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Ciência, Ética
e Sustentabilidade
DESAFIOS AO NOVO SÉCULO
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Edições UNESCO Brasil
Conselho Editorial
Jorge Werthein
Maria Dulce de Almeida Borges
Célio da Cunha
Comitê para a Área de Ciências e Meio Ambiente
Celso Salatino Schenkel
Bernardo Marcelo Brummer
Ary Mergulhão Filho
Assistente Editorial
Larissa Vieira Leite
Ciência, ética e sustentabilidade / Marcel Bursztyn (org.). – 2. ed –
São Paulo : Cortez ; Brasília, DF : UNESCO, 2001
Vários autores.
ISBN 85-249-0783-5
1. Ciência – Aspectos sociais 2. Desenvolvimento sustentável 3.
Ética social 4. Tecnologia – Aspectos sociais I. Bursztyn, Marcel.
01-1185 CDD-303.483
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Índices para catálogo sistemático:
1. Desenvolvimento sustentável : Ciência e ética :
Mudanças sociais : Sociologia 303.483
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MARCEL BURSZTYN (Org.)
Argemiro Procópio Filho • Arminda E. Marques Campos
Eduardo Baumgratz Viotti • Elimar Pinheiro do Nascimento
Jenner Barretto Bastos Filho • Roberto dos S. Bartholo Jr.
Ciência, Ética
e Sustentabilidade
DESAFIOS AO NOVO SÉCULO
CDS - UnB
CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
Marcel Bursztyn (org.)
Capa: Edson Fogaça
Preparação de originais: Liege Marucci
Revisão: Maria de Lourdes de Almeida
Composição: Dany Editora Ltda.
Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales
Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro,
assim como pelas opiniões aqui expressas, as quais não são necessariamente
compartilhadas pela UNESCO, nem são de sua responsabilidade.
As denominações empregadas e a apresentação do material no decorrer desta obra
não implicam a expressão de qualquer opinião que seja parte da UNESCO no que se
refere à condição legal de qualquer país, território, cidade ou área, ou de suas
autoridades, ou a delimitação de suas fronteiras ou divisas.
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização
expressa da UNESCO e da Editora.
© UNESCO 2000
Direitos para esta edição
CORTEZ EDITORA
Rua Bartira, 317 – Perdizes
05009-000 – São Paulo – SP
Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290
www.cortezeditora.com.br
Impresso no Brasil – outubro de 2001
UNESCO
SAS – Quadra 5 Bloco H – Lote 6
Ed. CNPq/IBICT/UNESCO – 9º andar
70070-914 – Brasília-DF – Brasil
Tel.: (55 61) 321-3525
Fax: (55 61) 322-4261
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .......................................................................... 7
INTRODUÇÃO — Ciência, Ética e Sustentabilidade:
Desafios ao novo século
Marcel Bursztyn ............................................................................. 9
CAPÍTULO 1 — O que é um Intelectual?
Arminda Eugenia Marques Campos e Roberto S. Bartholo Jr. ...... 21
CAPÍTULO 2 — Solidão e Liberdade: Notas sobre a
contemporaneidade de Wilhelm von Humboldt
Roberto S. Bartholo Jr. .................................................................... 43
CAPÍTULO 3 A Ciência Normal e a Educação são
Tendências Opostas?
Jenner Barretto Bastos Filho ........................................................... 61
CAPÍTULO 4 — Educação e desenvolvimento na
contemporaneidade: dilema ou desafio?
Elimar Pinheiro do Nascimento ...................................................... 95
CAPÍTULO 5 — Segurança Humana, Educação e
Sustentabilidade
Argemiro Procópio .......................................................................... 115
6 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
CAPÍTULO 6 — Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento
Sustentável Brasileiro
Eduardo Baumgratz Viotti ............................................................. 143
CAPÍTULO 7 — Prudência e Utopismo: Ciência e Educação
para a Sustentabilidade
Roberto S. Bartholo Jr. e Marcel Bursztyn..................................... 159
SOBRE OS AUTORES ................................................................... 189
APRESENTAÇÃO
O final do século XX deixou claro um conjunto de preo-
cupações que devem orientar a conduta intelectual dos ci-
entistas. Protagonistas de um formidável poder de modifi-
car nosso mundo, os pesquisadores encarnam agora, mais
do que em qualquer outra época, um papel que representa
ao mesmo tempo a esperança da solução de problemas e
impasses e também o risco de que novos problemas e impasses
surjam, como decorrência do próprio avanço da ciência.
A degradação do meio ambiente, que tem sido objeto
de alarmes há décadas, é, sem dúvida, um notável exemplo
de seqüelas da utilização de novos conhecimentos sem uma
prévia consideração dos efeitos sobre as condições de vida
no longo prazo. Os novos progressos no campo da genética
chamam a atenção, igualmente, para o imperativo de se es-
tabelecer critérios de avaliação das conseqüências do uso de
conhecimentos aplicados às técnicas.
A responsabilidade da elite científica é, portanto, um
tema inevitável se quisermos encarar o desenvolvimento de
forma sustentável. E, nesse sentido, há que se introduzir o
debate sobre a ética, invocando sua função reguladora das
condutas científicas.
A presente obra reúne um conjunto de textos produzi-
dos por pesquisadores universitários preocupados com este
instigante desafio. Trata-se de estudos que contribuem, sob
8 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
diversos ângulos, para o aprofundamento do debate, no qual
a UNESCO se empenha por força de seu mandato.
Organizada pelo professor Marcel Bursztyn, do Cen-
tro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de
Brasília — instituição parceira da UNESCO —, a obra torna
públicas as reflexões de uma crescente comunidade de pes-
quisadores que levantam críticas e apontam caminhos para
a revisão do papel da Universidade, da Ciência e das Políti-
cas Públicas.
É nosso desejo que o produto desse esforço sirva para
fomentar novas reflexões sobre as inter-relações entre três
ingredientes tão instigantes: ciência, ética e sustentabilidade.
Jorge Werthein
Representante da UNESCO no Brasil
INTRODUÇÃO
CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE:
desafios ao novo século
Marcel Bursztyn
No limiar do século XXI, diante de um quadro de
marcantes desafios a serem enfrentados, de problemas não
resolvidos, de obstáculos criados pela própria ação do ho-
mem, o papel da ciência é posto em evidência em todos os
balanços e análises prospectivas. Mesmo não sendo exata-
mente o fim de uma era civilizatória ou de um grande ciclo
econômico ou tecnológico, a ocasião — virada de século, de
milênio — instiga reflexões sobre as grandes realizações e
pendências do período que se encerra.
Aliás, foi assim também ao final do século XIX. Na-
quela época, os analistas e pensadores vislumbravam um
futuro promissor para a humanidade, tendo em vista os
elementos e realizações que marcavam a realidade que
vivenciavam: uma ampliação notável dos mecanismos de
proteção social (políticas públicas de saúde, educação e
previdência); uma extensão dos direitos civis e de sufrá-
10 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
gio, incorporando parcelas da população até então mar-
ginalizadas da cidadania; enfim, um período de paz e de
prosperidade.
É evidente que o balanço do final do século XX revela
uma grande frustração e acena com uma constrangedora
pauta de pendências a serem encaradas.
O quadro a seguir esquematiza as visões para o futuro
nos dois momentos, permitindo uma comparação:
Fim do século XIX Fim do século XX
Expectativa geral
para o futuro
Otimismo Pessimismo
Papel da ciência e
da tecnologia
Forte crença na
capacidade de
resolução dos
problemas
Desencanto e
consciência da
necessidade de
precaução
Condições de vida Perspectiva de
bem-estar (welfare)
Um mal-estar pelo
agravamento de
carências
Instância reguladora Crescentemente o
Estado
Crescentemente o
Mercado
Relação entre os
povos
Paz Guerras
Relações entre
grupos sociais
Maior igualdade Maior desigualdade
Economia Forte crescimento Crescimento lento,
estagnação
Progresso Promotor de
riqueza
Causador de
impactos
ambientais
Mundo Interdependência
(mercados) e
complementaridade
Globalização e
exclusão de regiões
“desnecessárias”
INTRODUÇÃO 11
O pessimismo geral em relação ao futuro guarda estreita
relação com o crescente grau de consciência de que a busca do
progresso, que se anunciava como vetor da construção de uma
utopia de bem-estar e felicidade, revelou-se como ameaça.
Nesse sentido, os recados que o século XX deixa para o
seguinte, em termos do papel da ciência e da tecnologia,
constituem um apelo por mudanças de conduta, resultado
de pelo menos cinco categorias de impasses:
•A consciência das possibilidades reais de que a hu-
manidade possa se autodestruir, pelo uso de seus
próprios engenhos (bombas, mudanças climáticas,
degradação das condições ambientais).
•A consciência da finitude dos recursos naturais (a es-
cassez de água é apenas a ponta de um grande iceberg).
•A consciência de que é preciso agir com cautela e
considerar os aspectos éticos da produção de conhe-
cimentos científicos e, sobretudo, do desenvolvimen-
to de tecnologias (a síndrome do aprendiz de feiticeiro).
•A consciência de que mesmo não tendo resolvido a
necessária solidariedade entre grupos sociais e po-
vos, é preciso que se considere também o princípio
da solidariedade em relação a futuras gerações (a éti-
ca da sustentabilidade).
•A consciência de que, na medida em que nossas so-
ciedades vão ficando mais complexas, é preciso mais
ação reguladora, o que normalmente se dá pelo po-
der público; hoje, com a crise do Estado, a regulação
deve se valer de novas regulamentações e de uma
crescente contratualização entre atores sociais (códi-
gos de conduta, sistemas de certificação).
Como bem assinalou Ivan Illich, referindo-se ao desen-
canto em relação às promessas da Revolução Verde, “a taxa
de crescimento das frustrações excede muito à da produção”.
1
1. Citado por André Gorz, Écologie et politique, Paris, Editions du Seuil, 1978,
p. 65.
12 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
Entretanto, se, por um lado, há fortes elementos que
inspiram pessimismo, é relevante, por outro lado, assinalar
aspectos que podem ser vistos como sinais de que há espa-
ço para otimismo:
•a bomba demográfica foi desmontada;
•o fim da guerra fria reduziu a corrida armamentista; e
•as crises energética e de esgotamento de certos re-
cursos naturais estimulou o desenvolvimento de pro-
cessos produtivos menos intensivos e perdulários no
uso de matérias-primas e energia.
Para entender as lições deixadas pelo século XX para o
XXI, é relevante buscar lições na história como base para, a
partir do conhecimento dos impasses atuais, traçar linhas
de conduta das atividades de produção de conhecimento
que estejam em sintonia com um horizonte civilizatório sus-
tentável.
A tônica de todos os trabalhos que compõem a presen-
te coletânea é a relação entre a ciência, as condicionantes
éticas de sua produção e uso e o imperativo da conciliação
da busca de melhores condições materiais de subsistência
com a necessidade de um desenvolvimento que seja susten-
tável. Esse é o desafio expresso na Agenda 21, consenso polí-
tico formal sobre o que é para ser feito e como devemos pro-
ceder no novo século.
Na Universidade contemporânea, esse desafio tem se
confrontado com um modus operandi que nasceu e foi se de-
senvolvendo em conformidade com os paradigmas que mar-
caram nossa era industrial: produtivismo, hegemonia da ciên-
cia sobre a natureza, especialização e disciplinaridade.
A aproximação da Universidade em relação aos ele-
mentos contidos no tema desenvolvimento sustentável não
é tão recente como a consagração do conceito, que é da se-
gunda metade da década de 1980.
Pelo menos desde o pós-Segunda Guerra Mundial, tem
havido notáveis reflexões sobre os limites éticos que con-
INTRODUÇÃO 13
frontam com o desempenho científico, apontando para a fra-
gilidade e as limitações da postura estritamente disciplinar.
O físico Jacob Bronowsky, ativo pesquisador do Projeto
Manhattan, que produziu a bomba jogada em Hiroshima, é
protagonista de um questionamento pioneiro e exemplar em
relação à responsabilidade dos cientistas quanto ao uso dos
conhecimentos que ajudam a gerar. Numa época em que
ainda não se ouviam ponderações dessa natureza, chamou
a atenção para o imperativo de se estabelecer limites éticos
ao desenvolvimento científico.
Nos rebeldes anos 1960, começam a proliferar alertas,
vindos da Universidade, quanto à insensatez do modo como
o avassalador avanço das ciências vinha se transformando
em tecnologias e processos produtivos ameaçadores à pere-
nidade da vida. Rachel Carson (Silent spring), nas ciências
agrárias, e Garret Hardin (The tragedy of the commons), na
biologia, são expoentes representativos daquele momento.
Já nos anos 1970, a preocupação chega à ciência econô-
mica, notadamente a partir do relatório de Denis Meadows
ao Clube de Roma (The limits to growth).
De lá para cá, a sintonia da Universidade com temas
associados ao meio ambiente e à qualidade de vida das fu-
turas gerações só tem crescido. Entretanto, a relação do meio
acadêmico institucionalizado com esse tipo de tema é mui-
to difícil. A organização departamentalizada valoriza as es-
pecialidades e é avessa a visões interdisciplinares. Toda a
estrutura de fomento, avaliação, reconhecimento e valida-
ção de mérito das atividades de desenvolvimento científico
e tecnológico no meio acadêmico está orientada para os cor-
tes das “áreas do conhecimento” e suas respectivas “disci-
plinas”. E, por outro lado, também os pesquisadores foram
se organizando em torno de associações corporativas disci-
plinares.
Postular, hoje, a abertura de espaços institucionalizados
para a prática acadêmica interdisciplinar implica resgatar a
herança recente de experiências relevantes (não falemos na
14 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
velha Universidade generalista de outras épocas, que for-
mava cientistas com visão de muito mais universalizada).
Já há uns cinqüenta anos, incrustava-se no tecido acadêmi-
co temas como o Planejamento, que é interdisciplinar por
definição. Depois, veio o Desenvolvimento Regional e o Pla-
nejamento Urbano.
A chegada do tema Meio Ambiente — base para o
enfrentamento do desafio do Desenvolvimento Sustentável
— à Universidade se dá a partir de contextos departamenta-
lizados. Primeiro, foram os departamentos de biologia, de
química e de engenharia sanitária. Mas, depois, a adesão ao
tema foi se espalhando pelos campi. O adjetivo ambiental
começa a aparecer acoplado a várias disciplinas: engenha-
ria ambiental, direito ambiental, educação ambiental, socio-
logia ambiental, história ambiental, geologia, química..., além
de outras versões, como a agroecologia. Na biologia, a eco-
logia vai se tornando um campo com grande destaque. Si-
nal dos tempos!
É importante, entretanto, contextualizar o momento em
que a preocupação ambiental se internaliza na Universida-
de, em particular no Brasil. Pelo menos dois aspectos mere-
cem, nesse sentido, ser destacados:
•o enraizamento institucional, corporativo e burocrá-
tico do modelo disciplinar; e
•a avassaladora crise financeira, que compromete a ca-
pacidade de surgimento de novos campos e que exa-
cerba as disputas corporativas, rejeitando “novidades”.
Nesse sentido, ainda que pareça paradoxal, a preocupa-
ção com o desenvolvimento sustentável cresce em importân-
cia, mas não encontra um espaço institucional compatível.
E, para completar, as estruturas de apoio, fomento e
avaliação também se mostram pouco permeáveis à
interdisciplinaridade. Operam por meio de cortes rigorosa-
mente corporativos e os mais sinceros acenos no sentido de
reconhecer a relevância da interdisciplinaridade têm se re-
INTRODUÇÃO 15
sumido a uma arquitetura institucional, no máximo
multidisciplinar.
Diante de impasses como esses, a comunidade científi-
ca, interessada na prática interdisciplinar do ensino e da
pesquisa voltados ao Meio Ambiente e Desenvolvimento,
se depara com o seguinte desafio: fazer com que seja reco-
nhecida a relevância, validar os esforços e legitimar os es-
paços de trabalho, no interior do tecido universitário e fren-
te às agências de apoio, fomento e avaliação.
Mas como operar esta estratégia, diante das dificulda-
des burocráticas, culturais e materiais?
A resposta a essa questão passa por pelo menos quatro
categorias de consideração:
•É preciso deixar claro que os espaços de interdis-
ciplinaridade não devem ser vistos como concor-
rentes em relação aos departamentos: são comple-
mentares.
Há que se romper com preconceitos de cunho espe-
cialista: a visão generalista e integradora não é uma
qualidade menor; é um atributo necessário ao
enfrentamento de problemas complexos.
•É relevante instituir instrumentos de avaliação e de
apoio que sejam flexíveis e permeáveis às caracterís-
ticas dos enfoques interdisciplinares.
•É fundamental que espaços interdisciplinares sirvam
de foco às reflexões de fundo sobre o desenvolvimen-
to da ciência e da tecnologia (tais como a transgenia
e a bioética). E, aqui, um desafio particular se apre-
senta: mesmo tendo sido um avanço em termos de
democratização do processo decisório, o “julgamen-
to dos pares” traz, em si, o risco da cumplicidade e
da falta de visão crítica; agora, temos de pensar tam-
bém no “julgamento dos ímpares”.
A presente obra foi organizada a fim de servir de sub-
sídio à reflexão e ao debate sobre os rumos da organização
16 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
da produção de conhecimentos científicos e tecnológicos,
diante dos desafios éticos e operacionais que emergem do
imperativo de se buscar um desenvolvimento que seja sus-
tentável em todas as dimensões (econômica, social, políti-
co-institucional, cultural, ecológica, territorial).
O texto O que é um intelectual?, de Arminda Eugenia
Marques Campos e Roberto S. Bartholo Jr., destaca que o
surgimento da Universidade foi acompanhado pelo desen-
volvimento de uma nova concepção sobre a atividade de
pensar-ensinar, da qual não estava ausente a discussão so-
bre os aspectos éticos. A Universidade foi vista, ao menos
por parte dos universitários medievais, como o ambiente
adequado para a vivência de uma ética justificada filosofica-
mente, experimentada na comunicação de idéias, e para o
aperfeiçoamento pessoal. O objetivo do texto, relembrando,
é fornecer um tema de reflexão para iniciativas de pensar
modelos de universidade em que o estudo vise não aceitar
os fatos como inalteráveis e adaptar-se permanentemente a
fatores externos, mas “aprender a aprender”, aprender a
refletir e a partilhar idéias e descobertas.
O texto Solidão e liberdade: Notas sobre a contemporaneidade
de Wilhelm von Humboldt, de Roberto S. Bartholo Jr., trata o
projeto de fundação da Universidade de Berlim, em 1809,
proposto por Wilhelm von Humboldt, como um caso exem-
plar, capaz de trazer ensinamentos para os rumos da Uni-
versidade brasileira hoje.
Wilhelm von Humboldt responde ao desafio de man-
ter-se fiel ao ideário iluminista, sem negar o enraizamento
numa identidade cultural nacional subjugada pelo triunfo
das tropas napoleônicas. A modernidade, impulsionada pela
“globalização” contemporânea, coloca desafios análogos. O
ideário iluminista humboldtiano, de realizar uma formação
ética da pessoa pela formação científica universitária, ga-
nha uma marcante atualidade. Traduzi-lo criativamente para
o nosso contexto, em que os poderes da tecnociência cres-
cem numa aparentemente ilimitada espiral cumulativa, tor-
na-se um notável desafio político-filosófico, e ignorá-lo pode
INTRODUÇÃO 17
colocar em risco a própria sustentabilidade institucional da
Universidade como instrumento de organização da cultura.
Jenner Barretto Bastos Filho, em seu trabalho A ciência
normal e a educação são tendências opostas?, parte do conflito
que se estabelece entre a ciência normal que segue o relato
kuhniano acerca do desenvolvimento da ciência, de um lado,
e, de outro, a educação.
O cientista “normal” de Kuhn tem um perfil tal que
implica uma aderência rígida a um paradigma. Esse fato ne-
cessariamente envolve compromissos básicos, implícita e ex-
plicitamente assumidos, que limitam severamente a crítica,
principalmente aquela que se constitua numa violação des-
ses compromissos assumidos pela comunidade praticante
do paradigma. A educação, e aqui se deseja a educação real-
mente genuína e não o mero adestramento nem o simples
treinamento, tem como razão precípua justamente a crítica,
o questionamento, a cidadania e a procura de autonomia.
O argumento desenvolvido no texto é o de que a solu-
ção do conflito passa necessariamente pela questão da au-
tonomia, entendida nas suas dimensões epistemológica, ética
e política. Para tanto, é preciso uma radical reforma, tanto
do pensamento quanto das atitudes éticas.
Em seu texto Educação e desenvolvimento na contempo-
raneidade: dilema ou desafio?, Elimar Pinheiro do Nascimento
indaga sobre a natureza das relações entre educação e de-
senvolvimento. Essas relações, tidas como tradicionais, apre-
sentam mudanças no mundo de hoje, obrigando-nos a re-
fletir sobre a pertinência das respostas tradicionais. Defi-
nindo-as como de três naturezas (fator de mobilidade so-
cial, fator de desenvolvimento econômico e introjeção dos
valores da nacionalidade), o texto avalia que essas respos-
tas se mantêm atuais apenas na medida em que se observe a
complementaridade entre elas, sobretudo ao se considerar
as transformações sociais que obrigam a uma reforma radi-
cal da escola, sem a qual esta não poderá desempenhar seu
papel. Para isso, sinaliza com o fato de todos os cenários
18 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
mundiais apresentarem o aspecto comum da continuidade
das profundas mudanças tecnológicas em curso. Em segui-
da, defende a idéia de que esta reforma é possível, depen-
dendo apenas de decisão política. Conclui mostrando como
experiências positivas ocorrem no Brasil, apresentando, com
exemplo, o caso de Brasília durante o governo Cristovam
Buarque.
Conseqüências de fenômenos como a exclusão social e
a ausência da educação como garantia do desenvolvimento
sustentável são analisadas no texto Segurança humana, edu-
cação e sustentabilidade, de Argemiro Procópio. As causas do
desordenamento ético e seus reflexos no desrespeito gene-
ralizado aos direitos humanos, principalmente por meio das
brutais desigualdades sociais, da corrupção e da violência,
brotam nesta análise, que também enfoca o submundo das
drogas ilícitas.
O texto desvenda razões e conseqüências das enormes
desigualdades no Brasil, apontando os riscos à segurança
humana.
Eduardo Baumgratz Viotti, em seu trabalho Ciência e
tecnologia para o desenvolvimento sustentável brasileiro, chama
a atenção para uma perspectiva diferente da relação entre
sustentabilidade, ética e ciência. Mostra como a difusão de-
sigual das capacitações para produzir e utilizar a ciência
condiciona profundamente a situação das nações. Indica que
a busca do desenvolvimento sustentável em nações de in-
dustrialização tardia, como o Brasil, irá requerer um esforço
extraordinário nesses países, com a realização de dois pro-
cessos simultâneos de transformação histórica. Um é a su-
peração de condições de miséria e desigualdade, o que, em
grande medida, já ocorreu em nações industrializadas. O
outro é o redirecionamento do processo de desenvolvimen-
to de acordo com a nova ética da sustentabilidade.
O artigo pode ser interpretado como um alerta para os
limites mais estreitos que as condições estruturais impõem
às nações de industrialização tardia. Os graus de liberdade
INTRODUÇÃO 19
existentes para o exercício da nova ética da sustentabilidade
parecem muito mais estreitos nos casos daquelas nações. As
nações de industrialização tardia não participam dos mer-
cados internacionais com produtos novos (sem concorren-
tes) ou com produtos produzidos por tecnologias mais pro-
dutivas que as dos concorrentes, como o fazem as nações
industrializadas. Por não terem como recorrer a esse tipo de
vantagens tecnológicas, a competitividade de nações, como
o Brasil, acaba sendo, em grande parte, dependente de pro-
cessos que comprometem as condições de vida da popula-
ção (atual e futura) ou que superexploram suas bases de re-
cursos naturais.
Finalmente, o texto Prudência e utopismo: ciência e educa-
ção para a sustentabilidade, de autoria de Roberto S. Bartholo
Jr. e Marcel Bursztyn, enfoca o atual impasse ontológico do
desenvolvimento das ciências, processo estreitamente rela-
cionado ao modo de organização do sistema educacional
vigente.
Desde os alertas de Malthus de que o crescimento ace-
lerado da população estava em descompasso com a capaci-
dade de se alimentar a todos, passando pela formidável re-
volução produtiva que marcou o mundo desde então, até
chegar aos alertas neomalthusianos de que estaríamos amea-
çados por uma bomba populacional, muita coisa mudou.
Mudou nosso modo de ver a natureza, agora transfor-
mada em meio de produção; mudou nosso padrão de
essencialidades materiais; mudou a capacidade destrutiva
dos artefatos bélicos; mudou, qualitativa e quantitativa-
mente, o ritmo de degradação ambiental; mudou o caráter
da ciência, que fundamenta os avanços tecnológicos, o pro-
gresso.
Diante de tais transformações, e de um aumento notá-
vel nos riscos que corre a humanidade, o momento atual
recomenda uma revisão dos paradigmas que movem a bus-
ca do progresso. A quase inesgotável capacidade criativa
dos cientistas, mesmo quando direcionada ao desenvolvi-
20 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
mento de conhecimentos voltados ao bem-estar, vem pro-
vocando efeitos colaterais (ex: poluição) e levantando dúvi-
das e preocupações (ex: manipulações genéticas) que apon-
tam para uma necessária prudência (princípio da precaução).
O texto enfoca justamente o imperativo da ética como me-
canismo de filtragem dos efeitos deletérios da busca do pro-
gresso.
O papel do tecnólogo — aquele que transforma os co-
nhecimentos científicos em usos econômicos — é crucial. A
idéia da precaução, hoje tão propalada diante das
imprevisíveis aplicações de modernos avanços na engenha-
ria genética, já era uma preocupação de autores críticos há
três décadas. Assim, como já advertia Paul Goodman, a for-
mação acadêmica de um profissional que atue na aplicação
de conhecimentos para o desenvolvimento de tecnologias
deve conter elementos das ciências sociais, do direito, de
belas-artes e da medicina, além das ciências naturais. Se-
gundo o autor, “cabe aos tecnólogos, e não apenas às agên-
cias governamentais reguladoras, preocupar-se com a se-
gurança e pensar nas conseqüências remotas”, sendo capa-
zes de avaliar criticamente os programas que lhes são da-
dos a implementar.
2
Utopia? O desenvolvimento sustentável é uma utopia
possível e sua construção é plausível: porque a crise atual
dos paradigmas que movem o progresso industrialista au-
toriza a ousadia de se pensar um outro modo de desenvol-
vimento humano. A fórmula ainda não está elaborada. Com
renovada ética, a ciência pode cumprir um importante pa-
pel nesse sentido. Por isso, como adverte Boaventura de
Sousa Santos, não disparem sobre o utopista!
3
2. Decentralizing Power: Paul Goodman´s Social Criticism, obra organizada por
Taylor Stoehr, Black Rose Books, Montreal, 1984, p. 88.
3. Boaventura de Souza Santos, Crítica da razão indolente: contra o desperdício
de experiência. São Paulo, Cortez, 2000.
CAPÍTULO 1
O QUE É UM INTELECTUAL?
Arminda Eugenia Marques Campos
Roberto S. Bartholo Jr.
Um lago evapora e, pouco a pouco, vai se esgotando. Mas
quando dois lagos estão unidos, eles não secam tão facil-
mente, pois um alimenta o outro. O mesmo ocorre no campo
do conhecimento. O saber deve ser uma força revigorante e
vitalizadora. Isso só é possível quando há um intercâmbio
estimulante com amigos afins, em cuja companhia se possa
debater e procurar aplicar as verdades da vida.
I-Ching: o livro das mutações, Hexagrama 58 — Ale-
gria, comentário à imagem
Apresentação
As universidades surgidas na Europa do século XII fo-
ram, em sua organização e em seus métodos de ensino, uma
criação original dos latinos medievais
1
. A organização e os
1. Usa-se neste texto a expressão cristandade latina para referir-se ao terri-
tório europeu medieval em que surgiram as primeiras universidades. Essa expres-
são enfatiza a importância do cristianismo e da herança latina como principais
22 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
conteúdos de seus currículos, no entanto, foram em boa parte
“importados”, por meio de traduções para o latim de co-
nhecimentos filosóficos e científicos greco-árabes
2
, com os
temas filosóficos aportados pelas traduções influenciando a
caracterização de um novo tipo de homem, que terá, nas
universidades, o domicílio do exercício de seu ofício
vocacional.
3
É um evento pleno de conseqüências portado-
ras de um futuro. Nosso futuro. O futuro de uma civilização
que fez da ciência e da tecnologia a condição de possibilida-
de de um novo mundo.
Os primórdios da universidade
Um traço importante na genealogia de nosso “Novo
Mundo” é a “linhagem” das instituições produtoras de co-
nhecimento. Para isso, nossa atenção vai ser centrada na
genealogia das nascentes universidades no contexto da Eu-
ropa Medieval cristianizada. A partir do século VII, aproxi-
madamente, as atividades de ensino na cristandade latina
mantinham-se, quase que em sua totalidade, sob a alçada
da Igreja, em particular vinculadas a mosteiros
4
. A finalida-
denominadores comuns; recorda a existência de cristandades não-latinas; evita
a confusão que pode criar o termo Ocidente, uma vez que, durante boa parte do
período em questão, a parte mais ocidental do continente europeu era território
muçulmano; recorda que Europa era, então, uma idéia ainda em formação.
2. Conhecimentos com origem na Antigüidade grega, discutidos e desen-
volvidos por pensadores do mundo islâmico e difundidos em árabe. Em termos
filosóficos, esses conhecimentos baseavam-se principalmente nas obras de
Aristóteles e seus comentadores. Os pensadores do mundo muçulmano mais
importantes para a absorção da filosofia aristotélica entre os latinos foram Farabi,
Avicena e Averróis.
3. Para isso, serão utilizados, em particular: Domanski, 1996, De Libera,
1991 e Le Goff, 1993.
4. A reduzida parcela letrada da população do período constituía-se, basica-
mente, de clérigos
7
— monges, em particular, porque a situação do clero secular
era ainda mais difícil. O termo clérigo passava a significar “ao mesmo tempo ho-
mem instruído e aquele que, pela tonsura, entrou para a Igreja” (Paul, 1973: 13);
O QUE É UM INTELECTUAL? 23
de do ensino não era mais, como no mundo romano, manter
a uniformidade cultural nos diversos pontos do império e
preparar para a vida pública, mas dotar a Igreja de membros
capacitados a preservar e compreender as Escrituras e textos
doutrinários e a participar da administração eclesiástica.
Cerca de quatro séculos mais tarde, com a revitalização
das cidades, as escolas monásticas começaram a perder in-
fluência em favor de escolas urbanas, ligadas a igrejas e a
catedrais, em geral. Esse tipo de escola não surgiu no século
XI; já existia, em alguns lugares, há bastante tempo. Nesse
período, no entanto, elas aumentaram em número, tama-
nho e importância e passaram a ter maior continuidade. Esse
aumento respondia à aguda consciência da necessidade de
um clero secular melhor preparado, capaz de desempenhar
tarefas mais complexas e com uma compreensão mais pro-
funda do próprio cristianismo, assim como ao crescente
engajamento, nos estudos, de pessoas sem interesse na car-
reira eclesiástica.
Inicialmente, os professores das escolas episcopais cos-
tumavam ser integrantes do capítulo da Igreja, mas o cresci-
mento do número de interessados em aprender, em parti-
cular no século XII, levou à necessidade de delegar parte do
ensino a pessoas externas ao capítulo. Esses “professores
agregados” ensinavam em dependências das igrejas ou ca-
tedrais e, num momento posterior, puderam manter escolas
independentes, mediante a concessão de uma licença espe-
cial, que seria chamada licentia docendi e que, a princípio, só
tinha valor no território em que o outorgante havia até en-
tão tido monopólio sobre o ensino. Surgiram, assim, várias
escolas sem vínculos diretos com uma igreja ou um capítu-
lo, a partir da reunião entre professores e alunos interessa-
dos em seu ensinamento, os quais eram, freqüentemente,
responsáveis pela remuneração do professor e pelo paga-
a palavra “leigo” não deixaria mais de ser sinônimo de ignorante em algum grau
ou domínio.
24 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
mento do que fosse necessário, como o aluguel do local onde
ocorriam as aulas.
A próxima transformação no quadro da instrução foi a
reunião dos participantes no ensino em associações e a união
das escolas, que resultariam, no século XIII, nas universida-
des.
5
O estabelecimento dessas associações decorria não ape-
nas do crescimento do número de professores e alunos, mas
principalmente da consciência crescente, entre eles, de que
constituíam um grupo particular e partilhavam necessida-
des específicas. Decorria do surgimento e fortalecimento, em
seu meio, de um espírito de corpo reforçado, com freqüên-
cia, por eventos que despertavam reações coletivas. Não
eram as escolas ou cursos que se reuniam: continuavam con-
sistindo na reunião de um professor e seus alunos, com sua
própria forma de conduzir o ensino; continuavam, de certa
forma, concorrentes; passavam a integrar uma “federação”.
Eram as pessoas que se agrupavam, de modo similar às que
estabeleceram outras associações típicas do ambiente urba-
no da época, como as corporações de ofícios e as confrarias
de mercadores. O objetivo era defender seus interesses e
reivindicar o que julgavam ser suas prerrogativas, inclusive
no que dizia respeito à regulamentação do ensino e ao con-
trole de abusos praticados por alunos ou professores.
6
Ao
longo do século XIII, essas corporações e a organização do
ensino foram sendo gradativamente regulamentados, dan-
do origem a um novo tipo de instituição.
5. Na verdade, apenas no século XV o termo Universidade seria usado para
designar o conjunto dos cursos, que era chamado studium, sendo o termo
universitas usado para designar as corporações de professores e alunos. Um
studium podia ser qualificado como generale. De início isso queria dizer apenas
que era um lugar onde se ministrava um ensino superior, que recebia estudantes
de qualquer parte e dispunha de um considerável número de professores. Mais
tarde, passou a designar centros de ensino que concediam licenças válidas em
qualquer lugar. Cf. Rashdall (1936), v. 1, p. 2-24.
6. Os nomes recebidos por essas associações realçam a similaridade com
outras, típicas do ambiente urbano: “consortium, communitas e finalmente
universitas, que aparece apenas em 1221. Todos esses termos são aplicados às
corporações de ofícios, às confrarias religiosas e até mesmo aos habitantes de um
quarteirão ou de uma cidade” (Paul, 1973: 284.)
O QUE É UM INTELECTUAL? 25
As “antepassadas” das universidades haviam manti-
do, com poucas adaptações, o modelo de educação da Anti-
güidade tardia romana, não apenas quanto a métodos, mas
também quanto a conteúdo, ainda que inicialmente seus
programas se restringissem a uma parcela reduzida do con-
teúdo original. Com o passar do tempo, essa parcela foi sen-
do aumentada, nas escolas monásticas e episcopais, com a
busca e o intercâmbio de textos na própria rede de bibliote-
cas dos mosteiros. Isso levava à ampliação e ao aprofunda-
mento das disciplinas ensinadas e a algumas tentativas, de
início tímidas, de retomar a modesta cultura filosófica dis-
ponível como fonte de instrumentos de pesquisa e interpre-
tação das Escrituras e da doutrina. Criava-se, com isso, uma
expectativa e uma demanda por mais textos.
A partir do século XII, o material disponível ampliou-
se consideravelmente. Intensificou-se a exploração e a difu-
são dos recursos disponíveis em latim e iniciou-se o movi-
mento de tradução de textos, principalmente a partir do ára-
be, nas regiões sendo tomadas aos muçulmanos (Península
Ibérica e Sicília). Grande parte dos conhecimentos filosófi-
cos e científicos do legado grego havia sido traduzida para
o árabe, estudada e desenvolvida por pensadores islâmicos.
As traduções possibilitaram, assim, o encontro não só com
material produzido por autores antigos
7
, mas também com
os comentários e desdobramentos produzidos por pensa-
dores do mundo islâmico.
A acolhida da filosofia
Os conhecimentos — nos ramos da filosofia, do direi-
to, da medicina e de várias ciências — postos em circulação
7. Na verdade, esse material resultava de uma sucessão de traduções feitas
a partir de línguas de estruturas bem diferentes, o que por vezes, o distanciava,
bastante dos textos originais. Essa dificuldade levaria, principalmente no século
XIII, a iniciativas de tradução para o latim a partir da língua original, o grego.
26 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
pelos movimentos descritos anteriormente, foram de extre-
ma importância para os integrantes das primeiras universi-
dades. Coube a eles a tarefa de absorver esses conhecimen-
tos, o que realizaram, por vezes, com avidez e em geral com
satisfação. Houve não apenas uma gradativa introdução de
novos elementos nos programas de estudos
8
: as concepções
de ciência e a sistematização das áreas do conhecimento
oriundas do aristotelismo foram tomadas como base dos
currículos elaborados pelas universidades.
O acolhimento e a digestão desse corpo filosófico, com
destaque para o peripatetismo greco-árabe, foram realiza-
dos, em graus e perspectivas diferentes, por integrantes
dos cursos de artes liberais e de teologia. O primeiro era
um curso preparatório para os demais (teologia, medicina
e direito), e seu programa, que anteriormente abrangera as
artes liberais tradicionais do mundo antigo, modificou-se,
ao longo do período de estabelecimento das universida-
des, para enfatizar o estudo da filosofia, tomada, então,
como sinônimo do aristotelismo recém-descoberto. No
campo da teologia, houve a elaboração das grandes sínte-
ses teológicas que caracterizaram o século XIII, produzi-
das a partir da integração, da avaliação ou da rejeição de
elementos da filosofia peripatética, que foi o grande im-
pulso para sua produção.
Essas transformações não ocorreram sem divergências
e conflitos, que opuseram por vezes integrantes da faculda-
de de artes e da faculdade de teologia ou de uns e outros
com a hierarquia da Igreja. Uma das divergências mais po-
lêmicas diria respeito à teoria aristotélica sobre a alma, o
intelecto e o processo de conhecimento. A interpretação des-
sa teoria e de comentários a ela feitos por Averróis
9
, asso-
ciada à de parte da ética aristotélica realizada por professo-
8. No caso dos estudos de medicina, talvez fosse melhor dizer que consti-
tuíram integralmente o programa.
9. Pensador muçulmano do século XII, nascido em Córdoba, que, no campo
da filosofia, dedicou-se a estudar o pensamento de Aristóteles e a explaná-lo.
O QUE É UM INTELECTUAL? 27
res da faculdade de artes
10
, levou a concepções bastante con-
troversas. Afirmava que o intelecto seria único e separado
dos indivíduos, não sendo forma substancial do corpo. Con-
siderava, ao mesmo tempo, que o intelecto constituiria a por-
ção fundamental e melhor do homem. A conseqüência que
se podia tirar era a de que o mais nobre do ser humano não
estaria ligado ao corpo, mas apenas agiria no indivíduo, sen-
do único para toda a espécie humana. Era a chamada dou-
trina do monopsiquismo, que negava a existência de almas
imortais individuais, o que ia totalmente contra a antropo-
logia cristã.
11
Essa e outras teorias tidas como vinculadas
em excesso, e em detrimento da verdade cristã, ao pensa-
mento peripatético, sofreram várias censuras oficiais ao lon-
go da segunda metade do século XIII.
Nas esquinas da cidade, novos horizontes da organização da
cultura
Nas escolas monacais, as tarefas ligadas ao ensino não
eram as únicas ocupações dos monges por elas
responsabilizados. Não eram valorizadas por si mesmas nem
definiam vocações. Algo similar acontecia com os integran-
tes do clero secular que ensinavam nas escolas catedrais.
Para eles, também o ensino era uma tarefa entre outras.
A transformação mais notável ocorreu no século XII,
nas escolas urbanas que então surgiam ou se fortaleciam.
Nelas o ensino de conhecimentos profanos ganhava um es-
paço maior, visando qualificar não apenas o clero, mas tam-
bém leigos que desempenhariam funções fora da Igreja. O
10. A faculdade era o conjunto de escolas de uma mesma disciplina.
11. Os “artistas” que levaram suas interpretações de Aristóteles ao ponto
de, ao menos aparentemente, divergir de doutrinas cristãs receberam, dos histo-
riadores da filosofia, várias denominações: averroístas, aristotélicos heterodo-
xos, aristotélicos radicais. Os mais conhecidos entre eles foram Siger de Brabante
e Boécio de Dácia.
28 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
próprio aumento da importância e do âmbito do ensino cria-
va a necessidade de maior especialização e dedicação. Al-
guns de seus professores começaram a se caracterizar espe-
cificamente por suas atividades docentes e por sua qualifi-
cação em executá-las, e a se profissionalizar, recebendo uma
remuneração específica pelo ensino que proporcionavam.
A tendência à especialização e à profissionalização cres-
ceria nas universidades, corporações formadas justamente
por pessoas caracterizadas por seus vínculos com o estudo,
seja como professores seja como estudantes. A vida intelec-
tual tornava-se um ofício, “pelo qual se é remunerado, e que
tem suas técnicas, seu aprendizado e sua corporação” (Paul,
1973: 276). Nelas a maior parte dos professores, ainda que
pudessem desempenhar tarefas além das docentes, defi-
niam-se por serem professores e especialistas. Além disso,
boa parte do ensino tinha como finalidade exatamente pre-
parar para ensinar. O desempenho de atividades docentes
era uma das finalidades do aprendizado — além de ser um
dos meios através do qual ocorria.
O reconhecimento da condição de especialistas ficava
explícito, por exemplo, quando se buscava o conjunto de
doutores ou alguns entre eles, a fim de obter sua opinião —
tida como fundada, como qualificada — sobre um determi-
nado assunto. Isso acontecia em relação aos diversos cursos
universitários — direito canônico ou romano, medicina, ar-
tes ou teologia. Nesse último domínio, a transformação foi
mais notável, uma vez que o corpo de mestres em teologia
passou a ser reconhecido na Igreja como tendo autoridade
para elaborar doutrina em matéria de fé, o que deixava de
ser exclusividade dos concílios. Os universitários eram re-
conhecidos como tendo um valor e uma função específicos
para pelo menos parte da sociedade, em razão de seu co-
nhecimento, de sua qualificação.
As escolas urbanas e suas sucessoras, as escolas uni-
versitárias, tinham uma ligação bem maior do que as mo-
násticas com o contexto em que se encontravam e suas ne-
cessidades. O número de leigos entre os alunos cresceu, prin-
O QUE É UM INTELECTUAL? 29
cipalmente nas universidades. O ensino se ampliava, pro-
porcionando formação de profissionais que exerceriam fun-
ções fora da estrutura eclesiástica. Mesmo a Igreja passava a
ter necessidade de maior diversidade de quadros, por ter
ganhado, nesse mesmo período, uma estrutura bastante cen-
tralizada e complexa, com uma burocracia mais ampla.
Do clérigo ao intelectual
Foi em razão dessas ligações que Le Goff apontou o
surgimento da figura do intelectual, como tipo sociológico,
como um dos aspectos do desenvolvimento urbano e das
transformações econômicas, sociais e políticas ocorridas nas
cidades florescentes dos séculos XII e XIII. Escolheu o termo
intelectual, embora ele não fosse utilizado na época, princi-
palmente com o sentido hoje corrente, por não encontrar
entre os usados na época um que melhor conviesse para
diferenciá-lo do clérigo e designar “os que fazem do pensar
e do ensinar seu pensamento uma profissão”, caracteriza-
dos pela “aliança entre a reflexão pessoal e sua difusão atra-
vés do ensino” (Le Goff, 1993:18). Abelardo seria a primeira
grande figura de intelectual nitidamente distinta dos erudi-
tos dos meios monásticos.
A existência do intelectual teria resultado da divisão de
trabalho ocorrida nos ambientes urbanos. Seria mais um dos
ofícios especializados surgidos nesse período de “redescoberta
do homo faber”, em que o homem se afirmava “como um arte-
são que transforma e cria” (Le Goff, 1993: 54):
“É como um artesão, como um profissional comparável aos
demais citadinos, que se sente o intelectual urbano do século
XII. Sua função é o estudo e o ensino das artes liberais. Mas o
que é uma arte? Não é uma ciência, é uma técnica. Arte é a
especialidade do professor, assim como o têm as suas o car-
pinteiro ou o ferreiro. [...] Arte é toda atividade racional e justa
do espírito, aplicada tanto à produção de instrumentos mate-
riais como intelectuais: é uma técnica inteligente do fazer. [...]
Assim o intelectual é um artesão [...]” (Le Goff, 1993: 57).
30 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
Além de artífice e produtor de conceitos, o intelectual
seria ainda como um comerciante, fazendo circular idéias
como aquele fazia circular mercadorias e sendo por isso re-
munerado. “As cidades são centros de irradiação na circula-
ção dos homens, tão plenas de idéias como de mercadorias,
lugares de trocas, mercados e encruzilhadas do comércio
intelectual” (Le Goff, 1993: 25).
Além disso, o intelectual teria consciência de suas pe-
culiaridades e do papel a assumir: jamais, “antes da época
contemporânea, esse meio foi tão bem delimitado, nem al-
cançou mais nítida consciência de si mesmo que na Idade
Média” (Le Goff, 1993: 18). Essa consciência se daria pela
identificação com os ofícios, com sua função de profissional
e de citadino. A formação das universidades espontâneas
— associações de iguais, semelhantes em muitos aspectos
às corporações de ofícios ou às confrarias de mercadores —
seria um sinal dessa consciência.
Jacques Le Goff (1993) vê, no entanto, o intelectual ra-
pidamente trair a si mesmo, apesar da consciência de suas
características, por não saber vencer as ambigüidades em
que se encontrava, por não se comprometer o suficiente com
a consciência que tinha de si mesmo. O intelectual
“[...] que conquistou seu lugar na cidade se mostra entretan-
to incapaz, face às alternativas que se abrem diante dele, de
escolher as soluções do futuro. Dentro de uma série de crises
que se poderiam denominar de crescimento, e que são os
sinais da maturidade, ele não sabe optar pelo rejuvenesci-
mento, e se instala nas estruturas sociais e nos hábitos inte-
lectuais nos quais submergirá” (Le Goff, 1993: 60).
Urbi et orbi
Comprometer-se adequadamente com “as soluções
do futuro” seria reforçar a identificação com os profissio-
nais leigos burgueses (Le Goff, 1993: 64), ultrapassar as
O QUE É UM INTELECTUAL? 31
ambigüidades de sua situação, da corporação à qual per-
tenciam. Le Goff (1993) ressalta as contradições da cor-
poração universitária. A primeira delas seria seu caráter
eclesiástico: não se encontrou melhor meio de garantir a
autonomia da nova associação senão reafirmando sua su-
jeição à jurisdição eclesiástica. “Nascidos de um movi-
mento que tendia à laicidade, eles pertenciam à Igreja,
mesmo quando procuram institucionalmente sair dela”
(Le Goff, 1993: 64).
Embora as escolas tenham se desenvolvido como mais
uma instituição nova surgida nas cidades, a Universidade
“ultrapassou o quadro urbano onde se formou”. A
corporação universitária não tinha, como as demais, “o
monopólio sobre o mercado local. Sua área é a cristanda-
de”. Ela tinha um caráter universal, internacional, por atrair
estudantes de várias partes e, no caso das instituições mais
importantes, conceder uma licença válida em toda a parte.
A defesa dos interesses de seus integrantes levava-a mesmo
“a se opor — às vezes violentamente — aos citadinos, tanto
no plano econômico quanto no jurídico e político” (Le Goff,
1993: 64).
Outra fonte de contradição seria as formas de subsistên-
cia dos universitários. Nem todos os professores viviam de
salários, pagos por seus alunos ou pelos poderes civis
12
. Boa
parte deles, assim como dos alunos, viviam de benefícios ou
prebendas, muitas vezes ligados a funções ou cargos sem ne-
nhuma ligação com o ensino. As escolhas ocorriam em fun-
ção das circunstâncias, das possibilidades existentes. Essa si-
tuação ia contra a afirmação deliberada do intelectual “como
um trabalhador, como um produtor”. O afastamento do mun-
12. Uma solução que não foi adotada sem problemas. Teve de vencer a ten-
dência, na Igreja, a considerar os ganhos obtidos pelos mestres com o ensino
como ilícitos. Isso constituiria “venda da ciência” que, como um dom de Deus,
não poderia ser comercializada. De forma análoga à ilegitimidade da usura,
“comercialização do tempo”. Podia ainda ser considerada simonia, na medida
em que se considerava o ensino parte do ministério do clérigo.
32 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
do dos demais trabalhadores, que iria minar “as bases da con-
dição universitária” (Le Goff, 1993: 86), teria sido reforçado
pela oposição entre trabalho manual e trabalho intelectual
mantida pela escolástica. Além disso, a remuneração por “pri-
vilégios” acentuava o caráter eclesiástico do ensino.
Os intelectuais teriam, pela incapacidade de ultrapas-
sar essas contradições, reforçado a vinculação com a Igreja
e o Estado, deixando de se tornar os “intelectuais orgâni-
cos” das classes produtoras urbanas surgidas no mesmo
movimento que eles.
13
Ao fim dessa evolução profissional, social e institucional,
havia um objetivo: o poder. Os intelectuais medievais não
escapam ao esquema gramsciano, na verdade muito genéri-
co, mas operacional. Em uma sociedade ideologicamente con-
trolada muito de perto pela Igreja e politicamente cada vez
mais enquadrada por uma dupla burocracia — a laica e a
eclesiástica (...) —, os intelectuais da Idade Média são, antes
de tudo, intelectuais “orgânicos”, fiéis servidores da Igreja e
do Estado. As universidades se tornam cada vez mais celei-
ros de “altos funcionários” (Le Goff, 1993: 9)
A perfeita felicidade
A perspectiva sociológica de consideração do surgi-
mento dos intelectuais medievais, de que o livro Os intelec-
13. Os “intelectuais orgânicos” seriam os que cada “grupo social, nascen-
do no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção eco-
nômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico” e que lhe da-
riam “homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo
econômico, mas também no social e político”. As camadas de intelectuais, cria-
das de modo orgânico pelos grupos sociais ao surgir, encontrariam “categorias
intelectuais preexistentes”, que seriam os intelectuais tradicionais. (Gramsci,
1982: 3-5.)
Falei em “inspiração gramsciana” porque Le Goff utiliza as concepções de
Gramsci a respeito dos intelectuais com bastante liberdade, sem se prender rigo-
rosamente aos critérios por ele buscados para definir os intelectuais.
O QUE É UM INTELECTUAL? 33
tuais na Idade Média, de Le Goff, é o principal marco, consi-
dera esse fenômeno no quadro do fortalecimento das esco-
las urbanas e da criação das universidades, em meio às trans-
formações do meio urbano dos séculos XII e XIII. Vê o apa-
recimento dos “profissionais do pensamento” em suas rela-
ções com a instituição universitária que se estabelecia e or-
ganizava e com a sociedade em que ela se instalou.
Nossa visão sobre esse fenômeno se enriquecerá se ana-
lisarmos o nascimento do ideal intelectual, como propõe De
Libera em Penser au moyen âge. Sua posição é que “os inte-
lectuais medievais afirmaram eles mesmos sua diferença” e
“representaram eles mesmos sua singularidade, é essa re-
presentação, essa consciência de si, essa ‘estima’, ou melhor,
essa auto-avaliação que deve ser, no presente, estudada”.
Em suma, devemos tentar “entender a reivindicação da
intelectualidade como tal” (De Libera, 1991: 11).
Desde essa perspectiva, o aparecimento do intelectual
medieval se caracterizaria pelo ressurgimento de um ideal
ético antigo, concorrente ao cristão. Isso teria ocorrido, em
particular, entre os aristotélicos radicais da faculdade de ar-
tes da universidade de Paris, a partir das sétima e oitava
décadas do século XIII. Foram eles que mais buscaram uma
identidade própria, que os distinguisse dos modelos ante-
riores de professores, qualificando-se como filósofos. Não
se quer dizer com isso que tal grupo tenha tido o monopólio
da filosofia na universidade medieval. O pensamento filo-
sófico não ficou restrito às faculdades de artes. Foi ampla-
mente desenvolvido nas faculdades de teologia, não fazen-
do sentido falar em oposição razão e fé em relação aos con-
flitos intra-universitários do século XIII: pode-se falar, no
máximo, em modalidades diferentes de exercício da razão.
Os artistas heterodoxos parisienses desejaram se dis-
tinguir atribuindo-se a si mesmos, explicitamente, uma iden-
tidade por meio da exaltação da vida filosófica, como um
novo e diferenciado estilo de vida. “Esse movimento, que
podemos denominar ‘aristocratismo intelectualista’ nasceu
da familiaridade com textos filosóficos greco-árabes, ao
34 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
mesmo tempo que reativava certas postulações, certos de-
sejos que eram buscados antes dele [Siger de Brabante], em
particular na época de Abelardo” (De Libera, 1991: 23).
No livro La philosophie, théorie ou manière de vivre? Les
controverses de l’Antiquité à la Renaissance, Domanski destaca
a tendência, entre os artistas heterodoxos parisienses, de se
considerar a filosofia de maneira não apenas teórica, como
instrumento conceitual, mas também como modo de vida.
Um componente do aspecto prático da filosofia seria a ética,
concebida não apenas como ciência, mas como “ética reali-
zada, uma ciência dos costumes não apenas teórica, mas tam-
bém ‘praticada’, encarnada por assim dizer, nos costumes
do filósofo, uma arte de viver exercida por si mesma”
(Domanski, 1996: 11). O encontro entre a filosofia e o cris-
tianismo teria conduzido a um questionamento do aspecto
prático da filosofia, da ética realizada pelos filósofos
(Domanski, 1996: 23-29). A cristianização da filosofia incluiu
a negação ou redução de sua vertente prática, uma vez que
se considerava que o modo de viver perfeito era ditado pelo
próprio cristianismo; a fonte da moral e da ética eram as
verdades reveladas do Evangelho, cuja vivência integral de
virtudes dependia da graça divina.
A tendência predominante, no século XII e na escolás-
tica do século XIII, seria dar à filosofia um caráter simples-
mente “teórico” e “científico”, de forma ainda mais radical
que no início do cristianismo: “o adepto da filosofia não era
senão um leitor e um comentador dos escritos de Aristóteles”
(Domanski, 1996: 49-50). A tendência predominante era a
de considerar que
“[...] o papel de um filósofo se limita a comentar, explicar e,
eventualmente, desenvolver a verdade descoberta pela ra-
zão natural e contida nos escritos de Aristóteles. [...] Desse
ponto de vista, os problemas éticos situam-se no mesmo pla-
no que todos os demais e [...] a filosofia prática, como filoso-
fia, logo, como pesquisa científica, não difere de modo al-
gum de todos os outros ramos. Uma moralidade ativa, uma
ética praticada, tudo isso pertence a uma outra ordem”
(Domanski, 1996: 50-51).
O QUE É UM INTELECTUAL? 35
Nesse quadro, a corrente dos artistas heterodoxos
parisienses do século XIII seria uma das exceções ao movi-
mento principal
14
, por atribuir “à filosofia uma autonomia
completa, sem considerá-la como simples propedêutica à
doutrina cristã”, estando, portanto, “mais inclinada que as
outras correntes a aproveitar esses elementos metafilosóficos
do aristotelismo que se relacionavam com a vida filosófica
como moral praticada” (Domanski, 1996: 70). Desde essa
perspectiva o filósofo, vivendo conforme a natureza huma-
na, seria o verdadeiro virtuoso, por ter condições de distin-
guir corretamente as virtudes dos vícios. Nele, todas as fun-
ções e ações inferiores estariam ordenadas “à função supre-
ma e à ação mais elevada: isto é, a especulação sobre a ver-
dade e sua fruição, em particular a verdade primeira”
(Domanski, 1996: 72-73).
O legado peripatético árabe
O espírito racional de Aristóteles, suas concepções so-
bre o conhecimento, sobre seus diferentes domínios e méto-
dos, foram fundamentais para o surgimento da universida-
de e a formulação do novo modelo de professor surgido nos
meios urbanos, para a consciência das peculiaridades do
homem dedicado de modo expresso à transmissão do co-
nhecimento e para a valorização de sua ocupação.
15
Mas devemos considerar que o ideal do filósofo na Ida-
de Média não teria surgido sem legado dos peripatéticos do
mundo islâmico e sua leitura do aristotelismo, integradora
a concepções neoplatônicas. A contribuição dos autores mu-
çulmanos foi fundamental para a formulação do ideal de
14. Outras exceções seriam Abelardo, por ter valorizado a ética praticada
pelos filósofos pagãos, ainda que considerando que apenas a ética cristã realiza-
da alcançaria a meta proposta pelos próprios filósofos; e Roger Bacon, por ter
considerado a ética filosófica o ramo mais nobre da filosofia, e por uma certa
valorização do exemplo dos filósofos pagãos.
15. Cf. Lohr, 1992: 80-98.
36 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
vida filosófica defendido pelos artistas parisienses da segun-
da metade do século XIII. Segundo A. de Libera este ideal
entrelaçou dois motivos desenvolvidos por pensadores
islâmicos: a idéia de um crescimento progressivo do saber e
a de uma ascese intelectual.
O primeiro motivo já se encontrava presente nos tex-
tos de Al-Kindi. Inspirado em Aristóteles, mas também em
princípios islâmicos sobre o conhecimento, propunha a “tese
de um crescimento do saber, de um progresso, de uma cons-
trução gradual do pensamento e da sabedoria, implicando
o concurso de uma multidão de homens.” O segundo, seria
a “idéia ético-intelectual do destino do homem” (De Libera,
1991: 140).
A visão do universo adotada pelos filósofos árabes
16
definia
“[...] o ato de pensamento como um estado do universo inte-
ligível, como um grau de unidade e de unificação da alma,
que podia se intensificar à medida que se operavam a ‘conti-
nuação’, a ‘conjunção’ da alma humana com a inteligência
separada que, na cosmologia peripatética, presidia os movi-
mentos do mundo sublunar. O progresso, o crescimento do
saber, tinha desde então um sentido complexo, ao mesmo
tempo pessoal e transpessoal. O homem era considerado não
como sujeito pensante, mas como local do pensamento, lu-
gar do inteligível” (De Libera, 1991: 141).
Os latinos medievais teriam aprendido com Al-Kindi e
Farabi que
“[...] o pensamento podia ser um progresso cotidiano, uma
assimilação progressiva, dito de outra forma, um trabalho e,
em última análise, uma santificação. Os pensadores latinos
aprendiam assim a considerar o exercício do pensamento
como uma ascese, a ‘espiritualizar’ o ideal aristotélico da
sabedoria contemplativa em uma espiritualidade do traba-
16. Com exceção de Averróis.
O QUE É UM INTELECTUAL? 37
lho intelectual. Ao aprender dos árabes em geral a existên-
cia de uma ‘esperança filosófica’ [...], eles ascendiam à idéia
de que havia lugar na terra para uma vida bem-aventurada,
uma vida do pensamento, antecipando a visão beatífica pro-
metida aos eleitos na pátria celeste.
17
Deviam a eles assim “a idéia de que a atividade do
pensamento é também um crescimento da alma no ser, tese
nova que, proporcionando ao trabalho intelectual sua du-
pla dimensão de labor e de contemplação, impunha uma
redefinição do ideal da sabedoria” (De Libera, 1991: 140).
E é certo que, embora essas influências fossem adquirir um
tom mais radical entre os artistas heterodoxos, estavam
também presentes entre outros pensadores, como Alberto
Magno
18
.
Intelectocratas
Os aristotélicos heterodoxos da faculdade de artes de
Paris sofrem censuras universitárias, as de 1277 em par-
ticular, devido à sua pretensão de reviver um antigo ideal
ético, próprio aos filósofos, no seio da corporação universi-
tária. Agora, a “filosofia não era mais considerada abstrata-
mente, como ‘vã curiosidade’ parasitando o espírito dos clé-
rigos, mas concretamente, como um conjunto articulado de
decisões relativas ao mundo, ao lugar que nele ocupava o
homem e à ética daí extraída” (De Libera, 1991: 178). E os
valores que integravam esse ideal ético não se opunham,
17. De Libera, 1991: 141.
A “esperança do filósofo” é uma expressão vinda de Averróis, que a tomou
de Farabi. O que o filósofo desejaria e aguardaria, nesta existência, seria a união
com o intelecto agente separado, um êxtase natural e cósmico. Ver De Libera,
1991: 387, nota 42.
18. A teoria do intelecto adquirido proposta por santo Alberto Magno pos-
tulava que o indivíduo conquistava, por seu trabalho e esforço, com a ajuda do
Espírito Santo, sua própria essência, atualizando seu intelecto, dedicando-se a
uma vida de estudos.
38 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
necessariamente, aos valores cristãos, mas de algum modo
com eles concorriam por justificarem de modo diverso com-
portamentos similares. Havia uma espécie de assimilação
de temas da moral cristã para o domínio da filosofia, dan-
do-lhes outra justificativa, assim como a transposição de te-
mas filosóficos para terrenos diferentes daquele em que eram
tratados em sua origem.
Assim, por exemplo, ao dar sentido filosófico à apolo-
gia da castidade, Siger de Brabante argumentou utilizando
um tema aristotélico: o do egoísmo virtuoso. O egoísta vir-
tuoso, sinônimo de filósofo, seria o que “se identifica com a
parte mais nobre de si mesmo: o intelecto, o pensamento”,
uma vez que cada “homem é seu próprio intelecto”. Ape-
nas ele seria realmente livre e nobre, porque, ao “obedecer
apenas às determinações de seu intelecto, obedece a si mes-
mo”. Associada a essa concepção viria, então, a defesa de
“uma nobreza do intelecto, superior à nobreza do sangue”,
concepção que muito deve à idéia averroísta da elite filosó-
fica.
19
Em meio aos aristotélicos heterodoxos da Universi-
dade de Paris, afirma-se um ideal “intelectocrata”, “uma elite
que deve sua dignidade não a privilégio ou condição hie-
rárquica, mas a uma superioridade intelectual” (Lohr,
1992: 91).
A idéia do egoísmo virtuoso seria também acompanha-
da por outro aspecto da ética aristotélica: o da amizade vir-
tuosa. Para chegar à
“[...] plenitude filosófica da vida individual, o homem deve
ser absolutamente ele mesmo, isto é, como vimos, “viver se-
gundo o que há de melhor nele”: o pensamento. Esse
engajamento intelectual é a decisão filosófica por excelência,
o ato supremo de virtude. Ora, o homem não pode viver o
pensamento sem comunicação [...]. Tendo consciência de sua
própria bondade, o egoísta virtuoso tem necessidade de “par-
ticipar também da consciência que seu amigo tem de sua
19. Cf. De Libera, 1991: 225-227; Lohr, 1992: 80-98.
O QUE É UM INTELECTUAL? 39
própria existência”. Necessita portanto de “viver com ele”,
de ‘partilhar discussões e pensamentos’” (De Libera, 1991:
239).
Além de uma “alternativa filosófica” ao ideal cristão
da castidade, apresentava-se assim também uma “alternati-
va” à caridade cristã.
“A pretensão dos filósofos contemplativos a uma dignidade
de vida igual às mais elevadas virtudes da vida monástica
impunha um problema corporativo aos teólogos. [...] A idéia
de uma corporação de egoístas — os magistri artium — só
podia causar embaraço à hierarquia eclesiástica. Era uma con-
tradição de termos, mas uma contradição operativa, minan-
do concretamente a universidade cristã. Ao eliminar a dis-
tância entre mendicantes, seculares e leigos, a reivindicação
dos “filósofos” apresentava um problema novo ao cristia-
nismo: o do intelectual em meio cristão (De Libera, 1991: 237).
A utopia universitária
Um dos aspectos mais interessantes desse processo foi
o de que, ao fazer da Universidade o espaço em que se po-
deria conduzir uma vida orientada para o ideal de atingir a
contemplação intelectual, transformavam-na em utopia.
Além disso, aqueles que postulavam a exaltação da vida fi-
losófica transpunham para o espaço da Universidade — lu-
gar de exercício de seu ofício — algo que, para os primeiros
formuladores do ideal da contemplação, da sabedoria
teorética, da amizade perfeita entre filósofos, só era compa-
tível com o domínio do ócio. A vida universitária se confun-
de com o ócio de Aristóteles, pois o estudo “é um tempo
para a virtude egoísta e a amizade que ela demanda [...],
considerada com os olhos de um “aristotélico”, a universi-
dade medieval é antes de tudo um lugar e um laço de con-
templação (De Libera, 1991: 240-241).
Na verdade, segundo essa concepção, a atividade do
pensamento, o conhecimento, não deixava de ser um tra-
40 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
balho, mas um trabalho capaz de liberar, à diferença da-
quele que escravizaria o homem à matéria, o trabalho ser-
vil. A relação entre sabedoria e conhecimento, entre con-
templação e trabalho, é redefinida, e os intelectuais/filó-
sofos são membros “de uma sociedade de homens reuni-
dos para viver juntos uma moral, um trabalho e um ideal”
(De Libera, 1997: 8). E a junção do ideal filosófico da “feli-
cidade intelectual” com a ética corporativista transforma
essa “felicidade” em profissão. É tendo em vista essa pos-
sibilidade que fazem sentido as “interrupções de carrei-
ra”, mediante as quais alguns mestres em artes escolhem
permanecer na faculdade de artes, no que seria o estágio
preparatório para os demais cursos, apesar das dificulda-
des materiais decorrentes dessa opção. Vários desses mes-
tres “voluntariamente se eternizaram numa situação —
um ‘estado’ (status) — do qual a pobreza e a ausência de
perspectivas os devia normalmente afastar” (De Libera,
1991: 12). Chegando a fazer propaganda da força dessa
sedução, eles:
“souberam lhe dar um slogan que expressava o término es-
perado de uma carreira de professor e o fim desejado de uma
ascese intelectual: ibi statur, “aí permaneçamos”. Alcançada
a filosofia, deve-se manter nela; não há por que ir além do
sabor (sapor) da sabedoria (sapientia)” (De Libera, 1991: 147).
Não é surpreendente que a retomada de concepções
do pensamento grego não tenha contribuído para apagar a
distância entre trabalho manual e trabalho intelectual. O sur-
preendente é terem, por outro lado, associado o caminho de
busca da beatitude perfeita ao exercício de uma profissão; a
corporação universitária ser vista como o lugar em que se
poderia conduzir uma vida “definida por um privilégio re-
almente extraordinário: a possibilidade de abolir institucio-
nalmente a distância que separa o otium do negotium”. Como
uma estrutura social em que o “estudo é lazer” e “a vida
pode ser inteiramente dedicada ao prazer da dificuldade”
(De Libera, 1991: 242).
O QUE É UM INTELECTUAL? 41
Os aristotélicos heterodoxos postulam uma concepção
de nobreza que buscava distingui-la da nobreza tradicio-
nal. Tratava-se não de uma nobreza de sangue, mas de uma
nobreza adquirida por um esforço pessoal: o “filósofo” se
enobrecia por uma superioridade intelectual, em razão da
escolha por viver segundo o intelecto e pela virtude a ela
correspondente, pois
“a filosofia se atesta na maneira de viver e de desejar. Ainda
que insistindo em falar dos rigores de sua condição, os “po-
bres mestres e estudantes da universidade de Paris” vivem
como antigos aristocratas e cantam até os prazeres da absti-
nência — ou, melhor dizendo, da abstenção — egoísta. A
universidade é uma instituição de pobreza onde se ganha a
vida com dificuldades, mas é nesse lugar de miséria que se
goza a alegria da emulação e do reconhecimento, o charme
da virtude” (De Libera, 1991: 242).
Tratava-se, em essência, do ideal de uma “aristocracia
intelectualista desinteressada”, deixando sua marca indelével
na vida universitária. Ainda que seja evidente que esse ideal
não impediu uma evolução no sentido de uma integração dos
professores universitários a classes privilegiadas ou de um com-
prometimento do ensino com esses grupos.
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42 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
LOHR, Charles. The Medieval Interpretation of Aristotle. In:
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RASHDALL, Hastings. The Universities in the Middle Ages (ed.: F.
M. Powicke e A. B. Emden). 2. ed. rev. Oxford, Oxford
University Press, 3 v., 1936.
CAPÍTULO 2
SOLIDÃO E LIBERDADE:
notas sobre a contemporaneidade de
Wilhelm von Humboldt
Roberto S. Bartholo Jr.
para Helmut Schelsky
A Revolução Francesa introduziu no panorama histó-
rico-cultural do Ocidente a tensão dinâmica de um
“dualismo trágico” entre o individualismo radical dos “di-
reitos humanos” e sua institucionalização na figura burguesa
do “cidadão”
1
. E esse contexto incide de modo marcante
sobre a questão da Universidade e de seu lugar na organi-
zação da cultura.
Wilhelm von Humboldt foi um pensador que
vivenciou, do modo mais típico, a angústia dessa tensão di-
nâmica como um verdadeiro dilema existencial. Seu con-
1. Para um aprofundamento, ver R. Haerdter, Der Mensch und der Staat,
prefácio ao livro de W. v. Humboldt, Ideen zu einem Versuch die Grenzen der
Wirksamkeit des Staats zu bestimmen, Stuttgart, 1978.
44 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
texto histórico-biográfico foi o da hegemonia do “despotis-
mo esclarecido” em sua pátria, a Prússia, afetada fortemen-
te pelo “terremoto político” da Revolução Francesa.
Aos 24 anos de idade, em 1792, Wilhelm demitiu-se do
cargo de funcionário público do governo prussiano. Com
isso, visou mais que apenas o afastamento de uma função
que lhe parecia bloquear a criatividade. Colocava, diante de
si, a possibilidade de realizar um verdadeiro “ajuste de con-
tas” filosófico com o próprio Estado moderno, cuja emer-
gência se desenhava nos horizontes do Iluminismo euro-
peu. E foi isso que ele buscou expressar numa significativa
obra, cujo longo e desajeitado título aponta nitidamente a
natureza do problema: Idéias para uma tentativa de se determi-
nar os limites da efetividade do Estado.
Toda a empatia de Wilhelm von Humboldt para com a
Revolução Francesa ficava obscurecida pelo temor de que o
ideário iluminista incorporasse ao otimismo incondicional
de sua crença no progresso uma crença na onipotência da
instituição estatal. Em outras palavras: ele quer resgatar do
humanismo idealista uma noção de liberdade que não se
deixe sujeitar à perversão do terror totalitário. A liberdade
que Humboldt prega para a pessoa não é a liberdade do
arbítrio individualista feito um fim em si mesmo. Ela é a
liberdade como condição de possibilidade para a forma-
ção da autonomia ética da pessoa. Com isso, fica recolocada
a questão ética no centro da questão política. E Humboldt
consegue expor o nervo do “dualismo trágico”: o risco de
que o ideário iluminista se perverta na requisição de uma
nova forma de sacrifício ritual da pessoa em novas formas
de servidão.
Para Humboldt, as leis do Estado não são, em si mes-
mas, expressão da virtude. As prescrições do Estado mo-
derno introduzem imposições ou hábitos de que as pessoas
“esperem sempre mais ensinamento alheio, direção alheia,
ajuda alheia do que elas próprias concebam caminhos alter-
SOLIDÃO E LIBERDADE 45
nativos”
2
. Sob o seu Império, o Estado passa a se igualar “a
uma multidão de ferramentas animadas e inanimadas, e não
uma multidão de forças ativas e sensíveis”
3
. Configura-se,
assim, o sacrifício da autonomia ética da pessoa diante do
aparato anônimo de controle. Emerge a existência massifi-
cada, a serviço da operação eficiente de um dispositivo de
controle e diferenciação funcional. Nesse processo, a
burocratização das estruturas modernas de poder é, para
Humboldt, a contrapartida organizacional da mecanização,
impondo seu ritmo às atividades econômicas e políticas.
Para Wilhelm von Humboldt, a eliminação da forma-
ção ética da pessoa na modernidade decorreria da perver-
são da liberdade pela homogeneização e uniformização das
situações. Para ele, a liberdade de ação esvazia-se de con-
teúdo existencial, quando se deixa sujeitar a uma pré-
moldagem institucional, que elimina a diversidade de situ-
ações com as quais as pessoas são confrontadas. Assim, a
reflexão humboldtiana remete à questão da educação cien-
tífico-tecnológica e ao lugar da Universidade na organiza-
ção da cultura.
4
E essa remessa, no contexto político-univer-
sitário alemão do início do século XIX, implica a considera-
ção de quatro tendências predominantes. Eram elas:
1. A Universidade tradicional, corporativista, conser-
vadora, dissociada de pesquisas empírico-sistemá-
ticas, centrada na transmissão dogmática do conhe-
cimento por meio de um sistema de ensino estático,
uma espécie de “missa do intelecto”, que se recusa a
incorporar um compromisso com o pragmatismo
utilitarista.
2. O projeto pedagógico iluminista radical, que vê na
atividade científica a fonte geradora de “conheci-
2. Ver W. v. Humboldt, op. cit. na nota 1, p. 32.
3. Ver W. v. Humboldt, op. cit. na nota 1, p. 48.
4. Para um aprofundamento, ver H. Schelsky, Einsamkeit und Freiheit. Idee
und Gestalt der deutschen Universität und ihrer Reformen, Reinbek bei Hamburg,
1963.
46 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
mentos úteis”, sistematizados em enciclopédias, que
codificam o saber científico-empírico tecnologica-
mente instrumentalizável. A Universidade transmu-
ta-se em escola científico-profissionalizante especia-
lizada de nível superior, expressão maior de um sis-
tema estatal integrado de ensino.
3. O projeto pedagógico iluminista reformista que com-
partilha da ênfase utilitarista do Iluminismo radical
quanto ao dever-ser da prática científica, mas não
vê nas universidades apenas peças de museu a se-
rem superadas pelo novo sistema estatal integrado
de ensino. O que se propõe é a busca de um “com-
promisso pragmático”, que adapte aos novos impe-
rativos uma instituição universitária reformada.
4. O projeto universitário humboldtiano exemplificado
na fundação da Universidade de Berlim, que deve
ficar claro, não teve objetivo reformista. O que se
visou foi a criação de algo novo, que se diferencias-
se tanto da universidade tradicional, como do pro-
jeto utilitarista-iluminista.
Os planos para a criação da nova Universidade perma-
neceram nas gavetas da burocracia estatal prussiana até a
derrota da Prússia para os exércitos napoleônicos (1806-
1807). Todos os territórios a oeste do Elba caíram sob domí-
nio de Napoleão, e, com eles, diversas universidades como
as de Duisburg, Paderborn, Erlangen, Erfurt, Münster,
Göttingen e Halle, a principal universidade reformista-
iluminista. Nesse novo quadro, em 16 de agosto de 1809,
Frederico Guilherme II assina o decreto de fundação da nova
Universidade de Berlim.
Wilhelm von Humboldt tem papel fundamental nesta
fundação. Ele vai moldar a idéia-diretriz de um novo proje-
to universitário, em conformidade com o humanismo idea-
lista de Schiller, Schelling e Fichte, a “formação ética da pes-
soa através de uma ciência que se compreende a si mesma
SOLIDÃO E LIBERDADE 47
como filosofia”. Esta concepção, enraizada no idealismo fi-
losófico alemão, busca pensar o contexto global da vida e do
mundo “como um produtivo pensar-se a si mesma da ver-
dade em sua generalidade, que se liberta das autoridades e
fins imediatos do saber, para se constituir numa auto-refle-
xão que reconstrói a totalidade do mundo como consciência
de princípios”
5
. Esse ideal vincula a atividade científica a
uma correspondência ética com a vida, de modo que, nas
palavras de Fichte, “o filósofo possa ser o eticamente virtu-
oso”.
Para a perspectiva humboldtiana a autonomia univer-
sitária é o espaço institucional de uma “solidão e liberda-
de”, que é também pressuposto para que se atinja aquele
ponto “onde pensamento e realidade se encontram e volun-
tariamente se transformam”
6
. São uma “solidão e liberda-
de” dirigidas polemicamente contra um claro opositor, que
não é mais a “missa do intelecto” ministrada nas universi-
dades tradicionais, mas sim a escola científico-profissiona-
lizante especializada, de nível superior, em que a universi-
dade iluminista escolarizada tendia a se constituir.
O projeto humboldtiano se afirma como espaço
institucional de uma formação ética da pessoa por uma ciên-
cia que se compreende a si mesma como filosofia, e se afir-
ma polemicamente contra a “cegueira auto-reflexiva” de uma
Universidade que se escolariza segundo critérios de utili-
dade e especialização, fixados pela sociedade civil burgue-
sa ou pela burocracia estatal. A palavra ética não é entendi-
da na perspectiva humboldtiana como a mera expressão
dogmática de um código de ação moralizante. Ela é sim a
expressão da busca de uma correspondência normativa da
vida, a permanente autoconstrução da pessoa, cuja autono-
mia espiritual requer a “solidão e liberdade” como metáfo-
ras da “destutelarização do intelecto”, condição de possibi-
5. Ver H. Schelsky, op. cit. na nota 4, p. 67.
6. Palavras do discurso de W. v. Humboldt na Academia de Ciências de
Berlim, em janeiro de 1809, citado por H. Schelsky, op. cit. na nota 4, p. 9.
48 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
lidade para toda ação apta a ter no mundo, segundo a ex-
pressão de I. Kant, “o material do dever”. Agir eticamente
fazendo do mundo o material do dever é para Humboldt o
fim último da formação universitária estruturada para
“metamorfosear tanto mundo quanto possível na própria
pessoa [...] pela vinculação de nosso eu com o mundo para
as mais gerais, provocantes e livres relações”
7
.
Nesse ponto, interrompo o encadeamento desta expo-
sição para uma breve polêmica comigo mesmo. Que senti-
do pode ter minha insistência em afirmar a “contemporanei-
dade” desse velho autor prussiano, cujo projeto universitá-
rio, na Alemanha de hoje, subsiste apenas de modo frag-
mentado e impotente? Lá, a reverência para com o projeto
universitário humboldtiano tornou-se um ritual oco e unâ-
nime, não sendo pouco significativo que a extinta Alema-
nha comunista tenha mantido, durante toda sua existência,
o nome “Wilhelm von Humboldt Universität” para desig-
nar a universidade de Berlim Oriental.
Passemos em revista alguns dos pressupostos básicos
dessa imagem-diretriz ideal, por século e meio hegemônica
em meio aos povos germânicos:
1. A liberdade de ensino e aprendizagem de profes-
sores e estudantes. Humboldt vincula, em seu “pla-
no organizacional”, essa liberdade a uma diferenci-
ação essencial: entre as escolas superiores e a Uni-
versidade. Nas escolas, os docentes lá estão para os
estudantes. Na Universidade, ambos estão conjunta-
mente confrontados com a ciência pura. A liberdade
de ambos é um privilégio diante de todas exigências
pragmáticas da aprendizagem e da formação da pes-
soa. Se hoje fôssemos aplicar, de modo estrito, os exi-
gentes critérios humboldtianos, a imensa maioria das
7. Ver W. v. Humboldt, “Theorie der Bildung des Menschen”, in Gesammelte
Schriften, Academia Prussiana de Ciências, 1903, v. 1, p. 283-284, citado por H.
Schelsky, op. cit. na nota 4, p. 81.
SOLIDÃO E LIBERDADE 49
universidades não seria mais que centros escolares
de formação profissional cientifizada. Um reconhe-
cimento tão drástico não deve ofuscar, no entanto, o
fato de que, mesmo nas universidades alemãs do
século XIX, um enquadramento pleno nos critérios
humboltianos talvez só fosse observado nas facul-
dades de filosofia.
2. A unidade de ensino e pesquisa. No tempo de
Humboldt, essa exigência era de fato uma realida-
de. Basta considerarmos que obras decisivas de
Fichte, Hegel e Schelling foram inicialmente produ-
zidas como material de Vorlesungen (aulas expo-
sitivas sob a forma de leituras em auditório). Hoje
isto se revela uma impossibilidade, quando nos di-
ferentes campos de conhecimento os problemas da
pesquisa passam a ter como pré-condição de com-
preensão um curso acadêmico completo. A fórmula
humboldtiana se esvazia de sentido e se reduz à
questão de se os pesquisadores, além de pesquisar,
também não seriam os melhores professores, por
terem melhores condições de “traduzir” pedagogi-
camente os resultados das mais novas investigações.
Uma questão que de modo algum se pode respon-
der com um simples sim.
3. A unidade da ciência na filosofia. Este pressuposto
humboldtiano já foi destruído faz tempo pelo pro-
gresso das ciências realizado na especialização. A
pretensão de sintetizar o conjunto do saber científi-
co e de reduzi-lo a um denominador comum filosó-
fico não é mais considerada, hoje, um legítimo obje-
tivo de pesquisa da ciência moderna. Salvaguardar
a unidade da ciência, tarefa central no projeto
humboldtiano, parece transformar-se em quixotes-
ca batalha contra moinhos de vento, agora que a fi-
losofia perdeu sua posição-chave no interior dos sa-
beres universitários.
50 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
4. A formação ética da pessoa pelo valor pedagógico
da ciência. Todo o anteriormente exposto solapa, de-
cisivamente, as bases do pensamento nuclear da con-
cepção de Universidade humboldtiana: Humboldt
estava convicto de que uma praxe científica em “so-
lidão e liberdade” assegurava uma conformação
normativa da vida, por ele designada “formação ética
da pessoa na ciência”. A ciência que hoje ensinamos
em nossas universidades não parece corresponder a
isso. Atribuir-lhe uma “potência etizante” da vida
seria mais que uma enganosa ilusão, seria uma ver-
dadeira empáfia. Mas se hoje a formação científica
não pode ser imediatamente identificável com uma
“etização do caráter da pessoa”, tampouco devemos
desistir de toda e qualquer tentativa de dar ao vín-
culo entre ciência e vida aquela efetividade que
Humboldt queria associar à “idéia moral”. Hoje, con-
frontados com uma cientifização “infinita” da praxis,
podemos, pelo menos, não abrir mão da tentativa
de unir os efeitos da cientifização com as virtudes
da cientificidade: modéstia, prudência, objetivida-
de, crítica e autocrítica. Isso permanece parte
vinculante da pedagogia da razão “razoável”. E jus-
tamente “razoável” por não pretender fazer da
objetivização do racional a única razão de ser de toda
realidade.
5. Culturalismo. Idéia fundamental para a concepção
humboldtiana de universidade é que a vida espiri-
tual da ciência repousa em si mesma, e que nessa
autonomia como cultura deve ser promovida pelo
Estado. Contra o dirigismo protecionista do Iluminis-
mo prussiano, Humboldt afirma a irredutível liber-
dade da pesquisa e da formação da pessoa na ciên-
cia. Mas essa concepção de uma ciência autônoma
perante os poderes estatais, políticos e econômicos
não parece conseguir se sustentar. A contemporâ-
nea “tecnociência” é um decisivo meio político de
SOLIDÃO E LIBERDADE 51
poder, um essencial meio econômico de produção.
Ela de tal maneira se imbrica nas estruturas políti-
cas e econômicas que se torna ilusório pretender
isolá-la como um fato circunscrito a um supostamen-
te autônomo domínio da cultura.
6. Nacionalismo. Dimensão, hoje silenciada, da con-
cepção universitária de Humboldt é a idéia nacio-
nal. A universidade alemã dos séculos 19 e 20 não é
compreensível sem ser referida ao fundamento po-
lítico do nacionalismo. Ela partilhou essa idéia até
seu amargo fim no nacional-socialismo. Mas o pró-
prio “nacionalismo universitário” humboldtiano
deve ser visto no contexto de um “projeto” mais do
que de uma realidade dada. Humboldt não preten-
de com a fundação da Universidade de Berlim “o
melhor para a Prússia”, e sim “o melhor para a Ale-
manha”. Essa Alemanha era, então, “uma coisa po-
liticamente ainda não existente”. E de certo modo
vivemos hoje um certo paralelismo entre um ideal
universitário, que se deslocava dos particularismos
dos principados para um Estado nacional, e um novo
ideal universitário, que se desloca do Estado nacio-
nal para o horizonte planetário. Por fim, é impor-
tante apontar que, neste contexto, Humboldt uniu a
exigência de uma ampliação do horizonte social da
ciência com a exigência de liberalidade e de supera-
ção da tutela política das universidades. Em parti-
cular, Humboldt criticou a proibição do estudo em
universidades estrangeiras promulgada pelo rei da
Prússia, expressando seu desejo de que fosse “for-
malmente superada, pois ela colide com a liberali-
dade que deve reinar em todas as coisas científicas”
8
.
Como reconhecer a importância desse vulto histórico
que, em 1967, completaria 200 anos de nascimento? Será que
8. Ver H. Schelsky, op. cit. na nota 4, p. 94.
52 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
temos de reconhecer a férrea contradição de, por um lado,
louvar sua contribuição para o desenvolvimento da ciência
e da cultura na Alemanha moderna, e, por outro, dar “adeus
a Humboldt” como condição do progresso da ciência e da
cultura em nosso mundo de hoje?
Não é essa nossa posição.
Mas nos parece, antes de mais nada, necessário reco-
nhecer que não nos interessam primordialmente as soluções
humboldtianas, em sua contingência histórica, corporifi-
cadas numa forma institucional específica: um modelo uni-
versitário.
O que nos interessa é o possível paralelismo histórico
das tarefas diante das quais Humboldt se colocou e arriscou
uma resposta, e aquelas diante das quais nos colocamos. E,
também, o reconhecimento de que talvez a imagem-diretriz
ideal com que ele solucionou os problemas de seu tempo/
espaço siga sendo um pertinente ponto de apoio para tenta-
tivas de discernimento de problemas de nosso tempo/es-
paço. Ou, expressos nos termos do idealismo alemão do sé-
culo XIX: nossa questão é saber se somos capazes de reali-
zar a idéia humboldtiana em novas formas institucionais.
A situação com que Humboldt se defronta em 1809 é
uma em que o Estado e a sociedade do Iluminismo se incli-
navam inteiramente, em nome do progresso econômico, téc-
nico e social, para uma formação profissionalizante, prag-
mática e cientifizada. O movimento em prol de um saber
prático útil impulsiona a reforma da Universidade tradicio-
nal, transformando-a numa escola superior especial para
formação profissional. Ao utilitarismo iluminista (hoje dirí-
amos ao funcionalismo científico) contrapõe Humboldt um
aprofundamento espiritual apoiado na referência ético-ideal
à ciência que cria uma nova Universidade. A imagem-dire-
triz dessa Universidade funda-se numa decisão contra a ciên-
cia pragmática e a favor da ciência pura. O surpreendente foi
que, precisamente por meio dessa decisão, a universidade
gerou, no século XIX, um novo servidor público estatal aca-
SOLIDÃO E LIBERDADE 53
demicamente formado, com um perfil de competência e uma
ética profissional até então desconhecidos.
Hoje muito mudou. Mas continuamos defrontados com
dois desafios: (1) a necessidade de formação profissional para
uma camada cada vez mais ampla de empregos científico-
técnicos; e (2) o aprofundamento da pesquisa voltada para
aplicações imediatas segundo critérios industriais de pro-
dutividade nos campos da economia, da técnica e das ativi-
dades militares. Diante desses desafios, a teoria contempo-
rânea da sociologia do conhecimento, propondo o
enquadramento da produção científica nos cânones da ra-
cionalização do trabalho, ainda reconhece pelo menos uma
questão de sabor humboldtiano como estrategicamente
nevrálgica: a “criatividade” dos pesquisadores, de certo
modo a “última relíquia” de um grande projeto e o padrão
organizacional com ela congruente.
No projeto universitário humboldtiano, professores e
estudantes são pessoas em permanente aprimoramento de
virtudes, não em simples acumulação quantitativa de co-
nhecimentos. O decisivo não é o quanto alguém sabe/do-
mina, mas sim que postura assume na permanente busca
das verdades. Não é em torno da “posse da verdade” que a
universidade deve se organizar como uma mera instituição
especializada de ensino, mas em torno da busca de verda-
des, como espaço institucional de aprendizagem. A
escolarização da Universidade pretende fazer da liberdade
de ensino, e não da liberdade de aprendizagem, o cerne da
questão da autonomia universitária. Mas somente a liber-
dade de aprendizagem é compatível com a perspectiva
humboldtiana de uma “ciência com consciência”, para a qual
o estudo não é a mera transmissão de saberes estruturados,
mas sim um compartilhar de uma forma existencial, um ser
onde saberes se inserem. E o caminho para se compartilhar
esse ser é o diálogo socrático.
Humboldt via “a solidão e a liberdade” como as condi-
ções de realização de sua universidade. Isto pode ser tradu-
54 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
zido como os meios de realização do que Max Weber cha-
mou de “a ciência como vocação”, ou, mais contemporanea-
mente, nas palavras de um mestre que tive a alegria de co-
nhecer, Helmut Schelsky: “a exigência de concentração, de-
dicação integral, autodeterminação e responsabilidade na
fixação de objetivos e aplicações da pesquisa universitária
por parte de docentes e pesquisadores”.
Mas será possível e legítimo pretendermos hoje a “so-
lidão e liberdade” humboldtianas? O entrelaçamento da
praxis científica com tecnologia, economia, sociedade, Esta-
do, militar parece tornar tal pretensão uma impossibilida-
de. No entanto eu gostaria de afirmar que essa aparente im-
possibilidade não é um fato novo. Ela já existia em 1908.
Diante desse “fato velho”, o “fato novo” foi o projeto uni-
versitário de Humboldt. Assim, fazendo tardio eco aos mu-
ros de 1968, podemos dizer: ser razoável (não apenas racio-
nal) é tentar o impossível como horizonte da vocação, e ser
apenas racional é resignar-se ao cálculo utilitarista das con-
seqüências de cursos alternativos de nossas ações.
Humboldt introduz uma nova relação entre a Univer-
sidade (e com isso a ciência) e o Estado. A solução
humboldtiana assegurou a autonomia da ciência dentro do
quadro hegemônico do sistema político do século XIX na
Prússia. Hoje sua solução, fundada na autonomia da “cul-
tura” com respeito ao “Estado”, revela-se insustentável. A
autonomia da Universidade contemporânea está imersa no
campo de tensões de forças políticas, econômicas e milita-
res. Não está salvaguardada numa suposta autonomia da
cultura. Assegurar a autonomia universitária pressupõe,
hoje, a autocompreensão da ciência como força política,
interlocutora ativa das instituições da sociedade civil, do
Estado e da economia. Assim, num eco muito mais tardio
ainda aos esforços socráticos por salvar a “razoabilidade da
razão” do naufrágio do relativismo sofista, podemos dizer:
a ciência verdadeiramente livre é o conhecimento do Bem
numa contínua busca amorosa, que se traduz em compro-
misso com a vida.
SOLIDÃO E LIBERDADE 55
Humboldt via a diferenciação da Universidade com res-
peito às instituições “escolares” de ensino como um princí-
pio fundamental. Parece que estamos agora diante da mes-
ma tarefa. Mas a linha demarcatória deslocou-se para o in-
terior da própria Universidade. O deserto da escolarização
cresce, tomando quase que inteiramente os espaços dos cur-
sos de graduação. A “solidão e liberdade” humboldtianas
parecem circunscrever-se a alguns espaços minguantes da
pós-graduação em sentido estrito, dos cursos de mestrado
(cada vez menos) e doutorado (poucos). Esses “oásis” no
deserto universitário são os campos férteis que nos restam
para o florescimento daquela que talvez seja a mais esque-
cida das exigências da idéia universitária de Humboldt: a
união da ciência com a Geselligkeit, uma velha palavra ale-
mã em desuso que podemos, talvez, traduzir por “conviven-
cialidade”, uma atividade conjunta não-condicionada pela
eficácia e sim fundada em livres-associações, afinidades
eletivas e fruição do prazer vocacional, elementos irre-
dutíveis aos critérios utilitaristas da eficiência apenas ins-
trumental.
A segunda metade do século XX assistiu a uma suces-
são de transformações na estruturação das universidades
como centros produtores e difusores de conhecimento. Uma
estrutura gerencial matematicamente controlável foi
superposta, em nível planetário, às universidades “tradici-
onais”. E essa estrutura se apóia sobre três elementos de base,
transpostos de seu contexto originário norte-americano: o
departamento, o currículo e o campus. Sobre esse tripé se cons-
truiu a “grande transformação transnacional” das universi-
dades, que doravante devem se tornar “fábricas que repro-
duzem o exato tipo de know-how necessitado pela civiliza-
ção tecnológica”
9
. O resultado é uma sistemática desqualifi-
cação dos conhecimentos das culturas regionais. Como apon-
ta H. A. Steger, essa desqualificação é o inverso da qualifi-
9. Ver H. A. Steger, The University and Technological Independence, in H.
A. Steger (ed.). Alternatives in Education, Munique, 1984, p. 554.
56 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
cação profissional que prepara o indivíduo para desempe-
nhar tarefas ‘superiores’: ela o prepara para tarefas
crescentemente subordinadas e subalternas.
Os departamentos são as unidades operacionais das “uni-
versidades/fábricas”. Os professores são as ferramentas-
agentes de uma “linha de montagem” (o currículo), mas ao
mesmo tempo representam os produtos finais de tal linha.
Na operacionalização departamental dos “currículos/linhas-
de-montagem os estudantes são a matéria-prima a ser trans-
formada, cujo estado futuro é espelhado diante deles nas
figuras dos professores, como “ferramentas preparadas para
produzir cérebros para profissões específicas”
10
. Resulta da
“grande transformação transnacional das universidades” a
“desqualificação provincializante do intelecto”, adestrado
para ser “algo utilizável exclusivamente para aquele fim para
o qual a linha de montagem está ajustada”.
11
O processo revela uma de suas facetas perversas, se con-
siderarmos o sucateamento de cérebros descartáveis pelo
sempre mutável horizonte de “empregabilidade” das socie-
dades industriais. É uma opção economicamente racional
(ou seja, mais lucrativa) empregar um novo cérebro, treina-
do segundo os últimos requisitos do progresso tecnológico,
do que manter por tempo indeterminado empregado um
cérebro obsoleto, ou arriscar-se a “reciclá-lo”. Soma-se a isso
o fato de que os postos de trabalho para os cérebros
prestadores de serviços industrial-produtivamente úteis são
minguantes, se considerarmos a possibilidade de uma con-
tínua transposição das funções rotinizadas para circuitos
cibernéticos de controle informacional.
As idéias que vinculavam a formação profissional-uni-
versitária com a formação ética da pessoa, identificando na
educação um verdadeiro processo de “transmutação
alquímica” da personalidade, parecem relíquias do passa-
10. Ver idem, p. 555.
11. Ver idem, p. 555.
SOLIDÃO E LIBERDADE 57
do. Ou, numa imagem menos gentil, restos de um cadáver
insepulto. Mas como não nos deixam esquecer alguns pen-
sadores “resistentes”, “na Europa do século XVIII (e antes
dele), as escolas em todos os níveis eram estimadas como
‘minas’ produzindo o ‘ouro da razão’”
12
. E esse ‘ouro da ra-
zão’ era produzido pela superação da ingenuidade pré-cien-
tífica, num processo gradual que devia necessariamente in-
cluir em si a elevação ético-moral do aprendiz, a repressão
de crenças irracionais patéticas e a preservação da coesão
social.
Se quisermos atualizar essa proposição, devemos reco-
nhecer que a ingenuidade que necessitamos hoje urgente-
mente superar deixou de ser pré-científica. Ela se fundamen-
ta na trivialização da tecnociência, popularizada pelas men-
sagens “explicativas” ou “prospectivas” da media e pelas
aplicações cotidianas, como uma estrutura existencial de
referência da vida moderna. Recuperar a possibilidade de
uma elevação ético-moral do aprendiz requer sua
destutelarização com respeito à “trivialização” do humano
pela interface tecnológica
13
, a repressão da crença
“salvacionista” nos poderes da tecnociência, e a prudente e
zelosa preservação da sustentabilidade da síntese social de
uma civilização científica.
Atualizar, para o mundo contemporâneo, a transmu-
tação alquímica do “ouro da razão” requer desenvolver na
pessoa do aprendiz a aptidão para desvelar o jogo
“trivializante” que se joga na “interface tecnológica”. Re-
quer nomear seus agentes. Requer identificar quem são os
“senhores da globalização contemporânea”. Quem perde e
quem ganha. E não fazer de um estado de coisas uma inelu-
tável força do destino e, no exercício dessa confrontação éti-
ca, “recordando a fórmula socrática, poderia ser dito que
hoje, mais que nunca antes, a educação da pessoa necessita
12. Ver idem, p. 556.
13. Para um aprofundamento, ver J. P. Dupuy e J. Robert, La Trahison de l’
Opulance, Paris, 1976.
58 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
uma forma de ‘ironia tecnocientífica’, sem a qual a pessoa
não seria capaz de sobreviver como um intelecto indepen-
dente, mas seria ‘trivializado’, feito um cérebro
descartável”
14
.
É claro que as “reformas” em curso visando o aprimo-
ramento do desempenho das universidades/fábricas visan-
do uma integração competitiva no mundo da globalização
contemporânea não promovem qualquer “ironia tecnocien-
tífica”. Isso implicaria reconhecer e reafirmar uma primor-
dial independência do conhecimento, sua autonomia com
respeito as imposições da “razão de mercado”, da “razão de
Estado” ou qualquer eco ao “discurso da servidão voluntá-
ria” (E. de la Boétie).
H. Lefèbvre
15
, em meio à Revolta de 1968, advertia aos
portadores de uma certa miopia contestatória, de suposta
raiz marxista, que a lógica formal não é uma mera forma
superestrutural, perecível junto com a “morte” de relações
estruturais da “base” econômica que a tenham engendrado.
Em outras palavras, a lógica é indestrutível. E, como nos
aponta H. A. Steger, a lógica “aparece em nossa civilização
como o modo estável de conhecimento. E essa natureza glo-
bal e unitária do conhecimento é vitalizada pela pesquisa e
a aplicação prática”
16
. Nesse contexto, a tarefa da produção
do “ouro da razão” não pode ser confundida com irracio-
nalismos diversos, que jogam fora a criança junto com a água
suja do banho. A “ouro da razão” está ali, onde a comuni-
dade de intelectuais universitários ousa uma “reconstrução
do conhecimento” expropriando seus expropriadores, e “isso
é necessário para libertar o conhecimento de sua servidão,
mas sem destruí-lo, num processo similar à restauração de
um precioso quadro, transferindo-o de uma moldura para
outra”
17
.
14. Ver H. A. Steger, op. cit. na nota 9, p. 556.
15. Ver H. Lefèbvre, L’Irruption de Nanterre au Sommet, Paris, 1968.
16. Ver H. A. Steger, op. cit. na nota 9, p. 557.
17. Ver H. A. Steger, idem, p. 557.
SOLIDÃO E LIBERDADE 59
Atualizar o exemplo de Humboldt no Brasil hoje im-
plica repensar a questão “ciência e universidade” desde o
fundamento, e traduzir esse pensamento para uma solução
própria, não para uma cópia anacrônica. É não se deixar
“herodianizar”, vivendo como uma “elite intelectual” que
tem apenas os pés na Palestina, mas a cabeça em Roma, e
que tantas vezes traveste a “excelência acadêmica” na me-
díocre mimésis de uma produção seriada de papers para re-
vistas científicas de circulação internacional. Uma “elite in-
telectual” desenraizada de seu povo, seu lugar, sua história.
Somente o esforço por nos tornarmos o que somos pode fa-
zer da herança universitária humboldtiana uma tarefa. E de
Humboldt nosso contemporâneo.
Referências bibliográficas
DUPUY, J. P. & ROBERT, J. La Trahison de l’Opulance. Paris, PUF,
1976.
HUMBOLDT, W.v. Ideen zu einem Versuch die Grenzen der
Wirksamkeit des Staats zu bestimmen. Stuttgart, Reclam Verlag,
1978.
LEFÈBVRE, H. L’Irruption de Nanterre au Sommet. Paris, Anthropos,
1968.
SCHELSKY, H. Einsamkeit und Freiheit. Idee und Gestalt der deutschen
Universität und ihrer Reformen. Reinbek bei Hamburg, Rowohlt
Taschenbuch Verlag, 1963.
STEGER, H. A. (ed.) Alternatives in Education. Wilhelm Fink Verlag.
Munique, 1984.
CAPÍTULO 3
A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO
TENDÊNCIAS OPOSTAS?
Jenner Barretto Bastos Filho
Colocação do problema
Perguntamos se a ciência normal (Kuhn: 1975), por um
lado, e a educação genuína, (Freire: 1999) por outro, se cons-
tituem ou não em propensões antitéticas. A motivação para
este questionamento é que, para a primeira, o cerne seria o
dogma, enquanto para a segunda, seria a crítica. Argumen-
tamos que a superação deste difícil dilema passa, necessa-
riamente, pela questão da autonomia, entendida nas suas
dimensões epistemológica, ética e política. Somos conduzi-
dos à conclusão segundo a qual a conquista da autonomia
constitui enorme desafio, pois requer radical reforma tanto
do pensamento quanto de atitudes éticas.
Em trabalho anterior (Bastos Filho: 2000a), discutimos
a crítica popperiana (Popper: 1979) ao pensamento de Kuhn
e propusemos uma solução conciliatória sobre alguns as-
pectos do desenvolvimento da ciência, que tanto aceitasse
quanto recusasse, parcialmente, as duas teses. Em outras
62 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
palavras, tratava-se de uma solução conciliatória, na qual se
reconhecia, em ambas, apenas parte da razão.
No presente trabalho, levantamos uma série de outros
questionamentos, entre os quais, e principalmente, o que
constitui a pergunta do título. De fato, se concebermos a ciên-
cia normal kuhniana como aquela praticada por uma comu-
nidade que se atém a um paradigma que fornece soluções
exemplares de problemas do tipo quebra-cabeça, essa co-
munidade se concentrará dogmaticamente em problemas
que somente a falta de destreza de seus praticantes impedi-
ria de que alcançassem resultados que contribuíssem para o
acréscimo do conhecimento (normal, é claro). Então, seria
forçoso concluir que, para a ciência normal kuhniana, tal
como muito bem colocou Lakatos, crítica seria maldição
(Lakatos: 1979).
Por outro lado, se tomarmos o conjunto das tendências
expressas pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação),
pelos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) e por um
autor emblemático como Paulo Freire, podemos resumir que,
grosso modo, o que se tem em mente é uma educação crítica,
uma educação cidadã, em que as pessoas não sejam simples-
mente decoradoras de fórmulas matemáticas, nem meras
repetidoras de cronologia sem a história correspondente,
nem reprodutoras de conhecimentos sem o suficiente co-
nhecimento de causa. Importa que sejam pessoas críticas,
que saibam tomar iniciativa e propor soluções perante cir-
cunstâncias novas e diferentes daquelas às quais se haviam
habituados. Enfim, que sejam pessoas para as quais a mal-
dição não seria mais a crítica e sim o dogma.
O conflito, então, está posto. A ciência normal se ape-
garia ao dogma, ou seja, à aderência estrita e praticamente
exclusiva ao paradigma dominante. A educação, por outro
lado, se for genuína e não mero adestramento nem treina-
mento, tem de ser necessariamente crítica.
Obviamente, alguém que, no seu processo educacio-
nal, tenha sofrido ambas as influências, ou seja, por um lado,
A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO TENDÊNCIAS OPOSTAS? 63
uma concepção muito radical de ciência normal meramente
como operação de limpeza, e, por outro, uma concepção de
abertura e de estímulo à crítica, é forçoso concluir que esse
indivíduo vive um grande conflito. Se for muito prático e
pragmático, poderá optar por uma inserção na ciência nor-
mal sem grande drama de consciência. Mas se tiver uma
vocação transversal e, além disso, considerar a crítica como
o apanágio de qualquer atividade intelectual (ainda que re-
conheça que a divisão rigorosa de trabalho é uma espécie
de mal necessário para a eficiência do processo de acumula-
ção), então, sem dúvida, o conflito será agudo.
No curso do presente trabalho, argumentamos que a
solução do conflito ciência normal versus educação passa,
necessariamente, pela questão da autonomia. Trataremos
desta importante questão segundo as dimensões epistemoló-
gica, ética e política.
Conflitos de saberes têm sido examinados criticamen-
te por diversos autores e sob diversos aspectos. Citaríamos
duas abordagens recentes: a primeira delas está exposta num
artigo recente (Mamone Capria: 1999), que trata do conflito
de saberes entre médicos e pacientes, o qual se manifesta,
por exemplo, na solicitação a esses últimos termos de con-
sentimento livre e esclarecido em função de grave en-
fermidade; a segunda, (Danhoni Neves: 1999) é exposta em
um livro que traz uma crítica afiada ao ensino que apresen-
ta os conteúdos científicos como destituídos de história e
artificialmente linearizados, procedimento esse que leva os
estudantes a uma gravíssima distorção da real prática his-
tórica da ciência. O conflito se revela com todas as letras,
pois é necessário manifestar o que realmente desejamos: (1)
se queremos uma linearização extrema que, com o pretexto
didático de simplificar, produz os efeitos negativos de
desconsiderar a história, fazer apologia triunfalista da
genialidade e restringir severamente o pensamento, apos-
tando, assim, apenas na lógica da divisão de trabalho, a qual
prepara mais rapidamente os estudantes para uma prática
trivial de ciência normal; (2) ou, em lugar disso, se quere-
64 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
mos a educação realmente genuína, que prepara não ape-
nas o cidadão, mas o ser humano integral.
No entanto, não queremos reduzir as possibilidades
eventuais de soluções do conflito apenas às duas alternati-
vas acima expostas. No caso do ensino de ciências, somos
cônscios da possibilidade de uma gama de soluções inter-
mediárias, nas quais o movimento dialético conflito/conci-
liação esteja presente. Em outras palavras, há muitas
nuances, consubstanciadas pelas diferentes doses de com-
parecimento concomitante das alternativas (1) e (2).
O presente trabalho tem como objetivo tratar de alguns
aspectos desse importante dilema. Temos consciência da
abrangência e das dificuldades suscitadas. Perguntaríamos,
então, se seria possível e, em caso afirmativo, em que medi-
da uma solução conciliatória de um dilema tão dilacerador
para um espírito cognoscente.
Aspectos do conflito
Comecemos a colocação de um dos aspectos do confli-
to entre as concepções de Kuhn e Popper com uma bela ci-
tação de Lakatos:
“O seu [de Kuhn] principal problema também é a revolução
científica. Mas ao passo que, de acordo com Popper, a ciência
é ‘revolução permanente’ e a crítica é o cerne do empreendi-
mento científico, de acordo com Kuhn a revolução é excep-
cional e, na verdade, extracientífica, e a crítica em épocas
‘normais’, é maldição” (Lakatos, 1979: 111).
Como se pode facilmente notar daquilo que acima foi
argumentado, parece haver entre Kuhn e Popper um confli-
to, de alguma maneira, análogo ao que existe entre aquela
visão radical de ciência normal e a educação. Mas a situação
é muito mais complexa do que sonha a nossa vã filosofia,
pois se seguirmos ao pé da letra o relato de Kuhn para o
desenvolvimento da ciência, como poderíamos acreditar que
A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO TENDÊNCIAS OPOSTAS? 65
os cientistas praticantes da ciência normal, acostumados ao
dogma e à aderência restrita ao paradigma dominante, fos-
sem capazes de, durante a crise causada por uma série de
anomalias de que o paradigma dominante não pode dar
conta, passar a exercer a crítica? Em outras palavras, como
poderia alguém (e até mesmo uma comunidade) sempre
acostumado a trabalhar com dogmas passar, de uma hora
para outra, a exercer a crítica? Popper reconhece que, infe-
lizmente, a ciência normal de Kuhn existe, mas deve ser com-
batida. Numa interessante passagem, Popper escreve:
“A ciência ‘normal’, no sentido de Kuhn, existe. É a ativida-
de do profissional não-revolucionário, ou melhor, não mui-
to crítico: do estudioso da ciência que aceita o dogma domi-
nante do dia; que não deseja contestá-lo; e que só aceita uma
nova teoria revolucionária quando quase toda a gente está
pronta para aceitá-la — quando ela passa a estar na moda,
como uma candidatura antecipadamente vitoriosa a que to-
dos, ou quase todos, aderem. Resistir a uma nova moda exi-
ge talvez tanta coragem quanto criar uma. Vocês talvez di-
gam que, ao descrever desta maneira a ciência ‘normal’ de
Kuhn, eu o estou criticando implícita e sub-repticiamente.
Afiançarei, portanto, mais uma vez que o que Kuhn descreveu existe,
e precisa ser levado em consideração pelos historiadores da ciência.
O fato de tratar-se de um fenômeno de que não gosto (por-
que o considero perigoso para a ciência), ao passo que Kuhn,
aparentemente, não desgosta dele (porque o considera ‘nor-
mal’) é outro assunto; assunto, aliás, muitíssimo importan-
te” [O grifo é nosso] (Popper, 1979: 64-65).
A citação continua com uma série de críticas importan-
tes. Cremos que é de bom alvitre ainda citar algumas passa-
gens instrutivas para os nossos propósitos neste trabalho.
Popper continua a sua crítica e escreve:
“A meu ver, o cientista ‘normal’ tal como Kuhn o descreve, é
uma pessoa da qual devemos ter pena. [...] O cientista ‘nor-
mal’, a meu juízo, foi um mal ensinado. Acredito, e muita
gente acredita como eu, que todo o ensino de nível universi-
tário (e se possível de nível inferior) devia consistir em edu-
66 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
car e estimular o aluno a utilizar o pensamento crítico. O
cientista “normal’, descrito por Kuhn, foi mal ensinado. Foi
ensinado com espírito dogmático: é uma vítima da doutri-
nação. Aprendeu uma técnica que se pode aplicar sem que
seja preciso perguntar a razão pela qual pode ser aplicada
(sobretudo na mecânica quântica). [...] Para usarmos a ex-
pressão de Kuhn, ele se contenta em resolver ‘enigmas’. A
escolha desse termo parece indicar que Kuhn deseja desta-
car que não é um problema realmente fundamental o que o
cientista ‘normal’ está preparado para enfrentar; é, antes, um
problema de rotina, um problema de aplicação do que se
aprendeu” (Popper, 1979: 65).
As duas citações imediatamente acima são bastante cla-
ras, e a leitura que delas podemos fazer é quase direta. Passe-
mos, pois, a tecer algumas considerações sobre a citação an-
terior de Lakatos. O que ele tem em mente, quando interpre-
ta a concepção de Popper sobre o desenvolvimento da ciên-
cia como uma tal do tipo revolução permanente, é que essa per-
manência se baseia na necessidade de que sempre surjam, no
processo do fazer ciência, conjecturas ousadas e audazes, ne-
cessariamente acompanhadas de refutações austeras (ou ten-
tativas de refutações), e tudo isso em nome de uma rigorosa
honestidade intelectual na qual nenhum compromisso deve
ser mantido a não ser aquele da busca austera e incessante no
caminho da verdade. Segundo Popper, marxistas e psicana-
listas ao tentarem, por meio de evasivas ad hoc, salvar as suas
teorias, mostraram não possuir a suficiente austeridade e, por
conseguinte, isso denotaria o caráter não-científico de seus
postulados. Popper considera que, para psicanalistas e mar-
xistas, os compromissos menores e pouco nobres se sobrepu-
jaram em relação ao único compromisso aceitável, que é o da
busca austera e incessante da verdade, ainda que nunca se
possa saber ao certo se essa foi ou não alcançada. Daí o cará-
ter eternamente conjectural das nossas teorias. Assim, Lakatos
inferiu que, para Popper, compromisso seria crime.
Não é preciso dizer que uma opinião assim tão radical
suscitou um grande número de críticas, pois com tal relato a
A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO TENDÊNCIAS OPOSTAS? 67
atividade científica (que evidentemente não é aquela dos ci-
entistas mal-ensinados da ciência normal kuhniana) pode
ser quase identificada com a prática ou, pelo menos, com
uma das possíveis práticas, a da honestidade intelectual.
— Ora, mas por que os cientistas, mais do que os ou-
tros mortais comuns, praticariam conjecturas ousadas e refu-
tações austeras com tanta honestidade intelectual?
Em um livro recentemente publicado (Bastos Filho:
1999a), analisamos o problema sob um de seus possíveis
aspectos. Na nossa opinião, esse tipo de “falseacionismo”
(critério de refutabilidade) — o “falseacionismo” ingênuo
— não é aplicável, pelo menos em larga escala, pois há as
irremovíveis vicissitudes humanas que sempre levam o ci-
entista a acreditar no aspecto eternamente válido de suas
caras teorias; isso tem lugar por razões tanto internas quan-
to externas, principalmente quando a exposição, de peito
aberto, à crítica (rigorosa austeridade das refutações) seria
uma tendência oposta à necessária competição no seio do
establishment, a fim de que o cientista não se deixe sucum-
bir.
Mas voltemos à questão segundo a qual, uma vez ad-
mitido o relato kuhniano, como seria possível a uma comu-
nidade acostumada com o dogma passar a exercer a crítica,
em vista do surgimento de um número insuportavelmente
grande de anomalias. Ora, Popper reconhece que a ciência
normal existe e que ela é praticada por gente dogmática,
mal-ensinada, em relação à qual devemos ter pena devido à
sua enorme pobreza de espírito. Trata-se, outrossim, de um
fenômeno tanto perigoso quanto deprimente. No entanto, e
felizmente, não existe apenas esse tipo de gente. Por isso,
Popper escreve:
“Afirmo que entre o ‘cientista normal’ de Kuhn e o seu ‘cien-
tista extraordinário’ há muitas gradações e é preciso que haja.
Tome-se Boltzmann, por exemplo; haverá poucos cientistas
maiores do que ele. Dificilmente, porém, se pode dizer que
sua grandeza consiste em haver ele preparado uma revolu-
68 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
ção importante porque era, em extensão considerável, se-
guidor de Maxwell. Mas estava tão longe de ser um ‘cientis-
ta normal’ quanto se pode estar; lutador corajoso, resistiu à
moda imperante de seu tempo — moda que, a propósito, só
imperou no continente e teve pouco seguidores, naquela
época, na Inglaterra.” (Popper, 1979: 67)
Popper critica a divisão kuhniana entre “ciência nor-
mal” (dogmática) e “ciência extraordinária” (crítica) e aduz
o exemplo emblemático de Boltzmann, que não se adapta-
ria a uma divisão estrita entre essas duas categorias
kuhnianas. Mais adiante, Popper, argumenta que o relato
“kuhniano” de períodos normais regidos por um paradigma,
seguido de outro de revoluções excepcionais, se adaptaria à
astronomia mas não à evolução da teoria da matéria nem à
evolução da teoria das ciências biológicas a partir de Darwin
e de Pasteur. Argumenta, ainda, Popper, e como um contra-
exemplo ao relato de Kuhn sobre o desenvolvimento da ciên-
cia, que desde a antigüidade coexistiram sempre três tipos
de teorias dominantes, que historicamente competiram en-
tre si, a saber, as teorias atômicas, as teorias da continuida-
de e, ainda, as teorias que tentavam combinar e conciliar as
teorias dos dois primeiros tipos. Quanto ao aspecto do
dogmatismo, Kuhn e Popper têm diferentes versões a respei-
to do mérito da questão. Enquanto, para Kuhn, dogma é
apanágio da ciência normal, pois somente assim os seus pra-
ticantes se ateriam com a devida fé à disciplina paradigmá-
tica em prol do acúmulo do conhecimento normal, para
Popper, embora a atividade científica genuína seja necessa-
riamente crítica, devemos nos ater a uma pequena dose de
dogmatismo, a fim de que não venhamos a nos entregar com
demasiada facilidade aos argumentos daqueles que defen-
dem teorias rivais em relação às nossas: “Se nos sujeitarmos
à crítica com demasiada facilidade, nunca descobriremos
onde está a verdadeira força das nossas teorias”.
Vemos, portanto que, enquanto para Kuhn, o dogma é
o cerne da ciência normal, para Popper é necessária uma
pequena dose de dogma, apenas como um mínimo de con-
A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO TENDÊNCIAS OPOSTAS? 69
vicção necessária para o enfrentamento. Neste estágio, é in-
teressante que o nosso estudo não se restrinja ao debate ape-
nas no viés dos autores acima. É pois possível identificar,
antes de Kuhn, pareceres muito críticos sobre a comunida-
de científica e suas práticas. O parecer do filósofo espanhol
Ortega y Gasset, o qual chamou bastante a atenção do físico
Schrödinger, nos parece relevante no contexto da presente
discussão.
Sobre um parecer de Ortega y Gasset
Algumas décadas antes de Kuhn, o filósofo espanhol
Ortega y Gasset — o filósofo da razão vital — escreveu um
livro intitulado La rebelión de las masas, no qual encontra-se
um primeiro capítulo de título sugestivo La barbarie del
“especialismo”, cujo conteúdo revela-se muito crítico em re-
lação a uma atitude alienante que colocaria em perigo a so-
brevivência da verdadeira civilização. Vejamos, pois, as suas
palavras; Ortega descreve um “tipo de cientista sem prece-
dentes na história”:
“Ele é uma pessoa que, de todas as coisas que alguém verda-
deiramente educado deve saber, é familiar apenas com uma
ciência particular e mesmo assim, desta ciência, apenas uma
pequena parte é conhecida por ele, a qual é a que ele próprio
se encontra pesquisando. Ele chega ao ponto de proclamar
como virtude o fato de não levar em conta tudo aquilo que
se encontra fora do estreito domínio por ele cultivado, e acusa
como diletantismo a curiosidade que tem por objeto a sínte-
se de todo o conhecimento. Isso chega a passar a idéia de
que ele, isolado na estreiteza de seu campo de visão, real-
mente é bem-sucedido na atividade de descobrir fatos no-
vos e promover sua ciência (a qual ele dificilmente sabe) na
direção do pensamento humano integrado — o qual ele pró-
prio ignora com total determinação. — Como algo assim foi
possível e como isso continua a ser possível? Nós devere-
mos sublinhar com ênfase o inusitado deste irrecusável fato:
a ciência experimental tem progredido, em considerável
70 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
extensão, pelo trabalho de pessoas extraordinariamente me-
díocres e, até mesmo, abaixo da mediocridade” (Ortega y
Gasset apud Schrödinger, 1996: 110-111)
1
.
Vejamos algumas considerações sobre esta passagem
de Ortega y Gasset. Ora, tendo em vista que La rebelión de las
masas foi publicado pela primeira vez em 1930, é de se su-
por que o cientista a que Ortega se refere seja o daquela épo-
ca. No entanto, tendo em vista o exponencial crescimento
numérico das comunidades científicas dos países tanto cen-
trais quanto periféricos, a situação parece ter se agravado
sobremaneira, principalmente no período posterior ao da
segunda guerra mundial. A proliferação, até certo ponto
desenfreada, de comunidades científicas em todas as partes
do mundo (tanto centrais quanto periféricas) nos coloca
diante de severas perplexidades, principalmente se compa-
rarmos a situação de então com a situação do século XVII, e
mesmo com a situação do século XIX, em que o número de
cientistas era significativamente menor. Cremos que a de-
mocratização da atividade científica seja uma boa coisa, mas
não a sua banalização, no sentido de uma radical degrada-
ção do pensamento. Assistimos perplexos a duas propen-
sões antitéticas: de um lado, uma proliferação diversificadora
de comunidades científicas, o que é uma coisa salutar, pois
enriquece e complexifica os problemas e com eles o próprio
pensamento; mas, de outro lado, assistimos a um fechamento
e a uma banalização de procedimentos e atitudes, que pare-
cem não caminhar para um bom termo, na medida em que
contribuem para que partes e subpartes do saber não se co-
muniquem entre si. O texto de Ortega suscita problemas
muito importantes como:
•Seriam os cientistas estreitíssimos, tais como os des-
critos por Ortega, aqueles que integrariam o conhe-
cimento?
Em caso afirmativo, como isso seria possível?
1. O texto em português, que constitui a tradução desta citação a partir do
inglês, é de nossa responsabilidade.
A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO TENDÊNCIAS OPOSTAS? 71
•Seriam, pelo contrário, os cientistas extraordinários
aqueles que o fariam, com base na acumulação legada
pelos cientistas estreitos?
Não seriam os cientistas extraordinários capazes de
superar a mera acumulação, realizar a crítica e dar o
salto de qualidade?
Ou seria, ainda, uma “mão invisível” ordenadora,
tal como a tão persuadida “mão invisível” do merca-
do dos neoliberais?
Claro está que estas questões suscitam os problemas
das características sobre o desenvolvimento da ciência, ou
seja, remetem para, entre outros, os estudos de história e de
filosofia da ciência. Em alguma medida, essa tarefa conti-
nuará a ser tratada nas próximas seções.
Das gradações entre o normal e o extraordinário
Admitamos, muito provisória e meramente, a título de
exercício de reflexão, a fórmula supersimplificadora e alta-
mente reducionista:
D + C = 1
em que D denota dogma e C denota crítica. Uma adoção des-
se tipo parte do pressuposto de que dogma e crítica sejam
categorias perfeitamente definíveis e identificáveis, tais como
o são cara e coroa numa moeda. Para moedas não viciadas,
as possibilidades são igualmente prováveis e, assim, a pro-
babilidade “a priori” de que, em uma dada jogada, venha-
mos a obter a possibilidade cara é de ˚, ou seja, de 50%, que
é a mesma probabilidade “a priori” de que venhamos obter,
em uma dada jogada, a possibilidade coroa. A probabilida-
de “a priori” de que venhamos, numa dada jogada, obter
indistintamente cara ou coroa é de ˚ + ˚ = 1, ou seja, de
100%, uma vez que todo o universo de possibilidades se
72 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
encontra contemplado. Aqui, naturalmente, não estamos
considerando como integrante desse universo a hipótese
remotíssima de, numa dada jogada, a moeda cair em pé. Evi-
dentemente, no caso da fórmula considerada, as duas “pos-
sibilidades” não são, necessariamente, igualmente prová-
veis. Em outras palavras, há infinitos pares de valores {D,
C} obedecendo à fórmula. Aqui, 0 D 1 e 0 C 1. No
caso de nossa fórmula acima, D e C não são categorias fáceis
de se discernir no mesmo nível em que podemos fazer para
cara e coroa, logo o pressuposto em que a fórmula se baseia
já se encontra em dificuldades; mas vamos esquecer, por
enquanto, essa debilidade. Suponhamos grosseiramente que
a ‘probabilidade’ de uma certa atitude científica, por exem-
plo, obedeça à fórmula acima. Se {D = 0,01 e C = 0,99} (caso
I), teremos o caso de alta probabilidade de atitude crítica e,
por conseguinte, de baixa probabilidade de atitude
dogmática. Se {D = 0,99 e C = 0,01} (caso II), teremos, pelo
contrário, uma alta probabilidade de atitude dogmática e,
conseqüentemente, uma baixa probabilidade de atitude crí-
tica. Se {D = 0,50 e C = 0,50 } (caso III), teremos iguais proba-
bilidades de atitude crítica e de atitude dogmática. Além
dos três casos listados acima, teremos uma gama infinita de
possibilidades, tais como {D = 0,77 e C = 0,23}, {D = 0,14 e C
= 0,86} etc.
Ora, se tentarmos, grosso modo, interpretar essa gama
infinita de possibilidades como as possíveis gradações en-
tre o normal e o extraordinário, diríamos que, a despeito des-
sa enorme simplificação que encontra debilidades de ori-
gem, o caso I seria mais afeito ao cientista extraordinário e o
caso II seria mais afeito ao cientista normal de baixa quali-
dade. Dir-se-ia, ainda seguindo esta lógica tosca, que o caso
III seria o de um cientista, talvez, normal, de qualidade in-
termediária, o qual conjugaria, em iguais doses, crítica e
dogma. Ora, é fácil de ver que um esquema como o descrito
acima não pode se sustentar. Vejamos por que. Tomemos o
caso III. Ora, em lugar de classificarmos um cientista deste
perfil como um cientista normal, de qualidade razoável, po-
A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO TENDÊNCIAS OPOSTAS? 73
deríamos dizer que este perfil também se adapta a um cien-
tista extraordinário, que tanto reúna doses relativamente
altas de dogmatismo (alta convicção de seu programa de
pesquisa científico a despeito de percalços), como doses re-
lativamente altas de crítica. A questão é que, em uma fór-
mula supersimplificadora como a que estamos consideran-
do, não entram formidáveis ingredientes, como a imagina-
ção e a criatividade. Decerto que a crítica ajuda tanto a imagi-
nação quanto a criatividade; no entanto, crítica apenas não
basta. Para a atividade científica, notadamente para aquela
de boa qualidade, talvez imaginação e criatividade sejam
mais importantes do que crítica, o que não implica dizer
que o papel da crítica não seja fundamental.
Mas vejamos o caso I. À primeira vista, tal como acima
nos referimos, este caso se adaptaria a um cientista extraor-
dinário, dado o alto valor para C (C = 0,99). Mas novamente
aqui nos encontramos em uma situação ambígua, pois este
caso pode se aplicar a um cientista “normal” (não tão
kuhniano assim) que seria dotado de alta capacidade crítica
e de baixíssima capacidade dogmática, mas que, por limita-
ções pessoais de imaginação e de criatividade, não pudesse
dar o salto que caracterizaria o trabalho extraordinário.
A discussão, até aqui, levou-nos ao resultado segundo
o qual as variáveis imaginação e criatividade devem, necessa-
riamente, ser levadas em conta.
Agora, vamos nos concentrar na seguinte questão:
Se, no contexto de uma fórmula super simplificadora
como a escrita acima, já nos deparamos com a dificuldade
de identificar uma linha demarcatória clara entre dogma e
crítica, o que diríamos se introduzíssemos imaginação e
criatividade no cômputo da “equação”?
Tudo indica que esse caminho não nos vai levar a mui-
to longe. Mas essa discussão serviu para mostrar que as di-
versas gradações que, segundo Popper, devem existir entre
os cientistas normal e extraordinário de Kuhn, precisam ser
74 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
vistas com maior abrangência, fazendo entrar em conside-
ração categorias fundamentais, como imaginação e criatividade.
Outro argumento em prol da existência dessa gradação
é encontrada nos próprios perfis dos membros que compõem
a comunidade científica. De fato, no seio da comunidade
científica são encontrados cientistas de praticamente todos
os perfis. Vejamos alguns deles:
[P
1
] Há aqueles que, por decisão programática de car-
reira, concentram-se no uso exclusivo de técnicas experimen-
tais ou teóricas. No curso de suas respectivas atividades,
jamais aparecem questionamentos sobre as bases conceituais
em que essas técnicas repousam, nem algum princípio
subjacente a essas técnicas. Com maior razão, cientistas desse
perfil, com grande probabilidade, a não ser em certos casos
cada vez mais raros de temperamento pessoal cordial,
envidarão esforços que redundem em ações hostis em rela-
ção àqueles que se interessem por questões políticas, edu-
cacionais, históricas e epistemológicas. Cientistas desse perfil
produzem um grande número de papers em série e se orgu-
lham de maneira apologética de suas respectivas especiali-
zações.
[P
2
] Há um segundo tipo de cientista, cujo perfil é in-
termediário: admite a crítica e também é suceptível de con-
siderar questões mais abrangentes, transversais, multidisci-
plinares e epistemológicas. No entanto, todo esse tipo de
atividade é relegada ao estatuto de hobby, passatempo, ou
então é deixada para o período que sucederá a aposentado-
ria, no qual as pressões de carreira terão se diluído sobre-
maneira. O cientista deste perfil também se concentra, por
decisão programática de carreira, em resultados superespe-
cializados, mas a qualidade de seu trabalho está modulada
por alguma dose de crítica, o que o distingue do cientista de
perfil [P
1
], que apresenta comportamento absoluta e rigoro-
samente acrítico.
[P
3
] Há um terceiro tipo de cientista que combina críti-
ca aguda e altamente qualificada (às vezes até heresia de
A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO TENDÊNCIAS OPOSTAS? 75
boa qualidade) com interesses de carreira, sendo esta, via
de regra, profundamente conturbada por conflitos de ordens
diversas. Ainda que o talento de um cientista desse perfil
possa variar muitíssimo, um valor moral intrínseco, carac-
terizado por uma coragem singular, o distinguirá dos de-
mais descritos acima. Embora o valor intelectual de um cien-
tista desse perfil seja muito variado, o que garantirá o seu
sucesso não se reduz simplesmente ao seu estrito mérito
acadêmico nem à força de seus argumentos. As alianças e
correlações políticas poderão lhe ser favoráveis, contrárias
ou, ainda, equilibradas, e isso terá papel fundamental na
consecução de seus objetivos.
[P
4
] Há o cientista criterioso (crítico), que trabalha se-
riamente em questões bem mais restritas à sua ciência espe-
cífica e que tem abertura para questões de outro viés, mas
que, por decisão programática de carreira, não se ocupa de
questões epistemológicas. É possível encontrar indivíduos
deste perfil com simpatias veladas ou, até mesmo, um pou-
co mais do que simplesmente discretas, por questões
epistemológicas. É possível, ainda, encontrar nesse perfil
atitudes não tão simpáticas em relação aos colegas que ado-
taram tratar seriamente dos problemas filosóficos suscita-
dos pela ciência, mas as eventuais hostilidades em relação
aos cientistas/filósofos são, via de regra, muito menos in-
tensas do que aquelas dirigida aos cientistas/filósofos pe-
los cientistas de perfil [P
1
]. Esta constatação é relevante, mas
há exceções.
[P
5
] Há o cientista extraordinário. Criativo, imaginati-
vo, revolucionário. Lança novas luzes e contribui decisiva-
mente para o conhecimento. É uma categoria muitíssimo
mais rara, mas de grande importância.
Poderíamos, ainda, listar uma série de outros perfis que
combinem valor intelectual, correlação política, penetração
e participação nos órgãos financiadores, fator de sinergia ao
agrupar quadros e formar pessoas para o ensino e para a
pesquisa, lideranças de vários tipos, fator desagregador,
76 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
competição de programas de pesquisa, luta hegemônica, etc.
No entanto, os perfis já listados até então nos satisfazem, no
sentido de mostrar que essas gradações, de fato, necessaria-
mente existem. Ademais, a situação ainda se torna mais com-
plexa quando nos lembramos de que há diversas comuni-
dades científicas de diferentes vocações, interesses e teores
que têm padrões muito específicos de avaliação do prestí-
gio acadêmico. A instituição da ciência bem como a própria
comunidade que a produz constituem-se em fenômenos por
demais complexos, os quais não parecem ser dóceis a
esquematizações supersimplificadoras. O surgimento de no-
mes seminais e extraordinários é fruto de uma confluência
de fatores, e o termo, talvez, mais adequado para expressar
esta confluência seja complexidade.
Alguns aspectos da questão da autonomia
Do que foi discutido na seção passada, tivemos uma
idéia bastante panorâmica de alguns perfis possíveis de cien-
tistas. Embora tenhamos traçado um quadro muito incom-
pleto e esquemático, ficou claro que, daquilo que pudemos
depreender da descrição sobre possíveis gradações de per-
fis científicos, não podemos aceitar que o dogma tenha de
ser necessariamente apanágio no seio do establishment cien-
tífico. No entanto, Kuhn não deixa de ter parte da razão. De
fato, os cientistas de perfil [P
1
] da seção passada constituem
o grupo que mais se adapta à categoria de ciência normal de
baixa qualidade. Esse grupo é numerosíssimo, talvez a gran-
de maioria dos cientistas. Não obstante o fato de que esses
cientistas sejam “necessários” numa lógica perversa de mera
acumulação e trabalho duro, eles, sem dúvida, constituem
um perigo para a atividade racional sadia, no sentido de
que, independentemente, apontaram e deram ênfase inte-
lectuais como Ortega y Gasset e Popper.
Gostaríamos, agora, de deslocar o foco de nossa dis-
cussão para o problema, necessariamente complexo, da
A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO TENDÊNCIAS OPOSTAS? 77
autonomia. A título de mote, alguém uma vez nos disse que
a estrutura da instituição científica hodierna, bem como de
várias outras instâncias congêneres, é fortemente embasada
numa rígida hierarquia. Essa pessoa descreveu essa hierar-
quia em termos bem-humorados, e até mesmo em forma
anedótica, da seguinte maneira: os grandes chefes são aque-
les que “dão esporro” nos chefes; os chefes são aqueles que
“dão esporro” nos chefes menores; os chefes menores são
aqueles que “dão esporro” nos pós-doutores, que, por sua
vez, “dão esporro” nos doutores, que por seu turno “dão
esporro” nos doutorandos, os quais “dão esporro” nos mes-
tres, que “dão esporro” nos mestrandos, que por sua vez
“dão esporro” nos bacharéis, que “dão esporro” nos licen-
ciados ... e assim por diante. Note a ideologia sujacente do
establishment: a primazia conferida à pesquisa em relação ao
ensino, a qual será contextualizada no final da seção 6.
Este relato bem-humorado combina muitíssimo bem
com uma charge que tivemos oportunidade de ver afixada
em um mural de uma importante universidade brasileira.
Tratava-se de alguns poucos búfalos que corriam desen-
freadamente, seguidos cegamente por um número maior,
seguidos cegamente por um número ainda mais numeroso,
e assim sucessivamente. Os búfalos do pequeníssimo grupo
da linha de frente perguntavam entre si: Será que eles sa-
bem que nós não temos a mínima idéia de para onde va-
mos?” A turma da linha de frente era indicada na charge
como “orientadores”, o grupo intermediário como “douto-
randos” e o grupo majoritário como “mestrandos”.
Se levarmos em conta tais descrições, ainda que
anedóticas, mas nem por isso desprezíveis, diríamos que a
estrutura hierárquica a que estão submetidas as comunida-
des científicas de diferentes teores e índoles é tal que os cri-
térios de liderança subjacentes, e que aqui transparecem com
nitidez, são, em considerável medida, profundamente polí-
ticos e, de uma forma específica, de política consubstanciada
pela capacidade de “dar esporro” e de coagir e compelir su-
bordinados a fim de que sejam asseclas empedernidos e se-
78 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
quazes cegos. A propósito, não convém esquecer de que a
política trata de poderes e de suas correlações. Em outras
palavras, o critério de liderança política (capacidade de “dar
esporro”) suplantaria a capacidade intelectual. Evidente-
mente, a expressão “dar esporro” deve ser encarada meta-
foricamente, mesmo porque se assim não fosse pessoas dig-
nas e dotadas de auto-estima e que não queiram nem dar
nem levar esporro de quem quer que seja já estariam defini-
tivamente inaptas para a prática da ciência, pelo menos den-
tro de sua institucionalização. Tudo isso é especialmente
instrutivo para mostrar que uma grande confluência de fa-
tores de diversos teores, e não apenas o mérito científico
restrito, entram no cômputo desta complexa malha que de-
finirá as lideranças e a estrutura hierárquica dentro de uma
dada comunidade científica.
No intuito de ilustrar a questão com o exemplo de um
cientista extraordinário, tão extraordinário quanto os me-
lhores cientistas puderam ser, citaríamos Einstein. Vejamos
se Einstein pode ser visto como um grande chefe em um
perfil de liderança que seja, a um só tempo, científico e
político. David Lindley emitiu a esse respeito o seguinte
parecer:
“Em virtude de seus interesses terem divergido largamente
da corrente principal da física, Einstein não gerou uma linha
de seguidores intelectuais. Ele é reverenciado, mas diferen-
temente de Niels Bohr, Wolfgang Pauli, Werner Heisenberg
e outros fundadores da física do século XX, ele nunca foi
uma figura de orientador para pesquisadores de uma nova
geração” (Lindley, 1993: 3-4)
2
.
Isso combina com um parecer do próprio Einstein. A
despeito da grande e merecida admiração que praticamente
todas as pessoas sensatas tinham por ele, e da justa reve-
rência que lhe prestavam, Einstein afirmou: “Aqui em
2. O texto em português, que constitui a tradução desta citação a partir do
inglês, é de nossa responsabilidade.
A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO TENDÊNCIAS OPOSTAS? 79
Princeton me consideram um velho maluco” (Born apud
Selleri, 1986: 26)
3
.
Parte da marginalização sofrida por Einstein, por mais
paradoxal que este termo soe aos menos avisados, deveu-se
à sua crítica afiada à Escola de Copenhagen (Selleri: 1990).
Numa carta escrita no dia 10 de abril de 1938 a seu amigo
Solovine, Einstein critica severamente a atitude acrítica
(dogmática) de grande parte da comunidade científica, a
qual, a fim de estar sempre na moda, engoliria as maiores
barbaridades. Em relação à atitude modista daqueles que
aceitaram dogmaticamente coisas como a “dissolução da
realidade”, (Bastos Filho: 1999b), Einstein chegou a
compará-los com cavalos. Vejamos, a propósito, o texto de
Einstein:
“A necessidade de conceber a natureza como realidade ob-
jetiva era tida como um preconceito obsoleto, enquanto a re-
cusa de tal necessidade era declarada virtude pelos teóricos
dos quanta. Os homens se mostravam mais suceptíveis de
serem influenciados do que cavalos, e cada época é domina-
da por uma moda, resultando disso que muitos não se dão
conta do tirano que os domina” (Einstein, 1993: 85)
4
É exatamente contra uma tirania parecida que se ma-
nifestaram Pascal (Pascal, 1988: 123-124) e Kant (Kant apud
Popper, 1982: 204-205). Pascal, quando argumentou que a
dignidade do homem reside no pensamento, e Kant, quan-
do interpretou o espírito do Iluminismo como aquele do
Sapere Aude. Kant (Kant apud Popper, 1982: 209) foi ainda
mais longe, quando reivindicou a necessidade da autono-
mia até em uma situação extrema (Kant praticou aqui um
exercício de ficção para levar adiante o seu raciocínio) em
que o próprio Deus, em pessoa, aparecesse; ainda assim,
3. O texto em português, que constitui a tradução desta citação a partir do
francês, é de nossa responsabilidade.
4. O texto em português, que constitui a tradução desta citação a partir do
inglês, é de nossa responsabilidade.
80 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
segundo Kant, isso não dispensaria a quem quer que seja da
decisão livre e autônoma (sentido kantiano) e digna (sentido
pascaliano). Em colaboração com Erinalva Medeiros
(Medeiros et al., 1999), mostramos tanto esses quanto ou-
tros aspectos da autonomia, inclusive aquele segundo o qual
tudo isso não pode se reduzir a decisões puramente
egocêntricas, pois o homem é livre e autônomo na medida
em que interage e se solidariza com os outros e, por conse-
guinte, a autonomia somente pode ser vista nessa interação.
A autonomia constitui-se numa importante categoria
conceitual e tem de ser vista em conjunto com uma partici-
pação solidária, com a liberdade de expressão, com o exer-
cício da auto-estima, com a educação e com a ética. A auto-
nomia é um requisito ético fundamental para quem quer
que seja: o professor, o pesquisador, o cidadão, a esposa, o
esposo, os filhos..., etc. De outra maneira, crítica e liberdade
seriam termos sem sentido.
Argumentando nesta linha, Paulo Freire escreveu o li-
vro Pedagogia da autonomia com o subtítulo Saberes necessá-
rios à prática educativa. No capítulo 2, intitulado Ensinar não
é transferir conhecimento, Freire escreve:
“Saber que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar
as possibilidades para a sua própria produção ou a sua cons-
trução. Quando entro em uma sala de aula, devo estar sendo
um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos
alunos, a suas inibições; um ser crítico e inquiridor, inquieto
em face da tarefa que tenho — a de ensinar e não a de trans-
ferir conhecimento” (Freire, 1999: 52).
O que Freire pretendeu ressaltar com isso é que a prá-
tica do ensinar jamais poderá ser reduzida a uma mera trans-
ferência similar a de um registro de água que pode ser aber-
to ou fechado a qualquer tempo. Essa crítica se assemelha
àquela que é feita aos empiristas empedernidos, que redu-
zem o conhecimento às impressões registradas em uma ta-
bula rasa. O ensino autêntico requer concepções de mundo,
requer idéias tanto a priori quanto a posteriori, requer respei-
A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO TENDÊNCIAS OPOSTAS? 81
to mútuo, liberdade de expressão, preservação e cultivo da
auto-estima de todos os envolvidos no processo educacio-
nal e princípios éticos que rejam a autonomia de cada um e
de todo o grupo envolvido.
Na seção 2.3 do capítulo 2, Freire escreve: “O respeito à
autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético
e não um favor que podemos ou não conceder uns aos ou-
tros” (Freire, 1999: 66).
E, mais adiante, Freire escreve:
“O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o
seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais
precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que
ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que “ele se po-
nha em seu lugar” ao mais tênue sinal de rebeldia legítima,
tanto quanto o professor que se exime do cumprimento de
seu dever de propor limites à liberdade do aluno, que se fur-
ta ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à
experiência formadora do educando, transgride os princípios
fundamentais éticos de nossa existência” (Freire, 1999: 66).
Independentemente de a qual ensino Freire tenha se
referido (superior, médio ou primário), repare que tudo isso
contrasta flagrantemente com a camisa-de-força que restrin-
ge gravemente a concepção de mundo do cientista normal
kuhniano. E, mais uma vez, o conflito se manifesta com to-
das as letras.
Aspectos éticos e políticos da questão da autonomia
Poucas evidências empíricas são tão consensuais quan-
to as discriminações que o ser humano tem exercido em re-
lação ao próprio semelhante, que, nos casos mais dramáti-
cos e também nos mais trágicos, chegam ao cúmulo de fazer
com que o semelhante seja visto como dessemelhante, como
estranho à sua própria espécie. Trata-se de um problema
gravíssimo. Houve épocas, contudo, em que se acreditou
82 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
que a força da razão mudaria drasticamente essa perversa
tradição. No plano político, ou seja, no plano dos poderes e
de suas correlações, à vontade absoluta do monarca (abso-
lutismo), que se tornou emblemática por meio da expressão
l’état c’est moi, foi contraposta uma nova correlação de po-
deres na qual se propugnava, programaticamente, uma so-
ciedade livre, fraterna e igualitária. No plano do espírito, a
liberação das forças criativas da razão, interpretada por Kant
como o Sapere Aude, se constituía na própria e genuína auto-
nomia intelectual das pessoas. Evidentemente, a autonomia
intelectual e também a autonomia política não requerem,
nem podem requerer, a ausência de qualquer influência. Sem
a tradição e, em certo sentido, sem a influência de várias
tradições, nada somos e nada seremos. Portanto, a autono-
mia não se constitui na recusa em ser tocado pela tradição,
mesmo porque trata-se de uma coisa impossível. A autono-
mia passa, sim, pela faculdade de adotar a tradição no que
ela tiver de justo ou de recusá-la, e principalmente de
modificá-la no que ela tiver de injusto. Mahatma Gandhi
parece ter captado esse espírito ao afiançar:
“Eu não quero que minha casa seja fechada com paredes por
todos os lados, e que minhas janelas fiquem trancadas. Eu
quero que as culturas de todos os lugares soprem sobre mi-
nha casa da forma mais livre possível. Mas eu também me
recuso a ser carregado por qualquer uma delas” (Gandhi apud
Perez de Cuéllar, 1997: 98).
Se o otimismo iluminista do final do século XVIII ge-
rou tanto a esperança depositada no poder da ciência du-
rante o século XIX, quanto a esperança otimista de trans-
formação do ser humano por ocasião da revolução socia-
lista russa na segunda década do século XX, agora, já na
entrada do século XXI, essa esperança parece diluir-se.
Apesar de tudo, é necessário manter acesa a chama da uto-
pia, pois a função desta não é a sua plena realização — se
assim fosse, não seria utopia —, mas sim prover condições
de espírito para trabalharmos incessantemente, com âni-
A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO TENDÊNCIAS OPOSTAS? 83
mo sempre novo, por um mundo menos pior. Voltemos ao
quadro de gravidade. As duas grandes Guerras Mundiais
ocorridas no século XX, um sem-número de crimes he-
diondos, como massacres, torturas, chacinas, campos de
concentração, racismo, guerras étnicas, guerras high tech,
guerras neocolonialistas e imperialistas, entre outras ma-
zelas, transformaram o século que ora finda em, talvez, o
mais sangrento de todos. Acrescente-se a isso a tendência
a uma globalização perversa, caracterizada por uma
interdependência das economias nacionais, por uma forte
e crescente hegemonia do capital financeiro, por um avan-
ço tecnológico altamente informatizado e robotizado que
dispensa grandes contingentes de mão-de-obra. Disso re-
sulta uma acentuada tendência ao desemprego; uma cres-
cente concentração de renda em praticamente todo o mun-
do; a marginalização de um continente quase inteiro (como
é o caso da África); a escravidão dos povos subdesenvolvi-
dos pelos serviços da dívida externa; o enfraquecimento
dos Estados nacionais; o aumento da pobreza e da miséria;
o possível aumento das desigualdades regionais; a debili-
tação dos vínculos federativos por causa da necessidade
imposta pelo modelo econômico perverso, adotado no sen-
tido de estimular exportações em lugar de manter a soli-
dariedade federativa por meio do mercado interno; o des-
prezo pela educação e pela saúde; o desprezo pelos inte-
resses dos pobres, etc. Pode-se acrescentar, ainda, o con-
sumo intensivo dos recursos naturais solicitados por um
modelo econômico dominante dos países ricos e a enorme
degradação causada aos meios de sustentação da vida (qua-
lidade do ar, das águas, das terras), o que acarreta enorme
degradação ambiental. Se compararmos esse espantoso
quadro de horror com aquele descrito pelos relatos de Frei
Bartolomeu de las Casas (Bartolomeu de las Casas: 1996) e
do próprio Cortez (Cortez, 1997), por ocasião da conquista
da América espanhola na primeira metade do século XVI,
podemos ver que, embora as formas de praticar a opressão
sejam diferentes, o espírito exterminador de povos e do
84 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
futuro das crianças continua sendo o mesmo. Quanto à ciên-
cia e à tecnologia, podemos dizer que, se elas realmente
contribuíram para aliviar a canseira humana para aquele
contingente de incluídos socialmente, que utiliza aviões e
carros particulares, elas não foram capazes de contribuir
decisivamente para a erradicação da fome e da exclusão
social no mundo. Muito pelo contrário, a alta tecnologia
de hoje constitui um dos fatores de aumento do desempre-
go e da concentração de renda, acarretando, por conseguin-
te, um aumento da exclusão social. Evidentemente, isso não
implica que a alta tecnologia não deva ser usada nem que
ela não possa desempenhar um papel importante em um
programa de erradicação da pobreza, uma vez alteradas
radicalmente as prioridades sociais e o modelo econômico
adotado. Este, certamente, é o caso do programa de
erradicação da pobreza liderado por Cristovam Buarque
(Buarque: 1999), o qual é baseado na bolsa escola. Esse pro-
grama inverte a lógica economicista do modelo econômico
dominante em curso. Em lugar de perguntar qual é o custo
da erradicação da pobreza, dever-se-á perguntar pelo cus-
to da manutenção dos privilégios. Trata-se de um progra-
ma viável, que requer uma coalizão ética, necessariamente
suprapartidária, e que implique pilares para assegurar a
sua continuidade e sustentação, pois provavelmente de-
manda mais de uma década ininterrupta de esforços. É um
projeto que, caso seja implantado, e esperamos que o seja,
custará na ordem de 2% de um PIB como o brasileiro, hoje
em torno de 900 bilhões de dólares, o que é perfeitamente
compatível com as dimensões da economia brasileira,
principalmente tendo em vista os seus relevantes efeitos
sociais.
Mas vejamos agora como o establishment científico do
final do século XX responde ao programa iluminista de li-
beração de suas potencialidades criativas e ao exercício de
sua autonomia intelectual. A propósito, citaremos um texto
de um livro, publicado em 1956, sobre a situação dos Esta-
dos Unidos. Embora seja o relato de um livro publicado há
A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO TENDÊNCIAS OPOSTAS? 85
44 anos, e os números atuais sejam diferentes, a atualidade
de seu teor qualitativo continua, aparentemente, a mesma.
Seja, pois, o seguinte texto:
“Dos 4 bilhões de dólares que no momento se gastam com
pesquisas pelo governo, indústrias e universidades, somente
150 milhões — menos de 4% — se destinam ao trabalho cria-
dor. A maioria absoluta das pessoas envolvidas na pesquisa,
além disso, deve trabalhar em equipes nas quais não possuem
autonomia alguma, e somente uma fração insignificante está
em condições de fazer trabalho independente. Das 600.000
pessoas engajadas em trabalho científico, calcula-se que não
mais que 5.000 tenham a liberdade de escolher os seus pró-
prios problemas” (White Jr. apud Alves, 1987: 196).
Se já sabemos que a ciência, por si só, não é capaz de
contribuir decisivamente para o programa de felicidade dos
povos, deveremos, a julgar por este quadro deprimente des-
crito por White Jr., ser forçados a concluir que a instituição
da ciência não propicia sequer a autonomia intelectual para
mais de 99% do establishment. Em outras palavras, somente
um contingente que representa menos de 1% pode escolher
os seus próprios temas, o que leva a crer que a instituição
ciência está repleta de cientistas normais do perfil [P
1
] des-
crito na seção 4. Mas não convém perder o equilíbrio e emi-
tir pareceres extremistas. A ciência alcança, apesar dos pe-
sares, conquistas cognitivas de extraordinário valor. A si-
tuação da segunda metade do século XX parece indicar, no
entanto, que, em larga medida, os procedimentos e atitudes
da grande maioria de cientistas se distancia sobremaneira
daquilo que se considera como a desejável e genuína atitu-
de do educador. Em artigo recente (Bastos Filho: 2000b), ar-
gumentamos que uma luta conseqüente por um mundo sus-
tentável e justo deve afastar-se, igualmente, de duas atitu-
des extremistas caracterizadas, por um lado, pela reação
neoromântica que representa uma hostilidade radical à ciên-
cia e, por outro, na apologia triunfalista e cega da ciência.
No primeiro caso, e na sua forma mais radical, essa hostili-
86 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
dade vai até o ponto de negar, inclusive, o valor do pensa-
mento científico. No segundo caso, essa apologia pode fa-
vorecer o obscurecimento da crítica levando à reprodução
de valores que podem guardar uma semelhança com algo
muito próximo da lógica subjacente ao modelo de desen-
volvimento dominante caracterizado pela American way of
life, claramente insustentável, principalmente se conceber-
mos um caso hipotético em que tal modelo fosse generali-
zado para todo o mundo. E não esqueçamos que esse mode-
lo é mantido devido à sustentação que lhe dá um aparato
militar gigantesco, prática agressiva aos meios de sustenta-
ção da vida em vários níveis, desde a enorme utilização de
indústrias altamente consumidoras de energia até o seu po-
derio destruidor no sentido estrito do termo. Tudo isso re-
mete, mais uma vez, à questão da autonomia.
Vejamos um exemplo significativo para os nossos pro-
pósitos. Celso Furtado (Furtado: 2000) nos conta que, em
meados do século XX, o paradigma econômico dominante
no Brasil era cultivado por pessoas em torno da liderança
de Eugênio Gudim, o qual propugnava o pensamento eco-
nômico inglês que seguia a ortodoxia liberal. Em 1947 foi
fundada a Revista Brasileira de Economia, da Fundação Getú-
lio Vargas, no Rio de Janeiro, sob a direção de Eugênio
Gudim e que basicamente se mantinha graças a traduções
anglo-americanas. O pensamento rebelde, autônomo e he-
rético (estamos falando de heresia de boa qualidade) encon-
trava sérias dificuldades para se afirmar, pois a validação
que asseguraria o seu reconhecimento dependia de crité-
rios que não o favoreciam, tais como a aceitação dos artigos
correspondentes em revistas “classe A”. Muito provavel-
mente, os referees dessas revistas não estavam minimamen-
te propensos a dar aval e credibilidade a teorias econômicas
rivais em relação àquelas afeitas ao paradigma dominante.
Em 1950, Celso Furtado e colaboradores fundam a publica-
ção Econômica Brasileira. Este evento, e talvez ainda com
maior razão a CEPAL, constituíram marcos iniciais de for-
A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO TENDÊNCIAS OPOSTAS? 87
mação de um pensamento econômico autônomo no Brasil e
nos outros países da América Latina. Mas demos a palavra
ao próprio Furtado:
“Cedo percebi que se me atrevesse a usar a imaginação,
conflitaria com o establishment do saber econômico da épo-
ca. [...] Que tenhamos nos revoltado e começado a usar a
imaginação para pensar por conta própria é algo que não é
fácil de explicar. Mas a verdade é que isso ocorreu no âmbi-
to da América Latina: passamos a identificar os nossos pro-
blemas e a elaborar um tratamento teórico dos mesmos. Ha-
via uma realidade histórica latino-americana, e mais parti-
cularmente brasileira a captar. A confiança em nós mesmos
para dar esse salto tornou-se possível graças à emergência
da CEPAL no imediato pós-guerra. Mas não basta armar-se
de instrumentos eficazes. Para atuar de forma consistente
no plano político, portanto, assumir a responsabilidade de
interferir num processo histórico, impõe-se ter compromis-
sos éticos” (Furtado, 2000: 10).
E, mais adiante: “Nenhuma sociedade consegue livrar-
se completamente da ação de heréticos, e nada tem mais
importância na história da humanidade do que a heresia”
(Furtado, 2000: 12).
Estes depoimentos primorosos dizem respeito a uma du-
pla procura de autonomia. A autonomia legítima do intelec-
tual que pensa com a própria cabeça, no dizer que Furtado
atribui a Prebisch, (Furtado, 2000: 15) e a autonomia como
um compromisso com o Brasil e com a América Latina. Am-
bos rigorosamente éticos. Essa, sem dúvida, não era uma ta-
refa de pouca monta. Havia o confronto com interesses po-
derosos, que defendiam idéias como a da economia “refle-
xa”, da “vocação” essencialmente e exclusivamente agrícola,
da manutenção de nossa dependência do mercado externo
pela exportação de produtos primários, às quais se contrapu-
nham idéias diferentes, como a da defesa da industrializa-
ção, do desenvolvimento do mercado interno, de uma expli-
cação causal diversa para o fenômeno do subdesenvolvimen-
88 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
to, etc. Contextualizando os nossos argumentos, podemos
dizer, em suma, que as discriminações de gênero, raça, opção
sexual, condição periférica, condição regional que alguém
possa vir a sofrer, seguem todas uma lógica dominante per-
versa que, no fundo, é a mesma que afeta o trabalho científi-
co e o trabalho intelectual de maneira geral. A rebeldia con-
tra os ditames do FMI, e a conseqüente adoção de um mode-
lo autônomo, obedecem aos mesmos princípios unitários das
rebeldias à la Gandhi, à la Furtado, à la Buarque, à la Einstein,
à la Freire e à moda de todos aqueles que querem ser donos
de seu próprio destino. Consubstanciaríamos esta tese com
mais dois argumentos: o manifesto-proposta de Buarque re-
quer uma mudança ética que aceitasse a regra da violação da
isonomia nas escolas em função da realidade do mercado de
trabalho (Buarque, 1999: 73), uma valorização e priorização
das licenciaturas (Buarque, 1999: 82)
e uma mudança ética na
Universidade brasileira que implicasse uma reorientação de
seu esforço (Buarque, 1999: 81). Isso significa que o combate
à pobreza requer uma valorização da educação que vai na
direção contrária ao atual recrutamento acrítico de quadros
para alimentar a ciência normal, consubstanciada na atual
primazia do bacharelado sobre a licenciatura. Isso, em outras
palavras, significa reorientar, de maneira drasticamente in-
versa, os mecanismos de prestígio do trabalho acadêmico, o
que, por sua vez, significa enorme desafio. A Educação au-
têntica e uma ciência crítica e imaginativa constituem o bom
caminho tanto para a eliminação da pobreza quanto para a
conquista da autonomia. Os desafios são enormes, e não po-
demos dispensar as utopias. Faz-se mister uma grande refor-
ma tanto da Universidade quanto do pensamento, no senti-
do apontado por Morin (Morin: 1999).
Observações finais e conclusões
Do que discutimos aqui, transparece como notório o
fato de alguém que tenha sofrido influências que constituem
A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO TENDÊNCIAS OPOSTAS? 89
tendências opostas vive, ou pode viver, um conflito. Este
conflito pode ser resolvido de três maneiras: por uma opção
traumática e corajosa, por acomodação, subserviente ou não,
ou por uma espécie de convivência com o dilema corres-
pondente.
O conflito se manifesta quando as pessoas são solicita-
das a responder a situações que tanto envolvam críticas quan-
to fortes convicções dogmáticas. Argumentamos que a ques-
tão passa, necessariamente, pelo exercício da autonomia.
Não obstante a genialidade existir, o que pode ser
consubstanciado por formidáveis, admiráveis e extraordi-
nários feitos que enaltecem o espírito humano, a apologia
triunfalista e cega da genialidade, presente no ensino anti-
histórico e artificialmente adulterado por linearizações gros-
seiras, constitui manobra política que tem muito a ver com
a força e a eficiência da ciência normal, principalmente da-
quela do tipo bem rasteiro que denotamos por [P
1
].
Caracterizando o sistema dominante, há ingredientes
externos e internos e razões que podem ser explícitas, im-
plícitas e até mesmo subliminares. Se nos for permitido dar
a palavra a um sujeito indeterminado que represente o sis-
tema dominante, poderíamos ouvir algo assim: “Cientistas
extraordinários como Galileu, Newton, Maxwell, Einstein,
Pasteur, Darwin e Euclides são raríssimos, e somente gente
desse nível pode realizar contribuições de grande imagina-
ção e criatividade seminais e fundamentais a ponto de ca-
racterizar trabalho extraordinário. Você é qualquer um, logo,
‘ponha-se no seu lugar’ e procure inserir-se na ciência nor-
mal, simplesmente sendo um operário do saber. Contente-
se em ser apenas mais um”.
Mas, como é fácil de ver, um parecer como o acima emi-
tido pelo sujeito indeterminado que representa o
establishment dominante, que provê a formação de quadros
para o ensino e para a pesquisa, não seria o mesmo que
emitiriam, por exemplo, Einstein, Pascal, Kant, Paulo Freire,
entre muitos outros. Einstein consideraria deprimente ser
90 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
mais suceptível a sugestões modistas do que os cavalos;
Paulo Freire consideraria contrária à ética a castração do
outro, subjacente à própria prática rasteira de ciência nor-
mal; Pascal consideraria indigno constranger o caniço
pensante a renunciar, justamente, ao próprio apanágio de sua
dignidade, que é o seu pensamento; Kant, não dispensaria
o uso autônomo do pensamento nem mesmo no caso extre-
mo em que Deus aparecesse em pessoa e se revelasse.
Mas o sujeito indeterminado poderia, ainda, contra-ata-
car e dizer: “Há uma enorme distância entre a prática e a
prédica e Einstein é Einstein. Ele pode fazer o trabalho ex-
traordinário, mas de nada adiantariam os seus conselhos
para quem não fosse capaz de realizar o trabalho extraordi-
nário”. Neste exato momento, a manobra política do
establishment dominante se manifesta com toda a sua opres-
são e perfídia. Mas, felizmente, há um erro fundamental nas
conclusões do sujeito indeterminado. Esse erro tem conse-
qüências perversas. Felizmente, pode ser apontado com toda
precisão. Vejamos como. Efetivamente, ser autônomo e crí-
tico não significa fazer o mesmo que Einstein, ou fazer algo
do mesmo nível de Einstein e de outros cientistas extraordi-
nários. Autonomia requer, necessariamente, a autonomia de
cada um, o que significa a liberação das potencialidades crí-
ticas, imaginativas e criativas de cada pessoa individualmen-
te e/ou de grupos de pessoas em sinergia umas com as ou-
tras. O que se reivindica é a autonomia com respeito às
potencialidades. E se o universo de possibilidades se encon-
tra obstruído, que sejam envidados esforços para a sua
desobstrução.
Se não admitirmos isso, estaremos assinando embaixo
o atestado de que, com exceção de figuras extraordinárias,
ninguém mais poderia ser crítico, imaginativo e criativo; não
seria possível emitir juízos de valor sobre questões comple-
xas nem ter aspirações legítimas de cidadania. Pensar e ser
feliz é mais promissor do que simplesmente ser eficiente,
principalmente se a lógica da eficiência é perversa.
A CIÊNCIA NORMAL E A EDUCAÇÃO SÃO TENDÊNCIAS OPOSTAS? 91
Agradecimentos
Agradecemos ao Professor Fernando Lang da Silveira
(UFRGS) pelo envio do livro A crítica e o desenvolvimento da
ciência e à Professora Paula Yone Stroh (PRODEMA/UFAL)
que, além da sugestão do livro de Morin, também nos suge-
riu que enviássemos o presente trabalho ao Prof. Marcel
Bursztyn (CDS/UNB).
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CAPÍTULO 4
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO NA
CONTEMPORANEIDADE: dilema ou desafio?
Elimar Pinheiro do Nascimento
Introdução
O cartesianismo, apesar de vilipendiado aqui e acolá, é
um método respeitável. Para alguns, desculpável. E, às ve-
zes, útil. Neste caso, não é possível proceder de outra for-
ma. Para abordar a relação entre estes os dois termos do
título — na contemporaneidade — é necessário proceder por
etapas. No caso, isso significa:
•fundar as bases da questão;
•descrever seus os termos integrantes; e,
•concluir com algumas indicações ou sugestões.
Descartes, é conhecido, não tem muita guarida nos tró-
picos. Por isso mesmo, a ordem da exposição não será rigo-
rosamente a acima sugerida. Arriscaria ficar burocrática ou
desinteressante para um leitor tropical como o brasileiro.
Para abordar o tema da relação entre educação e de-
senvolvimento, na contemporaneidade, é necessário, mes-
96 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
mo que rapidamente, iniciar por uma visita ao processo de
gestação de um e outro termo. Para usar um paradoxo, edu-
cação e desenvolvimento são termos concebidos usualmen-
te como distintos, mas sempre apresentados juntos. São,
na verdade, dois fenômenos ou processos sociais pensa-
dos articuladamente, um remetendo ao outro. Sem, no en-
tanto, deixarem de terem as próprias identidades. Ambos
nascem, ou são inventados, no interior daquilo que de-
nominamos normalmente modernidade. A educação, tal
como a conhecemos hoje, e o desenvolvimento, tal como
o concebemos hodiernamente, são frutos da sociedade
moderna. Em sociedades pretéritas estes dois termos não
representavam temas ou problemas. Enfim, não eram
objeto de discussão. Simplesmente não existiam enquan-
to questões, menos ainda de forma relacionada. Pode-se
contra-argumentar que os gregos antigos pensaram a re-
lação. Ledo engano. Esquece-se de que os termos eram
outros. A educação tinha uma concepção distinta, assim
como a história. A educação, embora concebida de forma
global, era uma questão de poucos: varões, livres e cita-
dinos. E a noção de desenvolvimento, tal como a utiliza-
mos hoje, era inexistente no pensamento e no dicionário
dos gregos antigos.
Uma sociedade apaixonada por si mesma
Uma das características centrais da sociedade moder-
na é a sua auto-reflexividade, sinaliza Giddens.
1
Esta é a
única sociedade que tem a obsessão de pensar sobre si mes-
ma. De se interrogar constantemente. Em grande parte pelo
tipo de saber que a constitui: as ciências humanas, uma in-
venção moderna, cujos resultados os homens partilham,
comentam, se interessam. E se alimentam em seu dia-a-dia.
A sua finalidade não é conhecer os homens tais como eles
1. Anthony Giddens, As conseqüências da modernidade. São Paulo, Unesp, 1991.
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 97
são, mas como eles se representam, diria Foucault.
2
Elas não
se cansam de perscrutar a sociedade, de inquirir os homens
e as mulheres sobre os seus desejos e satisfações, sobre seus
projetos e decepções, seus comportamentos e hábitos. Não
se cansam de querer conhecer as relações que os homens
estabelecem — ou imaginam estabelecer — entre si e com a
natureza. Não se fatigam em diferenciar as estruturas so-
ciais, sinalizar a diversidade e as mudanças. Fixar a forma
como os homens as representam. E de tentar, permanente-
mente, perscrutar seu futuro. No íntimo, somos eternos apai-
xonados por nós mesmos. Em resumo, o que as ciências
humanas fazem é se perguntar o que nós somos e para onde
vamos, como a velha filosofia. Mas em outros termos. Com
outras expressões. Com mais modéstia. E sem esquecer o
seu lado prático, que é o de tentar responder questões ba-
nais: Onde e como podemos ganhar mais dinheiro? Ou ques-
tões vitais, em certos momentos de nossas vidas, como: Qual
a melhor profissão ou o melhor curso a fazer? Ou questões
fundamentais quando assumimos responsabilidades públi-
cas: Qual a melhor decisão? Quais as conseqüências desta
ou daquela decisão? As ciências humanas penetram e te-
cem, conosco, o nosso cotidiano. São teorias que nascem de
nosso cotidiano e nele desaguam.
Como resultado dessa característica das ciências so-
ciais, nasceu a reflexão sobre o desenvolvimento. Relaciona-
da, inicialmente, ao Iluminismo, no século XVIII, e ao Positi-
vismo e à sua ideologia do progresso, no século XIX. Na
sociedade moderna, os homens se perguntam: Como e em
que condições um país se desenvolve mais que outro? Em
que consiste o desenvolvimento? Quais suas distinções em
relação ao simples crescimento? Por que os Estados Unidos
tornaram-se a maior potência econômica do mundo, enquan-
to o Brasil, com dimensão e história tão próximas, não con-
segue sair da posição de médio desenvolvimento, segundo
2. Michel Foucault, As palavras e as coisas. São Paulo, Martins Fontes, 1990.
98 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
o último relatório do Desenvolvimento Humano divulgado
pela ONU?
De forma idêntica, nos interrogamos sobre a educação:
Qual o papel que desempenha nas sociedades? Qual a sua
função como fator de desenvolvimento? Encontra-se atual-
mente em declínio ou não?
É claro que as questões não são, assim, tão simples. As
próprias noções básicas de desenvolvimento e educação são
mais complexas e múltiplas, possuem sentidos distintos.
Conceitualmente podem ser abordadas de formas diferen-
tes. Segundo a corrente do pensamento social que se consi-
derar, desenvolvimento pode significar uma coisa ou outra
e educação pode ter muitos significados. E, sobretudo, mui-
tas justificativas e avaliações.
3
Tem-se em conta, normalmente, que a educação é fun-
damental para o desenvolvimento. Sem uma preparação
adequada de seus membros, uma comunidade não pode
progredir, se desenvolver. Sem uma educação de qualida-
de, não tem como o indivíduo inserir-se favoravelmente no
mercado de trabalho. Essas são idéias do senso comum. A
educação cria condições indispensáveis ao desenvolvimen-
to. Por sua vez, este obriga a que o processo de aprendiza-
gem se modifique. Enfim, uma e outro podem desempenhar
papéis vitais na relação, segundo as circunstâncias e o mo-
mento. Mas, antes de nos afogarmos nas idéias comuns, vale
a pena perguntar um pouco sobre as suas bases, sobre a sua
gestão.
A escola como invenção da sociedade moderna
Não restam dúvidas de que a escola, como instrumen-
to central de educação, tal como a conhecemos hoje, é uma
3. Ver, entre outros: Manfredo Berger, Educação e dependência. Rio de Janei-
ro, Difel, 1977; Angelo Brocolli, Ideologia e educazione. Firenze, La nuova Italia,
1974; Arnould Clausse, A relatividade educativa. Coimbra, Livraria Almedina, 1976.
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 99
invenção da sociedade moderna. E sua definição mais
consensual pode ser assim expressa: espaço generalizado
de socialização e transmissão de conhecimento, separado
da produção. É claro que ela é também o espaço de produ-
ção de conhecimentos. Mas este aspecto é mais específico e,
ao mesmo tempo, mais complicado. É preferível, pelo me-
nos inicialmente, separá-lo.
Essa definição significa que apenas na sociedade mo-
derna a educação passa a ter um espaço próprio e uma sepa-
ração do processo produtivo. Antes, os conhecimentos eram
transmitidos no âmbito da família ou nas oficinas de traba-
lho. Raramente, no interior das igrejas e dos monastérios. Não
existia a condição de estudante, mas a de filho e aprendiz.
Salvo exceções: os filhos da aristocracia podiam ter precepto-
res de música, de filosofia, língua, etc. Tinham, o que chama-
ríamos hoje, aulas particulares. Portanto, não existia escola
como espaço generalizado, para todos. Assim, o processo de
aprendizagem era familiar e profissional, e os conhecimen-
tos transmitidos dependiam do papel que o indivíduo espe-
rava exercer, tanto social quanto profissionalmente. Por isso,
não havia, com raras exceções, preocupação com a aprendi-
zagem profissional das mulheres, normalmente pensadas
como agentes externos à produção. E muito menos com os
escravos, destinados ao trabalho pesado e braçal.
Na sociedade moderna, aos poucos, foi ganhando cor-
po a idéia de uma escolaridade de massa. Na passagem do
século XIX para o XX, ou apenas neste século, como entre
nós, a escola generalizou-se. Os argumentos para defender
o direito da escolaridade para todos eram três:
econômico: as novas formas de produção — basica-
mente a industrialização — que nasciam no século
XIX — necessitavam de um número crescente de
homens alfabetizados;
político: o processo de construção dos direitos ine-
rentes à moderna noção de cidadania requeria indi-
víduos cônscios de seus deveres e direitos; e,
100 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
nacional: a escola foi um instrumento central na cons-
trução da nacionalidade, na divulgação de uma lín-
gua comum, de uma tradição, de uma identidade.
Os indivíduos, para serem cidadãos e nacionais, ti-
nham de conhecer, além de seus direitos e deveres,
as leis e a história de seu país, suas tradições e costu-
mes.
Estávamos, então, em plena época do nacionalismo,
da urbanização e da industrialização. As cidades se torna-
vam o centro da comunidade, administrativa, política, eco-
nômica e culturalmente. A indústria tornava a forma mais
avançada e mais rica de produção. As nações se constituíam
em Estados, e estes assumiam os papéis de instrumento de
regulação econômica, de segurança comunitária e de
defensoria dos direitos individuais. Época do nascedouro
e da vitória do pensamento liberal contra o conservador,
mas também da invenção da democracia universal. Não mais
a grega, restrita e obrigatória. Mas geral e irrestrita. Época
da construção de direitos: civis, políticos e sociais. Da pro-
clamação da lei única: “Todos os homens são iguais perante
a lei”.
A generalização da escola nasce da modernidade. Mas,
ao mesmo tempo, é construtora da sociedade moderna.
Três leituras interpretativas da escola
Outra forma de traduzir essas mesmas idéias pode ser
encontrada nas três leituras seguintes, que se tornaram lu-
gar comum no pós-Segunda Guerra Mundial:
1. Instrumento de mobilidade social. É por meio da
educação que os pobres podem ascender socialmen-
te, os indivíduos podem melhorar de vida, romper
com a pobreza, mudar de papéis e de status para
outros considerados hierarquicamente superiores
pela sociedade.
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 101
2. Condição do crescimento econômico. A educação
qualifica a força de trabalho necessária ao processo
de crescimento econômico, tornando-se, assim, in-
dispensável; os homens partilham a idéia comum
de que quanto mais educado e profissionalmente
qualificado é um povo, mais desenvolvido é o país.
3. Dever cidadão. A educação em massa não é apenas
necessária economicamente, nem serve apenas para
a ascensão social, é imprescindível para formar ci-
dadãos: indivíduos revestidos de direitos com no-
ção de pertencer a uma comunidade maior, à pátria.
Esta “identidade das identidades”, que nos reúne a
todos, independentemente de sexo, religião, cor, pro-
fissão, riquezas ou time de futebol. Por isso, Vargas
fecha as escolas alemãs e japonesas e obriga os fi-
lhos dos imigrantes a freqüentar as escolas brasilei-
ras. E os países europeus perseguem as línguas de
dialetos locais.
A primeira leitura foi objeto de grandes discussões nas
décadas de 1960 e 1970. Uma corrente de intelectuais, no
mundo inteiro, considerou-a como uma falácia. Nos termos
mais correntes: a estrutura educacional servia apenas para
reproduzir a alocação hierárquica dos indivíduos. Em lugar
de permitir a sua ascensão, ensinava-lhes os seus lugares.
Bourdieu, na França, e Luiz Antonio Cunha, entre nós, fo-
ram dois dos maiores expoentes dessa leitura crítica do pa-
pel da educação como instrumento de ascensão que os ame-
ricanos, antes de outros, pregavam com o seu tradicional
pragmatismo e conhecida superficialidade.
4
A segunda leitura — por longo tempo consensual —
perdeu parte de sua força argumentativa por duas razões
relacionadas ao processo recente de inovação tecnológica e
reestruturação da produção. As mudanças marcantes na eco-
4. Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, A reprodução. Rio de Janeiro,
Francisco Alves, 1975.
102 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
nomia mundial, sobretudo a partir da década de 1980, mos-
tram que a necessidade de força humana para a produção é
cada vez menor. A produção e a produtividade hoje não
necessitam, para crescer, de aumento do contingente de for-
ça de trabalho envolvido. Em alguns setores, como o auto-
mobilístico, tem ocorrido uma exacerbação desse fenôme-
no. O setor tem dispensado trabalhadores para garantir o
aumento da produção e da produtividade. Um novo padrão
técnico-econômico, aparentemente, estaria em gestação, no
qual a dispensabilidade crescente da força de trabalho seria
a característica mais marcante. Por outro lado, há maior exi-
gência de qualificação para os trabalhadores de qualquer se-
tor. Qualificação à qual o ensino básico não mais corres-
ponde.
5
Isso não significa que só terão lugar no mercado de tra-
balho futuro — por exemplo, nos próximos 25 anos — tra-
balhadores altamente qualificados. Não se trata disso. A
sociedade moderna sempre se caracterizou pela convivên-
cia de mercados de natureza distinta e níveis tecnológicos
altamente diferenciados. Haverá, durante muito tempo, lu-
gar para trabalhadores com baixa ou média qualificação. Na
agricultura. Na construção civil. Nos serviços de limpeza e
de manutenção. Entre outros. Mas os postos de trabalho de
pouca qualificação serão cada vez em menor número, cada
vez mais exigentes em escolaridade, a remuneração cada vez
mais baixa, relativamente, e os direitos trabalhistas cada vez
mais restritos, tendendo, simplesmente, a desaparecer em
alguns lugares da Terra. Noutros, não haverá problemas,
porque estes direitos nunca existiram.
No caso do Brasil, o número de trabalhadores fora do
abrigo da lei, que já é a maioria, tenderá a crescer ainda mais.
Ou melhor, a maioria dos trabalhadores estará sob o abrigo
de uma lei que não o protege, mas apenas ao capital.
5. Essa é uma longa discussão que tem seu início ainda na década de 1980 e
reúne farta literatura a respeito. Ultimamente tem feito sucesso o trabalho de
Manuel Castells, A era da informação. São Paulo, Paz e Terra, 1998-1999, 3 v.
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 103
A perda da força argumentativa que relaciona educa-
ção e desenvolvimento é ainda maior entre os intelectuais
que acreditam na irreversibilidade das atuais tendências
econômicas e, mais, que crêem que o mundo do trabalho,
tal como foi criado no século XIX, desaparecerá no século
que se inicia.
6
Necessidade x desnecessidade da educação de massa
Assim, duas interpretações persistem, convivem e se
digladiam na abordagem da relação educação e desenvol-
vimento. A primeira afirma o tradicional: a educação de
massa é condição indispensável ao desenvolvimento eco-
nômico. A segunda afirma que a educação de massa não é
mais necessária, pois a produção moderna não necessita de
mais mão-de-obra. Necessita de menos, porém melhor. Todo
o esforço que os organismos internacionais fazem atualmen-
te no sentido da universalização da escola é apenas o sinto-
ma da sua crescente desnecessidade econômica. No mundo
atual, segundo esta interpretação, a função central da escola
seria outra, pertencente ao mundo do controle e da sociali-
zação, e não mais da preparação para a produção.
Dessa forma, a terceira leitura ganhou relevância, e jus-
tamente na medida em que a primeira e a segunda perdiam
seu charme. Não no sentido de uma necessidade de intro-
duzir o sentimento nacional, mas no sentido de introduzir
noções de civilidade e conformidade social.
Em face dessas três leituras há, de forma simples, duas
posturas: a primeira afirma que elas são opostas, o que sig-
nifica que cada pessoa teria de optar por uma delas; a se-
gunda afirma que o caráter excludente entre elas é falso. As
duas proposições são conciliáveis.
6. Domenico de Masi, O futuro do trabalho: fadiga e ócio na sociedade pós-indus-
trial. Rio de Janeiro, José Olympio, 2000.
104 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
O que predominou entre nós foi a primeira postura, a
da exclusão. É possível pensar diferentemente e identificar,
nas três leituras, uma certa complementaridade. Neste caso,
é necessário explicar. Para isso, é preciso realizar uma di-
gressão interessante e útil. Uma revista a velha discussão
sobre a natureza da sociedade moderna.
A alma da modernidade
A sociedade moderna pode ser definida de diversas for-
mas. Aqui quero enfatizar alguns poucos traços que, além de
centrais, são relativamente consensuais. Em primeiro lugar,
é uma sociedade revestida de mobilidade social, portanto,
aberta. Não há uma cristalização institucionalizada. A igual-
dade perante a lei é um imperativo essencial, sem o qual uma
sociedade não é reconhecida como moderna. Mesmo que não
assuma formas claras de regime democrático. O poder políti-
co é concebido como impessoal. Trata-se de um lugar e de
uma função, que podem ser ocupados ou exercidos, teorica-
mente, por qualquer membro da comunidade política. Su-
pondo, portanto, a alternância do poder. Sobretudo que, nos
tempos modernos, democracia significa não apenas a expres-
são da vontade da maioria, mas o respeito aos direitos funda-
mentais da minoria. O Estado nacional é a forma de organi-
zação, implicando noções de territorialidade e soberania. O
conflito é parte integrante e constituinte da sociedade, e ela
constrói e detém mecanismos que permitem sua resolução,
extinguindo, assim, com a noção de exterioridade. O indiví-
duo é o suporte básico da sociedade moderna, e a
racionalidade sua forma superior de conhecimento. É por isso
que a ciência é, sobretudo, uma invenção da modernidade.
As tensões da modernidade
Com essas características estruturantes, a sociedade mo-
derna é atravessada por três ordens de tensão, entre outras:
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 105
(1) a tensão entre o espaço da igualdade (política, democra-
cia, cidadania) e o da desigualdade (mercado, legitimidade
dos ganhos diferenciados); (2) a contradição entre o instru-
mento pelo qual se gesta, o Estado Nação, implicando a de-
finição de soberanias nacionais, e uma base econômica sus-
tentada em um sistema vocacionado ao internacional; (3) a
tensão que constitui a sociedade moderna, referente ao pro-
cesso de integração e exclusão social. Duas lógicas opostas
que regem, em sua simultaneidade, o movimento de expan-
são da sociedade moderna como invenção européia.
7
Excluindo o fato de que essas características da socie-
dade moderna sempre se realizaram de maneira imperfeita
e restrita, alguns fenômenos recentes têm colocado em xe-
que parte destes fundamentos, redefinindo-os. Cito três, a
título de exemplificação.
O primeiro fenômeno é o de que a desigualdade social
têm crescido de tal maneira que tende a redefinir, gradativa-
mente, a concepção do espaço da igualdade, caso a tendên-
cia persista e se agrave. Pois agora não só tem crescido em
seu lugar tradicional, os países denominados antigamente
subdesenvolvidos, mas também em lugares novos, como os
países europeus e os Estados Unidos, embora este seja dis-
tinto dos anteriores.
8
A terceira onda de democratização,
9
aparentemente, inicia o seu esgotamento. E não citamos a
África, onde o espaço da igualdade mal chegou. Sem esque-
cer que há sinais claros de “cansaço democrático” na Amé-
rica Latina, embora pareçam passageiros. Porém, em vista
da tradição latino-americana, é preferível não se arriscar.
7. Estas notas estão desenvolvidas em alguns de nossos trabalhos anterio-
res, entre os quais: Globalização e exclusão social: fenômenos de uma nova crise da
modernidade? In: Ladislau Dowbor et al., Desafios da globalização, Petrópolis, Vo-
zes, 1997.
8. Os Estados Unidos sempre tiveram, neste século, um grau de desigualda-
de social bem maior que o dos países da Europa Ocidental mais desenvolvidos.
9. Samuel Huntingon, A terceira onda: a democratização no final do século XX.
São Paulo, Ática, 1994.
106 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
O segundo fenômeno é o de que o processo de
internacionalização do sistema econômico, após um longo
refluxo que durou mais de meio século — dos anos 1930 aos
1960 — voltou a crescer neste final de século de forma sur-
preendente. Este fenômeno, que terminou por ganhar o
nome de globalização, tem ameaçado a capacidade regula-
dora dos Estados. Independentemente da ideologia corren-
te de que os Estados nacionais não têm mais sentido. Aliás,
uma grande bobagem, boa para ser vendida aos países po-
bres ou emergentes, e seus “intelectuais papagaios”, como
provavelmente diria o saudoso Darci Ribeiro.
O terceiro e último fenômeno, para ficarmos restritos
aos principais: a lógica da exclusão social, aparentemente,
tem prevalecido sobre a da integração. Pelo menos no mun-
do ocidental. O que, a longo termo, não deixa de ser uma
ameaça aos fundamentos da modernidade.
Revisitando as interpretações sobre educação
Agora podemos retornar às três leituras da relação edu-
cação e desenvolvimento, da seguinte forma:
1. A mobilidade social não é necessariamente indivi-
dual, mas do conjunto da sociedade; a estrutura edu-
cacional permite que um número crescente de indi-
víduos acompanhe as mudanças estruturais, o des-
locamento dos eixos da economia. Por exemplo, a
maior concentração de trabalhadores, residindo no
setor primário no século XIX, movimenta-se, no iní-
cio do século, para o secundário e, a partir de mea-
dos deste, para o terciário. Simultaneamente, as mas-
sas trabalhadoras deslocam-se do campo para os es-
paços urbanos. E isso é possível porque vivemos em
uma sociedade aberta. A mobilidade social, apesar
de menor do que se propala, existe. É uma realida-
de, embora menos intensa do que uma certa ideolo-
gia pretende pregar. Porém, nos dias atuais, ela ten-
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 107
de a se arrefecer com o crescimento da exclusão so-
cial. E, na ausência da mobilidade social, a socieda-
de moderna se extingue.
Com a “fossilização” ou o enrijecimento da mo-
bilidade, a ruptura do círculo da pobreza torna-se
mais difícil e a escola perde parte de seu atrativo para
os setores sociais mais carentes. Soa estranha esta
afirmação no Brasil, quando a universalização do en-
sino fundamental parece ter sido, finalmente, obti-
da, ou estar próxima, com a presença de 97% das
crianças entre 7 e 14 anos na escola. Esta afirmativa,
constante de nossos últimos indicadores sociais, é
verdadeira, mas a estatística nunca diz tudo. Inscri-
ção, freqüência e aproveitamento são três fenôme-
nos distintos. A defasagem escolar ainda é muito
grande no Brasil — apesar das mudanças que bus-
cam impedir a repetência —, e a qualidade do ensi-
no é sofrível. Além do mais, apenas cerca de 73%
dos jovens encontram-se no ensino médio, e con-
cluem o ensino superior pouco mais de 6%. É ainda
um enorme funil a estrutura escolar brasileira.
A intervenção do Estado e a demanda pelo mer-
cado de mais qualificação, em parte retiveram o pro-
cesso de perda de centralidade da escola no âmbito
das populações mais pobres. A questão é: Por quan-
to tempo?
2. O crescimento econômico requer uma qualificação
diferenciada e múltipla da força de trabalho, quanto
mais qualificado o trabalhador melhor será realiza-
do o trabalho, não importa em qual setor, e a forma
de inserção é necessariamente diversa.
10
Sob o pon-
to de vista individual, recusar a educação de massa
é desclassificar-se antes de a corrida começar. De-
senvolvimento significa, necessariamente, mudan-
10. Claudio Salm, Escola e trabalho. São Paulo, Brasiliense, 1980.
108 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
ças de padrão: de produção, de consumo, de cultu-
ra, de valores... e instrumentos cada vez mais hábeis
para permitir ao cidadão compreender e enfrentar
essas mudanças, direcionando-as no sentido que
mais desejar.
O problema consiste em saber até que ponto a
escolaridade de massa é uma condição sine qua non
para o crescimento econômico, e se este pode ser
realizado com a exclusão de parte significativa da
população.
3. A educação como dever ético
11
é evidente em si. Sem
ela não há vida política, não há o espaço da igualda-
de, nem o da gestão dos bens comuns. Não existiria
a democracia. Nem os direitos humanos, nem os di-
reitos civis. Nem a sociedade moderna. Deste ponto
de vista, é um princípio constituinte da própria
modernidade, e abdicar dela seria o mesmo que
abandonar o ideário iluminista, que se encontra na
base de nossa contemporaneidade.
A minha conclusão é que essas três leituras, antes de
excludentes, são, no fundo, complementares. E indispensá-
veis.
Poderíamos nos perguntar agora por que não as reali-
zamos. Por que não se dá a devida importância à educação
como fator de mudança e mobilidade social, de integração
nacional, de democratização da sociedade e de melhoria da
qualidade de vida geral. E se não estaria em sua ausência
uma das razões maiores de nosso atraso, de nossa desigual-
dade, de nossas mazelas enquanto país e povo. Hoje, na es-
teira do relativo fracasso da escola, são as igrejas evangéli-
cas que realizam o trabalho da introdução da civilidade no
âmbito da população mais pobre.
12
11. Ari Roitamn (org.). O desafio ético. Rio de Janeiro, Garamond, 2000.
12. Bernardo Sorj, A nova sociedade brasileira. Rio de Janeiro, Zahar, 2000.
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 109
O maior desafio da educação: antecipar o futuro
A educação de massa para as crianças e os jovens, hoje,
significa construir as condições de um futuro sem exclusão
social amanhã. Porém, transmitir conhecimento é pouco: a
grande questão é operacionalizar informações numa dire-
ção ética e solidária.
O maior desafio da educação, todavia, ainda não está
posto. Consiste em se perguntar se poderá, nos tempos pró-
ximos, desempenhar o papel que tem, mal ou bem, realiza-
do até hoje. Se as mudanças no interior da sociedade mo-
derna não vão terminar por elitizar a educação e forçar os
pobres a abandonar a escola, em troca de outras formas de
ascenção social, de outros modos de afirmação de identida-
de, de outras maneiras de criação da auto-estima. Qualquer
que seja o caso, de retorno da lógica da integração ou de
supremacia da lógica da exclusão, a escola não tem condi-
ções de desempenhar os papéis que tem desempenhado até
o momento, conservando sua atual forma. Pois com os no-
vos meios de comunicação, a socialização se dá cada vez
mais por outros mecanismos, e a apropriação dos conheci-
mento se faz apenas parcialmente na escola. Em contra-
partida, a escola, nos moldes existentes, torna-se cada vez
mais anacrônica. O processo de globalização não é estranho
a esse crescente anacronismo, muito pelo contrário. Uma
reforma torna-se, assim, indispensável, diz Morin,
13
entre
muitos outros.
Uma reforma educacional implica, necessariamente,
visualizar como será, provavelmente, o futuro. Afinal, é para
ele que se dirige o esforço educacional dos adultos, mas, so-
bretudo, a expressão madura das hoje crianças e adolescen-
tes. Façamos, por isso, uma rápida navegação pelo futuro.
Os cenários são imagens de futuro plausíveis (ou dese-
jáveis), montados a partir de hipóteses mais ou menos con-
13. Edgar Morin, Tête bien faite. Paris, Seuil, 1999.
110 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
sistentes. Sob este ponto de vista, a literatura mundial espe-
cífica tem-se concentrada em três cenários mundiais. Embora
os seus títulos variem muito de um autor para outro, eles
podem ser assim denominados e descritos sumariamente:
1. O mundo global: Hegemonia unipolar, integração eco-
nômica avançada, sistema de regulação internacio-
nal eficiente, inovações tecnológicas aceleradas, im-
pactos ambientais baixos mas persistentes, conflitos
e tensões regionais e maiores desigualdades sociais.
Nesse caso, o mundo será mais rico, mais diferencia-
do, mais integrado, porém, mais desigual.
2. O reino dos blocos: Leve disputa hegemônica,
integração econômica regional, débil sistema inter-
nacional de regulação, inovações tecnológicas em
médio crescimento, redução da degradação
ambiental e menores desigualdades sociais.
3. O império da fragmentação: Hegemonia em disputa,
intensos conflitos regionais, reversão do movimen-
to de integração econômica, instabilidade e crise fi-
nanceiras, inovações tecnológicas em baixo cresci-
mento, aumento da degradação ambiental e das de-
sigualdades sociais.
O mundo será mais dividido, mais conflituoso, diferente, mas
menos degradado e desigual.
O mundo será conflituoso, mais degradado, mais inseguro e
mais desigual.
As tendências de força que regem esses cenários são mais ou
menos evidentes: reestruturação econômica; inovações
tecnológicas; integração econômica mundial; sistema de
regulação econômica; valor da conservação ambiental e aumen-
to ou diminuição da desigualdade social.
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 111
Ora, se estas são as tendências de força do futuro que
nos aguardam, não há como deixar de realizar uma profun-
da reforma educacional, pois em todos os cenários as inova-
ções persistirão, embora em ritmos diferenciados. Mudar
radical e rapidamente não apenas a estrutura escolar, mas
também seus métodos de funcionamento. O que, em parte
— mas apenas em parte, e muito timidamente —, o MEC
vêm tentando fazer ou sugerir, se bem não saibamos se pelo
bom caminho ou na boa direção.
14
O consenso dos reformadores e a experiência de Brasília
Dois pontos são relativamente unânimes entre os
reformadores nacionais ou internacionais:
a) a implantação de uma escola de qualidade e para
todos: não é mais possível termos crianças e jovens
sem escola, como também em escolas que não ser-
vem para nada; a escola tem que ser pensada, so-
bretudo, como um espaço de ensino de linguagens,
não de conteúdo — como pensar; como ter acesso
às fontes de informações realmente importantes;
como operar eficientemente com informações dis-
tintas e múltiplas; como criar, inventar, inovar;
b) o processo de aprendizagem profissional tem de
ser pensado como um espaço integrado, aberto e
flexível.
O que nos conduz a uma conclusão: é indispensável
pensar a escola como um espaço generalizado socialmente,
porém sem a anterior separação da produção. Centrada na
linguagem e no estudante, transformando o professor em
um facilitador.
O governo Cristovam Buarque, no Distrito Federal,
entre 1994 e 1998, é um exemplo singelo de como se pode
14. Essa seria, na verdade, uma outra e enorme discussão.
112 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
caminhar nesse sentido. Em quatro anos de governo, foi
possível construir, praticamente, uma sala de aula por dia
útil. Recuperar os centros de treinamento e aperfeiçoamen-
to docente. Quase que dobrar o salário dos professores.
Aumentar o seu número em mais de 15%. Extinguir o cha-
mado “turno da fome” — duas horas de aula justo no horá-
rio do almoço, em que as crianças praticamente iam para a
escola, comiam e voltavam. Iniciar uma experiência de jor-
nada de seis horas diárias. Implantar, de forma pioneira, os
Programas Bolsa Escola e Poupança Escola.
15
E iniciar a cri-
ação de um projeto pedagógico novo.
Nada de extraordinário. Tudo muito simples e concre-
to. E, sobretudo, factível dentro de orçamentos escassos,
como são os do Estado, hoje, no Brasil. Como diz o povo: é
tudo uma questão de vontade política. Basta inverter as pri-
oridades. Colocar o bem-estar da população, e sua forma-
ção, na frente do pagamento dos juros, de dívidas pouco
claras e, sobretudo, tapar os ralos da corrupção, do super-
faturamento.
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CAPÍTULO 5
SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO E
SUSTENTABILIDADE
Argemiro Procópio
Desordenamento ético
Com a natureza dando sinais de esgotamento e a de-
sordem ecológico-social longe do seu fim, resta, na periferia
mundial, pouquíssimo como elemento de troca nas relações
com os países centrais. Por tal razão, drogas ilícitas e espé-
cies nobres roubadas das florestas tropicais constituem a der-
radeira e sólida moeda de expressivo valor no intercâmbio
entre os países globalizados e globalizadores. Quanto mais
lucrativo o negócio, maior o número de pessoas interessa-
das nele! Nada reverte esta lógica capitalista.
A ausência da educação como garantia do desenvolvi-
mento sustentável, a presença do poder judiciário tal como
ele se apresenta no Brasil permite, pela morosidade de seus
juízes, o avanço da corrupção. Coze para a sociedade um
caldo político extremamente indigesto e danoso. Fragilizados
os valores éticos, a cultura da corrupção corrói tanto o Esta-
do quanto a segurança humana. Destarte, a articulação apre-
116 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
sentada nesta análise entre a falta de segurança, falta de edu-
cação com ética e crescimento sem sustentabilidade.
É preciso diferenciar ética de moral. Para Srour,
“ética não se confunde com moral como induzem erronea-
mente as expressões consagradas ‘ética católica’, ‘ética pro-
testante’, ‘ética liberal’, ‘ética nazista’, ‘ética socialista’. En-
quanto a moral tem uma base histórica, o estatuto da ética é
retórico, corresponde a uma generalidade abstrata e formal.
A ética estuda as morais e as moralidades, analisa as esco-
lhas que os agentes fazem em situações concretas, verifica se
as opções se conformam aos padrões sociais. Fica no mesmo
plano ocupado pelas chamadas disciplinas sistemáticas. [...]
Como disciplina teórica, a ética sempre fez parte da filosofia
e sempre definiu seu objeto de estudo como sendo a moral, o
dever fazer, a qualificação do bem e do mal, a melhor forma
de agir coletivamente. A ética avalia então os costumes, acei-
ta-os ou reprova-os, diz quais ações sociais são moralmente
válidas e quais não são”
1
.
Fenômenos como os da exclusão social e da insustenta-
bilidade do desenvolvimento põem em xeque ações e o pró-
prio papel do Estado na sua obrigação histórica de zelar pela
segurança humana, pela educação e pelos direitos da cidada-
nia. Nesta reflexão, ações como essas transpassam caminhos
atípicos: somatório dialógico entre valores como a ética, a jus-
tiça e a questão ambiental, amarrando possibilidades para
um presente sustentável. Isto significa navegar em busca de
riquezas explicativas novas, não apenas necessárias à exegese
da fenomenologia dos porquês da desordem social e da de-
sordem ecológica, mas também para saber o como as coisas
acontecem dentro e fora da globalização.
Nas idiossincrasias da ordem internacional, observa-se
que a violência contra o homem e contra a natureza atinge
com distintos impactos populações dos países que
1. Robert Henry Srour, Poder, cultura e ética nas organizações. Rio de Janeiro,
Campus, 1998, p. 270-71.
SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO E SUSTENTABILIDADE 117
globalizam e dos que são globalizados. Por exemplo, a maior
potência mundial, os Estados Unidos da América, pelo
consumismo de sua população é o país que, ecologicamente
falando, mais custa ao mundo. Nações da periferia mun-
dial, amarradas pelas burocracias que deixam de incre-
mentar as conhecidas alternativas de sustentabilidade, cor-
rem igualmente perigo. No caso brasileiro, os privilégios de
suas elites, a generalizada corrupção e a perversa distribui-
ção da renda sob o patrocínio do próprio Estado, proporcio-
nalmente tinge de sangue, mais que noutros países, a natu-
reza e o tecido social da nação. Daí a degradação ambiental
associada à baixíssima qualidade de vida do povo. Daí tam-
bém a violência. Tudo isso significa ameaça à democracia e
à paz, porque fragiliza a unidade nacional, notadamente na
região amazônica. Fere a histórica força simbólica desta re-
gião por causa da monumental negligência para com o social
que, por toda parte, mina as estruturas na qual estão assen-
tadas as bases do Estado-Nação.
No calendário dos infortúnios da comunidade das na-
ções, destacam-se as brutais desigualdades sociais, a falta
de educação libertadora, o generalizado desrespeito aos di-
reitos humanos, a degradação ambiental global e o
narcotráfico, sustentado, em parte, pelo hedonismo e pelo
consumismo. Os caminhos da busca do prazer a qualquer
preço são cúmplices da degradação ambiental, podendo le-
var também ao abuso das drogas ilícitas.
A clandestinidade, robustecendo os negócios da eco-
nomia das sombras, transforma o comércio ilegal de drogas
e de produtos roubados das florestas tropicais em instru-
mento de enorme capacidade de destruição social e ecológi-
ca. Fere e ameaça, inclusive, a ética do pacto social, em que
se troca a liberdade pela segurança, razão de ser do Estado
moderno. Significa desafio crucial para as democracias
hodiernas, em que até o acesso à justiça já é privilégio.
2
2. Ver Norberto Bobbio, Locke e direito natural. Brasília. UnB, 1997.
118 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
A academia percebeu que o fortalecimento do
ambientalismo e sua transformação em movimento históri-
co mundial causa profundas ressonâncias nas relações in-
ternacionais. Todavia, com o consumismo sempre a querer
mais, multiplica-se o descontentamento dos povos sob o jugo
hedonístico desta civilização. O panem et circenses, pão e cir-
co de ontem, traduz-se, hoje, por drogas, descaso para com
as verdadeiras causas da devastação ecológica e paixão pelo
poder. É bom relembrar que os grupos sociais, com históri-
ca prática de acumulação de bens e riquezas, são extrema-
mente hedonistas.
No contexto do desordenamento ético, inclusive os di-
reitos humanos são invocados para justificar decisões po-
liticamente incorretas. Falta indignação pelas causas de in-
fortúnio que assolam o mundo, inclusive a fome. Nessa
trama de desgaste moral e ético, o combate às substâncias
alucinógenas e a luta por um ambientalismo sadio trans-
formam-se em cruzadas que, graças ao monumental po-
der de corrupção das elites, costumam terminar menos
servindo aos fins e mais aos meios. Que se considere, por
exemplo, a alarmante indústria da guerra às drogas e a
não menos pérfida indústria exploradora da desgraça
ambiental.
O direito da ingerência
Tanto a “luta” contra as drogas quanto as indústrias
transformadoras do caos ecológico em lucrativos negócios
apresentam-se oportunas no exercício da hegemonia políti-
ca nas relações internacionais. A transnacionalidade do ca-
ráter dessas políticas, engolindo continentes inteiros, por
exemplo, a ação da Drug Enforcement Administration
(DEA), surgida em 1973 no lugar do Federal Bureau of
Narcotics, e espalhando-se por quase toda a periferia mun-
dial, rende frutos amargos. Aqui no Brasil, são colhidos no
quintal da casa aberta da política, que subordina o Brasil
SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO E SUSTENTABILIDADE 119
aos ditames da peleja antinarcótica globalizada sob a tutela
dos Estados Unidos da América.
Eivado de ambigüidades, o relançamento da discus-
são sobre a questão das drogas ilícitas ocorreu também em
1971, quando a Organização das Nações Unidas promoveu,
em Viena, a Conferência sobre Substâncias Psicotrópicas,
no apagar das luzes da guerra fria. Acompanhando o pro-
cesso de coexistência pacífica, distensão ou deténte, a políti-
ca internacional de repressão às drogas e as expressas preo-
cupações dos países centrais, em relação à desordem
ambiental da periferia, cresceram. Infelizmente, em nada
aliviaram o peso do fardo do atrelamento dos povos
latino-americanos ao desigual sistema mundial de poder.
Na falta de um sistema educacional emancipador e cri-
ativo, a costura do figurino usado no cenário da luta contra
os alucinógenos segue, à risca, o velho modelo de seguran-
ça hemisférica dos norte-americanos, cerzido pelas mãos
preguiçosas da Organização dos Estados Americanos. Ali-
nhava, principalmente, os países latino-americanos na
terceirização da guerra contra as drogas segundo os dita-
mes de Washington.
Tem faltado aos Estados Nacionais visão da força do
lucro gerado pelos negócios do narcotráfico e da natureza
capitalista da devastação ecológica transnacional que trans-
formaram a Amazônia no que é hoje. Há carência de perspi-
cácia política e de conhecimento acerca da realidade dos
povos, das manifestações materiais de suas atividades, in-
clusive da corrupção. Urge também construir uma espécie
de etnografia da destruição pertinente ao desrespeito à na-
tureza e ao abuso das drogas. Tão grave quanto os péssimos
resultados da acalentada militarização da luta contra os nar-
cóticos é a morosidade na construção do processo educativo,
junto aos programas ambientais, para conter o avanço da
poluição urbana e da carbonização das florestas.
Com o advento do direito de ingerência, do direito sem
fronteiras, estilhaçando como nunca o princípio da sobera-
120 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
nia, segmentos da sociedade, notadamente as Forças Arma-
das e a diplomacia dos Estados Nacionais do subcontinente,
ocultam a gravidade do perigo da degradação ambiental e
do narcotráfico como ameaças à segurança e à independên-
cia nacional.
3
Desnorteados, perdidos num mundo onde falta
a ética, os Estados tampouco dão-se conta do formidável
vetor da integração paralela das drogas em dimensão
hemisférica. Fala-se muito e faz-se nada, seja para barrar a
expansão das áreas devastadas, seja para impedir o fortale-
cimento do narcotráfico nas estruturas do poder político.
A comunidade das nações, em face do insucesso, seja
da sustentabilidade das políticas públicas voltadas para o
meio ambiente, seja do fiasco das estratégias antidrogas,
sente, indefesa, os sintomas de suas fraquezas. Por conse-
qüência, políticas dos Estados Nacionais, esquecidas da
importância do significado da educação como prevenção,
dobram-se diante da impotência da contenção da devasta-
ção ambiental no meio urbano e rural e do alastramento do
consumo abusivo de psicotrópicos.
O risco da contravenção vem tanto de dentro quanto
de fora. A ameaça corrosiva da corrupção nas Américas age
celeremente. As respostas do banditismo, em matéria de
dinamismo, causam inveja às políticas oficiais de integração,
mesmo porque, historicamente, as drogas mostraram-se efi-
ciente instrumento e vetor de integração. Na ilegalidade, a
droga proibida transformou-se instrumento da dominação,
nunca deixando de manipular as armas da corrupção.
A história do papel da coca, da cocaína e do contraban-
do das riquezas encontradas nas florestas ainda hoje per-
manece ignorada pelos estudiosos da integração. A coca, na
historiografia andina pré-colombiana, antecede realidades
hoje presenciadas do processo de integração continental.
Principalmente nas últimas três décadas do século XX, o
3. Argemiro Procópio, O Brasil no mundo das drogas. 2. ed. Petrópolis, Vo-
zes, 1999.
SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO E SUSTENTABILIDADE 121
comércio ilegal das pedras preciosas, do ouro, das madeiras
nobres, de variados produtos do extrativismo vegetal e das
drogas alucinógenas soube engordar as oligarquias, princi-
palmente por meio da sustentação do custo de suas campa-
nhas políticas e da caça aos votos conquistados pelo dinhei-
ro fraudulento, em busca da tão cobiçada imunidade parla-
mentar.
Os movimentos de integração se, em certo sentido,
como no caso da União Européia e do Mercosul, contribuí-
ram para o alargamento das fronteiras do mundo dos nar-
cóticos, poderiam, da mesma forma, criar instrumentos co-
letivos a favor da educação, com ações concertadas de me-
lhor proteção à natureza e de eficaz combate às drogas. In-
felizmente, não é isso o que se nota.
Vitalidade da corrupção
O banditismo formal, e parte expressiva dos herdeiros
da oligarquia política latino-americana emergente, ainda
vivendo do contrabando e dos frutos da desastrosa explora-
ção dos recursos naturais, possuem em suas mãos parte
importante dos negócios das drogas. A globalização dos
negócios relacionados à depredação da natureza e também
ao comércio de narcóticos leva a consensos e a estratégias
comuns. Obrigou numerosos donos do poder a arquivar tra-
dicionais disputas e rivalidades em prol da ampliação de
territórios. Curvou-os diante da convergência de irreversível
realidade: a da integração paralela das sociedades america-
nas por meio dos negócios ilícitos.
Diante dessa verdade, nenhum governo nega que o
contrabando de drogas e das riquezas retiradas ilegalmente
da terra e dos rios provocam indimensionável circulação de
dinheiro e de pessoas. Entre as três Américas, estima-se se-
rem tais negócios responsáveis pelo fluxo de somas
bilionárias. Entre outros exemplos, a movimentação de ca-
pitais, o emprego de estratégias montadas pelo contraban-
122 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
do de madeira e pelo narcotráfico, principalmente por meio
da lavagem de dinheiro, incrementam o setor industrial,
turístico, agropecuário, comercial, financeiro e da constru-
ção civil. Esses setores testemunham vivamente os ilícitos
atuando como vetor de integração econômica, com base no
seguinte tripé: corrupção, violência e lucro. Trabalham atre-
lados a uma economia informal de extrema vitalidade. Bran-
queiam como ninguém o cobiçado dinheiro protegido pelo
Estado por meio das suas instituições bancárias. Para os
países consumidores ricos direciona-se o fluxo final do di-
nheiro das drogas e das transnacionais. Estas últimas com
maestria comercializam e transformam os produtos que bro-
tam no corpo carbonizado das florestas e dos cerrados. A
soja é um exemplo entre tantos outros.
4
A vitalidade da corrupção percebe-se em países onde
valores éticos e morais esmorecem e onde a cumplicidade
das elites no poder com o crime organizado sente-se de for-
ma clara na poderosa economia informal, frutificando na
ineficiência da burocracia dos órgãos oficiais. Corrompe
juízes, elege vereadores, deputados e senadores. O crime
organizado soube criar estruturas de poder dentro do Esta-
do, e parte das engrenagens da máquina estatal passou a
ser também sua.
No esquema da dualidade do bem e do mal, recria-se o
bode expiatório dos males hodiernos. Graças a isso, o
narcotráfico e a devastação ambiental nas relações interna-
cionais transformaram-se em disputados joguetes dos ins-
trumentos de poder. Ninguém duvida de que o baixo preço
pago aos tradicionais produtos oriundos do extrativismo
vegetal levou, por exemplo, a população rural amazônica a
procurar novas opções. A mineração de prata e estanho no
Peru e Bolívia, bem como a garimpagem do ouro em vários
países da hiléia, souberam fazer crescer por anos uma mão-
4. Argemiro Procópio, Amazônia: ecologia e degradação social. São Paulo, Alfa-
Ômega, 1992.
SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO E SUSTENTABILIDADE 123
de-obra para, finalmente, desová-la em etapas distintas do
narcotráfico.
No Peru, na Venezuela e no Brasil, os garimpos de ouro,
depois de anos de desordenada exploração, mostram-se
exauridos. O contrabando de madeira, o cultivo, processa-
mento e tráfico de drogas significaram, de uma forma ou
outra, redentora opção para alguns segmentos dessas socie-
dades atormentadas pelo desemprego.
A contravenção, na extremamente ativa economia in-
formal, ilude no que toca à democratização das chances no
mercado de trabalho para a população de baixa renda. O
contrabando de produtos atrelados ao comércio das drogas
penaliza a sustentabilidade e as políticas públicas voltadas
para a questão ambiental, porque a indústria do ilegal no
Brasil, possivelmente a mais modernizada e eficiente do
Ocidente, fere e lanceta as veias do Estado Nacional. Com a
democratização, o fosso social, inclusive aquele em torno
das concepções éticas, não diminuiu. Continua abismal.
Aumenta igualmente graças ao admirável gigantismo da
economia clandestina, da corrupção política e do
narcotráfico. As elites, transformando os ganhos dos negó-
cios paralelos em lucros seus, ao concentrar substantivo
volume de riquezas fazem da exploração da natureza e da
ruína do homem pelas drogas sua lógica de poder.
Os negócios dos ilícitos, entrelaçados aos da devasta-
ção ambiental, são perversidades do cotidiano do capitalis-
mo globalizado. Na degradação humana, empurrada pela
violência e pela corrupção generalizada, o narcotráfico tem
o mesmo sangue de outros negócios extremamente prejudi-
ciais à sociedade. Todos, por sua força e penetração, indire-
tamente amparam e desmoralizam o Estado.
Dentre as variadas formas de fragilização da socieda-
de pelos entorpecentes, a utilização dos menores é das mais
cruéis.
5
O desprezo para com os bons costumes e para com
5. Argemiro Procópio (org.), Narcotráfico e Segurança Humana. São Paulo,
LTr, 1999.
124 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
valores éticos que se perpetuam na solidariedade humana;
o descaso para com a educação; a degradação da natureza,
que fere a qualidade de vida obstruindo virtudes de cida-
dania; a mania de responsabilizar o Estado esquecendo-se
de que o Estado somos todos nós; o “venha a nós e nunca
ao vosso reino” jogam sociedades inteiras na solidão acom-
panhada da cultura do vazio. Típica dessa civilização dos
esmorecidos valores éticos, a cultura do vazio transforma
o homem em carrasco e vítima do destino comum sem fu-
turo.
Negligência para com a educação
O narcotráfico recruta, notadamente no Brasil, expres-
sivo contingente de adolescentes. Subverte a ordem inter-
nacional vigente eliminadora da mão-de-obra do menor, que
ousa competir com a adulta no cenário de desemprego crô-
nico do capitalismo da pós-modernidade. Em todo o país,
alteia o consumo de drogas entre menores. Desgraçadamen-
te, em nenhuma outra nação a distribuição de drogas
tornou-se rotineira e descaradamente presente em mãos de
adolescentes. Isso explica parte dos porquês das cruéis esta-
tísticas de assassinatos dos meninos e meninas. A socieda-
de, negligente para com a vida, igualmente negligencia a
educação para o cidadão.
Precisamente na terra conhecida pelos especialistas por
seu Estatuto da Criança e do Adolescente a favor da prote-
ção dos menores, o crime ceifa vidas de crianças. Há de se
ressaltar que as drogas ilícitas e a degradação dos costumes
sustentados pela ética da solidariedade socializaram o uni-
verso de suas vítimas. Atualmente, crianças tanto pobres e
desamparadas, quanto ricas e bem alimentadas, respiram o
mesmo ar poluído. Ambas podem cair no inferno dos en-
torpecentes. As análises do fenômeno dessas desgraças im-
plicam a decomposição das diferenças. O descaso para com
a educação, o desrespeito ao meio ambiente, a sede pelo lu-
SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO E SUSTENTABILIDADE 125
cro imediato explicam o descuido pela segurança humana.
O menosprezo para com o bem comum corta o ethos da liga-
ção homem-natureza.
O menino de rua, encarnando a figura do bandido, é
equívoco estudado no livro Narcotráfico e segurança humana
6
denuncia-se o envolvimento da juventude abastada em cri-
mes relacionados às drogas.
O uso de drogas e a degradação ambiental são conse-
qüências de políticas corruptoras ligadas à luta pelo contro-
le do poder e de outras realidades. No mundo das políticas
públicas voltadas para o meio ambiente, a distância entre as
leis e a realidade é inconfundível. Sem perceber as contradi-
ções sociais, perde-se a interpretação das causas da degra-
dação ambiental e humana. Tampouco se alcança o enten-
dimento da razão das coisas. Crianças e adultos entram nas
gangues introduzindo-se nos negócios do narcotráfico, prin-
cipalmente pelo dinheiro que significa status. Sentimentos
de responsabilidade e de autoridade são atribuídos aos só-
cios dessa seara do submundo do crime. A droga distribuí-
da rende prestígio. Resumindo, droga na mão acaba com
qualquer sentimento de exclusão. Possuir droga significa for-
ça para o infrator. Tal poder nas ruas é marcado pela covar-
dia das armas, cuja abundância transformou assassinatos e
assaltos em rotina. Aí o cidadão, alvo fácil da violência, pas-
sa a ignorar a democracia e o Estado, que lhe nega a prote-
ção e a educação para a vida. A ausência do pacto social a
favor da segurança humana é meio caminho em direção à
volta aos sistemas totalitários, de triste memória, hoje equi-
vocadamente tidos como regimes da ordem e do progresso.
A tremenda despreocupação para com o social e para
com o ambiental, a falta de uma ética da solidariedade, a
falta do acesso à educação e a perversa repartição da renda
constituem a causa mortis das democracias periféricas, em
que a vocação das elites do tudo para ter esquece a ética do
6. Argemiro Procópio, op. cit., 1999.
126 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
ser. Aí aniquila-se, também por meio do consumismo, a qua-
lidade ambiental para o viver das massas.
Tirar do papel, aplicar verdadeiras políticas públicas,
primeiramente para a educação e para a sustentabilidade
da qualidade de vida, funciona como o antídoto contra a
delinqüência e, por extensão, contra as drogas ilícitas. A
violência do cotidiano mostra, como sempre, a parcialidade
na aplicação do rigor das leis. Se a democracia no Brasil for
estimada pelos resultados concretos até agora alcançados a
favor da paz e da segurança pelo país afora, se comprovará
que aqui ela é mais miragem no deserto dos bons desejos e
das boas intenções do que realidade apalpável.
Prejuízos éticos
Políticas antidrogas comparadas, por exemplo, às apli-
cadas nos países islâmicos e nos Estados Unidos da Améri-
ca, angariam variadas convergências. Apesar das ciladas das
diferenças, em todos eles a “diabolização” dos entorpecen-
tes encontra-se no cerne da estratégia de luta contra as dro-
gas. Ambos tratam com castigos os estrangeiros pegos com
substâncias ilícitas dentro de seus territórios.
Pelo fato de a cultura árabe ser berço do uso de algu-
mas drogas alucinógenas, o Ocidente precisa aprender com
as sociedades islâmicas seu ardor religioso contra o álcool,
de todas as drogas a mais assassina. A divulgação de este-
reótipos em nada auxilia. No islamismo, crianças e adoles-
centes não são vítimas do erotismo e nem das drogas com a
intensidade e freqüência conhecidos no Ocidente.
O descuido para com a educação nas escolas e fora de-
las desacredita a possibilidade de convivência pacífica com
as drogas, que existem há muito tempo, porém sem a domi-
nação delas com a intensidade de hoje. Se poucos povos
conseguiram escapar da poderosíssima influência cultural
do capitalismo das drogas, nenhum deles é tão vítima da
violência do narcotráfico como os países amazônicos. Entre
SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO E SUSTENTABILIDADE 127
estes, notadamente o Brasil e a Colômbia. Nesse contexto,
anda quase impossível ter fé nas suas políticas governamen-
tais antidrogas. Urge, então, alinhavar essas questões no
estudo da cooperação nas relações internacionais. Há que
ferir a hipocrisia impedidora do diálogo franco sobre os te-
mas da descriminalização ou da legalização, que soam qua-
se como blasfêmia.
Sem o amplo uso do exercício da cidadania no debate
sobre a degradação ambiental e sobre as drogas, ele se trans-
forma em discussão epistemológica pobre, porque não con-
segue ir além da visão do meramente convencionado entre
o legal e o ilegal. A crise dos paradigmas envolvendo o es-
quecimento da importância da educação, a falta de miseri-
córdia ativa entre os povos, a inexistência de indignação éti-
ca, a competição em lugar da solidariedade, tudo aumenta a
sede pelos narcóticos e pela degradação ambiental. Deixa
claro o grande equívoco de declarar guerra às drogas antes
de declarar guerra às causas que levam ao consumo.
Nas relações internacionais, os debates sobre as subs-
tâncias ilícitas, alimentados pela paranóica utopia da visão
do mundo sem entorpecentes, acompanham as péssimas
novidades dos resultados da fraquíssima cooperação inter-
nacional e das malaplicadas políticas nacionais antidrogas.
A sistemática teimosia pela recusa do diálogo sobre a
descriminalização ou não dos alucinógenos fecha portas a
outras oportunidades; impede ataque frontal ao tipo de ca-
pital que, em última instância, se beneficia dos negócios ilí-
citos mantidos na clandestinidade, incluindo aí os relacio-
nados à exploração predatória dos recursos naturais não-
renováveis.
As perversas forças do narcotráfico e a impiedosa de-
vastação da natureza destroem o homem, porque o capital,
alimentado por elas, coloca o lucro antes dos valores e dos
apelos à vida. A natureza hierarquizada da utilização dos
ganhos imediatos com a devastação florestal e com os en-
torpecentes bem como a imperfeição das estratégias de com-
128 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
bate ao narcotráfico expõem a debilidade das políticas pú-
blicas, principalmente daquelas voltadas para a educação.
O capitalismo das drogas adapta-se aos diferentes re-
gimes presentes no mundo globalizado das finanças. Cons-
tata-se, ao final, que a globalização forçosamente rouba a
vitalidade do Estado Nacional porque, de certa forma, entre
muitíssimas outras causas, igualmente beneficia-se do co-
mércio dos ilícitos.
O aumento vertiginoso do consumo de entorpecentes
debita à conta da sociedade pesados prejuízos de ordem,
inclusive, ética e moral. Cartéis, máfias e gangues ditam as
ordens, e suas leis são as acatadas. Na sociedade acostuma-
da com a violência e com a corrupção, poucos corajosos mos-
tram a ineficiência do proibitivo. Quase ninguém denuncia a
impotência das políticas de criminalização das drogas.
Desacompanhadas de cuidados especiais com a eqüi-
tativa distribuição da renda, com a moral e a ética social, as
políticas para o meio ambiente bem como aquelas para o
combate às drogas, na maioria dos Estados Nacionais, fruti-
ficam bichadas. Em tal contexto, pode-se perfeitamente re-
conhecer a necessidade da consciência coletiva na busca da
desobediência civil contra a ordem sustentadora da perver-
sa distribuição da renda patrocinada pelo Estado, controla-
do pelas elites corruptas. A denúncia do insucesso da re-
pressão capitalista subdesenvolvida, abatendo pobres e ino-
centando ricos, deve atrelar-se à permanente mobilização
comunitária a favor dos direitos humanos como forma de
defesa contra a violência das drogas e do acúmulo ilícito de
riquezas. O comprometimento, o envolvimento democráti-
co e consciente da ciência e, principalmente, da educação
na luta contra o narcotráfico, contra a injusta distribuição
da renda e pela sustentabilidade das políticas ambientais
poderão então deixar de ser um mero amontoado normativo
de boas intenções.
Ser contra a corrupção é saber trazer também respostas
ao controle sobre o tráfico de entorpecentes. Nascidas de
SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO E SUSTENTABILIDADE 129
uma interdependência de análises, críticas e observações,
não se entende a degradação da educação e dos valores éti-
cos sem sua inter-relação com o poder corruptivo das imu-
nidades e dos privilégios.
O contrabando, o tráfico de armas, a corrupção políti-
ca, a indústria da pirataria dos recursos naturais não-
renováveis e a lavagem de dinheiro associam-se a variadas
dimensões da economia e da vida política. Servem como
exemplo o mercado informal, a sonegação fiscal, a
banalização da corrupção e, inclusive, os altos salários em
conhecidos segmentos do serviço público no Brasil. No mar
da violência e miséria, representarão conjunto de peças
explicativas da penetração da contravenção e da covardia
civil no tecido social. Redução de danos como parte de polí-
ticas públicas voltadas para a educação não se limita a ar-
ranjos cosméticos. Equivale a uma larga compreensão sobre
a noção do valor da ética. Implica arquitetar o pacto social
enquanto ainda há tempo.
Pacto social
Em termos hobbesianos, o pacto é a troca da liberdade
pela garantia de se poder viver em paz. Ninguém desmente
a falta de segurança aportada pelo consumo abusivo das
drogas ilícitas, que arrasa milhares e milhares de seres hu-
manos. O Estado passa a imagem de fracasso se a educação
ignorar como lidar com o fenômeno. A construção em torno
da frase Homo homini lupus
7
— o homem lobo do homem —
não tem como ser desígnio de realidade peremptória. A so-
ciedade solidária, sem exclusão, transcende e desfaz a
fantasmagoria da perversidade inata do homem. O mesmo
se dá com a devastação ambiental, com o caos educacional e
com a problemática das drogas ilícitas, desventuras perfei-
7. Thomas Hobbes, O Leviatã, ou Matéria, forma de poder de um Estado eclesiás-
tico e civil. São Paulo, Editora Nova Cultural, 1988.
130 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
tamente superáveis porque o instinto de sobrevivência hu-
mana é, por natureza, forte.
Na sabedoria da verdadeira solidariedade, residem a
educação libertadora com capacidade para o diálogo,
8
atitu-
des positivas e meios para a construção do pacto social com
soluções definitivas contra o abuso de drogas nocivas e con-
tra a depredação dos recursos naturais. Recursos estes in-
dispensáveis à sobrevivência da espécie.
Ao se falar sobre o pacto social proposto por Hobbes,
vale relembrar a formação de sua nova razão ética. Para o
jesuíta Henrique C. de Lima Vaz,
“as racionalidades éticas na modernidade conhecem, no seu
ponto de partida, uma revolução epistemológica tão profun-
da quanto aquela da qual procederam as racionalidades cien-
tíficas, vindo ambas a caracterizar os episódios iniciais na
formação da razão moderna no século XVII e mostrando entre
si uma homologia de estrutura que as torna reconhecíveis
com aspectos de um mesmo grande processo de transforma-
ção da razão ocidental. Assim como Galileu foi o primeiro
artífice reconhecido da nova razão científica, assim T. Hobbes
o foi da nova razão ética. Fiel aos princípios do materialismo
mecanicista, Hobbes rejeita a teleologia do Bem, sobre a qual
se fundava a Ética antiga, ao mesmo tempo em que o seu
nominalismo tornava inassimilável pelo seu pensamento o
conceito de ‘natureza’. Desta sorte, a Ética hobbesiana é es-
tritamente egoísta e utilitária, não sendo mais do que a trans-
crição, no ‘pacto de sociedade’, do estado original do homem
como indivíduo animal guiado pelos instintos da
autoconservação e do domínio limitado apenas, no exercício
do seu egoísmo fundamental, pelo temor da morte. A con-
cepção hobbesiana da Ética reveste-se de uma significação
emblemática na gênese das nacionalidades éticas modernas,
na medida em que mostra com inconfundível nitidez o cará-
ter poético ou fabricador do conhecimento no domínio dos
valores éticos: Hobbes, com efeito, reconhece, como única ori-
8. Paulo Freire, Pedagogia do oprimido. Porto, Editora Afrontamento, 1975.
SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO E SUSTENTABILIDADE 131
ginalidade do homem, o ser o artífice da própria humanida-
de. Por outro lado, reafirma-se em Hobbes a primazia do pólo
lógico na estrutura da razão, ao propor ele a explicação do
agir ético pelo método hipotético-dedutivo, segundo o mo-
delo da geometria euclidiana. Assim, do mesmo modo como
a ciência moderna é galileiana na sua raiz, da qual nascem
seus numerosos ramos, assim as racionalidades éticas mo-
dernas prendem-se à raiz hobbesiana, da qual procedem suas
duas ramificações maiores: o racionalismo e o empirismo.”
9
Na sociedade hodierna, encarar as contravenções so-
ciais com seriedade proporcional às desgraças por elas
aportadas fere injustos direitos adquiridos pelas elites no
poder. Incomoda interesses econômicos e burocracias que,
seguidas vezes, obstruem a sustentabilidade das políticas
públicas. Por exemplo, a indústria da guerra às drogas e as
indústrias do ambientalismo existem, no mundo inteiro, com
milhares de organizações governamentais e não-governa-
mentais vivendo do dinheiro público e privado, sem dar
respostas satisfatórias. Isso demonstra a convivência per-
missiva de burocracias com a ineficiência, ocasionando per-
das irreversíveis. O proselitismo e o oportunismo castram a
capacidade criadora da educação. Alargam as fronteiras da
geopolítica da contravenção, da degradação humana e da
desgraça ambiental.
Educação na linha de frente
Em razão de constituir expressiva atividade de caráter
transnacional, por seu enfrentamento ser objeto de políticas
em nível de relações exteriores, a cooperação internacional
antidrogas deveria ser ativa e propositiva. No âmbito das
relações internacionais, sua análise política reclama pesqui-
sas sobre o papel das drogas no processo da integração pa-
9. Henrique Cláudio de Lima Vaz, Ética e a razão moderna. In: Ética na
virada do milênio: busca do sentido da vida, 2. ed., São Paulo, LTr, 1999, p. 81-2.
132 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
ralela. A comunidade científica, os educadores, os serviços
de inteligência e a diplomacia têm como dar atenção a este
fenômeno. O recurso aos prolegômenos históricos da con-
travenção e do contrabando lança luzes nos estudos sobre
os passos do narcotráfico e suas estratégias.
A globalização da guerra contra as drogas, até o mo-
mento, só tem feito a periferia sentir o efeito dos prejuízos e
nada dos benefícios. Os mentores da política interna e ex-
terna de combate ao narcotráfico não enxergam isso. Fica,
assim, difícil acreditar no sucesso das leis repressivas con-
tra o consumo dos ilícitos. A toxicomania é tão velha quan-
to o homem. Todavia, desde as inacabadas revoluções so-
ciais dos anos 60, com o fortalecimento do hedonismo e do
consumismo, a sociedade internacional assiste passiva ao
recrudescimento das drogas e aos atentados contra o meio
ambiente em diversos tabuleiros por todo o mundo.
Nos países amazônicos, a degradação ambiental e a con-
centração de riquezas preparou o terreno às atividades do
narcotráfico, presente, em escalas variadas, em todos seg-
mentos sociais. Em razão das crescentes pressões e implica-
ções do narcotráfico no plano da política externa, sucessi-
vos governos ensaiam demonstrar maior preocupação. Isto
se faz tradicional e equivocadamente por meio da criação
de novas leis, novos órgãos, novos cabides de emprego,
novos tratados e convenções internacionais.
Até agora o Estado nem mostrou como usar a educa-
ção, em todas as frentes de batalha, para enfrentar o desafio
de formular um pensamento estratégico condizente com a
dupla e simultânea tendência de interiorização e
internacionalização do narcotráfico. A preocupação com a
questão das substâncias alucinógenas internamente parece
menor que a preocupação com seus desdobramentos nas
relações internacionais. Idem para a questão ambiental. Por
exemplo, de 1986 a 1998, o Brasil passou a ser signatário de
acordos internacionais bilaterais sobre entorpecentes com
17 países: Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Cuba, Guiana,
SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO E SUSTENTABILIDADE 133
México, Peru, Paraguai, Suriname, Uruguai, Venezuela, Es-
tados Unidos da América, Itália, Portugal, Reino Unido e
Rússia. As razões da ausência de três continentes inteiros
nesta lista, África, Ásia e Oceania, não são fortuitas. Ou com-
provam as limitações da dimensão internacional da diplo-
macia antidrogas do Itamarati, extremamente atrelada ao
eixo Estados Unidos — Europa, ou o resto do mundo eco-
nomiza seu tempo, sabedor da distância entre o conteúdo
de tais acordos internacionais e sua prática.
As drogas e a questão ambiental, ambas centro de pre-
ocupação de extensos segmentos da população, levaram os
Estados Unidos da América a encarar a questão como um
desafio global e a desenvolver estratégias, forçando os alia-
dos a uma tomada de posição. Todavia, sem a ajuda da edu-
cação e da ética, a condenação pura e simples das drogas
ilícitas não resolve o problema. No enfrentamento do
narcotráfico e da devastação das florestas, nota-se que os
esforços diplomáticos e os termos operacionais encontrados
pelo Estado brasileiro até hoje não se configuram em ne-
nhum tipo de instrumento efetivo para reversão ou altera-
ção significativa do caos ecológico e do abuso das drogas
ilícitas no Brasil. Isso prova o profundo enraizamento do
hábito do consumo de drogas espelhando o descuido para
com o homem.
Não se combate a destruição do homem e da natureza
com discursos. Desacompanhados de ação, caem no esque-
cimento, inclusive aqueles proferidos, seja na Rio-92, seja
na Primeira Reunião entre os Chefes de Estado e de Gover-
no da América Latina e Caribe e da União Européia, com
participação do Presidente da Comissão Européia, no Rio
de Janeiro, em finais de junho de 1999. Nesta Cimeira todos
expressaram o desejo de cumprir e de acompanhar os acor-
dos da XX Sessão Extraordinária da Assembléia das Nações
Unidas sobre Medidas Conjuntas para Enfrentar o Proble-
ma das Drogas. Comprometeram-se a promover e a prote-
ger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.
Fortalecer a liberdade individual, congregar esforços para
134 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
combater todas as formas de crime transnacional e ativida-
des afins, como lavagem de dinheiro, tráfico de mulheres,
de crianças e de migrantes, a fabricação e o comércio ilícito
de armas de fogo, munições e materiais conexos.
A desigual repartição do pão
Pontos focais da política interna e externa de expressivo
número de países, nem por isso se enfrenta o problema glo-
bal do narcotráfico e da degradação ambiental com a serieda-
de e o rigor que merecem, porque nas democracias da perife-
ria as drogas e o contrabando de riquezas naturais transfor-
mam-se em instrumento de poder ao corromper importan-
tíssimos segmentos do judiciário, do executivo e do legislativo.
Vale repetir que a deterioração dos valores sociais, a
banalização da violência e da exclusão, a fome pelo lucro
fácil, o desleixo para com a educação, os intocáveis privilé-
gios das elites, o menoscabao ético e o hedonismo fragilizam
a sociedade. Contribuem para o crescimento da erva dani-
nha do crime organizado, que atua tanto nos negócios das
drogas quanto nos da devastação florestal. Não menos im-
portante, o testemunho da negligência e da inoperância do
Estado aniquila o cumprimento de suas funções básicas, em
matéria de educação, de distribuição de renda e de segu-
rança. A desigual repartição do pão, patrocinada pelo pró-
prio Estado, germinou a semente da banalização da
corrupção. O aprendizado forçado, levando a sociedade a
conviver em meio ambiente poluído e degradado, cheio de
corrupção e de violência, é o mais grave de tudo. Enquanto
o homem não estiver livre da algema dessa trama crimino-
sa, a conjunção desses fatores gera condições propícias ao
adensamento de problemas relativos ao desrespeito aos di-
reitos humanos, ao consumo de substâncias ilícitas e à
gravíssima depleção dos recursos naturais.
Nos espaços sociais em que a mão do narcotráfico ocupa
o lugar do Estado, distribuindo emprego e favores como
SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO E SUSTENTABILIDADE 135
pagamento por enterros, remédios, material escolar, comi-
da, roupas e promovendo o lazer, apoucam-se as chances
de a sociedade libertar-se dos grilhões do crime organiza-
do. Agora pode-se dizer o mesmo em relação à corrupção:
onde ela existe, o Estado definha. Quanto maior a corrupção,
menor a indignação refletida no número de denúncias con-
tra irregularidades e descuidos ambientais.
O não envolvimento da educação com todas as suas
potencialidades na política antidrogas dificulta a associa-
ção do debate sobre o narcotráfico com realidades igualmen-
te importantes. Esconde os elos do mencionado fenômeno
soldados a questões como a fragilidade democrática, a ex-
clusão social, a desordem, a corrupção política, a má distri-
buição de renda, a violência, o desrespeito aos direitos hu-
manos, o crescimento sem sustentabilidade, a ingovernabili-
dade, a degradação da justiça, o caos ambiental, o nepotismo
e a corrupção. Enquanto esse somatório de irregularidades
permanecer tolerado, enquanto a discussão conservar-se
restrita a níveis normativos, guiados por políticas
epidérmicas, tudo continuará de mal a pior.
Tradicionalmente, não apenas o narcotráfico, mas tam-
bém a degradação ambiental, com insistência são trabalha-
dos em termos elementares, ou seja, como questão de res-
ponsabilidade apenas estatal. Daí o oneroso equívoco das
autoridades governamentais ao perpetuar as rédeas do com-
bate nacional às drogas e à destruição ambiental, em mãos
de uma burocracia estatal pouco operativa. Em decorrên-
cia, os tribunais, as casernas e as secretarias para o meio
ambiente acreditam ser os principais — senão exclusivos —
instrumentos do Estado na resolução de problemas vin-
culados às drogas e ao meio ambiente. O resultado disso
todos conhecemos. A legislação brasileira consagrou, nos
anos 1970, um enfoque pautado na criminalização do con-
sumo, com pouquíssima ênfase à prevenção e à contenção
do tráfico interno. As conseqüências disso ainda perduram.
Pior é a constatação da inexistência, em todo esse período,
de aplicação de políticas públicas articuladas, e o desuso da
136 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
educação no enfrentamento do consumo abusivo das dro-
gas ilícitas.
Equivocadamente, pensam os formuladores de políti-
cas ser possível combater o quadro de devastação ambiental
e de proliferação do abuso de drogas, criando novas buro-
cracias. A falta de vontade nacional e de coragem civil na
luta em prol de educação para uma sociedade menos injus-
ta e ambientalmente mais saudável favoreceu, sem dúvida,
a penetração do narcotráfico e da degradação da natureza.
No Brasil, a carência de moralidade leva o legislativo, o exe-
cutivo e o judiciário a desmoronar sob o peso das regalias
de várias castas dos seus servidores. Quando o exemplo não
vem de cima, a democracia passa a ser aviltada e avacalhada.
Um mundo para todos
A geopolítica das drogas e a preocupação de um mun-
do para todos coadjuvou o morticínio do princípio da sobe-
rania, transfigurando as fronteiras nacionais mais em sím-
bolo cartográfico do que realidade política. A integração
promovida pelo banditismo desde seu nascedouro ignora o
princípio da soberania bem como limites e marcos divisó-
rios. A saída ilegal das riquezas, a poluição mercurial e o
histórico contrabando na América Latina brindam a trans-
nacionalidade com ambientes extremamente propícios à
contravenção. O contrabando, alimenta secularmente, eli-
tes e gerações de políticos no continente. Aí, com certeza,
plantaram-se as raízes históricas da tolerância para com a
degradação ambiental e do envolvimento das elites nos ne-
gócios do narcotráfico.
Não importa onde, se na Europa, na América Latina
ou nos Estados Unidos da América. Em quase todas as na-
ções, inclusive naquelas em que a legislação ambiental
aplica-se com determinação, os resultados não são de todo
satisfatórios. Na questão da política antidrogas, costuma-se
ter a cópia de experiências desastradas de outros lugares.
SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO E SUSTENTABILIDADE 137
Isso basta na argumentação para a busca de soluções pró-
prias. Por infortúnio, o Brasil está entre os últimos do mun-
do no campo da distribuição de renda, da segurança e de
justiça. Neste país, por exemplo, justiça social ainda é sinô-
nimo de distribuição de renda, o que aliás, entre nós sequer
começou.
Na Europa e Ásia, o conceito de justiça social e de di-
reitos humanos é profundamente mais radical: significa se-
gurança, educação, saúde, qualidade de vida, do ar, da água,
dos alimentos, acesso ao conhecimento, à informação, etc.
Falta, aqui e alhures, a visão do conceito da inclusão em seu
sentido abrangente, aumentando o espaço de manobra dos
Direitos de Terceira Geração e, com isso, usando a arma da
cidadania, a arma da ética e a arma da educação em políti-
cas públicas contra as drogas ilícitas e em prol da
sustentabilidade de atividades econômicas que possam subs-
tituir a lucratividade do narcotráfico.
A questão ambiental, os direitos humanos e o narco-
tráfico inscreveram-se, com prioridade, na agenda diplomá-
tica brasileira, defasados quase um quarto de século em re-
lação à pauta diplomática dos países centrais. Em um país
onde privilégios injustos são garantidos pela própria Carta
Magna, não sobram recursos para estender às maiorias o
acesso à educação, à saúde e ao direito de viver em seguran-
ça num meio ambiente limpo e seguro.
O desiderato de cadeira, como único representante
latino-americano no Conselho de Segurança da ONU,
desacompanhado dos cuidados necessários em prol de ime-
diatas e radicais reformas a favor da justiça social, dos direi-
tos humanos pode não passar de sonho. Nada é tão urgente
quanto o acesso da população aos benefícios da verdadeira
democracia. A segurança, a educação e a distribuição da ren-
da são três deles. Isso, além de fomentar a respeitabilidade
internacional pelo país, diminuiria o ritmo instável da exis-
tência nacional nas desigualdades.
O narcotráfico à solta, os direitos humanos violados e
o meio ambiente degradado, pela teoria do direito de inge-
138 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
rência ou da soberania relativa, essa trilogia constitui espé-
cie de rachadura profunda nas bases do Estado soberano e
independente. Vale como conclamação por soluções que
violam as fronteiras nacionais e os princípios clássicos da
soberania nacional. Sabedores de que as tormentas de hoje,
a favor da violabilidade fronteiriça bafejam fortes, países
como o Brasil, em lugar de contramurar suas posições
implementando políticas públicas eficientes em prol da
sustentabilidade ambiental e em prol da sinergia de recur-
sos na luta contra as drogas, acomodam-se na ilusão confor-
mista de que a criação de novas burocracias resolverá o pro-
blema.
A ação policial-militar internacional antidrogas passou
da teoria para a prática princípios intervencionistas
gradativamente incorporados ao direito internacional. O
mesmo poderá ocorrer na Amazônia e seu meio ambiente.
Por tal razão, a aplicação universal dos princípios dos direi-
tos humanos, a preservação das florestas tropicais e a guer-
ra sem fronteiras contra o narcotráfico se sobrepõe à sobera-
nia dos Estados Nacionais. Conscientes disso, o poder
castrense e a diplomacia brasileira seguidas vezes sentem-
se desamparados no seu relacionamento internacional.
Reconfiguração das políticas educacionais
O narcotráfico e o meio ambiente vistos como questão
supranacional obrigam o poder executivo no Brasil a atrelar
sua política externa a interesses dos Estados Unidos da
América. Leva o Estado a mostrar presença com os países
amazônicos e parceiros do Mercosul. Lembra a urgência do
tratamento de duas questões: a das drogas nos espaços so-
ciais transfronteiriços e a da questão da destruição das flo-
restas tropicais na Amazônia. Em respeito a isso, merece par-
ticular atenção o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA),
firmado em Brasília em julho de 1978 pelos representantes
dos governos da Bolívia, do Brasil, da Colômbia, do Equa-
SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO E SUSTENTABILIDADE 139
dor, da Guiana, do Peru, do Suriname e da Venezuela. O
TCA assistiu de braços cruzados ao abalo pelo narcotráfico,
pela devastação florestal da mútua confiança entre seus
membros. A segurança e a confiança significaram, no pas-
sado, a base maior de apoio da convivência entre os países
amazônicos. O mencionado tratado prestou-se a praticamen-
te nada, nem mesmo a uma política de resultados para con-
ter a poluição dos rios amazônicos, as queimadas ou fomen-
tar política de cooperação ao combate dos ilícitos nos espa-
ços sociais transfronteiriços amazônicos. Por isso, uma cova
rasa espera o caixão desta iniciativa diplomática natimorta.
O Tratado de Cooperação Amazônica é exemplo, nas
relações internacionais, a ser evitado. Em sua substituição,
estuda-se a criação da Organização do Tratado de Coopera-
ção Amazônica, prevendo secretaria permanente com fun-
cionamento em Brasília. Essa futura organização terá força
simbólica de ser o primeiro organismo internacional com
sede na capital brasileira. Seu perigo, antes mesmo de nas-
cer, é o de não se transformar de fato em uma agência de
desenvolvimento, integração e cooperação entre os seus
membros.
O debate sobre a questão ambiental e as drogas no es-
paço amazônico cedo ou tarde levará à importantíssima
reconfiguração contemporânea das formas das políticas edu-
cacionais e do significado da segurança democrática
hemisférica. Sabe-se ser impossível a proteção do meio am-
biente, da democracia bem como a luta contra os cartéis das
drogas em países cheios de desigualdades sociais, ampara-
das na corrupção dos privilégios adquiridos, que deseducam
a sociedade e são protegidas por leis injustas, criadas pelas
elites no poder em seu próprio benefício.
Os conceitos de sustentabilidade e de segurança hu-
mana fabricados pelo capitalismo desenvolvido, depois da
queda do muro de Berlim, recordam fraquezas das antigas
doutrinas de contenção nestes novos tempos em que os ini-
migos famosos são as drogas ilícitas, o terrorismo e a des-
140 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
truição ambiental. Mostra perfeitamente as limitações da
educação para o desenvolvimento nos tempos do
globalismo. Expõe a incompetência transnacionalizada das
políticas antidrogas. A globalização da ilegalidade das dro-
gas caminha paralelamente à globalização do crime organi-
zado. Os países globalizados arcam com os danos e com o
ônus do fiasco da guerra às drogas terceirizada pelos
globalizadores. O paradoxal é que as políticas antidrogas e
as políticas de proteção ambiental, pela Terra inteira, cons-
tituem patrimônio do monopólio dos Estados Nacionais. São
encaradas como razão de Estado e de segurança nacional.
Arquitetam-se sob as luzes do que existe de mais arcaico
dentro do realismo, mesmo sendo fenômenos brisantes da
globalização. Daí os seus equívocos. O hibridismo da in-
terpretação globalista com os tropeços explicativos em face
do velho que não morreu e do novo que não nasceu, consi-
derando a larga tradição transnacional das drogas e dos
problemas ambientais, pena em suas promessas eluci-
dativas.
Em termos de políticas ambientais e antidrogas, nenhu-
ma desvencilhou-se totalmente do oneroso fardo da in-
fluência do Estado. Neste sentido, é necessário aplaudir a
ajuda conceitual da teoria marxista, que recusa ver o Estado
Nacional como ator principal da sociedade. Para Marx, o
Estado é marionete, fantoche nas mãos de grupos dominan-
tes. Sendo assim, o narcotráfico e a devastação florestal, que
abrem, com as queimadas, espaço para a pecuária de corte e
para as monoculturas de exportação, precisam ser vistos tam-
bém como Marktpreise und Marktewert, Surplusprofit. Em re-
sumo, mercado de preço, de valor e mais-valia.
Sabe-se que o fim da bipolaridade, por certo tempo,
precipitou principalmente a academia a dar as costas para
as interpretações marxistas. Os holofotes da opinião públi-
ca internacional centraram-se em novos temas, como o des-
respeito aos direitos humanos, a degradação ambiental e o
narcotráfico. Infelizmente, a educação continuou esquecida
e a experiência de todos estes anos evidencia que o dinheiro
SEGURANÇA HUMANA, EDUCAÇÃO E SUSTENTABILIDADE 141
do contribuinte é jogado fora na compra de remédios falsos
contra a degradação ambiental e o narcotráfico.
A chave do sucesso do crime organizado, amparado
pela omissão do Estado operando contra o meio ambiente
ou com as drogas ilícitas, consiste em acompanhar com ra-
pidez a sagacidade do capitalismo, misturando os negócios
ilícitos à economia formal. Os laboratórios para o refino de
drogas, não importa onde, comprovam a esperteza sem li-
mites dos narcotraficantes. A transnacionalização das eco-
nomias, a globalização aportada pelos países globalizadores
e o desemprego misturaram gente especializada local à que
chega de fora, recriando conhecimentos necessários a prati-
camente todas as etapas do narcotráfico. As estratégias mos-
tradas pelo comércio de drogas no sentido de impedir o
desabastecimento necessário nas etapas de refino e a logística
do contrabando de madeira nobres são exemplares. Os
insumos químicos essenciais à elaboração da heroína, qua-
se os mesmos destinados à fabricação da cocaína, proces-
sam-se menos em indústrias localizadas nas cidades brasi-
leiras e mais no exterior, em quase metade nos Estados Uni-
dos. Atualmente, parte do refino da cocaína e da heroína
desloca-se para dentro de conglomerados urbanos, geran-
do situações novas. Paradoxalmente, também os produtos,
como a madeira e a soja, extraídos da Amazônia com enor-
mes e irreparáveis custos ambientais, terminam nos países
centrais, notadamente entre os que mais expressam pre-
ocupações para com os problemas do meio ambiente na pe-
riferia mundial. Isso significa que poucas esperanças resta-
rão se profundas reformas não forem efetuadas nas relações
de troca entre os desenvolvidos e os subdesenvolvidos.
10
Du-
rante décadas, as velhas doutrinas de defensão impregui-
naram-se de vícios políticos e sociais. Todo esse arcabouço
impede desmentir o caráter epidérmico das preocupações
para com a educação, a ética e a segurança humana. O di-
10. Argemiro Procópio (coord.), Ecoprotecionismo: comércio internacional, agri-
cultura e meio ambiente. Brasília, BIRD/IPEA, 1994.
142 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
vórcio do crescimento econômico com a justiça ampara a
perversa distribuição da renda. O deixar de mobilizar os
recursos educacionais em todas as regiões numa constante
vigília cívica contra as desigualdades e contra a destruição
da vida comprova o quão distante ainda está a opção pela
sustentabilidade por meio de educação e da ética.
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WEBER, Max. Sobre a teoria das ciências sociais. Tradução de Carlos
Grifo Babo. 3. ed. Lisboa, Presença, 1973.
CAPÍTULO 6
CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA O
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL BRASILEIRO*
Eduardo Baumgratz Viotti
Introdução: A herança de um estilo de desenvolvimento
O desenvolvimento foi a idéia força que mobilizou as na-
ções capitalistas pobres no pós-guerra. A grande maioria
das políticas e teorias de desenvolvimento identificaram a
industrialização como a via da superação da pobreza e do
subdesenvolvimento. Tal identificação é resultado do en-
tendimento de que a industrialização era o veículo da in-
corporação acelerada do progresso técnico ao processo pro-
dutivo e, portanto, da contínua elevação da produtividade
do trabalho e da renda.
O esforço de uma nação para industrializar-se no iní-
cio do processo de surgimento e consolidação da indústria
no mundo é, contudo, completamente diferente daquele por
* Esse documento foi escrito como um subsídio para a elaboração do capí-
tulo Ciência e Tecnologia e Desenvolvimento Sustentável da Agenda 21 Brasilei-
ra, Projeto MMA/PNUD BRA/94/016.
144 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
que passa uma nação quando já existem outras competindo
nos mercados mundiais de produtos industriais.
O Brasil é um desses casos de industrialização retardatá-
ria, ou seja, é uma economia cujo processo de industrializa-
ção ocorre em um momento em que existe um setor indus-
trial consolidado em outras partes do mundo, o qual atende
às necessidades de manufaturas dos mercados internacio-
nais, inclusive de seu mercado doméstico. Essa característi-
ca marca profundamente a natureza de seu processo de
mudança técnica e seu próprio estilo de desenvolvimento.
Contrariamente ao que ocorreu nas economias hoje in-
dustrializadas, o Brasil não pôde e não pode contar com a
vantagem de competir nos mercados (nacionais e interna-
cionais) com produtos inovadores (e que, por isso, não têm
concorrentes) ou produzidos por tecnologias inovadoras (e,
portanto, mais produtivas ou eficientes do que as utilizadas
pelos concorrentes).
A competitividade das economias industrializadas é ba-
seada no emprego de tecnologias inovadoras e, por isso,
essas economias são adequadamente caracterizadas como
Sistemas Nacionais de Inovação. Economias retardatárias como
a do Brasil, no entanto, baseiam seu sistema de mudança
técnica na absorção e no aperfeiçoamento de inovações ge-
radas nas economias industrializadas e, por isso, são me-
lhor caracterizadas como Sistemas Nacionais de Aprendizado
Tecnológico (Viotti: 1997). O fato de os processos de mudan-
ça técnica das economias retardatárias serem basicamente
restritos ao aprendizado tecnológico limita profundamente
a competitividade de seus produtos industriais.
Essa condição estrutural obriga as economias retarda-
tárias a recorrer a formas especiais de compensação pela in-
ferioridade das tecnologias que empregam em seu esforço
de industrialização. Em outras palavras, para viabilizar seus
processos de industrialização, tais economias necessitam en-
contrar mecanismos que compensem a falta de competitivi-
dade tecnológica de seus produtos manufaturados.
CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL BRASILEIRO 145
A competitividade inicial dos produtos industriais das
economias retardatárias pode basear-se nos baixos preços
locais de mão-de-obra e de matérias-primas, na exploração
(predatória ou não) de seus recursos naturais e, ainda, na
proteção ou subsídio estatal. Contudo, essas vantagens com-
parativas não são suficientes para assegurar o avanço do
processo de industrialização, assim como não o são para
garantir uma verdadeira e sustentada competitividade.
A vantagem representada pela abundância relativa de
matérias-primas é, em certo sentido, ilusória. Só será efetiva
se as matérias-primas forem vendidas para a indústria local
a preços mais baixos do que os predominantes no mercado
internacional. Isso somente ocorre quando seus produtores
são induzidos pelo Estado a fazê-lo.
Apesar de os baixos salários representarem uma van-
tagem comparativa no início do processo de industrializa-
ção, a competitividade das economias retardatárias, a longo
prazo, jamais poderá estar apoiada simplesmente nessa van-
tagem. Quatro razões fundamentais suportam essa conclu-
são. A primeira é que os salários tendem a subir com o avanço
do processo de industrialização. A segunda é que o natural
avanço tecnológico, nos demais países, certamente elevará
a produtividade do trabalho naquelas economias, reduzin-
do ou eliminando assim a vantagem representada pelos bai-
xos salários. A terceira razão é que as indústrias intensivas
em mão-de-obra estão sempre se deslocando para países com
salários mais baixos. A última e mais importante é que não
vale a pena (ou seja, não contribui para o desenvolvimento)
participar de uma competição que será vencida pelo país
que pagar os mais baixos salários. Em síntese, ter uma es-
tratégia de competitividade que se baseia essencialmente
em baixos salários é competir pela miséria, não pelo desen-
volvimento.
A necessária concessão de proteção ou subsídio à in-
dústria nascente pelo Estado tampouco será eficaz ou sus-
tentável a longo prazo se a absorção de capacidade de pro-
146 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
dução industrial não estiver associada a um eficaz esforço
tecnológico que assegure a progressiva elevação da produ-
tividade da indústria local.
As formas de compensação da falta de competitividade
tecnológica dos produtos industriais das economias retar-
datárias analisadas acima asseguram, de forma direta, ape-
nas a competitividade espúria a esses produtos. Ganhos de
competitividade são considerados espúrios quando são al-
cançados à custa da redução das condições de vida da po-
pulação (atual ou futura) ou da exploração predatória dos
recursos naturais.
Somente a competitividade autêntica é compatível com o
efetivo desenvolvimento a médio e longo prazos. Ganhos
de competitividade autêntica só podem ser obtidos por in-
termédio da efetiva elevação da produtividade ou da quali-
dade da produção nacional.
1
A única forma de assegurar ganhos de competitividade
autêntica é o desenvolvimento de um esforço tecnológico
eficaz por parte das economias retardatárias. O esforço
tecnológico dessas economias é, contudo, limitado pela na-
tureza de seus sistemas nacionais de mudança técnica.
Existem três formas básicas de mudança técnica: a inova-
ção, a absorção de inovações e o aperfeiçoamento de inovações (as
quais, na perspectiva neoschumpeteriana convencional,
corresponderiam de maneira imprecisa aos conceitos de ino-
vação, difusão e inovação incremental).
Os sistemas nacionais de mudança técnica característi-
cos das economias industrializadas — os Sistemas Nacionais de
Inovação — incorporam, além da simples capacitação para
produzir (isto é, da capacidade de absorver tecnologias
preexistentes necessárias para produzir), as capacitações
tecnológicas para aperfeiçoar as tecnologias absorvidas e
para inovar criando novas tecnologias. Essas nações seguem
1. Os conceitos de competitividade espúria e autêntica foram formulados por
Fajnzylber (1988).
CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL BRASILEIRO 147
uma estratégia tecnológica que conjuga o esforço de domi-
nar o processo de produção com um esforço deliberado e bem-
sucedido de domínio sobre o processo de produção de tecnologias.
As economias retardatárias, contudo, seguem uma es-
tratégia tecnológica que objetiva essencialmente a absorção
de capacitação para produzir produtos manufaturados. Inicial-
mente, seus sistemas de mudança técnica — Sistemas Nacio-
nais de Aprendizado Tecnológico — desenvolvem apenas a
capacitação para absorver tecnologias geradas em outros
países. Essa capacitação é melhorada, de forma natural, com
simples aquisição de experiência (em termos de tempo e
volume) de produção — learning-by-doing. Contudo, o de-
senvolvimento de uma efetiva capacitação de aperfeiçoa-
mento das tecnologias absorvidas só é adquirida como re-
sultado de um esforço tecnológico deliberado.
As economias retardatárias que desenvolveram sim-
plesmente a capacitação tecnológica para produzir podem
ser caracterizadas como Sistemas Nacionais de Aprendizado
Tecnológico Passivo. Sua reprodução econômica depende es-
sencialmente de mecanismos que proporcionem ganhos de
competitividade não-tecnológicos (espúrios) para seus pro-
dutos. As economias retardatárias que conseguem conjugar
seu esforço de capacitação para produzir com um esforço
deliberado e bem-sucedido para dominar e aperfeiçoar a
tecnologia de produção absorvida são mais bem caracteri-
zadas como Sistemas Nacionais de Aprendizado Tecnológico
Ativo. Tais economias podem reduzir significativamente sua
dependência de mecanismos que assegurem competitivi-
dade espúria para seus produtos.
A incorporação, pelos sistemas de aprendizado
tecnológico, de capacitação para aperfeiçoar as tecnologias
absorvidas representa um passo decisivo de economias re-
tardatárias em direção à redução de sua dependência de me-
canismos que asseguram ganhos espúrios de competitividade.
A competitividade das economias retardatárias, cujos
sistemas de mudança técnica limitam-se ao simples apren-
148 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
dizado passivo depende permanentemente dos baixos ou
declinantes salários reais de seus trabalhadores, da explora-
ção predatória de seus recursos naturais ou dos mecanis-
mos de proteção ou subsídio estatal.
Assim, uma importante parte das condições parti-
cularmente perversas — pobreza, miséria, desigualdade e
degradação ambiental —, características da maioria dos pro-
cessos de desenvolvimento de economias retardatárias, é
conseqüência da falta de um sistema de mudança técnica
que assegure uma competitividade autêntica para seus pro-
dutos. Em outras palavras, essas economias não consegui-
riam sobreviver se não pudessem extrair competitividade da
exploração predatória de seus recursos naturais e humanos.
O aprendizado passivo e a competitividade espúria po-
dem não ser, contudo, mera fatalidade dos processos de in-
dustrialização retardatária. Podem constituir-se, na verda-
de, em uma etapa inicial de um processo mais longo de trans-
formação de sistemas nacionais de mudança técnica. Para
isso, essa etapa inicial precisa ser sucedida por uma trajetó-
ria de aprendizado tecnológico ativo. Na verdade, é essa
lógica que justifica políticas de proteção e apoio à indústria
nascente.
Assim, a superação das condições perversas associa-
das à competitividade espúria característica da maioria dos
processos de desenvolvimento retardatário inicia-se com a
construção de um deliberado e consistente esforço
tecnológico, voltado para a superação dos limites do apren-
dizado passivo. Esse primeiro passo — a adoção de uma
estratégia tecnológica de aprendizado ativo — constitui-se,
também, em um passo necessário (mas não suficiente) para
alcançar uma estratégia efetivamente inovadora, que é a
única que efetivamente assegura o predomínio da
competitividade autêntica.
O Sistema Nacional de Aprendizado Tecnológico bra-
sileiro é, de forma geral, um caso claro de sistema de apren-
dizado passivo e, por isso, não é capaz de assegurar um
CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL BRASILEIRO 149
mínimo de competitividade tecnológica para a maioria de
seus produtos. Por isso, precisa continuar a basear grande
parte de sua competitividade em salários aviltados, na pro-
teção ou subsídio estatal e na exploração predatória de seus
recursos naturais. Isso porque carece do vetor de dinamis-
mo representado pela capacitação tecnológica para aperfei-
çoar as inovações absorvidas, além da óbvia carência da
capacitação para inovar.
Vale a pena chamar a atenção, aqui, para um fato es-
treitamente relacionado à natureza passiva de nosso siste-
ma de aprendizado tecnológico: os baixíssimos níveis médios
de educação dos trabalhadores brasileiros. Tais níveis educacio-
nais certamente constituem uma das causas da passividade
de nosso sistema de mudança técnica. Foram, contudo, tam-
bém funcionais para um sistema de mudança técnica que
conseguia viabilizar a reprodução da economia com a sim-
ples absorção da capacidade de produzir. Nessas condições,
um padrão elevado de educação da massa dos trabalhado-
res é supérfluo.
Um elevado nível educacional dos trabalhadores é de
vital importância, contudo, para sistemas ativos de apren-
dizado tecnológico, como o de algumas economias do leste
asiático. Nesse caso, o nível educacional dos operários é fa-
tor-chave da economia, na medida em que esses sistemas
também dependem do aperfeiçoamento das inovações ab-
sorvidas. Grande parte desse aperfeiçoamento deriva dire-
tamente do que ocorre no “chão das fábricas”, onde a quali-
ficação dos operários é vital para a capacidade de o sistema
aperfeiçoar as tecnologias de produção absorvidas.
Ao lado do baixo nível educacional médio da popula-
ção brasileira, outra característica estrutural do sistema de
mudança técnica brasileiro merece ser destacada aqui: a qua-
lificação relativamente elevada de seu subsistema de produção de
conhecimento científico. A base de recursos humanos e
laboratoriais para pesquisa e desenvolvimento existente no
Brasil é relativamente boa, mas parece funcionar de manei-
ra desvinculada das necessidades do processo produtivo.
150 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
A natureza excepcional da desvinculação indicada aci-
ma pode ser percebida pela análise dos dados que apare-
cem na Tabela. A contribuição brasileira para a produção
científica mundial (inferida pelo número de publicações de
brasileiros indexadas no Science Citation Index) é vinte vezes
superior a sua contribuição para a produção tecnológica
mundial (inferida pelo número de patentes concedidas nos
EUA a residentes no Brasil). A situação brasileira não en-
contra paralelo em nenhum dos outros oito países que apa-
recem naquela tabela. A relação existente entre os
percentuais de publicações e o de patentes é, no caso brasi-
leiro, doze vezes mais elevada do que a média da mesma
relação para os demais países.
Essa situação de desequilíbrio indica a ocorrência de
um certo grau de alienação entre a capacidade brasileira de
produzir conhecimentos científicos e as necessidades de co-
nhecimentos tecnológicas requeridas pelo processo produ-
tivo. O fato de a base científica brasileira, de qualidade rela-
tivamente elevada, corresponder a uma produção tecno-
lógica relativamente insignificante, está, também, relacio-
nado às características básicas do sistema de mudança téc-
nica brasileiro.
Tabela: Participação Percentual de Países Selecionados no Total Mundial de
Artigos Científicos e no Número de Patentes Concedidas nos EUA
1993
Fontes: Science Citation Index e Science and Engineering Indicators, 1996, National Science Board
(US Government Printing Office, 1996), citado em CCT Atividades, MCT/CCT,
Brasília, 1998.
Notas: (*) Percentagem do número total de artigos publicados em periódicos indexados
pelo Science Citation Index que são de autores do país correspondente. (**)
Percentagem do número total de patentes concedidas pelo US Patent Office a
residentes do país correspondente.
Brasil EUA R. Unido Alemanha França Itália Israel Coréia Japão
Publicações*(A) 1.26 33.6 7.52 6.71 5.23 2.93 1.03 1.03 8.84
Patentes 0.06 54.13 2.33 7.01 2.96 1.31 0.32 0.79 22.67
Concedidas**(B)
A/B 20.00 0.62 3.22 0.96 1.76 2.22 3.13 1.26 0.39
CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL BRASILEIRO 151
A primeira característica básica é a de que a inovação (a
forma de mudança técnica que maior potencial tem para be-
neficiar-se do avanço do conhecimento científico) é um fenô-
meno essencialmente estranho a esse sistema. Em outras pa-
lavras, o sistema brasileiro é, como anteriormente indicado,
essencialmente um sistema de aprendizado tecnológico, e não
um sistema de inovação. A segunda característica é a de que
esse sistema de aprendizado tecnológico é basicamente de
natureza passiva, isto é, o esforço tecnológico da maioria das
empresas líderes concentrou-se basicamente na simples assi-
milação de capacitação para produzir.
Com exceção de algumas poucas empresas líderes (es-
pecialmente empresas de origem estatal) que têm estratégia
ativa de aprendizado tecnológico, e algumas, raras, que che-
gam a ser inovadoras, a maioria das empresas não necessitou
realizar, durante o período de industrialização, um esforço
tecnológico significativo para assegurar sua competitividade.
O Brasil é um caso de economia retardatária que teve
um grande êxito em seu processo de absorção de capacidade
de produzir manufaturas. Conseguiu implantar um enorme
parque industrial, que conta com um nível de diversificação,
complexidade e integração alcançado por pouquíssimos paí-
ses no mundo. Esse processo de industrialização foi o princi-
pal responsável pelo fato de o Brasil ter sido o país que mais
cresceu em todo o mundo entre 1900 e 1980.
Contudo, esse expressivo processo de industrialização
foi insuficiente para assegurar o desenvolvimento econô-
mico como previam as antigas teorias de desenvolvimento.
Fracassou em seu objetivo de assegurar níveis relativamen-
te igualitários de um padrão de vida elevado e crescente
para sua população. Mostrou-se incapaz de manter seu di-
namismo, isto é, seu crescimento, a partir de fins da década
de 70. Não reduziu, antes agravou, a desigualdade da dis-
tribuição da renda nacional, além de não ter sido capaz de
eliminar a miséria. Mostrou-se, ademais, pouco responsá-
vel do ponto de vista ambiental.
152 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
Um conjunto complexo de fatores está relacionado a essa
herança do estilo brasileiro de desenvolvimento. No entanto,
a incapacidade de gerar uma dinâmica própria de desenvol-
vimento tecnológico e, conseqüentemente, de elevação da pro-
dutividade e competitividade (autêntica) dos bens e serviços
brasileiros, está na raiz de muitos daqueles problemas.
Durante os anos 1990, o Brasil abandonou as políticas
desenvolvimentistas ou industrializantes que foram, em par-
te, responsáveis pelos problemas referidos acima. Desmon-
taram-se as políticas industrial e tecnológica.
2
Passou-se a
buscar, de acordo com a nova doutrina neoliberal hegemô-
nica, a abertura e a desregulamentação dos mercados inter-
nos e externos. Com isso, esperava-se, entre outras coisas,
fazer com que a pressão competitiva, aumentada pela aber-
tura do mercado interno para produtos e capitais externos,
mudasse o padrão tecnológico das empresas e a própria
natureza do sistema de mudança técnica brasileiro.
A expectativa de sucesso dessa estratégia parte do pres-
suposto de que, em paralelo à globalização dos mercados
de produtos e capitais, estaria ocorrendo um processo de
globalização tecnológica, isto é, uma dispersão internacio-
nal do processo de produção e emprego de inovações. Por
isso, a abertura dos mercados brasileiros criaria as condi-
ções necessárias para que o país pudesse beneficiar-se des-
se processo de redução das diferenças dos sistemas nacio-
nais de mudança técnica.
As melhores evidências, contudo, não corroboram a su-
posição da existência de um fenômeno generalizado de
globalização tecnológica.
3
Parecem indicar até mesmo a pro-
babilidade da ocorrência do contrário, isto é, da existência
de um processo de especialização e diferenciação crescen-
tes dos sistemas de mudança técnica das nações, conse-
2. As grandes linhas da política de C&T brasileira nos anos 1990 podem ser
vistas em Viotti, 1998a.
3. Ver a esse respeito Archibugi e Michie (1995), Lastres (1995 e 1997), Patel
e Vega (1997), Patel e Pavitt (1995 e 1998) e Viotti (1998b).
CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL BRASILEIRO 153
qüência do processo de globalização em geral. Há indica-
ções de que a globalização esteja, particularmente no que se
refere ao processo de inovação estrito senso, contribuindo
para a consolidação de ilhas nacionais de competência, cer-
cadas por oceanos de nações sem competência para inovar.
Portanto, não é possível crer que a simples inserção da
economia brasileira nos mercados internacionais globali-
zados representará uma solução natural para o problema
de seu baixo nível de desenvolvimento tecnológico. A pres-
são competitiva dos mercados abertos não parece ser, isola-
damente, suficiente para mudar a natureza do sistema de
mudança técnica brasileiro.
Obviamente, também não é possível sustentar a visão
ingenuamente otimista de que a liberalização da economia
poderá ser responsável pela superação do padrão perverso
de distribuição de renda característico do Brasil. Apesar de
essa política poder contribuir para a redução da iniqüidade
na distribuição de renda pelo combate à inflação e ao prote-
cionismo, existem sérias razões para crer que outros vetores
do processo de concentração estejam sendo introduzidos ou
reforçados por ela. Um forte indício é o fato de as políticas
neoliberais estarem contribuindo para o aumento das desi-
gualdades sociais até mesmo em países como os Estados
Unidos e o Reino Unido.
Portanto, não há razão para continuar a crer que a me-
lhor política é a não-política, como propõe a doutrina econô-
mica hoje dominante. Muito tempo já foi perdido na fé de
que a solução dos problemas brasileiros viria do simples
desmonte das políticas desenvolvimentistas e da conseqüen-
te liberação das forças e potencialidades do livre mercado.
C&T para o desenvolvimento sustentável brasileiro
O desenvolvimento que se almejou durante grande
parte do século XX não foi alcançado pelo Brasil, como
tampouco o foi pela maior parte das outras nações pobres.
154 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
Tomou-se consciência, ademais, da insustentabilidade do
estilo de desenvolvimento das nações ricas e da impossibi-
lidade de sua universalização. Nesse contexto, surge, nos
fins do século XX, uma nova idéia força que está progressi-
vamente mobilizando as nações: o desenvolvimento sustentá-
vel. Um novo estilo de desenvolvimento que tem como meta
a busca da sustentabilidade social e humana capaz de ser
solidária com a biosfera. A sociedade brasileira, em conso-
nância com esse movimento universal, também busca cons-
truir esse novo estilo de desenvolvimento.
O antigo estilo de desenvolvimento brasileiro já se en-
contrava comprometido pelas enormes limitações de nosso
processo de geração e absorção de conhecimentos científi-
cos e tecnológicos. A meta muito mais ambiciosa, represen-
tada pelo desenvolvimento sustentável, reforça de maneira
mais profunda a necessidade de transformação daquele pro-
cesso. Tal transformação deverá ser o objeto de uma nova e
também ambiciosa política de ciência e tecnologia.
A construção dessa nova política precisa não só supe-
rar as limitações que a herança do velho estilo de desenvol-
vimento nos deixou como, também, construir as bases téc-
nicas e científicas necessárias à sustentabilidade social, eco-
lógica, econômica, espacial, política e cultural.
A construção de um novo sistema nacional de mudan-
ça técnica que viabilize processos produtivos cada vez mais
adequados a todas aquelas dimensões da sustentabilidade
deve ser o principal objetivo da nova política de C&T.
A eficácia da política voltada para a construção desse
novo sistema de mudança técnica depende do reconheci-
mento de que o Brasil é atualmente um Sistema Nacional de
Aprendizado Tecnológico Passivo e que, portanto, a ênfase
inicial da política tecnológica deve ser voltada para a mu-
dança da natureza desse aprendizado. Em outras palavras,
há um enorme esforço inicial a ser empreendido para me-
lhorar nossa capacitação para absorver e aperfeiçoar
tecnologias.
CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL BRASILEIRO 155
A generalização de uma estratégia ativa de aprendiza-
do tecnológico é uma base necessária, mas não suficiente,
para a criação de condições férteis para que a inovação (isto
é, a fabricação de produtos ou o emprego de processos que
sejam novos em termos mundiais) assuma a liderança do
processo de mudança técnica das empresas brasileiras. Ape-
sar disso, a inovação pode vir a assumir um papel relevante
— em determinadas áreas, setores ou empresas — antes da
criação daquela base. Por isso, a inovação — em determina-
das áreas, setores ou empresas — deve ser buscada em pa-
ralelo ao esforço de generalização da estratégia de aprendi-
zado ativo.
Nesta parte do trabalho foram apresentadas brevemen-
te as características fundamentais do processo de mudança
técnica predominante no Brasil, além dos novos requerimen-
tos impostos pelo projeto de desenvolvimento sustentável.
Com base na compreensão daquelas características estrutu-
rais e desses requerimentos, é possível destacar algumas
diretrizes básicas que devem orientar a construção da nova
política tecnológica brasileira.
•O objetivo maior da política é transformar o proces-
so de mudança técnica das empresas (isto é, institui-
ções — públicas, privadas e não-governamentais —
que produzem bens e serviços). O estímulo à reali-
zação de esforço tecnológico diretamente, por parte
das empresas, e em cooperação com elas é a chave
dessa transformação.
•O estímulo à constituição de grandes grupos empre-
sariais nacionais, com massa crítica para desenvol-
ver e coordenar esforços tecnológicos e para trans-
formarem-se em global players, é condição importan-
te para a viabilização de bases para um esforço ver-
dadeiramente inovador.
•A concessão de estímulos ao esforço tecnológico das
empresas deve exigir contrapartidas efetivas em ter-
mos de performance tecnológica de produtividade,
156 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
qualidade, competitividade, impacto ambiental e
social. A ênfase dos critérios de seleção de empresas
ou projetos a serem apoiados deve ser deslocada dos
simples critérios de enquadramento a priori, para as
contrapartidas, os resultados. O sistemas de avalia-
ção devem ser rigorosos e ter como objetivo, além de
informar a política, servir de base para a punição ou
o estímulo das empresas ou instituições apoiadas.
•A concessão de benefícios vinculados às demais po-
líticas (inclusive as concessões de serviços públicos)
também deve requerer contrapartidas de esforços
tecnológicos que elevem o grau de sustentabilidade
dos empreendimentos.
•A construção de sistemas ou programas de extensão
tecnológica voltada para a elevação do padrão tecno-
lógico médio e para a redução de sua heterogenei-
dade e, em particular, para a elevação da eficiência
energética e ecológica das empresas, deve passar a
constituir uma das prioridades da política de C&T.
•A existência de políticas industrial, agrícola, comer-
cial e regional articuladas com a política tecnológica
é requisito vital para a eficácia desta última.
As enormes diferenças existentes entre as tecnologias,
as bases técnicas dos setores produtivos e das regiões,
ao lado da limitação de recursos disponíveis, impõem
a necessidade de que a política tecnológica seja sele-
tiva e defina prioridades claras de intervenção por
temática tecnológica, por setores produtivos e por
regiões.
Um esforço de reconversão das bases de com-
petitividade dos setores com maior competitividade
é necessário. Produtos como soja, óleo de soja, café,
suco de laranja, papel e celulose, minério de ferro,
alumínio e produtos siderúrgicos competem nos
mercados internacionais basicamente como
commodities. São produtos que, de uma maneira ge-
CIÊNCIA E TECNOLOGIA PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL BRASILEIRO 157
ral, agregam pouco valor, a base de sua competiti-
vidade é o preço e, por isso, os custos salariais pre-
cisam ser reduzidos. São também muito vulnerá-
veis às flutuações dos mercados e geralmente ge-
ram grande stress ambiental. É preciso desenvolver
um esforço coordenado de desenvolvimento de ni-
chos de mercado para a superação dessas limitações
típicas das commodities, transformando-as em
specialties.
•A universalização, com qualidade, do ensino de pri-
meiro e segundo graus, em conjunto com a conces-
são de estímulos ao treinamento on the job associado
à redução da rotatividade da mão-de-obra, é de vital
importância. O esforço educacional precisa, contu-
do, estar articulado com políticas que gerem empre-
gos qualificados. Na ausência de mercado de traba-
lho, os investimentos em educação podem ser des-
perdiçados e o país pode transformar-se em expor-
tador líquido de mão-de-obra educada, como de-
monstra a história de alguns países e de algumas clas-
ses de profissionais brasileiros.
•A preservação, o aperfeiçoamento e o estímulo à
integração das instituições de pesquisa e desenvol-
vimento e de formação de recursos humanos, espe-
cialmente das universidades, no esforço de desen-
volvimento sustentável é fundamental.
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158 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
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nado Federal).
CAPÍTULO 7
PRUDÊNCIA E UTOPISMO:
Ciência e Educação para a Sustentabilidade
Roberto S. Bartholo Jr.
Marcel Bursztyn
Um mundo novo
Ao publicar seu Essay on the Principle of Population, no
final do século XVIII Thomas Malthus lançava um alerta de
que a aceleração do crescimento da população estava em
descompasso com um mais lento ritmo de crescimento das
oportunidades de subsistência. Essa visão pessimista foi uma
marca da expectativa de futuro naquele momento. Mas, no
século XIX, as ciências e as técnicas evoluíram de tal manei-
ra, que permitiram superar limitações impostas pela natu-
reza: mecanização das lavouras, correção de solos, encurta-
mento de distâncias com as ferrovias e a navegação a vapor.
E o pessimismo malthusiano se viu desprovido de corrobo-
ração pelos fatos.
Um século depois das revoluções política e produtiva
do século XVIII, e já como efeito dos seus resultados positi-
vos e negativos, uma nova onda de transformações se fez
160 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
sentir, sobretudo nos países mais avançados de então. Ela
incidiu principalmente sobre a generalização de políticas
públicas de natureza social, com destaque para a seguridade
e a educação. Esta última, que até então se circunscrevia a
círculos restritos das elites, com profundo elo de dependên-
cia com a religião, adquire um status público e laico, tornan-
do-se objeto de crescente universalização.
Prevalecia, no meio da educação e das ciências, uma
visão de mundo laical, pragmática e, sobretudo, utilitária.
Coerentes com o espírito produtivista da civilização indus-
trial e inspirados em notáveis avanços científicos e
tecnológicos, que possibilitavam gigantesca e surpreenden-
te transformação da natureza em meio de produção, cien-
tistas e educadores passavam a desenvolver uma firme cren-
ça nas virtudes da criatividade humana. Desde então, a vi-
são da utopia passa a ser a de um processo de construção
empreendido pelo próprio engenho humano.
Ao contrário dos valores anteriores, que possuíam pro-
fundo conteúdo sobrenatural e mítico, a civilização indus-
trial adota uma cosmovisão antropomórfica, racional, pre-
visível.
O balanço do século XIX revela uma expectativa otimis-
ta de futuro. Uma grande crença nas possibilidades da ciên-
cia, uma confiança na ampliação das nascentes políticas so-
ciais e nos efeitos da universalização da educação caracteri-
zaram uma visão de futuro otimista. A utopia, na virada para
o século atual, era focada sobre a prosperidade material e a
possibilidade distributivista e socializante de seus frutos.
O século XX foi testemunha da acelerada corrida
produtivista, que alimenta e é alimentada por outra corri-
da, a do avanço das ciências e das técnicas. E o ritmo de
avanço é tão forte que o mundo conhece crises de superpro-
dução, como foi o caso da grande depressão norte-america-
na de 1929 a 1933.
Também no mundo da ciência e da tecnologia, começa
a haver uma progressiva especialização, que exige profis-
PRUDÊNCIA E UTOPISMO 161
sionais de competência cada vez mais especializada, em cam-
pos do saber cada vez mais restritos e delimitados. Esse
movimento se dá de par com uma também grande especia-
lização no campo da educação. Do ensino universalista, clás-
sico e abrangente, típico do início do século atual, passamos
à segmentação e especialização, preparando jovens para um
mercado de trabalho compartimentado e restrito. Com isso,
ganhamos em eficiência (no que se afere com indicadores
mensuráveis). Mas perdemos o rumo. São cada vez mais
opacos os objetivos e fins maiores de tal esforço. Perdemos
a visão de conjunto. E, mais grave, o espírito crítico e a cons-
ciência da necessidade, da utilidade e, principalmente, das
implicações do uso de cada saber específico, ao ser encaixa-
do em um mosaico mais ampliado de saberes
A tendência recente aumentou ainda mais o grau de
especialização das ciências e da educação, radicalizando as
conseqüências indesejáveis da perda de referência da rela-
ção entre meios e fins. Já nem sabemos muito bem aonde
queremos chegar. Só sabemos que a ciência nos conduz a
um mundo novo, cuja conformação previsível começa a nos
inspirar preocupação.
A perplexidade e indignação de Jacob Bronowski (1972
e 1978), que se reflete em várias de suas obras, é um bom
exemplo disso. Membro ativo do Projeto Manhattan, que
viabilizou a bomba atômica que encerrou de forma dramá-
tica a Segunda Guerra Mundial em seu front, no Japão, aquele
físico confessou, mais tarde, seu “desconhecimento” quan-
to às implicações de seus estudos, em física atômica, em ter-
mos de utilização destrutiva. Foi um dos primeiros cientis-
tas a advertir que a humanidade chegara a um ponto tal
que, doravante, seria capaz de influir diretamente no futu-
ro, como se o homem tivesse usurpado o papel de Deus.
A busca do desenvolvimento
O mundo ocidental moderno tem buscado orientar racio-
nalmente suas decisões políticas e econômicas, no sentido de
162 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
promover um processo de evolução dos negócios que asse-
gure trajetórias de pouco risco e de grande rentabilidade.
No feudalismo, as mudanças eram lentas e indesejá-
veis. Ocorriam muito mais como resultado de fenômenos
externos e imprevistos. Como nos informa o Dicionário Petit
Robert, o uso do termo desenvolvimento associado à econo-
mia de regiões ou países passa a se dar na segunda metade
do século XVIII. Somente com a industrialização, começa a
haver uma preocupação com a promoção de condições para
a expansão e reprodução das atividades econômicas. É o
início da busca do crescimento dos sistemas econômicos, do
dinamismo e do “progresso”, em escala global. Nesse pro-
cesso, as estruturas de funcionamento do poder público vão
se tornando cada vez mais complexas e especializadas, re-
fletindo uma crescente responsabilidade do Estado na ges-
tão do sistema econômico, na promoção das condições da
paz social interna, na garantia das relações exteriores, na
construção do futuro.
Torna-se evidente, já no século passado, a importância
de se viabilizar a promoção de políticas que fundamentem
um desenvolvimento de longo prazo, minimizando a
vulnerabilidade às vicissitudes de fatores restritivos inde-
sejáveis.
O século XX é marcado pela hegemonia das nações mais
avançadas economicamente, no panorama mundial, num
contexto de guerras e de revoluções. O fomento ao cresci-
mento econômico se apóia em maciços investimentos em
ciência e tecnologia, acoplados à construção de formidáveis
sistemas de “defesa” nacional. Paralelamente, os sistemas
de educação paulatinamente adaptam-se às exigências
especializadas do mercado de trabalho.
No quadro posterior à Segunda Guerra Mundial, os
anos 1950 testemunham a emergência de um pensamento
crítico aos efeitos negativos do crescimento econômico, em
termos de justiça social e de empobrecimento relativo de
alguns países e regiões. Um dos primeiros economistas a
PRUDÊNCIA E UTOPISMO 163
lançar este alerta foi o sueco Gunnar Myrdal (Prêmio Nobel
de Economia de 1974), que chamou a atenção para o “ciclo
vicioso da pobreza”, que se produzia como corolário do
padrão de crescimento econômico vigente.
Na América Latina, a CEPAL (Comissão Econômica
para a América Latina da ONU) produz interpretações e
análises a partir de critérios e enfoques autóctones, diferen-
ciando conceitualmente crescimento, como expansão quan-
titativa da economia, e desenvolvimento, como mudança qua-
litativa positiva, envolvendo distribuição de renda e avan-
ços sociais. Para transformar o crescimento em desenvolvi-
mento, seria preciso planejar, ou seja, intervir no sistema
econômico, promovendo atividades estrategicamente
identificadas como motrizes e, eventualmente, condicio-
nando ou inibindo outras, tidas como provocadoras de
vulnerabilidades.
Foi um importante passo em dois sentidos: o da identi-
ficação do Estado como elemento de coordenação e promo-
ção, e o da introdução do fator qualitativo de natureza so-
cial na análise econômica. Os anos 1960 e 1970 mostraram
uma franca adoção do planejamento. Em todo o mundo, in-
clusive com apoio de organismos internacionais
1
, prolifera-
ram agências e programas governamentais voltadas à pro-
moção do desenvolvimento econômico, em escala nacional
e regional.
Mas dois tipos de problemas ocorreram: uma excessi-
va valorização da razão econômica, com preocupação
imediatista e uma negligência da dimensão sociocultural e
1. Babai (1992) assinala que a ação do Banco Mundial pode ser dividida em
três grandes períodos: no primeiro, que vai da época da sua fundação, no pós-
Segunda Guerra Mundial, até 1960, sua atuação segue uma forte tendência em
favor das forças de mercado; no segundo, que vigora nas décadas de 1960 e
1970, suas operações se inclinam para o fortalecimento da atividade estatal nas
economias em desenvolvimento; no terceiro, o desencanto com o papel do Esta-
do repercute em ações desestatizantes e neoliberais. Vale ressaltar que em seu
Relatório Anual de 1997, o BIRD volta a expressar vivo interesse no papel do Esta-
do enquanto promotor do desenvolvimento.
164 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
institucional. O planejamento, em países com fragilidade
político-institucional, derrapou em vários aspectos funda-
mentais, perdendo legitimidade social, credibilidade e, fi-
nalmente, saiu do eixo das decisões econômicas para se
tornar essencialmente objeto de estratégias políticas (no
sentido de politics e, não mais, de policy). Os planos passa-
ram a ser adotados principalmente como instrumentos de
retórica política. A idéia de construção do futuro — de Pro-
jetos Nacionais — perdeu espaço para expedientes mes-
quinhos e retrógrados, vinculados a interesses patrimo-
nialistas.
Nesse contexto, o eixo das políticas de “desenvolvimen-
to” passou a se subordinar ao imediatismo da gestão pura-
mente contábil das finanças públicas, como resultante last
but not least das pressões advindas do engajamento no siste-
ma financeiro internacional.
Na vertente das políticas sociais, evidentemente, há um
notável retrocesso, que traduz a perda de prioridade de ações
estratégicas portadoras de oportunidades no futuro, como
as vinculadas aos domínios da saúde e educação.
Crise dos Estados e crise do conhecimento
Nenhum país do mundo conseguiu se desenvolver sem
antes ter empreendido um esforço notável em matéria de
educação. As nações ricas de hoje nem sempre são territórios
ricos em recursos naturais, mas assumiram com determina-
ção que a base da riqueza é uma população instruída. A re-
ação das oligarquias arcaicas em relação à universalização
da educação não é um fenômeno isolado. O debate na Euro-
pa, nos anos 1870, foi acalorado, com setores conservadores
alertando para os riscos políticos da alfabetização dos tra-
balhadores paralelamente à ampliação do direito de sufrá-
gio. Mas prevaleceu o princípio de que não se constrói uma
nação próspera sem uma população educada (Hobsbawm:
1987).
PRUDÊNCIA E UTOPISMO 165
Os aparelhos de Estado tiveram de se modernizar para
assumir a responsabilidade dessa nova função. Foram sur-
gindo instituições públicas que se encarregavam de regu-
lamentar e operacionalizar a ação educacional. Esta é, ali-
ás, a lógica do crescimento das estruturas estatais: ao ad-
quirir novas responsabilidades, o Estado amplia suas di-
mensões, agregando para si novas funções. Assim, por
exemplo, prover educação não foi uma novidade da Ale-
manha de Bismarck. A novidade foi torná-la pública e uni-
versal.
Os anos 1980 selaram um consenso em escala mundial.
A crise dos Estados se fazia sentir em toda parte, impondo a
necessidade de se conceber novas formas de ação do poder
público. Evidentemente essa “crise do Estado” assume ca-
racterísticas bem particulares em cada lugar. Assim, nos
países onde as funções de promoção do bem-estar social
foram minimamente atingidas (o Welfare State), a crise tem
natureza fiscal e reflete uma insatisfação com a falta de pers-
pectivas do poder público para salvaguardar tais conquis-
tas diante da massificação do desemprego. No caso da Amé-
rica Latina, a crise assume uma grave dimensão fiscal, e
manifesta a saturação da legitimidade de um Estado que
resiste em mudar suas raízes patrimonialistas.
A presente “crise do Estado” é também uma crise das
utopias, que expressa desencanto e perda de confiança no
futuro, bem como do “modo de desenvolvimento”,
incidindo sobre os próprios paradigmas do desenvolvimento
que, centrado na utopia econômico-consumista, produziu
fantásticos desperdício, desigualdade e degradação. Muitas
foram as experiências traumáticas e advertências, tanto pelo
lado das ciências (como foi o caso de Bronowski), quanto
pelo lado das práticas sociais (movimentos pacifistas, femi-
nistas, de defesa dos consumidores e ambientalistas), e mui-
tas foram as catástrofes científico-tecnológicas (caso de
Minamata, Seveso, Bophal e Tchernobyl). Ficou evidente que
as expectativas utópicas estavam desfocadas. Era preciso
encontrar novos rumos.
166 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
O novo horizonte aberto pelo princípio “sustentabili-
dade” vai de encontro a essa carência
2
. A lógica do desen-
volvimento necessita ser subordinada aos imperativos de
uma modernidade ética, não apenas uma modernidade téc-
nica. E essa ética necessita dar resposta a novos desafios.
Não se trata mais de encontrar termos relacionais equâni-
mes para um “contrato social” firmado em condições de re-
ciprocidade e simetria. Trata-se de enquadrar eticamente
relações de poder assimétricas e, no limite, unilaterais e não-
recíprocas. Esse é notoriamente o caso da vulnerabilidade
das condições futuras de vida com respeito a decisões e in-
tervenções realizadas hoje na realidade. Outro aspecto de-
cisivo é a necessidade de se considerar o enquadramento
ético de processo irreversíveis, ou seja, quando não nos é
possível corrigir amanhã os efeitos indesejáveis de cursos
de ação desencadeados hoje.
A idéia tradicional de um “contrato” inter pares como
fundamento da ética fracassa aqui. A sustentabilidade de-
manda uma nova concepção: um “pacto” entre desiguais e
diversos, como se pode caracterizar de modo exemplar na
dimensão temporal “futurista”, ou seja, é preciso hoje asse-
gurar a qualidade de vida das gerações futuras.
O princípio “sustentabilidade”
Se a ética destina-se à ordenação e regulação do poder
de agir, as ameaças engendradas pelo poder científico-
tecnológico crescem num “vácuo ético”, diante do qual Hans
Jonas (1979) propõe o reconhecimento da vigência de um
2. Já na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, realizada em
Estocolmo, em 1972, surgira o conceito de Eco-desenvolvimento. Para a United
Nations Conference on Enviroment and Development (RIO-92), o novo conceito
cunhado foi o de Desenvolvimento Sustentável, produto dos trabalhos da Comis-
são Brundtland, que serviu de referência à elaboração da Agenda 21, que consti-
tui o maior compromisso internacional até agora obtido, materializando as prio-
ridades para o próximo século.
PRUDÊNCIA E UTOPISMO 167
novo “princípio responsabilidade” que tenha no mandamen-
to “que exista uma humanidade!” seu imperativo categóri-
co. A idéia de direitos e deveres fundados na simetria da
reciprocidade “contratual” inter pares fracassa aqui, pois a
responsabilidade do dever-existir se refere, em sua dimen-
são temporal futura, ao ainda-não-existente. Essa é uma ques-
tão primordial para que possamos impor à modernidade
contemporânea o reconhecimento de “um dever-ser objetivo
e, com isso, poder-se-ia deduzir um compromisso de pre-
servação do ser, uma responsabilidade pelo ser” (Jonas, 1979:
102).
A condição de existência da responsabilidade é o po-
der causal do agente relativamente às conseqüências de seus
atos. Essa responsabilização ainda é apenas formal. Sua di-
mensão propriamente ético-moral surge com a tomada de
partido do sentimento pelo bem em si, inerente à coisa em
seu finalismo próprio, e “como ele comove o sentir e enver-
gonha o egoísmo do poder” (Jonas, 1979: 175).
A proposta de Hans Jonas é fundamentar uma
modernidade ética apta a restringir a capacidade humana
de agir como um destruidor da auto-afirmação do ser, ex-
pressa na perenização da vida. Desde uma tal perspectiva,
podemos conceber o desenvolvimento sustentável como
uma proposta que tem em seu horizonte uma modernidade
ética, não apenas uma modernidade técnica. Pois o princípio
“sustentabilidade” implica incorporar ao horizonte da in-
tervenção transformadora do “mundo da necessidade” o
compromisso com a perenização da vida.
Isso requer um acervo de conhecimentos e de habilida-
des de ação para a implementação de processos tecnicamente
viáveis e eticamente desejáveis. Tal acervo constitui o con-
junto das tecnologias da sustentabilidade, que podem ser ca-
racterizadas como “saberes e habilidades de perenização da
vida”, que se traduzem em ordenações sistematizadas de
modos diferenciados de interação (i.e. processos de produ-
ção e circulação do produto, modos de organização social,
padrões de ganho e processamento de informações etc.).
168 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
As tecnologias da sustentabilidade expressam sua per-
tença à modernidade ética por terem no princípio “sustenta-
bilidade” sua métrica, e não serem veículos de uma preten-
samente irrestrita “liberdade de escolha de cursos de ação”.
As implicações para a racionalidade econômica fundada no
mercado como instância diretiva são claras. As políticas da
sustentabilidade não se fundam em considerações “intraeco-
nômicas”, mas num necessário enraizamento dos critérios
econômicos em diretrizes normativas exteriores à simples
“economicidade”.
O sentido da modernidade, uma excursão filosófica
Pensar o princípio “sustentabilidade” como fundamen-
to de uma modernidade ética requer um exercício prévio:
explicitar nossa compreensão do sentido de modernidade.
Etimologicamente, a palavra modernidade provém do
advérbio latino modo, que tem o significado de recentemente,
há pouco tempo. Segundo o dicionário Petit Robert, o adjeti-
vo moderno já se faz presente no francês medieval desde o
século XIV, enquanto o substantivo modernidade data de
meados do século XIX. Conforme colocação iluminadora de
Henrique Cláudio de Lima Vaz, o conceito de modernidade
“aparece ligado ao próprio conceito de filosofia, de sorte a
se poder afirmar uma equivalência conceitual entre
modernidade e filosofia: toda modernidade é filosófica ou
toda filosofia é expressão de uma modernidade que nela se
reconhece como tal” (Vaz, 1992: 85).
Esta tese, apresentada de modo tão sintético, demanda
alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, é preciso ter em
mente que a emergência do sentido da modernidade requer
uma decisiva ruptura na representação do tempo: ela preci-
sa esvaziar-se da estrutura mítico-simbólica da repetição e
“migrar”, abandonando o porto da lógica do idêntico para
fazer nova morada na dialética do idêntico e do diferente. A
questão nevrálgica é a emergência da ousadia do filosofar,
PRUDÊNCIA E UTOPISMO 169
que se aventura a desqualificar a autoridade inerente ao
antigo.
Com o exercício da razão crítica, o discurso filosófico
outorga ao tempo presente uma nova dignidade, atribuin-
do ao agora e ao atual uma novidade qualitativa. Somente
assim a modernidade pode se instaurar como modo de lei-
tura do tempo. Como nos aponta Henrique Cláudio de Lima
Vaz, as civilizações que desconhecem a filosofia não conhe-
cem uma leitura moderna de seu tempo, pois não incorrem
na grande ousadia de julgar seu passado a partir de seu pre-
sente.
Aos olhos de Aristóteles, a physis e o ethos são formas
primeiras de presença do ser. Sendo que o ethos “rompe com
a sucessão do mesmo que caracteriza a physis como domínio
da necessidade, com o advento do diferente no espaço da
liberdade aberto pela praxis” (Vaz, 1986: 11).
O termo ethos é a transliteração de duas palavras gre-
gas diversas: a primeira é ethos com letra inicial eta, e a se-
gunda é ethos com letra inicial épsilon.
O ethos-eta designa a morada do homem no mundo
como um ser biocultural. Uma morada que lhe fornece abri-
go e proteção e condições materiais e imateriais de sobrevi-
vência. O reino da necessidade da physis é rompido pela ins-
tauração do ethos-eta, como um espaço de liberdade
construído e incessantemente reconstruído.
O ethos-épsilon, por sua vez, designa o comportamento
humano que ocorre repetidas vezes, como um hábito cultu-
ralmente adquirido e não devido a uma necessidade da
physis. Expressa-se assim uma oposição entre o que é “habi-
tual” e o que é “natural”. Desse modo o ethos-épsilon se refe-
re à possibilidade de uma disposição permanente do agente
humano para agir de acordo com a realização do bem.
Temos, em síntese, duas proposições:
ethos-eta como costume histórico-socialmente dado é
princípio normativo dos atos que configuram o ethos-
épsilon como hábito; e
170 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
•a práxis é a mediadora dos momentos constitutivos
do ethos.
Desse modo, como diz Henrique Cláudio de Lima Vaz:
“a ação ética procede do ethos como do seu princípio e a ele
retorna como a seu fim realizado na forma do existir virtuo-
so” (Vaz, 1986: 16). Esse movimento circular do ethos-eta e
ethos-épsilon se realiza num processo educativo tanto indi-
vidual como social. Não estando fundado pelo determinismo
da necessidade, o movimento do ethos indo da universali-
dade do costume à singularidade da ação eticamente boa, é
livre e traz em si a possibilidade do conflito.
Os primeiros esforços construtivos da nova ciência do
ethos, a ética, se focam na reflexão sobre a lei.
A emergência da polis democrática impõe uma
explicitação do ethos como lei. A dike (Justiça) será a fonte de
legitimidade de todo nomos (lei) e, assim “o justo (dikaion)
pode ser definido como predicado da ação do verdadeiro
cidadão” (Vaz, 1986: 49). Em inconciliável oposição a isso
estarão as manifestações da marca indelével do homem in-
justo: a desmesura (hybris), como ambição de poder
(pleonexia), de ter (philargyria) e de aparecer (hyperephania).
O justo traz, em si, o selo da medida (metron), fundamento
racional da ética, edificada por Platão como a ciência da ação
segundo a virtude (arete).
A ética se edifica como crítica radical da noção de des-
tino, entrelaçando inteligência e liberdade no vínculo vir-
tuoso com o bem.
A revolução científica moderna vincula o logos teórico
ao logos técnico, de modo inconcebível para a Antigüidade
clássica. Aos olhos dessa última, tal movimento equivaleria
à pretensão do logos humano de reivindicar para si o lugar
de Demiurgo que Platão reservava ao Artífice Divino. O logos
antigo repousava sobre uma physis que se oferecia imedia-
tamente aos sentidos, e cuja ordenação era paradigmática
para a ciência do ethos. O novo logos instaura o domínio da
PRUDÊNCIA E UTOPISMO 171
verdade experimental, de cunho intrinsecamente lógico, por
ser estruturalmente matemática.
O que está em processo é a edificação de uma nova
Natureza, intrinsecamente referida ao fazer humano, que
toma o lugar da antiga physis. E a questão do universalismo
ético conhece novas problematizações com a “planetariza-
ção” da cultura técnico-científica. Enquanto a ciência platô-
nica se reconhece como uma ontologia do bem, a ciência
moderna supõe metodologicamente a distinção entre fato e
valor, e se reconhece como eticamente neutra, permanecen-
do em relação estritamente extrínseca com a esfera do bem.
Hans Jonas (1979) afirma que a ciência moderna e a
nova práxis em que ela se imbrica exigem a fundação de uma
nova ética. Paralelamente, cresce, junto com o desenvolvi-
mento avassalador das potencialidades da tecnociência, um
niilismo ético. A tecnociência contemporânea está constru-
indo um novo espaço. O dilema é se haverá um ethos aberto
às dimensões desse novo espaço. Ou, na ausência disso, se
o niilismo ético abrirá ao homem uma possibilidade de so-
breviver fora da morada do ethos, lançado num espaço sem
fronteiras.
Ética e responsabilidade
Para a prática do princípio “sustentabilidade”, o con-
ceito-chave é o de “fins”, sem o que perderiam sentido “nor-
mas” e “valores objetivos”. O “imperativo da sustentabi-
lidade” não nos deixa esquecer que a economia está assen-
tada sobre o fato primordial biológico de que vivemos por
metabolismo e somos “criaturas de necessidade”. A “neces-
sidade” é algo que a existência orgânica quer incondicio-
nalmente, para metabolicamente continuar sendo. Suprir
necessidades pertence à autoafirmação da vida. O lema “va-
mos comer e beber hoje, pois amanhã estaremos mortos”
pode ser significativo para mortais sem futuro. Mas para
mortais com futuro, que conhecem o encadeamento de nas-
172 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
cimentos e mortes, o reconhecimento da responsabilidade
pela perenização da vida, fundada no fato elementar da re-
produção é tão constitutivo da economia como o é o interes-
se próprio, fundado no metabolismo. É assim que a respon-
sabilidade por outros e o interesse próprio podem entrela-
çar-se na atividade econômica.
Nossa questão central não é a de uma ética futura, ou
seja, uma ética a se configurar num ponto a ser ainda atingi-
do do tempo, mas sim uma ética que hoje se preocupa com
as conseqüências de nossos atos para com gerações futuras.
Uma ética que não se fundamenta num contrato inter pares,
pois ela se refere a relações radicalmente assimétricas: as
gerações futuras são vulneráveis a nossos atos, mas a recí-
proca não é verdadeira.
A caducidade de uma ética que se pretenda fundar no
contrato inter pares abre uma situação de urgência crítica:
nosso atos na era da globalização da ciência e tecnologia
atingem um limiar de poderes nunca antes conhecidos. Es-
ses novos poderes implicam uma nova responsabilidade,
que por sua vez para ser exercida requer conhecimento.
Esse conhecimento diz respeito tanto ao campo das cau-
salidades físicas como das finalidades humanas. A ética da
sustentabilidade tem uma perspectiva “futurista” e se apóia
sobre uma “futurologia” (isto é, uma projeção científico-
tecnologicamente informada de cenários aos quais as ações
presentes podem conduzir). Nesse contexto, Hans Jonas
(1992) nos coloca diante da questão nevrálgica: a futurologia
dos cenários desejados é conhecida como utopia; mas a
futurologia da advertência nós ainda precisamos aprender,
para o autocontrole de nossos poderes desenfreados. E ela
somente pode advertir aqueles que, além da ciência das cau-
sas e efeitos, também sustentam uma imagem do homem
que lhes impõe valores mais altos e limites/freios ao
irrestrito exercício de tais poderes.
O dever precisa ser consentido, isto é, percebido e sen-
tido como um valor a ser afirmado, para poder encontrar
seguimento nos atos. A fundamentação de nossos atos tem
PRUDÊNCIA E UTOPISMO 173
natureza diversa. Ela pode ser enraizada no metabolismo
vital. Assim, se “explica” a verdade da sentença: nós deve-
mos comer, pois somos constitutivamente seres que conti-
nuam em existência devido a um processo contínuo de “re-
lação e troca” com o meio circundante. Diversa é a natureza
da verdade da sentença: nós devemos comer para trabalhar, a
necessidade de trabalhar é condicionada situacionalmente:
fatores culturais, econômicos etc. podem invalidar o vínculo
que se quer aqui estabelecer.
A fundamentação ontológica de uma proposição
corresponde portanto ao “recurso a uma qualidade que per-
tence inseparavelmente ao ser da coisa” (Jonas, 1992: 129),
como os processos metabólicos ao organismo. A questão
crítica, nesse contexto, é a possibilidade de haver uma fun-
damentação ontológica para a ética ou, de modo mais curto
e claro: será possível uma fundamentação ontológica para o
conceito de responsabilidade e para o direito a exigi-la de nos-
sos atos.
Hans Jonas responde afirmativamente a essa questão
dizendo que “o homem nos é o único ser conhecido que
pode ter responsabilidade. Na medida em que ele a pode
ter, ele a tem. A capacidade de responsabilidade significa já
a colocação sob seu imperativo: o próprio poder leva consi-
go o dever” (Jonas, 1992: 130). A capacidade de responsabi-
lidade é uma capacidade ética, que repousa sobre “a apti-
dão ontológica do homem de escolher entre alternativas de
ação com saber e vontade. Responsabilidade é, portanto,
complementar à liberdade” (Jonas, 1992: 131).
Posso ser responsabilizado pelas conseqüências de
meus atos na medida em que afetem algum ente, que se tor-
na, então, objeto de minha responsabilidade. E isso só tem
significância ética se a simples existência desse ente é em si
afirmação de um valor. Um ser valorativamente indiferente
(com relação ao qual posso, arbitrariamente, ter uma res-
ponsabilidade total ou nula) é insignificante como objeto de
minha responsabilidade.
174 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
A primeira coisa que a apreensão de um ser não indife-
rente valorativamente requer de mim é que ele me importe
em seu direito a afirmar o bem de existir. E em termos con-
cretos isso pressupõe (i) a vulnerabilidade do existir do ser e
(ii) a possibilidade dela ser atingida por meu poder de agir
(quer isso venha ocorrer por acaso ou por minha escolha
deliberada). A dimensão de nosso poder determina o quan-
to podemos afetar a realidade. E com o crescimento do po-
der cresce a responsabilidade.
Como situa Hans Jonas, “a ampliação do poder é tam-
bém a ampliação de seus efeitos no futuro” (Jonas, 1992: 133).
Em conseqüência disso, a responsabilidade que temos so-
mente poderá ser efetivamente exercida se formos pruden-
tes, apoiando nossos atos em estudos criteriosos dos impac-
tos de nossos cursos de ação, formulando modelos capazes
de aumentar nossa capacidade preditiva com recurso a si-
mulações prospectivas. É imperativo que consigamos
“1. maximizar o conhecimento das conseqüências de nossos
atos, com vistas a como eles podem determinar e ameaçar a
sorte futura do homem, e 2. à luz desse conhecimento, i.e. do
inédito novo que poderia ser, elaborar um conhecimento da-
quilo que deve ou não deve ser, daquilo a ser permitido ou
evitado: enfim, e de modo positivo: um conhecimento do bem,
do que o homem deve ser, para o que certamente ajuda uma
visão do que não deve ser, mas aparece, por primeira vez,
como possível” (Jonas, 1992: 134).
O primeiro desses saberes é um saber objetivo-científi-
co-técnico, fundado na explicitação de vínculos causais
configuradores de tendências. O segundo desses saberes é
ético-valorativo. Eles são a régua e o compasso da formula-
ção das futurologias da advertência e, como tais, ferramen-
tas da modernidade ética da sustentabilidade.
Um elemento de base dessa modernidade ética é, por-
tanto, o mandamento da informação máxima sobre as con-
seqüências dos diversos cursos de ação. Isso implica um
vasto campo de pesquisa a ser apoiado e desenvolvido, con-
PRUDÊNCIA E UTOPISMO 175
tribuindo decisivamente para confrontar o exercício dos
poderes correntes com a síntese de suas razoavelmente
presumíveis conseqüências futuras.
Um segundo elemento de base é uma antropologia fi-
losófica apta a nos dizer o que é o bem do homem, seu dever-
ser. Hans Jonas afirma ser esse saber necessário para que
esse bem não seja sacrificado pelo desenvolvimento
tecnológico (Jonas, 1998: 135).
Essa antropologia filosófica pode se apoiar na metafísica
e na história. Na história conhecemos o que o homem pode
ser, de melhor e de pior. E esse conhecimento pode nos aju-
dar a aprender que não podemos pretender tentar mais que
assegurar-lhe a possibilidade do bem. A metafísica pode nos
ensinar o fundamento do dever-ser do homem e afirmar um
veto ao suicídio da espécie, impondo à humanidade o reco-
nhecimento do dever de uma determinada qualidade de
vida, hoje ameaçada pelo cego “progredir” da modernidade
técnica.
No cerne da questão está o convite para tomarmos como
ponto de partida da metafísica necessária a afirmativa já an-
teriormente apresentada de que o homem nos é o único ser
conhecido que pode ter responsabilidade. Essa possibilida-
de é uma característica essencial do ser humano. Nela reco-
nhecemos intuitivamente um valor, que não vem apenas se
agregar aos valores da vida, mas que potencializa os ante-
cedentes valores do ser. E os atuais portadores da responsa-
bilidade reconhecem como seu dever assegurar a existência
dos futuros. Mas não só isso. Reconhecem também como
seu dever zelar pelas condições desse existir, desse assim-
ser. Pois o como se existe pode ser incompatível com o fun-
damento e razão do existir. Diversas antiutopias, nas linhas
do Admirável mundo novo de Aldous Huxley, desenham ce-
nários desse tipo, que o horizonte de expectativas e o espa-
ço de experiências da modernidade técnica trazem ameaça-
doramente em seu seio.
176 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
Riscos e oportunidades
Os poderes de intervenção abertos pelas modernas ciên-
cia e tecnologia têm, nesse contexto, um caráter paradoxal,
que nos evoca os versos de Hölderlin:
lá onde está o perigo,
ali também cresce a salvação.
As modernas ciência e tecnologia são simultaneamen-
te causa dos males e meio de evitá-los. Não mais a natureza
nos amedronta, mas sim nossos poderes de intervenção so-
bre ela. Parafraseando Descartes, vemo-nos diante do para-
doxal imperativo de virmos a ser “mestres e possuidores”
dos poderes humanos de intervenção.
A partir da Revolução Francesa e da Revolução Indus-
trial, engendra-se no campo civilizatório europeu ocidental
um novo contexto institucional, que vai abrir progressiva-
mente o espaço para o reconhecimento das modernas ciên-
cias e tecnologias como potências ordenadoras da coesão
social (Salomon: 1973). O processo civilizatório industrial
moderno vai vinculando a administração da res publica à
capacidade de intervenção científico-tecnológica, que reali-
za no campo da gestão, programação, controle e previsão
sua simbiose mais íntima com as estruturas de poder do Es-
tado e do mercado.
Este processo tem duas faces:
1. um pragmatismo utilitarista identifica saber e poder,
dissolvendo a diferenciação entre a explicação e o
controle dos fenômenos da Natureza, reduzida a
uma storehouse of matters (F. Bacon), livremente dis-
ponível para a instrumentalização humana; e
2. o “mito da máquina” se constitui em paradigma
organizacional da sociedade (Mumford: 1967), com
a idéia da “administração das coisas” servindo de
base para uma ordenação “neutra” e “despolitizan-
te” das relações hierárquicas, expressas e legitima-
PRUDÊNCIA E UTOPISMO 177
das sob a forma de uma “diferenciação funcional”
requerida por critérios de eficiência instrumental.
Ivan Illich (apud Steger, 1984: 43) aponta para a
“contraprodutividade” de instituições-chave da cultura in-
dustrial moderna como indicativa do fracasso do sistema
em realizar seus próprios e explícitos propósitos. A
racionalidade instrumental autonomizada se constitui como
um fim em si mesma, engendrando uma “paralisia ético-
política das relações sócio-comunitárias”. A sociedade dei-
xa de ser campo de expressão para atos criativos de pessoas
aptas a uma autocondução ética de suas vidas.
Dentro da tradição cultural do Ocidente, o Humanismo
e o Iluminismo abrem campo para uma importante altera-
ção do ideal do homem culto. A aquisição de cultura deixa
de ser identificada com uma autoconstrução ética da exis-
tência através da religião. A ciência e a arte passam a se cons-
tituir em caminhos autônomos para a formação ética da pes-
soa. O ideal humanista-iluminista expressa uma postura
diante da vida a ser constituída mediante uma atividade
espiritual autônoma, capaz de realizar uma superação
dialética da educação religiosa popular. Isso se expressa de
modo agudo nos versos de J. W. Goethe:
quem possui ciência e arte
tem também religião
quem ambas não possui
tem religião
A aquisição de cultura científica e artística é caminho
de autonomia ética. E a Universidade, tal como concebida
por Wilhelm von Humboldt, tem o papel de servir de insti-
tuição viabilizadora desse processo (Schelsky: 1963). O pro-
cesso civilizatório industrial contemporâneo destruiu as
condições de possibilidade do projeto original
humboldtiano. No lugar da educação popular religiosa tra-
dicional, surge uma nova educação “cientificizada” popu-
178 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
lar, vinculada ao positivismo industrialista moderno. A
tecnociência se transforma em re-ligio de um mundo artifi-
cial, que impregna, molda e formata a vida cotidiana dos
indivíduos. Nesse novo contexto, o projeto humanista-
iluminista precisa ser atualizado, focando-se na superação
dialética dessa nova re-ligio. Hanns-Albert Steger (1978) ex-
pressa o novo imperativo mediante uma atualização dos
versos de J. W. Goethe:
quem possui capacidade de confrontação ética com a
modernidade
tem também ciência e tecnologia
quem esta capacidade não possui
tem ciência e tecnologia
No âmago da atualização está o reconhecimento da ne-
cessidade de se superar o laissez-faire científico-tecnológico
pela vigência de uma ética da responsabilidade. O próprio
Max Weber (1967) reconhece que nenhuma ciência é isenta
de pré-condições. E uma pré-condição básica é que seu pro-
duto seja algo valioso de ser conhecido. Valoração prévia à
labor científica em sentido estrito, pois os objetos de conhe-
cimento são sempre vinculados a contextos de interesse que
não são, em si, tematizados pela pesquisa. Para Max Weber,
existem sempre diversos “deuses” a serviço dos quais a prá-
tica científica pode ser desenvolvida. É em função de qual
“deus” é seguido que se fixam as respostas sobre o que é
bom de ser conhecido, determinando-se assim o conteúdo
da ciência. A questão de se a contemporânea ciência em ato
segue o “deus” verdadeiro ou um falso não é passível de
resposta científica.
Ela pode apenas ser colocada filosoficamente, e
tematizada no contexto da modernidade ética. No cerne da
modernidade ética do princípio da “sustentabilidade” está
o reconhecimento de limites, impostos pelos primados da
alteridade e da vulnerabilidade. A partir da ultrapassagem
de limites de tolerância da Natureza e do tecido social, o
PRUDÊNCIA E UTOPISMO 179
desenvolvimento sofre uma degeneração “contraprodutiva”,
fruto da falsa pretensão metafísica de se constituir num sis-
tema fechado que se basta a si mesmo. Nesse quadro, o homo
industrialis se vê então reduzido “à situação de um capi-
tão, cujo navio é tão fortemente construído de aço e ferro,
que a agulha de sua bússola somente aponta para a massa
de ferro do navio, e não mais para o Norte” (Heisenberg,
1979: 22).
Ilustração científico-tecnológica e identidade cultural
O mundo contemporâneo da chamada “globalização”
vive uma época de grandes transformações e graves desi-
gualdades. Isso fica evidenciado se considerarmos os
preocupantes indicadores da situação da educação:
the number of out-of-school children increased from an
estimated 90 million in 1985 to 110 million in 1990, before
declining to about 83 million in 1995. Each year, millions of
students leave primary school, often with fragile literacy
skills and no vocational training of any kind. The school
experience of many children in the developing world is
relatively brief and unsatisfactory. Among the most
consistent relationships in demography is the inverse
relationship between education of women and fertility. Only
66 per cent of primary school-age girls and 72 per cent of
boys pursue their studies as far as grade 5. Indeed, many
students drop out between the first and second grade, having
acquired not even the most basic elements of an education.
High rates of repetition also slow the progress of learning
and increase the cost of education in developing countries.
By one estimate, 16 per cent of education budgets in
developing countries is consumed by the cost of repetition
in the first four grades of primary school alone (Unesco: 1999).
Uma das características fundamentais de um Estado
futuro fundado na sustentabilidade é que a população de
cada país tenha uma identidade culturalmente enraizada e
180 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
cientificamente “ilustrada”. Isso coloca a necessidade de
ações estratégicas no âmbito da educação e da cultura. No
campo educacional, o objetivo mínimo é a erradicação do
analfabetismo em todo o mundo, como requisito do objeti-
vo maior de se capacitar a população a ter acesso à informa-
ção. No campo cultural, o objetivo é o enraizamento, na po-
pulação, da herança de sua própria história, de modo a ofe-
recer-lhe a possibilidade de afirmar sua identidade em meio
a um mundo em acelerado processo de mudança.
No novo século XXI, o conceito de alfabetização deve-
rá ampliar-se, incorporando características que vão além da
habilidade de ler e escrever. O “alfabetizado”, daqui para
frente, deverá também estar apto a ter acesso a toda a ampla
gama de mecanismos de informação e habilidades técnicas
que o permita participar da vida cotidiana da sociedade e
ter acesso ao cada vez mais restrito e seletivo mercado de
trabalho. Isso implica, em primeira instância, saber manejar
e se valer dos recursos da informática.
Um grande desafio para as políticas públicas de
universalização da educação deste novo conceito de alfabe-
tização é a difícil compatibilização dos aspectos de natureza
globalizante — que permitam situar o contexto da vida lo-
cal de comunidades ainda pouco integradas ao mundo
globalizado — com os imperativos de se assegurar a inte-
gridade das identidades e idiossincrasias culturais locais.
As tecnologias da sustentabilidade
A conscientização da população para a importância es-
tratégica da sustentabilidade é questão que permeia todas
as áreas da Agenda 21. O eixo da argumentação que se se-
gue está fundamentado no conteúdo expresso pela Agenda
21, reconhecida como uma das mais importantes pautas de
alertas e prioridades de ação para o próximo século.
É imperativo que se busque uma reorientação do ensi-
no no sentido do desenvolvimento sustentável, uma pro-
PRUDÊNCIA E UTOPISMO 181
moção do treinamento para as “tecnologias da sustentabili-
dade” e uma elevação da consciência pública cidadã. Os
projetos pedagógicos difusores do princípio “sustentabili-
dade” devem necessariamente incorporar uma dimensão
ética, vinculante de saberes, valores, atitudes, técnicas e com-
portamentos que favoreçam a participação pública efetiva
nas tomadas de decisão. É importante enfatizar o princípio
da delegação de poderes, responsabilidades e recursos em
nível mais apropriado e dar preferência para a responsabili-
dade e controle locais sobre as atividades de conscientização.
Os países e as organizações regionais e internacionais
devem desenvolver suas próprias prioridades e prazos para
implementação, em conformidade com suas necessidades,
políticas e programas, estabelecendo os meios de utilização
das modernas tecnologias de comunicação para chegar efi-
cazmente ao público, promovendo o emprego de métodos
interativos de multimídia e integrando métodos avançados
com os meios de comunicação populares.
As diversas associações profissionais nacionais devem
ser incentivadas a desenvolver e revisar seus códigos de éti-
ca e conduta, para fortalecer as conexões e o compromisso
com a sustentabilidade, permitindo a incorporação de co-
nhecimentos e informações sobre a implementação do de-
senvolvimento sustentável em todas as etapas da tomada
de decisões e formulação de políticas, fazendo de cada pes-
soa usuário e provedor de informação (incluindo dados e
sistematizações de experiências).
A necessidade de informação surge em todos os níveis
— internacional, nacional, regional e local — requerendo,
como um postulado de justiça e eficiência, a redução das
diferenças em matéria de dados e a melhoria da disponibili-
dade da informação para os diferentes agentes sociais. De-
vem ser fortalecidos os mecanismos nacionais e internacio-
nais de processamento e intercâmbio de informação e de
assistência técnica conexa, a fim de assegurar uma disponi-
bilidade efetiva e eqüitativa da informação, sujeita à salva-
182 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
guarda da soberania nacional e direitos de propriedade in-
telectual pertinentes.
As “tecnologias da sustentabilidade” são tecnologias
de processos e produtos, não se configurando como unida-
des isoladas, mas sistemas totais, que incluem conhecimen-
tos técnico-científicos, procedimentos, bens e serviços e equi-
pamentos, assim como procedimentos de organização e
manejo, devendo ser compatíveis com as prioridades
socioeconômicas, culturais e ambientais nacionalmente de-
terminadas. O acesso às “tecnologias da sustentabilidade”
pode ser facilitado por processos cooperativos em nível in-
ternacional e regional, que requerem uma “massa crítica”
de capacitação para pesquisa e desenvolvimento, apta a
incorparar o acervo de conhecimentos e habilidades das
“tecnologias da sustentabilidade” de modo adaptativo e ino-
vador à cultura nacional e local. Tem importância estratégi-
ca o estabelecimento de redes de colaboração de grupos de
pesquisa e desenvolvimento em nível internacional, nacio-
nal e regional.
As “tecnologias da sustentabilidade” têm uma forte
base científica. A pesquisa científica serve de elemento de
articulação e apoio no estabelecimento e realização de me-
tas do desenvolvimento sustentável, constantemente
reavaliando e promovendo padrões menos intensivos de uti-
lização de recursos. Mas diante da ameaça de irreversibili-
dades indesejáveis e no contexto de sistemas complexos, não
plenamente compreensíveis, a falta de conhecimentos cien-
tíficos não pode ser desculpa para se postergar a adoção de
medidas preventivas, e a prudência é uma das virtudes car-
deais da cientificidade. A base científica não deve servir de
argumento para um otimismo ingênuo, apoiado na crença
ilusória de sempre ser possível corrigir amanhã eventuais
falhas de hoje.
O desenvolvimento sustentável exige assumir perspecti-
vas de longo prazo, numa visão de futuro em que a incerte-
za e a surpresa se fazem presentes. A estratégia de ação deve
PRUDÊNCIA E UTOPISMO 183
sempre buscar assegurar uma razoável gama de opções para
haver uma desejável flexibilidade de resposta. Isso requer o
fortalecimento da base científica e de pesquisa, a prudente
interação entre as ciências e a tomada de decisões, e a valo-
rização de conhecimentos autóctones e locais, com os diver-
sos países identificando em nível nacional suas necessida-
des e prioridades no contexto das atividades internacionais
de pesquisa. Com os conhecimentos científicos adquiridos
também servindo de apoio para a realização de avaliações
prospectivas.
Tem prioridade estratégica para o desenvolvimento sus-
tentável o fortalecimento da capacitação científica nacional,
incentivando as atividades de pesquisa e desenvolvimento
com vistas a uma maior utilização de seus resultados nos
diferentes setores produtivos. Isso requer um conjunto de
ações no âmbito do ensino, treinamento e capacitação de
recursos humanos, apoiadas tanto nos conhecimentos tra-
dicionais e locais da sustentabilidade como nos avanços da
modernas “tecnologias da sustentabilidade”. Este processo
deve estar articulado com o fortalecimento da infra-estrutu-
ra científica de escolas, universidades e instituições de pes-
quisa, e a implantação de bancos de dados científicos e
tecnológicos no plano nacional, que alimentem redes regio-
nais de informação.
Tem grande importância estratégica para o desenvol-
vimento sustentável a melhoria da comunicação e coopera-
ção entre a comunidade científica e tecnológica, os
tomadores de decisões políticas e o público. Decisões em
consonância com o princípio “sustentabilidade” são deci-
sões éticas, que contribuem para a manutenção e aperfeiçoa-
mento de sistemas de sustentação da vida. O fortalecimento
de códigos de conduta e diretrizes para a comunidade cien-
tífica e tecnológica contribui decisivamente para a consci-
ência ambiental e o desenvolvimento sustentável. Para que se-
jam eficazes no processo de tomada de decisões, esses prin-
cípios, códigos de conduta e diretrizes, devem, não apenas,
ser produto de um acordo interior à comunidade científica
184 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
e tecnológica, mas também receber o reconhecimento de toda
a sociedade.
Redesenhando o utopismo
Vivemos uma transição crítica (Hobsbawm: 1994). O
fim do milênio se associa a uma crise de paradigmas e a
uma radical transformação na base tecnológica da civiliza-
ção moderna “globalizada”. Acumulam-se os estudos que
se pretendem formuladores de sínteses globais, previsões,
cenários, agendas e avaliações que podem servir de pontes
para o redesenho da utopia. E, em nosso fin de siècle, surge
também toda uma série de trabalhos que apresentam possí-
veis rupturas com tendências do tipo cul-de-sacs: Fim da his-
tória (Fukuyama: 1992), Fim do trabalho (Rifkin: 1995), Fim
da ciência (Horgan: 1996).
Mas as cartilhas da renovação também são muitas, a
começar pela Agenda 21. E seguindo uma conduta pouco
usual entre acadêmicos, J. K. Galbraith (1996) lançou recen-
temente a obra The Good Society: The Humane Agenda, que o
insere no seleto grupo de intelectuais engajados em proje-
tos de sociedade
3
. Nela são pautados temas como desenvol-
vimento, meio ambiente e educação.
Podemos observar que os marcos iniciais do redesenho
dos caminhos do utopismo estão apontados. Cabe agora
trilhá-los. E, para isso, algumas recomendações parecem per-
tinentes:
•As estratégias de mudança não podem ser objeto de
ações imediatistas, nem seus resultados colhidos a
curto prazo. Deve-se ter em mente que os investi-
mentos que os países hoje desenvolvidos fizeram no
âmbito da educação e do desenvolvimento científico
3. Merece referência, nesse caso, o estudo pioneiro de Tinbergen et al. (1977),
além do Relatório Meadows et al. (1972).
PRUDÊNCIA E UTOPISMO 185
e tecnológico têm o prazo de maturação de pelo me-
nos uma geração.
•Os projetos nacionais de metamorfose da identida-
de cultural devem ser gradualistas. Rupturas radicais
“instantâneas e totais” revelam-se carentes de
sustentabilidade institucional. Sem continuidade e
credibilidade nas instituições, a legitimidade e a
efetividade dos processos de transformação ficam
comprometidas.
•O princípio “sustentabilidade” como fundamento de
uma modernidade ética precisa resgatar a lógica do
ser, superando a moldagem que a lógica do ter ao lon-
go do século XX imprimiu tanto à educação quanto
ao desenvolvimento da pesquisa e da ciência e
tecnologia.
As mazelas da globalização, tais como desemprego, ex-
clusão social e anulação de culturas locais, são um de-
safio a ser enfrentado por uma modernidade ética,
fundada no princípio “sustentabilidade”, que afirme
a pluralidade e diversidade como valores positivos.
•A educação deve estar em sintonia com novos
paradigmas. Não mais voltada à formação de cultu-
ras e mentalidades que levem a um futuro utilitarista,
especializado e condenado aos efeitos perversos do
desemprego, das guerras e da degradação ambiental.
Apelo à prudência: um caso exemplar
O triunfo do industrialismo na última virada de século
trouxe consigo a hegemonia de dois conjuntos de expectati-
vas. Havia, por um lado, uma grande certeza de que um
ciclo de redução das desigualdades sociais, resultado de
políticas públicas de proteção social, conduziria o mundo a
uma situação de maior justiça social: a sociedade afluente
era o espelho do futuro de toda a humanidade. Esse cenário
186 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
otimista tinha por suporte um notável desenvolvimento da
ciência e das técnicas nas décadas precedentes, que alimen-
tava a crença na possibilidade de que um irrestrito avanço
do conhecimento e do engenho humano seriam capazes de
solucionar impasses, corrigir distorções e anular “efeitos
externos” indesejáveis.
Os amargos fatos da vida (guerras, “limpezas étnicas”,
desigualdades exacerbadas, corrida armamentista, despo-
tismos, desastres ecológicos etc.) que acompanharam o “lon-
go século XX” frustraram tais expectativas, e revelaram a
ingenuidade desse otimismo. O caminho da humanidade
seguiu a perigosa trajetória que se orienta muito mais pela
busca de uma modernidade técnica do que de uma modernidade
ética.
Dentro de tal cenário, o império da lógica econômica so-
bre a lógica da sustentabilidade transformou nosso século em
um imenso laboratório de operações de risco. Nenhum ou-
tro período da história foi tão sangrento (cf. Hobsbawm:
[1994], o equivalente a 10% dos 1,9 bilhões de habitantes do
planeta em 1900 morreram em guerras ao longo do século).
Nunca o contraste entre abundância e penúria entre povos
foi tão grande; e nem a ciência foi tão necessária para a reso-
lução de problemas criados pelo próprio avanço das técni-
cas. Deparamo-nos com a desconcertante situação que já
havia sido alertada por Herrera (1984): vivemos sob o risco
de uma “crise da espécie”. Precisamos conviver com a pos-
sibilidade de destruir a biosfera por atos humanos, e não
apenas sob a forma do holocausto nuclear exacerbado pela
corrida armamentista. É urgente incorporar uma redefinição
dos balizamentos éticos de nossos atos produtivo-
destrutivos. A “cega” incorporação aos sistemas produti-
vos de novos avanços tecnológicos, sem a prudente avalia-
ção de seus riscos, pode transformar o alerta de Herrera em
profecia, e os cenários sombrios das antiutopias de ficção
científica em ingênuas antevisões, se confrontados com a
realidade dos fatos.
PRUDÊNCIA E UTOPISMO 187
O avanço das tecnologias de manipulação genética
constitui importante pano de fundo para a atual temporada
de balanço do século XX e de cenários para o próximo. Como
há 100 anos atrás, o progresso é anunciado como redentor.
E a prudência parece ser nossa virtude mais necessária.
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J. C. B. Mohr, 1981.
SOBRE OS AUTORES
Argemiro Procópio Filho. Nascido em Varginha, MG, em
1949. Doutor em Sociologia pela Universidade de Berlim,
Alemanha. Pós-graduado no Instituto de Estudos dos Paí-
ses em Desenvolvimento da Universidade Católica de
Louvain, Bélgica. Professor Titular por concurso público do
Departamento de Relações Internacionais da Universidade
de Brasília. Autor de: Amazônia, ecologia e degradação social,
Alfa-Ômega; O Brasil no mundo das drogas, Vozes; Narcotráfico
e segurança humana, Ltr.
Arminda Eugenia Marques Campos. Nascida no Rio de Ja-
neiro, RJ, em 1961. Graduou-se em Engenharia Civil na UFRJ
(1983). Obteve os graus de mestre (1991) e doutora (1997)
em Ciências em Engenharia de Produção na COPPE/UFRJ.
Trabalha como coordenadora de projetos no Fundo Brasi-
leiro para a Biodiversidade, estando ainda associada a pro-
jetos do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento So-
cial do Programa de Engenharia de Produção da COPPE/
UFRJ. Tem interesse em história e filosofia da educação e
das ciências.
Eduardo Baumgratz Viotti. Nascido em Belo Horizonte, MG,
em 1952, é graduado em economia pela Universidade Fede-
ral de Minas Gerais (1975); mestre em economia pela Uni-
190 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
versidade de Brasília (1979) e doutor pela The New School
University, New York, EUA (1997). É Consultor Legislativo
do Senado Federal para Políticas de Ciência e Tecnologia e
de Meio Ambiente. É também professor do Mestrado em
Política e Gestão de C&T, Centro de Desenvolvimento Sus-
tentável da Universidade de Brasília. Foi Consultor
Legislativo da Câmara dos Deputados; Chefe da Divisão de
Planos de C&T do Ministério da Ciência e Tecnologia; Co-
ordenador de Desenvolvimento Industrial do CNPq e As-
sessor da Coordenação de Estudos Especiais do Conselho
de Desenvolvimento Industrial do Ministério da Indústria e
do Comércio.
Elimar Pinheiro do Nascimento. Nascido no Recife, PE, em
1947, é doutor em sociologia pela Universidade René Des-
cartes, Paris (1982). Fez pós-doutoramento na Ecole des
Hautes Études en Sciences Sociales, com Alain Touraine
(1992). Trabalhou na Europa como documentarista e editor
da revista do SEUL (1972/1976) e, em Moçambique, no Mi-
nistério de Educação e na Universidade Eduardo Mondlane
(1976/1979). No Brasil, foi professor nas universidades fe-
derais da Paraíba (1980-1983), Pernambuco (1985-1987) e,
desde 1987, leciona na Universidade de Brasília, no Depar-
tamento de Sociologia e no Centro de Desenvolvimento
Sustentável. Foi diretor do Centro de Estudos Josué de Cas-
tro do Recife e vice-presidente da Associação dos Sociólo-
gos de Pernambuco. Trabalhou no governo Cristovam
Buarque (DF) como chefe de sua assessoria especial, respon-
sável por Ciência e Tecnologia, e Secretário-adjunto de Co-
municação. É autor de vários livros e artigos.
Jenner Barretto Bastos Filho. Nascido em Salvador, BA, em
1949, é bacharel em física pela Universidade Federal da Bahia
(1971), mestre em física pela Unicamp (1975) e doutor em
física teórica pela Eidgenössische Technische Hochschule-
Zürich, Suíça (1982). Foi professor da Universidade Federal
da Bahia (1976-1978) e, desde 1983, é Professor do Departa-
SOBRE OS AUTORES 191
mento de Física da Universidade Federal de Alagoas. A partir
da fundação do Programa de Pós-graduação em Desenvol-
vimento e Meio Ambiente (Mestrado do PRODEMA/UFAL)
em 1997, tem ministrado a disciplina Lógica e Crítica da In-
vestigação Científica. Desde 1997, é vice-coordenador do
PRODEMA/UFAL. É membro do Comitê de Bioética e Éti-
ca em Pesquisa da UFAL. Tem um estágio pós-doutoral na
Universidade de Bari/Itália/1993. Tem trabalhos publica-
dos no Brasil e no exterior em física, ensino de ciências, his-
tória e filosofia da ciência. Presentemente, estuda desenvol-
vimento e meio ambiente.
Marcel Bursztyn. Nascido no Rio de Janeiro, RJ, em 1951, é
graduado em Economia (1973) e mestre em Planejamento
Urbano e Regional (1976) pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Na University of Edinburgh, Escócia, obteve o
Diploma in Planning Studies (1977). É doutor em Desenvol-
vimento Econômico e Social pela Université de Paris I
(Sorbonne), 1982, e em Ciências Econômicas pela Université
de Picardie, na França, 1988. Foi professor das universida-
des federais do Rio de Janeiro e da Paraíba e da Université
de Paris I (Sorbonne). Desde 1992, leciona no Departamento
de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e, a partir
de 1996, é coordenador de pós-graduação do Centro de De-
senvolvimento Sustentável da mesma universidade. Ocupou
vários postos na administração pública federal e do Distrito
Federal (governo Cristovam Buarque). É autor de vários li-
vros e artigos.
Roberto dos S. Bartholo Jr. Nascido no Rio de Janeiro, RJ,
em 1951, é graduado em Economia pela Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Teologia pela Universi-
dade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). É Mestre em
Ciências em Modelos Matemáticos aplicados à Engenharia
de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(COPPE/UFRJ) (1976), e Doutor pela Faculdade de Econo-
mia e Ciências Sociais da Universidade Erlangen-Nürnberg,
192 CIÊNCIA, ÉTICA E SUSTENTABILIDADE
na Alemanha (1981), onde defendeu a tese Homo Industrialis,
um questionamento dos fundamentos ético-econômicos da
modernidade contemporânea. É professor da Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro onde criou o Laboratório de
Tecnologia e Desenvolvimento Social (LTDS). É autor de vá-
rios livros e artigos.
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