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FRANCISCO MANGABEIRA
AS VISÕES
DE
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AS VISÕES DE SANTA THEREZA
I
Os sons do bandolim . . .
Noite ...
Um vento frio e cortante zune fu-
riosamente pelo espaço cheio de sombras...
Dentro duma pequena cella. ajoelhada e
pallida, olhar extático, anãos fidalgas e
finas erguidas em supplica, rosto levantado
á semelhança duma flor muito perfumada e
muito branca, Santa Thereza fita a imagem
de Christo que resalta gloriosamente da
parede alva e núa.
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6
AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Reza. . . Tem no olhar uma fulguração
extranha . . . Depois se levanta abrindo
muito os olhos como que para fitar uma
paysagem longinqua. . .
Ilumina-lhe a bocca um sorriso
inconsciente e vago ... O vento ador-
mece e o luar penetra discretamente
esse aposento que uma luz frouxa de
lampada povôa de nevoas impalpaveis.
e aladas . . . Paira, um occulto mysterio
em torno á figura angélica da freira,
que, enlanguescidamente, scisma...
Vêem de fora os sons apagados dum
bandolim ....
SANTA THEREZA
Donde vem esta musica, branda e
acariciadora como um sorriso, abafada e
tremula como um soluço?... Quem a estas
horas, ousa ferir o silencio da noite e
perturbar o somno das virgens
AS VISÕES DE SANTA THEREZA
7
que sonham noivados á luz das estrellas
radiosas e vividas? Talvez um noetambulo a
passeiar pelas ruas desertas e mudas como
um phantasma fugido dum cemiterio .. .
talvez um namorado junto ao balcão em flor
da amante que alegre como as cigarras, lhe
estende uma escada de seda abrindo os
braços á espera que elle agil e elegante,
capa ao hombro, gualgue os degraus, ven-
turoso como quem sobe para um throno,
contricto como quem se ajoelha ante um
altar ... O luar talvez os espie por entre as
nuvens e vá surprehendel-os no primeiro
beijo, abençoando-os. . .
Ella deve estar linda como as raparigas
que vão para a primeira comumnhão... elle
deve estar inquieto como um soldado
numa batalha decisiva . . . Vê dum lado a
victoria, do outro lado a morte. Mas em
breve esta incerteza
8
AS VISÕESS DE SANTA THKREZA
se dissipará e os seus labios entoarão um
hymno de triumpho, ardendo numa mesma
chamma, lavrados pelo mais forte
incêndio... Em breve se ouvirão
maciamente ruidos de beijos, ternuras de
confissões e protestos ... E os braços della
ficarão mais quentes e molles... os seios
maiores, muito maiores . . .
(Pára . .. e estremece-se toda. Vê num
balcão florido dois jovens noivos
abraçados... Os cabellos da moça envolve-
os num manto de seda . . . Os lábios do
rapaz scintillam e lançam chispas de
voluptuosidade no rosto enlanguescido da
amada ... Um leve rumor de beijos faz
despertarem os ninhos que começam a
cantar em honra ao ditoso par ... A lua
como que se enternece e ri...)
São tão felizes! E eu sou tão
desgraçada!
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 9
(Ajoelha-se, e um grito angustio-
sissimo se lhe escapa dos labios.)
Sou tão moça e já estou assim velha!
Pareço-me com estas mendigas rachiticas
que morrem de fome pelas estradas, á luz
torrencial do sol... Minha carne está
murcha como um jardim sem orvalhos.
Trago no corpo um aroma de folhas seccas
e de flores mirradas... Sou um ninho
abandonado em que não pipillam mais
passarinhos . . . Vivo num paiz onde só ha
o inverno, paiz algido e monotono jamais
visitado pela fada cantante e loira da
primavera. Tenho nos seios duas
sepulturas e as minhas mãos são cruzes
erguidas num cemitério em que alvejam
campas de recemnascidas. Dentro dos
meus olhos ardem cyrios e tremem
lagrimas ... Lembram um templo vasio,
sem altares, no interior do qual crepitam
luzes ante a imagem
10 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
funebre da minha desventura. Outr'ora. eu
tinha na cabeça um ninho de cotovias, hoje
ella está cheia de mochos. Todas as outras
freiras quando me vêem, fitam-me
espantadas e julgo até que resam pedindo
pela minha salvação. Olham-me do mesmo
modo porque eu olho os aleijados e os
cegos. Comparo-me a uma lagoa
envenenada e escura onde não voam garças
nem florescem açucenas. Por que tamanho
isolamento ? Por que tão grande des-
ventura? — Aqui, sosinha, encerrada entre
quatro paredes desta cella mysteriosa e
branca, me definho pouco a pouco, todos os
dias, como se dá com as plantas que
nascem dentro das rochas, nos buracos das
pedras, privadas de agua e de sol . . Meu
Deus, porque negais a á agua á minha boca
sequiosa e luz á minha vista enfraquecida?
Porque não foram eternos os dias da mi-
AS VISÕES DE SANTA THEHEZA
11
nha infancia, em Avila, quando vivia ao
lado de meu irmão, que sorria ao ver-me
sorrir e só era feliz com a minha alegria?
Porque não me voltam mais aquellas
quentes manhãs de Domingo, em que eu ia
assistir á missa e dar pão ás velhinhas rotas
e enrugadas que esmolavam no adro da
Igreja?
Minha trança cheirava como um
vergel e meus labios cantavam como um
ninho
Dir-se-ia que a alegria, a luz, a pri-
mavera se encarnara em mim. Quem sabe?
Talvez fosse muito cubiçada pelos rapazes
que me olhavam demoradamente, como
encantados.
No emtanto ninguem possuiu esse
thesouro. Fui pura, sou pura, morrerei
pura!
Oh ! é muito triste dizer: Sou rica e
vivo faminta! Tenho boca e nunca
12
AS VISÕES DE SANTA THEREZA
serei beijada. Vivo acorrentada a um
perpetuo desespero! Quero beijos de fogo
que me queimem toda, apertos voluptuosos
que me estrangulem. Sim! hei de repousar
a cabeça tonta no peito de alguem que me
estremeça e saborear phreneticamente os
carinhos de alguem a quem ame.
Por ventura a luz que encerro nos
olhos é destinada a morrer ou a illuminar
escuridões, espancando trevas . . .
Porque, se sou tao moça. não goso
aquillo a que tenho direito? Vem, mancebo
de coração ardente e olhos languidos com
quem todas as noites sonho e por quem
chamo a todos os instantes; vem clarear
com teus olhares a noite de minha alma.
santificar com teus beijos o martyrio da
minha existência! (Desvairada, abre os bra-
ços e aperta com elles a imagem do
crucificado que irrompe, magestosa,
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 13
calma, divina, na parede branca, numa
irradiação esplendida. Olha-o com ar-
rebatamento, e vê-lhe as chagas san-
grando). Meu Guia, meu Pai, meu Deus!
Meu Dulcissimo Jesus de olhos
compassivos e ternos, porque nao tens
pena de mim ?
Porque não serenas minha alma tão
chagada como teu corpo, que vejo fulgir
maravilhosamente, tendo nos pés, nas
mãos, nos braços e no rosto constellações
de rosas vermelhas, papoilas
desabotoadas em sangue ? . . .
Porque não me abençoas, estendendo-
me essas mãos sagradas, banhando-me
com esse olhar scismador e meigo?
Nunca se amou tanto como te amo
agora! Meu Guia! Meu Pai! Meu Deus!
Meu Dulcissimo Jesus, porque nao me
purificas com um beijo, um só, dos teus
labios vermelhos ? Seria desde
14 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
então a tua mais fervida crente, o teu mais
devotado adorador.
Um beijo de tua boca seria a minha
mais alta recompensa! Ama-me,
Dulcissimo Jesus. (Avança e beija ca-
rinhosamente a imagem . . . Depois se
exalta, diz phrazes soltas, beija-o com mais
ardor, como si tivesse enlouquecido. Não
desvia o olhar para parte alguma e os seus
seios entesam-se cada vez mais . . . De
repente, empallidece muito, aterra-se e
grita. Permanece alguns instantes de pé,
immovel, como si tivesse sido acordada
dum sonho terribilissimo. A contracção das
mãos e do rosto denuncia o desespero que
a esmaga e passado algum tempo desata
em choro copiosissimo).
Perdão, meu Deus, perdão. Compa-
dece-te de mim, o mais desgraçado dos
entes!
Perdão, que eu não soube o que fiz!
AS VISÕES DE SAXTA THEREZA 15
Ha uns tempos para cá vivo como
doida, querendo purgar os meus erros . . .
porém cada vez desço mais. Em vão peço
á tua misericordia que me livro dessa
tentação feroz!
Meu Deus, snpplico, não pela primeira
nem pela ultima vez. o teu perdão.
Sou bôa ! Minha alma tem a bran-.
cura virginal das magnolias ao relento. . .
Se actos profanos mo marcaram a
pureza, eu não fui culpada. Por teu amor
quiz outr’ora offerecer minha cabeça ao
alfange assassino dos mouros que não te
adoram ! Por teu amor estou enterrada viva
nesta estreita cella.
Ah! mas a falta foi irreparavel!... Estas
irmãs do convento, estas ingenuas que
tanto se admiram, que me chamam a
Immaculada, a unica, como não ficariam
espantadas quando sou-
16 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
bessem que sou a mais vil de todas, a
unica que ousou profanar a imagem
adoravel do crucificado! . . .
(Vai a um canto da cella buscar os
apparelhos proprios para a penitencia.
Aperta em correntes de ferro os frageis
pulsos, que se tornam arroxeados. Arranca
uma grande quantidade de cabellos, torce
os braços . . . Depois descobre os seios e
fere-os com estyletes de aço ...
O sangue esguicha impetuosamente era
múltiplos filetes. Com um ferro em braza
queima os logares feridos, onde se abrem
grandes chagas como escrinios
fumegantes.
Acabada a penitencia, permanece a
rezar por muito tempo. Então uma pomba
muito branca, da côr dos jasmins e da neve,
entra repentinamente na cella e vai pousar
sobre o hombro de Santa Thereza.
AS VISÕES DE SANTA THE REZA 17
O semblante da freira toma um aspecto
irradiante e consolador.
A POMBA
Martyr! Sacrificas-te ao amor de Deus
e tens lagrimas como recompensa a tua
abnegação; dilaceras a alma, rasgas as
carnes queimando-as em holocausto á tua
fé e não adias um allivio sequer!
Ha annos que te consomes resigna-
damente, sem queixas, por tudo que ha de
sagrado e ainda não tiveste um premio, a
não ser minha presença nos momentos de
contricção e de arrependimento como este.
Regosija-te! Eu sou a companheira dos
puros e dos que se arrependem. És
venturosa, porque me tens ao teu lado ... e
ai daquelles que não me co-
2
18 AS VISÕES DE SANTA THEBEZA
nhecem, e não se deliciaram jamais
com a pureza dos meus encantos.
SANTA THEREZA
Salve, Pai de todos os que choram,
Balsamo para todas as chagas. Allivio para
todas as dores! Salve, tu que mandaste á
tristeza da minha alma este grande
consolo! Rouxinol que enches de
harmonias o chãos das almas e transformas
em ceo o luto dos corações. Salve!
(Dirige-se ao leito, reza, e adormece...)
II
O mocho
(Hora das matinas... No céo, o sangue
da madrugada . . .
Medrosa, desaparece a lua. . . Apa-
gam-se, uma a uma, todas as estrellas. . .
As nuvens lembram corvos en-
sangüentados com settas candentes no
flanco. Os ninhos estão acordados e nas
flores brilham ainda as gottas do orvalho,
como si ellas tivessem chorado muito
durante a noite. . .
Ouve-se o toque do sino que chamam
as freiras á oração. . . Estas, en-
20 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
voltas nuns compridos vestuários escuros,
resam em côro. . .
Terminada a prece habitual, Santa,
Thereza se dirige á sua cella mergulhada
ainda numa penumbra indecisa e queda-se
a scismar. . .
Ao olhar para a cabeceira, do leito dá
com um môcho hediondo e negro que a
fita. . .)
SANTA THEREZA (olhando o môcho).
Quem és?
O môcho continua immovel, fitando-a
friamente.
Quem és tu. que vens roubar-me a
tranquillidade, perseguindo-me com este
olhar penetrante que me dóe como se fosse
um latego de fogo batendo sobre mim?
Donde vieste? Porque me fitas tanto e não
respondes ás minhas
SANTA THEREZA
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 21
perguntas? Immovel, á cabeceira do meu
leito, furas-me com esses olhos redondos e
maus, sinistros e apavorados. . . Teu
silencio exprime tudo. . . Olhando-me,
poes-me núa, mordes-me toda como a um
cadaver os vermes famintos. . . Quando te
vejo, soffro muito e é em vão que procuro
distrahir-me e esforço-me para esquecer-
te...!
Não me largas mais. . .
Levas a fitar-me o dia inteiro, mudo
como estas alvissimas paredes que nos
cercam, frio como o vento que sibilla
surdamente lá fora. . .
Pareces-me um algoz, mas um algoz
cruel que não me mata duma vez, um
algoz que se contenta, matando-me aos
poucos.
Teu olhar é um veneno fluido que me
enche de raiva e aborrecimento. És a
penitencia de minha alma. Tua presença
me asphyxia.
22 AS VISÕES DE SANTA THEKEZA
De longe como estás retalhas meu
coração. . . porém, o retalhas com os olhos.
Por Deus, responde-me: Qual foi o
mal que te fiz para me fazeres tanto mal?
(O môcho continua mudo, fitando-a
calmamente).
SANTA THEREZA
Meu Deus? a presença deste agoureiro
hospede é a maior tortura para mim. Por
causa delle, não vejo belleza alguma no sol
que rompre além á semelhança de uma
galera carregada de ouro que uma explosão
deslumbrante incendiasse transformando-a
naquella enorme avalanche de brazas, que
é uma apotheose á terra.
Olho para as nuvens, sangrentas como
aguias feridas, para os campos
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 23
constellados de flores e de ninhos, para as
borboletas que parecem estrellas errantes,
sinto a viração matutina afagar-me,
desperta em arminhos invisiveis e leves,
reso pedindo um lenitivo á minha angustia
motivada pela presença deste passaro
satanico, porém nada disto faz com que
elle me deixe socegada, no retiro deste
convento.
Se olho o papoilal da aurora, as
nuvens, os campos, acho tudo isso incolor
e, ao voltar a cabeça, encontro-o a fitar-me
ironicamente como sempre.
Oro, ajoelhada ante o altar, as mãos
cruzadas numa prece fervorosa em que
peço a Deus e á Virgem Maria para
livrarem-me desse horripilante
companheiro que me fita com insistencia,
cheio de maldade e covardia . . . porém, se
levanto a fronte, sinto cahir pesadamente
sobre mim a
24 AS VISÕES. DE SANTA THEEEZA
bruma carregada e intensa do seu olhar.
Procuro lêr, mas não posso . . . não
posso escrever, nem mesmo posso me
recordar da existencia passada porque este
môcho feroz me preoccupa, me subjuga,
me pisa.
Se ao menos falasse, me dissesse quem
era, donde vinha, o que queria de mim,
talvez a minha dôr fosse menor.
Mas, assim, inclemente e impassivel
como um envenenador, traiçoeiro como
uma cobra . . . Quando o vejo, penso que
meu leito se transforma em um tumulo. E
quem sabe se não veio dum tumulo?
Quantas vezes não piou nas galhas dos
cyprestes, confundindo os seus gemidos
com os uivos da ventania ?
E de que túmulo teria sahido? Do
tumulo duma creança ? Do tumulo dum
AS VISÕES DE SANTA THEREZA
25
velho? Do túmulo dum assassino? Foi
com certeza de algum sepulchro mau
que elle sahiu ...
Mesmo parece que em seu corpo está
incarnada a alma dum assassino que,
abrindo a campa, fugiu numa noite
medonha para perseguir-me.
Dentro dos seus olhos ha fogos-fatuos,
gritos e crepes.
Parece um idolo selvagem coberto de
cinza e pó.
Ao vel-o, tremo como um prisioneiro
que vai ser degolado . . .
Sinto calafrios, apertos no coração,
tremores na cabeça; os olhos se me tornam
inertes e baços e as mãos cahem-me
fatigadas.
As vezes examino-me, apalpo bem os
pulsos e os pés para certificar-me de que
não estou acorrentada.
Depois então me lembro que é minha
alma que está acorrentada ao
26 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
olhar deste martyrisador, preto e feroz,
que, de azas encolhidas e olhos abertos,
me queima, pouco a pouco,
dolorosamente...
Produz em mim o mesmo effeito dum
caustico no peito duma creancinha
moribunda.
E não ha nada que diminua esse
horrivel soffrimento.
Antigamente eu levava os dias inteiros
a conversar com aquella pomba innocente
e lactea que me estimava como a uma
filha.
Depois das resas, ella me apparecia a
rir, batendo as azas, como se me não visse
ha muito tempo.
E vinha e pousava-me no hombro,
falando-me em cousas santas e acariciava-
me, illuminando o meu coração com raios
pallidos de lua e fulgores coruscantes de
sol. Nas pennas trazia aromas
desconhecidos, aromas proprios
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 27
talvez das flôres celestes o della, que
também era uma flor.
Uma espiral de incenso se lhe evo-
lava, constantemente do corpo, que pa-
recia modelado em marfim.
Com o apparecimento desse intruso,
foi se esquivando, se esquivando cada vez
mais. . .
Ha dias em que a não vejo. No em-
tanto, quando eu era pequena, nunca me
abandonava, e assim que senti morder-me
o desejo do primeiro peccado,
desappareceu para fazer-me visitas es-
paçadas que foram se rareando. Hontem, á
noite, depois de um grande
arrependimento, me pousou no hombro,
consolou-me, fez-me dormir. A sua visita
alegrou-me tanto! . . . Que immenso pesar
não senti quando acordei e soube que a
minha boa amiga tinha desapparecido,
sendo substituída por este sinistro inimigo,
que me cili-
28 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
cia a alma sem piedade alguma. Um
presentimento implacavel diz-me que nunca
mais tornarei a ver a minha saudosa
consoladora.
(Dá um profundo suspiro... Inclina a
cabeça tristemente, scismando. Tem no
rosto uma suave expressão de melancholia.
Parece uma violeta prestes a morrer. . .
Olha vagamente para tudo que lhe fica em
torno, á semelhança duma cega que de-
repente visse a luz e ficasse embevecida.
Espia pela grade da rotula para fora: O
sol refulge pomposamente no concavo do
céo que se veste de galas... Grandes nuvens
desformes correm no espaço como ondas
de chammas que o vento empurrasse.
Ha uma alegria communicativa por
tudo. . . A luz solar despedaça-se em
crystaes faiscantes, divide-se em
AS VISÕES DE SANTA
THEREZA
29
faíscas multicores para cobrir a terra com
um manto de rainha.
Muito além, realçando sobre o tapete
da relva, se levantam arvores carregadas
de fructos o de ninhos. Parecem cathedraes
pintadas de verde. Subito, um gorgeio
limpido e alto se ouve. O rosto de Santa
Thereza toma, então, uma formosa
expressão de contentamento. O môcho
desapparece da cabeceira do leito).
Meu Deus, como me é grata nesse
desterro ver arvores e ouvir ninhos! Como
eiles cantam! Que agradável que é a sua
musica!
Parece-se ás vezes com o grito das
creanças, outras vezes com o soluço dos
velhos.
Dir-se-ia uma miscellania de beijos,
queixumes, prantos, supplicas e gar-
galhadas. Penso que dentro delles se
escondem pequeninas lyras de cyrstal
30 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
que o vento tange, tymhanos de oiro
que o sol fere ... e os passarinhos são
como violinos de velludo vibrando no
azul.
Lá está um casal de rouxinoes. Lembram
dois noivos. . . Como se animam, espanejando
as azas, unindo as cabeças na extremidade
daquelle ramo que estremece, dobrando-se e
elevando-se a cada movimento delles.
Levem estar neste mutuo galanteio desde que
despertaram. O ninho talvez ainda esteja
quente . . . e elles, mirando-o
;
hão de se
lembrar do modo pelo qual o fizeram: Da
palha que foram buscar muito longe, num
matagal cheio de espinhos onde não corria um
veio de agua . . . Das folhas cheirosas que
arrancaram duma arvore secular e tristonha em
que se abrigaram repletos de amor e
languidez... dos gravetos que apanharam nos
campos
AS VISÕES DE SANTA THEREZA
31
*
e. depois, das pennas que arrancaram dos
proprios corpos para encobrir-lhe as fendas
e tornal-o mais confortavel. Também hão
de se lembrar daquella terra vaporosa em
que a femea se sentiu fecundada sob uma
arcada de folha e foram muito distante para
beber agua dentro duma concha côr de rosa
que parecia um ninho cheio de lagrimas...
das excursões pelos jardins em visita aos
pés de myosotes, que eram como creanças
vestidas de azul, e os jasmineiros que eram
como virgens vestidas de branco. . .
daquella vez em que foram, ao pôr do sol,
cantar pelos vinhedos, cujo perfume
embriagava, e sugarem o mel da mesma
uva, pousados no mesmo ramo... das ma-
nhãs saudadas num canto unico, dos prados
percorridos num só vôo... da angustia
sentida por um delles pela demora do
outro, julgando-o morto ou
32 AS VJSÕES DE SANTA THEREZA
prisioneiro, e do furor com que partiu,
celere qual uma flecha rompendo o espaço,
á procura do companheiro que voltava
trazendo no bico uma flor de mel
saborosissimo para sugarem-na
juntamente.
Agora pensam nos filhinhos que em
breve se implumarão para os acompanhar
aos bosques e se reproduzirem, sentindo
então o mesmo goso que elles sentem hoje.
E. agasalhados como duas flores num
galho ou duas petalas de uma flor, talvez
projetem um passeio á coluna que alem se
ergue risonha e victoriosa como uma
princeza.
Assim que o sol estiver mais ardente,
partirão: darão uma volta por aquelles
sitios pousarão no telhado duma casinha
construida bem no cimo da collina,
comerão daquellas fructas que de maduras
parecem cahir, acari-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA
33
ciarão aquellas flores lindas e immoveis
como borboletas paralvticas, irão beber
agua numa fonte que se despenha em
maravilhosa promiscuidade de cores, á
maneira de um cofre aberto derramando
continuamente rubins, perolas, topasios,
diamantes, amethistas, fios de ouro em pó,
ondas de prata liquida. . . cantarão no alto
dum magestoso carvalho desdobrado em
palio sobre as hervas rasteiras; pousarão
num alpendre do flôres doiradas que daqui
não vejo . . . depois . . . depois voltarão aos
ninhos, irradiantes e festivos, cantando,
cantando.
Ahi dormirão serenamente, ao brilho
esmaecido da lua . ..
E amanhã, e depois, e em quanto
viverem, serão sempre carinhosos,
gosando uma felicidade sem limites.
Como não devem ser gratos a Deus
3
34 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
que os fez tão ditosos, tão puros e lan-
guidos!
Os cantos entoados ha pouco pelos
ninhos eram com certeza uma resa em
acção de graça a bondade daquelle que
proteje tanto as aves.
E assim vivem, sustentando-se de
flôres e de beijos, essas joias errantes,
esses namorados eternos, acolhidos, dois a
dois, nos frouxeis perfumados e mornos
dos seus pequeninos lares.
Todas as manhãs se entreabrem
milhões de bicos num só idyllio, no idyllio
sacratissimo do amor a que todos têm
direito, menos nós, menos eu, enterrada
viva entre essas paredes caladas. Não sei
mesmo porque Deus me faz assim infeliz!
Porque, tendo eu uma carne tão
cheirosa, me condemna á sombra e á
solidão, onde, chorando, assisto ao em-
AS YISÕES DE SANTA THEREZA
35
murchecimento vagaroso da minha
mocidade!
Para que tenho uns cabellos tão longos
e uns seios tão brancos?. . . Se jamais haveria
de ser beijada, porque me deu uma boca e
encheu de labaredas meus olhos?
Ardem-me dentro do coração crateras
que deviam ser extinctas e ainda não o são,
brazas cobertas de cinzas e que revivem mais
inflammadas ainda, ao menor sopro.
Porque nao nasci disforme, para ao
menos não me julgar com o direito de ser
amada?
Porque meus olhos enxergam, se choram todas
as vezes que querem ver aquillo que nao devem
ver?
Antes nascesse sem juizo, porque nem a
minha cabeça pensaria no que não devia
pensar, nem meu coração desejaria o que
jamais poderei gosar.
36 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Sou como um viajante faminto e
sedento caminhando para chegar a uma
terra abençoada onde ha fontes frescas e
pomares virentes. . . Apressa os passos, e á
proporção que anda, vê irem-se affastando
as fontes e os pomares, ate que afinal cahe
em meio da estrada, ensangüentado e
ferido, olhando anciosamente o cubiçado
paiz que foge e se some muito ao longe,
em uma tenuissima poeira de luz.
Meu Deus! parece-me que te es-
queceste de mim. . .
Abandonaste-me como o vento que
sacode as arvores, arranca-lhes as folhas, e
vai. . . e não volta mais! . . .
Qual a causa deste abandono! Por
ventura existirá alguém mais dedicado que
eu pela tua gloria?
E, se é assim, porque me recusas o que
não negas aos outros?. . . Porque. . . meu
Deus, perdão! Sou uma
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 37
inconsciente perseguida por um eterno
pesadello. . . Sinto cahirem-me dentro da
alma avalanches de bronzes. . . Piedade !
Clemencia para mim, a mais pec-
cadora de todas, para mim que traio o voto
jurado e chafurdo-me na lama dos desejos
brutaes! . . .
Perdão, Deus misericordioso, meu
unico amor, minha esperança unica !
Ha um genio mau que me persegue .. .
Perdão! Sou innocente como as abelhas
que matam as flores sem saberem o que
fazem . . .
Tenho luctado muito, para ver se
apago dentro em mim essa maldita
chamma . . .
Mas é em vão que procuro extinguir o
fogo o purificar-me com a execução de
alguma ideia nobre!. . .
Debalde queimo as carnes, rasgo os
braços, apunhalo os seios entu-
38 AS VISÕES DE SANTA THE REZA.
mescidos dum sangue venenoso o lascivo...
Perdão ! Eu sou fraca demais !. . .
(Com o semblante pesaroso e os olhos
annuviados, despe a longa camisola,
deixando as chagas descobertas... Aperta
com os cilicios os hombros en-
sangüentados e os seios palpitantes ainda...
O contacto do arame sobre a carne viva
produz contracções dolorosas no corpo
desmaiado da freira. . . Dir-se-ia que as
proprias chagas gemem . . .
Lembra uma rola a que se arrancassem
as pennas . . . Seus olhos parece que foram
pisados, tamanha é a tristeza delles...
Separa de novo o vestuario, deixando
sobre os seios o cilicio pungente . . . Pesa
por algum tempo . . . Pára e espanta-se
como se estivesse vendo alguma visão
aterradora . . . Subitamente, apparece o
mô-
AS VIÕES DE SANTA THEREZA
39
cho á cabeceira do leito. (Santa Thereza
fita-o e recua).
Santa Maria cheia de graça, condoe-te
desta misera, que soffre como ninguem
soffreu ainda!
Os martyrios infringidos aos christãos
pelos bárbaros nada são, comparando-se
ao meu.
Tem pena de mim! Santa Virgem
Maria, tem pena de mim ! Livra-me das
ideias profanas que tanto me perseguem,
como também deste amaldiçoado passaro,
cujo olhar é um azorrague para minha
alma.
Sabes quanto tenho luctado por lvrar-
me delle, porém, até hoje todo meu esforço
tem sido inutil. Porque tão grande castigo
para quem não o merece? Não vês como
tremo na presença deste môcho? Expulsai-
o para bem longe, minha Nossa Senhora!
Tem pena de mim, Santa Virgem Maria!
40
AS VTSÕES DE SANTA THEREZA
Tem pena de mim!
(Ajoelha-se de novo, rezando... Ha um
choro celeste e suave no seu olhar
doentio... estremecimentos constantes
movem-lhe o corpo ciliciado . . . Tem a
lividez morbida de quem é tentada por
sonhos irrealisaveis . . . Olhando so para
ella, vê-se logo que passa noites em claro ...
Sen olhar merencoreo obrigaria a rezar,
qualquer que o enfrentasse . . . É doce
como uma benção, incomprehensivel como
um suspiro . . . Assim deveria ser o olhar
de Maria Magdalena aos pés da cruz . . .
Em torno, um completo silencio... O
môcho, pousado á cabeira do leito,
continua a fitar insistentemente a face
macerada da santa.
Esta, depois do alguns momentos de
abstracção, se ergue para apertar mais o
cilicio ...
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 41
As feridas choram sangue... E, em meio
de tanto desconforto, a figura de Santa
Thereza se levanta magestosa, recta,
illuminada e sublime, como a de uma
enviada do céo, glorificada pela dôr,
divinisada pelo martyrio . . .)
III
O Radjah
O sol em pino doira os telhados das
casas e incendeia as arvores, despenha-se
uma catadupa de labaredas sobre a terra
abrazada... Não se ouve o canto dum
passarinho, nem o ruído duma aza ...
A aragem, abafada, talvez, fugiu para
bem longe . . .
Inexplicavel torpor invade tudo e tudo
domina . . .
Chovem pedrarias incandescentes na
amplidão deslumbradora, como lan-
44 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
ças inflammadas na cabeça duma rainha. E esta
riqueza triuraphante e magnífica penetra
explendorosamento na cella de Santa Thereza,
clareando-a toda... O mocho foge, insensivelmente.
Uma alegria subita povôa o modesto aposento,
que se transforma num palacio oriental cheio de
crystaes accesos.
Os olhos da santa abrem-se, extasiados . . . Suas
faces tingem-se duma côr quasi rosea e sadia. . .
Abre ainda mais os olhos vendo dirigir-se para ella
um radjah possante, de constellações no olhar e
alvoradas coruscando nas vestes ... Os cabellos delle
ardem e são cheios de estrellas, as suas mãos são
brandas e trescalam a jasmins ...
Sustem o sceptro nos dedos e um céo no olhar . .
.
Quando caminha, deixa atrás de si um rasto de
coriscos. .. Quando fala,
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 45
se ouve um hymno triumphante que
faufarras estridulas entoam. Conta
aventuras extranhas. Veio de longe,
dum paiz azul, onde as águas são mais
crystallinas e as mulheres mais volu
ptuosas ...
Foi numa tarde de verão que. aban-
donando as favoritas cheirosas, partiu
num batel feito de sandalo. para estas
plagas . . . As velas de seda da luxuosa
embarcação impelliam-n’a
vertiginosamente sobre as águas placidas
. . .
Já ia bem distante de seu paiz natal e
ainda ouvia os soluços intensos das
amantes, que choravam desgrenha-das,
desconfiando de sua ausencia. E o batel
singrou, cantando por mares de
esmeraldas e lagos de saphiras . .. As
sereias fugiam, assombradas, e
acompanhavam a esteira argente a da
maravilhos a embarcação, humildes
46 AS VISÕES DE SANTA THERESA
como escravas, supplicantes como
mendigas...
À noite, abriam alas para poder
passeiar livremente pelo céo a nebulosa
do seu olhar sumptuoso. . .
As brisas iam contar ás ondas a
historia phantastica desse amára que
ouvira dez mil mulheres e mandara
decepar cem mil cabeças.
E as ondas calavam medrosas, e a
brisa tiritava em torno da sua fronte
altiva. . .
Viajou durante duzentos dias e
du-zentas noites, tão longe é a terra
em que nasceu e se fez radjah. . .
E uma saudade profunda amor
talhou os logares que o viram passar
uma vez, para nunca man o verem. . .
E um desespero infernal
envenenou as almas das que o amaram
com ardor e foram ligeiramente
amadas por elle. . . Todas morreram
esvahidas
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 47
e exangues pouco depois de sua partida...
E talvez ainda as ondas perguntem ás
estrellas, se foi morar com ellas o radjah
assombroso que tinha constellações no
olhar e alvoradas irradiando no manto; que
sustentava um sceptro na mão e esmagara
corações com os pés flammejantes. . .
E as estrellas não responderão, porque
ninguem sabe para onde foi o radjah. . .
Podem pensar, porém, que foi visitar o
sol, que não é rico e poderoso como elle. A
face de Santa Thereza resplandece com
muito mais intensidade.
Está deslembrada, á semelhança dum
verme que de repente se visse
transformado em uma, estrella...
Ri, avança, abrindo os braços ao
imaginado radjah, que veio de longes
terras para visital-a e gozal-a. . .
48 AS VISÕES DE SANTA TEEREZA
Ajoelha-se, querendo beijar-lhe os pés
cravejados de pedrarias extranhas,
scintillantes como olhos de anjos...
Torce-se, corre, e delirante dá beijos,
fala, geme, uiva, gorgeia, insaciada e
frenetica, segura e feroz.
Sua carne arrepiase toda, embriagada,
quente, palpitante. . .
De tão duros, os seios parece que vão
rebentar em uma explosão luxuriosa . . .
arranha os braços, morde-se, fecha os
olhos, abre-os de novo, tomada de um furor
irreprimivel. Atira-se ao leito pesadamente
a modo de uma pedra enorme que viesse do
alto . . .
Revolve-se, revolve-se muito... depois
abranda um pouco esta volupia, cerra os
olhos e sonha:
Terra do Oriente . . . Céo limpida-
mente azul onde rutila um sol fascinante ...
AS VISÕES DE SANTA THEREZÁ 49
Longe, levantando-se entre morros, um
palacio vasto magestoso, claro . . . Em
torno delle arvores collossaes,
amphitheatros espaçoso, galerias que se
unem além. O silencio é perturbado pelo
rugir das feras enjauladas e pelo cantar
cadenciado das escravas . . .
No jardim explendoroso, que lhe fica
em frente, reacendem flôres exquisitas e
passeiam pavões.
Guardas ricamente vestidos em todas
as partes ...
Num salão cheio de diamantes res-
plandecentes, onde se pisa em tapetes
finissimos e cujo tecto de arabescos
aureos foi feito por architectos vindos
de regiões remotas, está em altissimo
throno, — um radjah formoso, como o sol.
As purpuras que ensangüentam as
paredes desmaiam ante seus labios, e
50
AS VISÕES DE SANTA THEREZA
os marmores dos portaes são menos
alvos que seus dentes ...
Os cabellos avelludados lembram
rarissimo barrete de gorgorão que uma
sultana mandaria sem desar algum de
presente ao mais vaidoso sultão . . .
Mulheres abanam leques multicores em
torno delle, orgulhosas de serem escravas
de um senhor tão invejavel . . .
A mirra que arde nas caçoulas ca-
prichosamente cinzeladas, deve ser menos
cheirosa e entontecedora do que a sua
carne robusta.
De repente, luminoso e viril, levanta-
se e dirige-se a uma alcova attrahente
como um paraizo.
Lá o espera uma virgem pallida e
tentadora, uma mulher que nunca foi
amada e vai sel-o agora pela primeira vez.
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 51
Guardas, de alfange ao hombro, zelam a
entrada.
As escravas já queimaram proposi-talmente
aromas provocadores, para excitar a luxuria . . .
Uma atmosphera morna, cheirando a seios,
faz com que os olhos de ambos caiam
languidamente ...
Escondido sob cortinas de fazendas
carissimas, espera-os um leito carinhoso e
macio, que os recebe sorrindo .. .
. . . . . .
Quantos estremecimentos, quantas
vertigens não occulta o véo delicado das
cortinas ondulantes!
Parecem até animados ao contacto febril de
dois corpos que se apertam de duas boccas que
se beijam.
De fóra, ouvem-se as pulsações, os
fremitos, os grunhidos exhalados da alcova
onde eíles estão . . . E Santa.
52 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Thereza, no enthusiasmo do sonho, retorce-
se em convulsões allucinadas.
Beija furiosamente o amante imaginário,
que lhe suga os labios desa-brochados e
frescos . . . A sua physionomia nem sempre
tem a mesma expressão.
Ora é radiante e outras vezes agitada e
inconsciente, segundo o arrebatamento do
delirio, que é como um rio vindo de muito
longe, aqui placido, correndo entre bambus e
arvores frondosas, mais adiante carregado e
crespo, convulsionando-se sobre as rochas e
despenbando-se do alto com um fragor
horrivel. O sonho continua . . .
. . . . . .
Ambos levantam-se do leito, vão ao
jardim e depois,se dirigem ao logar onde
estão as feras. Leões raivosos appa-rccemna
grade das jaulas, escancarando, os olhos,
ericando ajuba ameaçado-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA
53
res... Elephantes horriveis passeiam
distrahidamente de um para outro lado;
serpentes furta-cores, que se enroscam
preguiçosas elevam a cabeça achatada para
olharem o radjah com a amante . . .
Hyenas, tigres, hypopotamos, todas as
feras emfim avançam, berrando si-
nistramente. De subito, surge o domador;
abre uma das jaulas e della foge uma fera
hedionda. Arremette-se contra o radjah e
arranca-lhe a cabeça, que evola scintillante
de pedrarias e de sangue.
Santa Thereza dá um grito e desmaia.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Fora o sol doira os telhados das
casas e incendeia as arvores firmes e
erectas como esqueletos vestidos de
chammas.
IV
O velho castanheiro
— Santa Thereza está dolorosamente
triste. As penitencias continuas
maltrataram-na tanto que nem mesmo pode
ficar em pé por muito tempo...
Os olhos estão fundos de chorar...
Parece uma viuva que perdesse o marido
na segunda noite do casamento...
Deve inspirar compaixão até ás
proprias rochas .. .
Um crepe mysterioso envolve-a da
cabeça aos pés, como uma tunica som-
56 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
bria ... De quando em vez abre a boca para
falar e não ouve o que diz. . . Pensa em
morrer . . .
Vê um caixão branco, cheio de rosas e
dentro, de mãos cruzadas, uma freira. . .
Em torno, as companheiras de con-
vento, rezando ... Á cabeceira do esquite a
imagem de Christo com os braços abertos
para chamal-a, talvez. Depois a levam a
uma sepultura muito fresca
e pequena, onde
fica dormindo eternamente. Empallidece e
chora...)
Não sei porque não
morri logo ao
nascer. . . Soffreria muito menos . . . Todos
os dias choro, velo todas as noites . . . Não
tenho um só momento de descanço era
minha vida ...
De hontem para cá soffri como
ninguém soffreu . . . Por isto todos notam
uma grande differença na minha
physionomia . . . Envelheci, nestas pou-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 57
cas horas, vinte annos. As allucinações
diabolicas que tive, as penitencias
reparadoras, esse môcho que sempr, me
acompanha, como um espião covarde, tudo
isto me reduziu o corpo a um farrapo, a
alma a um pantano... Antes morresse agora
mesmo . . . Como estou linda naquelle
caixão branco, tão perfumado como um
berço, tão
aquecido como um ninho! . . .
As mãs finas e frias postas em
cruz sobre o peito.
O rosto empallidecido, vestida de
roupagens alvissimas, pareço uma Deu-
sa envolta em espumas. Vou a um fu-
nebre noivado, de palma e capella,
tranquillidade nos olhos, sorriso na
boca. As velas que ardem em torno
ao meu esquife e bruxoleiam, parecem-
se com as minhas illusões, que tam-
bém se consumiram devido ao fogo
que as alentava. . .
58 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Christo erguido na cruz, com seu
resplendor de prata, abençoa-me e ha de
guiar-me até o céo, que se illumina para
me receber.
Como as outras irmans resam!
Que sinceridade na sua oração ! Estão
pedindo pelo descanço eterno de minha
alma a Deus, Todo Poderoso, a quem tanto
amei e que não me negará as delicias do
paraiso.
Meus conhecidos terão saudade de
mim, e meu irmão ha de chorar todas as
vezes que se lembrar da irmã, ausente para
sempre.
Os homens falarão no meu nome com
respeito e esta cella será venerada, porque
nella morei e martyrisei-me emquanto
vivi...
Assim que o sino tocar, serei car-
regada, entre lagrimas, e depositada numa
sepultura muito nova onde ficarei
dormindo, toda de branco, linda
VISÕES DE SANTA THEREZA
59
como uma noiva! Depois, encher-me-ão a
loisa de flôres, e permanecerei sósinha, feliz,
cheirosa, casta, dentro do leito que me
aguarda.
Mais tarde, quando alguém visitar estes
logares, terá certa veneração por mim, pela
minha amargura infinita... Estes sitios serão
interrogados como o é hoje aquelle velho
castanheiro, sob o qual tantos namorados se
beijaram. . .
Na sua magestade, elle conta-nos
historias bem emocionantes, romances bem
pungentes. . . Hoje está um pouco
enfraquecido.. . mas também já tem vivido
tanto!
Não cantam ninhos entre seus ramos e,
embora reverdeça em todas as primaveras, é
sempre austero, mergulhado numa
concentração melancholica.
Ninguém sabe a época em que bro-
60 AS VISÕES DE SANTA THEREZA.
tou á superfice da terra . . . As pessoas
mais velhas, da cidade, quando se.
entenderam já o acharam nesse mesmo
estado.
Viu nascer todas essas outras arvores, e
morrerem muitas, assistiu á edificação deste
convento e ao enterro de todas as freiras,
que já se foram . . .
É o patriarcha do logar. Impõe-nos um
profundo respeito com essa austeridade
solemne que tem . . .
E como se vissemos a casa onde nossos
paes nasceram e expiraram nossos avós.
A viração acata-o reverente e, assim que
parte alguém para o cemiterio, elle chora
talvez de pezar, talvez de alegria. O sol
doira tudo, menos a coma do envelhecido
castanheiro, e a lua, quando se esbate em
suas ramas, fica mais transparente, mais
diaphana... Viu os amores de muitos,
jo-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 61
vens e depois assistiu aos dos filhos
ílestes. . .
Talvez tivesse presenciado hoje a
paixão dum galante casal, cujos netos hão
de se amar também á sua hospitaleira
sombra, muitos annos depois.,.
Nelle se implumaram e morreram
milhares de aves, desabrocharam e fe-
neceram milhões de flores ...
Já testemunhou innumeras vezes o
raiar do sol e ha de contemplar outras
tantas vezes o surgir da lua . . .
Conserva-se inalteravel, sempre com a
mesma severidade, quer na primavera,
quer no inverno . . . Nunca ri, nelle jamais
gorgeia uma andorinha. Parece feito de
pedra, tão insensível é . . .
No emtanto, dizem que antigamente
era todo constellado de ninhos e de flores.
Embalsamava os arredores com seu
aroma... De manhã cedo, havia
62 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
uma orchestra a cantar-lhe pelos galhos
floridos e verdes. Isso porém se dava
antigamente... Não se sabe ao certo a causa
desta subita mudança. Correm lendas sobre
o extranho phenomeno :
Dois jovens esposos que se idola-
travam, costumavam conversar todas as
tardes em baixo de sua copa frondosa . . .
Uma vez um delles riscou no tronco os
nomes dos dois, entrelaçados um no
outro...
A arvore cresceu muito mais e fez
rebentar flores sobre os traços gravados. . .
Os esposos, porém, com o perpassar do
tempo, foram envelhecendo, até que um
dia a velhinha morreu. . . O companheiro
lhe abriu a cova sob o castanheiro, que
sabia toda a historia dos seus amores e
tinha sido a tes-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 63
temunha unica dos seus arrebatamen-tos. . .
No momento em que o cadaver da anciã
foi-lhe depositado junto á raiz, elle ficou
mudo, sem flores e sem ninhos, os ramos
curvos para o solo tremendo. . .
Rapidamente os passarinhos o
abandonaram e elle ficaria só se não fosse
o velhinho, que nunca mais se affastou do
logar onde estava enterrada a eleita do seu
coração. . .
Todas as tardes, ás horas do costume,
tropego, amparado a um bordão, cabeça
alva como um gorro de neve, mãos sem
tacto, apalpando plantas, lá vinha o
desgraçadinho viuvo chorar sobre o jazigo
da esposa querida, que o amara tanto.
Uma noite o anciãosinho não voltou a
casa; foram procural-o e encontraram-no
morto junto ao sitio em que
64 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
estava sepultada a saudosa
companheira.
Enterraram-no immediatamente
naquelle logar e a lua assistiu-lhe
áinhumação e inundou-lhes as sepultu-ras
de luzes. . . Desde então o castanheiro
ficou assim pensativo chorandofolhas
sobre os tumulos dos seus antigos
visitadores, que nunca mais verá. . .
Ás vezes parece ate que vai rezar
e estende piedosamente os galhos como a
pedir clemencia pelas almas daquelles que
dormem junto ás suas raizes, sobre as
quaes tantas vezes se beijaram.
Nas noites de lua — dizem todos, —
quando no sino batem doze badaladas, elles
são vistos conversando dis-trahidamente em
baixo da arvore, que
se accende e enche-se de ninhos. . . Eu
nunca vi. . .
Lembro-me agora que uma vez
#
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 65
cheguei a vel-os. . . porém fechei logo os
olhos, tão grande foi o meu mêdo... Por
isso não gosto de espiar para fora, quando
a lua explende. . .
Desde esse tempo, a sepultura dos
lendarios esposos é o ponto preferido pelos
namorados. No annoso tronco do
castanheiro estão escriptos centenas de
nomes de que hoje restam simplesmente
vestigios.
Muitos já foram totalmente apagados, e os
que ainda se notam serão em breve
substituidos por outros. Ha pouco tempo foram
vistos ali, abraçados e de frontes unidas, dois
amantes chorando. Não se deixaram conhecer,
nem voltaram mais ao poetico retiro. Julga-se
serem foragidos de outras regiões que,
passando por aqui, desejaram conhecer o tão
celebrado castanheiro, continuando depois a
viagem interrompida.
5
66 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
O que não se pôde explicar é o motivo
porque choravam. Parece até um absurdo
misturarem-se prantos ás caricias...
Ninguém soluça quando é amado e ama.
Venero religiosamente um mau-soléo
erguido pela natureza a dois esposos que se
idolatraram durante a existencia, e talvez
continue no mesmo arroubo na morte. Sua
vida tem muitos pontos de contacto com a
minha.
Ambos fomos ditosos: elle teve flôres
e ninhos: hauriu perfumes o escutou
musicas, hoje tem saudades e gemidos ...
eu tive crenças e tive sonhos: em meus
labios cantaram risos e em meus olhos
fulgiram esperanças, hoje tenho queixas
nos labios e lagrimas nos olhos. . .
Existe, porem, uma grande differença
entre nós dois: elle protegeu amores e por
isso, é, foi e será amado;
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 67
eu ... eu sempre fui esta que hoje sou,
indifferente a todos e a tudo, embora
sequiosa e faminta, elle floriu, pelos seus
ramos correu e ainda corre a seiva que o
alenta, eu fui sempre intacta e esteril, sem
ter jamais um dia de satisfação completa.
Quando o vejo, fico mais consolada; sua
figura tristonha anima-me ás luctas, como
tenho feito até agora.
Nos dias como o de hoje, em que me
sinto perseguida pelo môcho e tentada pelo
peccado, depois de ter usado e queimado os
seios, em reparação ás minhas faltas, só me
julgo perdoada ao deparar com o meu amigo,
o martyr que tem soffrido tanto, resignado,
calmo, impassivel. Elle me diz. em sua
linguagem muda, que devo luctar, sem
esmorecer .. . Então me experimento com
forças bastantes, para realisar a idéia que a
lento ha tanto tempo,
68 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
embora me sacrifique inteiramente e seja
tardia esta ventura.
Hei de destruir todas as barreiras
antepostas ao meu caminho, para, no
futuro, ver feito realidade o meu sonho. E
isto será a minha rehabilitação aos olhos de
Deus, a quem tenho offendido muito.
De agora em diante, tu serás o meu
guia, meu conforto, apostolo consolador
que me enches o desterro! Ensinar-me-ás a
esquecer este môcho que ha tanto tempo
me cilicia com o olhar; a conter os impetos
de minha carne hoje victoriosa, amanhã
vencida e algemada. Comtigo aprenderei e
terás em mim um adorador, porque me pa-
recem que em teu ar solemne e mys-terioso
anda a alma de minha mãe procurando
desimpedir a tortuosa estrada, que tenho
em frente a mim.
(Ouvem-se os sons dos sinos cha-
AS VISÒES DE SANTA THEKEZA 69
mando as freiras para rosarem as Ves-peras
. . . Santa Thereza, commovida e terna,
sabe da cella . . . deixando-a immersa em
desolação completa .. .
O mocho que estivera quasi todo o dia
á cabeceira do leito, desapparece talvez
para acompanhar a Santa, numa
perseguição perpetua . . .
A toada languorosa e plangente da
oração atravessa agora por todas as partes
do convento, produzindo o effeito duma
orchestra a tocar musicas funebres dentro
duma catacumba fechada ou mochos e
corvos grasnando sobre lousas, numa noite
sombria . . .)
V
A Iua
Crespusculo ... Vaga um mysticismo
nebuloso pelo espaço, onde a brisa parece
arrastar véos de noivas e crepes de viuva ...
Nuvens caladas como freiras rezando,
desusam gravemente, envoltas nuns tons
enfraquecidos da luz . . .
Ha o mesmo silencio que se nota no
quarto dum moribundo . .. As vezes até
parece que se ouvem soluços reprimidos
pelo arvoredo e cahem lagrimas sobre o
mundo inerte . . .
72 AS VISÕES DE SANTA THERESÜA
Cantam aves desconhecidas em torno
das casas petrificadas e gelidas, choram
extranhos arroios sob o solo. . .
Uma andorinha gorgeou ao longe. . . e
este gorgeio rompe tranquillamente o ar e
enche-nos todos de um certo temor.
E como subita alfinetada que pungisse
inesperadamente um homem adormecido...
Assim deve ser o choro duma creança sem
pão.
Qualquer som repercute logo em todas as
direcções e estes gemidos successivos
fazem pensar que se está num hospital
cheio de tisicos e variolosos. Lamentações
de filhos vendo os pais agonisantes,
queixas de irmãos se despedindo de
irmans, estrangulamento de aves dentro
dos ninhos, tudo isto é suggerido pela
agonia solemne da luz.
Na amplidão, esfusia agora um
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 73
vento frio, dando a ideia duma oração a
suspirar nos ermos corredores dum
convento enorme. . .
O vento, abranda-se em uma leve
aragem que rescende a benjoim, como se
tivesse passado por grandes lagos, de
aguas cheirosas. . .
Murmura nas folhas, cicia, chora, ri,
entra mansamente pela cella de Santa
Thereza, a modular uma canção muito
sentida.
A sua passagem, o religioso aposento
toma um aspecto vaporoso. Parece encher-
se de rolas brancas e borboletas roxas. . .
Pelo tecto desabrochain violetas e
goivos. . . Santa Thereza está ajoelhada,
rezando. . . Lembra um anjo de marmore
que se animasse... uma santa abandonada
na terra. . . Nunca um olhar foi tão doce e
uma face tão bella... Limpida
resplandescencía de
74 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
ouro circumda-a toda, á semelhança duma
chlamyde transparente e fulgida. . .
Por vel-a rezar, dir-se-ia que o olhar de
Christo se enternece como os das mães,
quando amamentam os filhinhos. . .
Santa Thereza, depois de levar muito
tempo abstracta se ergue e medita. . .
Insensivelmente abre os labios sem cor, e
exclama ,com voz pausada:
«Não me move, meu Deus, para querer-te
O céo que me tens sempre promettido,
Nem me move esse inferno tão temido
Para deixar por isso de offender-te.
Tu me moves, meu Deus: move-me ver-te
Pregado nessa cruz e escarnecido,
Move-me ver teu corpo tão ferido,
Move-me a angustia que te fez inerte.
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 75
Move-me teu amor de tal maneira
Que eu te amára, se o céo não fulgurasse,
E não havendo interno, te temera.
Deste amor a minha alma nada espera
Porque, se quanto sonho não sonhasse,
O mesmo que te quero te quizera.
O original deste soneto é o seguinte:
A CHRISTO CRUCIFICADO
No me mueve, mi Dios, para quererte
El cielo que mi tiennes promettido.
Ni mueve el inferno tam temido
Para dijar por eso de offenderte.
Tu mi mueve mi Dios; mueve-me el verte
Clavado nessa cruz y escarnecido
Mueve-me el ver tu cuerpo tan herido,
Mueve-me las angustias di tu muerte.
Mueve-me enfim tu amor de tal maneira
Que, aunque no hubiera cielo, yo te amara,
Y aunque no hubiera inferno te temera.
76
AS VJSÒES DE SANTA THEREZA
No mi tiennes que dar porque te quiera.
Porque, si quanto espero no esperara.
Lo mimo que ti quiero te quisiera.
SANTA THEREZA DE JESUS.
Continua arrebatada, a fitar a imagem de
Christo. . .
Os ultimos vestigios da luz esmaecem . . .
esmaecem . . . e apagam-se.
Legiões de trevas invadem vagarosamente
a cella, que se veste de luto como uma orphã ...
No céo apparecem as primeiras es-trellas...
Venus scintilla vivamente entre as outras
todas, destacando-se, como uma irmã mais
velha . . . Santa Thereza accende a pequena
lampada que começa a derramar uma luz mor-
tiça pelos moveis á semelhança dos olhares
dum martyr. . . As trevas fogem atropelladas e
opera-se uma verdadeira resurreição na
humilde cella...
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 77
Toda a luz parece convergir sob os rostos
de Christo e de Santa Thereza. As chagas
do crucificado animam-se lembrando
escrinios espiritualisados... A carne da
santa combure a modo de um alabastro
dentro do qual ardessem reptis de fogo ...
Bruxoleia um crepusculo de outono
nos olhos pensativos e quebrados . . . e
talvez seja esta a origem da encantadora
poesia que lhe povoa o aposento. Continua
a falar a meia voz. ora rezando ora
sorrindo, dando a ideia de uma flor murcha
que reverdecesse. Pouco a pouco, uma
esteira do luar entra pelas frestas do tecto
envolvendo o convento inteiro em uma
tunica branca ... A lua aponta no céo,
rodeada, de nuvens e de estreitas.
Santa Thereza eleva a cabeça para ver
o desabroohar da lua ...)
Lá vem a lua! E como vem bonita!
78
AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Que lindo o nimbo que a circumda! Parece
uma rainha prestes a ser coroada! As
nuvens acompanham-na em numeroso
sequito, como se fossem escravos ... O
espaço é o throno onde ella se assenta
rodeada de estrellas qual Nossa Senhora de
anjos, e meus olhos de lagrimas . . .
Suppre-me a falta d'aquella pomba
que irradiava com igual luz e igual
encanto!
Não sei o que sinto quando a vejo
assim vir assomando magestosamente
naquella escadaria azul e vestindo do prata
tudo que lhe fica em baixo. Envolve as
flores em rendas incandescentes e alvas,
caia os rochedos pretos e informes,
cristalina o dorso dos rios illumina as
flores tão impenetraveis, dando-lhes a
sumptuosidade de templo, enche de
affagos os ninhos occultos entre os ramos
das arvores, clareia as
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 79
casas sem lume, é um pharol para os
navegantes e serve de guia aos mendigos
que tremem pelas veredas traidoras
desviando-os dos abysmos, defendendo-os
dos espinhos e das urzes.
Quando a vejo, dobro os joelhos.
impellida por uma força superior e tenho
mesmo vontade de rezar.
Voto-lhe uma grande veneração
porque ella me lembra uma hostia le-
vantada em um altar . . . e o vento nessas
horas é como um coro a entoar psalmos de
agradecimento, e as arvores são fieis que
levantam os braços implorando
compaixão, e o olor dos jardins é o incenso
derramado por milhões de thuribulos . . .
A natureza concentra-se, mal vem
surgindo, entre alas de nuvens o es-
trellas, radiosa e calma, a soberana
de rosto alabastrino e olhares palli-
dos...
80 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
E a eterna confidente dos que soffrem
e dos que amam ...
Seu fulgor enxuga lagrimas e cicatrisa
feridas . . .
Talvez viesse de muito longe a
mandado de Dons para consolar os af-
ftictos e alentar os desesperados . . .
Quantas e quantas paisagens com-
movedoras, que de scenas tristes e felizes
não tem presenciado, fulgurosa,
scintillando na altura !
...Despedidas de filhos, partindo em
busca de riquezas, e desesperos de mães
chorosas e aterradas que temem não mais
tornar a vel-os.
Freiras, como eu, a soluçar enjauladas
no silencio impassivel dos conventos... ou
a lacerar as carnes virgens em disciplinas
terribilissimas...
Marinheiros em pleno oceano, can-
tando canções de sua terra, com a
.#
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 81
guitarra gemedora entre os dedos, e a
saudade na alma.. .
Pastores e camponezes a bailar como
creanças travessas por verem como está
prospera a seara o como os campos estão
floridos... Viajantes, entro cordilheiras e
barrancos, guiando-se por ella para se
livrarem de imprevistos assaltos...
Peregrinos saudosos, pensando nos
filhos que talvez nao se lembrem d'elles...
Guerreiros que de espada á cinta, armadura
ao peito, seguem pensando no ataque em
um valle cheio de poeira, que depois se
encherá de cadaveres...
Prisioneiros a chorar, pedindo que a
noite seja muito longa para terem mais
vida, porque ao crepusculo matutino o
sangue delles se confundirá com o da
madrugada que lhes illuminará as cabeças
decepadas...
6
82 AS VISÕES .DE SANTA THEEEZA
Doidos que, furiosos, gritam e blas-
phemam, ameaçando o céo com o olhar,
ameaçando os ventos com a voz,
ameaçando o mundo com as mãos...
Poetas devaneiando placidamente, ora
sorrindo, ora cantando, ramos de flores nas
mãos, coroas virentes na fronte,
desfolhando rosas por veredas, infinitas e
azues....
Rolas em carreias mutuas, dentro dos
ninhos... Noivos, aos beijos, braços de
um enlaçados em torno do pescoço de
outro, peitos unidos como querendo que os
corações se contundam... Libertinos,
mordendo carnes, embriagadoras e mornas,
sugando os lábios murchos, trincando nos
dentes, seios fanados, comprimindo
lubricamente ao peito faces de mulheres
perdidas, que lhes lançam os braços como
cobras magnetisadoras e lhes entre-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 83
gam o corpo como attrahentes taças
repletas de licores envenenados. A estas
horas a soberana dos espaços deve estar
testemunhando todos esses quadros em
differentes pontos do globo... Sim, está,
mais venturosa que eu, presenceando
beijos escandalosos de rameiras e osculos
apaixonados de noivos, ouvindo phrases
loucas de libertinos e musicas angelicas de
namorados, gargalhadas de luxuria e avel-
ludados gorgeios de amor...
Está vendo isso tudo e ha de sonhar
cousas mais bellas ainda. Talvez sonhe
numa formosissima nuvem côr de lilaz
dois jovens amantes; duas bocas
soletrando o mais formoso canto do
formosissimo poema do amor. Um
cortinado de estrellas esconde-os de tudo
que lhes fica perto... Em torno, um silencio
sepulchral.
Nem a viração ouza profanar a fe-
84 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
licidade que palpita dentro da nuvem
lilaz...
Adivinha-se, porém, que ha algum
celeste mysterio doirando o alado ninho
escondido sob arcadas de astros... Apertos,
beijos blandicias, carinhos, allucinações,
extasis, delirios emfim... Dizem-no a
palpitação desordenada e extranha que se
nota por fora, o calor em que arde o setim
do envolucro... Corre um enthusiasmo
arrebatado por todas as partes... E a nuvem
vai-se transformando... Enche-se e fica,
pouco a pouco, mais clara, mais trans-
parente, mais leve... A principio, a musica
que sahe de dentro, o perfume e o
avelludado della faz parecer que se
metamorphoseia em um ninho... Como que
arruinam pombos em seu interior... A
alteração continua cada vez mais
accentuada e agora a nuvensinha se trans-
figura num chalet azul
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 85
celeste, occulto entre arvores farfa-
lhantes e rodeada de jardins onde passeiam
dois anjos.
Depois se illumina completamente
e_muda-se num grande altar cheio de
luzes, flores e incenso, em que se erguem,
rodeados de seraphins que tangem lyras,
os noivos como dois anjos em uma
apotheose deslumbradora e franca,
acciamada no firmamento em festa.
Corre uma inexprimivel alegria por
tudo e um frenesi delirante invade o céo,
emquanto ao altar se eleva sempre radiosa
e explendida, levando o abençoado par
com um cortejo de estrellas, que
abandonaram a sua rainha para
acompanharem em procissão a gloriosa
nuvem que se alcandora e desapparece
além numa irradiação de alvorada, depois
deste passado triumphante pela galeria
illuminada e branca dã Via-Lactea...
86 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Como te invejo, lua scismadora e
pallida, que surges calcando nuvens, tão
carinhosa e bôa como Nossa Senhora, a rir,
enfeitada em meu pequenino oratorio...
(Hesita, meditando... Depois toma um ar
arrogante, carrega as sobrancelhas, franze
um pouco a testa...)
...Mas de que serve seres rainha si não
podes obter tudo que desejas? Ah! foi para
não poderes compartilhar os gosos alheios,
os prazeres do mundo, que Deus te
collocou tão alto... Porém qual a vantagem
que ha nisso ?!
Presenciar scenas amorosas, assistir a
delicias de outrem, ouvir beijos cantando
em labios de coral como cotovias sobre
papoilas, ver vulcões e incendios
explodirem impetuosamente em olhares
extranhos, arreboes esbrazeando céos de
primavera, e saber que
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 87
não poderá ser amada, que não amará
nunca...
É o mesmo que se nascesse velho e
alquebrado para assistir ao goso dos outros
sem poder usar deste privilegio a que tinha
direito, mas que a fatalidade lhe negou..
Deves soffrer tanto quanto uma
creança muda que vê os outros falarem e
não pôde falar, cantarem o não pode
cantar... Ou como um passaro engaiolado
que vê além, fora da prisão, campinas
verdes, arvores novas, entreabrir de bicos
junto de ninhos cheios, bater de azas ao
redor de flores abertas. . .
Desgraçada! És uma rainha tornada
freira, uma princeza transformada em
mendiga! Tua luz conta-nos a historia do
desespero que tens na alma, a causa do teu
pranto derramado sobre a terra que não te
inveja
88 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
apezar de não ser tão formosa como tu.
E outro não poderia ser o motivo da
magna que te ensombra o rosto pendido,
oh languida princeza sem throno, nem
cortezãos! Vês tudo que pôde açular-te os
desejos famintos para te martyrisares mais,
melancholioa sultana dum paiz
deshabitado e deserto...
Quando surges, desmaiada e tremula
no céo, tenho muita pena de ti, da tua
cabeça alva exposta á neve, da teu olhar
velado que morre docemente nas trevas,
pobre Tantalo do azul!
Então penso que és uma velhinha,.
cabeça toda branca, subindo por um
monte escarpado, segura a um bordão,
em caminho de casa... Por isso hei
de querer-te mais de hoje em diante....
Respeitar-te-ei como se fosses minha.
mãe...
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 89
Substituirás a pomba cor de leite tão
minha amiga que, sem se despedir de mim,
desappareceu para nunca mais voltar... Em
ti e no velho castanheiro verei de meus
mestres e meus pães, que hão de me
ensinar a fazer voltar a encantadora ave
que fugiu e eu estimava tanto. Como em
dois sublimes exemplos, me animarei a
luctar pela idéia que desde muitos annos
nutro... (Uma nuvem negra encobre por
alguns instantes a face da lua que se turva).
Meu Deus como está feia a minha
amiga! Recorda uma louca descabellada e
nua a correr sobre rochedos ásperos e
escarpados... Como envelheceu em tào
pouco tempo ! Seu rosto é encarquilhado
como o de uma nonagenaria... Tem na luz
o brilho funereo dos fogos-fatuos que
bailam alta noite nos cemiterios,
enroscando-se aos bra-
90 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
ços hirtos das cruzes... Dir-se-á que vai
morrer daqui a poucas horas... Como não
tem soffrido a minha resignada irmã! E é
preciso salval-a! Não a quero triste ! Não a
quero triste! (A nuvem adelgaça-se e deixa
a lua completamente descoberta. . . Nesse
instante o sino toca, convidando as freiras
á oração... Santa Thereza parte, olhando
espantada para o môcho, que des-
apparece).
VI
Soror Mathilde
(Terminada a oração da noite, Santa
Thereza volta, radiante e satisfeita como
uma creancinha... Canta-lhe no olhar
bondoso uma primavera de conforto e bem
estar... Sua face toma certa expressão nova
e sadia... Ri, sem querer, fala, caminha,
inquieta, pura e feliz.., Este contentamento
communica-se a tudo que a cerca... Sua
presença alegra até as coisas insensiveis e
anima o que é inerte...)
Não sei o que sinto quando rezo...
92 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Minha alma transporta-se a regiões
desconhecidas, qual uma aguia a demandar
uma plaga não descoberta ainda... E é tão
agradavel esse arroubo !... E esse extase é
tão doce !... Como que sinto mãos de
velludo acariciarem-me a face, olhares de
arminhos ungirem-me toda...
Ouço labios occultos a ciciar-me
phrases suaves, como se fossem har-
pas eoleas gemendo em mãos de san-
tas ...
Abre-se ante meus olhos deslumbrados
uma paisagem bellissima : é um paiz
doirado onde se engastam extensos jardins
e borboleteiam sonhos... Conduz-me
levemente por suas veredas fascinadoras
uma fada de tranca, muito comprida e riso
muito perfumado... Veste uma gaze
diaphana que lhe cahe até os pés
respeitosamente envolvendo-a em
neblinas... Na mão
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 93
direita leva um ramo de oliveira, simples e
carinhoso como seu olhar...
Pela mão esquerda conduz-me por entre
as ruas lucidas que contemplo enlevada... E a
fada segue, enchendo tudo de galas, como se
fosse uma celeste mensageira vinda, de além
para visitar os passarinhos e as borboletas...
Então goso o arrebatamento que as noivas
elevem goza ao serem beijadas pelos noivos,
esse arrebatamento que Soror Mathilde sentia
nos braços daquele a quem tanto amou e por
quem foi tão amada... Soror Mathilde é a
freira mais triste deste convento...
Um olhar não pôde ser mais dorido
que o della, nem uma voz tão queixosa...
Quando reza pede talvez a Nosso
Senhor pelo descanço eterno do moço de
quem nunca se esqueceu e por quem nunca
seria esquecida, se ella
94 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
morresse e elle lhe sobrevivesse... Um
amor infeliz obrigou-a a ser freira... É
muito tocante a historia da sua vida...
Ninguem pode ouvil-a sem chorar:
Eram duas creanças. . . Elle em toda parte,
na terra, no mar ou no ceo, cria vel-a
rindo-se, a abrir-lho os braços radiosa,
aureolada de bençãos... ella via-o em tudo,
satisfeito, prometten-do-lhe affagos,
jogando-lhe beijos. . . Uma vez — a
primavera acordava os ninhos e entreabria
os cálices das flores — foram passeiar
pelos vergeis, esquecidos do mundo, a
pensar unicamente no affecto que os
dominava...
Dirigiram-se á envelhecida arvore tao
procurada pelos namorados, e cujas galhas
servem de mausoléo aos dois celebrados
amantes, que dormem agora junto de suas
raizes vigorosas... Chegados ahi, se
enleiaram amorosa-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 95
mente, e o velho castanheiro os acolheu á
maneira dum avô, já sem filhos, que
encontra, depois de longa ausencia, o
unico neto, derradeiro rebento duma prole
quasi extincta.
Viu-se reproduzir de novo a mesma
scena a que assistira tantas vezes, beijos
que outros amantes trocaram tambem antes
que elles fossem celebrar o mesmo ritual, a
que elle assistiu e assistirá eternamente...
Depois o moço entrelaçou seu nome
no nome de Mathilde em arabescos
delicados, sobre a casca rugosa do tronco,
que tornou a sentir, nem pela primeira nem
pela ultima vez, a dor deliciosa desse
delicioso supplicio...
O tempo correu e elles foram cres-
cendo em annos e em esperanças, assim
como duas plantas que se enchessem de
flores para vel-as depois, encravadas de
espinhos e murchas.
96 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Cada vez ficavam mais apaixonados e
ternos... De manhã cedo, aos primeiros
rubores do sol, elle sahia, voltando
carregado de flores para atirar sobre a
noiva que o esperava, toda de branco, á
porta do jardim... Vinha talvez fatigado,
mas um sorriso della lhe recompensava
todo o seu cansaço...
Depois sabiam a passeio pelos ca-
minhos orvalhados ainda, vendo as aves
que começavam a levantar as cabecinhas
de dentro dos ninhos suspensos e
baloiçantes...
Colhiam tantas rosas que, não lhes
agüentando com o peso, as lançavam ao chão,
sorrindo trefegos. Em meio da innocencia
divina da natureza, seus beijos eram uma
extranha linguagem só comprehendida por
elles... Tinham sonhos assim. Uma casinha na
garganta dum outeiro. . . dentro de florido
jardim cheio de repuxos e pombaes,
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 97
donde olhariam o mundo com desprezo,
felizes, summammente felizes... De lá
ficariam muito mais distante da terra e muito
mais porto do céo... Poderiam conversar
todas as noites com os anjos e o luar...
A cada beijo delles, desabrochariam
rosaes na terra, e despontariam
constellações no azul. . .
Durante o inverno, as andorinhas
emigrariam para o telhado da casinha,
onde a primavera seria eterna e o sol
sempre o mesmo.
Quer de dia, quer de noite, as meigas
aves cantariam... e cantariam até morrer,
bebendo o orvalho das flores, sugando o mel
das corolas abertas... Borboletas pousariam
nos cabellos delia, julgando nelles ver o sol
quando esvoaça e resplandece pelas areias
aridas, enchendo-as de cambiante e
garrida
vegetação.E como seria bom
98 AS VJSÔES DE SANTA THEREZA
vel-a com a fronte circumdada do azas e a
boca circumdada de riso, cantando pelas
pradarias em flor!
Sahiriam de mãos dadas, mal rompesse
a aurora, para verem as estrellas desmaiar
á luz estonteante e forte dos seus olhos
ardentes, a briza emmudecer por ouvir-lhes
a fala e as flores se desabotoarem ante suas
bocas apaixonadas o frescas.
E então que festa! As aves em bando
cantariam a voltear-lhes pelos hombros e
as abelhas voariam para os labios della
julgando-os rarissima flor, mais preciosa
que todas as outras e do mais delicioso
mel. As folhas orvalhadas, como
pequeninos engastes do perolas, correriam
a atapetar o caminho por que elles
passassem. Quando o sol, transposto o
humbral do Oriente, fosse avançando, se
recolheriam á casinha discreta e silenciosa,
construi-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA
99
da na garganta do outeiro. Á tarde iriam
andar pelos canteiros ou visitar os
pombaes, entre as acclamaçoes das
pombas arrulhantes e castas que ar-
rufariam as delicadas pennas em uma
alegria indizivel saudando-os. Pelas noites
calidas e mysteriosas, divagariam ao olhar
brumoso da lua, olhos de um no rosto do
outro, respirações confundidas...
Quando morressem seriam sepultados
na casinha alvejante, e sobre seus corpos
nasceriam jasmineiros e pipillariam
ninhos. Os peregrinos visitariam a modesta
habitação vasia, berço e tumulo dum amor
puro; os poetas celebrariam essa historia,
phantasiando uma lenda romantica sobre a
vida dos dois e exaltando a formosura
della. E, se assim acontecesse, quem sabe
se eu não estaria a estas horas invocando-
lhesos espiritos ven-
100
AS VISÕES DE SANTA THEREZA
do o vulto do ambos passarem, abraçados,
por veredas rumorosas, elle — cheio de
ternura, dando beijos nella, que,
desmaiando de goso, cabeça pendida,
boca entreaberta, o segue tendo rouxinoes
na fala e passaros de ouro nas trancas...
Coitada ! Sonhou tanto. . . e hoje chora
contemplando as minas do seu coração...
mas, apezar disso tudo, invejo muito o
destino de Soror Mathilde. . . Se hoje é
desgraçada já foi muito feliz... E depois, a
lembrança dum passado risonho não é um
balsamo para as amarguras dum presente
ingrato ?
Basta falar-lhe para adivinhar-se que
foi noiva: as pulsações do seu colação bem
mostram que ella já amou... Tem ainda nos
labios o calor dos ultimos beijos, na alma o
crepúsculo da ultima esperança. Uns
braços que
AS VISÕES BE SANTA THEREZA 101
nunca foram apertados, não poderiam ser
tão mornos assim... o perfume de seus
cabellos diz-nos que foram acariciados não
ha muito tempo...
Os ninhos, vasios embora, guardam
sempre as pennas da ave que os teceram ;
as flores, depois de murchas, conservam
ainda restos do olor que possuiam
outr'ora...
O corpo da minha desditosa com-
panheira exhala um fluido mysterioso que
nos convida a amar e nos enche de deleite...
Seus olhos ás vezes tomam uma expressão
de doçura... Vê, talvez, desenhadas ante si
aquellas scenas de que sempre se lembrará.
O primeiro beijo dado á sombra do
velho castanheiro, em uma tarde de estio ;
aquella manhã em que sahiam para colher
flores e as gargalhadas estridentes que-
deram quando escorregaram, perseguindo
uma calhandra;
102 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
as phantasias tecidas na imaginação á luz
doente dura luar nostálgico, o pro-jecto
concebido de morarem numa casinha
levantada na garganta dum outeiro; a festa
realisada no dia dos seus annos e o presente
que elle lhe dera — um originalissimo
camafeu onde se viam dois corações
ardendo na mesma pyra, devorados por uma
grande chamma; mil insignificancias ex-
pressivas para ella, como sejam: os versos
escriptos na areia; seus nomes burilados no
tronco da arvore que os abrigava; o ciume
que sentiu quando lhe encontrou no bolso
um retrato que não era o della e da maneira
magoada porque elle disse-lhe :É o retrato
de minha irmã, querida! E o retrato de
minha irmã! — Outras vezes, porém, seus
olhos ficam nublados e enchem-se de
lagrimas. E quando se lembra do dia em
que elle, a voz presa na garganta,
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 103
lhe disse chorando: «— Vou partir! Mas,
commigo vai a tua imagem que me salvará
dos perigos e defender-me-á como um
escudo, das lanças inimigas ! Parto, porque a
isto sou obrigado! Se não morrer no campo
da lucta e possa voltar á patria, em breve
serás minha e eu te pertencerei; porém se um
dardo traidor ferir-me o peito e eu cahir,
banhado em sangue, no meio da batalha,
nem o zunir das lanças, nem os gritos dos
feridos, farão com que me esqueça de ti...
Mathilde, juro pelas cinzas dos meus
honrados avós, se eu sentir a mão da morte
cerrar-me os olhos distante dos teus carinhos,
teu nome será a minha ultima palavra!
Lembra-te sempre de mim, porque sempre
me lembrarei de ti! » E o guerreiro partiu
levando lagrimas nos olhos, e a imagem da
noiva no coração.
104 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Era um dia de inverno, triste como o
desespero que lhes ia na alma... o vento
gemia pelo arvoredo, torcendo os galhos
das arvores nuas e os passarinhos,
tiritavam, encolhidos e tremulos...
O vulto do moço já tinha-se sumido
além e ella continuava, a acenar com o
lenço, crendo vel-o ainda, até que a
trouxeram para casa, lacrimosa e digna de
dó...
Todas as noites rezava pedindo a
Nossa Senhora para dizer-lhe em que sitio
elle se achava e se nao tinha
ainda se esquecido della. Pedia á lua que
lhe illuminasse os caminhos e ao vento que
lhe fosse contar a sua dôr... A horas certas,
sahia a percorrer os logares que costuma-
vam visitar... Chorava junto ao castanheiro
e cobria de beijos os dois nomes, nelle
esculpidos, tomando-o
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 105
como testemunha do seu inviolavel
isolamento.
Supplicava ás aves que contassem
quando elle voltasse como a sua noiva
tinha sido fiel ao amor jurado, como tinha
sido inflexivel e constante na cruel
ausencia... Os mezes se passaram e nunca
mais ninguem teve noticias do jovem
guerreiro.
E uma duvida aterradora invadiu o
espirito da desolada noiva... Estaria morto
ou teria se esquecido della?
Passado algum tempo, chegou ás
portas da cidade um mensageiro que disse
ter visto os inimigos trucidarem
barbaramente o heroico rapaz, que, pouco
antes de morrer, pediu viesse alguém
contar á noiva seu desgraçado fim e a
firmeza do amor que lhe consagrara. . .
Depois, recebendo profundo golpe na
fronte, abriu os labios pronuncian-
106 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
do um nome que ninguém poude ouvir,
virou os olhos, e morreu. . . Soror Mathilde
ficou a principio como doida... Chorou
ininterrompidamente durante trinta dias e
trinta noites...
Num mez envelheceu quarenta annos.
Seus olhos afundaram-se e a sua pelle
encheu-se de rugas. . .
Parecia um cadaver que uma força
occulta animasse... Foi então depois deste
immenso martyrio que resolveu ser freira e
entrou para esse convento onde tem sido
vista chorando, ora a beijar flores murchas,
ora a reler cartas perfumadas...
Julga-se que na extremidade do seu
rosario existe um envolucro que em vez de
canticos e orações, contem um pequeno
cacho de cabellos negros ...
A poucos dias teve um ataque ao vêr o
velho castanheiro, onde fruiu
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 107
*
tão doces instantes e recebeu nos labios o
primeiro beijo...
Pobre Soror Mathilde!
É magra coma uma tysica. muda como
um cypreste... As vezes parece que um
sopro mais forte que quebrará os ossos, tão
fragil está... Todo o mundo tem pena da
sua desventura e, no em tanto, ninguém
tem pena de mim, que não sonhei nem
senti jamais o que ella sonhou e sentiu.
Soror Mathilde, és muito mais ditosa
que eu, porque amaste o foste amada...
Teus labios já foram beijados e os meus
nunca o foram... Quando te vejo, fico
admirada a olhar-te, pensando nas
sensações que experimentaste durante a
vida de teu noivo, sensações essas que são
inapagaveis como tua saudade, fortes como
o meu supplicio... Es uma palmeira cheia
de ninhos vasios: eu sou unicamente
108 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
uma planta sêcca, esteril e triste, por não
ter visto jamais gorgeios de passaros pelos
galhos despidos...
Soror Mathilde, és mais venturosa que
eu!
Morrerás depois de teres conhecido os
segredos mais santos da existência, emquanto
eu hei de morrer innocente e enfastiada,
detestando este mundo que me faz assim
desditosa...
(Suspira profundamente e se torna
como um lavrador a quem se amputassem
os braços.
O clarão da lua penetra a cella
prateiando-a toda, menos em torno do môcho
que, pousado sempre na cabeceira do leito, fita
imperturbavelmente Santa Thereza.
Esta, para distrahir-se e esquecer a
sinistra ave, dirige-se á rotula e olha para
fora... O luar esbate-se em cheio pelas
arvores marulhantes, que se co-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 109
brem de roupagens argenteas, e des-
dobra-se em alvissimo sendal sobre o
solo humido...
A Santa contempla maravilhada esta
paysagem de alabastro, esse ren-
dilhamento de luz que aformoseia o espaço
imponentemente tranquillo.
Sente-se arroubada como se estivesse
dentro dum palacio fabuloso, cheio de
grutas encantadas e minaretes faiscantes
onde cantassem sereias e dançassem
fadas...
Lamenta não ter azas, em vez de
braços, para scindir victoriosamente a
amplidão jaspea, qual uma galera alada
rogando altiva por um oceano placido.
Sahiria da cella e voaria livremente no azul
até chegar á lua, que a receberia com ancia
e onde ficaria morando, para poder ver as
estrellas de perto . . .
De lá assistiria a todas as auroras,
110 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
e haveria de fazeir com que os astros
doirassem com mais intensidade ainda o
velho castanheiro...
Olha para a arvore lendaria e recua,
assustada ...
Vira, inundados de luar, passeiando
por entre suas ramas, o casal de velhinhos
que alli dormiam ...
Ambos iam vestidos de branco, juntas
as mãos tremulas, beijando-se meigamente
ao resplendor franco da lua, que não era tão
alva como as cabeças delles.
Receiosa. ajoelha-se pedindo ao céo
pelas almas dos amorosos anciãos.
VII
O desappareçimento do mocho
Noite alta . . .
(Santa Thereza, a quem uma enorme
agitação de espirito não tem permittido o
repouso, contempla, desvairada, o môcho, que
a fita da cabeceira do leito.
Orlam-lhe os olhos tristonhos duas
profundas olheiras, tornando-os por
isso mais encantadores e expressivos ...
Está tão pallida que parece amor-
talhada. Só falta um caixão funereo para se
confundir com um cadaver . . .
112 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Suas mãos, de tão frias, lembram
delicados blocos de gelo a pender dos
braços duma estatua. A luz da lua parece
querer asphyxiar a lampada que bruxoleia
e oscilla como o olhar martyrisado da
Santa.
Depois de alguns minutos de incerteza
dirige-se ao oratorio e reza . . . Mas o
mocho fita-a com insistencia tal que a
obriga a parar no meio da oração
começada . . .
Levanta-se, visivelmente contrariada, e
pronuncia palavras sem nexo, olhos
immobilisados, mãos pendidas ao longo do
corpo o scismando).
Como poderei fugir desse asqueroso
espião que até já me prohibe de rezar?
Desde a manhã, persegue-me com os
olhos que recordam as correntes arrastadas
pelos criminosos no fundo das
masmorras...
Ás vezes, concede-me alguma dis-
AS VISÕES BE SANTA THE REZA
113
tvacção; em outras occasiões, porém, tem
para mim uma impiedade sem nome ...
Julgo um castigo essa insistencia sua e
a falta daquella pomba, branca que talvez
nunca mais eu possa ver...
A consoladora de .minha alma foi
expulsa por este algoz que me estygmatisa
e esbofeteia-me com o olhar.
Póde ser que seja um domador, mas
creio ser um carrasco ...
Para livrar-me delle, tenho cogitado
mil planos e todos até agora tem falhado...
Não sei mesmo o que devo fazer para
anniquilar esse inimigo invulneravel que
me ataca e me rouba o socego a modo de
um salteador.
Minha alma era alegre como as ma-
nhas de Abril ...
8
114 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Nella irradiava uma primavera eterna,
exuberante e viva.
Tinha lagos immensos onde baloi-
çavarn bergantins tripulados por ma-
rinheiros innocentes e loiros... montes
onde alvejavam ermidas brancas e
pequeninas choupanas coberrtas de hera...
Suas noites sempre tinham lua, e o seu
firmamento nunca esteve annuviado ...
Esta belleza só durou emquanto a
pomba alvissima viveu ao meu lado . . .
No dia em que a minha salvadora
desapparcceu para dar occasião á vinda
desse môcho, minha alma ficou taciturna
como uma noite de inverno... Os lagos
turvaram-se espedaçando bergantins e
matando os marinheiros, as ermidas e
cabanas desabaram, o luar fugiu, o céo
annuviou-se.
AS VISÕES DE SANTA THEREZA
115
Na noite passada, a pomba me
appareceu afugentando o passaro negro, e
fazendo resuscitar minha alma .. .
Infelizmente, a sua demora foi pouca,
porque eu apeguei-me ao somno, e ella,
aproveitando-se do meu estado, fugiu.
Em vão chamei pela amiga, outr'ora
inseparavel, e gritei contra esse meu
inimigo, inseparavel hoje.
Rezei, pedi a Deus que realizasse os
meus desejos, e não obtive nada do que
almejava...
Fui tentada pelas ancias peccami-
nosas, tão communs nas freiras, mar-
tyrisei-me em repetidas penitencias
para me rehabilitar, porém notei que
as disciplinas, a que me submetti, não
eram tão dolorosas como o olhar deste
satanico hospede de minha cella.
Meu odio por elle cresce á propor-
116 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
cão que augmenta a amizade pela saudosa
confortadora que temo não mais tornar a
ver.
Este receio é maior ainda quando me
lembro de suas ultimas palavras: «Eu sou a
companheira dos puros e dos que se
arrependera. Es venturosa porque me tens
ao teu lado... e ai daquelles que não me
conhecem e não se deliciaram jamais com
a pureza dos meus encantos!»
Que será de mim se ella não voltar
mais e este mocho continuar a permanecer
junto do meu leito?
Só a abstração de tudo por uma ideia
fixa, cuja realização desejo intensamente,
poderá me livrar desta ociosidade, porta
aberta ao peccado, causa da minha
desgraça...
De amanhã em diante começarei, por
todos os meios, a pôr em pratica o desejo
que tenho de fundar a Ordem
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 117
dos Carmelitas. O desinteresse com que
hei de luctar me remirá as faltas, fazendo
minha alma voltar á sua antiga placidez.
(O rosto da Santa illumina-se, e enche-
se de resolução e coragem, á semelhança
duma nuvem que fosse atravessada
subitamente pelos raios do sol.
Palpita-lhe no olhar uma luz des-
conhecida, mostrando a resurreição de sua
alma padecedora, que se definhava sob o
peso do mais atrós soffrimento .. .
Ri alegremente, mas não com aquelle
reprimido sorriso de ha pouco, porém com
um riso jovial e franco daquelles que estão
contentes comsigo mesmo.
Lembra um peregrino voltando á terra
natal, depois de prolongada ausencia ...
Por acaso olha para a cabeceira do
118 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
leito e vê que o mocho tinha desappa-
recido ...
A santa une as mãos num voto de
agradecimento ao Senhor, se asseme-
lhando, nesta attitude, a uma visão etherea
descida nos raios da lua).
VIII
O Sacrilegio
(Santa Thereza, revivificada pelo
desapparecimento do seu iniquo perse-
guidor, contempla, embevecida a ascensão
da lua no azul, crendo ver nella um anjo de
trages candidos, sorrir-lhe do céo
estrellado e limpido.
A graça com que abre as azas res-
plandescentes, o oiro ondulante da sua
cabelleira, tudo isto enleva o espirito da
santa, que, abandonando a materia, ala-se
ás regiões dos sonhos. . .
Demora-se nesta contemplação horas
esquecidas. . .
120 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
A lua avança, magestosa, entre grupos
de estrellas, pela amplidão calada, e, á
proporção que avança, esparge um
polvilhamento de prata sobre o mundo. . .
Santa Thereza, tomada duma exaltação
repentina, estende os braços para o céo
palpitante e radioso).
Não sei que mysteerio ha na alvura da
lua. . .
Parece que está sempre a derramar
lagrimas vaporosas e brancas sobre nós,
lamentando talvez a desventura humana.
Enche-me ás vezes de uma certa
concentração de espirito; em outras
occasiões, porém, arrebata-me levemente a
um desconhecido mundo, e então é como
um seraphim descido de além para me
consolar em meio do exilio continuo em
que vivo.
Abençôo-te, reconhecida e grata,
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 121
oh querida companheira do meu desterro;
ajoelho-me ante a chamma piedosa com
que me banhas a fronte, á maneira dura
innocente culpado aos pés do que lhe
perdoou o falso crime.
Agora sinto raiar um sol reanimador
dentro de mim, e vejo luzir além a estrella
que ha de me guiar pelos escabrosos
caminhos da vida.
(Olha a lua e sente-se perturbada ao
sorriso dum anjo que paira no alto, fitando-
a languidamente).
Ah! Por fim vejo chegar-se a mim um
noivo louro como o arrebol e meigo como
as rolas! Finalmente alcanço o que mais
queria; um sorriso puro e amante, um
coração terno, que viva somente pelo meu
amor.
Desce, desce mais, encantado principe
dos espaços ethereos; desce, abandona esse
throno cravejado de estrellas, e vem cahir
nos meus braços, throno
122 AS VISÕES DE SANTA. THEREZA
erguido por mim á tua candura incom-
paravel e unica!
Desce, mais ainda, que te espera aqui
uma virgem medrosa, nunca profanada
pelo amor de outro . . .
Não vês como sinto-me feliz só por
ver-te ?
Imagina agora qual seria o meu delirio,
se te beijasse e fosse beijada por ti, se,
ambos estreitamente unidos, pudessemos
gozar o nosso sonho . . .
Tu deves ser puro, suave e carinhoso ;
tua alma é um jardim cheio de rosas
frescas como teu sorriso e como teu olhar...
Com certeza, nunca sentiste bater o
coração por um desejo lascivo, jamais
amaste outra mulher, que não eu . . .
Vieste do teu berço natal somente pelo
meu amor desvairado, pela minha paixão
escaldante e louca . . .
Ensaiaste affagos e ternuras, pen-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 123
saste em mil insignificancias, colheste as
chimeras mais bellas, as illusões mais
lindas para deposital-as em torno a mim,
como um resplendor em torno de uma
santa . . .
Desce, ambicionado noivo, espalma
um pouco mais as azas e vem cahir no meu
collo perfumado e quente, em um espasmo
de amor ...
Guardei-te todos os thesouros do meu
coração, as mais preciosas gemmas de
minha alma . . .
Por ti farei loucuras de toda a especie,
irei ao fundo do mar arrancar perolas e
coraes para cingir-te a cabeça triumphante
e, se não encontrar nem perolas nem
coraes, oingir-te-ei com as minhas
lagrimas e com o meu sangue...
Atravessarei paragens inhospitas,
dormirei ao relento sobre as pedras, affron-
tarei as raivas do oceano, beberei as aguas
podres dos charcos esverdea-
124 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
dos, se me ordenares que eu passe por
esses transes . . .
Farei com que minha carne apodreça e
cubra-se de vermes e pus, com que meus
olhos se afundem e os meus cabellos caiam
e as minhas mãos inchem e estalem-se-me
as unhas, se acaso tiveres o capricho de
querer ver-me nesse estado nojento,
reduzida a um pântano monstruoso, cheio
de reptis fetidos e podridões
nauseabundas...
Enterrar-me-ei viva, depois de ter sido
completamente esphacelada, para
satisfazer-te qualquer exigencia ou a
curiosidade de assistir a um martyrio
horroroso e lento, ainda não concebido
pelo mais barbaro despota . . .
Supportarei todas essas torturas, sem
me queixar e mesmo julgando-me ditosa,
comtanto que me ames ou finjas amar-me,
pois, em meio desses horrores, teu carinho
será um balsamo que
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 125
me fará esquecer as angustias soffridas e
por soffrer.
Teu desprezo, porém, seria muito mais
doloroso que todo esse martyrio e pungiria
tanto quanto a cegueira sentida
eternamente por um misero condemnado á
nao morrer, ou a cusparada dum filho no
rosto duma boa mãe, que se tivesse
sacrificado por elle...
Ha muito que te esperava, e hoje posso
te ver, a rir-me do alto, confundindo-te
com os astros . . .
Baixas das nuvens onde moras, para
que eu também possa rir-me em teus
braços e sentir o que nunca senti...
Ateia-se um impetuoso incendio no
meu sangue e corre um vendaval
irrepremivel pela minha cabeça allu-
cinada...
Chega-te a mim! Quero o calor de
126 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
teu peito e a frescura do teu beijo, a
embriaguez do goso e a febre do delirio ...
Vem ! Abandona, a fabulosa opulencia
do teu palacio, pela opulencia ainda maior
dos meus seios em flôr, despreza as
scintillações que te rodeiam pelo fogo dos
meus olhos e pelo setim da minha boca
desabrochada...
Em meus braços acharás um leito,
onde ninguém repousou até agora, de-
liciosissimo leito que nos servirá também
de tumulo . . .
Deixa, portanto, o Armamento em que
moras e vem illuminar com teu riso o
firmamento procelloso de minha vida. . .
Ambos somos jovens e castos, se-
quiosos e bellos ...
Andavamos á procura dum ideal
sonhado e este nos apparece agora ...
AS VJSÕES DE SANTA THEREZA 127
Aproveitemos a nossa juventude
emquanto é tempo . . .
Ouve meus rogos e minhas supplicas e
apazigua esta inquietação que sinto, com
as tuas caricias e com os teus
arrebatamentos.
Suffoca-me, aperta-me nervosamente
num frenesi de allucinado, numa
voracidade de faminto ...
Tenho necessidade deste exagero;
quero morrer victima dum excesso
criminoso...
Suffoca-me, que me sinto esvahida!
suga-me todo o mel dos labios, devora
toda a exuberancia dos meus seios, pois
desejo ser comprimida, furiosamente pelos
teus braços...
Dilacera-me, por piedade, esta carne
resuscitada, esta carne incendiada e
revolta, que tem sido o meu maior
supplicio...
Roja-me ao chão, morde-me o collo
128 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
erguido, arranca-me os cabellos e as
entranhas, goza a minha virgindade
sublevada, piza-me, torce-me os braços até
que eu possa morrer, depois de ter
satisfeito a luxuria do meu sangue.
Desce, ambicionado noivo. Desce!
(Vê a lua abrir-se á forma duma porta
rutilante e della sahir um anjo que de azas
abertas desce por unia escada de ouro,
labios afflorados num riso seductor.
E lindo como o alvorecer e tem nas
vestes a alvura dos jasmineiros...
Approxima-se lentamente da cella...
A santa abre enormemente os olhos, e
atira-se, palpitante, em direcção ao anjo
que desapparece junto á imagem de
Christo.
Cega, completamente cega, Santa
#
AS VISÕES DE SANTA THEREZA
129
Thereza se arroja ao crucifixo onde está o
Jesus do braços abertos, birto e
ensangüentado. . .
Lança-se a elle, arranca-o da parede,
em exclamações repetidas e rapidas, beija-
o, roja-se ao chão, apertando-o entre os
braços tremulos, numa vertigem do doida...
Ergue-se e tomba novamente; bate-se
no leito que estremece e range como a
protestar contra o horrivel sacrilegio,
revolve os travesseiros e lençoes; rompe-
os, entesa-se, curva-se, torcendo a imagem
sagrada, beijando-a, mordendo-a...
As vezes parece que quer fugir, lançar-
se pela janella abaixo, rasgar as paredes
tão frias com os choques successivos do
seu corpo tão quente...
Agora se acalma um pouco, baixa
os olhos languidamente, emquanto lhe
9
130 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
saltam os seios, apertados no cilicio que
não pôde contel-os...
Depois a faria recomeça, e torna a
apertar anciosamente a imagem do
crucificado, cujo resplendor lhe produz um
grande rasgão na face, que se banha em
sangue, como se fosse um anathema que
lhe lançasse Jesus ante este sacrilegio.
Ella, que a principio não sentira a
incisão, depois de algum tempo torna a si
— devido á grande quantidade do sangue
que lhe escorre do rosto manchando-lhe a
roupa e o chão. . .
Acorda e vê, horrorisada, a imagem
toda mordida, sem braços, o resplendor
atirado longe, quasi se separando da cruz.
Seu olhar toma immediatamente uma
funda expressão de pavor.
Tremula como um junco, olhos ar-
regalados, face livida e gelida, mãos
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 131
crispadas, cabellos eriçados, lembra uma
figura de pedra representando o medo e o
assombro. . .
Ninguem poderá vel-a nesse estado,
sem correr logo, tão feia é a expressão do
seu rosto. . .
Immovel, o olhar fixo e desvairado, a
boca aberta, parece que ainda não
comprehendeu tudo que se passou, a altura
do seu crime inacreditavel. . .
Dir-se-ia que seu coração se para-
lysara de subito. . .
Passada esta primeira phase, vai
coordenando, pouco a pouco, as ideias e,
quando mede a gravidade do que praticara,
lastima-se muito, chorando sob a imagem
de Christo, que depois esconde com os
fragmentos esparsos num logar reservado...
Em seguida busca os apparelhos
da penitencia e martyrisa-se tanto
132
AS VISÕES DE SANTA THEREZA
que é obrigada a ir para o leito, donde não
pôde mais se levantar. . .
Toda ferida, parece uma chaga re-
volvendo-se dolorosamente numa angustia
sem fim, num desespero de commover
pedras. . .
O mocho reapparece como um ac-
cusador do hediondo attentado, e esta
appariçao apavora ainda mais a pobre
freira, que fecha os olhos, tintando de
medo.
Pensa no suicidio, para se livrar do asco
que todas as outras freiras terão delia ao
saberem do acontecido.
Vê, em frente a si, as companheiras em
fila expulsarem-na do convento, e a
familia, indignada, fechar-lhe a casa.
Depois, como consequencias logicas, a
desmoralisaçao do seu nome respeitado em
toda a parte como o de uma santa, e o
ridiculo em que envolverão suas visões e
milagres ...
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 133
Não ha salvação possivel. . .
Tudo está irremediavelmente perdido...
Em breve será despenhada da altissima
torre de sua fama quasi immortal ao lodo
do escarneo ...
Amanhã será desmascarada pela
verdade dos acontecimentos, ficando
reduzida a um ente despresivel, a uma
hipocrita — ella, a boa, a piedosa, a santa.
Em quanto assim pensa, estremece-se
derramando copioso choro e a affliçao
augmenta quando vê que esses castigos,
por enormes que sejam, nada são para o
tamanho de sua culpa . . .
De quando em quando, fecha os olhos
para fugir a visões assombrosas que
parecem surgir das paredes alvas e
quietas...
Sim ; amanhã, sua familia será man-
chada, seu nome escarnecido e talvez
134 AS VISÕES DE SA.NTA THEREZA
excommungado, ninguém mais terá dó de
sua desgraça e, apezar de tão horriveis
transes, nao se remunerará para com o
Senhor.
Um suicidio nada adiantará, somente
pode haver um remedio: é, depois de
expulsa do convento, dedicar-se
exclusivamente á desventura alheia, como
um apostolo do bem.
Talvez isto a salve aos olhos de Deus,
porque aos olhos do mundo não ha mais
rehabilitação alguma.
Um tremor convulsivo sacode-lhe todo
o corpo em arrancos frequentes, e copioso
suor escorre-lhe pela epiderme, molhando
a camisa que lhe ocoulta as grandes chagas
provenientes da atroz disciplina a que se
submettera ...
Encolhe-se no leito e vê projectada na
parede a sombra do môcho — testemunha
muda do seu penosissimo tormento...
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 135
Tem até medo de gemer e virar-se no
leito.
Pede, mentalmente, ao céo perdão de
sua fraqueza, auctora do involuntario
sacrilegio que fizera. . .
Parece uma escrava açoitada que vai
tornar a sel-o em breve...
O luar, que vem de fora, beija-a
respeitosamente, com piedade talvez de sua
desventura.
IX
O fantasma negro
(Apavorada e hirta, vê-se no leito
Santa Thereza, á semelhança dum defunto
num quarto abandonado. . .
Respira apressadamente e arregala ás
vezes os olhos como se estivesse vendo
qualquer scena exquisita. . .
Pensa em cousas sinistras, em historias
apavoradoras que ouvira quando creança...
A lua brilha com mais fulgor em
despedida talvez, porque em breve se
recolherá).
138 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Eu, que sempre acho a lua tão for-
mosa, não sei porque motivo ignoto agora
tenho medo della...
Está tão triste!
Assim era a face de minha mãe no dia
em que professei; em seu olhar havia a
mesma dor, em sua dôr havia a mesma
grandeza.
Abafando uma duvida que me an-
gustiava, entrei para este convento como
se entrasse viva para a sepultura.
Lembro-me como se fosse hoje!
No dia em que, de fronte curva, jurei
aos pés de Deus, senti acordar em mira
uma suspeita de proximo arrependimento e
a imagem lacrimosa de minha mãe me
apparecia ao longe, a acenar para mim,
como a padroeira que foi da minha
existência. . .
O tempo correu, e um dia ella partiu
para o seio de Deus, donde talvez pense
ainda em mim. Vejo-a morta,
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 139
olhos vidrados, a boca entreaberta como
chamando por alguém, as mãos brandas
como se estivessem affagando a fronte de
algum ente querido.. .
Foste feliz, minha mãe, que não
assististe ao descredito de tua filha!
(Grandes nuvens de chuva encobrem
totalmente a lua. . .
Grita um vento frio pelos telhados.. .
O espaço escurece-se. . .
Sumiram-se todas as estrellas. . .
Foi numa noite assim que ella me
contou uma historia tão pavorosa que
ainda hoje me faz tremer de medo, quando
a recordo... Uma vez era um rei... esta
historia é tão antiga que foi contada a
minha mãe pelos meus avós
,
que também a
ouviram de seus paes...
Sim, era uma vez um rei muito forte e
muito orgulhoso . . .
140 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Tinha uma filha alva como as noites de
lua, loira como os dias de sol...
Ella era toda a sua vida e valia mais
que o seu riquissimo reino, situado num
logar de que não me lembra agora o
nome...
Um dia o rei soube que ella amava a
um camponez de hombros largos o rosto
moreno, com o qual todas as noites
conversava no fundo do paláacio . . .
Quiz a principio mandar matar o
atrevido vassallo; porem, soube depois,
que, se assim praticasse, mataria também a
filha, que entisicaria logo após...
Ordenou então que se construisse uma
fabulosa torre de bronze para ahi prender a
dona de todo o seu coração, evitando deste
modo o amor desigual que dominava a
infeliz.
Mais de mil operarios gastaram
mezes na construcção do carcere gi-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 141
gantesco e, terminado o maravilhoso
trabalho, o rei mandou degollal-os todos
para que ninguem soubesse como se podia
entrar na torre-carcere, onde enclausurou,
chorando, o maior thesouro de sua
existencia... Um irmão delia era o
carcereiro... Trazia-lhe a comida em vasos
de oiro e porcellana. fazendo em seguida
fechar-se atrás de si a entrada da
mysteriosa prisão...
A princeza definhava a olhos vistos,
como luz que bruxoleia ...
O camponez andava errante pelos
bosques, a affrontar proposital mente os
maiores perigos; mas quase sempro era
visto num monte fronteiro olhando a torre
tristemente.
Um dia, já morto de saudade, o
perseguido amante jurou ir ver a princeza,
que era alva como as noites de lua e loira,
como os dias de sol... Para isto, disfarçou-
se em guarda e entrou
142 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
no palacio, onde havia salões de ouro e
galerias de prata. . .
A hora em que o principe, um ra-
pazinho de 16 annos, costumava ir á torre,
o camponez escondeu-se á espera delle...
E sabe Deus quantos estremecimentos
não lhe sacudiam o corpo nesses instantes
que foram mais longos que seculos!
Afinal o carcereiro appareceu além,
envolto numa capa flammante, cheia de
pedras preciosas e approximou-se do
carcere de bronze.
O camponez, então, agarrando-o pela
garganta, o obrigou a dizer-lhe o modo
pelo qual se entrava na torre. . .
O principe indicou uma pequena
chave, que, comprimida, fazia girar nos
gonzos uma enorme porta. . .
O ancioso amante fez logo esta abrir-
se e penetrou o opulento recin-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA
143
to, onde, pallida e magra, estava a filha do
rei a chamar por alguem...
O irmão da princeza, mal se viu solto,
correu ao palacio para contar o occorrido
ao pae. Este carregou as sobrancelhas, e,
acompanhado de guardas, partiu ao carcere
da filha. . .
Entrou calmamente na prisão e foi
achal-os abraçados na syncope do gozo. . .
Seu semblante não se alterou, nem
tambem o tom de sua voz. . .
Olhou para os guardas e deu ordem de
prender os dois infelizes namorados. . .
No dia seguinte, mandou construir-
se uma grande fogueira e erguer-se
junto desta uma cruz... Chamou a filha e
disse:
Amei-te como ninguem poderia amar-
te. . . eras a minha esperança e o teu
carinho me era mais precioso
144 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
que este throno onde estou sentado. Não
quizeste nem corresponder ao meu affecto,
nem justificar o meu orgulho então
mandei encarcerar-te naquella torre para
ver ao menos se não manchavas o meu
nome. . .
Trahiste-me, orferecendo a virgindade
do teu corpo a um camponez; pois bem,
este corpo, indignamente profanado, vai
ser queimado hoje.
Daqui a pouco tua carne estará re-
duzida a cinzas. . .
Depois, chamou o camponez e disse:
Fizeste bem, se eu fosse tu, não praticaria
de outra maneira. . .
Em seguida, mandou que o saltassem
e dirigiu-se ao logar onde estava accesa a
fogueira e erguida a cruz e ordenou que o
crucificassem.
Queria assistir ao martyrio da filha,
pregado numa cruz, supportando, portanto,
dois martyrios . . .
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 145
Abriu os braços, que os guardas
pregaram ao madeiro, sem dar um gemido,
heroico e sobrehumano . . .
Depois lhe amarraram também os pés,
e foram buscar a filha para ser lançada á
fogueira . . .
Assim que ella appareceu pallida e
chorosa, uma lagrima — a primeira —
rolou pelo severo rosto do rei. . . Sus-
penderam-na com os braços e atiravam-na
após á fogueira esbrazeada e fumegante.
Um grito agudissimo de dôr rompeu o
espaço, e o crucificado, que não gritara ao
ser pregado ao lenho, correspondeu com
um gemido ao grito da filha. . .
As chammas alcançaram também a
cruz e os gritos de dor continuavam a
scindir o espaço cada vez mais fortes . . .
O rei, gemendo, Baixou as palpebras
10
146
AS VISÕES DE SANTA THEREZA
por alguns instantes; mas, ao abril-as, via a
princesa toda queimada, sem cabellos e
cega, a pular entre as labaredas... deu um
grito horrendo; os olhos, se lhe saltaram das
orbitas; quiz arrancar os braços, deu muitos
gritos estrondosos, afugentando os
passaros e os animaes...
Tinha enlouquecido . .. Todos correram
assombrados ao verem um doido a gritar
numa cruz, e quando voltaram viram cinzas
no logar da fogueira e um cadaver sobre o
lenho ...
Corvos pairavam-lhe em torno da
cabeça, devorando-a, seus olhos já tinham
sido comidos e corria-lhe das narinas um
pus nojento.
Quanto ao camponez, ninguém teve
mais noticias delle . . .
Hoje, se ainda alguém passa pela
funebre logar, morre assombrado, jul-
AS VISÕES .DE SANTA THEREZA 147
gando ver esqueletos crucificados pelas
arvores cheias de caveiras e sentindo-se
estrangulado pelo rei sem olhos e sem
nariz,...
(Uma lutada de vento apaga a luz da
lâmpada, deixando a cella no escuro... A
santa, de tão pallida, torna-se livida. . .
Vê sahir do telhado um phantasma
todo vestido de negro, com um chicote na
mão e uma fornalha na boca. Sente mãos
felpudas apertarem-lhe os pés e puxarem-
lhe os cahellos.
No logar onde estava o crucificado
apparece um buraco repleto de cobras
phosphorecentes . . .
Olhos vermelhos e arregalados espiam
por entre as frestas das telhas...
O phantasma negro avança para ella,
mostrando os dentes ponteagudos e as
garras afinadas como para devoral-a...
148 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
Dá uma chicotada no ar e apparecem
de repente pela janella os velhinhos que
estão sepultados junto ao castanheiro, o rei
crucificado sem olhos nem nariz, a
princeza com as trancas incendiadas,
esqueletos altissimos e tronchos, caveiras
ironicas. . .
O espaço clareia-se com uma luz
amarello-esverdeada. . .
O phantasma negro vibra outra
chicotada sobre os esqueletos que gemem
e se ajoelham.
Depois, todos avançam para leval-a...
mas de repente o luar, surgindo um pouco
entre as grossas nuvens que o cercam,
invade a cella, espantando todos esses
phantasmas que fogem, rindo, pelo telhado
e pela janella.
Santa Thereza desmaia, suando frio...
Está rija como uma pedra, ou mais ainda...
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 149
Ergue a fronte, vê a lua e fica mais
alliviada).
Este horrivel pesadello foi com certeza
um castigo de Deus...
Nunca tive tanto medo nem nunca
prendi tanto. . .
Ainda julgo ver surgir do telhado o
hediondo phantasma negro, e appa-
recerem pela janella os dois velhinhos,
acompanhados de esqueletos choca-
lhantes e tortos. . .
Ah! mas este pavor me corrige, por
causa delle serei, de agora em diante, pura;
minha carne refreará os seus impetos, meu
sangue abafará seu incendio.. .
Posso agora respirar livremente...
(Volta-se á cabeceira do leito e vê que
o môcho tinha desapparecido).
Deus, só hoje é que pude ter uma idéia
da tua generosidade infinita. . .
Depois de seres offendido como
150 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
foste, satisfizeste o meu maior desejo,
expulsando do leito a maldita sentinella
que assistira a todos os meus
desregramentos. . .
De hoje em diante, serei tranquilla,
ainda que tenha de soffrer amanhã o desar
de ser expulsa deste convento, pois a
minha desgraça consiste somente na
luxuria dos meus nervos domados, depois
do terrivel abalo que ha pouco
experimentei. . .
Como te agradeço este beneficio que
me fizeste, esta liberdade que me
concedeste depois dum tão horroroso
captiveiro! Em mim se sumiu agora a
hypocrita para surgir a santa!
Como sinto-me feliz!
Estou convicta de que não cahirei mais
noutra falta, devido á severidade do
castigo soffrido . . .
Em minha alma canta um passarinho
doirado : — é a esperança, que te-
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 151
nho de ser bôa, embora não seja
comprehendida por pessoa alguma!
Amanhã cedo sahirei daqui, e irei
affrontar as guerras e as pestes pelo amor
de Deus, que é tão nobre para commigo ...
Onde houver uma creança afflicta, ahi
estarei, servindo-lhe de mãe e lhe
minorando o tormento: se encontrar um
lazaro na estrada, ao calor do sol, o
aquecerei com as minhas palavas
confortadoras e lhe enxugarei as chagas;
quando houver uma guerra, irei arrostar as
lanças para apanhar um ferido . . .
Vagarei de terra em terra, qual uma
forasteira, espalhando bençãos em volta de
mim e deixando um rasto de gratidão nas
almas daquelles que eu acolher, desvellada
e carinhosa.
Assim lavarei o meu nome, que
amanhã por estas horas estará amal-
152 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
diçoado por todos como o de uma fin-
gida...
E, depois de uma existência curta ou
longa, morrerei satisfeita e abençoada por
muitos . . .
(A cella clareia-se . . . Derrama-se uma
alegria por tudo e a pomba côr de leite,
abrindo as azas, apparece de súbito e paira
nos hombros de Santa Thereza, arrulhando
docemente . . . O rosto da Santa irradia de
prazer, como se estivesse no céo entre
anjos e estrellas, perto do sol e de Deus . ..)
Que noite extraordinaria a de hoje . . .
Durante ella pratiquei o sacrilegio mais vil,
recebi o castigo mais justo e gozo o
contentamento, mais intenso...
Por fim te vejo, querida companheira
de minha alma, luar que prateava a noite
do meu coração! Não sabes quanto soffri
durante o tempo
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 153
em que estiveste ausente, sem me con-
solares com a frescura do teu arrulhar, nem
me animares com a alvura da tua
plumagem ...
Felizmente essa ausencia não . . .
(Cala-se, fitando a pomba, extasiada e
humilde. . . Nos seus olhos brilha a candura
de uma supplica, nos seus labios o sorriso
de uma alma consolada. . . Como que a
cerca, envolvendo-a num manto diaphano,
a protecção de um carinho, a nevoa de uma
benção. . . Ella concentra os olhos meigos
sobre a boa companheira de suas horas
felizes. . . A maneira de uma hypnotisada,
vae ficando, aos poucos, de olhar
inexpressivo. . . Agitam-lhe o corpo
convulsões extranhas . . . Cae em
deliquio... estremece. . . torna-se pallida,
fria. . . rebenta dos seus labios uma
explosão de sangue que irrompera, do peito
enfraquecido, exhausto . . .A onda
154 AS .VISÕES DE SANTA THEREZA
rubra encrespa-se, inundando-lhe o rosto
marmoreo, livido . . . Ella soluça cada vez
mais baixo, murmura apenas uns sons
fugitivos... .Borbota o sangue espumando...
invadindo-lhe a boca, suffocando-a. . . Ella
desfallece aos poucos e, afinal, cae dos
seus olhos cavados a lagrima da morte . . .
De longe, a pomba velava, como uma
boa irmã, o corpo inerte da Santa).
A abbadessa, acompanhada pelas
freiras, entra na cella de Santa Thereza para
saber o motivo por que deixou de
comparecer á oração matinal.
Encontra-a a dormir, placida e pallida,
sorrindo.
AS VISÕES DE SANTA THEREZA 155
A ABBADESSA.
Como sorri dormindo! Está certa-
mente ouvindo a Virgem Maria, que
lhe dicta conselhos e beija-lhe a ca-
beça.
Parece um anjo. . . mas donde veio a
chaga que lhe sangra o rosto ?
PRIMEIRA FREIRA
E onde está a imagem do Crucificado?
Quem foi que o retirou do competente
logar?
SEGUNDA FREIRA
E que Jesus está conversando com
ella.
156 AS VISÕES DE SANTA THEREZA
PRIMEIRA FREIRA
E por isso fugiu donde estava,
transfigurando-se.
A TERCEIRA FREIRA
Infelizmente nós, peccadoras, não
podemos assistir a tamanho milagre...
A QUARTA FREIRA
Como seu corpo está chagado!. . . Ah!
são com certeza as chagas de Christo que
se encarnaram nella. . . A do rosto então é
igualsinha.
A QUINTA FREIRA
E o que querem dizer estas nodoas de
sangue no chão?
AS VISÕES DE SANTA THEREZA
157
A ABBADESSA
Soube, dito por soror Maria, que mora
na cella vizinha, que esta santa passou a
noite inteira a falar e a correr, allucinada,
sem dormir.
Quanto ás manchas de sangue, não sei
como lhes explicar a causa. . . E um
mysterio divino . . . Ajoelhemo-nos . . .
mas antes de tudo, convém chamar
testemunhas de fora para provarmos que as
Visões de Santa Thereza não são uma
exploração, como se espalha por ahi. . .
Cidade do Salvador, Junho 1897.
INDICE
CAPITULOS:
I — Os sons do bandolim ................5
II — O mocho............................................19
III — 0 Radjah ..........................................43
IV— O velho castanheiro.................55
V — A lua........................................71
VI—Soror Mathilde...........................91
VII — 0 desappareciinento do mocho.111
VIII O Sacrilégio ...........................119
IX— O fantasma negro........................137
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