
uma matemática expressiva as sensações decorativas da mi-
nha alma substituída. Em certa altura da cogitação escrita, já
o sei onde tenho o centro da atenção se nas sensações
despersas que procuro descrever, como a tapeçarias incógni-
tas, se nas palavras com que, querendo descrever a própria
descrição, me embrenho, me descaminho e vejo outras coi-
sas. Formam-se em mim associações de idéias, de imagens,
de palavras tudo lúcido e difuso, e tanto estou dizendo
o que sinto, como o que suponho que sinto, nem distingo o
que a alma me sugere do que as imagens, que a alma deixou
cair, me enfloram no chão, nem, até, se um som de palavra
bárbara, ou um ritmo de frase interposta, meo tiram do
assunto já incerto, da sensação já em parque, e me absolvem
de pensar e de dizer, como grandes viagens para distrair. E
isto tudo, que, se o repito, deveria dar me uma sensação de
futilidade, de falência, de sofrimento,o consegue senão
dar-me asas de ouro. Desde que falo de imagens, talvez por-
que fosse a condenar o abuso delas, nascem-me imagens;
desde que me ergo de mim para repudiar o queo sinto, eu
o estou sentindo já e o proprio repúdio é uma sensação com
bordados; desde que, perdida enfim a fé no esforço, me quero
abandonar ao extravio, um termo clássico, um adjetivo espa-
cial e sóbrio, fazem-me de repente, como uma luz de sol, ver
clara diante de mim a página escrita dormentemente, e as
letras da minha tinta da canetao um mapa absurdo de si-
nais mágicos. E deponho-me como à caneta, e traço a capa de
me reclinar sem nexo, longínquo, intermédio e súcubo, final
como um náufrago afogando-se etc.
Tornar puramente literária a receptividade dos senti-
dos, e as emoções, quando acaso inferiorizem aparecer, con-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
vertê-las em matéria aparecida para com ela estátuas se es-
culpirem de palavras fluidas e [...]
Educação sentimental.(?)
Para quem faz do sonho a vida, e da cultura em estufa
das suas sensações uma religião e uma política, para esse o
primeiro passo, o que acusa na alma que ele deu o primeiro
passo, é o sentir as coisas mínimas extraordinária e des-
medidamente. Este é o primeiro passo, e o passo simples-
mente primeiroo é mais do que isto. Saberr no saborear
duma chávena de chá a volúpia extrema que o homem nor-
mal só pode encontrar nas grandes alegrias que vem da ambi-
ção subitamente satisfeita toda ou das saudades de repente
desaparecidas, ou então nos atos finais e carnais do amor;
poder encontrar na visão dum poente ou na contemplação
dum detalhe decorativo aquela exasperação de senti-los que
geralmente só pode dar,o o que se vê ou o que se ouve,
mas o que se cheira ou .se gosta essa proximidade do ob-
jeto da sensação que só as sensações carnais — o tato, o
gosto, o olfato esculpem de encontro à consciência; poder
tornar a visão interior, o ouvido do sonho todos os senti-
dos supostos e do suposto recebedores e tangíveis como
sentidos virados para o externo: escolho estas, e as análogas
suponham-se, dentre as sensações que o cultor de sentir-se
logra, educado, espasmar, para que dêem uma noção con-
creta e próxima do que busco dizer.
O chegar, porém, a este grau de sensação, acarreta ao
amador de sensações o correspondente peso ou gravame-
sico de que correspondentemente sente, com idêntico exas-
pero consciente, o que de doloroso impinge [sic ] do exterior,
e por vezes do interior também, sobre o seu momento de
atenção. É quando assim constata que sentir excessivamente,
se por vezes é gozar em excesso, é outras sofrer com proli-
FERNANDO PESSOA
xidade, e porque o constata, que o sonhador é levado a dar o
segundo passo na sua ascensão para si-próprio. Ponho de
parte o passo que ele poderá ouo dar, e que, consoante ele
o possa ouo dar, determinará tal ou tal outra atitude, jeito
de marcha, nos passos que vai dando, segundo possa ouo
isolar-se por completo da vida real (se é rico ou não,
redunda nisso). Porque suponho compreendido nas entreli-
nhas do que narro, que, consoante é ouo possível ao so-
nhador isolar-se e dar-se a si, ouo é, com menor, ou
maior, intensidade ele deve concentrar-se sobre a sua obra de
despertar doentiamente o funcionamento das suas sensações
das coisas e dos sonhos. Quem tem de viver entre os homens,
ativamente e encontrando-os, e é realmente possível re-
duzir ao mínimo a intimidade que se tem de ter com eles
(a intimidade, eo o mero contato, com gente, é que é o
prejudicador) terá de fazer gelar toda a sua superfície de
convivência para que todo o gesto fraternal e social feito a ele
escorregue eo entre ouo se imprima. Parece muito isto,
mas é pouco. Os homenso fáceis de afastar: bastao nos
aproximarmos. Enfim, passo sobre este ponto e reintegro-me
no que explicava.
O criar uma agudeza e uma complexidade imediata às
sensações as mais simples e fatais, conduz, eu disse, se a
aumentar imoderadamente o gozo que sentir, também a
elevar com despropósito o sofrimento que vem de sentir. Por
isso o segundo passo do sonhador deverá ser o evitar o sofri-
mento.o deverá evitá-lo como um estóico ou um epicu-
rista da primeira maneira desnificando-se [sic] porque
assim endurecerá para o prazer, como para a dor. Deverá ao
contrário ir buscar à dor o prazer, e passar em seguida a
educar-se a sentir a dor falsamente, isto é, a ter ao sentido a
dor, um prazer qualquer. Há vários caminhos para esta ati-
tude. Um é aplicar-se exageradamente a analisar a dor, tendo
preliminarmente disposto o espírito e perante o prazero
analisar mas sentir apenas; é uma atitude mais fácil, aos su-
periores é claro, do que dita parece. Analisar a dor e habi-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
tuar-se a entregar a dor sempre que aparece, e até que isso
aconteça por instinto e sem pensar nisso, à análise acrescenta
a toda a dor o prazer de analisar. Exagerado o poder e o ins-
tinto de analisar, breve o seu exercício absorve tudo e da dor
fica apenas uma matéria indefinida para a análise.
Outro método, mais sutil esse e mais difícil, é habituar-
se a encarnar a dor numa determinada figura ideal. Criar um
outro Eu que seja o encarregado de sofrer em nós, de sofrer o
que sofremos. Criar depois um sadismo interior, masoquista
todo, que goze o seu sofrimento como se fosse doutrem. Este
método cujo aspecto primeiro, lido, é de impossível
o é fácil, mas está longe de conter dificuldades para os in-
dustriados na mentira interior. Mas é eminentemente realizá-
vel. E então, conseguido isto, que sabor a sangue e a doença,
que estranho travo de gozo longínquo e decadente, que a dor
e o sofrimento vestem: Doer aparenta-se com o inquieto e
magoante auge dos espasmos. Sofrer, o sofrer longo e lento,
tem o amarelo íntimo da vaga felicidade das convalescências
profundamente sentidas. E um requinte gasto a desassossego
e a dolência, aproxima essa sensação complexa da inquieta-
ção que os prazeres causam na idéia de que fugirão, e a do-
lência que os gozos tiram do antecansaço que nasce de se
pensar no cansaço que trarão.
Há um terceiro método para sutilizar em prazeres as
dores e fazer das dúvidas e das inquietações um mole leito. É
o dar às angústias e aos sofrimentos, por uma aplicação irri-
tada da atenção, uma intensidadeo grande que pelo próprio
excesso tragam o prazer do excesso, assim como pela vio-
lência sugiram a quem de hábito e educação de alma ao pra-
zer se vota e dedica, o prazer quei porque é muito prazer,
o gozo que sabe a sangue porque feriu. E quando, como em
mim requintador que sou de requintes falsos, arquiteto
que me construo de sensações sutilizadas através da inteli-
gência, da abdicação da vida, da análise e da própria dor
todos os três métodoso empregados conjuntamente, quan-
do uma dor, sentida imediatamente, e sem demoras para es-
FERNANDO PESSOA
tratégia íntima, é analisada até à secura, colocada num Eu
exterior até à tirania, e enterrada em mim até ao auge de ser
dor, então verdadeiramente eu me sinto o triunfador e o he-
rói. Então me pára a vida, e a arte se me roja aos pés.
Tudo isto constitui apenas o segundo passo que o so-
nhador deve dar para o seu sonho.
O terceiro passo, o que conduz ao limiar rico do Templo
esse quem queo só eu o soube dar? Esse é o que custa
porque exige aquele esforço interior que é imensamente mais
difícil que o esforço na vida, mas que traz compensações pela
alma fora que a vida nunca poderá dar. Esse passo é, tudo
isso sucedido, tudo isso totalmente e conjuntamente feito
sim, empregados os três métodos sutis e empregados até
gastos, passar a sensação imediatamente através da inteligên-
cia pura, coá-la pela análise superior, para que ela se esculpa
em forma literária e tome vulto e relevo próprio. Então eu
fixei-a de todo. Então eu tornei o irreal real e dei ao inatin-
gível um pedestal eterno. Então fui eu, dentro de mim, co-
roado o Imperador.
Porqueo acrediteis que eu escrevo para publicar, nem
para escrever nem para fazer arte, mesmo. Escrevo, porque
esse é o fim, o requinte supremo, o requinte temperamen-
tálmente ilógico, (...) da minha cultura de estados de alma.
Se pego numa sensação minha e a desfio até poder com ela
tecer-lhe a realidade interior a que eu chamo ou A Floresta
do Alheamento, ou a Viagem Nunca Feita, acreditai que o
façoo para que a prosa soe lúcida e trêmula, ou mesmo
para que eu goze com a prosa ainda que mais isso quero,
mais esse requinte final ajunto, como um cair belo de pano
sobre os meus cenários sonhados mas para que dê com-
plexa exterioridade ao que é interior, para que assim realize o
irrealizável, conjugue o contraditório e, tornando o sonho
exterior, lhe dê o seu máximo poder de puro sonho, estag-
nador de vida que sou, burilador de inexatidões, pajem doen-
te da minha alma Rainha, lendo-lhe ao crepúsculoo os
poemas que estão no livro, aberto sobre os meus joelhos, da
minha Vida, mas os poemas que vou construindo e fingindo
que leio, e ele fingindo que ouve, enquanto a Tarde, lá fora
o sei como ou onde, dulcifica sobre esta metáfora erguida
dentro de mim em Realidade Absoluta a luz tênue e última
dum misterioso dia espiritual.
Saber que será má a obra que seo fará nunca. Pior,
porém, será a que nunca se fizer. Aquela que se faz, ao me-
nos, fica feita. Será pobre mas existe, como a planta mesqui-
nha no vaso único da minha vizinha aleijada. Essa planta é a
alegria dela, e também por vezes a minha. O que escrevo, e
que reconheço mau, pode também dar uns momentos de dis-
tração de pior a um ou outro espírito magoado ou triste.
Tanto me basta, ou meo basta, mas serve de alguma ma-
neira, e assim é toda a vida.
Um tédio que inclui a antecipação só de mais tédio; a
pena,, de amanhã ter pena de ter tido pena hoje grandes
emaranhamentos sem utilidade nem verdade, grandes ema-
ranhamentos...
... onde, encolhido num banco de espera da estação
apeadeiro, o meu desprezo dorme entre o gabão do meu de-
salento...
... o mundo de imagens sonhadas de que se compõem,
por igual, o meu conhecimento e a minha vida...
Em nada me pesa ou em mim dura o escrúpulo da hora
presente. Tenho fome da extensão do tempo, e quero ser eu
sem condições.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
378 FERNANDO PESSOA
Releio lúcido, demoradamente, trecho a trecho tudo
quanto tenho escrito. E acho que tudo é nulo e mais valera
que eu oo houvesse feito. As coisas conseguidas, sejam
impérios ou frases, têm, porque se conseguiram, aquela pior
parte das coisas reais, que é o sabermos queo perecíveis.
o é isto, porém, que sinto e mei no que fiz, nestes
lentos momentos em que o releio. O que mei é queo
valeu a pena fazê-lo, e que o tempo que perdi no que fiz, o
o ganhei senão na ilusão, agora desfeita, de ter valido a
pena fazê-lo.
Tudo quanto buscamos, buscâmo-lo por uma ambição,
mas essa ambição ouo se atinge, e somos pobres, ou jul-
gamos que a atingimos, e somos loucos ricos.
O que mei é que o melhor é mau, e que outro, se o
houvesse, e que eu sonho, o haveria feito melhor. Tudo
quanto fazemos, na arte ou na vida, é a cópia imperfeita do
que pensamos em fazer. Desdiz,o só da perfeição externa,
senão da perfeição interna; falhao só à regra do que deve-
ria ser, senão à regra do que julgávamos que poderia ser.
Somos ocoso só por dentro, senão também por fora, párias
da antecipação e da promessa.
Com que vigor da alma sozinha fiz página sobre página
reclusa, vivendo sílaba a sílaba a magia falsa,o do que es-
crevia, mas do que supunha que escrevia! Com que encan-
tamento de bruxedo irônico me julguei poeta da minha prosa,
no momento alado em que ela me nascia, mais rápida do que
os movimentos da pena, como um desforço falaz aos insultos
da vida! E afinal, hoje, relendo, vejo rebentar meus bonecos,
sair-lhes a palha pelos rasgos, despejarem-se sem ter sido...
As frases que nunca escreverei, as paisagens queo
poderei nunca descrever, com que clareza as dito à minha
LIVRO DO DESASSOSSEGO
inércia e as descrevo na minha meditação, quando, recos-
tado,o pertenço, senão longinquamente, à vida. Talho
frases inteiras, perfeitas palavra a palavra, contexturas de
dramas narram-se-me construídas no espírito, sinto o movi-
mento métrico e verbal de grandes poemas em todas as pala-
vras, e um grande [...] como um escravo queo vejo, se-
gue-me na penumbra. Mas se der um passo, da cadeira, onde
jazo estas sensações quase cumpridas, para a mesa onde que-
reria escrevê-las, as palavras fogem, os dramas morrem, do
nexo vital que uniu o murmúrio rítmicoo fica mais que
uma saudade longínqua, um resto de sol sobre montes afas-
tados, um vento que ergue as folhas ao pé do limiar deserto,
um parentesco nunca revelado, a orgia dos outros, a mulher,
que a nossa intuição diz que olharia para trás, e nunca chega
a existir.
Projetos, tenho-os tido todos. A Ilíada que compus teve
uma lógica de estímulo, uma concatenação orgânica de epo-
dos que Homeroo podia conseguir. A perfeição estudada
dos meus versos por completar em palavras deixa pobre a
precisão de Virgílio e frouxa a força de Milton. As sátiras
alegóricas que fiz excederam todas a Swift na precisão simbó-
lica dos particulares exatamente ligados. Quantos Verlaines
fui!
E sempre que me levanto da cadeira onde, na verdade,
estas coisaso foram absolutamente sonhadas, tive [sic]
a dupla tragédia de as saber nulas e de saber queo foram
todas sonho, que alguma coisa ficou delas no limiar abstrato
em eu pensar e elas serem.
Fui gênio mais que nos sonhos e menos que na vida. A
minha tragédia é esta. Fui o corredor que caiu quase na meta,
sendo, até, o primeiro.
A experiência direta é o subterfúgio, ou o esconderijo,
daqueles queo desprovidos de imaginação.
FERNANDO PESSOA
Lendo os riscos que correu o caçador de tigres tenho
quanto de riscos valeu a pena ter, salvo o do mesmo risco,
que tantoo valeu a pena ter, que passou.
Os homens de açãoo os escravos involuntários dos
homens de entendimento. As coisaso valem senão na in-
terpretação delas. Uns, pois, criam coisas para que os outros,
transmudando-as em significação as tornem vidas. Narrar é
criar, pois viver é apenas ser vivido.
Quanto mais avançamos na vida, mais nos convence-
mos de duas verdades que todavia se contradizem. A pri-
meira é de que, perante a realidade da vida, soam pálidas
todas as ficções da literatura e da arte. Dão, é certo, um
prazer mais nobre que os da vida; porémo como os so-
nhos, em que sentimos sentimentos que na vida seo sen-
tem, e se conjugam formas que na vida seo encontram;
o contudo sonhos, de que se acorda, queo constituem
memórias nem saudades, com que vivamos depois uma se-
gunda vida.
A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o
percorrer a vida por inteiro, ter experiência de todas as coi-
sas, de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos, e
sendo isto impossível, a vida só subjetivamente pode ser vi-
vida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância
total.
Estas duas verdadeso irredutíveis uma à outra. O-
bio abster-se-á de as querer conjugar, e abster-se-á também
de repudiar uma ou outra. Terá contudo que seguir uma,
saudoso da queo segue; ou repudiar ambas, erguendo-se
acima de si mesmo em um nirvana próprio.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Feliz quemo exige da vida mais do que ela esponta-
neamente lhe, guiando-se pelo instinto dos gatos, que
buscam o sol quando há sol, e quandoo há sol o calor,
onde quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade
pela imaginação, e se deleita na contemplação das vidas
alheias, vivendo,o todas as impressões, mas o espetáculo
externo de todas as impressões. Feliz, por fim, esse que ab-
dica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode
ser tirado nem diminuído.
O campônio, o leitor de novelas, o puro asceta estes
trêso os felizes da vida, porqueo estes três que abdicam
da personalidade um porque vive do instinto, que é impes-
soal, outro porque vive da imaginação que é esquecimento,
o terceiro porqueo vive, e,o tendo morrido, dorme.
Nada me satisfaz, nada me consola, tudo quer haja
sido, quero me sacia.o quero ter a alma eo quero
abdicar dela. Desejo o queo desejo e abdico do queo
tenho.o posso ser nada nem tudo: sou a ponte de passa-
gem entre o queo tenho e o queo quero.
Desde o meio do século dezoito que uma doença terrível
baixou progressivamente sobre a civilização. Dezessete sécu-
los de aspiração cristã constantemente iludida, cinco séculos
de aspiração pagã perenemente postergada o catolicismo
que falira como cristismo, a renascença que falira como paga-
nismo, a reforma que falira como fenômeno universal. O de-
sastre de tudo quanto se sonhara, a vergonha de tudo quanto
se conseguira, a miséria de viver sem vida digna que os ou-
tros pudessem ter conosco, a sem vida dos outros que pudés-
semos dignamente ter.
Isto caiu nas almas e envenenou-as. O horror à ação,
por ter de ser vil numa sociedade vil, inundou os espíritos. A
FERNANDO PESSOA
atividade superior da alma adoeceu; só a atividade inferior,
porque mais vitalizada,o decaiu; inerte a outra, assumiu a
regência do mundo.
Assim nasceu a literatura e uma arte feitas de elementos
secundários do pensamento — o romantismo; e uma vida
social feita de elementos secundários da atividade a demo-
cracia moderna.
As almas nascidas para mandar só tinham o remédio de
abster-se. As almas nascidas para criar, numa sociedade onde
as forças criadoras faliam, tinham por único mundo plástico
à sua vontade o mundo social dos seus sonhos, a esterilidade
introspectiva da própria alma.
Chamamos "românticos", por igual, aos grandes que
faliram e aos pequenos que se revelaram. Maso há seme-
lhança senão na sentimentalidade evidente; mas em uns a
sentimentalidade mostra a impossibilidade do uso ativo da
inteligência; em outros mostra a ausência da própria inteli-
gência.o fruto da mesma época um Chateaubriand e um
Hugo, um Vigny e um Michelet. Mas um Chateaubriand é
uma alma grande que diminui; um Hugo é uma alma pe-
quena que se distende com o vento do tempo; um Vigny é
um gênio que teve de fugir; um Michelet uma mulher que
teve de ser homem de gênio. No pai de todos Jean-Jacques
Rousseau as duas tendências estão juntas. A inteligência
nele era de criador, a sensibilidade de escravo. Afirma ambas
por igual. Mas a sensibilidade social, que tinha, envenenou
as suas teorias, que a inteligência apenas [dispôs?] clara-
mente. A inteligência que tinha só servia para gemer a mi-
séria de coexistir com tal sensibilidade.
J.-J. Rousseau é o homem moderno, mas mais com-
pleto que qualquer homem moderno. Das fraquezas que o fi-
zeram falir tirou ai dele e de nós! as forças que o fize-
ram triunfar. O que partiu dele venceu, mas nos lábaros da
sua vitória, quando entrou na cidade, via-se que estava es-
crita [...] a palavra "Derrota". No que dele fica para trás,
LIVRO DO DESASSOSSEGO
incapaz do esforço de vencer, foram as coroas e os cetros, a
majestade de mandar e a glória de vencer por destino in-
terno.
O mundo, no qual nascemos, sofre de ambos [?]
meio de renúncia e de violência da renúncia dos superio-
res e da violência dos inferiores, que é a sua vitória.
Nenhuma qualidade superior pode afirmar-se moderna-
mente, tanto na ação, como no pensamento, na esfera polí-
tica, como na especulativa.
A ruína da influência aristocrática criou uma atmosfera
de brutalidade e de indiferença pelas artes, onde um medi-
dor [?] da formao tem refúgio.i mais, cada vez mais,
o contato da alma com a vida. O esforço é cada vez mais do-
loroso, porqueo cada vez mais odiosas as condições exte-
riores do esforço.
A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possí-
veis, e portanto, maus artistas. Quando o critério da arte era
a construção sólida, a observância cuidadosa de regras
poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desseso
muito bons. Mas quando a arte passou de ser tida como cria-
ção, para passar a ser tida como expressão de sentimentos,
cada qual podia ser artista porque todosm sentimentos.
A metafísica pareceu-me sempre uma forma prolongada
da loucura latente. Se conhecêssemos a verdade, vê-la-ía-
mos; tudo (o) mais é sistema e arredores. Basta-nos, se pen-
sarmos, a incompreensibilidade do universo; querer com-
preendê-lo é ser menos que homens, porque ser homem é
saber que seo compreende.
Trazem-me a fé como um embrulho fechado numa salva
alheia. Querem que o aceite, mas que oo abra. Trazem-
FERNANDO PESSOA
me a ciência, como uma faca num prato, com que abrirei as
folhas de um livro de páginas brancas. Trazem-me a dúvida,
como pó dentro de uma caixa; mas para que me trazem a
caixa, se elao tem senão?
Na falta de saber, escrevo; e uso os grandes termos da
Verdade alheios: conforme as exigências da emoção. Se a
emoção é clara e fatal, falo, naturalmente, dos Deuses, e as-
sim a enquadro numa consciência do mundo múltiplo. Se a
emoção é profunda, falo, naturalmente, de Deus, e assim a
engasto numa consciência una. Se a emoção é um pensa-
mento, falo, naturalmente, do Destino, e assim a encosto à
parede.
Umas vezes o próprio ritmo da frase exigirá Deuses e
o Deus; outras vezes impor-se-ão as duas sílabas de Deu-
ses e mudo verbalmente de universo; outras vezes pesará
[sic] ao contrário as necessidades de uma rima íntima, um
deslocamento do ritmo, um sobressalto de emoção e o poli-
teísmo ou o monoteísmo amolda-se e prefere-se. Os Deuses
o uma função do estilo.
Tive sempre uma repugnância quase física pelas coisas
secretas intrigas, diplomacia, sociedades secretas, ocul-
tismo. Sobretudo me incomodaram sempre estas duas últi-
mas coisas a pretensão, quem certos homens, de que,
por entendimentos com Deuses ou Mestres ou Demiurgos,
sabem lá entre eles, exclusos todoss outros os gran-
des segredos queo os cavoucos do mundo.
o posso crer que isso seja assim. Posso crer que al-
guém o julgue assim. Por queo estará essa gente toda
doida, ou iludida? Por serem vários? mas há alucinações co-
letivas.
O que sobretudo me impressiona, nesses mestres e sa-
bedores do invisível é que, quando escrevem para nos contar
ou sugerir os seus mistérios, escrevem todos mal. Ofende-me
o entendimento que um homem seja capaz de dominar o Dia-
bo eo seja capaz de dominar a língua portuguesa. Por que
há o comércio com os demônios de ser mais fácil que o co-
mércio com a gramática? Quem, através de longos exercí-
cios de atenção e de vontade, consegue, conforme diz, ter
visões astrais, por queo pode, com menor dispêndio de
uma coisa e de outra, ter a visão da sintaxe? Que há no dog-
ma e ritual da Alta Magia que impeça alguém de escrever
jáo digo com clareza, pois pode ser que a obscuridade seja
da lei oculta, mas ao menos com elegância e fluidez, pois
no próprio abstruso as pode haver [?] Porque há de gastar-se
toda a energia da alma no estudo da linguagem dos Deuses, e
o há de sobrar um reles bocado, com que se estude a cor e
o ritmo da linguagem dos homens?
Desconfio dos mestres que oo podem ser primários.
o para mim como aqueles poetas estranhos queo inca-
pazes de escrever como os outros. Aceito que sejam estra-
nhos; gostara, porém, que me provassem que oo por supe-
rioridade ao normal eo por impotência dele.
Dizem que há grandes matemáticos que erram adições
simples; mas aqui a comparaçãoo é com errar, mas com
desconhecer. Aceito que um grande matemático some dois e
dois para dar cinco: é um ato de distração, e a todoss pode
suceder. O queo aceito é queo saiba o que é somar ou
como se soma. E é este o caso dos mestres do oculto, na sua
formidável maioria.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
FERNANDO PESSOA
O pensamento pode ter elevação sem ter elegância, e,
na proporção em queo tiver elegância, perderá a ação so-
bre os outros. A força sem a destreza é uma simples massa.
Reparando, às vezes, no trabalho literário abundante,
ou, pelo menos, feito de coisas extensas e completas, de tan-
tas criaturas que ou conheço ou de quem sei, sinto em mim
uma inveja incerta, uma admiração desprezante, um misto
incoerente de sentimentos mistos.
Fazer qualquer coisa completa, inteira, seja boa ou seja
má e, se nunca é inteiramente boa, muitas vezeso é
inteiramente má sim, fazer uma coisa completa causa-me,
talvez, mais inveja do que outro qualquer sentimento. É
como um filho; é imperfeita como todo o ente humano, mas
é nossa como os filhos são.
E eu, cujo espírito de crítica própria meo permite
senão que veja os defeitos, as falhas, eu, queo ouso escre-
ver mais que trechos, bocados, excertos do inexistente, eu
mesmo, no pouco que escrevo, sou imperfeito também.
Mais valera pois, ou a obra completa, ainda que, que
em todo o caso é obra; ou a ausência de palavras, o silêncio
inteiro da alma que se reconhece incapaz de agir.
Penso se tudo na vidao será a degeneração de tudo. O
sero será uma aproximação umas vésperas ou uns ar-
redores.
Assim como o Cristianismoo foi senão a degeneração
bastarda do neoplatonismo abaixado (...) a judaização do hele-
nismo falso, romano, assim nossa época [....] é o desvio múl-
LIVRO DO DESASSOSSEGO
tiplo de todos os grandes propósitos, confluentes ou opostos,
de cuja falência surgiu a era com que faliram.
Vivemos um entreato com orquestra.
Mas que tenho eu, neste quarto andar, com todas estas
sociologias? Tudo isto é-me sonho, como as princesas da Ba-
bilônia, e o ocuparmo-nos da humanidade é fútil, fútil
uma arqueologia do presente.
Sumir-me-ei entre a névoa, como um estrangeiro a
tudo.
Vinha humana desprendida do sonho do muro e navio
com ser supérfluo à tona de tudo.
Visto que talvez nem tudo seja falso, que nada, ó meu
amor, nos cure do prazer quase espasmo de mentir.
Requinte último! Perversão máxima! A mentira absur-
da tem todo o encanto do perverso com o último e maior
encanto de ser inocente. A perversão de propósito inocente
quem excederá, ó (...) o requinte máximo disto? A per-
versão que nem aspira a dar-nos gozo, que nem tem a fúria
de nos causar dor, que cai para o chão entre o prazer e a dor,
inútil e absurda como um brinquedo mal-feito com que um
adulto quisesse divertir-se!
E quando a mentira começar a dar-nos prazer, falemos
a verdade para lhe mentirmos. E quando nos causar angús-
tia, paremos, para que o sofrimento noso signifique nem
perversamente prazer...
o conheces, ó Deliciosa, o prazer de comprar coisas
queoo precisas? Sabes o sabor aos caminhos que, se os
tomássemos esquecidos, era por erro que os tomaríamos?
Que ato humano tem uma coro bela como, os atos espú-
rios (...) que mentem à sua própria natureza e desmentem
o que lhes é a intenção?
A sublimidade de desperdiçar uma vida que podia ser
útil, de nunca executar uma obra que por força seria bela, de
abandonar a meio-caminho a estrada certa da vitória!
Ah, meu amor, a glória das obras que se perderam e
nunca se acharão, dos tratados queo títulos apenas hoje,
das bibliotecas que arderam, das estátuas que foram par-
tidas.
Que santificados do Absurdo os artistas que queimaram
uma obra muito bela, daqueles que, podendo fazer uma obra
bela, de propósito a fizeram imperfeita, daqueles poetas-
ximos do Silêncio que, reconhecendo que poderiam fazer
obra de todo perfeita, preferiram ousá-la [?] de nunca a fa-
zer. (Se fora imperfeita, vá).
Quão mais bela a Gioconda desde que ao pudéssemos
ver! E se quem a roubasse a queimasse, quão artista seria,
que maior artista que aquele que a pintou!
Por que é bela a arte? Porque é inútil. Por que é feia a
vida? Porque é toda fins e propósitos e intenções. Todos os
seus caminhoso para ir de um ponto para o outro. Quem
nos dera o caminho feito de um lugar donde ninguém parte
para um lugar para onde ninguém vai.
Quem dera a sua vida a construir uma estrada começada
no meio de um campo e indo ter ao meio de um outro; que,
prolongada, seria útil, mas que ficava, sublimemente, só o
meio de uma estrada.
A beleza das ruínas? Oo servirem já para nada.
A doçura do passado? O recordá-lo, porque recordá-lo é
torná-lo presente, e ele nem o é, nem o pode ser — o ab-
surdo, meu amor, o absurdo.
FERNANDO PESSOA
E eu digo que isto por que escrevo eu este livro?
Porque o reconheço imperfeito. Calado seria a perfeição; es-
crito, imperfeiçoa-se; por isso o escrevo.
E, sobretudo, porque defendo a inutilidade, o absurdo,
(...) eu escrevo este livro para mentir a mim próprio, para
trair a minha própria teoria.
E a suprema glória disto tudo, meu amor, é pensar que
talvez istoo seja verdade, nem eu o creia verdadeiro.
A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte é a
expressão intelectual da emoção, distinta da vida, que é a
expressão volitiva da emoção. O queo temos, ouo ou-
samos, ouo conseguimos, podemos possuí-lo em sonho, e
é com esse sonho que fazemos arte. Outras vezes a emoção é
a tal ponto forte que, embora reduzida a ação, a ação, a que
se reduziu,o a satisfaz; com a emoção que sobra, que ficou
inexpressa na vida, se forma a obra de arte. Assim, há dois
tipos de artista: o que exprime o queo tem, e o que ex-
prime o que sobrou do que teve.
A procura da verdade seja a verdade subjetiva do
convencimento, a objetiva da realidade, ou a social do di-
nheiro ou do poder traz sempre consigo, se nela se em-
prega quem merece prêmio, o conhecimento último da sua
inexistência. A sorte grande da vida sai somente aos que
compraram por acaso.
A arte tem valia porque nos tira de aqui.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
FERNANDO PESSOA
o o prazer,o a glória,o o poder: a liberdade,
unicamente a liberdade.
Passar dos fantasmas da fé para os espectros da razão é
somente ser mudado de cela. A arte, se nos liberta dos mani-
pansos assentes e obsoletos, também nos liberta das idéias
generosas e das preocupações sociais manipansos também.
A arte consiste em fazer os outros sentir o ques sen-
timos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa
personalidade para especial libertação. O que sinto, na ver-
dadeira substância com que o sinto, é absolutamente inco-
municável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais
incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a ou-
trem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na
linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as
que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exatamente o que eu
senti. E como este outrem é, por hipótese de arte,o esta
ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que
é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é
converter os meus sentimentos num sentimento humano-
pico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo
que senti.
Tudo quanto é abstrato é difícil de compreender, porque
é difícil de conseguir para ele a atenção de quem o leia. Da-
rei, por isso, um exemplo simples, em que as abstrações que
formei se concretizarão. Suponha-se que, por um motivo
qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio
deo ter que fazer, cai sobre mim uma tristeza vaga da
vida, uma angústia de mim que me perturba e inquieta. Se
vou traduzir esta emoção por frases que de perto a cinjam,
quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como propriamente
minha, menos, portanto, a comunico a outros. E, seo há
comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem a
escrever.
Suponha-se, porém, que desejo comunicá-la a outros,
isto é, fazer dela arte, pois a arte é a comunicação aos outros
da nossa identidade íntima com eles; sem o que nem há co-
municação nem necessidade de a fazer. Procuro qual será a
emoção humana vulgar que tenha o tom, o tipo, a forma
desta emoção em que estou agora, pelas razões inumanas e
particulares de ser (um) guarda-livros cansado ou (um) lis-
boeta aborrecido. E verifico que o tipo de emoção vulgar que
produz, na alma vulgar, esta mesma emoção é a saudade da
infância perdida.
Tenho a chave para a porta do meu tema. Escrevo e
choro a minha infância perdida; demoro-me comovidamente
sobre os pormenores de pessoas e mobília da velha casa na
província; evoco a felicidade deo ter direitos nem deveres,
de ser livre poro saber pensar nem sentir e esta evo-
cação, se for bem feita como prosa e visões, vai despertar
no meu leitor exatamente a emoção que eu senti, e que nada
tinha com infância.
Menti? Não, compreendi. Que a mentira, salvo a que é
infantil e espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é
tão-somente a noção da existência real dos outros e da neces-
sidade de conformar a essa existência a nossa, que seo
pode conformar a ela. A mentira é simplesmente a lingua-
gem ideal da alma, pois, assim como nos servimos de pala-
vras, queo sons articulados de uma maneira absurda, para
em linguagem real traduzir os mais íntimos e sutis movi-
mentos da emoção e do pensamento, que as palavras forço-
samenteo poderão nunca traduzir, assim nos servimos da
mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o
que com a verdade, própria e intransmissível, se nunca po-
deria fazer.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
FERNANDO PESSOA
A arte mente porque é social. E há só duas grandes for-
mas da arte uma que se dirige à nossa alma profunda, a
outra que se dirige à nossa alma atenta. A primeira é a poe-
sia, o romance a segunda. A primeira começa a mentir na
própria estrutura; a segunda começa a mentir na própria in-
tenção. Uma pretende dar-nos a verdade por meio de linhas
variadamente regradas, que mentem à inerência da fala; ou-
tra pretende dar-nos a verdade por uma realidade que todos
sabemos bem que nunca houve.
Fingir é amar. Nem vejo nunca um lindo sorriso ou um
olhar significativo queo medite, de repente, e seja de
quem for o olhar ou o sorriso, qual é, no fundo da alma em
cujo rosto se sorri ou olha, o estadista que nos quer comprar
ou a prostituta que quer que a compremos. Mas o estadista
que nos compra amou, ao menos, o comprar-nos; e a pros-
titua, a quem compremos, amou, ao menos, o comprarmo-
la.o fugimos, por mais que queiramos, à fraternidade uni-
versal. Amamo-nos todos uns aos outros, e a mentira é o
beijo que trocamos.
Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agra-
dável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais
animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entre-
tém. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um
sono; as segundas, contudo,o se afastam da vida umas
porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras
porque vivem da mesma vida humana.
o é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um
romance é uma história do que nunca foi e um drama é um
romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de
LIVRO DO DESASSOSSEGO
idéias ou de sentimentos em linguagem que ninguém em-
prega, pois que ninguém fala em verso.
[...] Tenho uma grande indiferença pela obra dele. Já o
vi... Nunca pude admirar um poeta que me foi possível ver.
Há criaturas que sofrem realmente poro poder ter
vivido na vida real com o sr. Pickwick e ter apertado ao
ao sr. Wardle. Sou um desses. Tenho chorado lágrimas ver-
dadeiras sobre esse romance, poro ter vivido naquele tem-
po, com aquela gente, gente real.
Os desastres dos romanceso sempre belos porqueo
corre sangue autêntico neles, nem apodrecem os mortos nos
romances, nem a podridão é podre nos romances.
Quando o sr. Pickwick é ridículo,o é ridículo, porque
o é num romance. Quem sabe se o romance será uma mais
perfeita realidade e vida que Deus cria através de nós, que
s quem sabe existimos apenas para criar? As [...]
pareceo existirem senão para produzir arte e literatura;
é, palavras, o que deles fala e fica. Por queo serão essas
figuras extra-humanas verdadeiramente reais? Dói-me mal
na existência mental pensar que isto possa ser assim...
O ter tocado noss de Cristoo é desculpa para de-
feitos de pontuação.
Se um homem escreve bem só quando está bêbado dir-
lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser [?] que o seu fígado
sofre com isso respondo: o que é o seu fígado? é uma coisa
FERNANDO PESSOA
morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escre-
ver vivem sem enquanto.
Se eu tivesse escrito o Rei Lear, levaria com remorsos
toda a minha vida de depois. Porque essa obra éo grande,
que enormes avultam os seus defeitos, os seus monstruosos
defeitos, as coisas até mínimas que estão entre certas cenas e
a perfeição possível delas.o é o sol com manchas; é uma
estátua grega partida. Tudo quanto tem sido está cheio de
erros, de faltas de perspectiva, de ignorâncias, de traços de
mau-gosto, de fraquezas e desatenções. Escrever uma obra
de arte com o preciso tamanho para ser grande, e a precisa
perfeição para ser sublime, ninguém tem o divino de o fazer,
a sorte de o ter feito. O queo pode ir de um jato sofre do
acidentado do nosso espírito.
Se penso nisso entra com minha imaginação um descon-
solo enorme, uma dolorosa certeza de nunca poder fazer
nada de bom e útil para a Beleza.o há método de obter
a Perfeição exceto ser Deus. O nosso maior esforço dura
tempo; o tempo que dura atravessa diversos estados da nossa
alma, e cada estado de alma, comoo é outro, qualquer,
perturba com a sua personalidade a individualidade da obra.
Só temos a certeza de escrever mal, quando escrevemos; a
única obra grande e perfeita é aquela que nunca se sonhe
realizar.
Escuta-me ainda e compadece-te. Ouve tudo isto e diz-
me depois se o sonhoo vale mais que a vida. O trabalho
nunca dá resultado. O esforço nunca chega a parte nenhuma.
Só a abstenção é nobre e alta, porque ela é a que reconhece
que a realização é sempre inferior, e que a obra feita é sempre
a sombra grotesca da obra sonhada.
Poder escrever, em palavras sobre papel, que se possam
depois ler alto e ouvir, os diálogos dos personagens dos meus
dramas imaginados: Esses dramasm uma ação perfeita e
LIVRO DO DESASSOSSEGO
sem quebra, diálogos sem falha, mas nem a ação se esboça
em mim em comprimento, para que eu a possa projetar em
realização, nemo propriamente palavras o que forma subs-
tância desses diálogos íntimos, para que, ouvidas com aten-
ção, eu as possa traduzir para escritas.
Amo alguns poetas líricos porqueo foram poetas épi-
cos ou dramáticos, porque tiveram a justa intuição de nunca
querer mais realização do que a de um momento de senti-
mento ou de sonho. O que se pode escrever inconsciente-
mente tanto mede o possível perfeito. Nenhum drama de
Shakespeare satisfaz como uma lírica de Heine. É perfeita a
lírica de Heine, e todo o drama de um Shakespeare ou de
outro, é imperfeito sempre. Poder construir, erguer um
Todo, compor uma coisa que seja como um corpo humano,
com perfeita correspondência nas suas partes, e com uma
vida, uma vida de unidade e congruência, unificando a dis-
persão de feitios das duas partes!
Tu, que me ouves e mal me escutas,o sabes o que é
esta tragédia! Perder pai e mãe,o atingir a glória nem a
felicidade,o ter um amigo nem um amor tudo isso se
pode suportar; o que seo pode suportar é sonhar uma coisa
bela queo seja possível conseguir em ato ou palavras. A
consciência do trabalho perfeito, a fartura da obra obtida
suave é o sono sob essa sombra de árvore, no verão calmo.
A maioria da gente enferma deo sabe[r] dizer o que
vê e o que pensa. Dizem queo há nada mais difícil do que
definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no
ar, com ao sem literatura, o gesto, ascendentemente en-
rolado em ordem, com que aquela figura abstrata das molas
ou de certas escadas se manifesta aos olhos. Mas, desde que
nos lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificul-
dade uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conse-
guir acabar-se. A maioria da gente, sei bem,o ousaria
definir assim, porque supõe que definir é dizer o que os ou-
tros querem que se diga, queo o que é preciso dizer para
definir. Direi melhor: uma espiral é um círculo virtual que
se desdobra a subir sem nunca se realizar. Mas não, a defi-
nição ainda é abstrata. Buscarei o concreto, e tudo será visto:
uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente
em coisa nenhuma.
Toda a literatura consiste num esforço para tornar a
vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber,
a vida é absolutamente irreal na sua realidade direta; os cam-
pos, as cidades, as idéias,o coisas absolutamente fictícias,
filhas da nossa complexa sensação des mesmos.o in-
transmissíveis todas as impressões salvo se as tornarmos li-
terárias. As criançaso muito literárias porque dizem como
sentem eo como deve sentir quem sente segundo outra
pessoa. Uma criança, que uma vez ouvi, disse, querendo di-
zer que estava à beira de chorar,o "tenho vontade de
chorar", que é como diria um adulto, isto é um estúpido,
senão isto, "Tenho vontade de lágrimas". E esta frase, ab-
solutamente literária, a ponto de que seria afetada num poeta
célebre, se ele a pudesse dizer, refere resolutamente a pre-
sença quente das lágrimas a romper das pálpebras conscien-
tes da amargura líquida. "Tenho vontade de lágrimas"!
Aquela criança pequena definiu bem a sua espiral.
Dizer! Saber dizer! Saber existir pela voz escrita e a
imagem intelectual! Tudo isto é quanto a vida vale: o mais é
homens e mulheres, amores supostos e vaidades factícias,
subterfúgios da digestão e do esquecimento, gentes reme-
xendo-se, como bichos quando se levanta uma pedra, sob o
grande Pedregulho abstrato dou azul sem sentido.
FERNANDO PESSOA
UVRO DO DESASSOSSEGO
A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos.
Enquanto sentimos os males e as injúrias de Hamlet, prín-
cipe da Dinamarca,o sentimos os nossos vis porqueo
nossos e vis porqueo vis.
O amor, o sono, as drogas e intoxicantes,o formas
elementares da arte, ou, antes, de produzir o mesmo efeito
que ela. Mas amor, sono, e drogasm cada um a sua desi-
lusão. O amor farta ou desilude. Do sono desperta-se, e,
quando se dormiu,o se viveu. As drogas pagam-se com a
ruína de aquele mesmo físico que serviram de estimular.
Mas na arteo há desilusão porque a ilusão foi admitida
desde o princípio. Da arteo há despertar, porque nelao
dormimos, embora sonhássemos. Na arteo há tributo ou
multa que paguemos por ter gozado dela.
O prazer que ela nos oferece, como em certo modoo
é nosso,o temoss que pagá-lo ou que arrepender-nos
dele.
Por arte entende-se tudo que nos delicia sem que seja
nosso — o rasto da passagem, o sorriso dado a outrem, o
poente, o poema, o universo objetivo.
Possuir é perder. Sentir sem possuir é guardar, porque é
extrair de uma coisa a sua essência.
Estética do Desalento
Já queo podemos extrair beleza da vida, busquemos
ao menos extrair beleza deo poder extrair beleza da vida.
Façamos da nossa falência uma vitória, uma coisa positiva e
erguida, com colunas, majestade e aquiescência espiritual.
Se a vida [não] nos deu mais do que uma cela de reclu-
são, façamos por ornamentá-la, ainda que maiso seja, com
as sombras de nossos sonhos, desenhos e cores mistas escul-
pindo o nosso esquecimento sob a parada exterioridade dos
muros.
FERNANDO PESSOA
Como todo sonhador, senti sempre que o meu mister
era criar. Como nunca soube fazer um esforço ou ativar uma
intenção, criar coincidiu-me sempre com sonhar, querer ou
desejar, e fazer gestos com sonhar os gestos que desejaria
poder fazer.
A literatura, que é a arte casada com o pensamento,
e a realização sem a mácula da realidade, parece-me ser o fim
para que deveria tender todo o esforço humano, se fosse ver-
dadeiramente humano, eo uma superfluidade do animal.
Creio que dizer uma coisa é conservar-lhe a virtude e tirar-
lhe o terror. Os camposo mais verdes no dizer-se do que
no seu verdor. As flores, se forem descritas com frases que as
definam no ar da imaginação, terão cores de uma permanên-
cia que a vida celularo permite.
Mover-se é viver, dizer-se é sobreviver.o há nada de
real na vida que oo seja porque se descreveu bem. Os
críticos da casa pequena soem apontar que tal poema, longa-
mente ritmado,o quer, afinal, dizer senão que o dia está
bom. Mas dizer que o dia está bom é difícil, e o dia bom, ele
mesmo, passa. Temos pois que conservar o dia bom em uma
memória florida e prolixa, e assim constelar de novas flores
ou de novos astros os campos ou os céus da exterioridade
vazia e passageira.
Tudo é o que somos, e tudo será, para os que nos segui-
rem na diversidade do tempo, conformes intensamente o
houvermos imaginado, isto é, o houvermos, com a imagi-
nação metida no corpo, verdadeiramente sido.o creio que
a história seja mais, em seu grande panorama desbotado, que
um decurso de interpretações, um consenso confuso de tes-
temunhos distraídos. O romancista é todos nós, e narramos
quando vemos, porque ver é complexo como tudo.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Tenho neste momento tantos pensamentos fundamen-
tais, tantas coisas verdadeiramente metafísicas que dizer, que
me canso de repente, e decidoo escrever mais,o pensar
mais, mas deixar que a febre de dizer me dê sono, e eu faça
festas com os olhos fechados, como a um gato, a tudo quanto
poderia ter dito.
Quanto mais alto o homem, de mais coisas tem que se
privar. No píncaroo há lugar senão para o homem.
Quanto mais perfeito, mais completo; e quanto mais com-
pleto, menos outrem.
Estas considerações vieram ter comigo depois de ler
num jornal a notícia da grande vida múltipla de um homem
célebre. Era um milionário americano, e tinha sido tudo.
Tivera quanto ambicionara dinheiro, amores, afetos, de-
dicações, viagens, coleções.o é que o dinheiro possa tudo,
mas o grande magnetismo, com que se obtém muito dinhei-
ro, pode, efetivamente quase tudo.
Quando depunha o jornal sobre a mesa do café, já refle-
tia que o mesmo, na sua esfera, poderia dizer o caixeiro de
praça, mais ou menos meu conhecido, que todos os dias al-
moça, como hoje está almoçando, na mesa ao fundo do can-
to. Tudo quanto o milionário teve, este homem teve; em
menor grau, é certo, mas para a sua estatura. Os dois ho-
mens conseguiram o mesmo, nem há diferença de celebri-
dade, porque aí também a diferença de ambientes estabelece
a identidade.o há ninguém no mundo queo conhecesse
o nome do milionário americano; maso há ninguém na
praça de Lisboa queo conheça o nome do homem que está
ali almoçando.
FERNANDO PESSOA
Estes homens, afinal, obtiveram tudo quanto ao
pode atingir, estendendo o braço. Variava neles o compri-
mento do braço; no resto eram iguais.o consegui nunca
ter inveja desta espécie de gente. Achei sempre que a virtude
estava em obter o queo se alcança, em viver onde seo
está, em ser mais vivo depois de morto que quando se está
vivo, em conseguir, enfim, qualquer coisa de difícil, de ab-
surdo, em vencer, como obstáculos, a própria realidade do
mundo.
Se me disserem que é nulo o prazer de durar depois de
o existir, responderei, primeiro, queo sei se o é ou não,
poiso sei a verdade sobre a sobrevivência humana; res-
ponderei, depois, que o prazer da fama futura é um prazer
presente a fama é que é futura. E é um prazer de orgulho
igual a nenhum que qualquer posse material consiga dar.
Pode ser, de fato, ilusório, mas, seja o que for, é mais largo
do que o prazer de gozar só o que está aqui. O milionário
americanoo pode crer que a posteridade aprecie os seus
poemas, visto queo escreveu nenhuns; o caixeiro de praça
o pode supor que o futuro se deleite nos seus quadros,
visto que nenhuns pintou.
Eu, porém, que na vida transitóriao sou nada, posso
gozar a visão do futuro a ler esta página, pois efetivamente a
escrevo; posso orgulhar-me, como de um filho, da fama que
terei, porque, ao menos, tenho com que a ter. E quando
penso isto, erguendo-me da mesa, é com uma íntima majes-
tade que a minha estatura invisível se ergue acima de De-
troit, Michigan, e de toda a praça de Lisboa.
Reparo, porém, queo foi com estas reflexões que co-
mecei a refletir. O que pensei logo foi no pouco que tem que
ser na vida quem tem que sobreviver. Tanto faz uma reflexão
como a outra, poiso a mesma. A glóriao é uma me-
dalha, mas uma moeda: de um lado tem a Figura, do outro
uma indicação de valor. Para os valores maioreso há moe-
da:o de papel e esse valor é sempre pouco.
Com estas psicologias metafísicas se consolam os hu-
mildes como eu.
Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia,
num futuro a que eu jáo pertença, estas frases, que es-
crevo, durarem com louvor, eu terei enfim gente que me
' 'compreenda'', os meus, a família verdadeira para nela nas-
cer e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, (eu) terei já
morrido há muito. Serei compreendido só em efígie quando a
afeição jáo compense a quem morreu a só desafeição que
houve, quando vivo.
Um dia talvez compreendam que cumpri, como ne-
nhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do
nosso século; e quando o compreendam,o de escrever que
na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi
entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me aconte-
cesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever,
incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo
daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para
uso dos seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sa-
bemos ensinar as verdadeiras regras de viver.
Na tarde em que escrevo, o dia de chuva parou. Uma
alegria do ar é fresca demais contra a pele. O dia vai aca-
bandoo em cinzento, mas em azul-pálido. Um azul vago
reflete-se, mesmo, nas pedras das ruas.i viver, mas é de
longe. Sentiro importa. Acende-se uma ou outra monta.
Em uma outra janela alta há gente que vê acabarem o
trabalho. O mendigo que roça por mim pasmaria, se me co-
nhecesse.
LIVRO DO DESASSOSSEGO
FERNANDO PESSOA
No azul menos pálido e menos azul, que se espelha nos
prédios, entardece um pouco mais a hora indefinida.
Cai leve, fim do dia certo, em que os que crêem e erram
se engrenam no trabalho do costume, e têm, na sua própria
dor, a felicidade da inconsciência. Cai leve, onda de luz que
cessa, melancolia da tarde inútil, bruma sem névoa que entra
no meu coração. Cai leve, suave, indefinida palidez lúcida e
azul da tarde aquática leve, suave, triste sobre a terra
simples e fria. Cai leve, cinza invisível, monotonia magoada,
tédio sem torpor.
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