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Jardim Botânico, outras aos asilos ou a novos bairros e diferentes jardins, trazendo
sempre impressões bem definidas e em que se percebia uma direção cuidadosa e
inteligente. A pouco e pouco a criança ia se tornando mais observadora e mais
piedosa. O padre Assunção, que ia buscá-la sempre ao ponto indicado por Alice,
sentia arraigar-se-lhe a idéia de que esses passeios através da cidade desenvolviam
melhor o espírito e o coração de Maria do que o mais volumoso livro de moral.
Se vinha de visitar um asilo de velhos, com que meiguice Glória falava dos
seus cabelos brancos, dos seus passos trêmulos e do seu triste sorriso desdentado!
Se vinha da Tijuca, quantas exclamações de entusiasmo para as belas árvores
poderosas e as quedas de água da cascata e as lindas flores silvestres! Se vinha do
mar, que indagações curiosas sobre os navios e lanchas, e quantos elogios para as
largas paisagens azuis, varridas de ar fresco! A vida dos marinheiros, com os seus
perigos, a dos pescadores com os seus atrevimentos, atraíam a sua simpatia e a
sua piedade. Ia vendo que o número dos sacrificados é muito maior no mundo do
que o dos felizes, e assim se tornava menos selvagem e mais humana.
Ora, o padre Assunção sabia bem que tudo aquilo era reflexo e sugestão de
Alice. Maria era inteligente, e as suas qualidades morais, ainda informes,
propendiam mais para a maldade que para o bem. Aquela metamorfose era, pois,
toda, obra da moça, que parecia acolher a companhia da criança, como um presente
caído do céu... Realmente, ela estava tão só!
O ciúme da baronesa aumentava a cada novo triunfo de Alice, que lhe
disputava a neta com furor. Sofria calada, não ousando queixar-se nem ao marido
nem ao padre Assunção, que ambos glorificavam com entusiasmo a obra da moça.
Fechada na sua chácara, à sombra das mais lindas mangueiras dos subúrbios, ela
maldizia a hora em que o genro chamara para casa aquela aventureira, cujo
propósito percebia a léguas. O Feliciano não voltara, e ela tinha pena... só ele lhe
poderia dizer toda a verdade, por não estar enfeitiçado pela bruxa e por conhecê-la
melhor que os outros, visto estar sempre na sua convivência...
Sua intenção estava feita. Havia de cumprir-se. Quando o negro, por acaso,
aparecesse ali, ela puxar-lhe-ia pela língua, de modo que ninguém mais o ouvisse
senão ela... ah! e então, nada ficaria em meio!
Com as idas de Maria à cidade, rareavam as visitas de Argemiro à chácara;
esse desgosto vinculava as suspeitas da baronesa; mas quando o genro se
lembrava de ir vê-la, achava jeito de falar na filha a todo o instante, numa obstinação
dolorosa e impertinente.
– Você tem ido visitar o túmulo de Maria? Mandou reproduzir os retratos de
Maria? – e assim o nome da filha saía-lhe constantemente da boca, como a querer
impô-lo à lembrança de todos.
Os retratos de Maria, desde o de colo, de quatro meses, até o último, em que
o seu perfil delicado se voltava para o céu, como a interrogá-lo, alinhavam-se sobre
o guéridon, sobre o piano, na sala de visitas, na saleta de trabalho e na sala de
jantar, repetindo-se por toda a casa, para que nunca os olhos maternos deixassem
de o encontrar... Ela vivia assim perpetuamente arrastada pela saudade, nunca
conformada, e criadora da ilusão!
Argemiro identificara-se tanto com a sogra nesse sentimento, que para ele era
como se Maria estivesse longe, muito longe, mas estivesse, e houvesse de voltar um
dia. Era uma certeza tida pelo coração e não compartilhada pelo cérebro, mas que,
sendo terrível, não deixava de o consolar...