www.nead.unama.br
9
de todo o desejo, o ilimitado amor pelos seres, o incessante aperfeiçoamento na
caridade, o desdém forte do ascetismo que se tortura, a cultura perene da
misericórdia que resgata, e a confiança na morte...
Incontestavelmente, a meu ver (tanto quanto estas excelsas coisas se
podem discernir de uma casa de Paris, no século XIX e com defluxo) a vida do Buda
é mais meritória. E depois considera a diferença do ensino dos dois divinos Mestres.
Um, Jesus, diz: “Eu sou filho de Deus, e insto com cada um de vós, homens mortais,
em que pratiqueis o bem durante os poucos anos que passais na Terra, para que eu
depois, em prêmio, vos dê a cada um, individualmente, uma existência superior,
infinita em anos e infinita em delícias, num palácio que está além das nuvens e que
é de meu Pai!” O Buda, esse, diz simplesmente: “Eu sou um pobre frade
mendicante, e peco-vos que sejais bons durante a vida, porque de vós, em
recompensa, nascerão outros melhores, e desses outros ainda mais perfeitos, e
assim, pela prática crescente da virtude em cada geração, se estabelecerá pouco a
pouco na Terra a virtude universal!” A justiça do justo, portanto, segundo Jesus, só
aproveita egoisticamente ao justo. E a justiça do justo, segundo Buda, aproveira ao
ser que o substituir na existência, e depois ao outro que deve nascer, sempre
durante a passagem na Terra, para lucro eterno da Terra. Jesus cria uma
aristocracia de santos, que arrebata para o Céu onde ele é Rei, e que constituem a
corte do Céu para deleite da sua divindade: — e não vem dela proveito direto para o
Mundo, que continua a sofrer da sua porção de Mal, sempre indiminuída. O Buda,
esse, cria, pela soma das virtudes individuais, santamente acumuladas, uma
humanidade que em cada ciclo nasce progressivamente melhor, que por fim se
torna perfeita, e que se estende a toda Terra donde o Mal desaparece, e onde o
Buda é sempre, à beira do caminho rude, o mesmo frade mendicante. Eu, minha
flor, sou pelo Buda. Em todo o caso, esses dois Mestres possuíram, para bem dos
homens, a maior Porção de divindade que até hoje tem sido dado à alma humana
conter. De resto, tudo isto é muito complicado; e tu sabiamente procederias em
deixar o Buda no seu budismo, e, uma vez que esses teus bosques são tão
admiráveis, em te retemperar na sua forca e nos seus aromas salutares. O Buda
pertence à cidade e ao colégio de Franca: no campo a verdadeira Ciência deve cair
das árvores, como nos tempos de Eva. Qualquer folha de olmo te ensina mais que
todas as folhas dos livros. Sobretudo do que eu — que aqui estou pontificando, e
fazendo pedantemente, ante os teus lindos olhos, tão finos e meigos, um curso
escandaloso de Religiões Comparadas.
Só me restam três polegadas de papel – e ainda te não contei, oh doce
exilada, as novas de Paris, acta Urbis. (Bom, agora latim!) São raras, e pálidas.
Chove; continuamos em república; Madame de Jouarre, que chegou da Rocha com
menos cabelos brancos, mas mais cruel, convidou alguns desventurados (dos quais
eu o maior) para escutarem três capítulos dum novo atentado do barão de Fernay
sobre a Grécia; os jornais publicam outro prefácio do sr. Renan, todo cheio do sr.
Renan, e em que ele se mostra, como sempre, o enternecido e erudito vigário de
Nossa Senhora da razão; e temos, enfim, um casamento de paixão e de luxo, o do
nosso escultural visconde de Fonblant com mademoiselle Degrave, aquela nariguda,
magrinha e de maus dentes, que herdou, milagrosamente, os dois milhões do
cervejeiro e que tem tão lindamente engordado e ri com dentes tão lindos. Eis tudo,
minha adorada... E é tempo que te mande, em montão, nesta linha, as saudades, os
desejos e as coisas ardentes e suaves e sem nome de que meu coração está cheio,
sem que se esgote por mais que plenamente as arremesse aos teus pés adoráveis,
que beijo com submissão e com fé.