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socialmente tensa. Portanto, sempre se pode dizer que a própria situação é
violenta. Deste ponto de vista, pobreza, injustiça, exploração, desigualdade
social podem ser consideradas violências. Até o ato pedagógico, mesmo que
legítimo, adequado e sadio, já foi rotulado de violência, na medida em que
implica uma tensão (entre quem sabe e quem não sabe e na própria mente do
aluno). Contudo, por mais tensa que seja, uma situação não produz auto-
maticamente atos violentos. Nesse assunto, comete-se freqüentemente um
erro metodológico. Constata-se um ato violento, analisa-se o mesmo, evi-
dencia-se que pode ser vinculado a fatores identificados na situação e conclui-se
que esses fatores são causas da violência. Assim foi “evidenciado” que a
pobreza é causa da violência. Ao praticar desse modo, esquece-se que a grande
maioria dos pobres não são violentos, nem revoltados. Ora, se a “causa”
(pobreza) nem sempre produz o seu “efeito” (violência), não se trata mesmo
de uma causa. Isso não quer dizer que a pobreza nada tenha a ver com a vio-
lência, mas que o raciocínio em termos de causas e efeitos não é pertinente.
Os fenômenos amalgamados sob o nome de “violência” são construídos por
processos, em que a pobreza pode interferir, e muitas vezes (mas nem sempre)
interfere, junto a outros fatores, constituintes, contextos, interações, micro-
processos, etc. É um erro desconhecer a importância da pobreza e das estru-
turas sociais no nascimento e desenrolamento dos atos violentos, mas é
também um erro supor que o peso desses elementos macrossociais seja
sempre igual e é um abuso transformar elementos da situação em determi-
nantes, muito mais em determinantes de “a” violência, como se houvesse uma
espécie genérica, “a” violência, cujos fenômenos agrupados sob essa etiqueta
fossem apenas variedades.
Portanto, é preciso dar mais alguns passos para frente. Um dos maiores
méritos desse livro é que leva até o final o esforço de distinção conceitual e
descritiva, de tal modo que permite perceber que mesmo aquele esforço não
é suficiente. Por minha parte, graças à leitura do livro, cheguei a pensar que é
preciso dar mais alguns passos para frente.
“A violência” não existe. O que existe são atos, gestos, agressões, ameaças,
palavras, brincadeiras e até silêncios, que matam, ferem, machucam, ofen-
dem, aborrecem, frustram, etc., deixando bem claro que todos esses verbos
não são sinônimos. Por produzirem esses efeitos, alguns desses atos, gestos,
etc., são rotulados de “violentos”. Em seguida, o adjetivo (ato violento, palavra
violenta…) deixa o lugar para um substantivo, que passa a substituí-lo; não
se fala mais em atos ou palavras violentos, fala-se em “violências”. É como se
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