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FABULARIO
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COELHO NETTO
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COELHO NETTO
FABULARIO
PORTO
Livraria Chardron, de Ceio & Irmão
Ltda. editores —Rua das
Carmelitas, 144
Hillaud e Bertrand — Lisboa-Paris
1924
TERCEIRA
EDI
O
Obras de COELHO NETTO
Sertão.
A Bico de Pena.
Água de Juvenla.
Romanceiro.
Teatro, vol. I (O Rellcário,
Os Raios X, O Diabo no
corpo)'
Teatro, vol. II (As
Estações, Ao Luar,
Ironia, A Mulher, Fim de
Raça),
Teatro, vol. IV
(Quebranto, comédia em
3 actos, e o sainete
Nuvem).
Teatro, vol. V (O dinhero,
Bonança, e o InVuao).
Fabulario.
Jardim das Oliveiras.
Esfinge.
Inverno em FIÔT.
Apólogos, coutos para
crianças.
Miragem.
MyHterios áo Natal, contos
para crianças.
0 Morto.
Rei Negro.
Capital Federal.
A Conquista.
A Tormenla.
Tréva.
Banzo.
Turbilhão.
O meu dia.
As Sete Dores de Nossa Se-
nhora.
Balladillias.
Pastoral.
Áe quintas.
Vida Mundano.
Patinho to?to.
NO PRELO : Seenas e perfis.
Feira livre.
A propriedade literária e artística está garantida era todos os
países que aderiram a Convenção de Berne.
Em Portugal, pela lei de 18 de Março de 1911. No Brasil
pela lei n.° 2.577 de 17 de janeiro de 1912.
ARTES GRAFICAS — Pôrto
A
PEDRO PAULO WERNECK MACHADO
A FELICIDADE
Em volta do palacio, que era todo de fino e reflorido
marmore, estendia-se, a perder de vista, o rumoroso
acampamento.
Gente de toda a casta, homens de todos os paizes: uns
cobertos de cerdosas pelles, outros semi-nús, com uma
tanga ligeira em torno dos rins ; ainda outros com
albornozes longos, fotas recamadas de pedrarias, papuzes
de couro florejado, armas á cinta, seguidos de muitas
lanças ; e eram reis, e eram príncipes. Sacerdotes com os
seus idolos ; sabios com os seus papyrus ; poetas com as
suas lyras ; mercadores com os seus escravos : guerreiros
com os seus escudos e tímidos, agachados entre os carros,
disputando um lugar aos camellos enxareilados e aos
ginetes cobertos de telizes, mendigos maltrapilhos que se
encolhiam com medo.
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FABULÀRIO
Todos esperavam que se abrisse a enorme porta
de bronze e apparecesse o genio que devia, por
inculca do Destino, buscar o afortunado a quem
coubesse o palacio com as suas innumeras riquezas.
Todos contavam com a ventura e já se
imaginavam o eleito da Fortuna quando, ao clangor
de uma buzina, a porta abriu-se de par e na soleira
assomou o genio.
Alto e gracioso mancebo, de um louro fulvo, de
Sol, que mais fazia realçar a alvura do rosto, de
belleza feminina e meiga. Tunica de côr celeste,
com flores de ouro, cobria-lhe ondulantemente o
corpo airoso. Á mão trazia, á maneira de sceptro,
largo trifolio engastado em comprida haste, também
de ouro.
Os homens, tolhidos em maravilhado assombro,
não tiravam os olhos do mancebo. Viram-no descer
as escadas, seguir á sombra dos alamos, chegar ao
acampamento e, indo, sem indecisão, por entre
tendas de purpura e tendas de linho, entrar num
bosque onde um homem, enrolado em farrapos, roía,
com voracidade, um osso disputado aos cães,
O genio deteve-se; e, então, acenando ao
miseravel com o trifolio, ajoelhou-se na terra
sordida e, veneradamente, o elegeu senhor do
palacio e de toda a sua riqueza.
FABULARIO 9
Foi um desapontamento na turba-multa.
Ninguem se conformava com a estranha escolha do
Destino. Pois onde havia reis, principes, altos
senhores, poetas, sabios que liam nas estrellas,
sacerdotes que se communicavam com os deuses,
mercadores que possuiam frotas nos mares e minas
no seio da terra, havia de ser um roto mendigo o
favorito ?. . .
Logo se arrancaram as lendas, arreiaram-se os
animais, jungiram-se os bois aos carros e,
lentamente, começou o desfilar das caravanas.
Ao limiar-do palacio sahiram a esperar o
mendigo famulos e ancillas e, por entre columnas de
coral e ouro, por baixo de abobada tremula de
iriados flabellos, pisando molles tapetes e ouvindo o
fresco cantar das fontes, extasiadamente o miseravel
atravessou o peristylo, os corredores luminosos, os
pateos enxadrezados e entrou na câmara, que ora
toda de oloroso cedro com tauxias de ouro e prata e
incrustações de pedras.
O banho que o esperava rescendia e era todo de
leite de flores.
Refrescado, vestiram-no e rei algum carregou
jamais sobre o corpo as riquezas com que o
recobriram.
10
FABULARIO
Inclinou-se o mordomo e, por entre tangeres de
frautas e de cytharas, o foi guiando á grande sala onde o
esperava o banquete em lauta mesa, lampejante de
baixellas e crystaes e toda florida.
Sentou-se o venturoso.
Logo rompeu o concerto delicado de finas harpas, de
frautas suaves e de vozes.
Ao fim do repasto levaram-no a vêr os jardins onde a
Primavera não daria por falta de uma só das suas flores.
Passaram aos pomares de toda a fruta, entraram ao
bosque de frescos, assombrados e redolentes meandros,
onde se desafiavam em gorgeios todos os passarinhos e
os doceis animaes das silvas passeiavam. Foram ás
cavalhariças, onde estadeavam os mais formosos e
robustos ginetes do deserto. Adiantaram-se os pastores a
dar-lhe contas dos gordos rebanhos que guardavam.
Por fim, fez o mordomo a volta da torre de pedra
onde se empilhavam os thesouros e em torno da qual,
silenciosamente, iam e vinham roldas e sobre-roldas de
guerreiros possantes.
De regresso ao palacio — já a rutila Vesper subia no
horizonte, — o afortunado avistou na varanda, entre os
inclinados ramos dos jasmineiros e das acacias que
florecem de ouro, as lindas, esbeltas mulheres do seu
gyneceu que o esperavam, qual mais anciosa do seu
beijo, esmerando-se em sedu-
FABULARIO
11
zí-lo com languidos meneios e logo as chamou com o
sofrego desejo tanto tempo contido e, por toda a noite
longa, emquanto soavam as musicas voluptuosas e os
escansões serviam os vinhos em crateras e as bailadeiras
faziam os mais difficeis e graciosos passos, gozou
exaltadamente a delicia do amor.
Eecolhendo á camara — já as cotovias ensaiavam o
canto — viu o seu leito, de macia cocedra, forrado a
seda, ladeado por dois gryphos de olhos de carbunculo.
Deitou-se, mas o somno fugia-lhe. Lembrou-se,
então, dos dias de fome, das noites de frio, das injurias
dos homens, do desprezo das mulheres.
Insomne levantou-se, abriu largamente uma das
grandes janellas e, á pallida luz da manhan, que nascia,
sentindo o aroma dos jardins, pareceu-lhe que, ao longe,
muito longe havia um palácio maior e mais rico, com
mais ouro, jardins mais vastos e mais floridos, pomares
mais fartos, thesouros mais cheios, mulheres mais bellas,
guerreiros mais robustos, musicas mais concertadas,
iguarias mais saborosas e vinhos mais antigos.
Então, pendendo a cabeça, achou pequena a sua
fortuna e, com inveja dos que haviam partido á aventura,
invejando-o, poz-se a murmurar pensativo: « Ainda, ha
riquezas maiores! . . .»
12
FABULABIO
E, a suspirar taes queixas, entre as purpura
s
e os
brocateis da camara, veiu encontrá-lo o sol, o sol
que, ainda na vespera, o vira entre farrapos,
disputando aos cães dos nomades, sobre o estravo
dos camellos, um osso esburgado.
A COBRA E O GATURAMO
O tempo era de grande esterilidade e os animaes
andavam esfomeados.
Uma cobra, que se arrastara, todo o dia, ao sol,
pelo areal abrasado, á procura de alguma coisa com
que attendesse a fome que lhe roía as entranhas,
perdida toda a esperança, enroscou-se em uma pedra
e ali se deixou ficar á espera da morte.
Iam-se-lhe fechando os olhos de fraqueza
quando um passarinho poz-se a cantar num ramo
secco, lançando tão alegres vozes, que a cobra, que
era matreira, logo percebeu que tinha de avir-se com
um novato, porque passarinho velho não seria tão
indifferente aos males que, em vez de procurar
migalhas, andasse a rolar gorgeios em tempo tão
infeliz.
Assim, instruida pela experiencia, imaginou
14 FABULARIO
uma traça astuta e, espichando o pescoço, poz-se a gemer
com altos guaiados :
Ai! de mim, que vou morrer sem alguem
que me valha. Ai! de mim.
Ouviu-a o gaturamo e, porque era curioso, voou do
galho ao chão.
Pondo-se diante da cobra, interrogou-a :
Que tendes, senhora cobra? Por que assim gemeis
tão afflicta?
Ai! de mim. Fui ali acima á fonte, achei agua tão
fresca e puz-me a beber tão sofrega, que enguli um
diamante do tamanho de uma noz. Tenho-o atravessado
na garganta e morrerei se não encontrar pessoa de
caridade que m'o queira tirar. Vale um reino a pedra, e eu
a darei por prêmio a quem me fizer o beneficio de
arrancar-m'a da guela, onde se encravou.
Tufou-se em arrufo pretencioso o enfatuado
gaturamo e, pensando no thesouro que ali tinha ao
alcance do bico, redarguiu á cobra :
São é pelo que vale o diamante, mas pelo
alto apreço em que vos tenho que me offereço para
alliviar-vos. Abri a boca.
Não se fez a cobra rogar e, tanto que sentiu entrar o
passarinho, foi um trago.
Então, saciada e rindo — como riem as cobras —
enrodilhou-se de novo e adormeceu contente.
A ARVORE
Ninguem sabia explicar como, em tão arido
deserto, conseguira medrar a arvore propicia.
Fora da sombra amenissima da sua copa tudo era
esterilidade adusta — arêas amarellas,- sem herva,
sem sulco de riacho, esbraseando ao sol.
Os viajantes respiravam alliviados quando, de
longe, avistavam o vulto frondoso da arvore ; os
animaes amiudavam os passos e, sob a densa e
derramada folhagem, impenetravel aos raios
caniculares, juntavam-se as caravanas e, como havia
uma cisterna no diversorio virente, todos bebiam a
farta e renovavam a provisão os odres.
A providencia d'aquela arvore não era apreciada,
mal lhe prestavam attenção os viajantes e muitos,
por passatempo, escorchavam-lhe o tronco
16
FABULARIO
com as facas, detoravam-lhe os ramos ou
accendiam fogueiras sobre as suas robustas raizes.
Certo ancião, abrigando-se á sombra da arvore,
descobriu que um mal roaz a consumia e logo,
piedosamente, poz-se a tratá-la com o desvelo
carinhoso com que se dedicaria a um sêr humano.
Mofaram da sua paciência .os homens da
caravana e o velho, sem agastar-se, assim lhes falou:
— Eides de mim porque pratico o bem ; talvez
venhais a anepender-vos da vossa descuidosa
ingratidão quando, de regresso, não achardes
sombra que vos acolha. A arvore succumbe, nada ha
mais a fazer-lhe.
Foram-se os caminbeiros. Certa tarde, a um rijo golpe
de vento, a arvore, cuja folhagem amarellecera, rolou,
com fragor, no solo.
Vinha de volta a caravana e os homens
antegozavam a delicia de um lento repouso á
sombra, quando pasmaram do encontro : rumaria —
folhas seccas, ramos quebrados e o tronco
desconforme meio coberto pelas arêas.
A cisterna ficara entulhada e a alfombra verde
morrera resequida.
Foi então que os homens comprehenderam o
valor da arvore e a fortuna que haviam perdido.
FABULARIO
17
Pobre arvore ! emquanto viveu foi sempre
desprezada, soffrendo toda a sorte de máos tratos;
morta, porém, deixando o vasio, eis todos
lamentando a sombra agasalhadora que ella, sempre
generosa, offerecia, as flores de perfume suave que
se abriam nos seus ramos, os passaros que nelles se
juntavam, alegrando a região com os seus cantos
concertados, a agua que parecia brotar das suas
fundas raizes.
Ainda hoje, os que trilham o deserto inhospito,
mostrando um toro que apparece acima das arêas,
param e, tristemente, murmuram :
— Era aqui que a grande arvore, coberta de
flores e de passarinhos, abria ás caravavas a sua
sombra hospitaleira.
O TEMPO
Querendo o principe offerecer ao templo uma
imagem de Apollo digna do edifício grandioso que
mandara construir para honrar a divindade esplendida e
levar, pelos seculos vindouros, a fama da sua grandeza,
convocou os mais celebres estatuarios do reino para uma
conferencia em palacio.
Apresentaram-se tres artistas, qual d'elle de maior
nomeada.
Disse-lhes o príncipe o que pretendia, ajuntando, com
largueza, que não fazia questão de preço e que pedissem
tudo quanto julgassem necessário á bôa execução da obra
d'arte, que devia ser bella e solidamente feita para que
deslumbrasse e resistisse aos seculos.
Senhor, disse o primeiro estatuario, dai-me ouro e
eu vos trarei uma estatua tão bella que, no
20
FAETILARIO
dia em que fôr installada no templo, os homens da
terra terão a illusão de estar contemplando o proprio
conductor do carro do sol.
E o principe ordenou que se cumprisse a
vontade do artista.
Senhor, disse o segundo estatuario — farei de
prata o corpo, farei de ouro as vestes e cobril-as-ei
de pedras preciosas. Será tão formosa a imagem
que os deuses baixarão do Olympo para contemplá-
la, e, de pé, no altar do templo, dispensará a
luz do sol e a claridade das lampadas porque os
raios que despedir illuminarão gloriosamente o
recinto.
E o principe ordenou que fosse satisfeito o
desejo do artista.
Foi a vez do terceiro estatuario. Era um velho, de
barbas brancas, tão longas que lhe chegavam á cinta.
Caminhava lentamente e, curvando-se ante o
principe, falou com respeito e modestia :
Senhor, dai-me um bloco de marmore puro
e tempo para que eu nelle trabalhe e procurarei fazer
o máximo que a um homem é dado fazer.
Poram-se os tres esculptores com o que haviam
pedido e, em todo o reino não se falou, durante
mezes, em outro assurapto senão no concurso
chamado << divino>>.
Ainda ia em meio o primeiro anno quando o
FABULABIO
21
artista que pedira ouro appareeeu orgulhosamente
na corte com o seu Apollo.
Foi um acontecimento e não faltou quem
louvasse a grande actividade do modelador.
Descoberta a figura, pasmaram os assistentes. Á
imagem irradiava como o proprio sol. Mas um
perito, adiantando-se á turba, poz-se a mostrar
defeitos que muito compromettiam o trabalho e
outras vozes criticaram : uma a expressão, outra a
attitude ; esta notava a falta de magestade ; aquella
as desproporções.
— Vale porque é de ouro, disse por fim o perito.
E o principe, desgostoso, mandou fundir em
moedas a estatua que fora destinada a adoração dos
crentes.
Pouco tempo depois annunciou-se o segundo
estatuario.
Ainda que o seu trabalho revelasse maior esmero
não o acharam, todavia, digno de occupar o solio
em que devia ser erigida a imagem olympica.
É bella e é rica, refulge, mas falta-lhe
magestade. !É uma linda figura humana e nós
queremos um deus.
E a estatua de prata e ouro, com recamos de
pedrarias, ficou ornando uma das salas do palacio.
Do terceiro estatuario não havia noticia e já
corriam murmurações ironicas, boquejos de me-
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noscabo : «Desistiu da empreza. Era velho da mais
para trabalho que exige inspiração viçosa. Anda,
sem duvida, a fazer figurinhas, como as de Tanagra,
para vendê-las aos forasteiros.»
Uma manhan, porém, com surpreza de todos,
appareceu o velho em palacio com o seu «deus»
envolto em pannos de linho.
Ainda que ninguém confiasse no seu trabalho,
juntaram-se todos os cortezãos em palacio, só por
subserviencia ao principe, e os serviçaes
descobriram a imagem. Houve um movimento de
espanto.
Maravilhados, embevecidos quedaram todos
contemplando a figura olympica, Apollo, o
magnifico — que, de pé sobre nuvens, a cabeça
aureolada de raio, o olhar sublime, parecia dominar
serenamente os homens.
Este sim ! Este é Apollo augusto ! bradaram.
Este é o deus solar, dominador da altura.
Descendo do throno, o príncipe felicitou o artista
e, depois de o haver engrandecido com palavras de
louvor, perguntou :
A que deus pediste a graça de tão formosa
inspiração ?
Ao Tempo, senhor. Outros exigiram metaes e
pedras preciosas, a mim bastou o marmore puro.
Para enriquecê-lo eu contava com o Tempo. Se,
para uma curta viagem, são necessarias muitas ho-
FABULARIO
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ras como havemos de affrontar os seculos de afogadilho?
A inspiração é a flor do gênio, mas não exijamos que
ella dê fruto saboroso logo que desabroche. É preciso
deixar que o Tempo faça o seu officio. Se um deus me
patrocinou foi a Paciencia ; se um demonio
comprometteu a obra dos que me precederam, foi a
Pressa. Senhor, os séculos são longos e quem se destina a
atravessá-los deve ir devagar. Quereis saber como se
consegue a Eternidade ? com o Tempo.
EL-REI TRUÃO
Que teria o bobo ?
De seu natural e officio sempre alegre, dera em
melancolico. Calado, mazorro, passava taciturno,
medindo, a lentas passadas, os vastos salões reaes,
indifferente ás chufas dos pagens, á mordacidade
dos fidalgos e
;
com a palheta esquecida á ilhanga,
retorcendo a gorra, seguia, sem dar resposta
alguma, elle, dantes tão prompto em replicas
dicazes, tão vivo em retrucar aos motejos o
perguntas com a jogralice venenosa.
Ia-se cabisbaixo, moroso, e lá se ficava solitario,
horas e horas, no eirado, d'olhos perdidos nos
campos que, por além, se estendiam em fartura de
searas e limpidas ondulações de ribeiras, em cujas
ourellas rumorejavam casaes e pasciam rebanhos.
26
FABULAEIO
O rei, estranhando a repentina mudança 110 genio do
bufão, chamou-o á sua recamara e
,
affavelmente, o
interrogou :
Que tens ? Porque andas assim tristonho e sempre
arredado de todos e de mim ?
Senhor, se eu vos disser o motivo da minha
tristeza maior ainda a tomareis com o vosso justo
desprezo. É por um sonho de bufão.
Que sonho é ?
Quizera ser rei, ainda que fosse apenas por uma
hora. Trocar a minha gorra de orelhas d'asno pela coroa,
a minha palheta pelo sceptro, o meu saio pelo manto real.
Quizera sentar-me no throno, vêr toda a corte a meus pés,
ouvir as lisonjas dos homens, escutar e sentir os suspiros
das mulheres, atordoar-me com o troar das tubas,
deslumbrar-me com o brilho dos trajos e as áscuas do
aceiro das armas, governar, dominar, ser senhor.,
É um sonho de bobo. Se me emprestasseis, por uma
hora, os vossos attributos eu me julgaria o mais feliz dos
homens.
E acreditas que só com a coroa, o sceptro e a
purpura consegues impôr-te ao respeito da corte ? Os
attributos de um rei de sangue não são apenas os
symbolos.
Enganais-voa, senhor : rei sem sceptro, coroa e
purpura vale tanto como o villico, menos que um
FABULARIO
27
bobo palatino. Na Terra é a illusão que governa : tudo é
apparencia.
No primeiro momento.
Sempre, senhor.
Pois se é por tão pouco que tanto te avexas,
escolhe a hora e nella serás rei e eu, para divertir-me,
vestirei o teu saio, empunharei a palheta e me cobrirei
com a tua gorra de orelhas d'asno e, ante o throno, como
é do teu officio, farei cabriolas e direi sandices.
— Senhor, seja então hoje, á hora da audiencia.
Seja, disse o rei, a sorrir, antegosando o
espectaculo original.
Já o nobre salão do palacio regorgitava : eram
fidalgos venerandos com as samarras matizadas de ouro e
recamadas de pedrarias ; eram guerreiros acobertados de
aço ; eram sacerdotes em estamenhas ; eram pagens em
lemistes e em velludos ; eram damas em riquissimos
vestidos e ainda burgueses e gente da ralé que levavam
requestas ao monarcha.
28
FABULARIO
Ás portas, junto aos reposteíros armoriados,
alabardeiros montavam guarda, e, ladeando o
throno, quatro barbudos homens d'armas apoiavam-
se em achas que reluziam.
Ao clangor das trombetas agitou-se no salão a
turba ansiosa e um murmurio passou :
« El-Rei!»
Cada qual procurou, com esforço, chegar-se
mais ao throno, desejoso de ser visto, com ambição
servi! de ser o primeiro a beijar a mão do principe,
prostrar-se ante a sua magestade, ser attendido,
sentir-lhe o poder.
Ris que rompe o cortejo. Engelha-se e corre o
reposteiro, entra a guarda real, com os montantes de
prata e as rodellas floreadas de ouro; em seguida os
pagons, depois os magnates e, entre elles, El-Rei.
Tanto, porém, que appareceu com o manto de
rasto, o sceptro collado ao peito, a coroa um tanto
inclinada a frente, pela attitude, pelo gesto, no
corresponder ao respeito dos seus subditos, no subir
os degráos do throno, em tudo, emfim, via-se-lhe o
enleio canhestro.
Attentaram, então, os vassallos e um, mais es-
perto, sussurrou na turba: « É o bobo ! »
Os olhos fitaram-se agudos no monarena,
franziram-se em sorrisos os rostos e todos, em voz
que
FABULARIO
29
subia em grita e se desfazia em gargalhada, repetiram :«É
o bobo ! »
E os alabardeiros riam, riam os homens d’armas, riam
donas e fidalgos, pagens e varletes, villicos e burguezes,
todos.
E a gargalhada immensa estrondava abalando os
muros do salão quando o arauto, avançando, impoz
silencio. Foi, então, uma rinchavelhada chocarreira:
« É o bobo ! El-Rei Truão ! El-Rei Truão . . . »
Uns, com acenos, perguntavam pela palheta, outros
pela gorra e as damas e os fidalgos torciam-se de riso.
Debalde o arauto ameaçava a turba com os
alabardeiros e com os homens d'armas, não havia contê-
la, e o bobo, remexendo-se no throno, empallideeia de
furor, e quanto mais se lhe aceendia a colera, mais
crescia a assuada.
Eis, porém, que, com alegre tinir de guizos, surge,
disfarçado nos trajes do bufão, com a palheta em punho,
a fazer visagens e momices, o proprio rei.
Foi direito ao throno, zumbriu-se, rebolou-se no
tapete ao som das gargalhadas e, quando maior era a
balburdia, ergueu-se e, encarando de face a multidão,
perguntou em tom faceto :
— Que tal vos pareço assim !
Na pergunta reconheceram todos a voz do Rei
30
FABULARIO
e logo, respeitosos, humilhados, prostraram-e. Cessou a
galhofa e o silencio dominou solemne. Então o rei,
acenando com a palheta, disse :
Ide-vos. Foi um capricho meu pôr um truão
no throno e vestir-me com a sua pelle. Ide-vos !
Houve um escoar e a turba retirou-se.
Quando se acharam sós, o rei e o bobo, disse o
monarcha ao bufão :
Deves estar contente : foste rei uma hora.
Ah ! senhor . . . mais bobo que nunca ! Mais bobo
que nunca ! E despindo-se : Aqui tendes o que vos
pertence, dai-me o que é meu e fique cada qual no seu
destino. Podem os reis descer sem risco e onde quer que
estejam sempre serão reis porque trazem comsigò o
prestigio. O bobo è que não pôde subir porque, quanto
mais se eleva, mais lhe apparece o ridiulo. Em vós a gorra
é apenas um capricho ; em mim a coroa foi a burla e o
que conseguistes com o aceno da palheta não pude eu
alcançar com ameaças de morte.. E entanto ... eu tinha
todos os attributos.
Nem todos, disse o soberano : faltava-te o
principal — a magestade de rei.
HELIANTHO
Despeitado com a gloria do sol, que os homens
adoravam sob o nome de Phebo-Hyperion,
Hephaestos, o artificioso, resolveu supplantá-lo
fazendo, nm sua officina subterraea, um astro e tudo
igual ao que, deslumbrantemente, percorria, de
extremo a extremo, a altura elysea.
Espalhou os seus cabiras e telchinos pelos veios
das minas em busca de ouro e, quando viu a forja
atupida de metal luzente, reuniu os cyclopes e, com
os mais hábeis, poz-se a modelar a imagem do astro.
Lavraram, com esmero, o disco, a juntaram-lhe
os raios.
Hephaestos não esquecia um detalhe, não
descurava a mais imperceptivel minucia e,
apurando
32 FABULARIO
a arte em requintes de cuidado escrupuloso, depois
de lento, insistente polir, espalhou a irradiação em
torno do centro de ouro e, orgulhoso da sua fabrica,
convocando Demeter e todas as divindades da terra
á sua entranhada officina, mostrou-lhes a nova
criação da sua arte incomparavel.
Pasmaram os deuses do sublime trabalho do
artifice magnifico e, em unisono, bradaram :
É o proprio sol!
E Demeter pronunciou-se :
Agora poderemos zombar de Apollo e do
mesmo Zeus, condensador das nuvens. Quando
os cumulus tempestuosos apparecerem na altura e
os nimbus escurecerem os campos, o sol da terra
abrirá a sua claridade. Quando os frocos de neve
baixarem sobre prados e montes, o sol da terra os
fundirá de repente. Não haverá mais regelo e o
meu corpo verde terá sempre o esplendor diurno
porque, quando o plaustro de Phebo mergulhar
no occaso, o sol da terra refulgirá alumiando todos
os lugares, desde o campo mais descoberto á
mais recondita deveza.
E disse ainda Hephaestos orgulhoso:
E mais ainda farei, Demeter fecunda. O
sol é um para todo o vasto universo — eu multi-
plicarei os soes, cobrirei com elles a terra como as
estrellas recairiam o céu. As montanhas, os cam-
FÁBULARIO
33
pos, as collrnas, os valles terão constellações de
soes. A beira de todo o córrego, ao longo dos
grandes rios, em torno dos lagos limpidos brilharão
soes ardentes e os lavradores poderão colher o sol da
terra como colhem b trigo e o linho levando-o para
as cabanas.
O que é necessario, Demeter, é que tu o faças
sahir a flux como fazes brotar a semente atirada no
sulco do arado.
Mas um velho cabira, que ouvira em silencio,
adiantou-se e disse :
— Hephaestos, senhor das minas, dominador do
fogo occulto, se pretendes fazer um sol que possa
competir com Phebo-Hyperion, não basta que imites
a forma do astro, é necessário que lhe dês a luz,
eterna como a do sol, e essa não a farás, de certo,
com o fogo que flamineja na terra e que uma gotta
d'agua combate. Assim, para que faças um sol, terás
de procurar obter a essencia da lua divina,
imperecivel e inalteravel, que é o esplendor dos dias,
— Tomá-la-ei ao proprio sol, disse Hephaestos,
desde que achas que o lume terreal é ephemero.
Faça Demeter apparecer á flor da terra o sol de ouro
que eu o accenderei nos próprios raios do sol divino,
como se acoende a lenha á chamma da fogueira.
34
FABULARIO
Parei o que pedes, disse Remeter ; e cumpriu
a palavra.
Com os primeiros calores da primavera, quando
as brisas corriam perfumadas e começavam os ares
a enxamear-se de borboletas, viram os pastores
arcades brotar da terra um arbusto novo.
Cercaram-no com interesse examinando-o e
maior foi nelles o espanto quando deram com a sua
flor. Levantou-se, entre todos, uma grita jocunda :
— É um sol! É um sol... !
Talvez algum nimbo que tivesse ficado do
estio e, criado na terra, como o grão de trigo, vies
se agora em flor.
— Que lindo enfeite ! gabaram as mulheres.
E, em torno da haste em que oscillava a flor
radiosa, puzeram-se a bailar em circulo os arcades
contentes.
Hephaestos, apenas se cumpriu a promessa de
Demeter, poz-se a guiar a flor inclinando-a para o
sol afim de que recebesse em cheio a luz do astro e
nella eternamente se inflammasse.
Mal se acairelava o oriente de rubro volvia a flor
o seio para o esplendor. Surgia o sol, a flor fitava-o
e seguia-o na sua derrota ceus em fora ate que, ao
canto vespera1 das cigarras, o astro descahia no
horizonte.
Que lhe ficava do sol ? o amortecimento.
FAB ULARI O
35
Crestava-se debalde a flor misera e, á noite, ao
contrario do que Hephaestos esperava, perdia-se na trova
como as outras flores. Mais lume despedia o pyrilampo
erradio, mais lume espalhava o pantano selvagem.
Exaltou-se o deus subterrâneo accusando os cyclopes
de imperitos e já pensava em descer á officina profunda
para vingar-se dos artifices da incúde, quando um subito
clarão desfez as trevas nocturnas e Phcbo fulgido
appareceu junto da flor pendida.
— Hephaestos, não lances a culpa aos que a não têm.
Quizeste cobrir a terra de soes e trabalhaste no ouro com
esmero admiravel. Não ha duvida que a obra é digna do
teu genio, o que, porém, não lhe podes dar é o esplendor
que me cerca.
Conseguisíe imitar a forma, mas a essência, que é a
luz, essa só a poderia dar o grande Zeus.
Nem tudo póde o martello sobre a incúde e o ouro
brilha ao contacto da luz.
Soes d’ouro podem fazer, e lindos ! os teus cyclopes
habilidosos ; astros só os cria o poder de Zeus.
Demeter sahiu em teu auxilio, está a terra coberta de
helianthos e quem os vê dentro da noite? Entanto um raio
só da minha claridade basta para alumiar um campo
vasto .És fogo, senhor do fogo,
30 FABULARIO
contenta-te com a tua natureza e com o teu
prestigio, não queiras ser astro.
Disse e, como as coto vias, voando dos trigaes
annunciavam a madrugada, remontou ligeiro aos
céus para tomar o governo da esplendida quadriga.
Hephaestos, porém, não se dando por vencido,
insistiu no seu propósito de tornar a flor igual ao sol
inflammando-a na luz do astro diurno e, desde os
tempos mais remotos até hoje, mal amanhece e
incendeia-se o céu, ei-lo a voltar a flor para o disco
fulgente, a acompanhá-lo até o perder de vista.
E a flor ... sempre apagada e a crestar-se na luz,
morre como as mariposas.
Hephaestos, porque has de sujeitar a flor a
tamanho ridiculo entre as flores?
Heliantho ... pobre de ti! E quantos ha com a tua
pretenção e com o teu destino entre os homens —
soes na vaidade o menos que vagalumes.
A FLAUTA E O SABIÁ
Em rico estojo de velludo, pousado sobre uma
mesa de xarão, jazia uma flauta de prata.
Justamente por cima da mesa, em riquissima
gaiola, suspensa do tecto, morava um sabiá.
Estando a sala em silencio e descendo um raio
de sol sobre a gaiola, eis que o sabiá, contente,
modula uma volata.
Logo a flauta escarninha põe-se a casquinar no
estojo, como a zombar do modulo cantor silvestre.
De que te ris ? indaga o passaro.
E a flauta, em resposta:
Ora esta ! Pois tens coragem de lançar taes
guinchos diante de mim ?
E tu quem és ? ainda que mal pergunte.
Quem sou ! Bem se vê que és um selvagem.
Sou a flauta. Meu inventor, Marsyas, lutou com
2
38 FÂBULARIO
Apollo e venceu-o, por isso o deus, despeitado, immolou-
o. Lê os classicos.
Muito prazer em conhecer. Eu sou um míisero
sabiá da matta. Pobre de mim ! fui criado por Deus muito
antes das invenções. Mas deixemos o que lá foi. Dize-me :
que fazes tu ?
Eu canto.
O officio rendo pouco. Eu que o diga, que não faço
outra coisa. Deixarei, todavia, de cantar — e antes nunca
houvesse aberto o bico porque, talvez, sendo mudo, me
não houvessem escravizado — se, ouvindo a tua voz,
convencer-me de que és superior a mim. Canta ! Que eu
aprecie o teu gorgeio e farei como fôr de justiça.
Que eu cante . . . ? !
Pois não te parece justo o meu pedido?
Eu canto para regalo dos reis nos paços, a minha
voz acompanha os hymnos sagrados nas igrejas. Ao
rythmo dos meus delicados trillos bailam as damas,
guiam-se as endeixas das serenatas de amor, ao luar. O
meu canto é a harmoniosa Inspiração dos genios da
rhapsodia sentimental do povo.
Pois venha de lá esse primor. Aqui estou para
ouvi-lo e para proclamar-te, sem inveja, a rainha do
canto.
— Isso agora não é possivel.
!
FABULÀRIO 39
— Não é possvel! Por que ?
Não está cá o artista.
Que artista ?
O meu senhor, de cujos labios sahe o sopro que
transformo em melodia. Sem elle nada posso lazer.
Ah ! é assim . . . ?
Pois como ha de ser ?
— Então, minha amiga—modestia á parte — viram os
sabiás ! Vivam os sabiás e todos os passaros dos bosques,
que cantam quando lhes apraz, tirando do proprio peito o
alento com que fazem a melodia.
Assim, da tua vangloria ha muitos que se ufanam.
Nada valem se os não soccorre o favor de alguém ; não
se movem se os não amparam, não cantam se lhes não
dão sopro, não sobem se os não empurram.
O sabiá vôa e canta — vai á altura, porque tem azas ;
gorgeia, porque tem voz. E suecede sempre serem os que
vivem do prestigio alheio os que mais allegam
triumphos.
Flautas, flautas . . . Cantas nos paços e nas
cathedraes. Pois vem d'ahi a um duetto commigo.
E, ironicamente, a toda a voz, poz-se o sabiá cantar e
a flauta de prata no estojo de velludo . . . moita ! Faltava-
lhe o sopro.
O MILAGRE
Indo um homem á floresta lenhar, descobriu na
broca de um tronco um idolo grosseiro e logo,
accendido em zelo devoto, tomou-o nos braços e
regressou contente á villa.
Rapidamente espalhou-se pelo lugarejo a noticia
do achado e não faltaram presagios felizes,
attribuindo o apparecimento da imagem a intuitos
de mercês com que Deus queria premiar as gentes.
Ha tarde do mesmo dia, que foi de alegre
alvoroço, encheu-se a cabana do lenhador, onde o
«santo», entre luzes e flores, sobre uma mesa
forrada de linho alvo, avultava como um toro
apenas falquejado.
Choveram esmolas, multiplicaram-se promessas
e, como eram indistinctas as feições do idolo, cada
42 FABULARIO
qual o appellidou conforme a sua devoção, e foi assim
que o santo teve varios nomes, prevalecendo, porém, o
de << Senhor apparecido >>.
A nova propalou-se ás povoações vizinhas.
Começaram as romarias e, com ellas — porque a cabana
não podia comportar a turba de devotos — veio a idea de
levantar-se uma capella, onde a imagem tivesse agasalho
digno e todos a pudessem contemplar á vontade,
pedindo-lhe o que pretendessem.
Não faltaram materiaes nem obreiros e, pouco a
pouco, ao som de canticos, foram subindo os muros da
capella.
Contavam-se os enfermos por centenas, vindos de
varias partes — cegos, febrentos, lazaros e paralyticos,
todos pedindo a cura e fazendo promessas generosas.
O santo, sempre entre flores e luzes, parecia
indifferente aos rogos dos infelizes.
Uma manhan, porém, certa velha que chegara em
andas, entrevada, poude deixar o estrame em que jazia e,
por seu pé, sem auxilio, dirigiu-se, entoando louvores, á
cabana do lenhador, prostrando-se ante o santo a
proclamar e a agradecer o milagre.
Tanto bastou para que se divulgasse, com
maravilhosos detalhes, a noticia da cura espantosa.
FABULARIO 43
Cresceu a fé entre os enfermos, debalde, porém,
rezaram e promettiam, nunca mais houve quem
sahisse do seu grabato, vendo, se era cego ;
ouvindo, se era surdo ; caminhando, se era
entrevado ; livre da febre ou sem dores.
Queixavam-se os miserandos, mas sempre havia
quem lhes respondesse «que a razão estava em elles
não terem fé» e com isso os desgraçados
resignavam-se, sempre louvando o santo, cuja fama
crescia.
Com a affluencia dos devotos, o povoado
desenvolvia-se ; o seu commercio, que era
mesquinho, tornou-se consideravel, e á volta da
capella, ergueram-se tendas de trabalho : o oleiro
apollegando o barro, o ferreiro malhando á bigorna,
o carpinteiro acepilhando a taboa, o imaginario
esculpindo copias do «santo» que os devotos
traziam ao pescoço, a rendeira com a sua almofada
de crivo e, como sempre chegavam familias, iam os
pedreiros edificando e as officinas todas laboravam.
Apesar de não se ter realisado outro milagre
depois do desentrave da velha, a romaria não
cessava e se alguém, por desanimo, mostrava-se
descrente, logo lhe citavam o caso da paralytica,
descreviam os seus passos, diziam como chegara á
cabana, que fizera, e ainda mostravam os castiçaes
de prata que ella mandara ao santo com um
44
FABULARIO
quadro em que estava miudamente referido o
milagre sublime.
E assim, os mesmos que regressavam aos lares
sem melhoras, faziam o louvor do santo <<que cu-
rara a velha de uma paralysia de longos annos>>.
Outra cura não fez a imagem do busque que da
cabana, passou ao altar-mór da capella, mas só com
haver andado uma entrevada — beneficio para o
qual, talvez, não concorrera — ganhou tão grande
faina, que se alguém, nas terras de longe, alludia á
sua bondade, logo em coro se murmurava, em tom
maravilhado :
— « Não ha santo mais milagroso !» E lá vinha
a referencia á paralytica.
Para milhares de desilludidos só havia aquelle
consolo, e esse bastava para manter a crença o
prestigiar o santo.
Como esse idolo da floresta — a que se attribuiu
milagre — quantos ha de carne e osso que são
potentados por terem tido a sorte de achar uma
velha entre vada e de fé . . . que se levantou do
estrame e proclamou a sua virtude.
Idolos e homens . . . tudo está em criarem fama.
(t
FRUTOS MADUROS
Todas as manhans, depois de, attentamente,
examinar as victualhas que entravam para as
cozinhas reaes, o medico do paço descia ao pomar,
e, vagaroso, abordoado a um bastão, entre famulos
que levavam alcofas, ia de uma a outra arvore,
indicando as frutas que deviam ser colhidas.
Examinava-as, cheirava-as, apalpava-as o só
permitia a apanha das que lhe pareciam bem
maduras, tão molles que, ao mais leve toque, logo
se amolgassem.
Debalde lhe fazam ver que, assim passadas, perdiam
toda a belleza e todo o perfume : nem ornavam a
mesa, nem convidavam o appetite.
São as que convém ao rei, retrucava o medico.
O encarregado do horto levava-o a vêr os pe-
46 FABULARIO
cegueiros carregados de frutos pubecentes, carnudos
e corados, cujo aroma rescendia; rnostrava-lhe os
figos reçumando calda, á volta dos quaes era um
alegre giro-girar de abelhas ; vergava, para que elle
os visse de perto, os galhos fartos das laranjeiras e
dos limoeiros. Entrando sob as latadas apontava-lhe
os cachos pyramidaes ou, agachando-se nos
canteiros, apartava as folhagens expondo os
morangos côr de sangue ; e o medico sempre a
acenar com a cabeça branca :
« Que não ! Não estavam como convinha. Para
que não fizessem mal era necessario mais sol, mais
sol e mais orvalho ».
E os famulos colhiam.
As vezes, a fruta, de tào madura, esborrachava-
se-lhes entre os dedos ; outras eram tão chôchas, tão
engrouviadas que elles atreviam-se a falar :
Vede, senhor ; reparai. Não é para a mesa de
um rei. Dir-se-á que a apanhamos no chão.
Está como convém, affirmava o velho
medico.
E lá ia, sem attentar nas arvores que o attrahiam
com a belleza e com o aroma dos pomos sazonados.
Uma tarde, sentando-se o rei á mesa e
appetecendo-lhe comer figos, pediu-os ao copeiro.
A corbelha em que vieram acamados era de
FABULABIO 47
filigrana de ouro, eram, porém, tão feios os
berjaçotes que o rei os repelliu de si, com
repugnancia.
Os pecegos não lhe agradaram, tão pouco as
uvas que já se encarquihavam em passas, e tudo
mais que da copa lhe traziam em covilhetes
preciosos e em condeças era devolvido.
Irritou-se o monarcha e, attribuindo a culpa ao
pomareiro, mandou chamá-lo e, tanto que o viu
presente, rompeu em palavras agastadas :
Para quem guardas tu as boas frutas para que
só me mandes as que rejeitam os passarinhos ?
Senhor, a culpa não é minha, senão do
medico de V. M. que é quem as escolhe nas
arvores. Por mais que eu lhe diga que o fruto devo
ser apanhado em tempo — nem tão verde que trave,
nem tão maduro que se engelhe, — elle reponta e
vai ordenando o que entende. Não me posso
insurgir contra quem sabe. Elle é o zelador da saude
preciosa de V. M. e ainda que eu, por muito lidar
com frutos, conheça os melhores e saiba quando
estão em vez de ser colhidos, calo-me. Frutos não
faltam e lindos no pomar, mas que ha de responder
um pomareiro ao medico d'El-Eei ?
Chamado o medico, que já se havia recolhido á
sua camara, esperou-se longamente que se levantasse
e viesse, sempre abordoado, arrastando os passos
perros ao longo dos corredores.
48 FABTJLARIO
Sciente do que se tratava, logo entrincheirou-se
na pratica, allegando o muito que vira e o muito que
aprendera em livros.
Nada, meu amigo, tornou o rei. Deixemos em
paz os livros — todos elles espremidos não chegam
a dar duas verdades. Frutos, querem-se de vista e
sabor. Nada de figos murchos.
A prudencia, real senhor. . .
Conheço-a : é uma senhora que não apaga a
lanterna e ainda em pleno dia trá-la accesa porque
podo alguma nuvem obscurecer o sol. Dão-na por
irman da sabedoria, essa filha da velhice, no dizer
dos velhos. Eu sei. É vezo servirem aos reis tudo
que o Tempo estragou — frutos velhos e homens
decrepitos ; uns, porque perderam a acidez ; outros,
porque adquiriram experiencia.
Assim o que vem á mesa é o repudio dos
passarinhos e o que fala no conselho é a caducidade.
Os bons frutos e as intelligencias viçosas vegetam
no pomar e no mundo até que as gelhas e as rugas
os recommendem. Nada, já que os reis são escravos
da tradição que, ao menos, os frutos sejam frescos e
se o reino não pode crescer com os lanços dos bons
espiritos que o paladar do rei não se prive do
agradavel sabor.
Fique cada qual no que entende — o medico, de
guarda á saude e o pomareiro no pomar.
(
O RELOGIO E O VEGETE
Sabia certo philosopho da vaidade de um seu
amigo que, sendo septuagenario, procurava, a todo
o transe, fazer-se passar por moço.
Pintava-se e, só para este artificio, tinha uma
enorme bateria de frascos. Os cosmeticos eram ás
duzias e, no toucador, os bastões rolavam ás pilhas
e eram potes de pomadas, caixas de polvilhos,
ferros, escovas, limas e tesouras.
Todos os dentes postiços lembravam as imagens
funeraes com que, sobre os tumulos, se recordam os
finados e o busto, que corcovava, era mantido a
prumo pelas laminas de aço de um collete.
Certa manhan, procurando-o o philosopho,
achou-u atarefado em remoçar-se. Afundou na
primeira poltrona com um livro e, emquanto o ve-
50 FABULÁRIO
lho reparava os estragos da velhice, fingiu-se
interessado na leitura.
Um momento sahiu o pachola e logo o sabio, pé
ante pé, foi ao grande relogio, cujos ponteiros
marcavam o meio-dia, e parou-o,
Reappareceu o velho sarapintado e ageitado em
quarentão, teso e liso, os cabellos e a barba de
azeviche, mas os olhos ... ai! delles, já vasquejavam
no fundo escavado das orbitas.
Sahiram para o almoço.
Á mesa a palestra foi longa : o velho falou de
amores, referindo galantes aventuras ; o philosopho
sorria, gabando-lhe a fortuna.
Subia o calor — não só do sol como dos vinhos
e licores, que foram varios e copiosos.
Passaram ao terraço e, tão doce era o ar em tal
recreio, tão commodo era o recosto molle das
poltronas, tão capitoso era o perfume do jardim, que
ali se ficaram os dois discreteando suavemente, com
cabeceios de somno que os faziam mesurar de
quando em quando.
Lenta vinha vindo a tarde e o velho, que não
desonrava os fingimentos, tornou á camara a
refazer, com unguentos o cosmeticos, o que o suor
compromettera.
Ao entrar, porém, consultando o relogio,
pasmou de o ver parado.
FABULARIO 51
Parado o relogio !
_Parei-o eu, disse serenamente o philosopho.
_Tu ! Com que fim ? !
Desejando tornar mais longo o nosso
convivio, não quiz que os ponteiros ganissem do
meio-dia.
Dobrou-se o velho a rir do que lhe parecia
grande necedade.
Temos um novo Josué ! Julgas, então, que,
parando o relogio, deténs a marcha das horas ?
Não rias, porque foi comtigo que aprendi tal
lição.
Cómmigo !
Sim. comtigo. Infelizmente, porém, estou
convencido do meu erro e praza a Deus que o
mesmo fie aconteça. Parando o relogio ao meio-dia
nem por isso consegui evitar que as sombras da
noite viessem sobre nós. Ellas ahi estão, e pesadas,
apesar do estratagema.
Mira-te agora ao espelho, tu. Não fazes em ti o
mesmo que fiz ao relogio ?
Olhando os ponteiros dá-se logo pela inercia da
machina, porque ninguém se engana com o tempo.
Assim, quem te vir, ainda que te besuntes com todos
os oleos da terra e tinjas os cabellos com todos os
preparados chimicos, não se illudirá com a fraude.
Queres fixar a mocidade como eu quiz re-
52
FABULARIO
ter o tempo, parando o relogio, que lá está immovel
no zenitn sem que, por isso, refuja ao negror da
noite que já o vai cercando.
O Tempo é como o sol, meu amigo: ninguém o
esconde, não ha rebuços que o encubram. É meio-dia
no relogio e já por ahi andam a trissar morcegos.
Assim tu — fazes-te moço, escondes a verdade e
ella ressalta flagrante em todo o teu corpo.
Vamos lá, meu amigo, não nos queiramos illudir
oppondo tropeços ao que não pára. Podes enterrar
um raio de sol? foi este um sonho que Averrhóes
tentou inutilmente. Deixa-te de artificios— lava-te e
apparece como és — emquanto eu vou acertar o
relogio, pondo-lhe os ponteiros sobre as horas que
são.
O RIBEIRO
No principio, querendo o Senhor estabelecer a
ordem perfeita e firmar a harmonia entre as criaturas
para que, a todo o tempo, não lhe chegassem
queixas de opprimidos ou de descontentes, descia á
terra de quando em quando, e, ainda que tudo lhe
parecesse bem, dissimulando em humildade a sua
omnipotencia, escondia-se na folha da arvore, na
penna do passaro, na petala da flôr, na gotta d'agua,
na estriga, no grão de arêa, na centelha do lume, no
espirito do homem, no coração do animal e
escutava, na intimidade, o que pensavam ou diziam?
e se achava razão na queixa corrigia; se ouvia
louvores exultava.
O passaro bemdizia-o porque Elle lhe dera a aza
e o canto ; a flôr agradecia-lhe o perfume, a
54 FABULARI0
arvore a folhagem, a serra o arvoredo, o rochedo a
fonte e o musgo, a caverna a sombra e o silencio a
mina os filões de ouro, o homem o pensamento, a
fera a liberdade e o mar não se cangava de
desdobrar os vagalhões admirando-lhes as rendas
brancas de espuma que se espalhavam nos areaes.
A terra era immensa alegria. Todas as vozes,
ainda as mais humildes, como a das formigas que
carreavam achegas e a das abelhas que recolhiam o
mel, eram de agradecimento a Deus. O proprio
cardo hediondo mostrava-se ufano da flor que se
abria nos seus galhos aleijados.
E Deus parecia contente com o que fizera e,
retomando a forma divina, envolvendo-se na
aureola prefulgente, já se dispunha a regressar ao
céu quando ouviu o murmúrio lamentoso que subia
de um ribeiro.
Aproximou-se da margem, toda vestida de
verdura florente e, inclinando-se sobre as aguas
passageiras, reteve-as perguntando-lhes porque se
queixavam.
— Senhor, disse o ribeiro, a tudo destes
liberdade : os passaros voam por onde querem — se
lhes apraz a montanha, batem azas, lá vão ; se está
em flor o bosque, ao bosque se dirigem. Passam as
aguias e as levandiscas : são livres, têm toda a terra
e todo o espaço ; o homem erra á vontade por
FABULARIO 55
todas as devezas, os animaes percorrem as florestas,
atravessam as campinas e os desertos, elegem a
moradia que lhes convém ; a estrella brilha no céu e
fulge nas aguas ; a terra levanta-se em poeira e vai
crear ilhas nas rochas do largo oceano e as vagas do
mar, se desejam o sol, chegam-se ás praias tepidas e
doiradas, quando querem o repouso recolhem-se nos
extremos do mundo e dormem congeladas. Eu só
não tenho o direito de deixar esta prisão estreita,
nem de retroceder, o que fazem os pequeninos
peixes que nascem no meu seio, mais livres do que
eu porque podem ir e vir, zombando da correnteza.
Sou um captivo. Quizera poder insinuar-me nos
bosques, repousar um minuto á sombra das arvores,
correr as arêas claras do deserto, rolar pelas
ribanceiras alfombradas, ser livre, emfim.
É quanto queres?
É tudo, Senhor.
Assim seja. E logo, desfazendo as ribanceiras
que continham as aguas do ribeiro, deixou-as o
Senhor livres.
Precipites, com murmúrio alegre, correram pelos
campos, invadiram a floresta, alastraram o deserto,
metteram-se pelas furnas.
Mas a floresta reteve as que lhe chegaram e,
juntando-as em lago, matou-as formando com as
56
FÁBULARIO
miseras, dantes tão limpidas e vivazes, o tenebroso
e taciturno pantano.
O deserto, de arêas quentes, mal sentiu as aguas
erradias, logo as devorou, sofrego. As furnas, cheias
de pedras, em declives escabrosos, precipitaram-nas
de queda em queda.
De todos os lados, então, subiram lamentos
doridos : no pantano, as vozes das aguas
agonisantes que se sentiam abafar pelas folhas
mortas, pelos ramos seccos, escabujando, não sobre
o saibro claro em que, dantes, haviam corrido, mas
sobre um putrido lençol de lôdo ; no deserto, gritos
das aguas que succumbiam devoradas pela sede
eterna dos areaes resequidos ; nas furnas o longo,
angustioso gemido das águas arrojadas de pedrouço
em pedrouço.
Foi, então, que o ribeiro arrependido clamou em
desespero :
— Fazei-me, Senhor, voltar ao leito antigo, dai-
me a doce prisão das minhas formosas margens.
Que fui eu pedir, insensato que sou! Pobres das
minhas aguas ! Dai-me, de novo, o antigo leito com
as suas margens orladas de verdura ; fazei-me tornar
á minha prisão e que as minhas ondas continuem a
brincar com as libellulas e com as borboletas.
Ó o tumulo negro, o pantano triste . . .! Como
FABULARI0
57
me illudiu a floresta ! Ó o deserto perfido e os
antros traidores ! Juntai as águas dispersas que
soffrem por minha culpa, que ellas tornem ao leito
enxuto. Fazei-me, de novo, o ribeiro de outr'ora.
E disse o Senhor :
— Foste o unico descontente. Entre tantos rios e
ribeiros só tu reclamaste contra a minha ordem
pedindo liberdade. Dei-t'a. Eras limpido, tinhas
belleza e tinhas frescura e todas as tuas aguas
corriam juntas, em alegre bando, por entre as
sombras cheirosas. Quizeste entrar na floresta,
como o homem — lá estás em pantano ; quizeste
percorrer o deserto como os leões, as arêas
devoram-te; qúizeste voar como o pássaro, o sol
absorve-te ; quizeste descer a montanha, os
penhascaes precipitam-te e, querendo ser tudo nem
ribeiro és mais, porque a agua que te resta é uma
lagrima escassa que desappareeerá no estio, com o
ardor do sol.
E, sem mais dizer, subiu o Senhor ao céu e lá
ficou na campina o raso fio d'agua, resto do ribeiro
ambicioso, cujos membros jaziam dispersos:—na
floresta rebalsados em pantano, torvelinhando em
cachoes nas furnas, no deserto em lençol humido que
mal chegava para a sede voraz das arêas adustas.
Desde então nunca mais as coisas se queixaram :
serviu a todas de exemplo o caso do ribeiro
descontente.
o PRINCIPE DE LAHOS
Quando lhe disseram que o physico pedira, além
da conducção, uma guarda de fortes cavalleiros que
lhe garantissem a vida nos andurriaes assolados
pelos bandidos e tantas moedas de ouro quantos
fossem os dias que passasse no castello, ergueu-se
no leito o rispido suzerano bramindo, a apontar a
arca em que guardava o thesouro :
— D'ali não sahe moeda para tão refalsado villão
! O que lamento é não ter forças para montar o meu
ginete e empunhar uma lança, porque havia de
mostrar-lhe como costumo responder a affrontas da
ralé. D'ali não sahe moeda.
- Disse e cahiu no leito prostrado e gemendo.
Foi tamanho o furor, tão violento o arranque, tão
despejados os movimentos do ancião que se
60 FABULARIO
lhe abriram as feridas do peito e o sajague jorrou a
golfos.
Sollicita e ligeira, a filha acudiu a tempo de
estancar a copiosa hemorrhagia e
;
com palavras
meigas e socegadas, serenou o animo do pai
contendo-lhe as abafas e os protestos fureutes da
avareza e, para distrahi-lo, á falta de menestrel ou
jogral que lhe cantasse, ao som da rota, um lais ou
uma cantilena, tomando o fuso, a fiar, improvisou o
romance do Principe de Lalios.
«Logo que subiu ao throno o príncipe galhardo,
o cavalleiro mais apposto e a melhor lança do reino,
ordenou se fizessem grandes obras militares ao
longo da fronteira, se dotasse a esquadra de navios
possantes, se alistassem no exercito os mancebos
das principaes familias. Queria os jovens e de boa
sombra, armados com esplendor para que todos que
os vissem ficassem deslumbrados. Assim foi feito.
Restauraram-se as muralhas, armaram-se galés
altivas, escolheram-se os esbeltos infantes e os mais
gentis cavalleiros.
O que maravilhava, porém, não era a espessura
das muralhas, não era o porte dos navios, nem era?
^J
FABULARIO
61
tão pouco, o numero da soldadesca, mas o fausto que em
tudo se notava.
As muralhas eram pintadas como paredes de paços, as
náos andavam sempre empavesadas, como em festa, com
a companha vestida de linho alvo, vergando remos que
eram de sandalo ; os infantes, mais pareciam donzeis de
paço, vestidos de purpura com arcos que trescalavam,
escudos que eram baixellas, lanças com espiculos de prata
e que direi dos cavalleiros? se os telizes eram de trama de
ouro, podeis imaginar como seria o mais.
Toda essa ostentação era apenas para a vista: nem as
muralhas offereciam resistência porque as pedras, mal
assentadas, rolariam ao primeiro embate abrindo brechas
ao inimigo, nem os infantes rneneavam as armas e os
cavalleiros só em torneios galantes escaramuçavam.
O principe contentava-se com possuir exercitos e
uma esquadra numerosa. Que lhe importava a
impericia do soldado e a inexperiencia da maruja?
Lá estavam os vistosos esquadrões e no molhe,
velas abertas, a esquadra arfando.
Succedeu que um monarcha ambicioso, cujo
reino confinava com o de Lahos, resolveu levantar-
se em armas contra o príncipe garrido e, estendendo
em campo o seu valente exercito e sol-
62
FABULARIO
tando nos mares a sua aguerrida frota, impoz-se com
arrogancia.
Foi então que um aio falou ao principe :
Senhor, é tempo de fazerdes sahir a vossa gente.
Guarnecei as muralhas, confiai o commando da tropa a
um general arguto, entregai a um habil capitão a esquadra
e facilmente fareis recuar o ousado que nos ameaça com
affronta.
Que ! exclamou o principe. Queres que exponha
os meus infantes, que tanta vista fazem com os seus saios
de purpura, as suas cnemidas de prata, os seus escudos de
aço brunido e as suas lanças tauxiadas, á gente rude e
salaz que ahi vem? Hei de lançar ginetes preciosos e
cavalleiros que levam no corpo thesouros era pedrarias
contra uma horda de maltrapilhos ? Achas que navios
laminados a prata, abrindo velas de linho, foram feitos
para abordar chavécos ? o ! E deixou-se estar.
Chegou ás muralhas a chusma bravia e logo foi
iniciado o assalto.
No mar as galeras ricas soffreram o abalrôo da frota
inimiga e, uma a uma, foram sossobrando. Corrêa o aio a
palacio.
O principe admirava a sua gente de guerra que
manobrava ao sol, num campo fechado. As ascumas
scíntillavam, os cocáres dos elmos eram de todas as cores
e os cavallos, cabeando airosamen-
FABULÁRIO 63
te ao meneio dos cavalleiros, faziam rebrilhar os
jaezes e as armas. Estrondavam os instrumentos,
refulgia o aceiro. Que lindo !
Senhor, tornou o áulico alarmado, emquan-to
vos extasiais no lustro da vossa gente o inimigo
vareja os muros da cidade. Já se ouve o vozeio
confuso, as tubas roucas resoam, tinem armas nas
ruas. Era pouco estarão comvosco. Fazei sahir a
vossa gente. Que, ao menos, se defenda a vossa
residencia e o throno.
Não deu resposta o principe. Expor á morte
aquelle brilhante exercito . . . E deixou-se estar
contemplando o garboe o luzimento dos infantes e
dos cavalleiros.
Um tumulto assustou-o : era tarde. Quando se
lembrou de bradar aos seus guerreiros, mãos brutas
arrastaram-no e, manietado, captivo, lá foi o
principe de Lahos. »
Calou-se a donzella.
Soergueu-se o enfermo e, fitando os olhos na
filha, que baixara a cabeça loura e retomara a
meada e o fuso, bradou :
Por Deus ! e os guerreiros ?
Os guerreiros . . . ?
64 FABULARIO
Sim. Porque não sahiram em defeza do seu
soberano ?
Porque elle não os tinha para batalhas, mas
para simples encanto dos olhos.
Essa agora! Guerreiros querem-se na luta, não
são histriões para divertimento de cortes. De que lhe
serviu exercito tão numeroso e tão rico se acabou
em tamanha miséria ás mãos dos brutos ?
Lastimai-o, senhor : tinha mais amor ás armas
resplandecentes do que á patria e á propria vida.
Não tendes vós ali na arca moedas sem conta, barras
de ouro e de prata, pedrarias e baixellas ? Não nutris
nas vastas campinas tantos ginetes aderençados ?
Não dispondes de cavalleiros fieis ao vosso com
mando ? Entanto, a Morte ronda o castello e, em
breve, estará convosco, porque vos negais a ceder
ao pedido do physico.
Moedas amealhadas são economias que devem
sahir ao reclamo da necessidade. A formiga, no
inverno, alimenta-se com o que recolheu no estio.
Vale mais que um reino a vossa vida e, se
succumbirdes, ainda que vos forrem de ouro o
tumulo e o incrustem de gemmas, não deixareis de
apodrecer como o animal que morre na charnéca.
Quem fica debruçado a contemplar thesouros
esquece todos os deveres. A avareza é um crime. Se
o principe houvesse attendido á voz do aio
FABULARIO 65
ainda seria rei e não estaria a gemer no fundo de um
ergastulo, carregado de ferros.
_ Que venha o physico ! bradou o principe.
Manda-lhe a conducção e os cavalleiros e que lhe
digam que, alem das moedas do ajuste, terá ainda
um vaso de ouro cheio de besantes no dia em que
eu puder vestir a couraça e brandir a facha d’armas.
Exercitos querem-se em campo.
E moedas em giro, quando é preciso, disse a
donzella. E, levantando-se para transmittir as ordens
de seu pai, suspirou : Tivesse o principe ouvido as
palavras do aio e ainda hoje seria rei do lindo paiz
de Lahos.
E onde fica esse paiz ? indagou o velho
interessado.
Onde fica ? Só os poetas o sabem, meu
senhor, os poetas que tudo conhecem, porque a
imaginação os leva a toda a parte. Hei de perguntar
a um menestrel.
Disse e, sorrindo, sahiu a transmittir as ordens
necessarias para que fossem buscar o physico á
montanha.
A VAQUINHA BRANCA
Por aquelles agros, fosse de verão, fosse de inverno,
tivessem as arvores a sua verde opulencia ou forrasse-as
a neve ; cantassem de ramo a ramo calhandras e
pintasilgos ou apenas enregelados pardaes piassem, lá ia,
ao romper d'alva, caminho do monte, com a velha sainha
de saragoça e soceos nos pequeninos pés, a pastorinha
Eudalia.
Orphan, fora recolhida por má gente que, sem pena
da sua idade fragil, mandava-a ao monte, com o gado,
dando-lhe uma migalha de pão, e ai! della se murmurava
queixa.
« Faz frio ! . . . »
« Eh ! lorpa, bradavam-lhe, quem sabe so te havemos
de engordar á beira do lume, como uma princesa ? Não
estão lá fora as arvores, que são também criaturas de
Deus? Ou levas o gado ao
68 FABULARIO
monte ou sanes duma vez desta casa, que aqui
ninguém te viu nascer.»
E a coitada partia.
No tempo das flores era até um goso aquelle
andar matinal por veigas virentes, no som das aguas
levadias que pareciam brincar nos seixos. Ai! della,
porém, quando o vento entrava a esfusiar gelado,
levantando em remoinho as folhas mortas.
Ainda assim cantava a pobresinha, e, com as
faces coradas, parecia haver agasalhado no corpo a
primavera, sahindo-lhe a voz dos passarinhos nos
cantos que desferia, abrolhando-lhe as rosas
vermelhas no rosto lindo, crescendo-lhe o trigo
maduro nos cabellos d
oiro, correndo as aguas
ligeiras em pranto dos seus olhos claros.
Falando ás ovelhas magras lá ia, por atalhos
fragueiros, tiritando, a descobrir restos d'hervas que
servissem de pasto ao seu rebanho.
Entre as ovelhas, por ser linda e mansa, andava
uma vaquinha branca, que era o desvelo da pastora.
Mirrasse todo o pascigo ficando o terreno desnudo,
como arrasado por fogo, sempre para a vaquinha
havia um molho de feno.
Mal começava o outono melancolico, quando
toda a gente da aldeia ia ao monte apanhar accen-
FABULARIO
69
dalhas e ramos para o lume, Eudalia, descendo
pelas veredas asperas, á hora do crepusculo, trazia
feixes de feno e, como lhe perguntassem se fazia
logo com tal palhada, respondia sorrindo :
— Tenha eu o catre bem fofo e caia a neve que
cahir, sopre o vento que soprar, dormirei quentinha.
No rigor do inverno, se alguém entrasse no
palheiro em que dormia a pastora, acharia a
vaquinha ruminando sobre o feno e a pequenita
aconchegada e ella e, até o fim das neves, o leito de
Eudalia alimentava o animal que, com o calor do
seu corpo branco, aquecia a sua amiga. Assim as
duas atravessavam o inverno — a vaquinha farta,
Eudalia agasalhada.
A primavera entrara com o sol e as flores e toda
a alegria festival dos passarinhos. Os sinos soavam
na pureza do ar azul e toda a gente aldean, com os
seus trajos melhores, acudia á festa enchendo o adro
onde se haviam installado, em tendas, bufannheiros
com sortimentos que deslumbravam — saias de
panno fino, corpetes d'alamares, arrecadas e cordões
d'ouro, rendas e sapatinhos tão exitos que parecia
incrivel que fossem feitos para ser calçados.
3
70 FABULARIO
« Talvez sejam para amendoas », dizia a
pastorinha.
Quanta seducção ! E os bufarinheiros
apregoavam os preços e cada arca que abriam
deixava o povo verdadeiramente maravilhado.
Eudalia atravessara a feira com o seu rebanho e,
ainda que os olhos a levassem para, as tendas ricas,
lá foi tristonhamente a caminho do monte.
Uma manhan, remendando, com paciencia, a
sainha de saragoça e lembrando-se do que vira no
adro, a pastorinha suspirou:
Ai! de mim ! São tão felizes os que lá andam
em baixo ! Ainda que não comprem, sempre é um
consolo olhar aquellas lindas coisas que os
bufarinheiros trazem nos seus ceirões e malas.
Pobre de mim ! nem posso parar onde cantam para
que não riam da minha esfarrapada miseria os
moços e as moças que pavonêam tantas galas.
Escondendo o rosto com as mãos, rompeu a mísera
em sentido pranto.
Não te afflijas, disse-lhe uma voz ali perto.
Levantando sobresaltadamente a cabeça, á
procura da pessoa que falara em tal ermo, onde não
apparecia viv
'
alma, viu Eudalia a vaquinha que
deixara de pastar e, immovel, fitava-a com os olhos
cheios de bondade. Bateu-lhe o coração e, pallida
FABULARIO 71
de medo, ia fugir quando a vaquinha docemente
tornou :
—- Não te assustes. Amiga melhor não tens do
que eu, que te falo por graça de Deus. Muito tens
soffrido, sendo digna de melhor sorte, porque és boa
e os teus pensamentos são puros. ÉS nova e, ainda
que formosa como nenhuma, queres enfeitar-te. É
justo. Não chores : aqui estou eu para valer-te.
Toma o teu tarro, ordenha-me e verás o leite, sahido
de corpo virgem, mudar-se em luzentes moedas de
prata. Leva-as e gasta-as como entenderes, e,
sempre que tiveres necessidade de dinheiro, faze o
que te disse e logo serás servida com abundancia.
Lembra-te, porém, do inverno e do feno que me
sustenta nesse tempo de esterilidade. Dentro da
maior ventura cumpre ter sempre presentes na
memoria os dias adversos.
A pastorinha não se decidia a mover-se e foi
necessario que a vaquinha repetisse a ordem e até a
impozesse para que ella tomasse o tarro e,
acocorando-se, começasse a mungi-la.
Que leite claro e como rebrilhava á luz ! O tarro
pesava tanto que ella o depoz no chão e o leite
sempre a jorrar. Quando a espuma transbordou a
vaquinha disse:
Despeja-o agora, toma as moedas, vai á
feira e compra o que quizeres. Faze-te bella e sê
72
FABULARIO
feliz. Não te esqueças, porém, de mim. Aqui fico á
tua espera. Poderás ser rica como a mais rica se não
te descuidares do feno que me deve nutrir no
inverno e, quanto mais me fortaleceres, tanto maior
será a somma que de mim poderás tirar.
Timida, a principio, Eudalia, levantou o tarro,
que pesava; por fim despejou-o e centenas de
moedas rolaram tilintando.
Um thesouro! Deus do céu! Um thesouro. En-
cheu um sacco e, rindo, cantando desceu o monte a
correr. Foi direita á feira e, de tenda em tenda,
comprou de tudo, gastando até á ultima moeda.
E que linda ficou com uma saia bordada, corpete
de alamares, sapatinhos de velludo, arrecadas e
cordão d'oiro!
Os da aldeia pasmaram quando a viram atirar
moedas ás mancheias ao balcão dos bufarinheiros e
a gente que a havia agasalhado, a principio com
arrogancia, com brandura depois, interrogou-a sobre
a origem daquella fortuna, mas como Eudalia
guardasse o seu segredo força lhe foi pagar as
ovelhas e a vaquinha branca, sendo despedida, por
impura, da companhia dos que se diziam seus
unicos protectores.
Riu-se a pastora e, sem ouvir as vozes que lhe
lançavam de ingrata e perdida, metteu-se
airosamente nas danças e não houve moça mais re-
FABULARIO
73
questada do que ella, que até os orgulhosos filhos
dos rendeiros foram tirá-la para as quadrilhas.
Quando, noite alta, regressou á montanha, a
vaquinha, que ruminava deitada sobre feno fresco,
perguntou-lhe:
Então, como te correu o dia ?
Feliz! Feliz! Como te agradeço, minha
vaquinha branca, toda a alegria que experimentei.
Diverti-me como nunca e estou bella como as
princezas dos contos. Vi-me a um grande espelho,
mais claro do que as fontes, e achei os meus olhos
encantadores. Como são azues ! E esta saia ? e este
corpete ? e estes sapatinhos ? e estas joias ? E,
atirando os braços ao pescoço da vaquinha branca,
poz-se a beijá-la, contento.
Todas as manhans, cedinho, lá ia com o tarro á
teta da vaquinha branca e as moedas que tirava mal
lhe chegavam para os desperdicios.
Não perdia festas: viam-n'a em toda a parte.
Corriam versões diversas sobre a fortuna de
Eudalia. Uns diziam que era pactuada com o
demonio, outros que se perdera deshonestamente;
ella folgava alheia a tudo. Tinha a mina que lhe não
faltava com as moedas, que lhe importava o mais ?
E o estio ardeu esplendido, entrou o outono e
começaram a cahir as folhas amarellas. Quando
74 FABULARIO
Eudalia descia para as festas encontrava gente nos
mattos recolhendo, á pressa, galhos e ramos seccos
para a provisão do inverno.
Veia a neve, murcharam os campos.
Uma manhan de grande frio, como Eudalia
passara a noite pensando em rima capa que vira e
em certa propriedade que resolvera adquirir, farta,
com vinha e trigo, pascigo e aguas, onde a sua
fortuna medraria em milhões, saltou do leito de
folhas, corada e formosa, e sahiu á procura da
vaquinha branca.
Chamou-a, debalde! Os caminhos estavam
vidrados de neve reflectindo sinistramente o
esqueleto das arvores, não corria arroio, não cantava
passaro — voz, só a triste do vento uivando pelos
algáres. E a vaquinha branca ?
A pastora buscou-a em todo o bosque sem
folhas e, depois de longo e fatigante caminhar, deu
com a perdida que agonisava nas profundezas do
um abysmo pedregoso.
Precipitou-se chorando e, ao chegar junto da que
a fizera venturosa, tomando-lhe a cabeça nos
braços, chamou-a sentidamente. Abriu a vaquinha
os olhos vasquejantes e, reconhecendo a pastora,
disse-lhe:
— Imprevidente, esqueceste o meu feno. Apezar
das minhas constantes recommendações, não
FABULARIO
75
te lembraste do inverno. Elle ahi está, rigoroso e em
a miseria e eu morro á mingua e commigo, Ir teu
descuido, vai-se a tua fortuna. Se houvesses sido
prudente, tecia, hoje agasalho e fartura, serias
rendeira, dona de terras e de searas e eu viveria
longos annos enchendo o teu tarro de moedas. Os
prazeres desvairaram-te — tudo esqueceste nos
bailes o nos folguedos das feiras e agora, pobre e
sem amigos, ficas no monte solitária — sem pão,
sem lar, com a lembrança apenas dos prazeres
que gozaste. Foste imprudente, Eudalia. Disse e
expirou. Pobre pastora !
Uma tarde, cançada de chorar e faminta, descia
o monte para esmolar um pão, quando a neve a
envolveu sepultando-a em frio.
SEGUNDA PARTE
COMPRADOR D'ALMAS
A caverna da Morte ficava no fundo da floresta
lugubre, entre arvores cujo tronco, d'um amarello
tabido, tressuava ichor infeccionando o ar com o
fétido nauseante.
Pantanos succediam-se coalhados de balseiros
sobre os quaes enxameavam lucidas moscas.
Pelas raizes, que se retorciam acima do lodo,
emergindo do extenso nateiro, colleavam vermes
repugnantes deixando um rastro viscido que
alumiava.
De galho a galho esvoaçavam tontas, batendo
surdamente as azas negras, aves tragicas e eram
trissos, crocitos, chirrios respondendo aos coaxos
soturnos que subiam das aguas estagnadas.
A luz do sol não conseguia atravessai a fronde
compacta do arvoredo que, ás lutadas do vento
80 FABTULARIO
frio, produzia um soído merencoreo entristecendo
ainda mais o espantoso degredo.
Sombras iam e vinham, qual mais sinistra e, por
onde passaram, infundiam terror ; os proprios
arbustos enfesados vergaram estarrecidos e se
alguma roçava por elles logo se lhes mirrava a
folhagem e morriam. Só as moscas e os atomos
lethaes seguiam-nas em legiões e
,
das altas francas,
as aves agoureiras saudaram com as suas vozes
presagas as serviçaes lemuricas.
A Morte fazia o seu repasto no fundo da caverna.
Diante d'ella empilhava-se um acervo de cadaveres
nos quaes se ia cevando o monstro, quando soaram
pancadas rijas á entrada, junto á lura em que jazia o
Somno, poiteiro da triste residencia.
Deitado sobre papoulas dormia pesadamente e,
certo, não se teria levantado se o visitante não o
houvesse sacudido com violencia.
Eh! amigo, é assim que fazes o teu serviço?
Poz-se o Somno de pó estremunhado,
esfregando os olhos mal abertos e, encarando o
importuno, perguntou com enfado:
Que queres ?
Venho a negocio e com pressa. Vai lá dizer á
tua rainha. Avia-te.
— Quem és ?
FABULARIO
81
_ Quem sou? Fita os olhos em mim e logo sa-
berás o que perguntas.
Um diabo.
És mais esperto do que um esquilo,
amiguinho. Isso mesmo : um diabo, embaixador de
Satan. Vai e não te demores.
Foi-se o Somno de vagar, bocejando. Parava
com preguiça, encostava-se ás paredes, a cochilar,
cocando a cabeça, arrepellando a grenha,
aborrecido.
Sentou-se o diabo em um tronco de mancenilha
e ficou entretido com as troças que faziam os
pequeninos sonhos a um pesadello casmurro que
resmungava a um canto.
Mal o Somno tornou, logo deitando-se no seu
leito de papoulas, levantou-se o diabo:
Então ?
Póde entrar, disse o porteiro,
accommodando-se.
Poi-se o diabo, não eem resmungar contra a falta
de aceio e a desordem que ia notando na caverna
atulhada de ossos, encharcada em sanie e
tresandando de atordoar. Dando com a Morte, que
se adiantara para recebê-lo, saudou-a em nome do
Principe das Trevas.
— Bemvindo sejas ao meu antro, disse o trasgo
offerecendo-lhe um esoabello feito de ossos, e
82
FÀBULARIO
logo subiu ao seu throno que era uma pyramide de
craneos.
Estou ás tuas ordens. Fala.
Pois é verdade, disse o diabo relanceando a
vista pela caverna. Venho aqui propor-te um
negocio. É elle o seguinte: Resolveu meu amo e
senhor corrigir a obra de Deus compondo uma
Humanidade como convém ao mundo.
A morte sorriu mostrando tís dentes amarellos.
Sorris ? Guarda a tua ironia para mais tarde e
ouve. O corpo humano é barro, qualquer oleiro
caprichoso póde fazer uma obra prima no genero e
lá no mundo ha estatuarios mais peritos
do que o Creador do Homem.
Has de concordar que Eva não valia a Venus de
Milo e Adão, posto ao lado do Apollo, faria
tristissima figura. Corpos fará meu amo e senhor
quantos quizer, bellos ou hediondos ; o que elle
nunca poderá fazer é . . . a alma. É justamente por
tal motivo que aqui venho com uma proposta.
Deves ter nesta furna muitas almas !
Tenho.
Vende-m'as.
Vendê-las !
Sim, impõe o teu preço.
Quanto me dás por ellas ?
—Quanto pedires,
FABULÀRIO 83
—Peço-te Desespero e Medo.
—Desespero e Medo ?
—Sim. O Desespero e o Medo fazem tanto
(senão mais) como os males que andam a meu
serviço. Recebo aqui diariamente grande
quantidade de mortos que não trazem o sello da
minha legião : vêr uns do suicidio, outros do terror.
Eis porque prqxmho dar-te as almas que quizeres a
troco do Deespero e do Medo.
Pois seja. Terás o que pedes. Vamos lá agora
vê as almas.
Seguiram por uma galeria calçada a ossos,
alumada por fogos fatuos, e foi o diabo explicando:
O Principe das Trevas, meu amo e senhor,
pretende dar ao mundo uma Humanidade activa,
sem preconceitos futeis, independente e audaz. O
sentimento é um entrave embaraçoso, a honra é uma
preoccupação banal. Ousadia, violencia, aventura,
eis a vida. É preciso espremer toda a ternura do
coração, substitui-la pelo egoismo.
A Morte parou e, mostrando as paredes lividas,
onde luziam numeros marcando divisões, disse :
É aqui o meu deposito. Temos, em primeiro
lugar, almas de crianças. O diabo fez uma careta.
Almas de adolescentes, almas de virgens
inmaculadas. Poz-se o diabo a assobiar. Parece que
não te agradam ?
84
FABULARIO
Queres franqueza ? Essas coisas são
magnificas para poetas lyricos. Não tens outra
seção ?
Tenho varias. Sem irmos muito longe aqui
mesmo ao lado está a das almas dos martyres.
Pulhas ! rosnou, com desprezo, o comprador.
São velharias sem cotação. Meu Principe não é
colleccionador de antigualhas.
Adiante é a das almas dos justos.
Hum ! almas de justos . . . Imagino o que
nellas vai de bolor. Conheço-as! São como essas
mulheres que, por não acharem noivos, dedicam-se
a animaes : gatos, periquitos, cães ... ou á
maledicencia. Vamos adiante. Quero almas
energicas.
Perversas, queres dizer ...
Por Belzebuth ! é isso ! Perversas, cruéis,
activas em summa. A crueldade é uma força, como
a paciência é uma covardia. Mais vale o bote
traiçoeiro do tigre do que o rebaixamento do cão.
— Pois seja como queres. Acompanha-me.
Metteram-se por uma galeria tenebrosa onde
zoava o vôo dos morcegos. Chegando a um pateo
sordido viu o diabo um monte lobrego de escorias
que fervilhavam como vermina. Deteve-se intrigado
e, depois de olhar, perguntou:
Isto que é ?
Lixo, imundicie.
FABULARIO
85
>
— Immundicie!
—Sim ; almas de hypocritas e de aduladores.
Deu o diabo um salto:
Hein ? Como dizes ? Almas de hypocritas e
de aduladores ?
— Sim.
—.Mas atraz disso ando eu, minha amiga. Fico
com todo o monte e peço-te que me reserves
quantas d'essas apparecerem por cá. Almas de
hypocritas e de aduladores . . . Mas não quer o meu
Principe outra coisa. O hypocríta é de cêra —
amolda-se a tudo; o adulador é de aço — flexivel,
mas resistente: dobra-se, mas quando se apruma traz
o golpe no gurae. O hypocríta é como o punhal:
uma lamina assassina eagastada em uma cruz. O
adulador é o arco que, quanto mais se curva, mais
força imprime á frecha que despede, enfeitada de
vistosas e macias pennas de lisonja. Que achado !
Almas de hypocritas e de aduladores ! Com ellas vai
o meu Principe crear a legião formidável que ha de
senhorear o mundo. Aqni tens o teu preço : o
Desespero e o Medo.
Assim dizendo, deu o diabo á Morte um
chavelho doirado; e explicou: Neste escrinio
encontrarás duas ampullas de crystal; abre-as e o
seu conteudo, espalhando-se no mundo, irá
infiltrando nas almas os males que desejas. E agora,
amiga,
86
FABULARIO
entrega-me o teu lixo, a tua immundicie preciosa, o
teu monte de estereo.
E rinchavelhou afagando a pêra fulgurante que
era uma ehamma de cirio invertida. Que achado !
Como vai rejubilar o Príncipe das Trevas! Como
vão trabalhar com interesse os oleiros do Abysmo !
Hypocrisia e adulação . . . que mais é preciso pra
vencer na vida ? Adeus, amiga. Reserva-me quantas
dessas almas receberes.
E, batendo com o pé, que era de bode, abriu-se o
solo e por elle sumiu-se tiiumphante, trepado no
monte d'almas que a Morte considerava mais vis
que as dos assassinos, dos falsarios e dos ladrões.
O TALISMAN
Em escusa e sordida viella, tremedal nauseante
entre arruinados casebres, na baiúca mais acaçapada
e tão velha que os muros fendidos abriam-se em
largas brechas por onde, ao cahir da noite, sahiam,
aos trissos, revoas de morcegos, em companhia de
escaveirada bruxa, vivia velho mouro
;
tido por
feiticeiro por ser mui sabido em curas e
profundamente versado na sciencia dos augurios.
Os seus philtros operavam como se fossem o
proprio elixir da vida, cuja formula os alchimistas
procuravam.
Enfermo á cuja cabeceira se sentasse, ainda que
houvesse sido desenganado por todos os physicos
da cidade, logo readquiria o espirito e sarava.
Horoscopo que tirasse consultando os astros cum-
88
FABULARIO
pria-se com a precisão cora que o sol faz o seu curso
no céu.
Era tão celebrado o poder do homem magico
que os christãos, sempre acirrados contra os
marrados da sua laia, gente aleivosa e má,
aparceirada com o demônio, indigna cio ar e da luz,
temiam-no e respeitavam-no e os fidalgos de maior
entono, depois do toque de correr, quando as ruas
escuras ficavam a discrição dos volteiros temidos,
cuidadosamente embuçados, renteando os muros
eriçados de hervas, onde piavam corujas lugubres,
iam pela viella em passos ligeiros e, com o punho
da espada, batiam rijamente á porta do muro
desapparecendo de repellão nas trevas do corredor.
Uns, dados a amores, iam buscar amavios;
outros, achacados, iam a remédios. Ainda os havia
crentes que confiavam nos grandes livros
cabalisticos nos quaes o mouro decifrava presagios
sempre venturosos : annuncios de riquezas e
honrarias, victorias em expedições, sorte em
amores, tal fosse o consultante: namorado,
ambicioso ou cavalleiro.
Um dia correu a cidade a noticia de uma grande
e maravilhosa descoberta do mouro — que elle
conseguira compor, com o prestigio de um signo,
um talisman de ventura. Quem o possuisse, teria o
que desejasse.
PABULARIO 89
Senhor de terras, vexia a sua lavoura medrar
com abundancia, multiplicar-se o armentio,
reenxamearem-se as colmêas abandonadas,
reviçarem os vageiros. Fontes, desde muito
estancadas, bor-botoariam aos golfões ; arvores sem
seira brotariam de novo.
Pastores descobririam minas, mesteiraes
achariam tbesouros, guerreiros teriam os melhores
despojos, enfermos ficariam sãos e só com uma
volta de canto e um tremulo nos alaudes os
namorados veriam apparecer na adufa o rosto
amado, logo ouviriam ranger de quicios e um braço
branco, estendendo-se na sombra, recebe-los-ia á
porta guiando-os atravéz de corredores silentes á
câmara tão ardentemente desejada.
Com tal noticia foi immenso o alvoroço entre os
homens e todos affluiram á baiúca do mouro e as
escaxcellas de velludo, as bolsas de couro
despejavam moedas na banca do descobridor do
talisman da ventura.
A viella, dantes socegada e deserta, mais
silenciosa que almocovar maldito, onde nem aves
cantam, encheu-se de gente; fidalgos e villões,
burguezes e camponios, todos aldrabando á porta
do mouro, desapparecendo, com pressa ansiosa, na
sombra fria do corredor.
Á todos o homem magico, em cujos labios pai-
90
FABULARIO
rava ironico sorriso, entregando o talisman da
ventura, repetia as mesmas palavras:
— Tendes na mão a chave de toda a fortuna e
tudo obtereis, dentro em um anno, se não cederdes á
curiosidade. No breve que vos entrego encerrei
mysterioso segredo. Tive a sua revelação em uma
noite de Agosto, á hora em que nos valles e nos
desfiladeiros os espiritos bailam á luz funerea do
luar.
Para que se realise o prodigio é necessário que
conserveis o breve tal como vo-lo entrego, sem vos
preoecupardes com o que nelle existe. Se tal
cumprirdes vereis mudar-se a vossa sorte. Tereis na
riquezas maiores, todos os amores ; não haverá
bravura que prevaleça contra vós e ainda que as
pestes assolem a terra, dizimando os seus
habitantes, passareis refractarios a todo o mal, sem
que o proprio Anjo sinistro possa alcançar-vos com
o seu flagello.
Onde os outros virem arca e arro descobrireis
ouro e gemmas. A sorte está em vossas mãos. Se
abrirdes, porém, o breve, o talisman
immediatamente perderá toda a virtude. Assim, é
preciso que observeis a condição do mysterio. Se
tal fizerdes, voltai dentro de um anno á casa do
vosso servo, que muito se alegrará em vêr-vos,
ouvindo da vossa boca a confirmação do que lhe foi
dito
<
FABULARO
91
pelo genio quando lhe communicou os sete arcanos
do talisman que levais.
Foram-se os vários homens contentes, jurando
que nunca procurariam vêr o que havia nas suas
nominas, tanto, porém, que deixaram a viella, logo,
em todos, começou a curiosidade a pruir: « Que
será? Sete arcanos !» E apalpavam, cheiravam,
viravam, reviravam entre os dedos o breve de couro.
« Que haveria ali dentro?»
Alguns affirmavam haver sentido estranho,
deliciosissimo perfume; outros garantiam ter
percebido movimentos, como de animal. « É uma
pedra, talvez da lua >>; dizia este. « É uma
esquirola de osso »; asseverava aquelle. Um : — « É
frio, mais frio que a neve». Outro: —«Abrasa que
nem fogo vivo». E discutindo, com as mais
desencontradas opiniões, lá iam.
Sós, na baiúca : o mouro e a bruxa, puzeram-se a
contar as moedas. Ao fim, disse a mulher, que
conhecia o segredo do talisman :
— Que pensas fazer agora ? É prudente que,
quanto antes, passemos a lugar seguro, porque os
homens, ao fim do tempo, vendo que nada obtêm
do talisman, darão pelo embuste e... ai! de nós.
Mas o mouro, que era atilado, ajuntando, uma a
uma, as moedas luzentes, retorquiu com serenidade:
92
FABULARIO
— E esperas que voltem ? Bem mostras que não
conheces a alma humana. Nem um só aqui tomará,
porque a condição que impuz será a minha garantia.
Dei o prazo de um anno e estou em affirmar que,
antes da noite, todos os breves estarão abertos,
expondo os seixos que encerram. Satisfeita a
curiosidade, ficarão os homens arrependidos, mas
será tarde e cumprir-se-á o que eu disse: o talisman
perderá a sua virtude. Descança — nem um só
tornará.
O homem, por curiosidade, desceria ao fundo do
inferno, se lhe descobrisse o caminho, ainda que
todo elle fosse assoalhado de pez ardente. Não te dê
cuidado o amanhan.
Effectivamente o prazo escoou sem que um só
dos possuidores do talisman apparecesse.
O PESCADOR E AS SEREIAS
Reunidas em conselho sobre as syrtes, onde o
mar quebrava desfeito em branca e fervente
espuma, commentavam as sereias a indifferença do
pescador. E dizia a mais velha, uma das que
cantaram a Ulysses :
— Sem duvida algum deus o protege. Outros
mais atilados, navegadores dos mares largos, que
têm visto as grandes bellezas do mundo e têm
gozado os seus múltiplos encantos, esquecendo o
governo dos navios pelas canções com que os
attrahimos, aqui têm vindo naufragar. Quantas
galeras jazem no fundo do pélago e náos de alto
bordo e veleiros de guerra! Para que o pescador, que
diariamente cruza estes mares, passe sem voltar o
rosto ao nosso appello é preciso que um poderoso
94
FABULARIO
deus o guie e o aconselhe contra nós. Sendo assim é
melhor desistirmos de perdê-lo.
Concordaram todas com a mais Telha e já se
dispunham a afundar, esquecendo o pescador, quando a
mais nova, erguendo-se das espumas, nua e deslumbrante
na refulgencia dos cabellos que a illuminavam, disse :
Sou capaz de attrahir o pescador e aposto tantas
perolas quantos são os fios dos meus cabellos.
Envelheceremos e contá-los, se perderes; disse
uma das filhas do mar.
Foi aceita a proposta e ficou decidido que a
encantadora esperasse sósinha nas syrtes, dando-se-lhe a
harpa de coral mais sonora do abysmo. Assim foi.
Cahia a tarde em desmaio, estrellava-se o céu
pallido, o mar começava a lampejar em faulhas.
Um barco — a vela bojada, o pescador ao leme, —
apparecen roçando a vaga.
Travou a sereia da harpa e, ao som das cordas,
desferiu a voz. Alcyones que esvoaçavam bateram lestas
as azas largas e vieram pousar nas syrtes, as ondas
calaiam o eu marulho, o mar cobriu-se de estrellas, a lua,
redonda e branca como um escudo de prata, boiou nas
aguas. Dir-se-ia que os proprios astros haviam baixado
do céu seduzidos pela voz deliciosa.
FABULARIO
95
)
Entanto o barco singrava com o favor do vento e o
pescador, ao leme, derreado sobre os cotovellos, d'olhos
perdidos, lá ia.
Passou e rastreando tão de perto o perigo que a
raareta do seu barco rolou e desfez-se nas syrtes.
Revoltou-se a sereia e, vendo-o longe, despeitada,
rebentou, frenetica, as cordas da harpa rojando-a ao mar.
Affluiram á tona todas as sereias e, rindo em galhofa,
logo reclamaram o preço da aposta.
Tens que trabalhar ! disseram.
Levarás toda a vida a procurar tantas perolas
quantos são os fios dos teus cabellos.
E talvez não bastem as pérolas todas do mar.
Riam quando um feio tritão, emergindo das aguas,
coroado de limo, coberto de escamas de prata, disse :
Revoltai-vos contra a indifferença do pescador
que não veiu pelo vosso canto. Os que perecem nos
abrolhos chegam trazidos pela seducção dos vossos
cantares. Aquclle, porém, não cahirá em ciladas.
Será, porventura, surdo !? gracejou uma das
cavalleiras da vaga.
Por emquanto . . . é como se fosse.
96 FABULARIO
Logo, lançando mão do búzio que trazia á
bandoleira, eneheu-o no mar até as bordas e,
offerecendo-o a urna das sereias, disse:
Toma nas tuas pequeninas mãos algumas
gottas d'agua e põe-nas aqui.
Obedeceu a intimada, mas toda a agua
transbordou :
Nem uma gotta ficou, tudo que era demais
esvahiu-se. Assim como se deu com a agua e o
buzio, dá-se com o vosso canto, sereias, e o moço
pescador. Naquelle coração, cheio do amor da
noiva, não cabem outros encantos. Cantai! E
cantareis em vão. Haveis de vê-lo passar, como hoje
passou— sentado ao leme, os olhos ao longe,
vendo,atravez da nevoa da distancia, a ilha em que
vive aquella que o seduz. Não desanimeis, porérn ;
tende paciencia e fiai-vos no tempo. Assim como, se
deixardes este buzio exposto ao sol, em breve toda
esta agua que o enche terá desapparecido evaporada,
podendo vós enchê-lo, porque o achareis
vasio, assim também, um mez depois das bodas
do pescador, cantai e vê-lo-eis dirigir o barco em
rumo ás syrtes.
Com taes palavras despediu-se o tritão
mergulhando de chofre.
E as sereias ficaram trebelhando e rindo sobre as
espumas vivas que o luar prateava.
ALPHEU
O rio Alpheu, principe das aguas do
Peloponeso, atravessando a Arcadia arvense e a
Elida divina, lança-se no mar Jonio.
Por vezes some da superfície do solo correndo
em alveo subterrâneo, mas adiante reílue
escachoando, recava o leito e prosegue no curso
murmuroso, ao sol, retratando o arvoredo que sobre
elle pende e abcberando os rebanhos soltos nas
pasturas ribeirinhas,
Por tão pouco não o teriam celebrado em
carmes, que são eternos, os poetas da antigüidade,
mas a razão do seu renome é das que merecem
altisonos louvores, ao som conjunto das lyras e das
frautas.
98 FABULÀRIO
Alpheu vivia sem cuidado, entretido com o
suave governo das suas aguas obedientes.
Era um nume apposto, de feição graciosa e
porto esbelto.
Os cabellos, em cachos, eram d'ouro ; os olhos,
de azul celeste ; a tez, mais branca do que os alvos
porphyros.
Quando, no estuar do verão, as cigarras
buscavam o arvoredo nascido á beira das suas aguas
e, entre a folhagem, desferiam o canto, Alpheu
acompanhava-as com a lyra e não só os egypans dos
bosques, ligeiros nos seus pés caprinos, como as
nymphas mimosas e ainda pastores e zagalas
corriam a ouvi-lo e em quêda attitude, escondidos
nas moutas, ficavam deliciados gozando o concerto
airoso.
Naiades desciam as ribanceiras e nuas,
formosissimas, entregavam-se-lhe lascivas. Elle
tinha-as nos braços, recebia-lhes os beijos, sorria-
lhes ás lagrimas de ciume, tanto, porém, que uma
ave preludiava, de improviso, travando do
instrumento, punha-se a tangê-lo acompanhando o
passaro melodioso.
Tinham-no as deusas por indifferente e muitas
apartaram-se despeitadas dos sitios que as aguas
de
Alpheu molhavam.
FABULARIO
99
Um dia, porém — andava Flora a despertar as
sementeiras — Arethusa, da Achaia, nympha de
deslumbrante formosura, trilhando as devezas da floresta,
á caça, perdeu o carreiro conhecido e abalsou-se no mais
denso da espessura.
Era estio ; o sol ardia em fogo. As folhas das arvores
luziam crepitando e a terra queimava como o rescaldo
das fogueiras.
Ia a nympha apartando arbustos languidos, a arquejar
de fadiga e de calor quando ouviu o murmurejo d'agua.
Amiudou os passos leves por sobre a alfombra agradavel
e, contente, achou-se á margim do rio crystallino, tão
limpido que se lhe viam os seixos no fundo das arêas
brancas e os peixes nadando tão serenos, uns doirados,
outros em espadanas de prata, que os olhos
acompanhavam-nos nas evoluções ariscas, nos
arremesso», nos saltos lampejantes ; viam-nos um a um
espalmando as barbatanas ou em cardumes, miudos,
fervilhando á volta das finas raizes ondulantes das algas e
dos nenuphares.
Arethusa desceu ao rio, mirou-se vaidosa na agua que
se aquietara cm remanso, tão liso como um espelho
polido, sentiu-lhe o frescor, primeiro oom o pequenino
pé, logo fugido, e rindo, despiu-se pendurando as vestes
nos ramos floridos. Depois, cruzando os braços ao collo,
escondendo os
100
FABULARIO
mimosos seios, ficou indecisa, sentindo um
voluptuoso arripio como de beijos que lhe
corressem ligeiramente o corpo.
Resoluta estendeu rijamente os braços, juntando
as mãos em talhadeira e arrojou-se d'alto,
mergulhando.
Sentiu Alpheu o perfume da carne virgem e logo,
sobresaltado, emergiu do seu palácio de crystal
radioso e, emquanto a nympha vogava galgou
precipite o barranco e, escondendo-se entre os
juncos, ficou á espreita.
O corpo da donzela subiu a frol do rio, branco,
como feito de espuma, com os eabellos espalhados
sobre o collo e sobre o ventre como se o sol a
houvesse acompanhado.
Ora nadava ás braçadas, perdendo-se entre as
açucenas, ora afundava e os peixinhos aligeiravam-
se fugindo ; ou, trepando a uma pedra, balançando-
se um momento, meneando com os braços e,
soltando um grito, precipitava-se e lá ia, partindo as
aguas, tomar pé em uma ilhota ou rodopiava,
trebelhava, deixando-se levar ao som da corrente.
Alpheu, que não tirava os olhos de Arethusa,
inflammou-se em paixão. Um ardor novo. nunca
dantes sentido, impelliu-o para a nympha.
Lançou-se á agua e, rapido, alcançou a hospede
formosa.
FABULARIO
101
Enlaçou-a, prendeu-a nos braços, ia beijá-la, mas
a donzella escapou-se-lhe ligeira, em gritos
assustados.
Lesta, chegou á margem, foi-se ribanceira
acima, e, sem pensar na nudez em que se achava,
deitou a correr fugindo ao ransor ousado.
Corria o Zephiro mal lhe acompanhava os
passos e, seguindo-a, com ânsia, lá ia o namorado e,
pós elle, em cachoes convulsos e atropelladas ondas
espumantes, o rio, alagando campos e convalles,
circumvagando cerros, encharcando pacigos,
assolando pomares.
Entrou a nympha em uma caverna, cujo
labyrintho descia pela terra a dentro ; seguiu-a
Alpheu e, com elle, sepultaram-se as aguas
fragorosas. Adiante reappareceram á luz.
Arethusa chegara á praia, ante o mar immenso,
sem uma vela, apenas com as alcyones volti-vagas.
Voltou-se a nympha e viu ao longe Alphen.
Então, intrepidamente, metteu-se ao mar. Deu-
lhe a vaga no ventre, chegou-lhe ao seio, subiu-lhe a
garganta, Estirou-se, poz-se a nadar e, graças á
Dictynna, a casta irman de Apollo, abordou á ilha
de Ortygia, perto de Syracusa, e ali Diana, para
defendê-la, tocou-a de leve.
Metrificou-se-lhe o corpo, mudaram-se-lhe os
cabellos em cannas sussurrantes, os olhos torna-
4
102
FABULARIO
ram-se em lyrios roxos, os dentes em seixos claros o de
todo o seu corpo, como do rocha marmorea, a agua
jorrou em fonte.
Alpheu chegou á beira do mar Jonio. Ia a nympba tão
longe!
— Deixá-la ir, perdê-la . . . não era de apaixonado,
Que importava a furia do mar roleiro? O empollar das
vagas não era mais violento do que o seu desejo.
Não se ateve ao receio e, arrojado, rompendo a
levadia, abriu, no salso campo, caminho ás ondas
fluviaes do seu cortejo.' E lá foi o rio, mar fora, atráz da
nympha fugitiva.
Debalde o marouço atropellava o temerario. Se eram
abysmos, por elles afundava ; se eram muralhas,
indomito escalava-as e lá ia e com ello as aguas cursando
o mar que as não domava.
E chegaram á Ortygia, deus e vassallas munidas, e
logo a ilha socegada atroou a voz appellativa : «
Arethusa ! Arethusa ! >>
O bosque ecoou em som retumbante e no bosque
chorava a fonte nova.
Achou-a- Alpheu e, reconhecendo na pedra o corpo
da sua amada e no murmúrio a sua voz, cercou a fonte
com as suas aguas e ali ficaram os namorados
confundindo os queixujnes á sombra do arvoredo em flor.
Arethusa ! Arethusa !
103 FABULARIO
E foi assim que o rio Alpheu abriu caminho atravéz
do mar Jonio, levando as suas ondas doces por entre os
vagalhões amargos e tumultuosos.
Sorris. Historias do paganismo, dizes. Maior victoria
que a de Alpheu pôde contar quem conseguiu vencer a
indifferença.
Vencer o mar, que é isso comparado á empreza
audaciosa de affrontax um coração de gelo ?
Se os poetas cantaram Alpheu com tanto estro, maior som
tirariam dos seus versos se soubessem a historia de um
coração . . . que tu conheces.
SACRIFICIO SUPREMO
Na agreste choça, de grossos, escabrosos muros
de maceria, levantados, pedra a pedra, pelas suas
mãos debeis, colmada pela densa e florida ramagem
de roseiras bravas e madresilvas, vivia, em
constante e acerba penitencia, a nobre dama Lucilia,
viuva de Fabio Lentulo que, por amizade e favor de
Tiberio, enriquecera no governo de farta e prospera
provincia.
Depois da morte do esposo, muito moça, quasi
menina, com um filho nos braços, encerrou-se a
viuva no seu palacio, um dos mais sumptuosos da
Via Sagrada, e a sua liteira, que precursores negros
anmmciavam aos brados, e uma guarda liburnia
acompanhava, nunca mais appareceu na cidade, que
se agitava curiosa da bolleza e do fausto da
deslumbrante patricia.
106 FABULARIO
Só depois de dezoito annos de silencio abriram-
se, de par em par, as portas do palácio á passagem
airosa de Lúcio Lentulo, o filho tão amado, que o
morto deixara infante ao collo da linda esposa.
Desde que o mancebo appareceu espalhando, a
mãos prodigas, as riqtiezas que a mãi, com
economia avára, conseguira multiplicar, cercaram-
no os parasitas etegantes e as mais formosas
concubinas disputaram-no, attrahindo-o aos seus
jardins onde o recebiam, languidamente reclinadas
sob velarios de purpura, entre escravas mias que, ao
som de frautas, bailavam, desfolhando rosas.
O mancebo, que era fragil, pouco tempo resistiu
á libertinagem e, uma noite, ao emborcar uma
cratera em que espumava o vinho alegre da
Campania, empallideceu, tombou nos braços dos
amigos, golfando sangue e a orgia serenou em
presença da morte.
Lucilia chorou longamente a sua desventura até
que, a conselho de um dos nazarenos, que andavam
a pregar a nova religião, distribuindo em largas
esmolas a sua immensa e inútil fortuna, uma noite,
descalça e miseravelmente vestida, partiu da cidade
sem deixar vestigio do seu transito.
No eremiterio do monte vivia vida miserrima: as
roupas cahiram-lhe apodrecidas, cresceram-lhe
<
FABULARIO 107
mais bastos os cabellos louros e a sua virtude era
tão pura que, quando subia á fonte, com a bilha
fechava os olhos para não vêr a sua imagem no
espelho das aguas, receiando incorrer em vaidade.
As aves amenisavam a sua solidão e as corças,
noite alta, entravam docemente na choça e
deitavam-se junto da solitaria lambendo-lhe as
mãos meigas, sempre sollicitas em pensar as feridas
que os espinhos abriam no corpo dos animaes de
Deus.
Uma tarde, estando Lucilia em oração — havia
dois dias que não levava á boca alimento algum —
appareceu-lhe um anjo offertando-lhe manjares que
pareciam feitos de flores, tão bem cheiravam
embalsamando a floresta.
Lucilia aceitou o presente do enviado do Senhor
e, de joelhos, devotamente, como se recebesse a
hostia, fartou-se d'aquella celestial delicia,
sentindo-se logo refeita e tão robusta como se
nunca houvesse soffrido miseria.
Foi nessa tarde, tão cheia do favor divino, que
ella soffreu o seu tormento maior. Dizendo-lhe o
anjo que o Senhor recebia com prazer todas as
mortificações, respondeu a solitaria:
— Ainda é pouco o que faço para a ventura que
me está reservada. Espero a morte com ansia
porque só ella me levará á companhia do meu
108
FABULARIO
saudoso filho que, lia tanto tempo, me chama do Paraiso,
Deves conhecê-lo, disse Luoilia ao anjo. E o anjo,
baixando os olhos, murmurou :
Não o conheço.
Não estará ello no Paraíso ? Lucio Lentulo, meu
filho?
Não está.
Tão meigo, tào docil, tão affectuoso... Terá, por
acaso, parado no Purgatório? E o anjo, sem levantar os
olhos, fez um gesto negativo. Onde então ?
Teu filho morreu em peccado e os que assim
morrem ficam, para todo o sempre, privados da graça do
Deus.
No inferno ! Lucio Lentulo, o meu pequenino
Lúcio ! Meu filho ! bradou a misera. E eu ? sua mãi?
Como hei de vê-lo ? Como lhe poderei mitigar o
soffrimento ? Se fundir o coração em lagrimas, se
redobrar as penitencias passando todas as noites que me
restam em claro, jejuando emquanto o corpo permittir,
abstendo-me do sol, arrastando-me, de joelhos, pelas
pedras agudas dos caminhos, apertando, ainda mais, os
nós do cilicio, pastando como os auimaes, expondo-me á
neve, inventando supplicios nunca experimentados, não
merecerei o perdão de Deus para meu filho ?
FABULARIO 109
O anjo baixou os olhos e o silencio pesou entre
os dois. Por fim a penitente interrogou :
—E qual é o caminho que conduz ao inferno ?
—O mal: o vicio e o crime.
Fitaram-se longamente. Depois o anjo despediu-
se desapparecendo nas nuvens altas. Recolhendo á
choça e atirando-se ao chão, de bruços, a solitaria
passou a noite a pensar, sem lagrimas. De quando
em quando repetia surdamente as palavras do anjo :
— O mal: o vicio e o crime. E no caminho da
Bemaventurança, por onde .sigo, nunca o
encontrarei. Ai! de mim.
Ao amanhecer, levantando-se das pedras em que
dormia, na choça, descobriu, a um canto, sobre
folhas seccas, uma corça que amamentava o filho.
Arremetteu de salto e, arrancando o animalsinho
á ternura materna, estrangulou-o com furor.
Sahiu ao bosque e, trepando ás arvores, destruia
os ninhos, escorchava os troncos, arrancava os
arbustos, amaldiçoava o sol e chapinhava nos regos
para toldar as aguas.
Correu á fonte e, afastando os cabellos que toda
a vestiam, mirou-se com deslumbramento,
110 FABULARIO
palpando a carne que a miséria não conseguira
deformar e teve um riso de triumpho. Em torno
d'ella esvoaçavam os passaros piando, a corça
balava ao longe lambendo o cadáver do filho, as
arvores sangravam e os arbustos, desarraigados,
enlangueciam. Esteve um momento a contemplar
sua destruição. Súbito, arrojou-se da montanha,
com os longos cabellos soltos, voando ao vento, a
prenderem-se nos ramos, em fios d'ouro que
rutilavam ao sol.
—Agora o vicio ! exclamou.
Na planicie estava acampada a decima legião
de Avitus, constituida de soldados amollecidos
depravados na volúpia da Asia. Lucilia parou no
alto de uma penha, a um tiro de frecha do
acampamento e, com voz atroadora, bradou:
—Lúcio, meu pequenino e sempre amado
filho, parto a abrandar com as minhas lagrimas
adôr immensa das tuas feridas eternas.
E, como os rudes soldados, attrahidos pela voz
trágica, corressem a cercar a penha, a miseranda,
abrindo largamente os braços, afastou os longos
cabellos louros e, em pleno sol, soberba sobre o
pedestal agreste, expoz o seu corpo esbelto, nú
como o de Venus na vaga, maravilhosamente
branco, maravilhosamente bello.
A PIEDADE
O ultimo vestigio humano — uma choça
paupérrima — ficara na orla da floresta que haviam
deixado ao romper d'alva quando Ananda, que se
dirigia a um palmar, á cuja sombra cantava uma
fonte, enveredando por sinuosa trilha, reteve
subitamente os passos e pallido, d'olhos fitos no
juncal cerrado e alto, que asseivajava a paizagem,
conteve a sôfrega respiração.
Surdos fremitos, soltos a quando e quando,
annunciaram ao servo fiel do principe de
Kapilavastu a presença de um tigre que soffria.
Então, recuando passo a passo, sem tocar em
ramo, sem pisar em folha secca para evitar o ruído,
chegou á clareira em que ficara, cercado de Pombos
e de borboletas, afagando uma gazella, o Mestre
perfeito.
112 FABULARIO
O sol alcatifava de ouro o terreno alfombrado e
pelos ramos enfestoados de parasitas os passaros
cantavam festejando o missionario meigo que
attendia, com o mesmo desvelo, ao soffrimento de
um homem, á dôr incomprehendida de um insecto
ou á sede de uma raiz que as arêas torridas
consumiam.
Vendo-o Ánanda tão tranquillo entre os animaes
que a sua caridade attrahira, calou a noticia
alarmante, mas Buddha, como se adivinhasse o que,
tão de improviso, o afugentara do palmar,
interrogou-o:
Que tens, Ánanda ? Vens pallido, trazes nos
olhos vestigios de espanto, Não foi, de certo, o
bengali que te fez recuar em tamanho alvoroço,
nem foi, tão pouco, a fonte que te affrontou com as
suas aguas para que tornes assim tão demudado.
Que viste ?
Senhor, disse Ánanda — e a voz tremia-lhe
— á beira da fonte, entre os juncos, está uma fera a
gemer. Ia eu descendo a rampa, já o meu corpo
apparecia reflectido nagua, quando ouvi o lamento
doloroso do animal occulto. Foi por protecçào dos
bodhisattvas que me pude livrar de tão perfido
encontro. Vim a correr, não tanto para escapar ao
carniceiro hospede do sitio, como para acautelar-
vos contra a sua ferocidade. Que vale a vida misera
__I
FABULARIO
113
de um escravo? É a vossa que me dá cuidado,
porque nella reside a esperança dos homens e della
depende a conversão do mundo.
—E dizes que o animal geme ?
—Geme e escabuja em ansia. Em torno os juncos
abatem-se o estalam com o estortegar agoniado do
grande corpo.
Levantou-se Buddha e, sem dizer palavra,
despedindo a gazolla, as aves e as borboletas, tomou
o caminho por onde regressara Ananda e, apezar
das insinuações medrosas do servo humilde, que
teimava em dissuadi-lo de tão arriscada surpreza,
foi-se tranquillamente e, em passos graves, mas
seguros, penetrou no palmar e logo ouviu o soturno,
prolongado gemer, parecendo o echoar de caverna
profunda.
Ananda, vendo-o seguir resoluto, tirou da cinta o
punhal e, ainda que não contasse vencer, com arma
tão fragil, inimigo tão poderoso, queria enfrentá-lo,
dando-se-lhe por pasto, antes que ver seu principe e
senhor ferido.
E Buddha caminhava.
As hervas abriram-se por si mesmas dando-lhe
passagem e elle foi indo por entre as muralhas
verdes, guiando-se pela voz dorida do animal.
Ao ruido dos seus passos a fera calou-se, como á
espreita, Ananda ainda insistiu.
114 FABULARIO
Senhor, lembrai-vos da missão que tendes.
Não vos deveis expor em lance tão arriscado. A
felicidade de todas as criaturas depende da vossa
palavra.
—E nào ouves gemer um animal, Ananda ?
E que é a dor de um animal comparada á dôr
humana ?
É a mesma dôr. Tanto sofíre o que fala como
o que apenas accusa o soífrimento pelo gemido ou
lagrima. O que vem em missão de amor não tem
eleitos. Se um homem armado e enfurecido contra
mim, na investida que fizer, de punho erguido e
lamina apontada ao meu coração, tropeçar e cahir
ferindo-se, o meu dever é pensar-lhe a ferida, levá-
lo em braços ao seu lar e permanecer á sua
cabeceira até que de todo sare. A piedade não é um
presente entre amigos, é um amor sem condição e
que não espera resposta. E, suavemente, murmurou:
« A minha força é a caridade, a minha tunica é a
paciencia . . . maitri é a suprema virtude». Ananda,
só o homem elege affeições — o bodhisattva não
tem preferidos. A Luz foi creada para o mundo.
Ninguém diz — o meu sol.
As aguas são passageiras que percorrem a terra
espalhando esmolas com as duas mãos, tanto ha de
fartura em uma beira de rio como em outra e as
aguas não perguntara o nome nem pedem os
(
FABULARIO 115
titulos d'aquelle que as procura — dão-se ao
principe e ao animal, fartam o terrão e ascendem á
nuvem. O rio não volta ao moinho para exigir
salario, nem regressa ao campo, no outono, a
reclamar o dizimo — faz o bem e prosegue. Entre
dois soes ha a noite como um esquecimento.
Assim falando, Buddha chegou ao lugar em que
a fera jazia.
Era um monstruoso tigre negro, de pello luzidio.
Estava deitado de flanco, numa poça de sangue,
com uma frecha atravéz do corpo. A cauda
flagellava o solo, vergastava os juncos e, de vez em
quando, abrindo a boca desmedida, o animal
deixava escapar um gemido.
Sentindo a presença do missionario, em esforço
supremo, poz-se a fera de pé. Buddha aproximou-se
apartando os juncos e, chegando-se ao belluino,
arrancou-lhe a frecha das carnes e logo o sangue
estancou e ao contacto da mão divina cicatrisou-se
a ferida.
O sol, entrando em nimhos pelos escassilhos das
folhas, estampou-se na pelle negra do animal que
ficou mosqueado de ouro.
Ananda olhava em extase vendo o monstro
submisso rastejar humilde e grato aos pés do
principe abnegado, lamber-lhe as mãos, fitá-lo com
suave ternura nos olhos fulgurantes. E quando, livre
da
116
FABULARIO
frecha dolorosa, ponde caminhar, Buddha acenou
mostrando-lhe a, floresta e o tigre, d'um salto,
deixou o juneal, partiu, aos galões, rugindo.
Foi-se, desappareceu no palmar, manchado de
sol e, longe, fremiu alegremente como agradecendo
a piedade do peregrino.
E Buddha, feliz por haver combatido um
soffrimento, sahiu. A estrada cheia de perfume e
sonora do canto suave dos bengolis.
Então, mostrando no longe o Himalaya, que
recebia o sol agonisante nas suas neves doiradas,
disse apenas :
Adiante!
Senhor, lamentou Ananda, que pena tenho de
não haver quem conte este acto tão generoso da
vossa misericordia.
Ananda, assim como o sol ficou em manchas
de ouro no corpo do animal curado, assim os actos
de caridade gravam-se na memoria dos deuses.
Quem propala o que faz e alardêa os beneficios
não os pratica por amor do proximo, mas por
vaidade e, longe de ser virtuoso, é fatuo que se
engrandece á custa do soffrimento, fazendo-se
acclamar pela gratidão, A moeda da esmola deve
ser como o sol — que alumia e desapparece. E
dize: já viste a mão que nos dá essa moeda de ouro?
Adiante, Ananda, e goza o perfume da tarde que é
também
FABULARIO
117
uma misericordia e contempla, com alegria, as
estrellas que nascem. O que dá um mendrugo ao
faminto sahe logo a apregoar o seu acto e nós não
sabemos quem nos dá o ar, a luz, a agua, a flor e
todas as maravilhas que temos por nossas. Como
somos imperfeitos e mesquinhos e como é grande a
vaidade!
Os kokilas gasillavam nos ramos e as sombras
quietas da noite baixavam sobre os peregrinos.
ELEGIA
O clarão funereo da lua dava á paizagem immovel
o aspecto lapidar de immensa cidade, toda de
marmore, morta. Rigidas, hirtas: arvores laivadas
d'alvo reluziara e toda a extensão que os ollios
alcançavam era alvadia e quieta cojrno esculpida em
pedra.
O ar da noite recendia aromas: e, por entre as
fraudes adormecidas, faiscavam laumpyros.
Silencio de camara mortuaria.
O rio largo, glacial, espelhava a lua nas aguas
lisas, turvas em negror de luto nas proximidades das
margens, sob os pendidos ranuoos desolados.
Ia eu descendo a rampa resvaladía quando ouvi
rumor de vozes partindo d'um cerrado.
Curioso do mysterio — Quem, a horas taes, af-
120
F'ABULARIO
frontaria o feio, á beira deserta d’aquellas aguas
lugubres ? — avancei em passos silenciosos.
Evitando os ramos enredados, aproximei-me
tanto quanto me foi possivel e, debruçando-me á
borda da ribanceira, sobre a grota de onde subia o
sussurro das vozes vi, ao primeiro relanço d'olhos
um grupo de corpos nus como estatuas perdidas
entre a folhagem escura.
Attentando, porém, na visão reconheci duas
mulheres e jovens. Dava-lhes o luar em cheio no
rosto accendendo-lhes ascuas nos olhos, pondo-lhes
esplendores nos cabellos soltos, despejados em
ondas por sobre os hombros até á cinta.
A belleza d'uma reproduzia-se traço a traço nas
feições da outra.
Abraçadas conversavam com meiguice:
Serás ámanhan onda marinha, dizia uma; e a
outra suspirava. Irás por entre ribas verdejantes, ao
longo de campos, atravéz de arvoredos até a costa
deserta e bravia que o mar solapa e nello entrarás
como a folha que se desprende do ramo e perde-se
no rebalso da floresta. O destino leva-te como o
vento assopra a nuvem.
E o mar?
É immenso, não se lhe vê o fim. É como o
céu.
As suas praias são brancas, planas ou acciden-
FABULARIO
121
tadas em dunas altas, rasas ou eriçadas de rochas,
beirando cidades tumultuosas ou chegadas a
escarpas inhospitas, só accessiveis ás aves
oceanicas. As suas aguas amargas não balouçam
lyrios, sulcam-nas pesados navios de ferro.
As libellulas que as affloram têm azas para
resistir ás tormentas, são as gaivotas ; as suas
narsejas chamam-se albatrozes. A superficie é
inquieta — os temporaes affrontam-na, mas o
abysmo é sereno. Nelle acharás o silencio e a
companhia dos seres que nunca viram o sol nem se
acostaram á orilha de terra em flor. Lá viverás em
grutas de coral, pisando o nacar em que se geram as
perolas ; acompanharás a lenta construcção das
ilhas por architectos tão pequeninos que cem d'elles
viveriam num estame de flor ; e andarás na
claridade livida que irradiam os corpos dos
oceanides.
Em que tempo viveste nesse mundo
merencoreo?
Não sei. Ainda cortavam a vaga naves de
prôas curvas que seguiam ao som dos ventos
offerecendo á monção velas amplas de purpura. Os
marinheiros navegavam alumiados pelas estrellas. O
munndo era velho, havia ruinas e os homens
relembravam, com saudade, os encantos e a
felicidade dos secuulos chamados de ouro. Mas o
mar é invariavel como a Eternidade. Has de achá-lo
como o
122
FABULARIO
deixei. Um dia, inesperadamente, tomaras aonde
estamos : aos rios, á sombra dos bosques. Subirás
ao céu, como eu subi, eregressarás á terra em chuva
ou em orvalho.
Regressarei!
Tudo regressa á origem : a vida é um circulo.
E as aguas do mar são claras e transparentes
como as das fontes silvestres ?
As aguas do mar são verdes ou são azues.
Verdes, porque recebem o tributo dos bosques ;
azues, porque também nellas se despejam os
ma.nanciaes do céu.
A floresta despacha-lhes tudo quanto deflue das
fontes e o mar reveste a côr das balsas, como que se
cobre de verdura, torna-se de esmeralda e florido de
espumas, tão brancas como as açucenas !É campina
sem arvore. Forra-se de azul, todo celagem,
agradecido ao céu, que o nutre e as espumas são
frocos de nuvens rolando por elle ao sabor do vento.
Assim o mar é o espelho do céu e da terra.
Turva-se o mar na tormenta e, como a colera
demuda, vão-se-lhe as cores suaves, enruga-se-lhe a
face e toda a belleza desapparece. A furia
decompõe-no e o que antes ostentava o viço da
mocidade apparenta a feição de um velho
desvairado, com os cabellos brancos revoltos, a
arremetter com a
FABULARIO 123
terra, rugindo sob o flagello dos ventos e dos raios.
Mas a bonança depressa refaz-lhe a juventude.
Nasce o sol e redoura-o, reapparece nas aguas o
azul, lembrança do céu, ou o verde, saudade da
terra.
O mar é o symbolo do tempo, variavel na
apparencia, que é a superficie, mas immutavel na
essencia, que é o abysmo. O dia em que se vive é
mais tumultuoso do que todos os seculos decorridos.
Ouve-se o insecto qne esvoaça em torno de nós e
das guerras antigas, das catastrophes de outr'ora, das
convulsões do mundo, que resta? o silencio. O que
se afoga deixa apenas bolhas d'ar. O abysmo é o
vasio e o Tempo é um abysmo mais fundo do que o
oceano. E, assim como os rios alimentam o pelago,
os seculos correm para o Tempo, o mar infinito da
Eternidade, no qual todo o orgulho humano referve
um momento e morre, como as ephemeras espumas.
Vai, o mar reclama-te, és gotta d'agua, segue o
teu destino. Has de voltar um dia á terra maternal.
Quando ?
Pergunta á nuvem. A folha que morre
apodrece e torna em seiva ao tronco, a ser folha ?
Pergunta á arvore. Has de tornar ao bosque em
chuva, em orvalho, talvez em lagrima, trazida em
um coração.
124 FABULARIO
Abraçaram-se e eu vi um corpo mergulhar nas
aguas. Outro ficou na ribanceira, immovel. E o rio
entrou a chorar no silencio.
Tudo regressa, disse a naiade; só as minhas
illusões não tornam. E que bem me fariam agora no
tumulto dos cuidados que me affligem ! Talvez
regressem em lagrimas, como affirmou a naiade
que eu vi á beira rio e que era a imagem da
minh’alma melancolica, junto á oorrente saudosa
do pranto, despedindo a ultima illusão que se foi
para o mar alto ser gotta d’agua no oceano, perder-
se na immensidade.
Meus pobres sonhos ! Que nuvem os sorverá no
oceano para fazer com elle a Poesia que eu não fiz?
ROSAS, CORAÇÕES DESFEITOS
Foi com a entrada luminosa de Hermes, ainda
cheirando a silvas redolentes, porque subira da terra
onde andara a vagar, que se accendeu no coração
impetuoso de Zeus o desejo forte do rever a terra
em flor, as aguas que escachoam nas rochas, os
largos prainos dos mares glaucos, os visos frondosos
dos montes acima dos quaes adejam as aguias
ídipotentes.
Horas alegres bordavam a tela azul com fios
d'ouro tirados do novello do sol; outras, pallidas,
d'olhos melancolicos, vestidas de negras tunicas
funereas, coroadas de myrtho e papoulas, recenavam
estrellas para que fulgissem na tréva com luz viva e
o Olympo, nessa tarde de maravilhoso encanto,
clara e suave como os olhares macios de Aphrodite,
rejubilava festivamente.
126 FABULARIO
A propria Hera, sempre taciturna no seu ciume
divino, cantava dobando a lan translucida das nuvens
estivaes.
Eis que Zeus, de repente, se levanta, acena á aguia
cujo olhar fuzila e, assentando-se-lhe no dorso, instiga-a.
Pasmam os deuses; um momento detêm-se as Horas
e o animal soergue-se, arranca, abre as azas largas e
arremessa-se nos ares fulgurantes.
Desce vertiginosamente como os titaus rebeldes
quando rolaram sob as catapultuosas penhas sotopostas.
Zeus tem ansia de rever a terra, os homens, os
rebanhos ; deseja avistar as aguas e as verduras, as furnas
sombrias e sempre gementes e as clareiras onde o sol
retouça.
Já os oceanos brilham como soes e os lagos
lampejam como estrellas, cresce o esplendor entre
sombras que parecem nuvens e são serras altas e são
prados longos e são valles fundos.
A terra apparece d'uma só côr sombria, alarga-se
dillatadamente em alfombra azul, lisa, chan, sem um
relevo de collina, mas logo avultam os accidentes
redondos, as pomas dos outeiros de fina relva ; movem-
se lentos rebanhos e homens. Já se accentuam as linhas,
rendilham-se as frondes, ondulam os trigaes dourados,
aves voam cantando, sóbe o
\
FABÜLARIO
127
fresco aroma dos feaos e das searas e o balido dos
anãos geme. É a terra.
A aguia fogo e os olhos claros de Zeus mal
distinguem a mansão ephemera dos homens o as
suas bellezas transitórias que a Morte espreita
cubicosa. Em toda a parte ha flores e risos : são
danças cyclicas nos prados, parthenias á volta dos
templos, entre cedros ; amores á beira d'agua. Em
tudo a alegria, a alegria, illusão da tristeza.
Mas longe, á flor dos mares, branca e muda, uma
ilha apparece.
Toda branca e lisa é como larga lapide nos
mares. A aguia, guiada pelo deus, paira um
momento sobre a desolada paragem de onde não
sobem aromas nem rumores.
É tudo funereo : brancas as praias de areal sem
dunas, branco o interior apagado da ilha.
Nem arvoredo nem hervas, tudo desolação e
silencio e vultos merencoreos seguindo as trilhas
brancas, como lemures cimmerios, levando de ras-o,
no lento e tristonho andar, as longas tunicas, tão
alvas como o areal esteril. Zeus medita um
momento e, fazendo baixar a águia sobre um roçado
alvadío, salta em terra, desce á planicie, torna-se
invisivel e espreita a gente melancolica que vai e
vem, sem falar, sem sorrir, em passos morosos e
surdos.
128
FABULARIO
A sua omnisciencia logo adivinha a causa de tão
estranha tristeza e, lesto, retomando a aguia,
remonta. Entra no Olympo irritado. É a hora quieta
em que se recolhem as purpuras da tarde e se
estendem no espaço as alcatifas da noite oculadas
de estrellas.
Atravessando impetuosamente o vestibulo
fulgurante, Zeus brada o nome de Eros.
As brancas pombas de Aphrodite, já agasalhadas
no columbario, esvoaçam espavoridas ante a colera
estrondosa do accumulador de nuvens; os deuses
afastam-se medrosos e, pallida e languida, a deusa,
filha da espuma egina, temendo pelo filho, precipita-
se embrulhando os pequeninos pés na fimbria da
tunica diaphana, luminosa e volatil, como feita do
bruma e sol, a receber o Pai, já se lhe rojando ante os
joelhos, linda com o pranto, em fios,
a descer-lhe dos
olhos verdes, cheios de espanto e medo.
Eros, que se adestra asseteando estrellas,
ouvindo a voz tonitroante, adianta-se a correr, com
a aljava a bater-lhe o dorso, o arco pendente á
ilharga e, avistando o Todo Poderoso, retém os
ligeiros passos. E Zeus, fitando nelle os olhos
flammejantes, argúe-o encolerisado sobre a tristeza
da ilha que encontrara, branca e muda, dizendo :
— Todos quantos nella vivem são como som-
FABULARIO
129
bras que penam. As mulheres são lindas, os
mancebos são fortes, e cruzam-se indifferentes.
Porque os deixaste em tal abandono ?
Senhor, é facil reparar o crime do
esquecimento. Hoje mesmo, com o favor da noite,
farei o que devo.
E antes do raiar do dia quero ter a prova do
que fizeste.
Tereis a prova, Senhor, antes que as estrelas
murchem ao sol. E Eros baixa aladamente do
Olympo.
O gallo vigilante de Ares desfere o seu primeiro
canto, ainda sanem Horas tenebrosas levando
bojudas urnas de orvalho, quando Eros reapparece
no Olympo e, posto que Zeus repouse adormecido,
quer dar conta do sen trabalho e, ante o solio divino,
fala com palavras aladas.
— Zeus potente, dominador do Etlier .. . Aclara-
se esplendidamente o Olympo com a refulgencia do
olhar do esposo de Hera que desperta á voz do
infante.
Que me trazes por prova do que fizeste ?
Nada, Senhor, senão o desejo de que vos
certifiqueis, com os vossos olhos, do resultado da
minha
130
FABULARIO
empreza. Era a ilha branca e esteril e é hoje verde
alfombra, colmada de formosos bosques odoríferos.
Era o presidio do silencio e nella agora o murmurio
das palavras e o sussurro dos beijos são tão
perennes como o fragor das águas uas penhas
geradoras. Nos seis caminhos balsamicos não mais se
cruzam figuras solitarias, senão pares abraçados e
não ha moita de onde não saia, por entre o chilroio
d'aves que se ameigam, palavras tremulas de bocas
de namorados. Das frechas que levei na aljava nem
uma só errou o alvo, e, de extremo a extremo da
ilha, fui acordando para o amor a gente merencorea.
O sangue gottejava na arêa e as frechas por lá
ficaram crescendo em floresta acolhedora e de
aroma.
Mas Zeus, sempre desconfiado, ordena a
Hermes que baixe á ilha, a percorra, trazendo-lhe
uma prova do êxito da missão do infante.
E Hermes desce alipede sobre a ilha. Tudo vê e,
tentando contar os pares que se suecedem nos
meandros amaveis do arvoredo, descobre, a tremer
na haste, que era uma frecha aculea, flor purpurina
e nova para os seus olhos divinos. Demora-se a vê-
la, maravilhado, e como procure lembrar-se da sua
origem — elle que conhecia a origem de todas as
flores — eis que ouve uma voz, a voz de Heitha, a
terra maternal:
— Esta flor, côr de purpura, de petalas cordeaes
FABULARIO
133
—é a rosa : nasceu das gottas de sangue que
lentejaram as frechas de Eros victorioso. Conta-lhes
as petalas e terás o numero dos corações feridos que
se buscam e não se deixam nesta ilha florida, dantes
areal onde nem o cardo vingava.
E Hermes, tomando a flor, regressa ao Olympo
repetindo a Zieus as palavras de Hertha e
descrevendo-lhe o que vira.
Zeus, então, afagando a immonsa e espalhada
barba, mais rebrilliante do que a Via Lactea, põe-se
a aspirar o arorna da flor, contente por saber que
deixara de existir na terra o triste degredo d'almas,
onde corações moços se cruzavam com a
indifferença com que duas folhas mortas descem na
correnteza fria e tremula de uma ribeira apressada.
LAVRADORES
Encontraram-se em caminho e, como o sol
abrasava, acolheram-se os dois á sombra da mesma
arvore, cuja ramagem frondosa formava verde
cupula sobre a serena fonte. Velhinhos, ambos
levavam ferros de lavoura e, sentando-se na
alfombra, ficaram ouvindo o suave murmurio d'agua
e o chilro dos passarinhos que voavam de ramo a
ramo. E disse um delles :
— Bom vai o tempo para a sementeira. A terra
está humida e sente-se-lhe a seiva.
O arado deslisa facil e, nos sulcos que deixa,
medra com vigor a semente. Vamos ter a
compensação da miseria do anno passado, anno
esteril de fome e de tristeza. Levo a taleiga cheia e o
que vai ao meu hombro, em fardo quasi insensivel,
voltará do campo acogulando carros.
5
134 FABULARIO
—- Que levas para semeadura ? -— Linho e pão. E
tu? O outro sorriu sem responder. Que terras
lavras?
Eu? terras eternas em que rebenta a flor, quer
o sol seja ardente, quer as chuvas alaguem, nunca
uma só das minhas sementes deixou de vir a flux.
Sou um homem feliz, as minhas terras são bentas.
Quanto colhes no outono ?
Tenho abegão para tal serviço. Não sei
quanto produzem as sementeiras que planto.
Affirmo, porém, que são sempre fartas as colheitas
do meu campo. A ti falta, ás vezes, o sol; outras
vezes é a chuva que não vem e ora vês o talhão
esturrado, ora o encontras em alagadiço. Para os
meus ha sempre luz e há sempre rega : chammas de
cirios e fios de lagrimas. Os meus canteiros são
lindos e a flor que delles sobe é a mais bella que
Deus creou, nem ha d'outras no Paraíso.
E dá fructo ?
Sim, dá fruto.
Nesse tempo ouviu-se o rinchar do um carro e o
velho, que falava da fertilidade da terra, soergueu-se
dizendo :
É o carro da minha herdade. São meus filhos
que vão para a lavoura.
E disse o outro :
FABULARIO 135
—Eu semeio e não me preoccupo com o que
fica na terra. A flor sobe e sobe tanto que é lá em
cima, no céu, que exhala o perfume. Deus colhe-a,
extrahe-lhe a essencia e espalha-a pelo mundo.
E o fruto ?
O fruto é o alimento melhor dos homens.
Melhor que o pão ?
— Melhor que o pão, porque é eterno. O trigo dá a
farinha e morre; o fruto da minha sementeira não o
devoram vermes, não o bicam passarinhos, as
chuvas não o apodrecem, não o engelham os soes. A
flor chama-se Bondade; o fruto chama-se Exemplo.
Olha em volta de ti e has de vêr a flor e o fruto
das minhas plantações.
O velho relanceou o olhar em torno. Mas um
rumor que se aproximava levou-lhe a attenção para
a estrada : Era um grupo de crianças, de branco, que
passava conduzindo um pequenino esquife coberto
de rosas.
Um enterro.
Enterro !
— Sim, enterro de um anjo.
— Ainda bem, é a minha sementeira que passa.
A sombra está deliciosa e a voz dos passarinhos
mais afinada que nunca, mas a obrigação reclama-
me. Eu sabia que tinha hoje uma roseira a plantar,
deixei a cova prompta e lá vou ao serviço.
136
FABULARIO
— Uma roseira ?
E que são crianças mortas senão plantas de
flor? A roseira não dá mais que a rosa ; a criança
é apenas innocencia. Os frutos são proprios das
arvores de vida longa, são os benefícios de que
gosamos nós outros: o linho tecido em panno, a
farinha amassada em pão, o forno que cose a broa, a
casa que nos abriga, o carro que vai ao campo, a
azenha, a nora, o jugo, o ferro do arado, que é tudo
isso ? frutos da minha lavoura. Outros vieram de
pois, mais perfeitos, com a enxertia das raças, com
o amanho mais cuidadoso do progresso e são as
sciencias que multiplicam os bens humanos. Tu és
lavrador...
E tu ?
Coveiro, lavrador também. Meu campo chama-
se Eternidade, o meu outono é a Vida. Vai-te ao trigo e
ao Unho, eu vou ao enterro. O cemitério é a minha leira.
Uma voz desferiu no bosque visinho :
O amor é um bem que tortura
É o espinho d'uma flor;
Quem ama só tem ventura .
Quando soffre pelo amor.
Olharam-se os dois velhos e o lavrador de trigo e
linho perguntou:
FABULARIO
137
— Quem cantará ?
— Que importa a pessoa ? é o Amor, Essa voz
que nos chega penetra a terra, chega ás covas,
acorda a vida no seio da morte, como o calor do sol
atravessa a superfície do solo e faz estalar a semente
que espalhas, tirando delia o renovo que se faz
arvore. O que chamamos Amor chama-se, lá em
cima, Eecundidade — é o appello eterno á Vida.
Como entendes de lavouras eu entendo de
cemiterios e assim como falas, de colheitas fartas,
eu posso falar da Eternidade.
E adeus, vai ao teu trigo e ao teu linho, que eu
vou agasalhar na terra a roseirinha mimosa.
Sementes e cadaveres. . . tudo germens.
Coveiros somos ambos.
Adeus !
GEMEOS
O vento gemia com angustia humana e o
arvoredo, maltratado do inverno, debatia-se em
convulsões de desespero, despedindo as ultimas,
amarellecidas folhas dos galhos que se retorciam.
Cães uivavam e, a espaços, golfadas d'agua batiam
nos vidros com o estrondo das despejadas
cachoeiras precipitando-se arrojadamente dos altos,
escarpados fraguedos.
Não passava sombra d'homem na estrada e o
estalaiadeiro, achegado ao lume, esfregava as mãos
grossas arrancando do peito suspiros cavernosos.
Quem se atreveria a affrontar os caminhos com tal
noite ? Tão assoladas haviam ficado as estradas que
a diligencia estava em atrazo de tres dias,
naturalmente porque não pudera vencer os anduraes
e ficara, talvez, atolada em lameiro.
Por vezes o vento, investindo com a porta, fa-
140
FABULARIO
zia-a tremer nos gonzos, como abalada por pulso
robusto de viador ansioso. O homem voltava a
cabeça, esperava um momento que se repetisse o
appello, mas o vento já por longe andava e eram as
arvores que lhe soffriam os embates.
O estalajadeiro, inteiriçado de frio, deixava-se
ficar encorajado como se uma esperança o
prendesse áquella esfarripada cadeira em que, desde
o sobrio jantar, jazia assonorentado e combalido de
tristeza, com pensamentos que lhe punham o
coração em sobresalto.
Não fizesse elle para o fisco o os serviçaes
impiedosos da justiça d'El-Rei, patrono do povo,
entrariam cancello a dentro e, desde a vinha que, no
viço do outono, colmava a varanda alegre com a sua
folhagem, por entre a qual pendiam os roxos cachos
pyramidaes, até as figueiras do fundo do pomar e a
casa, e os moveis, os pombos que arruinavam nos
pombaes, as abelhas que enxameavam os cortiços,
os gordos cevados que refocilavam na possilga,
tudo, ai d'elle ! lhe seria violentamente seqüestrado
para que o Rei, senhor das gentes, não ficasse sem
as duas moedas que lhe eram devidas.
O pobre suspirava e, de cada vez que o vento
levantava lá fora a sua grande voz de soffrimento ou
as bategas da chuva resoavam nos vidros, o
desespero fazia-o clamar com blasphemia contra o
FABULARIO
141
bom Deus que o abandonara aos esbírros, o bom
Deus que, podendo amainar aquelle vento e seccar
aquelle céu, enchendo-o de lumes d'astros, mais
acirrava a tormenta.
Assim pensava o bom homem quando ouviu
pancadas á porta e vozes bradando : « Abri ! Abri!»
Levantou-se de repellão e, de salto, achou-se junto
ao postigo, Descerrou-o e logo os seus olhos
descobriram, ao livor d'um relampago, um vulto que
se atabafava, retranzido, em grande capa.
Tirou ligeiramente a tranca e, com uma lufada,
que fez crescer a chamma no fogão e levou da
parede velha encardida gravura heroica, na qual
estava figurada desigual batalha entre anjos aereos e
demonios terrestres, o vulto arrojou-se na sala
lugubre e logo, atirando a capa, mostraram-se dois
jovens, lindos ambos: um, alvo e louro, d'olhos
azues, risonhos, os cabellos em anneis graciosos
rolando-lhe pelos hombros de talhe feminino; outro
moreno, severo, d'olhos negros e faiscantes como
brasas.
Eram tão semelhantes no todo, de proporções tão
iguaes que, á primeira vista, logo os davam por
irmãos.
O estalajadeiro ficou um momento immovel,
maravilhado com a belleza e o donaire dos mance-
bos que vinham da noite agreste com o ar tran-
142
FABULARIO
quillo de quem chegasse, contente, de tepido luar de
estio.
Dá-nos vinho quente adoçado a mel e serve-
nos algo que trazemos fome velha, E avia-te ! Que
remos deitar-nos cedo porque, antes da madruga
da, faça o tempo que fizer, havemos de estar em
marcha para a cidade.
O estalajadeiro não se fez repetir a
recommendação. Lesto, alegre, rebuscando no velho
armario, achou um quarto de anho, salpicão, queijo,
nozes, ovos frescos e uma brôa de milho cosida
naquelle dia.
Ceia maravilhosa ! O vinho era excellente e duas
vezes o bom homem levou o cantaro ao torno e
duas vezes os hospedes louvaram a cepa que
estillara tão saboroso nectar.
Fartaram-se e, regalados, abeirando-se do fogo,
ali ficaram juntos, aconchegados, as finas mãos
estendidas para o lume que o estalajadeiro avivara
com dois toros de lenha secca.
Bôa fortuna nestes paramos ? indagou o
mancebo louro.
Ai de mim . . . ! bôa fortuna. ..! Estou em
vesperas de perder o que tenho dos meus avós : — o
lar em que nasci, que é este, cercado d'arvores
generosas, plantadas pelos bons velhinhos que Deus
tem na sua graça. Com este inverno quem se atreve
FABULARIO
143
a metter-se a caminho por estes sítios fragueiros e
de tão más noticias ? Só pastores por aqui
apparecem, comem um naco de carne, tomam um
gole de vinho a troco de uma moeda de cobre e
partem. Que é isso para quem ha de entrar com duas
moedas de ouro para a bolsa dos cobradores que
andam em visita aos casaes e estalagens ? Ai! de
mim .. . !
Não te queixes, homem, que não ha razão
para lamentos. Gemidos bastam os do vento. So
mos a tua fortuna. Eemdize a tormenta que aqui
nos trouxe. Por nós virão ao teu casebre principes
e has de vêr-te tão atormentado com hospedes
nocturnos, que os arnaldiçoarás do teu leito quando,
noite alta, ouvires bater á porta e vozes brada
rem freneticas contra a lentidão dos teus passos.
Não te lamentes mais. Dá-nos vinho e prepara-nos
um leito em que havemos de repousar até á
madrugada.
Voltou-se o estalajadeiro intrigado com a
recommendação.
Um leito, dissestes ? . . . Pois um só quereis,
sendo dois?
Um só. Nunca nos separamos. Nascemos
juntos e juntos sempre andamos, porque um sem
outro seria tão impossivel como haver vida em
corpo privado d'alma.
Bem, bem. Seja como ordenais. Sendo assim
144 FABULARIO
ireis dormir no quarto melhor da casa, que é o que
dá sobre os campos. Lindo quarto! Ali nasci eu.
Antes, porém, como o regedor exige que tenhamos
um livro de registro para que nelle tomemos os
nomes dos viandantes, peço-vos que nelle assigneis
emquanto vou dar uma vista d'olhos no quarto, lindo
quarto! onde dormireis como no Paraiso. Na
primavera é um gozo — respira-se o aroma dos
fenos e os rouxinoes cantam no beirai da janella até
o nascer do sol. É um gozo !
E foi-se escada acima. Prompto que foi o
aposento, chegando ao patamar, o estalajadeiro
falou aos mancebos :
Vinde! O leito espera-vos. Accendi um bom
lume e o quarto está tepido como um seio.
E os mancebos subiram abraçados : um
cantando, o outro sempre taciturno.
Desceu o bom homem e encontrando sobre a
mesa duas moedas do ouro, pasmou da generosidade
e radiante:
São principes, de certo, exclamou. Talvez —
ha tanto d'isso! — namorados. O d'olhos azues
tem ar de donzella... Que importa! Bem lhes
saiba o somno. E, guardando as moedas no bolso,
disse: O cobrador é que vai ficar aturdido quando
eu lhe responder á arrogancia com estas lindas
moedas de ouro.
FABULÁRIO
145
Só, então, a curiosidade de saber quem eram os
dois jovens, tão lindos ! que lá estavam no lindo
quarto, juntos no mesmo leito, fê-lo recorrer ao
livro em que elles haviam deixado as assignaturas e,
com espanto, leu estes dois nomes :
Amor.
Ciume.
O FAUNO
Nascido na veiga, entre outeiros de relva
avelludada e claros, sonoros fios d'agua, criado no
meio de ovelhas brancas, em companhia de pastores
e zagalas, adorando o sol de ouro puro e as estrellas
rutilas de prata, fazendo canções á lua, contando
queixas de amor ás fontes vivas, era feliz o
pastorinho.
Só pensava em Aleina e no seu rebanho, dando-
se por venturoso se a pastora lhe sorria, correndo ao
templo rustico com offertas aos deuses se ouvia
balar um novo anho.
Á noitinha, em tempo de luar, deixava as folhas
cheirosas do seu leito pastrano e, á porta da
cabaninha, contemplando o céu, ouvia o rouxinol.
Que lindos os seus pensamentos !
Um dia, alongando-se no caminho, penetrou a
148
FABULARIO
floresta, guiado pelas borboletas, e, no recesso
sombrio em que se apinhavam as arvores mais
velhas, ficou ouvindo o sereno murmurio das aguas
apenas nascidas.
Gosava aquelle tartareio das fontes, berços das
ribeiras, quando descobriu um fauno que ia e vinha
d'arvore a arvore, tocando ligeiramente ae flores
desabrochadas.
Empallideceu receioso, quiz esconder-se ás vistas
do deus silvestre, mas a figura do fauno —
cornigero, capripede, velludo — fê-lo rir e, como o
morador e protector da selva não se perturbasse com
a sua presença, o pastorinho adiantou-se.
— Que fazes, fauno ? perguntou.
Voltou-se o deus e, fitando no pastor os grandes
olhos profundos, respondeu:
Caso as flores, pastor. Sou eu quem leva
recados de uma a outra corolla. É verdade que a
brisa e as abelhas auxiliam-me, mas sou eu quem
lhes diz onde ha flores puberes, flores que podem
celebrar noivado. Sou eu que, á noite, pelo clarão
nupcial da lua, visito os ramos sentindo o
perfume.!É pelo perfume que chego a conhecer a
puberdaded'essas donzellas captivas que nem por
viverem presas ás hastes em que nasceram deixam
de se
entender com os seus namorados, não fossem ellas
femininas!
<!
FABÜLARIO 149
O pastorinho desatou a rir e o fauno,
encostando-se a um velho e rugoso tronco, suspirou:
— Eis ! Se conhecesses, como eu, os segredos
da natureza, não ririas, por certo. Dize cá,
pastorinho : queres ser sabio como um deus ?
Sim, quero. A que preço? Dou-te a ovelha
mais gorda do meu rebanho e uma taleiga nova
que ainda não serviu.
—Guarda a tua ovelha e a taleiga. Dar-te-ei toda
a sciencia dos deuses se me quizeres ceder as tuas
illusões. Troquemos as nossas almas : levarás, com
a minha, a eternidade e a sabedoria. Eviterno e
omniscieiite, que fortuna ! pastor ! Eu ficarei com as
illusões da tua e sujeito á vida ephemera que as
almas humanas vivem no corpo em que transitam.
Conhecerás todos os segredos da terra, todos os
mysterios do céu; verás tão claro no futuro como no
presente e a tua mocidade será perpetua como a côr
azul do elyseo e a côr verde do mar. Queres ?
Sim, quero, disse o pastor contente.
Vem comigo. Habito uma caverna a dois
passos d'aqui e no tempo que baste a uma abelha
para sugar o mel de um nectario farei a troca das
almas. Levarás a riqueza e eu ficarei com as illusões
que valem menos que o fumo que sobe da lenha
verde.
150 FABULARIO
Poz-se a rir, de contente, o pastorinho e, rindo,
acompanhou o fauno á caverna.
Era uma furna sombria, merencorea e humide :
parecia que ali se agasalhava o inverno. Contínua,
com triste som, uma gotta d'agua pingava e os
passos, ainda os mais leves, retumbavam no
concavo rochoso com um soturno resôo longo e
amedrontador. E disse o fauno :
— Senta-te, vou fazer lume.
E, puxando folhas seccas, fez fogo e, em volta
da chamma, sentaram-se os dois.
Poz-se o fauno a murmurar palavras encantadas
e os olhos do pastorínho logo se fecharam,
pendendo-lhe a cabeça loura e, dormindo, quedou
no leito de ramos.
Então o deus silvestre, collando a sua boca á do
pastor, sorveu-lhe a alma cheia de illusões e
transmittiu-lhe, com a eternidade, o aeu espirito
omnisciente.
Logo despertou o pastorinho e, olhando, um
momento, em torno, ergueu-se e, tristonhamente,
partiu. Ficou o fauno a fitar o lume alegre, poz-se a
cantar contente e, levantando-se num pincho, entrou
a bailar em redor da fogueira.
E assim cantava o que fora immortal:
« Estrellas são gottas de luar. Ó cântaro da lua,
cheio de leite, que desastrada zagala andou com-
FABULARIO
151
>
tigo aos boléos para que assim derramasses tanto
leite na eira ?
Bem hajas, zagala — não fosses tu e não haveria
estrellas. A luz do sol é sangue, a luz da lua é leite».
E cantava ainda :
« Quão lindo é o olhar da virgem ! Ha mais
profundeza e mysterio nos olhos da mulher do que
nos abysmos do mar. Pode o mergulhador descer á
pesca da perola, nos penetraes mais intimos das
aguas . . . quem é capaz de descobrir o segredo dos
olhos verdes, abysmos de seducção onde cantam
sereias ?
Um beijo é um germen, é o pollen que vai de
labio a labio. O amor . . . que importa a morte ? !»
Assim cantava o fauno e ria perseguindo, a
correr, as borboletas e toda a brenha parecia rir com
o alegre fauno. Mas, de vez em vez, gritos rolantes
atroavam.
— Fauno do bosque, dá-me as minhas illusões,
toma a tua alma com a eternidade, a omnisciencia e
todo o seu poder divino. Eestitue-me as illusões que
me roubaste. Conhecer toda a verdade é viver no
vasio, é vêr o fim de todo o Bem, o fim de todo o
Amor ; é jazer, vivo, num sepulero porque o nada é
a expressão da vida. E as minhas illusões eram o
azul desse vasio, o horizonte feliz desse infinito
lugubre. Dá-me as illusões, toma a tua alma.
152
FABULARIO
E o fauno, ouvindo o pastor, abalsava-ae,
fugindo, a cantar, pelo bosque verde :
«Ha mais profundeza e mysterio nos olhos da
mulher do que nos abysmos do mar».
E o pastorinho ? Pobre pastor desherdado! E vós,
que andais pelos bosques, não vos fieis em faunos.
O PERDÃO
Judas, depois da prisão do Mestre, receiando a
vingança dos apostolos, sahiu apressadamente para
o campo.
Chegando á margem da torrente do Cedron, em
ponto em que lhe pareceu mais facil a travessia,
colheu a tunica e saltou á primeira pedra.
Logo as aguas retiveram-se, como se as
represasse comporta e, embora sempre descessem
em rebellados cachoes, borbulhando, espumejando
com fragor que se ouvia á distancia, nem uma gotta
molhou os pés do maldito, que, tolhido de assombro,
viu-as crescerem em muralha que rutilava ao luar
como o cimo do Carmello.
Tremendo, passou á outra margem, e tanto que
poz pé em terra, traz elle desabaram, com estrondo,
as aguas, recontinuando a sua corrida fluente pelas
154 FABULARIO
pedras, com o branco referver constante das
espumas. Diante delle, silenciosamente, as hervas
apartavam-se e, se succedia a sua túnica afflorar um
arbusto, logo as folhas muravam, como as da
sensitiva e os galhos pendiam mortos.
As pedras fugiam ante os seus passos; viboras
assustadas evitavam-no; os próprios escorpiões,
dando por elle, rapidamente sumiam-se nas luras.
Ao luzir da alvorada ia elle, com sede, por uma
campina florida e, ouvindo cantar uma fonte, entre
os eloendros, demandou-a com avidez.
Era um recanto aprazível. Alto, frondoso
sycomoro espalhava os seus ramos largos
assombrando as aguas e, não longe, uma figueira
silvestre estava coalhada de pombos que arruinavam
contentes sentindo a madrugada.
Judas inclinou-se sobre a fonte e, de joelhos na
margem, tomando uma maneheia, ia-a levando á
boca sedenta quando, instantaneamente, viu
avermelhar-se a agna, engrossar, tornar-se tepida
como o sangue.
Deixou-a cahir e, insistindo, viu, com assombro,
reproduzir-se o milagre.
Era a vingança da natureza.
Sem animo de renovar a experiencia deixou-se
ficar á beira d'agua e ali sabiu-lhe o sol, não em
FABULA RIO
155
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luz, mas em manchas rubras — onde um raio o
tocava ficava a macula como de uma ferida.
Um passarinho poz-se a cantar de ramo em ramo
e a sua voz tinia metallica com o som de moedas
cahindo em lages.
Se o reprobo baixava os olhos á agua via, no
fundo, não a propria imagem reflectida, mas o
retrato de Jesus — era o Mestre que o contemplava
sem odio, antes com pena. Se levantava a vista para
o céu toda a scena do Horto repetia-se nas nuvens
que se conformavam em homens, em arvores,
reconstuindo o scenario e o episodio da negregada
perfidia.
E, mais que as visões, o que lhe causava horror
era a voz intima que não calava, a voz que lhe
repetia no coração todas as meigas palavras de
Jesus, lembrava-lhe a sua piedade, recordava-lhe a
sua doçura e a elle accusava de ignominia.
Como fugir a tão insistente e inevitavel
perseguição ? Ninguém se livra da sua sombra como
se não liberta da consciencia.
Não eram homens armados que o seguiam — era
a sua propria alma que o condemnava e eram as
creações da terra que o repelliam.
Levantou-se para fugir. O mundo era vasto. Iria
ás praias de onde partiam para os paizes longinquos
os grandes barcos ; tomaria um delles, pas-
156
FABULARIO
saria além e, em cidades desconhecidas, com as
moedas que levava na bolsa, faria vida prospera de
tranquillidade e gozo e depressa esqueceria o transe
d'aquella noite, no monte.
Lembrou-se, então, de contar o seu thesouro.
Trinta moedas com a effigie de César. Trinta
moedas!
Correu os cordões da bolsa, despejou-a na terra
e, tomando a primeira moeda, sentiu-a desfazer-se
como se fosse de neve e, gotta a gotta, diluir-se-lhe
entre os dedos. Tomou a segunda e viu-a fundir-se
em sangue, ia a tomar a terceira, mas o terror
conteve-o.
Apressadamente, guardando as restantes, deixou
que uma escapasse e cahísse em uma cova. Logo a
terra fendeu-se e houve uma crepitação como de
sarmento ao fogo e um espinheiro repontou,
cresceu, emmaranhou-se e, com tanto viço, que o
apostolo ficou enleado por elle e, para fugir, teve de
entregar a tunica em farrapos aos aguilhões agudos
que lhe rasgavam as carnes.
Já o coração batia-lhe em Bobresalto e o espirito
se lhe turbava de medo.
Sentia-se só no mundo e a sêde cada vez mais
intensa.
Tornou á fonte — negaram -se-lhe aa aguas,
FÂBULARIO 157
não mais mudando-se em sangue, mas
transformando-se em lodo fetido.
Um fruto parecia chamá-lo de um ramo do qual
pendia maduro e tâo sumarento que, em torno delle,
esvoaçava, zumbindo, um enxame de abelhas. Foi-
se a elle, tomou-o com ansia, mordeu-o e a boca
encheu-se-lhe de cinza amarga.
Desesperado, lançou-se fóra daquelle sitio e,
correndo, ouvia o tinido das moedas na bolsa,
lembrando-lhe a traição.
Justamente passava á beira de uma furna de onde
lhe pareceu que sahiam gemidos.
Entrou. A um raio de sol, que descia por uma
brecha, viu uma mulher miseravel, que jazia em
velho estrame, com um pequenito ao collo,
acalentando-o.
Dando pelo reprobo não teve palavra — fitou
nelle os olhos e mostrou-lhe, num gesto, o filho que
arquejava, sem força, sequer, para soltar um
gemido.
Judas ficou de pé, olhando aquella miseria e
commoveu-se. Então, arrancando da cinta a bolsa da
traição, atirou-a á desgraçada que, ao som das
moedas e deslumbrada quando as viu luzindo, não
conteve a alegria.
Lançou-se ao apostolo para beijar-lhe os pés,
evitou-o o reprobo pedindo-lhe apenas uma sede
d'agua.
158
FABULARIO
Foi a mulher a um canto, tomou a uma e,
inclinando-a, offereceu-a ao homem que lhe salvara
o filho.
Judas provou e, sentindo a frescura e o gosto
d'agua, bebeu a largos sorvos
;
sofregamente ;
depois, saciado, sem que a mulher lhe falasse, só
porque nelle tinha os olhos fitos, cheios de gratidão,
poz-se a dizer, arrepellando os cabellos :
— Sim, fui eu. Vendi-o aos sacerdotes do
Sanhedrin. Flagellaram-no, crucificaram-no. Eu o vi
no monte das caveiras. Aos pés da cruz Maria
soluçava. Fui eu! Fui eu! Por que me olhas! Guarda
o teu filho, esconde-o, esconde-o bem. Fui eu !
Espantada e tendo-o por louco, a misera
retrahiu-se no fundo da caverna, com o filho muito
apertado ao collo magro.
Judas olhava em volta, esgazeado, e vendo, a um
canto, uma corda de linho, apanhou-a deitando a
correr com ella como um perseguido.
Á tarde, indo a mulher á fonte com a urna ao
hombro e contente por haver deixado o filho farto e
dormindo em esteira nova, sobre linhos alvos, viu o
corpo hirto de um homem pendente de um dos
galhos da grande figueira, tendo, sobre cada
hombro, um negro corvo pousado.
Áttentando nas feições decompostas do morto
<
FABULARIO
159
reconheceu o caridoso hospede que lhe dera a bolsa
de moedas.
Então ajoelhou-se e, em oração fervorosa, pediu
ao Senhor pelo infeliz.
Ainda não havia concluído a sua prece quando as
aves sinistras levantaram vôo soltando um grito
lugubre e uma voz soou docemente nos ares,
dizendo :
— Deus recompensa todas as misericordias.
Então estalou a corda, o corpo bateu em terra e a
mulher viu esvahir-se do cadaver uma fôrma fluida
e luminosa que dois anjos acolheram nos braços e
com ella foram subindo, subindo e perderam-se nos
ares.
THRENOS DA MAGDALENA
Quando Maria Magdalena appareceu entre os
apostolos, os lindos cabellos soltos, os olhos
resplandecentes, rosas vivas nas faces, tremula, com
lagrimas molhando-lhe o sorriso, como duas
correntes limpidas em florido campo cheio de sol,
contiveram-se todos em silencio, sentindo que a
formosa apaixonada trazia novas alegres do tumulo
adorado.
Ainda que não falasse, o seu contentamento
expandia-se-lhe nas feições, dava-se nos gestos,
subia de toda ella como o perfume a exhalar-se de
uma flor.
Cançada da corrida em que chegara, amparou-se
a uma columna e, depois de respirar, erguendo os
olhos maravilhosos, disse :
— O tumulo do meu Senhor é como um vaso,
162 FABULÁRIO
com azas lindas, de luz, que são dois anjos. Lá os vi
silenciosos e, como me inclinasse sobre o abysmo da
morte, achei apenas o perfume do corpo
embalsamado, como fica no alabastro quando se lhe
despeja a essencia.
Lá está somente o residuo funereo : a mortalha e
as ligaduras. O corpo desappareceu. Gloria ao meu
amor divino!
Nem tão depressa vem a flux o grão de trigo
semeado, ainda que o reguem copiosas chuvas e o
aqueçam ardentes raios do sol.
A sementeira divina rebentou ao terceiro dia e já
a sua flor trescala e já o seu fruto alimenta.
Celebremos as nossas lagrimas, mais
fertilisantes que as chuvas. Celebremos a nossa Fé,
mais ardente que o sol.
O tumulo do meu Senhor é um deserto florido.
Quando eu caminhava, coberta pelo véu da
noite, como uma viuva, toda de negro, o meu
coração ia alvoroçado sentindo, talvez, o milagre
como as andorinhas sentem na brisa gelada os
primeiros effluvios da primavera.
As flores falavam-me com as suas bocas
cheirosas, as aguas diziam-me, atravéz do seu
canto, o que minh'alma sentia.
FABULARIO 163
Cheguei. Os soldados que guardavam o
sepulchro jaziam por terra, como feridos do raio e eu
vi pelos caminhos mádidos as palmilhas luminosas
que marcavam os passos do meu Senhor.
E logo deixei fugir a voz da minha alegria :
Resuscitou ! E, assim clamando, também despertava
minb'alma, porque, ai de mim! eu vivo d’aquella
vida e morreria d'aquella morte.
Vi-o. Tomei-o, a principio, pelo jardineiro do
horto, tanto, porém, que me falou, logo lhe
reconheci a voz e prostrei-me de joelhos, adorando-
o.
Se os beijos florecessem eu caminharia, de
rastos, á sua frente, beijando a terra do seu transito
para que elle só pizasse em lirios e não sentisse a
poeira e as pedras asperas dos caminhos.
A morte transfigurou-o. Parece mais bello depois
do enterro — está como as collinas ao amanhecer,
quando o orvalho as refresca e todas as flores vivem
e todos os passarinhos cantam.
A morte foi para elle uma noite de somno.
Onde o levarão os passos ? O tumulo
conservava-o : era a urna em que elle jazia. Lá eu
poderia vê-lo e, sentada na lapide em que encontrei
o san-
164
FABULAHIO
jos, ficaria de guarda ao seu somno, como a mãi que
se prende junto ao berço do filho. Agora... como o
poderei seguir ?
Nem consentiu que eu lhe tocasse porque já não
é deste mundo.
Puro espirito, é do céu, volta ao céu, deixa-me
orfan. Sou eu que vou ficar enterrada no tumulo:
morta-viva.
Morta, porque, sem a sua companhia, serei um
corpo sem alma; viva, porque soffrerei desfazendo-
me em lagrimas.
Para substitui-lo no túmulo vou despojar-me de
toda a minha alegria.
Volta ao Paraíso, regressa aos altos céus e eu
ficarei como a terra sem sol e coberta de neve.
A minha noite fria será sem fim, só a morte me
trará a madrugada que abrirá o dia eterno da minha
ventura.
Porque o encontrei ? Porque o ouvi ? Meus
olhos ficaram como duas pedras azues nas quaes se
houvesse gravado a sua imagem. Meu coração é
uma concha cheia da sua voz.
Viverei eternamente a vê-lo e a ouvi-lo e, es-
FABULARIO 165
tendendo os braços, como o cego que tacteis, só
acharei o vasio. Elle torna aos céus.
Resuscitou! Estará era tudo, em toda a parte, por
que é Deus, e eu serei a amante do mundo e de tudo
que nelle existe, por amor do meu amado.
Espalharei meus beijos pela terra dando-os ás
flores e aos espínheiros, á rocha e ao rio, á gotta
d'agua e ao lume de sol, á arvore e á vaga, á herva
do monte e ao clarão da lua, aos animaes da terra e
ás aves do espaço, aos ventos e ás tempestades, a
tudo os darei porque em tudo estará o meu Senhor.
Ai! de mim, mas o seu rosto e as suas palavras,
nunca mais verei nem ouvirei.
Resuscitou! E a sua gloria é a minha soledade.
Eu era a rosa do campo-santo que recebia a vida
de uma sepultura. Revolveram-na, esvasiaram-na ...
Ai ! de mim !
Os anjos cantam victoria, meu coração soluça.
Vivo, mas tão longe! Remonta aos céus e deixa-me
no mundo.
Eu era a arvoresinha nova, toda coberta de flores.
Porque havia elle de abrasar-me deixando-me
reduzida a cinzas ? a
166
FABULÀRIO
Porque não faz elle como o vento que leva a
folha secca ?
Meu sol! Pudesse eu desfazer-me em pranto para
que elle me sorvesse ao seu seio como faz o sol á
agua morta que resuscita nas nuvens.
Que será de mim? Eu era um espelho que só
mostrava vida quando elle me apparecia. Agora
reflicto o fundo de uni túmulo vasio onde só ha
escuridão.
Resuscitou ! Resuscitou ! Vós outros mostrais
alegria, vós, os seus apóstolos, porque vedes
cumprida a sua doce promessa ; eu choro porque o
perco. Fica-me a sua religião, fica-me a sua palavra,
mas foge-me o seu amor.
Vós ides espalhar a sua doutrina ; eu fico a
lamentar a minha solidão. Vós o sabeis vivo, eu só o
sei muito longe.
Sois felizes... Ai! de mim.
Ide ! dizei a todos que resuscitou, que não está
no tumulo. Cantai a victoria, é o vosso Mestre e eu
ficarei a chorar a minha orfandade nas cavernas dos
montes.
Meu Deus ! Meu Deus ! meu amor .. . ! Enches o
céu e os tempos com a tua presença e com o teu
nome.
FABULARIO
167
Deixaste o teu tumulo só com o perfume das
essencias que embalsamavam o teu corpo. Assim
ficou o meu coração cheio de saudade.
Resuscitou! Ai! de mim ... O que ainda me
consola é saber que elle está em toda a parte, em
tudo : no ar, na luz, na gotta d'agua, na pedra, na
arvore, na flor, no passaro, na fera, no oceano e no
charco e assim, sendo piedoso, não exceptuará
apenas o coração de uma pobre mulher.
Meu Deus ! Jesus de Nazareth, meu amor
perdido, que remontas aos céus deixando-me neste
immenso vasio que é a terra, sem ti.
AS ESTAÇÕES
O velho Chronos, estirado á beira do rio perenne
cujas aguas, golfando límpidas e sonoras da urna
abundante, correm em direcção ao abysmo, ora por
entre arvoredo gracil, ora por valles tristes de
pedregulho estéril; em férteis campinas ou em
safaros areaes, lisas, serenas, espelhadas ou
atropellando-se, precipitando-se de rochas com
escachôo, contemplava, sorrindo, o brinquedo das
Horas, quando romperam do bosque os seus quatro
filhos predilectos — a Primavera feminea e os tres
mancebos : Estio, Outono e Inverno.
Vinham em disputada corrida, atroando a selva
com vozerio raivoso e, mal chegaram ao sitio em
que jazia o deus impassivel, contiveram-se
arquejando.
E a donzella offegante, com as faces floridas
170 FABULAR.IO
e os claros olhos resplandecendo, disse, por entre
lagrimas, que lhe davam mais belleza ao rosto
admiravel :
Padre, dá-me outra sorte — funde-me nessa
agua, muda-me em pedra inerte, torna-me em
ave, em bruma, em nuvem ou em astro, faze de
mim o que quizeres, mas livra-me da companhia
cruel d'estes irmãos que tanto me martyrisam e
humilham com doestos e ironias mais ferinos que
dardos.
E o Estio rubro, adiantando-se, com os cabellos
alvos revoltados, os olhos lançando chispas,
atravessou a distancia que o separava de Chronos e,
á sua passagem, as hervas pendiam languidas,
seccavam as nascentes dóceis, acolhiam-se
palpitantes os passaros aos ninhos. Inclinando-se
ante o deus falou com palavras calidas :
É melhor que a conserves a teu lado, Padre.
Emquanto trabalhamos na terra para utilidade dos
homens ella só cuida em garridice.
Vê os campos que ella atravessou, disse o
Outono : só têm flores.
E o lento e livido Inverno accrescentou
transidamente:
É inutil! Que valem flores !
Chronos ouviu em silencio, por fim, soerguendo-
se em recubito, depois de acenar ás Horas para
FABULAKIO
171
que não se detivessem, chamou a, Primavera tímida
e, aeolhendo-a carinhosamente, dirigiu-so ao Estio
impetuoso :
— Achas que a devo conservar em minha com-
panhia, assim seja. Ide vós outros, fazei o que vos
cabe. Mas que a vida não cesse. É preciso que haja
pão e linho, frutos e novos rebanhos e o homem não
lamente o destino na terra. Ide, guardá-la-ei
commigo.
E os três irmãos partiram : o Estio, o Outono e o
Inverno.
A Primavera ficou junto a Chronos sereno e, em
torno d'ella, a terra rebentou em flores. As águas
corriam perennes da urna — eram a imagem da
Vida attrahida pela Morte. As Horas bailavam
cantando e sorrindo : na mão direita rosas, na si-
nistra a foice.
Passaram dias.
Súbito, uma manhan, abrumaram-se os ares,
toldou-se o azul do céu de nuvens pardas, os ramos
despiram-se das folhas e o Inverno, livido e
merencoreo, appareceu taciturno. Adiantando-se
para a ribeira eterna logo se congelaram as águas.
Instantes depois alumiou-se o eéu broslando-se
de purpura, crepitaram as arêas brancas, estalaram
os ramos exciduos e um hálito de fogo abra-sou o
espaço — e o Estio appareceu ardendo. Sem
172
FABULARIO
animo de falar a Chronos quedou-se no penedio
calcinando a rocha em que se assentou em silencio.
O Outono chegou por ultimo.
A que vindes ? perguntou o deus. E
os tres, á uma, exclamaram:
Padre, a terra está morta.
Aqueci-a, disse o Estio. Foi em vão.
Debalde a fecundei, disse o Outono.
Adormeci-a e morreu, disse o Inverno. E
o Estio lamentou :
Não ha um só novedio.
Não ha seara, suspirou o Outono. E o
Inverno concluiu:
Está morta.
Chronos sorriu e, docemente, chamando a
Primavera, disse-lhe:
Vai, filha; paira sobre a neve e funde-a com
o teu halito, acorda com as canções dos teus
passaros a terra que dorme regelada, dá-lhe a alegria
da tua eterna mocidade e a graça que é o teu
encanto e, quando assim houveres feito, volta.
E foi-se a Primavera cantando.
Logo um perfume suave encheu os ares tepidos,
rebentaram renovos nos ramos desnudos, sahiram
dos ninhos galreando nuvens de passaros vivazes,
enxames de abelhas cruzaram-se zumbin-
FABULÁRIO 173
do, desregelaram-se as aguas, desannuviou-se o céu
e a Primavera tornou carregada de rosas.
Vai agora, disse Chronos ao Estio: todas
as flores já passaram da infancia, estão em plena
puberdade; cerca-as o cortejo nupcial dos insectos
alados e as brisas que passam, enchendo-se de
aroma, entoam docemente o epithalamio amoroso.
Ellas esperam-te, és o noivo das corollas. Bemdito
seja o teu beijo doirado.
E foi-se o Estio.
E disse o deus ao Outono:
— Agora tu, que és a força da seara, o amojo das
espigas, o sumo dos pomos, a fibra dos linhos, o
leite dos rebanhos, vai e completa a obra da
fecundação com a substancia, o sabor e a belleza.
Que os homens te bemdigam á hora da colheita e
que os armentios saudem a tua passagem com as
suas vozes sonoras.
E foi-se o Outono.
Instantes depois disse o deus veneravel:
Estão os paióes replectos, é hora de repouso.
Agora tu, Inverno, Vai, adormece a terra para
que ella se refaça no somno.
E foi-se o Inverno.
Cumprida a missão tornaram os mancebos
maravilhados do milagre, por haverem encontrado
174 FABULARIO
todas as facilidades nos prados e nos montes ferteis
da terra vasta que julgavam morta.
— Tudo deveis áquella que tão ingratamente
repellistes. Tinheis a flor por desprezivel e a flor é a
boca que recebe o beijo, é o ponto em que se
encontram as almas : a alma que fecunda e a alma
que gera.
Sois a força, a reproducção e o repouso, nada,
porém, se faz sem o amor, que é a essência da
Fecundidade e a Primavera, vossa irman e vossa
precursora, é o amor que desperta, ao som do canto
e enlanguece com o aroma, a terra, noiva immortal
que despe o véu branco e friissimo e veste-se de
verde e de ouro para a festa magnifica da
Eternidade, que é a Vida. A Primavera é a
adolescencia, é a manhan suave, é o beijo, é vossa
irman, saudai-a.
E o Estio illuminou-se, refloriu-se o Outono,
mais alvo se fez o Inverno e assim os tres irmãos
fizeram as pazes com a linda irman e, desde então
nunca mais, por fortuna da terra e gloria dos céus
magnificos, houve rusga entre os quatro filhos de
Chronos —a Primavera, o Estio, o Outono e o
Inverno, renovadores do mundo e bemfeitores do
Homem.
j
A PEREGRINA
Aldonso, o eremita, desde que se recolhera ao
deserto, elegendo por morada a lapa mais aspera e
mais fria, em terra safara, onde não medrava
semente, todas as noites, vincava fundamente as
carnes com as tiras laminadas das disciplinas e,
sangrando por mil feridas, estendia-se nu na pedra
gelada onde escabujava, aos urros, acordando o
silencio com gritos de arrependimento.
Tinham-no todos os eremitas por santo e,
quando passavam diante da sua furna inclinavam-se
com humildade como se avistassem um santuario. E
Aldonso, se percebia rumor de passos, brandia, com
mais força, o tagante para que os caminheiros
ouvissem os golpes e admirassem a sua devoção
fervorosa.
Acudiam peregrinos de todas as partes, para
176 FABULARIO
vêr de perto o santo homem e beijavam os coagulos
de sangue que manchavam as pedras e quando o
viam, alto, embrulhado em cortiça, macilento e
livido, os cabellos longos, a barba intonsa,
emmaranhada de hervas, as unhas negras e
retorcidas, prostravam-se em terra pedindo-lhe a
benção, ro-gando-lhe intercedesse a Deus por elles,
certos de que a oração de tão beato eremita seria
attendida no céu.
E Aldonso, no fundo tenebroso da lapa, cantava
hymnos ao rythmo das vergalhadas com que ia
retalhando as carnes.
Ora, na visinhança, vivia um penitente alegre.
Era homem de boa feição, meigo e de muita
hospitalidade.
Os dias passava-os na horta, semeando,
podando, regando, e era um gosto vêr-se-lhe a
almoinha viçosa, com os talhões muito verdes e as
arvores em flor ou em fruto.
Á noite, reeolhendo-se, ajoelhava-se ante um
crucifixo de pedra, fazia a sua oração e dormia,
deitado em ramas seccas que cheiravam.
Aldonso, passando, uma tarde, pela choça e
ouvindo o ermitão cantar, entrou e, chamando-o
com severidade, disse-lhe:
— Irmão, a vida que aqui levais escandalisa o
eremiterio. Em vez de orações cantais desde que
FABULARIO 177
amanhece até a hora sagrada de vesperas. Deixais a
imagem pelas hervas e pelas flores, e, emquanto
nossos irmãos sangram sob as disciplinas, e
definham á força de abstinencias, folgais e
engordais porque a vossa mesa é farta e escolhida.
Até affirmam — praza a Deus que haja nisto
calumnia— que, certa noite, recebestes nesta cabana
formosa mulher e só a despedistes na manhan
seguinte. Humildemente o ermitão respondeu :
Não foi um calumniador quem tal vos disse,
irmão. Effectivamente acolhi a mulher de que
falais. Se era formosa, não sei. Era noite, chovia
torrencialmente quando bateram á minha porta.
Sem pedir nome, abri e, á luz da candeia, vi um
vulto de mulher.
Eiz lume para aquecê-la, dei-lhe o que tinha na
ucha e offereci-lhe, para repouso, as ramas em que
me deito. Quanto a mim juro-vos que passei a noite
junto do crucifixo. Se foi peccado o que fiz,
imponde-me a penitencia e ou a cumprirei.
Fazei o que eu faço se quizerdes obter o
perdão de Deus. E Aldonso mostrou-lhe as fundas
feridas do corpo.
Estavam os dois em tal pratica quando bateram á
porta. Correu o ermitão a vêr quem era e pasmou de
achar-se em presença de uma mulher que lhe disse :
178 FABULÀRIO
Torno á vossa hospitalidade, irmão, pedindo-
vos agasalho por uma noite. É tarde, as feras
uivam : nuvens negras acastellam-se.
Hesitou o ermitão, mas os instantes pedidos da
mulher venceram-no. Cruzando, então, os braços,
baixando a cabeça afastou-se, deixando-a entrar.
Irado ergueu-se impetuosamente Aldonso e,
tomando o cajado que deixara a um canto, disse:
Ficai-vos, irmão. Não serei eu quem permaneça
comvosco, arriscando minh'altna em tamanha
impureza !
Mas quereis que deixe uma pobre criatura de
Deus exposta ao tempo, desamparada ás feras ?
E sabeis quem é?
Sei que é uma peregrina, irmão. A
misericordia não pede o nome dos que a procuram.
Que direi ea ao Senhor, se Elle me arguir de cruel na
hora da justiça, por não haver attendido aos rogos
de
uma infeliz ?
Dir-lhe-ás que essa infeliz era uma impura.
E não foi á sombra da tunica de Christo que
se refugiou a adultera ?
Sim, em publico : não a recolheu ao seu lar.
Então o vosso receio é que eu succumba á
tentação da belleza?
Sim, irmão.
FÀBULARIO 179
Nada temais — ando sempre com a
consciencia acordada. Os actos que pratico não são
para o mundo, mas para Deus. Se é peccado ser
bom..ai! de mim, nunca me emendarei.
E vendo que a mulher tremia, disse-lhe :
Tendes lume para aquecer-vos e ali sobre
a mesa um resto de pão e alfaces ; o cantaro está
cheio. Comei e bebei. O leito é o mesmo em que
dormistes da outra vez. E, humildemente, mur-
murou, cruzando os braços : Faça-se em mim
segundo a vontade do Senhor. Assim como me
ordena o coração, assim procedo.
Acabava de falar quando uma claridade subita
illuminou a choça e, cahindo os andrajos que mal
cobriam o corpo da peregrina, alargaram-se-lhe dos
hombros amplas azas resplandecentes, despejaram-
se-lhe pelas espaduas bucres de cabellos louros,
vestiu-a até os pés uma tunica mais fina que as
nevoas, brilharam seus olhos com vivo fulgor de
estrellas e, caminhando para os eremitas em passos
sonoros, disse a Aldonso que cahira sobre os
joelhos, maravilhado:
A tua virtude é como o reflexo das arvores
verdes nas aguas limpidas — uma sombra. A tua
penitencia não passa de hypocrisia. Cobres-te de
sangue como se vestem os principes de purpura :
por ostentação. Este que reprehendes e condemnas
180 FABULARIO
é um justo, votado á justiça e a Deus, não procede
como tu que não te penitencias sem alarde de gritos e
trazes as chagas em exposição.
Negas agasalho á mulher com receio de ti
mesmo, porque se a visses sem defesa, ao alcance
da tua mão, talvez enfraquecesses e te precipitasses
no crime.
Este que me acolheu acolheria, com o mesmo
carinho, um leproso—e não receiou incorrer em
peccado de luxuria, porque é puro. Esta è a
verdadeira piedade, o verdadeiro religioso é este.
Quanto ao copioso sangue que espalhas quando te
flagellas estrondosamente, não passa da terra e nella
escurece em mancha e o canto meigo deste generoso
eremita, canto que lhe sahe d'alma, é ouvido no céu
e foi por elle que vim a este ermo atroante dos teus
guaiados.
Hão julgues que Deus se commove com as
grandes penitencias clamorosas — mais vale a seus
olhos uma lagrima sincera. Cantando fez este
eremita por sua alma o que não fizeste com todo o
sangue derramado em tão longos annos. Deus não
quer ostentações, quer sinceridade.
Fez-se silencio. Quando os eremitas sahiram do
assombro, a mulher havia desapparecido.
Então ergueu-se Aldonso e, acabrunhado,
chorando lagrimas amargas, sahiu para a noite ne-
FABULARIO
181
gra e o ermitao prostrou-se ante o Christo de pedra
agradecendo a visita que o anjo fizera ao seu
humilde tugurio e a suave lição de misericordia com
que confundira a vaidade.
AS FORMIGAS
Á sombra d'uma faia, no parque, emquanto o
principe, que era um menino, corria perseguindo as
borboletas, abriu o velho preceptor o seu Virgílio e
esqueceu-se de tudo, enlevado na harmonia dos
versos admiraveis.
Os melros cantavam nos ramos, as libellulas
esvoaçavam nos ares e elle não ouvia as vozes das
aves nem dava pelos insectos : se levantava os olhos
do livro era para repetir, com enthusiasmo, um
hexametro sonoro.
Sahiu, porém, o principe a interrompê-lo com
um commentario pueril sobre as pequeninas
formigas que tanto se afadigavam conduzindo uma
folhinha secca ; o disse:
— Deus devia tê-las feito maiores. São tão
pequeninas que cem d'ellas não bastam para arras-
184
FABÜLARIO
tar aquella folha que eu levanto da terra e atiro longe com
um sopro.
O preceptor, que não perdia ensejo de educar o seu
imperial discipulo, aproveitando as lições e os exemplos
da natureza, disse-lhe :
— Lamenta V. A. que sejam tão pequeninas as
formigas ... Ah ! meu principe, tudo é pequeno na vida: a
união é que faz a grandeza. Que é a eternidade ? um
conjunto de minutos. Os minutos são as formigas do
Tempo. São rapidos e a rapidez com que passam fá-los
parecer pequeninos. São elles, entretanto, que, reunidos,
formam as horas, as horas fazem os dias, os dias
compõem as semanas, as semanas completam os mezes,
os mezes prefazem os annos, e os annos, Alteza, são os
elos dos seculos.
Que é um grão de arêa ? terra ; uma gotta d'agua ?
oceano; uma centelha ? chamma; um grão de trigo ?
seara; uma formiguinha ? força,
Quem dá attenção á passagem de um minuto ? é uma
respiração, um olhar, um sorriso, uma lagrima, um
gemido; juntai, porém, muitos minutos e tereis a vida.
Ali vai um rio a correr — as aguas passam
acceleradas, ninguém as olha. Que fazem ellas na
corrida? regam, refrescam, dessedentam, brilham, cantam
e lá vão, mais ligeiras que os minutos..
FABULARIO
185
Quereis saber o valor de um minuto, disso que
não sentis, como não avaliais a força da formiga ?
entrai do mergulho nagua e tende-vos no fundo —
todo o vosso organismo, antes que passe um minuto,
estará protestando, a pedir o ar que lhe falta. Ora ! o
ar do um minuto, que é isso ? direis. É a vida,
Alteza.
Vedes a formiguinha que vai e vem procurando
migalhas na terra — se a encontra e pôde carreá-la
leva-a ; se é superior á sua própria força, recorre á
companheira que passa; outras chegam, ajuntam-se
em chusma e ei-las fazendo com facilidade o
trabalho que seria impossivel a uma só.
Se a formiga desanimasse nunca iria provisão ao
formigueiro. Assim vós, meu Principe, pretendeis
um conhecimento, ides ao livro que o contém e
inclinais-vos sobre elle. No primeiro instante tudo
vos parece obscuro ; desanimais, aborreceis-vos. Se
lançardes de vós o livro ficareis sempre em
ignorancia, mas se persistirdes, appellando para
todas as forças do vosso engenho, pouco a pouco
ireis removendo as difficuldades e chegareis ao
caminho franco da certeza.
Assim é em tudo na vida. O que pretende
governar deve vêr o trabalho da formiga, porque é
um ensinamento. Não pôde o principe alhanar um
embaraço só com o seu juizo, chama a conselho os
186 FABULARÍO
homens de mais experiencia e tino, ouve-os,
delibera com elles e, juntos, facilmente arredam o
que, no principio, parecia inamovivei. Tudo é
proporcional na vida. Deus não fez o insuperavel. O
«Impossivel» é uma expressão inventada pelos
fracos.
O que é para a formiga um carreto, vôa com o
sopro debil de uma criança ; o que é para o homem
empecilho as aguas levam de roldão; onde não pode
a força de um braço suppre-a o instrumento e, se
ainda o embargo se obstina, então o homem appella
para o homem como a formiga reclama a
companheira e, conjuntamente, afastam o pesado
entrave.
Se eu vos pudesse levar ao labyrintho, que é o
reino subterrâneo das formigas, verieis a perfeita
ordem que nelle ha, a disciplina que o compõe, a
harmonia que o rege e se cá fora pudesse ser
applicada a lei que regula a sociedade dos insectos
exemplares facil vos seria governar o povo porque
todos os homens dar-se-iam por felizes nos seus
postos, não haveria inveja nem ambição, males que
tanto malsinam as sociedades.
Qual é a força da formiguinha ? é pouca para um
grão de assucar, entretanto, a formiga póde mudar
montanhas se o formigueiro se ajúnta em esforço
solidario.
FABULARIO 187
Que é uma gotta de orvalho ? um nada para o
calor de um raio de sol, lançai-a ao mar, entrará na
vaga concorrendo para o sossobro das maiores náos
de guerra.
Quereis vêr a força da formiga, procurai-a no
formigueiro, que é a união.
Assim falou o preceptor. E, como passasse uma
borboleta azul e o principe sahisse a persegui-la,
abriu, de novo, o seu Virgilio e continuou,
deliciadamente, a leitura interrompida.
O SINO
Andava o santo bispo em visita pastoral
percorrendo as freguezias da serra, as ermidas dos
solitarios, as pequeninas capellas das povoas de
pastores quando, ao chegar a uma aldeia alegre e
farta, com os campos viçosos cobertos de gado, os
pomares carregados de frutos, os jardins em matiz
redolente de flores, sahiu-lhe ao encontro, na estrada,
o vigario convidando-o a pernoitar no presbyterio,
entre jasmins, com uma fresca e pura fonte cantando
ao lado.
O santo bispo, que viajava escoteiro, como
simples peregrino, aceitou o agasalho que lhe
offerecia o sacerdote e, dando-lhe o braço, lá foram
os dois, ambos velhinhos, já curvados, caminhando
vagarosamente.
Entrando no passal e sentindo o bom cheiro
190
FABULARIO
dos guisados, que vencia o dos jasmins, disse o bis-
po a sorrir ;
Tendes cozinheira attenciosa, irmão, que nos
manda a cancella, para receber-nos, o aroma
agradarei da ceia. É um meio de fazer com que
aligeiremos os passos.
E são horas, reverencia. Estes caminhos
agrestes fazem appetite e, como os casaes distam
leguas uns dos outros, de certo, depois do almoço da
manhan, nada mais levasteia á boca e já o gado
recolhe e brilham estrellas no céu de Deus.
Com effeito, irmão, depois do almoço em uma
herdade, comi apenas alguns frutos silvestres e bebi
á farta a boa água das fontes serranas ; e foi só.
Trago fome e honrarei a vossa mesa.
Entraram. A casa recendia. A ceia foi servida
com abundancia e os dois santos, depois de
renderem graças ao Senhor, amesendaram-se e foi
da sopa e foi do assado e foi do vinho. Um fartão!
Ao fim do opiparo repasto, sentando-se os dois á
porta do presbyterio, que o luar illuminava, gozando
o perfume delicioso dos jasmins, pôz-se o bispo a
falar das ovelhas d'aquelle aprisco.
Ah ! reverencia, exclamou o presbytero
sentido, não fosse o peceado da mentira e isto seria
um cantinho do céu, um seminário de pureza, mas
as mulheres — oh ! as mulheres ! — mentem des-
FABULARIO
191
de que acordam até que dormem. Ninguém se póde
fiar no que dizem. Já lhes tenho descripto o inferno
de mil modos. Falo-lhes dos horrores dos castigos,
das penas eternas, do fogo, dos espetos, dos
demonios, dos dragões que rabêam nas chammas;
até eu minto, reverencia, para combater a mentira, e
nada. Quando vêm ao confessionario é só mentira,
mentira e mais mentira.
E que fazeis, irmão?
Peço a Deus que as corrija, que as não
castigue com dureza, porque, infelizmente, estou
convencido de que as pobresinhas não têm força
contra o peccado vil. E é pena, reverencia, porque
são puras e caridosas.
Depois de pensar um instante levantou-se o
bispo, dizendo:
Leva-me á forca do sino, irmão. Deus ha de
attender ás minhas orações.
Que ides fazer ?
Vou benzer o sino para que sôe toda a vez que
uma mulher mentir na aldeia.
Ai ! de mim, reverencia ... Como poderei
concentrar-me na leitura piedosa e dormir um
momento á sesta? Isso vai ser uma matinada de
enlouquecer. Emfim ... seja tudo pelo amor de Deus.
Amen ! concordou o santo bispo.
E dirigiram-se ao adro onde se erguia a forca.
192
FABULARIO
Ajoelharam-se os dois velhinhos e, depois de
ferventes preces, lançou o bispo a benção. Ainda a
mão não completara o gesto e já o sino badalava,
bimbalhava em repique de alarme enchendo a noite
de sons.
Acudiram, em alvoroço, os da aldeia e, quando o
bispo os viu juntos, explicou-lhes a razão d'aquelle
vivo rebate. E, como ameaçasse as mulheres com
um castigo do céu, se persistissem na mentira, todas,
com lagrimas de arrependimento, juraram, de
joelhos, que nunca mais mentiriam e o bispo
abençoou-as. Foram-se em silencio e os dois
velhinhos, contentes, agradeceram a Deus o milagre
edificante.
Entraram. Justamente iam recolhendo, cada qual
a seu leito, quando o sino começou a repicar de
novo.
Ouvi, reverencia, bradou o presbytero. E
o bispo :
A esta hora! Mas a quem mentirão ellas ?
— A quem? Aos maridos, reverencia : aos
maridos. Lá estão todas a mentir, as infelizes.
Subito calou-se o sino. Ficou o bispo pensativo;
por fim, falou, tranquillisando o sacerdote, que tanto
receiava pelas almas dos seus fieis :
Não vos preoccupeis, irmão; tanto ha de o
sino bater que ellas se hão de corrigir.
FABULARIO
193
Deus attenda ás palavras de vossa reverencia.
E deitaram-se.
Cedo — sahiam os rebanhos — despediu-se o
bispo para proseguir na sua viagem devota. Ainda
havia estrellas no céu e luz de luar nos campos.
Passavam junto da forca, no adro, quando o sino
começou a badalar com furia.
Pois já ! exclamou o prelado.
Estão acordando, reverencia, e isto agora vai
pelo dia adiante até a hora do somno.
Hão de corrigir-se, affirmou convicto o santo
bispo.
Assim queira o Senhor! murmurou o vigario.
Um mez depois, regressando o bispo, ao chegar
ao caminho que levava ao prebyterio — era a hora
melancolica de vésperas — deteve-se encantado
com o suave murmurio que faziam as aguas rolando
sobre seixos brancos, e, como avistasse, além das
arvores, a ermida, lembrou-se do sino e murmurou
satisfeito:
Bem dizia eu que se haviam de corrigir. O
vigario deve estar contente e trauquillo com a sorte
das suas ovelhas. A perseverança é tudo. Eu
confiava, com razão, no rebate do sino !
194 FABULARIO
Mal o avistou, o vigario precipitou-se ao seu
encontro zumbrido em reverências e, como se
ajoelhasse, tiniram moedas na esportula que levava
ao braço.
Felicito-vos pela riqueza, irmão, disse o
bispo, a sorrir ; e o vigario, comprehendendo a
allusão, fez um gesto de desalento e, estendendo o
braço para o lado da ermida, mostrou a forca,
dizendo :
Ando a pedir esmolas pra oomprar novo sino.
Novo sino! exclamou pasmado o bispo. E o
outro ?
O outro ? ! O outro durou dois dias — e durou
muito —, affirmo a vossa reverencia, porque nesse
tempo não cessou de bater um só minuto e parecia
tangido por demonios. Um desespero! Por fim
rebentou, fez-se em cacos. E quer vossa reverencia o
meu conselho ? Acho melhor não dar ao novo a
virtude do antigo, senão ficarei sem sino para
chamar á missa e para annunciar o Senhor quando
sahir com o vigario.
Pois seja assim. E riu-se o bispo.
Eu só tenho pena das pobres almas ! suspirou
o vigario.
Ora, irmão .. deixai-as ! Mentiras de mulheres
... o Senhor não as toma a serio. Deixai-as,
FABULARIO 195
deixai-as ! E vamos ao que agora importa : Tendes
ainda a mesma cozinheira ?
— Sim, reverencia, a mesma.
— Louvado seja o Senhor !
E caminharam, por entre as sebes floridas, para o
presbyterio hospitaleiro.
A ESTRELLA DE BUDDHA
Espalhara-se em toda a Ásia, desde as ribeiras do
mar salgado até ás neves transparentes das
montanhas altas, a palavra inspirada de Buddha.
Quem a levara ? os bodhisattvas que erram
espiritualmente nos ares deixando cahir nas almas a
esperança consoladora.
Todos os homens, do príncipe mais poderoso ao
poleá mais vil, sabiam da promessa que o Edificador
fizera e, com ansia, o esperavam para o cumular de
presentes, fazendo jús ao premio que elle annunciára
por intermedio dos genios:
«Precedido por uma estrella maravilhosa, que
brilhará em pleno dia, Budha entrará nas povoas «
nas cidades sob a figura modesta de um mendigo.
Baterá a todas as portas. Aquelle que o soecorra na
sua miseria de expiação verá a sua esmola
7
198
FABULARIO
multiplicar-se por milhares de milhões e eternizar-se
estampada no céu, em memória da sua caridade e
ainda gosará em vida a graça suave da misericordia
dos deuses.»
Príncipes dominadores d'homens, sacerdotes,
guerreiros, ricos proprietarios, rendeiros que
cultivavam geiras fertilissimas, miseráveis que
habitavam cabanas de adobe, todos puzeram de
parte o que possuiam de mais precioso para
offerecer ao divino mendicante.
Mas Buddha, que lia nos corações, quando os
espiritos entravam no eremiterio e descreviam os
grandes preparativos com que elle era esperado nas
cidades e nos villarejos, suspirava com
desconsolação.
Senhor, disse-lhe, uma tarde, Ananda, seu
servo : parece que vos não commove o
procedimento dos homens, porque recebeis com
tristeza as novas que vos trazem os gênios.
Ananda, respondeu o Mestre, despe a tunica
de linho, cinge os rins com um sendal de esparto,
põe á cabeça um velho turbante, toma um cajado e
fai ás cidades ricas e ás aldeias humildes. Entra nos
paços e pede, implora no vestibulo dos templos,
chora na eira dos lavradores, soluça e geme no
limiar das cabanas e verás que não é a caridade que
agita os corações, mas o in-
FABULARIO
199
teresse. Para com-mover os homens far-te-ei um martyr :
as tuas carnes abrir-se-ão em feridas, a febre queimar-te-á
o sangue, ficarás como um vi-me retorcido e a tua miseria
será tamanha que os próprios animaes das brenhas virão
lamber-te as feridas. Vai e conhece os homens. Disse e, á
ultima ultima luz da tarde, abençoou e despediu o servo.
Foi-se Ananda e, assim como lhe dissera o Mestre,
assim se cumpriu. Logo ao deixar o eremiterio toda a
robustez sadia abandonou-o. Abriram-se-Ihe em todo o
corpo feridas sangrentas, encheram-se-lhe os olhos de
sanie, entrevaram-se-lhe os membros e paralytico, mais
retorcido do que uma velha cepa, caminho a, quasi de
rastos, gemendo e deixando ao longo das estradas largas
manchas de sangue denegrido.
Á noticia do seu apparecimento era um alvoroço
tumultuoso : os príncipes juntavam as suas dadivas, que
valiam provincias, os lavradores faziam sahir os seus
carros cheios de viveres que alimentariam cidades.
Subiam ás torres os annunciadores a vêr se
descobriam a estrella de Buddha, mas como vissem
apenas os astros conhecidos, desciam desenganados :
«Não é o propheta. Não é.» E os principes, os sacerdotes,
os guerreiros, os proprietarios
200
FABULARIO
os poleás repelliam, com asco, o desgraçado,
mandavam escravos ameaçá-lo, açulavam cães
contra elle e lá ia o mísero evitando as pedras com
que o escorraçavam.
E assim correu toda a immensa Ásia, roendo
raizes amargas, bebendo nas ribeiras, dormindo em
covas de feras, ferindo-se nas arestas do penedio e
nos espinhos das hervas venenosas.
Uma tarde, ao cahir do sol, viu Ananda um
colmado, mas tão exiguo, tão raso que mais parecia
formigueiro, dos que avultam nas terras safaras.
Um novello de fumo subia-lhe do apice; em
torno cresciam cardos entre as pedras.
A fome fê-lo avançar gemendo e, a dois passos
da pauperrima guarida, implorou agasalho.
Levantou-se uma esteira que defendia fragilmente a
entrada e uma mulher appareccu, curvando-se, e, ao
dar com o desventurado, teve tão grande pena de o
vêr sangrando, que desceu a recebê-lo e, quasi em
braços, o recolbeu ao seu tugurio, onde mal cabiam
a esteira em que dormia o seu pequenino, uma arca e
o lume alegre c reccndente de folhas, que alumiava e
aquecia o interior.
Examinando-o e vendo-o chagado, tomou a boa
mulher um pouco de balsamo e applicou-o
delicadamente sobre as feridas dando allivio im-
FABULARIO 201
mediato ao enfermo e, como o misero tiritasse, fê-
lo abeirar-se do lume.
Mas o infeliz, que não comia desde a vespera,
queixou-se de fome. Ella então suspirou :
Ai! de mim. Não tenho migalha. O meu
jantar foi uma tamara verde. Que vos hei de dar ?
Belanceou o olhar em torno, chegou-ge devagarinho
á esteira em que dormia o filho, viu-o socegado.
Então ajoelhou-se, afastou os andrajos do
collo, fez saltar um dos peitos tumidos de leite e,
chegando-o á boca faminta do mendigo, disse com
simplicidade: É tudo quanto vos posso offe-recer.
E Ananda sorveu a goles sôfregos aquelle licor
de misericordia, e, saciado, abençoou-a;
Que Buddha. realise em ti a promessa da sua
bondade.
Buddha ! exclamou a mulher. De quem fa-
lais?
Não sabeis ? Pois é possivel que haja na terra
alguém que ignore o nome do Edificador da
Verdade !
Quem é? perguntou a mulher ingenuamente.
Revoltou-se Ananda com tão criminosa
ignorancia e já se levantava para deixar aquelle
covil impuro quando, num halo de estrellas, o
proprio Buddha lhe appareceu, sorrindo :
202
FABULARIO
Ahi tens, Ananda. Vieste encontrar a caridade
onde ainda não chegara o meu nome. Não
a achaste nos paços, nos templos, nas granjas dos
ricos nem nas cabanas dos que me adoram, mas
no tugurio da criatura simples, onde foste acolhido,
agasalhado, alliviado e alimentado com o leite dos
seus peitos maternos.
Que esperava ella quando te recebeu ? o premio
da minha promessa ? não, porque nem do meu nome
tinha conhecimento. Não foi para me ser agradavel
nem por interesse de recompensa que praticou o
bem, mas por amor, por piedade, porque é boa
d'alma. Esta é a minha preferida e nella se ha de
cumprir a promessa que fiz.
Detende-vos, senhor ! Não deis recompensa
a quem nem, sequer, o vosso nome sabe.
— E honra-me. Vale mais a meus olhos com a
sua ignorancia do que todos os crentes, porque fez
mais pela minha doutrina do que fizeram os principes
poderosos, os sacerdotes, os guerreiros, os
proprietarios e os pobres que vivem a apregoar
devoção com interesse nas minhas graças. Esta sim,
esta é a Caridade desinteressada.
A estrella de Buddha eras tu, Ananda, tu que
representavas a pobreza e que precedias a minha
recompensa. Os ambiciosos procuravam no céu o
que andava de rastos na terra, buscavam o es-
FABULARI0
203
plendor e não viam o soffrimento. A minha estrella
eras tu.
Disse e sahindo — a noite ennegrecia o campo e
o deserto — abençoou as terras tornando-as ferteis e
logo houve aroma de flores, murmurios d'agua e
vozes de gados. Levantando, então, as mãos ao céu,
implorou:
— Deuses, realisai a promessa por mim feita no
eremiterio. Com leite dos seus peitos saciou a
mulher a fome do meu discípulo, que as gottas do
generoso alimento sejam multiplicadas .por milhares
de milhões para memória da caridade, sempre grata
aos espiritos elyseos.
E logo, atravéz da noite, por entre as estrellas,
desdobrou-se, estendeu-se no céu, com uma surdina
harmoniosa, a mancha rutila e diaphana da Via-
Lactea.
O TRIGO
Por todo o vasto Éden espalhou-se, maravilhado
e risonho, o olhar do primeiro homem.
Viu as florestas frondosas, em cujas franças
rendilhadas esgarçava-se o nevoeiro da manhan; viu
as campinas alegres pelas quaes numerosos
rebanhos se apraziam; viu os montes de encostas de
velludo; viu os rios claros, largos, retorcidos em
meandros, discorrendo por entre margens de
hervaçaes floridos e acenoso arvoredo ; viu as fontes
borbulhando em bosques acceitosos.
Animaes de varias espécies cruzavam-se pelos
caminhos — leões de juba altiva, elephantes
monstruosos, antílopes e corças, leopardos e
gazellas e aves de plumagem branca on de pennas
variegadas junto a ribeiras tranqnillas, vogando em
insuas de flores, pousadas em ramos ou atraves-
206 FABULARIO
sando os ares, alegrando com o seu concerto o
silencio grandioso.
Os frutos offertavam-se nos galhos, as flores
desfaziam-se das pétalas recamando a alfombra e
esparzindo o aroma pelos ares.
O homem, ainda incerto, ia e vinha, ora parando
á beira das águas que o refleetiara, ora chegando á
ourela dos bosques, sahindo ás várzeas, mudo, em
êxtase contemplativo.
Deus, que de longe o assistia com o seu olhar,
achava-o perfeito, airoso e forte, digno de ser o
senhor do mundo e de todas as criaturas.
O sol ardia estivo e, de toda a terra exuberante,
exhalava-se um hausto calido, respiração abrasada
que amollecia e adormentava.
As folhagens eneolhiam-se, murchando; as flores
pendiam languidas nos caules ; os animaes
refugiavam-se nos bosques ou penetravam as furnas
tenebrosas ; as próprias aguas desciam lentas, com
preguiça, sob a irradiação cáustica da luz que
refulgia tremulamente no azul díaphano.
Deus errou em passos lentos pelas silenciosas
veredas e toda a pedra que os seus pés tocavam
fazia-se luminosa, com rebrilhos faiscantes e cores
admiraveis. Era aqui um seixo que se ensanguentava
em rubi, ali um calháo esverdeando-se em
esmeralda, outro tomava colorido flavo ou
FABULARIO
207
roxo e, miríficamente, iam-se todos transformando e
adquirindo côr, desde o tom lacteo da opala até o
esplendor ceruleo da amethysta ; desde o limpido
fulgir do diamante ao lampejo solar dos prazios
amarellos.
As arêas faziam-se de ouro, rutilando, como
haviam ficado no leito do córrego em que o Senhor,
depois de haver plasmado o homem com o barro
sanguineo, lavou e refrescou as mãos beneficas.
Foi-se o Creador encaminhando a um campo que
ondulava e sussurrava á aragem e que era um trigal.
Nelle entrando, sem que as pombas e as ca-
Ihandras se assustassem, a frescura convidou-o ao
repouso.
Deitou-se e os trigos fecharam-se suavemente
formando ninho aromai e sombrio onde o somno foi
agradavel.
Já as roxas nuvens annunciavam o crepusculo
quando, ao suave prelúdio dos rouxinóes, abriram-se
os olhos divinos. Deus, que gozara a delicia do
somno, ergueu-se. Então, mansamente, uma voz
meiga elevou-se no campo louro :
— Senhor, que vos não pareça de vaidoso a
minha requesta, não é por orgulho que vos falo,
senão porque me sinto por demais miserando na
grandeza da vossa creacão. Fizestes a arvore sobran-
208
FABULARIO
ceira dando-lhe o tronco, dando-lhe os ramos,
vestindo-a de folhas, cobrindo-a de flores e ainda a
carregais de frutos ; as suas frondes altas topetam
com as nuvens. Aos que não destes grandeza e força
ornastes com a graça mimosa da flor ; só eu, pobre
de mim ! fui esquecido por vós. Quando vos vi
chegar para mim tive vexame de receber-vos, tão
pobre sou! trigo misero.
Era o trigo que assim falava.
Parou o Senhor a escutá-lo e, compadecido das
suas palavras, estendeu a mão abençoando-o:
— Agasalhaste o meu somno com a pobreza,
trigo tenro e fragil, déste-me generoso abrigo e
resguardaste-me do sol. Kâo fique memoria na terra
de uma ingratidão d'Aquelle que mais a detesta e,
para que o exemplo sirva e aproveite, abençôo-te e
amercêo-te com a força e com a Graça.
Fraco, darás o alimento essencial; misero,
encerrarás em ti o mysterio divino. Serás o pão e
serás a hóstia e assim, com a tua fraqueza,
supplantarás a arvore mais vigorosa e com a tua
humildade serás maior que o sol.
No teu Seio desabrocharão as papoulas e, dentro
em pouco, a flor virá annunciar-te a espiga e a
espiga dará a farinha branca, que será força nos
homens e sacrario da minha essência. Assim Deus,
engrandecendo-os, responde á esmola dos
pequeninos.
FABULARIO 209
Disse e, contente, mais com o que fizera ao trigo
do que com a creaeão de todo o universo
maravilhoso, ao clarear da lua, quando os rouxinóes
cantavam, remontou ao céu entre anjos que foram,
em coros, pelos ares claros, apregoando a sua
omnipotencia e a sua misericordia.
AVENTURA DAS AGUIAS
A Ex.ma Snr.a D. Amalia Bittencourt:
Ao som das aguas descia ondulando o camalote
de aningas e, deitada entre flores, sobre macios
frocos de algodão virgem, uma criança dormia.
Morena, lisos cabellos negros, tão linda que as
yáras vinham á tona do rio e, nadando em torno do
berço flutuante, contemplavam-na maravilhadas.
Uma aguia potente, que rondava o espaço,
lançando os olhos d'alto, avistou o estranho berço e
nelle descobriu a passageira. Colheu as azas e,
deixando-se cahir das nuvens em revoluteada
espiral, como se rolasse ferida de morte, soltou um
grito que repercutiu na vastidão.
Logo as yáras mergulharam e o vulturino,
abrindo subitamente as azas poderosas, librou-se,
pairou sobre as aningas, o olhar agudo fito na
criança qne dormia.
212
FÀBULARIO
Poz-se a esvoaçar em torno do oamalote e,
compadecida da innocente que, com mais algumas
horas, descendo ao sabor das águas tributarias,
perder-se-ia no mar, remontou aligera e, no espaço,
desferiu a voz atroadora que retumbou longa,
estrondosamente e logo, de varios pontos, com
fragor desabrido, surgiram águias e, á voz da que
primeiro baixara, que era a rainha, cercaram o
florido esquife, habil e destramente entreteceram as
folhas, enredaram ligeiras as humidas raizes,
fazendo do camalote uma rede intrincada e
tomando-o, cada qual, por uma parte, ergueram-no e
foram-no levando pelos ares fora em direcção á
cumiada azul de uma serra escarpada.
Pousando serenas agasalharam em uma gruta a
criança sempre adormecida. Então, reunindo a sua
grey alada, disse soberanamente a rainha das aguias:
Que adoptava a pequenita, exigindo das subdítas
robustas o juramento de que a protegeriam até que
ella tivesse forças de viver sobre si mesma podendo,
caso quizesse, regressar á planicie. »
E as aguias juraram pelo sol.
Desde logo começou a solicita vigilância. Poz-
se, cada qual, em maior actividade para attender á
pupilla.
Uma desceu ás pasturas, arrebatou nas gar-
FABULÀRIO
213
ras uma ovelha nedia, levando-a para a gruta para
que amamentasse a criança ; outra encarregou-se de
recolher achegas ; folhas dè aroma e frouxeis de
paina para forrar-lhe o leito.
Áo amanhecer era ama estrepitosa ruflalhada em.
volta da moradia selvagem: eram as aguias que
espanavam com as azas o circuito da caverna e,
constantemente, alerta, rondas circulavam nas
immediações devassando as grotas e as veredas, os
alcantis e os valies e ai! da fera que ousasse chegar a
um tiro d'arco — sahiam-lhe ao encontro, em
furente investida, as formidáveis sentinellas e a bico
e garras espostejavam-na.
Sob tal protecção cresceu, linda, no homisio
alpestre, a pequenita salva das águas. Amavam-na
as aves regias e ella correspondia com amor que se
manifestava em cuidados e carinhos.
Ás vezes, á tarde, ao vibrar de um grito
doloroso, a virgem precipitava-se da gruta em
commovido alvoroço para acolher uma aguia ferida.
Quasi a recebia nos braços frágeis e com que pressa
e ternura a alliviava da frecha que lhe atravessara o
corpo e era, a bem dizer, com lagrimas que lhe
curava a ferida.
Velava como enfermeira e, quando o animal
convalescente ia ganhando forças, com que alegria o
acorçoava nos ensaios de vôo Via-o lançar-
8
214
FABULARIO
se, ainda fraco, de um rochedo a outro, arrojar-se a uma
volta larga, abrir as azas por fim em toda a envergadura e
desapparecer nos ares luminosos.
Á volta, eram frutos e flores, caça, tudo quanto de
mais bello e de mais saboroso possuiam as veigas e as
florestas.
Uma manhan a rainha das aguias, que só pensava na
felicidade da sua pupilla, reuniu a legião voadora em
torno do penhasco que lhe servia de throno, propondo
uma ascensão ao sol.
— Iremos juntas, disse, unidas para que as mais fortes
possam prestar auxilio ás mais fracas. A viagem é longa e
arriscada, mas o sol deve ser lindo e de lá traremos tantas
riquezas para a nossa filha que todos os thesouros dos reis
da terra serão miseria comparados aos seus haveres.
As aguias applaudiram estrondosamente ; mas a
virgem, tanto que soube do plano aventuroso, oppôz-se
com as suas lagrimas mais meigas.
As nossas azas são fortes, nada nos acontecerá ;
disse a rainha das águias.
Ai! de mim ! Mas como poderei viver sosinha
nesta solidão? As feras, logo que souberem da vossa
partida, virão profanar o meu asylo e quem me defenderá
dos jaguares carniceiros ?
Disse, então, a rainha das aguias :
Não temas. Para que as feras não se atre-
FABULARIO
215
vam a chegar até aqui basta que cada uma de nós
deixe uma penna das azas naquelle tronco secco que
fica á beira do abysmo ; e viverás tranquilla como se
comtigo estivessemos.
E se não voltardes t Se vos perderdes ou
succumbirdes nessas alturas ardentes onde vos leva
a audácia, como poderei saber ?
As nossas pennas dirão. Em quanto estiverem
hirtas, a prumo, saberás que estamos vivas, que
vamos escalando as nuvens d'ouro, proseguindo na
viagem em demanda do sol; se as vires, porém,
pendidas, dobrando-se sobre o tronco, chora-nos
porque perecemos. E verás o tronco secco subir,
esguio e esbelto como uma columna, para que as
feras, avistando, de longe, a nossa plumagem, não se
animem a invadir os domínios d'aquellas que
affrontam o sol.
Assim falou a rainha das águias e, arrancando
uma penna das azas, cravou-a no tronco secco. O
mesmo fizeram as companheiras e, com um
grasnido triumphante, alaram-se tumultuosamente
subindo em nuvem negra.
Estenderam-se em fila formando uma escada
aérea, espalharam-se a granel, juntaram-se de novo
diminuindo, esvaccendo até que não fizeram mais
que um ponto no espaço. Subito desappareceram.
216 FABÜLARIO
A virgem passou a noite no limiar da caverna,
chorando.
Mal accendeu-se a manhan correu á beira do
abysmo a examinar o tronco secco — lá estavam as
pennas birtas, a prumo, como frechas cravadas.
Bateu as mãos contente e foram-se-lhe os olhos para
o céu radioso como se ainda pudessem descobrir as
aguias que voavam em direcção ao sol. «Já devem
estar perto. Como são felizes !»
Tres dias seguidos, mal os pássaros galreavam
annunciando a luz d'alva, corria a vêr as pennas e
achava-as perfeitas. « Ainda vivem. Lá vão !»
Na quarta manhan, porém, achou uma das
pennas curvada e logo se lhe arrasaram os olhos de
agua. Becolheu-se á caverna muda e triste pensando
na infeliz que morrera e passou a noite em claro, a
tiritar de medo, ouvindo as vozes roucas dos
jaguares errantes.
Ao amanhecer, ai! d'ella, depararam-se-lhe todas
as outras pennas dobradas e, entre ellas, como um
signal de morte, uma frecha fincada. E o tronco
secco subia, liso e esbelto como uma columna,
passava as franças das arvores mais altas, como para
mostrar ás feias as pennas das aguias defendendo
assim o refugio da virgem solitaria.
Maa a misera, comprehendendo, por aquelle
prodigio que as suas proteetoras haviam perecido,
FABULARIO
217
sentou-se no limiar da caverna e, depois de tres dias
e tres noites de pranto continuado, adormeceu na
morte ... talvez para juntar-se ás aguias.
Hirto, a prumo, o tronco altivo, balouçando ao
vento a sua coma maravilhosa, mantinha as feras a
distancia. E assim fez-se a palmeira, a arvore de
pennas, que lembra, a quem a vê, a tristeza mortal
da virgem solitária e a aventura das aguias que
remontaram ao sol.
FIM
ÍNDICE
A Felicidade....................................................................... 7
A cobra e o gaturamo. ........ 13
A arvore................................................. .... 15
O tempo ............................................................................. 19
El-rei Truão........................................................................ 25
Heliantho- . ................................................................... 31
A flauta e o sabiá .............................................. 37
O milagre........................................................................... 41
Frutos maduros ................................................................. 45
O relogio e o vegete.......................................................... 49
O ribeiro............................................................................ 53
O Principe de Lahos . . ....................................... 59
A vaquinha branca............................................................ 67
SEGUNDA PARTE
Comprador d'almas . ........................................... 79
O talisman......................................................................... 87
O pescador e as sereias ..................................... . . 93
220 ÍNDICE
PAG
Alpheu............................................................................................................... 97
Sacrifício supremo . ..................................................................................... 105
A piedade.......................................................................................................... 1ll
Elegia............................................................................................................... 119
Rosas, corações desfeitos................................................................ 125
Lavradores....................................................................................................... 133
Gemeos............................................................................................................ 139
O fauno........................................................................................................... 147
O perdão . ...................................................................................................... 153
Threnos da Magdalena.................................................................. 161
As estações.............................................................................. 169
A peregrina....................................................................................... 175
As formigas .................................................................................... 183
O sino............................................................................................ 189
A estreila de Buddha .................................................................... 197
O trigo .......................................................................................................... 205
Aventura das aguias ....................................................................... 211
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