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Universidade da Amazônia
A Serpente de
Bronze
de Humberto de Camposde Humberto de Campos
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal
CEP: 66060-902
Belém – Pará
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A Serpente de Bronze
de Humberto de Campos
A
Arnaldo Quintella e Jayme Poggi
SIMILIA SIMILIBUS CURANTUR
Tornaram logo os israelitas a murmurar, pelo que mandou o Senhor contra
eles serpentes venenosas, cuja mordedura queimava como fogo. E morrendo muitos
com dores atrocíssimas, veio o povo ter com Moisés, e disse: "Pecamos contra o
Senhor e contra ti; roga-lhe que nos livre destas serpentes". Anuiu Moisés ao
pedido, e o senhor lhe deu a seguinte ordem: — "Faze uma serpente de bronze, e
arvora-a no alto de um poste; e todo o que, sendo mordido, olhar para ela, será
salvo". Obedeceu Moisés, e todos aqueles que tinham sido feridos, e olharam para a
serpente de bronze, ficaram curados." — D. Antônio de Macedo Costa, Resumo da
História Bíblica p. 39, pag. 71.
Capítulo I
O Filósofo
1° de janeiro
Educado no Colégio Caraça, o coronel Venâncio Figueira, fazendeiro em
Uberaba, havia se contaminado, pouco a pouco, de filosofia e de latim, de modo a
preocupar-se, mais do que o necessário, com os graves problemas da vida.
Manuseador quotidiano de certos autores profanos, ele se punha, às vezes, a
pensar, no alpendre da sua casa de fazenda:
— Sim, senhor! Esses filósofos têm razão! Este mundo é tão desigual, tão
cheio de injustiças, de irregularidades clamorosas, que qualquer mortal, encarregado
de fazê-lo, o teria feito melhor!
E acentuava, melancólico:
— Este mundo está muito mal feito!...
À noite, porém, reunida a família na sala de jantar, o velho fazendeiro
arreganhava os óculos no nariz, tomava a "Bíblia", chegava para mais perto o
lampião de querosene, e punha-se a ler, pausado, o "Livro de Jó". E começava, de
novo, a meditar, diante destas palavras do capitulo 38:
"4. — Onde estavas tu, quando eu fundava a terra? Faze-mo saber, se tens
inteligência.
"25 — Quem abriu para a inundação um leito, e um caminho para os
relâmpagos e trovões?
"41 — Quem prepara aos corvos o seu alimento, quando os seus filhotes
implumes gritam a Deus, e andam vagueando por não terem de comer?"
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Certo dia, dominado pelas idéias reacionárias bebidas em autores modernos,
passeava o coronel pelo pátio da fazenda, quando, ao ver as andorinhas que
voejavam por cima do gado, voltou novamente a raciocinar:
— É isso mesmo, não há duvida! O mundo é muito mal arranjado. Aqui está,
por exemplo; este boi. Porque, tendo ele chifres, patas, orelhas, e sendo tão forte,
há de viver sempre na terra, a arrastar-se pelo solo, quando aquela andorinha, que
não tem nada disso, se locomove, rápida, ligeira, dominando os ares?
Nesse momento, porém, uma andorinha que lhe passava por cima, deixou
escapar alguma cousa que lhe fazia sobrecarga, e que foi cair, certeira, na cabeça
descoberta do coronel. Este levou a mão instintivamente à calva, e, olhando os
dedos brancos daquela indignidade, caiu de joelhos, clamando, arrependido:
— Perdoai-me, Senhor, perdoai-me! O mundo está muito bem organizado! O
que nele há, o que nele vive, o que nele existe, foi feito com perfeição, com acerto,
com sabedoria!
E levantando-se, limpando a mão:
— Imagine-se que fosse um boi....
Capítulo II
A Rosa Azul
4 de janeiro
O comendador Luiz de Faria acabava de fechar os olhos à velha marquesa de
São Justino, adoçando-lhe o momento da morte com a noticia alvissareira e
mentirosa da completa regeneração do seu neto, o estudante Guilherme de Araújo,
quando o encontrei à porta da casa funerária, à espera do seu automóvel. Abalado,
ainda, pela emoção daquele instante, em que tivera de lançar mão de uma falsidade
para perfumar o último sopro de uma vida de virtudes e sofrimentos, o antigo par do
reino português aceitou um lugar no meu "taxi", e confessou-me, em viagem:
— A mentira, meu amigo, é, às vezes, uma necessidade. Aquela de que me
socorri há meia hora, para suavizar a morte de uma santa, de uma senhora cuja
maior esperança consistia no futuro de um neto que se desgarrara do lar, era tão
necessária como a do prior da Cartuxa para alegrar a agonia daquele célebre monge
do Bussaco.
Eu olhei, interrogativamente, o meu companheiro de viagem, e ele,
percebendo a ignorância, indagou, com admiração:
— Não conhece, então, a lenda da rosa azul?
À minha afirmativa, que lhe pareceu estranha, o comendador apoiou as mãos
robustas no castão de ouro da bengala, e contou:
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— No Mosteiro da Cartuxa, no Bussaco, em Portugal, vivia, em séculos que já
se foram, um piedoso e santo monge, cuja vida se consumia, inteira, entre a oração
e as rosas. Jardineiro da alma e das flores, passava ele as manhãs de joelhos, no
silencio da nave, aos pés de um Cristo crucificado, e as tardes, no pequeno jardim
da ordem, curvado diante das roseiras, que ele próprio plantava e regava.
O comendador interrompeu um momento a narrativa, recostou-se na
almofada, e continuou:
A sua paciência de jardineiro era absorvida, entretanto, por uma idéia, que era
um sonho: encontrar a rosa azul das legendas do Oriente, de que tivera noticia, uma
noite, ao ler os poemas latinos dos velhos monges medievais. Para isso, casava ele
as sementes, os brotos, fundia os enxertos, combinando as terras, com que as
cobria, e as águas, com que as regava, esperando, ansioso, o aparecimento, no
topo da haste, do sonhado botão azul! Ao fim de setenta anos de experiências e
sonhos, em que se lhe misturavam na imaginação as chagas vermelhas de Cristo e
as manchas celestes da sua rosa encantada, surgiu, afinal, no coroamento de um
galho de roseira, um botão azul, como o céu. Centenário e curvado, o velhinho não
resistiu à emoção; adoeceu, e, conduzido à cela, ajoelhou-se diante do Crucificado,
pedindo-lhe, entre soluços pungentes, que, como prêmio à santidade da sua vida,
não lhe cerrasse os olhos sem que eles vissem, contentes, o desabrochar da sua
rosa azul.
Uma nova pausa, e o meu companheiro tornou:
— Em volta do santo velhinho, no catre do mosteiro, todos choravam,
compungidos. E foi, então, que, divulgada de boca em boca, foi a noticia ter a um
convento das proximidades, onde jazia, orando e sonhando, uma linda infanta de
Portugal. Moça e formosa, e, além de formosa e moça, — fidalga e portuguesa,
compreendeu a pequenina freira, no jardim do seu sonho, o valor daquela ilusão, e
correu à sua cela, consumindo toda uma noite a fazer, com os seus dedos de neve,
uma viçosa flor de seda azul, que perfumou, ela própria, com essência de gerânio. E
no dia seguinte, pela manhã, morria no seu catre, sorrindo entre lágrimas de alegria,
por ter nas mãos tremulas, por um milagre do céu, a sua rosa azul!
O "taxi" parava no meio-fio da calçada, o comendador acrescentou,
estendendo-me a mão agradecida:
— Feliz, meu amigo, aquele que morre, como esse monge e a marquesa,
apertando nas mãos a rosa, mesmo mentirosa, de uma roseira de que cuidou toda a
vida.
Capítulo III
A Bilha
9 de janeiro
Sentado em um banco de madeira tosca, colocado por ele próprio diante da
sua chácara do "Bom Retiro", a dois quilômetros de São Fidelis, olha o coronel
Saturnino as grandes águas do Paraíba, que rola, sereno e inchado, no rumo de São
João da Barra. A cinco metros do honrado fazendeiro, no leito do rio, emergem duas
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cabeças queridas: a do filho, o Alfredinho, um pirralho louro, forte, vivaz, de quatro
anos, feitos em setembro, e a da sua segunda esposa, D. Florinda, cujos cabelos
castanhos, soltos e molhados, lhe orlam, como um capuz de freira, o formoso rosto
moreno. O fazendeiro olha, sorrindo, os dois banhistas que lhe enchem o coração, e
dá ordens:
— Não vá para longe, Alfredo. Fique aí mesmo.
E para a esposa:
— Mergulhe, Lindinha. Está com medo?
A moça dá um mergulho ligeiro, e aparece mais distante, com os lindos olhos
fechados, para que lhe escorra melhor sobre o colo forte, como pérolas dissolvidas,
a água que lhe encharca os cabelos.
Diverte-se o coronel, assim, com os dois anjos que lhe constituem a família,
quando, tomando uma bilha velha e inservível que se achava próxima, se põe de pé,
e a atira, longe, um exercício dos músculos vigorosos, na corrente do rio. Apanhada
pela correnteza, a vasilha de barro começa a descer, rápida, rodopiando, arrebatada
pelas águas. De repente, porém, com a boca para cima, começa a encher-se,
afundando-se pouco a pouco, até que desaparece, sem deixar vestígio, no tumulto
um redemoinho fervente.
Alfredinho olha, atento, a viagem da vasilha, e, vendo-a desaparecer na
voragem, franze o cenho infantil, perguntando, intrigado, ao velho:
— Papai, por que é que a bilha foi para o fundo?
— Porque entrou água; está claro! — explicou o coronel.
— Ela não estava com a boca para cima?
— Estava, sim.
— E como entrou água?
— Porque estava furada, — tornou o velho.
O pequeno meditou um instante, franziu a testazinha inteligente, e, olhando
Dona Florinda, que se encaminhava com o rosto fora d'água, para o meio do rio,
gritou, alto, alarmado, com a vozinha fina:
— Mamãe, venha mais p'ra beira!...
Capítulo IV
O Troco
12 de janeiro
O Joaquim P'reira acabava de chegar da "terra" com o seu chapelão de abas
largas e seu sólido jaquetão de veludo, quando "sô" Manoel Guimarães, proprietário
da Padaria "Flor de Braga", o convidou para caixeiro.
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— O essencial - avisou, entretanto, "sô" Manoel, - é que sejas honesto. O
outro rapaz que eu cá tinha, pu-lo eu ontem na rua por m'haver deitado fora dois mil
réis que dele não eram. Toma tu juízo, que, cá, comigo, prosp'rarás.
O Joaquim prometeu não bulir, jamais, em dinheiro da casa, e, dois dias
depois, era admitido, com todos os sacramentos da rosca e da farinha de trigo, como
caixeiro da "Flor de Braga". E estava já há uma semana no emprego, quando "sô"
Manoel o chamou:
— "Sô" P'reira?
— Cá 'stou! — acudiu o Joaquim.
— Vá à casa do Almeida, no principio da rua, e receba esta conta de vinte mil
réis.
E recomendou, prudente:
— Cuidado com o dinheiro!
O Joaquim pegou na conta, foi à casa indicada, recebeu uma cédula de vinte
mil réis, e vinha, reto, no rumo da padaria, quando se encontrou com um
conterrâneo, o Zé Moreira, a quem não tinha visto desde a chegada. Trocados os
primeiros abraços, o Moreira convidou:
— Vamos solenizar o encontro! Arre, lá! Vamos cá à cervejaria!
Aceito o convite, foram os dois, beberam duas garrafas, trocaram notícias e
saudades, e ia o Joaquim despedir-se, quando o Zé reclamou:
— E quem paga isso?
— Tu; ora essa!
— Mas eu cá não tenho um vintém; e se não pagares tu, iremos os dois bater
à cadeia, o que é pior!
Amedrontado e arrependido, o Joaquim arrancou do bolso a cédula de vinte,
pagou os mil e seiscentos da cerveja, recebeu dezoito mil e quatrocentos de troco, e
ia pensando no meio de justificar-se perante "sô" Manoel, quando teve uma idéia,
que pôs em pratica. Entrou na padaria pela porta lateral e, chamando o "Leão", um
canzarrão que tomava conta da casa, pôs-se a brincar com ele, aos pulos, até que,
de repente, soltou um grito.
— Que é isso lá? — trovejou "sô" Manoel, acorrendo.
Com os olhos em lágrimas, o P'reira contou o desastre:
— Foi uma desgraça, patrão! Imagine o senhôre, que eu vinha cá com o
dinheiro na mão, uma cédula de vinte mil réis, e o cachorro avançou-me neles, e
engoliu-os!
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"Sô" Manoel franziu a testa, calculou o prejuízo, e, de um salto, estava diante
do "Leão", empunhando uma garrafa de óleo de rícino. Auxiliado pelo Joaquim, abriu
a boca ao animal, e, depois de purgá-lo, recomendou ao rapaz:
— Agora, fica-te cá, junto do bicho, à espera do dinheiro. Logo que ele o
deite, segura-o. Meia hora depois estava "sô" Manoel de volta, a saber noticias do
purgante:
— Já deitou o dinheiro? indagou do empregado.
O Joaquim, que esperava, ansioso, por esse momento, abriu a mão, e
mostrou, desafogado:
— Todo, todo, não senhôre; até agora só deitou 18$400!
E entregou o troco da cerveja.
Capítulo V
A Epilética
16 de janeiro
— Estás, então, separado de tua esposa?
— É verdade; internei-a em uma casa de saúde.
E como se tratasse de uma palestra afetuosa, entre amigos que lia muito se
não viam, o mais moço dos dois, o Sr. Nataniel de Miranda, caixeiro viajante de uma
conceituada casa da praça, justificou a sua conduta:
— A situação em que dia me colocou era intolerável. Eu seria um perverso,
um miserável, um desumano, se conservasse na minha companhia uma senhora
sabidamente enferma, perseguida por moléstia tão delicada.
— Era, então, doente?
— Doentíssima! — confirmou o esposo inconsolável.
E como se visse nos olhos do amigo uma interrogação luminosa, um desejo
de conhecer, fase por fase, os detalhes daquela tragédia de coração, tomou-o pelo
braço e, fazendo-o sentar-se em uma das mesas do botequim, principiou, calmo, a
descrever-lhe o caso, deixando esfriar, entre voltas de fumaça, as duas xícaras de
café.
— Há muito tempo eu andava desconfiado da moléstia da Luisinha. Afastado
sempre de casa por exigência mesmo do meu gênero de vida, ora em excursão pelo
interior de Minas, ora por S. Paulo, era com estranheza, com mágoa íntima, que eu
observava, de mês para mês, a mudança nos modos de minha mulher. A
transformação do seu caráter, das suas maneiras, do modo, enfim, por que
definhava, a olhos vistos, fazia-me triste, aflito, preocupado, na suspeita de que
alguma coisa de grave, de anormal, se estava passando na sua saúde. Em uma
dessas viagens, com a alma carregada de preocupações, confessei a um parente
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meu, fazendeiro em Uberaba, a desconfiança, que eu tinha, de que ela sofria de
ataques, na minha ausência. Ele escutou-me, pensou um momento, e, chamando-
me para o interior da casa, perguntou-me porque eu não tirava a limpo essa dúvida,
empregando, no caso, a experiência da tigela de leite.
— Da tigela de leite? - interrompeu o amigo.
— Da tigela de leite, sim.
E continuando:
— Esse fazendeiro explicou-me, então como era a prova. Pega-se uma tigela
de leite, e põe-se debaixo da cama, em um lugar que corresponda ao meio do
colchão. Em seguida, toma-se de uma colher, ou de uma vara de uns dois palmos, e
amarra-se no estrado de arame, de ponta para baixo, exatamente sobre a tigela, de
modo que, com o peso natural de uma pessoa, não chegue até o leite, mas de
maneira que, com um movimento mais forte, como nos ataques de epilepsia, a
colher, ou coisa semelhante, molhe a ponta no liquido da tigela, registrando o
fenômeno.
— E fizeste a experiência?
— Espera aí. Chegado ao Rio, procurei um momento em que a Luisinha se
achava ausente, e fiz o que me haviam aconselhado. com a diferença, apenas, da
colher, que, por ser a cama um pouco alta, foi substituída na ocasião, por um
batedor de doce, que encontrei na dispensa da casa. Feito isso, declarei que ia a
São Paulo, e parti. Dois dias depois, voltei.
— E então? — indagou o amigo, ansioso, com a curiosidade nos olhos.
— O batedor tinha batido tanto, tanto, que a tigela...
— Que é que tem? - interrompeu o outro.
E o desgraçado, enxugando os olhos:
— Estava cheia... de manteiga!...
Capítulo VI
Os Submarinos
18 de janeiro
À margem do Tietê, em lugar em que o rio se tornava mais claro e menos
profundo, tomavam banho, uma tarde, sete ou oito crianças, de quatro a nove anos,
entre as quais uma encantadora menina, a Lili, irmã do Armindinho, que era, no
grupo, o mais insuportável e barulhento. Com a inocência peculiar à idade,
apresentavam-se todos despidinhos, nadando, mergulhando, pulando, como um
bando de golfinhos irrequietos.
O barulho que faziam, era, como facilmente se imagina,
ensurdecedor.Entregues a si mesmos, rolavam-se na areia, atiravam-se terra,
empurravam-se, nadando, ora de papo para cima, ora de papo para baixo, com as
mãos em movimento dentro d'água, no "nado de cachorro", batendo com os pés, na
imitação dos navios de roda, ou de barriga para o sol, agitando os braços
ritmadamente, como escaleres em marcha pelo impulso regular de dois remos.
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Estavam os pequeninos tritões no mais aceso do entusiasmo, quando o
Armindinho propôs, gritando:
— Vamos brincar de submarino?
— Vamos!— concordaram os outros, aos pulos, com o busto fora d'água. —
Vamos!
Unindo o gesto à palavra, o Armindinho atirou-se à frente dos companheiros,
nadando, ágil, de peito para o ar, meio submerso, dando marcha ao corpo com o
movimento das mãos debaixo d'água. Imitando o inovador, os outros pirralhos
fizeram o mesmo, de papo para cima,, pernas estiradas, silenciosos, como uma
verdadeira flotilha de submersíveis.
Momentos depois, de volta à margem, iam repetir a proeza, quando a Lili
pediu, nuazinha, batendo as mãos:
— Eu também vou, mano, eu também vou! Sim?
O Armindinho encarou-a, com a superioridade de um oficial alemão, e
protestou:
— Não; você não pode!
E virando-se para um dos companheirinhos, explicou, com a maior inocência
do mundo:
— Ela não tem periscópio; não é?
Capítulo VII
Ninho do Curió
20 de janeiro
Rosto em brasa, olhos vivos, cabelos alvoroçados, atravessava o Luizinho a
praça do povoado, denunciando no desalinho das roupas, no fogo das faces, no
susto das maneiras, a sua última travessura, quando, ao passar pela frente da igreja,
foi detido suavemente, brandamente, pela bondade do padre Guilherme.
— Venha cá, ó Luizinho!
O garoto tremeu, desconcertado, e o vigário, homem de uns quarenta anos,
insistiu:
— Venha cá!
Luizinho chegou-se, respeitoso, de olhos no chão e chapéu entre os dedos, e
o sacerdote indagou:
— Então, por onde andou você, hoje?
— Eu?
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— Sim, você.
O pequeno corou, envergonhado, e o padre, excelente pastor, pegou-lhe da
mão, puxando-o para dentro da igreja.
— Venha cá; venha se confessar.
Um minuto depois estava o Luizinho, com os olhos muito espantados,
ajoelhado no confessionário, a contar ao padre Guilherme o seu grande pecado do
dia.
— Eu estive hoje na mata do outro lado do rio, tirando uns ninhos de curió...
confessava o garoto.
— Ninho de curió? — estranhou o confessor, franzindo a testa. - Você não
sabe, então, que é pecado tirar os ninhos das avezitas, roubando os pobres
passarinhos ao conchego de seus pais?
Luizinho mantinha-se cabisbaixo, vermelho de arrependimento e de vergonha,
e não respondeu. O vigário insistiu, porém:
— E onde foi que você achou esses ninhos de curió?
— Na ingazeira, junto do morro.
— E havia muitos?
— Havia, sim, senhor.
— Pois, não tire mais, não. É pecado, e pecado mortal!
Na manhã seguinte, após uma noite de apreensões aflitivas, ia o garoto
procurar urnas vacas na outra margem do rio, quando viu, ao longe, o vulto de padre
Guilherme, que se aproximava, cauteloso, da ingazeira de que lhe falara na véspera.
Luizinho escondeu-se, de um salto, em uma das moitas das proximidades, e
observou tudo. Padre Guilherme chegou, com o breviário nas mãos e nariz no ar,
examinou, sondou, olhou para um lado, olhou para outro, e, como não visse
ninguém, descansou o livro na raiz da árvore, endireitou os óculos e subiu.
Momentos depois, assinalados pelo piar dos passaritos implumes e pelo vôo das
aves aninhadas, o servo de Deus descia da ingazeira, sustentando nas mãos os
bolsos da batina, repletos de curiós.
Luizinho viu tudo isso, da sua moita, e não disse nada. Padre Guilherme
apanhou o seu breviário e foi-se embora para a aldeia. Ele tomou, também, o seu
varapau, e lá se pelo mundo ganhar a vida, até que, anos depois, homem feito,
voltou, de novo, à terra do seu nascimento.
Forte, moço, querido das moças, ia, uma tarde, o Luiz pela praça da matriz,
quando o detiveram pelo braço:
— Olá, Luiz, como vai?
— Oh! o Sr. padre Guilherme! - sorriu o rapagão, feliz.
E travou-se a palestra
— Então, veio à terra para casar, não?
— É verdade, sim, senhor.
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O padre deu-lhe parabéns, mas, não satisfeito, insistiu:
— E a noiva?... Afinal, quem é a noiva?
Luiz encarou, firme, o reverendo, e trovejou:
— A noiva? Eu sou tolo, então, para lhe dizer quem é?
E, dando-lhe as costas, indignado:
— Pensa, então, que isto é ninho de curió?...
E — afastou-se, resmungando.
Capítulo VIII
"Vitória-Régia"
22 de janeiro
A canoa, puxada a quatro remos, descia o pequeno afluente do Amazonas,
desviando-se, ligeira, das grandes manchas de plantas aquáticas que a correnteza
preguiçosamente arrastava, quando o velho índio Tibúrcio, sustando a remada,
começou a contar-me a mais formosa lenda daquelas ribeiras.
— Antigamente, meu senhor, este rio era limpo de toda sorte de aguapé, e de
corrente tão clara que se podia ver, de dia, as traíras, os piaus e os mandís,
rabeando, no fundo, no grande leito da areia dourada. Nesse tempo, morava na
cabeceira do rio, onde as águas são mais puras, um velho índio, o famoso Tauí, cuja
filha, Jaciara, assim chamada por ser a senhora da lua, era, com os seus olhos mais
negros do que o acapú, a mais formosa moça das redondezas.
O caboclo enfiou, de novo, o úmido remo no grande leito do rio, fê-lo roncar,
soturno, nas profundezas dágua silenciosa, e levantando-o, gotejante, continuou a
narrativa:
— Um dia, voltando da caça, adivinhou Tauí, de longe, a presença de um
estranho na palhoça que lhe servia de casa. Arrastando-se, como uma cobra, sobre
as folhas do chão, estava o pobre pai a poucos passos da porta de esteira, quando
de lá pulou um homem, que desapareceu, de um salto, no seio da mataria.
Duas remadas ressoaram, de novo, profundas, no leito do rio, impelindo a
canoa, e Tibúrcio reatou a história:
— Furioso com a traição da filha, o índio, feroz, atirou-se contra ela, esganou-
a, e abriu-lhe, de lado a lado, com a ponta da flecha, a caixa do peito moreno. Feito
isso, enfiou no seu corpo as grandes unhas de tamanduá, e arrancou-lhe, sangrento,
o coração ainda palpitante, que atirou, da porta da palhoça, à clara correnteza do rio.
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Impeliu, mais uma vez, a canoa ligeira, fazendo roncar no seio da água o seu
pesado remo de massaranduba, e rematou:
— Desde esse tempo, meu senhor, começaram a aparecer no rio estas
verdes plantas errantes, cuja flor, alva como a lua, dorme no fundo das águas, e
rebenta, à noite, com grande estampido, espalhando por tudo, em redor, a doçura do
seu perfume.
E apontando-me uma "vitória-régia" que descia, alva e enorme, nos braços
cariciosos das águas, acrescentou, compungido:
— Olhe, lá vai uma. É o coração de Jaciara...
E impeliu a canoa, com força.
Capítulo IX
A Mulata
26 de janeiro
Aumentados com a descoberta do Brasil os limites civilizáveis do mundo,
compreendeu Jeová, do seu trono de nuvens, a necessidade de multiplicar o
homem, para povoar, em nome da sua glória, as novas regiões desbravadas. De
que espécie devia ele encher, porém, a terra maravilhosa, que se mostrava tão
promissora? A raça branca, que ele tanto amava e protegia, dominava, já, na Europa
tumultuosa. A Ásia, berço da humanidade e dos grandes mistérios eternos,
fervilhava de homens amarelos, que a enchiam toda, e que se haviam derramado,
aventureiros, pelas ilhas circunvizinhas. À própria raça negra, que tanto se
lamentava da sua condição e do seu destino, coubera a África inteira, de que se
tornara senhora. Fazia-se mister, pois, criar um tipo novo, urna raça nova e bendita,
que se apropriasse com autoridade e com orgulho, da nova terra exumada das
ondas.
Resolvido isso, tomou o Senhor do seu camartelo, do seu buril, da sua
verruma, do material, em suma, com que trabalhava na fabricação meticulosa dos
seres vivos, e, misturando um pouco da pasta com que fizera o negro, com outra,
absolutamente igual na dosagem, de que fabricara o branco, formou com as duas,
uma pasta morena e macia, em que se pôs a modelar, cuidadoso, uma figura de
mulher.
Concluída a obra, o estatuário quedou fascinado. Última flor do jardim
humano em que pusera toda a sua experiência de escultor inexcedível, a nova
Afrodita resumia, com os seus olhos negros, os seus cabelos crespos, as suas
linhas voluptuosas e a sua pele acentuadamente castanha, todos os encantos e
todas as graças da criação. Deslumbrado, encantado, embevecido, Jeová mirou-a,
remirou-a, examinou-a, banhou-a com a luz dos seus olhos, e, de repente, com um
sorriso, teve uma idéia. Foi ao laboratório, tomou nas mãos uma folha de cebola, um
dente de alho, amassou-os, triturou-os, diluiu-os e, voltando à estatua, friccionou-lhe
pausadamente os ombros, as espáduas e a parte superior e interna dos braços. Em
seguida, ordenou-lhe, recuando:
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— "Surge et ambula!"
A estatua moveu-se, preguiçosa, e com um andar lúbrico, remexido, sensual,
desceu do solo em que fora polida.
Jeová sorriu, de novo, e, com orgulho paternal, apontou-lhe para debaixo do
braço, dizendo-lhe, como dissera a Constantino, na legenda sagrada:
— "In hoc signo vinces!"
A mulata abriu os lábios num sorriso dengoso, e, como o Criador lhe
indicasse, com um gesto, o caminho da terra, através das estrelas, rumou,
enamorada de si própria, em direção ao Brasil. Vinte e quatro horas depois, porém,
batia, de novo, à porta da oficina celeste.
— Você por aqui, ainda? — estranhou Jeová, espantado.
A mulata baixou os olhos, procurando justificar-se:
— Foi impossível chegar ao meu destino, meu Senhor; e eu, então, regressei,
ali, das nuvens.
— Por que? — trovejou o Criador, indignado.
E ela, corando, envergonhada:
— As almas dos portugueses não me deixaram passar...
Capítulo X
As Perdizes
30 de janeiro
Chegado do interior de Minas, onde nasceu, vive, e não sabe se morrerá, o
capitão Venâncio Pimentel, coletor em Poço Fundo, ficou deslumbrado com o Rio de
janeiro. Com uma dezena de contos no bolso, provenientes da arrecadação
semestral da coletoria, tomou o simpático sertanejo a deliberação de conhecer a
cidade, guiando-se por si mesmo, dispensando, em tudo, o auxilio de estranhos.
Teatros, cinemas, restaurantes, subúrbios, estabelecimentos públicos, tudo isso
recebeu, de passagem, a visita da sua curiosidade.
Nada, porém, lhe causou tanta admiração, como a quantidade de mulheres
desacompanhadas que encontrava na rua, principalmente nas proximidades do
ponto dos bondes da Jardim Botânico, depois das nove horas da noite. Adivinhando-
lhe a procedência, e farejando-lhe o dinheiro, essas criaturas infelizes acercavam-se
do forasteiro, olhando-o de esguelha, sorrindo-lhe com brejeirice, num desafio
maneiroso e calculado. Ele fixava então, a leviana, que tomava o bonde, e
acompanhava-a até a Lapa, até o Catete, ou até a Glória, de onde voltava ao ponto
de partida, para experimentar, de novo, quatro, cinco, seis, oito vezes, as mesmas
sensações da conquista.
Uma destas noites, ia eu tomar o carro, às onze horas, em companhia do Sr.
deputado Antônio Carlos, quando este descobriu, no ponto de costume, o capitão
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Venâncio, a quem me apresentou, contando-me, ao mesmo tempo, a fraqueza do
seu velho correligionário e concidadão.
— Que gosto acha o senhor nessa extravagância, Sr. Pimentel? — perguntei
eu, escandalizado, ao mineiro, acentuando as palavras com a tonalidade proposital
da minha censura.
— Gosto? — atalhou o sertanejo. — Gosto, eu não acho nenhum. Eu acho é
engraçado.
— Engraçado? — estranhei.
— Sim, senhor. Eu faço isso para me lembrar de Minas, das minhas caçadas
no Poço Fundo. Cada mulherzinha dessas é mesmo que perdiz.
— Perdiz? — interveio o Dr. Antônio Carlos, admirado.
— Sim, senhor. Vossa Senhoria nunca andou caçando perdiz?
E explicou, ajudando a palavra com a mímica:
— A gente vai, às vezes, pelo mato, pisando aqui, pisando ali, cauteloso. com
a espingarda calada, quando ouve, de repente, um barulho no chão, entre as folhas.
Olha, e vê: é a perdiz que está no folhedo, imóvel, quieta, olhando p'ra gente.
Sentindo-se descoberta, solta um vôo baixo, rasteiro, junto do solo. A gente não
atira: vai andando, vai seguindo, vai acompanhando a bicha, até que ela, afinal,
chega no ninho.
— E quando a perdiz chega no ninho, que é que faz? - indaguei, curioso.
E o capitão, rindo:
— Que é que faz? Deita-se!
E saltou para o estribo de um bonde, espantando uma revoada...
Capítulo XI
A Obra Prima
2 de fevereiro
O almirante Ribas acabava de referir às senhoras, à mesa de jantar, a origem
da mulata nacional, tal como eu a contei, aqui, há poucos dias, quando o
desembargador Pessegueiro, recompondo as guias do bigode grisalho e cuidado,
atalhou, com orgulho:
— Há engano nessa tradição, Sr. almirante: há engano. A mulata não teve
origem no céu, como se diz; a sua origem, para gloria nossa, é toda terrena.
E recostando-se na cadeira, apoiando-se na mesa com ambas as mãos,
começou, pausado, a sua narrativa:
— O preto, o branco e o amarelo, que habitam a África, a Europa, a Ásia e a
Oceania, foram, realmente, modelados por Jeová, que os reconheceu, de fato, como
seus filhos. Atirando-os, aos milhares, ao mundo, ele os conhecia todos, regulando-
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lhes a vida e a morte. E tanto assim, que, quando aparecia, no céu, de volta da terra,
um branco, um preto ou um indivíduo de raça asiática, ele tomava, paternal, pela
mão, reconduzindo-o ao convívio dos bem-aventurados.
Feita uma pequena pausa, o desembargador continuou:
— Certo dia, porém, bateram à porta de ouro do céu. Solícito, como sempre,
S. Pedro correu a abri-la, e recuou, deslumbrado: era a primeira mulata que,
requebrada, cheirosa, encantadora, incomparável, penetrava, triunfante, no Paraíso!
As senhoras sorriram, admirando o entusiasmo do velho magistrado, e ele,
sorrindo com elas, retomou o fio à narrativa:
— A presença daquela criatura estranha, rica de encantos, de graças, de
seduções, agitou, de pronto, a morada celeste. Anjos e serafins rodeavam-na,
fascinados, tontos, embriagados de beleza. Estrelas que viviam isoladas no azul,
achegavam-se, cochichando, formando constelações. E uma grande música
religiosa ressoou pelas alturas, celebrando, num enlevo, o maravilhoso
acontecimento.
Nesse ponto, com os braços e os lábios abertos, o desembargador quedou-
se, como num êxtase. Passado um minuto, continuou:
— Avisado da novidade, Jeová quis, ele próprio, ver o prodígio; e, descendo
do seu trono de pedrarias, encaminhou-se, com o cortejo de arcanjos, no rumo da
porta, de se achava a mulata, rodeada de santos e querubins. Chegando aí, ao vê-
la, ele próprio recuou, tapando os olhos com as mãos; diante dele, a cabeça pendida
para um lado, os lábios entreabertos num sorriso, e os olhos entrefechados num
delíquio, a recém-chegada esperava-o, doce, linda, maravilhosa! Passado o primeiro
momento de pasmo, o Supremo Arquiteto levantou o rosto venerável, e, com a barba
soberba derramada pelo peito largo, bradou, deslumbrado:
"— Eu fiz a raça preta, que povoou a Líbia ardente, suportando, impassível, o
fogo dos desertos. A raça amarela, cujas mulheres, pequeninas e tímidas, enchem a
Ásia, é obra minha. A mulher branca, delicada, mimosa, de olhos azuis e cabelos de
ouro, saiu das minhas oficinas. Que artífice terá, porém, imaginado e realizado esta
jóia, esta obra-prima da natureza, esta flor incomparável da criação?"
Nesse momento, os bem-aventurados abriram alas, deixando ver uma figura
curiosa: barba feita, bigode retorcido, correntão de ouro atravessado sobre o colete,
que lhe dava maior vulto à obesidade, apareceu, sorridente, o Manél da Venda,
exclamando, com orgulho:
— Eu, Senhor!
Ante essa confissão, Jeová não resistiu: encaminhou-se para o Manél, que o
olhava desafiadoramente, e, sem se conter, bradou, com os olhos úmidos:
"— Mestre!..."
E apertou-lhe a mão, comovido.
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Capítulo XII
Mamãe
5 de fevereiro
Chepélinho de palha de grandes abas e de grandes fitas atirado para a nuca
e preso ao queixo, em baixo, por um elástico de seda que lhe flagiciava as
carnezinhas tenras; calcinha pelo joelho, cinto de mulher e bengalinha à mão, vai o
Antoniquinho, com os seus três anos de idade, pela rua Gonçalves Dias, arrebatado
pela pressa elegante da sua mamãe.
Seguro pela mão esquerda, com a bengalinha na direita, debalde procura o
pequenito deter-se diante das vitrinas, para ver os manequins, os macacos de
veludo, os ursos de pelúcia, os cavalinhos de pau, as coisas galantes ou vistosas
que lhe encantam os olhos. A boquita quase do tamanho do pipo de borracha de
que prescindira no ano anterior, não se cansa de papaguear. As suas perguntas,
que são as mais ingênuas e atrapalhantes, ficam, porém, sem resposta. D. Odette
vai, apressada, sem saber mesmo o motivo, e não pode prestar atenção, ao mesmo
tempo, à gentileza dos conhecidos, que a saúdam atenciosos, e à insaciável
curiosidade do Antonico.
De repente, com a atenção despertada por um rico vestido de passeio, a
moça estaca, sem abandonar a mão do pequeno, diante de um mostruário de
modista. Desinteressado das modas, Antonico prefere olhar uma vitrina da casa de
flores e aves, que fica ao lado, e em que se vê, perto de um casal de grandes
galinhas pretas, alguns ovos de raça. Sem outra coisa a perguntar no momento, o
pirralho ergue os olhos muito negros e muito vivos, indagando, em voz cantada e
doce, como a de um anjo:
— Mamãe, galinha preta põe ovo branco?
D. Odete não lhe responde; toma-lhe da mãozinha tenra, miúda como um
jasmim, e parte, de novo, apressada. Adiante, porém, com a rapidez da marcha,
Antonico atrapalha-se com a sua bengala de dois palmos de cumprimento, enfia-a
entre as perninhas nuas, tropeça, rodopia, e vai ao chão, esfregando os joelhinhos
no asfalto. Vem-lhe uma vontade de chorar, mais do susto do que da queda. O
beicito treme, abotoando num cravo. D. Odete prevê, porém, o berreiro, suspende-o
do solo pela mão, e infunde-lhe coragem, ânimo, dignidade, sacudindo-lhe com o
lenço o joelhinho escoriado:
— Não chore, meu filho, não chore!
E sem dar pelo que dizia:
— Seja "homem", como sua mãe!
Capítulo XIII
A Intenção
8 de fevereiro
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A pequenina igreja de Santa Engrácia estava quase despovoada de fieis, que
se iam retirando, um a um, molhando os dedos na água benta, quando o Onofre
penetrou no templo, desconfiado, chapéu na mão, camisa para fora da calça, à
maneira da terra, procurando falar a padre Lourenço, que se achava, no momento,
arrumando a paramenta eclesiástica na pequena cômoda da sacristia. Ao ver o
caboclo, afamado em toda a vila pela sua desenvoltura, o sacristão, o Zézinho,
correu ao seu encontro, levando na mão, pingando cera, o apagador de velas com
que abafava, naquele instante, as últimas luzes do altar-mor.
— Que é que você quer, Onofre? - indagou o sacrista. - Quer falar com "seu"
vigário?
— Chame ele! - respondeu o caboclo, soturno.
Cinco minutos depois, após as explicações preliminares, estava o desordeiro
ajoelhado diante do confessionário, torcendo o chapéu nos dedos, com o cabelo a
cair, em cachos revoltos, sobre a testa e sobre os olhos.
— Qual é o pecado de que se acusa, meu filho? — indagou o sacerdote,
bondoso, procurando conduzir com jeito aquela ovelha bravia.
O caboclo baixou a cabeça, e confessou:
— Eu não matei, nem roubei ninguém, não, "seu vigaro". Meu pecado é um
pecadinho de nada. É uma porcariazinha de pecado que nem presta p'ra dizê.
— Conte, filho; conte sempre! — animou o padre.
Onofre tomou fôlego, e principiou a narrar:
— O'ie, "seu" vigaro, foi assim. Eu tinha brigado com o Chico Julião, da Lagoa
Funda, e jurei tomá um desforço, dando as tripa. dele p'r'os urubu cumê. Ontem, de
tardinha, me armei, e fui fazê o serviço. Ele tava na porta da casa com a muié e os
fio dando cumê p'r'os bicho meúdo. Eu me apiei e avancei p'ra ele disposto a matá;
mas fiquei tão penalizado, "seu" vigaro, com a vista da famia, daquela fiarada que ia
ficá sem pai, que, em vez de matá o infiliz, só meti a pontinha da faca no couro dele,
um pedacinho de nada. O cabra deu um pulo p'ra riba, e lá ficou vivo, só com um
arranhãozinho na costela, feito p'ra amedronta. "Seu" vigaro acha que isso é
pecado?
Padre Lourenço tomou uma pitada, assoou-se, com estrondo, no lenço de
Alcobaça, que lhe tirava todas as dúvidas, e obtemperou, convicto:
— É pecado, sim, meu filho; é pecado. tão grande como o de morte!
— Mas eu não matei, "seu" vigaro! protestou o caboclo.
— Não importa. Houve o pensamento, a idéia de matar. É o que vale, meu
filho, é a intenção!
Onofre baixou a cabeça, humilde, e o padre continuou:
— Eu vou dar-lhe uma penitenciazinha. você não torne a cair noutra.
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Assoou-se, de novo, e explicou:
— Você vai rezar quarenta e oito padre-nossos, setenta ave-marias, e setenta
salve-rainhas. Antes de sair, porém você vai pôr, ali, no cofre das almas. uma prata
de dez tostões.
E levantando-se:
— Vá! O caboclo ergueu-se, pôs o chapéu debaixo do braço, exumou do
bolso da calça uma prata de dez tostões que lá dormia, encaminhou-se para o cofre,
que ficava perto da porta, e, jeitoso, começou a fricionar, com a moeda, a entrada da
caixa, sem deixar, entretanto, que ela escapulisse para dentro. Feito isso, ia meter
de novo a prata na algibeira, quando padre Lourenço, que o observava, gritou-lhe,
de longe:
— Psiu! Que é isso? Vai levando o dinheiro?
O caboclo voltou-se, da porta, e protestou, com um risinho canalha:
— Uê! A "tenção" não vale?
E ganhou a rua.
Capítulo XIV
Os Jasmins
11 de fevereiro
— Que linda flor, almirante; e que perfume!
Foi assim que a linda viúva Dagmar Antunes recebeu, num arrulho gracioso, a
florzinha alva, a mimosa estrelinha de neve, que o almirante Ribas destacara, gentil,
da botoeira do seu "smoking" impecável.
— Dona Dagmar não conhece, porventura, a história desta flor? — perguntou,
risonho, o velho marinheiro, tomando lugar ao lado da moça, no mesmo canapé.
E como a encantadora senhora lhe respondesse com o enigma de um sorriso,
o almirante começou, falando-lhe quase ao ouvido:
— Para a primeira mulher, como a senhora sabe, a expulsão do Paraíso teve
a importância de uma verdadeira calamidade. A maldição de Jeová tombava,
principalmente, sobre ela, sobre o seu destino, sobre a sua felicidade na terra. Era
ela que ia sofrer, dali em diante, as dores da multiplicação da espécie. Era sobre ela
que iam recair as penas, os trabalhos, os cuidados da vida doméstica. Era sobre ela,
em suma, que iam pesar as preocupações do vestuário, da mudança quotidiana da
folha de parreira. E, por isso, era com o coração aos pedaços que ela ia deixar, para
sempre, aquele abençoado domínio do Senhor.
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Nesse ponto, fez pausa, olhou os dentes miudinhos da moça, que continuava
a sorrir, e acrescentou, bordando a fabula:
— Expulsos do Éden, Adão e Eva baixaram a cabeça, e partiram, tristes,
humildes, abatidos, para a horrível solidão do degredo. Assim, porém, que
ultrapassaram os limites do grande jardim das delicias, nossa primeira mãe não
pôde mais. Os lindos olhos umedeceram-se-lhe, como violetas tocadas de orvalho. E
à medida que ela ia andando, iam as lágrimas caindo uma a uma, dos seus grandes
olhos, assinalando, na areia, como pérolas do mesmo colar, as curvas do seu
caminho. No dia seguinte, porém, ao amanhecer, o rosto da primeira mulher
iluminou-se de uma divina felicidade: marcando os seus passos no Deserto, a areia
aparecia semeada de florinhas em forma de estrela, alvas como a inocência e
cheirosas como o pecado!
Virou-se mais para a moça, e explicou:
— Foi assim, das lágrimas da mulher, que nasceram os jasmins!
E olhando-lhe nos olhos, com a voz trêmula:
— E foi nas pétalas dos jasmins, D. Dagmar, que Deus talhou os seus dentes!
Capítulo XV
Educação Antiga
14 de fevereiro
As pessoas que desceram à cidade sexta-feira pela manhã, ouviram falar,
com certeza, em uma vaia de que teria sido vítima, em plena Avenida, uma senhorita
inconvenientemente vestida. Indignadas com a competência daquela atrevida,
outras senhoras explodiram em exclamações admirativas, a que os homens, para
agradar à maioria, deram seguimento, rompendo em assuada.
A mim, me custa a crer que isso tenha acontecido, por uma circunstância
muito natural por não ser possível, mais, na cidade, uma "toilette" capaz de motivar
surpresa. As que se exibem na Avenida impunemente, todos os dias, são de tal
ordem, que, para causar escândalo, pasmo, admiração, seria preciso, não, apenas,
tirar o vestido de cima da pele, mas tirar a pele de cima do corpo.
Comentava eu esse incidente, ontem, à noite, em uma roda de damas e
cavalheiros, quando uma das senhoras menos jovens, Dona Ernestina Vale,
procurou uma explicação para esse descalabro:
— O motivo dessa falta de pudor de certas moças de hoje, — começou,
perspicaz — deve ser atribuído, sr. conselheiro, aos próprios pais, ou, antes, às
mães.
E expôs o seu pensamento:
— O senhor vê, hoje, como as mães vestem as crianças. Não há dia em que
não encontremos na rua meninas de quatro, seis, oito e, até dez anos, com
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vestidinhos muito acima dos joelhos, com os bracinhos nus, o colozinho à mostra,
numa exibição completa das suas carnesinhas tenras. Aos doze anos, já mocinhas,
a "toilette" dessas criaturinhas apresenta pequena diferença. E como não tiveram,
em criança, a noção do pudor físico, entram assim na mocidade, sem tentar
esconder as partes do corpo que nunca lhes disseram que deviam ser escondidas.
— A senhora acha, então, que elas fazem isso sem maldade? — obtemperou
o Dr. Austregésilo, tomando nota na carteira.
— Perfeitamente, doutor! Elas fazem isso com a maior inocência do mundo.
Os índios não se apresentam inteiramente nus aos olhos dos civilizados? E não o
fazem ingenuamente, inocentemente, por terem sido criados assim? Criemos as
meninas com decoro, vestindo-as com discrição, e teremos moças discretas,
pudicas, decorosas, ciosas do seu corpo e dos seus encantos.
E, dizendo-me isso, acrescentou, severa, calçando as luvas, deixando-me
ver, pelo vestido decotado e sem mangas, dois sinaizinhos negros, quase
imperceptíveis, que se lhe aninhavam um pouco abaixo das axilas:
— Assim é que eu fui criada!
Capítulo XVI
As Cruzes
17 de fevereiro
As senhores grazinavam, como periquitos em roçado, em torno da mesa do
chá, quando Mme. Gama Simpson se curvou, rindo com alarido, sobre a toalha de
linho bordada de cegonhas vermelhas, numa escandalosa explosão de alegria.
Segurando em uma das mãos a taça de porcelana e na outra, fechadinha como um
botão de rosa, uma torradinha cor de ouro, a linda criatura ria despreocupadamente,
agitando-se na cadeira, quando, com o movimento do corpo, lhe saltou do colo de
neve e rosa, pela janela de seda do decote, a sua custosa cruz de brilhante, fugindo-
lhe para o ombro, com o risco de perder-se.
— Cuidado com a cruz, madame! — avisou, atencioso, do outro lado da
mesa, o conselheiro Atanásio, que observava, sem perder um movimento do solo, as
ondulações do Calvário e os arredores da Jerusalém.
D. Lisete olhou o decote, apanhou a cruz fugitiva, e, aconchegando-a à carne
rosada, queixou-se, risonha:
— Também, que idéia esta, de inventar cruzes para o colo da gente!
— Vossa Excelência não sabe, então, o que elas significam, na opinião de
Tabarin?
As senhoras mostraram-se curiosas de conhecer a origem daquele costume,
e o antigo palaciano começou, medindo as palavras:
— Na Idade Média, quando eram deficientes os meios de comunicação de
cidade para cidade, de aldeia para aldeia, de um castelo para outro castelo, os
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monges, que dominavam nos países barbarizados da Europa tomaram a si a
incumbência de marcar os caminhos, cujas direções eram assinaladas por meio de
cruzes. Ao deparar, na mata ou na montanha, um destes símbolos da cristandade, o
viajante já sabia que não errara o seu roteiro, e que a estrada era, mesmo, por ali...
— Mas... - interrompeu, impaciente, Mme. Souza Batista.
— Espere... - implorou o conselheiro.
E continuou:
— Mais tarde, com o advento das modas femininas, e com o aproveitamento,
por parte das mulheres, de todas as conquistas do homem, entenderam elas de
utilizar o mesmo símbolo, com a mesma significação.
— A cruz no colo das mulheres quer dizer, então, alguma coisa?
interrompeu, franzindo a testa, Mme. Werther.
— Evidentemente, minha senhora! — tornou o conselheiro.
E explicou:
— Elas estão dizendo, como nas montanhas antigas, que... o caminho é por
ali!
Quando o conselheiro terminou a sua narrativa, Mme. Simpson procurou a
sua cruz de brilhantes, e tomou um susto. Com os seus modos estabanados, a cruz
havia, de novo, abandonado o decote, e fugido para trás...
Capítulo XVII
O Perfume
(Sobre uma frase de Dumas Filho)
20 de fevereiro
Saída do colégio em dezembro último, Angelita recebeu da sua mamãe a
promessa de um vestido de passeio, um verdadeiro vestido de moça, escolhido por
ela mesma, assim que regressassem da fazenda, em Barra Mansa, depois do
Carnaval. Inocente ainda, foi batendo os dois lírios das mãos que a menina ouviu a
noticia. E foi, para ela, para os seus dezesseis anos incompletos, um momento de
alegria irreprimível, aquele em que, sentado na sua cama alva, pura como um berço,
escolheu, manuseando uma dúzia de revistas de modas, o figurino que mais lhe
encantava os olhos.
Feita a encomenda a uma das modistas do bairro, foi esta, dias depois, levar
o vestido à última prova. Contente, feliz, pulando pela casa, era com uma jovialidade
descomedida que Angelita recebia a costureira. E não foi sem um certo calor na
face, e sem um certo tremor nos dedinhos afilados, que desabotoou a sua blusinha
leve, patenteando os encantos do seu colo virgem, do seu corpo desabrochante, aos
olhos daquela senhora estranha, habituada a ver, certamente, por aí, por exigência
do seu próprio ofício, centenas de corpos pecadores.
— Tire o corpinho também, mademoiselle, — ordenou a modista.
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A menina enrubesceu mais:
— O corpinho, também?
Minutos depois, trajando o seu lindo vestido novo, Angelita abria de par em
par a porta da sua alcova, onde estivera encerrada, sozinha, com a costureira.
Estava deslumbrante. Era um maravilhoso figurino de verão, bordado a seda, com
um rosário de pequeninas flores à cintura, que lhe punha em destaque, no colo e
nos braços, a imaculada frescura da pele. Curvando-se, risonha, numa grande
mesura, foi a mocinha perguntando, logo, a D. Adelaide:
— Então, estou linda?
A ilustre senhora, que a esperava na sala de jantar, junto à mesa, abriu os
braços, para receber a filha.
— Que tal? — tornou a moça.
D. Adelaide beijou-a nos cabelos castanhos e, com um sorriso de bondade,
em que lhe ia toda a sua alma, externou o seu pensamento:
— Está muito bom, muito lindo, mas falta uma coisa.
A menina arregalou os grandes olhos escuros, imobilizando no rosto um
sorriso de espanto.
— É aqui! — explicou a senhora, pondo-lhe a mão aberta sobre o colo de
neve.
E abraçando a menina:
— As mulheres, minha filha, são uma essência delicada, de que o vestido é
um vidro desarrolhado, por onde se evola, insensivelmente, o pudor da mulher...
E lançou, maternalmente, sobre o colo da filha, a macia misericórdia do seu
claro lenço de seda.
Capítulo XVIII
Experiência
23 de fevereiro
Companheiros de mocidade, o comendador Otacílio Fagundes e o
desembargador Portela haviam se separado, de repente, em uma das numerosas
encruzilhadas da vida. Dedicados, um ao comércio, e outro a magistratura, havia
cada um deles seguido o seu caminho, apertando a mão ao companheiro. E nunca
mais tiveram noticia um do outro
E, no entanto, haviam os dois prosperado. Dirigindo-se para Santos, onde um
tio, velho comerciante de café, lhe oferecia um lugar no escritório, progredira
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Fagundes rapidamente, até que se tornara, por morte do tio, o único proprietário da
casa. Tomando o rumo da Corte, com a sua carta de bacharel, o amigo não havia
sido menos feliz. Hábil, maneiroso, aproveitando as situações sem quebra de
dignidade, não lhe foi difícil um cargo de juiz em pequena província do norte, onde
regressara, afinal, ao sul, como desembargador aposentado.
Quarenta anos haviam decorrido, quase, sobre a separação dos dois
infatigáveis campineiros, quando, um destes dias, indo receber um cheque no Banco
do Brasil, o comendador Fagundes ouviu gritar, na pagadoria, ao portador de uma
ordem de pagamento: — Francisco Ribeiro Portela!
Atendendo ao chamado, aproximou-se empertigado ainda, um ancião de
sessenta anos, vestido com distinção, demonstrando nos modos, no porte, nas
maneiras, saúde e prosperidade.
Ao anúncio daquele nome, o comendador Fagundes, que assinava o cheque
em mesa próxima, voltou-se, rápido, com o peso das suas banhas e dos seus
setenta anos, e encarou o outro. E encaminhando-se para ele, indagou:
— É o Francisco Portela, de Campinas?
— Sim, senhor.
— Eu sou o Otacílio Fagundes.
Um abraço enorme, que mais parecia um primeiro assalto de luta romana,
selou esse encontro de duas saudades.
— Fagundes!
— Portela!
Três minutos depois estavam os dois velhotes a um canto, de pé, enxugando
os olhos, trocando noticias da vida e da fortuna. O capitalista contou, primeiro, como
ficara com de a casa do tio; como lhe corriam admiravelmente os negócios; como lhe
havia sido, em suma, favorável, no mundo, a roda do Destino. E o magistrado
contou-lhe, depois, como subira, como prosperara, como enriquecera, como havia
chegado, enfim, ao mais alto posto da sua carreira, no Estado. De repente, porém, o
comerciante indagou:
— E constituíste família?
— Eu? Não. Continuei solteiro. E tu?
— Eu casei-me.
— Casaste?
— É verdade.
— Há muito tempo?
— Não. Há dois anos. Casei com uma menina de vinte anos, minha afilhada,
e já tenho um filhinho.
— Um filho? - indagou o desembargador, recuando.
E ao ouvido do comendador, indignado:
— E de quem tu desconfias?
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Capítulo XIX
Ilusão
25 de fevereiro
Abraçado a um poste de iluminação elétrica, tonto de cerveja e de fome, o
velho boêmio levantou os olhos para as estrelas longínquas, naquela madrugada
fria, sentindo a terra, em torno, estremecer e rodar. Com medo de cair, o notívago
apertou mais o poste de encontro ao peito, fechou os olhos e começou a sonhar.
A principio era um monte de moedas de ouro, postas umas sobre as outras,
que lhe dava quase pelos joelhos. De repente, o monte começou a subir, a crescer,
a avolumar-se, atingindo a sua altura e galgando o espaço, rápido, como um caule
dourado de crescimento vertiginoso. O boêmio acompanhava o desenvolvimento
daquela árvore curiosa, quando, no escândalo daquela ascensão, lhe viu
desaparecer a ponta nas nuvens, estabelecendo uma corda de ouro, fina e imensa,
ligando a terra ao céu. Olhava-a ele admirado, quando ouviu uma voz, que lhe dizia:
— Sobe, Alfredo!
O notívago segurou-se à corda de ouro, feita de moedas acumuladas, e
principiava a subi-la, quando esta, de repente, estalou, partindo-se, fazendo-o vir
aos trambolhões pela altura, estatelar-se, com força, no chão.
Abrindo os olhos, o boêmio sentiu-se assentado no calçamento da rua, ao
lado do poste. Espantado, passeou a vista em redor, e, detendo-a em certo ponto,
viu, no asfalto, caída da algibeira de algum transeunte, uma pequena moeda de cem
réis. Estendendo a mão, apanhou-a, revirou-a nos dedos, examinou-a, e, ao fim de
tudo isso, pensou, num sorriso de consolo:
— Felizmente, sempre ficou, no chão, a ponta da corda!
E metendo o níquel no bolso, continuou, aos trancos, o seu caminho.
Capítulo XX
Ferrabrás
28 de fevereiro
O coronel Otaviano de Meireles, comandante de um batalhão da Guarda
Nacional aquartelado em Niterói, era conhecido em toda a cidade pela sua valentia,
e, em especial, pela sua intransigência em questões de honra. Casado com uma das
senhoras mais formosas do bairro, era tal o pavor infundido pelo seu nome, que
ninguém se atrevia, sequer, a levantar os olhos para a sua cara metade. Aquele que
tal fizesse, era, na opinião de toda a gente, um homem liquidado.
Foi por esse tempo, e quando mais se acentuava, em toda a praia de Icaraí, a
fama da coragem do coronel, que passou a residir na vizinha capital o jovem
advogado Dr. Otacílio Fernandes, que não era coronel, nem major, nem capitão,
nem tenente, mas fora, sempre, um dos mais famosos namoradores de Niterói.
Proprietário do prédio em que o coronel residia, não foi necessário grande esforço
da parte do moço para travar amizade com o inquilino; e esta foi tão rápida, e tão
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sincera, que, uma semana depois, era o Dr. Otacílio convidado para um almoço, no
primeiro domingo, na residência do brioso militar.
Chegado o dia, lá estava, na praia de Icaraí, o jovem capitalista. Risonho,
amável, dissimulando com um sorriso gentil a austeridade da sua fisionomia marcial,
correu o dono da casa ao portão, para receber o convidado e fazê-lo subir até à
sala, onde madame já o esperava, obsequiosa e linda, com o rosto a emergir, como
uma grande rosa, das espumas de neve do seu elegantíssimo "peignoir" de linho e
renda.
— O Dr. Otacílio Fernandes — apresentou o coronel.
E ao recém-chegado:
— Minha esposa...
Minutos depois, sentados à mesa redonda, em que havia apenas três
talheres, a palestra corria jovial, feliz, entre petiscos saborosos e sorrisos
significativos, quando o telefone tilintou. Era o procurador do coronel que reclamava
a sua presença, urgente, na estação das barcas, para ultimação de um negócio
inadiável.
— Diabo! — exclamou o bravo militar. Tenho de ir, não há remédio!
E virando-se para o capitalista, enquanto desamarrava o guardanapo:
— Esteja à vontade, doutor. É questão de meia hora. Fique por aí; eu não
demoro!
E para a esposa:
— Orminda, faze as honras da casa; eu venho já!
Mal o coronel tomou o bonde, duas taças se chocavam no ar, por cima da
mesa, festejando ruidosamente aquele encontro, há tanto desejado. E de tal forma
foi a saudação, que, ao reentrar em casa, o coronel foi encontrar os dois no seu
gabinete, num colóquio de excessiva intimidade. Apanhado em flagrante, o
advogado pôs-se de pé, lívido. Apoiado na porta, que empurrara, o coronel encarou-
o trovejando:
— Sim, senhor, Sr. Dr. Fernandes!
Pálido, trêmulo, o advogado lembrou-se da fama do coronel, e sentiu que
chegara a última hora da sua vida.
— Sim, senhor! — tornou o militar.
E abrandando a voz:
— Você não tem medo de uma congestão?
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Capítulo XXI
Indefesa
3 de março
O Dr. Edgard esperava há meia hora na sala de visita a formosa dona
daquela casa, e evocava, saudoso, o tempo em que a conhecera.
Fora há seis anos, em uma festa náutica, em Botafogo. Passageiros da
mesma lancha, ele acompanhava um páreo, detidamente, com o seu binóculo de
marfim, quando alguém lho arrancou violentamente dos olhos, gritando-lhe com
alvoroço:
— Ora, empreste-me! sim?
Ele voltou-se, e viu que o seu binóculo estava ao serviço de dois olhos tão
verdes como as águas, e, preso deles, não conseguiu mais, nesse dia, acompanhar
um número sequer daquela campanha esportiva, travada nas ondas.
Dentro de seis meses estavam noivos. E um dia, por um arrufo, por um breve
ciúme sem causa, acabou-se o noivado, partindo ele para a Alemanha, a aperfeiçoar
os estudos, ficando ela, jovem e linda, no Rio, onde se casara, afinal, com um
advogado, quatro meses antes do seu regresso.
Ele sabia do casamento quando a encontrou, uma tarde, na Avenida:
— Então, de volta, doutor? — exclamou a maravilhosa criatura, estendendo-
lhe a mão pequenina, numa grande alegria.
— É verdade. E venho encontrá-la mais formosa, mais risonha, e, com
certeza, mais feliz!
— Sabe que me casei? — tornou a moça, despedindo-se — Apareça em
nossa casa. Teremos imenso prazer em recebê-lo.
E apertando-lhe a mão, com um olhar, que era um relâmpago:
— Vá! Sim?
Recapitulava o jovem médico esses episódios, origens daquela visita, quando
ressoaram passos na escada, e surgiu à porta da sala, deslumbrante de graça e de
mocidade, a figura que mais o encantara na vida.
— Oh!... — exclamou, deslumbrado, pondo-se de pé.
Sentaram-se os dois, pálidos, entreolhando-se em silêncio. De repente, com
uma audácia imprevista, ele aventurou, incontido.
— Estás deslumbrante, Ecilda! Estás tentadora... maravilhosa... irresistível!
E, de súbito, cerrando os dentes:
— Se tu não gritasses... eu me precipitaria sobre ti, cobrindo-te de beijos!
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A moça, trêmula, os lábios entreabertos, olhou-o nos olhos, e, levando à
garganta a mãozinha branca, sussurrou, apenas, a meia-voz, tranqüilizando-o:
— Estou... rouca!
E fechou os olhos...
Capítulo XXII
A Santa Casa
(Paródia a uma sátira de Emílio de Menezes)
5 de março
As nuvens começavam a tomar uma cor arroxeada, anunciando o fim do
crepúsculo e o inicio de uma noite soturna, quando alguém bateu, medroso, à
luminosa porta do Céu.
— Quem bate? — gritou, de dentro, São Pedro, arrastando as suas
alpercatas de couro e tilintando, trêmulo, a sua enorme penca de chaves.
— Sou eu! — respondeu de fora o recém-chegado.
Aberta a portinhola do parlatório, informou o retardatário haver sido
despachado da vida naquele dia, com destino à mansão dos justos, onde devia,
portanto, ser admitido.
— Aqui? — observou o apostolo, espantado. — Aqui. não. Todas as pessoas
que tinham de entrar hoje, já entraram. Não falta mais nenhuma.
E bondoso:
— Não será engano seu, meu filho? Você não terá sido despachado para o
Purgatório?
O peregrino admitiu a hipótese de uma confusão, e, saltando de nuvem em
nuvem, como quem salta de rochedo em rochedo, foi ter à porta de fogo do
Purgatório, onde bateu.
— Quem vem lá? — trovejou um anjo, escancarando, com um gancho, a
rubra fornalha das penitências.
O desventurado deu o seu nome, e, momentos depois, reabria-se o forno.
— Há engano na direção, camarada! — informou o guardião, soprando,
severo, a sua vermelha espada de chama. — O seu lugar não será no Inferno? Aqui,
é que não é. Não consta nada sobre a sua pessoa!
E, fechando a fornalha, deixou-o na amplidão, tristonho, solitário,
abandonado, tendo aberto, apenas, à sua frente, o caminho escuro do Inferno.
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Resolvido a cumprir o seu destino, tomou o infeliz esse rumo, até ir ter, corajoso, à
porta da caverna formidável.
— Quem é? — rugiu, de dentro, uma voz que parecia um trovão.
Tremendo de pavor, o mísero deu o seu nome, e esperava, já, o instante de
ser precipitado nas enormes caldeiras ferventes, quando o portão monstruoso se
abriu, dando passagem aos chavelhos de ferro de Belzebu.
— Quem o mandou para cá? — indagou o bruto, acendendo os olhos.
— A mim? — gemeu o desventurado. — Ninguém. Fui ao Céu, disseram-me
que não era lá. Fui ao Purgatório, e informaram-me a mesma coisa. Logo, é aqui,
por força.
O Diabo meditou um instante, consultou umas chapas de ferro incandescente
que estavam próximas, e protestou, firme:
— Aqui, também, não é!
— Não?
— Não; absolutamente! — tornou o Capeta. — O seu lugar deve ser mesmo
no Céu. O Pedro está muito velho, já, e, com certeza, não viu bem. Volte lá! Volte lá!
Um momento depois, estava o desgraçado, de novo, à porta do Paraíso.
— Outra vez? — observou São Pedro, paciente.
— Outra vez, sim, — confirmou, grosso, a vítima. — O meu lugar não é no
Purgatório, não é no Inferno; deve ser, forçosamente, aqui. Veja bem!
O apóstolo enforquilhou os óculos no nariz, abriu o livro em que estavam
registrados os nomes das almas, folheou, folheou, folheou, e, de repente, voltando-
se, indagou:
— Diga-me uma coisa: onde foi que você morreu?
— Eu? Na Santa Casa do Rio de janeiro! — respondeu a vítima.
E o chaveiro, escancarando a porta:
— É aqui mesmo, entre!
E mostrando o livro:
— A culpa não foi minha, filho! Você devia vir para cá, daqui a vinte anos!
E aborrecido:
— Esta Santa Casa tem me estragado a escrita!...
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Capítulo XXIII
O Gato e o Passarinho
8 de março
A encantadora Palmirinha Camargo havia concluído o seu curso de
datilografia na Escola Remington, quando, uma tarde, participou, contente, a Dona
Brasília:
— Sabe, mamãe, arranjei um emprego excelente. O ordenado é de trezentos
mil réis!
A bondosa senhora deixou a costura, endireitou os óculos, e, chamando a
filha para perto de si, ordenou:
— Senta aí. E onde é esse emprego?
A moça, risonha e inocente, explicou:
— É no escritório do Dr. Alexandre.
— E quem é esse Dr. Alexandre? É aquele que esteve, outro dia, no baile da
Violeta?
Palmirinha confirmou, ingênua, e Dona Brasília, tomando-lhe as, mãos,
retorquiu, sensata:
— Queres que te fale com franqueza, minha filha? Esse emprego não te
convém.
A menina fixou com os seus grandes olhos claros e puros a doçura do rosto
materno, e a boa senhora continuou:
— Tu és uma jovem inexperiente, um anjo que não conhece os espinhos do
mundo. O Dr. Alexandre é um moço esperto, um homem habituado a lidar com as
fraquezas alheias. Se se tratasse de um escritório grande, de uma casa em que
trabalhassem outras moças ou outros advogados, eu não teria receio; mas, assim,
com ele e tu, sozinhos, no escritório, o meu coração não poderia ficar descansado.
— Oh, mamãe! — estranhou a moça, corando. — A senhora não tem
confiança em mim?
Dona Brasília compreendeu a ofensa que fizera àquele pedaço do seu
coração, e, para não insistir, atalhou:
— Tenho, minha filha, tenho toda a confiança em ti.
E concordou, beijando-a nos olhos:
— Está bem, vai. Amanhã, podes ir para o teu novo emprego.
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A moça pulou, contente, beijando sofregamente a testa, a cabeça, a face, a
boca e os olhos maternos, e, à noite, ia recolher-se, quando D. Brasília chamou:
— Palmira?
— Senhora! — acudiu a, mocinha.
Bondosa e grave, a digna senhora pediu:
— Traze daí a gaiola do teu canário.
A moça foi à copa, e voltou com a gaiola, onde um canarito dormia,
sossegado, muito encolhido, muito amarelo.
D. Brasília abriu a portinhola daquele carcerezinho de ouro, e, indo à cozinha,
voltou com o gato na mão.
— Para que é isso, mamãe? - indagou a moça, espantada.
Para meter na gaiola, com o canário.
— Oh, mamãe! — gemeu a mocinha, horrorizada.
— Que mal faz? — indagou D. Brasília, sorrindo significativamente para a
filha. Tu não tens confiança no teu canário?
Palmirinha compreendeu o alcance da lição, e atirou-se nos braços maternos,
prometendo, entre soluços:
— Eu não irei, minha mãezinha; deixe estar, eu não irei!
E não foi. No dia seguinte, contrariando as esperanças do gato, o canário
amanheceu feliz e simples, cantando na sua gaiola...
Capítulo XXIV
A Noiva do Donato
11 de março
— Foi um caso espantoso, único, inacreditável, Sr, conselheiro, esse de que
fui testemunha, e que eu lhe conto, embora o senhor já o tenha lido no "D. Quixote".
E puxando o relógio, para ver se ainda havia tempo, o ilustre advogado
santista começou, em estilo rápido, vivaz, nervoso, pictural, a referir-me a horrível
história, sob o alpendre da Central, à hora, quase, do noturno de luxo:
— "Era no sitio do "Pau d'Alho", em Vila Bela, onde se haviam casado,
naquele dia, o Donato e a Rosinha. Um despotismo de gente, como o senhor não
imagina. A Vila, as cercanias, a redondeza toda, no "Pau d'Alho". Até veio gente de
Ubatuba! Calcule!"
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Uma olhadela ao relógio, e continuou, telegráfico:
"Violeiro: o Chico Messias. Dança-se "baile" no terreiro. Chico Messias tira da
toeira uma coriza lacrimosa, de valsa sem motivo."
E acrescentou, num parêntese:
"O caiçara diverte-se sem sorrir. Diverte-se por obrigação. Sua alegria é uma
hipótese triste, socavada de ancilóstomos."
E reatou, descritivo, unindo o gesto à palavra, dando voltas no meio do
alpendre:
— "Damas e cavalheiros vão e vem, e tornam a ir, e tornam a vir, e dão-se as
mãos, e balanceiam, e remoinham, e desnalgam-se, numa choréa que tem passos
de lanceiros, atitudes de Pedowa e desengonços tupinambás."
Outra interrupção, para um surto histórico:
"D. Pedro Fernandes Sardinha, quando foi do seu caso com os Aimorés,
devia ter assistido a paulovices muito semelhantes."
E tornando, com uma soberba vivacidade de descrição:
"Ela, a noiva, dentro do vestidinho clássico, de manzuk branco, o filó
pendente da mão. Tem olhos baixos e constrangidos de protagonista. Ele, traz a
fatiota de elasticotine, que tem reflexos envernizados e o suplemento da gravata
escura, de tricô frouxo, escorrida pelo "adão".
E descreve a festa:
— "Ambos assistem sem apetite o apetite dos convidados. Há um mastigo
odioso de bocados grandes, e o cair do bocado, goela abaixo, com um rumor de rã
assustada em pântano adormecido. Comem! E comem!
Nova consulta ao relógio, e a descrição despenhou-se, para ganhar tempo:
"Hora da sobremesa. O Inocêncio, professor público, vai falar! Recuo de
cadeiras; engolir de últimos bocados; bigodes engordurados que se chupam. —
Atenção, senhores! O Inocêncio vai falar."
Como se estivesse na festa, eu próprio me empertigo, e o ilustre viajante
repete, assombroso:
"Vai falar o Inocêncio. E começa tan, tan, tan, e meus senhores, e o himeneu,
e a família, e o tugúrio, e mais isto, e mais aquilo e... e.... e o Inocêncio perde o fio, e
embrulha, enrola, engole, mastiga, encaroça, embatuca. Estende-se um vágado
coletivo, pesado como um paralelepípedo. O Inocêncio, que empunha o copo, guina
a boreste gorgolões de cerveja."
Noutro parênteses, o meu amigo sentencia, outra vez:
— "Há situações que obstruem a vida como caroços de jabuticaba!"
E engatando, de novo, com os olhos no trem, desabou, história abaixo:
— "Coitado do Inocêncio! Felizmente, o Dito Pintassilgo, que lhe estava ao
lado, encontrou uma saída. Levanta-se, sorri, braceja, e, alto e sonoramente:
— "Viva a noiva!
"O viva desonerou aquele constrangimento, como um laxativo. Um alívio
geral.
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— "Viva!...
"E o Dito prosseguiu, vitorioso:
— "Viva os óio da noiva!
— "Vivôooo!
— "Viva os dente biturado da noiva!
— "Viva!
— "Viva o pescoço da noiva!
— "Viva!
— "Viva os peito da noiva!
— "Viiiiva!
Tomando fôlego, o narrador continuou, elétrico:
— "Os vivas desciam, conselheiro, assustadoramente, noiva abaixo. O noivo,
o Donato, piscou, por três vezes, os olhos, apreensivo. De repente, remexe-se,
mergulha a mão pela cinta, toma da garrucha trochada, coloca-a à sua frente, na
mesa, e, com aquele sorriso seu, desdentado, e a vozinha gutural, oitava acima:
— "Oie, seus convidado: não é por nada: mas eu queria apreveni, que os
"viva" que passá do imbigo da noiva pra baixo... eu sapeco!"
Último apito. Um pulo do meu amigo, um barulho de ferragens, um resfolegar
fatigado de máquinas. E o trem desapareceu.
Capítulo XXV
O Datilógrafo
15 de março
Trajando o mesmo figurino, a mesma seda, as mesmas cores, as duas irmãs,
tão distintas na sua mocidade, na sua graça e no seu espírito, entraram, na sessão
das 2,15, no Cinema Avenida. Estavam as duas sentadas uma ao lado da outra, na
mesma fila, quando na primeira parte da "fita" penetrou no salão um vulto masculino,
que, tateando na meia escuridão desnorteadora de quem vem da claridade, se foi
sentar junto à mais jovem das duas formosas espectadoras. No primeiro intervalo,
desabrochadas no teto estucado as constelações de fogo das lâmpadas, a moça
olhou, de soslaio, o seu vizinho, que a examinava, por sua vez, com dissimulada
indiferença. Era um rapaz moço ainda, de rosto escanhoado e face morena, que
vestia com apuro, patenteando na correção das maneiras, na superioridade do olhar,
na displicência dos gestos, uma certa distinção.
Apagadas, de novo, as luzes, começavam as duas a olhar a continuação do
"film", quando a vizinha do rapaz sentiu, de leve, no seu cotovelo, um contato
estranho. Olhou, sem voltar a cabeça, e viu: era o rapaz que avançava pelo seu
braço, levemente, suavemente, o pelotão dos cinco dedos, com um jeito de quem
toca piano, ou de quem sonda cautelosamente o terreno. Percebendo a indiferença
da vítima, os dedos iam avançando, marchando, caminhando, roçando ligeiramente
com as pontas a epiderme sedosa da moça, e já estavam perto do ombro, a
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caminho do colo, quando a mais velha desconfiou de alguma coisa, e indagou da
irmã:
— Quem é esse moço que esta aí a teu lado?
E ela, de modo a ser ouvida pelo vizinho:
— Não sei; mas parece que é... datilógrafo!
Quando a sala clareou e a "Remington" consertou o decote, o moço havia
desaparecido.
Capítulo XXVI
O Milagre
17 de março
Um escritor francês, cujo nome complicado me fugiu, como um pássaro, da
gaiola da memória, escreveu seiscentas páginas de prosa cerrada sobre a psicologia
do milagre. Acha ele que os milagres são possibilíssimos, esquecendo-se,
entretanto, de citar um episódio famoso, que circula, entre nós, com diversas
modalidades, nos anais da anedota nacional.
D. Eufrosina estava doente do fígado, e submetia-se, uma tarde, sem o
assentimento do marido, ao exame que o Dr. Abdenago Fortuna lhe exigira, quando
bateram repentinamente no portão da casa.
— Minha Nossa Senhora! é meu marido! E eu não queria que ele soubesse
que eu me submeti a exame médico! Como há de ser, meu Deus?!...
E repetia:
— Como há de ser, minha Nossa Senhora?!!...
As mulheres possuem, felizmente, uma qualidade providencial que falta aos
homens: removem com facilidade os obstáculos mais graves, mesmo os que nos
parecem, à primeira vista, irremovíveis. E foi essa virtude que socorreu, nessa tarde,
D. Eufrosina, a qual, criando ânimo, pediu, aflita, ao jovem esculápio:
— Fuja, doutor! Pelo amor de Deus, fuja! Esconda-se ali, depressa!
E apontou o alto do guarda-vestidos, para onde o médico subiu, trêmulo, a fim
de evitar um escândalo e uma tragédia.
Dois minutos depois o chefe da casa batia à porta da alcova, onde a mulher o
metralhou, logo, com uma saraivada de beijos.
— Meu amor! — exclamava a moça, abraçando-o.
— Meu amor! — plagiava o marido, correspondendo.
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Sentados no leito, passaram os dois a conversar, íntimos, sinceros,
carinhosos. E discutiam matéria econômica, isto é, as dificuldades financeiras do
casal, quando, em certo momento, o marido aludiu a uma letra de vinte contos, que
devia pagar naquele mês.
— Coitado! — soluçou a mulher. — Deixa estar, que tudo será arranjado!
E, levantando os olhos para o teto, com a fé no coração:
— Aquele que está lá em cima, lá no alto, há de nos ajudar! Tem confiança!
E assim aconteceu. Para pagamento da letra, o Dr. Abdenago, aquele "que
estava lá em cima", entrou com dez!
Capítulo XXVII
A Surpresa
19 de março
Educada no tumulto das rodas elegantes. cujas festas mundanas freqüentava
desde criança, Mlle. Altair havia se tornado, aos dezessete anos, uma das moças
mais em evidência na sociedade do Rio de janeiro. O pai, médico ilustre, mais
devotado à família da ciência do que, talvez, à ciência da família, descurava, em
absoluto, as pequenas coisas do lar. E era de tal forma, nesse ponto, a sua
despreocupação, o seu descaso ingênuo, mas prejudicial ao próprio conceito, que
Mlle. Altair se tornou notável, em breve, na cidade, pelo exagero escandaloso dos
seus vestidos.
As suas "toilettes" eram, realmente, clamorosas, e em inteiro desacordo com
a inocência da sua idade. Trajando sempre as fazendas mais leves, a sua
preocupação, sugerida por figurinos inadequados, consistia em deixar à mostra a
perna, até o joelho, e o colo, até o estômago. Quanto ao resto do corpo, não havia
quem não o adivinhasse na transparência indiscreta do crepe da China ou da seda
lavável, que lhe modelavam sensualmente, num abraço voluptuoso, os seios
túrgidos, a cintura flexível, as ancas ondulantes, patenteando, como num desafio à
bestialidade humana, o conjunto harmonioso das formas.
Um dia, foram os círculos elegantes surpreendidos com uma notícia
sensacional: o Dr. Edmundo Figueira, um dos espíritos mais equilibrados e vigorosos
da nova geração de juristas brasileiros, havia pedido em casamento Mlle. Altair
Sobreira, formosíssima e conhecidíssima filha do Dr. Peixoto Sobreira!
Realizado o casamento, em que a noiva se apresentou mais nua do que
nunca, e despedidos os convidados, penetraram os noivos, felizes, na alcova
nupcial. Envolta, de leve, na seda finíssima, ou, antes, na névoa imperceptível do
vestido, a recém-casada fazia lembrar as estátuas de mármore, veladas
convencionalmente para o momento da inauguração. Anfitrite, com os pés
mergulhados na espuma e vestida, apenas, pela bruma fugitiva do Arquipélago, não
seria, talvez, mais nua, e mais bela!
Entreolhavam-se, os dois, na alcova silenciosa, ninho de ouro e seda armado
para um casal de pombos amorosos, quando o noivo se adiantou, e, sorrindo,
anunciou a moça, tomando-lhe, carinhoso as mãos geladas e brancas:
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— Sabes, meu amor, que eu te preparei uma novidade?
— Tu? Que é? — indagou a noiva, casando, de repente, a curiosidade à
aflição.
O noivo suspendeu os travesseiros da cama, e, tirando dali uma camisa de
noite, trabalhada em seda branca, e opaca, afogada até o pescoço e descendo até o
tornozelo. pediu:
— É para que me faças uma surpresa, dando-me uma sensação inédita nesta
noite de casamento.
E entregando-lhe a camisa:
— Eu nunca te vi... vestida!...
Capítulo XXVIII
As Folhas
21 de março
Lançados para longe da pátria pelos movimentos revolucionários que
estalaram depois da guerra, o conde Ricardo e o príncipe Romualdo conversavam,
displicentes, naquele começo de verão oriental, à sombra do grande platano do
parque do hotel, trocando idéias e fazendo comentários discretos sobre a situação
política dos países em que haviam reinado. Estirados nas suas cadeiras de viagem,
mostravam, ambos, um profundo desinteresse pelas coisas vulgares do mundo. E
era por isso que, de vez em quando, mergulhavam em silêncio profundo, quedando
a acompanhar com os olhos, melancólicos e soturnos, as oscilações da fumaça clara
que atiravam, preguiçosos, para o ar.
O dia estava morno, quieto, parado, anunciando para a noite uma nova
tempestade do Deserto. E era nisso que pensavam os dois fidalgos ilustres,
despojos elegantes de dois tronos desmoronados, quando o príncipe começou a
seguir com os olhos, uma a uma, as folhas amarelas que se desprendiam da árvore,
e que se vinham espalhar no chão, estendendo pelo solo um crespo tapete de
topázio. De repente, lançando para o espaço uma nuvem de fumaça cheirosa, o
príncipe observou, alisando a barba negra e cerrada:
— Como os homens se assemelham às árvores!...
O conde Ricardo fechou o livro que principiara a ler, e, erguendo para a
fronde os seus olhos muito azuis e muito doces, esperou a explicação do
companheiro.
E o príncipe continuou:
— Enquanto a árvore está verde, e tem seiva, nenhuma folha o abandona,
senão arrancada à força. Venha, porém, o verão, e, com ele, a falta de seiva, a
decadência da planta, e nenhuma quer ficar mais presa ao ramo!
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Compreendendo o símbolo, o conde acentuou, sacudindo, triste, a cabeça
leonina:
— São como os amigos...
E o príncipe confirmou:
— São como os amigos...
No silencio do dia, as folhas, uma a uma, continuavam a cair...
Capítulo XXXIV
As Jacobitas
25 de março
Chegada há pouco do Oriente, onde visitara, em companhia do esposo,
alguns países exóticos, D Margaridinha descrevia aos seus vizinhos de mesa, no
banquete oferecido ao casal pela Exma. viúva Santos Soutelo, algumas curiosidades
que mais lhe haviam ferido a atenção.
— A coisa mais interessante que eu assisti, — dizia, sorridente, enxugando
com o guardanapo de linho os seus polpudos lábios cor de cereja, - foi um costume
dos jacobitas, seita religiosa cujo mosteiro visitamos no Malabar.
As damas vizinhas descansaram o talher para ouvir melhor, e D.
Margaridinha, irrequieta e risonha, contou:
— Quando um jacobita se casa, o seu primeiro cuidado consiste em ir ao
templo no mosteiro, e pedir ao seu Deus que lhe dê uma descendência numerosa e
sadia, para maior esplendor da religião. Feito isso, toma diversos pedaços de papel,
escreve em cada um deles um nome de homem ou de mulher, mete-os em um
canudo de bambu que os sacerdotes lhe oferecem, e, colocado a certa distancia do
ídolo, sopra o canudo, com toda força. Impelidos assim, os papeluchos partem
rodopiando e quantos caiam sobre o altar, tantos serão os filhos que o casal deve
ter!
— Esplêndido! — exclamaram as senhoras, rindo. — Esplêndido!
À observação, porém, de uma que lhe ficava mais próximo, a linda viajante
objetou, jovial:
— Eu? Experimentei, sim!
E sem olhar para o marido, que a fixava, severo, continuou:
— Alfredo tem, como não é segredo, um desejo enorme de ter um filhinho. E
é natural, coitado! Enquanto estamos no vigor da idade, os filhos não nos fazem
falta, porque viajamos, passeamos, nos divertimos. Mas, depois, na velhice, é que
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se sente a tristeza, o abandono, a solidão... Pensando nisso, nós fomos, um dia, no
Malabar, ao templo dos jacobitas.
— A senhora?
— Então? Era o último recurso, filha! Chegando lá, Alfredo escreveu uma
porção de nomes, bem uns cinqüenta, em outros tantos pedaços de papel, meteu-os
no bambu e soprou com toda a força.
— E quantos caíram no altar? — indagaram as senhoras, interessadas.
E madame:
— Nenhum, meninas, nenhum!
E explicou:
— Ele, na sua ansiedade, havia posto papel demais no bambu, e...
— E...
— Entupiu o canudo!...
E soltou uma das suas gargalhadas sonoras, altas, musicais, enquanto o
marido, vermelho, se engasgava, a um canto, com a sobremesa, à semelhança dos
canudos do Malabar...
Capítulo XXX
A Chácara
29 de março
Nestes tempos, em que, embora com dinheiro no cofre, no Banco ou no
bolso, não se encontra, no Rio, uma casa, mesmo de segunda ordem, para alugar
ou adquirir, é de meter inveja a felicidade do comendador Severiano Braga de
Souza, com a sua chácara monumental, situada, como numa floresta, em pleno
coração do bairro de Botafogo.
A propriedade do comendador Severiano constitui, realmente, um dos
orgulhos do Rio de janeiro. O prédio, que pertenceu ao saudoso visconde de
Coroatá, e, mais tarde, à baronesa de Itapirú, é, depois das reformas a que foi
submetido, um verdadeiro palácio. O que, porém, valoriza, ainda mais, tudo aquilo, é
o terreno beneficiado pela mão dos seus antigos proprietários, e conservado com um
zelo religioso pelo opulentíssimo capitalista que atualmente o possui.
Informado da existência dessa preciosidade, eu próprio me fiz, um destes
dias, convidado, e atirei-me a visitar o comendador. E foi, para mim, um
deslumbramento aquele conjunto de maravilhas, em que se casam, numa suave
harmonia que embala os sentidos, a inteligência da Arte e a graça inocente da
Natureza.
— Quer, então, ver esta sua casa?... — observou, satisfeito, o antigo
presidente do Banco Popular Carioca.
E, tomando-me pelo braço, levou-me a percorrer, um a um, os pontos
encantadores da chácara.
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— Isto aqui, — observou-me, apontando-me um enorme viveiro em que
pipilavam toda a sorte de passarinhos nacionais ou exóticos, — isto aqui é o meu
encanto, de todas as manhãs. Temos aqui o melro, o corrupião, o rouxinol, o
periquito, a cambachirra, o curió, enfim, duzentas ou trezentas aves diferentes.
E, como se eu não soubesse, explicou-me, com ênfase:
— É o aviário!
Mais alguns passos, e, ao fundo de uma gruta iluminada, onde peixinhos de
mil espécies rabeavam, como jóias vivas, em pequenos depósitos de água límpida,
esclareceu-me, com a mesma erudição:
— É o aquário!
Examinados os recantos da caverna encantada, que me transportava, como
num sonho, ao fundo maravilhoso do oceano, passamos adiante. Era uma espécie
de clareira, de várzea chã, onde se estendia; cheirando e florindo, um tapete macio,
úmido, multicor, de ervas aromáticas.
— É o herbário! — ensinou-me o comendador.
Nesse momento, porém, chamaram a minha atenção umas latadas enormes,
artisticamente dispostas, formando caminhos ensombrados. Endireitei os óculos
para examinar melhor, e vi: tratava-se de uma admirável plantação de parreiras
abertas em frutos, em que os cachos, amarelos, uns, roxos outros, pendiam,
sumarentos, brilhantes e numerosos, como bolhas de ouro ou de vinho suspensas
miraculosamente das folhas.
— Magnífico! — exclamei, deslumbrado.
O comendador inflou a barriga, sorriu, desvanecido, e, estendendo o dedo no
rumo do parreiral, explicou, com orgulho:
— É o "uvário"!
Capítulo XXXI
Manias
1° de abril
Em um trabalho recente na "Edinburgh Review", o crítico inglês John Browing
denuncia, a título de curiosidade, um certo número de manias de escritores
nacionais, procurando, ao que parece, demonstrar a feição patológica de todos eles.
Por esse trabalho de pesquisa, foi que eu vim a saber, com espanto, que Walter
Scott dormia com o chapéu na cabeça, que Wordsworth almoçava arrepiando o pêlo
de um gato, que Goldsmith só trabalhava assobiando, que James Macpherson
gostava de estrangular passarinhos, e que Poppe, não obstante as aparências de
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saúde perfeita não conciliava o sono senão quando o criado fazia barulho no quarto
contíguo, batendo desesperadamente numa bacia.
Para o crítico de Edimburgo, essas originalidades constituem anomalias,
aberrações, moléstias mentais interessantíssimas, patenteadas, segundo diz na obra
literária que as suas vítimas produziram. Eu me permito, entretanto, o direito de
contestar semelhante tese, baseando-me no exemplo de um homem perfeitamente
sadio, como é, no caso, o coronel Evaristo de Souza Portela.
O coronel Evaristo Portela, grande fazendeiro em Minas, era um dos homens
mais virtuosos produzidos, até hoje, pelo município de Uberaba. Chefe de família
exemplaríssimo, não havia passado, jamais, uma noite fora de casa. Viagem que ele
fizesse, ou realizava-a em companhia da sua digna esposa, a veneranda D.
Geralda, mãe dos seus únicos quatorze filhos, ou fazia-a tão curta que estava de
volta, à noite, para dormir na fazenda.
A posse do Sr. Raul Soares no cargo do ministro da Marinha determinou,
entretanto, uma profunda modificação na vida do conceituado fazendeiro. Compadre
do ilustre político e correligionário que lhe levara à pia dois filhos, o coronel não
podia, absolutamente, faltar à grave cerimônia do cais dos Mineiros; como cumprir,
porém, esse dever de amizade, de cortesia, e de solidariedade política, se D.
Geralda, sua companheira inseparável de dezesseis anos de sono no mesmo leito,
não se podia abalar para uma viagem tão tentadora, mas, ao mesmo tempo, tão rica
de incômodos e inconvenientes?
— O que não tem remédio, remediado está! — exclamou, afinal, uma tarde, o
coronel, depois de profundas cogitações.
E mandando arrumar duas malas de mão, tomou o trem, no dia seguinte, com
destino ao Rio de janeiro.
A primeira noite de capital foi para o honrado fazendeiro um suplício, um
martírio, um tormento. Habituado à vida rigorosamente domestica, não lhe foi
possível, em absoluto, conciliar o sono. E de tal modo lhe nasceu a saudade da casa
dos filhos, e, principalmente, da esposa, que o criado do Grande Hotel, onde ele se
hospedara, ainda o encontrou com os olhos da véspera quando lhe foi, de manhã,
levar o café.
O dia, passou-o o coronel mais ou menos distraído, fazendo compras,
visitando amigos, palestrando com os conhecidos. À noite, porém, voltou, com a
saudade, a tortura da insônia. Debalde fechava os olhos, apertando as pálpebras: à
simples lembrança de que se achava tão longe, tão distante de casa, fugia-lhe o
sono, deixando-o a remexer-se, aflito, no leito largo, a amassar nervosamente os
lençóis.
À meia noite, após duas horas de martírio na cama, o coronel não pôde mais:
ergueu-se do leito, em pijama, pondo-se a andar, nervoso, de um lado para outro do
quarto. E estava já, há meia hora, nesse exercício, quando teve, de repente, uma
idéia: tocou a campainha, chamou o criado, e pediu:
— O senhor não tem, por aí, uma escova, dessas para cabelo?
— Tem, sim, senhor.
— Traga-a.
O criado trouxe a escova, o coronel agarrou-a pelo meio, do lado do pêlo,
com a mão aberta, e, apagando a luz, atirou-se no leito.
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E dormiu, sereno, até de manhã...
Capítulo XXXII
Feminice
(Sobre uma frase de Emile Faguet)
4 de abril
D. Elisabeth Saldanha era apontada no Rio de janeiro como a senhora de
vida mais acentuadamente elegante entre quantas, até hoje, possuiu a cidade.
Honesta por educação e por temperamento, ninguém lhe apontou, jamais, um
deslize, uma falha, uma simples leviandade de conduta. Em uma terra em que a
maledicência enche as bochechas a cada canto da rua, ela fizera o milagre de
conservar sempre limpo, sem a menor mancha do hálito da calunia, o espelho de
cristal da sua reputação
Os seus hábitos mundanos não eram, entretanto, propícios à conservação
desse conceito. Adorando o marido e sendo idolatrada por ele, havia uma vaidade
que ela colocava acima de tudo na terra; e esta eram o teatro, os chás, os jantares,
as conferências literárias, os concertos, e, sobretudo, a visita às amigas, num
desperdício de tempo, de frases e de vestidos que lhe parecia verdadeiramente
encantador.
Certo dia, porém, ao sair do Municipal, D. Elisabeth descuidou-se um pouco
do "manteau" bordado de dragões de ouro e cegonhas de seda, e apanhou uma
pneumonia. A ciência médica da cidade foi, toda ela, mobilizada em uma noite. E tal
é o prestigio da medicina diante da morte, que, dois dias depois, o Dr. Alfredo
Saldanha penetrava o portão do cemitério de São João Batista, segurando, sem tirar
o lenço dos olhos, uma das alças do caixão funerário da sua querida Elisabeth.
Enquanto se dava isso aqui na terra, uma alma, imponderável como o ar e
mais alva, talvez, que um floco de neve, batia, suave, à porta do Paraíso.
— Seu nome? — perguntou S. Pedro, abrindo a portinhola, encantado com
tanta candura.
— Elisabeth Saldanha, meu santo.
O apostolo fitou-a com simpatia, e continuou no interrogatório:
— E que fizeste na tua vida, minha filha? A recém-chegada franziu a testa
morena e perfeita, como se consultasse a si mesma.
— Não ouviste, filha? Que é que fizeste na tua vida?
Elisabeth ia, pela primeira vez, se atrapalhando, mas, recobrando a
serenidade, indagou:
— Eu?
E, com um sorriso, que lhe abotoava a boca num beijo:
— Eu fiz... muitas visitas!
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São Pedro sorriu, bondoso, e a grande chave rangeu, faiscando estrelas, na
enorme fechadura dourada.
Capítulo XXXIII
Chaves E Fechaduras
7 de abril
— Os senhores, conselheiro, os senhores, homens, — dizia-me, abanando-se
pausadamente com o seu grande leque de plumas vermelhas, a linda viscondessa
de Lima Freire, — os senhores serão, sempre, injustos com as mulheres, por que
nem todos poderão compreendê-las.
— As mulheres são, então, o maior mistério do universo? — indaguei, com
ironia.
A viscondessa sorriu da minha ingenuidade, e, sem dissimular a sua piedade
pela minha ignorância, acentuou, bondosa:
— O conselheiro não me entendeu, ou não me quer entender. A mulher é um
mistério, mas um mistério, apenas, para o homem que lhe não agrada. O símbolo da
fechadura tão freqüentemente citado pelos psicólogos, constitui uma verdade
indiscutível.
— O símbolo da fechadura?
— Sim; não o conhece?
E como lesse a curiosidade no meu olhar, contou-me, pausadamente,
cerrando a meio os seus macios olhos de míope:
— Cada mulher é uma fechadura que só tem uma chave...
— Só? — interrompi.
— Espere aí! — pediu, impondo-me silêncio com o leque.
E continuou
— Cada mulher é uma fechadura, que só tem uma chave, a qual está nas
mãos do homem que a tem de amar e que tem de ser amado por ela. Outros
passarão sob os seus olhos, tentando abrir-lhe o coração. Abusando da sua
inexperiência, um ou outro poderá, talvez, penetrar no sacrário da sua alma, usando
de chave falsa. Um homem, apenas, tem a chave verdadeira, e é somente quando a
mulher se encontra com ele que se dá, realmente, a felicidade no matrimônio.
Compreendeu?
Eu ia confirmar com um monossílabo, mas a ilustre senhora não me deu
tempo.
— Cada mulher — continuou — devia esperar, de olhos fechados, como a
princesa adormecida no bosque, o portador da chave da sua fechadura. É da
impaciência de algumas que nascem, geralmente, os escândalos, os divórcios, a
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dissolução ruidosa das famílias legalmente constituídas. Supondo-se esquecidas
pelo seu porteiro, elas cedem à primeira chave falsa, ou à primeira gazua, e casam-
se. Mais tarde, aparece o portador da chave. E Já se vai, com esse encontro, a
felicidade de um lar!
— Isso era antigamente! — observou, intervindo, o capitão Peixoto Cunha,
que nos observava de perto. — Hoje não há mais portas com uma chave só.
E acentuou, rindo:
— As portas, hoje, são de trinco!
Nesse momento, chegava, pausadamente, o visconde, enrolando em torno do
dedo grosseiro uma fina corrente de prata, em cuja extremidade chocalhava, numa
argola, uma penca de chaves.
Estas eram seis, e abriam, todas, com a mesma facilidade, as duas gavetas
da secretária...
Capítulo XXXIV
O Monstro
10 de abril
Não é de hoje que eu me bato, na imprensa, e, pessoalmente, perante os
empresários cinematográficos, em favor da exibição, nos cinemas, de "films"
verdadeiramente instrutivos. Os romances de amor, as "fitas" que acabam em
casamentos e beijos, devem ser substituídas, de vez em quando, por verídicos
pedaços da natureza, que nos dêem, na sua grandeza e na sua inocência, uma
sensação da vida real.
Os "films" desse gênero devem ser, entretanto, claros, fáceis, explícitos, não
só na imagem, na reprodução viva da paisagem e das coisas que a animam, como
nos letreiros explicativos, que devem estar ao alcance de todas as inteligências. Um
episódio ocorrido há poucos dias em casa de uma ilustre família brasileira, após a
exibição, no Pathé, da "fita" "Santa Cruz", da Comissão Rondon, mostra, de modo
irrecusável, a força dessa necessidade.
Mandada vir de Hamburgo para governante de uma casa de família notável,
Dona Edda, rubicunda viúva alemã, empregava a sua paciência teutônica, dia e
noite, em aprender o maior número de vocábulos portugueses. Soletrando os
nomes, e procurando identificá-los pelo conhecimento das coisas que eles
representavam, não perdia a pachorrenta senhora um pedaço de jornal ou um
dístico de cinema, que não soletrasse e traduzisse, ajustando a palavra à figura. E
foi com esse intuito que, anunciado, há duas semanas, o "film" do general Rondon,
correu ela ao cinema, conduzindo à mão, para as consultas indispensáveis, o seu
pequenino dicionário ilustrado.
Com os óculos na ponta do nariz, acompanhava a neta de Lohengin a
excursão pitoresca dos abnegados sertanistas, quando tomou um susto, ao
aparecer, na tela, o primeiro jacaré dos lagos de Mato Grosso. Curiosa, esperou o
intervalo, abriu o dicionário, consultou, viu que se tratava de anfíbios vorazes, que
nasciam pequeninos e tomavam grandes proporções, anotou o caso, decorou o
nome, e continuou a ver o "film" até o fim.
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À noite, agasalhados os pequenitos da família, estava D. Edda, sozinha, na
sala de jantar, quando, ao voltar-se, empalideceu: diante dela, na janela que dava
para o Jardim, estava, a espiá-la, batendo a cabecita inquieta, uma pequena
lagartixa de muro, uma dessas osgas minúsculas e inocentes, que se alimentam de
moscas e habitam, no Brasil, às duas, e às três, os troncos das árvores e as fendas
das paredes.
Ao deparar o réptil, que a fitava benignamente, a alemã deu um pulo, folheou,
rápido, o dicionário, identificou o animalzito pelo aspecto, e correu, aflita, para o
salão.
— Que é, D. Edda? Que foi? — acudiu, a jovem dona da casa.
— Uma "bicho", zenhorra!
E, apontando, com os olhos esbugalhados a lagartixa, que a fitava da janela,
sacudindo a cabecita inofensiva:
— Um "crreança" de "jacarré"!...
Capítulo XXXV
A "Festa dos Ovos"
14 de abril
O último número do "Pathé-Journal", que está sendo exibido em um dos
nossos cinemas, registra, entre outros acontecimentos curiosos, a chamada "Festa
dos Ovos", levada a efeito recentemente em Wilkes Barre, nos Estados Unidos.
Entre os divertimentos populares dessa pequena cidade da Pensilvânia, está
esse, que é, realmente, pitoresco. Em um parque das redondezas, são escondidos
cuidadosamente, nos ramos das árvores, nas raízes, na cavidade das pedras, nos
montes de folhas e nos tufos de relva, milhares de ovos, que devem ser descobertos
pela criançada das escolas. Conduzida, este ano, ao parque, e dado o sinal, a
pequenada composta de sete mil colegiais, dispersou-se pela enorme planície
arborizada, à procura dos vinte e cinco mil ovos escondidos. E era de ver a
algazarra, o tumulto, a alegria bulhenta, com que aquele exército de crianças se
lançava em todos os rumos, na ânsia de fazer a maior colheita possível!
O comendador Inocêncio Coutinho havia estado, anteontem, com a sua jovem
esposa, D. Odaléa, no conhecido cinema da Avenida, e gozado, em gargalhadas
enormes, o interessante episódio de Wilkes Barre, quando resolveu, ontem,
reproduzi-lo em família, para afugentar, bonacheirão, o tédio da sua encantadora
companheira. Com esse intuito, saiu ele do Banco de que é diretor e, dirigindo-se a
uma quitanda das proximidades, adquiriu, aí, três ovos, que escondeu,
cuidadosamente acondicionados, no forro do chapéu. Chegado à casa, foi gritando,
logo, do vestíbulo:
— Sinhazinha? Ó Sinhazinha? Sinhazinha? Vem cá!
A esposa acorreu, displicente, e o comendador convidou, feliz, num riso largo,
ingênuo, bonachão:
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— Vamos fazer a "festa dos ovos"? Olha: eu comprei uns ovos, e os escondi,
comigo. Se os encontrares, como as crianças do cinema, ganharás um colar novo,
de pérolas, para as festas do Rei. Está feito?
Incentivada pela idéia do prêmio, a linda senhora atirou-se, sorrindo, à
procura dos objetos que o esposo ocultara. Lépida, risonha, barulhenta como uma
colegial, meteu as mãozinhas de neve nos fundos bolsos do marido, remexeu-lhe a
bainha da calça, examinou-lhe a manga do casaco, passou, em suma, no
comendador, uma revista completa.
E não os achou, a infeliz!...
Capítulo XXXVI
Aparências
17 de abril
Em toda a rua São Gabriel, naquele movimentado bairro operário, o assunto
mais em evidencia era, há muitos dias, aquele: a saída furtiva, a horas altas da noite,
daquela rapariga tão linda, desde que lhe morrera o marido.
— É uma falta de vergonha, D. Inácia, o que está fazendo aquela desalmada
— informava, de janela para janela, a vizinha da direita. — Ainda ontem, à noite, eu
fiquei de alcatéia aqui por dentro da rótula, e vi tudo: a atrevida esperou que se
fechassem todas as casas, abriu a porta, espiou para um lado e para outro, e, como
não visse ninguém, pôs um xale, e saiu. Imagine o que ela não foi fazer por ali...
— Dizem que vai para um clube dançar o maxixe com o Manoel português, —
adiantava D. Inácia.
— A Vitalina, outro dia, quando voltava do baile do Alfredo, alta madrugada,
encontrou-se com ela, que saía de casa. A desnaturada ficou tão envergonhada que
cobriu o rosto, para não ser conhecida.
— Que mulher cínica! — terminava uma.
— Que falta de vergonha! — confirmava a outra.
Divulgada a notícia do escândalo, toda a rua ficava, horas e horas, à espreita,
aguardando, pelas frestas das janelas, a saída clandestina da viúva. E quando esta
desaparecia, ao longe, na esquina, as rótulas se escancaravam, as cabeças
emergiam, e começavam as observações!
— Viu?
— Vi!
— Sim, senhora! Quem diria?!...
— Que escândalo!
— Que horror!...
Certa noite, porém, instigados pelas mulheres, resolveram alguns operários
acompanhar de longe a notívaga, fiscalizando-lhe os passos, para desagravo do
morto. Pé ante pé, espiando de canto em canto, escondendo-se pelos portais,
andaram os homens de rua em rua, até que foram ter a um campo deserto, em
frente a um mercado. E ali viram, enxugando os olhos rasos de pranto: a "pervertida"
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saía todas as noites, embuçada na treva, para disputar aos porcos, no monturo, uma
fruta podre, para a fome do filho!...
Capítulo XXXVII
A Coberta
21 de abril
Não há quem não conheça, em todo o Brasil, a fecundidade da mulher
cearense. Terra privilegiada e infeliz, em que a natureza, ao mesmo tempo, se
destrói e se refaz, o Ceará constitui um caso curiosíssimo pelo modo por que
aumenta, no meio das maiores calamidades, a sua população. À semelhança dos
dragões fantásticos dos belos contos medievais, cujo sangue, ao cair na terra, se
transformava em legiões de guerreiros, cada cearense que tomba de fome ou de
sede, rebenta, no ano seguinte, multiplicado por dez. E daí serem freqüentes, em
todo o Estado, os casais com vinte, trinta, e até quarenta filhos, que se espalham
depois pelo mundo, honrando pelo talento, e dignificando pelo trabalho, o glorioso
nome do Ceará.
As famílias de prole modesta que vivem no Sul, compreendem dificilmente
como pode uma pobre mãe lidar com uma tribo tão numerosa. E, no entanto, nada
mais fácil para o cearense. Eu conheci, por exemplo uma senhora daquela
procedência, que descobrira um processo originalíssimo de fiscalizar o seu exercito
de descendentes. Mãe de dezessete filhos, de um a quatorze anos, D. Josefa
aproximava-se, à tarde, da mesa de cozinha, e partia, ali, uma ou duas
rapaduras.Chamava os filhos e, deixando-os a comer, ia colocar-se ao lado do único
pote d'água que havia na casa. Acossada pela sede, originada pela absorção do
açúcar, a meninada corria, logo, a beber, enquanto D. Josefa os ia contando:
— Um... dois... três... quatro... cinco... seis...
E assim por diante, até dezessete. Se havia apenas dezesseis, a bem-
aventurada gambá-humana saía a procurar, como o pastor da parábola, a ovelha
desgarrada.
D. Ifigênia de Medeiros, outra senhora que a seca de 1918 desterrou do seu
Estado natal, possuía, entretanto, um processo mais simples. Casada em 1898, aos
treze anos, com um fazendeiro de Itapipoca, teve desse consórcio abençoado, que
durou seis anos, nove filhos, sendo quatro meninos e cinco meninas. Contraídas
novas núpcias, no mesmo ano da viuvez (1904), com um tabelião de Sobral,
forneceu D. Ifigênia ao Ceará, em mais cinco anos de matrimônio e caldos de
galinha, sete meninas. Viúva pela segunda vez, casou em 1909 com um agricultor
da serra de Uruburetama, a quem deu cinco meninos e cinco meninas, em nove
anos. Perdido este terceiro esposo em 1918, recusou a fecundíssima senhora seis
ou oito pretendentes que lhe apareceram, preferindo embarcar para o Rio de janeiro,
onde se encontra desde aquele ano.
Apresentado a essa virtuosa nortista, que vive, hoje, em relativa abundância,
perguntei-lhe, curioso, se ela não se confundia com tanta criança em casa.
— Eu? — atalhou, sorrindo. — Absolutamente!
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E explicou-me o seu processo de evitar confusões:
— Eu adotei, para comodidade, o seguinte sistema: os filhos de cada marido
usam roupa de uma cor. Os do primeiro, por exemplo, em número de nove, usam
roupa de cor cinzenta.
E chamou para dentro:
— Lili? Iaiá? Amélia? Nenê? Totó? Bibi? Alfredo? Almerinda?
Aparecida a primeira parte da tribo, D. Ifigênia continuou:
— Os filhos do meu segundo marido vestem-se de azul.
E chamou:
— Teté? Lulu? Judith? Ester? Virgilina? Margarida? Sebastiana?
A segunda turma apareceu.
— Os do meu terceiro marido trajam amarelo.
E gritou:
— Jequiriçá? Pindoboçú? Coema? Jaci? Lindóia? Ubirajara? Peri? Iracema?
Jacaúna? Guaraciaba?
O terceiro turno surgiu.
Evacuada a sala, D. Ifigênia sorriu; acrescentando:
— E ainda tem!
— Ainda tem? - exclamei, espantado.
— Tem, sim!
E entrando para o quarto contíguo, trouxe, nos braços, um pequenito de três
meses.
Esse, nascido no Rio de janeiro, vinha embrulhadinho numa coberta de
retalhos, em que se misturavam o branco, o azul, o preto, o amarelo, o roxo, o rosa,
o pardo, o verde, o encarnado...
Capítulo XXXVIII
A Derradeira "Morada"
24 de abril
O administrador do cemitério de S. Geraldo, Alfredo Costa Ximenes, residia,
há anos, à rua Real Grandeza, quando, em março último, forçado a mudar de casa,
foi alugar um prédio de segunda ordem, de que era proprietário o comendador
Augusto Gonçalves Teixeira, que lhe foi dizendo, logo, sem circunlóquios:
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— O aluguel da casa é quinhentos e vinte mil réis, fora a pena d'água e a taxa
sanitária. Além disso para que eu lhe dê a chave, o senhor terá de pagar-me seis
contos de réis, de "luvas".
Debalde o honrado funcionário da Morte chorou, suplicou, implorou; o
comendador mostrou-se inabalável na sua exigência, e ele teve de arranjar, mesmo,
as "luvas", para se não ver, de uma hora para outra, lançado à rua com a família.
Dois meses depois desse episódio, estava o administrador, uma tarde, no seu
posto, na secretaria da necrópole, quando parou ao portão, buzinando e rolando, um
cortejo funerário. Levada às suas mãos a papeleta fúnebre, o funcionário viu pelo
nome, que o morto era, nada mais, nada menos, do que o seu senhorio, o
comendador Gonçalves Teixeira e teve, de repente, a idéia de uma represália:
chegou ao portão, onde o esquife já repousava, agaloado, na carreta do cemitério, e,
recebendo da família a chave do caixão, mandou rodar o ataúde no rumo da
sepultura.
Terminadas, ali, entre lágrimas e vertigens, as angustiosas despedidas da
praxe, um filho do defunto mandou chamar o administrador, a quem havia dado a
chave do esquife, para que fosse identificar o morto, e fechar o caixão.
— Pronto! — apresentou-se Ximenes, apertado na sua sobrecasaca preta. —
Que desejam?
— A chave, — explicou um parente do defunto.
— Suspendam a tampa do esquife, — ordenou o administrador.
Um amigo abriu o caixão funerário, onde jazia, inteiriçado, vestido de preto o
corpo do desventurado capitalista.
Ximenes passou, meticuloso, a vista sobre o cadáver, e, vendo-lhe as mãos
nuas, cruzadas sobre o peito bojudo, reclamou, severo:
— E as "luvas"? Querem, então, que ele desça à derradeira "morada" sem as
"luvas"?
E não entregou a chave!
Capítulo XXXIX
A Punição
Il est des femmes qu'on ne devrait jamais épouser soi-même. On devait les laisser
épouser par ses amis — Alfred Capus.
26 de abril
Molemente estirado no leito revolto, com a farta cabeleira de ouro em
desalinho sobre o travesseiro em que se achava impresso ainda, o sinal de outra
cabeça, a linda Julieta Erst acompanha com os olhos os movimentos do Dr. Cardoso
Simas, que abotoa a botina, tranqüilamente, com o pé sobre uma cadeira. Olhando-
o, assim, de costas, ela examina, desvanecida, a máscula formosura do amante
jovem, cuja harmonia de espáduas se patenteia através da camisa de seda creme
sob a cruz "grenat" do suspensório quando, de repente, a sua saudade lhe dita uma
queixa:
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— Vê, só, Eduardo, o que foi o resultado daquele arrufo em nossa vida! Se tu
não tens brigado comigo, naquela tarde, nós nos teríamos casado, e, em vez deste
amor cortado de sustos, de incertezas, de pecados, viveríamos, agora, um junto do
outro, sem temores nem pesares!
O rapaz continua, de costas, abotoando as botinas e a moça insiste,
aconchegando o lençol, com os olhos nele:
— Seria uma vida ideal; não achas?
— Talvez... — aventura o moço.
— Talvez por quê?
E ele, explicando-se, displicente:
— Por que? Porque, se eu me tivesse casado contigo, estaria, agora, no
escritório, enquanto que o Erst se acharia, talvez, aqui, na minha ausência,
amarrando os sapatos!
E, sem olhar para trás, continua, em silêncio, abotoando a botina...
Capítulo XL
O Nababo
28 de abril
De regresso de uma excursão pelos subterrâneos da alma humana, um
escritor louvava, certa vez, entre as virtudes que lá descobrira, o pecado da Vaidade.
Esse defeito, na sua opinião, era o mais vantajoso de quantos possui o Homem. Foi
pela vaidade de possuir um nome ressoante que Colombo descobriu a América. E é
a Vaidade, ainda, que dá de comer aos humildes, utilizando nas oficinas milhões de
operários, que tecem a seda, fabricam os leques, esculpem as jóias. Tudo, na terra,
é Vaidade, e só Vaidade, afirma o Eclesiastes. E Pascal adianta: a Vaidade está de
tal maneira inveterada em nosso coração, que os próprios filósofos não lhe fogem ao
império: aqueles que escrevem contra a glória, querem a glória de haver bem
escrito; e aqueles que lêem, querem a glória de ter lido.
Há, entretanto, um gênero de Vaidade que não tem, sequer, essa atenuante:
é a do pavão que se espaneja sem cauda, a que repousa na mentira, na falsidade,
no ridículo, a que procura, em suma, viver dos juros sem um risco evidente do
capital, e da qual é sacerdote, no Rio de janeiro, o conhecido "gentleman" Dr.
Alfredo Pereira da Cunha.
Modesto de posses, vivendo de um emprego que lhe dá dificilmente para as
despesas imprescindíveis, esse meu jovem amigo tem uma fraqueza: pertencer ao
número dos cavalheiros irrepreensivelmente elegantes, equiparando os seus coletes
aos do Dr. Villaboim, as suas gravatas às do Dr. Darcy, os seus colarinhos aos do
Dr. Galeno Martins, as suas botinas às do Dr. Arnaldo Guinle, os seus ternos aos do
desembargador Ataulfo, as suas camisas às do Dr. Humberto Gotuzzo, e, até o seu
monóculo de vidro ordinário, ao monóculo de cristal puro do eminente Dr. Leão
Velloso. E tudo isso com a circunstância de atribuir-se tudo — coletes, gravatas,
colarinhos, botinas, ternos, camisas, monóculos, — em quantidades
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verdadeiramente atordoantes. Dessa forma da sua vaidade, há uma demonstração
curiosa, em que eu funcionei, há dias, como testemunha involuntária.
Sentados um diante do outro, tomávamos nós, no Alvear, o nosso chá das
cinco horas. quando me chamaram a atenção, na elegância americana do meu
amigo, uns arabescos em linha branca, traçados no cós da sua calça de flanela, no
intervalo dos botões destinados ao suspensório. Curioso, apliquei melhor os óculos,
e vi: era o número 846, em algarismos feitos a agulha, como esses que encontramos
na roupa ao recebê-la da tinturaria.
— Que é isso, doutor? — indaguei.
O jovem advogado baixou os grandes olhos negros sobre o seu busto sem
colete, em que a camisa de zefir se desfiava em alguns pontos com uma elegância
de varanda de rede, e explicou, com um sorriso superior:
— É o número da calça.
— Você tem oitocentas e quarenta e seis calças? — estranhei, arregalando
os olhos e parando a xícara a meio caminho da boca.
O Dr. Alfredo olhou-me com irreprimível piedade, e, lamentando intimamente
a modéstia dos meus recursos, respondeu-me, apenas, num doce insulto à minha
pobreza:
— Das de flanela...
E continuou, solene, a tomar o meu chá.
Capítulo XLI
A Confissão
Em que se prova que certas perguntas inocentes, claramente feitas, valem, às
vezes, por uma informação perigosa.
2 de maio
O padre Sebastião havia tido notícia, por intermédio do sineiro, que a sua
paróquia, colocada sob a invocação de Nossa Senhora do Retiro, se achava
minada, solapada, anarquizada, pela corrupção dos costumes. Segundo o
depoimento dessa testemunha, o bairro estava semeado de casas duvidosas, onde
algumas senhoras levianas se juntavam durante certas horas do dia rindo,
dançando, palestrando com rapazes e velhos divertidos, que ali ficavam, até à noite,
consumindo o seu tempo e gastando o seu dinheiro. Escandalizado com a denúncia,
o virtuoso sacerdote chamou, uma tarde, o sacristão e recomendou-lhe:
— Francisquinho, nós precisamos agir, na freguesia, contra o demônio da
corrupção. A seara de Deus, que se mostrava tão prospera, principia a ser devorada
pelas lagartas do Demônio. E nós precisamos trabalhar, meu filho!
O sacristão arrebitou o nariz para melhor farejar o escândalo, e o reverendo
explicou o seu plano:
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— É preciso que você, que conhece toda a gente, indague, por aí, quais são
as casas suspeitas, em toda a paróquia. Veja o número dos prédios e venha avisar-
me, para que ou tome as providências.
Francisquinho pegou no chapéu, sacudiu-o no cocoruto, e partiu, rebolando-
se, pelas ruas do bairro, a indagar, de café em café, de botequim em botequim, de
antro em antro, onde estavam situados aqueles focos de corrupção. E à tarde,
informava, com a sua vozinha em falsete, a S. Revma. o vigário:
— Meu padrinho, descobri tudo; as casas são três: uma na rua dos
Enforcados n. 29, outra na rua França Coelho n. 417, e outra na travessa de Santa
Apolônia n. 46. E é só.
Padre Sebastião tomou nota em uma das folhas do breviário, decorou,
depois, um por um, o nome das ruas e o número das casas, e, no dia seguinte, foi,
como de costume, confessar e absolver os fiéis.
Estava ele no confessionário, ouvindo, peneirados no crivo de ferro, os
pecados do seu rebanho, quando percebeu na última dama que se ajoelhara à sua
frente, uma das senhoras cuja virtude não lhe merecia grande confiança. Cauteloso,
o sacerdote, em certo momento, indagou:
— E você, filha, nunca abandonou o seu lar, para ir à rua dos Enforcados n.
27?
— Não, senhor! — gemeu a moça.
— E à rua França Coelho n. 417?
— Também, não, senhor! — insistiu a dama.
— E à travessa Santa Apolônia n. 46? — tornou o pároco.
— Não, senhor!
Padre Sebastião absolveu a linda ovelha impoluta, e, como não tivesse mais
ninguém a confessar, deixou-se ficar no confessionário a olhar para a porta da
igreja, por onde ia sair a última confessada. De repente, abriu a boca, espantado: no
portal do templo, a formosa paroquiana tomava nota a lápis, em uma carteirinha, que
exumara, ali, de uma custosa bolsinha de ouro. Desconfiado, o sacerdote
encaminhou-se para a porta, arrastando em silêncio as suas moles sandálias de lã,
e, chegando perto da moça indagou, interessado, com a sua santa voz de além-
túmulo:
— De que é que toma nota, minha filha?
A dama, sem se aperceber da pergunta, respondeu, apenas, como se falasse
a si mesma:
— Essas eu não conhecia, não!
E, guardando a carteirinha na bolsa de ouro, retirou-se, descendo os degraus.
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Capítulo XLII
Política
6 de maio
Sentado diante do seu "bureau-ministre" coberto de telegramas e cartas, que
lhe chegam, a todo o momento, de toda parte do país, o grande chefe nacional dá
audiência aos amigos. A situação do partido é, em toda a República, a mais
lisonjeira, e é com a alegria no rosto e o orgulho no coração que ele recebe, um a
um, como portadores de boas-novas, o enxame dos políticos correligionários.
As eleições para renovação da Câmara e recomposição do Senado haviam
atemorizado um pouco o terrível politiqueiro indígena, pondo em perigo a sua
poderosa máquina eleitoral. De tal modo havia ele, porém, se conduzido,
sacrificando amigos e contemporizando com certos adversários, que emergia, agora,
vitorioso, forte, insolente, como um homem que não transigiu um palmo e a todos
esmagou pelo caminho.
Feliz e forte, ouve ele, embalando-se na cadeira de mola, as informações que
lhe são carregadas pelo formigueiro que lhe mantém o prestigio formidável, quando
entra no escritório, com familiaridade, um amigo particular. É um antigo senador
afastado das lides partidárias, um velho companheiro que preferiu gozar em sossego
os proventos da sua advocacia administrativa, um homem tornado independente e
conhecedor do mundo, e que goza, por isso, de considerações especiais.
— Tu, por aqui? — exclama o chefe poderoso, arrancando o charuto caro e
enorme da grande boca servida de dentes rígidos, sólidos, brutais, de antigo
estraçalhador de carnes humanas.
O outro senta-se, abrindo um parênteses de intimidade na seriação de
baixezas, de humilhações, de frases covardes, ouvidas pelo velho político naquele
dia de audiências; e, a certa altura, entra no assunto que motivara a visita.
— O que me traz aqui — explica — é a situação do Belarmino; ele precisa
entrar para a Câmara, e é indispensável que você o auxilie.
O grande chefe, habituado às incidências, aos sofismas, às expressões
dúbias, balança a cadeira, lança para o teto uma nuvem de fumaça do seu charuto
de sessenta mil réis a dúzia, e observa:
— Creio que não há nada contra ele...
E após um ligeiro silêncio:
— A votação não foi boa?
— Foi. Quinhentos e oitenta votos sobre o seu competidor.
— As mesas não funcionaram com regularidade?
— Perfeitamente.
— Houve protesto dos fiscais?
— Não.
— Eles não assinaram os boletins?
— Assinaram.
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O chefe põe os olhos nos olhos do antigo companheiro, como a perguntar
onde estava, então, a razão do seu temor, do seu susto, do receio de que o seu
protegido seja sacrificado, e este esclarece:
— Há, porém, uma coisa.
O outro inquire com os olhos.
— Ele é casado com uma mulher feia como um bicho!
A essa informação a fisionomia do velho chefe, que se mostrara, até então,
satisfeita, risonha, jovial, muda de expressão. Três rugas fortes, pronunciadas,
profundas, cortam-lhe a testa perpendicularmente, unindo a cabeleira às
sobrancelhas de cerda. E, após um instante, compreensivo:
— Homem, isso, agora, foi o diabo!
E, aborrecido, como quem tem a certeza de que perdeu um deputado:
— Enfim, vamos ver...
Capítulo XLIII
O Amigo
8 de maio
O engenheiro Adriano Walsh havia chegado de viagem, e convidara para
almoçar em seu palacete, no dia seguinte, o seu opulento amigo Dr. Polidoro
Tavares, advogado jovem e competentíssimo que era tratado na família com as
maiores considerações.
O almoço, nesse dia, correu delicioso. Alta, esguia, elegantíssima com os
fartos cabelos de ouro arranjados com encantadora simplicidade, Mme Walsh
mostrara-se, como sempre, deslumbrante de formosura e de espírito. Atordoada
pela alegria do marido, os seus olhos, cinzentos e lindos, lembravam duas pérolas
grandes e misteriosas, luzindo, magníficas, entre os canteiros de violetas das
olheiras. Vestida de linho espumante, o seu vulto emergindo, na mesa, do tumulto
dos cristais e da baixela de ouro, era como uma grande rosa branca, em torno da
qual fervilhassem, disputando-lhe o pólen, miríades de insetos faiscantes.
Após o almoço, quando o sol já sonhava, cansado, com o leito longínquo das
colinas, os dois amigos tomaram o automóvel, e desceram, juntos, para a cidade. Na
Avenida, saltaram, e caminhavam, palestrando, por uma das ruas transversais,
quando diante de uma fabrica de móveis, o engenheiro estacou, preocupado:
— Diacho! — proclamou. — Minha mulher pediu-me para mandar concertar
um móvel em casa, e eu não me lembro. Agora, qual é a peça da mobília!
— Não é o divã da alcova, que está rangendo muito? — atalhou o advogado,
insensível.
— É isso! é isso mesmo! é o divã da alcova! — lembrou-se o Dr. Walsh
batendo na testa.
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E entrou na marcenaria.
Capítulo XLIV
A Lição
12 de maio
— Toma cuidado contigo, Enedina! recomendava a bondosa D. Matilde,
repreendendo a filha. — Essa mania de bailes, de festas, e passeios e esses
vestidos muito curtos e muito decotados, podem prejudicar-te. É preciso um pouco
mais de decoro, de zelo, de discrição. Isso, assim, não vai bem!
— Ora, mamãe! — respondia a linda moça, num muxoxo. — Mamãe não
quer, então, que eu me case?
— Quero, sim; mas não é assim, indo a toda parte, e mostrando as pernas até
os joelhos, e o colo até o estômago, que encontrarás um bom casamento.
A resposta era, porém, a mesma, com o mesmo estouvamento gracioso:
— Ora, mamãe!...
Sábado último, desejando oferecer à filha uma jóia custosa para as futuras
festas ao Rei, veio D. Matilde à cidade, e parou, com ela, diante das vitrines da casa
Adamo, na Avenida:
— Aquele não te agrada? — indagou, mostrando à moça um dos mais lindos
colares da exposição.
— Não; não quero aquele.
— E aquele?
— Também não quero.
E convidando D. Matilde:
— Vamos ver lá dentro?
Entraram.
— Colares, de pérolas, ou de brilhantes, — pediu a conhecida senhora.
O dono da casa abriu o cofre forte, pondo-lhes sob os olhos um chuveiro de
pedrarias.
— Quero este! — pediu a moça, batendo as mãozinhas, contente.
No automóvel, de caminho para casa, D. Matilde indagou da filha:
— Achaste, mesmo, esse colar muito bonito?
— Achei-o, sim.
— Mas havia outros mais bonitos, na vitrina.
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— Havia.
— Por que não escolheste um deles?
E a moça:
— Mesmo. Porque estavam tão expostos, tão à mostra... Toda gente já os
viu! Este, não; e, com certeza, há de despertar mais interesse, mais curiosidade!
Não é?
A estas palavras, D. Matilde sorriu, carinhosa, e, tomando nas suas mãos
enluvadas, às mãozinhas de neve da sua Enedina, observou-lhe, maternal:
— Minha filha, sirva-te isto, pela última vez, de lição. Os homens são pelas
mulheres o que as mulheres são pelas jóias: preferem as que se acham guardadas,
recolhidas, às que vivem permanentemente no mostruário, expostas a todas as
vistas! Aproveita, tu própria, minha filha, a tua experiência!
E beijando-lhe a testa, bondosa:
— Sê discreta e modesta para seres desejada. Ouviste?
Capítulo XLV
Os Gêmeos
16 de maio
O piloto Alfredo Fagundes de Moura estava casado há pouco mais de seis
meses quando, por determinação da companhia de navegação em que era
empregado, teve de embarcar subitamente no "Capanema", antigo cargueiro
alemão, para uma demorada viagem ao Mediterrâneo. A travessia, com os
submarinos teutônicos a costurarem, como agulhas monstruosas e invisíveis, o
manto verde do oceano, era, naquele tempo, arriscadíssima: o que, porém, mais
afligia o jovem marujo, não eram os perigos, os riscos, a visão sinistra da morte nas
águas, mas a saudade da sua encantadora Palmirinha, tão simples, tão doce, tão
amada, e, o que era pior, tão sozinha no mundo, onde não tinha como amparo
senão a coluna de ouro do seu amor.
A ordem de partida fora, porém, terminante: e, uma tarde, lá se foi o
"Capanema", barra a fora, apartando, como um pastor de ovelhas irrequietas, o
infinito rebanho das ondas. Dias depois estavam na Madeira. E os portos foram-se
sucedendo: Lisboa, Gibraltar, Cadix, Marselha, Gênova... além de outros, pequenos,
monótonos, secundários, a que eram forçados a arribar por imposição arbitraria das
flotilhas inglesas de vigilância. E nisso gastou ele dezoito meses de trabalho e de
saudade, ao fim dos quais ancorou, de novo, com a alma nos olhos, nas
proximidades da ilha fiscal.
A alegria do casal não podia ser maior. Beijos, abraços, lágrimas de
contentamento, foram os confeitos de coração na doce festa daquele encontro.
— Estás linda, meu amor!
— E tu, forte, corado, bonito!
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E novos beijos estalaram.
Um mês depois, porém, começou a entrar na cabeça do Fagundes, batido
pelo martelo de um pensamento mau, o prego de uma dúvida horrível: é que a sua
Palmirinha havia dado ao mundo, oito dias depois da sua chegada, dois pequenitos
miudinhos, mas perfeitíssimos, que a ciência conseguira salvar.
Aos olhos do piloto, habituado a ver longe, aquilo parecia incompreensível. Se
ele estivera em viagem ano e meio e chegara apenas há quinze dias, como admitir o
nascimento daqueles pirralhitos, tão bem conformados, e que tinham vindo de
tempo? O melhor, em tal emergência, era consultar um médico, um entendido, e foi
o que ele fez, indo bater à porta do Dr. Abelardo Meira, que morava no mesmo
quarteirão.
— O meu caso senhor doutor, é este.
E contou o fato, palavra por palavra, sem omitir a menor particularidade. Ao
fim de tudo, o médico fitou-o, indagando:
— Quantos meses o senhor passou fora?
— Dezoito, senhor doutor.
— E quantos filhos sua senhora teve, agora?
— Dois, gêmeos.
O especialista endireitou o "pincenez", pigarreou, tossiu, remexeu-se na
cadeira, e inquiriu, sentindo-se vitorioso:
— Diga-me cá: com quantos meses nasce uma criança?
— Nove.
— Então, está aí! - exclamou o médico.
E batendo-lhe na perna:
— Está claro, homem de Deus! Duas crianças, dezoito meses, isto é, nove
para cada uma. De que é que se admira?
O Fagundes sorriu, desafogado. E levando a mão à cabeça, arrancou,
satisfeito, num gesto brusco, o doloroso prego daquela duvida...
Capítulo XLVI
As Camisas
18 de maio
Há muitos dias que o Dr. Abelardo insistia com a mulher, a encantadora D.
Silvia, para que usasse umas camisas de seda cor de rosa, que, na sua opinião, lhe
deviam assentar admiravelmente sobre a pele clara, macia, setinosa. Apaixonada
pelo marido, que sabia disputado pela mais íntima das suas amigas, a loura Luizita
Corrêa, D. Silvia escancarou, nesse dia, o grande móvel do quarto de vestir, em que
guardava as suas roupas de interior, e, tirando as dezenas de camisas que ali
estavam arrumadas com ordem, ia mostrando-as, uma a uma, ao esposo:
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— É assim?
— Não.
— É dessas, de seda, enfiadas de fita?
— Não.
— É assim, apenas com uma fita sobre o ombro?
— Também não!
E como a esposa lhe não mostrasse nenhuma camisa como a que ele
desejava acariciar sobre o seu corpo soberbo, convidou-a ele próprio, beijando-a
nos olhos.
— Amanhã, na cidade, veremos onde tem. Quero comprar-te uma dúzia.
Ouviste, meu amor?
D. Silvia agradeceu, com um sorriso e um beijo, a gentileza amorosa do
esposo e, no dia seguinte, à tarde, entravam, os dois, contentes, em uma casa de
modas da rua do Ouvidor, onde, tomando a dianteira, o marido pediu:
— Camisas de dia, de seda, para senhora; n. 3.
— Que cor? — indagou, solicita, a moça que o atendeu.
— Cor de rosa.
A empregada subiu ao primeiro andar, trouxe algumas caixas de camisas de
seda, mas nenhuma correspondia ao desejo elegante do freguês, que era, de fato,
exigente.
— Não são destas? — consultou.
— Não, senhora. São mais finas, mais transparentes, com uma renda de seda
até quase à cintura.
— Ah! Já sei! — exclamou a mocinha, sorrindo.
E, levantando os olhos para o andar superior chamou por uma companheira.
— Julieta!
Apareceu, em cima, no balaustre, a cabeça oxigenada de outra caixeira da
casa.
— Manda-me dali, por favor — pediu — a caixa de camisas n. 8.645.
E, particularizando, alto:
— Olha! daquelas que D. Luizita Corrêa comprou aqui... Sabes?
Quando as camisas desceram das nuvens, D. Silvia tinha subido.
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Capítulo XLVII
O Sonâmbulo
20 de maio
A noite estava escura, fria, gelada, com a chuva a despencar, lá fora, os
cafezais amadurecidos, quando o caboclo bateu, com a mão tiritante, à porta do
casebre.
— Quem é? — indagou, de dentro, uma. voz masculina, demonstrando na
tonalidade o aborrecimento por aquele incomodo fora de horas.
— Sou eu! — respondeu, de fora, o viandante, o Praxedes Ferreira, antigo
tocador de gado em S. José do Paraíso.
Aberto um palmo da porta, o recém-chegado explicou-se. Ia de caminho para
o Poço Fundo, e, surpreendido pelo chuveirão daquela tarde, pedia permissão para
pernoitar no rancho, uma vez que não havia por ali, naquelas quatro léguas mais
próximas, um lugar em que se acoitasse.
— Só se for no telheiro da cozinha; mas esse chove, como no meio do tempo.
Serve? — observou, de má vontade, o colono Eleutério, dono do lugar e da casa.
— Serve! — concordou o Praxedes.
O colono fechou de novo a portinhola da frente, e ia atirar-se na esteira
espichada no único compartimento do casebre, quando a mulher, que já ali estava
encolhida, indagou, curiosa:
— Quem é, Lotério?
— Sei lá! É um camarada que vai de viaje. Mandei ele p'r'o telheiro. Tá lá.
— Coitadinho! — gemeu a rapariga. — Com essa chuva!...
E após um momento:
— Por que você não manda o "coitado" aqui p'ra dentro? A esteira é grande,
cabe os três. Você fica no meio.
O Eleutério imaginou o que estaria sofrendo, lá fora, o desgraçado, levantou-
se, abriu a porta que dava para o velho telheiro alfinetado de chuva, e chamou:
— Ó amigo?
— Hôi? — acudiu o outro.
— Entre p'ra cá. Se deite aqui na esteira, com a gente.
O caboclo entrou, embrulhado num velho capote que tirara do saco, e atirou-
se no lugar que lhe foi indicado, separado da rapariga pelo corpo forte, atlético,
vigoroso, do dono da casa. Estirou-se, embrulhou-se, e estava para dormir, quando,
de repente, como quem se esqueceu de alguma coisa, bate no braço do Eleutério,
avisando:
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— É verdade, eu me esqueci de lhe dizer; eu tenho um sono muito doído,
com uns sonho de home doente; dou pulo, salto, rolo no chão, faço o diabo. Por
isso, não se incomode não, se eu, sonhando, passá por cima do sinhô.
— Você é assim? — indagou o colono, descobrindo o rosto.
— É verdade! — confirmou o outro.
— Então, é tal qual como eu. Tem vez que eu sonho que estou agarrado com
um cabra doido, da minha qualidade, e quando acordo, tou no meio da casa, em pé,
de faca na mão. É um perigo!
O caboclo ouviu a ameaça, pensou, meditou, ruminou, e, após um instante,
propôs:
— Vamo, então, fazê uma coisa?
— Que é?
— Vamo drumi sem sonhá?
E embrulhando-se no capote, rolou, macio, para a extremidade da esteira.
Capítulo XLVIII
O Ambicioso
23 de maio
A Mesopotânia estava, já, povoada de animais de toda a ordem, quando
Jeová resolveu, uma tarde, aperfeiçoar a sua obra dos sete dias.
— Tudo isso — pensava o Criador — está muito bem. Urge, entretanto,
favorecer estes viventes, facultando-lhes um ornamento natural com que se
embeveçam, e que seja, no mundo, o objeto dos seus cuidados.
E chamando, com a sua voz poderosa, o anjo Gabriel, mandou que ele
preparasse, nas margens do Eufrates, alguns quilômetros de cauda, de diversas
grossuras e de diversos feitios, para ser distribuída, na manhã seguinte, pelos seres
recém-criados, — à semelhança do que fazem, hoje, com os cordões honoríficos,
alguns governantes sem dinheiro.
No dia seguinte, pela manhã, a várzea do Éden ressoava de guinchos, de
uivos, de gritos, de berros, de bramidos, de um alarido, enfim, que fazia tremer a
terra. Eram os gatos, os leões, os cães, os tigres, os coelhos, a animalidade inteira,
em suma, que acorria de toda a parte, na ânsia de receber o seu prêmio.
Sentado sobre um pequeno outeiro resplandecente, com os rolos de cauda
amontoados ao lado, o Criador ia chamando, um a um, os animais aglomerados na
campina.
— Leão! — gritou.
O quadrúpede formidável aproximou-se, arrastando, humilde, pelo solo
fresco, a juba monstruosa, e recebeu dois metros de cauda, da mais grossa, que
prendeu, imediatamente, à extremidade do espinhaço.
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— Macaco! — chamou.
O animal deu um pulo, chegando-se.
— Dê-lhe metro e meio da cauda n. 2! — ordenou Jeová ao anjo Gabriel.
E assim foi distribuindo, eqüitativo, pelos outros bichos, dando meio metro aos
cachorros, um metro aos tigres, vinte centímetros aos gatos, um metro aos bois, e,
desse modo, consecutivamente.
Em certo momento, porém, chamou o Homem, entregou-lhe a sua parte, que
era, mais ou menos, um metro.
— Tome! — exclamou.
— Só isso? — estranhou o ambicioso, com desdém.
Jeová encarou-o, irritado, mas, pensando em vingança ainda mais terrível,
ordenou:
— 0 Então, espere aí.
O homem ficou de lado, aguardando a nova chamada, e a distribuição
continuou, sendo contemplados, então, na proporção das necessidades, o coelho, o
gambá, o carneiro, o bode, o veado, o lobo, toda a bicharada, finalmente, que havia
no Paraíso.
Aflito, retorcendo as mãos, o homem olhava o desenrolar dos rolos de corda
viva, notando que ia ficar sem a sua, quando, de súbito, implorou:
— E a minha, Senhor?
Dos quilômetros de cauda fabricados restavam, apenas, duas pontas
pequeninas, de dois ou três centímetros, que o mísero pediu, arrependido:
— Dá-me, ao menos, uma destas sobras, meu pai!
— Destas? Não. Esta aqui é do tatú.
— E aquela, Senhor?
— Aquela? É da cotia!
Vendo-se assim preterido, como pena da sua ambição, o homem deu meia
volta, e afastou-se, contrariado.
E daquilo que foi, em verdade, uma punição, fez ele, depois, na terra, o
motivo do seu orgulho...
Capítulo XLIX
O Sovina
27 de maio
Funcionário modesto, ganhando apenas setecentos mil réis por mês, o
operoso oficial de Fazenda Emiliano Praxedes não podia, ou não queria, dar à
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mulher, jamais, um vestido de passeio, mesmo de baixo preço. Casado há um ano, a
esposa ignorava em absoluto as suas despesas, a cifra dos seus orçamentos,
sabendo, entretanto, que os dispêndios eram grandes, fortes, elevados, porque ele
nunca entrava em casa com dinheiro.
Cansada de esperar pela generosidade espontânea do esposo, D. Lídia
chegou-se, um dia, para ele, e, agradando-o, amimando-o, acariciando-o, pediu,
passando-lhe a mão pelos cabelos:
— Praxedes, quando é que tu me dás um vestido novo? Tu nunca me deste
nada...
Apanhado de surpresa, o funcionário prometeu:
— Breve. Isso depende apenas de ti. Dá-me um filhinho, um anjo para o
nosso lar, que eu te darei um vestido! Está combinado?
— Está combinado! — concordou a moça, batendo palmas de contente.
No fim de nove meses, dado o beijo no seu primeiro pimpolho, que piscava no
leito os olhinhos desconfiados, partia Emiliano Praxedes para a rua, de onde voltava
horas depois com um embrulho, que entregou à esposa.
— Pronto ! exclamou. — O prometido é devido!
D. Lídia abriu, risonha, o pacote, e empalideceu, mais do que estava: era um
vestido de chita azul, grosseira, ordinaríssima, que não havia custado, talvez, mais
de seiscentos réis o metro!
Desapontada embora com a sovinice do marido, a pobre senhora não se
revoltou, não protestou, não disse nada. Calcou o seu ressentimento no fundo da
alma, escondeu a sua mágoa no coração, e, sem que o esposo lhe tivesse feito
outra promessa, deu-lhe, ao fim de mais um ano, um outro filho. Terminado o
período de resguardo, tomou um bonde para a cidade, e, à tarde, ao entrar em casa,
vinha arrebatadora: vestido de seda, chapéu de plumas, sapato de cetim, pele de
raposa, colar de pérolas, enfim, um deslumbramento!
— Que é isso, Lídia? Que escândalo é esse? - exclamou, boquiaberto, pondo-
se de pé, o Praxedes, que já se achava em casa, à mesa de jantar.
E madame, desafiadora:
— Você pensa, então, que todos são miseráveis como você?
E entrou na alcova, tirando as luvas.
Capítulo L
Cerimônias Núpcias
31 de maio
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Em um congresso de jurisconsultos, reunido, há alguns anos, em Berna, o
delegado da Suécia, se bem me lembro, sugeriu a uniformização do Direito Civil,
dando-se às leis peculiares aos costumes de certos povos uma feição de instituto
internacional. Essa medida constituiria um passo para a fraternidade humana,
acabando-se, de vez, com as complicações decorrentes da desigualdade dos
códigos. A cerimônia do casamento, principalmente, se tornaria mais simples e
respeitável, como observava, e muito justamente, um destes dias, o Sr. comendador
Paulino Sampaio, em uma palestra erudita com algumas senhoras inteligentes.
— É, realmente, absurda — observava o honrado capitalista, essa
desigualdade de critério. Não seria mais razoável que o casamento, aqui, fosse igual
ao casamento na China ou na Arábia? Para que, pois, essas diferenças
fundamentais, nesse processo de reunir o destino das criaturas que se querem?
E, para demonstrar o que é a desordem nessa matéria, lembrou,
documentando o seu pensamento:
— Na África, por exemplo, são adotados os processos mais esquisitos, e, até,
mais repugnantes. Em certas regiões daquele continente, a cerimônia consiste,
mesmo, no seguinte: a noiva enche de água uma vasilha, e leva-a ao noivo, para
que lave as mãos. Feito isso, a noiva toma a cuia entre os dedos e bebe o resto da
água servida. Feito isso, estão casados.
As senhoras entreolharam-se, espantadas, e o comendador continuou:
— Em outras regiões, a coisa é ainda pior: em vez de dar as mãos a lavar, o
noivo dá os pés, tomando a noiva, depois, solenemente, os restos da água. É
horrível! Não é?
As senhoras entreolharam-se de novo, escandalizadas, e o velho capitalista
insistiu:
— Esses costumes dão ensejo até, às vezes, a crimes inomináveis. Ainda em
1918, após uma lavagem dos pés do noivo, uma rapariga bebeu a água, na forma
da tradição. E, momentos depois, caiu fulminada!
— Onde foi isso, comendador? — indagou Mme. Costa Pinho, penalizada.
O capitalista sorriu, e explicou, gentil:
— Na África Portuguesa, minha senhora!
Capítulo LI
A Pedra dos Namorados
3 de junho
Fugindo ao clima intolerável da cidade, os dois amigos inseparáveis
resolveram passar, este anuo, o verão em Paquetá. As dificuldades, como era
natural, foram enormes. Ao fim de algum tempo encontraram, porém, duas casas na
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mesma praia, as quais se comunicavam pelo quintal, e foram alugadas, não só entre
as demonstrações de alegria de D. Adalgiza, esposa do Dr. Archimedes, como entre
as de D. Eleonora, mulher do tenente Pedreira.
— Magnífico! — aplaudiu a primeira, batendo as mãozinhas finas, brancas, de
dedos afilados.
— Esplendido! — confirmou a segunda, com as mesmas demonstrações de
contentamento.
Mudados para a ilha encantadora, saíram os dois casais, uma tarde, a
passeio, juntando conchas pela praia, até que foram ter ao local em que se levanta,
entre a terra e o mar, um penedo de três ou quatro metros de altura, em cujo cimo se
amontoava uma infinidade de pedras pequeninas, equilibrando-se com dificuldade.
— Olha, ali! Que é aquilo? — exclamou D. Eleonora, radiante com aquela
vida de liberdade, apontando, com a sombrinha fechada, no rumo da pedra.
— Ah! É a "pedra dos namorados"! — explicou o Dr. Archimedes. — Essa
pedra tem uma história curiosa.
E contou:
— É corrente aqui, na ilha, que este rochedo anuncia os casamentos. Os
namorados que passam por aqui, atiram-lhe ao cimo uma pedra pequena, uma
concha, ou coisa semelhante. Se ficar lá em cima, a pessoa terá de casar-se; se
não, se a pedra rejeitar o objeto atirado, fazendo-o rolar para o chão, é sinal de que
a pessoa não se casará.
— Que graça! — rouxinoleou, rindo, Dona Adalgiza.
E, voltando-se para os companheiros:
— Vamos experimentar?
— Mas... nós já estamos casados! — obtemperou a amiga.
— Não faz mal. Vamos!
Apanhados quatro seixos, aproximaram-se do penedo, e atiraram, cada um
por sua vez. O primeiro ficou. O segundo, igualmente. O terceiro, da mesma forma.
O quarto, também.
— Todos ficaram! — exclamou, com a sua jovialidade infantil, a linda D.
Eleonora.
E acentuou, espichando-se, nas pontas dos pés:
— Olhem: a minha pedrinha ficou junto da do Dr. Archimedes, e a da Aldagiza
bem juntinho da do Pedreira!
O tenente olhou, sério, o bacharel. O bacharel fitou, grave, o tenente.
Sorriram, os dois.
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E continuaram, os quatro, o seu passeio, apanhando, felizes, na areia úmida,
as pequeninas conchas da praia...
Capítulo LII
O Porco
(Lenda muçulmana)
5 de junho
A terra estava ainda mole do Dilúvio, mas começavam a rebentar, já, aqui e
ali, as sementes das plantas resistentes. E como já houvesse, no solo libertado das
águas alimento bastante para a bicharia salva da inundação, resolveu Noé, naquela
manhã de grande sol e de grandes ventos, abrir as portas da arca, encalhada na
areia.
— Primeiro os veados. — ordenou o Patriarca.
Jafet correu à proa da embarcação, espantou um casal de gamos que
devorava uns restos de palha espalhados nas tábuas, e os dois animais pararam em
disparada, estalando os cascos luzentes no soalho escuro do tombadilho.
— Agora, os leões.
Cham instigou, cauteloso, um leão e uma leoa que piscavam os olhos fulvos a
claridade intensa do sol, e as duas feras saltaram no areal ainda úmido, gravando
com força, na terra empapada, as quatro patas de unhas fortes.
E assim foram saindo, dois a dois, os camelos, os cavalos, as zebras, as
girafas, os bugios, os tigres, os ursos, os castores, Os cães, as águias, os milhafres,
as cotovias, tudo, em suma, que devia constituir, mais tarde, o ornamento da terra
ou do ar.
Deserta a Arca, notou Noé, ao passar-lhe revista, que, no lugar em que
estivera o elefante, ficara, empestando o ambiente, um monte de imundice, de lama
pútrida, que repugnava.
— Sem? Cham? Jafet? — gritou o velho, chamando os filhos.
Os rapazes acudiram, tapando o nariz.
— Tirem daqui esta indignidade, — ordenou.
Os futuros construtores de Babel entreolharam-se, horripilados com aquela
incumbência nauseante. E iam principiar, obedientes, o trabalho penoso, quando o
pai, compreendendo-lhes o escrúpulo, mandou que se abstivessem. Tinha-lhe
acudido uma idéia: estendeu os braços no rumo do monte de esterco, e ordenou:
— Move-te!
A montanha de imundice estremeceu por si mesma, ergueu-se acima do
soalho alguns centímetros, suspensa por quatro pés invisíveis.
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O Patriarca estendeu os braços e, novamente, determinou:
— Retira-te!
O monte de lama podre partiu correndo, buscando misturar-se com a lama
que ficara das águas.
Tinha nascido o porco.
Capítulo LIII
Revelação
"A recordação de um primeiro beijo de homem, mesmo quando recebido
contragosto, transforma-se no espírito da mulher virgem em desejo tenaz,
absorvente, imperioso de o repetir, de renovar a sensação daquele delicioso pecado.
— COLETTE WILLY"
8 de junho
Com os olhos vermelhos de chorar, e com tremores de susto por todo o corpo
delicado, a loura Mariazinha penetrou no gabinete do pai, em cujos braços se atirou,
desatando em soluços. Trazido um copo d’água, e serenados os seus nervos
exaltados, ainda, pelo terror, a moça contou, a custo, com o rosto nas mãos, o caso
inominável.
— Eu vinha, — soluçava, entrecortando as palavras, — eu vinha da aula de
música, sozinha, com a pasta debaixo do braço, quando, ali, na rua Paissandú, perto
da praia, um sujeito se aproximou de mim, pelas costas, e, pondo o braço no meu
pescoço. curvou-me para trás, e...
— E... — interrompeu o pai, com a agonia no coração.
E a moça, terminando, com dificuldade:
— Deu-me um beijo na boca, e correu, no rumo da praia!
O caso havia sido, realmente, assim, mas o comendador insistiu na
explicação:
— E tu não o conheces?
— Não, senhor. É um rapaz alto, de roupa clara, chapéu de palha, que eu não
sei quem é. Se, porém, o encontrar, eu o reconhecerei. Intimamente aborrecido com
aquela aventura da filha, o comendador deliberou punir o atrevido, prometendo à
menina, entre carícias afetuosas:
— Deixa estar, sossega. Esse patife há de ser castigado. De agora em diante
eu passarei a acompanhar-te, e, onde o encontrares, eu quero que m'o apontes.
E, entre dentes:
— Patife!
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Passada a primeira emoção, em que o seu pudor de criatura ingênua, de
botão desabrochando para a vida, se patenteara com toda a violência da pureza
sem simulações, começou o instinto feminino a tomar o seu lugar no espírito da
moça, entre cogitações que a alarmavam. Aquele beijo, roubado por um
desconhecido, revoltara-a, indignara-a, enchera-a de ódio, na ocasião. À medida,
porém, que o tempo se passava, parecia-lhe que aquela carícia brutal aflorava, de
novo, na sua boca, numa fome angustiosa de repetição. Debalde, passando a
mãozinha pelos lábios, ela procurava escorraçar, afastar, dissipar aquela lembrança.
Esta voltava, entretanto, persistente, continua, teimosa, e de modo tal que ela
própria já buscava conservá-la no pensamento, como se conserva uma flor
encantada, cuja árvore se viu morrer no caminho.
No dia seguinte, após uma noite de angústias deliciosas, em que se casavam,
substituindo-se, o pudor e o desejo, foi com desprazer, e com um susto mal definido,
que a mocinha ouviu, recompondo com coquetaria os finos cabelos de ouro sob o
lindo chapéu de palha de Itália, o convite paterno:
— Mariazinha, estás pronta?
— Já vou, papai! — respondeu a moça, de dentro, dando os últimos retoques
na "toilette", diante do toucador.
Durante uma semana o comendador acompanhou a filha, acima e abaixo, da
cidade até o palacete, e do palacete à cidade, sem que ela descobrisse o seu
insolente desrespeitador. E se o velho capitalista sofria com essas caminhadas, com
essas idas e vindas fatigantes, mais padecia, ainda, a menina, cujos olhos se foram
cercando de um halo escuro, denunciador evidente das penosas noites de insônia.
Uma tarde, enfim, ao sair com o pai, a um passeio na praia Mariazinha tomou
um susto, que a fez parar, branca, de cera, no gramado por onde ia: diante dela, em
um grupo de rapazes, estava, de pé, o estroina, que lhe acordara a alma
adormecida na inocência, furtando-lhe na árvore virgem dos lábios o fruto venenoso
daquele ósculo! Voltando a si, a moça, como num delírio, não se conteve:
— É aquele, papai! gritou, batendo as mãos geladas pela emoção.
E, atirando-se ao pescoço do rapaz, cobriu-o doidamente, furiosamente,
desesperadamente, de beijos...
Capítulo LIV
Resposta Difícil
10 de junho
Rosto em fogo, cabelos em desalinho, Dr. Atanásio, que acaba de entrar da
rua, passeia nervosamente de um lado para outro no seu gabinete de trabalho,
agitando nas mãos crispadas uma carta que acabara de receber no escritório, e que
fora, para ele, uma punhalada no coração. À sua frente, no canapé de couro escuro,
tauxiado de prata polida, a jovem D. Eleonora esconde a face lavada de lágrimas
nas duas conchas das mãos cor de neve, soluçando de vergonha e de susto no
horror daquela situação.
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— E dizer-se que eu confiava em ti, tua honra, no teu amor, e que estava em
S. Paulo tranqüilo, sereno, na certeza de que procedias, aqui, com seriedade. com
dignidade, com a correção que me havias jurado, de joelhos, diante de Deus!... —
geme, quase chorando, o pobre esposo desesperado.
Madame procura, como um náufrago na tormenta, uma frase com que inicie a
desculpa impossível, mas o marido atalha, agitado, com os olhos em chama,
forçando-a a esconder, de novo, a cabeça entre as mãos:
— Que vergonha, meu Deus! que vergonha, agora, para mim!... Nunca mais,
na minha vida, poderei levantar o rosto diante desta sociedade, que conhece, que
sabe, que testemunhou, impassível, o teu crime, a lama que atiraste sobre o meu
nome!...
Enfiando os dedos na cabeleira grisalha, passadas largas, o notável
advogado mede, cada vez mais nervoso, a extensão do gabinete, cujos tapetes lhe
abafam os passos, quando, de repente, pára, e reclama, cerrando os punhos:
— Confessa-me. afinal: quando foi que aquele miserável, abusando da tua
fraqueza, e aproveitando a minha ausência, penetrou nesta casa?
Adivinhando nessa pergunta um caminho para a reconciliação, D. Eleonora
levanta o lindo rosto ensopado de lágrimas, e, fixando os grandes olhos úmidos nos
olhos ardentes do marido, indaga, apenas, pronta para uma explicação:
— Qual?
Capítulo LV
O Tropeiro
14 de junho
O casamento do Sr. Antônio Moreira, comerciante e fazendeiro em S.
Bernardo das Russas, cidade cearense a duzentos e quarenta quilômetros de
Fortaleza, estava anunciado para a véspera de Natal, que distava, apenas, oito dias.
Há um mês, quase, não se falava em outra coisa. A festa devia ser estrondosa, com
banda de música e danças por uma semana, e o que era mais, com uma
abundância de comidas e bebidas como não havia noticia de outra na redondeza.
Antegozando o sucesso daquele acontecimento, o Sr. Antônio chamou, uma tarde,
um antigo tropeiro, e ordenou:
— João, você vai, amanhã, à capital. Daqui lá são quarenta léguas, das
grandes. Você ponha a cangalha na burra preta; escanche, em cima, o jogo de
malas. e, chegando à cidade, receba, na casa da modista para quem vai esta carta,
o vestido da noiva.
E olhando o tropeiro, significativamente:
Mas, olhe: você deve estar aqui no sábado, à tarde. Se não, já sabe!
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O caboclo correu ao cercado, pôs a cangalha na burra, atirou-lhe por cima o
jogo das malas de couro, e partiu. Chegando a Fortaleza, recebeu a encomenda, e,
para estar em S. Bernardo no dia determinado, retrocedeu na mesma hora.
O prazo que o Sr. Moreira lhe havia dado para a viagem era, francamente,
curto. O caminho não era bom, a burra era velha, e, sexta-feira, à tardinha, faltando
ainda dezoito léguas, estava completamente estropiada. Debalde o caboclo,
sacudindo o cabresto, lhe metia o relho, rogando-lhe pragas: a alimária reunia as
forças, tentava um choto manhoso, e voltava ao mesmo passo triste, lento, fatigado.
De repente, surgiu à margem da estrada uma palhoça de lavrador. João
bateu:
— Ôi, de casa!
— Ôi, de fóra!
E apareceu à porta de esteira um sertanejo cobreado, dando as "boas-
tardes".
O tropeiro, que era mais ou menos conhecido por ali, perguntou, interessado,
se não havia um cavalo, um burro, um jumento, que lhe pudessem alugar. O dono
da casa foi franco: animais, não tinha; informado, porém, do compromisso do
viajante, lembrou-lhe, experiente, um remédio:
— Homem, você quer um conselho? E ensinou:
— Olhe, ali, atrás da casa, tem uma pimenteira. Está encarnada de pimenta.
Você. apanha uma porção delas, machuca num caco, faz uma bolota de pano, e...
e... passa!
O João aceitou a receita: machucou as pimentas, enrolou alguns molambos à
ponta de um pau, ensopou-os no molho, e passou.
Passou e despediu-se.
Daí a pouco, a burra começou a aumentar a marcha. Momentos depois,
principiou a trotar; e, finalmente, largou, de malas às costas, numa carreira brutal,
furiosa, desabalada, caminho em fora.
Seguro à ponta do cabresto, o caboclo, a principio, acompanhou o
quadrúpede. Quando, porém, este abalou na correria desbragada pela estrada
silenciosa, não houve mais recurso: estava, ele também, cansado, fatigado,
estropiado. Mas, recordando-se que tinha prometido estar com o animal em São
Bernardo das Russas, e este se podia transviar com a roupa da noiva, reuniu, num
supremo esforço todas as suas energias de inteligência e de músculos, arrancou,
num movimento rápido, o cinturão de couro, e, fazendo em si mesmo o que havia
feito com a burra, largou-se, também, pelo caminho soturno, numa carreira
desenfreada!
No dia seguinte, pela manhã, oito horas antes da que lhe fora marcada,
atravessavam os dois, o tropeiro e a burra, em disparada, as últimas ruas de São
Bernardo das Russas.
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Capítulo LVI
Parábolas
16 de junho
Em matéria de parábolas, eu conhecia, apenas, as que o Nazareno arquitetou
para edificação dos seus discípulos: a do bom samaritano, a do filho pródigo, a do
semeador, e três ou quatro outras, igualmente profundas e morais. Agora, acabo de
conhecer mais umas duzentas, contidas em um volume encantador, publicado há
dois dias pelo Sr. Dr. Afrânio Peixoto.
As "Parábolas" do brilhante romancista da "Maria Bonita" e da "Esfinge" são,
como todas as parábolas bem urdidas e meditadas, um excelente repositório de
"ensinamentos, de exemplo", de lições adaptáveis à vida dos homens. E entre elas
nenhuma é, talvez, tão humana, tão sábia, nem tão oportuna, como a do melro e do
tico-tico. "Descobri num arbusto, quase à beira do caminho, no meu jardim - escreve
o autor, - um ninho de tico-tico. Vi-o voar, quando me aproximava, e pude notar três
ovinhos depostos na fofa cama bem feita. Pareceu-me que um dos ovos era
diferente na forma e na cor, dos outros dois, mas não insisti na minha malícia. Seria
lá com o tico-tico. Não perturbei mais o mistério dessa maternidade com a minha
indiscrição. Muitos dias depois, distraído, vou pelas mesmas bandas e ouço inquieto
pipilar. Pé, ante pé, chego à espreita: o tico-tico depois de saltitar de galho em galho,
acerca-se do ninho, trazendo no bico a nutrição para a ninhada que o chamava
sôfrega. Olho paro o ninho e vejo um passarinho só, grande, bem maior que o outro,
vestido de penugem negra, de amplo bico aberto, à espera de alimento... O filho do
tico-tico era um melro!"
Entusiasmado com essa página de Afrânio Peixoto, eu acabava de lê-la para
a admiração do desembargador Bernardo Meireles quando o velho político do
Império me interrompeu, indagando:
— Como se chama essa história?
— Parábola, desembargador.
— Parábola? — trovejou o ancião, fazendo ressoar no soalho o seu bengalão
de massaranduba, e agitando, num tremor subitâneo, as barbas veneráveis. — Que
parábola, o quê!?...
E acentuou, indignado:
— Uma grande patifaria, é que é!
E chamando os oito netinhos, filhos da mesma filha, começou a distribuir
biscoitos por esse pequeno viveiro humano, em que havia, cantando, pipilando
chilreando, melros, canários, tico-ticos, cambachirras, curiós...
Capítulo LVII
A Adúltera
(João, VIII, 1-12)
20 de junho
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Regressava Jesus, naquela tarde, do monte das Oliveiras, quando, em meio
do caminho, com o sol a esconder-se, ao longe, no leito de fogo das montanhas, foi
rodeado por um pequeno grupo de fariseus, que traziam de rastros, pálida e
desgrenhada, uma pobre mulher que se debatia entre eles. Supondo confundir o
Rabino com a sua consulta inesperada, um escriba, de nome Barachias, adiantou-se
dois passos, e pediu, com fingida humildade:
— Mestre, esta mulher foi surpreendida a trair o esposo, a quem jurara
fidelidade. A lei de Moisés determina que ela seja apedrejada, e morta pela multidão.
Que devemos fazer?
Jesus, que lhe ouvira o coração antes de lhe escutar a palavra, baixou-se na
areia da estrada, e pôs-se, com o dedo, a escrever.
— Mestre — tornou o fariseu, — esta mulher foi apanhada em flagrante,
traindo o seu esposo. Devemos matá-la à pedrada, como estabelece a lei de
Moisés?
Jesus, em silêncio, continuava a escrever sobre a areia, quando, de repente,
erguendo-se, respondeu:
— Só o justo pode punir o pecador. Aquele, pois, que, dentre vós nunca
pecou, atire a primeira pedra!
A estas palavras, Barachias desapareceu, e, com ele, um a um, aqueles que
o acompanhavam, ficando no caminho, apenas, Jesus e a pecadora. Agradecida e
assustada, ia a mísera atirar-se de joelhos para beijar as sandálias do Mestre,
quando o Rabino a deteve pelos braços, dizendo-lhe, severo:
— Nada me deves, mulher. Em verdade te digo, que as leis de meu Pai são
mais implacáveis do que as leis de Moisés. Poupei-te a vida porque a própria morte
não puniria a tua falta!
E, repelindo-a com a mão, suavemente:
— Anda; vai! A vergonha do teu crime, na tua velhice, será, na terra, o teu
castigo!
E, baixando os olhos, continuou, sozinho, a caminho de Jerusalém...
Capítulo LVIII
Obediência
23 de junho
Mal saída do colégio, para onde entrara ainda criança, isto é, desde que o pai,
o comendador Anacleto, enviuvara, foi a encantadora Maria Lúcia residir no palacete
recentemente alugado pelo velho capitalista em uma das ruas menos movimentadas
de Botafogo. Deslumbrada com a liberdade conquistada à força de estudo, de uma
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aplicação que lhe granjeara o primeiro lugar na sua turma, apenas uma coisa a
desgostou: foi a recomendação que lhe fez o pai, severo e prudente:
— Olha, minha filha; esta casa é tua; governa-a como se fosses a dona. Uma
coisa, apenas, eu te peço: vive isolada, sem relações de amizade, e nunca, em
hipótese alguma, incomodes os vizinhos.
E beijando-lhe a testa clara. coroada por uns lindos cabelos castanhos:
— Muito juizinho; ouviu?
Duas semanas não se tinham passado sobre a libertação de Maria Lúcia,
quando uma quadrilha de ladrões, vendo, uma tarde, sair as criadas, que a jovem
patroa indultara naquele dia, resolveu assaltar, pulando o muro dos fundos, o
palacete do comendador. Descalços, em mangas de camisa, chapéu em cima dos
olhos, os miseráveis penetraram na casa e, desrespeitando a fraqueza da moça,
praticaram toda a sorte de depredações, esvaziando as gavetas, arrombando os
cofres de jóias, carregando, enfim, com todas as coisas de valor que havia na
residência do honrado capitalista.
À noite, ao abrir a porta, de regresso ao lar, o comendador teve um
pressentimento triste, ao ver a casa às escuras. Abertas, porém, as lâmpadas,
recuou, horrorizado, para, em seguida, precipitar-se, de compartimento em
compartimento, chamando, aflito, pela menina:
— Maria Lúcia? Maria Lúcia? Onde estás, minha filha?
No último quarto da casa, esperava-o uma surpresa maior: sentada no leito,
desgrenhada pálida, com as vestes em desalinho, Maria Lúcia chorava, com a
cabeça nas mãos.
— Minha filha da minh'alma! — gemeu o velho, atirando-se para ela. — Que
foi isso?
— Os ladrões!... - explicou a moça, num gemido.
E enxugando os olhos;
— Levaram tudo: as roupas, as jóias, a louça, tudo, enfim. Depois...
— Depois?... — rugiu o velho, com os olhos esbugalhados.
— Desgraçaram-me!... — concluiu a moça, prorrompendo em soluços.
— Desgraçaram-te?... — gritou o velho, de dentes e punhos cerrados, com
um rugido soturno, cavo, de fera atingida no coração.
E após um instante de silencio desesperado:
— E como foi? Amarraram-te?
— Não, senhor.
— Subjugaram-te?
— Não, senhor.
— Taparam-te a boca?
— Não, senhor.
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— E por que não gritaste? - berrou o ancião, parando, de súbito, no meio do
quarto.
E a moça, levantando para ele, num soluço, os lindos olhos machucados de
lágrimas:
— Papai não disse que eu não incomodasse os vizinhos?
Capítulo LIX
As Loções Miraculosas
28 de junho
A coisa mais fácil de inventar, é. neste mundo, o tônico para cabelo. Não há
barbeiro por mais modesto e preguiçoso, que não possua a sua formula prestigiosa,
destinada a fazer rebentar uma cabeleira encaracolada na calva mais rebelde e, se
possível, numa bola de bilhar. Quanto à utilidade real dessas loções, desses tônicos,
dessas tinturas miraculosas, prova-a o número, sempre crescente, de carecas,
existente no Rio de janeiro.
O mais curioso é, no entanto, o entusiasmo, a fé, a convicção, com que os
"fígaros" fazem a propaganda do seu preparado. Concluída a barba do freguês, o
bárbaro, empunhando ainda a navalha, propõe à vítima:
— Vamos, agora, a uma fricção do nosso tônico?
Agredido assim, o freguês encara o agressor, medindo-o de alto a baixo, com
raiva; ao dar, porém, com os olhos na lamina faiscante, aberta a dois palmos do seu
pescoço, capitula, forçosamente, concordando, desarmado:
— Ponha!
Autorizado a cometer o crime nefando, o barbeiro passa, então, a fazer o
elogio do seu remédio.
— É um prodígio, senhor doutor! — assegura. — Se ele caísse numa pedra,
no chão, a pedra criaria cabelo!...
O mais curioso propagandista desse gênero foi, entretanto, o de que deu
noticia, há muitos anos, na imprensa do norte, um saudoso jornalista paraense.
Apanhado, certa vez, de surpresa, em uma cadeira de barbearia, esse mártir foi
intimado, de súbito, pelo homem da navalha:
— Então, uma loçãozinha para nascer o cabelo; não?
O desventurado ia recusar terminantemente a proposta, mas o barbeiro
atalhou, abrindo a navalha:
— É um verdadeiro milagre, o meu preparado. Basta cair na calva, para o
cabelo começar, logo, a nascer. É assombroso! É prodigioso! É formidável!
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E enquanto esfregava na cabeça do freguês a água do pote perfumada,
contou:
— O senhor quer ver o que é a minha loção? Uma vez, estando eu a fabricar
este preparado, peguei um jarro, que estava cheio dele, e coloquei-o em uma
prateleira, pregada à parede. Debaixo da prateleira, que é alta, ficava o meu baú, um
baú grande, de couro curtido, todo pregueado, daqueles antigos, sólidos, enormes,
que se faziam em Portugal. Pois, bem; o jarro, que estava rachado, começou a vazar
o liquido na prateleira, que o fazia cair, por seu turno, sobre o baú; e de tal forma
que, na dia seguinte, ao abrir a porta encontrei o baú...
— Molhado. não? — interrompeu o jornalista.
E o fígaro, sério:
— Não, senhor; coberto de cabelo!
E esfregou-lhe a careca, com força.
Capítulo LX
A Vingança
30 de junho
O caboclo Saturnino, agricultor em Jacarepaguá, era, por natureza um
homem morigerado. Criando os seus porcos, as suas cabras, os seus perus, as suas
galinhas, fazia o possível para que a bicharada não saltasse a cerca, indo devastar
as plantações dos vizinhos. Se ele se indignava até à inconveniência quando um
bode alheio lhe penetrava o roçado, era natural que os outros se revoltassem,
também, quando vítimas de idênticas depredações.
Não obstante os cuidados de todo o dia, tapando, endireitando, recompondo
os menores buracos do cercado, foi o Saturnino surpreendido, uma tarde, pela falta
de uma das galinhas mais gordas do terreiro. Experiente como era, saiu o caboclo
pelo fundo do quintal, e, ao olhar para a cozinha do seu compadre Teodoro Maniva,
descobriu, lá, a sua galinha, que estava sendo depenada pela dona da casa.
Saturnino rodeou o cercado, bateu à porta da frente, e queixou-se do que lhe haviam
feito. Positivamente, aquilo não era sério, nem digno de um homem de bem...
Teodoro sorriu, e desculpou-se:
— Ora, compadre, para que brigar? Vamos entrar num acordo. A galinha já
está na panela; venha jantar, hoje, comigo...
Inimigo de questões, Saturnino aceitou o convite, esperou a hora, jantou,
despediu-se, e dirigiu-se para casa, de cabeça baixa, imaginando o meio de tomar
desforra do seu compadre Teodoro.
Esta, não foi difícil. A Brígida, mulher do Teodoro, era uma cabocla forte,
rochonchuda, atarracada, cujos olhos faiscavam toda a vez que divisavam, na vila
ou nas estradas, o vulto do Saturnino. O caboclo recordou-se disso e, com o
propósito da represália, resolveu explorar essa fraqueza da comadre. E tanto fez,
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tanto virou, tanto mexeu, que, um dia, ao voltar do roçado, o Teodoro não encontrou
mais a mulher. Desconfiado, rumou para a casa do Saturnino, e bateu.
— Quem é? — perguntaram de dentro.
— Sou eu! — trovejou o Teodoro.
Saturnino apareceu na soleira do casebre e o outro indagou, feroz:
— A Brígida não está aqui?
O caboclo sorriu, batendo-lhe no ombro:
— Está aí, compadre; ela está aí dentro.
E tomando-o pelo braço, puxando-o para a cabana:
— Entre, compadre; fique para dormir com a gente...
Capítulo LXI
Altruísmo
("Diário" de uma senhora recentemente chegada da Europa)
2 de junho
"Domingo, 6. Regresso, enfim, à pátria querida, e aos braços do meu marido.
Após dois anos de ausência, embarquei, ontem, às 5 horas da tarde, em Lisboa,
aonde cheguei anteontem, de Paris. O navio vai repleto de passageiros,
principalmente de emigrantes, embarcados em Vigo e no Porto. O mar apresenta-se
bem, e a viagem está sendo feita sem novidade.
Segunda-feira, 7. — Tudo continua bem a bordo. Os passageiros de 1ª
classe, na sua maior parte argentinos, bebem e jogam, no "bar". No tombadilho,
alguns ingleses, que se dirigem ao Rio e a Buenos-Aires, fumando displicentemente.
Algumas francesas que conduzem vestidos feitos para a sociedade carioca; e três
ou quatro famílias brasileiras, que se conservam nos seus camarotes.
Terça-feira, 8. — A viagem continua excelente. Em palestra com o imediato,
este me informou que vão a bordo, para o Rio, Santos, Montevidéu e Buenos-Aires,
1.275 passageiros. Uma verdadeira cidade flutuante, em que não há cinco pessoas
que reciprocamente se conheçam!
Quarta-feira, 9. — O mar permanece calmo, e o céu prenuncia bom tempo. À
mesa do almoço, notei que o comandante olhava insistentemente para mim,
distinguindo-me entre as outras senhoras. Achei esquisita a insistência, e fiz-me de
desentendida. À noite, não desci para o jantar.
Quinta-feira, 10. — O comandante continuou, hoje, à mesa, a olhar-me com
desusado atrevimento, a ponto de esquecer-se do talher e do whisky. É um inglesão
alto, robusto, de quarenta e poucos anos presumíveis, bigode louro, tez corada e
fina, olhos azuis como o oceano. Um verdadeiro tipo de marujo britânico. Entretanto,
a sua insistência irrita-me. Por quem me tomará ele?
Sexta-feira, 11. — Após o jantar, o comandante Wiliam desceu da casa de
comando ao tombadilho, procurando conversar comigo, em inglês. Fiz todo o
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possível para impedir uma declaração indelicada, não o conseguindo. Não é que o
homem está mesmo apaixonado?
Sábado, 12. — Esta situação começa a incomodar-me. O comandante
passou o dia quase todo a perseguir-me, insistindo em declarar-me a sua paixão
desordenada. Tenho a impressão de que o homem enlouqueceu. E eu, sozinha,
sem um amigo, sem um conhecido que me defenda! Como é perigoso para uma
senhora viajar só!...
Domingo, 13. — O comandante enlouqueceu, positivamente. Hoje, à tarde,
aproveitando um momento em que ficamos sós no salão de música, apertou-me os
pulsos com violência, dizendo-me que não lhe é possível resistir mais. Diz ele que,
se eu me não entregar à sua paixão louca, ele meterá o navio a pique em pleno
oceano, fazendo perecer todos que nele viajam, Dai-me forças, meu Deus! Dai-me
coragem!
Segunda-feira, 14. — Que dia horrível, este! Como um louco, o cabelo e o
bigode revoltos, os olhos inchados pela insônia e pelo desejo, o comandante
declarou-me, trêmulo sob palavra de honra, que, se eu não for à meia-noite de hoje,
ao seu camarote, meia hora depois ele fará explodir o navio, em uma catástrofe de
que se não salvará ninguém. Que situação a minha! Tende piedade de mim, minha
Nossa Senhora da Penha! Iluminai-me, minha Virgem Maria!
Terça-feira, 15. — Salvei da morte 1.275 passageiros! Não haverá outros
navios correndo perigo no mar?"
Capítulo LXII
Modas...
5 de julho
A imprensa carioca tem mostrado, nestes últimos tempos, um desusado
interesse pelo Japão. "A Noite" mantém em Tóquio um correspondente epistolar, o
Sr. Carlos Abreu, e não há quem não tenha lido, e quem não admire, no Rio, as
crônicas deliciosas que o nosso cônsul em Kobe, o Sr. Osório Dutra, está mandando
para "O Imparcial". Despertada assim a fome de pitoresco do publico, não há, hoje,
quem não deseje conhecer a terra do Mikado, com as suas "geishas", os seus
crisântemos, as suas cegonhas azuis e as suas cerejeiras cor de rosa, enfim, o
Japão verídico ou de legenda, com os seus pequenos leques de seda e os seus
grandes templos de porcelana.
Entre os curiosos desse gênero está, como era natural, o antigo engenheiro
da Central do Brasil, Dr. Guilherme Viana, cuja velhice decorre, hoje, no meio da
melhor prosperidade econômica, ao lado da esposa, a virtuosa Dona Saturnina, da
filha viúva, D. Odete Meireles, e da sua encantadora sobrinha Maria Otávia, botão de
rosa de dezoito pétalas, que é, pode-se dizer, uma segunda filha do casal.
Interessado, dessa forma, pelo Império do Sol Nascente, o velho engenheiro
perguntou-me, outro dia, se eu possuía nas minhas estantes alguma obra sobre o
Japão. Eu lhe falei em cinco ou seis, entre as quais as dos nossos patrícios Drs.
Oliveira Lima, Luiz Guimarães e padre Feitosa, e o meu amigo escolheu:
— Mande-me o livro do padre; deve ser mais fiel, mais de acordo com a
verdade. E mande-me outro qualquer, de autor estrangeiro.
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No dia seguinte remetia-lhe eu a "Viagem ao Japão", de monsenhor Feitosa, e
uma obra de Mabel Bacon, americana, traduzida, há anos, para o francês, com o
titulo de "Jeunes filles et femmes au Japon". E ontem fui visitar o meu velho amigo, a
quem encontrei com os dois volumes em cima da mesa, rodeado das três senhoras
que lhe compõem a totalidade da família.
— Excelente livro, o do padre; — observou-me, de sopetão, o meu velho
camarada. — Achei apenas um pouco exagerado, naquela parte em que ele diz ter
visto os soldados de um destacamento tirarem a farda, e descansarem, nus, à vista
de toda gente, ao lado das baionetas.
— E o outro livro, o da americana? — indaguei.
— Também tem exageros, excessos abomináveis, como, por exemplo, esse
em que a autora conta que, no interior do país, as camponesas trabalham ao sol,
cultivando a terra, tendo sobre o corpo unicamente um chapéu de abas largas, e, à
cintura, um leque, amarrado por um cordão.
— Como é essa vestimenta? - indagou
D. Odete, intervindo.
— Um chapéu de palha, e um leque à cintura, — repetiu o pai.
— E nada mais! — acentuou.
A essa informação, D. Saturnina juntou as gordas mãos sobre o estômago,
espantada:
— Meu Deus! Parece até "toilette" do Municipal!
Mas não terminou. Escandalizada com aquela heresia, a viúva interrompeu-a,
protestando, logo, não em nome da decência, mas em nome do bom gosto:
— Oh, mamãe, assim, também, não!
E acrescentou, com horror:
— Onde a senhora já viu a gente ir ao Municipal de chapéu?!...
Capítulo LXIII
Os Suspensórios
8 de julho
Um advogado ilustre, pessoa da minha estima, contava-me, há dias, um caso
curioso que o impressionara profundamente. Procurado por uma senhora, que
desejava divorciar-se, fizera ele a petição competente, com todo o segredo, e foi
levá-la ao juiz. E regozijava-se com a surpresa que ia causar ao péssimo esposo da
sua cliente, quando abriu a boca estupefato: no cartório havia, já, uma petição do
marido, que apelava para o mesmo recurso judiciário apoiado nas mesmas razões
em que se apoiava a mulher. E, como conversa puxa conversa, contou-me o ilustre
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causídico uma história interessante, que ele havia lido, poucos dias antes, em certa
revista estrangeira.
Homem de gênio desigual, o Sr. Fabiano preparava-se para sair, quando, de
repente, começou a perder a paciência. Faltava-lhe o suspensório, que devia estar
preso à calça vestida na véspera, e era com indignação que ele berrava, com as
mãos segurando o cós:
— Não o viste, Maria?
A criada respondia-lhe negativamente e ele trovejava para a mulher:
— Não o viste, Marcela?
De repente, coordenando as idéias, ajustando o "puzzle" das lembranças
recentes, calou-se, acalmando completamente a tempestade. E ia fazer o possível
para que ninguém falasse mais em tal coisa, quando a mulher chegou à porta do
quarto, avisando:
— Fabiano, aí tem uma pessoa que quer falar contigo, com urgência.
— Quem é?
— O Sr. Octaviano, da farmácia.
Um minuto depois, mostrando nas olheiras escuras as infinitas torturas de
uma noite de insônia, entrava no quarto, usando da intimidade que ligava as duas
famílias, o Sr. Octaviano, farmacêutico de renome. Estava soturno, grave,
circunspecto, e, sentindo-se a sós com o amigo, explicou, misterioso, o motivo
daquela visita matinal:
— Você sabe — começou, — que eu tinha absoluta confiança em minha
mulher. Em minha casa não entrava, jamais, outro homem. Entretanto, ao penetrar,
ontem, no nosso quarto de dormir, encontrei isto debaixo da cama. Veja!
E, dizendo isso, arrancou do bolso do sobretudo, que não tirara, um par de
suspensórios azul, com fivelas de prata, que exibiu, confiante, aos olhos espantados
do amigo.
A essas vozes, porém, a porta escancara-se e, de um pulo, aparece no meio
do quarto uma figura de mulher. Era D. Marcela que, tendo visto e ouvido tudo pela
fechadura, bradava, branca de cólera:
— Mas, que é isso, afinal? Esse suspensório é o teu, que estas procurando
há meia hora!
E cerrando os punhos, no rumo do esposo:
— Indigno! Canalha! Miserável! Não fico nesta casa mais, nem um minuto!
Cachorro!...
E prorrompendo em soluços:
— Bandido! Infame! Desgraçado!..
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Atarantado com o que acabava de ouvir, o Sr. Octaviano recuara até à
parede, boquiaberto. Pálido, tonto, desorientado, o Sr. Fabiano fizera outro tanto, em
sentido contrário. E ia a comédia por essa altura, com a moça a arrancar
furiosamente os cabelos no meio do quarto, quando apareceu à porta a criada,
trazendo alguma coisa nas mãos.
— Patrão, achei os seus suspensórios.
A patroa parou de chorar, estacando, de olhos escancarados, pálida, de cera.
E a criada continuou:
— Estavam na secretária da senhora, ao lado do canapé.
Recobrando animo, o Sr. Fabiano encaminhou-se, rápido, para a rapariga, e
vendo que os suspensórios eram cinzentos, e não azuis, como os seus, trovejou,
furibundo:
— De quem são estes suspensórios, senhora?
Mas não obteve resposta. D. Marcela. apavorada havia saído pela porta dos
fundos.
Capítulo LXIV
A Baronesa
12 de julho
Um médico ilustre, de incontestável influencia no seio da família carioca, está
utilizando, ultimamente, o seu prestigio pessoal para que as senhoras eliminem, de
uma vez, o habito de pintar os cabelos. Acha ele que uma cabeça alva, ou, pelo
menos. polvilhada de prata, é um sinal de insubstituível respeitabilidade, que se não
pode, de modo nenhum, esconder ou disfarçar. E tamanho tem sido o resultado
dessa campanha metódica, persistente, silenciosa, contra a vaidade feminina, que
sobem a dezenas, já, as senhoras que se reconciliaram com o destino,
conformando-se com as conseqüências inevitáveis da idade.
Esse costume de mudar a cor dos cabelos não é, entretanto, um vício dos
nossos tempos. As atenienses conheceram-no, conheceram-no as mulheres de
Veneza, criadoras do "louro veneziano". e não houve corte européia posterior à
Renascença em que não se procurasse um processo de ocultar à curiosidade do
mundo, sempre impiedoso, a neve que nos avisa, alvejando-nos a cabeça, que é
chegado, enfim, o triste inverno da vida... Há trinta anos, ainda, era isso em voga no
Rio de janeiro. E era sobre isso mesmo que eu meditava, uma destas tardes, ao
despedir-me da minha veneranda amiga a Sra. baronesa de Caçapava, cujos oitenta
e seis anos constituem, em nossos dias, uma das relíquias mais preciosas da mais
alta sociedade do Império.
Estendida na sua "chaise-longue", com os pés, pequeninos e engelhados
como duas flores murchas, abrigados sob uma delicada toalha de seda, a boníssima
titular sorria, carinhosa, com a sua boca muito pequena, escondida em um dos vales
do rosto recortado de rugas, quando eu lhe falei nos inícios do nosso conhecimento.
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— O senhor andava pelos trinta anos; não era, conselheiro?
Eu fiz as contas, mentalmente, embaraçando-me nos algarismos.
— Não estou certo, Sra. baronesa; não estou certo — respondi. — Recordo-
me, porém, que, certa vez, ao vê-la, fiquei impressionadíssimo com a sua figura. A
Sra. baronesa, nesse tempo, lembro-me bem, tinha o rosto ainda moço, mas
apresentava na cabeça, já, acentuando a sua beleza, numerosos fios de prata.
— Foi em 1871, — confirmou a velha fidalga, sorrindo benevolamente com a
sua boquita de criança, encolhida e funda, privada de todos os dentes. — Foi em
1871; eu tinha, então, trinta e sete anos.
— De outra vez que a vi, — tornei, — o que mais me impressionou foi, ainda,
a beleza do seu cabelo. A sua cabeleira, sempre farta, abundante, maravilhosa, era,
ainda, inteiramente negra.
A baronesa olhou-me novamente, com um sorriso de saudade, que era um
doce perdão para nós ambos, e acentuou, bondosa:
— Foi em 1880; eu tinha quarenta e seis...
E, olhando-me significativamente, pediu-me, com a vergonha brilhando, como
uma brasa, na cinza fria dos olhos:
— Cubra-me os pés, conselheiro; sim?
Capítulo LXV
A Fome no Amazonas
15 de julho
São alarmantes, aflitivas, desesperadoras, as notícias provenientes da
Amazônia, relatando o que têm sido, ali, os horrores da fome. Reduzidas à miséria
extrema, centenas de famílias vivem, naquelas regiões inóspitas, sem remédios,
sem roupa, sem alimentação, num retrocesso forçado à vida selvagem. As casas,
que outrora permaneciam abertas à margem das estradas e dos rios, fecharam-se
de todo, para que o viajante não veja, de passagem, a nudez das pessoas que nelas
habitam. Milhares de senhoras, de moças. de meninas, refugiaram-se nos
aposentos, por não terem um andrajo, um molambo, um trapo, sequer, para velarem
as partes vergonhosas do corpo. E, se a carência de vestidos é tamanha, que se
poderá dizer, então, da falta de alimentos? O episódio narrado pelo Sr. deputado
Pereira Teixeira. que dele teve notícia por um amigo recentemente chegado do Acre,
é desses que dissolvem em lágrimas as fibras mais duras do coração.
Seringueiro destemido, o Antônio Cajapió havia resistido, quanto possível, na
sua barraca de Santa Ifigênia, à fúria da calamidade. Avisado de que os vapores de
Manaus não iriam mais àquelas paragens, levando mantimentos, enquanto a
borracha não subisse de preço, meteu-se ele no seu casebre, a consumir o que lhe
restava: carne seca, feijão, farinha, bolachas, e, quando acabou tudo, sentou-se na
canoa, e pôs-se de viagem. descendo o rio.
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Ao fim de dois dias, descobriu, à beira da grande estrada fluvial, um barracão,
que se achava completamente fechado. Intrigado, encostou a embarcação, amarrou-
a a uma árvore da ribanceira e, como não tivesse mais um punhado de farinha para
a fome do dia, resolveu disputá-lo, mesmo pela violência, aos moradores daquela
tapera. Com esse intuito encaminhou-se para a porta, e bateu:
— Ó de casa!
Ninguém respondeu:
— Ó de casa! — insistiu.
Como o silencio continuasse, o caboclo procurou uma fresta da porta, e
olhou: dentro, estiradas na paxiúba do soalho, estavam, completamente despidas, a
dona da casa, mulher ainda jovem, e duas irmãs desta, que lhe faziam companhia.
Espiando pela fresta, viu ele que a família se encontrava em conciliábulo,
procurando, talvez, um meio de atender ao viajante, quando não havia mais, na
casa, quem tivesse um vestido ou um pedaço de pano para a nudez. De repente,
como se tivessem deliberado alguma coisa, ele viu, do seu ponto de observação,
que a dona da casa se afastava do grupo e, tímida, assustada, vergonhosa, chegava
à mesa, tomava um prato vazio, que ali se achava, e, colocando-o no lugar em que
devia estar a folha de parreira, encaminhar-se para a porta. Um minuto mais, a porta
abria-se, e o caboclo recuava, espantado, ante o tipo escultural que lhe caía sob os
olhos e cujo corpo só era vedado à sua curiosidade no ponto em que estava coberto
pelo prato.
— Que deseja? — indagou a cabocla, de olhos baixos, desconfiada.
O viajante examinou, por um instante, a mulher, pensou dois minutos, e, sem
se conter, trovejou:
— Almoçar!...
À tarde, quando a canoa partiu, as três mulheres juntavam com uma vassoura
os cacos da louça. espalhados no chão...
Capítulo LXVI
Os "Reddis"
18 de julho
A alma humana é uma caverna tão ponteada de esconderijos e retorcida de
zig-zags que ainda não houve na terra um homem, por mais atilado e meticuloso,
que chegasse a conhecer a metade, sequer, do seu próprio coração. Quando a
gente supõe haver encontrado uma vida simples, singela, sem complicações nem
subterfúgios, eis que se abre diante de nós um abismo, um vulcão, uma boca
subterrânea, capaz de engolir o peregrino que lhe busca desvendar o mistério.
Mesmo no que diz respeito à educação, isto é, às qualidades adquiridas pelo
indivíduo, essas surpresas não são raras nem, geralmente, pequenas. E era disso
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mesmo que eu me convencia, mais uma vez, há poucos dias, ao voltar da última
recepção do coronel Anfrísio Guimarães, pai do Dr. Claudemiro Guimarães cujo
nome é, pode-se dizer, um dos orgulhos da nova geração de advogados brasileiros.
Homem de sólidos capitais, o coronel, assim que o filho casou, teve, não se
sabe por que, uma desinteligência com a esposa, a velha e virtuosa D. Cherubina,
passando a residir no palacete do novo casal, cujas despesas, de nove contos por
mês, são enfrentadas galhardamente pela sua fortuna. Mme. Claudemiro, a nora,
tem pelos cinqüenta anos do sogro uma adoração filial. O filho, o Dr. Claudemiro,
respeita-o duplamente como pai, e, principalmente, porque o velho lhe desculpa
sempre, como os bons pais, perante a esposa, as suas longas vigílias jurídicas fora
do lar. E como a vida lhes corra, a uns e a outros, como um ribeiro japonês entre
margens de crisântemos eu me dou, de vez em quando, ao prazer de visitá-los,
concorrendo para a enchente das suas salas nas costumeiras recepções dos
domingos.
Um desses dias, fui. E conversávamos em uma roda sobre costumes
orientais, quando, de repente, a propósito de casamentos, eu me lembrei dos
"reddis", povo da Índia meridiona1, cuja história havia lido na véspera, e contei, com
certo desvanecimento:
— Os "reddis", nesse particular, são originalíssimos. Entre eles, a mulher de
quinze ou vinte anos pode esposar um menino de seis, o qual será criado por ela.
Enquanto, porém, a criança não cresce, ela fica, por seu turno, entregue a um
parente do marido, geralmente ao pai deste, seu sogro, o qual poderá substituir o
filho em todas as eventualidades. E este esposo interino preenche de tal forma as
suas funções de tutor, que o marido, quando cresce encontra, já, a casa repleta de
crianças, que, sendo seus filhos, são. também, seus irmãos.
Como se fizesse em torno de mim um silencio geral, eu o aproveitei,
continuando:
— Esses maridos não ficam, porém, prejudicados; sendo as suas mulheres
mais velhas do que eles, e os "seus" filhos quase da sua idade, eles terão, mais
tarde, a compensação, fazendo com os filhos o que o pai fizera com eles. E assim
vivem muito bem.
Enquanto eu contava essa história, notei que alguém se afastava do grupo. E
quando acabei, fiquei estarrecido com uma surpresa: junto de mim, com a minha
bengala e a minha cartola na mão, estava o coronel Guimarães, que me perguntava,
pálido, com ligeiros tremores no "cavaignac":
— O conselheiro pediu o seu chapéu?
Capítulo LXVII
Fortunato
22 de julho
Em luta permanente com a adversidade, Fortunato segurou, uma noite, entre
as mãos, a cabeça da mulher, e confessou o seu propósito:
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— A fome, como tu vês, bate-nos à porta. Sem pão e sem amigos, a vida,
neste povoado, é-me, de todo, impossível. É preciso, pois, que eu me prive do teu
carinho, e parta, sozinho, pelo mundo, em busca de terra menos ingrata. Tudo que
possuímos dar-te-á, com certeza, para uns vinte ou trinta meses. Com o teu trabalho
honesto, poderás dilatar a utilidade desses recursos, fazendo-os durar cinco anos.
Se, dentro desse prazo, eu não tornar aos teus braços e ao teu amor, considera-te
viúva, porque, de certo, eu morri.
Na manhã seguinte, após um esforço inaudito para libertar-se das cadeias de
cristal e mármore que eram as lágrimas e os braços da esposa jovem, Fortunato
punha às costas, preso ao seu cajado de caminhante, uma trouxa com a roupa
indispensável, e desaparecia, limpando os olhos úmidos na manga da camisa
grosseira, na curva da estrada por onde passara, há um ano, trazendo a noiva pela
mão.
Errando de terra em terra, de fazenda em fazenda, eram-lhe companheiros,
por toda a parte, o infortúnio impiedoso, a má sorte inclemente, os contratempos
inevitáveis. Debalde se esforçava, infatigável, para juntar um pecúlio, amontoando
algumas moedas com que levasse ao lar um pouco de felicidade e fartura. As suas
tentativas mais tímidas, mais simples, mais modestas, eram, sempre, como uma
árvore infeliz, cujas folhas fossem dispersadas, ainda tenras, por um sopro de
tempestade.
Ao fim de quatro anos, porém, como por um milagre, tudo mudou. As moedas
multiplicaram-se em seu bolso, acumulando-se, amontoando-se, como se a fortuna,
arrependida de tanta avareza, se tivesse predisposto a compensar a usura anterior
com um gesto de espantosa prodigalidade.
Meses depois, nas vésperas, quase, do prazo concedido à mulher, Fortunato
encheu de moedas o seu grande surrão de couro, prendeu-o à cintura, e, velho,
barbado, desfigurado pelos sofrimentos inomináveis, tomou, a pé, o caminho da
terra natal. Ao cabo de quatro semanas, com os pés sangrando, viu, enfim, da curva
da estrada por onde se fora cinco anos antes, a sua aldeia e o seu lar. Trôpego,
magro, faminto, mas disposto. mesmo assim, a dar uma sensação de alegria à
companheira querida, encaminhou-se, de manso, para a porta e bateu. Uma criança
de quatro anos, linda e forte, em quem se repetiam os traços inolvidáveis da esposa,
surgiu na sala pequenina, e chamou para dentro:
— Papai!
— Heim? — respondeu, do compartimento contíguo, uma voz masculina.
— Aqui está um homem — informou, alto, a pequenita.
Fortunato cambaleou numa síncope,. encostando-se ao portal, para não cair.
Antes, que o dono da casa aparecesse, entregou o saco de ouro à criança, retomou
o seu bordão de peregrino, e partiu...
Capítulo LXVIII
O Limo
24 de julho
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Mme. Costa Mafra particulariza-se na sociedade carioca pela originalidade
das suas perguntas, que lhe colocam o marido, de vez em quando, nas piores
situações. Roda em que ela se encontre, dissolve-se invariavelmente com uma das
suas consultas inesperadas, a mais simples das quais poria em dificuldades, talvez,
o mais hábil dos sofistas. Como, porém, todo veneno possui um antídoto, Dona
Arabela tem, para neutralizar as suas perguntas indiscretas, as respostas
irretorquíveis do conselheiro Brazilino do Amaral.
Desse duelo entre a inocência e a esperteza, ou, melhor, entre a ingenuidade
e a experiência, fui eu próprio testemunha, há dias, no salão de chá do Jockey-Club,
quando, a propósito do Sr. deputado José Bonifácio, que havíamos encontrado à
porta, Mme. Costa Mafra perguntou:
— Mas, é verdade, conselheiro: por que é que os homens têm o rosto
ponteado de barba, de pelos irritantes e incomodatícios, quando as mulheres
possuem, em geral, o delas macio, liso, limpo, sem um fio de cabelo?
O conselheiro olhou o Dr. Mafra, que o fitava suplicante, passou a mão pelas
barbas veneráveis, e começou a explicar, com os olhos na toalha:
— Como a senhora sabe, o homem foi feito de barro, e a mulher foi tirada da
sua costela.
— Isto eu sei.
— Pois, bem. Feito em primeiro lugar, com alguns punhados de barro
umedecido, o homem foi posto a secar ao sol, como todas as obras de cerâmica. A
senhora sabe, porém, que, todo barro molhado, quando não apanha sol
convenientemente, cria limo; e foi o que aconteceu ao homem, cujo rosto, na
ocasião de ser o corpo submetido ao fogo solar, ficou sombreado por um ramo de
árvore, na oficina do Paraíso.
— E a mulher?
— A mulher, não. Tirada da costela do homem, e posta com o rosto para o
sol, ficou naturalmente, com o cabelo apenas na cabeça, posta à sombra, mas, em
compensação, sem o limo na face.
D. Arabela descansou o queixo de bonequinha alemã no polegar e no
indicador da mão esquerda, e, ao dar com os olhos no próprio braço de mármore
posto a descoberto até a "avenida da ligação", insistiu:
— E em toda a parte aonde o sol não chegou, criou limo?
O conselheiro ia responder, mas, ao abrir a boca, fechou-a, de novo. É que,
defronte dele, com a xícara suspensa e os olhos fuzilantes, o Dr. Mafra intimava,
com significativos tremores na voz:
— Conselheiro, tome o seu chá...
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Capítulo LXIX
A Virgem
27 de julho
Após aquela noite de festa, em que dançara desesperadamente com todos os
rapazes que lhe pediam essa honra, amanheceu mademoiselle Beatriz com febre
alta, e uma tosse forte, com grandes dores no peito. Chamados os Drs. Miguel
Couto, Austregésilo e Aluísio de Castro, foi debalde que eles recorreram, em
conjunto, às possibilidades da ciência: ao segundo dia a encantadora brasileirinha
falecia, fazendo desfilar pela rua D. Mariana o mais suntuoso enterro de virgem que
já se viu no bairro de Botafogo.
Quebrados, assim, os grilhões que a prendiam a este mundo de "fox-trots" e
"maxixes", foi mle. Beatriz tão alva como a de Dante, bater, sorrindo, à luminosa
porta do céu. E foi um alvoroço, como dificilmente se imagina. Tratando-se de um
acontecimento raro, e que se torna cada vez menos freqüente, a recepção das
virgens se reveste, no céu, de uma sumptuosidade excepcional. Para ver, e saudar,
de perto, a heroína, juntam-se no vestíbulo dos empíreo, agitando palmas de rosas,
todos os bem-aventurados. E mal a recém-chegada põe o pé no batente florido,
rompe por todo o Paraíso o coro dos anjos, cujas vozes se misturam, doces, meigas,
comoventes, às das onze mil companheiras de Santa Úrsula.
Era essa a recepção que aguardava mle. Beatriz, quando ia ficando tudo
inutilizado por um incidente imprevisto. Anunciada pelos serafins, de longe, do carro
de ouro das nuvens, a aproximação da venturosa, ordenou S. Pedro que Santa
Cecília e Santa Matilde o ajudassem no reconhecimento da nova eleita de Deus,
estabelecendo a sua identidade. Para isso era preciso, entretanto, despojá-la da sua
grinalda, dos seus enfeites, das suas complexas roupas terrenas, deixando patente,
com a pureza do seu corpo, a inocência do seu coração.
Assim, porém, que principiou este serviço delicado, as santas recuaram,
escandalizadas. E, entreolhando-se, chamaram São Pedro.
— A moça não é esta, meu santo!
O chaveiro correu, aflito, e fixando os olhos puros no corpo virginíssimo de
Beatriz, indagou, espantado:
— De que foi que você morreu, minha filha?
— De pneumonia, meu santo!
O apostolo encarou-a, incrédulo, e insistiu:
— Você não está enganada, não?
— Não, senhor.
— Você não morreu em algum desastre de estrada de ferro, de alguma queda
de aeroplano, de algum encontro de automóveis?
— Não, senhor! — teimou a moça, firme, sacudindo a cabeça.
— Que significam, então, — tornou o santo, — essas equimoses no seu colo,
no seu estômago, no seu ventre, nas suas pernas como quem foi arrastada de
bruços pelo calçamento?
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Beatriz baixou os olhos negros pelo seu claro corpo maravilhoso, e, sorrindo:
— Ahn! Não é nada, não!
E explicou, com graça:
— É que eu morri, dois dias depois de um grande baile, em que dancei o
tango com os rapazes mais elegantes do Rio de janeiro!
E, desatando a rir, entrou, entre os anjos, no céu...
Capítulo LXX
Melhoramentos...
31 de julho
A grande preocupação nacional do momento, conforme é notório, é a visita de
sua majestade o rei da Bélgica. Da Gávea à Tijuca, do Cais Faroux às águas
paludosas do rio Pavuna, reinam uma febre, uma atividade, uma fúria de
empreendimentos verdadeiramente assombrosa. Nunca se viu, no Rio, atacados de
uma só vez, tão grande número de melhoramentos. A cidade modifica-se,
rejuvenesce, transforma-se, das pedras das ruas à crista dos monumentos.
Aí estão, demonstrando a influencia benéfica dessa visita real, as notícias da
imprensa, registrando essas alterações. Calça-se uma rua dos subúrbios? Para
que? Para o rei Alberto ver... Modifica-se o palácio Guanabara? Reforma-se o jardim
da praça Maná? Aumenta-se o edifício da Prefeitura? Com que intuito? Para o rei
Alberto ver... Até a pintura das carroças de lixo, ordenada pela Limpeza Publica, já
foi atribuída à próxima visita de sua majestade.
Isso, no que está patente, visível, positivo. Os melhoramentos privados,
secretos, de iniciativa da população, estes ainda são mais numerosos, mais sérios,
mais significativos do nosso entusiasmo. Dezenas de vestidos de baile, "para o rei
Alberto ver", já foram encomendados aos grandes costureiros daqui, de Paris e de
Londres. Há, mesmo, até, nas rodas elegantes, quem se esteja entregando,
pessoalmente, na cidade, com o mesmo fim, a melhoramentos mais interessantes.
Um destes dias, entrava eu no Instituto de Beleza, onde ia comprar um vidro
de tintura para o cabelo, quando encontrei, no salão de espera, a minha velha amiga
D. Sofia Pedreira, que aguardava, ali, pacientemente, a lindíssima viúva Odete Aires,
que se achava, no momento, no gabinete do cabeleireiro. Começávamos nós a
conversar sobre coisas sem importância, quando a formosíssima senhora
suspendeu o reposteiro, e apareceu à porta, radiando e cheirando, como uma
grande rosa que desabrochasse num vaso.
— O senhor por aqui, conselheiro? — gritou a encantadora criatura, com
alvoroço, e com todos os dentes, estendendo-me, de longe a sua mão rosada e fina,
onde as unhas faiscavam, rubras, como corais.
— É verdade, — expliquei, titubeando.
— Vim comprar uma caixa de pó para dentes... E a senhora?
— Eu? — respondeu, rindo. — Eu... Olhe?
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E, espiando para um lado e para outro, a ver se não nos observavam,
suspendeu até o ombro deslumbrante a manga curta e larga do finíssimo vestido de
seda, mostrando a parte inferior e extrema do lindo braço de mármore, fina, alva,
lisa, como de uma criança.
— Veja! — ordenou-me.
E já no primeiro degrau da escada, por trás do leque, piscando-me um olho,
com brejeirice:
— Para o rei Alberto ver.
Capítulo LXXI
A Caçada
8 de agosto
A noticia de que S. M. o rei Alberto ia realizar uma caçada em terras da
família Prado, em São Paulo, trouxe à minha lembrança, tão confusa nestes últimos
tempos, o fantasma de uma velha saudade.
Estudante, ainda, na Paulicéia, fui eu convidado, um dia, pelo meu colega de
turma, o atual conselheiro Antônio Prado, para um recreio venatório em propriedade
de sua família, na serra do Cubatão, onde abundavam, ainda, naqueles tempos, o
veado, a paca, o porco do mato, e, em especial, as onças, os famosos tigres
americanos, que faziam enorme estrago na criação.
Organizada a comitiva, composta de numerosos cavalheiros da melhor
sociedade paulista daquela época, partimos para São Bernardo, indo pousar, ao fim
de dois dias de viagem, na fazenda do Encantado, pertencente a Exma. D.
Veridiana, no ponto mais alto da serrania. No terceiro dia, enfim, partíamos todos
para a mata, montando vinte e oito cavalos e conduzindo quarenta e sete cães,
distribuídos pelos diversos membros do séquito.
Separados uns dos outros, ia eu beirando um córrego marulhoso que rolava
da penedia, quando ouvi, ao longe, entre a reza religiosa da selva, o barulho da
matilha, anunciando a caça. Esporeei o cavalo, venci um bosque de ipês, atravessei
uma clareira, e cheguei ao local. Em uma furna da montanha, evitando, feroz, a
pontaria dos caçadores, estava uma onça, acuada, mostrando os dentes enormes,
agudos, afiados, para uma dezena de cães!
— Atire, doutor! — pedi, apeando-me, ao Dr. Antônio Prado.
— É impossível! — observou-me o futuro estadista.
A posição era, realmente, péssima. Defendido por umas raízes entrelaçadas à
boca da furna, o felino não só impedia o avanço dos cães, como impossibilitava, em
absoluto a pontaria dos caçadores. Vários tiros já haviam sido disparados pelos
atiradores mais adestrados, conseguindo eles, apenas, enfurecer o animal, que
empregava toda a sua agilidade na defesa.
De repente, ouviu-se um galope no rumo da furna; e, um minuto mais,
apeava-se ao nosso lado, risonha, jovem, arrebatadora, a formosíssima Sra. Corrêa
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Aires, cuja beleza constituía, então, com o seu moreno rosado, seus olhos azuis e os
seus finíssimos cabelos castanhos, o maior dos orgulhos de São Paulo.
— Que é? — perguntou, mostrando, num sorriso, os seus lindos dentes de
neve, a furiosa amazona batendo com o chicotinho de ouro na sua pequenina bota
de montaria.
— Uma onça! — explicamos, todos, a uma voz.
Nesse momento, a onça. que olhava, fixa, para fora. deteve os olhos na
moça, como deslumbrada. A linda caçadora tirou do cinto de veludo uma pistola de
caça, de cabo de marfim, levou-a à altura dos olhos, e. fazendo pontaria no felino,
que a fitava, esquecido de si esmo, disparou. A fera deu um salto de dor,
estorcendo-se. A matilha investiu, latindo, penetrando a furna. Um instante depois
era a onça arrastada para fora, morta.
Sorridente. Fresca, maravilhosa, a divina caçadora colocou o pezinho sobre o
corpo da fera, buscando-lhe a ferida. De repente, descobriu-a:
— Foi no coração! — disse.
E. encarando Antônio Prado, desafiadora:
— Morreu como certos homens...
Nós, em torno, baixamos os olhos.
Capítulo LXXII
A Manicura
7 de agosto
O merceeiro Agostinho Pereira Alvares, proprietário de um dos
estabelecimentos mais afreguesados do Engenho Novo, não havia saído, jamais, do
seu bairro, para fazer a barba e cortar o cabelo. Sempre que, de dois em dois
meses, lhe vinha a idéia de praticar essas medidas higiênicas, mandava ele chamar
o barbeiro à sua casa de comércio, submetendo-se à tesoura e à navalha do fígaro
em um compartimento nos fundos da mercearia.
Um destes dias, porém, com a noticia de que toda a cidade entrava em
melhoramentos para receber o soberano dos belgas, resolveu o futuro capitalista vir,
também, à zona urbana, para uns reparos estéticos na sua própria pessoa. Tornava-
se preciso que o rei o encontrasse de cabelo cortado e barba feita, e era evidente
que esse trabalho só podia ser efetuado por um verdadeiro mestre da arte, como
deviam ser, naturalmente, os do centro da cidade.
Tomada essa deliberação, meteu-se o acreditado comerciante, sábado último,
em um bonde, e saltou na rua Floriano Peixoto, enfiando-se, pressuroso, pela
primeira barbearia que encontrou aberta.
— Cabelo e barba! — pediu, arrogante, libertando-se, com um soco, do
formidável colarinho que o asfixiava.
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Enfiada, que foi, a toalha pelo pescoço do freguês, começou o barbeiro, um
mulato de nariz de batata e cabeleira revolta, a tosquiar a vítima. Terminado o
serviço, que não primava, aliás, pelo asseio, o fígaro convidou-o, gentil:
— O "comendador" não quer "fazer" as unhas? Nós temos, aí, para os
fregueses, uma boa manicura...
Nesse momento apareceu à porta dos fundos, escandalosamente decotada, e
rescendente de si mesmo, uma cafusa de dentes alvíssimos, que cumprimentou,
sorrindo; o Agostinho. O merceeiro correspondeu ao cumprimento, olhou as unhas
formidáveis, que ele costumava aparar com a faca de cortar sabão, e aquiesceu,
condescendente:
— Vamos lá ver isso! Vamos lá!
Uma hora depois, com os dedos ardendo, e com as unhas cortadas até o
sabugo, saía o honrado negociante a porta da barbearia. regressando, de pronto, ao
Engenho Novo.
No dia seguinte, à tarde, foi, porém, a rua Floriano Peixoto alarmada por um
vozerio infernal. Avisado do caso, o guarda civil correu para o local, e viu: no salão
da barbearia, andando de um lado para outro, como um possesso, o Agostinho, do
Engenho Novo, trovejava, indignado:
— Patifes!... Canalhas!... Ladrões!... Estavam os dois combinados para essa
traição, os miseráveis!
Penetrando na casa, o guarda interveio:
— Que é isso, camarada? Que foi que aconteceu?
E o merceeiro, apoplético:
— Foi este homem; este barbeiro, que, de combinação com aquela mulher,
me fez uma patifaria, uma canalhice, uma perversidade. Eu vim aqui para cortar o
cabelo, e ele me pôs na cabeça uns piolhos; e para que eu não os pudesse tirar,
chamou a mulher, e mandou-me cortar as unhas. Veja isto!
E com as grandes mãos estendidas, mostrando os dedos enormes, de
sabugo à mostra:
— Canalhas!... Patifes!... Miseráveis!...
Capítulo LXXIII
Mocidade...
9 de agosto
O teatro Fênix enchera-se, naquela tarde de junho, para o espetáculo
científico, anunciado pelo Dr. Wilhelm Korner, antigo reitor da Universidade de Iena.
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As frisas, os camarotes, as cadeiras, as galerias, regurgitavam de espectadores,
quando, após a apresentação do sábio pelo eminente professor Austregésilo,
começaram as provas práticas de magnetismo animal.
— Senhores, — começou, arrastando as sílabas, o ilustre homem de ciência,
- a minha primeira demonstração, para que me não tomem por um aventureiro, um
intrujão, um impostor, será coletiva. Entre vós, há velhos e moços, pessoas que
sentem em si os arrebatamentos da juventude, a alegria, a saúde e o entusiasmo
dos verdes anos, e anciãos que pendem para o túmulo, e que mal se arrastam por si
mesmos. Para demonstrar-vos que essas energias são meros produtos da sugestão,
eu vou fazer com que todos sejam postos em uma condição média, isto é, que os
moços se sintam mais velhos, e que os velhos se sintam, de súbito, rejuvenescidos.
A experiência durará dez minutos e começará com o simples estender da minha
mão, para terminar com um sopro da minha boca, em momento oportuno.
E unindo o gesto à palavra, estendeu a mão sobre a platéia, ordenando o
milagre.
O resultado, de acordo com o que ele havia prometido, não se fez esperar.
Cavalheiros de idade avançada, que para ali haviam ido nos braços vigorosos dos
netos, experimentavam as juntas, exercitavam os músculos, passavam as mãos
pelas rugas, estranhando o ânimo novo que lhes distendia os nervos, reavivando-
lhes o sangue, a memória, o coração. Nenhum deles se mostrava, no entanto, mais
alegre, mais feliz, do que um ancião de cabeça inteiramente alva, que para ali havia
ido a arrastar-se, e que tomara lugar em uma das primeiras filas. Agitava-se ele,
porém, risonho, contentíssimo, na cadeira, quando soou a hora tremenda.
— Senhores, — trovejou o sábio, — vai terminar o encantamento. Cada um
vai ser o que era antes. Vou soprar.
Nesse momento, manifestou-se um reboliço na platéia. Curiosos, olhando
para o lado do palco, os espectadores perguntavam o que teria acontecido, quando
viram, de pé, na primeira fila, um ancião, nervoso, pálido, agitado, empunhando um
revólver. Era o octogenário respeitável, que, trêmulo, com a voz rouca, intimava o
magnetizador, com o dedo no gatilho:
— Se soprar... mato-o!
E desabou na cadeira, chorando...
Capítulo LXXIV
A Pérola
(Apólogo Persa)
Em que se demonstra que a fraqueza humilde é mais proveitosa do que a
grandeza arrogante.
11 de agosto
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Rugiam, lá em cima, os ventos tempestuosos do inverno, quando a gota
d'água, trêmula e pura, se sentiu, de repente, sozinha no espaço, desgarrada, por
um sopro mais forte, da nuvem em que se formara. Medrosa, humilde, pequenina,
voava a mísera arrebatada pelas doidas ondas aéreas, quando viu, de súbito,
precipitando-se na mesma direção, mugindo, rolando, redemoinhando, uma enorme
tromba marinha, que abalava o céu com a fúria da sua carreira. Ao perceber a
límpida gota assustada, a tromba monstruosa, — equóreo traço de união colocado
entre o mar e as nuvens, — parou, de repente, rodando, sobre si mesma, e indagou,
irônica:
— Aonde vais tu, miserável poeira da chuva? Que fazes por estes caminhos
perigosos do espaço, arrastada, como entidade invisível, pelo mínimo sopro dos
ventos?
Trêmula, encolhida, assaltada por diferentes ondas de ventania, a gota
límpida não pôde, sequer, responder, e a tromba continuou, zombeteira:
— Já pensaste, acaso, no destino que te espera? O vento que nos conduz a
ambas, arrasta-nos, furioso, para o oceano largo, que reboa, lá em baixo, clamando
por nós. Ouves?
A gota d'água prestou atenção, e percebeu. Para além da neblina que cobria
a terra, em baixo, reboavam, apavorantes, os grandes soluços do mar. Como um
bando de tigres enfurecidos, as ondas uivavam, despedaçando-se umas de encontro
às outras, ao mesmo tempo que a água, revolvida pelos braços da tempestade,
chorava, gemia, guaiava, num tumulto de vozes desesperadas.
Percebendo o susto da gota humilde, a tromba insistiu:
— Lá em baixo, estão o meu túmulo e o teu. A mim, porém, me espera um
destino que é, por si mesmo, a minha glória. Tombando no oceano, eu constituirei
uma parte dele mesmo, tendo, como ele, as minhas ondas, os meus vagalhões, as
minhas espumas. Serão necessários dias talvez uma semana, para que as minhas
águas sejam absorvidas pelo mar. E tu, que te aguarda? Mal tombes em um cabeço
de vaga, em um simples floco de espuma, desaparecerás, anônima, para sempre,
sem que fique, na terra ou no céu, a sombra do teu vulto ou da tua memória!
— Meu Deus!... gemeu a gota d'água. apavorada, pálida, trêmula, no horror
daquele extermínio próximo.
Nesse instante, um trovão continuo, forte, soturno, anunciou a vizinhança do
oceano. Rajadas formidáveis abraçaram a tromba d'água, arrebatando-a, abalando-
a, desconjuntando-a. Outras rajadas, precipitando-se em sentido contrário, tomaram
com o seu hálito a gota humilde, a mísera poeira de chuva, e, horas depois,
serenada a tempestade, aparecia, de novo, ao sol, a face tranqüila do mar.
Dias passaram-se, porém. E uma tarde, quando da tromba marinha já não
existia, sequer, na memória do oceano, um pescador do mar Índico encontrou na
praia, dentro de uma concha, uma gota petrificada e brilhante. Era a gota d'água do
céu, que Deus, ouvindo a prece da humildade, salvara das águas...
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Capítulo LXXV
Os Médicos
15 de agosto
Há três ou quatro anos, quando se cuidou, no Rio, da fundação da Casa do
Médico, destinada a recolher, na velhice, os numerosos náufragos da profissão,
Paulo Araújo e Belmiro Valverde definiram, em interessante memorial, o que é, em
verdade, a vida de um apóstolo da Medicina.
Não há, realmente, na terra, profissão economicamente mais ingrata do que a
de médico. O indivíduo que entra na loja de um comerciante seu amigo, paga pelo
preço comum, ou com pequeno abatimento, a mercadoria de que faz aquisição. O
barbeiro não faz a barba gratuitamente a ninguém. O advogado não defende causas
sem remuneração, nem o ferreiro conserta de graça a ferramenta dos operários que
lhe são íntimos. Ao médico, entretanto, não se faz a mesma justiça. Pelo fato de ser
o seu trabalho relativamente leve, e consistir, apenas, em pôr algumas palavras
sobre uma folha de papel, acham os clientes que lhes não devem pagar por tão
pouco, esquecendo-se que essas palavras, isto é, essa receita, constitui o fruto de
vários anos de estudo, de esforço, de experiência, em que foram consumidas
diversas dezenas de contos. Porque o médico não gasta aos olhos do cliente, senão
um pouco de tinta e uma tira em branco, é o seu trabalho depreciado, especialmente
pelos camaradas, pelos amigos, pelos íntimos, que não fariam, jamais, o mesmo, se
se tratasse de um engenheiro ou, em esfera mais baixa, de um simples engraxate. E
daí o número relativamente grande de médicos que envelhecem na pobreza, e que
entram, afinal, no carro escuro da Morte, pela porta de ferro da miséria.
Tomando em consideração esse abuso é que aparecem, de vez em quando,
por toda a parte, as reações justas, enérgicas, inteligentes. É conhecida, por
exemplo, a história daquela senhora que, pretendendo arranjar uma receita de certo
médico ilustre, indagou, ao encontrá-lo:
— Doutor, que é que o senhor faz quando tem tosse?
O médico percebeu o plano e respondeu, grave:
— Tusso, minha senhora!
A reação mais pitoresca e eficaz de que há noticia foi, porém, a de que tomou
a iniciativa, há dias, o notável mestre Sr. Dr. Miguel Couto. Certa senhora de fortuna,
habituada a tratar-se com o ilustre clínico brasileiro por meio de receitas obtidas de
surpresa, resolveu, da última vez, fazer o mesmo cercando-o em plena. Avenida:
— Ó doutor, como está?
— Bem, D. Veneranda; e a senhora, como tem passado?
— Eu? — acudiu a matrona atingindo o ponto a que pretendia chegar. — Eu
não estou passando bem, não, doutor.
E logo, em seguida:
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— Tenho sentido uma dor aqui, no peito, que responde aqui, no fígado,
causando-me uma aflição enorme, que me não deixa dormir. Que é que o doutor
acha que seja?
O Dr. Miguel Couto olhou para um lado e para outro na Avenida fervilhante de
gente, e ordenou:
— Vamos ver isso, D. Veneranda. Dispa-se!
— Como? — estranhou a velha, recuando.
— Dispa-se, para fazer-lhe um exame, tornou o médico.
A matrona arregalou os olhos, escandalizada, e protestou:
— O senhor pensa que eu sou maluca?
E o Dr. Miguel, no mesmo tom:
— E a senhora não acha que eu tenho o meu consultório no meio da rua?
A velha eclipsou-se.
Capítulo LXXVI
O "Bravo dos Bravos"
18 de agosto
Quando o tenente Felisberto regressou do "front", precedia-o a mais invejável
das famas. Notícias dos jornais, telegramas do governo e cartas dos camaradas,
haviam espalhado, realmente, pelo Brasil, os ecos da sua bravura. Em Verdun, no
forte de Vaux, fora ele o herói por excelência, defendendo, uma a uma, as pedras
daquele reduto. Na Champagne, comandando um pelotão de "poilus", operara
prodígios, resistências assombrosas, a ponto de ser preciso arrancá-lo, às vezes, do
seu entrincheiramento, rilhando os dentes, coberto de lama e de sangue. O seu
heroísmo tornou-se, em suma, tão acentuado, tão famoso, tão evidente, que o seu
nome se constituíra, em toda a extensão do setor, uma espécie de grito de guerra. A
Morte passava por ele, medrosa, de asas fechadas, como se temesse cair ferida, ela
própria, atingida pela sua espada.
Ao chegar ao Rio, eram conhecidos, já, de toda a cidade, os seus feitos, as
suas investidas corajosas, o ímpeto das suas cargas de baioneta, a que
correspondia, sempre, uma nova trincheira arrancada ao inimigo. E foi por isso
mesmo que o seu desembarque teve o caráter de uma verdadeira apoteose, que
envolvia na mesma auréola o glorioso exército nacional.
Festejado e querido, foi, aqui, o tenente Felisberto rodeado pelos amigos e,
principalmente, pelos colegas de classe, que se disputavam, gentis, a sua
companhia. E tanto o cercaram, tanto o arrastaram pelos lugares festivos da cidade,
que ele foi acabar, uma noite, no Assírio, onde se realizava um ruidoso baile de
Carnaval.
Desconfiado no meio daquele tumulto, que lhe entontecia mais os sentidos do
que o perturbavam, na França, as tempestades de fogo e de fumo da formidável
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artilharia alemã, o tenente observava aquelas danças, aquela orgia, aquela alegria
desordenada, quando um dos camaradas lhe pediu, insistente, à mesa da ceia:
— Conta as tuas aventuras de guerra, Felisberto! Que diabo! tudo que nós
sabemos de ti, é por intermédio dos outros. Ainda não nos contaste nada!
— Conta! — pediu outro, pondo-se de pé.
— Conta! Conta! — reclamaram todos.
O tenente sorriu modesto, mas, reclamado pelos colegas, começou a narrar
singelamente os seus feitos.
— O que eu fiz — começou, — qualquer de vocês o faria, estando no meu
lugar. Fui eu, efetivamente, quem defendeu o forte de Vaux, durante três dias, com
pouco mais de duzentos homens. O rompimento da linha de Hindemburgo foi,
também, obra minha, que obteve, como é sabido, os resultados mais felizes. Tomei,
a arma branca, dezessete trincheiras; subjuguei algumas dezenas de soldados,
corpo a corpo; conquistei, a sabre, oito canhões; destruí, em suma, todo o poder
ofensivo do inimigo, no setor a meu cargo.
Nesse momento, alarmando a sala, ouve-se, a alguns metros de distancia,
um tiro de revólver, e, em seguida, o barulho da multidão elegante, a precipitar-se no
rumo da detonação. Ao segundo tiro, porém, o capitão, que se calara com o
primeiro, empalidece, e, sem dissimular o seu pavor, põe-se a tremer, a ponto de se
não poder sustentar nas pernas. Espantados com aquela modificação, os amigos
entreolham-se, duvidando, já, da bravura do herói, quando um deles, indignado,
pergunta:
— Está com medo?
— Estou! — confessou o bravo dos bravos.
E explicou:
— Imaginem que isto degenera em rolo, em barulho, em conflito...
E concluindo, aterrorizado, batendo o queixo:
— E minha mulher sabe... que eu vim aqui!...
Capítulo LXXVII
O Pé e o Sapato
20 de agosto
Uma das novidades elegantes que mais têm merecido o meu aplauso, é a
condenação das danças, dos bailes retumbantes e demorados, nas festas de
casamento. A ligação de dois destinos constitui um ato tão solene, um
acontecimento tão grave na vida das criaturas, que se lhes deve dar, a elas, todo o
sossego, toda a calma, e o tempo necessário para que sintam, sem obstáculos nem
constrangimentos, todas as suaves emoções desse dia.
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E esse meu modo de pensar não data de hoje. Vem de longe, de onze anos
atrás, do casamento do Dr. Otaviano Peixoto Ferreira, antigo juiz substituto em Barra
Mansa, com a minha afilhada Odete Costa, do qual fui testemunha, por insistência
imperdoável das duas ilustres famílias fluminenses.
O casamento, que se efetuou a 11 de Maio de 1090, na fazenda Água Funda,
no município de Cantagalo, foi o mais suntuoso, talvez, e o mais bulhento, que já se
realizou no Estado do Rio. Os convidados, vindos das fazendas e cidades vizinhas,
subiram a centenas. E as danças prolongaram-se por dias e dias, que encheram, se
bem me lembro, o vasto espaço de uma semana.
No dia seguinte ao do casamento, porém, sucedeu o desastre que dá motivo
à minha prevenção contra os bailes em tais ocasiões: devido ao excesso das
danças, das polcas, valsas, mazurcas e quadrilhas, dançados com o noivo, a moça
amanheceu coxeando, doente do pé, de modo a locomover-se com enorme
dificuldade. Penalizado, perguntei-lhe o que era:
— Então, afilhada, que é isso? Como foi? Quem lhe pisou o pé?
A pequena sorriu, pálida, cobrindo com as violetas das olheiras, os formosos
miosótis dos olhos, e tranqüilizou-me, triste:
— Não é nada, padrinho; não se aflija!
E explicou:
— É uma unha encravada...
Não obstante a festa haver continuado, a noiva, nesse dia, não dançou, nem
no segundo dia, nem, mesmo, no terceiro. No quarto dia, porém, amanheceu
inteiramente boa, voltando a valsar, alegre e jovial, contentíssima como se nada
tivesse acontecido. Encontrando-a a deslizar, feliz, no calor de uma valsa, detive-a
pelo braço, e indaguei, carinhoso:
— Então, está melhor do pé?
— Estou boa, já! respondeu-me, risonha.
— A unha desencravou?
— Não! — retrucou-me, vermelha, com o rosto em fogo.
E ao meu ouvido, rindo:
— O pé acostumou no sapato...
E, arrancando-se das minhas, mãos, desapareceu, num rodopio, no tumulto
dos outros pares.
Capítulo LXXVIII
O Patrão
24 de agosto
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O Sr. Alberto Gomes Valente era guarda-livros da firma Sobreira, Costa & C.,
ganhando quinhentos mil réis, quando resolveu constituir família, unindo-se
solenemente à senhorita que mais o impressionara na vida. Tímido, com o pudor nos
olhos e na língua, procurou ele o chefe da casa, o Sr. Zacharias Sobreira e pediu-
lhe, usando de mil rodeios, que lhe aumentasse o ordenado.
— O ordenado? — estranhou o capitalista, franzindo a testa. — Por que? Que
é que justifica a sua reclamação?
O guarda-livros gaguejou, aflito, e explicou o seu caso. A organização do seu
lar exigia despesas novas, graves, pesadas, e era como um homem em véspera de
casamento que ele pedia, submisso, um aumento de cinqüenta ou cem mil réis por
mês. O Sr. Sobreira, foi, porém, inflexível:
— Impossível, meu amigo; é impossível! O que eu posso fazer, é o seguinte:
impedir que o senhor se case. Serve?
O guarda-livros insistiu, no entanto, na sua deliberação, e casou-se. E ia
vivendo, bem ou mal, há três meses, com os seus quinhentos mil réis, quando o
patrão o chamou, uma tarde, e comunicou-lhe:
— Sr. Abelardo, a firma, satisfeita com os seus serviços, resolveu aumentar
espontaneamente o seu ordenado. De hoje em diante, o senhor passa a ganhar
setecentos mil réis.
Quatro meses depois, outra chamada, com outra comunicação:
— De agora em diante, Sr. Abelardo, o seu ordenado fica aumentado. O
senhor ficará ganhando, à partir deste mês, um conto de réis.
Vivia, assim, o honrado auxiliar da firma Sobreira, Costa & C., em um
ambiente de conforto relativo, quando, aproveitando a ausência do chefe da firma,
lhe deu na cabeça, um dia, correr até à casa, para matar as saudades da mulher. Ao
abrir o portão, notou que a esposa estava dormindo. E não se enganara; pelo
menos, foi com a roupa em desalinho e os cabelos desarranjados que ela lhe correu
a abrir a porta, oferecendo-lhe, como prêmio de chegada, uma infinidade de beijos.
— Tu por aqui a estas horas? — estranhou a moça, carinhosa. — Que foi
isso?
O marido explicou. O Sr. Sobreira havia saído para ir à Alfândega, e ele,
tirando proveito da hora, correra a beijar a sua querida mulherzinha. Era por isso.
Ao contar essas coisas, olhou, rápido, para o grande relógio da sala de jantar,
um relógio de dois metros de altura, enorme, formidável, conventual, e estremeceu,
vendo-o atrasado.
— Que é isso? O relógio parou?
E vendo que, de fato, a grande maquina de medir o tempo estacionara meia
hora antes, encaminhou-se para ela, disposto a pô-la em movimento. Mal porém,
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puxara a tampa do monstro, alta como uma porta de igreja, recuou, pálido, com a
agonia no coração, exclamando:
— O Sr. Sobreira!.
E com as mãos tremulas, os olhos fora das órbitas, estupefato por encontrar o
patrão escondido na caixa do relógio, rugiu, de dentes cerrados, entre o medo e a
raiva:
— Que é que o senhor está fazendo aí?
Encostado no fundo da caixa, o patrão, igualmente pálido, gemeu, apenas:
— Passeando...
E puxou sobre si, fechando-se, a tampa do relógio.
Capítulo LXXIX
As "Gaffeuses"
26 de agosto
Um dos encantos da alta sociedade carioca são as senhoras que cultivam,
nos salões e na intimidade, os deliciosos cogumelos da "gafe". Educadas, finas,
inteligentes, essas figuras da "elite" constituem, geralmente, legítimos ornamentos
da família brasileira; há, porém, no Inferno uma classe de demônios irreverentes que
se divertem zombando das mulheres lindas, e o resultado são esses deliciosos
delíquios do espírito, e o desgosto que se apossa, depois, das pobres vítimas dessa
maliciosa brincadeira diabólica.
À frente desse exército de "gafeuses" marcha, com as "gafes" que tem
cometido na terra, a jovem senhora Cardoso Nunes, esposa do Dr. Abelardo Nunes,
conhecido corretor e capitalista. Formosa e gentil; D. Clotilde é incapaz de uma
perfídia, de uma insinuação malévola, de uma perversidade punidora. As amigas
estimam-na profundamente e só não fazem o mesmo as inimigas, porque D.
Clotilde, com franqueza, não as tem. A sua simplicidade destrói todas as
prevenções, e de modo tal que os seus íntimos lhe perdoam as "gafes", mesmo
quando se trata de casos duvidosos, como o de anteontem.
A roda de convidados era enorme e seleta, no grande terraço dando para o
mar, predominando, nela, o número de figuras femininas. Palestrava-se vivamente
sobre o nervosismo de certas senhoras, algumas das quais nutrem uma aversão às
baratas, às rãs, aos grilos e a outros pequenos seres repugnantes.
— Eu tenho horror é ao caramujo! — informava Me. Costa Meireles, com a
papada a repousar, como a do Chaby, sobre o peito volumoso. — Quando eu vejo
um caramujo, fico toda arrepiada!
E, fechando as mãos muito redondas, muito gordas, fez estremecer, toda, dos
pés à cabeça, a formidável montanha de toucinho.
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— Pois, eu não, — atalhou Mlle. Pinheiro César; — o que me horroriza é o
percevejo. Quem me quiser ouvir gritar, é por um percevejo no meu caminho!
Foi por essa altura que D. Romualda Brito, a ilustre senhora tão conhecida
pelas suas leviandades galantes, interveio, informando:
— Pois, eu, não tenho medo de nada disso. Nenhum desses bichinhos me
faz, como a vocês, qualquer mal aos nervos.
E contou:
— Imaginem que, outro dia, eu estava em pé na sala de espera do cinema de
Copacabana, quando senti, de repente, uma coisa subindo pela minha perna!
— Meu Deus! — gemeu Mme. Cunha Andrade, mostrando o braço arrepiado.
— Olhem como eu estou!
E a outra continuou:
— Sem me mover, eu compreendi que era um rato!
— Que horror! — gritaram as outras senhoras.
— Quieta estava, quieta fiquei. O rato subiu, primeiro, para meu sapato.
Depois, passou à meia. E assim, subiu-me, aos poucos, pela perna!
As senhoras, em silêncio, mostravam-se horrorizadas com o acontecido. E foi
no meio dessa impressão, que D. Clotilde interveio, muito séria:
— O rato subiu, mesmo, pela perna da senhora?
— Subiu, menina!
E D. Clotilde, logo, com a maior ingenuidade do mundo:
— Mas desceu, depois; não desceu?
Capítulo LXXX
Os Horrores Da Guerra
30 de agosto
O caso policial contado há dias pelos jornais, é, ao que parece, mera
reprodução de uma infinidade de outros, ocorridos no Rio, e, em geral, no mundo
inteiro. A guerra, principalmente, com os seus horrores, com as suas violências, com
as suas brutalidades inomináveis, tem fornecido exemplares curiosíssimos de certas
vergonhas, que constituem, como se sabe, a nódoa de lama da túnica das
sociedades.
A prova mais amarga, e mais típica, desse gênero de verdades dolorosas, é,
entretanto, a que Banvile apresenta em um quadro melancólico, desenhado com a
delicadeza inimitável do seu estilo. As cores da tela são tão leves, tão doces, tão
brandas, que eu me permito a mim próprio, a audácia de retocá-la, na blasfêmia de
uma ligeira adaptação.
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Em um salão triste e antigo, ressumando saudades, meditam, com a alva
cabeça pendida sobre o peito, três velhinhas septuagenárias, cujos olhos se
perdem, quase sem brilho, nas brumas longínquas do passado. Procedem, as três,
do tumulto do mundo, de que são ali, meros despojos de um naufrágio, atirados à
praia, como tantos outros, pelas eternas tempestades da vida. Cabeça baixa, olhos
baixos, a mais velha das três solta, de repente, um suspiro tão fundo, que lhe traz
aos olhos uma lágrima. As outras olham-na, compadecidas, e, para matar as horas,
que, por sua vez, as vão matando, resolvem contar os seus amores, as suas
aventuras, resumindo nestas o braço mau, ou leviano, que as atirou à desgraça.
— Eu, — contou a mais velha — fui vítima do meu noivo, o tenente Balduino,
do antigo batalhão de lanceiros. Confiando nele, nas suas juras, nas suas
promessas apaixonadas e ardentes, deixei-me arrastar, um dia, pela sua palavra e
pelo seu braço, até à sua casa, e, quando despertei no dia seguinte, foi para chorar,
como até hoje, a minha infelicidade...
— A minha história, — principiou a segunda, — não é muito diferente.
Passeava uma tarde com o meu primo, o barão Reinaldo, pelas alamedas do jardim
de meu pai, quando, embriagada pela amavio dos seus juramentos de amor, me
deixei cingir pelos seus braços. O beijo pecador que pôs, como uma brasa, na minha
boca virgem, fez-me desmaiar. Meses depois o barão partia para o Oriente,
enquanto meu pai me atirava à rua, com o meu filho e a minha vergonha!
A terceira velhinha mantinha-se em silêncio, meditativa, quando as outras a
interrogaram:
— E a senhora, mãe Georgete?
— Eu? Eu vivia na Alsácia, em 1870, com meu pai e minha mãe. Era jovem e
linda. Um dia, ouvimos troar a artilharia nas vizinhanças da aldeia. Era o inimigo!
E calou-se. Mas as outras exigiram:.
— E o resto?
— Que resto?
As duas se entreolharam, e insistiram, falando claro:
— Quem foi?
E a velhinha, limpando os olhos:
— Foram os alemães...
Capítulo LXXXI
Pavores de Enfermo
3 de setembro
Não obstante a sua aparência de homem grave, circunspecto, ponderado,
que lhe assegurara aquele emprego de confiança, o coronel Bonifácio Coutinho,
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diretor do Asilo de Senhoras Arrependidas, era, intimamente, um dos
temperamentos menos compatíveis com as responsabilidades daquelas funções.
Lutando, disputando-se o domínio da sua vontade, defrontavam-se, nele, o desejo e
o interesse. E não era sem custo, sem violência, que este se superpunha à
brutalidade dos seus nervos, tornando-lhe possível a manutenção daquela sinecura
amável, que lhe amenizava as infinitas asperezas da vida. Assim constituído, o
coronel resolveu, um dia, quebrar a sua couraça e, chamando em particular o
médico do estabelecimento, pediu-lhe um conselho:
— Diga-me cá, doutor, diga-me, com reserva: o senhor acha que me fica mal
conquistar uma ou outra das nossas asiladas?
— Absolutamente, não! — acudiu o facultativo. — Desde que elas queiram,
não há, mal nenhum. Eu próprio tenho me prevalecido dessa faculdade, procurando,
apenas, não investir contra aquelas que, de antemão, parecem rigidamente sérias.
— E que faz o doutor para diferençar umas das outras? — objetou o velho. —
Como que o senhor as distingue?
O galeno tomou-o pelo. braço, arrastou-o para o silêncio de uma janela
deitando sobre jardim, e revelou-lhe o seu segredo:
— Olhe: o senhor, quando se quiser aventurar a uma destas conquistas, faça
o seguinte: chegue perto da asilada que houver escolhido, pergunte-lhe a idade; se
ela lhe disser uma idade visivelmente inferior àquela que tem, faça-lhe a sua
declaração, que será, por força, bem sucedido.
E apertando-lhe a mão
— Experimente.
Um mês depois foi o médico chamado para ver o diretor do Asilo, cujas
condições de saúde preocupavam seriamente os seus subordinados. O estado de
depressão era visível. O pulso, irregular, incerto, descompassado, denunciava um
profundo abalo orgânico, que os seus cinqüenta e cinco anos haviam tornado
perigoso. À vista do enfermo, o médico compreendeu a sua missão, e, pedindo que
os enfermeiros se retirassem, começou:
— Meu caro coronel, é preciso que o senhor mude de vida.
— Eu?
— Sim, senhor. O senhor abusou do meu conselho, e deve lembrar-se que
não é mais uma criança, um moço, um rapaz no vigor dos anos.
E interrompendo-se:
— Que idade o senhor tem?
— Como? — atalhou o doente, alarmado.
— Eu estou perguntando que idade tem o senhor.
A essa confirmação da consulta, passou pelo cérebro do enfermo um
pensamento sinistro. Com que idéia lhe fazia o médico aquela pergunta? E foi com o
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pavor nos olhos que se sentou, de repente, no leito, bradando, horrorizado, com os
olhos fora das órbitas:
— Cento e cinqüenta anos doutor! Duzentos! Duzentos e cinqüenta anos,
doutor!
E disparou, escada abaixo.
Capítulo LXXXII
O Elefante
6 de setembro
Abu-Beker, o mercador opulento que espantava Bagdá com os esplendores
do seu luxo, encontrou, um dia, entre as suas quatrocentas mulheres, uma, de
beleza excepcional, que lhe enchera do vinho do desejo a bilha de ouro do coração.
Chamava-se Kiusa, e sua língua era doce como uma tâmara. Adorando-a até o
desespero, uma dúvida o atormentava, dia e noite, na suntuosidade do seu palácio:
a dúvida de que aquele corpo era seu, apenas, e de que ninguém lhe violava,
subornando os eunucos, a honestidade do gineceu. E foi atormentado que, um dia,
se dirigiu à mesquita, e pediu, com o rosto em terra, soluçando versículos do
Alcorão:
— Alá, tu, que abranges o universo com teu poder, consente que seja minha,
unicamente, a esposa do meu amor. Eu tenho pensado, nas minhas vigílias aflitas,
no meio de conservá-la virgem de beijos alheios; e encontrei um remédio: arrebatá-
la para as montanhas, para os desertos, para as florestas que marcam os limites do
mar, onde não haja outros seres senão eu e ela. Transforma-se, pois, na tua
misericórdia, em um elefante soberbo e poderoso, para que eu atravesse, puxando o
seu carro, as regiões desertas da Arábia!
Instantes depois, graças a um sortilégio comum nas terras do Crescente, saía
as portas de Bagdá um carro suntuoso, tauxiado de ouro e forrado de púrpura,
puxado pesadamente por um elefante. E foi de coração sossegado que Abu-Beker
penetrou, transformado no monstruoso plantígrado, as florestas da Índia, arrastando
pacientemente o carro do seu amor.
Certo dia, após uma viagem penosa e longa, o elefante parou de repente,
desatrelou-se com o auxilio da tromba, e, abandonando os varais, deu volta em
torno do carro, cuja entrada era por trás. E soltou um rugido de dor e de espanto:
dentro, nos coxins que a sua opulência amontoara, deitavam-se enlaçados, Kiusa,
maravilhosa de formosura, e bêbada de desejo, e, ao seu lado, beijando-lhe os
olhos, Ebn-Ali, mercador de Alexandria! Ele tinha vindo, desde Bagdá, a puxar o
carro dos dois amantes, que, dentro, se enlaçavam amorosos, enquanto ele,
confiado e sereno, feria as patas pelo caminho!
Um barrido de desespero marcou o fim daquele encantamento humilhante. E
era tornado homem, com o seu manto de mercador despedaçado pelos espinhos da
viagem, que Abu-Beker gemia, com o rosto no solo.
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— Alá, bendito sejas tu, na tua gloriosa sabedoria! Debalde tentarão os
homens, mesmo com o teu auxilio, forçar as mulheres à honestidade, quando dias
querem traí-los!
E debulhava-se em lágrimas, quando ouviu, de súbito, uma voz poderosa,
que lhe disse:
— Mortal, aprende, tu mesmo, à tua custa, esta grande verdade; nenhum
homem poderá, jamais, subtrair a mulher à traição, quando ela o queira enganar. O
insensato que, como tu, trouxer, por prevenção, o leito às costas, terá, ao fim da
viagem, uma surpresa dolorosa: verá que arrastou pelos caminhos, sem o saber, a
mulher e o amante!
Abu-Beker levantou-se, enxugou os olhos, e, para esquecer, começou a ler o
Alcorão.
Capítulo LXXXIII
O Rio Purús
(De uma frase de Dumas Filho)
8 de setembro
À pequenina mesa de chá que Mme. Peixoto Leroux me reservara naquela
primeira reunião dos seus íntimos, sentavam-se, à sombra das mangueiras
seculares da sua linda chácara da Tijuca, o desembargador Abelardo, a jovem Mme.
Costa Retore e, mais alegre que todos nós reunidos, a encantadora baronesa de
São Bonifácio, recentemente chegada de Londres. Risonha, graciosa, inteligente, a
loura titular tomou conta, logo, de todos nós, guiando a palestra com a habilidade
com que dirige, às vezes, à tarde, pelas estradas da Gávea, o seu grande automóvel
de seis lugares. Ligando os assuntos como quem liga, uma a uma, e continuamente,
as pérolas do mesmo colar, a baronesa indagou, de repente:
— É verdade, que noticias me dão vocês da Lilita Wilson?
O desembargador, que é entendidíssimo em novidades de salão, alcova e
cozinha, acudiu, pronto:
— Casou-se, outra vez. Logo que lhe morreu o primeiro marido, casou-se
com o Alberto Manzoni, de São Paulo. Com a morte deste, na guerra, contraiu
terceiras núpcias aqui mesmo.
— Com o Alexandre?
— Não; com o Viana Moreira, do Rio Grande do Sul.
A baronesa, sem mostrar espanto, sorriu, e, após um gole de chá e de uma
torradinha minúscula, que lhe encheu toda a boca, lamentou, penalizada:
— Coitadinha! Até parece, já, o rio Purús, descrito por Euclides da Cunha!
— O rio Purús? — estranhei, pousando a chávena.
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E a minha amiga, perversa.
— Então? Ela tem mudado tanto de leito!...
Uma folha amarela que se despregara da mangueira pôs termo à conversa,
caindo, certeira, aos rodopios, como uma flecha vegetal, na xícara vazia da
baronesa...
Capítulo LXXXIV
Represália
10 de setembro
Informado da maldade com que a baronesa de São Bonifácio punira, na
véspera, na chácara dos Peixoto Leroux, a tríplice viuvez da sua sobrinha, Mme.
Lilita Wilson, o almirante Ribas, tão famoso pela sua malícia irreverente, resolveu
tomar uma desforra da linda titular, punindo-a pela perfídia com que se referira à sua
encantadora amiguinha de outrora. E o lugar escolhido para a vindita foi a segunda
mesa à direita, na Lalet, onde se acharam, frente a frente, ontem, à tarde, entre o
desembargador Ataulfo e Me. Carvalho Gondra, a maravilhosa Anfitrite do norte e o
velho tritão dos grossos mares do sul.
A palestra decorria brilhante e amável, quando o almirante, encontrando uma
oportunidade feliz, observou, rindo, à baronesa:
— É verdade; achei admirável aquela comparação da Lilita com os rios que
mudam freqüentemente de leito!
— Quem lhe contou isso? — estranhou a baronesa, espantada, recuando o
busto soberbo.
— O desembargador Abelardo, que a ouviu dos seus lábios.
— Indiscreto... — sussurrou a fidalga, num muxoxo, retomando a xícara.
O almirante precisava, porém, de uma vingança mais positiva, mais clara,
mais ferina, e, sem deixar que a presa fugisse, mudando de assunto, volveu,
impiedoso:
— A baronesa sabe, porém, quando é que os rios mudam de leito?
A fidalga encarou-o, franzindo a testa magnífica, e ele, aproveitando o dialogo
em que se distraiam os dois companheiros de mesa, fulminou-a, terrível, descendo
os olhos pelo vestido significativamente frouxo:
— É quando engrossam... Compreendeu?
E, vendo-a empalidecer, alto, e risonho:
— V. Ex. está se sentindo mal?
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Capítulo LXXXV
O Prêmio
15 de setembro
A palestra, naquela mesa tão seleta, versava um assunto delicadíssimo: o
direito, que tem o esposo, de exigir da mulher a mais acentuada obediência, e a
prerrogativa, que esta pode ter, de usar, ou de abusar, da liberdade que lhe seja
concedida.
— Ninguém — afirmava D. Consuelo Mendes, com o sangue no rosto, —
ninguém, no Rio, é mais exigente consigo mesma, do que eu. Ninguém me vê em
bailes, em festas, em piqueniques, em divertimentos mais ou menos
comprometedores. Vivo para minha casa, para meu marido, para os meus filhos.
Acho, porém, que a mulher que assim procede, tem o direito de, uma vez por outra,
desforrar-se, lançando mão da sua liberdade, distraindo-se, divertindo-se,
procurando, por suas mãos, o prêmio do seu cativeiro.
E como percebesse a estranheza causada pelas suas palavras, retificou,
esclarecendo:
— Eu, por exemplo. Eu vivo para o meu lar. Não saio, não faço visitas, não
veraneio em Petrópolis, não faço estação em Poços de Caldas. No Carnaval, porém,
pago-me de tudo isso: danço, folgo, divirto-me a valer!
Foi por essa altura, mais ou menos, que o desembargador Abelardo de
Barros interveio, abrindo, com elegância, a sua cigarreira de ouro, polvilhada de
brilhantes:
— Vossa Excelência faz, então, D. Consuelo, como aquele honesto beberrão,
de que me falava, ontem, o Alfredo Pinto, na casa de Saúde do Poggi.
A moça franziu a testa, desconfiada, e o magistrado contou:
— Certo boêmio, habituado a entrar em casa depois de uma peregrinação
sistemática por todas as casas de bebidas, resolveu, um dia, corrigir-se. Era preciso
energia para não regressar aos tombos, e ele havia de tê-la, dali em diante. Tomada
essa resolução, saiu para a rua, e passou, sem entrar, pela frente do primeiro
botequim. Satisfeito com a vitória, passou pelo segundo, pelo terceiro, pelo quarto,
pelo quinto, e, assim por vários outros, resistindo à tentação. À noite, à hora de
recolher, tomou o caminho do lar, quando se pôs a pensar, de si para si: "Sim,
senhor! Nunca pensei, seu Fernandes, nunca pensei que você tivesse tamanha
força de vontade!" Deu mais alguns passos, e insistiu: "Você merece um prêmio.
Vou lhe pagar um whisky!" E entrou no botequim, chegando em casa, nessa noite,
tão bêbado como na véspera!
As senhoras entreolharam-se e Dona Consuelo interpelou-o, vermelha.
— Isso não tem nada com o meu caso; tem?
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— Absolutamente, nada, D. Consuelo! acudiu o desembargador, vascolejando
a cabeça: — absolutamente nada.
E mergulhou o nariz no chá.
Capítulo LXXXVI
A Cidade Indiscreta
17 de setembro
O Rio de janeiro é, positivamente, a cidade mais indiscreta do mundo. A
vigilância em torno de sua Majestade o Rei Alberto, cujos passos e menores gestos
são acompanhados de perto pelos jornais e pelo povo, demonstrariam essa
verdade, se nós próprios, míseros mortais, não tivéssemos chegado pessoalmente a
essa ingrata convicção. Não há, efetivamente, no Rio, um ponto, um abrigo, um
refúgio em que se possa evitar a curiosidade dos olhares e das perguntas alheias. E
quando esse lugar aparece, é tal a sofreguidão com que o procuram as pessoas
discretas, que ele se torna, de pronto, um dos mais movimentados da cidade.
Ainda, agora, a propósito da visita de SS. MM. os Reis da Bélgica à Escola
Nacional de Belas-Artes, veio-me à lembrança um episódio ali ocorrido, e em que
tomei parte, durante a última exposição de artistas nacionais.
Solicitado por Mme. Cardoso Khan a ministrar-lhe, sem a assistência do
marido, uns conselhos paternais sobre um caso do seu interesse, alvitrei, por
telefone, a possibilidade de um encontro em lugar reservado, onde pudéssemos
conversar em respeitosa intimidade. Aceita a minha proposta, a virtuosa senhora
indagou:
— Onde poderá ser?
— Na "Mére Louise", no Leblon! — lembrei.
— Não, lá, não; tem muita gente. Podiam ver-nos, maliciar, e ir dizer ao
Abelardo.
— Então, na casa de D. Matilde, no Flamengo! — tornei.
— Também, não. Ela é muito relacionada. Vai muita gente lá...
Apresentados e repelidos outros alvitres, veio-me à idéia, de súbito, a
revelação de um amigo, e propus:
— A senhora já foi à Exposição da Escola Nacional de Belas Artes?
— Não.
— Pois, então, vá. Chegando lá, espere por mim, que subiremos, os dois,
para o terraço que há em cima do edifício, o qual está sempre deserto. Abrigados
por uns respiradouros que já existem, poderemos conversar sozinhos, inteiramente à
vontade.
— Não sobe lá ninguém?
— Ninguém, filha! Eu estive lá o ano passado uma tarde inteira, e não
apareceu ninguém!
À hora combinada, entrava na Escola, risonha e medrosa, a elegante criatura.
Fiz-lhe um sinal e ganhamos a escada. De repente, recuei.
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Em cima, no terraço, havia mais gente, aos casais, do que em baixo, na
Exposição!
Capítulo LXXXVII
O Ladrão
20 de setembro
Quem lê os jornais desta capital, tem a impressão de que a arte que mais tem
progredido, é, no Rio de janeiro, a arte de furtar. Os feitos da gatunagem são,
realmente, aqui, tão numerosos e freqüentes, que se fica supondo, ao examiná-los,
que os nossos gatunos são homens inteligentíssimos, capazes de ludibriar o resto
da população.
O caso não é, entretanto, este. Os gatunos não progrediram, não
acrescentaram uma página, sequer, ao famoso compêndio do padre Antônio Vieira.
O que sucede é coisa diferente: a população ingênua, ou incauta, foi que se tornou
mais incauta ou mais ingênua tornando, assim, mais fácil do que outrora, a infração
do sétimo mandamento. O caso do comissário Francisco Ambrósio é, mais ou
menos, uma viva demonstração dessa verdade.
Funcionário policial de uma argúcia surpreendente, Francisco Ambrósio de
Oliveira era apontado em toda a parte como um legítimo espantalho da gatunagem
urbana. Não havia meliante, malandro ou desordeiro que ele não conhecesse. O seu
faro de perdigueiro, auxiliado por uma perspicácia digna de Sherlock Holmes,
constituía, pode-se dizer, o melhor elemento de repressão de que, até hoje, dispôs a
policia.
Certa noite, porém, ao entrar, de regresso da ronda, na sua própria casa,
ouviu Francisco Ambrósio, de repente, movimentos de gente estranha no pavimento
superior. Cauteloso, habituado a essas experiências da própria coragem, galgou,
três a três, os degraus da escada, até que observou, espantado, que o visitante
noturno se havia homiziado no seu quarto de dormir. Ao abrir o compartimento
sofreu, no entanto, uma decepção: a única pessoa que ali se achava era D.
Luisinha, a qual, ao escancarar-se a porta, pulou, assustada, da cama, sem saber
do que se tratava.
O faro policial é, felizmente, uma virtude que se manifesta contragosto,
mesmo, de quem a possui. E assim foi que, sem custo, Francisco Ambrósio
descobriu, impondo silêncio com o dedo indicador estirado sobre os lábios, que
havia um gatuno debaixo da cama.
— O gatuno está ali debaixo! — rosnou, convicto, ao ouvido da mulher.
E em voz alta, arrancando o revolver do bolso traseiro da calça:
— Quem está aí?
D. Luisinha tremeu, pela sorte do marido.
— Quem está aí? — gritou, de novo, o comissário.
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E ia perguntar pela terceira vez. quando a moça, temendo que o ladrão lhe
saltasse sobre o esposo, segurou a autoridade pela manga do paletó, puxando-a
para fora do quarto, ao mesmo tempo que aconselhava, amorosa:
— Deixa disso, Francisco. Ele, que não responde, é com certeza, porque não
é conhecido...
Capítulo LXXXVIII
O Prestígio do "Rouge"
23 de setembro
Quando a gripe devorava, no Rio de janeiro, diariamente, centenas de vidas,
a porta do Céu fazia, recordar, lá em cima, as portas de cinema, em dia de programa
sensacional. Homens, mulheres, crianças, pessoas cuja morte estava iminente ou
marcada para uma época muito distante, amontoavam-se diante da grande fachada
refulgente de estrelas, reclamando, com o bilhete de entrada, o prêmio das suas
boas obras ou do seu martírio.
— Antônio Esmeraldino Gomes de Albuquerque! — chamava, em voz alta, o
santo do dia, lendo uma lista de nomes.
— Presente! — respondia o invocado, encaminhando-se para a porta.
São Pedro conferia os sinais da pessoa e dava-lhe, então, entrada, entre o
coro festivo dos anjos.
Uma tarde, porém, chegou à fachada do Paraíso, entre milhares de vítimas da
epidemia, uma senhora de uns quarenta e tantos anos, vitimada naquele dia. Pálida,
com os lábios alvos como a cera dos círios que deixara na terra, a sua fisionomia
denunciava cansaço, tristeza, sofrimento. De repente, chamaram um nome:
— D. Luíza Gonçalves Pedreira.
— Presente! — confirmou a nobre defunta, pondo, já um dos pés no batente
sagrado.
Uma grande mão desceu, porém, sobre o seu ombro, detendo-a.
— É a senhora? — indagou, severo, o chaveiro.
— Sou eu mesma, meu santo!
— Mas a outra, a que vivia na terra, tinha, segundo os sinais que me
fornecem, as faces muito coradas.
A dama não respondeu.
— E os lábios muito vermelhos.
Novo silêncio.
— E os cabelos muito negros.
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Silêncio ainda.
— E umas olheiras muito pronunciadas.
Nesse ponto, antes que a enumeração tomasse um caráter comprometedor,
D. Luisinha teve uma idéia: mergulhou as mãozinhas pálidas no forro da mortalha,
arrancou de lá um lápis de "rouge", um pedaço de bistre, um canudo de cosmético,
penteou-se, empoou-se, endireitou-se, e, levantando a cabeça, encarou o apóstolo.
— Pronto! — exclamou a dama.
São Pedro mirou-a, sorrindo. E, escancarando a porta, convidou:
— Ahn! É a senhora mesmo... Entre!
E ela entrou.
Capítulo LXXXIX
A Festa da Inteligência
25 de setembro
Por especial deferência do sr. ministro das Relações Exteriores, foi-me
permitido, anteontem, nos "Diários", tomar parte, como diplomata, nas homenagens
prestadas pela intelectualidade brasileira a Sua Majestade o Rei da Bélgica.
Relegado para as filas destinadas aos jovens funcionários do Itamarati, não foi sem
custo que consegui aproximar-me do local distribuído aos homens de ciências e de
letras, cujos paramentos, tirados às sete cores do arco-íris, davam à solenidade um
tom de magnificência, de luxo, de riqueza, verdadeiramente excepcional. Ao lado
dos fardões acadêmicos, faiscantes de ouro, berravam o vermelho dos capelos, o
verde das murças, o negro das becas, assinalando, no tumulto das cores, os
catedráticos das Faculdades de Medicina e de Direito, os membros do Instituto
Histórico, os doutores da Ordem dos Advogados. E como se não bastasse o aspecto
magnificente das vestimentas, cintilavam por toda a parte as medalhas, os crachás,
as condecorações de todos os países do mundo, como se tivesse caído sobre
aquela assembléia de sábios uma luminosa chuva de pedrarias.
A atual sociedade brasileira, educada nos costumes igualitários da República,
não pode ver, entretanto, a sério, essas manifestações suntuosas da vaidade
humana. Deslumbrados com o que viam, os espíritos divagavam, tontos, sem
compreender a legítima expressão daquele espetáculo. Dessa verdade lamentável,
tive eu vários documentos, que me causaram a mim verdadeira indignação. A minha
primeira desilusão foi à entrada do Sr. barão de Ramiz Galvão, o velho e glorioso
fidalgo do Império. Trajando uma casaca irrepreensível, o eminente educador trazia
ao peito, do ombro à cintura, e de ambos os lados, todas as suas condecorações.
Eram a da Rosa, do Brasil; a de Santiago, de Espanha; a da Ordem de Cristo, de
Portugal; a da Legião de Honra, da França; a do Elefante Azul, da Pérsia; a de
Estanislau, da Polônia; a da Ordem do Latrão, do Vaticano; e tudo isso no meio de
passadeiras, bentinhos, cordões, amuletos, fitas, distintivos, medalhas e
penduricalhos, obtidos em sessenta anos de discursos e magistério. À chegada do
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venerando professor, houve um deslumbramento; e o primeiro comentário, de uma
senhora colocada nas proximidades do corpo diplomático, foi, logo, este:
— Meu Deus! Parece... porta de casa de brinquedos!
A entrada do desembargador Ataulfo de Paiva, da Academia de Letras,
causou o mesmo pasmo, o mesmo espanto, a mesma admiração. Ornamentado
com as suas dezenove condecorações, postas em destaque pela sua faixa vermelha
de Cavaleiro de São Maurício e pela originalidade do seu cordão da Ordem do
Dragão, da China, o ilustre magistrado estava deslumbrante. Sem perder a calma, o
primeiro a registrar, com espírito, a sua situação, foi ele próprio.
— De onde vem, desembargador? — indagou, com graça, à entrada do salão,
a Sra. Santos Lobo.
E ele, sorrindo:
— Da festa da Penha, excelentíssima!
Dentro, no recinto dos homens eminentes, destacavam-se, também, pela
singularidade, os distintivos de Carlos Malheiro Dias. Antigo fidalgo da Casa Real
Portuguesa o brilhante escritor vestia uma capa em vermelho e preto, semeada de
comendas azuis, de crachás amarelos, de medalhas reluzentes, a emergirem de um
oceano de fitas simbólicas, pertencentes a vinte ordens diversas. Ao vê-lo indagou
uma senhora:
— Que capa é aquela do Dr. Malheiro Pias?
E a outra explicou:
— É uma capa... da "Revista da Semana", menina!
A impressão geral daquele publico republicano, foi interpretada, porém, entre
tantos episódios, por uma frase, ouvida por mim no termo da festa. Comprimindo-se
com arte, apertando-se com elegância, empurrando-se com delicadeza, a multidão
procurava a porta de saída, quando encontrei à minha frente um grupo de moças, no
meio do qual ia um cavalheiro idoso, afogado até o pescoço na sua enorme beca de
professor de Direito. Oprimido de um lado, empurrado de outro. o educador
defendia-se aflitamente, quando uma das filhas lembrou, compadecida:
— Porque papai não tira... o dominó?
E o Carnaval caiu na rua.
Capítulo XC
Conseqüências do Protocolo
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A vida boêmia levada no Rio de janeiro por Sua Majestade o Rei Alberto não
tem sido um obstáculo, apenas, à pratica do protocolo organizado pelo Sr. Ministro
das Relações Exteriores. Homem simples, democrata, identificado com as camadas
populares do seu reino, o monarca dos belgas tem revolucionado as praxes
aristocráticas estabelecidas pelo governo, e influído, mesmo, nas nossas relações
internacionais.
Ainda ontem chegou ao Itamarati, oficialmente, a notícia dessa influencia, que
se foi refletir, de modo lamentável, fora do continente. Como toda gente sabe, era
pensamento do Sr. Dr. Antônio José de Almeida, ilustre Presidente da Republica
Portuguesa, vir ao Brasil, pagando, assim, em nome dos seus concidadãos, a visita
que lhe fez, de regresso da França, o Sr. Dr. Epitácio Pessoa. Com a iniciativa de S.
M. o Rei da Bélgica, vindo ao Rio de janeiro, mais se acentuou no eminente
estadista português o desejo de visitar-nos, e de tal forma que, há três dias. recebia
o Sr. Dr. Duarte Leite, embaixador de Portugal, um telegrama do seu governo,
indagando qual havia sido aqui, o protocolo a que se submetera o rei Alberto.
Solícito, o notável diplomata respondeu, de pronto, como era do seu dever.
— "No primeiro dia — explicou S. Ex., em telegrama, — o Rei visitou o
Presidente da Republica, e jantou em palácio; no segundo, tomou banho na praia de
Copacabana, e visitou o Congresso; no terceiro, recebeu a sociedade brasileira, e
tomou banho em Copacabana; no quarto, tomou banho em Copacabana, e passou
em revista as tropas de terra e mar; no quinto, recebeu as saudações das
associações literárias e científicas, e tomou banho em Copacabana. E assim por
diante."
A resposta do Presidente de Portugal não se fez esperar. Vinte e quatro horas
depois recebia o Dr. Duarte Leite o seguinte telegrama do Dr. Antônio José de
Almeida:
— "Impossibilitado satisfazer exigências protocolo, desmanchei viagem".
O governo brasileiro foi informado, realmente, de que o Sr. Dr. Antônio José
de Almeida tem andado com febres.
Capítulo XCI
Os Colchetes
2 de outubro
Eram cinco horas da tarde, quando, fechado o escritório, o Dr. Godofredo
entrou no seu palacete do Flamengo, para levar a mulher a passeio. Enveredando
pela casa com a sua liberdade de marido jovem, foi ele encontrar a encantadora
senhora de pé, diante do "psyché", recebendo os últimos retoques no seu vestido
novo, pronta para sair. Ajoelhada no tapete de pelúcia cor de ouro, a costureira, a
boca repleta de alfinetes, pregava aqui, repregava ali, endireitava acolá, ajustando,
como o artista ao seu quadro, as últimas curvas, as últimas ondulações da fazenda
naquela maravilhosa estátua de carne.
Sentando-se no canapé do quarto de "toilette", o moço olhava, em silêncio, a
meticulosidade da costureira, a perfeição do seu trabalho e a paciência do seu
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modelo, quando, diante daqueles toques e retoques infindáveis, lhe aflorou à boca
uma observação:
— Silvia, dizes-me uma coisa?
— Que é? — atendeu a moça, sem voltar-se, com os olhos no espelho.
— Por que é que os vestidos das mulheres, em geral, abotoam para trás?
A costureira riu, cuspindo os alfinetes na mão, estranhando a pergunta; a
estátua que ela retocava apressou-se, porém, em explicar-lhe o caso, sorrindo-lhe
pelo cristal do "psyché".
— Você, então, não sabe?
E explicou:
— O momento mais glorioso da vida da uma mulher, é aquele em que ela se
prepara para sair. Diante do espelho, refletindo-se na lâmina lisonjeira, ela se
glorifica a si mesma, olhando-se, mirando-se, namorando-se. Antes de agradar aos
outros, ela quer agradar-se a si mesma; e daí as horas que passa diante do espelho,
mirando-se, remirando-se, quando lhe seria mais vantajoso estar na rua, no salão,
no passeio, recebendo ou fazendo visitas, para ser vista, louvada, admirada.
E depois de uma pausa, forçada por uma recomendação à costureira:
— Com essa paixão por si mesma, pelas suas "toilettes", pelo namoro da sua
própria figura, a mulher não poderia admitir, evidentemente, que, ao ir vestir-se,
outra mulher se pusesse entre ela e o espelho, para abotoá-la. Seriam momentos de
auto-contemplação que ela perderia, e que ela evitou, relegando para trás os botões,
os colchetes, os alfinetes, as pressões, e, com eles, a costureira, que deixa de lhes
fazer sombra diante do espelho.
Horas depois regressavam os dois do passeio, durante o qual o jovem
advogado estivera a meditar sobre a vaidade feminina, refletindo sobre o que lhe
dissera a esposa em relação à origem do feitio dos vestidos, quando compreendeu
que era mentira tudo quanto ela, à tarde, lhe contara. Foi quando a mulher,
preguiçosa e risonha, lhe voltou as costas. pedindo:
— Desabotoa aqui?
A origem daquele costume era, positivamente, aquela. As mulheres puseram
os colchetes e pressões dos vestidos para trás, unicamente para os maridos lhes
beijarem as espáduas...
Capítulo XCII
O Vestido
4 de outubro
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Uma das minhas primeiras crônicas nesta folha, há três ou quatro anos,
versou, se bem me lembro, sobre o milagre realizado por certas senhoras elegantes,
as quais, tendo recebido do esposo um simples corte de seda, conseguem fazer
com ele, por processos que só dias conhecem, quatro ou cinco vestidos de cores
diferentes. Os esposos que ignoram, em absoluto, esses curiosos fenômenos de
química, fecham os olhos, inteiramente, a todos os prodígios desse gênero; outros
querem, porém, apoderar-se do segredo, e o resultado é tentarem obtê-lo à força,
esgaravatando a esposa com uma faca ou, o que é menos bárbaro, com uma bala
de revólver.
Deste último gênero, fiscalizando a mulher como quem fiscaliza uma fronteira
ameaçada era, felizmente ou infelizmente, o Dr. Cantidiano de Sampaio Gutterres,
figura tão conhecida no foro da cidade, e, principalmente, nas altas rodas mundanas.
Chefe de família exemplaríssimo, o notável advogado não admitia que lhe entrasse
em casa, sequer, um alfinete, sem o seu consentimento. As compras, as mais
insignificantes, era ele quem as fazia pessoalmente, e isso, menos pelo temor de ser
enganado no preço dos objetos adquiridos do que pelo programa, que se traçara, de
tomar conhecimento de tudo que lhe entrasse no lar.
Desse cuidado do ilustre advogado, dá idéia, para honra sua, o episódio que
lhe ia perturbando, há poucos dias, a vida doméstica, depois de doze anos de
casado. O Dr. Gutterres havia comprado para a mulher, há um mês antes de partir
para São Paulo, um vestido de seda verde, de uma que esteve em moda, no
máximo, oito dias. De regresso, ao entrar em casa, sem ser esperado, encontrou-se,
na escada, com a esposa, que vestia uma "toilette" nova, e, essa, amarela, gema-
d'ovo, e sobretudo, riquíssima. Ao defrontarem-se, ficaram, os dois, mais amarelos
do que o vestido.
— Que quer dizer isto, senhora? — trovejou o esposo, crispando os dedos, de
cólera.
D. Antonieta encarou-o, sem dizer palavra.
— Que significa este luxo, na minha ausência? — tornou, terrível, o marido.
— Quem lhe deu esse vestido?
— Foi você... — sussurrou a pobre senhora, tremelicando o beicito vermelho
de "rouge".
— Eu? O vestido que eu lhe dei, então, não era verde? Como é que, agora, a
senhora se apresenta com um vestido amarelo?
Ao cérebro da moça acorreu, de súbito, uma idéia, que fugiu logo, deixando
apenas o rastro. Os olhos brilharam-lhe, vivos, úmidos, penetrantes, numa floração
de luz, tornando-a mais jovem, mais fresca, mais linda.
— Era... — confirmou a moça
O marido encarou-a, esperando a confissão abominável. O rosto de dona
Antonieta irradiou, de repente, no anúncio de uma surpresa, que podia ser um
sorriso, ou uma lágrima.
— Era verde, sim... tornou, baixando os olhos: — mas...
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E, perturbadíssima, sem encontrar outra saída:
— Amadureceu, Cantidiano...
Capítulo XCIII
Convenientes do Ciúme
7 de outubro
Com a sua perspicácia de mulher inteligentíssima e original, Ninon de Lenclos
recomendava aos maridos que se não mostrassem ciumentos sem um motivo claro,
seguro, evidente, para a manifestação de tal sentimento. "Não é com suspeitas —
afirmava ela, — não é com suspeitas que se fortalece a fidelidade da mulher". E
acrescentava, experiente: "Uma injúria tal, longe de a prender, enfraquece-a,
familiarizando-a com sentimentos cuja só idéia devia parecer-lhe um crime. Acreditar
na sua inconstância, faz com que ela se acostume a encará-la como possível, a
aproximar-se mais dela. Isso só pode contribuir para que a mulher acredite ser a
fidelidade um mérito, quando somente devia ser um dever."
Essas observações endereçadas a todos os maridos injustificadamente
ciumentos, faziam parte, já, do meu cabedal de experiência, fornecida por um
incidente que, há meses, profundamente me impressionou.
Senhora de uma formosura incomum, D. Colete abandonou o marido,
arrastada pela violência do coração. Esse gesto, que poderia tê-la conduzido à
miséria, à lama, à vergonha, levou-a, pelo contrário, ao esplendor e à felicidade. O
jovem capitalista que a recebera nos braços na sua queda, era considerado, e
merecidamente, o homem mais rico da capital. E era a fortuna e o coração desse
homem generoso, nobre, cavalheiresco, que ela via a seus pés, derretidos numa
chuva de ouro, como aquela com que Júpiter fecundou, na torre de Argos, a
desditosa mãe de Perseu.
Robusto, moço e riquíssimo, o ilustre capitalista não tinha motivos para temer
um competidor. O seu orgulho, a consciência da sua própria situação econômica,
deviam conservá-lo muito alto, acima de quaisquer temores. O coração que lhe batia
no peito era, porém, medroso, covarde, infantil, e foi dominado por essa fraqueza
que ele chegou, uma vez, a confessar o seu susto, dizendo à mulher amada, com o
rosto nas mãos:
— Tu não imaginas, Colete, o que tem sido a minha vida, depois que vivemos
juntos. Eu tenho por ti uma paixão desesperada. A minha fortuna, a minha vida, o
meu destino estão nas tuas mãos. Dou-te, como tens visto, o que desejas, e dar-te-
ia mais, se m'o pedisses. A minha felicidade é, entretanto, perturbada por um temor
permanente: temor de que me deixes, susto de que me abandones, receio de que te
apaixones por outro, deixando a minha companhia!
A essas palavras, tão sinceras, arrancadas do coração, a rapariga franziu a
testa modelar, coroada de cabelos dourados, como quem acaba de ouvir uma
novidade surpreendente. Com os cotovelos de mármore fincados na mesa de jantar,
e com o rostinho de boneca, muito claro e muito lindo, pousado nas mãos de seda a
sua fisionomia denunciava uma grave preocupação. De repente, a testa se lhe
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vincou ainda mais, e uma pergunta aflorou, franca, ingênua, encantadora de
naturalidade, na sua boquita vermelha:
— Há, então, no Rio, outro homem mais rico do que tu?
E, intrigada, de si para si:
— Quem será?
Capítulo XCIV
Miopia
10 de outubro
Uma das graças que eu devo ao Supremo Arquiteto do Universo é haver me
dotado de vista excelente. Até os sessenta e cinco anos eu recusei aos olhos,
sempre, qualquer auxílio artificial, vindo a capitular, apenas, há seis, quando tive de
recorrer à piedade ótica de um monóculo providencial. Um aparelho visual perfeito
vale por uma benção do céu; e deve levantar as mãos, rendendo-lhe o culto do seu
coração, todo homem, velho ou moço, que tem a luz suficiente para enxergar, de
noite ou de dia, os perigosos buracos do mundo.
Não era assim, infelizmente, o meu saudoso amigo Vieira Cardoso, a quem a
magnanimidade do imperador concedeu, mais tarde, o titulo de visconde de
Guaxupé.
Vieira Cardoso, que foi duas vezes ministro na Monarquia, era, talvez, o
homem mais míope de todo o Brasil. Usava grau três, reforçado, e, tirando o pince-
nez, era capaz de confundir um ovo com um prego e de comer o prato em lugar da
lingüiça. Ele era, mesmo, tão curto dos olhos, que muitas vezes se surpreendeu, ele
próprio, batalhando nas fileiras do partido contrário, vitorioso na véspera, na
suposição de que estava, ainda, ao lado dos seus correligionários derrotados. O
fruto desse defeito colheu-o ele, entretanto, nos limites do lar, em um incidente que
ele mesmo, um dia, me contou.
Era o visconde ministro da Justiça, no gabinete Tamandaré, quando, certa
manhã, entrou na sua sala de trabalho, em sua própria residência, uma senhora
encantadora, que lhe ia pedir, como as esposas de hoje, um emprego para o marido.
Cabeça baixa, olhos e nariz no papel, estudava o ministro um dos processos que lhe
eram submetidos a despacho, quando, insensivelmente, estendeu o braço,
alcançando a dama pela cintura. Com a brutalidade da surpresa, a moça não abriu,
sequer, a boca; e nem lhe era isso possível, porque, quando quis protestar, estava,
já, com os lábios grossos do visconde grudados, como ostra em rochedo, nos seus
polpudos lábios famintos!
Nesse momento, porém, abre-se, ao fundo, a porta do gabinete, e surge, com
a cólera faiscando nos olhos, o vulto da viscondessa.
— Sr. Visconde, que é isso? — exclamou, rubra, a esposa do ministro.
A essa voz, a aventureira, de um salto, ganhou a porta fronteira,
desaparecendo sob o reposteiro solferino. Boquiaberto, o visconde deixou-se ficar
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sentado, com os braços estendidos. Ouvindo, porém, de novo as palavras
indignadas da esposa, estranhou, aflito, pondo-se de pé:
— Então, não era Vossa Excelência, Sra. viscondessa? Não era Vossa
Excelência que estava aqui, a meu lado?
E, tateando na mesa, procurando, com os dedos trêmulos, o pince-nez,
lamentou, batendo na testa, com a mão espalmada:
— Maldita miopia!... Maldita miopia!...
E escanchou a bicicleta no nariz.
Capítulo XCV
O Sapateiro
14 de outubro
Sempre que as mulheres realizam uma nova conquista política, obtendo
novos lugares, novos postos de relevo na vida civil, surgem de toda a parte os
argumentos sobre a sua suposta inferioridade mental, como se fosse possível
contestar com teorias aquilo que é contrariado pela evidencia incontrastável dos
fatos. Forte, ou fraca, auxiliada pelos deuses ou pelo demônio, o certo é que a
mulher se tem manifestado, por mais de uma vez, superior ao homem, pela
agudeza, pela perspicácia, e, não menos, pelo bom senso com que resolve
determinados problemas da vida.
Um caso que me vem à memória toda a vez que se levantam discussões
sobre essa matéria debatidíssima, é o que ocorreu, há anos, em Baixa Verde,
localidade sertaneja do Rio Grande do Norte, e que me foi contado, há seis ou oito
anos, no Senado, pelo atual ministro da Marinha, o ilustre Sr. desembargador
Ferreira Chaves.
Andava o Sr. Manoel Lourenço pelos quarenta anos de vida, dos quais vinte e
cinco haviam sido consumidos em calçar de chinela e tamancos a décima parte da
população local, quando lhe apareceu na oficina, para encomendar um sapatinho de
cordavão, a risonha Clotildinha, meninota de quatorze anos, mais ou menos,
pertencente a uma família modesta, mas honrada, residente no lugar. Respeitoso, o
Manoel Lourenço ajoelhou-se no chão, marcou no tijolo, com dois riscos de faca, o
tamanho do pé, apanhou-lhe a altura com uma tira de papel dobrado, e, não sabe
como, ao erguer-se, estava inteiramente transfigurado de coração.
À noite, o pobre sapateiro não pode dormir. Mal fechava os olhos, e surgia-lhe
no pensamento a perna morena da Clotildinha, a emergir do mistério da saia curta,
de chita encamada, como se fosse o caule duplo de uma rosa em botão, cujo
perfume lhe ficava eternamente vedado. E tanto o mísero se preocupou, aflito, com o
caso, que, um mês depois, estavam casados, com todos os sacramentos e todas as
bênçãos, a menina e o sapateiro da Baixa Verde.
Só depois de casado, porém, foi que o Sr. Manoel Lourenço verificou a
barbaridade que cometera. Menina ainda, a Clotildinha podia ser, pela sua idade,
pelas suas maneiras e, principalmente, pelo seu físico, sua filha e, até — quem
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sabe? — sua neta. E era pensando nisso que a mantinha a seu lado
carinhosamente, paternalmente, tratando-a como quem trata uma criança.
Quem não gostava desses modos era, porém, a Clotildinha. O Manoel
Lourenço tinha ido buscá-la à casa materna para mulher, para companheira, para
sócia da sua vida e do seu destino, era natural, portanto, que a tratasse como tal,
fazendo-lhe participar da existência em comum, e, até, dos negócios comerciais da
sua oficina.
Certa manhã, havia o Manoel Lourenço acordado cedo e, como de costume,
chamou a menina, ordenando-lhe que se sentasse a seu lado, na beira da rede,
para conversarem. A moça sentou-se, e conversavam os dois, como pai e filha, com
os olhos pregados no teto, quando viram, de repente, correr um camundongo, um
ratinho de meia polegada, o qual, passando entre os caibros e as telhas, se foi
perder, em cima, nos buracos da cumeeira. Ao ver o rato, Clotildinha virou-se, de
súbito, para o marido, e pediu, dengosa:
— Sabes, Manoel, que é que eu queria?
— Que é? — indagou o esposo, divertindo-se com aquela alegria.
— Eu queria que tu matasses aquele rato e fizesses um par de sapatos para
mim!
O sapateiro achou graça na infantilidade da moça, e retrucou, rindo:
— Que tolice, Clotilde! tu não vês que o couro daquele camundongo não dá
para um par de sapatos?
A moça encarou-o com as faces em brasa, e, pondo a cabeça no seu peito,
gemeu, na ânsia de possuir o seu sapato:
— Dá, Manoel, dá!
E ao seu ouvido, com a voz tremula:
— Olha, Manoel, o couro... espicha!
E abraçou-o, chorando.
Capítulo XCVI
Entre os Papuas
17 de outubro
Um dos maiores sonhos da minha infância era atravessar a vida viajando. As
aventuras do "Guliver" de Swift; o "Rocambole", de Ponson, e as fantasias de Júlio
Verne, cuja primeira obra me foi oferecida no dia do meu 14° aniversário, exerceram
tamanha influência sobre o meu ânimo, que eu não pensava, na adolescência,
senão naquelas viagens maravilhosas. Homem feito, abracei a carreira que mais se
coadunava com as minhas aspirações de criança; e, como a vida fosse curta para
tanto projeto desordenado, é com verdadeira alegria que os completo hoje,
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mentalmente, ouvindo, aqui e ali, onde os deparo, a palestra dos amigos mais
viajados do que eu.
Uma destas noites, após o jantar elegantíssimo com que o desembargador
Corrêa da Cunha festejou o regresso do comendador Adeodato de Barros, que
voltava da sua última excursão às índias e à Oceania, tive eu um dos momentos
mais felizes da minha vida, ouvindo a história desse passeio de milionário, o qual
durou, como é sabido, cerca de três anos e meio. Com a sua palavra viva, segura,
concisa, narrava o soberbo capitalista os episódios mais interessantes, quando, em
certo momento, se voltou para as senhoras, explicando:
— O costume mais curioso que eu encontrei foi, porém, o dos indígenas das
Molucas, entre os quais me demorei algum tempo.
As senhoras voltaram-se, interessadas, e o comendador começou, mexendo,
pausadamente, com uma colherinha de prata, a sua taça de vinho com água e
açúcar:
— Entre os papúas, o casamento é inteiramente livre. Adeptos da poligamia,
como o são, em geral, os povos brutalizados, esses indígenas permitem que o
homem tome, e sustente, as mulheres que bem entenda. Uma exigência é, no
entanto, feita a quantos se queiram prevalecer dessa faculdade: cada casamento
que o indivíduo contrai é selado com uma cerimônia bárbara, que consiste em
arrancar um dente aos esposos. Ao contrário do que sucedia a certos povos antigos,
entre os quais o contrato nupcial era selado com a incisão em duas veias do braço,
para que o sangue dos noivos se misturasse, os papúas exigem esse sacrifício dos
dentes, de modo que o beijo de núpcias é um beijo sangrento em que se confunde,
num pacto horrendo, que é um símbolo da união na vida, o sangue dos nubentes.
— Que horror! — observou Mme. Schwartz, fazendo uma careta.
— Que bárbaros! — reforçou Mlle. Toledo Gomide, repetindo o mesmo gesto
de nojo.
As outras senhoras comentavam esse costume dos indígenas com a mesma
indignação incontida, quando Mme. Corrêa Gomes indagou, curiosa:
— Quanto tempo o comendador passou entre essas feras?
— Um ano, minha senhora.
— Sem se afastar deles?
— Não, senhora. Saí duas vezes, para ir a Amboine, capital do arquipélago.
Passado um instante, explicou, distraído:
— Mas demorei-me pouco longe deles. Fui apenas concertar a dentadura...
E continuou a mastigar, forte, com todos os dentes.
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Capítulo XCVII
As "Meninas"
19 de outubro
Há páginas de literatura tão de acordo com a verdade, com as lições severas
e surpreendentes da vida, que a gente se fica, às vezes, a pensar horas e horas em
semelhante duplicidade. Essa curiosa surpresa tenho-a eu tido de vez em quando, e
tive-a ontem, mais uma vez, após uma leitura meticulosa da viagem feita por
Stendhal à Suíça no ano de 1821.
Os jornais do Rio de janeiro aparecem, como é sabido, cheios, diariamente,
de notícias de roubos, de assaltos audaciosos, à luz do dia ou no silêncio da noite, à
propriedade alheia. Não se abre nesta capital uma folha da manhã, ou da tarde, sem
encontrar a descrição da escalada de um muro ou de uma janela, por um dos
numerosos ladrões que perturbam, zombando da policia, o sossego da cidade.
— É uma calamidade, conselheiro! — dizia-me, na tarde de ontem rumo da
sua casa, onde íamos jantar com as suas Exmas filhas, o comendador Fulgêncio
Gadelha da Cunha. — Raro é o mês em que me não penetra um gatuno no quintal,
carregando-me com as galinhas, com os vasos de planta, com a roupa do tanque,
enfim, com tudo que lhe fica ao alcance. Já não sei mais o que faça!
— O comendador não tem cachorros no quintal? — indaguei, penalizado
daquela queixa.
O velho comerciante virou-se para mim e protestou, sacudindo a cabeça:
— Eu? Não!
— Pois, olhe, — insisti; — se o senhor tivesse um ou dois cachorrões de raça,
desses cães de guarda destinados a defender as habitações, ninguém lhe
penetraria, sequer, no jardim, fora de horas.
— Deveras? — tornou o velho.
Eu confirmei, e ouvi, com espanto, esta resposta absolutamente inesperada:
— Nesse caso, não os quero.
— Nos os quer? — estranhei, arregalando os olhos.
— Absolutamente. Porque, se eu puser cachorros no quintal...
E concluiu, ao meu ouvido, rindo, e piscando um olho:
— As meninas... não se casam!
Nesse momento penetrávamos, os dois, no jardim da casa, onde uns
pedreiros haviam deixado, por esquecimento, há seis meses, uma escada encostada
ao prédio, ao lado, exatamente, da janela das "meninas"...
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Capítulo XCVIII
Elas...
23 de outubro
O relógio da igreja próxima havia acabado de anunciar as dez horas da
manhã quando a encantadora mundana Suzete Latour penetrou, nervosa e célere,
na risonha "garçonniére" do jovem advogado Silvestre Lobato, que envergava,
ainda, àquela hora, o seu felpudo roupão de banho.
— Isto é certo? — indagou a rapariga, estendendo-lhe um jornal com a mão
esquerda, enquanto atirava para uma cadeira, com a direita, o seu lindo chapéu de
palha da Itália, florido como uma campina pela primavera.
A notícia do jornal era, nada mais, nada menos, do que o noivado do ilustre
bacharel com uma senhorita de família distintíssima, chegada recentemente de São
Paulo. Sem tocar na folha que a amante lhe estendia, o rapaz respondeu,
simplesmente, acendendo um cigarro:
— É.
Essa resposta fria, seca, brutal, desnorteara Suzete. Aquela afirmativa,
embora esperada, fora, para ela, um golpe no coração. Fulminada por esse
monossílabo, a rapariga segurou-se ao espelho da cama, para não cair. De súbito,
porém, subiu-lhe ao rosto uma onda de sangue, e foi vermelha, rubra de cólera, com
os olhos brilhantes e os dentes cerrados, que ela, amassando na mão o jornal, rugiu,
num desespero de leoa ferida:
— São assim, os homens! Nascem, dizem eles, para o amor, para sorverem,
altivos e alegres, todos os gozos da vida. Encontram no seu caminho uma mulher
cheia do mesmo sentimento, disposta a conceder-lhes tudo, tudo, tudo, para que
eles experimentem, até o êxtase, a glória de viver. Com a alma ardente, ela entrega-
se a eles; dando-lhes venturas que eles nunca sonharam, oferecendo-lhes a taça do
prazer, da alegria, da felicidade livre, para que a esvaziem, até o último gole. E, no
entanto, eles têm vergonha, têm nojo, têm asco dessa mulher, preferindo, a ela, que
não esconde os ardores do seu sangue nem os ímpetos do seu coração, a mulher-
mentira, a mulher-falsidade, a mulher-simulação, que lhes não entrega nem a alma,
nem o corpo, em obediência, unicamente, a preconceitos, a exigências sociais! À
mulher que afronta a sociedade, fiel ao seu temperamento preferem eles, covardes
diante do mundo, aquelas que não têm coragem para vencer, para atirar longe, em
nome do seu amor, a grilheta das conveniências!...
Cabisbaixo, olhos pregados no tapete semeado de flores de seda, o rapaz
ouvia, sem um protesto, a explosão daquele cofre de jóias malditas, daquela criatura
venenosa, mas admirável, que o guiava, há três anos, pelo complexo labirinto da
vida boêmia. E a rapariga continuava a andar, agitada, de um lado para outro do
compartimento, passando, nervosa, as mãos finas, alvas, esguias, pelos finos
cabelos dourados:
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— É bom, mesmo, que eu seja punida. A virtude, para os homens, é a
falsidade, é a simulação, é a mentira. Eles não sabem que o amor é incompatível
com o pudor, com o receio, com o respeito às convenções, e que ele está, só ele,
acima da vida e acima da morte!
E, numa onda de soluços mal sufocados, crispando os dedos:
— Infelizes! Buscam o amor, e onde o encontram, puro e selvagem, fogem
dele! Procuram a sinceridade, a lealdade feminina, a mulher que não mente, nem
com a sua boca, nem com o seu coração, nem com a sua carne, e, quando querem
amparar diante da lei uma criatura, vão buscar aquela que menos conhecem, sem
imaginar que a timidez é, nas mulheres, um cálculo, e sem se lembrarem que as
mulheres que amam não calculam nem pensam!...
Arrebatada pelas próprias palavras, Suzete limpou os olhos no lencinho de
seda, já ensopado de lágrimas, e, na mesma agitação, tomou o chapéu, disposta a
partir.
— É a última vez, sabes? nunca mais me verás no teu caminho. Adeus!
E ia já no rumo da porta, quando ouviu uma voz, que era um gemido:
— Suzete!...
A rapariga voltou-se, imperativa. Sentado na cama, com o rosto molhado de
pranto, o rapaz a fitava, olhos implorantes, braços estendidos. Ela fixou-o, severa, e
ouviu, então, esta súplica, ou, melhor, este soluço, que era uma capitulação para a
vida e para a morte:
— Suzete... Fica!...
Capítulo XCIX
Barba de Bode
26 de outubro
Foi recolhida, segunda-feira última, no Hospício Nacional, vítima de uma erva
erroneamente receitada por um herbanário dos subúrbios, a encantadora senhorita
Carmélia Passos, filha única e inteligentíssima da viúva Carlota Passos, proprietária
nesta capital.
Eu desconhecia ainda este caso, e já aplaudia com todo o meu coração a
atitude da Saúde Pública, perseguindo, punindo, combatendo com as armas da lei a
praga dos curandeiros. E aplaudia-a com a lembrança, apenas, de um episódio
doloroso, que me fora narrado, semanas antes, pelo meu prestimoso amigo o Sr.
senador Elói de Souza.
O coronel Raimundo de Araújo, comerciante em Natal, capital do Rio Grande
do Norte, havia entrado na casa dos sessenta anos quando, após quatorze de
viuvez, entendeu de contrair novas núpcias com uma sólida moçoila de São
Gonçalo. Pedida, porém, a rapariga, começaram as complicações, as dificuldades,
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os obstáculos e, com eles, o adiamento da cerimônia. Homem de idade avançada,
sujeito, portanto, ao efeito das emoções violentas, o coronel, assim que ficou noivo,
começou a declinar de forças, de coragem, de saúde, e de tal forma que, após um
mês de noivado, parecia haver envelhecido dez anos. Aflito, impressionado,
combalido, o abastado comerciante recorreu, e sempre inutilmente, a todos os
médicos da cidade. E já estava quase desiludido da cura e da vida, quando um seu
compadre, o capitão Ferreira, tabelião aposentado, a quem participara a sua
infelicidade, lhe perguntou, interessado:
— O compadre já usou chá de barba de bode?
— Barba de bode? — indagou o outro, espantado.
— Sim. Pega-se todo o dia um punhado de barba de bode, faz-se um chá
bem forte, e toma-se três vezes por dia.
E acentuou, sincero:
— É um santo remédio, compadre!
Animado com a nova esperança; o coronel Araújo mandou chamar à sua casa
de negócio um caboclo de Currais Novos, o Antônio Severo, grande criador de
caprinos naquela parte do sertão, e, sem lhe dizer para que era a encomenda, pediu
que lhe mandasse na primeira oportunidade, e a qualquer preço, um saco com
barbas de bode.
— Que quantidade, coronéo? — indagou o sertanejo.
— Uns dez quilos.
Duas semanas depois recebia o coronel Araújo a sua encomenda, entrando,
de pronto, no uso da medicina receitada. À medida, porém, que tomava o chá, sentia
efeitos exatamente opostos àquele que esperava: uma vontade doida de chorar, de
berrar, de bodejar lamentosamente, e, sobretudo, um desejo irresistível de fugir às
mulheres. No fim de um mês, a situação do enfermo era, mesmo, desesperadora:
magro, nervoso, espumando pelo canto da boca, passava as noites na rua,
encostando-se às paredes, às arvores, às pedras das estradas, nas proximidades do
porto, do mercado e do quartel, e em estado tal de desmoralização que os amigos,
penalizados com a sua infelicidade, tiveram de mandá-lo internar, com
recomendações especiais do Dr. Ferreira Chaves, então governador do Estado, em
uma casa de saúde de Pernambuco!
Esse desfecho de uma vida honrada e laboriosa impressionou, como era
natural, o meio em que vivia o conhecido negociante. Quem, entretanto, mais
pensava naquele infortúnio era o seu compadre Ferreira, autor da receita.
Preocupado com o caso, e sem encontrar para ele uma explicação aceitável, ia o
velho tabelião um dia pela praça do mercado quando sentiu, de repente, uma
pancada no ombro. Era o Antônio Severo, de Currais Novos, que havia chegado
naquele dia com uma partida de couros. A figura do sertanejo avivou-lhe, naquele
momento, uma lembrança; e como esta fosse teimosa, forte, renitente, o velho
Ferreira não se conteve, e indagou:
— Diga-me uma coisa, Severo: o coronel Araújo não lhe fez, quando você
esteve aqui da última vez, uma encomenda de barba de bode?
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— Fez, sim, senhor; e eu mandei, logo que cheguei lá.
— E você tem certeza de que era, mesmo, barba de bode?
Ante essa insistência, o matuto sorriu, cuspiu longe, por entre os dentes, e,
com a sua vozinha de ingênuo e de esperto, confessou:
— Home, "seu" capitão, garantir eu não garanto. O coronéo me encomendou,
é verdade, dez quilos de barba de bode. Mas porém, onde eu ia achar bode p'ra
tanta barba? E como pensei que desse tudo na mesma coisa, mandei mesmo de
cabra!
Capítulo C
O Triunfador
31 de outubro
O ano de 1940 decorre tranqüilo e próspero na cidade do Rio de Janeiro. As
festas do Centenário, celebradas em 1922, legaram à metrópole dos cariocas uma
grande série de melhoramentos, que a tornaram a capital mais formosa do mundo. A
Avenida da Independência, aberta a cães e o antigo Campo de Sant'Ana, fulge ao
sol, soberba e larga, com os seus prédios monumentais, de doze a vinte andares.
Inaugurados, há quinze anos, os carros elétricos da Empresa Aérea de Transportes
atravessam o espaço em todas as direções, indo, em poucos minutos, do alto da
Gávea à fortaleza de Santa Cruz, à semelhança de insetos monstruosos que
voassem, rápidos, ligados pelas antenas a invisíveis fios de arame. Das estações do
Pão de Açúcar, do Corcovado, de Santa Teresa, da Babilônia, levantam vôo a todo
instante aerobus enormes, que fazem o serviço para Petrópolis, para Teresópolis,
para Friburgo, para Minas, para São Paulo e para as ilhas, de bordo dos quais se
agitam lenços esvoaçantes, de pessoas que se despedem saudosas, de parentes ou
amigos que lhes dizem adeus do terraço dos grandes edifícios.
Em baixo, na Avenida da Independência, a estátua de Epitácio Pessoa faísca,
monumental. Vendedores de jornais, montando pequenos veículos de duas rodas,
apregoam, alto, as novidades do dia, entre as quais avulta a notícia de que o Loyd,
nesse ano, não deu "deficit". As ruas, as praças, as avenidas, e o próprio espaço,
fervilham de passeantes e de veículos, quando um guarda civil do serviço aéreo
anuncia, pelo telefone sem fio a aproximação de um aeroplano esquisito e de
marcha retardada, que procede do Sul.
Afixados os cartazes elétricos no alto dos morros, os transeuntes elegantes
retiram os binóculos da cintura, afixam-nos na direção indicada, esperando o
viajante desconhecido. Será um selenita, um dos misteriosos habitantes da Lua?
Será um emissário de Marte? Nariz para o ar, chapéu na mão, os cariocas
acompanham a marcha do gafanhoto de aço, que desce, aos poucos, trepidando e
zumbindo, até pousar, em frente ao Club Revolucionário Maurício de Lacerda, na
praça Carlos Sampaio, onde era antigamente o morro do Castelo. Curiosa, a
população precipita-se, correndo e voando, naquele rumo, para ver o recém-
chegado, que salta com dificuldade do seu aparelho. É um ancião alto, magro, de
cabeça alva, e com uma barba de neve que lhe desce, abundante, até o estômago.
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Admirado, olha ele para um lado e outro, como a perguntar-se a si mesmo se
não terá errado o caminho, quando um cavalheiro idoso o encara, e recua. E um
grito de entusiasmo estruge, reboa, troveja, abalando a cidade.
— De Lamare! De Lamare!
É De Lamare que regressa, vitorioso, do "raid" a Buenos Aires!...
Capítulo CI
A Cornucópia
1° de novembro
O Gabrielzinho havia regressado da rua intrigadíssimo com aquela novidade.
Por que motivo, realmente, a prosperidade havia de ser simbolizada sempre por um
chifre repleto de moedas, que uma mulher despejava de cima, com o sorriso nos
lábios? Que significaria aquele anúncio berrante da casa de loterias, no qual se via a
Fortuna a derramar o ouro da sua cornucópia sobre a cabeça irrequieta dos
homens? Ingênuo, puro, infantil, o seu primeiro cuidado, ao chegar em casa, foi
perguntar ao velho Gabriel:
— Papai, por que é que a Fortuna é representada, sempre, com um chifre na
mão?
O honrado comerciante coçou a calva, atrapalhado, mas D. Lavínia o tirou da
dificuldade, insistindo:
— Responde, Gabriel! Você não tem lá dentro um livrinho que trata dessas
coisas? Essa figura, como ele diz, representa, mesmo, a Fortuna. Se você duvida,
veja o livro.
— É verdade! — exclamou o velho. — Aquele livro deve dar.
E, indo buscar um volume, pequeno, miúdo, edição popular, do "Dicionário da
Fábula", de Chompré, tradução portuguesa, leu, alto, à pag. 165:
— "FORTUNA —, deusa que preside ao bem e ao mal."
— Não é aqui, — acrescentou.
Folheou para trás, e tornou a ler, à pag. 4:
— "ABUNDÂNCIA — divindade alegórica que se representa na figura de uma
donzela no meio de todo o gênero de bens, grossa de carnes, com vivas cores, e
tendo na mão um corno cheio de flores e frutos. Dizem ser filha de Acheres ou da
cabra Amaltéa."
— Folheou para a frente, e continuou, à pagina 31:
— "AMALTÉA — É o nome da cabra que deu leite a Júpiter. Em
reconhecimento deste bom serviço, ele a colocou, com dois cabritos, seus filhos, no
céu, e deu um dos seus cornos às ninfas que cuidaram dele desde a sua infância,
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com a virtude de produzir quanto elas apetecessem. Chamava-se-lhe o "Corno da
Abundância".
Terminada a leitura, D. Lavínia observou, teimosa:
— Então, é ou não é?
— O que? — indagaram, ao mesmo tempo, o pai e o filho.
— O chifre, nas mãos de uma mulher, é, ou não é, o símbolo da Fartura?
Os dois calaram-se, e D. Lavínia continuou, ingênua, na sua honestidade:
— Eu, que digo, é porque sei.
E, simples, boa, cândida na sua virtude. recomeçando o seu "crochet":
— Eu estou cansada de dizer a teu pai...
Capítulo CII
O Milagre de S. Benedito
2 de novembro
O corpo da pobre lavadeira Maria Jovita havia sido levado, na véspera, para o
cemitério, por um carro mortuário da Santa Casa, deixando ali, naquela situação
aflitiva, aquela pretinha de cinco anos, herdeira triste, e inocente, da sua cor e do
seu destino. Atirada para o corredor do casarão, a pequenita passara uma noite
encostada à parede, agasalhando-se como lhe era possível nos farrapos da
camisinha de riscado grosseiro; uma vizinha de quarto condoeu-se, porém, da sua
sorte, sendo a pretinha recolhida, então, por misericórdia, como um cão sem
préstimo que se apanhasse piedosamente na rua.
Dois dias após a sua orfandade, era o dia dos mortos, como o de hoje. E
como toda a gente, na casa de cômodos, se encaminhasse para o cemitério, em
visita aos seus defuntos não esquecidos, a pequenita Carlota acompanhou-os,
ferindo os pés descalços no pedroiço do calçamento, e recebendo na carapinha
descoberta, enroscada no couro da cabeça, toda a inclemência daquele horrível sol
de verão. Chegada ao cemitério, perguntou a negrinha, medrosa:
— Onde está minha mãe?
As pessoas que tinham ido ao enterro da Maria Jovita indicaram-lhe um
monte de terra fresca, molhada ainda, à cabeceira da qual a pequena se ajoelhou,
juntando, numa prece fervente, os dois carvãozinhos das mãos. E estava ela
sozinha, nessa postura, no silêncio daquela quadra abandonada, destinada aos
humildes, aos desamparados, aos náufragos da vida e da morte, quando ouviu uma
voz, que a chamava:
— Carlotinha?
A pretinha voltou-se, espantada, e sorriu, enxugando os olhos úmidos com as
costas das mãozinhas encarvoadas: atrás dela, sorrindo-lhe com bondade, com
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doçura, com meiguice, estava, em ponto grande, do tamanho de uma pessoa, com a
mesma cor, a mesma aureola e o mesmo burel, a imagem do senhor São Benedito,
que sua mãe, quando viva, possuía no quarto, no oratório de uma pequena caixa de
papelão!
— Meu São Benedito!... — gemeu a pequena, atirando-se ao solo, e beijando-
lhe, comovida, a fímbria do manto escuro.
E ia juntar as mãos para rezar, quando o santo lhe ordenou, paternal:
— Carlotinha, junta estas pedras.
A pretinha arrepanhou quanto pôde as pontas do vestidinho roto, e pôs-se a
apanhar, um por um, os seixos miúdos que havia pelo chão, entre as sepulturas sem
nome. E assim que enchia o regaço, despejava os calhaus, a mandado do santo,
sobre o monte de terra que assinalava, naquele oceano de túmulos, o lugar em que
sua pobre mãe dormia para sempre.
De repente, cansadinha já daquela faina, a pretinha ouviu chamar, de longe,
pelo seu nome:
— Carlota?
E como não respondesse, de fatigada, as pessoas da casa de cômodos foram
à sua procura, até que, encontrando-a, recuaram, maravilhadas.
Diante da pretinha, que orava, de joelhos, a sepultura rasa de Maria Jovita,
um simples cômoro de areia, desaparecia, toda ela, sob um monte de rosas!
Capítulo CIII
O Leilão
4 de novembro
— Um conto e duzentos! Um conto e duzentos! Dou um conto e duzentos!
Foi ao som desse pregão intempestivo que o Dr. Alfredo Camilo despertou,
alta madrugada, na sua cama de casal, na alcova suavemente iluminada por uma
pequenina lâmpada de cabeceira. Espantado, o ilustre médico voltou-se no leito, e
percebeu que era a sua jovem esposa, a formosíssima D. Belita, que insistia, no
meio de um sono agitado:
— Um conto e duzentos! Um conto e duzentos! Dou um conto e duzentos!
Sentando-se na cama, o Dr. Alfredo bateu no ombro nu da esposa,
sacudindo-a, com força:
— Belitinha! Belitinha! Que é isso? Que é que tens? Acorda!
— Hein? Hein? Que é? Que é que tem? — exclamou a moça, despertando,
espantada, esfregando os olhos com as mãos.
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— Estás com pesadelo? — indagou o marido.
— Não; era um sonho... Por que?
— Estavas para aí fazendo leilão...
— Ahn! — exclamou a linda senhora, espreguiçando-se. — Uma
extravagância... uma tolice...
— Conta! Quero saber o que era! — pediu o esposo; enciumado.
— Não vale a pena, Alfredo!
— Conta! — exigiu o Otelo.
D. Belita agasalhou, a cabecita de ouro no peito do marido, e começou a
narrar, de olhos fechados:
— Eu sonhei que me achava em um mercado, não sei em que cidade, nem
em que país onde estavam fazendo um leilão de homens, para maridos, os quais
eram disputados por centenas de mulheres. De repente, depois de várias
arrematações, levaram um rapagão alto, forte, formoso, uma verdadeira beleza, que
encantou, logo, todas as pretendentes. Ao vê-lo, a Luisinha, mulher do Alonso, que
também estava presente, lançou duzentos mil réis. Eu lancei trezentos. A Abigail
ofereceu quinhentos. Eu cobri o lance com oitocentos, e estava oferecendo um
conto e duzentos quando tu me despertaste.
Com os olhos presos na cabeça da esposa, o Dr. Alfredo ouvia, em silêncio,
essa história, quando, chegada a narração ao fim, protestou, revoltado:
— Sim, senhora! Uma senhora honesta, e casada, a ter sonhos destes!...
Não convindo, porém, brigar, àquela hora, por um simples sonho, um mero
fenômeno de imaginação, procurou consolar-se, indagando:
— E eu, não estava lá, não?
— Você? Não vi.
— Mas, se eu estivesse lá, as mulheres dariam uma fortuna... Não?
D. Delita sorriu, e, esfregando os olhos:
— Você?
E com desprezo, rindo:
— Como você havia lá às dúzias, a cinqüenta mil réis, e ninguém queria!
E virou-se para o outro lado, roncando...
Capítulo CIV
Lâmpadas e Ventiladores
8 de novembro
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— A resistência física da mulher, Sr. conselheiro, — dizia-me, uma destas
tardes, saboreando voluptuosamente o seu sorvete de melão, o meu velho amigo o
conselheiro Abelardo de Brito, a resistência física da mulher é um fenômeno que
merece a atenção dos fisiologistas e, principalmente, dos psicólogos. O poder da
vontade é, nelas, maravilhoso, extraordinário, formidável. Senão, observe. Há um
baile na sua casa, ao qual concorrem dezenas de moças. Com o entusiasmo que
lhes empresta a alegria, essas encantadoras criaturas dançam, seguidamente,
continuamente, valsa sobre valsa, polca sobre polca, mazurca sobre mazurca, ou,
como hoje acontece, "rag time" sobre "rag time", "fox-trot" sobre "fox-trot", tango
sobre tango, maxixe sobre maxixe.
— Perdão! — interrompi. Em minha casa não se dançaria isso!
— Eu sei! eu sei! — tornou o antigo magistrado, batucando a colherinha no
fundo da taça, para dissolver o sorvete. — Eu sei disso. É uma simples comparação!
E continuou:
— Na festa, enquanto se dança ninguém se fatiga. As moças rodopiam,
correm, pulam, divertem-se com alarido, sem atentarem para as horas, que se
passam. Às três da manhã estão ainda tão lépidas, tão dispostas, como no momento
em que entraram. E assim continuam, pela festa adiante. De repente, dá-se o baile
por terminado. A musica retira-se, começam as despedidas, aproximam-se,
buzinando, os "landaulets" dos convidados. E é uma calamidade: as moças, que,
dois minutos antes, dançavam, riam, pulavam, mal podem, agora, dar um passo!
Estão todas cansadas, fatigadas, com os pés rebentados, de modo a ser necessário
levá-las, uma a uma, pelo braço, para dentro dos automóveis!...
A tarde estava quente, abafada, ameaçando tempestade. Na sala da
sorveteria onde tomávamos chá, os ventiladores ronronavam, como gatos,
refrescando o ambiente. Lufadas ardentes, fortes, brutais, varreram, lá fora, o asfalto
da Avenida. O céu escureceu, de repente, e um trovão estalou, rolando pelo céu.
Nesse momento. as lâmpadas do salão, abertas àquela hora, apagaram-se todas,
ao mesmo tempo que, dependendo da mesma corrente elétrica, os ventiladores
foram, pouco a pouco, diminuindo a marcha, até que pararam, de todo, como aves
que acabam de chegar de um grande vôo. Estranhando aquela interrupção, ao
mesmo tempo, da luz, e dos aparelhos, o meu venerando amigo levantou a cabeça
venerável, e sentenciou, apontando o teto:
— As moças, meu velho, são assim. Apaguem as luzes do salão em que
rodopiaram sem descanso, e elas se sentirão, em seguida, como esses ventiladores,
cansadas, exaustas, quase mortas!
Lá fora, no ar pesado, um novo trovão estalou. E a chuva caiu, graúda, como
grãos de milho, tamborilando descompassadamente no chão.
Capítulo CV
Militarismo
16 de novembro
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O militar, por menos apegado que seja as coisas da sua profissão, acaba
necessariamente se habituando com elas, identificando-se com o quartel. A
influência das armas é tamanha, naqueles que a elas se votam, que se reconhece
na rua, ao menor golpe de vista, mesmo quando vestido à paisana, o tenente, o
capitão, o major, o coronel. Ao ver, na via publica, um oficial do Exército envergando
um jaquetão ou um fraque, a impressão que se tem é de que falta alguma coisa à
sua elegância. Por mais correto que ele esteja nas suas roupas apuradas, lembra-
nos, sempre, um tigre metido na pele de um urso, ou um leão enfiado, por modéstia,
no couro de um elefante.
E essa tirania da farda não se mostra de modo menos acentuado na
fisionomia moral das suas vítimas. Absorvido pelo seu pensamento de glória, o
soldado revela-se em toda a parte e em todas as circunstâncias: no calor das
palestras, na energia da vontade, na severidade da vida, na intransigência das
atitudes, na disciplina do porte, e, até, às vezes, no emprego do vocabulário, a que
procura dar, aqui fora, as mesmas aplicações. O caso do tenente Pamphilio
Godofredo de Medeiros é uma demonstração pública e policial dessa verdade.
Militar garboso, bravo, decidido, o tenente Pamphilio utilizava os dias de
serenidade da pátria passeando elegantemente na Avenida, quando viu, uma tarde,
em certa casa de chá, uma criatura que lhe fez acordar, tocando alvorada, todos os
clarins do coração. Ousado e robusto, pôs-se, logo, em atividade, e de tal modo que,
no dia seguinte, sabia já o suficiente para um vigoroso ataque aos muros da
fortaleza: a dama era casada, morava à rua Voluntários da Pátria, em uma casa de
portão de ferro, o qual só se abria com ordem especial do marido.
Informado de tudo isso, o tenente apareceu, no dia seguinte, diante do
palacete, e espremeu, comovido, o tumor sonoro da campainha. O silêncio era
absoluto na casa, e ninguém atendeu. Duas, três, quatro vezes repetiu ele o sinal,
mas inutilmente. E batia, já, em retirada, quando ouviu um chocalhar de corrente no
portão. Voltou-se, e viu: era o jardineiro que abria a grade para dar passagem ao
dono da casa, passando, de novo, a corrente de cadeado.
Atordoado pelo seu pensamento de ventura, e, não menos, pela consciência
da sua superioridade de militar, o oficial não teve dúvidas: parou, deu meia volta, e
marchou, firme, no rumo do cavalheiro que saíra da casa. Estacaram, pálidos, um
diante do outro.
— Que deseja o senhor? — bradou, com a alma nos olhos, o marido da
moça.
Mão no revolver, disfarçando a tempestade do coração, o tenente rugiu,
apenas, seco:
— A senha.
E atracaram-se.
Capítulo CVI
Apólogo Sertanejo
18 de novembro
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Viúvo da Razão, que havia morrido no hospício, abandonou o coração, um
dia, a sua fazenda no interior do país, trazendo para uma grande cidade do litoral,
em sua companhia, a fim de esquecerem o golpe recente, os seus filhos e filhas.
Estes eram, ao todo, nove, sendo três homens — o Amor, o Pudor e o Orgulho, e
seis mulheres — a Fé, a Esperança, a Amizade, a Coragem, a Caridade e a
Hipocrisia.
Chefe de família descuidado, o Coração esqueceu-se, na cidade, de fechar
solidamente as portas da casa, exercendo sobre os filhos uma vigilância constante e
rigorosa. Jovens e ambiciosos, era possível que os rapazes e, mesmo, as raparigas,
gostassem de divertir-se, de passear, de espairecer. E o resultado dessa liberalidade
paterna foi imediato: os filhos e filhas passavam a noite fora de casa, atentando
contra os bons costumes, com grande escândalo do ancião, que nunca pensara, em
sua vida, em semelhante vergonha para sua velhice.
Horrorizado com tudo aquilo, resolveu o velho remediar o mal, regressando,
com a família, para as suas propriedades, no alto sertão. E na hora da partida,
reuniu os filhos, chamando-os, um por um:
— Esperança?
— Pronto! — respondeu a moça.
— Coragem?
— Presente!
— Amor?
— Presente!
E assim chamou, obtendo resposta, e metendo-os no trem, a Fé, a Amizade,
a Caridade e o Pudor. Chegada, porém, a vez dos dois mais velhos, gritou:
— Orgulho?
Ninguém respondeu.
— Hipocrisia?
O mesmo silêncio. Aflito, o pobre pai procurou-os em torno, chamando-os aos
gritos. E foi debalde. Nesse instante, o trem apitou, anunciando a saída. O ancião
correu, e tomou o carro.
Momentos depois o trem partia, levando para o interior do país a Esperança,
a Amizade, o Amor, a Coragem, a Fé, a Caridade e o Pudor, e deixando na cidade,
apenas, o Orgulho e a Hipocrisia.
Capítulo CVII
As Garrafas
20 de novembro
D. Eleonora havia mandado chamar o seu primo, o Dr. Alfredo Bonifácio, para
uma consulta íntima, sobre diversos remédios que lhe haviam recomendado, quando
abriram inesperadamente o portão da casa.
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— É o Augusto! — exclamou, horrorizada, a pobre senhora, apanhando com
o pente os lindos cabelos em desordem.
E torcendo as mãos, aflita, a andar de um lado para outro da sala de jantar:
— Minha Nossa Senhora! que horror! que eu hei de fazer, meu Deus!...
E ia, já, nos extremos da aflição, da angustia, do desespero, quando, abrindo
a porta que comunicava aquele compartimento com a cozinha, teve uma idéia
providencial:
— Esconde-te ali, Alfredo! Depressa! anda! anda!
E empurrou o primo, com o chapéu na mão, para dentro da despensa
completamente às escuras.
O velho magistrado não era, felizmente, homem de grande perspicácia,
desses que advinham a passagem de estranhos por obra e graça do indício mais
simples. Casado em segundas núpcias, confiava na mulher como confiava no
Código. E enganando-se, tanto com o Código como com a mulher, foi com a alma
tranqüila, calma, satisfeita, que penetrou em casa, naquela noite, após uma palestra
sisuda na residência do presidente do Tribunal.
Aberta a porta, o ilustre chefe de família entrou, e, pendurando a cartola na
chapeleira, sentou-se, grave, à mesa do chá, ao lado da esposa carinhosa. E ia
contar-lhe a sua conversa com o outro sacerdote da Justiça, quando ouviu um
barulho de garrafas na dispensa
Que é isso? Ouviste, Eleonora? — exclamou, assustado.
A mulher empalideceu, e ia, talvez, comprometer-se com uma denúncia,
quando o velho, ouvindo de novo o barulho, se levantou de repente, encaminhando-
se, firme, para a porta da despensa.
— Quem está aí? — gritou o magistrado, com o terror na garganta..
Na despensa escura, semeada de garrafas de cerveja e águas minerais, a
situação do Dr. Bonifácio era delicadíssima. De pé, no meio do compartimento, não
podia, sequer, mexer-se. Cada passo que aventurava, era um desastre, uma
calamidade, que ia despertar, fora, com um rumor de vidros partidos, a atenção do
dono da casa. Ao terceiro barulho, o velho tornou, severo, com o revólver em punho:
— Quem está aí?
E estava, já, resolvido a conformar-se com o silêncio das vezes anteriores,
quando uma voz surda, cava, soturna, respondeu, de dentro:
— São as garrafas...
Satisfeito com a descoberta, o magistrado embolsou o revolver, e voltou,
sereno, a tomar o seu chá.
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Capítulo CVIII
Pele Curta
24 de novembro
Dize-me como dormes que eu te direi os pecados que tens. É durante o sono,
realmente, que a consciência se revela. O sono agitado, aflito, repassado de
gemidos e roncos, denuncia sempre uma alma atribulada, um espírito perseguido de
cuidados, um coração atormentado pela consciência. A consciência tranqüila, dorme
com o corpo, irmanados num grande sossego reparador.
As mulheres que se revoltam contra os maridos que roncam alto, não
cometem, portanto, com isso, uma injustiça. Um escritor já disse, uma vez, que a
garganta de um esposo, era, às vezes, a trombeta de Jericó, diante da qual ruíam
todas as ilusões da mulher. E a afirmação era justa, porque é durante o sono que,
adormecida a tirania da vontade, o homem se manifesta, sonoramente, com todos
os defeitos dissimulados durante o dia.
Há, entretanto, casos patológicos, que, embora não justifiquem uma alteração
do critério geral, servem, contudo, para ilustrar, com uma variante curiosa, um
capítulo sobre a matéria.
A fazenda de Santa Justina, no município de Maricá, estava entregue, já, ao
primeiro sono compensador, quando bateram à porta do casebre do Antônio Luiz,
único, naquelas alturas, que ainda coava a luz da candeia pelos interstícios das
paredes, das janelas e dos portais.
— Quem é? — gritou, de dentro, aborrecido, o dono da casa, juntando, com
os dedos úmidos de saliva, as cartas de um baralho espalhadas sobre a madeira de
um tamborete.
— Sou eu! — respondeu, de fora, uma voz desconhecida no lugar.
Aberta a porta, o Benedito Gamela, que ia de viagem, explicou o seu desejo:
queria pousada por uma noite, a fim de alcançar, no dia seguinte, a fazenda do
Atoleiro, onde ia trabalhar na apanha de café.
— Você não tem, por aí, alguma moléstia pegadeira? — indagou o Antônio
Luiz, desconfiado.
— Eu? D'aonde, minha Nossa Senhora? Eu nunca tive moléstia na minha
vida. A doença que tenho, desde pequeno, nunca fez mal a ninguém, graças a
Deus.
— Que moléstia é essa?
— A minha? Eu sofro de pele curta.
— Pele curta? — estranhou o morador.
Não querendo, porém, mostrar-se desconhecedor de certas novidades da
medicina, Antônio Luiz não insistiu: acendeu uma lamparina, foi ao compartimento
próximo, desenrolou no chão uma esteira de palha, e, concluído tudo, convidou:
— Entre p'ra cá. A casa é sua.
E encostando a porta, deitou-se na sala próxima.
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Dez minutos não se tinham passado ainda quando o dono da casa deu um
pulo, sobressaltado: do quarto do hospede, onde a lamparina bruxoleava,
desenhando visagens na parede, subia um rugido de tempestade, que abalava o
aposento.
— Camarada!... Camarada!... — chamou o Antônio Luiz, empurrando a porta.
— Que é isso? Você está morrendo?
— Hein?... Hein?... — acordou o caboclo, em sobressalto. — O que é?... O
que é?...
— Você está roncando como um trovão. Que é isso?
— É "pele curta", homem. Eu não disse a você? — explicou o Benedito,
estremunhado.
O outro não compreendeu, e ele explicou:
— A minha moléstia é essa: quando eu fecho os olhos, abro a boca. É por
isso!
E, estirando-se na esteira, desandou, de novo, a roncar.
Capítulo CIX
Malitia Sexus
28 de novembro
Não obstante as teorias espalhadas pelos moralistas modernos, a virtude
máxima da mulher será, sempre, o pudor. Afirmem embora que este não é um aliado
permanente da inocência, argumentando, para isso, com as crianças e os
selvagens; eu continuarei a considerá-lo a flor mais mimosa da castidade e a atribuir
à sua ausência a maior parte dos venenos que dissolvem a sociedade e a família.
Aos meus olhos, o pudor está para a honestidade como o fumo está para o fogo.
Compreender honestidade sem pudor seria admitir fogo sem fumo.
Essa convicção não é, entretanto, privilegio meu; e não foi sem alegria que li
há dias, em uma revista européia, a solidariedade de um eminente magistrado
francês, patenteada em uma lição oportuna, e rigorosa, a algumas dúzias de
senhoras parisienses.
Em um dos tribunais de Paris debatia-se, em uma das últimas sessões do ano
último, um processo escandaloso, cujas peças documentais, que deviam ser lidas e
mostradas, atentavam, de modo clamoroso, contra a pudicícia das damas que
enchiam, naquele momento, a sala do tribunal. Constrangido ante aquele publico
feminino, o velho magistrado que presidia a sessão fez tilintar o tímpano, pedindo
atenção. Feito silêncio, o juiz avisou:
— É dever meu, como magistrado e chefe de família, comunicar às damas
presentes neste recinto que vão ser exibidos, aqui, alguns documentos do processo
capazes de ferir as susceptibilidades femininas. Nessas condições, eu peço, pois, às
senhoras pundonorosas que se afastem da sala, de modo que os interessados
possam discutir essas provas sem constrangimento.
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A esse aviso, as sessenta ou setenta senhoras presentes no tribunal
entreolharam-se, consultando-se tacitamente. De tantas, porém, duas, apenas, se
levantaram, retirando-se, deixando-se ficar as demais nos seus respectivos lugares.
Ao fim de dois minutos, o juiz indagou, alto:
— Nenhuma das senhoras que se deixaram ficar sentadas se mostrarão
escandalizadas com as peças repugnantes que vão ser exibidas?
Silêncio geral.
Ante essa resposta muda, o magistrado enrubesceu, revoltado com aquele
espetáculo de despudor, e, virando-se para o comandante da força, ordenou:
— Chefe da guarda, mande pôr fora da sala o resto das senhoras!
E a guarda cumpriu a ordem.
Capítulo CX
Mme. London Bank
30 de novembro
Contam as crônicas do Império Romano que Mitridates, o famoso rei do
Ponto, que enfrentou as hostes de Sila, de Pompeu e de Lúculo, apanhou, um dia,
de surpresa, um general inimigo, e, para matar-lhe a fome de riquezas, fez-lhe
derramar pela garganta uma panela de ouro derretido. Incompletos nas suas
informações, os historiadores antigos não dizem, de modo claro, como ficou a boca
da vítima; a impressão que eu tenho, em seguida a essas leituras, é, porém, que o
general se tornou, com isso, o grande antepassado de certas senhoras e cavalheiros
do nosso tempo, e que eu encontro diariamente na cidade, os quais transformaram a
boca em Caixa de Conversão, depositando alí, em obturações dispendiosíssimas,
grande parte da sua fortuna.
Felizmente, há, entre as senhoras, espíritos esclarecidos, que movem, contra
esse abuso, uma campanha infatigável. Ainda ontem, uma destas beneméritas, D.
Clara de Souza Castelo, que me fora apresentada pelo Sr. Dr. Afrânio Peixoto, me
informava, preocupadíssima:
— Esta moda das dentaduras de ouro está se desenvolvendo, Sr.
conselheiro, como o senhor não imagina.
E após uma dúzia de nomes próprios, aludindo a pessoas notabilizadas por
esse mau gosto, assinalou, penalizada, uma ilustre dama atualmente em Petrópolis,
cuja boca é considerada, ali, pela quantidade de ouro que encerra, uma verdadeira
sucursal dos cofres do London Bank.
— E não é só a falta de gosto, senhor conselheiro — acentuava a minha
curiosa conhecida da véspera. — O pior de tudo, é o perigo a que está exposta uma
criatura nessas condições. O senhor não conhece o caso de D. Laurentina, mulher
do Dr. Filomeno Miranda?
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A minha resposta foi, como era natural, negativa, e ela contou:
— D. Laurentina tem, como o senhor sabe, uma grande fortuna, herdada do
pai. Aos vinte e cinco anos, os seus dentes começaram a estragar-se, e ela, que
possuía dinheiro, mandou obturá-los a ouro. E de tal maneira procedeu, que, hoje,
possui a boca inteiramente dourada! Quando ela fala, e os lábios se lhe descerram,
é um deslumbramento, um luxo de ouro, que se tem a impressão de que se abriu, de
repente, a porta grande da igreja da Candelária!
Eu tossi, estranhando a imagem, e Dona Clara continuou:
— O pior, porém, era o que lhe ia sucedendo. Imagine o senhor que, uma
destas noites, ao regressar de uma visita, o Dr. Filomeno percebeu que havia ladrão
na casa. Corajoso, hábil, experiente, empunhou ele o revolver, chamou os criados, e
começou a percorrer o palacete. No quarto de dormir, o jardineiro abaixou-se, e
olhou para debaixo da cama. E deu um grito, de horror e de alarma. O ladrão estava
lá, debaixo do leito, escondido!
Por essa altura, D. Clara tomou fôlego, e reatou:
— Arrancado, à força, do esconderijo, pelo pulso dos criados, o miserável não
negou o crime premeditado. Estava ali para roubar a fortuna da dona da casa!
— E estava armado? — indaguei, aflito.
— Estava, Sr. conselheiro, estava! — acudiu a minha informante.
E, olhando para um lado e outro, soprou-me, perversa, ao ouvido:
— Levava... um boticão!...
E soltou uma gargalhada sonora, demorada, reboante, dessas que somente
sabem dar, na terra, as mulheres de dentes bonitos.
Capítulo CXI
Efeitos do Tanino
1° de dezembro
Preocupado com a mocidade da sua linda companheira e temendo, ao
mesmo tempo, a decadência de tão maravilhosa formosura, principalmente daquele
admirável colo de neve, que era o seu orgulho e que ela mostrava, contente, até
aonde lhe era possível mostrar, o coronel Epifânio Fonteneles procurou, uma tarde,
a proprietária de um famoso Instituto de Beleza, e expôs claramente o seu caso. A
Circe francesa ouviu-lhe a narrativa, compreendeu-lhe os temores, percebeu-lhe as
apreensões, e, com um sorriso nos lábios artificialmente vermelhos, tranqüilizou-o:
— Pode ficar tranqüilo, coronel. O preparado que possuímos para conservar a
graça do busto, a mocidade da pele, enfim, a beleza do colo, é infalível. É uma loção
adstringente, de efeito seguro e poderoso, que tem realizado verdadeiros milagres.
Basta dizer que entram nela, em dose elevadíssima, a pedra-hume, a casca de
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romã, a folha de carvalho, a casca de manga, enfim, todas as substâncias taninosas,
que fazem contrair e fortalecer a epiderme, conservando-lhe a juventude.
E retirando um vidro da prateleira:
— O senhor leva um vidro, e recomende a madame que o use todos os dias.
Toma-se de um pouco de algodão delicado, molha-se no liquido, e umedece-se com
ele a pele do colo, principalmente o seio, cuja rijeza é preciso conservar. Deixa-se
secar o liquido na pele, põe-se uma ligeira camada de pó de arroz, e está feito o
remédio, e, com ele, a "toilette" do dia.
Balançando a cabeça a cada informação, o coronel mostrou haver entendido
bem, pediu dois vidros da loção, pagou-os, recebeu-os, e tocou-se para casa, onde
os entregou à encantadora D. Ignezinha, a quem transmitiu, palavra por palavra,
todas as explicações.
No dia seguinte, à tarde, usado o liquido de acordo com as instruções do
marido, e enfiado o seu vestido de decote mais longo e mais frouxo, desceu a linda
senhora, sem colete, a fim de patentear melhor a graça do busto deslumbrante, para
a sala de visitas, onde já se havia feito anunciar, como um dos amigos mais
freqüentes da casa, o jovem engenheiro militar Dr. Epaminondas Rufino.
Pausado, meticuloso, disciplinado em tudo, o coronel demorou-se ainda nos
seus aposentos, vestindo-se para jantar. Meia hora depois, ouviam-se os seus
passos na escada, e, logo, em seguida, a sua entrada no salão, onde madame
sorria, discreta, contando uma história qualquer ao capitão Epaminondas.
— Então, como vai essa bravura? bradou, jovial, o velho coronel, estendendo
a grande mão gloriosa, para apertar a do amigo.
O engenheiro ia responder no mesmo tom, mas, de repente, contraiu o rosto,
empalideceu, e continuou mudo.
— Que é isto? Está se sentindo mal? — tornou o coronel apreensivo.
O capitão fez um novo esforço, com os músculos de todo o rosto, procurando
descerrar os lábios apertados, contraídos num espasmo da mucosa e, com uma
dificuldade horrível, quase com a boca cerrada, respondeu, apenas, num sibilo, com
a língua presa, dura, paralisada pelo tanino:
— Nun... tãnho... nada!
E ganhou a rua.
Capítulo CXII
Zurtz
4 de dezembro
Quando o professor Krause esteve no Rio de janeiro, em 1920, falou-nos, a
mim e ao seu colega Dr. Fernando de Magalhães, em uma descoberta que estava
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revolucionando a fisiologia nas vésperas da sua partida da Alemanha. Tratava-se de
uma comunicação feita à Academia de Ciências Médicas, de Berlim, pelo professor
Zurtz, de Munich, o qual havia conseguido uma fórmula miraculosa para aumentar o
crescimento do cabelo. O poder desse preparado era tão prodigioso que, posto pela
manhã, o aumento constatado à tarde era de, pelo menos, meia polegada. Um
destes dias, ia eu pela Avenida, quando encontrei, com grande alegria de coração e
de espírito, o ilustre diretor da Maternidade, que me foi, logo, perguntando:
— Conselheiro, lembra-se daquela descoberta de que nos falou o professor
Krause?
— Qual?
— A do professor Zurtz.
Eu fiz um esforço de memória, remexi, com os dedos do pensamento, no
escaninho cerebral das minhas lembranças, e respondi afirmativamente.
— Pois, aquilo, — continuou o Dr. Fernando — é um fato. As revistas
francesas, italianas, alemãs e inglesas que ultimamente recebi, falam, já, no
prodígio.
— Deveras?
— É verdade. E com uma circunstância mais: aperfeiçoando o seu invento, o
professor Zurtz conseguiu três modalidades do mesmo preparado, com diversas
aplicações. A primeira serve unicamente para o cabelo, o qual pode crescer, com
ele, dez centímetros por dia. A segunda é de aplicação zootécnica: faz crescer em
poucas horas, com vantagem para a industria, a lã dos carneiros. E a terceira,
destinada à pecuária, faz nascer, com rapidez, os chifres aos bois, aos cordeiros, às
cabras e a outros animais que os tenham atrofiados. A esse preparado deu o
inventor o seu próprio nome, com diversas numerações: n. 1, n. 2, e n. 3, como os
produtos químicos de Mme. Selda Potocka.
Nesse momento, um cavalheiro alto, magro, calvo, que estava perto,
aproximou-se de nós, e, pedindo licença, indagou, respeitoso:
— Os senhores acreditam nisso?
O Dr. Fernando olhou-o de alto a baixo, e confirmou.
— Pois, eu, - tornou o desconhecido, sou uma prova da ineficácia desse
remédio. Calvo, há muitos anos, mandei buscá-lo, usei-o, e veja!
E descobriu o crânio irregular, pelado como um ovo.
O Dr. Magalhães escorregou os olhos pela cabeça do homem, franziu a testa,
mordendo o dedo, com aborrecimento. E, ao fim de um minuto, pediu:
— Diga-me uma coisa.
O indivíduo fitou-o.
— O senhor não tomou errado?
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O careca desapareceu.
Capítulo CXIII
A Chuva Luminosa
7 de dezembro
— Maravilhoso colar este seu, senhora viscondessa; é pena que dê, aos
meus olhos, uma sensação de tragédia, embora de linda tragédia!
As senhoras voltaram-se, todas, para a viscondessa de São Germano, e
admiraram. Emergindo do vestido solferino, graciosamente decotado, o seu colo
parecia mais alvo do que nunca; e o que realçava ainda mais essa alvura de leite
era a graça de um colar de rubis que lhe volteava o pescoço de linhas puríssimas,
dando a impressão de um crime sinistro, horrendo, brutal, que lhe fizesse florescer a
garganta de neve com um vivo círculo de gotas de sangue.
— É lindo, mesmo! — confirmou o general Tasso Fragoso, assestando na
jovem senhora o seu fortíssimo "pince-nez" de míope.
— É um deslumbramento! — asseguraram, ao mesmo tempo, o senador
Azeredo e a baronesa de Pereira Alves.
Percebendo, perspicaz, a tortura a que o seu galanteio estava submetendo a
beleza honesta da viscondessa, o almirante Ribas resolveu correr em seu auxílio,
arrancando-a daquela deliciosa e, ao mesmo tempo, angustiosa situação. E tentou:
— As pedras preciosas, aliás, foram atiradas à terra para punição e
glorificação das mulheres.
As senhoras olharam-no sorridentes, na certeza de mais um conto oriental do
velho marinheiro, e ele; compreendendo o que aqueles olhos lhe pediam, começou,
acariciando o rosto escanhoado e cor de rosa, coroado por uma fina cabeleira de
prata:
— Antes do Dilúvio e do Pecado Original, os astros que ornavam o céu
tinham, cada um, a sua cor peculiar. Sírios era verde, como as águas do oceano.
Saturno era de um azul pálido, como os olhos da Sra. condessa de Souza Furtado.
Marte era vermelho como o sangue. Júpiter, de um amarelo vivo. Netuno, roxo.
Urano, azul, forte. O Sol, cor de púrpura. E a Lua e Vênus, alvas como a inocência.
— Devia ser lindo, o céu! — comentou, encantada, a baronesa.
O general Tasso Fragoso aparteou, erudito, contando que, de Marte, segundo
Flamarion, ainda se viam dessas paisagens celestes, e o almirante continuou:
— Resplendente de astros de todas as cores, o céu era, em verdade, um
deslumbramento.
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Endireitou-se na grande "maple" tauxiada de prata, e contou:
— Uma tarde, vinha o Onipotente por uma das alamedas do Paraíso, quando
se lhe deparou um quadro revoltante: abraçados, trêmulos, conscientes do próprio
crime, Adão e Eva escondiam-se, horrorizados de si mesmos, entre as árvores
enormes daqueles primeiros dias da Criação. Compreendendo, na sua sabedoria, o
que havia sucedido às duas fragilíssimas criaturas a que pretendera conceder a
graça da imortalidade, trovejou o Senhor que eles abandonassem, de pronto, os
limites do Éden. Súplices, os réprobos imploraram perdão, pedindo clemência. A
resposta foi, porém, uma ordem severa, brutal, imperiosa, para que o anjo Gabriel
manejasse a sua espada de chama. E, enquanto isto acontecia, deu-se, de súbito, o
milagre deslumbrante: a um gesto do Senhor, os astros todos começaram a lançar
sobre os perseguidos uma chuva de fogo, como aquela que destruiu, mais tarde,
Gomorra e Sodoma, a qual, desfeita em gotas de todas as cores, em pingos
luminosos de todas as cambiantes, fustigavam, numa apoteose terrível e magnífica,
a sublime fraqueza dos dois pecadores!
As senhoras fitavam, mudas e encantadas, o delicioso narrador, e este
continuou:
— Essas gotas de fogo, tombadas na terra poluída pelo pecado, coagularam-
se, cristalizaram-se, consolidaram-se.
Firmou as mãos no apoio da "maple" e, fazendo menção de erguer-se,
concluiu:
— E apareceram na terra, minhas senhoras, as ametistas, os diamantes, os
topázios, as opalas, os berilos, as esmeraldas, as safiras, as turmalinas, os rubis,
essas gotas de fogo, em suma, que são, pelo desejo que vos despertam e pelo
realce que vos dão à beleza, a vossa glória e o vosso castigo!
E levantou-se, entre palmas.
Capítulo CXIV
Pedras Preciosas
12 de dezembro
Segurando o almirante pela manga da casaca impecável, a baronesa forçou-o
a sentar-se, de novo:
— Não, senhor, não pode ir; tem que contar-nos, agora, a virtude de todas as
pedras preciosas exibidas pelas senhoras que aqui se acham.
— Eu? — obtemperou o ilustre marinheiro, levando a mão clara ao peitilho
espelhante da camisa:
— Sim, senhor. É este o seu castigo.
E imperativa:
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— Sente-se!
Generalizada, de novo, a palestra, a viscondessa de São Germano indagou,
com sincero interesse:
— É verdade, almirante é certo, mesmo, que a ágata é "porte-malheur"?
— É verdade, afirmam isso... — acrescentou Mme. Sampaio Gomes.
O almirante contestou:
— É uma invenção recente, essa, D. Violeta. Os antigos, pelo menos, não
dão notícia dessa propriedade. Plínio, que a ela se refere longamente, atribui-lhe a
virtude de tornar os atletas invencíveis. Os egípcios indicavam-na como infalível
contra mordedura das víboras, dizendo-se, mesmo, que as águias a colocavam no
ninho para afugentar as serpentes, que lhes perseguiam os filhos.
— E o rubi? — indagou a baronesa.
— O rubi é a pedra dos espíritos esclarecidos. Teofrasto aponta-o como um
dos incentivos misteriosos da inteligência, circunstância que a levou, ao que parece,
a ser adotada como pedra simbólica dos bacharéis. Outros acreditam que ele
preservava contra a peste, contra os venenos, e contra outros perigos da vida. É,
mais ou menos, como a esmeralda.
— Como a esmeralda?
— Sim. A esmeralda fortalece, também a inteligência, e cura, segundo
Plutarco, as mordeduras de cobra. Alberto, o Grande, recomendava-a contra a
epilepsia e Cornélio Agripa contra as hemorragias.
Foi por essa altura que a encantadora D. Ritinha, que até então se limitara a
sorrir, fazendo companhia ao contentamento dos outros, aventurou, cândida:
— Mas, há pedras portadoras de desgraças; não há, senhor almirante?
— Dizem que a opala é desse número, minha senhora; mas eu não creio.
— Não crê?
E entre a atenção geral:
— Pois, olhe, há dois anos, meu marido ia sendo vítima de uma dessas
pedras de mau agoiro. Esteve muito mal!
—- E que pedra foi essa? Pode-se saber?
A moça não lhe sabia o nome; a baronesa correu, porém, pérfida, em seu
auxílio:
— Era o carbúnculo; não era, Dona Ritinha?
A jovem senhora, desabituada àquele meio super-civilizado, bateu com a
cabeça, confirmando, ingênua, a horrenda perversidade:
— É isso mesmo; era o carbúnculo. E compadecida:
— Quase ele morre, coitado!...
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Capítulo CXV
O Bravo
15 de dezembro
Pai de uma menina que era um encanto, o coronel Peregrino encontrara na
vida, pela primeira vez, uma dificuldade que lhe detivera o passo: o casamento da
filha, a escolha de um noivo digno, bravo, correto, entre os jovens oficiais da
guarnição. Três tenentes, nada menos, disputavam-lhe a mão, e era essa rivalidade,
exatamente, que dificultava a solução do problema. Todos eram galantes rapazes e
elegantíssimos oficiais, e, como a pequena se não decidisse por si mesma, o caso
era atirado, inteiro, à delicada responsabilidade do pai.
Certo dia, reunida no quartel a oficialidade da guarnição, chamou o coronel à
parte os três jovens tenentes, e, torcendo marcialmente, com as duas mãos, as
fortes guias do bigode grisalho, propôs, severo:
— Eu sei que os senhores, os três, têm paixão pela minha filha, cuja mão já
me pediram em casamento.. A escolha, entre os senhores, é dificílima. Se eu fosse
comerciante, preferiria o mais rico. Se fosse fidalgo, o mais nobre. Se me
preocupasse com as aparências, o mais elegantemente vestido. Sou, porém, um
soldado, e, como, tal, faço questão de escolher para genro o mais valente, o mais
bravo, o mais corajoso. Não acham justo?
— Perfeitamente! — exclamou o tenente Coimbra.
— Perfeitamente! — confirmou o tenente Torres.
— Perfeitamente! — concordou o tenente Samuel.
— Nesse caso — tornou o coronel — vou submetê-los a uma prova.
E ordenou; para dentro:
— Cabo Matias, prepare a metralhadora.
O inferior puxou a maquina para o pátio, mexeu nas munições, remexeu nas
ferragens, e avisou:
— Pronto, Sr. coronel.
O velho militar examinou a arma e, vendo que tudo ia bem, tomou os rapazes
pelo braço, colocou-os a seis metros do aparelho mortífero, e ordenou, com voz de
comando:
— Um!... Dois!...
E ia dar o último sinal para descarga da metralha, quando dois vultos
pularam, rápidos, num movimento de terror, colocando-se fora do alvo.
— Covardes! — trovejou o coronel. E eram estes pusilânimes que pretendiam
a mão da minha filha!...
E dirigindo-se ao terceiro, que se não afastara do lugar:
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— O senhor, sim, é um bravo! A menina é sua!
E, estendendo-lhe a mão:
— Venha daí; vamos ver a sua noiva.
O oficial detinha-se, porém, imóvel.
— Vamos, homem! — insistiu.
O tenente olhou para um lado, olhou para outro, e, afinal, confessou:
— Posso lá o que! Se eu pudesse sair daqui, eu tinha corrido!
E para o soldado:
— Matias, empresta-me a tua calça?
Capítulo CXVI
São Filomeno
18 de dezembro
A estação de Carirí, na Estrada de Ferro de Sobral, no Ceará, é separada da
Serra Grande, ou da Ibiapaba, por dez ou doze léguas de planície, onde se
estendem as caatingas uniformes e pedregosas, ou se levantam, aqui e ali, os
outeiros cinzentos, ásperos, desertos, inteiramente despidos de vegetação. A falta
de açudes ou de lagoas e, mesmo, a pequena fertilidade das terras, tornou alí
menos densos, e menos próximos, os núcleos humanos. As fazendas são mais
raras, e os povoados mais distantes, vendo-se, apenas, quebrando aquela
monotonia, de légua em légua, pequenos grupos de reses, que se disputam,
melancólicas, os poucos recursos de pastagem.
Contrastando com esse panorama desolador, que a impiedade do sol torna
mais triste, surge, porém, de repente, aos olhos de quem viaja, um ramalhete de
verdura, um breve oásis em que as arvores se aglomeram, e que se conservam
permanentemente viçosas, como aqueles plátanos da Arcádia que protegeram os
primeiros amores de Zeus. É alí, nesse breve refrigério da natureza, que os
vaqueiros e transeuntes repousam da travessia sertaneja, descansando na terra o
bordão de caminheiro ou amarrando nos troncos, à sombra dos juazeiros e das
oiticicas, as velhas alimárias fatigadas.
— Que bosque é este? — perguntei, um dia; diante dessa paisagem curiosa,
à simplicidade do meu guia, um caboclo serrano, moreno, forte, de alma de criança e
pescoço de touro.
— Aqui? Aqui é a mata do Nicolau.
— E esse Nicolau, mora aqui? - indaguei.
O caboclo sorriu, zombeteiro, e explicou:
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— Não mora, não, senhor; já morou.
O caso, como era natural, intrigou-me, e, como eu insistisse, o caboclo
sentou-se no alforje, que atirara ao chão, e contou-me, enquanto almoçava o seu
pedaço de queijo fresco, a maravilhosa história daquela paragem.
— Antes da seca de 77 — começou — havia neste lugar uma povoação, que
vivia, com a graça de Deus, na maior fartura. Então, não havia estas árvores. Tudo
isto era campina; caatinga, chapadão, como lá fora. A gente era muito ativa e
decidida, e, como a terra fosse boa, não faltava nada. Com a Seca Grande, porém,
veio a fome, a miséria, um horror. O povo, fiado em Deus, e em São Filomeno,
padroeiro do lugar, não queria fugir. O gado morreu. As galinhas morreram. Até bode
morreu nesse ano. E começou a morrer gente. Desenganados de inverno, os
moradores reuniram-se uma noite na capela e resolveram abandonar o povoado. E
como não entrassem em acordo a esse respeito, ficou resolvido que o Nicolau
pensasse e deliberasse por todos.
— E quem era esse Nicolau? — interrompi.
— Espere lá, já lhe digo. Esse Nicolau era o sujeito mais respeitado do lugar.
Sério como ele só. A mulher, D. Felismina, era uma santa. Não perdia missa, nem
novena, nem ladainha, e ia até o Carirí, sozinha, para ouvir a Santa Missão. E como
era ainda o menos pobre, foi o Nicolau encarregado de resolver o caso, em nome
dos companheiros de desgraça. Devoto como era, resolveu ele pedir o auxílio de
São Filomeno, e meteu-se, nessa mesma noite, na capela, trancado. Trancou-se,
rezou muito, e, lá pela madrugada, dormiu. E foi aí que se deu o milagre.
— Milagre?
— Sim, senhor. Diz ele que, assim que pegou no sono, viu São Filomeno
descer do altar, e ir crescendo; crescendo, até que ficou do tamanho de um homem.
Depois, aproximou-se dele, e disse: "Nicolau, o povoado vai ser reduzido a cinza
porque, todos nele são pecadores. As mulheres, então, já estão mais degradadas do
que as galinhas do teu terreiro e do que as cabras do teu serrote!" — "É possível,
senhor?!" — exclamou Nicolau, espantado. O santo não entrou, porém, em
explicações, limitando-se a dizer: — "Olha, Nicolau, o momento não é para
vinganças nem para derramar sangue de cristão. Mas eu vou te dar elementos para
apurar a verdade. Toma, — disse, entregando-lhe dois punhados de caroços; —
toma estas sementes, e distribui, uma a uma, pelos homens casados do povoado,
para que eles plantem à porta da sua casa. Depois, fujam, abandonem o lugar, a
capela, tudo, porque a seca vai continuar ainda por dois anos. Ao fim desse prazo,
voltem, e examinem: na porta daqueles cujas mulheres os tenham traído, estas
sementes terão nascido; e só não nascerão, Nicolau, na porta daquele cuja mulher
nunca o tenha enganado!" O homem cumpriu a recomendação do santo, distribuiu
as sementes pelos companheiros, plantaram, e fugiram para o Amazonas. Anos
depois, voltaram.
— E então?
— E então? Então, encontraram este bosque verde, viçoso, que nunca mais
morreu!
— Nasceu, então, até a semente da porta do Nicolau?
O caboclo sorriu, e atendeu:
— A porta do Nicolau era ali.
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E indicou um pé de jatobá imenso, largo, robusto, cuja copa dominava o oásis
e guiava, de longe, os viajantes que transitam, hoje, entre a frescura da Serra
Grande e a estação da Estrada de Ferro, nos sertões do Carirí.
Capítulo CXVII
O Javali de Calydon
23 de dezembro
Amigo íntimo do casal, o Dr. Fernando Magalhães tinha a vantagem, que o
bairro inteiro invejava, de penetrar, a qualquer hora do dia, sob qualquer pretexto, ou
sem pretexto algum, no gracioso palacete do engenheiro Alfredo Scholl, nos fins da
Avenida Atlântica, ao lado da montanha e diante do mar. Pessoa de confiança, o Dr.
Fernando conversava alguns momentos com a encantadora dona da casa, que lhe
dava o prazer de, minutos depois, colocá-lo à sua frente, na pequenina mesa de
chá, com serviço para dois. E, como o ilustre médico dispõe de uma cultura variada,
bebida na ciência de toda ordem e na literatura de todo gênero, sucedeu-lhe,
naquela dia, lembrar-se, a propósito de um incidente comum, da triste fábula do rei
Anceo, que tomou parte, como se sabe, na famosa expedição dos argonautas.
— A senhora não conhece, então, essa história fabulosa, D. Alaíde? indagou,
gentil, o ilustre ginecologista.
A moça levou a xícara de porcelana chinesa aos lábios mais delicados e
vermelhos que a porcelana da xícara, e, com a boquita cheia, e uma torradinha entre
os dedos, pediu:
— Não; conte-ma.
E, sorrindo, com tentação:
— Conte-ma; sim?
O ilustre médico fitou-a, com os olhos doces, e começou, com simplicidade,
mas com graça:
— De regresso da Colchida, aonde havia ido com os outros príncipes gregos,
governava Anceo o seu povo da Arcádia, quando, certo dia, um escravo lhe disse, à
mesa, que ele nunca mais beberia vinho da sua vinha. Soberbo e incrédulo, Anceo
achou espírito na predição, zombando da palavra do servo. E, para demonstrar a
sua incredulidade, ordenou, de pronto, ao escravo:
— Traze-me vinho da minha vinha! Queres ver como o bebo?
O escravo trouxe-lhe uma taça de ouro transbordante, e entregou-a ao
senhor.
— E agora, que te disse eu? — observou o monarca.
— O que eu sei, meu senhor, — retrucou o servo, curvando-se, — é que entre
o copo e a boca ainda medeia um espaço que pode ser, talvez, uma eternidade!
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Anceo sorriu, na sua arrogância, e ia levantar a taça de vinho fervente,
quando a guarda apareceu, de súbito, em tumulto, à porta do grande salão.
— O javali de Calidon, meu senhor! — gritavam todos, alarmados; — o javali
de Calidon acaba de entrar na vossa vinha!
Abandonando a taça, antes de levá-la aos lábios, o soberano atira-se, de um
salto, sobre a sua lança, sobre o seu escudo, sobre a sua espada, ordenando, ao
mesmo tempo, que as buzinas convoquem, sonoras, os guerreiros da vizinhança. E,
precipitando-se para o vinhedo, enfrenta, alí, sozinho, a fera formidável, a qual se
atira contra ele, ferindo-o, matando-o, estraçalhando-o, de modo que se cumpriu o
que dissera o escravo, o qual assegurara que ele não chegaria aos lábios, apesar de
tê-lo nas mãos, o vinho da sua vinha!
Com o queixo de mármore na curva da mão pequenina, debruçada sobre a
toalha de linho bordado, D. Alaíde ouvia, embevecida, de olhos semicerrados, a
palavra do narrador, que se debruçara, também, no seu rumo, para falar-lhe melhor.
De rosto a rosto não havia mais, talvez, que a distância de um palmo, quando
bateram, de leve, na porta que dava para o terraço, a qual se achava trancada à
chave. Pé ante pé, D. Alaíde vai até à vidraça e espia, sem ser vista.
— Quem é? - indaga, em segredo, o Dr. Fernando.
E a moça, à meia voz, com a mãozinha junto da boca:
— É o javali!...
Capítulo CXVIII
Autos e "Taxis"
27 de dezembro
Com o pensamento, talvez, de aperfeiçoar a raça, já de si tão robusta e
formosa, votou o Parlamento uruguaio um projeto de lei determinando às
autoridades que não realizem mais casamentos sem que os noivos se tenham
submetido, com resultado negativo, à reação de Wasserman. Acham os legisladores
de Montevidéu que a mulher constitui para os homens uma cruz, e foi com pena
deles, provavelmente, que se tomou a providência. Que seria, em verdade, do mortal
que tomasse aos ombros a cruz da família depois de ter duas, ou três, constatadas
num paciente exame de sangue?
Vindo de uma época excessivamente escrupulosa, em que os pais dos
namorados sindicavam das condições sanitárias dos antepassados até à quinta
geração, e em que os próprios noivos tomavam um purgativo de óleo de rícino oito
dias antes do casamento, — eu não podia ser contrário à humanitária medida
promulgada pelo governo do Uruguai. O meu espírito faltaria, entretanto, ao seu
dever de sinceridade, aos hábitos de franqueza incondicional, se não confessasse o
temor, que tenho, de que essa exigência venha reduzir, ali, o número de
casamentos.
O casamento é, realmente, hoje, encarado por um prisma original, que
degrada, é certo, a mulher, mas reintegra a espécie na natureza, permitindo-lhe a
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realização do seu verdadeiro destino. Dessa teoria, dava-me, ontem, uma perfeita
imagem industrial o Sr. Roberto de Aguiar, agente de pneumáticos americanos, ao
explicar-me, sem constrangimento nem entraves na língua:
— O casamento só pode ser julgado com segurança Sr. conselheiro, por
pessoa que já teve automóvel. A esposa ou o esposo definitivo é, para o homem ou
para a mulher, uma espécie de automóvel particular. E nada há no mundo, como o
senhor sabe, que, como um automóvel particular, dê tanto trabalho: um dia, é uma
peça que falta; no outro, é a gasolina; mais tarde, é a capota, que está estragada. O
dono de um automóvel vive a fazer despesas todos os dias, a incomodar-se a todo
instante, e, quando mais precisa do carro, tem a noticia de que ele não pode
funcionar!
Eu encarei o homenzinho, disposto a deixá-lo, àquela hora da madrugada, na
primeira esquina da Avenida, e ele continuou:
— Com a amante, ou o amante, não; o amante, qualquer que seja o sexo, é o
"taxi" do coração: a gente toma-o, paga-o, e salta onde entende, sem perguntar,
sequer, o nome da "garage". Marido ou amante, auto particular ou "taxi", que importa
à mulher, ou ao homem, a espécie do veículo, se ele faz a viagem da mesma
maneira? E isso com a vantagem de, ao abandonar o carro, não ter passageiro que
se incomodar com o estado do motor, nem com a qualidade dos lubrificantes.
Nesse momento, soavam, monótonas, em uma torre da Avenida, três
badaladas metálicas, quebrando o silêncio da noite, quase acabada:
— Três horas! — espantou-se o major Afonso Gomide, que ia conosco. —
Vamo-nos?
O agente americano estendeu os olhos pela Avenida deserta, e lamentou:
— Sim, senhor! Nem um "taxi"!... E agora?
— Vamos no meu automóvel, — convidou o major, fazendo sinal ao seu
"chauffeur".
Desabituado desses luxos, eu continuei o meu caminho, a pé...
Capítulo CXIX
"Gigolô"
29 de dezembro
Na pequena mesa redonda, em que havia lugar para três, D. Georgina
comentava com a liberdade das suas maneiras, o capítulo de uma revista parisiense
sobre um termo de criação recente, que tem, já, uma aplicação universal.
— Eu não sei, nem compreendo, afinal, a prevenção contra esse vocábulo.
— Que vocábulo, minha senhora? — inquiri, intrigado.
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— Que vocábulo? O "gigolô", masculino de "gigolete", que toda a gente
emprega, hoje, nos salões, nas festas, nos passeios, nos cinemas, sem o menor
constrangimento. Uma das minhas amigas, Mme. Perez, tem uma cadelazinha a que
deu o nome de "Gigolete", e chama-a por essa forma, em qualquer parte, sem o
menor escândalo dos que a ouvem. As moças, hoje, andam à "gigolete", vestem-se
à "gigolete", fantasiam-se de "gigolete" no Carnaval, e dizem-no sem rebuços, sem
temores, sem que se engasguem com a aspereza da expressão. Não se pode,
entretanto, falar em "gigolô", nem, mesmo, entre íntimos, sem que haja uma
estranheza, um arrepio em todas as almas, principalmente nas que se dizem limpas
de pecado. Por que essa diferença, essa disparidade, essa prevenção?
Eu olhei o Dr. Moraes, esposo da ilustre senhora, e, como o visse impassível,
dirigi-me à mulher:
— E que é "gigolô", D. Georgina?
— O senhor, então, não sabe, conselheiro? Não sabe, mesmo?
E como lesse a ignorância estampada na minha fisionomia, explicou, virando-
se para mim:
— "Gigolô" é o indivíduo adorado por uma mulher que tem outro homem que
a ama, e que ela sustenta, à custa do último. Geralmente moço, o "gigolô" é tratado
pela mulher que o adora com todos os requintes da paixão. Para ele são os seus
melhores beijos, os seus melhores mimos, os seus maiores cuidados. O marido, ou
o amante, ordinariamente idoso, fornece-lhe tudo, cercando-a de conforto, de luxo,
de abundância, à custa, às vezes, dos maiores sacrifícios. Ela passa, entretanto,
tudo isso ao "gigolô", que é, enfim, o único a lucrar com os amores e com o trabalho
do outro.
Capítulo CXX
Cefalalgia
31 de dezembro
A maior ambição de D. Tereza, desde que lhe morrera o marido, consistia em
casar a sua filha única, a encantadora e risonha Edelmira, com o Zézinho,
acadêmico de engenharia e filho único, também, do seu irmão Samuel. Criados
juntos, quase como irmãos, os dois primos votavam-se uma estima sincera,
profunda, inquebrantável, que o amor havia consolidado. E era este sonho máximo
da sua vida que D. Tereza acabava de realizar, naquela dia, ao ver chegar à casa,
de regresso da igreja, o cortejo nupcial, de que a Edelmirinha se apeava, com os
olhos vermelhos de pranto feliz, entre punhados de flores que lhe atiravam, sorrindo,
as suas amiguinhas da vizinhança.
Não querem. Entretanto, os deuses, que a felicidade seja duradoura, nem
eterna. No céu azul de uma vida sem cuidados, há de passar, sempre, uma nuvem
cinzenta, que interrompa a continuidade da ventura. E era nisso que pensava D.
Tereza, após o jantar íntimo oferecido aos convidados, quando lhe foram dizer, na
copa, que o Zézinho se estava sentindo indisposto.
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— Que é, meu filho, que é que você tem? — correu a boa senhora, aflita, com
a angústia estampada no rosto, a indagar do rapaz.
— Não é nada, mãezinha, não é nada; não se aflija! — pedia ele, pálido, ao
lado da noiva.
O caso era, entretanto, de molde a originar preocupações. Sustentando a
cabeça nas mãos, o moço não podia disfarçar mais a dor horrível que lhe estalava o
crânio, modificando-lhe, pela violência, a serenidade da fisionomia.
— Meu Deus! que será isto! Que terão feito ao Zéca, minha Nossa
Senhora?...
E, agoniada, a andar de um lado para outro da casa:
— Isso foi inveja! foi feitiçaria! foi mau olhado que puseram nele! Meu Deus,
tende piedade de mim!...
Na sala, a desorientação não era menor. Cada pessoa presente recomendava
um remédio, uma droga, um recurso caseiro.
— Dê um escalda-pés, D. Edelmira, — aconselhava uma senhora gorda,
montanhosa, que se abanava, paciente, com um grande leque de plumas. — Dê um
escalda-pés, que é um santo remédio!
— Um chá de erva-doce, Dona Tereza; faça um chá de erva-doce bem forte!
— intervinha outra dama, professora pública, jubilada. — Isso é estômago, com
certeza!
Iam as coisas por essa altura, quando o Dr. Álvaro Osório de Almeida, que
havia sido padrinho do casamento, interveio, acalmando tudo:
— Isso não é nada; deixem-se de aflição, de barulho, de agonia. É uma
enxaqueca sem importância, que se trata em uma hora. O essencial é o repouso.
E para D. Tereza:
— Dê-lhe uma cápsula de aspirina, e deixem-no descansar um pouco. Dentro
de uma hora, estará bom. O que é indispensável, é que ele descanse, repouse, fique
à vontade.
E dando, ele próprio, o exemplo, tomou o chapéu, despediu-se dos recém-
casados, e retirou-se, sendo acompanhado, nisso, pelos outros convidados.
Esvaziada a sala, o noivo tomou a cápsula recomendada, e, despedindo-se
da tia, recolheu-se, com a noiva, à alcova nupcial.
Meia hora depois, toda a casa entrava em sossego. O silêncio era absoluto.
Criados, parentes, plantas e cristais, tudo adormecera, num grande sono de fadiga.
No meio de tudo, entretanto, um coração aflito velava. Era D. Tereza. Como estaria
o Zéca? Teria melhorado? Estaria, já, fora de perigo? E como se as coisas, em
torno, não respondessem satisfatoriamente à sua consulta; levantou-se do leito, e,
pé ante pé, encaminhou-se para o quarto dos noivos. Chegada à porta, aplicou, de
leve, o ouvido à tábua e, com a voz doce, medrosa, maternal, chamou, para dentro:
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— Zéquinha?... Zéquinha?... E, com doçura:
— A cabeça passou, meu filho?
O silêncio, no quarto, era completo, perfeito; absoluto. Ninguém respondeu.
Com o seu coração de mãe, D. Tereza compreendeu tudo, e soltou um suspiro de
alívio. O Zéquinha estava bom. A cabeça, com certeza, havia passado...
FIM
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