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A UNIVERSIDADE
NA
ENCRUZILHADA
Seminário Universidade:
por que e como reformar?
Brasília, 6-7 de agosto de 2003
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©UNESCO 2003 Edição brasileira pelo Escritório da UNESCO no Brasil
Education Sector
Division of Higher Education
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BR/2003/PI/H/6
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Brasília, novembro de 2003
A UNIVERSIDADE
NA
ENCRUZILHADA
Seminário Universidade:
por que e como reformar?
Brasília, 6-7 de agosto de 2003
Promoção conjunta da Secretaria de Educação Superior
do Ministério da Educação (SESu/MEC), da Comissão
de Educação do Senado Federal e da Comissão de
Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados
e com o apoio da UNESCO
Conselho Editorial da UNESCO no Brasil
Jorge Werthein
Cecilia Braslavsky
Juan Carlos Tedesco
Adama Ouane
Célio da Cunha
Comissão Organizadora do Seminário Universidade: por que e como reformar?
Organizador
Emmanuel Appel
Tradução: Sérgio Bath
Revisão Técnica: Emmanuel Appel
Revisão e Diagramação: Eduardo Perácio (DPE Studio)
Assistente Editorial: Rachel Gontijo de Araújo
Capa: Edson Fogaça
Edições UNESCO BRASIL
© UNESCO, 2003
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
Representação no Brasil
SAS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9º andar.
70070-914 – Brasília – DF – Brasil
Tel.: (55 61) 2106-3500
Fax: (55 61) 322-4261
E-mail: UHBRZ@unesco.org.br
Osmar Dias (Comissão de Educação do Senado Federal), Gastão Vieira (Comissão de Edu-
cação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados), Emmanuel José Appel e José Geraldo de
Sousa Júnior (Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação – SESU/MEC) e
Célio da Cunha (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura/UNESCO).
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ..............................................................................................9
Carlos Roberto Antunes dos Santos
UNIVERSIDADE: RELEVÂNCIA E REFORMA.................................... 21
Jorge Werthein
A UNIVERSIDADE NUMA ENCRUZILHADA...................................... 23
Cristovam Buarque
SOCIEDADE, UNIVERSIDADE E ESTADO: AUTONOMIA, DE-
PENDÊNCIA E COMPROMISSO SOCIAL......................................... 67
Marilena Chauí
A UNIVERSIDADE, MUDANÇA E IMPASSES ....................................... 77
Cândido Mendes
SOCIEDADE, UNIVERSIDADE E ESTADO: AUTONOMIA, DE-
PENDÊNCIA E COMPROMISSO SOCIAL......................................... 81
Eduardo Portella
O CONHECIMENTO, AS UNIVERSIDADES E SEUS
DESAFIOS... ............................................................................................... 85
Carlos Vogt
NOTAS SOBRE UNIVERSIDADE E DESENVOLVIMENTO .......... 95
Roberto Smith
ACADEMIA E SETOR PRODUTIVO...................................................... 101
Francelino Grando
AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR – VALORES REPUBLI-
CANOS, CONHECIMENTO PARA A EMANCIPAÇÃO, IGUAL-
DADE DE CONDIÇÕES E INCLUSÃO SOCIAL ........................... 109
José Dias Sobrinho
UNIVERSIDADES: O QUE FAZER? ....................................................... 121
Renato de Oliveira
INCLUSÃO UNIVERSITÁRIA: PEQUENAS REFLEXÕES A PARTIR
DE UMA GRANDE EXPERIMENTAÇÃO SOCIAL ...................... 131
Rabah Benakouche
AS MINORIAS E A UNIVERSIDADE NO BRASIL: A IRONIA
DE UM DESENCONTRO POLÍTICO ................................................ 139
Beatriz Couto
POR UMA LEI ORGÂNICA DO ENSINO SUPERIOR ..................... 147
Luiz Antônio Cunha
REFORMAR É PRECISO; PORÉM... EM QUE DIREÇÃO............... 155
Carlos Benedito Martins
ESTRUTURA E ORDENAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR:
TAXIONOMIA, EXPANSÃO E POLÍTICA PÚBLICA ................... 169
Edson Nunes
POR QUE E COMO REFORMAR A UNIVERSIDADE:
MITOS E REALIDADES ....................................................................... 181
Hélgio Trindade
A CONTRIBUIÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR A
DISTÂNCIA À REFORMA DA UNIVERSIDADE........................... 191
João Carlos Teatini de Souza Clímaco
Carmen Moreira de Castro Neves
A UNIVERSIDADE QUE O NOVO BRASIL PRECISA...................... 203
Dilvo Ristoff
Luiz Araújo
PROPOSTA DE EXPANSÃO E MODERNIZAÇÃO DO
SISTEMA PÚBLICO FEDERAL DE ENSINO SUPERIOR........ 207
ANDIFES – Associação Nacional dos Dirigentes
das Instituições Federais de Ensino Superior
SEMINÁRIO “UNIVERSIDADE: POR QUE E COMO
REFORMAR?”................................................................................. 219
9
APREENTAÇÃO
Carlos Roberto Antunes dos Santos
(*)
O mundo contemporâneo vive hoje uma nova etapa da revolução cien-
tífica e tecnológica. Os avanços do conhecimento científico e as novas
tecnologias têm ocasionado profundos impactos, responsáveis por novas
transformações sociais. São profundas alterações verificadas no plano mun-
dial, intensificadas a partir da década de 1970 mediante pesquisas e desco-
bertas revolucionárias, como, por exemplo, nos campos da manipulação ge-
nética, produção de novos materiais, microeletrônica, química fina, infor-
mática, robótica, nanotecnologia, no campo aeroespacial, e em outras novas
áreas. É de se destacar que nos anos sessenta, o físico brasileiro Mário
Schenberg já afirmava que as tecnologias do futuro não estariam ligadas à
energia nuclear, como pensavam muitos, mas sim à eletrônica e à informáti-
ca. E tudo evolui. Uma recente edição brasileira da Revista Americana de Ciên-
cias tratou de reportagens sobre: 1) as experiências com coração artificial,
feito de plástico e titânio; 2) a busca da fonte da juventude, por meio de
pesquisas com remédios que imitam os efeitos das dietas de baixas calorias
para retardar o envelhecimento; 3) os feixes de laser ligando as redes de
comunicação e substituindo a fibra ótica; 4) as pesquisas sobre seres micros-
cópicos marinhos que desempenham um papel crítico na regulação do clima
da terra, sendo que estas pesquisas têm o fim de manipular tais populações,
adicionando nutrientes aos oceanos, na tentativa de combater o aquecimen-
to global do planeta; e 5) os recursos que os pesquisadores da Lingüística e
de outras ciências estão buscando para evitar que milhares de idiomas desa-
pareçam. Em 100 anos, metade das seis mil línguas faladas no mundo deixa-
ria de existir. Todas essas pesquisas e muitas outras compreendem um con-
junto amplo de avanços provenientes de áreas as mais diversas, reforçando e
(*) Carlos Roberto Antunes dos Santos é Secretário de Educação Superior (SESu/MEC) e professor
titular no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná. Ex-reitor da UFPR e ex-
presidente da Andifes.
10
incrementando novos desenvolvimentos e fertilizando campos multi e in-
terdisciplinares.
Diante desse cenário, falar de desenvolvimento científico-tecnológico
e não o contextualizar num amplo espaço de questionamentos, processos e
relações sociais, é reforçar visões parciais, unilaterais e comprometedoras de
um diagnóstico mais acurado. Sem negar a complexidade deste tema, deve-
se considerar a globalização como realidade multidimensional, envolvendo
a economia, a história, a política, a cultura, o desenvolvimento científico e
tecnológico, e vários setores da vida contemporânea. Na verdade, devemos
perceber, concordemos ou não, que a globalização contém um sentido, uma
coerência interna, que redefine relações e articulações em nível internacio-
nal, em um processo, simultaneamente, de diferenciação e de integração.
Nesta Sociedade do Conhecimento, o conhecimento é a grande moeda
de troca. Investir hoje em educação e na produção do conhecimento signifi-
ca investir na soberania e no desenvolvimento do país. Hoje, indiscutivel-
mente, o conhecimento em ciência e tecnologia constitui o principal fator de
agregação de valor ao desenvolvimento. Quem dominar a geração de
tecnologia será capaz de produzir inovações de ponta, e, ao final, mais divi-
sas, mais desenvolvimento, empregos, educação, saúde, e assim por diante.
Os governantes, a classe política, os empresários, a comunidade universitá-
ria e a sociedade como um todo precisam estar convencidos, conscientizados,
da relação obrigatória entre pesquisa e desenvolvimento e dispostos a um
trabalho em conjunto. Desta forma, há ainda uma grande dependência exter-
na em relação à nova produção do conhecimento, pois continuamos a im-
portar pacotes tecnológicos. Até mesmo a animação de um recente carnaval
carioca foi feito com tecnologia importada. Por trás daquele vôo mágico,
daquele encantamento no ar, da parte do dublê americano na Marquês de
Sapucaí, havia o aluguel do equipamento que pertence à Nasa que cobrou
nada mais, nada menos, que U$100 mil para os 30 segundos de vôo.
Os indicadores demonstram que empresas continuam a comprar no
exterior conhecimento que deveria e poderia ser gerado aqui no Brasil. Mas
a questão não se resume a uma falta de sensibilidade ou racionalidade em-
presarial que enxerga apenas o curto prazo. Mas há um conjunto de fatores
que condicionam culturas e posturas à disposição ou não de investir em
Pesquisa e Desenvolvimento.
Neste início do século XXI, o problema maior não é aquele de promover
o ensino superior, mas o de reorientá-lo sobre a base de um novo contrato
social entre a universidade e a sociedade. E de definir as estratégias de mudan-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
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ças para conduzir esta reorientação, que exige uma vontade coletiva forte e
individualmente de todos aqueles que têm compromissos com as mudanças.
A universidade brasileira é muito jovem como instituição, pois tem me-
nos de um século. A universidade pública é mais jovem ainda, com menos de
setenta anos. Mas, no entanto, grandes contribuições já ofereceu à sociedade
brasileira, em termos de produção do conhecimento para o desenvolvimento
do país, na formação de profissionais e de quadros de qualidade e na inserção,
cada vez maior, da comunidade, por meio de suas ações extensionistas.
A atual estrutura da universidade data da reforma do início dos anos
70. Ao longo desses 30 anos de grandes avanços, dois suportes podem ser
destacados: a dedicação exclusiva, que possibilitou a grande qualificação de
mestres e doutores no Brasil e no exterior, e a pós-graduação. Temos hoje o
melhor sistema de pós-graduação da América. Latina.
É verdade que parte dos muros das universidades brasileiras já foram
derrubados, mas ainda restam muitos, grandes paredões. As universidades
públicas vivem, já há muitos anos, crises de retorno periódico: não têm re-
cursos, não têm autonomia, não têm estímulos. Tudo isso é verdade. Só que
a crise da universidade hoje não é apenas emergencial, mas estrutural. Isso a
tornou burocrática, lenta e custosa. O dirigente vive triturado pela burocra-
cia. É possível, com a estrutura atual, a universidade responder aos desafios
da contemporaneidade? Sim, em alguns pontos, não no conjunto. Como cons-
truir a Universidade XXI, considerando esta importante contribuição já ofe-
recida pela universidade pública a este país? A universidade deve definir a
sua missão, a partir da sua história e das imposições do tempo presente e
futuro. De que modo a universidade pode contribuir para o sistema educati-
vo como um todo? Como a Universidade pode contribuir para a definição e
implementação de um projeto de nação, visando a uma sociedade mais jus-
ta? Qual deve ser o novo contrato social da universidade com a sociedade?
Quais as novas formas de engajamento da universidade? De que maneira ela
se renova como projeto social? Como repensar a concepção de modelo de
ensino de graduação, que ainda é por cursos e créditos, como um sistema
bancário, que é por créditos. A questão da universidade não se encerra den-
tro da universidade. Por ela estar inserida na sociedade, devemos discutir a
nova universidade dentro de uma nova sociedade.
Estabelecer um diálogo com os setores organizados da sociedade civil,
com o objetivo de construir uma universidade à altura de seus desafios é
uma das metas de ação política do Ministério da Educação. Uma das poucas
instituições que permite a articulação e o diálogo crítico e livre entre distin-
12
tos saberes e modos de conhecer, a universidade contemporânea e, em par-
ticular, a brasileira, atravessa uma crise que se reflete na sua perplexidade
frente a uma transição global que se quer paradigmática. Apesar das múlti-
plas e complexas transições enfrentadas pela sociedade, a universidade so-
breviveu e cresceu ao longo dos séculos pela sua capacidade em identificar
alternativas históricas que lhe têm permitido, não apenas confrontar seus
desafios, mas deles emergir sólida e à frente de seu tempo. Neste novo sécu-
lo e milênio, quando grandes interpelações abrem-se no horizonte, recoloca-
se o desafio para reconfigurá-la como uma Universidade para o Século XXI.
É nesse contexto que a Secretaria de Educação Superior do MEC, bus-
cando reorientar as funções da universidade e do ensino superior, promo-
veu, com apoio da UNESCO e em conjunto com as Comissões de Educação
do Senado e da Câmara Federal, o Seminário “Universidade: por que e como
reformar?”. Esse evento inscreveu-se como marco dentro de uma agenda
que visa a discutir a Universidade do Século XXI, já iniciada com a Confe-
rência Mundial sobre o Ensino Superior realizada em Paris em 1998, com as
reuniões da Associação de Universidades do Grupo Montevidéu, e com a
continuidade, no mês de junho passado, da Conferência Mundial de Educa-
ção Superior Paris+5, sob os auspícios da UNESCO. Na sessão de abertura
desta Conferência, o Ministro Cristovam Buarque defendeu o princípio da
educação como bem público e não como serviço. A seqüência deste conjun-
to de eventos dar-se-á com o Seminário Internacional Universidade XXI, a
ser realizado de 25 a 27 de novembro de 2003 em Brasília, coordenado pela
SESu/MEC. A isso se deve acrescer a especial circunstância de inauguração
de um novo projeto nacional de governo que tem como eixo principal a
expansão do ensino superior com qualidade e inclusão social, e que possa
ensejar a oportunidade da abolição das iniqüidades que reduzem ou supri-
mem o exercício da cidadania. Os compromissos do governo diante da pro-
posta de Expansão e Modernização do Sistema Público de Ensino Superior
apresentada ao Senhor Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva,
pela Andifes, foram prontamente renovados, em reunião realizada em 05/
08/03 no Palácio do Planalto.
A grande mobilização verificada no decorrer da realização do Semi-
nário “Por que e como reformar a Universidade”, tanto no setor público
como no privado, reunindo os mais diversos atores, mostrou a forte expec-
tativa de toda a comunidade universitária por uma profunda reforma no
atual modelo de ensino superior brasileiro: reforma e não apenas mudança
é consenso, e mais, a expectativa de que o atual governo, de fato, irá pro-
mover esta reforma.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
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Para orientar a discussão, quatro núcleos temáticos foram postos em relevo:
1 – Sociedade, Universidade e Estado: autonomia, dependência e com-
promisso social.
2 – Universidade e Desenvolvimento: globalização excludente e proje-
to nacional.
3 – Universidade e Valores Republicanos: conhecimento para a emanci-
pação, igualdade de condições e inclusão social.
4 – Universidade Século XXI, resgate do futuro, estrutura e ordenação
do sistema: a tensão entre o público e o privado.
Os expositores e debatedores desenvolveram sua abordagem a partir
do eixo central proposto (Por que e como reformar a Universidade?) e seus
possíveis desdobramentos:
a) Qual a estrutura mais eficiente e democrática para a universidade das
primeiras décadas do século XXI?
b) Qual o papel da universidade dentro do sistema de produção e difu-
são dos distintos saberes e modos de conhecer?
c) Qual o papel da universidade na construção de igualdade de condi-
ções e de oportunidades para uma vida emancipada?
d) Como superar as limitações crônicas de financiamento e
sustentabilidade das IFES?
São eixos que se apóiam na afirmação política da educação como dever
de Estado e estratégia de governo para o desenvolvimento do país, num
processo pleno de contradições e tensões, tanto nas relações que se estabe-
lecem com o Estado e a sociedade como entre as próprias instituições.
O Seminário não se constituiu num encontro para se estabelecer con-
sensos a priori, e nem era esse o objetivo. Reunindo pensadores que expres-
sam as mais diferentes correntes de opinião e que representam o acúmulo da
reflexão sobre a universidade nestes últimos anos, teve como grande mérito
construir um nivelamento para que o processo de interlocução, que se inicia,
partisse de um patamar mínimo, socializando para a comunidade acadêmica
as diversas variáveis que estão sendo colocadas no debate.
Apontou, também, a conduta política que o governo pretende adotar
nesse processo. Não houve discriminação ou cerceamento a qualquer seg-
mento do ensino superior, buscando, pelo contrário, mobilizar a todos de
forma que o evento se constituísse num espelho do real cenário brasileiro.
Embora o governo tenha posições e formulações expressas sobre uma série
14
de aspectos, colocou sobre a mesa todo o espectro de reflexões já estabeleci-
das no meio acadêmico, dando uma clara sinalização de que a reforma que
se pretende terá por base um processo amplo de construção participativa e
democrática.
A composição das mesas, privilegiando intelectuais e não represen-
tantes de segmentos, teve o sentido de, neste primeiro momento, trazer o
conjunto para a reflexão, visto que todas as proposições até agora consolida-
das construíram-se em um ambiente de resistência e que, portanto, devem
ser reanalisadas à luz de uma nova realidade. Em que pese tal característica
do evento, as diversas organizações representantes dos estudantes, trabalha-
dores na educação, docentes, dirigentes, empresários parlamentares e socie-
dade civil puderam explicitar os eixos centrais de suas posições.
Embora hoje prevaleça uma sociedade em que tudo tem de ser imedia-
to, no caso da universidade é imprescindível a adoção de uma análise cuida-
dosa, que evite fórmulas bombásticas. Esta deve ser a tônica no processo de
discussão da universidade. Não há fórmulas apocalípticas nem milagrosas.
O diagnóstico tem de ser construído de uma forma clara e consistente. Para
tanto, é necessário um elevado espírito público. O correto é estruturar uma
agenda positiva, ouvindo-se a sociedade de uma forma coletiva.
Ao longo do seminário, os apresentadores manifestaram suas posições
e teses, cujo conjunto dos pontos principais podem assim ser elencados:
1. UNIVERSIDADE/SOCIEDADE/DESENVOLVIMENTO
A universidade deve exercer o seu papel à altura da história. Nunca os
países, em especial o Brasil, precisaram tanto das universidades como hoje,
frente às transformações que estão ocorrendo em nível nacional e mundial.
Para tanto, ela deve estar em sintonia com a sociedade para entender a
sua realidade e dela receber subsídios para suas ações. Ela é um farol que
deve estar voltado para fora, iluminando o entorno. Mas também deve dei-
xar que a luz da sociedade a ilumine por dentro. É nesse equilíbrio que re-
pousa a base de uma relação sadia e crítica entre ambas as realidades: Soci-
edade/Universidade. Nesse âmbito está a universidade que deve ser um for-
te fator de inclusão social, promovendo a igualdade de oportunidades como
também um fator de crescimento econômico sustentável, mediante a forma-
ção de recursos humanos qualificados e desenvolvimento de tecnologias que
agregarão valor aos produtos e reduzirão a dependência do país em relação
ao mundo desenvolvido. Só assim a universidade poderá apontar caminhos e
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
15
soluções à frente de seu tempo. A vocação da universidade é ser uma insti-
tuição social e não uma organização social.
Aliás, caberia uma pergunta: qual o nível da relação do nosso ensino
superior com o desenvolvimento do nosso país? Em princípio, parece pe-
quena, já que desenvolvimento pressupõe distribuição de renda e educação.
Pergunta-se: isto está acontecendo no Brasil?
Infelizmente a lógica dos últimos anos foi a contenção do sistema pú-
blico. Nesse sentido, o poder público favoreceu o sistema privado, em espe-
cial o empresarial. Em ambas as situações, permaneceu o caráter elitista. Por
exemplo, embora a população negra ou parda do país seja de 45%, somente
2% dos alunos do ensino superior são negros ou pardos. Além disso, os 20%
mais ricos ficam com 70% das vagas. Como se vê, a avaliação atual aponta
para um distanciamento significativo e perigoso da universidade em relação
à realidade social vigente que a cerca e que deveria embasar suas ações.
Trata-se de um paradoxo, cuja origem remonta ao período do regime militar.
A universidade brasileira teve um forte apoio da ditadura militar, pelo
fato de ela fazer parte de seu projeto de um Brasil grande, embora social-
mente excludente. Foi, inclusive, o momento em que a mesma recebeu
forte apoio em direção a sua consolidação e fortalecimento, motivo de sua
grande expansão e afirmação no país. Deve-se, inclusive, reconhecer que o
governo militar (apesar das perseguições e outros problemas) recebeu sig-
nificativa colaboração do mundo acadêmico de então. De qualquer forma,
o crescimento e expansão da universidade, nesse período, abrangeu gran-
des projetos de interesse do governo, dos quais a sociedade, como um todo,
esteve excluída. Parece que este viés foi assumido e internalizado pela
universidade após a redemocratização do país, mantendo-se, em grande
parte, até os dias atuais.
2. UNIVERSIDADE/AUTONOMIA
O governo que sucedeu o regime militar reduziu em muitos aspectos
a autonomia das IFES, aumentando a tutoria do MEC e de outras áreas do
governo. Veja-se, por exemplo, o caso das procuradorias jurídicas, cujos
titulares deixaram de ser funcionários das universidades, passando para o
quadro da AGU.
Ao se falar em autonomia, torna-se imprescindível definir com maior
clareza o significado de UNIVERSIDADE. É preciso melhorar a taxonomia
da universidade. Hoje, existem mais de 160 universidades no país, entre
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públicas e privadas. Quantas são de fato universidades? O que é uma uni-
versidade? Basta ter dois mestrados e já se torna universidade? Como fica,
então, a autonomia neste caso? Todas as universidades passam a ter auto-
nomia nesta situação? E os centros universitários? Tudo está a indicar que
estes últimos deveriam ter o seu nível de autonomia mais reduzido que as
universidades.
Aliás, conforme mostra a história do processo da autonomia, cuja dis-
cussão já dura mais de uma década, o Estado brasileiro demonstrou profun-
da aversão pela autonomia universitária. Portanto, é preciso redefinir com
urgência o sentido de universidade, para, na seqüência, aplicar-se a autono-
mia. Para discuti-la e implantá-la seria importante constituir-se uma comis-
são, com pessoas da academia, de grupos sociais organizados e da área go-
vernamental. Nela deveriam ser abrangidas as várias áreas que tratam direta
ou indiretamente do ensino superior, como é o caso da Capes e do CNPq,
agências que deveriam ter a autonomia para eleger seus dirigentes. Neste
aspecto, é imprescindível construir um sólido e bem estruturado sistema de
avaliação, o qual dará consistência ao processo de autonomia.
3. UNIVERSIDADE – HETEROGENEIDADE DO SISTEMA/
LEI ORGÂNICA
Deve-se considerar, além disso, que o ensino superior brasileiro é pro-
fundamente heterogêneo, tanto no âmbito das públicas como no âmbito das
privadas. Por essa razão, não é possível aplicar uma fórmula única de organi-
zação, inclusive dentro de cada sistema. Portanto, a discussão de um sistema
universitário para o país deverá levar em conta essa heterogeneidade.
É hora de se assumir a real potencialidade e vocação de cada sistema,
respeitando-o e planejando ações dentro desta visão.
Nesse contexto, é hora de se rediscutir também a LDB, que é uma lei
extremamente limitada, pois os pontos que ela aborda referem-se basicamente
às políticas do Executivo. Nela nada está dito, por exemplo, em relação ao
CNE, o que gera toda uma gama de problemas, que envolve esse Conselho.
Por essa e outras razões, o país precisa necessariamente de uma nova LDB.
Com tudo isso, torna-se indispensável uma lei orgânica do ensino su-
perior, em que se considere o mesmo como um bem público e concessão do
Estado. Para viabilizar esta realidade, porém, é imprescindível que a univer-
sidade pública, ela própria, proceda a uma reestruturação do seu sistema,
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
17
reduzindo o nível de privatização interna que a caracteriza hoje. Enquanto
de um lado grupos corporativos trabalham visando a construir uma institui-
ção voltada para atender apenas interesses de suas corporações, de outro,
importantes parcelas da academia atuam junto à iniciativa privada mediante
parcerias empresariais, que fogem ao escopo de uma universidade. Em am-
bos os casos, interesses sociais passam ao largo das ações institucionais.
Por outro lado, como prevê a Constituição, a educação não é tarefa
exclusiva do poder público; é também da família, da comunidade, portanto
da iniciativa privada. A lei deverá tratar claramente desta questão, bem como
da relação entre as públicas e as privadas e destas com a sociedade. Não
seria de bom alvitre que as IES privadas fossem transformadas em funda-
ções, com ou sem fins lucrativos? Ou então a existência de universidades naci-
onais, papel a ser desempenhado pelas federais, e universidades regionais, sob
responsabilidade das instituições comunitárias. Independente das demais
propostas, o sistema público federal deveria ser o marco e referência para os
demais sistemas, incluindo-se a autonomia (constitucional), carreira, avalia-
ção, organização estrutural, relação com a sociedade, etc. A lei orgânica de-
veria considerar, inclusive, as condições de intervenção federal no sistema
de ensino superior do país.
Um outro aspecto que deverá caracterizar o ensino superior no âmbito
de uma lei orgânica é a sua capacidade de articulação com o sistema nacio-
nal de C & T. Como está hoje, os dois sistemas possuem reduzida interação,
com prejuízos evidentes para ambos. Mantida a situação, há o risco de haver
uma dissolução do sistema nacional de ensino superior, já que o sistema
público não tem o reconhecimento devido, seja da sociedade seja do gover-
no, e o sistema privado está sendo expandido cada vez mais pelas circuns-
tâncias. Por outro lado, o MEC consegue atender muito pouco o sistema
público e não possui uma ação clara de controle do sistema privado. Assim,
ambos os sistemas encontram-se, de uma certa forma, sem uma clareza a
respeito do seu papel e do seu futuro. Aí entra a questão da OMC, a qual, se
tudo continuar como está, certamente terá sucesso na internacionalização
do nosso sistema de ensino superior. Há que resistir, reprogramar o saber,
apontando para uma universidade cidadã.
Como se percebe, o maior desafio, neste momento, é recompor a uni-
versidade brasileira. Tanto a pública como a privada, pois ambas estão fora
do contexto do que deve ser efetivamente uma universidade num país como
o nosso. Ambas estão atendendo a uma elite que envolve uma população de
não mais de 30 a 40 milhões de habitantes.
18
É forçoso reconhecer que houve uma queda acentuada na qualidade do
ensino superior brasileiro. Isto é algo natural, tendo em vista que o cresci-
mento nesta área aconteceu de maneira muito rápida. Isto, por si, faz cair a
qualidade. Apesar das exceções, uma boa parte do sistema se mercantilizou.
Hoje, 70% é privado e 30% é público. Já no caso das licenciaturas, mais de
85% é ofertado pelo ensino privado. É possível alterar esta relação? Será que
esta realidade não tende a ser permanente? É preciso ter claro que o sistema
privado já se estabilizou, tem tessitura própria, tem ações fortes no Congres-
so. Sabemos que para haver reversão nesses números seria indispensável
uma mudança na postura do governo em relação ao ensino superior público,
o que não parece ser o caso, neste momento. Uma das ações imprescindíveis
para mudar o status quo vigente seria derrubar os vetos ao PNE. Para um dos
conferencistas, durante os últimos anos, existiram três ministérios da educa-
ção no país. Dois deles – Fazenda e Planejamento – são os principais, e o da
Educação, coadjuvante.
4. DESAFIOS
Cabem, portanto, grandes desafios ao Estado, na condução da discus-
são a respeito da Universidade, a qual deve ter como marca a inclusão e o
desenvolvimento. Nesse sentido, o papel do Estado é CONSTRUIR, CON-
DUZIR E SUPERVISIONAR O ENSINO SUPERIOR. Como já foi dito,
as universidades públicas devem ter a posição de sistema centralizador no
contexto do país. Apesar de quase 70% das matrículas estarem nas institui-
ções privadas, as públicas deverão ter a direção cultural do processo, sendo
pólos de referências. Assim, entre os grandes desafios que o Estado brasilei-
ro tem em relação ao ensino superior, pode-se salientar ainda:
redefinir o seu papel no ensino superior;
definir metas claras para o ensino superior;
assumir o ensino superior como bem público;
realizar uma avaliação criteriosa das IES públicas e privadas;
repensar a organização estrutural (departamentos, conselhos, centros,
etc.);
qualificar a totalidade do ensino superior (público e privado);
avaliar a qualidade dos egressos;
verificar a oferta de cursos e sua relação com o social;
ofertar mais vagas e estancar o alto índice de evasão;
definir novas formas de financiamento, em especial para as públicas;
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
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estruturar políticas de financiamento e apoio estudantil;
avaliar a produção científica que ocorre no país;
aproximar a graduação da pós-graduação;
avaliar a sua relação com o setor produtivo;
repensar a formação intelectual de seus quadros;
no caso das federais, buscar a autonomia, propor nova carreira, re-
pensar a isonomia e investir na dignidade do seu corpo docente e
técnico-administrativo.
Em vista disso, a rediscussão do ensino superior no Brasil deve ser
encarada como uma questão concreta. É indispensável fazer uma reflexão
política profunda sobre o tema. Não haverá reforma se não houver uma ação
muito bem articulada entre governo, Legislativo e demais atores. Sem essa
negociação, não se consegue concretizar o processo. Nessa discussão, não se
pode imaginar a criação de um sistema perfeitamente homogêneo.
É necessário, além disso, fazer uma reflexão sociológica. A universidade é,
seguramente, uma das instituições que mais resiste às mudanças. É o caso da
questão da autonomia, da avaliação, entre outras.
Por que reformar? A universidade só chegou até aqui pelo fato de sem-
pre ter tido a capacidade de se auto-adaptar no decorrer dos tempos, além de
sempre ter conseguido responder aos desafios cruciais da sua época. Hoje, é
chegado o momento em que ela deve-se transformar. A última reforma acon-
teceu em 1968. Reformar é fácil saber. O difícil é saber como reformar.
Como resultado, é possível extrair algumas questões que se firmaram
como amplamente majoritárias. Entre elas a necessidade de que o ensino
superior se articule como um sistema educacional, com destaque no setor
público, mas reconhecendo a real e importante participação do setor priva-
do. Outro aspecto a ser salientado é o fortalecimento do papel dirigente da
SESu/MEC, como o órgão legitimador para implementar políticas que serão
determinantes no processo, como, por exemplo, a nova proposta de avalia-
ção, além da repercussão do Seminário em vastos segmentos, destacando,
nesse caso, aquela que atinge também o Poder Legislativo.
Brasília, agosto de 2003
21
Jorge Werthein
(*)
A oportunidade deste evento se reveste da mais alta relevância, como
prova de alta maturidade política. Declara a Constituição que os Poderes da
República são independentes e harmônicos. Assim, o Legislativo deve preo-
cupar-se com quem executa a legislação que ele elabora e aprova. Da mesma
forma, o Executivo precisa discutir amplamente as suas propostas com os
representantes do povo e dos estados, para que sejam aperfeiçoadas e legiti-
madas. Nesta ocasião, não se trata ainda de discutir proposições, mas de, em
conjunto, tecer pensamentos e gestar o embrião de projetos futuros.
Este posicionamento abre caminhos promissores para todos os agentes
envolvidos. As reformas verticais, geralmente rápidas de conceber, tendem
a se tornar reformas de papel. A discussão e o entrosamento insuficientes
levam à hierarquia de perdedores e ganhadores, o que entrava grandemente
a sua concretização. Quando se discutem, desde o início, as questões contro-
versas, aumenta-se a probabilidade de as forças em atuação convergirem
para pontos de vista comuns. Superam-se dificuldades, esclarecem-se diver-
gências e temores prévios que se manifestam em todo processo de mudança.
Em outras palavras, ruma-se para um pacto entre os diferentes atores,
em que todos devem ser vencedores e todos devem ceder em alguma coisa em
favor do todo. Desse modo, criam-se as condições de praticar as reformas.
A universidade é semelhante a uma torre de vigia. Trata-se de um lugar
privilegiado de observação da sociedade, localizado no seu topo. Dela se
avistam as tendências e as perspectivas. Dela se pode partir para desenhar os
horizontes do futuro. Futuro marcado não só pelos conhecimentos e compe-
tências, mas também pelos valores de aceitação da diversidade, da paz, da
valorização do desenvolvimento humano, da igualdade e tantos outros.
(*) Representante da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – UNESCO no Brasil.
UNIVERSIDADE: RELEVÂNCIA E REFORMA
22
No entanto, a universidade não pode cumprir plenamente os seus pa-
péis se não está inteiramente sintonizada com o seu tempo e o futuro que
ajuda a construir. Lócus histórico da divergência, tende também a ser con-
servadora, como guardiã de certos valores, idéias e critérios. Por isso, a sua
mudança é processo delicado que não se cumpre por ato de vontade. É pro-
cesso negociado, em face das divergências que enriquecem o debate. Porém,
se a universidade não se reforma, não pode sobreviver. Como elaborar o
futuro da sociedade e do mundo voltada para trás e para dentro e não como
um facho de luz dirigido para frente?
Nessa oportunidade, cabe considerar que a universidade é parte de um
todo. Como a torre de vigia, ela é o ponto alto de uma edificação que não
vive sem ela, porém a torre também não se justifica sem o conjunto da soci-
edade. Instituição cara, é socialmente sustentada e precisa oferecer frutos,
embora sem perder a liberdade e a sua própria dinâmica. Cabe recordar, pela
procedência, a Conferência Mundial sobre o Ensino Superior, realizada pela
UNESCO em Paris no ano de 1998. Entre as ações prioritárias, destacou
que os Estados devem estabelecer o marco legislativo, político e financeiro
da reforma segundo os termos definidos na Declaração Universal dos Direi-
tos Humanos, pela qual a educação superior deve ser acessível a todos com
base no mérito, sem discriminações. Portanto, a igualdade é uma das idéias-
chave, além da vinculação com o todo da sociedade, com a pesquisa, com o
sistema de ensino e com a educação permanente. O comprometimento e a
responsabilidade social da universidade constituem, dessa forma, idéias-chave
para possibilitar respostas adequadas aos desafios de formar jovens capazes
de aprender a aprender e a empreender. A reforma, portanto, cumpre a fun-
ção, ressaltada pela Declaração de Paris, de orientar em longo prazo a educa-
ção superior em geral e a universidade em particular.
Tal orientação se baseia na sua importância em termos de objetivos e
necessidades sociais, o que exige padrões éticos, imparcialidade política,
criatividade crítica e íntima articulação com os problemas da sociedade e do
trabalho.
Neste contexto, é indispensável atentar cuidadosamente para as pala-
vras e idéias do Senhor Ministro de Estado da Educação, personalidade que
traz a dupla experiência de ser acadêmico e gestor. Começamos, assim, enri-
quecidos, esse processo de discussão, que desejamos seja profícuo e decisi-
vo para o engrandecimento da universidade e, por conseqüência, do país e
da comunidade mundial.
23
I. A UNIVERSIDADE GLOBAL
Ao longo de seus quase mil anos de história, a universidade representou:
• um estoque de conhecimentos que o graduado adquiria para durar por
toda a vida. Hoje, esse conhecimento está em fluxo contínuo, e tem
de ser constantemente atualizado pelo ex-aluno;
• o conhecimento como propriedade específica dos alunos em salas de
aula ou bibliotecas, transmitido por professores ou por livros. Hoje,
o conhecimento é algo que está no ar, alcançando pessoas de todos
os tipos, por toda parte, pelos canais os mais diversos. A universida-
de é apenas um desses canais, lado a lado com a internet, a televisão
educativa, revistas especializadas, empresas, laboratórios e institui-
ções privadas;
• o conhecimento como um passaporte seguro para o sucesso do aluno
já formado. Hoje, isso já não basta, em razão da alta competitividade
do mercado profissional, que exige atualização constante, reciclagem
e reformulação, para que o conhecimento adquirido não se torne
obsoleto; e
• o conhecimento como algo que servia a todos, porque, ao aumentar o
número de profissionais, o produto da universidade se difundia. No
mundo de hoje, o conhecimento de um profissional recém-formado
serve, basicamente, aos desejos e interesses daqueles que podem
pagar por seus serviços, fazendo uso de equipamentos caros, que
não permitem a distribuição do conhecimento.
Não ocorreram grandes mudanças estruturais na universidade, nos últi-
mos mil anos. O papel da universidade pouco mudou. No entanto, a realidade
(*) Ministro da Educação do Brasil. Trabalho apresentado na Conferência Mundial de Educação Supe-
rior + 5, UNESCO, Paris, 23-25 de junho de 2003.
A UNIVERSIDADE NUMA ENCRUZILHADA
Cristovam Buarque
(*)
24
da situação social do mundo, bem como os avanços dinâmicos em termos de
informação, conhecimento e novas técnicas de comunicação e educação evi-
denciam a necessidade de uma revolução no conceito de universidade.
1. A ESPERANÇA NA UNIVERSIDADE
O mundo, em inícios do século XXI, passou por uma imensa desarticu-
lação ideológica, que incluiu uma enorme dissociação política e uma desi-
gualdade social maciça. Frente a essas transformações radicais, a universi-
dade ainda representa patrimônio intelectual, independência política e críti-
ca social. Graças a essas características, a universidade é a instituição mais
bem preparada para reorientar o futuro da humanidade.
As últimas décadas do século XX causaram grande desorientação:
• a economia, que foi o orgulho do século XX, entrou em desaceleração;
• essa economia, que, a princípio, aumentou o número dos que se bene-
ficiavam do progresso, passou a ser instrumento da mais brutal desi-
gualdade entre os seres humanos já vista na história;
• os partidos políticos, quer de direita quer de esquerda, deixaram de
gerar esperança;
• a democracia, que havia sido criada para os estados-cidade, tendo
resistido por mil anos, passou a se mostrar saturada e incompetente.
Isso se deu num tempo em que um presidente eleito em um país,
pequeno ou grande, tem poder sobre todo o planeta e sobre os sécu-
los futuros, em termos das decisões tomadas por ele;
• as religiões, que sempre foram guardiãs da cultura, sentem-se agora
incapazes de frear o avanço brutal do individualismo;
as empresas, que antes criavam empregos, passaram a destruir empregos;
• a ciência e a tecnologia, que foram o orgulho da humanidade durante
trezentos anos, chegaram ao século XXI tendo a imoralidade como
uma de suas opções, uma vez que elas agora são capazes de manipular
a vida e de destruir o planeta. Isso se aplica, sobretudo, ao fato de a
ciência e a tecnologia serem usadas em benefício de uma minoria e, se
continuarmos nesse rumo, não tardará para que a maioria, que deixará
de ser vista como parte da humanidade, seja de todo excluída; e
• as ideologias se enfraqueceram. É agora evidente que o socialismo foi
incapaz de construir utopias, de assegurar a liberdade e de proteger o
planeta. O capitalismo exibe a desumanidade que lhe é inerente diante
das exigências de equilíbrio ecológico e de respeito pelo bem comum
de todos os seres humanos. Resta pouca esperança de que um novo
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
25
sistema global de idéias venha a ser criado para renovar a crença na
utopia de um mundo em que o sonho humano de progresso tecnoló-
gico se alie à liberdade e à igualdade. Essa crença implicava confian-
ça nos políticos, nos líderes religiosos e nos juízes, de quem se espe-
rava a invenção de meios para a criação de coalizões entre os seres
humanos. No entanto, se examinarmos as instituições que sobrevi-
veram ao longo desses últimos mil anos, podemos ainda nos permitir
ter esperanças, se voltarmos nosso olhar para a universidade.
Para que a universidade seja um instrumento de esperança, entretanto, é
necessário que ela recupere esperança nela própria. Isso significa compreender
as dificuldades e as limitações da universidade, bem como formular uma nova
proposta, novas estruturas e novos métodos de trabalho. Lutar pela defesa da
universidade significa lutar pela transformação da universidade.
2. A HORA CERTA É AGORA
De todas as realizações brasileiras da última metade do século XX,
talvez a maior seja a fundação de sua universidade, em especial da universi-
dade pública federal. Essa inovação foi, no mínimo, tão importante quanto a
industrialização, o sistema de telecomunicações, a rede de transportes e a
infra-estrutura energética. A universidade é um símbolo da nação brasileira
e da força do povo brasileiro.
De início, nas primeiras décadas de seu desenvolvimento, a universida-
de foi produto do apoio estatal. Ao longo das últimas décadas, contudo, sua
sobrevivência e seu crescimento foram o resultado da resistência da comuni-
dade universitária, no contexto de um país que enfrentava enormes dificul-
dades. Com o fim do protecionismo estatal, as estradas se esburacaram, a
energia foi racionada e o crescimento industrial estancou, causando a falên-
cia de empresas. No entanto, os professores, alunos e funcionários das uni-
versidades continuaram a crescer, abrindo cursos, ampliando vagas,
pesquisando, formando, publicando e inventando.
O universitário brasileiro de fins do século XX foi, simultaneamente, um
intelectual criador e um militante da sobrevivência em meio ao desânimo. Por
essa razão, é possível ser otimista diante do futuro. O século XXI chegou, e já
existe uma massa crítica consolidada, pronta a seguir adiante, embora depre-
dada e desanimada; disposta a lutar, apesar da baixa auto-estima; pronta a
enfrentar situações de emergência, mesmo sabendo que a crise é mais profun-
da, atingindo o propósito, a estrutura, os métodos operacionais e o financia-
26
mento da atividade universitária. E o que é mais importante, chegamos ao
início do século XXI com um governo comprometido com a educação, ainda
que sem recursos suficientes para atender a toda a demanda. Sobretudo, esta-
mos vivendo um momento único na história, quando a sociedade brasileira
parece ter despertado para a importância da educação, mesmo que não confi-
ando no papel da universidade, que o povo vê como uma entidade de acadê-
micos aristocráticos em meio ao mar do baixo nível educacional da população.
Tudo indica que, apesar de todas as dificuldades, ou graças a elas, a
hora certa é agora.
3. A ENCRUZILHADA DA UNIVERSIDADE
A crise da universidade brasileira coincide com a crise global da insti-
tuição universitária. A humanidade encontra-se numa encruzilhada, prepa-
rando-se para escolher entre:
• a continuação de sua modernidade técnica, desenvolvida ao longo
de duzentos anos, que culminou com a brutal divisão da humani-
dade em dois grupos dessemelhantes em termos do acesso à ciên-
cia e à tecnologia. Essa divisão diferencia os seres humanos não
apenas em termos desse acesso, mas até mesmo de suas caracterís-
ticas biológicas; ou
• a construção de uma modernidade ética alternativa, capaz de manter
as similaridades da raça humana e de assegurar a todos o essencial
do progresso científico e tecnológico.
Essa escolha terá de ser feita também pela universidade. Diante da en-
cruzilhada de um mundo em mutação, a universidade terá de esco-
lher entre:
• o conhecimento, que antes representava capital acumulado, passa a
ser algo que flutua e que é permanentemente renovado ou ultrapas-
sado por obsolescência;
• o ensino, que antes se dava por meio de canais bilaterais diretos, entre
aluno e professor, e em locais definidos, como a universidade, agora
acontece por outros métodos reconhecidos, como um espraiamento
em todas as direções, em meio ao oceano das comunicações;
• a formação profissional, que antes representava uma base firme na
luta pelo sucesso, é agora, na melhor das hipóteses, um colete salva-
vidas a ser usado no conturbado mar em que se chocam as ondas do
neoliberalismo, da revolução científico-tecnológica e da globalização.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
27
Neste momento de encruzilhada, a esperança está na universidade. É
necessário que ela se transforme e reinvente a si própria, para servir a um
projeto alternativo de civilização. Quase oito séculos e meio se passaram
desde a criação da universidade e, hoje, ela se encontra bem no meio da
encruzilhada civilizatória que irá definir os rumos do futuro. A escolha será
entre uma modernidade técnica, cuja eficiência independe da ética, ou uma
modernidade ética, na qual o conhecimento técnico estará subordinado aos
valores éticos, dos quais um dos principais é a manutenção da semelhança
entre os seres humanos.
A universidade tem de entrar em sintonia com esse novo rumo, corri-
gindo o descompasso gerado por essa turbulenta virada de século.
4. A CRISE DE RECURSOS E OS RECURSOS DA CRISE
Não há dúvida de que a universidade foi duramente maltratada pelo
neoliberalismo das últimas décadas. O Brasil é um exemplo trágico dessa
realidade. Durante esse período, as universidades públicas brasileiras perde-
ram poder, recursos financeiros e professores, não tendo crescido o suficien-
te para atender à demanda por vagas. Em 1980, havia 305.099 alunos matri-
culados e, em 2001, 502.960. O crescimento das universidades particulares,
por outro lado, foi espantoso: em 1981, o número de alunos matriculados era
de 850.982, número esse que passou a ser de 2.091.529, em 2001, represen-
tando um aumento de mais de 56%.
Em 1980, havia, nas instituições públicas, 49.451 professores e, em
2001, esse número foi de 51.765. Nas universidades particulares, entretan-
to, o número de professores, nesse mesmo período, aumentou de 49.541
para 128.997. Se compararmos o crescimento desses dois sistemas, veremos
que enquanto o sistema privado cresceu 62%, o público teve um aumento
de apenas 19%.
A falta de recursos é um indicador de crise nas universidades, e o Brasil
não é um caso isolado. Muitas regiões do mundo assistiram a uma mudança
no tratamento dado às universidades. A universidade pública passou de pro-
tegida a abandonada.
Verificou-se uma tremenda expansão das universidades particulares,
financiada por recursos privados e por recursos públicos indiretos. É fre-
qüente que esses financiamentos estejam claramente vinculados a interesses
econômicos, e não à liberdade de espírito que cabe à universidade promover.
28
No entanto, em vez de perceber a crise em toda a sua profundidade, as
universidades, em sua maioria, vêm-se convertendo em prisioneiras de suas
necessidades imediatas. Elas tratam da crise como se conserta goteiras no
telhado, sem perceber que o céu está desabando. A universidade tem de
transformar sua crise de recursos num recurso para entender a crise maior do
conhecimento humano e de sua relação com o destino da humanidade.
As dimensões da crise têm de ser entendidas a partir da realidade histó-
rica de como a universidade nasceu, enfrentou crises anteriores e, mais uma
vez, será capaz de se transformar.
5. A PERDA DE SINTONIA
Esta não é a primeira vez que a universidade se vê confrontada com a
necessidade de mudar, mas nunca ela precisou mudar tanto quanto agora.
Tampouco é a primeira vez que a universidade parece não se dar conta de
sua própria crise, mas também não será a primeira vez ela que irá superar
suas dificuldades e se reorganizar para servir à humanidade.
A universidade brasileira é um local privilegiado para a compreensão
da crise universitária do mundo de hoje. O Brasil é diferente dos países ri-
cos, que não sofrem as mesmas dificuldades financeiras, nem estão rodeados
tão proximamente pela exclusão social. O Brasil difere também dos países
pobres, onde o importante são as condições de sobrevivência, e a universi-
dade também é parte da pobreza.
O Brasil é um país intermediário, em que uma riqueza semelhante à das
melhores universidades do mundo convive com uma pobreza próxima à dos
mais pobres. O Brasil não é nem a Europa nem a África, é um pouco de cada
um desses dois continentes. O Brasil é um retrato do planeta e da civilização
contemporânea, e o melhor indicador do rumo tomado pelo mundo e tam-
bém do rumo que o mundo pode vir a tomar. No Brasil, temos a sorte de ter
todas as crises, mas também de contar com a força que vem da adversidade.
Temos todos os tipos de tragédias, mas também todos os recursos para superá-
las. Acima de tudo, temos a urgência que vem de saber que ou encontramos
saídas ou iremos naufragar. É por essa razão que a universidade brasileira,
juntamente com todas as outras universidades do mundo, tem de despertar
para uma crise que vai além da crise financeira, consistindo numa crise de
propósitos muito mais ampla, num mundo em rápida transformação.
A universidade, neste início do século XXI, deixou de ser a vanguarda
do conhecimento, tendo perdido também a capacidade de assegurar um fu-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
29
turo exitoso a seus alunos. Ela deixou de ser um centro de disseminação do
conhecimento, e não é mais usada como instrumento na construção de uma
humanidade coesa. A universidade flutua em meio às correntes da
globalização, e corre o risco de um naufrágio ético, caso aceite a imoralidade
de uma sociedade cindida.
Quase oitocentos anos depois de sua criação, as universidades preci-
sam entender que mudanças têm de acontecer em cinco grandes eixos:
a) voltar a ser a vanguarda crítica da produção do conhecimento;
b) firmar-se, novamente, como capazes de assegurar o futuro de seus
alunos;
c) recuperar o papel de principal centro de distribuição do conhecimento;
d) assumir compromisso e responsabilidade ética para com o futuro de
uma humanidade sem exclusão; e
e) reconhecer que a universidade não é uma instituição isolada, mas
que ela faz parte de uma rede mundial.
O conhecimento murado: mosteiros e universidades
A universidade nasceu, há oito séculos e meio, porque os mosteiros
medievais perderam a sintonia com o ritmo e o tipo de conhecimento que
vinha surgindo no mundo ao seu redor. Por serem murados, esses mosteiros
não foram capazes de atrair esse mundo externo para dentro de suas preocu-
pações e de seus métodos de trabalho. Prisioneiros de dogmas, defensores da
fé, intérpretes de textos, os mosteiros foram insensíveis à necessidade de
incorporar os saltos do pensamento da época. Muitas vezes, eles preferiram
retornar ao pensamento clássico grego, que havia sido interrompido alguns
séculos antes.
As universidades surgiram como um espaço para o novo pensamento
livre e vanguardeiro de seu tempo, capaz de atrair e promover jovens que
desejavam se dedicar às atividades do espírito num padrão diferente da
espiritualidade religiosa.
Ao longo dos séculos seguintes, a universidade floresceu como um ver-
dadeiro centro de geração de alto conhecimento, nas sociedades. Mas, para
tal, ela teve de se reciclar, mudar e se adaptar, em diversos momentos, à
realidade a seu redor.
Em fins do século XIX, os centros de pesquisa para inventores funcio-
navam independentemente das universidades, sendo inclusive menospreza-
dos por professores e estudantes universitários. Ford, Bell e Edison não fo-
ram universitários.
30
Além disso, as universidades não reconheciam o trabalho dessas pesso-
as como possuindo nobreza intelectual. As universidades perderam ritmo e
se atrasaram, enquanto o conhecimento técnico avançava indiferente a elas.
Em inícios do século XX, contudo, as universidades tiveram a sabedo-
ria de perceber que estavam se transformando em mosteiros modernos. Em
vez de monges, havia estudantes universitários. No lugar dos dogmas, o de-
bate restrito às disciplinas clássicas tradicionais. No lugar da participação no
mundo do consumo de massa, o esnobismo aristocrático do saber
bacharelesco. Não tardou para que as universidades se reciclassem, trazendo
para dentro de si áreas do conhecimento técnico, como a engenharia e as
ciências aplicadas. Já em meados do século, a universidade estava tão trans-
formada que os campos tecnológicos eram agora dominantes em relação aos
campos tradicionais da filosofia, das artes e da literatura. Os estudos clássi-
cos, que por tantos séculos foram o cerne do saber universitário, viram-se
relegados a departamentos muitas vezes menosprezados e tratados como
reservas biológicas de conceitos e interesses pré-históricos. Os estudos clás-
sicos tornaram-se coisa do passado.
O começo do século XXI mostra que essa primazia do conhecimento
tecnológico, mais uma vez, volta a cercear o conhecimento de nível superi-
or, impedindo os livres saltos do espírito humano em direção a um futuro
libertário, rico em termos estéticos e éticos, eficiente em termos
epistemológicos, abrangente em termos de comunicação de massa, social-
mente legítimo e universal em seu alcance.
O conhecimento universitário, mais uma vez, se vê murado e defasado,
perdendo sintonia com o conhecimento e as demandas da realidade social
externa a esses muros. A universidade sofre hoje do mesmo problema que
afligiu os mosteiros há mil anos, e ela própria, há um século.
As perdas de sintonia
a) Com o avanço do conhecimento – perda de eficiência epistemológica.
A primeira perda de sintonia, na universidade ocorre na velocidade com
que o conhecimento avança no mundo atual. Até tempos recentes, o conhe-
cimento universitário atravessava gerações sem grandes modificações. O
conhecimento médico e as teorias científicas progrediam tão lentamente,
que um aluno formado numa universidade poderia carregar pelo resto da
vida, sem qualquer perda de eficiência, os instrumentos de saber lá adquiri-
dos. Um diploma tinha a validade de pelo menos o tempo de uma vida
profissional e, muitas vezes, uma validade ainda mais longa.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
31
Essa situação mudou radicalmente. A velocidade atual do avanço do
conhecimento não permite que um ex-aluno permaneça preparado, a não ser
que ele se atualize constantemente. Nenhum profissional continua fazendo
pleno jus a seu diploma, depois de cinco anos de formado. Em alguns casos,
essa desatualização ocorre até mesmo ao longo do curso, quando muito do
que foi aprendido rapidamente se torna obsoleto, sendo substituído por no-
vas teorias, novas informações, novos conhecimentos.
O saber avança rapidamente não apenas dentro dos campos específi-
cos, e novos campos surgem a cada dia. A universidade vem-se esforçando
por incorporar essas transformações, mas sem sucesso. A estrutura dos cur-
sos, a duração dos doutorados e as limitações dos departamentos vêm impe-
dindo que o conhecimento, dentro da universidade, avance tão rapidamente
quanto fora dela.
Isso faz com que muitos procurem produzir conhecimento fora dela,
para surpresa de todos os que se lembram da força que a universidade tinha,
até pouco tempo atrás. No passado, poucos eram os professores ou pesqui-
sadores que trabalhavam fora dos muros da universidade. Era impossível
para um jovem criar saber de ponta sem a orientação de um professor uni-
versitário. Isso mudou, em décadas recentes. Diversos campos do conheci-
mento se desenvolveram fora das universidades: em centros de pesquisa
públicos que se distanciam e até evitam contato com a universidade, dentro
de empresas que mantêm seus próprios centros de pesquisa e em instituições
de ensino superior que se autodenominam “universidades corporativas”, como
forma de indicar que elas oferecem ensino superior sem ensinar o mesmo
que as universidades tradicionais.
Essas parauniversidades existem porque as universidades tradicionais
fracassaram no cumprimento de seu papel, atrasando-se em termos da gera-
ção de conhecimento e perdendo a sintonia com os tipos e a qualidade dos
temas desenvolvidos ou ensinados. Se as universidades não reconhecerem
essa situação e alterarem seu rumo, elas deixarão de ter utilidade. Foi o que
aconteceu com os mosteiros, há um milênio.
A crise de recursos deve-se, em parte, à indiferença dos governos, e
tem muito a ver com a perda de sintonia da universidade. O inverso tam-
bém é verdadeiro, entretanto. Se as universidades continuassem, de forma
clara, a cumprir seu papel de vanguarda de todas as formas de conheci-
mento, essas parauniversidades não estariam surgindo e proliferando tão
rapidamente quanto hoje acontece, e o Estado não teria retirado apoio às
universidades públicas.
32
b) Com a disseminação do conhecimento – perda de abrangência na comunicação de
massas.
Quando a América foi descoberta, as universidades tiveram décadas
para desenvolver e ensinar os novos mapas do mundo. Hoje, quando qual-
quer fenômeno novo é criado ou descoberto, todos tomam conhecimento
dele quase que simultaneamente. No mundo atual, os mapas são criados no
minuto em que a geografia se altera. Isso faz com que a universidade se
defase em termos da disseminação do conhecimento.
O jovem atento que navega na internet, assiste a programas especiais
na televisão e freqüenta grupos de chat especializados pode tomar conheci-
mento de certo tipo de informações antes mesmo que seus professores. O
conhecimento tornou-se urgente e simultâneo: urgente devido à velocidade
de sua criação e simultâneo devido à rapidez de sua divulgação. O mundo
inteiro se converteu em uma grande escola para aqueles que estão atentos e
que se comportam como eternos alunos.
Na universidade pré-socrática, o professor era o tutor praticamente in-
dividual de um pequeno grupo de alunos. Mesmo quando gregos, romanos e
bizantinos se reuniam numa sala de debates, o número de alunos era reduzi-
do, restrito ao alcance da voz alta do professor, sem qualquer outro suporte.
Séculos mais tarde, o uso do quadro-negro provocou uma revolução, permi-
tindo, pela primeira vez, o uso de recursos visuais e ampliando o número de
alunos. Mesmo com essa inovação, o aluno, para aprender, tinha de compa-
recer às aulas, estar presente, olhar nos olhos do mestre e ver os desenhos e
palavras usados por ele. O uso do microfone ampliou ligeiramente o número
de alunos, mas o ensino continuou a se dar em sala de aula, em prédios
destinados especificamente às universidades.
Em tempos bem mais recentes, surgiram os recursos modernos da mídia
eletrônica, permitindo o ensino a distância. Quase todas as formas de co-
nhecimento, principalmente para adultos universitários, podem hoje ser en-
sinadas sem a presença física de um professor. A sala de aula deixou de ser
um espaço quadrado, cercado de paredes. Ela é aberta e tem uma dimensão
einsteiniana: seu tempo e seu espaço se misturam, o aluno podendo estar em
qualquer lugar e o professor, em qualquer outro, sintonizados simultanea-
mente ou em tempos diferentes.
Algumas universidades vêm-se esforçando para incorporar essa nova
realidade, embora ainda não tenham conseguido entender ou aceitar a reali-
dade de que os muros de cada campus cercam o mundo inteiro. As universi-
dades ainda não deram um salto compatível com a realidade técnica de hoje,
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
33
capaz de demolir os muros da universidade e conectá-la on-line para, em
tempo real, distribuir os conhecimentos para o mundo inteiro.
c) Com a eficiência do diploma – a perda de promoção social.
Não faz muito tempo, as universidades tinham o papel de funcionar
como promotoras de seus alunos. O diploma era um passaporte seguro para
o futuro de qualquer jovem. A situação mudou.
Nas duas últimas décadas, o diploma universitário, apesar de conti-
nuar sendo útil, deixou de ser um passaporte seguro para o sucesso. Mi-
lhões de jovens graduados, em todo o mundo, não encontram emprego, ou
porque há um excesso de profissionais ou devido à rápida obsolescência
do que eles aprenderam.
A universidade, contudo, não assumiu de forma plena essa realidade:
ela critica o mercado, em vez de entender que ele é decorrência da realidade
e exige novos campos de conhecimento e novos conhecimentos dentro dos
campos antigos e, sobretudo, exige rapidez na formação e na reciclagem dos
alunos. A universidade de hoje vive a mesma crise do início do século XX,
quando ela se recusava a entender que a realidade exigia profissionais gradu-
ados nas áreas tecnológicas, mais que nas áreas bacharelescas.
d) Com os excluídos – perda do papel de construtora de utopia.
No decorrer do século XIX, os centros brasileiros de ensino superior
coexistiram com o regime escravocrata, e eram poucas as demonstrações de
insatisfação ou de protesto, e mais rara ainda a luta pela abolição. Grande
parte da comunidade universitária assistiu com naturalidade ao absurdo da
escravidão, usando seus conhecimentos de direito, economia e engenharia
para manter o sistema funcionando de forma eficiente.
No século XX, a universidade brasileira permanece impassível e cola-
bora para tornar o Brasil um país dividido entre os que se beneficiam dos
produtos da modernidade e os que são excluídos desses benefícios. Hoje, a
universidade se comporta diante da pobreza de forma tão alienada quanto o
fez, no século XIX, com relação à escravatura.
A universidade brasileira é um retrato da universidade mundial. Da
mesma forma que a universidade brasileira se aliena frente à pobreza que a
cerca, a universidade européia se aliena diante da tragédia global.
No século XXI, o século da globalização, a universidade convive com a
tragédia de uma humanidade cindida em duas. De um lado, estão os incluí-
dos nos benefícios técnicos do mundo moderno e, de outro, os excluídos. A
cortina de ferro foi derrubada e o mundo passou a ser dividido por uma
34
cortina de ouro, erigida, em parte, graças ao saber universitário que beneficia
apenas um dos lados.
O ritmo atual da evolução do projeto civilizatório deixará a humanida-
de cindida em duas partes, e não tardará muito, apenas algumas décadas,
para que essas partes se diferenciem tanto, a ponto de não mais se sentirem
relacionadas, e isso graças ao trabalho daqueles que passaram por nossas
universidades. O direito defende uma parte, a economia beneficia uma outra
parte e a biologia pode ser usada para criar os instrumentos que poderão
provocar mutações induzidas nos seres humanos, beneficiando apenas uma
parte da raça humana e destruindo as características comuns ainda existen-
tes. A universidade ocupa-se agora do conhecimento técnico, tendo deixado
para trás a ética, e pode ser usada como um dos instrumentos para a constru-
ção de uma divisão global.
Até tempos recentes, as universidades formavam profissionais que, di-
reta ou indiretamente, promoviam o crescimento econômico e o aumento do
bem-estar social, além de serem instrumentos de distribuição da renda e dos
benefícios sociais.
A partir da década de 90, o modelo civilizatório excludente fez com
que os profissionais formados pelas universidades passassem a servir quase
que exclusivamente a um dos lados da sociedade: o lado dos incluídos nos
benefícios sociais. A sociedade passou a se dividir internacionalmente, e dois
setores passaram a se distinguir claramente em todos os países do mundo.
Um dos setores é formado pelos incluídos nos bens e serviços oferecidos
pelos avanços tecnológicos modernos e o outro, pelos excluídos.
O produto dos avanços científicos e tecnológicos das universidades foi
posto a serviço das minorias privilegiadas também em outras áreas. O uso e
o consumo desses conhecimentos também ficou restrito às elites minoritárias.
As universidades passaram a servir a uma parte específica da sociedade,
ignorando a outra.
Os cursos oferecidos nas universidades pouco têm a ver com os inte-
resses das grandes massas. Os cursos de Economia buscam maneiras de
aumentar a riqueza e, em raros casos, estudam a superação da pobreza. Os
cursos de Medicina estão mais interessados em não deixar que os ricos
morram ou envelheçam do que em evitar a mortalidade infantil. Os arqui-
tetos se preocupam em construir mansões e edifícios para os ricos, e quase
nunca pensam em soluções para os problemas habitacionais dos pobres.
Os cursos de Nutrição dão mais ênfase a emagrecer os ricos do que a en-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
35
gordar os pobres. Todos os campos da educação superior ignoram a grande
massa da população, tanto por omissão quanto pela ação. A sociedade op-
tou pela exclusão.
Essa situação não diz respeito apenas ao produto do conhecimento,
podendo ser vista também nas lutas em que a universidade se empenha. Na
década de 60, a universidade era uma instituição revolucionária, que busca-
va mudar a sociedade e construir justiça. Hoje, os universitários lutam basi-
camente por seus próprios interesses: mais verbas para as universidades pú-
blicas, mensalidades menores para as universidades particulares e isenção de
impostos para os ex-alunos.
Esta não é a primeira vez, na história brasileira, que os cursos universi-
tários demonstram estar alienados em relação aos pobres. É triste reconhe-
cer que foi mínima ou nenhuma a contribuição das universidades do século
XIX para a abolição da escravatura. No Brasil, a abolição foi resultado dos
esforços de políticos, poetas, jornalistas e até mesmo da nobreza, mas foram
raros os movimentos abolicionistas nas escolas de Direito, Medicina ou En-
genharia da época.
Isso mudou no século XX, com a promessa social de que a riqueza
poderia beneficiar a todos, e que o crescimento de seu produto se distribui-
ria, aumentando o número dos empregos. A luta utópica por uma sociedade
rica ingressou na agenda das universidades, que então lutavam pela riqueza
de todos. A universidade tornou-se revolucionária.
A realidade do final do século XX e do início do século XXI resultou
bem diferente. Os limites ecológicos ao crescimento, as características
desempregadoras da tecnologia e a tipologia dos produtos valorizados pela
sociedade moderna mostraram que apenas uma pequena parcela da popula-
ção será beneficiada pelo crescimento econômico, e a universidade retornou
à alienação do século XIX, tratando os pobres de hoje como tratava os es-
cravos de antes.
Mesmo quando afirma assumir os problema dos excluídos, a universi-
dade, muitas vezes, apenas finge. Os exames vestibulares favorecem os
incluídos, os ricos e a classe média, mesmo os que não têm condições
acadêmicas suficientes, cujo acesso é facilitado por meio do aumento de
vagas e de cotas para “minorias”. Os excluídos não têm acesso aos cursos
preparatórios e não passam nos exames de seleção. A universidade não
pensa em reformar a estrutura e o conteúdo de seus cursos, de forma a
beneficiar os excluídos, que nela não ingressarão por falta de condições
36
econômicas, defendendo apenas as reformas que beneficiam os que con-
cluíram o ensino médio, mas que não conseguem ser aprovados nos exa-
mes vestibulares, em lugar de comprometer a universidade com a melhoria
do ensino na escola fundamental.
É como se a universidade tivesse tomado o claro partido de um dos
lados da sociedade, pensando apenas nos excluídos que estão conveniente-
mente próximos a ela, que nunca são os verdadeiros excluídos. É como se
beneficiar, a título simbólico, uns poucos representantes dos excluídos, in-
cluindo-os no mundo universitário, bastasse para desonerar a universidade
do compromisso de lutar pela verdadeira abolição da exclusão.
Essa realidade sufoca a universidade. Os universitários a negam, por
vergonha, ou demonstram desconforto sem nada fazer para mudar a situa-
ção. É por essa razão que a universidade tem de recuperar a sintonia ética
com os verdadeiros interesses da população.
e) Com o mundo – não-incorporação na globalização.
Na Europa, a universidade foi uma das primeiras instituições globais.
Seus profissionais viajavam e trocavam informações. Desde seus primórdios
até o presente, as universidades européias constituíram uma das mais formi-
dáveis redes de conexões internacionais, embora, atualmente, elas não este-
jam conseguindo atuar da mesma forma diante da realidade do mundo
globalizado. Os diplomas universitários são protegidos nacionalmente, os
professores pertencem a universidades específicas e suas bibliotecas são mais
integradas que os conhecimentos por elas divulgados, uma vez que são auto-
maticamente interconectadas pela tecnologia que empregam, que, muitas
vezes, passa por cima dos processos decisórios e, em alguns casos, da pró-
pria vontade de seus dirigentes. É comum que os professores confundam
viagens com integração, quando, na realidade, a universidade do século XXI
terá de ser totalmente integrada em bases universais.
A universidade do século XXI não conseguiu entender como ser global
sem perder a própria nacionalidade. Elas sentem-se divididas entre se abrir
por completo, negando sua singularidade nacional, e se defender das interfe-
rências externas a ponto de negar a realidade atual do saber global.
6. A REFUNDAÇÃO DA UNIVERSIDADE
Mais de oito séculos após sua fundação, a universidade se encontra
em meio a uma revolução tecnológica, num mundo dividido, precisando
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
37
agora fazer sua própria revolução. Pelo menos sete vetores deverão nortear
essa revolução:
a) Universidade Dinâmica
A universidade não pode mais encarar o conhecimento de forma estáti-
ca, como se o saber tivesse longa duração, compatível com o horizonte de
vida de seus professores. Hoje, o conhecimento começa a mudar no instante
em que é criado, e a universidade tem de incorporar essa dimensão no papel
desempenhado por ela. Para tal:
o diploma deve ter prazo de validade
A universidade do século XXI não pode se responsabilizar pelos co-
nhecimentos de um ex-aluno formado há alguns anos. É por essa razão que
um diploma universitário deve implicar a exigência de reciclagem do conhe-
cimento ao longo de toda a vida profissional;
a universidade deve ser permanente
Na verdade, a universidade deve extinguir o conceito de ex-aluno. O
estudante já formado deve manter um vínculo permanente com sua univer-
sidade, conectando-se com ela on-line e recebendo conhecimentos ao longo
de toda a sua vida profissional, de forma a evitar a obsolescência;
os doutorados devem ser atualizados
Todos os diplomas devem ser atualizados, e não apenas os de gradua-
ção. O que acontece hoje é que os alunos de doutoramento concluem suas
teses e carregam pelo resto da vida um título que demonstra apenas que um
trabalho de mérito foi realizado no passado. Possuir um doutorado é como
ostentar uma medalha por feitos heróicos numa guerra, pouco servindo como
prova de conhecimento em áreas que mudam a cada instante;
os professores devem ser submetidos a concursos periódicos
Se os diplomas de graduação e de pós-graduação necessitam de
revalidação, os professores não podem manter seus cargos com base em
concursos antigos. A coerência exige que os professores universitários pres-
tem novos concursos, em prazos que permitam demonstrar a atualidade de
seu conhecimento;
flexibilidade no tempo de duração dos cursos
Se, por um lado, um aluno não deve jamais chegar ao término definiti-
vo de seu curso, por outro, é impossível definir, em termos de um período
fixo, o tempo necessário para a obtenção dos conhecimentos básicos para a
prática de uma profissão. As universidades do século XXI não podem mais
fixar a duração dos cursos. Os alunos poderão se submeter a concursos que
38
determinem sua habilitação para a prática da profissão, de acordo com sua
própria capacidade e com o tempo que lhes seja necessário. Com o uso dos
novos métodos de ensino e de pesquisa, o tempo exigido para a formação
pode variar muito, de acordo com a capacidade de cada aluno. Graças aos
novos métodos pedagógicos e aos equipamentos de comunicação e informá-
tica, a formação de um profissional tem de levar menos tempo do que levava
há algumas décadas.
Alguns alunos vão mais rápido, outros, mais devagar, mas nenhum de-
les precisará de todo o tempo que seus pais precisaram. Isso vale ainda mais
para os cursos de pós-graduação. Simplesmente não é possível manter-se
sintonizado com a velocidade do avanço do conhecimento e, ao mesmo tem-
po, levar anos para concluir um doutorado. Hoje em dia, muitas teses de
doutorado já estão superadas no dia em que são defendidas. São tantas as
fontes computadorizadas de informação acessíveis às pesquisas, que não há
razão para os cursos de doutorado terem a mesma duração de antes.
A dinâmica atual do avanço do conhecimento significa também que
um doutorado excessivamente longo pode significar um doutorado torna-
do obsoleto pelo trabalho de outros alunos, em outras partes do mundo, ou
então, um doutorado sempre inacabado, face à impossível tarefa de man-
ter-se constantemente em sintonia com o que há de mais novo naquela
área de conhecimento.
Os estudos de pós-graduação não exigem o mesmo tempo que antes, e
tampouco seu produto ganha em qualidade em decorrência direta do tempo
dedicado a ele;
as referências bibliográficas devem ser indicadas on-line, com a própria elabora-
ção do livro pelos autores
Hoje em dia, a elaboração de muitos livros demora mais que o desen-
volvimento das teorias neles contidas. Uma universidade que se baseie em
livros impressos é uma universidade que se atrasa em termos do conheci-
mento de ponta.
Embora a leitura e o estudo dos textos clássicos de cada área devam ser
incentivados, o estudo dos textos ainda em desenvolvimento deve aconte-
cer por meio do diálogo permanente entre alunos e autores.
b) Universidade Unificada
A globalização irá eliminar as fronteiras entre as universidades. As uni-
versidades não apenas trocarão professores e alunos, como também terão
acesso a todos os professores e a todos os alunos. Segundo o Relatório Anual
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
39
da UNESCO de 1997, a universidade global possui 88,2 milhões de alunos e
7 milhões de professores.
Hoje, há milhares de universidades mas, em breve, haverá apenas uma
única, integrada por todos os meios disponíveis à comunicação moderna.
Não haverá mais barreiras lingüísticas, graças aos mecanismos de tradução
automática já existentes na internet.
Com essa rede mundial, a idéia de limitar um aluno a um curso especí-
fico na sua universidade de origem tornou-se antiquada e ineficiente. Cada
aluno pode formular seu próprio programa de curso, escolhendo professores
e disciplinas em escala global, numa rede que abrange o mundo inteiro. A
universidade tornou-se uma entidade única.
c) Universidade para Todos
A universidade tornou-se uma entidade única, devendo estar aberta a
todos. Deixou de haver razão para exigir exames de ingresso, e até mesmo os
diplomas de segundo grau não são mais necessários. Se, para os alunos que
estão fisicamente presentes no campus, o exame vestibular é uma necessida-
de imposta pela limitação do espaço físico e pelos custos elevados, os novos
métodos de ensino a distância podem alcançar um imenso número de alunos
e acompanhar seu desempenho.
Os alunos serão excluídos em razão de sua incapacidade de acompa-
nhar o curso, não por sua incapacidade de neles ingressar. O sistema de in-
gresso deve mudar também para os alunos que estão fisicamente presentes
às aulas. O que um aluno conseguiu decorar na escola secundária não é bas-
tante para garantir que ele será um bom universitário. Os atuais exames não
medem a capacidade de um aluno de captar conhecimento ou de navegar
pelo conhecimento existente no mundo, transformando as informações re-
cebidas em conhecimento que possa ser usado de novas maneiras e em ou-
tros contextos. Por essa razão, é de importância fundamental acompanhar o
desempenho dos alunos na escola secundária e formular exames de seleção
que sejam capazes de mensurar a capacidade do aluno de buscar e elaborar
conhecimento, mais que sua capacidade de assimilar conhecimentos prontos
e de responder perguntas com respostas decoradas.
d) Universidade Aberta
A universidade do século XXI não terá muros, nem um campus fisica-
mente definido. A universidade do século XXI será aberta a todo o planeta.
As aulas serão transmitidas pela televisão, pelo rádio e na internet, tornando
desnecessário que os alunos estejam presentes no mesmo campus, ou na
40
mesma cidade que o professor. Os professores poderão manter diálogo per-
manente com seus alunos de todo o mundo.
e) Universidade Tridimensional
A organização da universidade por disciplinas baseadas em categorias
de conhecimento é incapaz de responder às exigências das mudanças rápidas
no conhecimento e incapaz também de atender às necessidades sociais. O
conhecimento muda a cada dia, novos campos surgem e outros desapare-
cem, e a realidade social vem construindo um mundo dividido. As universi-
dades têm que inventar maneiras de se reestruturar, que incluam centros de
pesquisa sobre temas atuais, e não apenas os departamentos e os campos de
conhecimento tradicionais. Não há razão para que a universidade não pos-
sua os mecanismos para vincular-se intelectualmente à realidade, mediante
Núcleos Temáticos multidisciplinares para o estudo da fome, da pobreza, da
energia da juventude, do emprego e do meio ambiente.
Esses temas existem na realidade de hoje, mas não encontram lugar nas
categorias definidas do conhecimento. A universidade do século XXI tem,
também, de ser organizada de forma multidisciplinar. A universidade dos
próximos anos tem de trazer seus alunos de todo o mundo para a prática das
atividades estéticas e do debate ético, o que poderia ser feito com a criação
de Núcleos Culturais. Com seus departamentos disciplinares, seus Núcleos
Temáticos e seus Núcleos Culturais, a universidade será tridimensional e
formará profissionais tridimensionais, especializados numa área do conheci-
mento, mas, também, comprometidos com o entendimento de um tema da
realidade e praticantes de uma ou mais atividades ligadas à dimensão
humanista, nas artes ou na reflexão filosófica.
f) Universidade Sistemática
A universidade do futuro vincula-se universalmente a todas as outras
universidades, mas terá de se vincular também com todo o sistema de cria-
ção do saber. A universidade deverá incorporar as instituições de pesquisa
públicas e privadas, bem como todas as organizações não-governamentais
ligadas à produção de pesquisas devem fazer parte do sistema universitário.
A universidade será como uma família para todos aqueles que participam
da tarefa de fazer avançar e disseminar o conhecimento. Quase um milênio
após sua criação, já é tempo de ela dar o salto necessário para o cumprimento
de seu papel dentro da imensa riqueza do mundo do século XXI.
g) Universidade Sustentável
As universidades deverão ser instituições públicas, sejam elas de pro-
priedade pública ou privada. A universidade não pode morrer por falta de
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
41
recursos públicos, nem pode recusar os recursos privados de quem nela quer
investir. As razões para tal são as seguintes:
• a universidade deve ser financiada por recursos públicos a fim de ga-
rantir sua permanente sustentabilidade e sua coerência com os inte-
resses sociais, sobretudo nas áreas do conhecimento que não geram
retornos econômicos, como a formação de professores de ensino
fundamental e o campo das artes e da filosofia;
• a universidade deve ser aberta à possibilidade de receber recursos de
setores privados que desejem investir em instituições, sejam elas pri-
vadas ou estatais; e
• tanto as instituições privadas quanto as públicas devem ser estrutura-
das de modo a servir aos interesses públicos, sem torná-las prisionei-
ras dos interesses corporativos dos alunos, dos professores e dos fun-
cionários. Da mesma maneira, as universidades particulares podem
ser privadas em termos de suas instalações físicas, mas sua organiza-
ção acadêmica tem de ser controlada pela comunidade acadêmica.
Os proprietários dessas universidades podem permanecer como de-
tentores do patrimônio físico, mas seus reitores têm de ser escolhi-
dos com base em seus méritos acadêmicos.
II. O CASO DA UNIVERSIDADE BRASILEIRA
A universidade brasileira foi a última a surgir na América Latina e é irôni-
co que ela tenha sido criada para que fosse concedido o título de Doutor Honoris
Causa ao Rei Leopoldo da Bélgica, em visita ao Brasil, no ano de 1922. Não
fosse por aquela visita e a ingênua vaidade de um monarca ou o capricho de
algum de seus cortesãos, a universidade brasileira talvez tivesse demorado
mais 10 ou 20 anos para ser criada1. Isso serve para demonstrar o obscurantis-
mo e o servilismo da elite brasileira. Cem anos depois da Independência e
trinta e três anos depois da Proclamação da República, o Brasil ainda não
possuía uma universidade. E ela só foi criada para atender às conveniências de
um rei europeu. Esse é um pecado original do qual ainda não nos livramos.
Entre 1922 e 1934, a Universidade do Brasil e do Rei Leopoldo, no Rio
de Janeiro, foi a única e precária instituição universitária, embora já existis-
sem no país diversos cursos de ensino superior.
A primeira grande universidade brasileira nasceu em 1934
1
, não mais
pela vontade de um rei belga, aliado ao servilismo de políticos brasileiros. A
Universidade de São Paulo resultou da vontade de intelectuais brasileiros
42
aliados a intelectuais franceses. O Brasil passou a olhar para dentro, e não
mais para fora. Os políticos servis foram substituídos por intelectuais acadê-
micos, embora a forte dependência do exterior tenha continuado. Embora
não mais servis, eles eram, ainda, fortemente influenciados pelo exterior.
Entre 1935 e 1964, a universidade brasileira cresceu, embora lhe fal-
tasse o vigor necessário para o salto de que o país tanto precisava. Durante
esse período, o número de alunos passou de 27.501, em 1935, para 282.653,
em 1970. O número de professores aumentou de 3.898 para cerca de 49.451,
em 1980. Mas, dentre estes, apenas uns poucos possuíam pós-graduação.
Em inícios da década de 60, Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira criaram
uma nova idéia para a universidade a ser fundada em Brasília, a nova capital
do país, experimento esse que foi interrompido pelo golpe militar de 1964.
Em 1964, a universidade brasileira foi paradoxalmente destruída e, ao mes-
mo tempo, fundada. Destruída pela aposentadoria forçada de centenas de
professores, exilados ou expulsos pela ditadura recém-instalada, que pôs fim
também à liberdade de cátedra. Não foram poucos os alunos que perderam a
vida nesse período sombrio. Ao mesmo tempo, ela foi fundada numa estru-
tura mais moderna e, pela primeira vez, tentou-se criar um sistema universi-
tário nacionalmente integrado.
Passou a haver farta disponibilidade de recursos financeiros e apoio à
construção de novos prédios e compra de equipamentos. E, o mais impor-
tante, iniciou-se então a concessão maciça de bolsas de estudos no exterior,
para onde jovens brasileiros foram enviados para cursar seus doutorados e
mestrados em universidades estrangeiras.
Essas transformações consolidaram-se em 1968, e foram tornadas pos-
síveis pela reforma empreendida pelos militares, com o apoio da USAID.
Aqui, já não se tratava do servilismo dos políticos de 1922, nem da coopera-
ção intelectual de 1935. Essa reforma não foi orquestrada por intelectuais
franceses, mas sim pelos financiamentos americanos, sob o patrocínio do
autoritarismo militar da ditadura.
A moderna universidade brasileira é filha do regime militar e da
tecnocracia norte-americana. Sob esse patrocínio e essa tutela, a universida-
1
Deve-se lembrar que a atual Universidade Federal do Paraná reivindica ter-se antecipado em dez anos
à Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mas, do ponto de vista do
desenvolvimento explícito e da dimensão nacional, foi no Rio de Janeiro, em 1922, graças ao Rei
Leopoldo, que surgiu a primeira universidade brasileira.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
43
de brasileira, entre 1964 e 1985, conseguiu dar um enorme salto quantitati-
vo e qualitativo, talvez o maior salto já ocorrido em qualquer país do mundo,
na área da educação superior.
Era como se quiséssemos recuperar, embora sem liberdade, os quinhentos
anos que havíamos perdido. Ocorreu um notável aumento no número de
instituições, e também no número de alunos e professores, principalmente
em relação aos professores com pós-graduação (mestrado e doutorado). Em
1985, já havia, no Brasil, 37.629 professores universitários com graus de
mestre e doutor.
A partir de 1985, a reafirmação da democracia trouxe de volta a liber-
dade, inclusive o direito de escolha dos dirigentes universitários, com elei-
ção direta para o cargo de reitor. Mas trouxe, também, uma forte restrição de
recursos financeiros, chegando a ponto do abandono da universidade públi-
ca pelo poder público. A universidade federal chega a 2003 praticamente
falida. Nestes quase vinte anos, cada avanço, cada conquista, cada melhoria
e crescimento foi resultado da árdua luta de professores, alunos e servidores
contra o poder público, em mais de trezentos dias de greves nos anos letivos
de 1985 e 2002. Sem essas greves, é possível que as universidades federais já
tivessem fechado suas portas, por abandono, mas as conseqüências dessas
greves foram extremamente desgastantes, desmoralizando a universidade
perante a opinião pública e esgarçando a trama de relações sociais entre
estudantes, professores e funcionários.
Nesse mesmo período, ocorreu uma mudança do perfil da universidade
brasileira, que passou de entidade pública a entidade preponderantemente
privada. Houve um surpreendente crescimento do setor privado e uma ines-
perada interiorização da universidade estatal, voltada, na sua luta pela so-
brevivência, para a defesa dos próprios interesses. A universidade privatizou-
se de duas formas: a predominância das instituições privadas no número
total de alunos e a perda de um projeto social nacional por parte das univer-
sidades públicas.
A universidade brasileira privatizou-se em razão de um círculo vici-
oso: faltavam recursos públicos para financiá-la, causando a deteriora-
ção das instalações, dos equipamentos e dos salários, o que, por sua vez,
levou à realização de greves que visavam a resgatá-la dessa situação.
Como conseqüência, aumentou a oferta das universidades particulares.
Simultaneamente, ocorria o aumento do descontentamento e da desmo-
ralização. Agravando tudo isso, a falta de um projeto nacional em um
país que acabava de sair do desenvolvimentismo para ingressar no
44
neoliberalismo, passando do protecionismo para a abertura, da inflação
sem controle destinada a financiar os gastos públicos para o rígido con-
trole desses gastos públicos por organismos internacionais. Some-se a
isso a perda da mística nacional em relação ao futuro, e todas as condi-
ções estavam colocadas para a grande crise da universidade brasileira. E,
além de tudo, havia o agravante da crise maior da própria instituição no
nível mundial, já mencionada anteriormente. Lado a lado com o fato
positivo de seu crescimento total e da capacidade de resistência heróica
demonstrada pela universidade pública, o começo do século XXI mostra
uma universidade cuja qualidade é questionável, e é caracterizada por
um grande ativismo corporativo aliado a uma lamentável desmotivação
acadêmica, por intensas mobilizações alienadas dos interesses da popu-
lação como um todo e pela forte crise de identidade da própria institui-
ção universitária, que vem ocorrendo por todo o mundo. Simultanea-
mente, a universidade brasileira tem, a seu favor, a ânsia de estudar e
aprender dos jovens que saem do ensino médio, que se manifesta agora
com uma intensidade nunca antes vista.
Esse é o quadro, ao mesmo tempo adverso e estimulante, em que
o Brasil e sua universidade ingressam no novo século. Temos agora um
governo historicamente comprometido com a transformação da uni-
versidade numa instituição de ponta, em termos mundiais. Para tal, será
necessário:
• atender às necessidades emergenciais de uma instituição heróica, mas
abandonada;
• organizar um sistema universitário que se tornou caótico devido ao
crescimento descontrolado do setor privado, simultâneo ao encolhi-
mento do setor público; e
• refundar a universidade segundo as exigências do momento histórico
pelo qual passa a humanidade.
1. REORGANIZAÇÃO DO SISTEMA UNIVERSITÁRIO
BRASILEIRO
Nos últimos anos, as universidades brasileiras passaram por rápi-
do e surpreendente crescimento, especialmente no tocante às institui-
ções privadas.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
45
Número
1985 2001
Universidades e Instituições de Ensino Superior:
Pública..............................................................233.............................183
Privada............................................................626.........................1.208
Total...............................................................859........................1.391
Estudantes:
Pública.......................................................556.680...................939.225
Privada.........................................................810.929................2.091.529
Total.........................................................1.367.609...............3.030.754
Professores:
Pública.........................................................64.449........................90.950
Privada......................................................49.010.....................128.997
Total...........................................................113.459.....................219.947
Mas esse crescimento foi desordenado, exigindo agora imediata reorga-
nização. Não se trata, aqui, de dar soluções emergenciais que se apliquem
principalmente às universidades públicas, mas sim de reordenar todo o siste-
ma universitário brasileiro.
O Sistema universitário brasileiro
Apesar da criação do sistema universitário federal brasileiro, que teve
início em 1968 e foi reafirmado em 1985, com a implantação da isonomia
total e a criação de um sistema comum de avaliação, a universidade brasilei-
ra ainda não é um sistema.
Um conjunto de normas tem de ser formulado para regular esse siste-
ma, aplicando-se a todas as universidades, públicas ou privadas, e incorpo-
rando todas as entidades que fazem parte do sistema de produção de conhe-
cimento superior, como institutos de pesquisas, empresas, hospitais, reparti-
ções públicas e entidades de formação profissional de nível superior.
O sistema universitário brasileiro deve atuar no sentido de garantir au-
tonomia a cada entidade, devendo, entretanto, criar um conjunto harmôni-
co, capaz de funcionar com sinergia, evitando as dispersões características
do momento atual.
46
Regularização de transferências
Num mundo já globalizado como o nosso, em que cada universidade
deveria ser parte de um todo universal, a universidade brasileira ainda não
estabeleceu um diálogo, no que se refere à transferência de alunos. Num
tempo em que já se discute a possibilidade de um aluno fazer cursos em
diferentes instituições ao mesmo tempo, trocar de universidade ainda é difí-
cil para ele. Essa dificuldade não se deve aos exames vestibulares, mas sim à
incompatibilidade de currículos.
Ampliação de vagas
Apesar de as vagas terem aumentado no conjunto das universidades
brasileiras,seu número ainda é muito pequeno em relação à demanda já
existente. A universidade brasileira terá de, ao longo dos próximos dez
anos, ampliar o número de vagas, com a meta de, no mínimo, dobrar o
número de alunos. Para tal, além de recursos adicionais, ela precisará mu-
dar seus sistemas de ensino, de maneira a adotar, cada vez mais, os siste-
mas de ensino a distância.
Cotas para grupos étnicos e escolas públicas
Num país em que metade da população é de origem africana, não há
justificativa moral para a existência de uma elite branca. Essa realidade
deveu-se, principalmente, ao abandono sofrido pelo ensino público básico
no Brasil e ao número reduzido de jovens que conseguem concluir o ensi-
no médio: ao excluir os pobres do ensino médio, a sociedade brasileira
exclui, sobretudo, os negros. A solução para a imoralidade da branquitude
da elite brasileira está no investimento maciço na universalização e na
qualificação do ensino básico. Até que isso seja feito, a universidade terá
de dar sua colaboração para mudar a vergonhosa situação de um país cuja
maioria da população é negra, mas que tem pouquíssimos negros matricu-
lados na universidade. Por servir como um trampolim para chegar à elite, a
universidade responsável por esse desvio moral que vem manchando a
sociedade brasileira esses cento e quinze anos que se passaram desde a
abolição da escravatura. Por esta razão, nada é mais correto do que ampliar
o número de alunos negros. Isso não vai tornar a universidade socialmente
mais justa, uma vez que apenas os negros de classe média e rica serão
beneficiados, mas vai fazer da universidade uma instituição que colabora
para mudar a mancha branca da elite brasileira. Para que as cotas étnicas
possam desempenhar um papel social, além de racial, as cotas para estu-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
47
dantes negros deveriam beneficiar apenas os jovens que cursaram todo o
ensino médio em escolas públicas. Com isso, ainda não estaríamos benefi-
ciando os pobres que, no Brasil, raramente completam a oitava série do
ensino fundamental e, quase nunca, o ensino médio, mas estaríamos con-
ferindo algum benefício social às classes médias baixas.
Criação de novas fontes de recursos
A universidade brasileira passa hoje por uma grave crise financeira: as
universidades públicas não contam com o apoio do governo e as universida-
des particulares sofrem com altos índices de inadimplência, e seus alunos
mal conseguem pagar as mensalidades cobradas.
O Brasil não pode abrir mão do compromisso com a gratuidade do
ensino em todos os níveis, inclusive o superior. O fato de que 75% dos
estudantes universitários estão em escolas particulares não pode ser ignora-
do, e o país não pode continuar dependente do tradicional orçamento gover-
namental para financiar os 25% restantes, que estudam nas instituições pú-
blicas. Se continuarmos nesse rumo, a universidade pública será transforma-
da num minúsculo apêndice no sistema universitário brasileiro. Se, nos pró-
ximos dez anos, o ritmo das matrículas em universidades particulares e pú-
blicas se mantiver, o setor público ficará reduzido a apenas 10% do número
total de alunos. Esse cenário não será positivo para o futuro do Brasil, nem
de sua ciência e de sua tecnologia.
As universidades brasileiras devem dispor de fontes de financiamen-
to que lhes assegurem um funcionamento sem crises, sem necessidade de
recorrer a greves e solidamente embasado na democracia, na eficiência, na
ética, tanto em relação à fonte quanto ao uso desses recursos. Todas as
fontes devem ser consideradas, tanto as de origem pública quanto as pri-
vada; tanto as oriundas dos recursos gerais do tesouro quanto as contribui-
ções especificamente vinculadas; tanto os fundos especiais como os de
vinculação permanente, iguais aos que hoje financiam as universidades
estaduais de São Paulo.
Avaliação de todas as instituições
A criação de um sistema de avaliação foi um dos avanços do conjunto
das universidades brasileiras, embora, nos últimos anos, esse sistema tenha
sido ainda imperfeito e incompleto. A reorganização das universidades bra-
sileiras vai exigir a formulação de um novo sistema de avaliação, que permi-
48
ta muito mais do que classificá-las como em um campeonato. O objetivo
desse novo sistema deverá ser o de identificar as qualidades e os pontos
fracos das universidades, a fim de capacitá-las a desempenhar o papel que a
sociedade delas espera.
O crescimento do número de instituições de ensino não pode ser visto
como negativo. Quanto maior for o número de escolas de todos os níveis,
melhor, desde que elas realmente sejam capazes de atender às necessidades
de conhecimento superior da sociedade e de promoção social dos alunos, no
país e na cidade onde se situam. Entretanto, não foi isso que ocorreu com as
instituições particulares de ensino surgidas nos últimos anos.
É obrigação do setor público impedir que empresários vendam como
genuínos diplomas que são falsos passaportes para o sucesso. É do interesse
de todo o sistema, especialmente das próprias universidades e de seus alu-
nos, que essas instituições sejam avaliadas, evidenciando assim os seus re-
sultados positivos, juntamente com seus possíveis aspectos negativos. Os
alunos têm o direito de conhecer o valor dos diplomas que eles recebem em
troca do pagamento de mensalidades, e a sociedade tem o direito de saber
que tipo de profissionais os egressos das universidades podem vir a se tornar.
O governo pretende coordenar a avaliação de todas as universidades,
em cooperação com o próprio setor, por acreditar que é de interesse de todos
a avaliação do potencial de cada instituição. Essa avaliação deve ser públi-
ca, e as informações relativas a ela devem ser amplamente divulgadas. Ela
deve, também, ser participativa, no sentido de ouvir a comunidade; correti-
va, servindo para aperfeiçoar a instituição e o sistema; e ampla, não se limi-
tando a avaliar apenas alguns aspectos da universidade.
Liberdade planejada
O Estado não deve limitar o número de entidades que se proponham a
oferecer serviços educacionais. Entretanto, a regulamentação pública é im-
perativa, e as novas universidades e centros universitários deverão se sub-
meter a essas regras. Além das avaliações periódicas, o governo vem pensan-
do em definir as localizações e os campos de especialização para os quais as
novas universidades devem ser atraídas, e selecionar as novas universidades
regulares com base em licitação. As autorizações seriam concedidas àquelas
que melhor atendessem aos objetivos buscados pelo setor público, como
qualificação dos professores, relação professor/aluno, número de bolsas de
estudos a serem concedidas, valor das mensalidades e adoção de sistemas de
cotas para grupos étnicos.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
49
Universidades livres
Além das universidades regulares, o governo deve incentivar a criação
de universidades livres, cujos diplomas não são reconhecidos pelo Estado.
Quanto maior o número dessas universidades livres, melhor para a vida inte-
lectual do país. Embora sem gerar a ilusão do diploma regular, é possível que
alguns desses centros acabem por despertar respeito, graças aos méritos de
seus profissionais.
2. AUTONOMIA PARA MUDAR OU NÃO MUDAR
É necessário, hoje, discutir o papel da universidade dentro da própria
universidade. Esse debate é muito mais importante até mesmo que os deba-
tes sobre a crise que vem afetando essas instituições. A universidade tem de
lutar para evitar os pequenos problemas, como as goteiras em seus telhados.
Mas não basta resolver esses pequenos problemas sem dar atenção ao qua-
dro mais amplo.
Da mesma forma que, acima, apresentei o que o governo pensa em
fazer para ajudar a universidade a superar seus problemas, darei agora minha
própria contribuição – mais como um apaixonado pensador da universidade
do que como ministro – para o debate sobre o céu que ameaça derrubar o
telhado, mesmo que todas as goteiras tenham sido consertadas.
O governo não vai impor reformas. A universidade tem de ter autono-
mia, mesmo que isso signifique que ela venha a optar por seguir o rumo
tradicional, ignorando as mudanças que ocorrem a seu redor. Autonomia
significa fazer o que parece certo, tanto quanto o que parece errado, e o
governo considera que é melhor respeitar o velho e fundamental princípio da
autonomia do que impor reformas vindas de fora, mesmo que essas refor-
mas estejam corretas.
No entanto, é dever do Ministério, e principalmente do Ministro, da
Educação incentivar, nas universidades, o debate interno, a fim de promo-
ver as reformas que eles julgam corretas e que gostariam de ver acontecer.
O princípio da autonomia não deve ser quebrado, mas também não
deve ser usado como escudo de proteção para os ministros que sofram de
covardia intelectual ou de oportunismo político.
Por essas duas razões, proponho aqui as linhas gerais do que imagino pode-
rão ser as reformas necessárias à refundação da universidade brasileira, caso elas
sejam adotadas nas universidades, após o longo debate que se fará necessário.
50
3. A REFUNDAÇÃO DA UNIVERSIDADE BRASILEIRA
As universidades nasceram porque os mosteiros medievais se recusa-
ram a mudar. Ao optarem por manter a mesma estrutura, os mesmos méto-
dos, os mesmos requisitos de ingresso e de permanência, quando fora de
seus muros vinha surgindo um mundo de idéias novas querendo avançar, e
de novos costumes querendo se impor, os mosteiros religiosos provocaram o
surgimento da universidade.
Se eles tivessem se reformado para servir ao conhecimento laico e à
promoção da lógica e da ciência, os mosteiros teriam sobrevivido como cen-
tros do saber, e as universidades não teriam surgido.
Também a própria Igreja Católica, caso tivesse a intenção e a capacidade
de entender as mensagens recebidas por séculos a fio sobre a necessidade de se
adaptar aos novos tempos, teria evitado a Reforma Protestante do século XVI.
Foi, sobretudo, por ter insistido na infalibilidade de suas interpretações, na
perfeição de suas instituições e no rigor de seus rituais que ela veio a provocar
o surgimento do grande movimento evangelizador que fez surgir uma outra
religião dentro dos mesmos princípios cristãos. O mesmo pode ocorrer com a
universidade, de uma forma ou de outra: ela pode ou vir a ser substituída por
outras instituições que, de fora, estão exigindo que ela mude, ou ela pode
transformar-se a si própria. Essa transformação implicaria a ampliação, ainda
maior, de seus princípios fundamentais, por meio do avanço do conhecimento
superior, criando instrumentos para libertar a humanidade, aumentar a rique-
za, tanto a material quanto a intelectual, ampliar o horizonte social de igualda-
de de oportunidade, incluindo a todos, principalmente os jovens, independen-
temente de classe, raça, gênero e lugar de nascimento.
Ao longo de seus oito séculos e meio de existência, a universidade foi
refundada por algumas vezes. Uma entidade secular só consegue sobreviver
se houver uma razão muito forte para sua existência e, ao mesmo tempo, se
ela possuir uma forte capacidade para se transformar e se adaptar às exigên-
cias de cada momento histórico. Os exércitos, mais antigos que as universi-
dades, mantendo o compromisso maior de defender seus países, passaram
por inúmeras transformações ao longo da história. As igrejas, por outro lado,
tendem a resistir às mudanças, insistindo em manter seus dogmas intactos,
provocando, assim, cismas e dissidências.
Elas preferem romper sua unidade a ter de se refundar. Por ser autôno-
ma e não ter dogmas, a universidade, mais que qualquer outra instituição,
tem a obrigação de refundar-se a si própria, sempre que necessário.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
51
A refundação por que passou a universidade brasileira ocorreu em fins
da década de 60 do século XX, sob os auspícios dos militares e da influência
americana, por meio do acordo MEC-USAID. Desde essa época até o come-
ço do século XXI:
• o regime militar chegou ao fim;
• não houve censura oficial a qualquer forma de atividade intelectual;
o Brasil tornou-se democrático, chegando até mesmo a eleger um
presidente metalúrgico, proveniente de um partido nitidamente de
esquerda;
• as universidades foram reorganizadas em segmentos corporativos que,
rapidamente, descobriram possuir um poder que, alguns anos antes,
seria inimaginável, e usaram esse poder com uma intensidade que os
governos e a sociedade jamais suspeitaram ser possível;
• há eleições diretas para reitor;
• as bandeiras de luta pelas utopias do século anterior desapareceram
ou se instrumentalizaram em mãos de uns poucos militantes;
• o crescimento econômico passou a provocar desemprego, ao invés de
gerar empregos. Um número menor de pessoas tem hoje acesso aos
produtos industrializados, cuja produção passou a ser mais lucrativa
devido aos preços mais altos, e não porque eles tenham se tornado
mais acessíveis a um maior número de consumidores;
• pela primeira vez na história, os jovens passaram a ter a perspectiva de
uma vida mais difícil, em termos econômicos, do que a que tiveram
seus pais;
• os jovens foram abandonados, transformando-se nos órfãos do
neoliberalismo;
• parte da juventude passou a usar drogas, a fim de preencher o vazio
causado pela falta de bandeiras de luta e de oportunidades de enri-
quecimento pessoal, quer econômico, intelectual ou espiritual;
• a ciência passou pela mais radical de suas revoluções, com o surgimento
da biotecnologia, da engenharia genética, da informática e da
microeletrônica;
• novos campos do conhecimento surgiram e continuam a surgir no
mundo do conhecimento;
• outros se tornaram obsoletos, desaparecendo na mesma velocidade;
• a duração das verdades científicas e, mais ainda, da eficiência das
técnicas tornou-se cada vez mais curta;
• o mundo globalizou-se. As informações são agora distribuídas instan-
taneamente, o poder econômico concentrou-se nas mãos dos pou-
52
cos donos do planeta, e os produtos e técnicas chegam simultanea-
mente a todas as partes do mundo;
• uma única e indiscutível potência nacional assumiu a consciência de
seu poderio, de seu papel, de sua ambição e de sua função de polícia
do mundo, com o fim de forçar todos os povos a adotar seus princí-
pios de democracia política e de liberalismo econômico, e até mes-
mo seus valores religiosos;
• o Muro de Berlim foi derrubado;
• o mapa do mundo está sendo redesenhado;
• armas inteligentes passaram a ser usadas nas guerras;
• os pobres do mundo, especialmente na África, foram abandonados
pelos donos do poder mundial, sendo deixados à margem não apenas
do progresso, mas até mesmo da esperança;
• por todo o mundo e internamente a cada país, o sistema social reco-
nheceu a realidade da exclusão, aceitando a divisão da sociedade,
em vez de propor a distribuição da riqueza;
• os costumes mudaram por toda parte, afetando a todos, mas principal-
mente os jovens, sobretudo no tocante à sexualidade;
• as minorias passaram a ter seus direitos reconhecidos, em especial as
mulheres, os homossexuais, os grupos indígenas, os negros;
• a cultura se universalizou, mas a diversidade cultural é agora reconhe-
cida como um direito;
• o fundamentalismo, seja religioso ou econômico, é agora adquirido
por meio da força;
• os norte-americanos, pela primeira vez, foram derrotados em campo
de batalha, na longa guerra no Vietnã. Posteriormente, contudo, eles
travaram uma série de guerras curtas e vitoriosas, submetendo o
mundo ao seu controle;
os problemas locais se universalizaram, assumindo dimensões catastró-
ficas, tais como o uso de drogas, o poder do narcotráfico, as armas do
terrorismo, a disseminação de doenças, o poder do sistema financeiro.
Apesar de tudo isso, a universidade, em todo o mundo, pouco mudou
em relação a seus aspectos fundamentais.
Número de vagas e formas de admissão
O atual governo assumiu o firme compromisso de, até 2010, possibili-
tar a conclusão do ensino médio para todos os jovens brasileiros. Essa nova
situação irá gerar uma forte pressão por mais vagas nas universidades. As
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
53
universidades públicas, em especial, terão de duplicar, nos próximos cinco
anos, o número de vagas oferecidas por elas. Isso não será possível, caso o
exame vestibular seja mantido como forma de ingresso, uma vez que ele
funciona mais como uma barreira que como processo de seleção justa dos
alunos mais capacitados. A multiplicação dos bancos escolares também não
será uma solução, pois provocaria a queda da qualidade de ensino já alcançada
pela universidade.
O caminho que propomos possui quatro vertentes:
• considerar a possibilidade de adoção da educação a distância para
alunos de graduação, sem fazer distinções entre esses diplomas e os
obtidos por meio de presença às aulas. Essa seria uma forma de au-
mentar as vagas sem prejuízo da qualidade do trabalho dos professo-
res que se dedicam à pesquisa;
• considerar a adoção de sistemas de seleção que têm lugar dentro da
própria escola secundária. Esse sistema foi desenvolvido e já vem
sendo aplicado pela Universidade de Brasília – UnB, sob o nome de
Programa de Avaliação Seriada (PAS). Esse mesmo sistema foi ado-
tado e aperfeiçoado pela Universidade Federal de Santa Maria, com
o nome de Programa de Ingresso ao Ensino Superior (PIES) e tam-
bém pela Universidade Federal da Paraíba, com o nome de Processo
Seletivo Seriado (PSS);
• considerar, depois de ouvidos a comunidade e os especialistas no as-
sunto, a concessão de maior peso para as disciplinas português e
matemática, uma vez que elas servem de base para o desenvolvi-
mento do conhecimento em todos as áreas;
• considerar a possibilidade de adoção de sistemas de cotas étnicas, a
fim de reformular, democratizar e corrigir as desigualdades de opor-
tunidades para os diferentes grupos étnicos, dando maior força à
escola pública.
Estrutura
O mundo de hoje já não permite que a universidade continue dividi-
da em departamentos. Os novos campos do conhecimento e o compromis-
so com a realidade social exigem que seja adotado um enfoque
multidisciplinar. Além disso, a disseminação do conhecimento e de senti-
mentos humanistas entre todos os alunos da universidade não poderá ocor-
rer se o ensino permanecer limitado às disciplinas oferecidas dentro das
amarras do sistema de departamentos.
54
Sugerimos que a universidade pense na possibilidade de uma mudança
de sua estrutura, nas linhas já adotadas, há décadas, por algumas institui-
ções, introduzindo os Núcleos Temáticos e os Núcleos Culturais.
Com esses núcleos, somados aos atuais departamentos, a universidade
ganhará uma estrutura matricial tridimensional, que poderá servir de base à
formação do profissional em três diferentes níveis: sua área de conhecimen-
to será desenvolvida no departamento específico; seu compromisso social e
ético, no Núcleo Temático, e o cultivo e exercício de seu gosto estético se
dará nos Núcleos Culturais.
Formação permanente e duração flexível dos cursos
No mundo de hoje, trinta anos após a reforma MEC-USAID, de autoria
dos militares, as carreiras tornam-se obsoletas em poucos anos se os profis-
sionais não se dedicarem a um permanente processo de reciclagem de seus
conhecimentos.
Por essa razão, a universidade deve, urgentemente, examinar a possibi-
lidade de manter um sistema de acompanhamento e formação permanente
de seus alunos, que deverá durar até o fim de sua vida profissional. No mun-
do do futuro, não haverá lugar para ex-alunos; todos serão permanentemen-
te alunos ou não serão profissionais.
O caminho a ser seguido consistirá, basicamente, na criação de diver-
sos sistemas de educação permanente e a distância, para todos os alunos
formados pela universidade.
Juntamente com o diploma provisório, o aluno, ao sair, receberá um
código de ingresso nos sistemas de educação permanente da universidade.
Será possível ao aluno fazer consultas sobre as inovações ocorridas na sua
área de conhecimento, obter informações sobre cursos de reciclagem naque-
la área e, até mesmo, redirecionar seu campo de estudo, de profissão e de
especialização, de acordo com a evolução do conhecimento.
A universidade deve-se converter numa presença permanente na vida
de seus formandos, que devem continuar sendo alunos. Deve também ser
examinada a possibilidade de flexibilizar os horários de permanência do alu-
no no campus, ao longo de toda a sua vida acadêmica. Se os alunos podem-
se manter em contato permanente com sua universidade, sua presença física
no campus não precisará ser tão longa quanto é hoje.
Com todas as invenções modernas nos meios de comunicação e nos
instrumentos pedagógicos, não é possível que a universidade continue preci-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
55
sando, hoje, do mesmo tempo para formar um profissional que precisava
há cem anos, quando essas carreiras foram criadas. A universidade não
pode continuar ignorando a realidade dos novos métodos e instrumentos
de ensino e tem de examinar seriamente a possibilidade de reduzir o tempo
necessário para a formação de alunos, se não em todos, pelo menos em
muitos de seus cursos.
Ligação com a sociedade
A ligação da universidade com a população não se dará por meio da
universalização do ingresso, que beneficiaria apenas os que conseguissem
concluir o ensino médio e levaria a uma queda na qualidade. A extensão
universitária também não é a solução, pois, embora com honrosas exceções,
ela se transformou numa espécie de assistencialismo.
O atual governo brasileiro quer passar do assistencialismo à aboli-
ção. Não é fazendo assistencialismo que a universidade se aproximará da
população, mas sim efetuando uma reforma que lhe permita levar em
conta os problemas da sociedade em geral e participar de sua transfor-
mação, por meio de:
• um firme compromisso para com a qualidade, em todas as áreas. Se o
país mantém uma universidade, ele deve poder-se orgulhar dela e da
qualidade de seu produto, representado pelos profissionais e por seu
trabalho. O objetivo é tornar o mundo um lugar mais belo, eficiente
e justo;
• os currículos dos cursos das áreas técnicas – aquelas que transformam
o mundo, como, por exemplo, a Medicina, a Engenharia, a Arquite-
tura e a Economia – têm de passar por reformas, de modo a adaptar
seus princípios à ética de um mundo mais justo, do qual um número
cada vez maior de pessoas possa se beneficiar, independentemente
da renda, do gênero, da raça, do local de nascimento;
• a universidade tem de ter participação nas atividades políticas da soci-
edade, o que não pode se dar internamente à produção do conheci-
mento em si, que deve ser livre, mas por intermédio dos diversos
tipos de práticas de mobilização.
Diferentemente das instituições de ensino superior do século XIX,
que fecharam os olhos ao abolicionismo e se dedicaram a ensinar formas
de manter intacta a escravidão, o atual governo brasileiro vê a universida-
de do século XXI como um dos motores para a consecução da tarefa de
56
Abolir a Pobreza e Construir a República, iniciada há cento e quinze anos e
jamais concluída por uma elite reacionária, aristocrática, que desprezava o
povo e que cooptou a universidade.
Fontes de financiamento
Nos últimos anos, os principais debates estiveram sempre vinculados
ao problema do financiamento, questionando muito menos a própria univer-
sidade (o seu existir) do que as maneiras de financiá-la. As universidades
queriam para si mais recursos do governo, maiores salários e mais verbas,
embora sem permitir o aumento das mensalidades e concedendo subsídios.
A universidade tem de ser discutida na profundidade de sua crise, mas os
debates sobre o financiamento têm de continuar.
A universidade do século XXI tem de ter clareza sobre quem paga pelo
ensino de nível superior e o que deve receber em troca aquele que paga.
O governo tem toda clareza de que a privatização da universidade está
fora de questão, como também a idéia de pôr fim à sua gratuidade. Na verda-
de, o governo gostaria que todo o ensino superior fosse gratuito no Brasil,
caso isso fosse financeiramente possível, uma vez que ele é de importância
ainda mais essencial para o país do que para o aluno. Mas, atualmente, essa
possibilidade ainda não existe.
Até que ela venha a existir, contudo, o governo pretende, juntamente
com a comunidade acadêmica, encontrar formas de financiamento alternati-
vo para os alunos das universidades particulares e, também, de financiamen-
to das atividades acadêmicas nas universidades públicas, tais como:
• aumentar o número dos alunos que recebem bolsas do governo para
estudar nas universidades particulares, por meio do Programa de Apoio
ao Estudante, lançado para ampliar o Fies e conceder bolsas sem
necessidade de pagamento financeiro;
• regularizar as fontes alternativas de financiamento das universidades
públicas, pela total transparência de sua administração e a aplicação
de processos decisórios democráticos e autônomos;
• considerar a possibilidade de transformar os alunos das universidades
particulares em co-proprietários dos estabelecimentos em que estudam.
Prioridades de temas
O Brasil e o mundo mudaram, continuam mudando e irão mudar ainda
mais no futuro. Se não percebermos esse fato, não tardará muito para que
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
57
muitos de nossos temas de estudo estejam superados, sem que novos temas
sejam examinados.
Ao longo dos últimos anos, demos muita importância aos planos anuais
de administração e nenhuma aos planos decenais de atividades acadêmicas.
A universidade tem de gerenciar mais do que recursos, ela tem de gerenciar
o conhecimento e tem de ter consciência do risco de insistir em conhecimen-
tos que se tornaram obsoletos e ignorar os conhecimento que apontam para
o futuro, de modo a compatibilizar o ensino com as necessidades éticas,
sociais, epistemológicas e econômicas desse futuro.
Publicização do ensino
A reforma da universidade, realizada durante o regime militar, incutiu a
idéia de que a universidade é propriedade do Estado, seu dono, e não do
país, de seus alunos e da sociedade como um todo. Durante o regime militar,
o Estado demitia, prendia e financiava suas universidades como bem enten-
dia. Com a chegada da democracia, os ditadores foram substituídos pelos
professores e servidores, ou por ministros. A autonomia passou a ser enten-
dida como a troca de proprietário, transferindo-se dos quartéis militares para
as salas de reuniões dos professores e servidores administrativos, ou para os
gabinetes dos ministros. Nestes quase vinte anos, pouca coisa realmente ra-
dical foi feita no sentido de levar em conta as reais exigências e necessidades
da sociedade civil, e até mesmo dos alunos.
A democratização da universidade trouxe as eleições diretas, muitas
vezes com participação reduzida do corpo discente, ou por desinteresse ou
porque a capacidade dos alunos de participar do processo de escolha era
subestimada por muitos.
Nos conselhos universitários, os alunos têm participação mínima ou
nenhuma; os ex-alunos nunca são consultados e ainda menos os represen-
tantes da sociedade civil como um todo, salvo em raríssimas exceções, que
mais parecem a encenação de uma falsa gestão participativa.
O rápido aumento do patrimônio de muitas universidades, graças às
mensalidades pagas pelos alunos ou ao apoio público, tem levado a socieda-
de, em geral, e os estudantes, em particular, a criticarem aquilo que deveria
ser visto como positivo: o crescimento de uma universidade.
Recentemente, por ocasião da inauguração de uma biblioteca numa
universidade particular, o que deveria ser visto como um feito louvável, numa
época em que o Estado não vem cumprindo com suas obrigações de ampliar
58
as bibliotecas das universidades públicas, um aluno comentou: “Eles cons-
truíram tudo isto com o dinheiro de nossas mensalidades e depois usarão
esta biblioteca para justificar o aumento das mensalidades para os futuros
alunos”. Os alunos das universidades particulares, com raras exceções, sen-
tem-se tão desengajados de suas instituições quanto da sociedade em geral.
O Brasil precisa criar o conceito de alma mater, o amor que a sociedade
e, principalmente, os ex-alunos têm por suas universidades. A única maneira
de incentivar a criação dessa idéia é ampliar o sentimento de que a universi-
dade pertence a todos.
A maneira de alcançá-lo é incentivar o envolvimento da sociedade, dos
alunos e dos ex-alunos nas decisões da universidade. E, sobretudo, pela cri-
ação do conceito de que a instituição pertence à sociedade, e não a um Esta-
do distante ou a um dono único.
No caso das universidades estatais, o caminho é chamar alunos e ex-
alunos a participar nas decisões e nas responsabilidades da comunidade. O
reitor é o líder intelectual e administrativo da instituição, não o representante
do Estado. Nas universidades particulares, é também necessário separar a fi-
gura do dono da figura do líder acadêmico: o dono é o proprietário do prédio,
o reitor é o coordenador das atividades acadêmicas. O primeiro compra ou
herda, enquanto o segundo tem de ser eleito pela comunidade.
Relação com o ensino básico
Apesar de serem da responsabilidade de um mesmo ministério, a relação das
universidades com o ensino básico tem sido muito mais restrita do que deveria,
num país em que a realidade educacional é tão trágica. A universidade brasileira
tem de ser parte integrante do processo de educação do povo brasileiro, a começar
do ensino básico, e não apenas de seus próprios alunos no ensino superior.
A universidade pode ser o elemento dinâmico, por excelência, do ensino
básico, se:
• participar dos programas de reciclagem de professores;
• der preferência aos professores, por meio de um sistema de cotas,
quando estes prestam vestibular;
• ampliar as vagas em cursos de licenciatura;
• ampliar as vagas nos cursos de pedagogia;
• reduzir as mensalidades para professores;
• criar cursos para especialização em técnicas de alfabetização, tanto de
adultos quanto de crianças;
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
59
• em todos os demais cursos, como Arquitetura, Nutrição, Economia,
Filosofia, História, considerar seu papel na educação como objetivo
dos estudos.
Relação com a saúde pública e os demais setores sociais
Da mesma forma que a universidade tem responsabilidades para com a
escola pública, ela as tem também para com a saúde pública. Parte dos cur-
rículos dos cursos relacionados à área médica deve-se centrar em estudos
relativos à medicina e à odontologia preventivas e sociais. Os cursos de en-
genharia civil poderiam contribuir com tecnologias relacionadas ao abasteci-
mento d’água e aos sistemas de esgoto.
O setor de transporte poderia se orientar para transporte público. To-
dos os campos do conhecimento podem dar sua contribuição. Como já acon-
tece em alguns casos, os cursos de comunicação poderiam deixar de lado os
meios de comunicação tradicionais e ensinar a seus alunos técnicas de co-
municação para as massas.
Compromissos sociais imediatos
Além de oferecer uma formação voltada para o objetivo de construir
um país sem pobreza, é necessário que a universidade se envolva, também,
nos compromissos sociais imediatos da sociedade brasileira, como a alfabe-
tização de adultos.
A meta de erradicar o analfabetismo em apenas quatro anos seria
facilmente cumprida, se apenas 3% dos alunos das universidades traba-
lhassem como alfabetizadores. Se todos os universitários trabalhassem
na alfabetização durante quatro anos, o Brasil poderia ensinar um núme-
ro 30 vezes maior de pessoas a ler e escrever – 120 milhões de analfabe-
tos, ou 15% do total dos analfabetos do mundo. Se cada universitário
dedicasse oito horas semanais ao trabalho de alfabetização, durante um
único semestre, apenas 24% dos universitários seriam o bastante para
que, em quatro anos, o analfabetismo fosse erradicado. Isso não é pedir
muito. Se isso não for feito, dentro de algumas décadas, quando for escri-
ta a história da campanha pela alfabetização do Brasil nos anos 2003-
2006, será dito de nossos universitários atuais o que hoje dizemos dos
universitários do século XIX: que nos alienamos frente a um dos proble-
mas sociais mais dramáticos de nosso tempo, da mesma forma que eles
se alienaram frente à escravatura.
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Compromissos com o futuro nacional
O mundo se encontra numa encruzilhada, e o Brasil está bem no centro
dela. O futuro de nosso país é incerto, não apenas pela falta de investimento
social e pela divisão interna, mas devido, também, em razão do cenário in-
ternacional. A universidade tem um papel fundamental a desempenhar para
ajudar o Brasil na construção de seu futuro em relação ao resto do mundo,
da seguinte forma:
• criar as bases científicas e tecnológicas necessárias para enfrentar o futuro;
• compreender as relações internacionais, num mundo em que existe
hoje uma única grande potência;
• compreender a realidade de um mundo globalizado, onde há exclusão
e divisão;
• contribuir na definição de formas de defesa de nossa soberania num
mundo globalizado.
Conhecimentos futuros
Para ser instrumento do futuro, a universidade de hoje tem de definir
quais conhecimentos serão necessários ao mundo, nesse futuro. A universi-
dade, juntamente com a Coordenação do Aperfeiçoamento do Pessoal de
Nível Superior – CAPES, tem a capacidade de, dentro de poucos meses,
definir os conhecimentos do futuro, nos quais deveríamos investir desde já,
para que o Brasil esteja preparado para comemorar o segundo centenário de
sua independência em 2022.
Com base nessa definição, a universidade tem de ir mais adiante,
redefinindo as carreiras nas quais devemos investir mais e as que devem
receber menos investimentos, uma vez que, em breve, estarão superadas
pela dinâmica do avanço do conhecimento e da demanda de conhecimento.
E, sobretudo, temos de definir quais carreiras são permanentes, por servi-
rem aos valores fundamentais do humanismo.
Globalização, regionalização, nacionalização
Por ocasião da última reforma, realizada pelos militares, o Brasil tinha
ainda a pretensão de possuir um projeto nacional independente do cenário
mundial. Apesar do tradicional alinhamento com os Estados Unidos e do
apoio recebido da USAID para a reforma e, acima de tudo, do apoio norte-
americano para o ambicioso programa de formação de pós-graduação, que
representou uma mudança positiva para a realidade do ensino superior brasi-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
61
leiro, o sonho de um projeto nacional continuava vivo. Hoje, a universidade
brasileira não pode ignorar o fato de fazer parte de um projeto global.
O saber universitário, hoje em dia, já não cabe dentro das fronteiras de
país algum. E a universidade brasileira tem de fazer parte do saber internaci-
onal, tanto em termos de suas qualidades quanto de seus temas.
Mas, a universidade tem de alcançar o objetivo de ser global e, ao mes-
mo tempo, ser também nacional. Ela deve manter vivos os compromissos e
as especificidades do Brasil, entendendo quais conhecimentos específicos
são necessários ao país.
Além disso, cada universidade, individualmente, deve reconhecer a
importância do seu entorno imediato, tendo, portanto, de se regionalizar, ao
mesmo tempo em que se globaliza.
A definição do sistema universitário brasileiro
Nossas universidades, apesar dos esforços do Conselho de Reitores
Universitários do Brasil – CRUB, da Associação Nacional dos Dirigentes
das Instituições Federais de Ensino Superior – ANDIFES, e de outras enti-
dades representativas, como o Conselho Nacional de Educação – CNE, e da
Lei de Diretrizes e Bases – LDB, formam um conjunto que não possui a
clareza de um sistema integrado. O governo irá apresentar uma proposta de
criação do sistema universitário brasileiro, idéia
essa que será discutida com a comunidade acadêmica, mostrando as
inter-relações e a interdependência de seus diversos componentes, sua inte-
ração com o sistema de desenvolvimento da ciência, da tecnologia e da cul-
tura em geral e evidenciando, também, a relação entre a universidade e setor
privado e as instituições governamentais.
Esse sistema universitário brasileiro possibilitará que seja definido, com
maior clareza, o futuro da construção do saber superior no Brasil, ao longo
das próximas décadas do século XXI.
Democratização e eficiência administrativa
O governo pretende propor à comunidade acadêmica a democratiza-
ção das relações entre o sistema universitário e a sociedade, bem como as
regras para a democratização de cada instituição universitária, tanto no que
se refere à gestão, às relações sociais, às fontes de financiamento, à eficiência
administrativa e às relações internas de cada unidade com seus alunos, como
também no que se refere à sociedade e ao povo brasileiro como um todo.
62
A universidade tem de servir a todos. Servir a todos não significa que
todos tenham acesso à universidade, mas fazer com que os profissionais uni-
versitários sirvam a todos. A universidade tem de ser a elite da força de traba-
lho, a serviço de toda a população. O fato de a universidade resistir às mudan-
ças de seus cursos e de sua estrutura faz com que muitos dos seus membros,
demagogicamente, defendam a ilusão do ingresso universal, quando deveriam
estar defendendo a universalização do trabalho dos professores universitários.
III – UMA CONCLUSÃO – SETE APELOS
A universidade é um portal da esperança, por nos permitir compreen-
der a encruzilhada com a qual nos defrontamos em meio a nosso processo
civilizatório. Um dos caminhos leva a um mundo unido, enquanto o outro
conduz a um mundo socialmente cindido. Temos de conceber idéias para a
criação de um futuro melhor, que venha a beneficiar toda a humanidade,
com uma globalização que não inclua a exclusão social.
Um apelo às universidades dos países mais ricos
Este é um apelo às universidades dos países com rendas per capita mais
altas, os chamados países ricos, para que elas assumam, na prática, a
globalização. Por favor, não façam isso apenas exportando produtos e idéias,
mas também importando engajamento. Façam mais do que desenvolver téc-
nicas, desenvolvam, também, maneiras de converter a ética numa parte es-
sencial do compromisso para com um mundo melhor. Conheçam, com mais
profundidade, a realidade das universidades africanas e das universidades
dos países mais pobres e endividados. Cooperem com a sobrevivência e com
a qualidade dos programas de formação oferecidos por essas universidades,
e colaborem na criação de uma consciência mundial capaz de interromper
nossa bárbara marcha rumo a uma sociedade cindida e alienada, que acabará
por separar os seres humanos em dois campos tragicamente opostos.
Um apelo às universidades dos países emergentes
Este é um apelo às universidades dos países emergentes, que já contam
com uma massa crítica de pensadores e com centros de ensino superior de peso.
Olhem para a pobreza que os cerca. Examinem o risco que correm ao permitir a
instalação, em seus países, de sociedades divididas e alienadas. Quebrem o círcu-
lo vicioso das reivindicações corporativas e entendam a universidade como par-
te de uma rede social de seres humanos em busca de um futuro melhor.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
63
Comprometam-se a colaborar com a erradicação da pobreza e enten-
dam que, apesar da crise, ainda há muito a ser oferecido a universidades
ainda mais pobres, principalmente na África.
Um apelo às universidades dos países pobres
Este é um apelo às universidades dos países mais pobres, principal-
mente os da África e de alguns países da América Latina. Não percam as
esperanças. Apesar das tremendas dificuldades a serem enfrentadas, ainda
existe a possibilidade de uma integração global em termos de conhecimento
e de vínculos entre universidades, compensando assim as insuficiências de
cada uma por meio da cooperação mútua.
Um apelo aos professores
Este é um apelo aos professores. Percebam que seus métodos de ensino
têm de incorporar as imensas possibilidades dos novos equipamentos que
permitirão ampliar enormemente o número de alunos atendidos, seja qual
for o país em que eles se encontrem. Por favor, aceitem o risco de ser profes-
sores num tempo em que o conhecimento muda a cada instante, exigindo
dedicação para acompanhar as mudanças contínuas. Aceitem com audácia
esse desafio, e sigam rumo à criação de novas maneiras de conhecer, por
mais efêmeras que sejam.
Um apelo aos jovens
Este é um apelo aos jovens de hoje. Por favor, assumam o papel que
sempre lhes coube ao longo de toda a história. Sejam rebeldes. Isso é de
importância fundamental, principalmente no mundo de hoje, no qual, em
termos globais e não importa em que país, vocês se converteram nos órfãos
do neoliberalismo. Vocês são a primeira geração a se deparar com um futuro
menos propício que o que seus pais tinham diante deles. Vocês são a primei-
ra geração para quem um diploma universitário não significa um passaporte
automático para o sucesso, e a primeira geração cujo diploma estará obsole-
to muito antes de a aposentadoria chegar.
Vocês são a primeira geração para quem o admirável mundo novo
viu-se transformado no admirável mundo atual, e a primeira geração a
não levantar as coloridas bandeiras da utopia. Vocês são também a pri-
meira geração em que os jovens parecem mais egoístas e conservadores
que seus pais. Na defesa dos interesses de uma geração, vocês têm o
64
direito à rebeldia. Exijam mudanças nas universidades em que estudam e
pratiquem a tradicional generosidade dos jovens. É seu dever rebelar-se,
lutando contra a barbárie entranhada no modelo da divisão socioeconô-
mica global. A reforma da universidade não ocorrerá sem a sua mobiliza-
ção rebelde.
São vocês os únicos capazes de se mobilizar pela revolução ou
pela reforma. Estamos celebrando os 35 anos de 1968, e fica em nossa
boca o gosto de algo inacabado. Esperamos que nossos filhos mais jo-
vens e nossos netos acabem por nos provar que os sonhos podem se
tornar realidade.
Um apelo aos governos
Este é um apelo aos governos, tanto dos países ricos quanto dos paí-
ses pobres. Entendam o quanto é urgente resgatar suas universidades pú-
blicas. Apesar de todas as dificuldades financeiras do momento atual, o
futuro não pode ser sacrificado, e o futuro de cada país depende direta-
mente de suas universidades. Por favor, não permitam que as universida-
des sejam transformadas em fábricas, nem que o conhecimento se conver-
ta em uma mercadoria, que é a prática proposta pelos tecnocratas de algu-
mas instituições internacionais. Aceitá-la significaria trair o que há de mais
nobre no projeto humano.
Um apelo à UNESCO
Este apelo é dirigido à UNESCO. Mantenham-se firmes na sua
luta pela cultura, pela ciência e pela educação e transformem este en-
contro num Fórum Permanente para a Defesa da Educação Superior.
Peço-lhes que defendam a universidade e façam com que ela mude,
adaptando-se a uma realidade na qual o conhecimento é volátil e o
ensino paira no ar, onde os diplomas perdem seu valor e a universidade
se coloca à distância. Apelo à UNESCO para que o ano de 2004 ou
2005 seja consagrado como o Ano Universal da Universidade, para que
tenhamos a ocasião de pensar como deveria ser a universidade do sécu-
lo XXI. Ainda em 2003, peço-lhes que patrocinem um dia em que to-
das as universidades do mundo interrompam suas atividades para refle-
tir sobre seu futuro. Que esse seja um dia para pensar em novos rumos
para a humanidade, um dia em que as universidades discutam maneiras
de voltar a ser a vanguarda do conhecimento, e de como auxiliar a
UNESCO a implantar a Década da Alfabetização. As universidades
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
65
poderiam dedicar um dia para pensar em maneiras de erradicar a fome,
de tornar o ensino fundamental acessível a todos, de construir a paz,
de devolver a seus alunos a garantia de um futuro exitoso e para pensar
em como conviver com os novos métodos virtuais de ensino, de escala
planetária. Enfim, pensar em como se tornar a universidade da espe-
rança, a universidade do século XXI.
67
SOCIEDADE, UNIVERSIDADE E ESTADO:
AUTONOMIA, DEPENDÊNCIA E COMPROMISSO SOCIAL
I.
Penso que é um equívoco colocar a relação entre universidade e socie-
dade como relação de exterioridade, isto é, tomar a universidade como uma
entidade independente que precisa encontrar mecanismos ou instrumentos
para relacionar-se com a sociedade. Ao contrário, a universidade é uma ins-
tituição social e como tal exprime, de maneira determinada, a estrutura e o
modo de funcionamento da sociedade como um todo. Tanto é assim que
vemos, no interior da instituição universitária, a presença de opiniões, atitu-
des e projetos conflitantes que exprimem divisões e contradições da socie-
dade como um todo. Essa relação interna ou expressiva entre universidade e
sociedade é o que explica, aliás, o fato de que, desde seu surgimento, a uni-
versidade pública sempre foi uma instituição social, isto é, uma ação social,
uma prática social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e
de suas atribuições, num princípio de diferenciação, que lhe confere autono-
mia perante outras instituições sociais, e estruturada por ordenamentos, re-
gras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos a ela. A
legitimidade da universidade moderna fundou-se na conquista da idéia de
autonomia do saber em face da religião e do Estado, portanto, na idéia de um
conhecimento guiado por sua própria lógica, por necessidades imanentes a
ele, tanto do ponto de vista de sua invenção ou descoberta como de sua
transmissão. Em outras palavras, sobretudo depois da Revolução Francesa,
a universidade concebe-se a si mesma como uma instituição republicana e,
portanto, pública e laica. A partir das revoluções sociais do século XX e com
as lutas sociais e políticas desencadeadas a partir delas, a educação e a
cultura passaram a ser concebidas como constitutivas da cidadania e, por-
Marilena Chauí
(*)
(*) Universidade de São Paulo
68
tanto, como direitos dos cidadãos, fazendo com que, além da vocação repu-
blicana, a universidade se tornasse também uma instituição social inseparável
da idéia de democracia e de democratização do saber: seja para realizar essa
idéia, seja para opor-se a ela, no correr do século XX, a instituição universi-
tária não pôde furtar-se à referência à democracia como idéia reguladora. Por
outro lado, a contradição entre o ideal democrático de igualdade e a realida-
de social da divisão e luta de classes, obrigou a universidade a tomar posição
diante do ideal socialista.
Vista como instituição social cujas mudanças acompanham as transfor-
mações sociais, econômicas e políticas, e como instituição social de cunho
republicano e democrático, a relação entre universidade e Estado também
não pode ser tomada como relação de exterioridade, pois o caráter republi-
cano e democrático da universidade é determinado pela presença ou ausên-
cia da prática republicana e democrática no Estado. Em outras palavras, a
universidade como instituição social diferenciada e autônoma só é possível
em um Estado republicano e democrático.
Postos os termos desta maneira, poderia supor-se que, em última ins-
tância, a universidade, mais do que determinada pela estrutura da socieda-
de e do Estado, seria, antes, um reflexo deles. Não é, porém, o caso. É
exatamente por ser uma instituição social diferenciada e definida por sua
autonomia intelectual que a universidade pode relacionar-se com o todo
da sociedade e com o Estado de maneira conflituosa, dividindo-se interna-
mente entre os que são favoráveis e os que são contrários à maneira como
a sociedade de classes e o Estado reforçam a divisão e a exclusão sociais,
impedem a concretização republicana da instituição universitária e suas
possibilidades democráticas.
Se essas observações tiverem alguma verdade, elas poderão nos ajudar a
enfrentar com mais clareza a mudança sofrida por nossa universidade pública
nos últimos anos, particularmente com a reforma do Estado, realizada no últi-
mo governo da república. De fato, essa reforma, ao definir os setores que com-
põem o Estado, designou um desses setores como Setor de Serviços não ex-
clusivos do Estado e nele colocou a educação, a saúde e a cultura. Essa loca-
lização da educação no setor de serviços não exclusivos do Estado significou:
1) que a educação deixou de ser concebida como um direito e passou a ser
considerada um serviço; 2) que a educação deixou de ser considerada um ser-
viço público e passou a ser considerada um serviço que pode ser privado ou
privatizado. Mas não só isso. A reforma do Estado definiu a universidade como
uma organização social e não como uma instituição social.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
69
Uma organização
1
difere de uma instituição por definir-se por uma prá-
tica social determinada por sua instrumentalidade: está referida ao conjunto
de meios (administrativos) particulares para obtenção de um objetivo parti-
cular. Não está referida a ações articuladas às idéias de reconhecimento ex-
terno e interno, de legitimidade interna e externa, mas a operações definidas
como estratégias balizadas pelas idéias de eficácia e de sucesso no emprego
de determinados meios para alcançar o objetivo particular que a define. Por
ser uma administração, é regida pelas idéias de gestão, planejamento, previ-
são, controle e êxito. Não lhe compete discutir ou questionar sua própria
existência, sua função, seu lugar no interior da luta de classes, pois isso, que
para a instituição social universitária é crucial, é, para a organização, um
dado de fato. Ela sabe (ou julga saber) por que, para que e onde existe.
A instituição social aspira à universalidade. A organização sabe que
sua eficácia e seu sucesso dependem de sua particularidade. Isso significa
que a instituição tem a sociedade como seu princípio e sua referência nor-
mativa e valorativa, enquanto a organização tem apenas a si mesma como
referência, num processo de competição com outras que fixaram os mes-
mos objetivos particulares. Em outras palavras, a instituição se percebe
inserida na divisão social e política e busca definir uma universalidade (ou
imaginária ou desejável) que lhe permita responder às contradições impos-
tas pela divisão. Ao contrário, a organização pretende gerir seu espaço e
tempo particulares, aceitando como dado bruto sua inserção num dos pó-
los da divisão social, e seu alvo não é responder às contradições e sim
vencer a competição com seus supostos iguais.
Como foi possível passar da idéia da universidade como instituição so-
cial à sua definição como organização prestadora de serviços?
A forma atual do capitalismo se caracteriza pela fragmentação de todas
as esferas da vida social, partindo da fragmentação da produção, da disper-
são espacial e temporal do trabalho, da destruição dos referenciais que
balizavam a identidade de classe e as formas da luta de classes. A sociedade
aparece como uma rede móvel, instável, efêmera de organizações particulares
definidas por estratégias particulares e programas particulares, competindo
entre si. Sociedade e Natureza são reabsorvidas uma na outra e uma pela
outra porque ambas deixaram de ser um princípio interno de estruturação e
1
A distinção entre instituição social e organização social é de inspiração francfurtiana, e é feita por
Michel Freitag em Le naufrage de l’université, Paris, Editions de la Découverte, 1996.
70
diferenciação das ações naturais e humanas para se tornarem, abstratamen-
te, “meio ambiente”; e “meio ambiente” instável, fluido, permeado por um
espaço e um tempo virtuais que nos afastam de qualquer densidade material;
“meio ambiente” perigoso, ameaçador e ameaçado, que deve ser gerido, pro-
gramado, planejado e controlado por estratégias de intervenção tecnológica
e jogos de poder. Por isso mesmo, a permanência de uma organização depen-
de muito pouco de sua estrutura interna e muito mais de sua capacidade de
adaptar-se celeremente a mudanças rápidas da superfície do “meio ambien-
te”. Donde o interesse pela idéia de flexibilidade, que indica a capacidade
adaptativa a mudanças contínuas e inesperadas. A organização pertence à
ordem biológica da plasticidade do comportamento adaptativo.
No Brasil, a universidade pública laica foi uma instituição social nasci-
da com quatro finalidades: 1) a formação de quadros para a administração
pública; 2) o desenvolvimento da pesquisa em ciências e humanidades; 3) a
qualificação de profissionais liberais; e 4) a transmissão do saber com a for-
mação de professores para o ensino do segundo grau e para o ensino superi-
or. O critério da admissão e da promoção dos estudantes era o mérito inte-
lectual, assim como o mérito era o critério para a carreira universitária. Sen-
do expressão da sociedade brasileira, a universidade, embora pública e laica,
não era democrática, mas reproduzia privilégios e a hierarquia social. No
entanto, era atravessada por uma contradição entre privilégio e mérito e essa
contradição dava-lhe brechas democráticas. Essa situação muda a partir da
ditadura de 1964, com a qual se preparou a futura passagem da universidade
da condição de instituição à de organização. Numa primeira etapa, tornou-
se universidade funcional (correspondente ao “milagre econômico”, produzido
pela ditadura dos anos 70); na segunda, universidade de resultados (correspon-
dente ao processo conservador de abertura política dos anos 80); e na tercei-
ra, a atual, universidade operacional
2
(correspondente ao neoliberalismo dos
anos 90 e início do século XXI)). Em outras palavras, a passagem da univer-
sidade de instituição a organização correspondeu às várias reformas do ensi-
no superior destinadas a adequar a universidade ao mercado.
A universidade funcional, dos anos 70, foi o prêmio de consolação que a
ditadura ofereceu à sua base de sustentação político-ideológica, isto é, à
classe média despojada de poder. A ela, foram prometidos prestígio e ascen-
são social por meio do diploma universitário. Donde a massificação operada,
a abertura indiscriminada de cursos superiores, o vínculo entre universida-
2
Essa expressão é de Michel Freitag em Le naufrage de l’université, Paris, Editions de la Découverte, 1996.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
71
des federais e oligarquias regionais e a subordinação do MEC ao Ministério
do Planejamento. Essa universidade foi aquela voltada para a formação rá-
pida de profissionais requisitados como mão-de-obra altamente qualificada
para o mercado de trabalho. Adaptando-se às exigências do mercado, a uni-
versidade alterou seus currículos, programas e atividades para garantir a in-
serção profissional dos estudantes no mercado de trabalho.
A universidade de resultados, dos anos 80, foi aquela gestada pela etapa
anterior, mas trazendo duas novidades. Em primeiro lugar, a expansão para
o ensino superior da presença crescente das escolas privadas, encarregadas
de continuar alimentando o sonho social da classe média; em segundo lugar,
a introdução da idéia de parceria entre a universidade pública e as empresas
privadas. Este segundo aspecto foi decisivo, na medida em que as empresas
não só deveriam assegurar o emprego futuro aos profissionais universitários
e estágios remunerados aos estudantes, como, ainda, financiar pesquisas di-
retamente ligadas a seus interesses. Eram os empregos e a utilidade imediata
das pesquisas que garantiam à universidade sua apresentação pública como
portadora de resultados.
A universidade operacional, dos anos 90, difere das formas anteriores. De
fato, enquanto a universidade clássica estava voltada para o conhecimento,
a universidade funcional estava voltada diretamente para o mercado de tra-
balho, e a universidade de resultados estava voltada para as empresas, a
universidade operacional, por ser uma organização, está voltada para si mes-
ma como estrutura de gestão e de arbitragem de contratos. Em outras pala-
vras, a universidade está virada para dentro de si mesma, mas, isso não signi-
fica um retorno a si e sim, antes, uma perda de si mesma.
Regida por contratos de gestão, avaliada por índices de produtividade,
calculada para ser flexível, a universidade operacional está estruturada por
estratégias e programas de eficácia organizacional e, portanto, pela particu-
laridade e instabilidade dos meios e dos objetivos. Definida e estruturada
por normas e padrões inteiramente alheios ao conhecimento e à formação
intelectual, está pulverizada em microorganizações que ocupam seus docen-
tes e curvam seus estudantes a exigências exteriores ao trabalho intelectual.
A heteronomia da universidade autônoma é visível a olho nu: o aumento
insano de horas-aula, a diminuição do tempo para mestrados e doutorados, a
avaliação pela quantidade de publicações, colóquios e congressos, a multi-
plicação de comissões e relatórios, etc.
Nela, a docência é entendida como transmissão rápida de conhecimen-
tos, consignados em manuais de fácil leitura para os estudantes, de preferên-
72
cia ricos em ilustrações e com duplicata em CDs. O recrutamento de profes-
sores é feito sem levar em consideração se dominam ou não o campo de
conhecimentos de sua disciplina e as relações entre ela e outras afins - o
professor é contratado ou por ser um pesquisador promissor que se dedica a
algo muito especializado, ou porque, não tendo vocação para a pesquisa,
aceita ser escorchado e arrochado por contratos de trabalho temporários e
precários, ou melhor, “flexíveis”. A docência é pensada como habilitação
rápida para graduados, que precisam entrar rapidamente num mercado de
trabalho do qual serão expulsos em poucos anos, pois se tornam, em pouco
tempo, jovens obsoletos e descartáveis; ou como correia de transmissão en-
tre pesquisadores e treino para novos pesquisadores. Transmissão e adestra-
mento. Desapareceu, portanto, a marca essencial da docência: a formação.
Por sua vez, a pesquisa segue o padrão organizacional. Numa organi-
zação, uma “pesquisa” é uma estratégia de intervenção e de controle de
meios ou instrumentos para a consecução de um objetivo delimitado. Em
outras palavras, uma “pesquisa” é um survey de problemas, dificuldades e
obstáculos para a realização do objetivo, e um cálculo de meios para solu-
ções parciais e locais para problemas e obstáculos locais. O survey recorta a
realidade de maneira a focalizar apenas o aspecto sobre o qual está desti-
nada a intervenção imediata e eficaz. Em outras palavras, o survey opera
por fragmentação. Numa organização, portanto, pesquisa não é conheci-
mento de alguma coisa, mas posse de instrumentos para intervir e contro-
lar alguma coisa. Por isso mesmo, numa organização, não há tempo para a
reflexão, a crítica, o exame de conhecimentos instituídos, sua mudança ou
sua superação. Numa organização, a atividade cognitiva não tem como
nem por que realizar-se. Em contrapartida, no jogo estratégico da compe-
tição no mercado, a organização se mantém e se firma se for capaz de
propor áreas de problemas, dificuldades, obstáculos sempre novos, o que é
feito pela fragmentação de antigos problemas em novíssimos
microproblemas, sobre os quais o controle parece ser cada vez maior. A
fragmentação, condição de sobrevida da organização, torna-se real e pro-
põe a especialização como estratégia principal e entende por “pesquisa” a
delimitação estratégica de um campo de intervenção e controle. É eviden-
te que a avaliação desse trabalho só pode ser feita em termos compreensí-
veis para uma organização, isto é, em termos de custo-benefício, pautada
pela idéia de produtividade, que avalia em quanto tempo, com que custo e
quanto foi produzido. Reduzida a uma organização, a universidade aban-
dona a formação e a pesquisa para lançar-se na fragmentação competitiva.
Mas por que ela o faz? Porque está privatizada e a maior parte de suas
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
73
pesquisas é determinada pelas exigências de mercado impostas pelos
financiadores. Isso significa que a universidade pública produz um conheci-
mento destinado à apropriação privada. Essa apropriação, aliás, é inseparável
da mudança profunda sofrida pelas ciências em sua relação com a prática.
De fato, até os anos 1940, a ciência era uma investigação teórica com
aplicações práticas. Sabemos, porém, que as mudanças no modo de produ-
ção capitalista e na tecnologia transformaram duplamente a ciência: em pri-
meiro lugar, ela deixou de ser a investigação de uma realidade externa ao
investigador para se tornar a construção da própria realidade do objeto cien-
tífico por meio de experimentos e de constructos lógico-matemáticos – como
escreveu um filósofo, a ciência tornou-se manipulação de objetos construídos
por ela mesma; em segundo lugar e, como conseqüência, ela se tornou uma
força produtiva e, como tal, inserida na lógica do modo de produção capita-
lista. A ciência deixou de ser teoria com aplicação prática e tornou-se um
componente do próprio capital. Donde as novas formas de financiamento
das pesquisas, a submissão delas às exigências do próprio capital e a trans-
formação da universidade numa organização ou numa entidade operacional.
II.
Se desejarmos reverter esse quadro, será preciso, antes de tudo, que o
Estado não tome a educação pelo prisma do gasto público e sim como inves-
timento social e político, o que só é possível se a educação for considerada
um direito e não um privilégio nem um serviço. A relação democrática entre
Estado e universidade autônoma depende do modo como consideramos o
núcleo da república. Este núcleo é o fundo público ou a riqueza pública e a
democratização do fundo público significa investi-lo não para assegurar a
acumulação e a reprodução do capital – que é o que faz o neoliberalismo
com o chamado “Estado mínimo” – e sim para assegurar a concreticidade
dos direitos sociais, entre os quais se encontra a educação. É pela destinação
do fundo público aos direitos sociais que se mede a democratização do Esta-
do e, com ela, a democratização da universidade.
A reversão também depende de que levemos a sério a idéia de formação.
O que significa exatamente formação? Antes de tudo, como a própria pala-
vra indica, uma relação com o tempo: é introduzir alguém ao passado de sua
cultura (no sentido antropológico do termo, isto é, como ordem simbólica ou
de relação com o ausente), é despertar alguém para as questões que esse passa-
do engendra para o presente, e é estimular a passagem do instituído ao instituinte.
74
O que Merleau-Ponty diz sobre a obra de arte nos ajuda aqui: a obra de arte
recolhe o passado imemorial contido na percepção, interroga a percepção pre-
sente e busca, com o símbolo, ultrapassar a situação dada, oferecendo-lhe um
sentido novo que não poderia vir à existência sem a obra. Da mesma maneira,
a obra de pensamento só é fecunda quando pensa e diz o que sem ela não
poderia ser pensado nem dito, e sobretudo quando, por seu próprio excesso,
nos dá a pensar e a dizer, criando em seu próprio interior a posteridade que irá
superá-la. Ao instituirem o novo sobre o que estava sedimentado na cultura,
as obras de arte e de pensamento reabrem o tempo e formam o futuro. Pode-
mos dizer que há formação quando há obra de pensamento e que há obra de
pensamento quando o presente é apreendido como aquilo que exige de nós o
trabalho da interrogação, da reflexão e da crítica, de tal maneira que nos torna-
mos capazes de elevar ao plano do conceito o que foi experimentado como
questão, pergunta, problema, dificuldade.
Pensando a reforma da universidade sob o prisma da formação, creio
que a mudança da universidade depende:
1) da definição da autonomia universitária não pelo critério dos contra-
tos de gestão, mas pelo direito e pelo poder de definir suas normas
de formação, docência e pesquisa – a autonomia precisa ser entendi-
da em três sentidos principais: a) como autonomia institucional ou
de política acadêmicas; b) como autonomia intelectual; e c) como
autonomia financeira;
2) do abandono da massificação com o abandono das grades curriculares
atuais e do sistema de créditos, uma vez que ambos produziram a
escolarização da universidade, reduzida à condição de um ensino
substitutivo do ensino colegial, com a multiplicação de hora-aula,
retirando do estudante as condições para leitura e pesquisa, isto é,
para sua verdadeira formação e reflexão, além de provocarem a frag-
mentação e dispersão dos cursos, e estimular a superficialidade. As-
segurar simultaneamente a universalidade dos conhecimentos (pro-
gramas cujas disciplinas tenham nacionalmente o mesmo conteúdo
no que se refere aos clássicos de cada uma delas) e a especificidade
regional (programas cujas disciplinas reflitam os trabalhos dos do-
centes-pesquisadores sobre questões específicas de suas regiões).
Programas nacionais de Iniciação à Pesquisa para estudantes de gra-
duação. Condições de trabalho: bibliotecas dignas do nome, labora-
tórios equipados, informatização, bolsas para estudantes de gradua-
ção, alojamentos estudantis, alimentação e saúde. Convênios de in-
tercâmbio de estudantes entre as várias universidades;
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
75
3) do abandono da massificação com a limitação das classes de gradu-
ação a, no máximo, 30 estudantes por professor, o que implica: a)
abertura de vagas e de concursos públicos para o quadro docente; e
b) aumento do número de cursos;
4) do abandono do atual sistema de admissão por vestibulares com tes-
tes de múltipla escolha e feito por empresas privadas;
5) da revalorização da docência, que foi desprestigiada e negligenciada
com a “avaliação da produtividade”. Essa revalorização implica: a)
formar verdadeiramente professores, de um lado, assegurando que
conheçam os clássicos de sua área e os principais problemas nelas
discutidos ao longo de sua história e, de outro lado, levando em con-
sideração o impacto das mudanças filosóficas, científicas e
tecnológicas sobre sua disciplina e sobre a formação de seus docen-
tes; b) oferecer condições de trabalho compatíveis com a formação
universitária, portanto, infra-estrutura de trabalho (bibliotecas e la-
boratórios realmente equipados); c) concursos públicos constantes;
e d) condições salariais dignas que permitam ao professor realizar
permanentemente seu processo de formação e de atualização dos
conhecimentos e das técnicas pedagógicas;
6) da revalorização da pesquisa, estabelecendo não só as condições mate-
riais de sua realização, mas, sobretudo, criando novos procedimen-
tos de avaliação que sejam regidos pela noção de produtividade e
sim de qualidade e de relevância social e cultural. Essa qualidade e
essa relevância dependem do conhecimento, por parte dos pesquisa-
dores, das mudanças filosóficas, científicas e tecnológicas e seus
impactos sobre as pesquisas. Quanto à relevância social, cabe inda-
gar se o Estado teria condições de fazer um levantamento das neces-
sidades do país no plano do conhecimento e das técnicas e estimular
trabalhos universitários nessa direção, assegurando, por meio de con-
sulta às comunidades acadêmicas regionais, que haja diversificação
dos campos de pesquisa segundo as capacidades regionais e as ne-
cessidades regionais. As parcerias com os movimentos sociais nacio-
nais e regionais poderiam ser de grande valia para que a sociedade
oriente os caminhos da instituição universitária, ao mesmo tempo
em que esta poderá oferecer os elementos reflexivos e críticos para
esses movimentos;
7) de articular o ensino superior e os outros níveis de ensino público:
sem uma reforma radical do ensino fundamental e do ensino médio públicos,
será inútil tentar reformar a universidade. e esta deve-se comprometer com a
reforma do ensino fundamental e do ensino médio públicos. Somente a refor-
76
ma da escola pública de ensino fundamental e médio pode assegurar
a qualidade e a democratização da universidade pública. A universi-
dade pública deixará de ser um bolsão de exclusões sociais e cultu-
rais quando o acesso a ela estiver assegurado pela qualidade e pelo
nível dos outros graus do ensino público;
8) de assegurar, no curto prazo, a entrada e permanência de estudantes
vindos da classe trabalhadora por meio de um sistema nacional de
bolsas de estudo. Estudar a questão das cotas étnicas;
9) de tomar extremo cuidado e agir com extrema cautela acerca de
uma nova idéia que está sendo muito difundida, qual seja, a de
“sociedade do conhecimento”, identificada com os meios eletrôni-
cos de informação e comunicação ou com a informatização. De
fato, esses meios podem ter grande importância na formulação de
práticas pedagógicas novas e inovadoras e no acesso às informa-
ções, mas seu papel se limita ao momento da difusão dos saberes e
conhecimentos e não ao momento da invenção, da criação e da
interrogação, que definem o processo de formação propriamente
dito. Não podemos confundir a velocidade da difusão e a necessá-
ria paciência da formação.
77
A UNIVERSIDADE, MUDANÇA E IMPASSES
Cândido Mendes
(*)
O começo do governo Lula tem sido marcado pela recarga de debates,
congressos e troca de opiniões, concernentes ao projeto de futuro do Brasil,
ligado às grandes vertentes estratégicas em que a educação cobra o seu qui-
nhão decisivo. O ministro Cristovam Buarque quer-se deliberadamente
instigante, senão até provocador, no que considera como o recurso contra o
pior risco na tarefa do Estado e das políticas públicas, neste front onde o
essencial é manter-se a luta sem quartel contra a obsolescência. E não é
maior o seu repto, num país ainda a viver as tensões do subdesenvolvimento.
O nível de aceleração histórica em que vivemos evidencia uma multiplicida-
de de tempos para superar atrasos e ao mesmo tempo saltos ao futuro. Expe-
rimentamos o empuxe tecnológico e o arcaísmo que resiste à mesma inquie-
tação de Darcy Ribeiro e Paulo Freire.
O impasse que enfrentamos nessa entrada de milênio é de conviver
com vários anacronismos onde, muitas vezes, a busca da melhor produtivi-
dade na organização do desenvolvimento, não implica as absorções de
tecnologia, pedidas pelo nível ótimo da nossa absorção de emprego, ou de
atendimento ao mercado, compatível com o consumo generalizado e demo-
crático da coletividade. Custa-se a vencer a tentação do progressismo
basbaque, onde o atendimento das necessidades transplantadas do mundo
da opulência, mascaradas pelo brutal nível de concentração de renda de nos-
so país, agora aberto para a mudança, nada tem de comum com a verdadeira
aspiração nacional. Nem pode, este grupo escassíssimo e deslumbrado de
uma primeira e nova riqueza, se identificar à verdadeira formação de uma
elite brasileira. Aliás, o problema em si mesmo, da socialização da idéia de
mudança, discutiria de até onde os padrões de excelência, de uma sociedade
que sempre usufruiu a mobilidade social, e levou os melhores ao seu topo, se
(*) Presidente do Senior Board do Conselho Internacional de Ciências Sociais – UNESCO, Membro da
Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz.
78
pode comparar com a casta dos que, de saída, tiveram demais para se con-
formar a uma hegemonia de prosélitos, fixados sobre o último modismo do
aparentar-se cultura e fruir-se prestígio.
Cristovam cobra-nos para superar esta universidade que já nasceu tar-
dia e velha. Sobretudo quando, a partir da vitória de Lula, ganhamos um
novo imaginário da repartição das oportunidades de futuro, e democratiza-
mos a esperança de se o lograr. Mas aí estão, logo, os três paradoxos que se
exigir o nosso campus para todos, e dentro da autenticidade de suas deman-
das, se transforma em premissa da visão renovada e provocadora do que
deve ser o nosso terceiro grau. Nota-se, em primeiro lugar, a rendição da
prática unanimidade do padrão das universidades brasileiras à monotonia
do estatuto burocrático. Desaparece a idéia do modelo como fertilizante
da diferença e não se trata de que o Conselho Nacional de Educação torça
o nariz à diferença. Enquanto ficamos prisioneiros, inconscientemente, do
velho padrão autoritário, já morre no ovo o lance ou intuito até de discre-
par frente à muralha do aparelho burocrático. Entorpece-se todo o clamor
da Carta, de que a educação privada deve se caracterizar e ser amparada
pela criatividade de idéias e propostas, bem como pelo pluralismo de mo-
delos no aprendizado do conhecimento.
Como responderá o Conselho ao choque do novo, que chegue à apre-
ciação do verdadeiro tribunal de futuro, em que se baliza a melhor proje-
ção da identidade brasileira e a passagem de seu anel de confiança entre
as gerações?
Continuaremos presos aos currículos mínimos, transformados em cur-
rículos máximos, ou dos padrões de excelência transferidos a critérios de
alocação de títulos de professores, ou aos tempos da formação universitária?
Para ficar-se no básico destes anacronismos que revolvem o solo aca-
dêmico do país, exposto ao arcaico e à irrupção das multinacionais, a primei-
ra das neoagendas diz respeito ao que oferece o panorama das universidades
brasileiras à chegada do capital internacional, após a nova resolução liberatória
em que o ensino passou ao martelo da Organização Mundial do Comércio.
Aí está o desejo evidenciado pelas primeiras propostas, de espertíssimos in-
termediários, interessados em adquirir campus em desempenho precário, para
acertar-lhes a produtividade dentro dos melhores critérios dos shoppings centers
da cabeça. E a seguir, tudo nos trinques, revendê-los no mercado.
O debate sobre a viabilidade de se constituírem as universidades naci-
onais vai proceder à avalanche estrangeira se, de fato, o apetite desses capi-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
79
tais externos for estimulado pelo dinamismo com que alguns campus, no país,
já comportam os negócios de vulto buscados por este mercado emergente, e
que também já esporeia significativamente as condições de expansão do se-
tor? Ou conserva a educação superior no padrão em que é disciplinada na
Carta Magna – uma diferença, que se assegura desde tenra, na garantia do
pluralismo constante da oferta de ensino, e não apenas – como o faria um
mercado estrito – quando se construísse um. Estas operações do capital
externo vão ou não contrariar o processo de crescimento da universidade
brasileira, que deve manter a diversidade a cada momento em que se assegu-
ra a escala da sua concorrência com o padrão local do ensino superior?
Doutra parte – e terceiro paradoxo – verifica-se que a expansão do
campus no Brasil quebrou a tríade visceral de sua identidade, expressa no
conjunto ensino-pesquisa-extensao. Aos chamados “centros universitários”
conferiu-se a regalia da plenitude do ensino de terceiro grau que é a autono-
mia, que permite ao campus expandir-se à sua própria e exclusiva dinâmica.
Morre, por aí mesmo, o desenvolvimento da pesquisa no plano da edu-
cação privada, já que são pouquíssimas as casas universitárias que retirem
das próprias mensalidades as condições de realizar um programa avançado
de pesquisas. A saída do impasse, já, impõe a cooperação entre o MEC e o
Ministério de Ciência e Tecnologia, na abertura de suas destinações orça-
mentárias e, sobretudo, do apoio pelos 14 fundos setoriais, obtidos por con-
tribuições sobre as telecomunicações, as empresas de energia elétrica, da
saúde, e do grande complexo industrial do país. Mais ainda, o que se vê ainda
de tais dotações, é que, por lei, vão obrigatoriamente à universidade pública
e, na prática, afastam-se, por inteiro, da pesquisa no plano social e humano,
onde está o grosso da oferta das universidades e centros, na natural evolução
em que arrancaram das faculdades isoladas, e nelas da abundância dos cur-
sos de direito, administração, economia, contabilidade ou letras. Na exaspe-
ração destes paradoxos, e como seu remate, paga-se o preço da sina da polí-
tica de mudança no país pobre. Acabamos por desperdiçar os recursos escas-
sos e perdemos, de todo, o efeito multiplicador, necessário, de seus resulta-
dos. Darcy e Paulo Freire sabiam disto e Cristovam, agora, leva adiante o
vencer-se estes paradoxos.
81
SOCIEDADE, UNIVERSIDADE E ESTADO:
Eduardo Portella
(*)
Devo começar dizendo que considero muito significativo que o MEC, o
Senado Federal, a Câmara dos Deputados, a UNESCO, a comunidade acadê-
mica se reúnam agora para discutir o problema da universidade brasileira hoje.
Não será, nem precisa ser, uma reunião novidadeira. Conhecemos, acompa-
nhamos de há muito, a obra, o pensamento, dos que se encontram aqui, parti-
cipando desta mobilização pouco freqüente. As situações de diálogo se distin-
guem daquelas em que predomina a mão única, o autismo estrutural, porque
nas primeiras há sempre alguns que falam e outros que ouvem, e esses papéis
se revezam incessantemente. É quando locutores se transformam em
interlocutores. Estou certo de que esse encontro se destina não tanto a passar
a limpo os extravios, os desvios do percurso, porém a elaborar conjuntamente
um manual de ação, matizado, conseqüente, timbrado urgente, urgentíssimo.
I.
As dificuldades do nosso ensino vêm de longe, algumas se tornaram
inexplicavelmente crônicas. O grave é que, em vez de encontrar saídas sen-
satas, o impasse persiste e se agrava.
O processo educacional brasileiro registra nos nossos dias um volume
inusual de interferências de ruídos, de perturbações de todo tipo. Valores
materiais e pós-materiais, evidências e representações simbólicas colidem o
tempo todo. Tensões e riscos tornaram-se companheiros de viagem. De um
lado, cabe certamente interromper a lamúria, o vale de lágrimas, e do outro,
alargar o horizonte de expectativas, ampliar alianças, cobrar do Estado o seu
compromisso de mediador social. O programa educacional reflete o projeto
nacional de Estado, mesmo que esse Estado esteja na alça de mira da
governança global. A universidade não está imune a esse jogo perigoso. Nem
as quotas de desigualdade que se alastram.
AUTONOMIA, DEPENDÊNCIA E COMPROMISSO SOCIAL
(*) Universidade Federal do Rio de Janeiro.
82
As últimas estatísticas, inclusive as do IBGE, não nos tranqüilizam quanto
à democratização do ensino superior. Em nenhum momento, conseguimos
aperfeiçoar as formas de acesso, preferindo preservar o anacronismo do vesti-
bular. Mesmo com a explosão demográfica do ensino superior privado, é ainda
inquietante o tamanho da exclusão universitária. O valor atual das mensalida-
des só é acessível às classes sociais A e B. Jamais à C, menos ainda à D. O mais
próximo censo indica que não houve aumento no contingente de alunos de
segmentos sociais mais baixos. Não há sinais evidentes de que a universidade
se dedica a incluir e sustentar socialmente. Ou que eliminou ou reduziu a
distância inaceitável entre produção e distribuição de saber. Nem nos aperce-
bemos de que a formação é flexível, enquanto a profissionalização não costu-
ma ser. Também não quisemos reconhecer que a formação acompanha as
mudanças de cada dia, procura pensar as transformações, do mesmo modo em
que a profissionalização, submersa no desempenho performático e na política
de resultados, alimenta irresistível tendência ao imobilismo intelectual. A essa
altura se pode pedir prestações de contas dessas operações contábeis, e duvi-
dar da sua rentabilidade social e cultural.
II.
Já é hora de dar o basta da qualidade nessa corrida desenfreada, no siste-
ma de avaliação e reconhecimento dos cursos, nas diversas modalidades de
ensino, pesquisa, extensão. Na sociedade democrática, o compromisso quali-
tativo e a justiça social não podem deixar de andar juntos. A qualidade social-
mente encarnada é o dever ético da educação. Sem dúvida é dispendiosa: mas
não se pode viver sem ela. Tanto mais quando cresce a valorização dos servi-
ços e das profissões intelectuais e avança todo o agenciamento do capital sim-
bólico. Como negligenciar ou denegar o papel da qualidade?
O aconselhamento técnico, desde que qualificado, pode vir de onde quer
que seja, até mesmo do Banco Mundial. Mas a arbitragem, a escolha, a decisão,
somente deve vir do Estado nacional. É verdade que cada vez mais pós-nacio-
nal. Este Estado nem sempre parece consciente dessa prerrogativa. E chega a
ser comum ouvir-se, por parte de eventuais gestores públicos, que a universida-
de está na UTI. O Estado que abandona a universidade é o mesmo que dirige a
ela cobranças desproporcionais. O mesmo que deixa de lado o pressuposto de
que a qualificação do ensino aconselha naturalmente a qualificação dos atores
envolvidos, e deixa de investir nesse pré-requisito. No pólo oposto, vale priorizar
a uma só vez o professor, o gestor, o estudante, o funcionário.
A universidade se move conforme o balanço da sociedade e da história.
Inexiste universidade preexistente, dada de antemão. Ainda mais agora que
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
83
ela se vê confrontada com a legenda sociedade do conhecimento. A pergunta que
prospera, insiste: qual conhecimento para qual sociedade, e vice-versa?
A universidade de qualidade constitui a garantia de que a sociedade do
conhecimento não seja apenas a sociedade da informação ou, em tantos
casos, da desinformação, ou da contra-informação.
III.
Vivemos a terceira universidade, cercada de precipícios por todos os
lados: saberes contestados, professores desvalorizados, alunos
desestimulados, funcionários desmotivados.
A primeira universidade moderna foi a da consciência e a consciência
se isolou até a claustrofobia; a segunda, a do trabalho, empurrada por uma
fantasiosa saída laboral. A terceira parece ser a universidade cidadã, dividi-
da, e até cindida, entre a formação, a profissionalização, o treinamento. Nes-
sa escala temerária, a qualidade e a pesquisa têm sofrido sérios abalos.
A universidade cidadã é produtora de um conhecimento para. Para a
construção social partilhada e emancipada.
O cidadão inclui o profissional, e o ultrapassa. Por sua vez, ele é dotado
de uma consciência comunicativa.
A cidadania independentiza. Inexiste cidadania dependente. Pode exis-
tir, e houve, pensamento dependente, até sobre a própria dependência. No
caso, por falta de vigor reflexivo. O pensamento independente está assistido
por excepcional capacidade de adaptação a situações inesperadas.
Se me fosse lícito arriscar uma paródia de Edgar Morin, poderia dizer:
se até aqui ensinamos certezas, estamos atrasados no ensino das incertezas.
E a incerteza é o que há de mais certo nestes tempos de cólera.
IV.
O trabalho educacional registra déficits culturais bastante acentuados.
Falta cultura à educação. Não fomos capazes de criar indicadores qualitati-
vos. São mais complexos, sem dúvida, porém não menos necessários. A exi-
gência da cultura geral parece esquecida. Tampouco nos dedicamos a pensar
as emergências culturais. Jamais necessitamos tanto de uma universidade
argumentativa. Porque nunca na história recente estivemos tão carentes da-
quelas taxas imprescindíveis de criticidade. E não se diga que a inflexão
generalista anula o corte vertical. Ela pode e deve acentuar a reflexividade,
traço identificador da universidade crítica.
84
V.
Nesta hora o saber terá de deslocar-se do seu gueto monodisciplinar,
para um regime de intercâmbios disciplinares altamente produtivo. Já não a
unidade compacta de um saber hegemônico, e não raro imperial, porém as
parcerias e cooperações inusitadas. Para fazer face às dificuldades e à com-
plexidade crescentes, para dar nova vida ao cansaço e ao abandono teóricos.
Sobretudo nesses domínios que apontam para a pesquisa regular, a recupera-
ção da universidade pública, ultimamente tão debilitada, se torna inadiável.
VI.
Chegamos assim às duas questões centrais, que encaminham o tema
maior deste “Seminário – Universidade: por que e como reformar?”
Por que reformar?
Se existe impasse ou retrocesso, desestímulo e exaustão, a necessidade
de reformar se torna urgente. Para que a universidade volte a ser protagonis-
ta da nossa cena pública e força motriz da construção nacional.
Para isso devemos dar corpo e alma ao art. 207 da Constituição, que prevê
a autonomia programática, funcional, financeira, no encalço de novas avenidas.
Como conseqüência da autonomia, a possibilidade de captação de re-
cursos, que se juntaria ao orçamento da União: sob as formas de criação de
fundos ágeis, alianças em áreas afins, sobretudo enraizando socialmente a
universidade, cooperação internacional rebobinada, prestação de serviços
de ponta, parcerias diversas, públicas e privadas, nacionais e estrangeiras,
sempre dentro de rigorosos critérios intelectuais, éticos, sociais.
A universidade cidadã, propositiva, estará em condições de elaborar
projetos que apontem para a transformação do ensino superior no Brasil, de
interagir com a sociedade e com as políticas públicas em andamento.
Como reformar?
Por dentro e por fora. Por dentro, reprogramando e revigorando o saber.
Por fora, para a democracia e a justiça social. Só que o dentro e o fora assina-
ram um pacto indissolúvel.
85
O CONHECIMENTO, AS UNIVERSIDADES E SEUS DESAFIOS
Carlos Vogt
(*)
I.
Um dos grandes desafios do mundo contemporâneo é, ao lado do chama-
do desenvolvimento sustentável, o da transformação do conhecimento em
riqueza. Como estabelecer padrões de produção e de consumo que atendam às
demandas das populações crescentes em todos os cantos da terra, preservan-
do a qualidade de vida e o equilíbrio do meio ambiente no planeta? Esta é, em
resumo, a pergunta que nos põe o assim chamado desafio ecológico.
Como transformar conhecimento em valor econômico e social ou, num
dos jargões comuns ao nosso tempo, como agregar valor ao conhecimento?
Responder a esta pergunta é aceitar o segundo desafio acima mencionado e
que poderíamos chamar de desafio tecnológico.
Para enfrentar este desafio, próprio do que também se convencionou
chamar economia do conhecimento ou sociedade do conhecimento, deverí-
amos estar preparados, entre outras coisas, para cumprir todo o ciclo de
evoluções e de transformações do conhecimento que vai da pesquisa básica,
produzida nas universidades e nas instituições afins, passa pela pesquisa
aplicada e resulta em inovação tecnológica capaz de agregar valor comercial,
isto é, em produto de mercado.
Os atores principais deste momento do processo do conhecimento já não são mais as
universidades, mas as empresas.
Entretanto, para que a atuação das empresas seja eficaz, é necessário
que tenham no seu interior, como parte de sua política de desenvolvimento,
centros de pesquisa próprios ou consorciados com outras empresas e com
laboratórios de universidades.
(*) Poeta e lingüista, presidente da Fapesp, coordenador do Laboratório de Estudos Avançados em
Jornalismo da Unicamp e vice-presidente da SBPC.
86
O importante é que a política de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D)
seja da empresa e vise às finalidades comercialmente competitivas da em-
presa, sem o que não há o desafio do mercado, não há avanço tecnológico e
não há, por fim, inovação no produto.
Um dos pressupostos essenciais da chamada sociedade ou economia
do conhecimento é, pois, para muito além da capacidade de produção e de
reprodução industriais, a capacidade de gerar conhecimento tecnológico e,
por meio dele, inovar constantemente para um mercado ávido de novidades
e nervoso nas exigências de consumo.
Diz-se que, à diferença da economia tipicamente industrial, cuja lógica
de produção era multiplicar o mesmo produto, massificando-o para um nu-
mero cada vez maior de consumidores, na sociedade do conhecimento essa
lógica de produção tem o sinal invertido: multiplicar cada vez mais o produ-
to, num processo de constante diferenciação, para o mesmo segmento e o
mesmo número de consumidores. Daí, entre outras coisas, a importância
para esse mercado, da pesquisa e da inovação tecnológicas.
A ser verdade essa troca de sinais, a lógica de produção do mundo
contemporâneo seria não só inversa, mas também perversa, já que resulta-
ria num processo sistemático de exclusão social, tanto pelo lado da partici-
pação na riqueza produzida, dada a sua concentração – inevitável para uns e
insuportável para muitos –, quanto pelo lado do acesso aos bens, serviços e
facilidades por ela gerados, isto é, o acesso ao consumo dos produtos do
conhecimento tecnológico e inovador.
Desse modo, aos desafios enunciados logo no início, é preciso acres-
centar um outro, tão urgente de necessidade quanto os outros dois: o de
que, no afã do utilitarismo prático de tudo converter em valor econômico,
tal qual um rei Midas que, na lenda, tudo transformava em ouro pelo sim-
ples toque, não percamos de vista os fundamentos éticos, estéticos e soci-
ais sobre os quais se assenta a própria possibilidade do conhecimento e de
seus avanços.
Verdade, Beleza e Bondade, no mínimo, dão ao homem, como já se
escreveu, a ilusão de que, por elas, ele escapa da própria escravidão humana.
Dividir a riqueza, fruto do conhecimento, e socializar o acesso aos
seus benefícios, frutos da tecnologia e da inovação é, pois, o terceiro gran-
de desafio que devemos enfrentar. Quem sabe, possa ele constituir a uto-
pia in-dispensável ao tecido do sonho de solidariedade das sociedades con-
temporâneas.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
87
II.
Na década de 1930 abre-se, na história do Brasil, um ciclo de estudos
voltado para a nossa formação, incluindo aí aqueles traços próprios da for-
mação cultural portuguesa e que permanecem essenciais para a interpreta-
ção da formação da cultura brasileira.
São inúmeras as obras que incluem em seu próprio título o termo forma-
ção e todas elas, até hoje, de leitura indispensável para o estudo e o entendi-
mento da história e da sociedade brasileiras. Em ordem cronológica: Casa
Grande & Senzala: Formação da Família Patriarcal Brasileira (1933), de Gilberto
Freyre; Formação do Brasil Contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr.; Formação
Histórica de São Paulo (De Comunidade a Metrópole) (1954), de Richard Morse;
Formação da Literatura Brasileira (1957), de Antonio Cândido; Formação Econô-
mica do Brasil (1958), de Celso Furtado; Os Donos do Poder: Formação do Patri-
arcado Nacional (1959), de Raimundo Faoro; Formação Histórica do Brasil (1962),
de Nelson Wernek Sodré; A Formação do Federalismo no Brasil (1961), de Oli-
veira Torres; Formação Política do Brasil (1967), de Paula Beiguelman.
Sob diferentes pontos de vista, este esforço intelectual de “ajuste de
contas” com o passado, em muitos casos, resultou positivo e, em tantos
outros, foi atropelado pela dinâmica das transformações mundiais que,
gestadas na e pela Segunda Grande Guerra, tiveram seu florescimento retar-
dado pelo longo período da Guerra Fria, mas que acabaram irrompendo como
um cataclismo de mudanças, cujo marco emblemático é a queda do muro de
Berlim, no final dos anos oitenta.
A nova ordem da economia mundial, sob a égide neoliberal da
globalização, impõe aos países a abertura total de fronteiras para o livre trân-
sito das unidades de capital.
No Brasil, a partir dos anos 90, os ventos das mudanças escancaram de
fora as portas e janelas que se queriam trancadas para dentro: a abertura da
economia às importações, a estabilização da moeda, com a criação do Real,
para poder concorrer ao fluxo de investimentos internacionais, o estímulo à
entrada de investimentos, voltados para o mercado mundial, abrem definiti-
vamente o país para as condições de plataforma de produção dentro do ce-
nário globalizado das relações do capital.
O esforço passa a ser, então, o de colocar-se à altura dos novos desafios
e ao mesmo tempo superar todo o legado de problemas sociais que se acu-
mularam ao longo de nossa história. Duros desafios, árdua tarefa.
88
Não só pela urgência – e dificuldades em grau correspondente – em mu-
dar as estruturas institucionais do país para adequá-las às necessidades impe-
riosas criadas pela nova ordem econômica, como também pelas enormes dife-
renças e contrastes que continuam a caracterizar a sociedade brasileira e pelo
alto custo social que a adequação do País a essa nova ordem re-quer.
De certo modo, o neoliberalismo instrumentaliza o conceito de democra-
cia que, nesse sentido, vê também reduzido o conceito de liberdade que lhe é
constitutivo: a liberdade é, antes de tudo, a liberdade de circulação financeira.
O mundo globalizado ‚ o mundo informado, da revolução tecnológica,
é um mundo difuso, porque difundido.
Na base de toda essa construção está a tecnologia, em particular, as
tecnologias da informação, o que reverte até mesmo o papel do conhecimen-
to no processo de produção. Ao binômio capital/trabalho substitui-se a tríade
capital/trabalho/conhecimento que, na verdade, destaca e enfatiza um novo
e particular conceito de conhecimento: o do conhecimento útil.
Converge-se, desse modo, para um mundo não só globalizado mas coa-
ja essência filosófica é a do pragmatismo, e o desafio dessa pragmática
mundializada é que a tornemos ética e social, sobretudo aqueles que,
humanistas, acreditamos na universalidade do homem e que temos de con-
viver com a globalidade da máquina e de seu protagonista mais espetacular,
o computador pessoal e suas ações de informatização no quadro geral das
tecnologias da informação.
O computador é a máquina universal que emula o homem. A universa-
lidade do homem impõe a oposição com o local, o regional e funda o próprio
conceito de nacionalidade e de diferenças culturais entre nações.
A universalidade da máquina funda a globalidade dos padrões culturais
e anula, ao menos para efeito dos fins que almeja, as diferenças nacionais,
criando a utopia asséptica da igualdade de oportunidades pela democratiza-
ção do acesso à informação.
O Brasil, desde a Abolição da Escravatura e da Proclamação da Repú-
blica, passou por diferentes representações no cenário das relações interna-
cionais: aspirou integrar o conceito das nações, foi país de terceiro mundo,
subdesenvolvido, país em desenvolvimento e, hoje, perfila-se entre os cha-
mados de economia emergente.
Para emergir efetivamente é preciso, além de resolver os graves proble-
mas sociais que permanecem e se agigantam, estrutural e conjuntural-men-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
89
te, no país, jogar à altura da competitividade que o xadrez das relações
globalizadas impõe.
Do ciclo das formações do Brasil compreendeu-se um país formado
com deformações sociais que é urgente sanar: elas têm cura e o remédio é
antes de tudo ético e político.
Do país informado pelas novas tecnologias espera-se a formação de
um Brasil quite definitivamente com seu passado monárquico e colonial,
pronto para os ajustes finos de suas estruturas institucionais e culturais, sin-
tonizadas de vez com o conhecimento, a educação, as artes, a ciência, a
tecnologia, a ética e a justiça social.
É para esse amplo fenômeno de mudanças que devemos atentar. Num
mundo de economia globalizada, de um pragmatismo financeiro a toda pro-
va, de um finalismo utilitarista sem precedentes, de uma violência urbana e
de uma urbanização da violência incomuns, cabe ainda a oposição, presente
em várias línguas e que remonta à antiguidade clássica, entre cidade (civitas,
polis) e campo (rus, silva) como topônimos analógicos de civilizado, polido
em oposição a rústico e inculto?
Podemos ainda acreditar, com Fernando de Azevedo (A Cultura Brasi-
leira, 6ª edição, 1996) que, seguindo a distinção de Hunboldt entre cultura e
civilização, vê na primeira uma espécie de vontade schopenhaueriana da
sociedade em preservar a sua existência e assegurar o seu progresso atenden-
do não apenas à satisfação das exigências de sua vida material mas, sobretu-
do e principalmente, as suas necessidades espirituais. Como escreve o autor,
“a cultura, [...] nesse sentido restrito, e em todas as suas manifestações, filo-
sóficas e científicas, artísticas e literárias, sendo um esforço de criação, de
crítica e de aperfeiçoamento, como de difusão e de realização de ideais e de
valores espirituais, constitui a função mais nobre e mais fecunda da socieda-
de, como a expressão mais alta e mais pura da civilização” (p. 34).
Em outras palavras, é possível pensarmos, de fato, em um novo
humanismo, já que tantos falam de um novo renascimento ligado às desco-
bertas da tecnologia e à economia globalizada, como o primeiro esteve liga-
do os descobrimentos geográficos, à internacionalização do comércio e aos
progressos orgânicos das ciências, das artes e das humanidades?
É possível, apesar dos estudos de Walter Benjamin, continuar a crer que a
aliança da cultura e da civilização, que os povos latinos batizaram de humanismo,
retomará o seu vigor explicativo e a força eficaz de seu poder positivo de trans-
formação, de desenvolvimento e de aperfeiçoamento da sociedade?
90
É possível continuar a conceber este equilíbrio harmonioso, caro aos
humanistas, entre os elementos da tradição nacional e os da tradição huma-
na, isto é, entre as culturas nacionais e a universalidade da cultura?
É possível, efetivamente, evitar um antagonismo de valores tal que
sobre os valores humanos e universais não se sobreponham valores particu-
lares e nacionais? E os nacionalismos, de esquerda e de direita? E as guerras
étnicas e religiosas que persistem em meio a mais fantástica transna-
cionalização da economia e dos padrões de comportamento social? E a vio-
lência gratuita e descontrolada das cidades, da ficção e da realidade, das
ruas, do cinema e da televisão?
Alison Wolf, professor de educação na Universidade de Londres, no
livro Does Education Matter? Myths about Education and Economic Growth (‘A
Educação Importa? Mitos sobre a Educação e o Crescimento Econômi-
co’), a propósito do sistema educacional britânico, chama a atenção para
o risco de se tratar a questão apenas do ponto de vista quantitativo e
dentro de uma lógica de causalidade simplista entre educação e cresci-
mento econômico.
Sem propósitos culturais, morais e intelectuais, a educação perde seu
caráter civilizatório e reduz-se a mero expediente de oportunidade, e mesmo
de oportunismo social na competição desenfreada pelas vagas do mercado.
Para diminuir esse aspecto utilitarista da cultura e da educação é preci-
so aumentar a oferta de trabalho, reduzindo as conseqüências perversa-men-
te sistemáticas das economias globalizadas no que diz respeito à distribuição
de renda e à justiça social.
Para países como o Brasil, ainda em passo de emergência, o proble-
ma se agrava, entre outras coisas, pelo baixo índice de produção
tecnológica e de inovação competitiva nos mercados internacionais, por
falta de agregação de conhecimento, de valor à maioria de nossos produ-
tos de exportação.
Desse modo, cumpre-nos, mais do que nunca, a todos os atores sociais
ligados à educação e à produção científica e tecnológica, governos, institui-
ções de ensino e de pesquisa, agências de fomento, a sociedade civil, como
um todo, trabalharmos pela universalização do acesso ao conhecimento, com
propostas eficazes para solucionar, em número e em qualidade, esta que é a
expressão mais grave da alta concentração da riqueza, de um lado, e da dis-
seminação globalizada da pobreza material e do desespero espiritual, de ou-
tro: a exclusão social.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
91
III.
Quanto ao sistema de ensino superior, no Brasil, este tem pela frente
desafios que não podem ser adiados sob pena de que ele venha a ser fragilizado
e perca conquistas importantes que ao longo dos anos foram sendo incorpo-
radas ao seu funcionamento.
O primeiro desses desafios diz respeito a urgente necessidade de se
ampliar o mercado de trabalho, tanto acadêmico, quanto empresarial, no
Brasil, para que possam ser absorvidos os mestres e doutores que, a cada
ano se formam em número cada vez maior pelas nossas universidades ou por
programas no exterior. No ano de 2000 foram 5.700 doutores e 17.000 mes-
tres. Em 2001, 6.000 doutores e 20.000 mestres. Dos 5.700 doutores forma-
dos em 2000, menos da metade tem vínculo de trabalho. Esses números
tendem a aumentar, tanto pelo lado dos que se formam quanto pelos que,
titulados, não encontram trabalho formal em universidades ou em centros
de pesquisa acadêmicos ou empresariais.
A apreensão entre os que estudam fora do país é também crescente
pois não vêem, com a perspectiva da volta, possibilidade de encontro de
trabalho nas áreas de sua formação e de sua competência.
O assunto é, pois, urgente e é com urgência que é preciso motivar o
nosso mercado empresarial para o problema: sem pesquisadores nas empre-
sas não há inovação tecnológica, nem inovação de produtos e, em conseqü-
ência, não há competitividade e o país fica a ver navios, não os que ex-
portam o que produzimos, mas os que chegam para trazer o que importamos.
Enquanto, é claro, pudermos pagar.
O segundo desafio, que se liga ao desafio anterior, pelo menos no que
diz respeito à expansão do mercado acadêmico, é a da qualidade do ensino
oferecido pelo sistema privado de universidades no Brasil.
Como se sabe, além do baixo índice populacional na faixa de 18 a 24
anos com matrícula em cursos superiores (cerca de 11% apenas), 65% do
total dessas matrículas estão em instituições privadas. Quando considerado
apenas o Estado de São Paulo, este número sobe para algo em torno de 84%.
Se tomarmos, por exemplo, o ano de 2000 e considerarmos o número de
doutores nas instituições usuárias e, o número de projetos na Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), tem-se, contudo, um
quadro aproximativo em que se sobressai, de modo espetacular, o sistema
público de ensino superior, conforme se pode verificar pelos dados abaixo:
92
Instituições Superiores de Ensino e de Pesquisa
no Estado de São Paulo
Número de Doutores e de Projetos Fapesp
Algo disso tem, sem dúvida, a ver com a estrutura jurídico-institucio-
nal do sistema privado de ensino superior, profundamente comprometido,
de um modo geral, com os aspectos comerciais da educação como negócio e,
conseqüentemente, com os fins lucrativos do empreendimento.
É preciso dar definitivamente um sentido público ao sistema de ensino
superior, como um todo, que é, por definição, um bem público.
Transformar a estrutura jurídico-institucional do ensino superior priva-
do no país e dar-lhe um caráter eminentemente fundacional, sem fins lucra-
tivos, é, pois, desafio premente e tarefa inadiável.
E é claro, para que não haja solução de continuidade, por resistências e
lobbies corporativos e por vazios de financiamento, pode-se legislar para frente,
o que já seria uma mudança de qualidade enorme no quadro institucional de
nossas universidades e uma condição de qualidade sem precedentes aos re-
quisitos de funcionamento de nossas escolas superiores.
E para que não se invoquem argumentos privatistas baseados na expe-
riência de outros países, é bom que se diga, desde logo, que na Inglaterra
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
93
99% dos alunos estão em universidades públicas, na França, 92,2% e nos
Estados Unidos, avocado sempre como campeão do privativismo, 78%, col-
mo se pode ver pelo quadro abaixo:
No âmbito das condições estruturais de funcionamento das universida-
des públicas federais, é sempre oportuno lembrar a necessidade, até agora
reconhecida, mas de solução sempre postergada, de constituir-se a sua auto-
nomia de gestão financeira, experiência que por mais de uma década vem
sendo levada a efeito pelas universidades estaduais paulistas com resultados
que, podendo ser continuamente melhorados nos ajustes finos, têm-se mos-
trado, contudo, conceitual, metodológica e operacionalmente eficientes, efi-
cazes e de alta relevância para a qualidade do ensino da pesquisa e dos servi-
ços prestados pela USP, pela Unicamp e pela Unesp.
Ligado a essa falta de autonomia de gestão financeira, apresenta-se o
problema crônico da total falta de uma política de recursos humanos para as
universidades federais, que se reflete de forma poderosamente negativa na
política salarial dessas instituições que, padecendo ainda de um outro mal
endêmico – o da carência de políticas regulares e sistemáticas de fomento –
, correm o sério risco de não só terem comprometidas suas atividades-fim,
como o de, por isso, comprometerem, sem volta, qualquer iniciativa de pla-
nejamento programático do setor de ciência, tecnologia e inovação.
A imprensa, de um modo geral, tem dedicado atenção particular ao mo-
mento delicado por que passa o sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação
(C,T&I) no Brasil. E mais delicado ainda, quando se considera que, sem dúvi-
94
da alguma, se trata do melhor e mais bem montado sistema da América Latina,
o que colabora para pôr em evidência os problemas por que estamos passando.
As universidades federais espalhadas pelos estados brasileiros continu-
am a viver momentos críticos e de apreensão em virtude do atraso de re-pas-
ses, e das indefinições quanto às prioridades do Ministério da Educação para o
ensino no país, quanto à sua situação jurídico-institucional no que diz respeito
à autonomia de gestão financeira, quanto ao valor dos salários que permanece
praticamente o mesmo há vários anos e quanto à própria situação de instabili-
dade criada pelas novas formas de aposentadoria propostas na reforma
previdenciária. Os fundos setoriais, que são parte importante desse desenho
original e criativo do sistema de C,T&I brasileiro, em 2002, não conseguiram
executar, no geral, mais do que 20% dos recursos que se anunciavam quando
de sua criação. O fato é que a irregularidade econômico-financeira constante
acaba por gerar a assistematicidade técnica do sistema, de modo que o que era
ótimo virtualmente acaba por ser menos que sofrível na realidade. O outro
efeito perverso, decorrente do mesmo fenômeno, é a total falta de possibilidade
de qualquer planejamento, efeito esse que perpassa, como uma corrente de alta
voltagem, negativa, toda a espinha dorsal do sis-tema, desde a sua arquitetura
organizatória, no centro, até a execução, pelos usuários dos programas financei-
ros, nas pontas. Embora não seja condição suficiente para solucionar esses pro-
blemas, a autonomia de gestão financeira dessas instituições é, contudo, condi-
ção necessária para deles tratar de forma adequada e eficaz. A experiência da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), criada, no
Estado, em 1962, e das universidades estaduais paulistas, desde 1989, mostram
o acerto e a justeza das decisões que instituíram a sua plena e total autonomia de
gestão financeira. No caso da Fapesp, que recebe, por lei constitucional, 1% da
receita tributária do Estado ao longo dos seus 40 anos de existência, a possibi-
lidade de seu bom funcionamento está diretamente ligada à sua autonomia e,
conseqüentemente, à sua capacidade de planejamento e de provisionamento
dos projetos concedidos e das despesas contratadas. Com autonomia e plane-
jamento a Fapesp tem conseguido, juntamente com a comunidade científica
paulista, responsável por mais de 50% da produção brasileira no setor, singrar
o mar revolto das adversidades conjunturais e estruturais da nossa economia e
navegar, com expectativa confiante para mares mais propícios de estabilidade
nos cenários futuros do país. Nesse sentido, não é demais lembrar que, embora
não seja panacéia, adotar a autonomia de gestão financeira das instituições
federais de fomento à pesquisa, como o CNPq, e também das universidades
públicas federais, seria uma boa iniciativa do novo governo e uma boa forma
de iniciar, na prática, um bom diálogo com a comunidade científica nacional
que há muitos anos luta, reclama e propugna por ela.
95
NOTAS SOBRE UNIVERSIDADE E DESENVOLVIMENTO
Roberto Smith
(*)
O eixo proposto para esse Seminário foi: por que e como reformar a
universidade, enquadrando-o dentro de um núcleo temático: Universidade e
Desenvolvimento que coloca em destaque a globalização como sendo ca-
racterizada por uma determinação excludente, perante a existência de um
Projeto Nacional.
É certo que vivemos, no país, um momento histórico, em que o inusita-
do é o fato de estarmos perante um processo de alternância de poder, sem
que isso esteja a abalar as instituições de nossa precária formação democrá-
tica. Significa um amadurecimento político que deve ser cultivado e bem
tratado. Significa, também, a possibilidade de compartilhamentos e embates
que projetam uma visão de futuro com esperanças concretas de crescimento
econômico e justiça social. É bem verdade que os momentos que antecede-
ram o processo eleitoral e a tomada de posse do novo governo puseram em
marcha vigorosos fatores defensivos do status quo e o desencadeamento de
efeitos desestabilizadores que buscaram retirar as bases de sua sustentação
política imediata.
Essa fase exigiu, por parte do Governo e dos segmentos que lhe dão
sustentação política, um extremo cuidado, mesmo porque, como é sabido, a
carga de problemas herdados do passado compunha um conjunto de com-
promissos a serem observados, assim como um elevado ônus social, em que
as carências de uma sociedade desigual atingira os níveis mais elevados na
ordem internacional.
O atrelamento do país aos ditames do capital financeiro internacional
havia-se intensificado, e na sua expressão mais cabal encontra-se refletido
(*) Doutor em economia pela USP, professor do Departamento de Teoria Econômica da Universidade
Federal do Ceará e atual presidente do Banco do Nordeste do Brasil.
96
no montante de crescimento da dívida e no grau de comprometimento das
contas públicas com os pagamentos dos serviços da dívida.
Eu não vacilaria em afirmar que o fator mais importante do quadro
político-econômico que compõe o legado desse período de nossa história
recente foi o rebaixamento da condição de soberania nacional jamais visto
em toda a nossa história republicana. Esse quadro ganhou visibilidade e es-
teve presente tanto no âmbito da política real quanto nos processo simbóli-
cos de representação da nação.
A operação que buscou tornar o Estado mínimo e exaltar as virtudes
do mercado, tão caros aos princípios neoliberais, foi imposta pelos países
desenvolvidos e aceita pelos países não desenvolvidos. Nem por isso os pre-
ceitos das reservas de mercado, do intervencionismo e do Estado forte fo-
ram abandonados pelos países desenvolvidos, e jogaram um papel importan-
te na retomada do Império americano à posição de hegemonia internacional.
A mão invisível dissimulava os punhos de ferro, como já se afirmava, desde
os tempos de Adam Smith.
O abandono de uma visão estratégica de Nação foi ratificado por
meio de alguns procedimentos exemplares, tais como: o descaso em rela-
ção à política energética, que conduziu ao afogadilho de soluções improvi-
sadas e comprometedoras de nosso futuro; a lei de patentes, precipitada,
que entregou parte preciosa de nosso patrimônio genético; o sistemático
processo de esvaziamento da universidade pública, que reforçou nossa
dependência científica e tecnológica, comprometendo sua autonomia e
qualidade acadêmica.
Quando o tema proposto para esta mesa coloca em destaque a globalização
excludente, é preciso ter presente que este processo não é um caminho de mão
única, imposto de fora para dentro do país, como que nos tornando vitimas de
uma opressão indesejada. É sabido, portanto, que um ideário de consenso foi
construído, buscando legitimidade dentro do país, o que elimina qualquer ten-
tativa de busca de exclusivas determinações externas. Perante essa combina-
ção contraditória, muitos elos foram construídos e terminam por se constituí-
rem numa corrente que formou uma cadeia física e ideológica que impediu
nosso desenvolvimento e nos fez mergulhar no desemprego.
Se analisarmos o processo educacional brasileiro ao longo dos anos
90, vamos encontrar uma sucessão de eventos e elaborações técnicas e
normativas que mostram uma elevada permeabilidade, emanando de um
ordenamento internacional de agendas educacionais que vem a se tornar
compromissos nacionais.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
97
Em 1990, foi realizada a Conferência Mundial sobre Educação para
Todos, em Jomtien, na Tailândia, cujos resultados foram sintetizados na
Declaração Mundial sobre Educação para Todos, patrocinada pela UNESCO,
da qual o Brasil foi um dos signatários. A centralidade da questão abordada
pela Educação para Todos estava atada à universalização da educação bási-
ca e à erradicação do analfabetismo. Em 1993, o ministro Murilo de Avelar
Hingel, ao inteirar-se daquele compromisso, por ocasião da Conferência
Mundial sobre Educação para Todos, na China, encaminhou o processo de
elaboração do Plano Decenal de Educação para Todos – 1993-2002, que
deu origem a um processo de elaboração que se destacou pelo elevado grau
de participação em múltiplas instâncias.
Esses compromissos seriam reafirmados pelo ministro Paulo Renato
Sousa, ao constituir o GT para elaborar o Plano Nacional de Educação em
1997, quando afirmou que o referido Plano “deveria atualizar e convalidar
os compromissos assumidos nas conferências internacionais, especialmente
a Declaração Mundial sobre Educação para Todos a partir das metas da
Conferência de Jomtien”.
Vai-se estruturando, nos anos estagnados da década de 90, o constructo
da importância da universalização da educação básica e da erradicação do
analfabetismo. Será reforçado com a criação do Fundef em 1996, logo após
a aprovação da Lei nº 9.394, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educa-
ção Nacional, e é fortemente amparado por textos competentes e politica-
mente corretos, como, por exemplo, os de Jaques Delors, mas sem respaldo e
consistência na ação, essa sim fundeada nos preceitos liberais que fazem da
educação, presa à concepção de capital humano, antes um produto de mer-
cado do que um direito emancipatório do cidadão.
Permeando o quadro de crise, em face da escassez de recursos que
colocava uma situação do tipo “Escolha de Sofia” entre educação básica e
superior, firma-se uma posição de principalidade da educação básica em
contraposição ao ensino superior, obedecendo a uma lógica de que os recur-
sos deste deveriam passar por um trade off para contemplar mais fortemente
a educação básica. Essa concepção adotava a premissa de que o setor priva-
do poderia se incumbir de suprir, em maior escala, a expansão da demanda
por educação superior, como de fato ocorreu.
Assiste-se, pois, a um processo de sucateamento das Instituições
Públicas de Ensino Superior, que já é bastante conhecido. No entanto, e
apesar disso, dois tipos de respostas emergem em meio à crise dessas
instituições:
98
• uma elevada expansão da oferta para atender à demanda, com preen-
chimento de vagas, criação de cursos noturnos, etc., dentro da mes-
ma força de trabalho e capacidade instalada;
• a constatação de sua superioridade qualitativa, comparativamente às
instituições privadas, quando dos processos de avaliação postos em
prática pelo Governo.
O movimento docente organizado da Universidade, dentro do quadro
de crise, se vê premido entre a intransigência do governo passado em dialo-
gar e negociar, e as forças que fazem da ausência de negociação o instrumen-
to de reforço de uma conduta política radicalizada, indispensável à manu-
tenção de seus nichos de poder. Isso tem impedido a formulação de uma
pauta que possa servir de guia para uma agenda mais ampla e aprofundada
de negociações para a universidade, passível, inclusive, de extrapolar as rei-
vindicações válidas, de caráter corporativo.
Essa situação é presente e atual dentro de um espectro mais amplo da
política, pois reafirma que a universidade não é um corpo estranho à socie-
dade, e reproduz com suas características próprias o conjunto dos conflitos e
debates inerentes ao processo político em marcha.
Mas, afinal, qual o projeto nacional? Evidentemente as diretrizes fo-
ram postas na campanha e foram escolhidas pelo voto. As restrições vão
sendo decodificadas, assim como desarmadas as bombas de ação retarda-
da, e devem ser iniciadas as ações que levem ao crescimento da economia
e à geração de empregos dentro de posições de maior conforto
macroeconômico. À medida que diminui a nossa dependência ao FMI vai-
se tornando possível a adoção de uma política econômica mais indepen-
dente. Com isto, é fortalecido, ao mesmo tempo, o campo de autonomia do
Estado na órbita internacional, gerando uma aptidão para a inserção sobe-
rana do país no mercado internacional.
Em termos propositivos, é preciso desvencilhar a universidade da im-
pregnação ideológica privatista, que envolve a formação acadêmica acrítica,
que esteve subjugada pelo pensamento único, que eliminou a agenda de de-
senvolvimento das estruturas curriculares.
Por parte do MEC, torna-se necessário abrir o diálogo e a negociação
com a Universidade Pública, que venha a se tornar estruturador de uma
política de compromissos de parte a parte. Isso deve envolver tanto os avan-
ços de natureza corporativa quanto os avanços do papel requerido para uma
universidade entrosada com o processo de inclusão social, crescimento eco-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
99
nômico do mercado interno, e com uma estratégia de avanço científico e
tecnológico nacional.
Muito provavelmente a lição que pode ser apreendida com o
neoliberalismo é a de que o Estado não é onipotente e que, muitas vezes,
essa projeção do Estado significou a tutela que esteve sempre muito próxi-
ma ou integrada ao clientelismo. A interlocução entre o Estado e a socie-
dade civil organizada deve objetivar um projeto que envolve resultados e
compromissos – dentro de uma escala temporal que refuta o imediatismo.
Esse é o processo que se deve esperar de uma construção política demo-
crática. Torna-se mais difícil implementá-la, primeiro porque não escamo-
teia os empecilhos e restrições de parte a parte, segundo porque exige uma
ordenação temporal hierarquizando o suprimento de carências e necessi-
dades em distintas escalas de valor, terceiro porque os processos são dinâ-
micos, mutáveis e não-lineares, requerendo, muitas vezes, repactuações,
e, por fim, porque deve ter por pressuposto a clareza e transparência de
propósitos entre os interlocutores.
Acreditamos que esse é o processo que deve vir a ser entendido e
pactuado para o início de negociações que retirem a universidade do ato-
leiro em que foi despejada, reintroduzindo-a a partir de uma visão estraté-
gica, em que uma coisa parece certa: a universidade pública integrada ao
desenvolvimento social não deverá ser nunca mais a mesma. Mas essa é
uma construção coletiva.
101
ACADEMIA E SETOR PRODUTIVO
Francelino Grando
(*)
Não há por que reformar a autonomia universitária que está prevista na
Constituição da República. É preciso primeiro praticar. Certamente, os lon-
gos debates e o profundo amadurecimento alcançado em 1988, quando, de
maneira muito consistente, a comunidade acadêmica, nos seus diversos seg-
mentos, foi capaz de trazer para a Constituição o artigo 207, que caracteriza
a autonomia universitária e expressa o porquê haver autonomia universitá-
ria, nos permite a compreensão de que a universidade não é uma parte de
Governo. É sim uma parte do Estado Nacional, que nós constituímos. Se a
universidade for efetivamente uma universidade, ela se integra dentro do
que é uma instituição, indispensável para a constituição de uma nação, para
a constituição de um Estado, resultado do consenso social. Por isso, o que
está posto, de muito esforço, de décadas do papel extraordinário prestado
pelas universidades na construção deste país até 1988, deve ser praticado.
Nós temos de desenvolver aquele resultado a que chegamos. Nós somos a
universidade, Desde o primeiro governo, da chamada à época da Nova Re-
pública, já se alegavam dificuldades, contingenciamentos e não havia autori-
zação para preencher vagas, legalmente criadas e legalmente vacantes, e com
isso o nosso corpo docente e o corpo técnico-administrativo estavam esfa-
celados. Inclusive com o arremedo que foi a autorização conquistada, a cada
vez com muita dificuldade, para a contratação de professores substitutos.
Com todo respeito aos colegas, até porque ainda constitui uma das categori-
as mais dinâmicas das universidades, já que todas as outras minguam e essa
cresce. Com todo respeito, há muitos profissionais que estão na qualidade de
professores substitutos, mas é importante reconhecer que não têm nem a
(*) Professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal de São Carlos. Ex-Secretário
Municipal de Desenvolvimento Sustentável, Ciência e Tecnologia, de São Carlos, SP. É Secretário de
Política de Informática e Tecnologia do Ministério de Ciência e Tecnologia.
102
missão e, às vezes, nem a potencialidade para realizar a tarefa que só pode
ser realizada por um professor dentro de um quadro de carreira. E que o
arremedo que foi feito com técnicos que são substituídos por contratações
via fundações de apoio também não têm nem a oportunidade nem a possibi-
lidade de prestar o serviço que deve ser prestado em um laboratório ou em
uma área de pesquisa em um hospital. Esses objetivos só podem ser alcança-
dos por um técnico de carreira, dentro de uma carreira que valoriza a pro-
gressão, que valoriza a qualificação, que valoriza os resultados obtidos. Des-
de então, nós não temos autorização para contratação formal. Aliás, só re-
centemente, é importante observar, que com todas as dificuldades do gover-
no do Presidente Lula, nós temos no ministério Cristovam Buarque a primei-
ra autorização formal para uma contratação massiva de técnicos administra-
tivos e professores. Insuficiente? Não há a menor dúvida, mas também te-
nho claro que este é um sinal no sentido diferente. Um sinal no sentido do
crescimento, diferentemente do sinal que nós sempre recebemos, que nós
éramos muitos, devíamos ficar menos ainda. Acho que isso começa a mudar
no sentido, então, do que eu dizia para começar, que quanto à autonomia da
universidade não é preciso reformar nada. É preciso, sim, fazer efetivo aque-
le resultado, aquela conquista obtida na Constituição de 1988 depois de dé-
cadas de luta, e de importantes serviços prestados ao país.
Aplicando a autonomia, reconhecemos que ela existe como meio para
que a universidade possa servir ao país, servir à nação. Aí sim, nós podemos
dedicar um pouco mais de atenção ao que é a função da universidade dentro
da sociedade. A função essencial da permanência, independente de cada
orientação política momentânea. A vocação para gerar o conhecimento, di-
fundir o conhecimento, sedimentar o conhecimento, dedicar-se à pesquisa
básica e dedicar-se à aplicação da pesquisa e ter a interação com a socieda-
de. Talvez aí nós tenhamos de investigar um pouco mais, tenhamos de reco-
nhecer que a sociedade não está lutando pela defesa da universidade porque
talvez nós não tenhamos ainda conseguido atingir o melhor ponto de intera-
ção com a sociedade. Seja no exercício da função, buscando a inclusão soci-
al, que hoje passa a ser uma sinalização muito clara desse governo, que a
universidade aguardava há muito tempo, fazia, mas às vezes contra a orien-
tação do Governo. Hoje, talvez nós possamos fazer de acordo, convergente-
mente com uma sinalização de política pública do Governo Federal. Mas,
certamente, estivéssemos muito mais avançados, alcançaríamos muito mai-
or respaldo. Por isso, feita esta introdução, eu vou usar dessa oportunidade
para tratar de uma abordagem bastante específica, que é o papel da universi-
dade quanto à geração de tecnologia e a contribuição da tecnologia para o
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
103
processo de inovação no setor produtivo. Peço a compreensão de todos para
que, o que eu vou falar a partir de agora do setor produtivo não significa, na
minha compreensão, que seja mais importante do que as outras missões que
eu procurei tangenciar nessa introdução. Mas ao escolher um tema, imagino
que eu possa contribuir mais, trazendo essa nova abordagem. Até porque,
nesse momento, nós estamos com a responsabilidade de gerar um Projeto de
Lei de Inovação. Por quê? Porque o governo passado enviou, no final de
2002, um Projeto de Lei de Inovação ao Congresso. Esse projeto nós tive-
mos a oportunidade, durante o governo de transição do Presidente eleito
Lula, de obstaculizar a sua tramitação em regime de urgência constitucional.
É com o sentimento de que fizemos corretamente, porque o projeto foi feito
de maneira açodada, sem a efetiva discussão democrática, sem o internalizar
da discussão no âmbito daquele que é, no mínimo, um dos interlocutores
mais importantes – que é exatamente a universidade, a comunidade acadê-
mica –, que trago o tema a este debate.
Compreendo que o governo passado tenha procurado fazer, mandar
para o Congresso a todo custo, como conclusão de uma série de esforços a
que tinha-se dedicado. Compreendo, mas é exatamente assim, foi o governo
que passou. A tarefa deste governo é bastante diferente. Nós temos de ga-
rantir a instância democrática para que a discussão, sobre um tema tão rele-
vante como o Projeto de Lei de Inovação, possa se internalizar e possa con-
tar com a participação de um ator responsável por pelo menos 2/3 de toda a
tecnologia que é gerada no país. Esse é um número também discutível, fica
aqui a minha recomendação, um pedido a todos os colegas que tenham esta
área de investigação, é um número que precisa ser desmistificado, melhor
conhecido. Eu escuto empresários dizerem que a universidade contribui com,
no máximo, 30-40% da geração de tecnologia. Acho que este número é um
descalabro. Acho que ele não corresponde à realidade, mas a leitura dos
próprios índices do IBGE permite que alguém afirme que são 70% do setor
público, nas universidades, e 30% no setor produtivo. Acho que a utilização
desses números não é casual, ela significa a intenção, às vezes a necessidade
de desmerecer o papel da universidade. Esse último percentual contempla
aquele engenheiro que coloca um pingo de óleo dentro de uma máquina e ele
é colocado no índice da indústria como se tivesse gerado pesquisa e desen-
volvimento. É claro que a manipulação desses dados significa exatamente
uma disputa importante por recursos. Não preciso ir muito mais longe se
pensar exatamente nos recursos dos fundos setoriais, que são, queiramos ou
não, um mecanismo importante do fomento ao desenvolvimento tecnológi-
co do país. Portanto, chamo a atenção para o uso desses dados que, me pare-
104
ce, tem sido canhestro, mal-intencionado. Quero falar exatamente da neces-
sidade, independente de qual seja o número, de a universidade ser um ator
relevante no debate sobre o Projeto de Lei de Inovação.
Essa discussão precisa, necessariamente, contar com a participação
decidida das universidades públicas, federal e estadual, e universidades
confessionais, e que o resultado do nosso debate, das diversas posições em
conflito, ainda que legítimas, permitam atingir um consenso possível, espe-
cialmente nesse momento em que o Governo, o Ministério da Ciência e
Tecnologia, por meio da Secretaria de Política de Informática e Tecnologia,
tem a responsabilidade de buscar a construção desse consenso para oferecer
subsídios ao Parlamento, onde o projeto se encontra. Por isso, eu acho que
este foro é bastante importante para que se pense um pouco sobre a questão
da Lei de Inovação, sobre o papel da universidade como geradora de tecnologia
e, principalmente, que mecanismos nós podemos ter para que haja uma efetiva
interação entre linguagens tão distintas, que são as linguagens da academia e
a linguagem do setor produtivo, entre tempos tão distintos, como o tempo
do fazer acadêmico e o tempo da geração de um produto no mercado. Am-
bos são extremamente relevantes, sendo certo que se não cabe ao setor pro-
dutivo dizer que nós devemos atender a tempo e a hora, também não pode-
mos nos conformar com a idéia, presente em outro segmento da sociedade,
de que a geração de tecnologia serve para o financiamento da universidade.
Na minha opinião isto é um despropósito, um descalabro, é um equívoco
conceitual tão profundo que impede que a discussão avance em bases sérias.
A universidade deve ser remunerada. Certamente, se não nós estaríamos
assistindo a uma privatização pontualizada de um saber que é patrimônio
público. Mas por outro lado, não é possível pensar que a geração de tecnologia
e a venda dessa tecnologia constituem um objeto em si mesmo. Certamente
não. Da mesma forma que a tecnologia, para mim, não constitui um objetivo
em si mesmo. Tecnologia é um mecanismo que precisamos desenvolver para
desenvolver o país, visando à melhor qualidade de vida do cidadão brasilei-
ro, visando à melhoria do produto, seja o produto para o mercado consumi-
dor interno, seja o produto para que o Brasil seja mais competitivo na inser-
ção internacional. Tecnologia é sempre meio para essas finalidades. Da mes-
ma forma que ter remuneração por uma prestação de serviço tecnológico,
por um desenvolvimento tecnológico, não deve ter como finalidade a remu-
neração ou a aquisição de recursos para dentro da universidade. A proprie-
dade intelectual que foi gerada deve ser remunerada e, certamente, remune-
rado o patrimônio público, sobretudo, ser socialmente utilizada dentro da
universidade. E se nós temos os departamentos de ponta de engenharia, que
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
105
têm uma enorme afinidade com o mercado, nós temos departamentos da
área de saúde pública que não vão alcançar esta mesma remuneração, mas
são, no mínimo, na minha opinião, relevantes para o país, sendo indispensá-
veis para o cumprimento de outra importante função da universidade, a sua
função social. Então, é preciso ter mecanismos dentro da universidade para
que a remuneração, – alcançada junto ao setor produtivo, os parceiros, os
terceiros –,ingresse na universidade institucionalmente. E não para um clu-
be de professores. Isso me reporta, então, ao mecanismo atualmente existen-
te que são as fundações de apoio institucional. Durante alguns anos, fui até
identificado como um cavaleiro andante das fundações de apoio. É nessa
condição confortável em que quero apontar exatamente a excrescência que
é uma fundação de apoio, a anomalia, que é uma fundação de apoio na au-
sência da autonomia universitária. Ela foi indispensável para auxiliar a uni-
versidade pública federal, sobretudo, a resistir ao ataque sem misericórdia
promovido pelo governo do ministério Paulo Renato. Com as fundações de
apoio nós salvamos recursos indispensáveis para as universidades ao longo
de oito anos. E não estamos livres de que isso venha a acontecer novamente,
porque as condições macroeconômicas não estão mudadas e o movimento
de contração do Estado brasileiro me parece ainda continuar em curso. En-
quanto nós não tivermos capacidade de partir para uma outra perspectiva da
construção, realmente, do governo democrático e participativo. E é um tra-
balho de mais de um mandato. Talvez uma geração. Até porque o Estado foi
tão destruído que não serão oito anos que o reconstituirão. A praga das bol-
sas, que já estão espalhadas por diversos organismos, demonstra exatamente
como nós não temos estrutura de estado qualificado, como eu dizia no iní-
cio. Neste período, então, as fundações de apoio foram extremamente de
apoio e podem continuar sendo importantes. Não posso falar disso sem lem-
brar das exceções que confirmam a regra, ou seja, das barbaridades também
que foram cometidas em fundações de apoio. Mas prefiro destacar o papel
de diversas fundações de apoio que eu conheço e que tiveram um papel
muito importante. O que separa essencialmente umas de outras é o controle
institucional. Na medida em que uma fundação de apoio tem controle insti-
tucional, ela se aproxima dos objetivos da instituição. Na medida em que ela
passa a ter vontade própria, ela começa a gerar sua própria estrutura de po-
der. E aí, em vez de apoiar uma outra instituição, muitas vezes ela apenas se
utiliza do nome, da grife da instituição para atender a seus próprios objeti-
vos. Isto é o exagero da anomalia. Qual a anomalia? A não aplicação do
artigo 207. A não efetivação da autonomia universitária. Foi isso que nos
exigiu, então, gerar este instrumento anômalo que, volto ao início, se nós
106
formos capazes de fazer avançar a discussão para a efetiva aplicação da
autonomia universitária, nós teremos diminuído a relevância da fundação de
apoio. Mas continua o desafio da interação entre duas linguagens e dois tem-
pos: o do acadêmico e o do setor produtivo. E algum mecanismo precisa
existir para isso. Agora não mais então para corrigir anomalias, não mais para
tirar dinheiro da conta que era administrada pela Secretaria do Tesouro Na-
cional e poder salvá-lo em uma conta, numa agência bancária dentro do
campus. Não mais para esse tipo de coisa. Não mais para contratar técnicos
para os hospitais universitários porque não tínhamos autorização para os
cargos efetivos. Não mais para isso, mas para uma tarefa permanente. Qual é
a tarefa permanente? Fazer a interação da universidade com o setor produti-
vo. Permitir que a geração de tecnologia implique uma demanda do setor
produtivo e que (n)o empresariado nacional possa estar por um lado mais
competente para dialogar e esteja mais sensibilizado para desenvolver
tecnologia no âmbito da própria empresa ao invés de comprar um pacote
fechado de tecnologia, que hoje para o empresário é mais barato, mais efi-
caz. Este mecanismo precisa ser permanente, e acho que nós temos um de-
bate importante. Esse mecanismo deve ser gerado dentro da instituição uni-
versitária. Acho que hoje é possível. É possível gerar um instituto, núcleo,
um órgão especializado no estímulo à geração tecnológica, na apropriação
dos resultados das linhas de pesquisa, na sensibilização do parceiro empre-
sarial, no diálogo entre os dois. É possível fazer hoje de maneira a manter
esse órgão, esse instituto, essa instituição dentro da universidade pública,
tanto federal quanto estadual. Entretanto, eu não tenho nenhuma segurança
se o que for aprovado hoje pelo Parlamento e que constitui um órgão especi-
alizado dentro da universidade pública capaz de fazer essa interação, capaz,
portanto, de receber recursos externos, gerenciar esses recursos externos, de
internalizá-lo na universidade, se este órgão aprovado em uma lei em 2003,
ele resistirá a um próximo movimento de contração de Estado, como já acon-
teceu com as autarquias, como já aconteceu com as fundações. E voltamos
ao ponto em que a instituição universitária – que não é uma fundação, que
não é autarquia, universidade é uma universidade autônoma –, continua sendo
incompetente para gerenciar uma conta bancária porque um Secretário da
Fazenda vale mais do que a aplicação da norma constitucional, então eu não
me sinto com nenhuma segurança para dizer que o resultado que pudésse-
mos chegar hoje, ainda que aprovado em lei, ele fosse permanecer por mais
10 anos, que fosse capaz de superar uma outra coisa que poderia vir em
algum momento, retirando eficácia ao mecanismo que nós tivéssemos che-
gado. Porém, com absoluto controle institucional para o que as boas expe-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
107
riências e as más também nos alertam e ensinam de maneira, talvez, a cons-
tituir este mecanismo. Acho que temos um bom exemplo aqui do que pode
ser muito ruim e vou falar com a clareza do chamado CGEE. Ele é o ápice
do modelo de desfazimento do estado que aconteceu durante oito anos. O
projeto nacional não comporta uma estrutura completamente fora do estado
para fazer aquilo que as instituições públicas têm a missão, a obrigação, o
dever, a capacidade, a competência e a vontade de fazer. Eu não consigo
conviver com os esforços que nós fazemos dentro de cada campus neste país,
lutando com dificuldades do pagamento de telefone à valorização da partici-
pação de um profissional em evento de qualificação e, ao mesmo tempo,
conviver com uma instituição subversiva, custeada pelos mesmos recursos
do Tesouro Nacional, que paga o que quer, quando quer, a quem quiser, para
fazer a mesma coisa que uma linha de pesquisa muito bem estruturada, pela
complexidade criativa da docência, da pesquisa e da extensão, porém sub-
metida a todas as dificuldades conhecidas. Não posso compreender porque
essa instituição privada, irresponsável face aos objetivos permanentes da
universidade, deva receber massivos recursos públicos. Essas são algumas
questões necessárias que quero fazer ao debate, para o qual ousei adiantar
algumas opiniões.
109
AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR – VALORES
REPUBLICANOS, CONHECIMENTO PARA A EMANCIPAÇÃO,
IGUALDADE DE CONDIÇÕES E INCLUSÃO SOCIAL
José Dias Sobrinho
(*)
O que a avaliação tem a ver com o tema acima proposto? Penso que
uma intensa e estreita relação de sinergia.
Parto do princípio de que uma instituição de educação superior só se
realiza plenamente como tal, à medida que se constitua como um espaço
público, ou seja, um espaço plural, permeado de contradições de construção
e aprofundamento dos valores públicos. Do ponto de vista de sua função
social e pública, isto é, da perspectiva daquilo que política e filosoficamente
lhe justifica a existência, a educação superior, materializada nas práticas de
suas instituições, existe para expandir os processos civilizatórios, desenvol-
ver e aprofundar os interesses sociais e públicos que se hegemonizam em
uma dada situação das disputas sociais e das relações de poder. Do ponto de
vista ideal, mas sem desconsiderar as reais contradições e limites de qual-
quer fenômeno humano e social, uma instituição de educação superior exis-
te para cumprir o mandato social de produzir os conhecimentos
emancipatórios, formar os cidadãos e assim desenvolver a sociedade huma-
na, segundo e mediante os valores e princípios mais caros ao processo
civilizatório e à vida democrática, tais como a solidariedade, a cooperação, a
justiça, a igualdade, o direito à dignidade, o respeito à alteridade e à pluralidade.
Como instituição que recebe um mandato social, ela se justifica, portanto,
ao cumprir os valores fundamentais e prioritários do humano, de acordo com
as interpretações históricas que se vão construindo como resultados das con-
tradições sociais e das novas realidades que os processos civilizatórios vão
(*) Professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), doutorado em Paris na
École des Hautes Études en Sciences Sociales e na École Normale Supèrieure, presidente da Rede de
Avaliação Institucional da Educação Superior (RAIES) e da Comissão Nacional de Avaliação, esta
recentemente (2003) instituída pela Secretaria de Educação Superior (SESu-MEC).
110
produzindo. Desta forma, uma instituição educativa tem compromisso com
o fortalecimento da democracia e deve, ela mesma, exercitar em seu cotidi-
ano os conteúdos e formas da vida democrática.
Uma instituição educativa, por sua natureza e função, é radicalmente
diferente de uma empresa do mundo econômico. Enquanto a instituição
educativa tem o desenvolvimento do humano e do social como referência e
finalidade, no quadro dos valores e interesses públicos que uma determina-
da configuração social faz emergir, a empresa de mercado tem nos meios o
seu fim (Freitag, 1995, pp. 31-32). A esta lhe basta desenvolver eficazmente
os meios para bem cumprir os seus interesses particulares, exacerbando a
lógica da instrumentalidade. Enquanto que não pertence à instituição de
educação comprometida com suas funções públicas o simples amealhar de
quantidades de produtos e lucros, cumpre à empresa econômica, principal-
mente, aumentar a produtividade, a eficiência, a competitividade, enfim,
obter mais resultados práticos quantificáveis, derivados de seu saber-fazer,
como expressões concretas de seus lucros. Quando a lógica do mercado é
levada a seus extremos e transmutada ao campo social e dos capitais simbó-
licos, a centralidade da gestão eficaz, do planejamento, da eficiência e da
produtividade não é posta em função do desenvolvimento social justo e sus-
tentado; ao contrário, esses ícones do mercado se apresentam como se fos-
sem valores autojustificados e que em si mesmos encerrassem os seus senti-
dos. Elevados a valores, têm forte poder de determinação da sociedade. O
consumo e o consumidor passam a valer mais que a produção e o trabalha-
dor. Quem não tem como produzir e, sobretudo, como consumir é excluído.
Do ponto de vista estritamente da empresa, a cooperação, quando há,
éuma estratégia instrumental que se coloca em função do maior lucro e do
aumento da competitividade, isto é, da ideologia do sucesso individual. Neste
caso, o que prevalece não é a justiça social, não é o bem comum, e sim o
privilégio daqueles que se mostram mais competitivos. Então, não é a produ-
ção do desenvolvimento social que vale como fim; o que importa, nesse caso,
é o aperfeiçoamento dos meios para o incremento dos benefícios e interesses
exclusivos da empresa econômica. As relações mercantis são marcadas pela
indiferença recíproca, que tende a anular a individualidade e a socialidade.
O mercado não contém todas as soluções para os problemas humanos,
tampouco as sociedades industrializadas podem ser consideradas apenas como
capitalistas; elas são, também e diferenciadamente, pluralistas e democráti-
cas, e isto é o que deve ser aprofundado a fim de evitar-se a barbárie
tecnológica. O que eleva os graus de desenvolvimento civilizatório são mui-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
111
to mais as ações públicas orientadas ao desenvolvimento multidimensional
da trajetória humana que o crescimento econômico, quando este se apresen-
ta depredador, ou a simples evolução unilateral da tecnologia quando desli-
gada da ética e da política. O desenvolvimento civilizatório é o oposto do
economismo feito barbárie e do tecnologismo sem compromissos com as
políticas para a construção de sociedades mais justas e solidárias. É todo
diferente desta tendência atual que valoriza o avanço tecnológico e econô-
mico segundo o critério de sua eficácia imanente.
Uma sombra de pesada ameaça cresce hoje na onda do globalismo,
essa ideologia que trata de justificar as aberrações e assimetrias que a
mundialização vem produzindo em toda parte. Fortes interesses empresa-
riais e jogos de poder articulados mundialmente operam para transformar
a educação superior em um meganegócio, que, aliás, atualmente já movi-
menta dezenas de bilhões de dólares. O grande problema do avanço da
tecnologia e da mundialização da economia é que seus produtos materiais
e espirituais não são repartidos com justiça. Se aumentam a exclusão, jo-
gando a inclusão à responsabilidade individual, são um obstáculo à eman-
cipação da humanidade.
Ante a invasão do quase-mercado educacional, como ideologia
privatistae prática de comercialização, é preciso insistir na idéia de que a
razão de ser da educação, o que lhe fornece os fundamentos e os objetivos
essenciais, é a formação global dos cidadãos. É fundamental que as socie-
dades tenham seus projetos educativos, que não se restringem com uma
diversidade de instituições e de programas isolados. Todo projeto de soci-
edade deve ter em seu centro um projeto civilizatório, formativo, que é o
outro modo de dizer projeto educativo. Portanto, educação não é mercado-
ria - sem pátria, sem ideologia e sem ética - a ser regulamentada pela Orga-
nização Mundial do Comércio e ajustada às disputas do mercado. Educa-
ção é essencialmente bem público, de interesse social, direito do cidadão e
dever do Estado.
Disso decorre que é dever da instituição de educação superior cons-
truir-se cada vez mais intensa e extensamente como um espaço público. Isto
é particularmente contrário ao construto ideológico, que quer explicar e jus-
tificar a idéia da igualdade entre democracia e mercado.
O espaço público é o espaço da democracia, que não pode ser confun-
dido com o mercado, pois os objetivos de uma e de outro não são os mes-
mos, o direito e o poder não são repartidos sob os mesmos critérios, para os
mesmos fins e para produzir os mesmos efeitos, bem como os conceitos de
112
liberdade e justiça, por exemplo, não se equivalem, pois não é verdade que
todos os indivíduos de uma sociedade tenham as mesmas condições para
competir, e tampouco é eticamente aceitável que o espetacular avanço da
técnica, que sustenta o império da economia globalizada possa, em seu be-
nefício próprio, degradar os valores e a ética. Jefferson pensava que “não há
nada mais distante da igualdade que tratar de igual modo a seres desiguais”.
A grande tarefa da universidade é, pois, a construção de um espaço
público cujos valores falem mais alto e sejam mais duradouros que os inte-
resses utilitaristas e de curto prazo do mercado. Ela não pode permitir a
substituição dos mais altos graus do conhecimento e da reflexão crítica, que
durante séculos a constituíram, pelos apelos ao aligeiramento dos conheci-
mentos e habilidades adaptados ao imediatismo do mercado e da sociedade
que privilegia o que tem valor utilitário e instrumental.
Construir-se como espaço público é revivificar o corpo social, de modo
que “os conteúdos de formação não venham a ser integralmente induzidos a
partir das exigências setorializadas da economia, mas que possam também ser
definidos a partir das relações que estabelecem e do modo como se entrecruzam
no seio de uma cultura científica cada vez menos distanciada do espírito do
tempo” (Renaut, Bayard, Paris, 2002, p. 106). Fortalecer o espaço público
universitário é, pois, uma exigência das políticas dos Estados para o desenvol-
vimento das sociedades democráticas. É se tornando um espaço público do
conhecimento, da crítica, da criação e do debate que a educação superior exer-
ce seu dever e sua potencialidade de criar e de ampliar os outros espaços públi-
cos que, juntos, constituem uma sociedade democrática.
A “Declaração Mundial sobre Educação Superior no Século XXI: Vi-
são e Ação”, da UNESCO (Paris, 1998), já em seu preâmbulo salienta: “Se
carece de uma educação superior e de instituições de pesquisa adequadas
que formem a massa crítica de pessoas qualificadas e cultas, nenhum país
pode assegurar um autêntico desenvolvimento endógeno e sustentável; os
países pobres e em desenvolvimento não poderão encurtar a distância que
os separa dos países desenvolvidos industrializados”. Em outra altura, a
UNESCO declara que a missão do ensino superior consiste em “contribuir
para o desenvolvimento durável e para o melhoramento do conjunto da so-
ciedade, a saber: formar diplomados altamente qualificados e cidadãos res-
ponsáveis, capazes de atender às necessidades de todos os aspectos da ativi-
dade humana; promover, gerar e difundir conhecimentos através da pesqui-
sa (...); constituir um espaço aberto para a formação superior que propicie a
aprendizagem permanente (...)”. E ainda: “A educação superior deve refor-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
113
çar suas funções de serviço à sociedade e, mais concretamente, suas ativida-
des dirigidas a erradicar a pobreza, a intolerância, a violência, o analfabetis-
mo, a fome, a deterioração do meio ambiente e as enfermidades, principal-
mente mediante um delineamento interdisciplinar e transdisciplinar para
analisar os problemas e as questões propostas (UNESCO, in Yarzábal, 2002,
pp. 228, 231 e 236).
Múltiplas são, portanto, as funções da educação superior, pois
diversificadas, complexas, contraditórias e profundas são as necessidades da
sociedade. A instituição educativa de nível superior não pode abdicar de
produzir uma formação fundada nos princípios de uma ciência relevante
para a emancipação humana, de uma política democrática, de uma ética im-
pregnada dos valores que incluam mais amplos âmbitos sociais, respeitando
a pluralidade e as diferenças. Por isso, é importante recuperar os valores ci-
entíficos e democráticos da educação superior, o que obriga a refletir radi-
calmente sobre sua diversidade e seu papel social.
Pensando na temática da inclusão, em tempos de sociedades cada vez
mais complexas, não se há de esquecer que toda exclusão começa pela falta
de conhecimento, mas também pela negação da compreensão e da crítica
daquilo que é diferente de nós mesmos. A ignorância é uma das mais cruéis
formas e fontes de exclusão, pois é a privação da condição básica de existir
plenamente e, cada vez mais, até mesmo de simplesmente viver num mundo
crescentemente necessitado do capital cultural. A não aceitação das diferen-
ças como diferenças, ou seja, a negação da identidade própria da alteridade,
produz hierarquias, desvalorizações, enfim, exclusões.
A universidade é, historicamente, um tecido complexo feito de combi-
nações e diferenciações, atravessado de contradições e disputas ideológicas,
com importantes funções não apenas para a economia, mas também para a
socialização, o avanço do espírito científico, a cultura, a crítica fundamenta-
da, a independência de espírito, a emancipação. Os fins de todo processo
histórico de construção do conhecimento e das aprendizagens não se redu-
zem às dimensões pragmáticas e operacionais, não são mera função econô-
mica, não se desligam dos processos de produção da vida social.
As competências técnicas e profissionais, amplamente prestigiadas
hoje,não têm valor em si mesmas; elas se inscrevem nas dimensões mais
amplas das competências do homem como sujeito da história. A valorização
do conhecimento “útil” produziu, em contraponto, a depreciação das artes e
das humanidades, do desenvolvimento do pensamento crítico e da compre-
ensão dos processos históricos e culturais. Diz Habermas:
114
“Os processos de aprendizagem universitária não só mantêm a
sua interação com a economia e a administração, como também
continuam em estreita ligação com a função de reprodução do
‘mundo da vida’. Para lá de prepararem para a carreira acadêmi-
ca, a prática que propiciam de uma forma de pensamento cientí-
fico (isto é, de uma atitude hipotética face aos fatos e normas)
permite-lhes dar o seu contributo para o processo geral de soci-
alização; para lá do saber especializado, contribuem para a for-
mação crítica intelectual, com as suas leituras fundamentadas
dos acontecimentos atuais e as suas tomadas de posição política
objetivas; para lá da reflexão sobre métodos e fundamentos, con-
tribuem, com as ciências humanas, para uma continuidade
hermenêutica das tradições, e com as teorias da ciência, da mo-
ral e da arte e literatura para a formação de uma consciência
própria das ciências no âmbito geral da cultura. E é ainda a for-
ma universitária de organização dos processos de aprendizagem
científicos que permite que as disciplinas especializadas, para
além de preencher estas diversas funções, simultaneamente se
enraízem no ‘mundo da vida’.” (Habermas, 1987, p. 8)
Se a produção e a promoção do conhecimento fundamentado, crítico,
amplo e socialmente relevante é da essência mesma da universidade, não
há como não atribuir-lhe uma tarefa que vai-se tornando crescentemente
mais importante; a tarefa do incremento ético, ante o crescimento da po-
breza, da miséria e das desigualdades de todo tipo, nos âmbitos material,
espiritual, afetivo e cívico; a tarefa da promoção da ética, em face do pre-
domínio da ideologia do individualismo e do sucesso individual sobre a
socialidade, a solidariedade e demais valores sociais e ante a substituição
do espaço público, que se constitui como abertura aos processos
civilizatórios, pela auto-referencialidade mercantilista, que desvitaliza a
trama social, individualiza e exclui.
Numa sociedade que prioriza o capital social e o capital cultural como
partes essenciais do capital econômico, a distribuição assimétrica do conhe-
cimento colabora fortemente para a desigual distribuição de incluídos e ex-
cluídos. Apenas uma minoria pertence à formidável “sociedade do conheci-
mento”, criada pelo espetacular desenvolvimento tecnológico. Três quartos
da humanidade não têm as condições básicas para o acesso às tecnologias;
calcula-se que metade da população mundial jamais fez sequer uma chama-
da telefônica. Ao analfabetismo clássico se soma agora o analfabetismo digi-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
115
tal, que condena as suas vítimas à marginalidade, à pobreza e à miséria. O
trabalho qualificado, diretamente vinculado à qualidade da instrução, acele-
ra o desenvolvimento, mas, ao mesmo tempo, pode ser uma das fontes de
desigualdade e exclusão social.
Uma sociedade democrática e educativa deveria-se ocupar de políticas
e práticas pedagógicas que não reforçassem a marginalização daqueles que
só podem oferecer um trabalho não qualificado. Uma sociedade educativa é
uma sociedade que dedica todos os seus esforços para construir a coesão
social e eliminar a exclusão pela ignorância. O conceito de sociedade educa-
tiva inclui a possibilidade de aprendizagem ao longo da vida, e isso não ape-
nas no sentido da qualificação para o trabalho, mas também na ampliação
das oportunidades culturais e de lazer e de inclusão nas diversas dimensões
da vida social e cívica.
Por outro lado, o conhecimento entendido hoje como capital econômico
é um bem comercializável, tornou-se propriedade particular daqueles que o
podem comprar para usufruto próprio, para o incremento do lucro e do suces-
so individual. A educação superior se transforma em um quase-mercado quan-
do o conhecimento que produz e/ou reproduz beneficia exclusivamente a al-
guns setores restritos da sociedade. O privilégio de uns produz a exclusão de
muitos, quando um bem público se privatiza para benefício particular.
Se a instituição tem como orientação central o desenvolvimento da-
queles fins públicos resultantes das relações de força e contradições da
sociedade, então os processos que ela desenvolve como expressão de sua
responsabilidade social devem ser contínua e radicalmente postos em ques-
tão. Por meio de processos sociais de reflexão e debates e mediante múlti-
plos recursos heurísticos, devem ser postos em foco as diferentes respos-
tas que uma instituição educativa oferece no cumprimento de sua respon-
sabilidade social. Em outros termos ainda, a sociedade tem o direito de
pôr em questão os significados que têm as ações institucionais para a cons-
trução dos fins e valores que constituem os projetos de uma determinada
sociedade em uma dada conjuntura.
Pôr em questão, construir sentidos, compreender o educativo como
fenômeno complexo de construção do conhecimento e de formação huma-
na comprometida com o bem comum e os interesses públicos, é este o signi-
ficado central a ser atribuído à avaliação da educação superior. Entretanto,
precisa estar muito claro que isso não é simples adesão a valores oficiais e,
sim, afirmação das subjetividades, ou seja, o reconhecimento do homem
como sujeito da história.
116
Nisso consiste a importância, o sentido e a direção programática da
avaliação. O significado público da educação exige eticamente o questiona-
mento radical a respeito do cumprimento da responsabilidade social. Este é
o significado central de uma avaliação educativa: construção social, produ-
ção de sentidos, questionamento radical e global do conjunto de práticas de
uma instituição, fundamentalmente no que se refere ao aprofundamento dos
valores públicos, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento da
ciência e à formação integral dos cidadãos, que constitui a essência da res-
ponsabilidade social, científica e ético-política da educação superior.
Uma empresa comercial, auto-suficiente e autocentrada, pois o que lhe
interessa é a produção de si mesma e não da sociedade mais justa e solidária,
costuma reduzir a avaliação a uma mera função de controle e fiscalização.
Essa noção, aplicada à educação superior, tende a transformar a avaliação
em instrumentos de controle burocrático-legalista. Quando o que predomi-
na é a idéia do controle, não restam preocupações com os sentidos radicais e
dispensam-se a reflexão, as dúvidas e interrogações, pois a realidade se apre-
senta como um já-dado a ser analisado e muitas vezes só medido. Então, o
que passa a predominar são os procedimentos de quantificação das produ-
ções, sejam elas os trabalhos científicos, as formaturas estudantis ou as sub-
venções conseguidas.
Se não há o que questionar, então bastaria medir, quantificar, compa-
rar, conhecer simplesmente para melhor controlar. As medidas se referem a
partes quantificáveis, estáticas, inarticuladas, e então propícias ao controle,
mas não à compreensão de conjunto e tampouco dos significados funda-
mentais e das finalidades. Como política pública, a avaliação fundada na
idéia de controle e fiscalização tem apresentado três sentidos articulados:
legal-burocrático, econômico e ideológico. Dessa forma, cria um amplo e
bem estruturado quadro normativo e punitivo, estabelece os sistemas de
valor, põe em prática os mecanismos de distribuição de recursos e impõe as
diretrizes educativas.
A avaliação vive um “conflito entre dois logos, dois registros de pala-
vras, duas falas: o da Ratio (‘avaliar é ser justo, objetivo’) e o do Pathos (‘ava-
liar é acompanhar, cumprir, amar’)” (Vial, 2001, p. 41). Embora esses dois
sistemas de idéias e de práticas sejam contraditórios, não são necessaria-
mente excludentes quando aplicados à avaliação. A lógica racional e instru-
mental privilegia os sentidos de controle, medida, balanço, classificação, se-
leção, resultados, dados objetivos e comparáveis. A lógica do Pathos opera
mais com a idéia de promoção de possibilidades, acompanhamento de pro-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
117
cessos, formação, interpretação e produção de sentidos, construção,
dinamização, melhoria. Para além de mera exclusão, podem-se completar
numa teoria que incorpore a pluralidade e a contradição.
A lógica da Ratio poderá ser adequada para a prestação de contas da
eficiência e eficácia de uma instituição de educação superior ou das compe-
tências e habilidades dos estudantes em função da qualificação demandada
pelo mercado, por exemplo.
A lógica do Pathos é importante para o debate sobre os sentidos soci-
ais, políticos, filosóficos e éticos do conjunto das práticas e concepções
educativas, ou seja, para pôr em questão os significados mais profundos da
formação humana, os compromissos e relações da instituição educativa
com a sociedade.
No primeiro caso, prevalecem os aspectos técnicos e instrumentais -
metodologia, normas, objetividade, comparabilidade, controle, possibilida-
de de demonstração. No segundo, estando em questão, fundamentalmente,
os sentidos essenciais e os fins da instituição, o interesse central recai sobre
os paradigmas, ou seja, sobre as visões de mundo que se traduzem em con-
cepções de ciência e os princípios éticos, políticos e filosóficos.
Educação e formação são fenômenos políticos e sociais e, portanto,
têm interesse público. A avaliação da educação superior deve ser, então,
muito mais uma expressão política e filosófica que um instrumento técnico e
burocrático. Deve produzir muito mais reflexões e críticas, que meramente
constatações e mensurações. Sem dúvida que se volta ao passado para ana-
lisar o realizado, mas é em função da construção de um futuro melhor que
ela se justifica.
A avaliação que apenas congela a realidade em instantâneos acaba per-
dendo os significados dos dinamismos institucionais, dos movimentos de
construção e reconstrução dos conhecimentos, as relações intersubjetivas e
os processos de socialização. Reconhecendo-se como debate público, tem
como valores centrais a livre manifestação de idéias e o direito à participa-
ção no jogo de forças, como é próprio da democracia. Nisso consistem sua
complexidade e sua riqueza.
A avaliação, dado seu caráter social e político, nem sempre se faz por
caminhos traçados de certeza e tampouco pode produzir certezas absolu-
tas. Isso é ainda mais verdadeiro quando se considera que a crise, em di-
versas dimensões, faz parte da realidade cotidiana das universidades. Es-
tas, segundo Clark, hoje têm de apresentar muito mais produtos e resulta-
118
dos, lidar com o novo e o antigo, conviver com as mudanças e as incerte-
zas. Diversificaram-se muito as funções que hoje se exigem das institui-
ções educativas. Muitas dessas demandas a universidade não considera
legítimas, em respeito à sua tradição; a muitas outras, diferenciadas e con-
traditórias, não consegue dar respostas satisfatórias. Essas novas e com-
plexas demandas aumentam consideravelmente os desafios e tornam a
universidade ainda mais necessária.
Para compreender a universidade, em função de seu fortalecimento como
instituição educativa, não basta a análise de aspectos isolados. É preciso
avaliar, no fundo, os significados dos compromissos institucionais e do cum-
primento da responsabilidade social. Por exemplo, não basta quantificar os
resultados das práticas de pesquisa. A avaliação deveria produzir, além dis-
so, um questionamento radical sobre o valor e os sentidos sociais da ciência
que ela produz, seleciona e transmite, tendo em vista fundamentalmente o
que isso significa para o próprio avanço dos conhecimentos, artes e técnicas,
e principalmente para a formação dos estudantes e para a sociedade com
cuja construção a instituição está comprometida.
Se as funções da instituição educativa têm seu foco central na forma-
ção, entendida aqui em seus sentidos plenos de emancipação pessoal e parti-
cipação ativa na construção da sociedade democrática, conjuntamente com
o desenvolvimento da ciência, o enfrentamento crítico e proativo desta ques-
tão deve ser feito por processos de avaliação global. Evidentemente, essa
avaliação não é simples, em virtude de que a educação superior e suas insti-
tuições, principalmente quando referidas ao social e público, oferecem gran-
de complexidade e enormes incertezas. Distintos interesses no campo social
e econômico produzem conflitos na educação e tendências contraditórias na
avaliação, não de caráter meramente epistemológico, técnico ou
metodológico, mas, sobretudo, de concepção de mundo.
Há soluções técnicas, que historicamente vêm-se acumulando, capazes de
trazer explicações credíveis a respeito de alguns aspectos objetivos da realidade
educacional. A avaliação tem também seu filão desenvolvido na boa tradição
das ciências duras, que é imprescindível quando o objetivo é medir, comparar,
classificar, controlar. Esses procedimentos são extremamente importantes, e
cumprem papel irrecusável na avaliação da educação superior. Entretanto, esta
não pode-se reduzir a meras operações de explicação da realidade universitária e
de mensuração de resultados educacionais descontextualizados, pois assim acar-
retaria sérios riscos de apenas produzir conformação, reprodução, modelagem,
heteronomia, reforço de padrões mínimos.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
119
A avaliação educativa deve ir além. Sem deixar de utilizar os instru-
mentos da objetividade próprios dos processos científicos, pedagógicos e
administrativos, sem deixar de exigir o adequado cumprimento dos critérios
gerais, ela deve também provocar a discussão dos sentidos, alimentar a ino-
vação, enfrentar os novos desafios, reconhecer a pluralidade de idéias, valo-
res e interesses. Se avaliar é em grande parte produzir sentidos, então é im-
portante o processo participativo que continuamente leva a questionar os
significados dos projetos e currículos, a atribuir o justo valor da atuação dos
sujeitos na comunidade educativa e na sociedade mais ampla. Enfim, a ava-
liação educativa deve dinamizar a construção da autonomia para a emanci-
pação pessoal, institucional e social. Emancipação só se constrói com efeti-
va participação, que torna os sujeitos responsáveis pela sua própria forma-
ção e pela construção coletiva.
Por essas razões, a avaliação educativa guarda relação estreita com a
pertinência, isto é, com o enraizamento institucional no plano social mais
amplo, porém sem se afastar das realidades mais próximas, das culturas e
das comunidades que conformam o seu âmbito de atuação. Por isso, torna-
se importante responder à questão: a quem a universidade está
prioritariamente servindo? Serve ao mercado e ao capital transnacional
quando confere primazia à capacitação profissional imediata e ao desen-
volvimento da técnica, sem levar em conta os valores democráticos e
civilizatórios. Neste caso, a pertinência diz mais respeito à eficiência, à
produtividade e ao lucro.
Por outro lado, a avaliação deve procurar aprofundar um outro proje-
to de educação superior, que contribua para a construção de uma socieda-
de tecnologicamente desenvolvida, mais rica em conhecimentos e cultura,
mais solidária e justa. Neste caso, o mais importante, então, é focar as
análises e juízos de valor sobre os sentidos da qualidade social da universi-
dade, sobre o exercício da responsabilidade social e do sentido público da
instituição educativa.
Por isso, a sociedade precisa estar devidamente informada do que e do
como faz a universidade. Se a avaliação educativa tem como finalidade pri-
mordial ajudar a instituição a ser melhor, desempenhar com mais qualifica-
ção a sua função formativa, ou seja, consolidar a função social essencial,
antes de ser para o mercado e para a administração central, a informação
produzida nos processos avaliativos deve ter valor para a sociedade. O Es-
tado tem primazia sobre a burocracia do governo, a sociedade tem priorida-
de sobre o mercado.
120
A avaliação educativa deve-se realizar em função da educação em seus
sentidos mais fortes: formação, produção dos conhecimentos para aumento
da dignidade da vida, desenvolvimento civilizatório, aprofundamento dos
valores democráticos e de elevação do humano. As avaliações desenvolvi-
das segundo perspectivas burocráticas e controladoras não são compatíveis
com as exigências de compreensão da complexidade social e tampouco com
os projetos de construção de uma educação democrática. A dimensão ética
da avaliação produz uma afirmação das subjetividades e, então, à afirmação
do cidadão como sujeito da história. A avaliação educativa deve contribuir
para a produção de sentidos e o questionamento a respeito das finalidades
fundamentais da educação, especialmente no que se refere às suas funções e
responsabilidades sociais. Nesta perspectiva, desenvolve-se uma forte sinergia
entre educação e avaliação. Em conseqüência, desenvolve-se uma forte
sinergia entre avaliação e valores democráticos e republicanos, bem como
políticas que neles se fundamentam, tais como o conhecimento para a eman-
cipação, a justiça social, a inclusão.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREITAG, Michel (1995) Le naufrage de l’Université et autres essais d’épistémologie
politique, Québec: Nuit Blanche Éditeur, Paris: Éditions La Découverte.
HABERMAS, Jürgen (1987) “A idéia da universidade: processos de
aprendizagem”, Revista de Educação, vol. II, Lisboa: Universidade Nova
de Lisboa.
RENAUT, Alain (2002) Que faire des universités, Paris: Bayard.
VIAL, Michel (2001) Ensaio sobre o processo de refenciação. O avaliador
em trajes de luz, in BONNIOL, Jean-Jacques & VIAL, Michel. Modelos de
Avaliação. Textos fundamentais. Artmed, Porto Alegre.
YARZÁBAL, L. (2002) Consenso para a mudança na educação
superior,Curitiba: Editora Champagnat.
121
UNIVERSIDADES: O QUE FAZER?
Renato de Oliveira
(*)
Gostaria inicialmente de precisar que o ponto de vista no qual me situo
não é o de um especialista sobre ensino superior. Ele é o resultado de um
conjunto de experiências que se acrescentaram àquela de um docente uni-
versitário, como as de dirigente sindical no âmbito da Universidade e de
gestor de políticas públicas em ciência e tecnologia. Tais experiências reve-
laram alguns aspectos que considero importantes da estrutura de ensino su-
perior no Brasil (aspectos que eu diria mesmo fundamentais), e que funda-
mentam as contribuições que eu trago a este Seminário.
O exercício da presidência da Andes deu-me a oportunidade de conhecer
um sem número de instituições de ensino superior, públicas e privadas, de
todas as regiões brasileiras. E conhecê-las de um ponto de vista não-instituci-
onal, aberto portanto à realidade mesma das instituições. Realidade que
transparecia através de depoimentos de professores sobre suas condições de
trabalho, de aperfeiçoamento profissional, salariais, etc.; de depoimentos de
dirigentes sobre suas expectativas e dificuldades no exercício das respectivas
funções; de debates com estudantes sobre suas condições de estudo e aprendi-
zado, bem como suas crescentes dificuldades para garantirem um bem já per-
cebido pela maioria como um direito social, sem o qual a própria noção daque-
les direitos, na complexidade da sociedade contemporânea, fica comprometi-
da; de depoimentos de funcionários técnico-administrativos, às voltas com
crescentes dificuldades com uma identidade profissional que exige um desem-
penho à altura da missão própria da universidade, sem que, no entanto, a pró-
pria definição dos perfis profissionais, além, obviamente, dos salariais,
correspondam a essa exigência. De tudo, resulta evidente a mistura complexa
de expectativas e frustrações, componentes básicos do torturante cotidiano da
comunidade universitária brasileira.
(*) Sociólogo, professor da UFRGS.
122
Dessa experiência, além da percepção nítida das desigualdades regio-
nais do ensino superior no Brasil (que, em se tratando da região Norte, princi-
palmente, revela a mais completa irresponsabilidade dos poderes públicos,
especialmente do Governo Federal!), ficou a certeza de que é necessário
rever o modelo institucional de ensino superior no Brasil. Não se trata de
reafirmar a velha cantilena de que é necessário “respeitar as peculiaridades
regionais” – isto qualquer universidade pode e deve fazer, independente-
mente do seu modelo institucional. Trata-se de rever este modelo, permitin-
do funções institucionais diferenciadas, como procurarei detalhar adiante.
Como gestor de políticas públicas em ciência e tecnologia no Estado
do Rio Grande do Sul, tive a oportunidade de conviver, de forma muito
próxima, com várias instituições de ensino superior e de pesquisa que, em-
bora emergentes e sustentando projetos altamente relevantes do ponto de
vista de suas inserções sociais e econômicas, bem como apesar de projetos
acadêmicos rigorosos do ponto de vista da afirmação do primado da quali-
dade acadêmica, enfrentam dificuldades as mais diversas no que se refere às
possibilidades de acesso às instituições de fomento à pesquisa e à qualifica-
ção acadêmica. Não há dúvidas que o rigor adotado por estas na análise de
projetos de pesquisa e do perfil dos programas de pós-graduação tem-se cons-
tituído no principal fator de impulso à qualidade do sistema brasileiro de
pós-graduação e pesquisa. Isto está fora de questão. No entanto, devemos
nos render à evidência de que isto, por si só, não constitui uma política.
Esta, além de assegurar as condições de excelência em áreas consolidadas,
deve orientar o desenvolvimento de competências em áreas que, eventual-
mente de interesse estratégico, não possuem no entanto capacidade acumu-
lada. Por definição, o crivo da competência para distribuição de recursos,
por exemplo, deve ser ulterior à consolidação da competência. Em outras
palavras, o Poder Público não pode submeter-se à análise de mérito institu-
cional (incluindo aí a existência de recursos humanos qualificados numa ins-
tituição, por exemplo), para a concessão de recursos financeiros. São inúme-
ras as áreas e instituições que requerem investimento justamente para pro-
duzir competência, e o critério para este tipo de investimento não será o
mesmo utilizado para o investimento em projetos em setores que já acumu-
laram excelência acadêmica.
Não se trata, aqui, apenas daqueles setores estratégicos que envolvem
a chamada pesquisa de ponta. Trata-se, também, da necessidade de fortale-
cimento de instituições e programas que se propõem a desenvolver
tecnologias de baixo e médio alcance, visando, por exemplo, a sua transfe-
rência para atividades econômicas de baixa capitalização. Uma política de
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
123
fomento ao desenvolvimento científico e tecnológico deve, necessariamen-
te, contemplar este aspecto, especialmente num país como o nosso, com
imensas desigualdades no acesso às tecnologias e no nível de desempenho
dos distintos setores econômicos. Freqüentemente, a excelência acadêmica
é confundida com projetos de pesquisa “de ponta”, em detrimento de proje-
tos cujo diferencial está no maior impacto social buscado. Ora, para coisas
distintas, deve-se adotar critérios distintos de julgamento, com base no pres-
suposto de que ambas são necessárias no contexto de um Sistema de Ciência
e Tecnologia voltado à Inovação. Sem isto, o simples estímulo à associação
entre grupos consolidados e grupos emergentes, ainda que saudável, pode
levar à generalização de uma cultura de alta pesquisa, sem maiores preocu-
pações do ponto de vista da pertinência.
Ainda no quadro da experiência em formulação e gestão de políticas
públicas em ciência e tecnologia, pude verificar in concretu uma das distorções
estruturais do sistema de C&T no Brasil, qual seja, o abismo existente entre
a capacidade de produção de ciência e a capacidade de produção e transfe-
rência de tecnologia propriamente dita. Isto num estado, o Rio Grande do
Sul, com a economia contando com uma importantíssima rede de pequenas
e médias empresas com dificuldades de capitalização e atuando em setores
que demandam alta capacidade tecnológica. Fica evidente, aí, que o proble-
ma não se deve ao desempenho das instituições de pesquisa, nem, muito
menos, à inadequação dos programas de pesquisa em andamento. Pelo con-
trário, ao lado de programas que acompanham o desenvolvimento da fron-
teira do conhecimento em diversas áreas, em sua imensa maioria são absolu-
tamente relevantes do ponto de vista do contexto social e econômico. O
problema persistente é a ausência de um Sistema de Ciência e Tecnologia
propriamente dito, integrando agentes socioeconômicos produtores e
demandadores de conhecimento e tecnologia, com suporte na ação dos Po-
deres Públicos. Este problema, se é originado numa cultura de imediatismo
quanto aos resultados esperados dos empreendimentos econômicos, repro-
duz este mesmo imediatismo em todas as esferas da vida social e política,
especialmente no que se refere à ação do próprio Estado. Assim, este, tanto
pela ótica dos agentes econômicos quanto dos operadores políticos, tende a
ser visto pela ótica exclusiva do seu potencial de alocador de recursos finan-
ceiros para suporte direto ou indireto à atividade econômica. Da mesma
forma, a própria universidade passa a ser vítima do mesmo crivo imediatista
quanto aos seus resultados potenciais.
Estas observações, dentre outras, levam-me a saudar a iniciativa do
Ministério da Educação ao organizar este Seminário. Já era tempo de se lan-
124
çar um debate sério e profundo sobre o que se espera das universidades
brasileiras. Um debate que não se perca no eruditismo, essa forma típica do
humanismo de viés colonialista, infelizmente ainda tão presente entre nós,
especialmente quando tratamos da instituição máxima do humanismo oci-
dental, a Universidade. É tempo, em suma, de “descermos” aos problemas
concretos que caracterizam as dificuldades desta instituição entre nós, e as
contribuições que seguem têm a pretensão de sugerir soluções concretas para
problemas concretos.
Começando pelo último problema apontado, não me parece um bom
caminho discutir-se uma reforma universitária sem um esforço concomitante
de definição de um Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia voltadas à
Inovação, ou seja, à incorporação dos seus produtos por parcelas crescentes
da sociedade. Afinal, o grande paradoxo que temos em mãos é justamente
este: como fazer com que um dos poucos países que aparecem no mapa
mundial de produção de ciência deixe de ser um dos países tecnologicamente
mais dependentes do mundo? Este não é um problema a ser resolvido ape-
nas no âmbito das instituições de ensino superior e pesquisa. Querer que a
universidade “resolva os problemas nacionais” e criticá-la por pretensamente
não o estar fazendo, significa desconhecer não só o que elas fazem mas o seu
papel histórico e institucional, e, talvez, revele um certo desprezo pela insti-
tuição como tal. O que seria até compreensível num país com baixos índices
de educação superior como o nosso. Nestes países, a universidade sofre tan-
to pelo desconhecimento sobre a natureza de suas atividades como pelo
imediatismo que costuma acompanhar as demandas sociais que deságuam
sobre os respectivos governos. Afinal, países com baixos índices de ensino
superior são, também e por definição, países abarrotados de problemas soci-
ais urgentes. Constitui, portanto, uma saída tentadora para os governos des-
ses países acobertarem sua freqüente falta de política para o ensino superior,
com a bandeira das “prioridades sociais” da Nação – o que nunca levou a
lugar algum, muito menos à solução de prioridades sociais, quaisquer que
sejam elas. Mas este, certamente, não será o nosso caso.
Transcendendo a esfera de competência de apenas um Ministério, a
definição de um Sistema Nacional de C&T voltadas à Inovação deve envol-
ver o núcleo estratégico de Governo, por meio de uma ação articulada com,
dentre outros, os Ministérios da Educação, da Ciência e Tecnologia e do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e respectivas agências. Ela
envolve uma redefinição de relações interinstitucionais – a começar pela
introdução da idéia de Sistema! –, das fontes de recursos e das políticas de
fomento. É no interior desse Sistema que deverão agir as Instituições de
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
125
Ensino Superior e Pesquisa, ao lado das Instituições de Pesquisa Tecnológica,
mas sem se confundir com estas. Igualmente, é a definição desse Sistema
que possibilitará às Instituições de Ensino Superior a superação do isola-
mento social que cerca muitas de suas atividades, mas sem comprometer a
natureza destas. É, finalmente, a definição desse Sistema que dará conteúdo
a qualquer política de desenvolvimento social, econômico, tecnológico e in-
dustrial capaz de integrar os indivíduos à sua sociedade.
Finalmente, um Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia voltadas à
Inovação pressupõe uma ação concertada com os Ministérios da área econô-
mica. Trata-se, neste aspecto, de superar a financeirização das mentalidades
responsáveis pela gestão do setor, voltando aos pressupostos que devem
orientar uma política de desenvolvimento econômico propriamente dito.
Cabe dizer, finalmente, que vivemos uma situação delicada envolven-
do esta questão. Não há dúvidas quanto ao fato de que, durante a gestão do
ex-Ministro e Embaixador Ronaldo Sardemberg à frente do MCT, avança-
mos muito no que respeita à definição de um Sistema Nacional de Ciência e
Tecnologia voltadas à Inovação – o que se constituiu, aliás, no centro estra-
tégico de sua gestão. A sucessão governamental, infelizmente, não contri-
buiu para acelerar o processo, nem, tampouco, para deitar luz sobre pontos
que permaneciam obscuros, como, por exemplo, a relação do sistema pro-
posto com o processo de internacionalização e “desnacionalização” da eco-
nomia, a necessária modernização de áreas marginais da economia e da soci-
edade, etc. O que pareceu evidente, num primeiro momento, foi a
incompreensão do sentido geral das reformas propostas e, principalmente,
das tendências atuais de integração da C&T nos processos produtivos que
caracterizam as economias contemporâneas, sem que houvesse, por outro
lado, a apresentação de alternativas claras e consistentes. O que demonstra a
natureza de nossas dificuldades para tornar as atividades de C&T mais per-
tinentes do ponto de vista da agenda nacional: não tendo sido jamais efeti-
vamente integradas nas atividades econômicas, as atividades de C&T não
foram, igualmente, absorvidas pela cultura dos agentes políticos, tanto à
direita quanto à esquerda. Em conseqüência, a tentação à “ideologização”
de tais atividades, seja à direita, seja à esquerda, é compreensívelmente for-
te. Felizmente, um e outro lado do espectro político defronta-se com uma
comunidade científica desenvolvida e organizada, que lhes cobram coerên-
cia e, sobretudo, realismo no discurso político voltado ao setor. No entanto,
isto por si só não é suficiente, pois uma comunidade científica forte e organi-
zada, mas sem vínculos efetivos com a economia, a sociedade e o próprio
sistema político, tende a gerar padrões de realismo político próximos de seus
126
interesses corporativos. Neste contexto, é de se esperar que o novo governo
traga sua “densidade” social para o interior dos mecanismos de gestão e
formulação de diretrizes do setor, e, neste aspecto, o Conselho de Gestão e
Estudos Estratégicos do MCT tem plenas condições de assumir um papel
central – aliás, ao se pensar nas funções do CGEE, é quase impossível não
lembrarmos do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, o antigo ISEB...
Em segundo lugar, urge ampliar a oferta de vagas no ensino superior
público. Não adotar esta perspectiva como prioridade imediata significa con-
denar milhões de indivíduos desta e das próximas gerações ao limbo social –
que, contrariamente ao nada destinado aos inocentes involuntariamente ex-
cluídos da comunhão dos fiéis, constitui o inferno concreto da violência sob
todas as formas e para todos, aí compreendidos, obviamente, os “incluídos”.
A crise vivida pelo setor privado, às voltas com inadimplência e evasão
crescentes, mostra que este, deixado à simples lógica do mercado, não é uma
alternativa ao ensino público. Conseqüentemente, o governo não poderá fu-
gir da necessidade de ampliação dos investimentos: ou para manter e, even-
tualmente, ampliar as matrículas na rede privada, por meio da concessão
crescente de bolsas estudantis, por exemplo, ou para ampliar a rede pública.
Neste ponto, é necessário alertarmos contra a primeira alternativa, que
pode igualmente se apresentar como uma saída tentadora para o governo,
eventualmente seduzido pela performance quantitativa do ensino privado, es-
pecialmente no que se refere à relação custo/benefício.
O critério sugerido por essa performance só seria válido se o compromis-
so do Poder Público com relação ao ensino superior fosse concebido única e
exclusivamente como decorrente da demanda social por este nível de ensi-
no, o que seria uma perspectiva inteiramente falsa. Em primeiro lugar, essa
demanda, embora real e certamente dramática, não é um dado da natureza.
Sobretudo no que diz respeito ao seu perfil, ela é produto de uma situação
social e econômica específica – no nosso caso, típica da evolução de uma
economia periférica. Portanto, aceitá-la pura e simplesmente, buscando res-
postas no seu próprio nível, sem buscar alternativas, significaria, de parte do
Poder Público, aceitar a própria situação econômica e social que a gera como
um dado que não comporta transformações e mudanças de rumo. Significa-
ria, em suma, abdicar de fazer Política.
O que queremos sugerir é que compete ao Poder Público formular uma
política de ampliação de vagas no ensino superior de forma coerente com
uma política global de desenvolvimento econômico e social sustentado, ou
seja, que aponte para a perspectiva histórica de superação da condição peri-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
127
férica da economia brasileira. Esta, obviamente, não é a perspectiva dos
interesses hegemônicos no ensino superior privado. Pelo contrário, estes atu-
am no limite da condição que nos é imposta pela periferização da nossa
economia, ou seja, no limite da condição de uma sociedade que, gerando um
volume apreciável de riquezas, carece permanentemente de modernização
na esfera do consumo, condição necessária para inserir-se no mercado mun-
dial como consumidora de produtos de alto valor agregado, sem produzi-los
no entanto. Os interesses hegemônicos no ensino superior privado atuam,
em suma, como elos da cadeia de atividades econômicas, sociais e culturais
que relegam o país à condição de mercado final e entreposto comercial e de
serviços de alta tecnologia. Ora, salvo brutal engano, não é esta a perspecti-
va do atual governo!
Trata-se, preliminarmente, de uma opção: ou o governo lutará para in-
tegrar o país competitivamente na nova ordem mundial, agregando valor à
sua economia, ou contentar-se-á com sua “vocação” de exportador de
commodities, combinada à montagem de bens finais com tecnologias importa-
das, completando o todo com políticas compensatórias que, nesse contexto,
não significarão sequer uma distinção ideológica importante.
A primeira opção demandará o fortalecimento da capacidade nacional
de produção de inteligência, de conhecimento e de suas aplicações em todos
os ramos da produção e de serviços, o que supõe a expansão da universidade
em níveis que hoje sequer ousamos imaginar, sem falarmos numa verdadeira
revolução nos outros níveis educacionais. Tal decisão requer investimentos,
sendo necessário decidir de onde virão os recursos necessários e quais seto-
res, em conseqüência, serão sacrificados. Este é um debate urgente, que pre-
cisa ser nacionalmente organizado, envolvendo as instituições políticas e as
organizações da sociedade civil – estas, registre-se, já deram mostras do que
são capazes na luta contra a ditadura militar!
É evidente que o problema dos recursos financeiros é crucial e crônico.
Ele não será resolvido, no entanto, com declarações generosas e metas tão
ambiciosas na aparência quanto vazias de planos concretos para sua execu-
ção. Aliás, sucessivos governos têm sido pródigos em demonstrações de
irresponsabilidade a este respeito. Como exemplo grotesco, poderíamos citar
a determinação, pelo próprio Congresso Nacional, de que 30% dos jovens
brasileiros deveriam estar freqüentando a universidade em 2006, determina-
ção que não foi seguida de nenhuma medida do Poder Executivo para cum-
pri-la! Não apenas isto, como o Executivo continuou com sua política de
restrição da capacidade de expansão do ensino superior público, diminuindo
os recursos destinados ao setor. Este fato dispensa qualquer comentário, e
128
coloca uma imensa responsabilidade sobre o atual governo, no sentido de
mudar esta prática secular entre nós.
Havendo decisão política, soluções podem ser encontradas. Ainda como
exemplo, cito a proposta apresentada ao Ministério da Educação e ao Con-
gresso Nacional, no início de 1999, pela então diretoria da Andes. Propunha-
se a instituição de um imposto sobre atividades econômicas tecnologicamente
densas, que reverteria para um Fundo de Expansão do Ensino Superior Públi-
co. Aquela diretoria não encontrou interlocutores para sua proposta. No en-
tanto, poucos meses depois, o Ministério da Ciência e Tecnologia apresentava
os Fundos Setoriais para a Ciência e Tecnologia, cujo princípio é exatamente o
mesmo! Ora, por que a Universidade Pública não pode ser objeto de proposi-
ções semelhantes? Por que se insiste em discutir o fortalecimento da pesquisa
como se isto fosse possível sem o fortalecimento das universidades?
Se a opção, no entanto, for pelo aprofundamento da nossa “vocação”,
nós já conhecemos os seus resultados: ela combina o conforto dos produto-
res de commodities com o sacrifício crescente da Nação.
Em terceiro lugar, é necessário regulamentar a Autonomia Universitária.
Deixemos de lado a discussão bizantina sobra a “auto-aplicabilidade” do art.
207 da Constituição Federal. Apenas o empresariado do ensino superior priva-
do ganha com isto! De resto, as outras Autonomias que compõem o Estado
Nacional – os Estados, os Municípios e o Ministério Público – possuem suas
respectivas regulamentações infraconstitucionais. Por que a universidade não
a teria, ela que cumpre um papel absolutamente essencial na vida nacional?
A regulamentação da Autonomia supõe uma rediscussão do regime ju-
rídico das universidades públicas. Hoje, concebidas como “autarquias”, elas
são compreendidas como organizações estatais descentralizadas, destinadas
ao cumprimento de funções do próprio Estado – tal como qualquer autarquia.
Ora, uma universidade é uma instituição autônoma voltada à execução de
uma função pública, o que não é a mesma coisa, e este conceito carece de
definição jurídica!
Regulamentar a Autonomia significa, ainda, definir formas de controle
público (e não de controle estatal!) sobre as universidades privadas, nos
mesmos moldes de suas congêneres públicas (ou estatais, se quisermos).
Dessa forma, buscar-se-á garantir a supremacia do interesse público sobre o
interesse de mantenedoras que mal acobertam os interesses dos “reis do en-
sino superior”, lamentável aggiornamento dos “reis” do gado, do cacau, da
borracha, do charque e tutti quanti, essas tristes figuras do capitalismo brasi-
leiro aos quais muito devemos da nossa dependência econômica e tecnológica.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
129
A regulamentação da Autonomia passa, finalmente, pela definição de
critérios para a conquista da Autonomia (o que significa igualmente a definição
de critérios que acarretam a perda desse status!), dentre os quais os critérios
definidos por uma Política Nacional Permanente de Avaliação do Ensino
Superior e das Universidades em particular.
Em quarto lugar, devemos superar de uma vez por todas o que já foi
chamado de “ilusão de unicidade institucional” do sistema brasileiro de ensino
superior. Qualquer sistema de ensino superior moderno contempla institui-
ções de perfil e papéis diferenciados. Não se trata, aqui, da hierarquia existente
entre Faculdades Isoladas, Centros de Ensino Superior, Centros Universitári-
os e Universidades propriamente ditas. Afora todas as suspeitas (inclusive vei-
culadas pela imprensa!) de corrupção que este sistema engendrou, ele tem na
sua origem uma distorção fundamental, que é a de concentrar a pesquisa no
topo do sistema, ou seja, em universidades que almejam todas o mesmo perfil
institucional e que, com poucas exceções, concentram-se nas regiões metro-
politanas. Ora, se se trata de instituir colleges, instituamos colleges!
É necessário, no entanto, diversificarmos o modelo das universidades,
criando, por exemplo, universidades tecnológicas e universidades regionais,
que, ao lado das “grandes” universidades nacionais e intimamente relaciona-
das a centros de educação técnica e tecnológica, cumpram a função primor-
dial de viabilizar a Inovação Tecnológica nos planos local e regional. Sem
isto não superaremos a distância entre alguns setores altamente desenvolvi-
dos (e concentrados!) da economia e os milhões de pequenos e médios em-
preendedores que não têm acesso ao mercado tecnológico. Sem isto não
diversificaremos nossa pauta de exportações e jamais repetiremos o dina-
mismo dos países que lograram superar seu status de semiperiferia, moderni-
zando as bases de suas economias e integrando seus pequenos e médios
empresários às respectivas políticas de exportação.
Como não temos essa diferenciação, todas as instituições perseguem o
mesmo estatuto de universidade. Como resultado, temos universidades e “proto-
universidades”, sendo estas a maioria, significando isto que, do ponto de vista da
pertinência do ensino superior, a maioria das instituições fica a dever.
Finalmente, é necessário termos clareza sobre as resistências que uma
reforma universitária com o sentido proposto encontrará no atual sistema de
interesses que caracteriza o ensino superior brasileiro. Em primeiro lugar, como
seria óbvio esperar, na área do ensino privado empresarial.
Uma opção governamental pelo ensino superior público (contrariamente
à opção das últimas décadas!) não significa “abandonar” o ensino privado à
130
sua própria sorte. “Abandonado” ele está hoje! Quando o ensino superior
privado torna-se, de fato, um “serviço” pelo qual os indivíduos pagam na
medida em que tenham interesse no mesmo e em que possam fazê-lo; quan-
do um ex-Ministro de Estado anuncia alegremente sua nova condição de
intermediário de investidores estrangeiros dispostos a comprarem institui-
ções dessa “rede de serviços”, apostando no aumento do seu “valor de re-
venda”, “tal como já se faz em outros setores da economia”, é porque o
ensino superior privado está abandonado à sua própria sorte! É uma obriga-
ção de lucidez elementar, portanto, contarmos com as resistências desse se-
tor ao avanço de propostas como as apontadas. O país, aliás, tem experiên-
cia a este respeito: o crescimento desordenado do setor privado de assistên-
cia à saúde na transição dos anos 70 para os 80. Tal expansão liquidou qual-
quer possibilidade de uma política pública no setor de saúde. Mesmo o Siste-
ma Único de Saúde, definido na Constituinte de 88, já não é mais menciona-
do senão pela sua sigla, pois mencioná-lo por inteiro constituiria uma menti-
ra à vista do que se passa na assistência à saúde dos brasileiros. Estaríamos
já neste ponto em matéria de ensino superior?
A regulamentação da Autonomia Universitária, por sua vez, também
encontrará resistências. Para ficar na generalidade própria a esta altura do
debate, menciono uma que óbvia: a tecno-burocracia que, alimentando-se
em grande parte de quadros das próprias universidades, desenvolveu a função
social – com a identidade e os interesses profissionais correspondentes! –, de
operacionalizar a submissão das universidades ao Estado (para não dizer aos
governos!), o que é patente nas IFES.
E, último mas não menos importante, uma política de Avaliação Insti-
tucional certamente não cairá no agrado de alguns contingentes de professo-
res e servidores cujo ethos profissional (com perdão pelo termo!) faz jus,
muitas vezes, às melhores peças do anedotário nacional sobre “serviço pú-
blico”. De pouco adianta discutir, aqui, se este contingente é representativo
ou não da comunidade de ensino superior. O que é importante considerar é
que seu poder de fogo é diretamente proporcional à ausência de propostas
governamentais efetivas, que se mostrem capazes de mobilizar construtiva-
mente essa comunidade – sem falarmos na espetacular munição representa-
da pelo desastre da Reforma da Previdência!
Creio que o quadro é suficiente para mostrar que não estamos diante da
necessidade de “ajustes pontuais”: quem atender ao chamado da reforma
universitária pode ter a certeza de que não estará atendendo ao convite para
um banquete. É necessário, portanto, que se lhe advirta: “Livra-te desse medo
circunspecto;/aqui toda tibieza esteja morta”.
131
INCLUSÃO UNIVERSITÁRIA:
PEQUENAS REFLEXÕES A PARTIR DE UMA GRANDE
EXPERIMENTAÇÃO SOCIAL
Rabah Benakouche
(*)
Quem está e quem poderia estar na universidade? Questão que diz res-
peito às relações da universidade com sua população estudantil; questão que
pode ser “lida” sob a ótica da inclusão ou exclusão social; quando vista em
um enfoque ou outro conduz a adotar perspectivas de análises e de ação
distintas; questão formulada engloba, epistemologicamente falando, elemen-
tos da resposta pesquisada.
No approach da exclusão, se analisa causas e efeitos do problema. Do
ponto de vista econômico, desvenda-se ligações existentes entre formas de
exclusão (desemprego, baixa renda...) e modalidades de funcionamento da
economia (exigência de qualificação, concentração de renda...). Do ponto de
vista psicossociológico, detecta-se disfunções sociais e desvios comporta-
mentais dos sujeitos. Ambas perspectivas analíticas procuram soluções por
meio do Estado (via política social) objetivando redução das desigualdades
sociais. Tal é a visão clássica e ortodoxa sobre a qual se fundamenta a exis-
tência de política social
1
. Com efeito, a pesquisa social consegue, na melhor
das hipóteses, “ler” o problema. Só que a “leitura” é, por definição, de natu-
reza passiva, até porque entender não é resolver, conhecimento não é ação;
ou seja, a lógica de conhecimento distancia-se da lógica de ação. Em termos
operacionais, nos efeitos colaterais da exclusão (desemprego, pobreza...) não
estão inscritos seus remédios e suas formas de equacionamento. Análise é
importante, mas é insuficiente!
Já a inclusão social é um enfoque que se situa num outro espaço lógico;
é uma categoria política, embebida de utopia (no sentido de Manheim) na
(*) Rabah Benakouche, “Docteur d´Etat” em Ciências Econômicas pela Universidade de Paris e Dou-
tor em Engenharia Industrial pela Ecole Centrale de Paris; autor de vários livros e professor da
UFPR (licenciado).
1
Ver X. Greffe, Politique Sociale, PUF, 1980, cap. I.
132
medida em que se visa à transformação social; é uma agenda de ação e de
mobilização social; é um programa de ação com objetivos políticos determi-
nados, que consistem, em última análise, a estender a cidadania para todos
os membros da sociedade. Significa dizer que uma mudança conceitual nun-
ca é apenas retórica; ela afeta a definição e o equacionamento (científicos e
não-científicos) do problema enfocado.
O enfoque da exclusão
2
consiste, em última análise, a desvendar a
existência de desigualdades sociais e, portanto, de oportunidades. As desi-
gualdades de oportunidade de acesso ao ensino superior, por exemplo, de-
vem-se principalmente às desigualdades sociais. Se assim for, não é exage-
rado dizer que a Escola não age natural e fortemente em prol dos menos
favorecidos socialmente. Com efeito, os especialistas em educação
3
já de-
monstraram de modo convincente que as desigualdades sociais reprodu-
zem e ampliam as desigualdades escolares, que, por sua vez, geram desi-
gualdades de oportunidade.
Por outro lado, deve-se rememorar que a história não está escrita
4
, mas
é produzida pelos homens que a vivem. Aliás, dizia o filósofo alemão, no
século passado, que a história social é, antes de tudo, o resultado imediato
das lutas sociais travadas pelos homens entre si
5
. Se este princípio de regulação
social continua sendo efetivo, então o Estado tem, e deveria ter, um papel
crucial no processo social. Do ponto de vista estritamente econômico, con-
sidera-se (e isto desde Adam Smith) que a coesão social é determinada, em
última instância, pelas leis da economia, do mercado. No processo econômi-
co, o Estado tem tido, e ainda tem, um papel de correção das distorções ou
imperfeições do mercado. Este papel tem sido atribuído às políticas sociais
cujas funções consistem em corrigir as distorções sociais gritantes, que atra-
palham o funcionamento do mercado, dos pontos de vista econômico
(alocação de recursos e determinação dos preços) e social (distribuição de
justiça social). Mas, as ações de política social não têm por objeto eliminar
as desigualdades sociais, mas sim a de diminuir distorções sociais que afe-
tam negativamente a economia. Por isso, considera-se – depois de Marx e
2
Faria, W. Social exclusion in Latin America. An annotated bibliography. Genève, IIES, Discussion Papers
Series nº 70, 1994.
3
Pensa-se particularmente às pesquisas de Althusser Louis (Appareils Idéologiques d´État, in La Pensée,
1970), Bourdieu-Passesson (Reproduction, ed. Minuit, 1970) e Baudelot-Establet (l´Ecole Capitaliste
en France, Maspero, 1978).
4
Ibnu Khaldun, na sua “Mukadema” (séc. XVI), criticava a visão difusa do “Maktub” no oriente. No
mesmo sentido, ver E. Said, Orientalismo, Cia de Letras, 1994.
5
Bela análise de Marx no seu 18 Brumario.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
133
Keynes –que o Estado age maciçamente em prol do capital, mas sem ignorar
o social
6
. O equilíbrio destas ações de políticas públicas depende, em última
análise, da conjuntura e das forças sociais em presença
7
. Mas, o volume de
recursos financeiros mobilizáveis por ações do Estado tem limites, em espe-
cial o de não modificar substancialmente a estrutura social.
Significa dizer que os condicionantes econômicos têm um peso enorme
na manutenção da estrutura social. Isto aponta os limites da mobilidade so-
cial e os dados disponíveis sustentam fortemente esse tipo de análise
8
. Ape-
sar disto, vale ressaltar que o sistema econômico capitalista não é determinista,
nem tem como ser. Ele condiciona fortemente as ações dos agentes, mas não
determina todas as suas ações. Assim sendo, o sistema propõe e os atores
sociais dispõem
9
. Traduzindo: existem alternativas no sistema que podem
ser aproveitadas pelo Estado nas suas práticas inclusivas, quer seja em ter-
mos de facilitação de acesso à educação, quer seja em termos de criação de
oportunidade de emprego e renda. Essas duas opções são integráveis em
uma única perspectiva, a da educação profissionalizante.
FORMAÇÃO PROFISSIONALIZANTE
A falta de educação, ou pior sua inexistência, implica exclusão do em-
prego bem remunerado. Logo, na falta de competência profissional, reside a
principal causa da pobreza monetária. Cria-se assim um “círculo vicioso”: o
pobre é pobre porque tem baixa qualificação profissional e, portanto, é ex-
cluído do emprego formal, da renda e, por extensão, da escola. Em termos
de mercado de trabalho, a inadequação entre empregos ofertados e as quali-
ficações exigidas pelo mercado explica fortemente as causas de desemprego,
subemprego, emprego informal.
Nesse sentido, programas educacionais e de formação profissionalizan-
te poderão servir de alavanca de políticas de inclusão social e, portanto, de
redução de desigualdades sociais. Esses programas devem fornecer não ape-
6
Ver análises e críticas das visões neoclássicas e keynesianas em X. Greffe, Les politiques públiques, Ed.
Economica, 1978, caps. II e III.
7
Neste ponto, pensa-se às analises de N. Poulantzas (Classes sociais no capitalismo de hoje, Zahar, 1980)
8
Brilhante análise teórica e quantitativa de Daniel Berteaux, Destinos Pessoais e estrutura de classe, Ed.
Zahar, 1979.
9
Duru-Bellat Marie, Les Inégalités sociales à l’école: genèse et mythes Paris: PUF, 2002, (Collection Éducation
et formation).
134
nas educação gratuita e de qualidade, mas devem ser sustentados por meca-
nismos de inclusão profissional.
A formação profissional constitui um elemento importante de mobili-
dade social, uma condição necessária, mas não suficiente. Se assim for, pre-
cisa-se de uma inserção no mercado de trabalho para concretizar esta ascen-
são social. Esta se traduz por emprego e renda e, portanto, por um
posicionamento no campo social.
Disto conclui-se que, a disponibilização do ensino gratuito e de quali-
dade é uma condição necessária, mas não suficiente para efetivar a inclusão
social. Com efeito, o “excluído” pode até ter aptidões para acompanhar e ter
sucesso no ensino dispensado, mas se ele não tiver determinadas precondições
(recursos de subsistência e para adquirir livros) do aprendizado, ele não ven-
cerá as barreiras sociais e escolares (bloqueios de aprendizado e meios de
subsistência) postas pela sociedade. Significa dizer que a inclusão social
viabiliza-se por meio do binômio: inclusão universitária/inclusão profissional.
Nesse espírito, torna-se absolutamente concebível que as ações do Es-
tado na área de educação possam ser, entre outras coisas, as de inclusão
social. Vale dizer que o Estado passa a criar condições materiais e instituci-
onais que permitam garantir aos excluídos sociais, em especial os pobres,
acesso à educação superior. Tal é o ponto de partida que norteou o Projeto
Universidade Zona Leste, que nós tivemos a satisfação de coordenar.
A EXPERIÊNCIA DA ZONA LESTE
A prática da inclusão social na universidade tem especiais vantagens
pouco perceptíveis, entre as quais podem ser citadas as seguintes
10
:
a presença física representativa dos excluídos na universidade impli-
cará modificação da composição social da universidade e, portanto,
do seu papel social e político. Esta nova composição social
redireciona o formato organizacional da instituição, bem como sua
forma de ensino;
a inclusão social conduz invariavelmente à introdução de novas de-
mandas sociais na universidade, que acabarão resultando na produ-
ção de “outros olhares” sobre as instâncias sociais e políticas da soci-
edade. Determinados temas de pesquisas serão priorizados e, por-
10
R. Benakouche, Análise da demanda educacional na Zona Leste de São Paulo, Doc. Mimeo, 2002.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
135
tanto, haverá uma reorientação de energia intelectual para questões
sociais até então ignoradas;
inclusão social implicará também a democratização social da universi-
dade devido, entre outros, à presença dos excluídos e, portanto, à
tomada em consideração de suas demandas, em especial das análises
de suas necessidades;
inclusão social permitirá o reconhecimento social e institucional das
competências (para não dizer saberes) dos excluídos sociais. Isto já é
reconhecido pela LDB, que admite a possibilidade de revalidação
deste tipo de competência nos processos avaliativos e seletivos.
Esses princípios básicos poderão gerar, se praticados, uma universidade
socialmente mais justa, mais responsável socialmente e mais democrática. Tal
é o espírito que presidiu o Projeto da Universidade Zona Leste, como é já
chamada na imprensa.
Para pensar o Projeto, partimos de três pontos básicos:
a) população da região é estimada em mais de 8,4 milhões de habitan-
tes. Tem 35% da população de São Paulo mas tem apenas um IDH
de 0.4 (contra 0.8 para SP). Essas características permitem susten-
tar que a IES a ser projetada deve atender preferencialmente às
classes C e D;
b) mercado de trabalho da região abarca 15% das empresas paulistas e
representa 35% da PEA de São Paulo; características que exigem
uma IES profissionalizante;
c) ensino da região pode ser representado assim: 121 mil concluintes; o
ensino médio é essencialmente estatal (74% do total das vagas) e o
superior é essencialmente dominado pelo setor privado (95% das
vagas) voltado, predominante, para a área das humanidades (72%
das vagas). Decorre-se daí a necessidade de implementar uma IES
voltada para as áreas tecnológica e de saúde.
Para se ter uma IES capaz de atender às classes C e D, uma IES profis-
sionalizante e voltada para as áreas de tecnologia e saúde, faz-se necessário
construir um ente diferenciado e inovador. Com efeito, passamos a adotar as
seguintes características:
ente misto, articulando os setores público e privado, do ponto de vista
da sua personalidade jurídica, acoplada a um sistema de gestão com-
partilhado também entre o público e o privado;
136
ingresso diferenciado: pensou-se nas diversas modalidades e procedi-
mentos facilitadores de ingresso dos excluídos sociais;
pedagogia flexível baseada nas passarelas entre e intracursos; pedagogia
baseada também sobre uma estrutura de um domínio conexo, domínio
comum da área de conhecimento (disciplinas comuns a todos os cur-
sos da área); disciplinas específicas (as da especialidade) e disciplinas
livres (para permitir ao aluno aumentar sua capacidade vôo);
organização enxuta, sob o olhar vigilante do Conselho dos curadores;
corpo docente diferenciado, permitindo acesso de profissionais mais
voltados ao mercado;
sistemas de gestão e de financiamento compartilhados entre setores
público e privado;
sistema de gestão baseado fundamentalmente sobre sistema de custos
por curso;
estrutura de ensino permitindo a mescla do ensino presencial e do EAD.
CONCLUSÕES
Usar o conceito de inclusão é pensar novo; é sair do debate tradicio-
nal sobre causas da exclusão e da probreza; é não atribuir capacidade
explicativa globalizante às variáveis de renda, raça, gênero. Numa palavra,
afastar-se da “economia da pobreza”. Pois, dois séculos atrás, A. Smith já
centrava a questão da exclusão às necessidades e definia o minimum vital
necessário ao ser humano, para o qual Marx acrescentou a “dimensão his-
tórica”. Desde então, os economistas aperfeiçoaram suas técnicas de
mensuração da pobreza absoluta e relativa.
Sen, prêmio Nobel de Economia, deu-se conta da “pobreza da econo-
mia” e rejeitou esse enfoque por considerar que no “excluído” existe “a ca-
pacidade de realizar-se” (capability to function)
11
. Segundo este conceito, o in-
divíduo tem uma variedade de funções interconectadas. Algumas são bási-
cas (comer, vestir...) e outras são complexas (felicidade, auto-estima, laços
comunitários). No exercício de suas funções, o indivíduo opta pelo tipo de
vida que ele preza para se “valorizar”. A gama de escolhas pode ser conside-
rada um indicador de liberdade que o indivíduo dispõe para realizar seu bem-
estar, otimizando sua função utilidade. Assim sendo, os governantes deveri-
am descobrir os valores que sustentam essa gama de escolhas e lhes dar os
devidos pesos, realizando a inclusão social.
11
A. Sen, Desenvolvimento e Libertadade, Ed. Cia de Letras, 2001.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
137
Seguindo este raciocínio, poder-se-á dizer que a inclusão social via uni-
versidade pressupõe reconhecimento de competências do excluído, sistema
de ensino diferenciado, pedagogia apropriada e demais soluções correlatas.
Todos esses mecanismos permitem construir, na melhor das hipóteses, um
sistema de ensino compatível com as demandas sociais e educacionais do
excluído. No entanto, essas soluções não serão suficientes se elas não forem
acompanhadas da inserção profissional do excluído social e (embora) inclu-
ído universitário; processo de inserção é factível e complexo, razão pela qual
não será descrito aqui e agora.
Inserção profissional é hoje um problema dificílimo para o estudante
em geral e mais ainda para o excluído social. Com efeito, quem – excluído ou
não – passe pela universidade não tem, necessariamente, garantido seu in-
gresso no mercado de trabalho. Quer dizer, é um “não-incluso”. Pior ainda:
hoje, a Economia desempenha-se de modo “não-incluso”, isto porque o pro-
cesso de globalização é predominantemente excludente de países (em espe-
cial os do Sul) e dentro dos países, de regiões, setores e classes econômicas
não-competitivas
12
. Acrescente a isso que o ingresso maciço de novas
tecnologias nos serviços e na produção gera poucos empregos e os empregos
criados exigem novas competências não ensinadas em universidades. Numa
palavra, hoje, a “não-inclusão” é uma regra de funcionamento da Economia.
Por isso, a inclusão não está inscrita nem nos programas de ação das univer-
sidades, nem dos da Economia. Inclusão pressupõe criação de mecanismos
originais de ensino e de oportunidades e renda.
12
R. Benakouche, Globalização ou pax amarecina? in Comunicação e Política, 1999/2001.
139
AS MINORIAS E A UNIVERSIDADE NO BRASIL:
A IRONIA DE UM DESENCONTRO POLÍTICO
Beatriz Couto
Para Virgínea Guimarães Ferreira, pelas leituras.
Por que e como reformar a universidade à luz dos valores republica-
nos da igualdade entre cidadãos, do exercício ativo da cidadania e do mé-
rito como critério de seleção ou, o que dá no mesmo, o seu corolário, o da
ausência de discriminação por origem e nascença? Eis uma pergunta a de-
mandar resposta urgente e avaliação de como tais valores se confrontam
com a universidade dos nossos dias. A resposta exige pensar tanto esta
sociedade como nossa universidade, e eu me proponho a colocar em dis-
cussão a coincidência entre o momento histórico em que os movimentos
sociais logram colocar em pauta sua exigência de oportunidade de acesso e
aquele atualmente vivido pela própria universidade, o da alteração dos
valores de igualdade, mérito, liberdade e autonomia, que estão sendo pres-
sionados à redefinição pelo acosso neoliberal.
Vivemos um momento histórico peculiar quanto aos valores sociais postos
em discussão no Brasil e no mundo. E um eixo que consigo diferenciar é que
estão em questão as formas tradicionalmente estabelecidas de solidariedade
intergeracional. É preciso notar que a educação é um dos lugares sociais dessa
solidariedade. Outro é a previdência social, e um terceiro, o meio ambiente. As
duas primeiras estão submetidas, no presente momento, à reforma, com sinais
claros de que a atual geração caminha para se desonerar de alguns valores e
compromissos a elas relacionados; o terceiro luta por um futuro ora incerto.
Se não cabe aqui discutir a reforma da previdência, pode-se ao menos
anotar que a proposta de substituir o regime de repartição, em que a popula-
ção economicamente ativa paga os benefícios dos atuais aposentados, pelo
de capitalização significa exatamente a quebra dessa solidariedade. Na outra
ponta, a da relação com as gerações futuras, o questionamento ao direito de
todos à educação pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada
(*) Arquiteta urbanista, professora titular da Escola de Arquitetura da UFMG, doutora em Planejamento Urbano
e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR da UFRJ, mestre em
Town and Regional Planning por Iowa State University, EUA.
140
em todos os níveis, estabelecido pela Constituição de 1988, e, de resto, di-
reito sustentado no Primeiro Mundo, não está sendo sequer compensado
pelo acesso crescente ao ensino fundamental, posto que este foi empobreci-
do, apresentando péssimos resultados e não resistindo à comparação em
qualidade e duração com alguns dos países mais pobres do planeta. Herança
mesquinha que estamos deixando para os novos brasileiros e brasileiras.
Dentro deste contexto amplo, o acesso das minorias à universidade não
é questão menor. O que pretendo enfatizar aqui é a ironia do momento his-
tórico em que o Brasil começa a se colocar efetivamente a questão, qual seja,
a atual ênfase nos valores republicanos frente a uma universidade sob im-
pacto do neoliberalismo. Creio poder demonstrar que o olhar dirigido às de-
mandas dos movimentos sociais é necessário, mas não suficiente para com-
preender o que podemos esperar como solução feliz desse problema.
Vale observar, de imediato, que no geral já se começa a naturalizar fora,
mas possivelmente também dentro das instituições de ensino superior públi-
cas e privadas, a proposta pragmática de uma educação instrumentalizada
que visa a adaptar o ensino às exigências do mercado, ensino este que enfatiza
competências e desvaloriza a formação. Lembremos que a formação, ou seja,
a capacidade de analisar, de criticar e de propor alternativas para a sociedade
e para o trabalho, é direito social que expressa a solidariedade dos docentes
ao estudante para que este possa buscar e exercer cidadania ativa, participa-
tiva, para que possa concretizar sua cidadania republicana. Aí um primeiro
óbice. Nossas minorias, tendo sucesso em reverter para si um processo his-
tórico de exclusão de fato da universidade, encontrarão, possivelmente nas
faculdades e universidades privadas, mas também crescentemente nas pú-
blicas, uma educação que neste caso pouco as ajudará na consolidação de
um espaço público que almejamos construir de forma que se inclua
crescentemente a imensa parcela de jovens egressos do 2
o
grau que, muito
possivelmente, ainda ficará de fora. No Brasil, há, proporcionalmente, me-
nos estudantes entre 18 e 24 anos no ensino superior que na Argentina,
Chile e outros países latino-americanos. Mas isto não é tudo.
Nos termos em que está posta, e eu enfatizo aqui a proposta de adoção
de cotas, salta à vista a inspiração que busca nosso debate em movimentos
similares ocorridos a partir da década de 1960 no Primeiro Mundo. Foi quando
os movimentos por ampliação de direitos sociais com ênfase na oportunidade
efetiva de acesso à universidade emergiram nos Estados Unidos e na Europa,
defendidos significativamente pela primeira geração de jovens nascida depois
da 2
a
Guerra Mundial. Chamo a atenção para este detalhe por sua coincidência
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
141
não-eventual com o processo de hegemo-nização mudança estrutural que vive
a universidade, questão que será explicitada mais adiante.
Retomando, decorre daquela mobilização a reformulação das universi-
dades para ampliar a oferta de ensino superior, massificando-o, não apenas
no Primeiro Mundo, mas também aqui no Brasil, que não ficou atrás da luta
pela ampliação da oferta de vagas no ensino superior. Em cada um dos ca-
sos, no entanto, a resposta efetivamente dada decorreu das peculiaridades
das desigualdades sociais manifestas localmente. Ênfase nas questões de
raça e etnia nos Estados Unidos, que respondeu com a solução social das
cotas a serem implantadas nas universidades e faculdades que recebessem
verbas do governo federal e que compõem um sistema tão diferenciado quan-
to vasto, que inclui as elitistas Ivy League Universities, todo o prestigioso
sistema estadual, as tecnológicas, as comunitárias e um conjunto diferencia-
do de colleges. Esta solução, de aproximadamente quatro décadas, já foi
posta em questão em meados da década de 1990 pela virada política conser-
vadora. Na Europa, a ênfase se deu no acesso à massa dos estudantes
concluintes do 2
o
grau, em continente marcado por uma universidade histo-
ricamente de elite. Se a resposta foi aí um pouco mais generosa no sentido de
ampliar a rede de universidades públicas para acomodar a nova demanda,
também se desenvolveu um sistema universitário dual, mantendo as univer-
sidades para a elite, mas acrescentando outras técnicas para atender à massa,
não obstante ter-se consolidado no balanço uma ampliação significativa do
número de instituições públicas de ensino superior. Em alguns países, Ale-
manha, por exemplo, o estudante é pré-selecionado, ainda durante o ensino
fundamental, para o tipo de universidade que poderá cursar, de elite ou de
massa. Deve-se notar, entretanto, que ainda que de forma incipiente, as
mudanças que ora vivemos nas universidades mundo afora, e que serão de-
talhadas mais adiante, já estavam formuladas desde meados do século XX,
mas a situação estava longe de apresentar a clareza e o grau de desenvolvi-
mento que assistimos hoje.
E antes que passemos à discussão dessas mudanças, podemos observar
que no Brasil nossa universidade temporã é a um só tempo elitista e racial-
mente discriminatória. Por aqui, a resposta foi sui generis: a ampliação da rede
de faculdades e universidades particulares acomodou a demanda de egressos
do 2
o
grau em condições de pagar as mensalidades, oferecendo um ensino de
3
o
grau de massa. O crescimento da oferta de vagas na rede pública nem de
longe acompanhou a nova demanda. A liquidação da dívida social com ne-
gros e índios foi adiada. Só recentemente, quatro décadas depois, a questão
das minorias raciais se coloca com ênfase no espaço público.
142
O outro lado da história, aqui e mundo afora, exige detalhar o que ocor-
re nas universidades e com os seus docentes-pesquisadores a partir da virada
política conservadora marcada pelos governos de Reagan e Thatcher. Con-
vém antes recapitular o fato de que a universidade sempre foi uma institui-
ção mundialmente referenciada, desde o século XII quando começa a se
formar no ocidente. No século XIII, o egresso de curso superior adquiria o
direito de ensinar urbi et orbi, na cidade e no mundo, e historicamente as
mudanças sofridas pela instituição são sentidas grosso modo ao mesmo tem-
po em todos os lugares.
No entanto, a crise que se abate sobre a universidade sob o acosso do
neoliberalismo não encontra similar em qualquer das outras vividas pela ins-
tituição até o milênio que se encerrou. Em todas as crises pregressas, deto-
nadas por intervenção e censura papal, pelas reformulações filosóficas que
fundaram a modernidade, pelas novas exigências tecnoprofissionais do po-
der temporal ou ainda pela expansão de seu trabalho para aí incluir a pesqui-
sa e mesmo, com menos ênfase, a extensão, a base produtiva fundamental da
instituição ficou preservada: o intelectual clássico, definido durante todo o
milênio como responsável pela concepção e desenvolvimento de seu traba-
lho e nomeadamente implicado nos avatares da legitimação de seus resulta-
dos. É o capitalismo do conhecimento, o capitalismo tecnocientífico que
virá instaurar a crise deste modelo, propondo novas bases, mais consoantes
com suas próprias necessidades, para o trabalho intelectual dentro e fora das
universidades.
Em paralelo a estas considerações e no sentido de construir a interpre-
tação dos efeitos, das resistências e das denegações das mudanças vividas
pelas universidades, é importante tomar nota da peculiar relação do intelec-
tual com o mundo do trabalho. Este, via de regra, lança um olhar distanciado
ainda que, normalmente, simpático sobre este mundo, posto que presumida-
mente alheio a seu próprio. O trabalho, como duro cotidiano de sustentação
da vida, aparece sempre como sinônimo de trabalho manual ou, quando muito,
trabalho burocrático. Para nós, ainda valeria o ócio com dignidade estabele-
cido para a academia desde os gregos. O nosso próprio trabalho é historica-
mente analisado sob o aspecto de sua consistência e desafios teóricos nos
estudos epistemológicos ou ainda pelo que implica de relações sociais entre
os próprios intelectuais e entre estes e a sociedade na sociologia do conheci-
mento. Se estes estudos ainda se justificam, eu avalio que o distanciamento
presumido do mundo do trabalho é um momento histórico superado sob o
capitalismo tecnocientífico. Quero demonstrar que esta atitude agora signi-
fica cegueira em relação ao que nos é posto pelo atual momento histórico.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
143
Passemos então a apurar nossa observação sobre as mudanças vividas
pela universidade neoliberal e aqui restrinjo minha referência à rede pública
que responde ao dispositivo constitucional de indissociabilidade entre ensi-
no, pesquisa e extensão.
A olho nu, observamos aí o processo de hegemonização não apenas da
educação instrumental, conforme já apontado, mas pior, a instrumentalização
do próprio educando para garantir o produtivismo que é exigido dos docen-
tes-pesquisadores. Esta instrumentalização é a face mais perversa e menos
discutida da ruptura da solidariedade intergeracional. E ironia maior se tor-
na sua coincidência com o momento histórico em que nossas minorias, jus-
tamente ambicionando a efetivação dos valores igualitários e meritocráticos,
ameaçam romper barreiras efetivas de segregação social e conseguir assim o
almejado acesso à academia, apenas para aí se deparar com a reposição da
dominação da forma mais insidiosa, vencida a universidade por pressões
político-econômicas neoliberais. O caso merece detalhamento pelo que es-
pecifica a respeito dos termos em que serão acolhidos tais estudantes nas
instituições de ensino superior.
A mudança que agora acossa a universidade decorre da posição central
assumida pela ciência e tecnologia no chão da fábrica a partir da 2
a
Guerra
Mundial. A universidade está submetida ao processo de mudança estrutural
das relações sociais de produção intelectual postas pela revolução de méto-
do na produção científica que decorreu da produção da bomba atômica. Foi
aí que se instituiu o trabalho coletivo, caracterizado pela divisão entre con-
cepção e desenvolvimento, pelo parcelamento de tarefas, pela adoção de
frentes concertadas de pesquisa que se instruíam mutuamente em tempo
real, pela produção sob a égide do Estado por motivos último não-acadêmi-
cos, pela possibilidade de contornar as restrições éticas de pesquisadores por
meio de sua exclusão ou substituição sem alterar o cronograma e fins estabe-
lecidos e, por fim, pela internalização, pela equipe de trabalho, das funções
críticas, até então trabalho exclusivo da instância pública composta pela
comunidade acadêmica. O sucesso da organização em produzir ciência dura
de qualidade não passou despercebido e as empresas imediatamente criaram
seus departamentos de pesquisa e desenvolvimento para produzir, a tempo e
a hora, dentro da fábrica o conhecimento e a tecnologia exigidos. O capital,
mais uma vez, levantando-se sobre seus próprios pés, libertou-se das
idiossincrasias do intelectual clássico. Foi este o ponto de virada do processo
de coletivização da capacidade de trabalho intelectual e o momento atual é
o de expandir e hegemonizar essa conquista, substituindo, o mais depressa
144
possível e com larga vantagem em termos de eficácia produtiva, o intelectual
clássico dentro e fora das universidades, exigindo destas a adaptação ao
modelo por intermédio do controle do financiamento da pesquisa e carreando
dinheiro público para as pesquisas e inovações tecnológicas.
São evidências empíricas imediatas desta mudança: a aceleração do rit-
mo do trabalho dos professores; o darwinismo social em sua versão acadê-
mica do publish or perish; a hierarquização dos docentes que nos divide entre
alto e baixo cleros, ideologia desmobilizadora que visa a legitimar a subsunção
dos não-doutores e, por esta via, garantir a produtividade do alto clero; o
produtivismo triunfante, que não recua ante a troca da qualidade da produ-
ção pela quantidade, fórmula que garante a manutenção do financiamento
da pesquisa, sendo esta a condição necessária para assenhorar-se do contro-
le da capacidade de trabalho dos não-doutores, tanto docentes como discen-
tes; e, por fim, a instrumentalização dos projetos de pesquisa a serem finan-
ciados pela indústria. É este processo que, no limite, garante a expropriação
do produto do trabalho intelectual dos educandos, no seio mesmo da univer-
sidade pública. Numa palavra, vivemos sob o acosso do neoliberalismo, a
taylorização da academia.
Na Inglaterra, país que levou este modelo a sua consistência máxima,
os projetos de pesquisa são avaliados apenas por seu custo-benefício, sem
considerações outras de qualidade acadêmica (Dominelii e Hoogvelt, 1996).
É evidente que, como modelo de relações sociais de produção intelectual
em processo de hegemonização, convive-se ainda com nichos remanescen-
tes de intelectuais clássicos atuando com liberdade conforme o tipo de pes-
quisa e o campo de conhecimento, o que tem servido tanto para dificultar
como para justificar ideologicamente as mudanças em curso.
E antes que se termine, é só observar os textos do Banco Mundial
sobre educação. Está posta com clareza, conforme já amplamente denunci-
ado, uma proposta de divisão do trabalho intelectual entre as universidades
do 1
o
mundo e as do terceiro, onde cabe àquelas a parte do leão na produção
e no financiamento das pesquisas e a nós o trabalho de adaptação dos resul-
tados às peculiaridades locais. No melhor estilo colonialista que presume
que o que é bom para eles é bom para nós.
De passagem, é importante afirmar que não há aqui qualquer xenofobia
frente a uma pesquisa para a indústria. Pelo contrário, será de máxima incon-
veniência se a universidade brasileira aceitar se submeter às diretrizes do Ban-
co Mundial, o que terá graves conseqüências para nossa soberania. Mas a pes-
quisa, assim como o ensino, não se pode deixar instrumentalizar pelo mercado,
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
145
com sua visão conservadora e de curtíssimo prazo, sem que isto signifique sua
rápida esterilização e incapacidade de prenunciar novos caminhos que hão de
ser distintos e originais para nós, posto que distintos e originais são nossos
problemas. Cabe também deixar claro que o trabalho intelectual coletivo re-
presenta de fato um ganho social inegável frente à organização pregressa base-
ada no intelectual clássico, tendo se tornado imprescindível em alguns campos
do conhecimento, tudo isto desde que formas específicas de sua implementa-
ção que implicam a subsunção de não-doutores com a perda de sua liberdade
acadêmica possam vir a ser contrarrestadas.
Chegamos ao ponto que interessa. É a universidade abertamente ne-
oliberal, e não aquela do início da transição do modelo da década de 1960
que no Primeiro Mundo acolheu a demanda social por ampliação e igual-
dade de acesso, que espera os brasileiros índios, negros, pobres e, claro,
inclusive, a elite local.
Voltemos ao elitismo versão brasileira. Observemos que, na Alemanha,
França e Estados Unidos, a universidade de elite contracena com uma socie-
dade em que os valores democráticos e republicanos são um dado da cultura
sociopolítica. Nossa situação é distinta. Nossa universidade elitista se apóia
em uma sociedade também elitista, marcada por aguda concentração de renda,
pelo autoritarismo e elitismo compartilhados inclusive pela massa dos dela
excluídos. A tecnocracia autolegitimatória ainda reina no pedaço. Este círculo
vicioso trabalha mais no sentido de nos impedir do que no de nos ajudar a
superar nossas profundas e sedimentadas divisões de classe.
Os direitos sociais estão aí para romper com este círculo e apoiar a
sustentação de valores socialmente compartilhados. Solidariedade e genero-
sidade intergeracionais são a base de uma educação de qualidade que uma
República digna deste nome deve garantir em sua forma pública, gratuita,
laica e de qualidade. Uma democracia não se sustenta com níveis tão brutais
de desigualdades de renda, que só o nosso elitismo de todas as classes per-
mite tolerar. Em época em que banqueiros – e parece que perdemos a capa-
cidade de nos espantar com o súbito interesse destes graves senhores pela
educação e pelo trabalho intelectual – ditam políticas educacionais, estes
valores estão seriamente ameaçados pela razão instrumental. Banqueiros não
são notoriamente reconhecidos por prezar a solidariedade e a generosidade.
E uma universidade, digna do nome, deles não há prescindir.
Cabe ainda uma especificação do que sejam minorias no Brasil. Negros, cer-
tamente, e os índios que puderam sustentar sua identidade étnica. Mas há também
aqueles descendentes dos índios aldeados que escaparam do genocídio ao preço
146
da negação de sua herança cultural e que vieram depois compor a pobreza urbana
na periferia (Gomes, 2003). É por todas estas características que a questão das
minorias no Brasil é complexa e exige uma resposta original, ampla.
Precisamos de uma universidade pública de qualidade que acolha os bra-
sileiros e brasileiras de todas as cores e classes. Menos que isso é impossível
exigir. E precisamos deles em grande número dentro das instituições públicas
de ensino superior, com sua experiência, fortalecida é preciso reconhecer, de
fazer frente à opressão política, para lutar por uma universidade em que o
trabalho intelectual se faça coletivo sem expropriação de mais-produto; que
lutem para evitar também outras conseqüências nefastas da mudança acadê-
mica que vivemos, e não cabe desenvolver aqui, como a possibilidade muito
real de esterilização das linhas de pesquisa; e que ajudem a definir critérios de
educação e pesquisa que respondam à qualidade de vida que desejamos legar
para as próximas gerações. Isto exigirá imediatamente a ampliação de vagas
nas universidades públicas, abertura de cursos noturnos, acolhimento imedia-
to e trabalho específico de sustentação intelectual e pessoal das minorias e das
classes subalternas nas escolas brasileiras de todos os níveis.
REFERÊNCIAS
CHARLE, C. e VERGER, J. História das universidades. Tradução de Elcio
Fernandes. São Paulo: Editora UNESP, 1996.
COUTO, B. O mal-estar na universidade: a coletivização do trabalho
intelectual. Caminhos, nº 22, 2003, pp. 14-49.
DOMINELLI, L. e HOOGVELT, A. Globalization, contract government,
and the taylorization of intellectual labor in academia. Studies in political
economy. v. 49, spring, 1996. pp. 71-100.
GOMES, M. P. O caminho brasileiro para a cidadania indígena. In: PINSKY,
J. e PINSKY, C. B. (orgs.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2003.
pp. 419-445.
RIBEIRO, M. Competência x democratização: um desafio da “pós-
modernidade” à universidade pública. Universidade e sociedade. ano vii, nº
12, 1997. pp. 13-23.
147
POR UMA LEI ORGÂNICA DO ENSINO SUPERIOR
1
Luiz Antônio Cunha
2
A história recente da universidade brasileira traz a marca de um para-
doxo: a despeito da intervenção violenta, da destituição de professores e da
expulsão de estudantes, a despeito, também, de ter promovido e subsidiado
o crescimento vertiginoso das instituições privadas de ensino superior, a di-
tadura militar investiu muito nas universidades federais. Com efeito, foi nos
anos 70, justamente na implantação da Lei nº 5.540/68, a da reforma uni-
versitária, que as universidades federais construíram seus campus, ampliaram
seu quadro docente e instituíram o regime de tempo integral e dedicação
exclusiva. No entanto, a transição e consolidação da democracia presenciou
a continuação dos benefícios ao setor privado, ao mesmo tempo em que as
universidades federais passaram a ser tratadas com restrições financeiras e
cobranças de aumento do atendimento à crescente demanda de vagas.
A autonomia, que já era pouca na ditadura, foi sendo reduzida com a
democracia. A cada ano, mais e mais constrangimentos financeiros e adminis-
trativos foram sendo aplicados às universidades federais. Com a Lei nº 10.480/
02, chegou-se ao cúmulo da supressão das procuradorias jurídicas próprias.
Com este texto, pretendo alertar para a continuação desse processo
paradoxal, de modo ainda mais grave: a autonomia destruindo a autonomia.
Oito anos depois de promulgada a Constituição, e apresentado o pri-
meiro projeto na Câmara dos Deputados, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional foi promulgada. O longo tempo decorrido não foi sufici-
ente para que se produzisse uma legislação adequada para matéria de tão
1
Texto apresentado na mesa “Universidade XXI, resgate do futuro, estrutura e ordenação do sistema: a
tensão entre o público e o privado”, no Seminário “Universidade: por que e para que reformar?”,
promovido pela SESu/MEC e pelas Comissões de Educação do Senado e da Câmara dos Deputados,
Brasília, 6–7/8/03.
2
Professor Titular (Educação Brasileira) da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
148
alta relevância. Apenas para exemplificar a inadequação de nossa segunda
LDB, menciono o fato de ela ter silenciado sobre temas da maior importân-
cia, como o Conselho Nacional de Educação, deixado para legislação de
menor hierarquia política. Foi por essa razão que qualifiquei a LDB de
minimalista (Cunha, 1996b).
Diante dos dois projetos de LDB, o da Câmara e o do Senado, o Minis-
tro da Educação, Paulo Renato Souza, preferiu apoiar o desta Casa, já que o
texto do senador Darcy Ribeiro, além de menos minucioso, tinha em seu
autor maior receptividade para modificar a versão original, de modo a ade-
quar-se às políticas governamentais. Mas, ao em vez de buscar incluir dispo-
sitivos no projeto do Senado, o MEC preferiu que o projeto de LDB deixasse
de tratar dos temas que seriam objeto de projetos de lei específicos, ou o
fizesse de modo bastante genérico, permitindo articulações, por omissão,
com as medidas que se tomavam. Assim, enquanto o projeto de LDB do
Senado prosseguia na tramitação parlamentar, pelas comissões e pelo plená-
rio, ele foi sendo adaptado às políticas que o Poder Executivo implementava.
Neste sentido, o Ministério elaborou importantes projetos de lei, encami-
nhados pela Presidência da República ao Congresso, traçando, assim, de modo
fragmentado, as diretrizes e bases da educação nacional, fora, mas não contra,
o que seria a lei maior de educação.
O ideal seria a elaboração de nova LDB. Como isso não é viável, no
horizonte político previsível, entendo que o possível, nas atuais circunstân-
cias, será a elaboração de leis orgânicas que possam preencher as lacunas e
corrigir os equívocos daquela lei. É o que proponho agora: a elaboração de
uma Lei Orgânica do Ensino Superior.
Uma lei dessa natureza precisaria, antes de tudo, definir o ensino supe-
rior, aliás, todo o ensino institucionalizado, como um serviço público passí-
vel de ser oferecido diretamente pelo Estado ou por instituições privadas,
em regime de concessão. Estou ciente de que, para isso, seria necessária uma
reforma constitucional, a meu ver inadiável diante da cobiça internacional,
que, no momento, move processo na Organização Mundial do Comércio.
Partindo da falsa premissa de que o ensino é um serviço econômico
como as telecomunicações, os governos de certos países estão a exigir da
OMC que obrigue a todos abrirem seus mercados educacionais à competição
internacional. Para eles, o ensino – a habilitação profissional, inclusive e
principalmente, em grau superior – deveria ser um serviço oferecido por
empresas diversas, de países diversos, de modo que o aluno/consumidor
escolha seu provedor como faz com um telefone celular. E mais: a vali-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
149
dade dos certificados e dos diplomas, assim como a avaliação e o
credenciamento das instituições de ensino, deixaria os limites dos Esta-
dos nacionais. O resultado é fácil de se prever: a dissolução dos sistemas
de ensino nacionais, sobretudo nos países de menor integração cultural,
como o nosso.
O Brasil é o mercado mais visado, por causa do tamanho de sua popu-
lação e da fome de educação de seu povo, longe de ser saciada. Fome tão
maior quanto mais intensa é a deterioração do ensino público em nível bási-
co, o que gera uma demanda adicional de ensino superior – a busca na facul-
dade do que não se aprendeu na escola fundamental nem na média...
Antes de tudo, pois, é preciso retirar a educação, particularmente a su-
perior, do campo do mercado, ainda que se ressalve a atuação legítima da
iniciativa privada.
Uma lei orgânica definiria melhor configuração para o campo do ensi-
no superior, corrigindo os efeitos não intencionados que resultaram de ini-
ciativas inadequadas do Poder Executivo, como os centros universitários
(Decreto nº 2.207/97); ou até mesmo do Poder Legislativo, como os cursos
seqüenciais (LDB). Ela trataria de matérias que têm sido proteladas, como a
das obscuras relações das entidades privadas ditas mantenedoras e as IES,
inclusive as universidades. A lei orgânica teria uma seção relativa às univer-
sidades e um capítulo dedicado ao sistema federal de ensino superior, inclu-
sive as universidades federais.
No que diz respeito às universidades, a lei orgânica trataria dos marcos
da autonomia e definiria matérias relevantes, como a avaliação, abrangendo
todas as instituições. No que concerne às universidades federais, essa lei
disporia sobre importantes questões comuns a todas elas, como as seguintes:
financiamento, carreira, organização interna, escolha de dirigentes e outras.
Não poderia deixar de estabelecer as condições da intervenção federal, caso
os próprios estatutos sejam descumpridos, o patrimônio dilapidado ou os
recursos públicos malversados.
Uma lei orgânica, com as características aqui indicadas, seria contrária
ao princípio da autonomia universitária? Ela violaria o artigo 207 da Consti-
tuição Federal, que diz gozarem as universidades de autonomia didático-
científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial?
Como tenho estudado essa matéria, no plano internacional, e refletido
sobre ela no contexto brasileiro, sustento que uma lei orgânica, como tal,
não contraria o dispositivo constitucional da autonomia.
150
Em todos os países do mundo, as universidades estão sujeitas à legisla-
ção infraconstitucional, mesmo quando a Carta Magna reconhece sua auto-
nomia. Assim é que currículos, diplomas, financiamento e avaliação
exemplificam matérias reguladas pelos poderes legislativo e executivo de
todos os países possuidores de sistemas educacionais complexos. A exceção
fica com os EUA, onde todo o ensino superior é regulado pelo mercado. No
mesmo caminho seguiu a Grã-Bretanha, desde Margaret Thatcher.
Alguns países possuem mesmo leis bem detalhadas sobre o funciona-
mento do ensino superior e estabelecem normas para as universidades, in-
clusive as estatais. Estão nesse caso:
3
• França, com a Lei Savary (nº 84-52, de 26 de janeiro de 1984);
• Portugal, com a Lei de Autonomia das Universidades (nº 108, de 24
de setembro de 1988);
• Nicarágua, com a Lei da Autonomia das Instituições de Educação
Superior (nº 89, de 5 de abril de 1990);
• Argentina, com a Lei de Educação Superior (nº 24.521, de 20 de julho
de 1995);
• Espanha, com a Lei Orgânica das Universidades (nº 121/000045, de
26 de dezembro de 2001).
Na França, na Nicarágua e em Portugal, tais leis foram promulgadas
quando seus parlamentos tinham maioria de esquerda. Na Espanha e na
Argentina, maioria de direita. Não se trata, pois, de um viés político-partidá-
rio nem um atentado contra a autonomia universitária a promulgação de leis
que estabelecem os parâmetros de sua autonomia. A não ser que autonomia
seja confundida com soberania, o que é atributo exclusivo do povo brasileiro
e do Estado que ele constitui, jamais de uma instituição, por mais importan-
te que seja, nem mesmo de uma instituição estatal.
O apoio do Ministério da Educação a um projeto de Lei Orgânica do
Ensino Superior, cuja elaboração o próprio MEC poderia patrocinar, seria a
expressão nítida de uma atuação contrária à do governo passado, que primou
pela indução à legislação fragmentada. Como já disse, enquanto os projetos
de LDB tramitavam no Congresso, o governo anterior patrocinava projetos
de lei que tratavam de aspectos específicos da problemática educacional e
não foram incorporados à lei maior de educação.
3
Lista não exaustiva.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
151
Mas é com tristeza que vejo que a normatização fragmentária é uma
tentação difícil de resistir. Tomei conhecimento de anteprojeto de lei que
circula no âmbito do MEC, dispondo sobre o processo de escolha dos diri-
gentes das instituições federais de ensino, inclusive das universidades do
sistema federal.
Parece que o MEC cedeu às pressões do aparato sindical para pro-
mover a mudança da legislação referente à escolha de dirigentes, como se
isso fosse o mais importante e decisivo para o presente e o futuro das
instituições federais de ensino superior. Salvo priorizar o atendimento a
demandas de caráter exclusivamente político, senão partidário, é difícil
entender por que razão o MEC seguiu na trilha da normatização atomizada
do governo anterior.
Tampouco consigo entender a tônica desregulamentadora do antepro-
jeto de lei. Com efeito, o texto divulgado transfere para dentro de cada uni-
versidade a escolha do elemento mais decisivo para a estrutura interna de
poder – a ponderação dos votos das categorias integrantes da “comunidade
acadêmica” de cada instituição. É um “lavar as mãos” diante das disputas
que enfraquecem a gestão das universidades federais? Ou será a antecipação
de um benefício político aos sindicatos, visando a atenuar previsíveis pro-
testos diante de possíveis restrições financeiras?
Confesso que só consigo divisar um elemento positivo no anteprojeto
de lei, o de suprimir o mecanismo de cooptação na escolha dos dirigentes
das universidades federais. Mas, não fui capaz de entender por que razão o
que tem sido privilégio das universidades, em todo o mundo – a competên-
cia para escolher seus dirigentes –, foi estendido aos CEFETs e aos estabe-
lecimentos isolados. Uma “síndrome de Pilatos” em versão ampliada?
Autonomia sem universidade? Já não basta o absurdo dos centros uni-
versitários, que ganharam a autonomia para criar e extinguir cursos de gradu-
ação, para aumentar e diminuir vagas?
Ao contrário disso, entendo que é preciso, justamente, aumentar as dis-
tinções entre as universidades e as demais IES, inclusive no setor público,
até mesmo no sistema federal. A capacidade de escolher seus dirigentes, sem
cooptação, é, no meu entender, só para as universidades, não para as insti-
tuições isoladas, nem mesmo para os CEFETs.
Posso antever o resultado da aplicação do anteprojeto, se convertido
em lei: a paridade de votos na eleição dos reitores será incorporada aos esta-
tutos das universidades federais, o que acarretará resultados negativos para
152
o funcionamento acadêmico das instituições, pois o corolário dessa medida
será a aplicação da paridade também à composição dos órgãos colegiados, o
que, aliás, já faz parte do ideário das entidades sindicais.
Não tenho dúvida de que o resultado não intencionado dessa medida
será o reforço do setor privado – agora pela transferência de grupos de pes-
quisa e da pós-graduação, assim como do financiamento que eles atraem.
O medo e a inciência, em ação recíproca e com efeito cumulativo,
serão os principais elementos propiciadores do dogma da paridade no esta-
tuto de cada instituição. O medo é proveniente da eficácia do patrulhamento,
prática bem conhecida de todos os que ousam divergir da linha oficial dos
partidos, frações de partidos e dos sindicatos que atuam nas universidades; a
inciência é do que vigora em países mais antigos e mais sólidos na democra-
cia, com mais antigas e mais sólidas universidades públicas. Longe de mim
pensar que só devemos copiar – nada mais antiuniversitário do que isso. Por
outro lado, nada menos universitário do que ignorar a experiência das insti-
tuições coirmãs, especialmente daquelas que são referência acadêmica para
o ensino e a pesquisa aqui desenvolvidos.
Contra o medo dos colegas, nada posso fazer, a não ser seguir em
frente com o que penso e faço. Chamemos a isso de testemunho. Contra a
inciência, posso mais. Posso divulgar a reflexão sobre o tema em pauta, as-
sim como divulgar informações sobre as soluções encontradas em outros
sistemas universitários. É o que faço em seguida, com alguns dados,
4
que
mostram ser a paridade entre docentes-pesquisadores, estudantes e funcio-
nários técnico-administrativos algo inexistente nas instâncias encarregadas
de eleger os reitores ou presidentes das universidades públicas.
Podemos observar, na tabela anexa, que há grande variação entre as
universidades. Mas, em todas elas, os docentes-pesquisadores têm a maioria
(quando não a totalidade) dos votos na instância dotada de competência
para eleger o reitor ou o presidente da instituição. A participação dos estu-
dantes varia de zero à metade dos votos dos membros eleitos da instância
competente. A participação dos funcionários técnico-administrativos, quan-
do existe, é sempre inferior à dos estudantes.
5
Será que todas essas universi-
4
Os dados aqui apresentados estão sendo trabalhados em um estudo comparado em nível internacional.
5
Mesmo na Universidade de Lisboa, onde os funcionários têm a mais elevada participação no corpo
eleitoral para escolha do reitor (18%), dentre as da tabela anexa, a instituição procurou minimizar o
efeito da bancada sindical mediante a inclusão dos técnico-administrativos de mais alta posição na
carreira, na reitoria e nas faculdades, como membros natos da Assembléia Universitária.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
153
dades são carentes de democracia, só descoberta pela incipiente cultura po-
lítica da universidade brasileira? A meu ver, esses dados devem ao menos
levar o MEC a rever o anteprojeto e encarar a difícil tarefa de coordenar a
discussão de um padrão brasileiro para a escolha dos dirigentes das universi-
dades federais, que não pode ignorar a experiência mundial. E por que não
aproveitar a oportunidade para incluí-lo, junto com outras matérias, numa
Lei Orgânica do Ensino Superior?
Esse caminho é mais vagaroso, mas é melhor para quem tem pressa
em garantir a sobrevivência e a vitalidade do patrimônio acadêmico da uni-
versidade federal brasileira; para quem é capaz de distinguir entre a necessá-
ria autonomia político-administrativa da universidade pública diante dos
governos e a essencial autonomia que ela precisa manter diante das igrejas,
das oligarquias, dos partidos, dos sindicatos e dos mercados.
BIBLIOGRAFIA RECENTE DO AUTOR SOBRE O TEMA
1996a. “Políticas para o ensino superior no Brasil: até onde irá a autonomia
universitária?”, Educação e Sociedade (Campinas), n
o
55, agosto.
1996b. “Crise e reforma do sistema universitário” (debate), Novos Estudos
CEBRAP (São Paulo), n
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46, novembro.
1997. “Política para o ensino superior: do GERES à LDB”, Sociedade e Estado
(Brasília), vol XII, nº 1, janeiro/junho.
1998. “Reforma universitária em crise: gestão, estrutura e território”,
Avaliação/Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior (Campinas),
vol. 3, nº 2, junho (encarte CIPEDES).
1999a. “O público e o privado na educação superior brasileira: fronteira em
movimento?”, in Hélgio Trindade (org.) Universidade em ruínas na república
dos professores, Petrópolis, Vozes.
1999b. “A universidade brasileira entre o taylorismo e a anarquia”, Revista
Brasileira de Educação (São Paulo), nº 10, janeiro/abril.
2002. “A nova reforma do ensino superior: a lógica reconstruída”, in Hélgio
Trindade e Jean-Michel Blanquer (orgs.). Os desafios da educação na América
Latina, Petrópolis, Vozes.
2003. “O ensino superior no octênio FHC”, Educação e Sociedade (Campinas),
nº 82, abril.
154
Participação diferenciada no órgão colegiado dotado de
competência para eleger o reitor ou presidente
em universidades selecionadas
Fonte: Documentos legais, assim como estatutos e textos de divulgação institucional obtidos na internet
em julho de 2003.
Notas: (N) Todos os docentes-pesquisadores da universidade.
(a) O número de representantes de professores das faculdades e de pesquisadores dos institutos depende do
efetivo de cada uma delas.
(b) Os membros externos são graduados pela UBA.
(c) As personalidades externas incluem docentes-pesquisadores de outras instituições de ensino superior.
155
REFORMAR É PRECISO; PORÉM... EM QUE DIREÇÃO
Carlos Benedito Martins
(*)
Pontos de Referências
Uma série de trabalhos enfocando o ensino superior no país, realiza-
dos nas últimas décadas por educadores, filósofos, cientistas sociais, reito-
res, etc., assim como inúmeros artigos veiculados pela mídia, vem cha-
mando a atenção para a crise estrutural que encontra-se presente no con-
junto desse sistema. Nesse sentido, têm sido questionados aspectos cen-
trais do funcionamento do ensino superior, tais como: 1) qualidade da for-
mação intelectual fornecida aos estudantes; 2) pertinência social e
profissional dos cursos de graduação; 3) caráter excludente do ensino su-
perior; 4) crescente desequilíbrio da participação das redes pública e priva-
da na oferta do ensino de graduação; 5) saliente caráter empresarial do
ensino privado; 6) qualificação, profissionalização e condições do trabalho
do corpo docente; 7) precariedade das instalações físicas das instituições
de ensino, destacadamente os laboratórios e as bibliotecas; 8) elevadas
taxas de vagas ociosas e de evasão; 9) deterioração das condições de fun-
cionamento das universidades públicas; 10) crise de financiamento do en-
sino publico e privado, etc.
1
(*) Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. Diretor-Científico do Núcleo
de Estudos sobre Ensino Superior da Universidade de Brasília (NESUB).
1
Entre outros trabalhos, consultar José Arthur Giannotti, A Universidade em ritmo de barbárie. Editora
Brasiliense. São Paulo. 1986. Francisco Antônio Doria (org.) A crise da universidade. Editora Revan
Rio de Janeiro. 1998. Luis Antônio Cunha, Ensino superior e Universidade no Brasil: uma história de
crises. Nesub/Universidade de Brasília. Brasília. 1998. Carlos Benedito Martins, Notas sobre o
sistema de ensino superior brasileiro contemporâneo. Revista Usp nº 39. São Paulo.1999. Hélgio
Trindade (org.), Universidade em ruínas na república de professores. Editora Vozes. Petrópolis. 1999. Luiz
Carlos de Menezes, Universidade sitiada: a ameaça de liquidação da universidade brasileira. Fundação
Perseu Abramo. São Paulo. 1999. Marilena Chauí, Escritos sobre a universidade. Editora Unesp. São
Paulo.2000. Forgrad, Resgatando espaços e construindo idéias: Forgrad 1997 a 2003. Editora Universi-
tária. Ufpe. Recife. 2003.
156
Essa pequena lista de problemas, que certamente poderia ser ampliada,
indica a necessidade e a oportunidade de se repensar, no momento atual, o
sistema de ensino superior brasileiro na sua totalidade, ou seja, tanto a estru-
tura da rede pública quanto do setor privado. Certamente, os trabalhos já
realizados tendem a indicar que o ensino superior no país necessita de pro-
fundas mudanças no seu conjunto. No entanto, seria conveniente assinalar
que a construção de uma consistente agenda pública – que torna-se urgente
e necessária – visando a reformar a totalidade do sistema, deve afastar-se de
palavras de ordem emanadas pelos diferentes atores individuais e/ou coleti-
vos que atuam no interior do ensino superior, bem como de seus interesses
parciais que encontram-se subjacentes às suas representações sobre o siste-
ma. Ao contrário disso, a elaboração de uma sólida política educacional deve
basear-se em revisões críticas de estudos já realizados, identificando a mani-
festação de interesses parciais contidos nesses trabalhos. Ao mesmo tempo,
um roteiro de reformas, deve distanciar-se também de fórmulas messiânicas,
de soluções simplistas e/ou de iniciativas ad hoc e pontuais para resolver
problemas conjunturais. A construção de um projeto de reformas deve apoi-
ar-se em diagnósticos consistentes sobre condições objetivas da totalidade
do sistema, capazes de identificar seus problemas estruturais e fornecer uma
visão mais abrangente sobre o seu funcionamento, possibilitando a realiza-
ção de mudanças provocadas nesse sistema.
2
Esta exposição parte de alguns pressupostos gerais sobre a inserção do
sistema de ensino superior no contexto da sociedade brasileira. Na medida
em que essas pressuposições orientam em larga medida a perspectiva analí-
tica adotada, considero oportuno explicitá-las, de forma esquemática, para
submetê-las à apreciação crítica dos participantes desse Seminário. O pri-
meiro deles, assume que o sistema de ensino superior constitui um ator es-
tratégico nos processos de desenvolvimento socioeconômico do país e de
democratização da sociedade brasileira. Cabe a ele múltiplas e importantes
funções, tais como formar recursos profissionais qualificados para as diver-
sas atividades do país, transmitir e renovar o saber acumulado para o con-
junto da sociedade, produzir ciência e tecnologia, incentivar e divulgar a
cultura e as artes, assim como contribuir para uma efetiva melhoria do ensi-
2
Para uma discussão sobre a possibilidade da aplicação de uma perspectiva racional e científica, capaz
de provocar mudanças socioculturais, ver Florestan Fernandes, Ensaios de sociologia geral e aplicada
(especialmente pp. 160-239). Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais. São Paulo. 1971. Consultar,
também, Karl Mannheim, Essays on the sociology of culture (especialmente pp. 144-172). Routledge &
Kegan Paul ltd. Londres. 1962.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
157
no fundamental e médio do país. O sistema de ensino superior merece ocu-
par um papel destacado no elenco das prioridades nacionais e deve ser per-
cebido e tratado pelo conjunto da sociedade brasileira como um instrumen-
to fundamental na implementação de um projeto de construção de uma so-
ciedade nacional mais democrática e soberana.
O segundo pressuposto assume que o Estado, em função de suas atribui-
ções específicas, deve ser o responsável pela progressiva redução das desigual-
dades, oferta de oportunidades equalizadoras para o conjunto da população.
Na medida em que o acesso à educação constitui uma das dimensões do pro-
cesso de cidadania, o Estado deveria-se empenhar, de forma efetiva, na cons-
trução de um sólido sistema público de ensino, capaz de incorporar, de forma
gratuita, amplas parcelas da sociedade brasileira. Os inúmeros e variados pro-
blemas que se encontram presentes no interior dos diferentes níveis de ensino
no país estão a exigir uma decisiva participação do Estado, nos marcos do
regime democrático, no processo de condução e supervisão do sistema educa-
cional brasileiro. Nesse sentido, o Estado tem o desafio de desenvolver ações
convergentes nos diversos níveis que formam o sistema educacional do país.
Assim sendo, problemas como, erradicação do analfabetismo, acesso generali-
zado e melhoria do funcionamento dos ensinos fundamental e médio, demo-
cratização do ensino superior, fomento ao sistema de pós-graduação, todos
eles devem ser encarados como igualmente prioritários pelas políticas públicas
na área educacional. Não se pode mais incorrer no equívoco, em termos de
política educacional, de se afirmar que um determinado nível de ensino dever
ser privilegiado em detrimento dos demais, como ocorreu ao longo das últimas
décadas. Um dos desafios cruciais que se coloca para o Ministério da Educa-
ção, no contexto atual, consiste em produzir uma política que articule todos os
níveis que integram o sistema educacional, criando uma verdadeira sinergia
entre elas, de modo que cada nível de ensino possa contribuir para a melhoria
e aperfeiçoamento dos demais. Dessa forma, torna-se oportuno uma clara si-
nalização no sentido que o ensino superior, ou seja, a graduação e a pós-gradu-
ação, constitui uma prioridade da agenda de trabalho do MEC, ao lado dos
outros níveis de ensino.
3
O terceiro pressuposto assume que a educação formal deveria ser com-
preendida como uma res publica, ou seja, como um bem público, e, portanto,
3
Com relação à discussão da expansão da cidadania nas sociedades modernas, consultar T.H .Marshall,
Class,, citizenship and social development. Golden City. New York. 1965. Rogers Brubaker (org.)
Imigration and the politcs of citizenship in Europe and North America. Lanham. Londres. 1989.
158
como um direito social dos cidadãos. Nesse sentido, o ensino superior não
deveria ser pensado e, acima de tudo, não deveria operar segundo uma lógica
de mercado. Concebê-lo a partir de uma estrita lógica de oferta e demanda,
e/ou organizá-lo em larga medida, a partir da busca de rentabilidade econô-
mica, pode nos conduzir a trágicos efeitos acadêmicos, comprometer os des-
tinos das novas e futuras gerações e colocar em risco o próprio futuro da
sociedade brasileira. As reformas que o ensino superior brasileiro deve en-
frentar, a curto, médio e longo prazo, implicam a criação de uma ampla agen-
da de trabalho a ser construída pelos diferentes atores que integram o con-
junto do sistema. Essa agenda de trabalho – arquitetada por um elevado
espírito democrático e pautada pela busca do interesse público – deveria
reservar um lugar central à discussão da participação dos segmentos público
e privado no interior do ensino superior e à sua possível reconfiguração dian-
te dos interesses coletivos da sociedade brasileira. A construção de uma
agenda positiva de trabalho, tendo como horizonte o entendimento da edu-
cação como um bem público, deveria implicar um prévio trabalho por parte
dos diferentes atores e/ou instituições que integram o sistema – sejam públi-
cas ou privadas – capaz de produzir uma penetrante autocrítica de seus ob-
jetivos educacionais, de seus compromissos acadêmicos e de suas realiza-
ções no contexto do ensino superior. Este trabalho, certamente difícil e ne-
cessariamente doloroso, constitui uma condição necessária para relativizar
e/ou desconstruir discursos particularistas de atores e/ou instituições – que
são pretensamente construídos e apresentados como portadores de interes-
ses universais –, confrontando-os aos interesses públicos que deveriam, em
princípio, orientar as políticas para esse sistema.
4
O quarto pressuposto assume que as universidades públicas existentes
na sociedade brasileira, em função de sua trajetória institucional, deveriam
ocupar uma posição de centralidade no contexto do ensino superior e, de
certa forma, constituir-se como um pólo de referência para o aperfeiçoa-
mento do conjunto do sistema. De um modo geral, os dados existentes
tendem a apontar que salvo exceções vindas de algumas universidades par-
ticulares, o corpo docente mais qualificado academicamente, assim como os
melhores cursos de graduação e de pós-graduação encontram-se concentra-
dos em determinadas instituições pertencentes ao segmente público. As uni-
4
Ver a esse respeito, Claude Lefort, A invenção democrática. Editora Brasiliense. São Paulo. 1983. Norberto
Bobbio, O futuro da democracia. Editora Paz e Terra. Rio de Janeiro. 1986. Carlos Roberto Jamil Cury,
A relação educação-sociedade-Estado pela mediação jurídico-constitucional”, in A educação nas
Constituintes Brasileiras. (org.) Osmar Fávero. Editora Autores Associados. São Paulo. 2001.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
159
versidades públicas têm mantido uma relação aberta e dinâmica com a soci-
edade brasileira: as contribuições mais expressivas para solucionar variados
problemas nacionais, tais como, na área da saúde pública, na agricultura, no
combate à desnutrição infantil, na extração e industrialização petrolífera,
etc., têm sido elaboradas no interior de diversas universidades públicas e em
seus institutos de pesquisa. Em grande medida, os quadros dirigentes do
país, em níveis nacional e regional, também têm sido formados pelas univer-
sidades públicas. Nesse contexto, deve-se, ainda que brevemente, a relevân-
cia acadêmica e social das universidades públicas federais. Não se pode es-
quecer que na medida em que essas instituições encontram-se instaladas em
todo o território nacional constituem uma verdadeira rede de ensino superi-
or. Essas instituições têm desempenhado um papel fundamental no proces-
so de democratização de acesso ao ensino superior gratuito e, ao mesmo
tempo, têm se constituído como um espaço democrático e plural de reflexão
e publicização de questões candentes do país e da sociedade contemporâ-
nea. Em função dos relevantes serviços educacionais que têm prestado ao
país, as universidades públicas deveriam ser consideradas pelos diferentes
segmentos que integram a sociedade brasileira, a começar pelo aparelho es-
tatal, como um ator fundamental no processo de desenvolvimento socioeco-
nômico e de democratização do ensino superior. Nesse sentido, elas deveri-
am ser decididamente financiadas, apoiadas, renovadas e fortalecidas pelo
poder público, em função da posição nevrálgica que as IFES ocupam no
interior do sistema de ensino superior do país.
5
Breves comentários sobre o cenário atual do ensino superior e
suas perspectivas de mudanças
Como se sabe, o surgimento do ensino superior representou um aconte-
cimento tardio na sociedade brasileira e particularmente, a emergência da
instituição universitária no interior de seu contexto. Apesar do caráter
temporão do ensino superior deve-se destacar que, nas últimas quatro déca-
5
Quanto ao papel das universidades públicas no país, consultar entre outros, Jacques Velloso (org.)
Universidade pública: política, desempenho, perspectivas. Papirus Editora. Campinas. 1991. João dos
Reis Silva e Valdemar Sguissardi, Novas faces da educação superior no Brasil. Editora Universidade São
Francisco. Bragança Paulista. 1999. Michelangelo Trigueiro, Universidades públicas: desafios e possi-
bilidades no Brasil contemporâneo. Editora Universidade de Brasília. 1999. Carlos Benedito Martins,
As Universidades públicas no contexto do ensino superior brasileiro, in Reflexões para o Terceiro Milênio.
Anuário de Educação. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro. 2000. Waldeck Carneiro da Silva, Universi-
dade e Sociedade no Brasil: oposição propositiva ao neoliberalismo na educação superior. Quarteto
Editora. Niterói.2001.
160
das, o conjunto do sistema experimentou um significativo processo de ex-
pansão quantitativa e passou também por significativas mudanças quanto a
sua morfologia social. No início dos anos sessenta, o país contava com apro-
ximadamente 100 instituições de ensino superior, quase todas de pequeno
porte, que abrigava pouco mais de 100 mil estudantes. A maioria absoluta
do alunado pertencia ao sexo masculino e era recrutado fundamentalmente
no interior das elites econômica, cultural e política do país, tendo em vista
sua reprodução social. Os dados mais recentes, relativos a 2002, indicavam
a existência de 1.637 instituições e de 3,5 milhões alunos de graduação e
aproximadamente 100 mil estudantes de pós-graduação.
6
Certamente, ao longo desse processo de expansão, ocorreu a incorpora-
ção de um público mais diferenciado socialmente, entre os quais destacam-se
os setores médios urbanos. Ao mesmo tempo, verificou-se também uma cres-
cente absorção de estudantes já integrados no mercado de trabalho, bem como
uma expressiva assimilação de estudantes do gênero feminino, que atualmente
responde por 56% das matrículas de graduação. Apesar de ter experimentado
modificações em sua composição social, os dados disponíveis atestam que o
ensino superior continua sendo uma instituição que exclui de seu acesso am-
plas camadas da sociedade brasileira. A esse propósito, deve-se assinalar que
pouco mais de 10% dos jovens na faixa de 18-24 anos encontram-se matricu-
lados nos cursos de graduação.
7
Esse milhar de instituições que configuram o
ensino superior em sua etapa atual, encontra-se espalhado por todo o território
nacional, devendo-se destacar nesse contexto, o progressivo processo de
interiorização, uma vez que, em 2002, 54% das matrículas de graduação loca-
lizavam-se em diferentes cidades do interior do país. Apesar da sua irradiação
pelos diferentes rincões do país, o ensino superior encontra-se concentrado na
região Sudeste, que responde por 50% das matrículas de graduação.
6
Com relação à extensa bibliografia sobre a evolução do ensino superior no país, consultar, entre outros
trabalhos, Maria de Lourdes Fávero, A universidade brasileira em busca de sua identidade. Editora Vozes.
Perópolis.1977. Anísio Teixeira, Ensino superior no Brasil: análise e interpretação de sua evolução até
1969. Editora da FGV. Rio de Janeiro. 1989. Luiz Antônio Cunha, A universidade temporã: o ensino
superior da colônia à era Vargas. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 1980. Simon
Schwartzman, Formação da comunidade científica no Brasil. Finep/Editora Companhia Nacional. Rio de
Janeiro.1979. Quanto aos dados estatísticos mais recentes, consultar o Censo da Educação Superior.
Resumo Técnico 2002. Mec. Brasília. 2003.
7
Com relação às desigualdades de acesso ao sistema educacional, consultar Carlos Hasenbalg, “Desigual-
dades sociais e oportunidade educacional: a produção do fracasso”. Cadernos de pesquisa nº 63.
Fundação Carlos Chagas. São Paulo. 1987. Helena Sampaio e Fernando Limongi, Eqüidade e
heterogeneidade no ensino superior brasileiro. INEP/MEC. Brasília. 2000. Maria Lígia Barbosa, “Eficiên-
cia e eqüidade: os impasses de uma política educacional”. Revista Brasileira de Política e Administração
da Educação. vol. 14, nº 2. Porto Alegre. 2001.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
161
Nas últimas décadas, formou-se um campo acadêmico
8
extremamente com-
plexo, integrado por instituições públicas (federais, estaduais, municipais) e
privadas (particulares em sentido estrito, comunitárias, confessionais, filan-
trópicas) que têm-se estruturado a partir de diferentes tipos de organização
acadêmica (universidades, universidades especializadas, centros universitá-
rios, faculdades, faculdades integradas, institutos superiores, centros de edu-
cação tecnológica). Mais do que isso, cumpre ressaltar que um dos traços
marcantes do ensino superior brasileiro contemporâneo repousa sobre uma
significativa heterogeneidade acadêmico-institucional. Esse conjunto de ins-
tituições são portadoras de diferentes formatos institucionais, possuem dis-
tintos tamanhos, encontram-se em diferentes estágios de consolidação aca-
dêmica, expressam uma pluralidade de vocações acadêmicas, privilegiam de
forma variada as atividades de ensino, pesquisa e extensão, assim como re-
cebem estudantes que possuem variadas motivações e perspectivas profissi-
onais. Deve-se também assinalar que essa heterogeneidade acadêmico-insti-
tucional encontra-se presente tanto nos segmentos público quanto privado.
Ao invés de se apreender essa significativa diversificação como uma mani-
festação patológica do sistema, dever-se-ia perceber, no funcionamento con-
creto e cotidiano das inúmeras instituições, a disposição de produzir sua real
identidade acadêmica. Nesse sentido, a reforma do ensino superior deveria
evitar a tentação de enquadrar esse complexo sistema – fundamentalmente
heterogêneo, multifacetado e diverso academicamente – num modelo único
de organização acadêmica, tornando ficticiamente iguais todas as institui-
ções. Ao contrário disso, deve-se a partir de determinados parâmetros de
qualidade acadêmica, incentivar as diferentes IES a clarificar seus projetos
institucionais, a assumir de modo efetivo a sua verdadeira identidade e real
vocação acadêmica. Desta forma, as IES poderão estabelecer uma relação
mais profícua com as regiões em que se encontram localizadas e com a pró-
pria sociedade brasileira.
Paralelamente a esse processo de expansão do ensino superior, verifi-
cou-se uma significativa retração da participação das universidades públicas
no ensino de graduação. Se na década de 60, o ensino público no país res-
pondia por 62% das matrículas de graduação, atualmente ele absorve apenas
30% dos estudantes. Durante a década de 90, ocorreu também um expressi-
8
A respeito da noção de campo, ver os trabalhos de Pierre Bourdieu, entre os quais Questions de sociologie,
(pp. 113-121). Éditions de Minuit. Paris.1980; Leçon sur la Leçon, (pp. 46-50). Éditions de Minuit.
Paris. 1982; Choses Dites, (pp. 167-177). Éditions de Minuit. Paris. 1987; Les Régles de l´art (pp. 298-
430). Éditions de Seuil. Paris. 1992; Réponses, (pp. 71-91). Éditions de Seuil. Paris. 1992.
162
vo recuo do número de instituições públicas no contexto do ensino superior:
se em 1991, elas representavam 25% no conjunto do sistema, em 2002, as
instituições públicas respondiam por apenas 12% do total dos estabeleci-
mentos de graduação. Desde meados da década de 60, ou seja, a partir do
regime militar, as políticas educacionais, voltadas para o ensino de gradua-
ção, principalmente no âmbito das universidades federais, de um modo ge-
ral, têm-se pautado de forma quase contínua, por medidas de contenção de
gastos, seja com pessoal docente, seja com investimentos em infra-estrutura
física. Tudo leva a crer que existe uma certa continuidade estrutural em di-
versos documentos que configuraram o ensino superior no país nos últimos
quarenta anos, tais como Relatório Atcon, Relatório Meira Matos, Grupo de
Trabalho da Reforma Universitária e uma série de medidas legais e adminis-
trativas adotadas na gestão passada. De certa forma, esses documentos que
contribuíram para delinear a política educacional nas ultimas décadas enqua-
dram-se numa lógica visando a realizar uma expansão (limitada) do segmento
público federal como máximo possível de contenção de recursos orçamentários,
o que, em larga medida, contribuiu para constranger a capacidade de um cres-
cimento mais expressivo das IFES.
Ao lado disso, durante a década passada, ocorreu de forma recorrente, a
suspensão de concursos públicos para docentes, num momento em que se
intensificaram inúmeras aposentadorias de professores das universidades fe-
derais. Em contrapartida, inflou-se a universidade de professores substitutos
remunerados com salários aviltantes, comprometendo com isso a consolida-
ção da carreira acadêmica nas instituições públicas federais. Apesar dessa po-
lítica de constrição orçamentária, deve-se registrar que, ao longo da década de
90, as instituições federais mantiveram um crescimento contínuo de matrícu-
la, tanto nos cursos de graduação quanto na pós-graduação strito sensu, sendo
que, nesse caso, a expansão das instituições federais foi superior ao das redes
estadual e privada, tanto no nível de mestrado quanto no doutorado.
9
Diante dessa situação, torna-se fundamental uma profunda mudança
de atitude com relação ao tratamento a ser dispensado às universidades
públicas, especialmente as IFES, por parte dos responsáveis atuais pela
9
Ver a esse propósito os trabalhos de Paulo Roberto Corbucci, As universidades federais: gastos, desem-
penho, eficiência e produtividade. IPEA. Brasília. 2000; Avanços, limites e desafios das políticas do MEC
para a educação superior na década de 1990: ensino de graduação. IPEA. Brasília. 2002. Quanto à
expansão dos cursos de pós-graduação na década de 1990, consultar Carlos Benedito Martins,A
formação de um sistema nacional de pós-graduação”. in, (org.) Maria Susana Soares, Educação superior
no Brasil. UNESCO/CAPES. Brasília. 2002.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
163
política educacional do país. Seria um grave equívoco considerá-las como
fardo para o MEC, tal como ocorreu ao longo das últimas décadas. É pre-
ciso que o Estado tenha uma adequada compreensão da importância estra-
tégica das universidades públicas para o desenvolvimento socioeconômi-
co do país, livrando-se, de uma vez, de preconceitos que se encontram
incrustados em amplos segmentos da sociedade brasileira, que irresponsa-
velmente procuram estigmatizá-la, ora como essencialmente corporativa,
ora como consumidora voraz de verbas que seriam mais bem aplicadas em
outros níveis de ensino, ora como uma instituição insensível à realidade
nacional, etc. As IFES necessitam, com urgência, de um sopro de ânimo
proveniente dos novos responsáveis da política educacional do país. A
universidade pública brasileira é o resultado de um enorme esforço coleti-
vo que contou com o trabalho de gerações de brasileiros. Ela constitui um
enorme patrimônio cultural da nação, que deve ser preservado e
deliberadamente apoiado pelo poder público.
Ao mesmo tempo em que ocorreu uma diminuição da participação da
rede pública no ensino de graduação e uma corrosão das condições adequa-
das de seu funcionamento, verificou-se uma expressiva expansão de um “novo
ensino superior privado”, em larga medida comandado por um setor leigo, de
acentuado perfil empresarial. Ao longo das últimas quatro décadas, a socie-
dade brasileira presenciou um processo de inversão da participação do seg-
mento privado no contexto do ensino superior. No início dos anos 60, os
estabelecimentos privados respondiam por cerca de 38% das matrículas. Em
2002, o setor privado absorvia 70% das matrículas de graduação. Os dados
disponíveis indicam dois momentos na expansão do setor privado: a década
de 70 e a segunda metade dos anos 90. Quando se analisa a trajetória da
expansão do ensino superior nas últimas quatro décadas, constata-se que o
poder estatal, por meio de um conjunto de medidas legais, mas também por
meio da atuação direta e/ou indireta de órgãos governamentais (ex-CFE),
incentivou deliberadamente esse setor privado de ethos empresarial a assumir
uma posição de carro-chefe no processo de expansão do ensino superior no
país. Tudo leva a crer que a política de expansão moderada do ensino públi-
co articulou-se com diversos incentivos e/ou sinalizações, ora discretos, ora
intensivos, provenientes de autoridades educacionais em nível federal,
viabilizando o crescimento vertiginoso dessa nova modalidade de ensino
privado no país, que passou a operar como um mass private sector, ou seja,
como um segmento extremamente dinâmico no atendimento à demanda de
massa. Em que medida essa nova modalidade de ensino privado democrati-
zou as oportunidades educacionais? Certamente, trata-se de uma resposta
164
complexa. No entanto, deve-se ressaltar que, de modo geral, as taxas escola-
res praticadas por essas instituições tendem a constituir um obstáculo de
acesso para os setores mais desfavorecidos socialmente e conduzindo milha-
res de alunos dessas instituições a abandonar os estudos por falta de recur-
sos financeiros para pagar suas mensalidades.
10
Uma política educacional direcionada para a reforma da totalidade do
sistema não pode desconhecer que o ensino privado tem o seu direito de
funcionar garantido pela Constituição Federal (artigo 209) e pela LDB (arti-
go 45). Em vez de desqualificá-lo simbolicamente e/ou de manter uma ati-
tude hostil e/ou inercial diante de sua existência, torna-se fundamental a
criação de uma agenda positiva para esse segmento, especialmente para as
instituições particulares em sentido estrito, capaz de produzir aperfeiçoa-
mentos efetivos em seus projetos institucionais, nas suas condições de ensi-
no e na qualificação do seu corpo docente. Por outro lado, seria oportuno
ensejar um profundo debate sobre as possibilidades de (re)inserir, no contex-
to da reforma do ensino superior, essa nova modalidade de ensino privado,
diante de uma concepção de educação compreendida como bem público,
reflexão essa que deveria ser conduzida com extrema sobriedade intelectual.
Certamente, existem atores individuais e/ou coletivos no interior desse seg-
mento que se mostrarão sensíveis a essa discussão.
Existe em amplos setores da comunidade acadêmica nacional uma ex-
pectativa para realização de mudanças no ensino superior. Nesse sentido, as
perspectivas são promissoras uma vez que indica um elevado grau de moti-
vação de diferentes atores para discuti-las e implementá-las. As mudanças
implicam a reelaboração de uma agenda consistente, baseada em judicioso
diagnóstico, capaz de identificar problemas estruturais e apontar soluções
viáveis para a melhoria da totalidade do sistema, ou seja, tanto para o ensino
público quanto para o privado. Tudo leva a crer que, num contexto de mu-
danças, o Estado deve tornar-se um ator central no redesenho de
10
A respeito das condições sociais que possibilitaram a emergência deste “novo ensino privado”, ver
Carlos Benedito Martins, O Novo Ensino superior privado no Brasil, in C.B. Martins (org.) Ensino
Superior Brasileiro: transformações e perspectivas. Editora Brasiliense. São Paulo. 1989. Ver também
Candido Mendes e Cláudio Moura Castro, Qualidade, Expansão e Financiamento do Ensino Superior
Privado. EDUCAM. Conjunto Universitário Candido Mendes. Rio de Janeiro. 1984. Luis Antônio
Cunha, Educação, Estado e democracia. Editora Autores Associados. São Paulo. 1991; Eunice Durhan
e Helena Sampaio, Ensino Privado no Brasil. Documento de Trabalho do NUPES-São Paulo. 1995.
Helena Sampaio, O ensino superior no Brasil: o setor privado. Editora Hucitec. São Paulo. 2000. (orgs.)
Luciana Heyman e Verena Alberti, Trajetórias da universidade privada no Brasil. Cpdoc/Fundação
Getulio Vargas. Rio de Janeiro. 2002.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
165
macropolíticas para o ensino superior, recuperando a sua capacidade de in-
duzir proativamente o sistema. De forma democrática, aberto ao diálogo e à
crítica, possibilitando uma ampla participação dos diferentes atores indivi-
duais e/ou coletivos que integram o ensino superior, deveria assumir a con-
dução geral da política para o setor, definindo metas de curto e longo prazo
a partir de prioridades sociais econômicas e culturais da nação. Ao mesmo
tempo, é de fundamental importância redesenhar a participação e os papéis
dos segmentos público e privado no contexto do ensino superior, cotejando-
os diante da dimensão da educação como um bem público.
Certamente, uma das questões centrais que deve enfrentar diz respei-
to à expansão do sistema, pautada por parâmetros de qualidade. Para tan-
to, deve-se delinear uma sólida estratégia de seu crescimento, visando a
uma efetiva democratização do acesso ao ensino superior, possibilitando a
integração de grupos sociais que historicamente encontram-se excluídos
desse nível de ensino. Torna-se fundamental articular as políticas de de-
mocratização do ensino superior com medidas efetivas visando a melhorias
no ensino fundamental e médio do país. O Estado tem a responsabilidade
de manter e aprimorar um pertinente sistema de avaliação das instituições,
cujos resultados devem ter conseqüências no processo de recredenciamento
das IES e na implementação de políticas para a melhoria acadêmica da
totalidade do sistema.
Um das prioridades cruciais que a reforma tem pela frente diz respeito
à recuperação do projeto de construção de um vigoroso sistema público de
ensino superior, pelo qual gerações e gerações de pesquisadores, docentes e
alunos têm-se empenhado historicamente. Trata-se de criar condições ade-
quadas para que a rede de estabelecimentos públicos possa realizar a enor-
me e complexa tarefa de promover a democratização das oportunidades edu-
cacionais do sistema. Para tanto, as universidades públicas necessitam con-
tar com um claro, decidido e sistemático apoio estatal para realizar essa em-
preitada. Nesse contexto, as universidades federais devem receber uma aten-
ção imediata por parte dos dirigentes do MEC, com vistas a recompor sua
capacidade física, humana e material, de modo a capacitá-las para expandir
suas atividades acadêmicas. Por que não começar por essa tarefa o processo
de reforma? O Estado e a sociedade brasileira necessitam de suas universi-
dades públicas para o equacionamento de uma multiplicidade de problemas
socioeconômicos. Ao mesmo tempo em que as universidades públicas ne-
cessitam estar comprometidas com os problemas concretos da nação, com o
seu futuro, dialogando de forma plural com amplos segmentos sociais, deve
distanciar-se de fórmulas messiânicas, populistas e salvacionistas e afastar-
166
se de interesses mediatos e/ou imediatos de grupos sociais específicos. Os
seus atores constitutivos deveriam pautar-se no interior de suas instituições
pelo debate democrático, pelo pluralismo de idéias, orientado por um ethos
propriamente acadêmico, exercitando com plenitude a independência inte-
lectual frente às diversas modalidades de poder político e/ou econômico.
Ainda com relação às universidades federais, seria oportuno desenca-
dear uma rigorosa discussão sobre a questão da autonomia institucional (ar-
tigo 207 da CF). Como se sabe, desde 1931, com a reforma de Francisco
Campos, as universidades públicas, especialmente as instituições federais,
vivem sob forte controle burocrático do Governo Federal. Elas necessitam
possuir uma efetiva flexibilidade para estabelecer suas metas acadêmicas,
para gerir seus recursos humanos e financeiros, de modo a responder satisfa-
toriamente às demandas pela expansão do ensino. Por mais complexo que
seja, não se pode deixar de rediscutir também a carreira docente nessas ins-
tituições, assim como reavaliar a questão da introdução da isonomia salarial
no interior das IFES.
É de fundamental importância, no contexto da democratização das
oportunidades educacionais, a preservação do preceito constitucional (arti-
go 206) que estabelece a gratuidade do ensino em estabelecimentos públi-
cos. Em contrapartida, as universidades públicas devem contribuir de forma
mais efetiva para a melhoria dos ensinos fundamental e médio, como uma
estratégia global de democratização de acesso da população nacional ao sis-
tema de ensino.
Torna-se fundamental também, no contexto da reforma do ensino, re-
servar um espaço destacado para uma profunda reflexão sobre a questão da
formação intelectual dos estudantes de graduação. Trata-se de incentivar, de
criar condições para que as instituições públicas e privadas possam fornecer
aos seus estudantes um ensino pertinente para a época contemporânea, pos-
sibilitando-os adquirir uma sólida formação profissional, mas também uma
formação acadêmica mais ampla, tornando-os capazes de compreender e
situar-se criticamente diante das profundas transformações que estão ocor-
rendo no mundo contemporâneo. Isto implica revalorizar a graduação, re-
vendo os seus objetivos acadêmicos, confrontando a sua estrutura curricular
com as mudanças que estão ocorrendo na sociedade contemporânea, revisar
e/ou inovar os processo de aprendizagem, etc.
É imprescindível também recuperar a idéia de universidade na gradua-
ção nas instituições que se organizam academicamente como tal. Lamenta-
velmente, cada vez mais os alunos das universidades tendem a circular ape-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
167
nas pelos seus departamentos e/ou cursos. Deve-se estimular uma ampla
circulação acadêmica dos alunos pelas diferentes áreas de conhecimento,
pelos diferentes departamentos e/ou outras instituições de ensino, de modo
a possibilitar a formação de profissionais mais polivalentes e revalorizar uma
formação mais ampla intelectualmente.
Também é de fundamental importância para o país que instituições
nacionais de fomento, como a Capes, continuem sendo apoiadas pelo Go-
verno Federal, de modo que possam cumprir suas funções específicas, ou
seja, fomentar a pós-graduação, avaliar e aprimorar os cursos que integram o
sistema nacional de pós-graduação e contribuir para o aperfeiçoamento do
ensino superior no país, formando docentes, pesquisadores e recursos hu-
manos altamente qualificados.
Torna-se oportuno também avançar numa política de integração entre
a pós-graduação e o ensino de graduação, de tal modo que o sistema de pós-
graduação, por meio de suas pesquisas, das redes nacionais de pesquisado-
res, de suas publicações, etc., possa efetivamente contribuir para a melhoria
do conjunto das instituições. O que a pós-graduação pode fazer a mais do
que tem feito para renovar o ensino de graduação no território nacional?
As necessárias reformas que o ensino superior necessita realizar impli-
cam uma atitude de renúncia de desqualificações recíprocas entre os dife-
rentes atores, instituições e suas associações representativas que atuam no
interior do sistema. Ao contrário disso, a complexidade da tarefa que se tem
pela frente está a exigir uma postura de diálogo respeitoso entre os diferentes
segmentos que a compõe, assim como um elevado espírito público e demo-
crático, capaz de pactuar compromissos e soluções, tendo como horizonte
os interesses maiores do país, que, em grande medida, deveriam orientar as
direções mais gerais para esse setor. O que está em jogo é o futuro do país,
que necessita contar com um vigoroso sistema de ensino superior – calcado
em parâmetros de qualidade acadêmico-científica, comprometido com a de-
mocratização de seu acesso, orientado por critérios de pertinência social no
desenvolvimento de suas atividades – que além de apresentar soluções para
os variados problemas socioeconômicos do país, pode contribuir, dentro dos
seus limites institucionais, para a construção de uma sociedade soberana,
democrática e mais justa socialmente.
169
ESTRUTURA E ORDENAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR:
TAXIONOMIA, EXPANSÃO E POLÍTICA PÚBLICA
Edson Nunes
(*)(**)
Em consonância com o foco do seminário e a agenda desta Mesa, dis-
cutem-se três temas. Primeiro, o problema da organização e da estrutura da
educação superior brasileira frente à sua taxionomia oficial. Segundo, os pro-
blemas dessa estrutura frente à obrigação de crescimento da oferta de edu-
cação superior, estabelecida no Plano Nacional de Educação (PNE), vis-à-
vis as restrições estruturais da sociedade e as restrições derivadas da matriz
profissionalizante do ensino superior no Brasil. Terceiro, o problema da mo-
delagem do futuro desse sistema na ausência de aparatos de inteligência para
que isso ocorra.
1. ORGANIZAÇÃO E ESTRUTURA DO SISTEMA FRENTE À
SUA TAXIONOMIA PRESCRITIVA
O sistema de ensino superior brasileiro classifica as instituições de ensino
em cinco ou talvez seis tipos distintos, que são: 1) Universidades; 2) Centros
Universitários; 3) Faculdades; 4) Faculdades Isoladas; 5) Centros de Ensino Tec-
nológico; e 6) se desejar, os Institutos ou Escolas Superiores de Educação. Mas,
possivelmente, os cinco primeiros tipos descrevem formalmente, segundo a pres-
crição legal, as IES que constituem o sistema de ensino superior brasileiro
1
.
(*)
Ph.D. em Ciência Política pela UC Berkeley, Pró-Reitor da Universidade Cândido Mendes e Vice-
Presidente da Câmara de Ensino Superior do CNE. Diretor do Databrasil - Ensino e Pesquisa e
Coordenador do Observatório Universitário.
(**)
Esse texto foi escrito em co-autoria com Enrico Martignoni, Márcia Marques de Carvalho e Leandro
Molhano Ribeiro.
1
Esta taxionomia, criada pelo Decreto nº 3.860, de 9 de julho de 2001, foi examinada, em perspectiva
comparada, por Edson Nunes et alli. Teia de Relações Ambíguas: Regulação e Ensino Superior. Brasília:
INEP, 2002. O marco regulatório que lhe dá origem e sentido está descrito em Regulação no Sistema
de Educação Superior: marco legal, estrutura e organização. Documento de Trabalho do Observatório
Universitário, nº 20. Rio de Janeiro: Databrasil - Ensino e Pesquisa/UCAM, 2003.
170
Esta taxionomia foi muito mais um construto com objetivo
regulatório do que o produto de uma reflexão sobre a educação superior.
Não contém, por isso, nenhuma análise efetiva da educação superior,
mas apenas constitui sua separação em “fatias”, para os fins dos proces-
sos regulatórios. Talvez isso seja até natural porque a aceleração do cres-
cimento da educação superior é recente, remonta à década de 90, no
bojo do qual a taxionomia assumiu o papel, por um lado, de incentivar o
crescimento, principalmente do setor privado e, por outro lado, de servir
de balizamento para as regras regulatórias e de supervisão. Em adição, o
sistema de ensino superior brasileiro, comparado com outros países, é
muito recente, como são muito recentes as nossas instituições de ensino
e, portanto, o próprio sistema classificatório
2
.
Estaria na hora de gerar, com base em estudos empíricos, associados à
concepção mais genérica, a verdadeira taxionomia deste sistema brasileiro,
para saber quais são os tipos de IES que se escondem atrás desse “biombo
taxionômico” usado nos últimos tempos. Atrás desse “biombo” existem, atu-
almente, 1.960 instituições de ensino superior
3
. Destas, 162 são universida-
des, sendo 84 privadas e 78 públicas. Setenta e nove são centros universitá-
rios, dos quais 76 são privados e três são públicos. Cento e onze são faculda-
des integradas. Existem 1.510 faculdades isoladas, escolas ou institutos su-
periores. Das 1.960 IES, 1.320 estão nas regiões Sul e Sudeste, sendo que
praticamente 1.000 estão apenas no Sudeste. Este sistema, que hoje oferece
cerca de 14.000 cursos, é distribuído em mais ou menos 26.000 habilitações,
segundo os números do INEP hoje.
Mantida rigorosamente a descrição legal sobre o que constitui uma univer-
sidade – apenas para mostrar um pouco a impertinência dessa taxionomia –,
quantas delas seriam universidades de fato?
Além da necessidade empírica de se descrever o sistema de IES, é ne-
cessário resgatar o conceito de universidade, respeitando os princípios defi-
2
Nos Estados Unidos, as duas principais taxionomias do sistema de ensino superior são realizadas pela
Associação Americana de Professores Universitários (AAUP) e pela Carnegie Foundation. Basica-
mente, utilizam os graus e títulos oferecidos pelas IES para descrever os tipos de universidades e
faculdades existentes. A AAUP apresenta uma classificação baseada em cinco tipos de IES, enquan-
to a Carnegie Foundation trabalha com um sistema dividido em dez categorias. Essas taxionomias
estão sumarizadas em Edson Nunes et alli Teias de Relações Ambíguas, op. cit., e Edson Nunes, André
Nogueira e Leandro Molhano Ribeiro. Corporações, Estado e Universidade: o diálogo compulsório
sobre a duração de cursos superiores no Brasil. Documento de Trabalho do Observatório Universi-
tário nº 5. Rio de Janeiro: Databrasil - Ensino e Pesquisa/UCAM, 2001.
3
INEP. Consulta ao Cadastro da Educação Superior em 4 de agosto de 2003.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
171
nidos em lei, até mesmo para que possamos acertar as prioridades de inves-
timento e as concepções estratégicas sobre a Educação Superior. A articula-
ção do ensino, pesquisa e extensão em instituições de excelência, que, se-
gundo a legislação, deve caracterizar o ensino ministrado nas universidades,
é dispendiosa. Requer concentração de recursos materiais e humanos, e não
dispersão, como vem sendo sugerido pelo grande número de universidades,
que seriam obrigadas a fazer atividades de pesquisa
4
.
Desconhecem-se países que tenham 162 universidades definitivamen-
te doutorais, de pesquisa. Também se desconhecem países que definam como
universidades aquelas instituições que possuem apenas dois mestrados. É
preciso recuperar os princípios que orientam o conceito de universidade,
trazê-lo de volta ao seu leito, para que se possa discutir, de fato, esse siste-
ma, que, simplificando, hoje define como universidade aquela instituição
que tem no mínimo dois mestrados recomendados pela Capes.
Para dar um exemplo sobre essa necessidade, por que talvez não começar
pelo setor público - para não parecer que estejamos sugerindo uma persegui-
ção ao setor privado? Sugere-se que seja desuniversidadizada a tendência do
ensino superior no Brasil. Todos querem ser universidade ou centro universi-
tário, por causa da cláusula de aumentar cursos e abrir vagas. A rigor, não
vimos discutindo a autonomia, que estaria no cerne da identidade institucio-
nal da universidade, mas apenas o direito, o acesso a essas duas prerrogativas:
abrir cursos e aumentar vagas; prerrogativas que hoje, inclusive, fazem com
que muitas universidades privadas se oponham à existência dos centros, de
modo a mitigar a competição representada por eles. Obviamente, ao verificar
quem é e quem não é universidade de verdade no setor público, veremos que o
número efetivo de universidades é muito menor do que o número que hoje a
nomenclatura legal descreve. E se o fizermos no setor privado, com certeza
vamos ter uma surpresa muito maior do que teríamos no setor público.
Mas o que fazer com a autonomia, já que grande parte do debate sobre
a autonomia na universidade brasileira relaciona-se com as prerrogativas
4
De acordo com a LDB, “as universidades caracterizam-se por serem instituições pluridisciplinares de
formação dos quadros profissionais de nível superior, de pesquisa, de extensão e de domínio e
cultivo do saber humano. Devem possuir: I. produção intelectual institucionalizada mediante o
estudo sistemático dos temas e problemas relevantes, tanto do ponto de vista científico e cultural
quanto regional e nacional; II. um terço do corpo docente, pelo menos, com titulação acadêmica de
mestrado e doutorado; III. um terço do corpo docente em regime de tempo integral.” (Lei nº 9.340/
96, art. 52). O Decreto nº 3.860/01 afirma ainda que as universidades são “instituições de excelên-
cia que articulam ensino, pesquisa e extensão de maneira indissociável.
172
mencionadas acima? Aqui reside outro “mito nominalista” da discussão so-
bre ensino superior no Brasil. De fato, não existe autonomia no Brasil. Aliás,
para dizer a verdade, o Estado brasileiro parece ter ojeriza à autonomia, seja
de universidades, seja de estados, seja de municípios, seja de agências regu-
ladoras. O Estado brasileiro parece confundir autonomia com soberania.
Como soberano é o Estado nacional, não admite que entidades subnacionais
tenham autonomia.
O que se chama de autonomia hoje é, na verdade, uma autonomia mi-
tigada, no caso do setor público, e uma autonomia que se resume a abrir
cursos e aumentar vagas, no caso do setor privado.
Assim como as universidades públicas, as universidades privadas tam-
bém não têm autonomia frente aos seus mantenedores, talvez excetuando-
se alguma comunitária. Embora ao falar da Educação Superior a referência
seja o sistema de mantidas, de fato, o ensino superior é um sistema governa-
do por mantenedoras, sejam elas laicas, confessionais ou públicas. Existe
uma ausência de vida universitária tout court naquilo que seria o sistema de
mantidas, e existe uma soberania de fato das mantenedoras com relação às
suas mantidas.
É preciso, então, destampar esta peneira que está escondendo o sol
e dar nome aos bois, porque, caso contrário, a autonomia estará resumi-
da em ampliar ou em restringir a capacidade de abrir cursos e aumentar
vagas. Taxionomicamente isso é irrelevante, depende da estratégia, das
preferências, dos princípios que orientam as políticas públicas, mas não
se deve macular o conceito de universidade por meio do “mito
nominalista”, que fez com que o desejo de ser universidade, desde o ponto
de vista da expansão do setor privado, se apóie apenas na possibilidade
de aumentar vagas e abrir cursos novos, sem para isso precisar de autori-
zação governamental.
Da forma como essa taxionomia está concebida – construto para
efeitos regulatórios –, o sistema de ensino superior acaba sendo levado a
duas camisas-de-força: uma, é a que pressiona o sistema para um certo
isomorfismo. A outra é a que pressiona o sistema para uma espécie de
isonomia de funções, hierarquias, salários e vantagens. Como esta
taxonomia foi feita ex ante – ao contrário do que deve normalmente ser
feito na ciência, onde a classificação é realizada depois do estudo do
objeto, depois de sua descrição – ela está amarrando a Educação Superi-
or brasileira, impedindo uma reflexão ampla sobre a sua estrutura e sobre
o seu posicionamento estratégico.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
173
2. EXPANSÃO, PNE, RESTRIÇÕES ESTRUTURAIS E
CORPORAÇÕES PROFISSIONAIS
Com relação ao segundo tema, a questão de expansão da oferta de Edu-
cação Superior diante das restrições da estrutura social e da matriz profissi-
onalizante do ensino no Brasil, é possível fazer as seguintes observações
sobre a possibilidade de se cumprir a meta estabelecida no Plano Nacional
de Educação de matricular 30% dos jovens de 18 a 24 anos no ensino supe-
rior até o final de 2010.
Em números atuais, isso significa mais que quadruplicar o sistema. O
cumprimento dessa meta, hoje, corresponderia a ter matriculados no ensino
superior cerca de 7 milhões de estudantes
5
. No entanto, o número de matri-
culados será maior, cerca de 12 milhões de estudantes, se adicionarmos ao
contingente de 18 a 24 anos aqueles que estão fora da idade-alvo e cursam o
ensino superior
6
. Antes de mencionar os problemas para o cumprimento da
meta estabelecida no PNE, é preciso registrar que o Brasil tem um atenuante
demográfico para o seu atingimento. A coorte de jovens entre 18 e 24 anos,
em 2010, vai ter praticamente o mesmo tamanho que hoje. Essa coorte apre-
sentará crescimento até 2005/2006, mas depois, por conta de fatores
demográficos pregressos, começará a cair, fazendo com que os 30% de jo-
vens entre 18 e 24 anos, em 2010, sejam, em termos numéricos, equivalen-
tes à mesma percentagem sobre a coorte existente nos dias de hoje
7
. Isso
certamente favoreceria o cumprimento da prescrição legal. Ainda assim, per-
sistem dificuldades para que a meta seja atingida.
No que se refere às restrições colocadas pela estrutura social brasileira,
observa-se que uma primeira dificuldade tem a ver com a idade média dos
estudantes que cursam o ensino superior. De acordo com o IBGE, no ano
2000, havia 1.705.768 estudantes entre 18 e 24 anos no ensino superior no
5
Para atingir a meta do PNE, 7.002.287 pessoas de 18 a 24 anos deverão estar matriculadas no ensino
superior em 2010, um número 4,1 vezes maior do que existia em 2000, 1.705768 estudantes. Dados
elaborados pelo Observatório Universitário, a partir dos dados básicos do IBGE: Censo Demográfico,
2000.
6
Análise detalhada dessas estimativas encontram-se em Edson Nunes, Enrico Martignoni e Márcia
Marques de Carvalho. Desconstruindo o PNE: limitações estruturais e futuro improvável. Documento
de Trabalho do Observatório Universitário, nº 22. Rio de Janeiro: Databrasil – Ensino e Pesquisa/
UCAM, 2003. Trabalho apresentado no II Encontro de Dirigentes de Graduação das IES Particula-
res. Fortaleza, 27-29 de agosto, 2003.
7
Segundo as estimativas do IBGE, em 2000, a população de jovens entre 18 e 24 anos era de 23.693.161
pessoas. Em 2006, atingirá o montante de 24.017.640 de pessoas, caindo para 23.340.958, em 2010.
174
Brasil
8
, o que representava cerca de 60% dos alunos matriculados nesse ní-
vel de ensino. Simultaneamente, apenas um terço da população entre 18 a
24 anos estava estudando, considerando-se todos os níveis de ensino. Den-
tre esses jovens de 18 a 24 anos, apenas 9% estavam no ensino superior.
Não apenas uma parcela pequena desses jovens cursava o ensino superior
em 2000, como uma análise do perfil dos estudantes nesse tipo de ensino
revela que a idade média dos estudantes brasileiros que cursam esse nível de
ensino está crescendo com a expansão do sistema: era de 25 anos em 1991,
de 26 em 2000 e de 27 em 2001
9
.
Outra restrição importante refere-se ao mercado de trabalho. A popula-
ção entre 18 e 24 anos é a maior parcela da população economicamente
ativa do Brasil. Ao mesmo tempo, é a que apresenta a maior taxa de desem-
prego entre as diversas coortes adultas brasileiras. Existem mais ou menos
23 milhões de pessoas nessa faixa, sendo que 16 milhões fazem parte da
população economicamente ativa. No ano 2000, 70% dos jovens entre 18 e
24 anos estavam procurando emprego
10
. Entre os que trabalhavam, 80% se
ocupavam por mais de 40 horas semanais. Os dados indicam que 35% traba-
lhavam entre 40 e 44 horas e 44% trabalhavam mais de 45 horas semanais.
Além dessas complicações, existem outras relacionadas à renda e às
condições de vida das famílias brasileiras. Dentre os alunos que estão com-
pletando 11 anos de escolaridade (e que supostamente poderiam disputar
uma vaga no ensino superior), cerca de um quarto vive em condições de
total dificuldade econômica: vivem com famílias com renda inferior a 2 salá-
rios mínimos, em domicílios precários, sem saneamento básico
11
. Esta popu-
lação, com escolaridade certa, possivelmente, mesmo se houvesse vaga, teria
8
IBGE. Censo Demográfico 2000.
9
Informações elaboradas pelo Observatório Universitário, a partir dos dados básicos do IBGE: Censos
Demográficos de 1991 e 2000; Contagem da População, 1996; e PNAD, 2001. Ver Edson Nunes,
Enrico Martignoni e Márcia Marques de Carvalho. Desconstruindo o PNE: limitações estruturais e
futuro improvável, op. cit.
10
IBGE. Censo Demográfico 2000.
11
Foram contabilizados como jovens entre 18 e 24 anos de idade que vivem em condições adversas
aqueles que possuem pelo menos uma das seguintes características: rendimento familiar inferior a
dois salários mínimos, não possuem fogão e/ou geladeira no domicílio, vivem em domicílios com
material das paredes e/ou da cobertura não-duráveis, vivem em domicílios com densidade de
moradores superior a dois moradores e renda inferior a cinco salários mínimos, vivem em domicílios
alugados e possuem renda familiar inferior a cinco salários mínimos, vivem em domicílios sem
canalização interna de água. Ver Edson Nunes, Enrico Martignoni e Márcia Marques de Carvalho.
PNE: restrições, impossibilidades e desafios regionais. Documento de Trabalho do Observatório
Universitário, nº 23. Rio de Janeiro: Databrasil – Ensino e Pesquisa/UCAM, 2003. Trabalho apre-
sentado no II Encontro Regional do Fórum Brasil de Educação, Goiânia, setembro de 2003.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
175
dificuldade em se manter no ensino superior, porque seria obrigada a rumar
prioritariamente para o mercado de trabalho para gerar renda familiar.
Outra dificuldade estrutural pode ser apreendida na comparação entre a ren-
da da população que está no ensino superior e a renda da população na idade certa
que não cursa esse nível de ensino. Em 2001, os estudantes do ensino superior
apresentaram uma renda mensal familiar em torno de R$3 mil. A população entre
18 e 24 anos que cursava o ensino superior tinha uma renda mais alta que a média,
de quase R$3,2 mil, e os estudantes com idade acima de 24 anos tinham uma renda
menor do que a média, de aproximadamente R$2,8 mil. Todas essas três faixas de
renda dos estudantes do ensino superior (a média total, a média daqueles na idade
certa e a média daqueles fora da idade) eram maiores do que a renda média dos
jovens entre 18 e 24 anos que estavam fora da Educação Superior. Observe-se
que 70% dos estudantes do ensino superior no Brasil tinham uma renda familiar
acima de oito salários mínimos e apenas 30% daqueles que não estavam no ensino
superior possuíam uma renda superior a oito salários mínimos
12
.
Os problemas enumerados acima equivalem, mais ou menos, a dizer o
seguinte: o Brasil, dadas as restrições estruturais socioeconômicas (renda
familiar e condições de vida, mercado de trabalho, distorção idade/série,
etc.), está atingindo o patamar possível de absorção de estudantes na idade
certa (18 a 24 anos) pelo ensino superior.
Existe ainda um problema adicional, que diz respeito à matriz profissi-
onalizante do ensino superior, problema este relacionado ao posicionamento
das corporações profissionais frente à expansão do ensino superior. Obser-
vou-se, anteriormente, que o comando legal, via PNE, determina a expan-
são da Educação Superior; ou seja, é preciso ampliá-lo em sete anos, para
incorporar aproximadamente 12 milhões de estudantes. A Educação Superi-
or mais do que dobrou em 11 anos: passou de 1.377.286 de estudantes em
1990 para 3.030.754 em 2.001
13
. No entanto, as corporações profissionais
dizem “Não, não precisamos de mais profissionais”. Uma consulta aos ór-
gãos que têm direito a opinar sobre a abertura de cursos permitirá observar
que eles praticamente dizem: “Não, não abram mais cursos porque estamos
saturados de profissionais”. E dizem isso por uma consciência de mercado,
por um lado, e por uma preocupação relativa à qualidade do ensino e ao
eventual aviltamento da profissão e remuneração, por outro lado.
12
Dados elaborados pelo Observatório Universitário (Databrasil – Ensino e Pesquisa/UCAM), a partir
dos dados básicos do IBGE: Censo Demográfico 2000.
13
IBGE. Censos Demográficos, 1991 e 2000.
176
Registre-se aqui o caveat: não é possível quadruplicar um sistema em 15
ou 20 anos, sem perda de qualidade. Há uma contradição numérica nesse
processo. Não é possível mais do que dobrar a oferta de ensino superior e
manter simultaneamente a qualidade do ensino, pelo simples fato de existir
menos gente ensinando e mais gente sendo incorporada. Nenhum sistema é
capaz de se reproduzir a essa taxa de crescimento, sem que haja perda de
qualidade. Há uma impossibilidade numérica nesse sentido: denominador
muito grande, comparado com numerador diminuto.
Portanto, persiste o problema de zelar pela qualidade e garantir o não-
aviltamento profissional, que é o que têm dito as corporações profissionais
para justificar sua oposição à abertura de novos cursos. Mas o PNE, em suma,
a lei, manda expandir o ensino superior, ao mesmo tempo em que o país, pelo
registro do discurso de seus governantes, acadêmicos e empresários, tem cons-
ciência de que é preciso aumentar em muito o contingente de estudantes no
ensino superior. Este, de fato, é pífio em comparação internacional, enquanto
os profissionais insistem em dizer que já existem profissionais demais
14
.
Diante dessas questões, é de se perguntar quem está com a razão: as
corporações, ou o PNE, ou a elite governamental e empresarial? Dadas as
dificuldades e necessidades do país, é possível supor que todos têm razão.
Resulta, portanto, que uma das reformas sobre as quais é preciso refletir,
além daquelas ora perseguidas pelo governo, relaciona-se com a tendência
de todos desejarem um titulo universitário profissional, defeso em lei.
O Brasil fez uma opção que se tornou meio trágica ao longo do tem-
po, uma opção que podia ser certa quando o ensino superior era um ensino
de elite, mas quando se busca um processo de massificação, tal opção pas-
sa a constituir uma insidiosa covardia com as pessoas que, aos 16/17 anos,
devem escolher uma profissão para seguir nos estudos da Educação Supe-
rior. É uma espécie de profissionalização precoce. Se derem sorte vão ser
felizes pelo resto da vida, se derem azar vão ser assombrados por esta
escolha pelo resto da vida
15
.
14
De acordo com informações da OECD, o Brasil apresentou, em 1996, uma taxa de escolarização líquida
no ensino superior de 6,2%. Para se ter uma idéia de como essa taxa é pequena, a taxa média dos países
considerados como possuindo sistemas de ensino superior de elite era de 9,4%, a média dos países
considerados como tendo uma educação superior massificada era de 23% e a média dos que possuem
uma Educação Superior universal era de 38,5%. OECD 1996. Education at a Glance, 1998.
15
Sobre o problema da profissionalização precoce, relacionada à matriz profissionalizante do ensino
superior, ver Edson Nunes, André Nogueira, Leandro Molhano Ribeiro Futuros possíveis, passados
indesejáveis: selo da OAB, provão e avaliação do ensino superior. Rio de Janeiro: Garamnod, 2001.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
177
Estaria na hora de pensar em uma outra matriz educacional, capaz de
evitar a profissionalização precoce. O tamanho do ensino superior brasileiro
está longe de ser suficiente, portanto a contradição entre profissão e univer-
sidade terá que ser confrontada em algum momento com opções distintas,
até mesmo porque o ensino precisa se diversificar.
Da forma como está, o ensino superior brasileiro encontra-se “amar-
rado” às 37 profissões regulamentadas, enquanto o mercado de trabalho
apresenta uma forte diversificação de ocupações
16
. Profissão no Brasil é
estatal, definida por lei, e essa definição estatal hoje não tem mais nada a
ver com a realidade, que faz com que sejam caducas a definição e a Edu-
cação Superior que vem atrás dela. Observando o Código Brasileiro de
Ocupações (CBO), encontram-se 2.422 ocupações distintas, distribuídas
em 7.258 títulos anônimos. Claro que nem todas essas ocupações são de
nível superior, mas ainda assim essas ocupações são agregadas em 596
grupos de base ou famílias ocupacionais, e muitos deles são relacionados a
ocupações superiores
17
. Tendo em vista esses números que apontam para a
diversidade de oportunidades no mercado de trabalho, é possível falar muito
mais de ocupação do que de profissão.
A universidade ainda está amarrada à definição das 37 profissões regu-
lamentadas. Para se ter uma idéia, uma inspeção do número de cursos e/ou
programas de graduação existentes no ensino superior brasileiro revela que
do total de 12.067 dos cursos existentes, 8.996, ou seja 74,6%, são cursos
de profissões regulamentadas. Quando se analisa o número de alunos matri-
culados, verifica-se que do total de 3.029.154 alunos do ensino superior,
79,6% deles (2.410.574 alunos), estão matriculados em cursos de profis-
sões regulamentadas
18
.
Nem todas as profissões regulamentadas estão proporcionalmente re-
presentadas nos ensinos superiores público e privado, já que nem todas, até
mesmo por sua obrigação pública, são igualmente rentáveis. As universida-
16
Ver Campanhole. Profissões regulamentadas. São Paulo: Editora Atlas, 1999.
17
O CBO de 2002 apresenta a seguinte estrutura: 10 grandes grupos (GG); 47 subgrupos principais
(SGP); 192 subgrupos (SG); 596 grupos de base ou famílias ocupacionais; 2.422 ocupações e 7.258
títulos. Grande Grupo é a categoria de classificação mais agregada, reunindo amplas áreas de empre-
go; Subgrupo Principal apresenta as grandes linhas do mercado de trabalho; Subgrupos, agrega
ocupações que possuem natureza de trabalho semelhante no que se refere aos níveis de qualificação
exigidos; Família define os postos de trabalho, com as tarefas, obrigações e responsabilidades atribu-
ídas a cada trabalhador. Ver CBO, 2002.
18
Dados elaborados pelo Observatório Universitário (Databrasil – Ensino e Pesquisa/UCAM) a partir
dos dados básicos do MEC/INEP: Sinopse Estatística da Educação Superior, 2001.
178
des, principalmente as públicas, estão amarradas a algumas profissões de
pouca rentabilidade. No terreno da expansão futura, essencialmente falando
do setor privado, este deverá tender a um cálculo de expansão para aquelas
áreas e curso mais baratos e com maior demanda, registrando-se uma certa
consciência de mercado nisso.
3. POLÍTICA PÚBLICA E ENSINO SUPERIOR
O terceiro tema a ser abordado refere-se à seguinte questão: o que fazer
com o futuro possível, a partir das decisões tomadas hoje e ontem no Brasil?
O Brasil é uma espécie de “ponto fora da curva”. Comparando-se o
Brasil com outras nações, verifica-se que, ao lado de países como a Indonésia,
as Filipinas, a Coréia, o Japão, o país tem uma predominância de ensino
superior privado sobre o público. Em 2000, cerca de 70% dos estudantes
estavam matriculados nas IES privadas nesses países, segundo os dados da
OECD. Nos demais países registrados
19
, as IES públicas é que abrigavam
mais de 70% dos estudantes
20
.
É preciso refletir se esta condição brasileira já não é permanente. Os
orçamentos dos estados nacionais são engessados pela inércia. O Governo
Carter tentou contornar isto por meio de um orçamento de base zero, de
modo a ressaltar as verdadeiras prioridades para impedir que o orçamento
se repetisse automaticamente por inércia. E não foi muito longe. O zero
basis budget não foi longe porque grupos de pressão, grupos de políticos,
grupos da própria burocracia já engessavam a despesa pública a ponto de
não permitir variações muito intensas de rubricas ao longo dos anos. Por-
tanto, dado o engessamento orçamentário e dadas as escolhas prévias da
última década, possivelmente engessou-se a proporção público/privado
brasileira por muito tempo.
Por conta da sua matriz profissionalizante de ensino superior, por ser o
Brasil um ponto fora da curva, em função do comando legal para quadruplicar
as matrículas no ensino superior em sete anos, não há de onde ou com quem
aprender, comparativamente, modelos adequados e experimentos bem-suce-
19
Os demais países são Alemanha, Argentina, Austrália, Áustria, Canadá, Chile, Espanha, EUA, França,
Holanda, Itália, Malásia, México, Noruega, Polônia, Portugal, Reino Unido, Suécia, Suíça, Tailândia,
Turquia, Uruguai.
20
Para uma análise sobre o Brasil como um caso desviante, ver Edson Nunes, O Caso desviante do ensino
superior brasileiro. Documento de Trabalho nº 20, do Observatório Universitário. Rio de Janeiro:
Databrasil – Ensino e Pesquisa/UCAM, 2003.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
179
didos de “governança regulatória” a serem replicados no Brasil. Não há ne-
nhum modelo econométrico, não há nenhuma estrutura de gestão de outros
países que possa ser copiada e aplicada ao país. Por isso, será necessário criar
uma concepção do ensino superior e uma governança regulatória próprias.
No entanto, algumas dificuldades se apresentam para que isso seja rea-
lizado. O setor público brasileiro, principalmente o setor de inteligência, vem
sendo judiciosamente destruído desde o começo da década de 90, a ponto
de não existir um aparato sistemático refletindo estratégica e praticamente
sobre o ensino superior e a economia no Brasil. O governo não tem isso, a
SESu também não (talvez por não ser um órgão executivo), o Inep já teve,
mas atualmente não tem, assim como não têm o IBGE, o Ministério da Fa-
zenda, o Ministério do Planejamento...
Na ausência da inteligência estratégica governamental, era de se espe-
rar que o setor privado se apresentasse com algum investimento para resol-
ver - ou, pelo menos, contribuir - ou competir pela inteligência estratégica e
direção do sistema. Mas o setor privado também não faz isso. Este se prepa-
rou muito mais para as guerras regulatórias do que para competições estraté-
gicas sobre concepções do futuro – o que talvez seja até natural por causa do
processo microrregulatório característico dos últimos anos.
É preciso, então, investir na reflexão densa e séria sobre a governança
regulatória brasileira, sobre as opções estratégicas para o ensino superior
brasileiro, sua diversidade e de que maneira relacionar isso com a renovação
da taxionomia das IES, mencionada acima. O ensino superior já é um merca-
do grande e que veio para ficar. Apenas o ensino superior privado mobiliza
algo como 10 bilhões de reais por ano
21
. A capacidade e extensão do sistema
de ensino já faz dele um setor parecido com outros da economia. Já é um
setor que tem uma tessitura de interesses profundos no Congresso Nacional,
que inclusive reflete isso em suas comissões e vozes ligadas ao setor privado
de ensino, até mesmo porque ser a casa de representação de interesses.
21
Ver Jacques Schwartzman e Simon Schwartzman. O ensino superior privado como setor econômico. Trabalho
realizado por solicitação do BNDES, 21 de agosto de 2002. Os autores afirmam que “O preço dos
estudos (em IES privadas) varia entre quatro e nove mil reais anuais, dependendo da área. O preço
médio da área das ciências sociais aplicadas, que cobre a metade dos alunos do setor privado, é de
5.300 reais anuais. Usando este valor como referência, podemos estimar que o ensino superior
privado brasileiro representa uma indústria de aproximadamente dez bilhões de reais anuais, ocu-
pando cerca de 200 mil pessoas, dos quais 115 mil professores (ou, mais precisamente, “funções
docentes”) e 85 mil funcionários administrativos” (p. 1). Outro estudo, elaborado pela CM Consultoria
e publicado em edição especial da Revista @prender estimou a movimentação anual das IES privadas
em 12 bilhões de reais.
180
Dadas essas condições e restrições, como o MEC vai resolver isso? Se
é que está preparado para resolvê-las.
4. NOTA CONCLUSIVA
Quanto a esta última pergunta, registra-se aqui um comentário final.
Hoje existem três ministérios fazendo política educacional no Brasil. São
dois ministérios principais e um coadjuvante. Os dois principais são o da
Fazenda e o do Planejamento. O coadjuvante é o da Educação. Na minha
trajetória profissional – eu sempre trabalhei na área econômica do governo –
tive oportunidade de participar da coordenação de planos nacionais de de-
senvolvimento ou planos plurianuais de investimento. E o que se faz nesses
planos? Primeiro, no interior dos ministérios da área econômica, pensa-se na
consistência macroeconômica do modelo. Depois, vai-se às políticas setoriais
e fazem-se as negociações setoriais com cada ministério. Realizada a negoci-
ação setorial, se ela comprometer a consistência macroeconômica, cortam-
se as verbas e os programas dos ministérios. A Educação no Brasil é conside-
rada uma política setorial, assim como a saúde ou as políticas regionais. Os
planos, na sua consistência, são muito mais promessas para os outros cum-
prirem do que para o próprio governo, que estima uma certa dinâmica de
investimentos internacionais no setor privado, além do desempenho dos es-
tados e dos municípios. Do ponto de vista do futuro (assegura Joseph Stiglitz,
que foi vice-presidente e economista chefe do Banco Mundial, entre 1997 e
2000, e Prêmio Nobel de Economia, em 2001), o desenvolvimento tem di-
mensões fundamentais, dentre as quais a distribuição da renda e a educação.
Não está pensando em políticas setoriais, mas sim em políticas que sejam
parte consistente do cálculo macroeconômico
22
. E no Brasil claramente isso
não faz parte do cálculo macroeconômico, nem faz parte do projeto do futu-
ro. Assim, além das restrições mencionadas ao longo do texto, dos proble-
mas advindos da castração conceitual imposta ao sistema pela taxionomia
regulatória, das restrições estruturais e conjunturais que limitam o cresci-
mento, das dificuldades com os recursos humanos e inteligência
institucionalizada para a supervisão e concepção estratégica da Educação
Superior, existe ainda um grave problema: enquanto a política pública sobre
Educação não passar a fazer parte da agenda substantiva do Ministério da
Fazenda e do Ministério do Planejamento, vai continuar a ser tocada por um
ministério coadjuvante, que é o Ministério da Educação.
22
Joseph Stiglitz, Globalization and its discontents, New York: W.W. Norton & Company, 2002.
181
POR QUE E COMO REFORMAR A UNIVERSIDADE:
MITOS E REALIDADES
Hélgio Trindade
(*)
Agradeço o honroso convite para refletir e debater em torno do tema
central do Seminário Universidade XXI: a tensão entre o público e o priva-
do, a partir da questão que perpassa a temática como o grande desafio: “Por
que e como reformar a Universidade?”
Compartilho com muitos colegas de seminário a longa travessia do de-
serto em que a grande arma foi a crítica acadêmica e política por meio de um
livro coletivo que organizei e que denunciou o grande paradoxo: A universi-
dade em ruínas na república dos professores
1
. A melhor prova de que nosso diag-
nóstico estava correto foi o livro quase oficial, organizado por Bolivar
Lamounier (A Era FHC, 2002), onde se lê, no capitulo destinado a avaliar o
governo na área de Educação, que a ‘’reforma universitária fica para de-
pois’’. Daí a responsabilidade histórica do governo Lula de resgatar esta di-
vida com a universidade brasileira.
Antes de entrar nas questões mais substantivas do tema, queria deixar
para o debate duas premissas: uma de natureza política e outra sociológica.
Primeiro, não haverá reforma possível sem uma estratégica negociação
entre o Governo, o Legislativo e os outros atores do processo educacional
brasileiro. Segundo, os estudos comparativos mostraram que a universidade
é uma das instituições que mais resistem a mudança em geral, o que implica
um debate político, pedagógico e mobilizador para que ela possa avançar.
Espero que este seminário seja o ponto de partida, a resposta ao por que
reformar é certamente menos complexa do que como reformar?
(
*) Professor-titular e ex-Reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenador do Centro
Interdisciplinar de Pesquisa para o Desenvolvimento da Educação Superior. Vice-chair do Fórum
Educação Superior, Ciência e Conhecimento da UNESCO.
1
Universidade em ruínas na república dos professores, (3ª ediçao), Petrópolis, Ed. Vozes/Cipedes, 2001.
182
Por que reformar: decorre da compreensão de que, historicamente, a
universidade somente sobreviveu desde o século XII porque, como institui-
ção social, foi capaz de responder aos desafios do seu tempo. Como explicar
esse fenômeno de longevidade singular senão pela reforma ou pela a auto-
reforma, ou seja, pela capacidade cíclica da universidade adaptar-se ao seu
tempo histórico, desde as corporações medievais de professores e alunos de
Paris e Bologna, passando pelas universidades renascentista, da reforma ou
da contra-reforma, até chegar ao modelo estatal francês napoleônico ou ale-
mão humboldtiano que abre as vias para a universidade contemporânea?
Hoje, os diferentes modelos das universidades contemporâneas buscam suas
referências nesse longo processo de transformações e reformas, assim como
a universidade latino-americana foi tributária da reforma universitária de
Córdoba de 1918.
É indiscutível que hoje as universidades estão sob a pressão de novas
reformas para enfrentar os desafios do século XXI. No Brasil, somente a lei
universitária de 1968, em pleno regime militar, realizou a última reforma
que, de fato, produziu efeitos positivos e negativos entre os quais estabele-
ceu uma divisão do trabalho no campo da educação superior:
De um lado, por meio de uma política integrada de modernização das
universidades públicas, com expansão da pós-graduação, profissionalização
e qualificação dos quadros docentes, associada a políticas de fomento de
C&T por meio de agências especializadas (Capes, CNPq e Finep).
De outro, pela expansão desordenada da educação superior privada para
responder à demanda crescente por educação superior, com incentivo do
próprio Estado, por intermédio do ex-Conselho Federal de Educação e que
atingiu o seu clímax durante o governo FHC.
Hoje, impõe-se uma reforma, por meio de uma política de Estado que
estabeleça um sistema nacional de educação superior; definindo sua hierar-
quia, a partir de universidades públicas de referência.
A reforma precisaria atingir alguns objetivos macroeducacionais:
reordenar as complexas relações entre o público e o privado enfrentando a
banalização do conceito de universidade; assegurar a plena autonomia uni-
versitária às universidades federais; até garantir a qualidade acadêmica por
meio de políticas de avaliação institucional que não se confundem com as
políticas regulatórias que articulam as ações da SESu, Inep, Capes e CNE.
Para tanto, é fundamental que o Governo estabeleça, em articulação
com o Legislativo, a comunidade universitária e suas entidades representati-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
183
vas – uma proposta de reforma que corresponda às ambições contidas no
Programa de Governo de Lula: Uma Escola do Tamanho do Brasil, que propõe
novas políticas de educação superior que estejam associadas a um projeto de
Nação compatível com os desafios da sociedade brasileira e às transforma-
ções científicas e tecnológicas do mundo contemporâneo.
É importante ressaltar que, em termos internacionais, o Relatório Attali
(1988) resgatou para a França significado histórico da educação e da univer-
sidade para a soberania e o desenvolvimento do país como nação ao afirmar
que: ’’Mais do que nunca, o desenvolvimento e a qualidade de vida de uma
nação dependerão de seu nível cultural e científico que dependem funda-
mentalmente do valor do seu ensino superior”.
2
Sobre o por que reformar, poder-se-iam agregar muitos outros argu-
mentos a seu favor. A questão é mais complexa e é a segunda parte da per-
gunta: como reformar?
A complexidade começa ao se projetar para o futuro o modelo da nova
universidade sob a pressão do compromisso mitológico de como seria a uni-
versidade no contexto da mudança do século: a construção mitológica da
universidade do “terceiro milênio’’ ou, na retórica hispânica, “nos albores del
siglo XXI. Este pode ser o mito mobilizador para projetar os cenários do
futuro, mas sem que nos esqueçamos que o desafio substantivo é aqui e agora,
para impedir que se rompa o tecido acadêmico da educação superior fazen-
do com que esse patrimônio extraordinário seja sucateado, transformado em
ruínas físicas e acadêmicas.
O que foi denominado no título do Seminário de “tensão entre o públi-
co e o privado” é a questão macroeducacional que está no centro da proble-
mática e terá de ser encarada. Nas exposições de Cândido Mendes e de Marilena
Chauí, o problema foi colocado na mesa do debate e a natureza do problema
foi exposta de duas perspectivas diferentes.
O como reformar não pode se restringir ao setor público ou ao setor priva-
do separadamente, mas precisa enfrentar a situação real dos dois subsistemas
e integrá-los em políticas que levem em conta as duas tradições (ambas no
Brasil paradoxalmente introduzidas com a República no final do século XIX)
e que coloque o sistema universitário em sintonia com os desafios científi-
cos, tecnológicos e educacionais da sociedade brasileira.
2
“Pour un modèle européen d’enseignement supérieur”, Relatório da Comissão presidida por Jacques
Attali, Paris, Stock, 1998, 147p.
184
Na nossa tradição latino-americana, a universidade tem uma missão
acadêmica irrenunciável e a avaliação adequadamente concebida é o instru-
mento legítimo de seu controle. Esperamos que a proposta da Comissão
Especial de Avaliação se transforme numa política e que seja um dos parâ-
metros da reforma necessária.
Mas não se pode esquecer que a missão social da universidade decorre
de sua natureza de instituição social, e agora seria o momento oportuno para
o governo colocar na agenda a questão da autonomia universitária. O enfo-
que adotado pelo governo anterior em matéria de autonomia universitária
produziu três sucessivos fracassos. A condução política dessa reforma cen-
tral para as universidades públicas federais exige uma negociação complexa
dentro do governo e, deste, com as universidades e a sociedade.
Agora, refletindo sobre os cenários do futuro, para além do mitológico
século XXI, as análises sobre “globalização”, ‘’sociedade do conhecimento’’ e
“impacto das novas tecnologias” no campo da educação superior merecem ser
avaliados. A complexidade da resposta decorre de uma aparente convergência
no diagnóstico entre os especialistas e os novos documentos produzidos pelos
organismos internacionais, inclusive a UNESCO e o Banco Mundial.
Hoje, entre a mídia, os especialistas e os organismos internacionais cons-
truiu-se um certo número de lugares-comuns sobre os desafios educacionais
para o novo século que precisam ser descontruídos para que possamos pen-
sar com mais clareza no como reformar.
1. Começo referindo-me à “autocrítica” do Banco Mundial na recente
publicação.
3
Desde logo chama atenção a elasticidade do conceito de educa-
ção terciária, inspirada na OCDE: “nível ou etapa de estudos posterior à edu-
cação secundária: universidades públicas e privadas, institutos de educação
superior e politécnicos, assim como outros tipos de cenários, como escolas
secundárias, locais de trabalho, ou cursos livres por meio da tecnologia da
informática e grande variedade de entidades públicas e privadas”. Nesta flo-
resta conceitual, é curiosa a escolha de Charles Darwin para a epígrafe do
texto, pois é reveladora da concepção subjacente: a luta hobbesiana pela
seleção das espécies educacionais. O texto não deixa dúvidas sobre a lógica
competitiva entre as espécies: “Não são as espécies mais fortes, nem as mais
inteligentes que sobrevivem: são as que melhor se adaptam à mudança”.
3
WORLD BANK – Construir Sociedades de Conocimiento: Nuevos Desafíos para la Educación
Terciaria, Washington, 2002.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
185
O Banco Mundial decide fazer sua “autocrítica”, aludindo às percep-
ções críticas dos outros sobre o seu papel na área da educação e se
autocoloca no divã psicanalítico para indicar os equívocos que lhe foram
atribuídos: o Banco Mundial seria “um organismo que presta apoio exclu-
sivamente à educação básica; que defende a realocação do gasto público
da educação superior para a educação básica; que promove a recuperação
de custos e a expansão do setor privado”. Diante dessas “percepções’’, das
rápidas mudanças na esfera global e dos problemas tradicionais da educa-
ção terciária nos países em desenvolvimento e transição, obrigou-se “a
reavaliar de maneira urgente as políticas do Banco Mundial e suas práticas
no subsetor de educação superior”.
4
O documento acentua a mudança de posição do Banco Mundial com-
parativamente ao relatório fundador (Educação superior: lições derivadas da ex-
periência,1994). Propõe um novo enfoque nas novas políticas de educação
terciária: reduzir a pobreza mediante o crescimento econômico e reduzir a
pobreza mediante estratégias de redistribuição.
Da mesma forma, as relações entre Estado e a educação superior são
três aspectos valorizados: as “externalidades”, “a inversão na educação su-
perior gera benefícios externos para o desenvolvimento econômico e social,
impulsionado pelo conhecimento” e “a educação superior facilita a constru-
ção da nação ao promover uma maior coesão social, confiança nas institui-
ções sociais, participação democrática e diálogo aberto e valorização em
termos de gênero, etnicidade, religião e classe social”.
Em termos de eqüidade, o Banco Mundial se refere a 70 países que ofe-
recem crédito educativo que atinge a uma minoria (menos de 10% da popu-
lação estudantil) e que os níveis adequados existem somente nos países ri-
cos, tais como Austrália, Canadá, Suécia, Reino Unido e Estados Unidos.
Define também quais seriam ‘’os níveis de inversão adequados”, apesar das
dificuldades metodológicas de estabelecê-los. O certo, porém, “é que o custo
de não realizar uma inversão suficiente na educação superior pode ser muito alto para
qualquer país” pelos seguintes fatores: diminuição da capacidade de compe-
tir; declínio na qualidade de vida; deterioração da saúde pública; aumento da
fratura econômica e social; fragilização da coesão social. Em suma: “não é
possível produzir uma transformação e crescimento sustentável sem uma
educação superior inovadora.”
4
Idem. P. XVIII
186
O Banco Mundial considera que os países em desenvolvimento e emer-
gentes correm o risco de marginalizar-se mais ainda na economia mundial
altamente competitiva se os seus sistemas de educação superior não estive-
rem suficientemente desenvolvidos; e reconhece a necessidade de estabele-
cer uma “visão equilibrada e integral da educação superior como um sistema
holístico (...) e seu papel como um importante bem público global”.
5
Esta concepção representa – em termos comparativos – um avanço
sobre as posições de 1994 em que se valorizava apenas os investimentos
na educação básica e desqualificava qualquer ação estatal no campo da
educação superior.
2. Se o BM fez uma autocrítica, a UNESCO, que na Conferência Mun-
dial de 1998 representou o contra-ponto à linha dos bancos internacionais,
agora passa por um processo involutivo com relação às posições anteriores.
A Conferência Mundial foi amplamente preparada pelas Conferências Regi-
onais de Educação Superior nos vários continentes e a América Latina de-
sempenhou um papel de liderança mundial, não só pelos documentos que
produziu na Conferência Regional em Havana, em 1996, mas pela ação do
relator-geral da Conferência de Paris – Jorge Brovetto, ex-reitor da Udelar e
Secretário-Geral da Associação de Universidades Grupo de Montevidéu.
A recente Reunião Internacional Paris+5, realizada em julho de 2003,
ofereceu ao Ministro Cristovam Buarque a oportunidade de fazer a Confe-
rência de abertura, mas no conjunto do Programa das Comissões havia ape-
nas três latino-americanos, o que é um bom indicador das possíveis novas
orientações da UNESCO.
Nos documentos apresentados, dominava uma preocupação com todas
as formas de provedores públicos e privados de educação a distância, uni-
versidades virtuais e como estabelecer uma instância internacional de con-
trole de qualidade no mercado mundial de educação. Representando o Fórum
para Educação Superior, Ciência e Conhecimento da UNESCO, instância
crítica com financiamento de fundação sueca, tive a oportunidade de dizer
que antes mesmo da OMC tornar a educação uma mercadoria, os especialis-
tas já estavam usando um jargão como se isso já fosse uma realidade.
Houve, inclusive, um pequeno grupo de reitores, especialistas e re-
presentantes estudantis latino-americanos que tiveram de fazer um docu-
mento coletivo, após o término oficial da reunião, que foi encaminhado à
5
Idem. P. XIX
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
187
relatoria-geral do evento, para que fosse retirada a expressão bem público
global, que não estava presente nos textos e na discussão da respectiva
comissão, que, aliás, coincidia com o termo já utilizado no documento do
Banco Mundial referido.
Todas essas considerações sobre o novo documento do Banco Mundial
e as novas tendências da UNESCO são reveladoras de que o conteúdo de
“como reformar’’ nos cenários do século XXI merece ser examinado com
mais profundidade na perspectiva latino-americana. Não basta reconhecer
este lugar-comum de que estamos submetidos a um processo de
mundialização, diante do qual temos de abandonar qualquer projeto de Na-
ção soberana e que a sociedade do conhecimento ou da informação seria a
única referência válida para o futuro da educação superior. Embora a mídia,
os especialistas e os organismos internacionais circulem esses conceitos de
forma abstrata e quase mágica, é fundamental não sucumbir à lógica circular
da reprodução dos argumentos.
3. Nesta perspectiva analítica, gostaria de concluir com algumas refle-
xões críticas sobre esta problemática a partir das contribuições de dois espe-
cialistas latino-americanos que se posicionam, a meu juízo, de forma ade-
quada diante do tema e das estratégias dos organismos internacionais, bem
como sobre as questões propostas para a universidade do século XXI.
A primeira especialista é a venezuelana Carmem Garcia Guadilla, es-
pecialista em educação superior e autora de um livro clássico sobre educa-
ção superior comparada na América Latina, e que acaba de escrever um
novo livro em que enfoca de forma especial o nosso tema.
6
Sua análise parte da observação de que, diferentemente da passa-
gem do século XIX para o XX (quando herdamos “verdades construídas
com uma ciência onipotente e a crença inabalável num progresso contí-
nuo e a educação teve um papel estratégico nesse processo”), o século
XX terminou coincidindo com uma “grande transição da sociedade in-
dustrial para uma sociedade com alto valor educativo, com desenvolvi-
mento de novas tecnologias que alteraram as formas de armazenar, ava-
liar, produzir e aceder ao conhecimento.’’ Guadilla, porém, adverte que a
rapidez com que a informação circula não garante uma utilização inteli-
gente do conhecimento.
6
GARCIA GUADILLA, Carmen – Tensiones y Transiciones: educación superior latinoamericana en los albores
del tercer milenio, Caracas, CENDES/Nueva Sociedad, 2002.
188
Após analisar as questões como “organização do conhecimento e
transdisciplinaridade’’; “produção de conhecimento e pertinência’’, “apren-
dizagem, liberdade e criatividade’’, a autora introduz dois problemas para
o contexto da educação superior latino-americana: como relacionar essas
tendências de mudanças nas sociedades latino-americanas que não se inse-
riram vantajosamente nas sociedades globalizadas?” Além desse aspecto
central, não basta pensar nas vantagens desses avanços, mas também em
quais são os seus riscos.
Sua análise mostra que nesse campo há duas posições opostas. A pri-
meira, influenciada pela idéia de que o desenvolvimento é um processo de
crescimento econômico e a educação e o conhecimento têm um valor ex-
clusivamente econômico. A segunda, postula o desenvolvimento humano
e socialmente sustentável, a educação é fundamental nas dimensões soci-
oeconômicas e culturais. Para Guadilla, a sociedade desenvolvida é aquela
em que os cidadãos superam a pobreza, não só material, mas intelectual,
humana e ética.
Daí decorre seu argumento de que nessas instituições de educação su-
perior, torna-se fundamental que o “capital cultural” (da C&T) não seja apro-
veitado somente em função do capital econômico. Para que tal objetivo seja
alcançado é preciso conciliar: inovação com pertinência social; tradição com
mudança; abertura para o mundo com identidade própria e a revalorização
da subjetividade social e a dinâmica qualitativa da vida social.
Guadilla conclui seu texto afirmando que as instituições de educação su-
perior no que denominou de “sociedade do conhecimento’’ devem “conceber o
conhecimento como uma das mais importantes fontes democráticas do poder’’ e
nunca como excludente. Reverter a distância na distribuição do conhecimento
entre os países e os grupos sociais é hoje um dos desafios fundamentais.
7
Este é um dos como fundamentais para a universidade do futuro!
O segundo especialista é o decano dos sociólogos latino-americanos
Don Pablo Gonzáles Casanova que, durante muitos anos, dirigiu na Univer-
sidade Autônoma do México (UNAM) o Centro Interdisciplinar de Humani-
dades e Ciências, após ter sido seu Reitor. Diante da mais longa greve da
história da UNAM, ele escreveu um livro que nos traz algumas reflexões
importantes para o nosso tema.
8
7
Idem. pp. 96-108.
8
La universidad necesaria para el siglo XXI, México, Ediciones Era, 2001.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
189
Casanova começa fazendo, paradoxalmente, a crítica da “nova’’ uni-
versidade que não será construída no futuro, mas que já se instalou em mui-
tos países: “A nova universidade não é um projeto, mas uma realidade’’ que
se manifesta por meio de três mudanças principais: a primeira, relacionada
com a revolução técnico-científica que se iniciou em meados do século XX
e se consolidou nos anos 1980; a segunda, resultante da crise da social-de-
mocracia, do nacionalismo revolucionário e do comunismo; e a última, asso-
ciada ao auge e crise do neoliberalismo e a recuperação do capitalismo sem
freio. Neste sentido, a nova universidade emergiu com novas formas de en-
sino e métodos de organização; com novos tipos de docência, investigação e
difusão, funcionais à ordem existente.
Neste marco amplo de transformações, o conceito de “capitalismo aca-
dêmico’’ traduz, em grande medida, as mudanças da “nova’’ universidade
em quatro paises: Austrália, Canadá, Estados Unidos e Inglaterra. Este é
definido como os “esforços institucionais e dos docentes para obter fundos
externos na forma do mercado ou como parte do mercado”.
9
O sociólogo mexicano, após analisar novas formas de educação superi-
or (provedores privados ou públicos, universidades privadas com fim lucra-
tivo, as universidades corporativas e a universidade virtual (web-university),
define qual a universidade necessária que precisamos construir que supere “a
nova’’ universidade e combine “educação democrática com rigor cientifico’’.
Em termos mais explícitos: “um projeto democrático, participativo e repre-
sentativo de caráter plural no religioso, no político, no ideológico; e inclusi-
vo nas raças, sexos e gostos’’
10
. E conclui lançando o seguinte desafio: ‘‘o
futuro não está predeterminado nem para o bem nem para o mal e nos en-
contramos nas vésperas de uma bifurcação em que a saída dependerá, em
grande medida, do que façamos e em que preparamos nossos estudantes
para construir um mundo no qual a sociedade civil controle os mercados e
aos Estados em favor do ser humano.
11
Concluo minha reflexão numa conjuntura em que se espera que o novo
governo seja capaz de fazer uma transformação profunda na educação em
9
CASANOVA. Pablo González – op. cit., p. 101, O livro citado de SLAUGHTER, Sheila y LESLIE,
Larry, L – Academic Capitalism – Baltimore, The John Hopkins, 1999. Em termos mais amplos,
capitalismo acadêmico seria: “o conjunto de atividades que tendem à capitalização sobre a base da
pesquisa universitária ou do conhecimento que se realizam na busca de soluções de problemas
públicos e comerciais”, Ibid, p. 209 y 217.
10
Idem. P. 132
11
Idem. P. 133
190
todos os níveis e, especialmente, resgatar a dívida da Nova República com a
educação superior. Que seja uma reforma que fuja dos mitos produzidos
pelas agências internacionais e enfrente a realidade dos desafios postos à
universidade brasileira aqui e agora. Não podemos nos iludir com a retórica
dominante nos relatórios produzidos por experts sensíveis às estratégias das
agências financiadoras e aos interesses da conjuntura internacional. Nem
legitimação dos mitos do novo milênio, nem pragmatismo realista sem pers-
pectiva de futuro, mas compromisso com um projeto de Nação. Esta é, sem
dúvida, uma ‘’microutopia’’, como diria Boaventura dos Santos, mas “sem
ela a universidade não terá futuro”.
12
12
Boaventura dos Santos – Pela mão de Alice: o social e o politico na pos-modernidade, Porto,
Biblioteca das Ciências do Homem, Edições Afrontamento, 1994, p. 200.
191
A CONTRIBUIÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR
A DISTÂNCIA À REFORMA DA UNIVERSIDADE
João Carlos Teatini de Souza Clímaco
(*)
Carmen Moreira de Castro Neves
(**)
Por que reformar a Universidade?
Há três grandes motivos que justificam mudanças na educação supe-
rior no Brasil. O primeiro refere-se a democratizar o acesso, o segundo, a
contextualizar os processos de ensino e aprendizagem e o terceiro, a con-
tribuir para a solução dos problemas sociais e para o desenvolvimento sus-
tentável do País.
Nos limites deste espaço, a Secretaria de Educação a Distância do
Ministério da Educação – SEED, procurará mostrar como a educação a
distância é uma estratégia político-educacional capaz de responder com
qualidade aos três motivos enunciados, que se colocam como reais desafi-
os para o Poder Público, para a comunidade educacional e para a socieda-
de em geral.
Ao defender essa estratégia como necessária ao processo de refor-
ma da Universidade brasileira, a SEED não propõe a transição de um
modelo de educação presencial para educação a distância e sim sua con-
vivência com ambas as formas alimentando-se e enriquecendo-se mutu-
amente para contribuir para a expansão, eqüidade e qualidade da educa-
ção superior no país.
Na seqüência, alinham-se algumas considerações aos três desafios iden-
tificados.
(*) Ph.D. pela Polytchenic of Central London, Professor da Universidade de Brasília e Secretário de
Educação a Distância do Ministério da Educação.
(**) Mestre em Educação pela Universidade de Brasília, Especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental e Diretora do Departamento de Política de Educação a Distância/SEED/MEC.
192
A. Democratizar o acesso à educação superior
A democratização do acesso implica a ampliação massiva de vagas nas
instituições públicas, para responder à demanda crescente por educação superi-
or. As ações afirmativas de inclusão dos negros e das populações indígenas de-
vem, necessariamente, ser parte importante desse processo de democratização.
Dados do Censo da Educação Superior, realizado pelo Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais – INEP, em 2002, mostram que, nos últi-
mos cinco anos, o número de cursos de graduação presenciais no Brasil cresceu
107%. A expansão ocorreu, principalmente, na rede privada, que passou de 3.980
para 9.147 cursos. Em 1998, a rede privada representava 78% do total de insti-
tuições; em 2002, totalizava 88% e detinha 70% das matrículas. Paradoxalmen-
te, houve uma diminuição na relação candidato/vaga nos processos seletivos
das instituições privadas: há cinco anos, havia 2,2 inscritos por vaga e agora o
índice é de 1,6. Já na rede pública, em 1998, cada vaga era disputada por 7,7
candidatos; em 2002, a relação chegou a 9,4 inscritos por vaga.
A preferência pela rede pública deve-se não apenas a seu já avaliado
padrão de qualidade, mas representa o fato de que, com a perda do poder
aquisitivo dos salários, a sociedade aumenta a pressão por mais vagas nos
estabelecimentos públicos ou por maiores investimentos no FIES, um Fun-
do de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior, destinado a estu-
dantes regularmente matriculados em cursos superiores não gratuitos, avali-
ados positivamente pelo Poder Público.
Apesar do crescimento contabilizado pelo Censo, a percentagem da
população brasileira no ensino superior é de apenas 1,9% (3,4 milhões: Cen-
so da Educação Superior – 2002), um dos mais baixos índices da América
Latina e extremamente desfavorável, se comparado, por exemplo, aos 39%
da Argentina e 62% do Canadá.
No vestibular de 2002, segundo dados do INEP, para um total de
4.984.409 candidatos inscritos, foram oferecidas 1.773.087 vagas (295.354
nas instituições públicas – 19% – e 1.477.733 nas privadas). Portanto, ape-
nas 35% dos jovens que buscam o ensino superior podem ser atendidos pelo
sistema de ensino superior no país.
O cenário da demanda por ensino superior ganha complexidade maior
com outros três importantes fatores: (1) o crescimento do número de jovens
que concluem o ensino fundamental e médio
1
; (2) a necessidade de docentes
1
Dados do Censo de 2002 indicam 35.150.362 matrículas no ensino fundamental e 8.710.584 no médio.
193
formados em nível superior para atender à escola básica; e (3) a pressão do
setor produtivo por formação e especialização continuada dos profissionais,
face aos avanços tecnológicos.
Em relação ao segundo fator, destaque-se que os dados levantados pelo
INEP, no Censo do Professor de 2002, mostram que, na rede pública brasi-
leira, entre as 809.125 funções docentes atuando de 1ª a 4ª séries e as 800.753
em exercício de 5ª a 8ª séries do ensino fundamental, 73,6% e 31,7%, res-
pectivamente, não têm formação superior – licenciatura; no ensino médio,
21% dos 468.310 que exercem funções docentes ainda não têm a formação
mínima exigida pela legislação. Tais índices indicam que 52,7% dos profes-
sores da rede de educação básica não têm a formação mínima legal. Na edu-
cação básica, nas áreas específicas de Matemática, Física, Química e Biolo-
gia, a carência permanente de professores torna a situação calamitosa, com
estimativa de déficit de 250.000 docentes.
É imperioso reconhecer que a universidade pública brasileira, nos limi-
tes impostos pela educação presencial, mesmo se houvesse aumento subs-
tancial de recursos, no curto e médio prazos, não teria condições de aumen-
tar as vagas de forma maciça, nem de formar professores na quantidade e
qualidade desejadas.
Em um país de dimensões continentais, com uma gigantesca popula-
ção demandante de formação inicial e continuada, a educação a distância
surge como um caminho de qualidade viável e, mais que isso, necessário.
A pedra no meio do caminho
No Brasil, há um grande número de pessoas que julga a educação a
distância um ensino de segunda categoria. Por quê?
Em primeiro lugar, por desconhecimento, gerando preconceito contra a
modalidade ou por uma visão elitista da educação, que não entende a neces-
sidade de oportunidade para todos. As primeiras experiências de EAD no
país foram voltadas para populações excluídas, como a alfabetização de adul-
tos por meio do rádio, promovida pelo MEB – Movimento de Educação de
Base (fim dos anos 50 a 1964), o projeto Minerva (1970), transmitido pela
rádio MEC, com apoio de materiais impressos, ou o projeto SACI – Sistema
Avançado de Comunicações Interdisciplinares (1967-1974), destinado a alu-
nos das três primeiras séries do ensino fundamental e a treinamento de pro-
fessores. Estão em funcionamento o Instituto Monitor (desde 1939) e o Ins-
tituto Universal Brasileiro (1941), oferecendo cursos supletivos para jovens
194
e adultos e cursos técnicos que preparam para o trabalho milhões de pessoas
que não podem freqüentar uma escola convencional. Mesmo a Fundação
Roberto Marinho, com o Telecurso do 2º Grau e o Supletivo do 1º Grau
(televisão e material impresso adquirido em bancas de jornal), e bem-sucedi-
da experiência de preparar milhares de alunos para os exames supletivos não
logrou mudar as representações sociais dos brasileiros a respeito da EAD.
Há também o medo de que a educação a distância possa ameaçar o
ofício de professor. Esse receio, infundado, provém de experiências como as
do Sistema de Televisão Educativa do Maranhão (desde 1969) e do Ceará
(1974), que, para suprir a carência de professores habilitados em nível supe-
rior, implantaram telessalas com monitores para atender a alunos de 5ª a 8ª
séries. No entanto, a teleducação, se conduzida adequadamente, pode trazer
bons resultados e exige número apreciável de professores – tutores, como de
resto, qualquer processo de EAD bem planejado.
Outros aspectos a serem ressaltados na história da EAD, no Brasil,
foram o desinteresse político, os investimentos espasmódicos do Poder Pú-
blico, a descontinuidade de projetos bem-sucedidos e a falta de avaliação
que permitiria corrigir percursos e aperfeiçoar projetos.
Finalmente, contribui para uma visão desconfiada a respeito da EAD a
ausência de ética de pessoas preocupadas meramente com lucro, que, usan-
do indevidamente os nomes da educação a distância e da educação de jo-
vens e adultos, comercializam diplomas, em cursinhos de pouca qualidade e
avaliação duvidosa.
É importante registrar que houve muitas tentativas de criação de uma
Universidade Aberta no Brasil. Diversos projetos de lei foram apresenta-
dos
2
: PL nº 962-A, apresentado pelo deputado Alfeu Gasparini, em 5 de
outubro de 1972; PL nº 1.878, do deputado Pedro Faria, em 18 de abril de
1974, reapresentado em 18 de maio de 1977 com o nº 3.700; PL nº 4.576-A,
do deputado Carlos Santos, em 14 de maio de 1981; PL nº 1.751, do deputa-
do Clarck Planton, em 14 de junho de 1983; PL nº 8.571, do deputado Paulo
Lustosa, em 16 de dezembro de 1986; PL nº 203, do deputado Lúcio
Alcântara, que propunha a criação da Universidade Nacional de Ensino a
Distância, em 13 de agosto de 1987; PL nº 4.592, do deputado Carlos
Sant’Anna, em 12 de março de 1990; PL nº 62, um substitutivo ao anterior,
apresentado pelo deputado Jorge Hage, em 25 de junho de 1991. Vale desta-
2
Ver Alves, João Roberto Moreira, “A Educação a Distância no Brasil: síntese histórica e perspectivas”.
Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisas Avançadas em Educação, 1994.
195
car que esse último substitutivo chegou a ser aprovado na Câmara dos De-
putados e foi o primeiro a ser remetido pelo Poder Executivo Federal; poste-
riormente, foi retirado pelo próprio Governo Federal, em 1993, sem ter sido
convenientemente apreciado pelo Senado Federal.
Apesar de todas as iniciativas, a Universidade Aberta, que poderia ter
impulsionado a EAD no Brasil, não saiu do papel.
No resto do mundo, há uma visão negativa da EAD?
Nos países desenvolvidos não aconteceu o mesmo. Há décadas, a edu-
cação a distância floresce, patrocinada pelo poder público, aumentando o
acesso ao ensino superior e provocando uma interessante simbiose entre
políticas governamentais e políticas educacionais, que garantem à maioria
dessas megauniversidades (assim chamadas por atenderem a mais de 100.000
alunos) um tratamento privilegiado que facilita o uso das redes de comuni-
cação em seus países, desde o uso de serviços postais, até canais exclusivos
de satélites e tarifas especiais de Internet.
Entre as megauniversidades, destacam-se:
Centre Nationale d’Enseignement a Distance, França, criado em 1939;
The Open University, Grã-Bretanha, criada em 1969;
Universidad National de Educación a Distancia, Espanha, criada em
1972;
• Sukhothai Thamnathirat Open University, Tailândia, criada em 1972;
• University of South África, África do Sul, criada em 1973;
• China TV University System, China, criada em 1979;
• Korea National Open University, Coréia do Sul, criada em 1982;
• Anadolu University, Turquia, criada em 1982.
• Universitas Terbuka, Indonésia, criada em 1984;
• Indira Ghandi National Open University, Índia, criada em 1985.
Há outros modelos, além das megauniversidades. No Canadá, Estados
Unidos e Austrália, instituições individuais, geralmente universidades ou
institutos, como o Instituto de Tecnologia de Monterrey, no México, tomam
a iniciativa de organizar programas próprios de EAD e atendem a grandes
contingentes de estudantes.
Na década de 90, observou-se o crescimento das parcerias e dos con-
sórcios, em modelos que visam a racionalizar custos, otimizar talentos, mul-
tiplicar espaços, expandir qualidade, evitando-se a aplicação de recursos em
196
grandes estruturas. Assim, mesmo em países com megauniversidades, sur-
gem outras instituições exclusivas para educação superior a distância, como
a Universitat Oberta de Catalunya – UOC, na Espanha, e o consórcio UK e-
Universities, na Inglaterra.
A década de 90 e a educação superior a distância no Brasil
Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394
determinou, no artigo 80, que o Poder Público incentive programas a distân-
cia e de educação continuada. A Lei n° 10.172/2001, que institui o Plano
Nacional de Educação, enfatiza que a LDB introduziu uma abertura de grande
alcance para a política educacional ao valorizar a educação a distância. En-
tre as metas estabelecidas pelo PNE, destacam-se:
• Iniciar, logo após a aprovação do Plano, a oferta de cursos a distância,
em nível superior, especialmente na área de formação de professores
para a educação básica.
Ampliar, gradualmente, a oferta de formação a distância em nível su-
perior para todas as áreas, incentivando a participação das universi-
dades e das demais instituições de educação superior credenciadas.
Incentivar, especialmente nas universidades, a formação de recursos
humanos para educação a distância.
O Brasil dispõe, portanto, de uma base legal para incentivar e expandir
significativamente a educação a distância.
Antes mesmo da LDB, em 1995, a Universidade Federal de Mato Gros-
so lançava o primeiro curso de graduação a distância do Brasil: Licenciatura
para os anos iniciais do Ensino Fundamental no marco de uma política do
governo do Estado de valorização do professor da rede pública.
Em 2000, 74 instituições públicas de ensino superior (IPES) formaram
o consórcio UniRede – Universidade Virtual Pública do Brasil
3
, com o pro-
pósito de democratizar o acesso ao ensino superior por meio da educação a
distância.
Outras iniciativas floresceram, em parcerias de IPES com o Poder Pú-
blico, nos âmbitos estadual e municipal. Pela amplitude e arrojo, vale citar o
CEDERJ
4
– Centro de Educação Superior a Distância do Estado do Rio de
3
www.unirede.br
4
www.cederj.rj.gov.br
197
Janeiro, que congrega seis universidades públicas do estado, e o Projeto Ve-
redas
5
, da Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais, com 14 insti-
tuições públicas e quatro privadas, coligadas para oferta de graduação em
Pedagogia, para formação em serviço de professores da rede pública.
Até o presente mês de outubro, o Conselho Nacional de Educação –
CNE, em processos articulados com a Secretaria de Ensino Superior –
SESU/MEC, autorizou 20 cursos de graduação a distância – na maioria
licenciaturas
6
.
No âmbito da iniciativa privada, destacam-se os consórcios Instituto
Universidade Virtual do Brasil
7
e o Consórcio Virtual de Aprendizagem –
Rede de Instituições Católicas de Ensino Superior – CVA-RICESU
8
.
Diversos investimentos vêm sendo feitos pelas instituições superiores
em cursos de pós-graduação lato-sensu a distância
9
.
É importante destacar uma experiência anterior implementada pela
CAPES/MEC, no período de 1979 a 1983: o Projeto de Pós-Graduação
Tutorial a Distância – POSGRAD, que envolveu três dezenas de docentes-
pesquisadores dos melhores centros acadêmicos do país, num esforço que
teve como público-alvo os professores de instituições isoladas de ensino
superior. Segundo o relatório de avaliação CAPES-POSGRAD/1984, “os
resultados foram considerados plenamente satisfatórios e os cursos competitivos com qual-
quer opção convencional”. Conforme João Batista A. Oliveira (1985 – Universi-
dade Aberta – uma alternativa de ensino superior), o POSGRAD “resultou na mais
bem-sucedida experiência brasileira no ensino de pós-graduação lato sensu através do
ensino tutorial a distância”, tendo o Conselho Federal de Educação aprovado,
por unanimidade, parecer favorável à concessão de autorização específica
da CAPES para desenvolvimento desse projeto-piloto, no nível 4º grau, Pós-
Graduação lato sensu (especialização e aperfeiçoamento). Ainda segundo
Oliveira, “o Conselho soube, desde logo, compreender o alcance potencial da iniciativa
e, sem dificuldades, apostou na competência e nos critérios de qualidade da CAPES
para aprovar o desenvolvimento de uma etapa experimental para o POSGRAD”. O
sucesso dessa experiência e a avaliação cuidadosa de seus resultados são
fortes indicadores de sua eficácia, entendida como a capacidade de se atingir
5
www.veredas.mg.gov.br
6
www.mec.gov.br/sesu/instit.shtm
7
www.iuvb.edu.br
8
www.ricesu.com.br
9
www.mec.gov.br/sesu/instit.shtm
198
o maior número de beneficiários, sem retirar os professores de suas ativida-
des e sem prejuízo de qualidade.
Outra iniciativa relevante foi a realização, pela Universidade Aberta de
Brasília – UNAB, de cursos de pós-graduação lato-sensu, em convênio da
CAPES/MEC com a Fundação de Aperfeiçoamento de Professores – FAP/
DF, dentro do Programa de Apoio ao Aperfeiçoamento de Professores de 2º
Grau de Matemática e Ciências – PRO-CIÊNCIAS, para treinamento de
professores das redes pública e privada do DF, de mar./1997 a dez./1998.
Esse programa foi avaliado pela CAPES ao final de seu primeiro ano de
funcionamento, recebendo indicação e recursos para ser continuado
A Secretaria de Educação a Distância – SEED, do MEC, pode
exemplificar a capacidade de alcance dessa modalidade com o programa
Proformação, um curso de nível médio a distância, destinado a professores
que não possuem a habilitação em Magistério e atuam nas quatro séries ini-
ciais do ensino fundamental e classes de alfabetização das redes públicas
estaduais e municipais das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Embora não sendo de nível superior, o curso tem 3.200 horas de for-
mação e credencia-se como uma proposta de elevada qualidade pelos se-
guintes indicadores: apenas 11% de evasão; 85,6% de aprovação; 97,6%
dos cursistas concordam que sua prática em sala de aula melhorou; e 98%
afirmam que se sentem mais valorizados na profissão (dados de pesquisa
externa encomendada pela SEED).
O Programa foi lançado, em 1999, como piloto, nos estados do Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul, e consolidou-se no ano 2000, com a expansão
para outros 13 estados da Federação: em janeiro, iniciaram Acre, Ceará, Goiás,
Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rondônia e Sergipe; em julho, entraram os esta-
dos de Alagoas, Amazonas, Bahia, Maranhão e Tocantins.
Nesse período, o Proformação diplomou 23.419 professores-cursistas,
distribuídos em 1.107 municípios, beneficiando cerca de 20.000 escolas e
300.000
alunos. Entre os professores-cursistas matriculados, 80% eram de
zona rural e só puderam participar por ser um curso a distância.
Atualmente, o Proformação
10
tem mais de 8.000 matriculados e, dados
os resultados alcançados e a qualidade do projeto pedagógico, há uma gran-
de demanda por estender sua proposta curricular para os docentes não titu-
lados que atuam na educação infantil.
10
www.mec.gov.br/seed/proform/default.shtm
199
Essas e outras experiências em andamento ainda são tímidas ante a
demanda e o potencial de nossas instituições, em especial das universidades
públicas. Pode-se considerar que o cenário é favorável ao crescimento da
educação a distância, ampliando significativamente o acesso à educação ini-
cial e continuada no Brasil.
Para a SEED, todavia, a quantidade deve vir acompanhada de qualida-
de, o que representa o segundo grande desafio para a reforma da Universida-
de brasileira e a segunda contribuição da EAD a esse movimento.
B. Contextualizar os processos de ensino e de aprendizagem
Para Paulo Freire, uma educação que não instrumentalize o homem
para ser sujeito ativo da própria história não é uma educação emancipadora.
A reflexão mais elementar que, como educadores, temos de fazer é: o
que é uma educação emancipadora no século em que estamos?
Vivemos em uma sociedade marcada pelo dinamismo do conhecimen-
to e da tecnologia. Nesse contexto, a universidade é uma das principais
instituições, por ser capaz de movimentar dialeticamente o conhecimento
que gera novas tecnologias, que impulsionam novos conhecimentos, que
aperfeiçoam as tecnologias e assim contínua e progressivamente. Dessa
maneira, precisamos todos – docentes, alunos e gestores – aprender a apren-
der. Para Alvin Toffler, aprender também a desaprender aquilo que, embo-
ra sedimentado em nosso fazer, não mais atende ao aqui-agora e, muito
menos, ao futuro.
Ante essa dinâmica, cabem várias reflexões. Estão as universidades
vivenciando o processo de ensino e aprendizagem da mesma forma como
faziam nas décadas de 70 e 80? Que tecnologias fazem parte do cotidiano
das salas de aula? Quantos professores dominam as linguagens e estruturas
próprias das diferentes tecnologias da informação e da comunicação? Ainda
se vive a fase do arremedo, do uso de ultrapassadas práticas presenciais,
erroneamente rotuladas de videoconferência ou de páginas impressas postas
na Web, sem hiperlinks e nenhuma interatividade? As tecnologias são instru-
mentos de massificação ou a possibilidade de seu uso crítico e criativo está
incorporada no fazer pedagógico? Estão os docentes preparados para orga-
nizar, estimular e orientar uma comunidade de aprendizagem que extrapola
as paredes do departamento e as fronteiras do estado e até mesmo do país?
Já é possível superar a preocupação com a tecnologia, centrando-se o eixo
do trabalho na (re)descoberta da educação como um projeto humanizador?
200
Estamos, afinal, falando de educação presencial ou a distância? De
ambas. E essa é uma grande contribuição da EAD: mesmo nas universida-
des que optem por ter a presença como requisito obrigatório, educar com as
tecnologias é um imperativo ético: afinal, o mundo em que vivemos e traba-
lhamos é um mundo tecnologicamente desenvolvido e em desenvolvimento.
Tanto do ponto de vista humano como profissional, somos desafiados pelas
tecnologias. O domínio dos equipamentos, das linguagens e das didáticas
que as interações síncronas e assíncronas permitem assim como seu uso crí-
tico são pré-requisitos para o profissional da universidade do século XXI.
Estamos diante de uma nova pedagogia. Uma pedagogia que põe o
foco na aprendizagem do aluno e transforma aulas sempre expositivas em
espaços de construção e criação interdisciplinar e multicultural. Essa peda-
gogia nova, ao contrário do que muitos pensavam, valoriza a criatividade e a
competência do docente, incentivando-o a buscar o equilíbrio entre o novo
e o permanente em educação e a viver toda a complexidade e totalidade do
ato educativo, com recursos cada vez mais eficientes e eficazes.
Neste século, com tecnologias que permitem interatividade a distância,
em tempo real, entre professor/aluno, dos alunos entre si e do professor com
seus pares, a EAD é, na verdade, uma educação sem distância. Como conse-
qüência disso, optar pela presença ou distância – virtual ou real – será uma
decisão do professor, em função da natureza do curso, da disponibilidade
tecnológica dos alunos e da instituição e, principalmente, da qualidade do
resultado da aprendizagem.
Como dar esse salto? No âmbito das universidades, é preciso decisão
dos gestores de investir em EAD: (1) investir na capacitação do pessoal
docente e de equipes multimídias; (2) na aquisição de diferentes tecnologias
que, integradas, permitam a construção de uma rede com alto grau de comu-
nicação e de interatividade; (3) no desenho e produção de materiais educaci-
onais que garantam larga utilização, mas sem massificação dos sujeitos e
homogeneização das culturas; (4) no apoio logístico a alunos e docentes,
tanto na sede quanto em pólos descentralizados; (5) no desenvolvimento e
implantação de sistemas adequados de gestão, operacionalização,
monitoramento e avaliação.
Do ponto de vista dos sistemas, é preciso: (1) definir linhas de apoio
que assegurem recursos financeiros necessários aos investimentos em EAD;
(2) reconhecer, nos sistemas de carreira e de promoção, o mérito acadêmico
dos professores que participam da produção, desenvolvimento e implemen-
tação de projetos a distância; (3) buscar a parceria de setores afins, tais como
201
Ciência e Tecnologia, Comunicações, Cultura, Fazenda, Indústria e Comér-
cio, iniciativa privada e outros que possam trazer aportes à expansão da edu-
cação superior a distância; (4) avaliar os cursos e programas a distância se-
gundo parâmetros de qualidade previamente definidos, de modo a orientar
os projetos desde seu planejamento.
Com base nesse referencial, a Secretaria de Educação a Distância
11
,
do MEC, pretende, no período 2003-2006, dar continuidade a todos os
programas bem-sucedidos, expandindo-os, no sentido de seu aprimoramento
e universalização. Assim, a TV Escola inicia sua caminhada rumo à era da
TV digital interativa; o Programa Nacional de Informática na Educação –
PROINFO, que já instalou 305 Núcleos de Tecnologia Educacional –
NTEs, e 4.628 laboratórios em escolas públicas, alcançará outras institui-
ções; o Proformação abrirá novas turmas, diplomando professores em exer-
cício ainda não titulados; a Rádio Escola redefine-se como um projeto-pilo-
to que leva linguagem e tecnologia de rádio às escolas; e o Programa de
Apoio à Pesquisa em Educação a Distância – PAPED, em parceria com a CA-
PES, mantém suas linhas de pesquisa, incentivando a produção de conhe-
cimento em EAD e uso de TICs na educação.
Paralelamente, toda a programação da SEED dedicada à formação de
profissionais para o uso pedagógico da informática, da TV e do vídeo (curso
TV na Escola e os Desafios de Hoje e diversos cursos do Proinfo) também será
mantida e aprimorada em função dos constantes avanços do conhecimento.
A disseminação de referenciais de qualidade que orientem o planeja-
mento e a avaliação de cursos a distância assim como a revisão da legislação
da EAD são, também, objetos do trabalho da SEED.
O destaque inovador da SEED neste período será o incentivo à EAD
no ensino superior. Nas palavras do Ministro da Educação, com a EAD “po-
deremos romper as limitações derivadas da rede física e expandir, com rapidez e quali-
dade, a oferta de cursos em diversos níveis, da Educação Profissional à Educação Supe-
rior. (...) Poderemos formar e requalificar, na perspectiva da formação continuada, os
professores das cerca de 200 mil escolas públicas espalhadas por este imenso território
que é nosso país
12
”.
Em harmonia com as diretrizes e outras instâncias do MEC, a SEED
pretende apoiar as oportunidades de acesso à educação superior, por meio
11
http://www.mec.gov.br/nivemod/educdist.shtm
12
Alinhamento Estratégico – MEC 2003, MEC/Brasil.
202
de sistemático fomento a programas de educação a distância, desenvolvidos
em articulação com as instituições públicas de ensino superior (IPES) do
país e em sintonia com políticas públicas da União, estados e municípios.
A SEED assume esse compromisso certa de que métodos, técnicas e
tecnologias de educação a distância são hoje uma necessidade em toda uni-
versidade que deseje democratizar o acesso e oferecer uma educação
contextualizada, comprometida com o desafio de construir as bases para um
Brasil socialmente mais justo e economicamente desenvolvido.
C. Contribuir para o desenvolvimento sustentável do País
A correlação entre educação e desenvolvimento é inquestionável. Não
há no mundo país desenvolvido que não tenha investido significativamente
na universalização da educação básica, na expansão da superior e na quali-
dade dos processos de ensino e de aprendizagem.
No Brasil, 97% das crianças entre 7 e 14 anos estão matriculadas na educa-
ção fundamental. Há definição do Ministério da Educação de estender a obriga-
toriedade da educação ao ensino médio e às crianças de 6 anos, da pré-escola. A
esse quadro juntam-se as políticas de valorização do magistério – aí incluídas a
formação inicial e continuada dos profissionais da educação –, de democratiza-
ção dos bens educacionais e de elevação do padrão de qualidade da escola.
Tais políticas devem ser acompanhadas de transformação do modelo
educacional superior. O conjunto da rede pública brasileira de ensino supe-
rior ofereceu, em 2002, 295.354 vagas. Abrindo-se à educação a distância,
esse número pode crescer significativamente nos próximos anos, com possi-
bilidade de dobrar até 2006.
Além da democratização do acesso, a expansão das ações da Universi-
dade por meio da educação a distância traz consigo outras vantagens: conso-
lida as estratégias de universalização da educação básica e de valorização
dos docentes que atuam nesse nível; promove a inclusão digital dos estudan-
tes envolvidos nos cursos e programas mediados por novas tecnologias; fa-
vorece a adoção de atitudes que garantem autonomia para aprender sempre;
abre novos campos para a pesquisa e a extensão; traduz o amadurecimento
das instituições superiores na oferta de uma pedagogia apropriada aos desa-
fios humanos e profissionais do século XXI.
Resumidamente, a contribuição que a educação superior a distância poderá
dar ao projeto de desenvolvimento humano, social e econômico do país é permitir
à universidade não ter fronteiras, ser uma universidade do tamanho do Brasil.
203
A UNIVERSIDADE QUE O NOVO BRASIL PRECISA
Houve um grande crescimento de vagas no ensino superior nos últimos
anos. Nos cursos de graduação presencial, temos 3.482.069 alunos. Nos úl-
timos cinco anos, o crescimento das matrículas foi de 64%, uma média anual
de aproximadamente 13%. A manter-se a atual tendência, teremos, em 2008,
uma população universitária de cerca de 8,3 milhões de alunos. Contudo,
dois componentes deste crescimento precisam ser observados. O primeiro é
que foi um crescimento desordenado e desvinculado de qualquer proposta
de desenvolvimento nacional ou de maior eqüidade regional. Em segundo
lugar, foi um crescimento privado, de pequenas instituições, muitas
dissociadas do compromisso com a pesquisa e extensão e voltadas para uma
demanda reprimida em determinados segmentos sociais e regionais.
As implicações deste modelo de crescimento ainda precisam ser estu-
dadas e exploradas por todos os setores envolvidos. Sem esses estudos, será
impossível avaliar as necessidades de infra-estrutura, de bibliotecas, de do-
centes e técnicos, o papel da educação superior pública e os investimentos
necessários ao aproveitamento dos novos talentos para o avanço das ciênci-
as, das artes, das tecnologias e, em especial, este estudo é necessário para
estabelecer os parâmetros a serem seguidos para que a universidade esteja
antenada aos desafios de um novo modelo de desenvolvimento nacional.
Dados da PNAD/IBGE e do Inep revelam que temos hoje 9% da
população na faixa etária de 18 a 24 anos na educação superior (40% dos
estudantes universitários brasileiros têm mais de 24 anos, em função da crô-
nica distorção série/idade), faixa normalmente utilizada nas comparações
Dilvo Ristoff
(*)
Luiz Araújo
(**)
(*) Dilvo Ristoff, 53, professor de literatura na Universidade Federal de Santa Catarina, é diretor de
Estatísticas e Avaliação da Educação Superior do INEP/MEC
(**) Luiz Araújo, 40, professor de história na Universidade Estadual do Pará, é presidente do Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP/MEC).
204
internacionais. Isso significa que, não obstante a expansão ocorrida nos últi-
mos anos, continuamos diante de grandes desafios. Por um lado, precisamos
expandir o acesso, pois caso seja triplicado o número de universitários brasi-
leiros, teríamos, ainda assim, índices menores do que os dos nossos vizinhos
latino-americanos, Argentina e Chile. Por outro lado, precisamos enfrentar o
debate sobre o perfil do ensino médio que queremos, combatendo a cruel
distorção idade-série existente e tornando o acesso e permanência neste ní-
vel de ensino mais eqüitativo social e regionalmente.
Afirmamos que o modelo de crescimento ancorado no empreendimen-
to privado tem curto fôlego. À medida que a relação candidato/vaga nas
instituições privadas atinge a média de 1,6 (nas públicas essa relação aumen-
ta ano a ano, chegando hoje a 10,8 candidatos/vaga), cresce a sua
inadimplência; ao mesmo tempo, constata-se que a renda familiar dos alunos
que hoje freqüentam o ensino médio é mais de duas vezes menor que a dos
atuais universitários, tornando-se mais e mais evidente que a expansão pelo
setor privado chega próximo ao esgotamento, e que a esperança de inclusão
dos enormes contingentes que buscam a educação superior nos próximos
anos passará pelas políticas de fortalecimento do setor público. Estudo re-
cente do Observatório Universitário da Universidade Cândido Mendes re-
vela que cerca de 25% dos potenciais alunos universitários “não têm condi-
ções de entrar no ensino superior, mesmo se ele for gratuito”. O que torna
esse quadro ainda mais dramático é atentarmos para o que mostra o Censo
da Educação Superior de 2002: 88,1% das instituições pertencem ao setor
privado, que abriga seis das dez maiores universidades brasileiras.
Para consolidar um sistema de acesso de massas, a exemplo do que
vem ocorrendo em todo o mundo desenvolvido, teríamos de quadruplicar
ou mesmo quintuplicar a nossa população universitária na faixa etária aci-
ma apontada. Ora, isso só é possível com uma mudança de modelo, de seu
perfil de crescimento, ganhando maior relevo o público diante do privado,
mas também articulando um debate sobre o modelo de crescimento da
rede pública.
Não podemos mais, portanto, depender exclusivamente da força inercial
instalada, movida pelas demandas imediatas do mercado. Para que o Brasil
possa conquistar posição de destaque entre as nações e afirmar efetivamen-
te a sua soberania, precisamos de ações concretas que protejam o interesse
do Estado na educação superior, reafirmando a noção de que a educação é
antes de tudo um bem público e não uma mercadoria, e que permitam ex-
pandir agressivamente a oferta de vagas nas instituições federais e estaduais.
205
Isto vai exigir um esforço hercúleo do governo, da academia e da soci-
edade: do governo, porque este precisará colocar o dinheiro ao lado do dis-
curso, pois há sabidamente uma correlação real e direta entre o nível de
recursos, a quantidade de vagas e a qualidade da educação. Ninguém em sã
consciência acredita que uma expansão massiva da educação superior públi-
ca seja possível sem um aumento substancial de recursos; da academia, por-
que esta precisará repensar as suas atitudes, muitas vezes elitistas e
excludentes; e da sociedade, porque precisamos tornar cultural a idéia de
que desperdiçar cérebros é eticamente condenável e socialmente inaceitável
para uma nação que se queira soberana. Aceitar isso, por alguma razão mis-
teriosa, é mais difícil do que parece. No entanto, poucos contestariam a idéia
de que ampliar a inclusão com qualidade equivale a liberar as energias criati-
vas da nação, a despertar talentos para a solução de nossos problemas e a
melhorar as chances de promover o desenvolvimento com justiça social. Por
isso mesmo, desenvolver uma educação superior que seja, como quer o mi-
nistro Cristovam Buarque, “elitista na qualidade, mas democrática na quan-
tidade”, é uma missão urgente e inadiável, como precondição para termos a
universidade que o novo Brasil anseia e necessita para servir de suporte para
um novo modelo de desenvolvimento, que nos conduza à independência
econômica e à maior igualdade social.
207
PROPOSTA DE EXPANSÃO E MODERNIZAÇÃO DO SISTEMA
PÚBLICO FEDERAL DE ENSINO SUPERIOR
ANDIFES – Associação Nacional dos Dirigentes
das Instituições Federais de Ensino Superior
Pronunciamento da reitora Wrana Maria Panizzi, presidente da Andifes, em reunião
dos dirigentes com o Senhor Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva
Senhor Presidente Luiz lnácio Lula da Silva
A Andifes – Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Fede-
rais de Ensino Superior, criada há mais de dez anos, reúne hoje 53 institui-
ções de ensino superior, presentes em todos os estados brasileiros. É na con-
dição de presidente dessa Associação que me dirijo ao senhor.
Para nós, a educação é um bem público e o conhecimento é um patrimônio
social. Com base nesses dois princípios, defendemos o acesso universal à
educação superior. Acolhemos em nossos campi estudantes de todas as ca-
madas sociais, brasileiros que ali, além de receber uma formação profissional
qualificada, exercitam a cidadania por meio do diálogo, da tolerância, do
reconhecimento da diversidade social e cultural do nosso país.
Hoje, mais de 500 mil alunos freqüentam nossos cursos de graduação.
Anualmente, oferecemos mais de 100 mil vagas para novos estudantes. No
Sistema Federal de Educação Superior, o Brasil realiza seu mais abrangente
e qualificado esforço no sentido da produção do conhecimento. Seja qual for
o indicador adotado, nosso Sistema exerce liderança e é referência de qualida-
de para a pesquisa científica. Temos hoje quase 150 mil estudantes de pós-
graduação, futuros mestres e doutores, qualificados para dialogar, de igual para
igual, com seus colegas das melhores universidades do planeta. A extraordiná-
ria importância da pesquisa realizada pelo sistema público de educação supe-
rior revela-se em quase todos os domínios e em todas as regiões do país – na
208
exploração do petróleo em águas profundas, na produção de energia
hidroelétrica, nos êxitos de nossa indústria aeronáutica, na informática, no
Projeto Genoma, nos agronegócios e em tantos outros setores da vida naci-
onal. Enfim, Senhor Presidente, exemplos não nos faltariam.
Vivemos hoje numa sociedade que alguns definem como “a sociedade
do conhecimento”. A educação e o conhecimento sempre tiveram importân-
cia estratégica para o desenvolvimento das nações. Como exemplo atual,
podemos citar o superávit alcançado este ano por nossa balança comercial,
para o qual muito contribuíram as pesquisas e o conhecimento gerado nas
universidades públicas.
A relação entre produção do conhecimento, educação superior e incre-
mento da riqueza material das nações parece absolutamente evidente. Con-
tudo, em nosso país, infelizmente, a importância desse investimento nem
sempre tem sido reconhecida pelos governantes.
A educação superior significa muito mais para um país do que a forma-
ção de bons profissionais. Um sistema de educação superior, solidamente
enraizado nos problemas que desafiam o desenvolvimento social e econômi-
co do nosso país, produz conhecimento e gera inovações tecnológicas. A
educação superior é referência ainda para a qualificação do conjunto dos
nossos sistemas educacionais, pois ela forma também os professores que
vão ensinar as crianças e os adolescentes do ensino pré-escolar, do ensino
médio e fundamental, das escolas técnicas.
Não quero cansá-lo com números, Senhor Presidente. Porém, apenas a
título de exemplo, nos 44 hospitais universitários do Sistema Federal de
Educação Superior, além da formação de profissionais da saúde, realizam-se
anualmente mais de 13 milhões de exames laboratoriais, mais de 8 milhões
de consultas médicas, mais de 250 mil cirurgias. Nos centros de atendimen-
to à população de nossas faculdades de odontologia, são realizados a cada
ano mais de 1 milhão de tratamentos. Com isso, não somente formamos
bons profissionais, capacitados para utilizar as técnicas mais avançadas, mas
também sensíveis aos problemas da nossa realidade social.
Nossas instituições, Senhor Presidente, por meio da pesquisa e da ex-
tensão, desempenham ainda um notável papel nas suas comunidades locais
e regionais. Ninguém saberia calcular tudo o que o nosso Sistema já fez pela
diminuição das desigualdades regionais, transferindo tecnologias para mi-
lhares de pequenas e grandes empresas, apoiando governos municipais, par-
ticipando da construção de políticas públicas em cada estado da Federação,
em pequenas e grandes cidades, inclusive de nosso país profundo, da Ama-
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
209
zônia, do Centro-Oeste, do sertão do Nordeste, assessorando projetos de-
senvolvidos por sindicatos de trabalhadores, por associações de moradores e
por tantas outras entidades.
Sabemos que o Brasil, como nação, está diante de grandes desafios
em todas as áreas. Mas acreditamos que é um grande equívoco pensar que
a educação superior é uma prioridade menor nesse contexto. A educação
superior pública, laica, republicana, gratuita e de qualidade, Senhor Presi-
dente, gera compromisso e mobilidade social: ela inclui, ela forma cida-
dãos, ela produz riqueza moral, identidade e valores. Em um mundo mar-
cado pela insegurança, pela desigualdade social, por ameaças ao meio am-
biente e por tantos outros problemas, não seriam estas, entre todas, as
nossas mais preciosas riquezas?
Sabemos que a construção de um sólido sistema público de educação
superior não é tarefa apenas para os governos. Cabe à sociedade compreen-
der que o dinheiro que ela despende, por meio das políticas governamentais
para a educação superior, não é um “gasto”, é um investimento. Fazer a
sociedade assim pensar é tarefa dos governantes legitimamente eleitos e com-
prometidos de fato com a educação. A educação superior pública, para nós,
Senhor Presidente, é muito mais do que uma rubrica do Orçamento, é parte
estratégica de um projeto social, de um projeto de naçãode uma nação que, com
sua língua, sua cultura, suas artes, técnicas e ciências, sempre aberta para o
universal, quer ser soberana e singular no concerto das nações.
Na última década, como o Presidente bem sabe, o sistema público de
educação superior “navegou contra a maré”. Há uma década, enfrentamos
todo tipo de questionamentos, formulados por governantes e por setores da
sociedade. Há uma década, enfrentamos políticas de austeridade que, em
resumo, resultaram na diminuição dos nossos recursos humanos e financei-
ros. Nesse contexto, entretanto, o Sistema Federal de Educação Superior fez
muito mais do que “resistir”, porque sabemos que, se eventualmente nossas
instituições apresentam problemas, como, aliás, acontece com outras – pú-
blicas ou privadas –, sabemos também que não há projeto de nação sem
projeto de universidade.
Mesmo assim, enfrentando adversidades, a educação pública superior
fortaleceu sua liderança no âmbito da pesquisa e manteve-se como referên-
cia de qualidade para o conjunto da educação superior brasileira. Entre os
anos de 1995 e 2000, apesar da diminuição dos nossos recursos humanos e
financeiros, o que até hoje nos ocasiona problemas, como a redução do nos-
so quadro de técnicos e professores, como a dificuldade de manutenção de
210
nossos prédios, bibliotecas e laboratórios, o Sistema Federal de Educação
Superior aumentou a oferta de vagas em seus cursos de graduação (26%),
em seus cursos de graduação noturnos (100%) e em seus programas de pós-
graduação (154%).
A educação superior pública sofreu nesses últimos anos. Mas nossas
instituições não viraram “sucata”, como dizem alguns: bem ao contrário dis-
so, elas continuam reunindo o melhor que o nosso país possui no terreno das
artes, das técnicas e das ciências, elas continuam se revelando um dos nos-
sos melhores investimentos.
O que alcançamos nesses anos foi feito com multa dedicação, persistên-
cia e teimosia – e o Senhor bem sabe, Presidente, o valor que tem a teimosia.
Creio, entretanto, e digo isso muito respeitosamente, com a sinceridade
da experiência de quem há sete anos exerce o cargo de reitora de uma univer-
sidade pública, estamos no limite de nossas forças. A falta de recursos finan-
ceiros, as dificuldades de remuneração e a perda de quadros qualificados –
situação agravada no contexto da atual reforma da Previdência – pode pôr em
risco um dos mais valiosos patrimônios sociais do Brasil republicano. Já ex-
pressamos publicamente esta preocupação no “Manifesto da ANDIFES” do-
cumento que hoje temos a honra de passar a suas mãos. Hoje, Senhor Presi-
dente, apenas 12% dos jovens entre 18 e 24 anos têm acesso à educação supe-
rior, índice menor do que o constatado em países vizinhos, índice muitas ve-
zes menor do que o verificado nos países do chamado mundo desenvolvido.
Porque queremos tornar muito maior o já importante alcance da educa-
ção pública superior é que estamos aqui, Senhor Presidente. Vivemos, sem
dúvida, um momento difícil. Porém, por acreditarmos naquilo que fazemos,
por sabermos que a obra da educação superior pública brasileira não perten-
ce a este ou àquele governo, mas atravessa gerações, por termos a convicção
de que esta obra coletiva é patrimônio social, manifestamos nossa disposição
de torná-la mais pertinente com o novo momento, de expectativa e esperan-
ça, que vive o Brasil – e, sobretudo, muito mais acessível aos milhões de
jovens brasileiros que nada mais querem do que a oportunidade de crescer
como cidadãos e de participar da construção de um Brasil mais justo.
Enfim, Senhor Presidente, estamos aqui para lhe apresentar nossa pro-
posta de metas para os próximos quatro anos, proposta amplamente debati-
da pelos colegas reitores e dirigentes da Andifes, que contempla muitos as-
pectos presentes no Plano Nacional de Educação e no próprio programa de
governo que o elegeu:
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
211
• queremos promover as alterações que forem necessárias no ensino de
graduação e de pós-graduação de modo a garantir aos estudantes a
condição da formação cidadã, com ênfase nos valores éticos e cívicos
que devem nortear a vida numa sociedade justa e democrática;
• queremos duplicar o número de alunos na graduação (passar de 524.000
para 1.048.000);
• queremos duplicar o número de alunos na pós-graduação strícto sensu
(essa ação deve levar em consideração a diminuição das desigualda-
des regionais, as vocações institucionais e o trabalho em rede);
• queremos ocupar 100% das vagas oferecidas em cada semestre (com-
bater a evasão e a retenção, implementar políticas assistenciais e aca-
dêmicas adequadas), elevando o índice de diplomação;
• queremos ofertar 25.000 novas vagas nos vestibulares em cursos no-
turnos;
• queremos formar 50.000 professores, particularmente nos campos dis-
ciplinares que apresentam maior déficit;
• queremos criar um programa para titular 250.000 professores sem gra-
duação que atuem nas redes estadual e municipal para atender ao esta-
belecido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB);
• queremos valorizar academicamente, por meio da atribuição de crédi-
tos, as atividades extracurriculares dirigidas ao esforço nacional em
favor da plena alfabetização da população brasileira;
• queremos dobrar as atividades de extensão em áreas de grande
pertinência social (alfabetização, nutrição, segurança pública, gera-
ção de emprego e renda, formação de agentes de políticas sociais);
• queremos dobrar o número de trabalhos científicos publicados em
periódicos indexados;
• queremos quadruplicar o número de patentes licenciadas, como for-
ma de aumentar a interação com o setor produtivo nacional;
• queremos buscar formas de superar a desigualdade de oferta de vagas
em cada estado da Federação, estabelecendo políticas que definam
taxas de referência do ensino público por número de habitantes,
mediante a interiorização das nossas ações, projetos de educação a
distância e a criação de instituições de ensino superior federais;
• queremos estabelecer uma colaboração mais efetiva entre as insti-
tuições federais de ensino superior, os estados, o Distrito Federal e
os municípios.
Para a realização destas metas, como já expusemos ao Ministro
Cristovam Buarque, é preciso que se recomponham as condições de traba-
lho e funcionamento das instituições federais de ensino superior,
resolvendo-se, em caráter de urgência, o passivo de pessoal docente e técni-
212
co-administrativo, e a insuficiência de recursos financeiros de nossas ativi-
dades. Além disso, são inadiáveis a construção e a implementação de uma
proposta de autonomia universitária, atendendo, quinze anos depois, àquilo
que deliberaram os constituintes de 1988. Enfim, é indispensável atender às
necessidades das nossas instituições em termos de recursos humanos, con-
dições de infra-estrutura e provimento dos meios para investimento e para
custeio das propostas aqui apresentadas. Cabe, ainda, um alerta sobre a im-
portância da manutenção dos Fundos Setoriais geridos pelo Ministério da
Ciência e Tecnologia, especialmente o Fundo de Infra-Estrutura.
Senhor Presidente:
Quando o Senhor nos recebeu, ainda como candidato, disse-nos uma
frase que gostaria de retomar nesse momento. O senhor disse então que o
Brasil precisaria eleger Presidente um torneiro mecânico para que fosse dada a
devida importância aos professores e à educação superior. A reunião de hoje é
histórica. Pela primeira vez, um Presidente da República recebe o conjunto
dos reitores e dirigentes das instituições federais de ensino superior para discu-
tir uma proposta que vem das nossas universidades. Toda caminhada, como
diz certo provérbio, começa com os primeiros passos. Esperamos que estes
passos sigam na boa direção, significando a valorização dos professores e da
educação pública e o reconhecimento da sua importância para toda a socieda-
de. Estas são as expectativas de todas as nossas comunidades.
Dirigimo-nos ao governo, Senhor Presidente, mas nos dirigimos também
à sociedade, conscientes de que a implementação das metas hoje propostas
significarão um extraordinário avanço no sentido da construção de um novo
contrato social e da promoção da inclusão social duradoura, da realização da
esperança que mobiliza o Brasil em direção à mudança.
Senhor Presidente, nas últimas semanas, como professora, reitora da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e presidente da Associação Naci-
onal dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior tenho sido
perguntada, muitas vezes, se irei ou não exercer meu direito à aposentadoria.
De fato, segundo a legislação, eu poderia exercer tal direito, mas tenho dito e
repetido que não o farei. Minha crença – que tenho certeza ser também a de
meus pares aqui presentes – na importância estratégica do sistema público de
educação superior para o Brasil, não se quebrará. Em momentos como os que
hoje vivemos, Senhor Presidente, renova-se minha esperança no futuro.
Muito obrigada.
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
213
PROPOSTA DE EXPANSÃO E MODERNIZAÇÃO
DO SISTEMA PÚBLICO FEDERAL DE ENSINO SUPERIOR
ENCAMINHADA AO SENHOR PRESIDENTE DA REPÚBLICA,
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA, PELA ANDIFES
As Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), reunidas em Brasí-
lia, no dia 5 de agosto de 2003, conscientes da função social e do papel
estratégico que desem-penham, e sabedoras da impor-tância histórica deste
momento que a sociedade brasileira vive, consideram:
Em função disso, desejam tornar públicas suas propostas de trabalho
para os próximos quatro anos:
1 que na sociedade contemporânea
a produção de conheci-mento, a
inovação e a transferência
tecnológica são fundamentais
para a soberania das nações;
1 promover as alterações que
forem necessárias no ensino de
gradua-ção e de pós-graduação
de modo a garantir aos
estudantes a condição da
formação cidadã, com ênfase
nos valores éticos e cívicos que
devem nortear a vida numa
sociedade justa e democrática;
2 que há necessidade de robuste-
cer o Sistema Nacional de
Educação com a efetiva
integração entre os diversos
níveis de ensino e o com-
promisso que as IFES têm com
este princípio;
2 duplicar o número
de alunos na
graduação (passar de 524.000
para 1.048.000);
214
3 que o sistema público é a
referência de qualidade na
formação de recursos humanos
para a sociedade em geral e para
os demais níveis de ensino, em
especial;
3 duplicar o número de alunos na
pós-graduação stricto sensu (essa
ação deve levar em conside-
ração a diminuição das
desigualdades regionais, as
vocações institucionais e o
trabalho em rede);
4 que as IFES são responsáveis
por 16,5% das matrículas de
graduação e número expressivo
de matrículas de pós-graduação
stricto sensu;
4 ocupar 100%
das vagas surgidas
em cada semestre (combater a
evasão e a retenção, imple-
mentar políticas assistenciais e
acadêmicas adequadas), ele-
vando o índice de diplomação;
5 que as IFES são responsáveis
pela maior parte das pesquisas
realizadas no país e pela quase
totalidade daquelas desen-
volvidas nas regiões Norte,
Nordeste, Sul e Centro-Oeste;
5 ofertar 25 mil novas vagas nos
vestibulares em cursos
noturnos;
6 que as IFES são responsáveis
pela maioria dos programas de
extensão de relevância social
neste país;
6 formar 50 mil
professores, parti-
cularmente nos campos dis-
ciplinares que apresentam
maior déficit;
7 que os hospitais universitários
ligados às IFES são importan-
tes não só para a pesquisa mas,
também, para a Assistência à
saúde, sendo, em muitas regiões,
a única alternativa de atendi-
mento de complexidade dispo-
nível à população;
7 criar um programa para titular
250 mil professores sem gra-
duação que atuam nas redes
estaduais e municipais para
atender ao estabelecido na
LDB;
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
215
8 que o ensino público, gratuito e
de qualidade é essencial para
reverter a situação de desigual-
dade social e regional de nosso
país;
8 valorizar academicamente, por
meio da atribuição de créditos,
as atividades curriculares
dirigindo-as ao esforço nacional
em favor da plena alfabetização
da população brasileira;
9 que é necessário combater as
tentativas de tornar o ensino
uma mercadoria orientada pelas
leis de mercado e submissa a
regras internacionais multila-
terais.
9 dobrar as atividades de
extensão em áreas de grande
pertinência social (alfabeti-
zação, nutrição, segurança
pública, geração de emprego e
renda, formação de agentes de
políticas sociais);
10 dobrar o número de trabalhos
científicos publicados em
periódicos indexados;
11 quadruplicar o número de patentes
licenciadas como forma de
aumentar a interação com o
setor produtivo nacional;
12 buscar formas de superar a
desigualdade de oferta de vagas
em cada estado da Federação,
estabelecendo políticas que
definam taxas de referência do
ensino público por número de
habitantes, mediante a interiori-
zação das ações da universi-
dade, projetos de educação a
distância e criação de institui-
ções de ensino superior federais;
13 estabelecer, entre as IFES,
estados, DF e municípios, uma
colaboração efetiva, dentro dos
objetivos finais da colaboração
ensino, pesquisa e extensão.
216
Para a realização desta proposta é indispensável que se recomponham
as condições de trabalho e funcionamento das IFES, resolvendo-se, em ca-
ráter de urgência, o passivo de pessoal docente e técnico-administrativo e
procedendo-se, no futuro, à reposição automática das vagas geradas.
Além disso, é inadiável a construção e implementação de uma proposta
de autonomia universitária, atendendo, quinze anos depois, àquilo que delibe-
raram os constituintes de 1988. Dentro deste enquadre, é indispensável aten-
der às necessidades das IFES em termos de recursos humanos, condições de infra-
estrutura e provimento dos meios para investimento o para custeio de cada projeto.
Dirigimo-nos ao governo e à sociedade conscientes da excelente rela-
ção custo-benefício embutida na proposta que apresentamos e absolutamente
convictos de que o Sistema Público Federal da Educação Superior oferece
plenas condições de promover a inclusão social duradoura que move em nosso
país o desejo de mudança e a esperança no futuro.
Presidente Wrana Maria Panizzi UFRGS
Vice-Presidente José Femandes de Lima UFS
Suplente Cícero Mauro Fialho Rodrigues UFF
Vice-Presidente Marcelo José Pedrosa Pinheiro ESAM
Suplente Jonas Pereira de Souza Filho UFAC
Secretário Executivo Gustavo Balduino
DIRIGENTES IFES
Alex Bolonha Fiúza de Mello UFPA
Aloísio Teixeira UFRJ
Ana Lúcia Almeida Gazzola UFMG
Arquimedes Diógenes Ciloni UFU
Carlos Alexandrino dos Santos CEFET-MG
Carlos Augusto Moreira Junior UFPR
Carlos Rodolfo Brandão Hartmann FURG
Cícero Mauro Fialho Rodrigues UFF
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
217
Dirceu do Nascimento UFOP
Eden Januário Netto CEFET-PR
Edson Luiz Femandes FMTM
Emídio Cantídio de Oliveira Filho UFRPE
Ene Glória da Silveira UNIR
Evaldo Ferreira Vilela UFV
Fabiano Ribeiro do Vale UFLA
Fernando Antônio Menezes da Silva UFRR
Francisco Moreira de Meneses CEFET-MA
Geraldo José Marques Pereira UFPE
Hidembergue Ordozgoith da Frota UFAM
Inguelore Scheunemann de Souza UFPel
Jader Nunes de Oliveira UFPB
João Brazão da Silva Neto UNIFAP
Jonas Pereira de Souza Filho UFAC
Jorge Lima Hetzel FFFCMPA
José Américo da Costa Barroqueiro UFMA
José Antônio de Souza Veiga UFRRJ
José Carlos Goulart de Siqueira UNIFEI
José Femandes de Lima UFS
José lvonildo do Rêgo UFRN
José Weber Macedo UFES
Lauro Morhy UnB
Maciro Manoel Pereira EFOA
Manoel Catarino Paes Peró UFMS
Manoel Malheiros Tourinho UFRA
Marcelo José Pedrosa Pinheiro ESAM
Maria Margarida Martins Salomão UFJF
Mário Neto Borges UFSJ
218
Miguel Badenes Prades Filho CEFET-RJ
Milca Severino Pereira UFG
Mireile São Geraldo dos Santos Souza FAFEID
Naornar Monteiro de Almeida Filho UFBA
Oswaldo Baptista Duarte Filho UFSCar
Paulo Jorge Sarkis UFSM
Paulo Speller UFMT
Pedro Leopoldino Ferreira Filho UFPI
Pietro Novellino UNIRIO
Renê Teixeira Barreira UFC
Rodolfo Joaquim Pinto da Luz UFSC
Rogério Moura Pinheiro UFAL
Rui Pereira Santana CEFET-BA
Thompson Femandes Mariz UFCG
Ulysses Fagundes Neto
Wrana Maria Panizzi UFRGS
UNIFESP
219
SEMINÁRIO
“UNIVERSIDADE: POR QUE E COMO REFORMAR?”
(*)
MEC/SESu, Comissão de Educação do Senado e Comissão de Educa-
ção da Câmara
Data: 6 e 7 de agosto de 2003.
Local: Senado (Auditório Petrônio Portella)
Uma das metas de ação política do Ministério da Educação é o de esta-
belecer um diálogo, tanto com ministérios afins quanto com o Poder Legisla-
tivo, com o objetivo de construir, junto com os setores organizados da soci-
edade civil, uma universidade à altura de seus desafios. De fato, o modelo
que organiza a universidade dá evidentes sinais de esgotamento e a própria
instituição parece sofrer os abalos de uma transição que se quer paradigmática,
simultaneamente teórica e social.
A Universidade contemporânea e em particular a universidade brasilei-
ra perdeu a exclusividade como centro de produção de saber e instrumento
de preparação para o trabalho e o emprego, mas continua a ser uma das
poucas instituições que permite o encontro, a articulação e o diálogo crítico
e livre entre distintos saberes e modos de conhecer.
Essa continuidade institucional no contexto de suas múltiplas e com-
plexas transições se traduz em crises cíclicas de legitimação, mas acumula
um repertório de alternativas históricas que lhe têm permitido armar e con-
frontar os seus renovados desafios.
O século e o milênio abriram-se num horizonte de grandes interpela-
ções civilizatórias que alcançam naturalmente uma das raras instituições com
a mesma longevidade. Por isso se recoloca a questão de “Por que e como
reformar a Universidade?”, como desafio para reconfigurá-la como Univer-
sidade para o Século XXI.
(*) Texto de lançamento do Seminário.
220
Com efeito, neste início do século XXI, o problema maior não é pro-
mover o ensino superior em seu sentido utilitário, mas reorientá-lo sobre a
base de um novo compromisso social entre a Universidade e a Sociedade,
que tenha a educação como mediação realizadora. Retoma-se assim para a
universidade o papel de vanguarda indiscutível na produção, na crítica e
difusão do conhecimento.
A isso se acresce a circunstância especial de inauguração de um novo
projeto nacional de inclusão social, com crescimento sustentável, ensejando
a oportunidade de republicanização das instituições e abolição das iniqüida-
des que suprimem o exercício da cidadania.
É neste contexto que se busca reorientar as funções da universidade e
do ensino superior, cujos eixos principais se apóiam na afirmação política da
educação como dever de Estado e estratégia de governo para o desenvolvi-
mento, num processo que não deixa de armar contradições e de criar pontos
de tensão, tanto nas relações que se estabelecem com o Estado e a Socieda-
de, como entre as próprias instituições que organizam essas funções.
Enfrentar esses desafios e construir alternativas para trabalhar essas
tensões é responsabilidade que assumem, neste momento, em conjunto o
Governo, pelo Ministério da Educação/Secretaria de Educação Superior e
o Legislativo, por suas Comissões de Educação, no Senado e na Câmara
Federal, abrindo uma agenda positiva (que terá seqüência com a Conferên-
cia Nacional de Educação, de 16 a 19 de outubro, em Brasília; o Seminário Interna-
cional sobre a Universidade XXI, de 25 a 27 de novembro, em Brasília, e o Con-
gresso Internacional de Educação Superior: a universidade por um mundo melhor, de
2 a 6 de fevereiro de 2004, em Havana, Cuba) para refletir e sistematizar dire-
trizes políticas que respondam, neste momento, à questão “Por que e como
reformar a Universidade?”
Nota dos organizadores: O MEC decidiu pelo adiamento da Conferência
Nacional de Educação. Mas, por outro lado, este adiamento possibilitará um
salto qualitativo no processo como um todo, com a adoção do modelo tradi-
cional de Conferências, no qual os debates municipais e estaduais – que
terão início em março de 2004, culminando com a escolha de delegados -,
costumam ser preponderantes na construção de políticas públicas.
Para orientar a discussão, quatro núcleos temáticos serão postos em relevo:
1º – Sociedade, Universidade e Estado: autonomia, dependência e com-
promisso social;
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
221
2º – Universidade e Desenvolvimento: globalização excludente e proje-
to nacional;
3º – Universidade e Valores Republicanos: conhecimento para a eman-
cipação, igualdade de condições e inclusão social;
4º – Universidade XXI, Resgate do Futuro, Estrutura e Ordenação do
Sistema: a tensão entre o público e o privado.
Os expositores e debatedores desenvolverão livremente sua aborda-
gem a partir do eixo central proposto (“Por que e como reformar a Universi-
dade?”), mas responderão, além das suas próprias questões, à questão co-
mum e seus possíveis desdobramentos:
a) Qual a estrutura mais eficiente e democrática para a Universidade
das primeiras décadas do século XXI?
b) Qual o papel da universidade dentro do sistema de produção e difu-
são dos distintos saberes e modos de conhecer?
c) Qual o papel da universidade na construção de igualdades de condi-
ções e de oportunidades para uma vida emancipada?
O Seminário organiza-se nesses quatro núcleos temáticos, distribuídos
em painéis coordenados por dirigentes do MEC/SESu e por parlamentares
das Comissões de Educação das duas Casas Legislativas.
Nesses painéis, expositores (quatro em cada painel, num total de quatro
painéis, em dois dias, tarde/noite e manhã/tarde) destacados no ambiente
acadêmico, submeterão suas análises e propostas à discussão, com debatedores
(onze por painel/tema, previamente convidados) estimulados a confrontar as
exposições com os elementos de reflexão/projetos acumulados pelas entida-
des/corporações que representam – UNE, Ubes, ANPG - Associação Nacio-
nal de Pós-Graduandos, Andes - SN, Fasubra, SINASEFE - Sindicato Nacio-
nal dos Servidores Federais da Educação Básica e Profissional, Andifes, Crub,
CONCEFETS - Conselho de Dirigentes dos Centros Federais de Educação
Tecnológica, ABRUEM - Associação Brasileira de Reitores das Universidades
Estaduais e Municipais, ABRUC - Associação Brasileira das Universidades
Comunitárias, ANUP - Associação Nacional das Universidades Particulares,
ANACEU - Associação Nacional dos Centros Universitários, ANAFI - Asso-
ciação Nacional das Faculdades e Instituições Superiores, ABMES - Associa-
ção Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior, FORGRAD - Fórum
Nacional de Pró-Reitores de Graduação, FORPROP - Fórum Nacional de
Pró-Reitores de Pesquisa e Pós-Graduação, FORPLAD - Fórum Nacional de
Pró-Reitores de Planejamento e Administração, FONAPRACE - Fórum Na-
222
cional de Pró-Reitores de Assuntos Comunitários e Estudantis, FOREXTS -
Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas(1) e
Fórum Nacional de Extensão das IES Comunitárias(2), CNS - Conselho Na-
cional de Saúde, CONSED - Conselho de Secretários de Educação, Fórum de
Conselhos Estaduais de Educação, CNTE, OAB, ABI, SBPC, MST, Contag,
CNI - Confederação Nacional da Indústria, CNC - Confederação Nacional do
Comércio, Sistema S (Senar, Senai e Senac), Ipea, UNILEGIS - Universidade
do Legislativo Brasileiro, CGTB - Central Geral dos Trabalhadores do Brasil,
CONTEE - Confederação dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Edu-
cação, UNDIME - União Nacional dos Dirigentes Municipais em Educação,
CONDSEF - Confederação Nacional dos Servidores Públicos Federais, CGT,
FS - Força Sindical e CUT.
Em seguida, um debate livre com os presentes; e, finalmente, sistema-
tização dos painéis por meio de uma relatoria constituída pelas equipes do
MEC/SESu, da UNESCO e do Congresso Nacional. O material produzido
pelo Seminário será reunido em livro para memória e referência às ações de
política de educação no âmbito executivo e legislativo.
Embora restrita a participação, por meio de convites, o debate será
universalizado pela difusão em mídia: TV Senado, TV Câmara, TV Escola,
TVs Universitárias, TVs Cultura/Educativas, Canal Futura, Sistema
Radiobrás, jornais e revistas de circulação nacional.
Nota dos organizadores: a difusão não foi possível devido à transferência, em
última hora – provocada pela votação da reforma da Previdência –, do local do
evento: do Senado (seria realizado no auditório Petrônio Portella) para o Clube
do Exército (na sede do Lago, no setor de clubes esportivos sul). Também não
foi possível um melhor aproveitamento da reflexão proporcionada pelos deba-
tes. Todos os textos que compõem o livro foram revistos por seus autores/expo-
sitores. Textos de alguns convidados à Mesa de Abertura não correspondem, em
extensão, às suas falas, necessariamente mais breves. Outros, ausentes na aber-
tura, enviaram textos que inclusive circularam, em versão preliminar, nos dois
dias do Seminário. O título do livro, A Universidade na Encruzilhada, é o mesmo
da conferência de abertura, feita pelo Ministro Cristovam Buarque (que, no dia
anterior, 5 de agosto, havia acompanhado os dirigentes das IFES em reunião
com o Senhor Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva: pela sua im-
portância, decidimos incluir no livro tanto a “proposta de expansão e moderni-
zação do sistema público federal de ensino superior”, encaminhada pela Andifes,
como o pronunciamento de sua presidenta, reitora Wrana Maria Panizzi).
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
223
Dos participantes
– Parlamentares
– Convidados
– Expositores e mediadores
– Debatedores inscritos com antecedência
– Equipes do MEC/SESu e do Congresso Nacional
Da estrutura
– Quatro mesas/temas
– Quatro expositores por tema com 25 minutos cada
– Onze debatedores por tema com quatro minutos cada (com respostas
em bloco)
– Debate de 30 minutos com os presentes
Dos convidados
– Deputados e Senadores
– Representantes de instituições que atuam no ensino superior
– Representantes de conhecidas entidades da sociedade civil
– Expositores e mediadores (ou moderadores)
Dos Inscritos
A cada instituição convidada serão oferecidos cinco convites (além deste
número, devem ser solicitados à coordenação dos trabalhos) com a ficha de
inscrição, indicando-se o prazo de confirmação (primeiro de agosto) para
participar do Seminário.
Da infra-estrutura e do apoio material
(sob responsabilidade do MEC/SESu, Câmara Federal, Senado e
UNESCO)
224
PROGRAMA
06/08, quarta-feira
08h45
Abertura
Mesa: ministros Cristovam Buarque (Educação), Roberto Amaral (Ci-
ência e Tecnologia), José Dirceu (Casa Civil), presidente do Senado, José
Sarney, presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, senador
Osmar Dias, deputado Gastão Vieira, secretários Carlos Roberto Antunes
dos Santos (SESu), Antônio Ibañez Ruiz (Semtec) e Maria José Vieira Feres
(SEF), Luiz Araújo (Inep), João Carlos Teatini Clímaco (Seed), Carlos Jamil
Cury (Capes), Jorge Wertheim (UNESCO) e José Carlos de Almeida (CNE).
Apresentação de Carlos Roberto Antunes dos Santos (MEC/SESu)
Nota dos organizadores: devido à votação da reforma da Previdência, o
ministro da Casa Civil e os presidentes do Senado e da Câmara Federal não
compareceram à Mesa de Abertura.
10h
Conferência do Ministro Cristovam Buarque
Tema: A Universidade na encruzilhada
11h30
Lançamento da revista Universidade XXI (MEC/SESu/CAPES))
Intervalo para almoço
14h15
Mesa-Tema:
Sociedade, Universidade e Estado: autonomia, dependência e compro-
misso social
Expositores:
Marilena Chauí (USP)
Cândido Mendes (Cândido Mendes e UNESCO)
Eduardo Portella (UFRJ e UNESCO)
Carlos Vogt (Unicamp)
Moderador: José Geraldo de Sousa Júnior (UnB e MEC/SESu)
Debatedores: UNE, Andes – SN, Fasubra, Andifes, Crub, Abruem,
Anaceu, Contee, Unilegis, ABI e OAB
Nota dos Organizadores: o professor José Geraldo de Sousa Júnior, dire-
tor do Departamento de Política do Ensino Superior (DEPES/SESu/MEC)
A UNIVERSIDADE NA ENCRUZILHADA: por que e como reformar?
225
foi substituído, como moderador, pelo professor Carlos Roberto Antunes
dos Santos, Secretário da Educação Superior (SESu/MEC).
Intervalo para lanche
19h
Mesa-Tema:
Universidade e Desenvolvimento: globalização excludente e projeto
nacional
Expositores:
Carlos Lessa (UFRJ e BNDES)
Roberto Smith (UFCE e Banco do Nordeste)
Luiz Pinguelli Rosa (UFRJ e Eletrobrás)
Francelino Grando (UFScar e MCT)
Moderador: Senador Osmar Dias (Presidente da Comissão de Educação
do Senado)
Debatedores: Ubes, Sinasefe, Concefets, Anpg, Forprop, Abmes, IPEA,
CNI, Senai, Undime e SBPC
Nota dos Organizadores: os professores Carlos Lessa e Luiz Pinguelli Rosa,
por motivo de força maior, não puderam comparecer.
07/08, quinta-feira
8h45
Mesa-Tema:
Universidade e Valores Republicanos: conhecimento para a emancipa-
ção, igualdade de condições e inclusão social
Expositores:
José Dias Sobrinho (Unicamp)
Renato de Oliveira (UFRGS)
Rabah Benakouche (UFPR)
Beatriz Couto (UFMG)
Moderador: Deputado Gastão Vieira (Presidente da Comissão de Edu-
cação da Câmara)
Debatedores: Forext (1 e 2), CNTE, Abruc, Anafi, Fonaprace, Contag,
Senar, CGTB, MST e Força Sindical
Nota dos Organizadores: o Deputado Gastão Vieira (PMDB/MA),
foi substituído, como moderador, pelo Deputado Severiano Alves
(PDT/BA).
Intervalo para almoço
226
14h15
Mesa-Tema:
Universidade XXI, Resgate do Futuro, Estrutura e Ordenação do Sis-
tema: a tensão entre o público e o privado
Expositores:
Luiz Antônio Cunha (UFRJ)
Carlos Benedito Martins (UnB)
Edson Nunes (Cândido Mendes)
Hélgio Trindade (UFRGS)
Moderador: Emmanuel Appel (UFPR e MEC/SESu)
Debatedores: Forplad, Forgrad, CNS, Consed, Anup, CNC, Fórum/CEE,
CGT, Condsef, Senac e CUT
Encerramento
Organizadores: Osmar Dias (Comissão de Educação do Senado Fede-
ral), Gastão Vieira (Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara
dos Deputados), Emmanuel José Appel e José Geraldo de Sousa Júnior (res-
pectivamente, assessor e diretor da Secretaria de Educação Superior do Mi-
nistério da Educação) e Célio da Cunha (Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura/UNESCO).
Coordenação-Geral do Seminário: Emmanuel Appel (MEC/SESu).
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