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1
Universidade da Amazônia
Crônica do ViverCrônica do Viver
BaianoBaiano
Seiscentista-OSeiscentista-O
BurgoBurgo
de Gregório de Matos
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal
CEP: 66060-902
Belém – Pará
Fones: (91) 210-3196 / 210-3181
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2
Crônica do Viver Baiano Seiscentista - O Burgo
de Gregório de Matos
I - O BURGO
Meus males de quem procedem?
Não é de vós? claro é isso:
Que eu não faço mal a nada
por ser terra e mato arisco.
Isto sois, minha Bahia,
Isto passa em vosso burgo
E POIS CRONISTA SOU .
Se souberas falar também falarás
também satirizaras, se souberas,
e se foras poeta, poetaras.
Cansado de vos pregar
cultíssimas profecias,
quero das culteranias
hoje o hábito enforcar:
de que serve arrebentar,
por quem de mim não tem mágoa?
Verdades direi como água,
porque todos entendais
os ladinos, e os boçais
a Musa praguejadora.
Entendeis-me agora?
Permiti, minha formosa,
que esta prosa envolta em verso
de um Poeta tão perverso
se consagre a vosso pé,
pois rendido à vossa fé
sou já Poeta converso
Mas amo por amar, que é liberdade.
DESCREVE O QUE ERA REALMENTE NAQUELE TEMPO
A CIDADE DA BAHIA DE MAIS ENREDADA POR MENOS CONFUSA.
A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar a cabana, e vinha,
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.
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Em cada porta um freqüentado olheiro,
Que a vida do vizinho, e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
Para a levar à Praça, e ao Terreiro.
Muitos Mulatos desavergonhados,
Trazidos pelos pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.
Estupendas usuras nos mercados,
Todos, os que não furtam, muito pobres,
E eis aqui a cidade da Bahia.
À CIDADE E ALGUNS PICAROS, QUE HAVIAM NELA.
Quem cá quiser viver, seja um Gatão,
Infeste toda a terra, invada os mares,
Seja um Chegai, ou um Gaspar Soares,
E por si terá toda a Relação.
Sobejar-lhe-á na mesa vinho, e pão,
E siga, os que Ihe dou, por exemplares,
Que a vida passará sem ter pesares,
Assim como os não tem Pedro de Unhão
Quem cá se quer meter a ser sisudo
Nunca Ihe falta um Gil, que o persiga,
E é mais aperreado que um cornudo.
Furte, coma, beba, e tenha amiga,
Porque o nome d'EI-Rei dá para tudo
A todos, que El-Rei trazem na barriga.
FlNGINDO O POETA QUE ACODE PELAS HONRAS DA CIDADE, ENTRA A
FAZER JUSTIÇA EM SEUS MORADORES, SIGNALANDOLHES OS VICIOS, EM
QUE ALGUNS DELES SE DEPRAVAVAM
Uma cidade tão nobre,
uma gente tão honrada
veja-se um dia louvada
desde o mais rico ao mais pobre:
Cada pessoa o seu cobre,
mas se o diabo me atiça,
que indo a fazer-lhe justiça,
algum saia a justiçar,
não me poderão negar,
que por direito, e por Lei
esta é a justiça, que manda El-Rei.
0 Fidalgo de solar
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se dá por envergonhado
de um tostão pedir prestado
para o ventre sustentar:
diz, que antes o que furtar
por manter a negra honra,
que passar pela desonra,
de que Ihe neguem talvez;
mas se o virdes nas galés
com honras de Vice-Rei,
esta é a justiça, que manda El-Rei.
A Donzela embiocada
mal trajada, e mal comida,
antes quer na sua vida
ter saia, que ser honrada:
à pública amancebada
por manter a negra honrinha,
e se Iho sabe a vizinha,
e Iho ouve a clerezia
dão com ela na enxovia,
e paga a pena da lei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.
A casada com adorno
e o Marido mal vestido,
crede, que este mal Marido
penteia monho de corno:
se disser pelo contorno,
que se sofre a Fr. Tomás,
por manter a honra o faz,
esperai pela pancada,
que com carocha pintada
de Angola há de ser Visrei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.
Os Letrados Peralvilhos
citando o mesmo Doutor
a fazer de Réu, o Auto
comem de ambos os carrilhos:
se se diz pelos corrilhos
sua prevaricação,
a desculpa, que lhe dão,
é a honra de seus parentes
e entonces os requerentes,
fogem desta infame grei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.
O Clérigo julgador,
que as causas julga sem pejo,
não reparando, que eu vejo,
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que erra a Lei, e erra o Doutor:
quando vêem de Monsenhor
a Sentença Revogada
por saber, que foi comprada
pelo jimbo, ou pelo abraço,
responde o Juiz madraço,
minha honra é minha Lei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.
0 Mercador avarento,
quando a sua compra estende,
no que compra, e no que vende,
tira duzentos por cento:
não é ele tão jumento,
que não saiba, que em Lisboa
se Ihe há de dar na gamboa;
mas comido já o dinheiro
diz, que a honra está primeiro,
e que honrado a toda Lei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.
A viúva autorizada,
que não possui um vintém,
porque o Marido de bem
deixou a casa empenhada:
ali vai a fradalhada,
qual formiga em correição,
dizendo, que à casa vão
manter honra da casa,
se a virdes arder em brasa,
que ardeu a honra entendei:
esta é a justiça, que manda EL-Rei.
0 Adônis da manhã,
o Cupido em todo o dia,
que anda correndo a Coxia
com recadinhos da Irmã:
e se Ihe cortam a lã,
diz, que anda naquele andar
por a honra conservar
bem tratado, e bem vestido,
eu o verei tão despido,
que até as costas Ihe verei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.
Se virdes um Dom Abade
sobre o púlpito cioso,
não Ihe chameis Religioso,
chamai-lhe embora de Frade:
e se o tal Paternidade
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rouba as rendas do Convento
para acudir ao sustento
da puta, como da peita,
com que livra da suspeita
do Geral, do Viso-Rei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.
DEFINE A SUA CIDADE
MOTE
De dous ff se compõe
esta cidade a meu ver
um furtar, outro foder.
Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem Digesto, e Colheito
só com dous ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer, que esta terra
De dous ff se compõe.
Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta,
e quero um tostão perder,
que isso a há de preverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
Esta cidade a meu ver.
Provo a conjetura já
prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.
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QUEICHA-SE A BAHIA POR SEU BASTANTE PROCURADOR,
CONFESSANDO, QUE AS CULPAS, QUE LHE INCREPAM, NÃO SÃO SUAS,
MAS SIM DOS VICIOSOS MORADORES, QUE EM Sl ALVERGA.
Já que me põem a tormento
murmuradores nocivos,
carregando sobre mim
suas culpas, e delitos:
Por crédito de meu nome,
e não por temer castigo
confessar quero os pecados,
que faço, e que patrocino.
E se alguém tiver a mal
descobrir este sigilo,
não me infame, que eu serei
pedra em poço, ou seixo em rio.
Sabei, céu, sabei, estrelas,
escutai, flores, e lírios,
montes, serras, peixes, aves
luz, sol, mortos, e vivos:
Que não há, nem pode haver
desde o Sul ao Norte frio
cidade com mais maldades,
nem província com mais vícios:
Do que sou eu, porque em mim
recopilados, e unidos
estão juntos, quantos têm
mundos, e reinos distintos.
Tenho Turcos, tenho Persas
homens de nação Impios
Magores, Armênios, Gregos,
infiéis, e outros gentios
Tenho ousados Mermidônios,
tenho Judeus, tenho Assírios,
e de quantas castas há,
muito tenho, e muito abrigo.
E se não digam aqueles
prezados de vingativos,
que santidade têm mais,
que um Turco, e um Moabito?
Digam Idólatras falsos,
que estou vendo de contino,
adorarem ao dinheiro,
gula, ambição, e amoricos.
Quantos com capa cristã
professam o judaísmo,
mostrando hipocritamente
devoção à Lei de Cristo!
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Quantos com pele de ovelha
são lobos enfurecidos,
ladrões, falsos, e aleivosos,
embusteiros, e assassinos!
Estes por seu mau viver
sempre péssimo, e nocivo
são, os que me acusam de danos,
e põem labéus inauditos.
Mas o que mais me atormenta,
é ver, que os contemplativos,
sabendo a minha inocência,
dão a seu mentir ouvidos.
Até os mesmos culpados
têm tomado por capricho,
para mais me difamarem,
porem pela praça escritos.
Onde escrevem sem vergonha
não só brancos, mas mestiços,
que para os bons sou inferno,
e para os maus paraíso.
Ó velhacos insolentes,
ingratos, mal procedidos,
se eu sou essa, que dizeis,
porque não largais meu sítio?
Por que habitais em tal terra,
podendo em melhor abrigo?
eu pego em vós? eu vos rogo?
respondei! dizei, malditos!
Mandei acaso chamar-vos
ou por carta, ou por aviso?
não viestes para aqui
por vosso livre alvedrio?
A todos não dei entrada,
tratando-vos como a filhos?
que razão tendes agora
de difamar-me atrevidos?
Meus males, de quem procedem?
não é de vós? claro é isso:
que eu não faço mal a nada
por ser terra, e mato arisco.
Se me lançais má semente,
como quereis fruito limpo?
lançai-a boa, e vereis,
se vos dou cachos opimos.
Eu me lembro, que algum tempo
(isto foi no meu princípio)
a semente, que me davam,
era boa, e de bom trigo.
Por cuja causa meus campos
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produziam pomos lindos,
de que ainda se conservam
alguns remotos indícios.
Mas depois que vós viestes
carregados como ouriços
de sementes invejosas,
e legumes de maus vícios:
Logo declinei convosco,
e tal volta tenho tido,
que, o que produzia rosas,
hoje só produz espinhos.
Mas para que se conheça
se falo verdade, ou minto,
e quanto os vossos enganos
têm difamado o meu brio:
confessar quero de plano,
o que encubro por servir-vos
e saiba, quem me moteja,
os prêmios, que ganho nisso.
Já que fui tão pouco atenta,
que a luz da razão, e o siso
não só quis cegar por gosto,
mas ser do mundo ludíbrio.
Vós me ensinastes a ser
das inconstâncias arquivo,
pois nem as pedras, que gero,
guardam fé aos edifícios.
Por vosso respeito dei
campo franco, e grande auxílio
para que se quebrantassem
os mandamentos divinos.
Cada um por suas obras
conhecerá, que meu xingo,
sem andar excogitando,
para quem se aponta o tiro.
PRECEITO 1
Que de quilombos que tenho
com mestres superlativos,
nos quais se ensinam de noite
os calundus, e feitiços.
Com devoção os freqüentam
mil sujeitos femininos,
e também muitos barbados,
que se presam de narcisos.
Ventura dizem, que buscam;
não se viu maior delírio!
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eu, que os ouço, vejo, e calo
por não poder diverti-los.
O que sei, é, que em tais danças
Satanás anda metido,
e que só tal padre-mestre
pode ensinar tais delírios.
Não há mulher desprezada,
galã desfavorecido,
que deixe de ir ao quilombo
dançar o seu bocadinho.
E gastam pelas patacas
com os mestres do cachimbo,
que são todos jubilados
em depenar tais patinhos.
E quando vão confessar-se,
encobrem aos Padres isto,
porque o têm por passatempo,
por costume, ou por estilo.
Em cumprir as penitências
rebeldes são, e remissos,
e muito pior se as tais
são de jejuns, e cilícios.
A muitos ouço gemer
com pesar muito excessivo,
não pelo horror do pecado,
mas sim por não consegui-lo.
PRECEITO 2
No que toca aos juramentos,
de mim para mim me admiro
por ver a facilidade,
com que os vão dar juízo.
Ou porque ganham dinheiro,
por vingança, ou pelo amigo,
e sempre juram conformes,
sem discreparem do artigo.
Dizem, que falam verdade,
mas eu pelo que imagino,
nenhum, creio, que a conhece,
nem sabe seus aforismos.
Até nos confessionários
se justificam mentindo
com pretextos enganosos,
e com rodeios fingidos
Também aqueles, a quem
dão cargos, e dão ofícios,
suponho, que juram falso
por conseqüências, que hei visto.
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Prometem guardar direito,
mas nenhum segue este fio,
e por seus rodeios tortos
são confusos labirintos.
Honras, vidas, e fazendas
vejo perder de contino,
por terem como em viveiro
estes falsários metidos.
PRECEITO 3
Pois no que toca a guardar
dias Santos, e Domingos:
ninguém vejo em mim, que os guarde,
se tem, em que ganhar jimbo.
Nem aos míseros escravos
dão tais dias de vazio,
porque nas leis do interesse,
é preceito proibido.
Quem os vê ir para o templo
com as contas e os livrinhos
de devoção, julgará,
que vão p'ra ver a Deus Trino:
Porém tudo é mero engano,
porque se alguns escolhidos
ouvem missa, é perturbados
desses, que vão por ser vistos.
E para que não pareça,
aos que escutam, o que digo,
que há mentira, no que falo
com a verdade me explico:
Entra um destes pela Igreja,
sabe Deus com que sentido,
e faz um sinal-da-cruz
contrário ao do catecismo.
Logo se põe de joelhos,
não como servo rendido,
mas em forma de besteiro
cum pé no chão, outro erguido.
Para os altares não olha,
nem para os Santos no nicho,
mas para quantas pessoas
vão entrando, e vão saindo.
Gastam nisto o mais do tempo,
e o que resta divertidos
se põem em conversação,
com os que estão mais propínquos
Não contam vidas de Santos,
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nem exemplos ao divino,
mas sim muita patarata,
do que não há, nem tem sido.
Pois se há sermão, nunca o ouvem,
porque ou se põem de improviso
a cochilar como negros,
ou se vão escapulindo.
As tardes passam nos jogos,
ou no campo divertidos
dando Leis, e dando arbítrios.
As mulheres são piores,
porque se lhes faltam brincos
manga a volá, broche, troço,
ou saia de labirintos,
não querem ir para a Igreja,
seja o dia mais festivo,
mas em tendo essas alfaias,
saltam mais do que cabritos.
E se no Carmo repica,
ei-las lá vão rebolindo,
o mesmo para São Bento,
Colégio, ou São Francisco.
Quem as vir muito devotas,
julgará sincero, e liso,
que vão na missa, e sermão
a louvar a Deus com hinos.
Não quero dizer, que vão,
por dizer mal do Maridos,
aos amantes, ou talvez
cair em erros indignos.
Debaixo do parentesco,
que fingem pelo apelido,
mandando-lhes com dinheiro
muitos, e custosos mimos.
PRECEITO 4
Vejo, que morrem de fome
os Pais daquelas, e os Tios,
ou porque os vêem Lavradores,
ou porque tratam de ofícios.
Pois que direi dos respeitos,
com que os tais meus mancebinhos
tratam esses Pais depois
que deixam de ser meninos?
Digam-no quantos o vêem,
que eu não quero repeti-lo,
a seu tempo direi como
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criam estes morgadinhos.
Se algum em seu testamento
cerrado, ou nuncupativo
a algum parente encarrega
sua alma, ou legados pios:
Trata logo de enterrá-lo
com demonstrações de amigo,
mas passando o Resquiescat
tudo se mate no olvido.
Da fazenda tomam posse
até do menor caquinho;
mas para cumprir as deixas
adoecem de fastio.
E desta omissão não fazem
escrúpulo pequenino,
nem se Ihes dá, que o defunto
arda, ou pene em fogo ativo.
E quando chega a apertá-los
o tribunal dos resíduos,
ou mostram quitações falsas,
ou movem pleitos renhidos.
Contados são, os que dão
a seus escravos ensino,
e muitos nem de comer,
sem Ihes perdoar serviço.
Oh quantos, e quantos há
de bigode fernandino,
que até de noite às escravas
pedem selários indignos,
Pois no modo de criar
aos filhos parecem símios,
causa por que os não respeitam,
depois que se vêem crescidos.
Criam-nos com liberdade
nos jogos, como nos vício,
persuadindo-lhes, que saibam
tanger guitarra, e machinho.
As Mães por sua imprudência
são das filhas desperdício,
por não haver refestela,
onde as não levem consigo.
E como os meus ares são
muito coados, e finos,
se não há grande recato,
têm as donzelas perigo.
Ou as quebranta de amores
o ar de algum recadinho,
ou pelo frio da barra
saem co ventre crescido.
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Então vendo-se opiladas,
se não é do santo vínculo,
para livrarem do achaque,
buscam certos abortinhos.
Cada dia o estou vendo,
e com ser isto sabido,
contadas são, as que deixam
de amar estes precipícios.
Com o dedo a todas mostro,
quanto indica o vaticínio,
e se não querem guardá-lo,
não culpam meu domicílio.
PRECEITO 5
Vamos ao quinto preceito,
Santo Antônio vá comigo,
e me depare algum meio,
para livrar do seu risco.
Porque suposto que sejam
quietos, mansos, benignos,
quantos pisam meus oiteiros,
montes, vales, e sombrios;
Pode suceder, que esteja
algum áspide escondido
entre as flores, como diz
aquele provérbio antigo.
Faltar não quero à verdade
nem dar ao mentir ouvidos,
o de César dê-se a César,
o de Deus a Jesus Cristo.
Não tenho brigas, nem mortes
pendências, nem arruídos,
tudo é paz, tranqüilidade,
cortejo com regozijo:
Era dourada parece,
mas não é como eu a pinto
porque debaixo deste ouro
tem as fezes escondido.
Que importa não dar aos corpos
golpes, catanadas, tiros,
e que só sirvam de ornato
espada, e cotós limpos?
Que importa, que não se enforquem
os ladrões, e os assassinos,
os falsários, maldizentes,
e outros a este tonilho?
Se debaixo desta paz,
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deste amor falso, e fingido
há fezes tão venenosas,
que o ouro é chumbo mofino
É o amor um mortal ódio,
sendo todo o incentivo
a cobiça do dinheiro,
ou a inveja dos ofícios.
Todos pecam no desejo
de querer ver seus patrícios
ou da pobreza arrastados,
ou do crédito abatidos.
E sem outra cousa mais
se dão a destro, e sinistro
pela honra, e pela fama
golpes cruéis, e infinitos.
Nem ao sagrado perdoam,
seja Rei, ou seja Bispo,
ou Sacerdote, ou Donzela
metida no seu retiro.
A todos enfim dão golpes
de enredos, e mexericos
tão cruéis, e tão nefandos,
que os despedaçam em cisco.
Pelas mãos nada; porque
não sabem obrar no quinto;
mas pelas línguas não há
leões mais enfurecidos.
E destes valentes fracos
nasce todo o meu martírio;
digam todos, os que me ouvem,
se falo a verdade, ou minto.
PRECEITO 6
Entremos pelos devotos
do nefando Deus Cupido,
que também esta semente
não deixa lugar vazio.
Não posso dizer, quais são
por seu número infinito,
mas só digo, que são mais
do que as formigas, que crio.
Seja solteiro, ou casado,
é questão, é já sabido
não estar sem ter borracha
seja do bom, ou mau vinho.
Em chegando a embebedar-se
de sorte perde os sentidos.
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16
que deixa a mulher em couros,
e traz os filhos famintos:
Mas a sua concubina
há de andar como um palmito,
para cujo efeito empenham
as botas com seus atilhos.
Elas por não se ocuparem
com costuras, nem com bilros,
antes de chegar aos doze
vendem o signo de Virgo.
Ouço dizer vulgarmente
(não sei, é certo este dito)
que fazem pouco reparo
em ser caro, ou baratinho.
O que sei é, que em magotes
de duas, três, quatro, cinco
as vejo todas as noites
sair de seus esconderijos
E como há tal abundância
desta fruta no meu sítio,
para ver se há, quem as compre,
dão pelas ruas mil giros.
E é para sentir, o quanto
se dá Deus por ofendido
não só por este pecado,
mas pelos seus conjuntivos:
como são cantigas torpes,
bailes, e toques lascivos,
venturas, e fervedouros,
pau de forca, e pucarinhos.
Quero entregar ao silêncio
outros excessos malditos,
como do Pai carumbá,
Ambrósio, e outros pretinhos.
Com os quais estas formosas
vão fazer infames brincos
governados por aqueles,
que as trazem num cabrestinho.
PRECEITO 7
Já pelo sétimo entrando
sem alterar o tonilho,
digo, que quantos o tocam
sempre o tiveram por crítico
Eu sou, a que mais padeço
de seus efeitos malignos,
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17
porque todos meus desdouros
pelo sétimo têm vindo.
Não falo (como lá dizem)
ao ar, ou libere dicto,
pois diz o mundo loquaz,
que encubro mil latrocínios
Se é verdade, eu o não sei,
pois acho implicância nisto
porque o furtar tem dous verbos
um furor, outro surrípio.
Eu não vejo cortar bolsas,
nem sair pelos caminhos,
como fazem nas mais partes
salvo alguns negros fugidos.
Vejo, que a forca, ou picota
paga os altos do vazio,
e que o carrasco não ganha
nem dous réis para cominhos
Vejo, que nos tribunais
há vigilantes Ministros,
e se houvera em mim tal gente
andara à soga em contino.
Porém se disto não há,
com que razão, ou motivo
dizem por aí, que sou
um covil de Latrocínios!
Será por verem, que em mim
é venerado, e querido
Santo Unhate, irmão de Caco,
porque faz muitos prodígios.
Sem questão deve de ser,
porque este Unhate maldito
faz uns milagres, que eu mesma
não sei, como tenho tino.
Pode haver maior milagre
(ouça bem quem tem ouvidos)
do que chegar um Reinol
de Lisboa, ou lá do Minho
ou degredado por crimes
ou por Moço ao Pai fugido,
ou por não ter que comer
no Lugar, onde é nascido:
E saltando no meu cais
descalço, roto, e despido,
sem trazer mais cabedal,
que piolhos, e assobios:
Apenas se ofrece a Unhate
de guardar seu compromisso,
tomando com devoção
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18
sua regra, e seu bentinho:
Quando umas casas aluga
de preço, e valor subido,
e se põe em tempo breve
com dinheiro, e com navios?
Pode haver maior portento,
nem milagre encarecido,
como de ver um Mazombo
destes cá do meu pavio,
que sem ter eira, nem beira
engenho, ou juro sabido
tem amiga, e joga largo
veste sedas, põe polvilhos?
Donde Ihe vem isto tudo?
Cai do Céu? Tal não afirmo;
ou Santo Unhate Iho dá,
ou do Calvário é prodígio.
Consultam agora os sábios,
que de mim fazem corrilhos
se estou ilesa da culpa,
que me dão sobre este artigo.
Mas não quero repetir
a dor e o pesar, que sinto
por dar mais um passo avante
para o oitavo suplício.
PRECEITO 8
As culpas, que me dão nele,
são, que em tudo o que digo,
me aparto do verdadeiro
com ânimo fementido
Muito mais é, do que falo,
mas é grande barbarismo,
quererem, que pague a albarda,
o que comete o burrinho.
Se por minha desventura
estou cheia de percitos,
como querem, que haja em mim
fé, verdade, ou falar liso?
Se como atrás declarei,
se oudera cobro nisto,
a verdade aparecera
cruzando os braços comigo.
Mas como dos tribunais
proveito nenhum se há visto,
a mentira está na terra,
a verdade vai fugindo.
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19
O certo é, que os mais deles
têm por gala, e por capricho
não abrir a boca nunca
sem mentir de fito a fito.
Deixar quero os pataratas,
e tornando a meu caminho,
quem quiser mentir o faça,
que me não toca impedi-lo.
PRECEITO 9
Do nono não digo nada,
porque para mim é vidro,
e quem o quiser tocar,
vá com o olho sobreaviso.
Eu bem sei, que também trazem
o meu crédito perdido,
mas valha sem sê-lo ex causa,
ou Ihos ponham seus maridos.
Confesso, que tenho culpas,
porém humilde confio,
mais que em riquezas do mundo,
da virtude num raminho.
PRECEITO 10
Graças a Deus que cheguei
a coroar meus delitos
com o décimo preceito,
no qual tenho delinqüido.
Desejo, que todos amem,
seja pobre, ou seja rico,
e se contentem com a sorte,
que têm, e estão possuindo.
Quero finalmente, que
todos, quantos têm ouvido,
pelas obras, que fizerem,
vão para o Céu direitinhos.
QUEIXAS DA SUA MESMA VERDADE.
Quer-me mal esta cidade...................................pela verdade,
Não há, quem me fale, ou veja..........................de inveja,
E se alguém me mostra amor............................é temor.
De maneira, meu Senhor,
que me hão de levar a palma
meus três inimigos d'alma
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20
Verdade, Inveja, e Temor.
Oh quem soubera as mentiras.............................do Milimbiras,
Fora aqui senhor do bolo.................................. como tolo,
E feito tolo, e velhaco........................................fora um caco.
Meteria assim no saco
Servindo, andando e correndo
as ligas, que vão fazendo
Milimbiras, Tolo, e Caco.
Tirara cinzas tiranas............................................das bananas,
Outro se os meus dez réis...................................de pastéis,
E porque isento não fosse...................................até do doce.
Teria assim, com que almoce
o meu amancebamento,
pois lhe basta por sustento
Bananas, Pastéis, e Doce.
Prendas, que a empenhar obrigo..........................pelo amigo,
Dobrar-lhe eu o valor..........................................e primor,
Cobrando em dous bodegões...............................os tostões.
E seus donos asneirões ao desfazer da moeda
perdem da mesma assentada
Amigo, Primor, Tostões.
Ao jimbo, que se lhe conta........................................boa conta,
E já por amigo vejo...................................................sem ter pejo,
Pois lhe tira de corrida..............................................a medida.
Mas verdadeira, ou mentida
a conta ajustada vem,
sendo um homen, que não tem,
Conta, Pejo, nem Medida.
Dever-me-ão camaradas..........................................mil passadas,
E o triste do companheiro.......................................o dinheiro,
E à conta das minhas brasas.....................................as casas.
Assim lhe empatara as vazas,
pois o mesmo, que eu devia,
por força me deveria
Passadas, Dinheiro, e Casas.
TORNA A DEFINIR O POETA OS MAOS MODOS DE OBRAR
NA GOVERNANÇA DA BAHIA, PRINCIPALMENTE NAQUELA
UNIVERSAL FOME, QUE PADECIA A CIDADE.
Que falta nesta cidade?.....................................Verdade
Que mais por sua desonra.................................Honra
Falta mais que se lhe ponha...............................Vergonha.
O demo a viver se exponha,
por mais que a fama a exalta,
numa cidade, onde falta
Verdade, Honra, Vergonha.
Quem a pôs neste socrócio?...............................Negócio
Quem causa tal perdição?...................................Ambição
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E o maior desta loucura?....................................Usura.
Notável desventura
de um povo néscio, e sandeu,
que não sabe, que o perdeu
Negócio, Ambição, Usura.
Quais são os seus doces objetos?......................Pretos
Tem outros bens mais maciços?..................................Mestiços
Quais destes lhe são mais gratos? ........................Mulatos.
Dou ao demo os insensatos,
dou ao demo a gente asnal,
que estima por cabedal
Pretos, Mestiços, Mulatos.
Quem faz os círios mesquinhos?.............................Meirinhos
Quem faz as farinhas tardas?..................................Guardas
Quem as tem nos aposentos?..................................Sargentos.
Os círios lá vêm aos centos,
e a terra fica esfaimando,
porque os vão atravessando
Meirinhos, Guardas, Sargentos,
E que justiça a resguarda? ....................................Bastarda
É grátis distribuída?..............................................Vendida
Quem tem, que a todos assusta?............................Injusta.
Valha-nos Deus, o que custa,
o que EL-Rei nos dá de graça,
que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta.
Que vai pela clerezia?..............................................Simonia
E pelo membros da Igreja?.......................................Inveja
Cuidei, que mais se lhe punha?..................................Unha.
Sazonada caramunha!
enfim que na Santa Sé
o que se pratica, é
Simonia, Inveja, Unha.
E nos Frades há manqueiras?...................................Freiras
Em que ocupam os serões?......................................Sermões
Não se ocupam em disputas?....................................Putas.
Com palavras dissolutas
me concluís na verdade,
que as lidas todas de um Frade
são Freiras, Sermões, e Putas.
O açúcar já se acabou?.............................................Baixou
E o dinheiro se extinguiu?........................................Subiu
Logo já convalesceu?................................................Morreu.
À Bahia aconteceu
o que a um doente acontece,
cai na cama, o mal lhe cresce,
Baixou, Subiu, e Morreu.
A Câmara não acode?.............................................Não pode
Pois não tem todo o poder?....................................Não quer
É que o governo convence?...................................Não vence.
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Quem haverá que tal pense,
que uma Câmara tão nobre
por ver-se mísera, e pobre
Não pode, não quer, não vence.
FIM
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