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Universidade da Amazônia
Alves e Cia.
de Eça de Queirós
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Alves e Cia.
de Eça de Queirós
CAPÍTULO I
Nessa manhã, Godofredo da Conceição Alves, encalmado, soprando de Ter
vindo do Terreiro do Paço quase a correr, abria o batente de baetão verde, do seu
escritório num entressolo da rua dos Douradores, quando o relógio de parede pôr
cima da carteira do guarda-livros batia duas horas, naquele tom, cavo, a que os tetos
baixos do entressolo davam uma sonoridade dolente, e cava. Godofredo parou,
verificou o seu próprio relógio preso pôr uma corrente de cabelo sobre o colete
branco, e não conteve um gesto de irritação vendo a sua manhã assim perdida,
pelas repartições do Ministério da Marinha: e era sempre assim quando o seu
negócio de comissões para o Ultramar o levava lá: apesar de Ter um primo de sua
mulher, diretor-geral, de escorregar de vez em quando uma placa na mão dos
contínuos, de ter descontado a dois segundos oficiais letras de favor, eram sempre
as mesmas dormentes esperas pelo ministro, um folhear eterno de papelada,
hesitações, demoras, todo um trabalho irregular, rangente e desconjuntado de velha
máquina meio desparafusada.
Sempre o mesmo encaranguejamento – exclamou ele, pousando o chapéu
sobre a carteira do guarda-livros. – Dá vontade de os espicaçar como aos bois: Eh
Ruço para diante! Eh Malhado!
O guarda-livros, um moço de ar amarelado e doente, sorriu. Espalhou areia
sobre a larga folha que acabava de escrever, e disse, sacudindo-a:
O sr. Machado deixou um bilhete lá dentro... diz que ia ao Lumiar.
Então Godofredo, que limpava a testa com o lenço de seda, sorriu também,
de leve, passando logo pelo bigode o lenço, escondendo o sorriso... Depois
examinou a correspondência, que o guarda-livros continuava a polvilhar de areia.
Um momento uma carroça, fora, atroou a rua estreita, com um ruído de
ferragens sacudidas: depois tudo caiu num silêncio. Um caixeiro, agachado diante
dum caixote enorme, escrevia um nome sobre a tampa. A pena de pato rangia, por
cima o relógio batia um tic-tac forte. E naquele grande calor do dia, no abafamento
dos tetos baixos, subia dos caixotes, de dois fardos, do pó da papelada, um cheiro
vago de ranço, e de mercearia.
O sr. Machado estava ontem em D. Maria – disse então o guarda-livros, sem
cessar de escrever.
Alves largou logo a carta que lia, interessado, com o olhar mais vivo:
— Que ia ontem?
— O Trapeiro de Paris...
— Que tal?
O guarda-livros ergueu os olhos da carta para responder:
— Eu gostei muito do Teodorico...
Alves ainda ficou esperando algum outro detalhe, uma apreciação. Mas o
guarda-livros retomara a pena, e ele recontinuou a sua leitura. Depois o trabalho do
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caixeiro agachado interessou-o um instante. Seguia o pincel, gozava as curvas das
letras.
— Ponha-lhe um til. Fabião tem um til...
E, como o caixeiro se embaraçou um momento, ele próprio se abaixou, tomou
o pincel, deu o seu til a Fabião. Fez ainda uma recomendação ao guarda-livros
sobre uma remessa de baetão vermelho para Luanda e, empurrando outro batente
verde, descendo dois degraus - porque naquele entressolo os pavimentos eram de
níveis diferentes, penetrou enfim no seu gabinete, pôde desabotoar o colete,
estender-se enfim numa poltrona de reps verde.
Fora, um dia de julho abrasava, faiscava na pedra dos passeios: mas ali,
naquele gabinete, onde nunca dava o sol, assombreado pelos altos prédios
fronteiros, havia uma frescura; as persianas verdes estavam corridas fazendo uma
penumbra; e o verniz das duas carteiras, a dele e a do seu sócio, a esteira que
cobria o chão, o reps verde da cadeira bem escovado, uma moldura de ouro
encaixilhando uma vista de Luanda, a alvura dum grande mapa, tinham um ar de
arranjo, de ordem, que punha como um repouso, uma frescura maior. Havia,
mesmo, um ramo de flores, que sua mulher, a boa Lulu, lhe tinha mandado havia
dias – compadecida de o saber toda uma daquelas manhãs de calma, no
abafamento dum escritório, sem uma cor de flor para alegrar os olhos. Ele tinha
posto o ramo sobre a carteira do Machado. Mas, sem água, as flores murchavam.
O batente verde abriu-se, o guarda-livros mostrou a face amarelada e doente:
— O sr. Machado deixou alguma recomendação a respeito do vinho de
Colares para o Cabo Verde?
Então Alves lembrou-se da carta do sócio, que estava sobre a sua
escrivaninha. Abriu-a; as duas primeiras linhas explicavam a ida ao Lumiar; depois,
com efeito, começava, “a respeito do Colares...”. Alves deu a carta ao guarda-livros.
O batente fechou-se de novo, e Alves agora tinha outra vez o sorriso de há
pouco, mas que não disfarçava. Desde o começo do mês, era a Quarta ou Quinta
vez que o Machado desaparecia assim do escritório, ora para ir ao Lumiar ver a
mãe, ora mesmo, sem razões, ou com esta palavra vaga: “um negociozito”. E Alves
sorria ainda, percebia bem o “negociozito”. Machado tinha vinte e seis anos; e era
bonito moço, com o seu bigodito louro, o cabelo anelado, e o ar elegante. As
mulheres gostavam dele. Desde que eram sócios, Alves conhecera-lhe três ligações:
uma linda espanhola, que, apaixonada pôr ele, deixara um brasileiro rico, um antigo
presidente de província, que lhe pusera casa; depois uma atriz de D. Maria, que não
tinha nada senão uns bonitos olhos; e agora aquele “negociozito”. Mas estes amores
decerto eram mais delicados, tomando um lugar maior no coração, na vida de
Machado.. Alves sentia-o bem, pôr certo ar inquieto e preocupado do sócio, o quer
que fosse de contrafeito, de triste pôr vezes...Também o Machado nunca lhe dissera
nada, não mostrara jamais a mais leve tendência para uma efusão, uma confidência.
Eram íntimos, Machado ia passar muitas noites à casa dele, tratava a Lulu quase
como uma irmã, jantava lá todos os domingos mas -, ou porque tivesse entrado na
firma comercial havia apenas três anos, ou porque era dez anos mais novo, ou
porque Alves fora amigo de seu pai e um dos testamenteiros, ou porque era casado
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— Machado conservava para com ele uma certa reserva, um vago respeito,
nunca entre eles se estabelecera uma verdadeira camaradagem de homens.
Também Alves não lhe dizia nada. O “negociozito” não pertencia aos interesses da
firma. Ele não tinha nada com isso. Apesar daquelas ausências repetidas, Machado
continuava a ser muito trabalhador, amarrado à carteira dez e doze horas em dias de
paquete, ativo, fino, vivendo todo para a prosperidade da firma: e Alves não podia
deixar de confessar que se na firma ele representava a boa conduta, a honestidade
doméstica, a vida regular, a seriedade de costumes – Machado representava a
finura comercial, a energia, a decisão, as largas idéias, o faro do negócio... Ele,
Godofredo, fora sempre de natureza indolente, como seu pai, que, pôr gosto, se
movia duma sala para outra, numa cadeira de rodas...
De resto, apesar dos seus princípios severos de rapaz educado a sério nos
jesuítas, cheio de boas crenças, e que nunca antes de casado tivera uma ligação, ou
um amor irregular, ele sentia pôr estas “tolices” do Machado uma vaga e simpática
indulgência. Em primeiro lugar pôr amizade: conhecera o Machado pequeno, e
bonito como um querubim; e nunca deixara de o impressionar vagamente a boa
família do Machado, o seu tio conde de Vilar, as suas relações na sociedade, o caso
que dele fazia dona Maria Forbes, que o convidava para as suas quintas-feiras –
apesar de negociante -, e, além disso, as bonitas maneiras, e certos requintes de
elegância: uma coisa que o espantava era que, como o Machado, ele nunca pudera
ter aquele bom ar. E depois havia ainda uma outra razão, uma razão de
temperamento, para que ele não deixasse de simpatizar, vagamente e a seu pesar,
com as coisas do coração do Machado. É que, no fundo, aquele homem de trinta e
sete anos, já um pouco calvo, apesar do seu bigode preto, era um pouco
romanesco. Herdara aquilo da sua mãe, uma senhora magra, que tocava harpa,
passava a vida a ler versos. Fora ela que lhe dera aquele nome ridículo de
Godofredo. Mais tarde todo esse sentimentalismo que durante longos anos se dera
às coisas literárias, aos luares, aos amores de romance, se voltara para Deus: tinha
tido os começos duma monomania religiosa; a leitora de Lamartine tornara-se uma
devota maníaca do Senhor dos Passos; fora ela que então o fizera educar nos
jesuítas – e os seus últimos dias foram um longo terror do inferno. E ele herdara
alguma coisa dela: em rapaz tivera toda a sorte de entusiasmos que se não fixavam,
e que flutuavam indo dos versos de Garrett ao Coração de Jesus; depois, calmara,
em seguida a uma febre tifóide, e quando veio a ocasião de tomar a casa de
comissões de seu tio era um homem prático, usando a vida só pelo seu lado material
e sério; mas ficara-lhe na alma um vago romantismo que não queria morrer: gostava
de teatro, de dramalhões, de incidentes violentos. Lia muito romance. As grandes
ações, as grandes paixões, exaltavam-no. Sentia-se por vezes capaz dum heroísmo,
duma tragédia. Mas isto era vago, e movendo-se surdamente, e raramente, naquele
fundo do coração onde ele os tinha prisioneiros. Sobretudo as paixões românticas
interessavam-no: decerto não pensara nunca em lhes provar o mel ou fel: ele era um
homem casto que amava a sua Lulu; mas gostava de as ver no teatro, nos livros. E
agora aquele romance que ele sentia ali ao seu lado, no seu escritório, interessava-
o: era como se os fardos, a papelada, ficassem melhor com aquele vago perfume de
romance que exalava de si o Machado...
De novo o batente verde abriu-se, a face amarelada do guarda-livros
apareceu. Vinha restituir a carta do sr. Machado; e, antes de se retirar, disse, pela
meia abertura da porta:
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— Hoje é a reunião geral da Transtagana.
Alves então teve como uma surpresa:
— Então... Então hoje são nove?
— Hoje são nove.
De resto sabia bem que eram nove. Mas é que a idéia da reunião anual da
Transtagana trazia-lhe bruscamente a lembrança de que aquele era o aniversário do
seu casamento. Durante os dois primeiros anos aquele fora um dia de festa íntima,
com um bonito jantar a que ia a família, à noite uma pequena quadrilha, ao som de
simples piano; depois, no terceiro aniversário, viera nos primeiros dias de luto de sua
sogra, a casa estava ainda triste, Lulu ainda chorava – e agora, este dia passava,
estava quase passado, sem que nem um nem outro se tivessem lembrado. Lulu não
se lembrara decerto. Quando ele tinha saído era manhã, ela estava-se a pentear,
não lhe dissera nada. E era uma pena que aquele belo dia passasse sem beberem
uma garrafa de Porto, sem terem um crème à sobremesa. E além disso deveriam
Ter convidado seu sogro e sua cunhada – ainda que, ultimamente as relações com
seu sogro tinham arrefecido, havia um afastamento, pôr causa duma criada nova,
que era toda poderosa em casa do viúvo. Mas enfim, num dia daqueles, como num
dia de anos, esqueciam-se essas coisas, o sentimento de família dominava. E então
decidiu logo correr à rua de São Bento, lembrar a Lulu aquela grande data,
mandarem um recado ao sogro – que morava a Santa Isabel. Eram quase três
horas, a correspondência estava assinada, não havia nesse dia outros afazeres –
naquela espécie de repouso que se seguia à azáfama dos dias de paquete para a
África. E tomando o chapéu regozijava-se daquele meio feriado que assim se dava,
alegrava-o a idéia de ir surpreender no meio do dia com um bom abraço a sua
querida Lulu – que, durante toda a semana, estava só até às quatro e meia, que era
quando se fechava o escritório. E uma só coisa o contrariava: é que o Machado
estivesse no Lumiar, não pudesse vir jantar com eles.
— Volta? – perguntou o guarda-livros, vendo-o de chapéu na cabeça.
Godofredo pensou um momento em convidar o guarda-livros: mas depois
temeu que o Machado se ofendesse, sabendo o seu talher tão facilmente
preenchido.
Não volto... Se o sr. Machado pôr acaso aparecesse... Não é natural, mas
enfim se aparecesse, que lá o esperamos às seis, como estava combinado.
Ao descer as escadas sentia-se contente, como s4e estivesse casado na
véspera. Era um desejo ardente de entrar em casa, pôr aquele calor, vestir o seu
casaco de linho, pôr os pés nas chinelas, e ficar ali, esperando o jantar, gozando o
seu interior, os movimentos, a presença da sua bonita Lulu. E, naquela onda de
felicidade que o invadia, veio-lhe a boa idéia de levar um presente a Lulu. Pensou
num leque. Mas depois decidiu-se logo pôr uma pulseira que vira havia dias, numa
vidraça de ourives. Era uma serpente mordendo o rabo, com dois olhos de rubis. E
este presente tinha uma significação: a serpente simbolizava a eterna continuidade,
a volta regular dos dias felizes, alguma coisa que vai sempre girando num círculo de
ouro. Somente receava que a jóia fosse cara. Mas não: eram cinco libras, e,
enquanto ele a examinava, o ourives disse-lhe que tinha vendido havia dias uma
igual à sra. Marquesa de Lima. Imediatamente pagou-a – e ainda não tinha dado
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dois passos na rua, parou, à sombra, abriu a caixa, deu-lhe outro olhar, tão contente
estava com a sua compra. E então vinha-lhe um enternecimento – como vem
sempre aos que dão um presente. E como se uma pequena porta aberta, no
egoísmo e na avareza natural do homem, fizesse romper através dela toda a onda
expansiva das generosidades latentes. Naquele momento desejou ser rico para lhe
dar um colar de brilhantes. Mas ela merecia-o. Eram casados há quatro anos, e
nunca entre eles houvera uma nuvem. Desde que a vira naquela tarde em
Pedrouços, adorara-a: mas, podia-o agora confessar, ao princípio tivera-lhe medo.
Julgara-a imperiosa, orgulhosa, exigente, seca. Tudo por causa daquela bela
estatura dela, dos seus belos olhos negros, do porte ereto, do cabelo ondeado e
crespo... Mas não, dentro daquele corpo de rainha bárbara, havia o coraçãozinho
duma criança. Era boa, era esmoler, era alegre, e tinha um gênio que corria igual e
suave, como a superfície transparente dum rio de verão. Só um momento, havia
coisa de quatro meses, ela mostrara certas desigualdades, um pouco de melancolia,
uma pontinha de nervos: até ele supusera que... Mas não era isso, infelizmente.
Eram nervos: e passaram – viera uma reação – e nunca como nos últimos tempos
ela fora mais terna, mais alegre, inundando-o de felicidade...
E tudo isso lhe bailava alegremente em volta do coração, enquanto subia, na
calma ardente sob o seu guarda-sol, a rua Nova do Carmo. Ao alto, no restaurante
do Mata, parou a encomendar uma empada de peixe para as seis horas. E comprou
ainda um fiambre, olhava em redor para ver o que poderia levar mais, com alegria e
a sofreguidão de pássaro que provê o seu ninho.
Depois subiu o Chiado. Um momento parou a olhar, com respeito, um grande
homem, um poeta, um historiador, um grande caráter, que nesse momento, com um
velho casaco de lustrina e um chapéu de palha, conversava à porta do Bertrand,
com o seu enorme lenço de ramagens preparado para se assoar. Godofredo
admirava-lhe os romances, o estilo. Depois comprou charutos: ele não fumava; mas
era para dar ao sogro depois do jantar. E desceu enfim a Calçada do Correio, que
faiscava, sob o sol, poeirenta e seca. E apesar do calor caminhava depressa – de
vez em quando apalpando a caixa da pulseira, que metera no bolso da sobrecasaca.
Estava à rua de São Bento, alguns passos antes de sua casa, quando, dentro
da confeitaria, viu a sua criada, a Margarida, esperando ao balcão. E então
compreendeu logo que Lulu não se esquecera do dia da data feliz. A Margarida viera
comprar doces, a sobremesa. Ele, em dois passos, entrou no seu portal. Era uma
casa de dois andares, pintada de azul, apertada entre dois grandes prédios; ele
ocupava o primeiro andar: e, apesar de não gostar dos vizinhos de cima, uma gente
barulhenta, e ordinária de não querer fazer-lhes participar dos luxos que ele dava à
sua entrada, a pedido da Lulu tinha ultimamente feito tapetar a escada . E não se
arrependia: era agora sempre um prazer, o encontrar sob os pés, ao entrar em casa,
aquele tapete desenrolando-se pelos degraus, dando uma sensação de conforto
sólido. Aquilo dava-lhe como um acréscimo de consideração para si mesmo. Em
cima, a Margarida, que voltaria num instante, deixara a cancela aberta: e um grande
silêncio reinava dentro da casa: tudo parecia adormecido, sob a grande calma do
dia. Uma luz forte caía da clarabóia; o cordão da campainha, com a sua grande bola
escarlate, pendia imóvel.
Então veio-lhe certa idéia absurda de noivo folgazão: entrar pé ante pé, ir ao
quarto surpreender a Lulu, que ordinariamente àquela hora se vestia para o jantar. E
sorria-se já do gritinho que ela ia dar, em saia branca talvez, com os seus belos
braços nus. A primeira sala era de jantar: e para ali comunicavam, pôr duas portas
de reposteiros, o boudoir dela e a sala de visitas. Entrou. No chão esteirado os seus
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sapatos de verão, de sola fina, não faziam rumor. E tudo parecia desabitado, caído
num silêncio, tão grande, que se sentia dentro da cozinha vir um som de frigir, e na
varanda os movimentos do canário dentro da sua gaiola. O reposteiro do quarto
dela estava corrido, e ele, sorrindo baixo, ia levantá-lo, assustá-la – quando da porta
fronteira, que era a da sala de visitas, veio através do reposteiro meio corrido, um
ligeiro rumor, vago, indistinto, como dum vago suspiro, um som de garganta. Ele
voltou-se, percebeu que ela estava lá, espreitou. E o que viu, Santo Deus, deixou-o
petrificado, sem respiração, todo o sangue na cabeça, e uma dor viva no coração,
que quase o deitou por terra... No canapé de damasco amarelo, diante duma
mesinha, com uma garrafa de vinho, Lulu, de robe de chambre banco, encostava-se,
abandonada, sobre o ombro dum homem, que lhe passava o braço pela cintura, e
sorria, contemplando-lhe o perfil, com um olhar afogado em languidez. Tinha o
colete desabotoado. E o homem era o Machado.
CAPÍTULO II
Ao estremecer do reposteiro, Ludovina vira-o, deu um grito, saltou
instintivamente para longe do sofá. E Godofredo ouviu aquele grito: mas não se
podia mexer, sem saber como, achara-se caído sobre uma cadeira ao pé da porta, e
tremia, tremia, como numa sezão, e todo frio. E, através do rumor de febre que lhe
enchia a cabeça, o deixava sem idéias, ele sentia toda a atrapalhação que ia dentro
na sala. Passos fortes pisavam o tapete, houve algumas palavras, palavras trocadas
num sopro, e com angústia: depois o ferrolho da porta que dava para a escada
correu; e depois um silêncio. Então, subitamente, a idéia que eles tinham fugido
ambos restituiu-lhe bruscamente a força, um furor apoderou-se dele, dum salto
arremessou-se para dentro da sala. Mas tropeçou numa pele de raposa que ornava
o limiar, foi-se estatelar ridiculamente sobre o tapete; quando se ergueu, furioso,
com os punhos cerrados, o reposteiro da porta da escada balouçava-se, à margem,
e a escada desenrolava-se, sob a luz da clarabóia, solitária, com o seu grande ar de
decência. Então, alucinado, precipitou-se para a janela. Pela rua fora, a passadas de
côvado, afastava-se o Machado, com o seu guarda-sol na mão. Onde estava ela
então? Quando se voltou, no meio da sala, estava a Margarida, espantada, com o
seu cartucho de bolos na mão.
— Onde está ela? – gritou o Godofredo.
Ao princípio a criatura não compreendeu; mas, subitamente, deixou cair o
cartucho, levou o avental à cara, rompeu a chorar. Ele repeliu-a, quase a atirou para
o chão; correu à cozinha. Com a porta fechada, cantando alto para o saguão, e
escamando o seu peixe, a cozinheira não ouvira nada, não sabia nada. Então
Godofredo arremessou-se contra a porta do quarto de Ludovina. Estava fechada.
— Abre, ou arrombo!
Não houve resposta: ele colou a orelha à madeira; vinha de dentro como um
vago soluçar, um confuso sopro de angústia e de terror.
— Abre, ou arrombo – gritou ele, com uma punhada à porta, como se fosse já
sobre o corpo dela que batesse, todo com idéias de sangue e de morte.
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Então uma voz aflita disse de dentro , num grito de súplica:
— Mas não me faças mal.
— Juro-te que te não faço mal... Abre, abre!
A chave rangeu. Ele precipitou-se enquanto Ludovina, no seu grande
penteador branco, se refugiava pôr trás da cama, apertando as mãos, com os olhos
arregalados de pavor, e cheios de lágrimas.
E então, diante daquela mulher que chorava, ele ficou com a garganta
estrangulada, sem obter uma palavra, dardejando-lhe um olhar de louco, e quase
chorando também.
Então ela deu dois passos lentos para ele, com os braços abertos, tremendo-
lhe a voz, tremendo ela toda, gritou por entre as lágrimas :
— Oh Godofredo, pela tua saúde, perdoa, eu não tinha feito mal nenhum, e
era só a primeira vez...
E ele com a garganta estrangulada articulava apenas com os dentes
cerrados:
— A primeira vez, a primeira vez...
A sua cólera subia, fez explosão, num berro:
— E que fosse a primeira, que tem fosse a primeira? E então com quem,
infame! E com quem! O que eu devia era matar-te. Vai, vai-te embora, sai daqui,
deixa-me, criatura... Vai-te, vai-te.
Ela saiu, num choro desesperado. Então voltando-se, ele viu à porta do
corredor a cozinheira, que olhava, curiosa, com o olho aceso, e mais na sombra do
corredor, inquieta, e encolhida, mas espreitando também, a Margarida.
— Que faz vossemecê aqui – gritou ele. – Já para a cozinha! Se há aqui um
pio vai tudo para a rua.
E atirou com a porta, ficou passeando furiosamente no quarto, onde o grande
leito, com as duas travesseirinhas unidas, ostentava a sua brancura. E através do
sangue que lhe fervia na cabeça, as suas idéias fixavam-se, decidia-se a bater-se
com o Machado, num duelo de morte; e a ela, mandá-la para casa do pai. Pensou
também num convento. Mas pareceu-lhe mais digno ir simplesmente restituí-la ao
pai. E apenas mediu, pesou, fixou estas duas resoluções, a sua grande cólera
calmou-se.
Agora era uma tristeza dura, negra, onde se misturava a necessidade
imperativa, fria, aguda de se vingar... Agora a casa parecia de novo adormecida ao
sol, conservando apenas como um surdo calor da cólera que ali passara.
Ele então procurou compor o rosto, mesmo diante do espelho arranjou a
gravata; e empurrou a porta que dava para a sala de jantar. Ela estava lá sentada
numa cadeira, encostada à parede, com o lenço na mão, chorando baixo, e
assoando-se pôr entre lágrimas. Os seus cabelos que ainda estavam as lágrimas.
Os seus belos cabelos que ainda estavam metidos numa rede vermelha, e o
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chambre que se desapertara, deixava ver um bocadinho de renda de camisa, uma
vaga brancura de seio. Ele desviou os olhos, nem a quis ver chorar. Foi voltado para
a janela, seco e duro, que disse:
— Arranje as suas coisas, para ir para casa de seu pai.
Com os olhos voltados para a vidraça, sentiu que pôr trás o choro brando
tinha parado: mas ela não respondeu. Ele esperou ainda, uma súplica, um grito de
amizade , uma palavra de arrependimento. Ouvia-a apenas assoar-se. Então tornou-
se cruel:
— Em minha casa – continuou, sempre voltado para a janela, com uma voz
espectral da sua boca de mármore, e que o devia queimar – não quero prostitutas.
Pode levar tudo... Tudo o que é seu leve. Mas rua!
Voltou as costas, foi fechar-se no seu gabinete, uma espécie de alcova
pequena, onde tinha apenas uma escrivaninha e uma estante. Sentou-se, preparou
o papel, lançou ao alto a data, com a mão trêmula que tornava mexido o seu bolso
cursivo comercial. Depois hesitou se diria meu caro Papá, ou só Exmº. Senhor: e
decidiu-se pôr esta fórmula porque agora todo o parentesco acabava, não tinha mais
família. E, diante do papel branco e vazio, ficou pensando, revolvendo esta idéia –
não tinha mais família. Um enternecimento invadiu-o, uma grande compaixão de si
mesmo. Pôr que lhe sucedia isto a ele, tão trabalhador, tão bom, e que amava
tanto? Uma lágrima veio-lhe aos olhos. Mas não se queria comover, queria escrever
friamente, rigidamente, a sua carta. Mas ao tirar o lenço, para secar os olhos,
encontrou uma caixa da pulseira. Abriu-a, esteve-a olhando um momento: no seu
ninho de seda, a cobra de ouro, com olhos de rubis, enroscava-se trincando o rabo.
E ali estava o belo símbolo da continuidade eterna, dos dias felizes que voltam, um a
um, para todo sempre. Então veio-lhe um desejo furioso de a acabrunhar, de lhe
atirar em rosto todas as suas bondades para com ela, os seus sacrifícios, as toilettes
que lhe dera, todas as vontades a que obedecera, e os camarotes em São Carlos, e
as dedicações do seu amor. E não se conteve, voltou à sala de jantar, com os lábios
cheios de exprobações. Ela ainda lá estava, de pé agora, e como ele há pouco,
olhando estupidamente o prédio fronteiro, limpando os olhos. O seu belo perfil
banhava-se na luz, a sua grande saia continuava, numa linha mole, a graça forte do
seu corpo. E subitamente Godofredo sentiu que as palavras se lhe secavam na
boca. Não achava uma transição para começar as suas invectivas: e à outra janela
torcia furiosamente o bigode, com o coração num tormento, os lábios estéreis. Pôr
fim uma idéia absurda surgiu do seu vago fundo romântico. Atirou a pulseira para
cima da mesa; gritou:
— Mete isso também na mala, tinha-ta comprado hoje, é mais uma prenda!
Ela instintivamente deu um olhar à caixa da pulseira. Depois recomeçou a
chorar.
Aquelas lágrimas mudas importunavam-no, enervavam-no.
— Para que estás tu a chorar? De quem é a culpa?... Minha não é, que
nunca aqui te faltou nada...
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E então foi uma explosão. Passeando pela sala, numa voz baixa, rápida,
lançou-lhe à face toda a sua ternura, toda a sua dedicação. Ela deixara-se cair sobre
uma cadeira, chorando sempre. Parecia dever chorar eternamente. Ele gritou-lhe:
— Mas deixa-te de choros, fala! Dize, explica... Não tens nada a desculpar-
te? Foste tu que quiseste, foste tu que o provocaste?
Ela, sentada ainda, levantou vivamente o rosto. Um clarão luziu-lhe nos olhos,
através das lágrimas. E, sofregamente, como quem se agarra para não cair, acusou
o Machado. Fora ele, ele só tivera a culpa. Aquilo começara havia quatro meses,
quando ele tinha deixado a D. Maria . E então começara com ela: e falava-lhe, e
tentava-lhe, e escrevia-lhe e aparecia lá quando Godofredo estava no escritório, e
um dia, enfim, quase à força...
— Juro-te que foi assim... Eu não queria, pedi-lhe por tudo... Depois tive medo
que a Margarida ouvisse o barulho...
E Godofredo ouvia estas coisas, lívido.
— Deixa ver as cartas dele – disse por fim, com uma voz que mal se ouvia.
— Não as tenho...
Ele deu um passo para o quarto, dizendo:
— Eu as acharei.
Ela erguera-se, com um grito, envolvendo-o nos braços:
Juro-te que as não tenho. Assim Deus me salve... Entreguei-lhas todas há
dias...
Ele afastou-a, foi ao toucador. Justamente o molho de chaves estava sobre o
mármore, entre os frascos. E então começou uma busca desesperada pôr entre os
lenços, as rendas, as caixas de leques, todas essas coisas íntimas de mulher.
Ela, pôr vezes, tomava-lhe o braço, jurava-lhe que não tinha cartas. Ele
tranqüilamente afastava-a, continuava, devastando as gavetas. Um leque de marfim
quebrara-se ao cair: um rosário de contas com a sua cruz jazia no chão.
E já lhe parecia que ela falava verdade, quando viu o maço de cartas,
apertado com uma fita de seda, e expondo-se estupidamente à sua vista, desde o
princípio, entre duas escovas. Arrebatou-o, desapertou-o : não eram cartas dele,
eram cartas dela. A primeira que abriu começava, meu anjo. Então tranqüilamente
meteu-as no bolso. Voltou-se para ela, que ficara prostada à borda do Leito, disse:
— Arranje-se, para ir hoje mesmo.
Voltou ao gabinete. E aí uma por uma leu as cartas. Não havia nada mais
imbecil: era a perpétua repetição de frases empoladas, e feitas: “ Meu anjo adorado,
por que não fez Deus que nos encontrássemos há mais tempo?”... “Meu amor,
pensas tu naquela que daria a vida por ti?” E mesmo isto: “Ai, quem me dera ter um
filho teu...”
E a cada frase lhe caía no coração, como uma pancada surda, que o
devastava. Então, vivamente, e quase rasgando o papel com a pena, escreveu a
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carta ao sogro, quatro palavras simples, “que encontrara sua mulher com um
homem, e desejava que ele a viesse buscar, e a recolhesse. Senão ele pô-la-ia de
todo o modo fora de casa, como uma meretriz, indiferente ao destino que ela
tomasse”. E num post-scriptum acrescentava que ia sair da cinco às sete – e lhe
pedia que aproveitasse essa ausência dele para vir buscar sua filha.
Depois meteu a carta no bolso, abotoou a sobrecasaca, passou a manga pela
seda do chapéu e saiu. Na escada encontrou um rapaz, de avental branco com um
cesto na mão.
— É aqui que mora o sr. Alves?
Era o empadão, o fiambre, o queijo da Serra, todas as coisas boas que le
comprara. Uma onda de tristeza afogou-lhe o coração. Teve de se segurar à rampa,
para não desfalecer; o rapaz olhava-o espantado.
— É de casa do Mata?
Sim, senhor – respondeu o rapaz, ainda espantado daquele senhor que lhe
parecia doente.
Godofredo murmurou:
— Sobe, bate em cima.
E ficou a escutar, ouviu o rapaz tocar, a porta abrir-se, depois a voz da
Margarida dizer para dentro:
— É um rapaz que traz uma empada, minha senhora.
Ele desceu as escadas, quatro a quatro, mas embaixo, como dominado pela
decência grave da escada, procurou calmar-se, abotoou a sobrecasaca, passou as
mãos pela face, preparando-se para passar diante dos seus vizinhos, naquele ar
que o fazia estimado e respeitado.
CAPÍTULO III
À porta da mercearia defronte, felizmente estava um galego que às vezes lhe
fazia recados – muitas vezes para a casa do sogro. Entregou-lhe a carta,
recomendando-lhe que a entregasse em mão própria, que não esperasse a
resposta. E, como conhecia a probidade daquele galego, encanecido no serviço do
bairro, acrescentou:
— Tem cuidado, em mão própria, vai dinheiro, uma nota.
O velho guardou a carta nas profundidades do seio, pôr baixo da camisa.
E então, de longe, Godofredo pôs-se a seguir aquela carta.
Viu o homem entrar no prédio do sogro, um prédio de quatro andares,
enxovalhado, com uma loja de trastes velhos pôr baixo. Neto morava lá no alto, onde
havia um vaso na varanda. E durante uma eternidade esteve de longe vigiando a
porta; o galego não descia. Então veio-lhe um terror que o sogro não estivesse em
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casa. Se só recolhesse à noite, se jantasse fora, não daria sinal de si senão, tarde, à
noite! E ele, que havia de fazer? Errar, pelas ruas, à espera que sua mulher saísse?
E isto dava-lhe uma sensação terrível de abandono, de desordem, como se para
sempre tivesse acabado a regularidade das coisas. De repente, viu o galego. Tinha
entregado a carta ao senhor Neto. E descera logo, não esperara mais nada. Então,
Godofredo, aliviado, continuou caminhando ao acaso, e pouco a pouco os seus
passos, instintivamente, fizeram o caminho de todas as manhãs, o caminho do
escritório. Desceu o Chiado. Na rua do Ouro parou um momento a olhar uma pistola,
na vitrine do Lebreton. E a idéia da morte atravessou-o. Mas não queria pensar
nisso, agora, nem no seu duelo .Logo às sete horas, quando se recolhesse, achasse
a casa vazia, então pensaria no duelo, em ajustar contas com o outro. E foi andando
ao acaso. Um momento pensou em ir ao Passeio Público; mas receou encontrar o
Machado. E foi pelo Terreiro do Paço, pelo Aterro, quase até Alcântara. Ia como um
sonâmbulo, sem reparar na gente que acotovelava, nem na beleza da tarde de
verão, que morria num esplendor de ouro vivo. E não pensava em coisa alguma: era
uma ondulação de idéias, em que passavam toda a sorte de coisas, as recordações
do seu namoro com Ludovina, dias de passeio que tinha feito com ela, depois a
maneira como ela estava recostada no braço do outro, e com o vinho do Porto
defronte: e a cada momento voltavam-lhe fragmentos das cartas dela. “Meu anjo, por
que não hei-de eu Ter um filho teu?” Era a mesma coisa que ela lhe dissera com os
lábios unidos ao dele, de noite, no calor do leito... E regozijava-se agora de não ter
um filho daquela infame.
Ia escurecendo, ele pensava em voltar: uma grande fadiga tomava-o, de
todas aquelas emoções, aquela grande caminhada, no ar mole daquele dia de julho.
Entrou um momento num café, bebeu um grande copo de água: e ficou sentado,
com a cabeça apoiada à parede, abandonando-se, no prazer daquele curto repouso.
O café estava numa penumbra. Um crepúsculo quente envolvia a cidade: todas as
janelas abertas respiravam, depois da grande calma do dia: uma ou outra luz ia-se
acendendo, e via-se passar gente encalmada, com o chapéu na mão. E ele sentia
um prazer, naquela penumbra, e naquele repouso: parecia que a sua dor se
dissipava, se dissolvia, naquela inação do corpo, entre as sombras do anoitecer. E
vinha-lhe um desejo de ficar ali para sempre, sem jamais se acenderem as luzes,
sem que ele jamais tivesse de mover um passo na vida. E a idéia da morte invadiu-
o, dum modo sereno e insinuante, como o sopro duma carícia. Desejou
verdadeiramente morrer. Naquele abatimento em que o seu corpo caíra, todas as
amarguras que ainda tinha a passar, as coisas cruéis que tinha a penar, a volta à
casa solitária, o encontro com o Machado, os passos a dar para procurar
testemunhas – lhe pareciam outros tantos esforços, intoleráveis como penedos, que
as suas pobres mãos jamais poderiam erguer: e seria delicioso encostar a cabeça
ao muro, e ficar ali, naquele banco, morto, liberto, fora de toda a dor, tendo saído da
vida, com a silenciosa tranqüilidade da luz que finda. Um momento pensou no
suicídio. E não o aterrava, nem o fazia estremecer a idéia de se matar. Somente o
procurar uma arma, o dar um passo, para se atirar ao rio, eram ainda esforços, que
lhe repugnavam, naquele desfalecimento de toda a vontade. Quereria morrer ali,
sem se mover. Se uma palavra bastasse, uma ordem dada baixo ao seu coração
para que parasse e arrefecesse, diria essa palavra, tranqüilamente... E talvez ela
chorasse, e lhe sentisse a falta. Mas o outro?
E a esta idéia, do outro a resolução voltara-lhe, uma energia, vaga, ainda
bastante para que se erguesse, continuasse o seu caminho... Sim , o outro ficaria
bem contente, se ele desaparecesse essa noite. Sentiria um completo alívio. Um ou
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dois dias mostrar-se-ía pesaroso, talvez se sentisse realmente perturbado. Mas
depois continuaria a vida: a firma seria Machado & Cia; ele continuaria a ter
amantes, a ir ao teatro, a pôr cera moustache no bigode. Isto não era justo. Fora o
outro que causara a ruína duma bela felicidade, era ele que devia morrer. Era o
Machado que devia desaparecer; era ele que devia matar. Isso seria mais justo. E as
coisas seriam o contrário: a firma continuaria a ser Alves & Cia., e ele poderia mais
tarde reconciliar-se com sua mulher, e a vida seguiria, resignada e calma. Era assim
que devia ser. Deus, olhando para um, olhando para o outro, medindo os méritos e
as culpas de cada um, devia fazer desaparecer o Machado, inspirar-lhe a ele a idéia
do suicídio.
E então, destas duas absurdas imaginações que se balançavam no espírito
perturbado – o seu suicídio, o suicídio do outro - , uma idéia surgiu, como faísca viva
de entre duas nuvens pesadas, uma idéia nítida em todos os seus detalhes, que lhe
pareceu justa, realizável, a mais conveniente, a única digna...
Mas nesse momento, alguma coisa de familiar, nas casas junto das quais
caminhava, fez-lhe sentir que estava junto da sua porta. Parou, todo tomado pela
idéia de Ludovina, olhou a casa. Com o seu bico de gás defronte, ela punha entre
os dois altos prédios, a decência da sua fachada asseada, e pintada de azul, com
persianas verdes. No seu andar não havia luz alguma: o porão estava cerrado.
Estaria ela ainda lá? Teria o pai vindo buscá-la? E uma angústia terrível fazia-lhe
bater o coração. Um momento desejou que ela lá estivesse, pensou em perdoar,
tanto aquela casa vazia o aterrava. Mas depois sentiu, que diante dela daí por
diante, seria frio, constrangido; não, melhor que nunca mais se vissem. Então uma
curiosidade levou-o à casa do sogro, ao fim da rua. Aí era um alto prédio,
desleixado, sujo. No terceiro andar do sogro, as janelas abertas respiravam a
frescura da noite, e também não havia luz. Nenhuma daquelas fachadas lhe
respondia, o tirava de inquietação.
Então voltou à casa, empurrou o portão. A escada tapetada dormia na luz
quente do bico de gás: e o som abafado dos seus passos parecia-lhe repercutir-se
num lugar deserto e côncavo. Do segundo andar vinha, como vago e religioso, um
som de piano, uma coisa do Fausto. A gente de cima era feliz, tocava piano.
A cozinheira veio abrir – e o quer que fosse no seu modo revelou logo ao
Godofredo que Ludovina partira.
Na sala de jantar, sobre o oleado da mesa ardia uma vela. Ele tomou-a,
entrou no quarto de dormir – viu logo duas malas fechadas e um baú.
Mas havia ainda objetos dela: junto da cama estavam as suas chinelinhas,
sobre a chaise-longue o chambre branco que ela trazia essa manhã. E outras coisas
tinham sido já guardadas – os frascos de cristal do toucador que eram dela, e uma
Nossa Senhora de madeira, em que ela tinha devoção Ele pousou a vela sobre o
toucador – e o seu rosto apareceu-lhe pálido, envelhecido, olhando para ele com um
ar de ruína e de abandono.
Tomou a vela, foi à sala de visitas. Aí ficara um ar de catástrofe. A pele de
raposa estava enrolada para um lado, sobre a mesa junto do sofá, ainda estava a
garrafa de vinho do Porto, e à borda uma ponta apagada do charuto do outro. E
diante daquela ponta do charuto, uma raiva surda invadiu-o, pareceu-lhe sentir-se
esbofeteado pôr uma mão de ferro, teve o estremecimento dum insulto maior, e
jurou ser de bronze, nunca mais perdoar, mandar-lhe ele mesmo as malas embora,
e ver o outro morto aos seus pés, ou morrer ele também.
Então imediatamente resolveu resistir àquele estado de perturbação e
inquietação. Quis que no seu espírito reinasse a ordem; que tudo na casa retomasse
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o seu ar regular e calmo. Ela partira, as suas malas partiriam nessa noite. Daí pôr
diante era um viúvo: mas o andamento da casa continuaria, com ordem e
serenamente.
Gritou logo pôr Margarida.
— Então hoje não se janta nesta casa. São estas horas, e a mesa não está
posta?
A criatura olhou para ele, como espantada de que ele quisesse jantar, ou de
que se tornasse a jantar naquela casa. Ia decerto dizer alguma coisa: mas ele olhou-
a dum modo tão firme, que ela saiu de esguelha – e daí a um momento punha a
mesa, apressando-se, mostrando zelo, como se quisesse fazer-se perdoar a sua
vaga cumplicidade. E pôs na mesa tudo o que continha o cesto – o empadão, o
fiambre, a torta de fruta.
Godofredo no entanto fora para o seu gabinete. Agora aquela idéia que o
atravessara bruscamente ao recolher do passeio, a solução que lhe parecia ser a
única possível, voltava, estabelecendo-se-lhe no espírito, tornando-se agora o centro
de toda a sua atividade interior. E era isto, tirarem à sorte, ele e o outro, qual deles
se devia matar!
E isto não lhe parecia excessivo, nem trágico, nem despropositado: pelo
contrário era a coisa racional, digna, e de mais, a única possível. E parecia-lhe que
estava raciocinando muito friamente. Um duelo à espada, dois negociantes em
mangas de camisa, atirando-se cutiladas gochas, vãs, até que um se feria no braço,
parecia-lhe ridículo: e não era menos trocarem duas balas de pistola, falharem-se, e
cada um entre os seus padrinhos voltar a meter-se na carruagem de aluguel. Não.
Para uma ofensa daquelas, só a morte: uma só pistola carregada, tirada ao acaso
entre dois, disparada à distância dum lenço. Mas isto não era realizável. Onde
encontrariam eles testemunhas que consentissem, quisessem partilhar a
responsabilidade desta tragédia? Debalde se lhes explicaria a ofensa: o adultério é
uma coisa grave, para o marido, os outros consideram-no um fracasso que não pede
estes excessos de sangue. Além disso, se ele fosse o morto, bem, acabava-se: mas
se visse cair o outro seus pés, qual seria depois a sua existência? Teria de fugir,
abandonar o seus negócios, recomeçar a fortuna, numa terra estranha. Onde? E
depois a grande dificuldade permanecia: onde haveria padrinhos para isso? Seria
então o escândalo, o falatório, a verdade que se saberia. Enquanto do outro modo,
tudo era fácil, secreto, decente ,sem incomodar ninguém. Tiravam à sorte: aquele
que pudesse, matava-se dentro dum ano. Se ele perdesse não hesitaria um
momento, matar-se-ia logo. E não duvidava um momento que o Machado
aceitasse!... Como poderia recusar? Desonrara-o, devia pagar com o seu sangue. E
no mesmo tempo tinha um vago pressentimento que seria ele que perderia...
Acabou-se, tanto melhor. Que gozos lhe poderia trazer a vida, agora, naquela casa
só, sempre só, e não tendo mesmo o gosto do trabalho, desde que não tinha prazer
em gastar? E não hesitou um momento mais, escreveu logo um bilhete seco ao
Machado, pedindo-lhe para comparecer, no dia seguinte, Domingo, às onze horas
da manhã, no escritório... Fechava a carta quando a Margarida veio dizer que estava
o jantar na mesa. Pôs rapidamente o chapéu, desceu à rua, deitou a carta na caixa
da mercearia, entrou na sala de jantar – quando a cozinheira e a Margarida, diante
da terrina de sopa que arrefecia, pasmavam daqueles modos do senhor. A presença
da Margarida incomodava-o: sentia-a cúmplice, na confidência daquela infâmia. Um
momento pensara em a despedir. Mas era como soltar, através doutras casas, e
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pelas casas das inculcadoras aquela língua de sopeira, contando e comentando a
sua desgraça. Preferiu conservá-la, aturar-lhe a presença, manter-lhe o silêncio pelo
receio de ser despedida...
Tinha desdobrado o guardanapo, levantando a terrina da sopa, quando a
campainha retiniu com força.
Margarida foi à porta, e ele ficou com o coração aos pulos. A rapariga voltou
correndo, dizendo com o tom com que anunciaria a aparição da Providência –
castigadora e reparadora:
— Meu Senhor, é o sr. Neto!
CAPÍTULO IV
Neto entrou . Ao ver a mesa posta, com o grande empadão, o fiambre e
Godofredo de guardanapo entalado no colarinho, e com a garrafa ao lado, Neto ficou
junto da porta, com um ar de surpresa, o chapéu numa das mãos, a bengala na
outra. Terminou pôr murmurar, com uma ponta de amargura:
— Está bem, vejo que não falta o apetite.
Godofredo erguera-se logo, tomara uma vela de cima do aparador, dirigira-se
à sala de visitas. Mas Neto não consentiu.
— Não senhor, temos tempo de falar, acabe você de jantar...
Mas Alves depois de levar à boca uma colher de sopa repelira o prato, tocou
a campainha ao lado. Neto no entanto pousava, vagarosamente, o seu chapéu, a
sua bengala, numa cadeira – enchendo o silêncio que se fizera, com lentidão dos
seus movimentos. Era um homenzarrão, que fora nos seus tempos belo homem, e
conservava ainda um bom perfil, a que a extrema palidez dava uma finura e
distinção. Sobre a calva tinha duas repas de cabelo, laboriosamente e singularmente
arranjadas: o bigode grisalho parecia cortado rente, a direito, duma só tesourada: e
os seus menores movimentos tinham tanto uma afetação de dignidade, e de
seriedade, que mesmo, nesse momento, tirando devagar as luvas, parecia estar
cumprindo um ato importante da vida oficial.
A criada no entanto trouxera o cozido: e, como ela se demorava em volta da
mesa, retardando, arranjando, na esperança de ouvir uma palavra, Neto, com um ar
de homem de sociedade, mostrou indiferença, um ar natural, dizendo que estava
um calor de rachar.
— Muito calor – repetiu Godofredo, que, desde a entrada de Neto, recostado
na cadeira, puxando a ponta do bigode, a outra mão no bolso, não levantara os
olhos da borda da mesa. Pôr fim a criada saiu, com ordem de esperar pôr outro
toque da campainha “para trazer o resto”. E logo Godofredo ergueu-se, a fechar a
porta.
Então, Neto, vendo que podia falar livremente, sentou-se à borda duma
cadeira, esteve um momento esfregando ambos os joelhos com ambas as mãos, e
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começou num tom lento, com palavras estudadas, de intenção eloqüente, para
impressionar.
— Eu cumpri o meu dever de pai...
Esperou um momento, olhando o genro, uma interrupção, uma palavra.
Godofredo servia-se de arroz. Neto continuou:
— Cumpri o meu dever de pai, e estou-o cumprindo ainda nesse momento
que é solene... Logo que recebi a carta, logo que vi que havia cá na casa
desinteligência, vim buscar a minha filha, para dar o tempo, para que se pudessem
trocar explicações, para que se desembrulhasse a meada... Quando duas pessoas
não estão de acordo, melhor é que cada um se safe para seu lado. De longe, a
sangue-frio, trata-se tudo melhor. Cara a cara, palavra puxa palavra, vai tudo pela
água abaixo...
As palavras solenes iam-lhe escasseando. E acumulando as expressões
vulgares, excitado, falou em cancaborrada.
— Enfim – concluiu ele, o que eu quero saber é o que significa todo este
escândalo?
Godofredo ouvira em silêncio, picando vagarosamente grãos de arroz. Estava
decidido a não se alterar, a ser respeitoso e rígido. Desprezava o sogro, pôr histórias
equívocas que sabia dele, sobretudo pelos seus sujos amores com a cozinheira.
Aquele ar solene não o impressionava: e com duas ou três palavras secas ia
facilmente dominá-lo.
— O escândalo não é mais nem menos, do que eu lhe escrevi. Encontrei sua
filha com um homem, e mandei-lhe para casa.
O Neto estremeceu. Aquele tom seco pareceu-lhe um insulto. Ergueu-se, com
o olho aceso, a calva irritada.
— Ora essa! Ora essa! E se eu não a quisesse em casa? Essa não está má!
Então casa-se com uma filha-família, tem-na quatro anos, e, ao fim de quatro anos,
agora, minha menina, volta para casa de teu pai? Essa não está má! E se eu a não
quisesse em casa, meu caro senhor, e se eu a não quisesse em casa?
Bravejava, esquecidas todas as preocupações com uma voz que se devia
ouvir na cozinha.
Muito friamente Godofredo disse:
— Nesse caso ficava na rua.
Isto acabou de enfurecer o Neto.
— Na rua?
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— Perfeitamente. Desonrou-me, desonrou a minha casa, aqui não a
consinto... Faça as suas malas, adeus! Se o pai, se ninguém a recebe, está claro
que fica na rua.
Neto não podia acreditar nesta teima implacável. Tinha cruzado os braços,
contemplava o genro, com um olhar que chamejava.
— Homem, deixe-me olhar para si. Deixe-me olhar para si que o senhor é um
monstro. Então quer o senhor dizer que abandonava sua mulher, deixava na rua,
sem um canto para se abrigar.
Tanta palavra torturava Godofredo. Era como o remexer numa ferida que
ainda sangrava. Ergueu-se, querendo dizer ainda uma palavra, acabar a discussão.
Mas o Neto não o deixou abrir os lábios, gritou:
— E não se põe uma mulher fora de casa, pôr que se encontrou só a receber
uma visita!
Godofredo ficou a olhar para ele, com os lábios trêmulos, sem poder soltar as
palavras que lhe estrangulavam a garganta. Era como um horror, de dizer alto, ali,
mesmo a um sogro, como a tinha encontrado, nos braços do outro. E, diante deste
silêncio. Neto exaltava-se mais, triunfando:
— É necessário provar! A lei pede o flagrante... O senhor não viu nada, não
apanhou uma carta...
Toda a cólera de Godofredo fez explosão:
— Cartas infames, senhor. Cartas obscenas, senhor! Sabe o que lhe dizia,
que queria Ter um filho dele! Um filho, que eu havia de vestir, de sustentar, de
estimar, de educar... Um Filho! E aqui está a educação que o senhor deu à sua
filha....
Neto ficara cabisbaixo. A filha não lhe falara de cartas. Passou a mão pelas
duas repas da calva com um ar atrapalhado, e murmurou depois dum grande
silêncio:
— As mulheres, quando lhes chega a veneta, escrevem cousas sem tom nem
som...
Godofredo não respondeu. Passeava pela sala, com as mãos nos bolsos; e
sobre a mesa, o seu prato ainda com arroz, ficava esquecido e arrefecendo. Neto
então bebeu um grande copo. E subitamente, como tomando uma grande resolução,
dizendo a coisa suprema que ali trouxera, exclamou:
— Mas enfim, de que quer o senhor que ela viva? Eu não tenho para vestir,
nem para a calçar?...
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Godofredo parou logo, no seu lúgubre passeio. Esperava aquilo, estava
preparado, tinha a sua resposta, em que pôs um tom de dignidade, de homem
superior às misérias do dinheiro:
— Enquanto sua filha estiver em casa de seu pai, e se portar bem, tem trinta
mil réis pôr mês.
A calva do Neto iluminou-se: e pareceu subitamente satisfeito, toda a sua
cólera desapareceu.
— É razoável, é razoável – disse ele num tom quase enternecido.
Depois os dois homens ficaram calados como se não tivessem mais nada a
dizer......
Godofredo tocou a campainha: a criada correu, dardejando desde a entrada
um olhar a um e a outro.
— O café – disse Alves.
— E uma chávena para mim, senhora Margarida – disse o Neto retomando na
casa a sua familiaridade de sogro.
Godofredo continuava passeando na sala... Neto sentara-se à mesa, e
preparava cuidadosamente um cigarro, dando de vez em quando um olhar de lado
de lado ao genro. E levou uma eternidade a preparar o cigarro: enrolou-o gordo e
liso, depois metendo a onça na algibeira, para tirar a isca, exclamou, com um vago
suspiro.
— O pior é o falatório!
Godofredo não disse nada, o outro petiscou lume, acendeu pausadamente o
cigarro.
— E a você, na sua posição, na praça, não lhe faz senão mal...
Godofredo voltou-se impaciente.
— E de quem é a culpa?
Pois bem... Mas enfim, o melhor seria evitar o falatório. Pelo menos naqueles
primeiros tempos...
Margarida entrou com o café. Godofredo sentara-se. E remexendo o açúcar,
um diante do outro, o genro e o sogro, estiveram um momento calados. Neto provou
o café, deitou-lhe ainda mais açúcar. Depois deu duas fumaças. E voltou à sua idéia:
— Nem para você, nem para mim, é bom que se ponham pôr aí a falar.
Então aquelas lentidões, aquelas pausas irritaram Godofredo.
— Mas que diabo! Que quer que eu lhe faça?
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Mas Neto conservava agora o seu ar calmo e refletido. E com uma voz
tranqüila falou dos seus sentimentos. Ele sempre se tivera pôr bom pai; e, se não
fossem as circunstâncias em que estava, não teria aceitado mesada para sua filha...
Não teria exigido nada. Levava-a para casa, lá viveriam todos, e acabou-se... E tudo
o que fosse necessário para fazer cessar o escândalo fá-lo-ia à sua conta.
Godofredo começava a perceber. O Neto tinha uma outra idéia para apanhar
dinheiro : e ele quis logo as coisas claras.
— Vamos lá a saber, sem mais circunlóquios, o que o senhor pensa.
Mas o Neto continuou com circunlóquios. O melhor meio de evitar o
escândalo. O melhor meio de evitar o escândalo era sair de Lisboa. E a estação
favorecia-os, era o tempo de ir para banhos, ninguém se admiraria que ele fosse pôr
exemplo para a Ericeira levando sua filha casada. Todo o mundo suporia que Alves
não podia acompanhá-la, nem deixar os seus negócios... Mas ninguém sabia se ele
ia ou não ver sua mulher todas as semanas. A idéia era famosa, mas...
Godofredo interrompeu-o:
— Mas quer que eu lhe dê o dinheiro para isso...
— A não ser que eu o vá roubar – ajuntou o outro muito francamente.
Godofredo refletiu. Havia ali uma maneira hábil de ir passar o verão para a
praia, à custa dele; mas ao mesmo tempo a idéia era prática, matava o falatório.
Aceitou. E num instante regularam os detalhes. Para o aluguel da casa na Ereceira,
jornadas, transporte de alguma mobília, o Godofredo dava trinta libras; e nos meses
de agosto, setembro e outubro, a mesada à filha, para despesas de praia, seria
elevada a cinqüenta mil réis. E apenas dissera isto, ergue-se, querendo pôr todos os
modos cessar aquela entrevista.
— E não falemos mais nisto, que tenho a cabeça em água.
Estava com efeito pálido como um morto, com um começo de enxaqueca, um
desejo de se deitar, de adormecer pôr muito tempo.
Mas Neto, de pé, ainda queria dizer uma última palavra. De ora em diante, ele
era o responsável pôr sua filha. Confiava em Deus, tinha a certeza que mais tarde,
passado aquele primeiro desgosto, haveria mútua indulgência, e eles se viriam a
juntar...
Godofredo negou, com um movimento de cabeça, um sorriso doloroso. Não,
nunca de juntaria com ela.
— O futuro pertence a Deus – disse Neto. – Agora concordo que é melhor
que estejam separados pôr algum tempo. E era a isto que eu queria chegar:
enquanto ela estiver em minha casa, é como se estivesse num convento...
Respondo pôr ela.
Godofredo fez com os ombros um movimento vago. Tudo aquilo lhe parecia
palavreado. O que queria agora era estar só. Tinha tocado a campainha, Margarida
preparava-se para abrir a porta, alumiar ao sr. Neto. Ele tomou o seu chapéu,
bebeu, já de pé, o último gole de café, e depois de apertar a mão do genro, saiu,
recomendando baixo à criada que tivesse prontas as malas da senhora...
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— E manda dizer que não lhe esqueça aquele açucareiro de prata que lhe
deu o padrinho nos anos dela... O açucareiro é dela.
E desceu as escadas, regozijando-se desta boa idéia. A filha não lhe dissera
nada do açucareiro. Mas enfim era dela, uma bonita peça de prata, e era bom que
lhe recolhesse à casa, também.
Fora, a noite estava abafada, e Neto dirigiu-se à casa devagar, levando o
chapéu na mão, calculando as despesas da Ericiera, contente consigo. Os banhos
iam-lhe fazer bem. Com cinqüenta mil réis pôr mês, da Ludovina, podia-se estar com
conforto: e, como a Ludovina não devia aparecer, nem havia toilletes a fazer, ainda
se metia dinheiro no bolso.
Quando depois de subir, aos poucos, os seus cento e cinqüenta degraus,
bateu à campainha da porta, foi a Teresa, a filha solteira, que veio abrir, a correr,
com os olhos brilhantes, toda excitada. Ninguém lhe disfarçara a verdade. Sabia já
que a Ludovina tinha sido apanhada com um homem, que havia um grande
desgosto, que o pai fora para Ter uma explicação com o Godofredo.
— Então – perguntou ela, sofregamente.
— Lá dentro, lá dentro falaremos.
Atravessaram a cozinha, que estava às escuras com uma claridade de brasa
no fogão, onde fervia a chaleira, e entraram na sala de jantar, uma espécie de
cubículo nas traseiras. Sentada à mesa redonda, coberta de oleado, a criada, a sra.
Joana, uma raparigota fresca, com dois brincos ricos de senhora, e vestido de
merino azul, lia o Diário das Novidades à luz dum candeeiro de petróleo, com abat-
jour ; e junto ao aparador na sombra, estendida numa cadeira de vime, calada,
vestida, estava Ludovina.
Quando o pai apareceu, ela ergueu-se, com os olhos ainda vermelhos, toda
vestida de preto.
Neto sentara-se, limpando com o lenço de seda o suor do pescoço. Os olhos
das três mulheres devoraram-no. E como ele não se apressava, gozando a
ansiedade da família, foi a sra. Joana que gritou:
— Vamos lá, então, fale!
Ele enrolou devagar o lenço e respondeu, no silêncio profundo da sala:
— O Godofredo dá trinta mil réis pôr mês.
Houve uma vaga respiração de alívio, correu um frêmito de satisfação. Teresa
olhava a irmã, pasmada daqueles trinta mil réis que lhe vinham a assim para o bolso,
pôr Ter sido apanhada com um homem. A sra. Joana confessou que era de
cavalheiro. Mas a Ludovina não via nada de extraordinário: era o que faltava é que a
pusesse fora da porta, sem cinco réis.
Então o pai voltou-se para ela com a testa enrugada.
— E no fim dizes que não tinhas escrito nada, e ele diz que te apanhou cartas
indecentes.
— É mentira – disse ela simplesmente -, as cartas não diziam nada... Eram
uma brincadeira.
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Houve um silêncio, o Neto, com os olhos na borda da mesa, acalmava
dignamente as repas da calva. E as três mulheres continuavam a olhá-lo esperando
outros detalhes, toda a história da entrevista.
— E as malas da Lulu, ó papá – perguntou a Teresinha, que vivia desde essa
tarde com o desejo de ver chegar as malas, de as ver desfazer, apanhar algum
presente.
Mas o papá, todo noutra idéia, continuou, sem responder:
— E ficou combinado que para evitar falatório vamos passar o verão à
Ericeira.
Então foi uma alegria. Teresinha bateu as palmas. Joana ria, de satisfação,
ela que tanto precisava de banhos. Só Ludovina ficava indiferente com uma sombra
de tristeza na face, pensando no belo plano de que Godofredo andava ultimamente
falando, os dois meses de agosto e setembro passados em Sintra. E foi sentar-se de
novo, enquanto Joana e Teresinha torturavam o papá de perguntas, já com planos,
ambas com o entusiasmo daquela estação de banhos... E eram já mil planos. Teresa
já palrava desabaladamente. Joana lembrava coisas que seria necessário levar, os
colchões, a louça de mesa, e o piano, para dar mais alegria. O melhor seria irem
todos à Ericeira, para alugar a casa... Então Ludovina saiu do seu silêncio.
— E é necessário uma casa em que se caiba... Que para dormir num cubículo
como este de cá, não tem jeito.
Diante desta exigência, o pai franziu a testa. E não se conteve e disse logo:
— Hás-de dormir onde puderes... Se querias os cômodos da casa de teu
marido, portasses-te bem, ficasses lá.
Houve um silêncio na sala. Ninguém jamais ousava replicar quando Neto
erguia a voz. Então, naquele silêncio de respeito e de susto, que se fizera em torno
da sua voz irritada, ele aproximou-se da mesa, tirou da algibeira um lápis, encavalou
a luneta no nariz, e, sob o candeeiro, começou a fazer à margem do jornal os
cálculos das despesas da Ericiera. Toda estendida pela mesa, Teresinha via alinhar
os números – tanto para casa, tanto da carruagem que os levasse, como uma
enfiada de prazeres que brilhavam uns entre os outros. Pôr trás, de pé, Joana dava
as suas idéias. Dentro na cozinha a chaleira do chá fervia. Uma tranqüilidade
honesta envolvia a casa; e na sombra Ludovina, calada, como esmagada diante da
existência que agora a esperava, os incômodos, a má comida, o gênio do pai, a
autoridade da criada na casa, tudo o que a esperava e tudo o que perdera, e
amaldiçoava a sua infelicidade de ter caído assim nos braços dum sujeito que ela
não amava, de quem não recebia prazer, levada àquilo sem saber pôr quê, pôr
tolice, pôr não Ter que fazer, nem ela sabia pôr que.
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CAPÍTULO V
Na manhã seguinte um raio de sol, entrando pela janela, despertou
bruscamente Godofredo. Ergueu-se de repente sobre o cotovelo, e, batendo as
pálpebras, ficou espantado de se ver num sofá, vestido, com botas. Então
bruscamente a idéia toda da sua desgraça caiu-lhe sobre o coração pesadamente. E
um véu de crepe pareceu envolver tudo em torno dele. Na véspera, depois que o
Neto partira, estendera-se ali, morto de fadiga, e adormecera logo, dum sono fundo
e pesado. Então sentou-se no sofá. Havia um grave silêncio na casa e na rua: eram
apenas seis horas. Em redor o quarto conservava a desordem da véspera, com a
mala ao centro, o chambre de Ludovina atirado aos pés da cama. Olhou muito
tempo aquele chambre, o grande leito intacto, onde ninguém se deitara, com as
duas travesseirinhas ao lado uma da outra. Depois, como na véspera, percorreu a
casa: na sala de jantar, a mesa ainda tinha a toalha da véspera e em cima uma vela
esquecida derretera-se e extinguira-se dentro dum castiçal. Depois diante da porta
da sala de visitas tomou-o uma covardia, não se atreveu a mover o reposteiro. E
voltou para o quarto, tornou a sentar-se no sofá, as mãos ao acaso, o olhar vago,
sem saber o que havia de fazer àquela hora matutina, em que a cidade ainda
dormia. Àquela hora Ludovina decerto dormia também. E recordava-se ds manhãs
em que ele acordava cedo, se erguia de manso, abria uma fresta da janela,
enquanto ela dormia, com os seus cabelos numa rede, uma renda do chambre em
volta do pescoço, e as longas pestanas negras fazendo-lhe uma sombra na face...
Agora o leito, ainda feito, àquela luz clara da manhã, dava-lhe uma sensação de
frialdade, de desconforto... Uma tristeza invadiu-o, imensa, sem fim, que o dissolvia,
lhe dava vontade de deitar a cabeça para um canto do sofá, ficar ali a morrer... E a
mesma idéia da véspera voltava, a idéia da morte, entrando-lhe no espírito como a
lenta suavidade duma carícia.
Mas daí a horas tudo estaria decidido, talvez ele fosse como um homem
morto. Era às onze horas que devia encontrar o outro. O coração batia-lhe à idéia
que o ia ver, outra vez, diante de si; e parecia-lhe, agora, impossível de o imaginar
numa outra atitude, que não fosse como o vira na véspera, com o braço em torno da
cinta dela. Mas agora a sua idéia da véspera, o tirar à sorte o suicídio, que parecera
tão natural, espantava-o um pouco. Parecia-lhe estranho que fosse ele, ele, Alves,
que, ali, naquela rua de são Bento que o sol da manhã dourava, tivesse tido
semelhante idéia, uma idéia trágica, e própria dum coração violento. E tomava-o
uma inquietação. Que diria o outro a semelhante proposta? Se recusasse? E outras
dificuldades de detalhe surgiram . Como tirariam à sorte? Com papéis brancos? E
subitamente veio-lhe o receio que, diante duma proposta tão exaltada, o outro se
risse... Nesse caso esbofeteava-o. Mas não, não poderia recusar, era um homem de
honra! Enfim daí a horas o saberia. E não queria pensar mais nisso. Aquela idéia
ocupava-o, quase o impedia de sofrer; pôr outro lado, dava-lhe uma espécie de
consideração pôr si mesmo, encobria o ridículo – e não queria pensar em nada que
diminuísse a importância desse plano.
No entanto sentiu passos na cozinha, as criadas tinham-se erguido. Na rua,
um rumor ia subindo, vozes de pregoada, as carroças, a sussurração da cidade que
acorda. E então pouco a pouco ele foi entrando na rotina diária, pôs os botões na
camisa lavada, afiou a sua navalha de barba. Mas aquela grande mala no quarto
incomodava-o.. De repente, lembrou-se que devia fazer o seu testamento. E imóvel
diante do espelho, com metade da cara ensaboada, ficou revolvendo esta idéia: e
um vago espanto, uma estranheza tomava-o de estar ali pensando no testamento.
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Porque agora todas as idéias que na febre da véspera lhe tinham parecido naturais
e fáceis tomavam agora, naquela luz clara da manhã, entre a rotina da sua toillete,
uma frieza pouco natural, falsa, que repugnava ao lado positivo do seu caráter.
Às oito horas a campainha retiniu. Ele foi escutar. Depois a criada andou para
dentro, para fora, ele perguntou quem era? A criada do sr. Neto. E não ousou
perguntar mais nada, nem o que ela queria.
Depois foi o almoço. Ele devorou. Estranhou mesmo de não ver o fiambre na
mesa – e a criada, depois de o trazer, disse que a senhora ia mandar buscar as
malas à noite. Ele não disse nada, detestando cada vez mais a Margarida, que
parecia continuar a zelar os interesses da senhora, receber os recados dela, ser
ainda a sua confidente. E, como faltava o açucareiro, Godofredo foi áspero,
exagerou aquela falta, ameaçou-a de a pôr na rua.
A criada destro no corredor resmungou. Ele gritou:
— Pouco barulho!
E a cada momento o coração dava-lhe pulos à idéia de se ir encontrar com o
outro. Com um terror de atravessas a rua, onde talvez se pudesse já falar na sua
desgraça, mandou buscar uma tipóia. A criada tardou. O relógio caminhava. E ele
nervoso, quase com febre, ia da janela à cancela, calçando as luvas, e parecendo-
lhe que o solho que pisava era mole, e que lhe cedia sob os pés. Enfim o coupé
chegou. E ele desceu, com a garganta apertada numa angústia horrível. A voz
sumia-se-lhe quase ao dar a adresse do seu escritório ao cocheiro. Pareceu-lhe que
o trem voava; e naquela emoção ia-se-lhe embrulhando o estômago, o almoço
subia-lhe à garganta. Enfim chegou. E era uma atarantação, mal podia achar na
algibeira uma placa para pagar ao cocheiro.
O escritório dormia no grande silêncio do dia feriado. – e quando ele
empurrou o batente de baetão verde o relógio dava onze horas, com o seu tom que
soava cavo e triste, sob aqueles tetos baixos. Correu ao seu gabinete, e pareceu-lhe
que não tinha entrado ali havia séculos, e que havia alguma coisa de diferente nos
móveis e na ordem das coisas. No seu vaso o ramo acabava de secar.
E então, bruscamente, uma reação fez-se no seu ser, Diante daqueles
móveis, daquelas duas carteiras de sócios, postas uma junto da outra, lembrando-
lhe uma intimidade, uma confiança de anos, veio-lhe uma cólera furiosa contra o
Machado. As coisas mesmas o acompanhavam nesta cólera. Sim, o Machado era
um infame que merecia a morte. E cada cadeira, as paredes mesmas, como
embebidas da honra comercial que ali habitava, eram uma acusação muda contra a
traição do Machado.
De repente um passo leve soou fora: era o Machado.
Godofredo, instintivamente, refugiara-se pôr trás da sua carteira, remexendo
ao acaso papéis, com a mão trêmula, sem ousar erguer os olhos.
O batente abriu-se, era o Machado, pálido como um morto, com o chapéu e a
bengala numa das mãos, a outra no bolso das calças, fazendo uma saliência.
Mas Godofredo não via isto, não ousava fixá-lo: os seus olhares erravam aqui
e além, procurando uma palavra, uma coisa profunda e digna a dizer. Pôr fim, com
um esforço, encarou-o: e aquela mão no bolso feriu-o logo, teve um gesto, receando
uma arma, um ataque. O Machado compreendeu, lentamente retirou a mão do
bolso, foi colocar o chapéu, a bengala, sobre a sua carteira. Então godofredo,
trêmulo, com a pressa, a ansiedade de dizer alguma coisa, balbuciou isto:
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— Depois do que se passou ontem, não podemos continuar a ser amigos.
Machado, que tinha a face contraída, com uma expressão de ansiedade,
cerrou os olhos, respirou livremente. Esperava uma violência, alguma coisa terrível,
e aquela moderação, aquele gemido triste, duma amizade traída, espantou-o, quase
o impressionou... Nesse momento desejava poder lançar-se nos braços do seu
sócio. E respondeu, com uma emoção sincera, um soluço na garganta:
— Infelizmente, infelizmente...
Então Godofredo fez-lhe sinal que se sentasse. Machado, com a cabeça
baixa, foi pousar-se à borda do sofá de reps. Godofredo deixou-se cair, como uma
massa inerte, sobre o mocho, junto à carteira. E durante um momento um silêncio
profundo reinou, tornado maior ainda pôr aquela rua de negócio adormecida ao
Domingo, sob a calma. Godofredo passava a mão trêmula pela face, pelo rosto,
procurando uma palavra.
O outro esperava, olhando a esteira.
— Um duelo entre nós é impossível – disse enfim Godofredo com esforço.
O outro balbuciou:
— Estou às suas ordens, disponha...
É impossível! — o Godofredo. – Riam-se de nós... Sobretudo esses duelos
que para aí há... Era cair no ridículo... Não podemos, na nossa posição. Toda a
praça se ria dum duelo entre dois sócios...
E um momento ficou trabalhando pôr esta idéia de serem sócios. Então todo
aquele passado que os ligava pareceu erguer-se diante de Godofredo; e nunca
sentira tanto a infâmia do Machado como vendo-o ali, naquele gabinete, onde três
anos tinham trabalhado juntos. E disse-lho.
— A sua infâmia não tem nome...
Tinha-se erguido, a sua voz fortalecia-se, e o seu sentimento de amigo traído
dava-lhe ao tom agora uma dignidade, uma solenidade que esmagava o outro.
Então falou baixo, atirando-lhe as palavras, como punhaladas. Conhecera-o de
pequeno; fora ele que o protegera no seu começo da vida; tinha-o feito seu sócio,
seu amigo, quase seu irmão. Abria-lhe as portas de sua casa, recebia-o lá, como um
irmão.
— E pelas minhas costas, o senhor que faz, desonra-me!
O outro erguer-se, com a face angustiosa, querendo acabar aquela tortura.
— Sei tudo isso – balbuciou, estou pronto a dar-lhe todas as reparações,
todas, quaisquer que sejam.
Então Godofredo, exaltado, atirou a sua idéia:
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— A reparação é só esta! Um de nós tem de morrer... Um duelo é absurdo....
Tiramos à sorte qual de nós se há-de-matar.
Aquelas palavras patéticas, apenas as soltara, tinham-lhe aparecido como
sons estranhos e desconexos: os mesmos móveis as pareciam repelir... mas soltara-
as, essas palavras; sentia um alívio, tendo enfim desembaraçado a alma daquilo que
desde a véspera lha enchia de perturbação e de tormento.
Machado ficara a olhar para ele com os olhos esgazeados.
— Tirar à sorte! Como tirar à sorte?
Parecia não compreender. Aquele suicídio, tirado à sorte, parecia alguma
coisa de grotesco e de doido.
Como Godofredo continuasse de pé, junto da carteira, sem dizer nada,
mexendo no bigode, impacientou-se, exclamou:
— Isso é sério? Isso é dito a sério?
Foi então Godofredo que o olhou interdito. O que ele receara realizava-se.
Machado achava aquilo absurdo, recusava. Então a sua cólera cresceu, como se
visse fugir-lhe a vingança.
— Já ontem o senhor fugiu, quando o apanhei, fugiu covardemente. Agora
quer fugir disto também.
O outro gritou, lívido:
— Fugir a quê?
Uma cólera surda invadia-o, acendia-lhe o olho. Todas as acusações do outro
o tinham exasperado. Depois vinha aquela proposta absurda dum suicídio à sorte.
Agora insultava-o . Não, isso não toleraria. Balbuciou, já excitado:
— Fugir de quê – repetiu, fugir de que? Eu não fujo de nada...
— Então – disse Godofredo, batendo com a mão na secretária, já aqui,
tiramos à sorte quem de nós há-de desaparecer!
O outro encarou-o um momento, como se o fosse esganar. Depois agarrou
vivamente o chapéu e a bengala. E numa voz mordente, decidida, que vibrava:
— Eu estou pronto a dar-lhe todas as reparações, e com todo o meu
sangue... Mas há-de ser dum modo sensato, regular, com quatro testemunhas, à
espada ou à pistola, como quiser, a que distância quiser, um duelo de morte, tudo o
que quiser. Estou às sua ordens. Hoje todo o dia, amanhã todo o dia, lá espero, em
minha casa. Mas com idéias de doido não me entendo. E não temos mais que
conversar...
Atirou o batente, os seus passos furiosos soaram um momento fora, e tudo
recaiu num grande silêncio. Godofredo ficava só, com as lamentáveis ruínas daquela
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sua grande idéia, humilhado, confuso, encavacado, com as fontes a latejarem-lhe,
sem saber o que havia de fazer.
CAPÍTULO VI
Por fim, tal qual como fizera o Machado, agarrou vivamente o chapéu e
abalou do escritório. E tão estonteado is que foi já na rua do Ouro que se lembrou
que não fechara a porta à chave; voltou atrás, e isto pareceu pôr alguma ordem nas
suas idéias. Agora estava decidido a bater-se com ele, num duelo de morte, e
nenhuma coisa no mundo parecia dever satisfazê-lo, senão vê-lo aos seus pés, com
uma bala no coração. Pois que! Aquele homem desonra-o, rouba-lhe o amor da sua
mulher, e agora, ainda pôr cima, trata-o como um insensato, chama-lhe de doido! E
isto enfurecia-o sobretudo, porque ele agora sentia vagamente que naquela idéia do
suicídio à sorte havia alguma coisa de insensato! Talvez houvesse! Mas o outro não
lho devia dizer, devia aceitar tudo, resignar-se à reparação que ele exigisse! Não
quisera, reclamava uma reparação dum modo regular e sensato. Pois bem, assim
seria, bater-se-iam à pistola, com uma só pistola carregada tirada ao acaso,
apontada à distância dum lenço! Era ainda o acaso, era ainda a sorte, era deixar
tudo à mão justa de Deus.
No entanto, dirigira-se rapidamente para o Rossio. O seu amigo íntimo, o
Carvalho, aquele que fora diretor da Alfândega de Cabo Verde e que casara rico,
morava lá; e era ele o primeiro a quem se dirigia, a contar-lhe tudo, a entregar-se à
sua velha amizade; depois iria procurar o outro dos seus grandes amigos, o Teles
Medeiros, homem de fortuna e de sociedade, que tinha panóplias de floretes na
sala, e a experiência do ponto de honra.
Estava dando meio-dia, o sol de julho abrasava as ruas: e as lojas fechadas,
a gente nos seus fatos de Domingo, as carruagens de praça abrigadas no lado à
sombra, tudo dava uma sensação maior de calma e de inércia. Uma poeira sutil
embaciava o azul; e o mesmo som dos sinos arrastava pesadamente, no ar mole.
Quando Godofredo trepava as escadas do Carvalho – topou justamente com ele,
que descia, satisfeito e fresco, no seu fato novo de cheviot claro, calçando as luvas
gris-perle. A figura esbaforida, o ar aflito de Godofredo, espantaram-no: e tornou a
subir, abriu ele mesmo a cancela com o trinco, fê-lo entrar num pequeno gabinete,
onde havia uma estante e uma longa cadeira de vime, em forma de leito de
campanha. Ao lado na sala, tocava-se piano, um tom de valsa rápido, que fazia
vibrar a casa.
E o Carvalho correu o reposteiro, fechou a janela aberta, antes de perguntar o
que era?
Godofredo pusera o chapéu a um canto da mesa e imediatamente desabafou,
dum jato.
Às primeiras palavras de sofá, de braço pela cinta, Carvalho, que tirava
lentamente as luvas, ficou petrificado, no meio do gabinete: e foi correr ainda mais o
reposteiro, como se receasse que a história daquela traição lançasse uma exalação
indecente através do seu prédio. Mas, na atrapalhação com que o Godofredo
contara a história, na sofreguidão com que a escutou, não percebera bem quem era
o homem, apenas compreendendo que o Machado estava presente: e quando
soube que era ele que estava no sofá, bateu as mãos uma contra a outra, teve uma
exclamação de horror.
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— Que infâmia!
— Um homem que era como um irmão para mim – exclamava Godofredo,
baixando a voz, brandindo os punhos. – E paga-me assim... Não, é necessário haver
morte de homem. Quero um duelo de morte!
Então todo o rosto barbudo do Carvalho exprimiu uma inquietação. Agora
percebia. Godofredo não viera ali só desabafar, viera arranjar uma testemunha: e
tomava-o logo um susto de burocrata, um medo da lei, o receio de se comprometer.
E o seu egoísmo revoltou-se diante das coisas violentas e perturbadoras que
pressentia. Quis atenuar, logo procurou explicações. Enfim, se Godofredo não vira
mais nada... Se era só estarem na sala... Podia ser uma brincadeira, uma tolice...
Godofredo, febrilmente, procurava nas algibeiras. O piano dentro caíra agora
a sons vagos, como de dedos que tenteiam, procuram uma melodia esquecida. De
repente um bocado do Rigoletto rompeu, com um arranque gemido e soluçante. E
Godofredo, que achara enfim a carta, pô-la diante dos olhos de Carvalho. O outro
leu a meia voz:
—“Ai Riquinho da minha alma, que beijinhos tão bons...”
E, como se aquelas palavras, ouvidas na voz do outro, lhe parecessem mais
infames que quando ele as lera, não se conteve, elevou a voz, gritou:
— Não, isso com sangue, é necessário um duelo de morte...
Carvalho, inquieto, fez-lhe sinal que se calasse. E como o piano parou, um
momento ficou escutando, receando que o grito do outro tivesse sido ouvido:
— É a Mariana – disse ele indicando a sala... – Pôr ora é melhor que ela não
saiba...
Depois voltou a ler a carta, lentamente: e palpou o papel, revirou-o,
conservando-o nos dedos com uma curiosidade excitada, como se sentisse ali o
calor dos beijinhos...
E Godofredo procurou ainda mais pelas algibeiras, descontente de Ter
esquecido as outras cartas. Porque havia ainda outras piores! E citou frases, exibiu
toda a tolice, todo o descaro de Ludovina, tomado agora apenas do desejo de
vencer bem o Carvalho que sua mulher era uma prostituta.
— De resto ele não negou, disse a tudo que sim!
— O que, vocês falaram?
Então, depois duma hesitação, Godofredo acabou a confidência, a sua idéia
de um suicídio à sorte, o encontro que tivera com o Machado. O Carvalho, que caíra
para cima do sofá, como que brado, esmagado pôr todas aquelas revelações, abria
uns grandes olhos na sua face queimada de África, espantado de que aquelas
coisas violentas, terríveis, se estivessem realmente passado, e fossem ditas ali, no
seu tranqüilo prédio do Rossio...
Quando Godofredo contou que o Machado achara aquilo insensato, Carvalho
não se conteve.
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— De doido! De puro doido! – exclamou erguendo-se.
E, gesticulando pelo estreito gabinete, procurava uma frase para classificar
aquilo, falava ainda de doidice, terminou pôr dizer que semelhantes coisas só se
viam no Rocambole:
— Vem das na mesma – disse Godofredo. – Porque eu exijo que o duelo seja
à pistola, uma só carregada, e tirada ao acaso...
Carvalho deu um pulo.
—Uma só pistola, ao acaso? Mas isso é um assassinato. Não, escusas de
contar comigo. Não há motivo para isso... Mas nem que houvesse numa dessas não
me metia eu!
Vendo-se abandonado, Godofredo revoltou-se. Então, naquela crise terrível,
ele, o seu melhor amigo, deixava-o assim ficar mal? De quem melhor amigo,
deixava-o assim ficar mal? De quem se havia de valer? A quem havia de confiar a
sua honra?
O outro despropositou. Falou outra vez de assassinato, de crime e de prisão;
terminou pôr dizer:
— Se tu me viesses convidar para ir deitar fogo ao Banco de Portugal achas
que eu devia aceitar?...
Godofredo queria explicar que não era a mesma coisa: as duas vozes
elevavam-se, entremeadas – e subitamente um silêncio do piano fê-los calar a eles
também. Uma conversação elevou-se dentro na sala: depois as vozes elevaram-se
tmbém, e havia uma alteração, em que as palavras de “saia branca”, “sua porca”, “a
senhora não disse nada” chegaram com um som irritado. Um momento Carvalho
escutou. Depois, encolheu os ombros; havia de ser algum novo desleixo da criada,
uma desavergonhada, que tinham havia um mês, e que não fazia nada com jeito.
Depois sentindo bater uma porta, dentro, não se conteve, foi ver.
Godofredo, só um momento, sentiu como um cansaço invadi-lo. Desde a
véspera os seus nervos vibravam, retesados, como as cordas duma rabeca muito
afinada. Tudo até ali lhe pareceu fácil, e a sua vingança segura. Mas agora, um
depois do outro, recebia dois choques. O outro não quisera o suicídio à sorte; este
não queria duelo de morte – e alguma coisa dentro dele começava a afrouxar, como
se a sua alma se fosse cansando de estar há tantas horas, numa atitude sombria de
vingança e massacre. E vinha-lhe um começo de enxaqueca, a enxaqueca que
desde a véspera o ameaçava. Sentou-se no sofá, com a cabeça entre as mãos; um
suspiro levantou-lhe o peito.
Carvalho entrou, vermelho, excitado. Tinha havido uma cena, ele pusera a
criada fora. E então destemperou, queixou-se daquela sorte que o não deixava Ter
uma criada decente, tudo uma súcia de desavergonhadas, porcas, e que o
roubavam. Tinha saudades das pretas, não havia nada como criadas pretas...
— E então, dize lá, que pensas tu, de tudo isso? – exclamou com um ar
desanimado Godofredo.
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Carvalho encolheu os ombros.
O melhor é deixar tudo como está, tua mulher em casa do pai, tu na tua, e
o que lá vai, lá vai...
Mas um remorso tomou-o, quis mostrar coração, acrescentou:
— Em todo o caso conta comigo para tudo...
Lá um duelo regular, a espada, ou à pistola mesmo, para salvar a honra, sim
senhor. Cá estou. Lá coisas trágicas não.
Godofredo disse então tomando o chapéu:
— Vamos ver o que diz o Medeiros, vamos à casa do Medeiros.
Carvalho ficou contrariado. Nesse dia ia passar o dia a Pedrouços com a
mulher, à casa do sogro. Eram os anos do cunhado.... Mas enfim, num caso
daqueles, era necessário fazer alguma coisa pelos amigos.
— Vamos lá, deixa-me avisar a Mariana que não posso ir...
Daí a pouco voltou, calçando as luvas com um ar desagradável. E já no meio
da escada, parou, voltou-se para o Godofredo que seguia:
— Sabes que minha mulher está de esperanças, hein?... Um susto pode ser
fatal, e se ela sabe que eu sou testemunha. Não é brincadeira... Enfim, vamos lá...
Os amigos é para as ocasiões.
Embaixo tomaram uma carruagem, porque o Medeiros morava lá no inferno,
adiante da Estrela. Era um coupé quase novo, fofo e asseado, que rolava sem ruído.
Isto pôs Carvalho de melhor humor: e recostou-se, acabando de abotoar as luvas.
Durante algum tempo não trocaram uma palavra. Depois, quando o coupé
atravessava o Loreto, subitamente uma grande curiosidade pareceu invadir o
Carvalho. Godofredo não lhe dera detalhes nenhuns. Que tinha dito Ludovina?
Como soubera ele do caso? O que dissera o Neto? Godofredo, com um ar fatigado e
em palavras curtas, completou a sua história. O outro desaprovava a mesada de
trinta mil réis. Era uma gratificação dada à infâmia... E vendo Godofredo, com o ar
abatido, que numa emoção mordia o beiço, como se o invadissem as lágrimas,
murmurou:
— Esta vida é uma choldra.
E não trocaram mais palavra até casa do Medeiros. Quando bateram à
campainha, o criado disse-lhes que o senhor Medeiros ainda estava na cama. Então
Carvalho subiu as escadas, abriu o quarto do Medeiros, fazendo barulho,
chamando-lhe mandrião e debochado. Atrás, Godofredo ia topando com os móveis
na escuridão do quarto. Da sombra dos cortinados, a voz mal-humorada do
Medeiros perguntava que invasão era aquela: e, quando lhe abriram a janela,
berrou, enterrou-se nos lençóis não podendo suportar bruscamente a invasão da
claridade. Mas terminou pôr mostrar a face inchada de sono e estremunhada; depois
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espreguiçou-se, ergueu-se sobre o cotovelo, e deitou mão a um cigarro, de cima da
mesa-de-cabeceira.
Carvalho, sentado aos pés da cama, começou: durante um momento falaram
daquelas preguiças do Medeiros. Ele explicou que se deitara às cinco da manhã...
Depois Carvalho começou:
— Vimos aqui para um negócio muito grave.
O outro interrompeu-o, dando um berro pelo criado. Queria saber se viera
uma carta pela manhã. O rapazote trazia-a, na algibeira. Medeiros sentou-se na
cama, com o cabelo todo esguedelhado, abriu-a, nervoso, leu-a dum olhar, e, dando
um suspiro de alívio, meteu-a debaixo do travesseiro.
— Caramba, ia sendo ontem apanhado. Pôr um segundo... E se o marido
entra na cozinha, que é logo ao lado da porta, lá se ia tudo quanto Marta fiou. Irra,
que não ganhei para o susto.
Carvalho e Godofredo tinham trocado um olhar. E Carvalho teve esta frase
infeliz:
— Pois é pôr uma coisa dessas que nós cá vimos...
E acrescentou:
— O Alves teve um desgosto...
E, diante do olho arregalado do Medeiros, Godofredo sentiu no fundo a
garganta sufocada pelo seu ridículo... Sentiu-se pertencendo a essa tribo grotesca
de maridos traídos, que não podiam entrar em casa sem que, de dentro, escapasse
um amante. E era assim pôr toda a cidade, uma infâmia pelos cantos, amantes que
fugiam e amantes apanhados. Ele apanhara o seu. O outro marido não teria
apanhado, se entrasse na cozinha? O dia antecedente fora terrível... E parecia-lhe
ver em toda a cidade esta sarabanda, de amantes escapulindo-se, de maridos
apanhando-os, um chassez-croisez de homens, em torno das saias das mulheres...
E agora sentia uma fadiga, um horror de tornar a contar a sua história. Mas os olhos
do Medeiros, a face do Medeiros, esperavam: e ele terminou pôr dizer, com um ar
exausto:
— Foi ontem. Apanhei a Ludovina com o Machado.
— Caramba! – exclamou o Medeiros dando um pulo na cama.
E deitando fora a ponta do cigarro, tomando vivamente outro, quis saber os
detalhes. E foi o Carvalho que os deu, falador agora, gozando o seu papel, com
aquela confiança de marido dum estafermo rico que ninguém jamais tentava.
Contou tudo, enquanto, esmagado sobre uma cadeira, com o chapéu alto ainda na
mão, Godofredo ia aprovando com a cabeça.
— Deixa ver a carta – terminou pôr dizer o Carvalho.
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E Godofredo tirou-a do bolso, o outro leu-a a meia voz, pela Segunda vez o
marido ouviu voz estranha murmurar aquelas palavras da sua mulher: “Ai Riquinho
da minha alma, que tarde a de ontem...”
E Medeiros, em camisa, repetia a frase, lembrando-se dos olhos negros de
Ludovina, do seu papel, revirando-o também em todos os sentidos como o outro
fizera.
E subitamente veio-lhe um furor terrível contra o Machado. Que diabo, já era
necessário ser canalha! Enfim, ela tinha culpas no cartório. Quando elas queriam,
que diabo, não se podia ser José do Egito... Mas nunca com a mulher dum amigo
íntimo, e de mais a mais dum sócio...
— Isso pede sangue – disse ele, excitado, saltando para o meio do quarto em
camisa, com os pés nas chinelas.
Godofredo exclamou, ressalvando logo a sua coragem:
— Eu queria um duelo de morte, mas logo a sua coragem:
Então Carvalho apelou para o amigo Medeiros olhou-os, espantado. Não,
decerto que não. Nem havia motivos para isso, nem...
Era a Segunda vez que ele ouvia aquela razão que não havia motivo: e então
barafustou:
— Não há motivo! Então qual é o motivo bastante para que dois homens se
matem?...
— Um escarro na cara, ou uma coisa dessas – disse com autoridade o
Medeiros que, ainda em camisa, dava à pressa uma penteadela no cabelo.
Godofredo queria argumentar, mas o outro, voltando-se, com o pente na mão,
terminou a questão:
— Mesmo que houvesse motivo, eu uma coisas dessas não aceito. Numa
dessas não me meto...
— Aí tens tú! – exclamou Carvalho em triunfo.
— Que disse eu? Ninguém quer uma responsabilidade dessas... Eu, de mais
a mais, com a mulher de esperanças... Olha que brincadeira.
Um momento Alves ficou como abatido. E todavia sentia um começo de alívio,
como se parte de toda aquela indecisão em que estava desde a véspera
desaparecesse, e alguma coisa se fixasse. Agora estava decidido que não haveria
sortes, nem acasos; que não haveria morte de homem; e em toda aquela
atarantação em que até ali estivera, isto formava um ponto fixo, uma base, uma
decisão, em que se poderia apoiar. E não era ele que o decidira: eram os seus
melhores amigos, que raciocinavam a sangue-frio. Mas, em todo o caso, posta de
parte a morte dum deles, alguma coisa se havia de fazer.
— Que aconselham então vocês, que se há-de fazer? Eu não hei-de ficar
assim, de braços cruzados...
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Medeiros, então, de pé no meio do quarto, em camisa, com as canelas
magras à mostra, os pés numas grandes chinelas, exclamou, com solenidade:
— Queres pôr a tua honra nas minhas mãos?
Está claro que queria, não estava ali para outra coisa.
— Bem – exclamou Medeiros. – Então não tens mais que pensar. Deixa-te
levar, nós arranjaremos tudo.
E foi para dentro, para um cubículo, onde o ouviram lavar os dentes,
bochechar, fazer uma tempestade dentro da bacia.
Godofredo porém não parecia satisfeito, aproximou-se da porta do cubículo,
queria ainda saber...
— Não tens nada que saber – exclamou de dentro o outro, lavando-se, com
um ruído de esponja e água... – Nós também não podemos saber. Temos de ir
primeiro ao Machado, ver o que ele diz, entendermo-nos com as testemunhas dele,
etc.... Tu vais para casa, e não saias até que nós apareçamos... E deixa-nos aí
tipóia, ouviste, para dar esses passos todos... Domingos, escova a sobrecasaca
preta; e calças pretas... Tudo de preto...
Ouvindo isto, Carvalho deu um olhar ao seu próprio fato de cheviot claro. Mas
ele não era dessas pieguices de toilettes : com uma camisa lavada em cima da pele,
um homem estava decente para ir a toda a parte.
Godofredo todavia passeava ainda pensativo. E terminou pôr dizer ao
Carvalho o que o perturbava:
— É necessário que vocês levem já condições feitas. E eu, menos de ser à
pistola e a vinte passos...
— Deixa lá isso com o Medeiros – disse o Carvalho.
E o Medeiros, aparecendo logo, com a toalha na mão, o cabelo molhado,
acrescentou:
— Olha, tu entenderás de coisas de negócios. Mas de coisas de ponto de
honra, entendo eu... Tu desde este momento não tens senão a esperar que nós te
vamos dizer – é a tais horas, em tal sítio, e com tais armas. E depois no dia
seguinte, marchar! Não tens mesmo que te ocupar do médico. Eu peço ao gomes,
que entende muito de feridas... E não é homem para perder a cabeça, se um de
vocês ficar escalavrado de todo.
Godofredo sentiu pela espinha um arrepio, e o coração encolher-se. E do
lado, Carvalho dizia:
— E tu vais para casa, se tens que fazer, ou papéis a pôr em ordem, ou outra
coisa...
Não falara em testamento, mas era uma alusão ao testamento. E aquilo irritou
Alves. Decerto ele era o primeiro a querer que o duelo fosse sério, fosse mortal...
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Mas enfim, aqueles seus dois amigos, os seus melhores amigos, os seus íntimos,
um a falar já de feridas, outro a empurrá-lo para a porta para ir fazer testamento,
pareciam-lhe grosseiros, inutilmente cruéis... Sem uma palavra, desceu.
E atirando-se, pensou esta coisa profunda:
— Aqui está para que a gente se casa! E aqui está para que se quer ter
família!
CAPÍTULO VII
Às seis horas da tarde, Godofredo, em chinelos, no seu gabinete, acabava de
lacrar um maço de papéis, quando a campainha retiniu e os seus dois amigos
apareceram. Carvalho, apesar da sua indiferença pela etiqueta, fora mudar de fato,
estava de sobrecasaca preta: - e ambos traziam um ar grave.
Medeiros, agora muito correto, com o bigode encerado, sentou-se no sofá –
na sala onde a criada os introduzira – e começou a tirar lentamente as suas luvas
pretas, e olhava Godofredo.
— Estás aí a rebentar de curiosidade? Pois olha, pôr ora nada feito.
Godofredo, que tivera os olhos cravados nele, e estava muito pálido, pareceu
respirar melhor. Mas subitamente enfureceu-se. Como nada feito? Então o infame
recusava-lhe uma reparação.
Carvalho acudiu:
— Não, senhor. A cada um o que é seu, o Machado nisto anda bem.
— Então?
— Foram as testemunhas, que se mostraram recalcitrantes – disse o
Medeiros. — Aqui está o que foi.
Era uma longa história, que o Medeiros contou com detalhes, gozando.
Tinham falado ao Machado, que lhes prometeu que dois amigos dele estariam às
quatro horas em casa dele, Medeiros. E pontualmente apareceram lá o Nunes Vidal,
que ele conhecia perfeitamente , rapaz de experiência em coisas de honra, e o
Cunha, o Albertinho Cunha, que pouco falara, estava como um comparsa. Entraram,
cumprimentos, etc., tudo muito grave, e toda a amabilidade. Depois vieram à
questão: o Nunes Vidal declarou logo que, em princípio, o sr. Machado estava
pronto a aceitar todas as condições, todas quaisquer que fossem, propostas pelo sr.
Alves. Inteiramente todas. Mas que ele, NunesVidal, e ali o seu amigo Cunha
entendiam que o dever das testemunhas, num conflito, era, antes de tudo, procurar
paz e conciliação. E que portanto, se em princípio o seu constituinte, o sr. Machado,
pôr um excesso de pundonor e orgulho estava disposto a deixar-se matar, eles, suas
testemunhas, que tinham tomado nas suas mãos os interesses dele, estavam ali, e
tinham vindo ali não só para procurar, tanto quanto possível, o evitar que sucedesse
uma desgraça no campo ao seu amigo, mas mesmo que em volta do nome dele se
fizesse um escândalo, que o prejudicaria...
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— Tudo isto muito bem dito – acrescentou o Medeiros, tudo muito bem
explicado, com bonitas palavras... Sério, gostei do Vidal.
— Ah, rapaz de muito talento – murmurou o Carvalho.
Enfim o Vidal terminara pôr dizer que, tudo bem considerado, não julgavam
que houvesse motivo para um duelo grave à pistola.
Outra vez a falta de motivo. Godofredo despropositou:
— Com mil diabos, então que queria esse asno que o Machado me tivesse
feito de pior?
Com um gesto, Medeiros conteve-o.
— Não te exaltes, não te exaltes... Deixa estar que lá lhe disse tudo. O Vidal é
muito esperto, mas olha que eu não me calei. Pergunta ao Carvalho...
— Andaste como um rábula – disse Carvalho.
— Mas então que diabo disse o Vidal? – exclamou ainda Godofredo.
O Vidal dissera que não havia motivo de sangue, porque o que se passara
entre Machado e a senhora fora um simples namoro...
Godofredo teve um gesto furioso. E o Medeiros, erguendo-se também:
— Não te exaltes, escuta. Eu lá lhe disse tudo. Contei-lhe do modo como o
apanhaste, e a carta, meu riquinho que tarde a de ontem, e o resto. Apresentei-lhe
todos os dados para o convencer que o adultério era completo... Não é verdade,
Carvalho?
— Todos.
— Disse-lhe claramente: o meu constituinte, o nosso amigo Alves, é, em toda
a extensão da palavra, um marido que... Enfim, necessita reparação. Não é verdade,
Carvalho?
Carvalho fez um gesto de assentimento.
— Mas o Nunes provou-me que não. Tinha lido as cartas ele também, o
Machado contara-lhe tudo, e depois de ter combinado, pensado, chegara a este
resultado: que não passara de namoro.
Houve um silêncio na sala. Godofredo passeava vivamente, com as mãos nos
bolsos. Carvalho examinava vagamente em quadro representando Leda e o cisne.
De repente, Godofredo parou, exclamou, com uma voz surda, espaçando as
palavras:
— Aí nesse sofá, os vi eu abraçados um ao outro... Que diz a isto o Nunes?
— Esse é que é o único ponto – exclamou Medeiros. – Esse ponto é que se
não pode negar porque tu viste, com os teus olhos. Mas o Machado explicou ao
Nunes. E o Nunes explicou-nos a nós. Era uma brincadeira, era a rir, era a fazer
cócegas...
— E a carta, que tarde a de ontem? – exclamou Godofredo.
— Disse o Nunes que naturalmente se refere a um passeio que vocês deram
a Belém. Vocês foram a Belém?
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Godofredo pensou um momento. Sim, tinham ido a Belém. Era verdade que
tinham todos três ido a Belém.
— Então aí tens. Era a lembrar o prazer de terem ido todos, a patuscada, a
passeata, etc...
— De modo que – exclamou Godofredo – fica tudo nisto... Não há nada.
Tenho de tragar a afronta.
Medeiros ergueu-se indignado. Ora essa, então pôr quem o tomava ele?
Tinha ou não Alves posto a sua honra nas mãos dele e do Carvalho? Tinha. Então
não podia supor que eles, seus amigos, o deixassem na lama, miseravelmente...
— Mas – murmurou Alves.
— Mas que? Está claro que te hás-de bater. Foi o que se decidiu. Não há
motivo para que seja à pistola, porque foi um simples namoro. Mas como o sr.
Machado não tem direito a namorar a tua mulher, há todo o motivo para que seja à
espada, um duelo mais simples... Vamos nos encontrar logo com eles em minha
casa, às oito horas, e combinar tudo.
— E não temos muito tempo a perder – disse Carvalho puxando o relógio –
porque são seis e meia, ainda temos de jantar. Eu estou a cair...
Godofredo ofereceu-lhes então que jantassem lá. De resto ele tinha
calculado que apareceriam à hora do jantar e mandara preparar um bocado de
assado a mais.
— Não haverá mais que um bocado de assado – disse ele -, mas enfim, em
campanha tudo basta... e nós estamos em guerra.
Era a primeira vez que sorria desde a véspera. Mas aquela companhia dos
seus amigos ao jantar alegrava-o, evitando-lhe a solidão que ele temia.
E o jantar foi alegre. Tinha-se combinado que não falariam do duelo, nem do
caso: mas logo desde o cozido, em todos os momentos que Margarida não estava
presente, voltavam a essa idéia, pôr frases curtas e alusões vagas. Pôr fim,
Godofredo disse à Margarida que não voltasse sem que ele tocasse a campainha: e
então a conversação não cessou mais. Godofredo contou como conhecera
Ludovina, e o seu namoro, e o dia do casamento. Depois falou do Machado, mas
sem cólera, chegando mesmo a dizer que era um rapaz brioso. Era ele que o ia
buscar ao colégio quando o Machado era pequeno: e às vezes levava-o ao teatro. E
estas recordações enterneciam-no, terminou pôr engolir um soluço, disse que se não
falasse mais em semelhante coisa. Tocou a campainha, a Margarida trouxe o
assado. Houve um curto silêncio, o Medeiros gabou o vinho de Colares. Carvalho, a
respeito do Colares, que ele costumava beber em Cabo Verde, lembrou um caso de
duelo em que ele fora testemunha: e apenas Margarida saiu, contou-o logo: era
parecido com o do Alves, também pôr causa duma mulher, mas essa, preta. Isto
parecia incrível ao Medeiros. Mas Carvalho gabou a preta, com o olho brilhante:
Em a gente se acostumando, não quer senão daquilo... A preta é grande
mulher.
— Mas que diabo, não falemos mais de mulheres – disse Godofredo.
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E neste pedido, que ele acompanhou de um vago sorriso, havia como uma
resignação na sua desgraça, uma idéia nascente de gozar a vida, na companhia de
amigos, nas preocupações do negócio, sem os desgostos que traz invariavelmente a
paixão das saias. Então falou-se do Nunes. Medeiros estava contente de num caso
tão sério como aquele Ter encontrado pela frente o Nunes, rapaz sério, de
experiência e de honra. Estava ao princípio com medo que o Machado tivesse a
idéia de nomear para padrinho aquele idiota do Sigismundo, com quem andava
sempre. E isto trouxe de novo à conversa o Machado. Então, um pouco animado
pelo Colares, Medeiros confessou que já tinha pregado uma ao Machado: tinha sido
o amante da francesa com quem ele estivera. Então começou a falar de si, das suas
conquistas: e voltou à história da véspera, quando estivera para ser apanhado na
cozinha. O Carvalho também tivera uma história assim, em Tomar. Mas aí tivera de
saltar pela janela, e caíra em cima duma estrumeira... O Carvalho sabia pior do que
isso: um amigo dele, o Pinheiro, não o magro, o outro, o picado das bexigas, que
tinha estado escondido num curral de porcos seis horas. Ia morrendo. E quando via
um porco punha-se branco como a cal. Então foi entre o Carvalho e o Medeiros um
desfilar de anedotas de adultérios. O Godofredo, homem casado e honesto, não
tinha destas anedotas: a sua vida fora toda doméstica, sem aventuras, e escutava,
bebendo o seu café aos goles, gozando aquele fim alegre de jantar, sorrindo pôr
vezes.
E terminou pôr sentir um hálito quente de mocidade, dizer filosófico:
— Homem, é melhor a gente divertir-se pôr sua conta, que os outros se
divirtam à nossa custa...
As oito horas aproximavam-se. Carvalho começou a calçar as luvas pretas,
Então Godofredo falou em os acompanhar: meter-se-ia dentro do quarto do
Medeiros – enquanto se celebrava a conferência na sala -, e eles poupavam assim o
trabalho de voltar, a dar-lhe parte do resultado, à rua de São Bento. E – apesar de
Carvalho Ter achado isto contra a etiqueta – terminou pôr consentir, pôr não ser
coisa muito grave.
Foi-se buscar uma carruagem, e apinhados dentro dela todos três – partiram
para a Estrela.
Em casa do Medeiros, o criado já acendera velas nos lustres; e eles tinham
apenas subido a escada quando a campainha retiniu. Eram os outros, muito
pontuais. Então Godofredo foi esconder-se no quarto: os outros entraram na sala,
onde se elevou logo o rumor de vozes. No quarto às escuras, Godofredo, sem ousar
chamar o criado, procurava, apalpava, sobre a mesa e o toucador, à cata duma
caixa de fósforos. Não achou, mas o seus dedos encontraram um reposteiro, correu-
o, e viu diante uma fenda de luz numa porta, pôr trás rumor de vozes. Era, do outro
lado, a sala, onde estavam a conferenciar. Adiantou-se, mas topou com um jarro,
que rolou com um som de água, entornando água. Então ficou um momento imóvel,
depois chapinhando umidade, foi encostar o ouvido à fechadura. Mas tinha-se feito
um silêncio, que ele não compreendia. Só pôr vezes um dos amigos do Machado
tossia. Que diabo estavam fazendo? Quis espreitar, mas viu, vagamente, um bocado
de espelho onde se refletia a luz do candeeiro. Subitamente a luz desapareceu,
houve diante dele o quer que fosse de negro, decerto as costas dum deles. Então
uma voz elevou-se, era a do Medeiros; dizia “que lhe parecia concludente...” E foi
logo um rumor de duas outras vozes, que se misturavam, cresciam, que ele não
podia ouvir. Depois uma outra voz fria, disse muito distintamente:
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— Nisto é necessário sobretudo dignidade.
Com efeito era necessário dignidade – e não era digno estar ele ali
escutando. Voltou então ao quarto às apalpadelas – e tendo topado com o sofá,
sentou-se. Agora não havia rumor, e um ar abafado pesava no quarto. E aquela
escuridão trouxe-lhe idéias de doença... No dia seguinte podia ele estar talvez,
assim num quarto, às escuras, prostrado num leito; e só, sem ninguém, tratado pela
Margarida. Isto causou-lhe um grande horror. Começou a lembrar-se de histórias de
ferimentos que ouvira. Um golpe de espada ao princípio fazia apenas um frio – as
dores eram depois, longas, nas noites longas, quando os colchões aquecem e o
corpo se não deve mover... Então pensou em tudo que dissera o Nunes ao
Carvalho: era a primeira vez que o Machado a abraçava, pôr brincadeira. E se isto
fosse verdade? Também ela lho dissera, num grito de dor: era a primeira vez. Podia
ser bem apenas uma leviandade, um galanteio, o que os ingleses chamam uma
flirtations . Deveria perdoar? Não. Mas não era então motivo para haver um duelo.
Bastava-lhe expulsar Machado de sua casa. E então outras coisas acudiam-lhe:
nunca, como ultimamente, Ludovina fora mais amante. Outrora era ele que lhe devia
fazer festas, a provocá-la... Ultimamente era ela, que às vezes, sem motivo, lhe
atirava os braços ao pescoço. Podia ele afirmar que ela o não amava? Não. E não
era fingido, ele não era tolo, sabia bem conhecer uma emoção sincera. Pôr que
consentia então ela na corte do outro? Quem sabe! Coquetismo, vaidade... Em todo
o caso isso merecia castigo. Nunca mais a veria; e bater-se-ia com o outro... Depois
pensou que nunca manejara uma espada. E o Machado tinha dado lições de
esgrima. Decerto era ele que ficaria ferido. E o mesmo terror voltava-lhe. Parecia-lhe
que não temeria tanto, a morte brusca, uma bala através do coração. Mas uma
ferida grave, que o retivesse na cama semanas, com toda a sua lenta marcha, a
febre, a inflamação, o perigo de gangrena. Era horrível. Toda a sua carne tremia, se
encolhia a essa idéia. Mas enfim acabou-se, era a honra que o pedia.
De repente ouviu vozes no corredor, risos, todo um barulho cordial de amigos
que se despedem. O coração batia-lhe. Tinha caminhado para a porta do quarto.
Uma luz apareceu. Era o Medeiros com uma vela, com que alumiava os outros.
— Tudo resolvido – disse entrando.
Atrás dele entrava o Carvalho, dizendo também:
— Está tudo decidido.
Godofredo olhava-os, pálido, a tremer, de nervoso.
— Não te bates – disse o Medeiros pondo o castiçal sobre a mesa.
Que te disse eu logo? – exclamou Carvalho, radiante. Tudo tinha de ficar na
mesma, a não haver senso comum.
E foi desta vez ainda, o Medeiros, que explicou a conferência. O Nunes Vidal
portara-se com um cavalheirismo extraordinário. Começara pôr dizer que se
estivesse convencido que havia ali uma traição do Machado, um crime de adultério
com a mulher do seu sócio, ele não se meteria nisso. Dissera-lhes que se eles
exigiam o duelo, eles tinham normas de aceitar tudo, sem discutir, hora, e sítio, e
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estocadas. E, chegado ao terreno, Machado tomaria a espada, deixar-se-ia ferir,
como um gentleman. Mas então Nunes apelara para eles, como homens de honra e
de bom senso.
— Não foi isto que ele disse, Carvalho?
— E homens de sociedade – acrescentou Carvalho.
— Justamente, e homens de sociedade. Apelou para nós, se nós devíamos
consentir um duelo, quando não havia motivos, e quando o Machado, numa carta
que o Nunes me deu a ler, lhe afirmava sob a sua sagrada honra de homem, que a
sra. dona Ludovina era inocente, perfeitamente inocente. Não houvera mais que
umas cartas tolas trocadas, sem importância, e aquele abraço... Ora agora, dizia o
Nunes: o que faz um duelo? Compromete a sra. dona Ludovina, faz crer ao público
que houve realmente adultério, torna ridículo o sr. Alves e prejudica a firma
comercial...
— E o dilema do Nunes – lembrou do lado o Carvalho.
— É verdade, o dilema – gritou Medeiros, recordando-se. – O Nunes
apresentou este dilema: os senhores pedem a espada, se houve adultério o duelo à
espada é ainda pouco; se o não houve é demais. De maneira que resolvemos que
não houvesse duelo...
Godofredo não dizia nada. Mas uma sensação de paz e de serenidade
invadia-o silenciosamente. Aquelas grandes afirmações do Nunes, um rapaz de
tanta honra, quase o convenciam de que realmente não houvera senão um
galanteio. Ele mesmo o dissera: se estivesse convencido que havia adultério, não se
teria metido nisso. E não, que era um verdadeiro fidalgo. Ora se era um simples
galanteio não havia realmente motivo para que se batessem, e isto dava-lhe um
alívio, mil idéias abomináveis desapareciam, outras surgiam, de repouso, de
tranqüilidade, talvez de felicidade ainda. Decerto não perdoaria a sua mulher aquele
simples galanteio. Não tornaria a falar ao Machado. Mas a vida ser-lhe-ia menos
amarga pensando que eles realmente o não tinham traído.
Aquilo consolava o seu orgulho. E mostrava que era um marido rígido, e de
honra – expulsando sua mulher só pôr um simples olhar trocado. Assim a sua honra
estava salva, o seu coração sofria menos.
E agora invadia-o uma alegria, de sair enfim daquelas idéias violentas de
morte, em que andava envolvido, e reentrar na rotina da vida, no seu negócio, nas
suas relações, nos seus livros. Mas então, à idéia da rotina, da casa comercial, uma
idéia tomou-o, encheu-o de perturbação.
— E o Machado? Eu não posso falar mais ao Machado!
Mas Medeiros tinha discutido esse ponto com o Nunes. E fora o Nunes que
tivera uma idéia de bom senso. Aqui está o que o Nunes dissera. Desde o momento
em que não há motivo para duelo, não há motivo para que se interrompam as
relações comerciais...
Godofredo protestou:
— Então há-de amanhã entrar pelo escritório?
— Quem te diz amanhã, homem? Aqui está o que disse o Nunes, é o que faz
o Machado. Amanhã escreve-te uma carta oficial, para que o guarda-livros veja, e o
caixeiro, dizendo que vai para fora da terra, com a mãe, e que te pede que olhes
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pela casa, etc... Depois, ao fim de um ou dois meses, volta, vocês cumprimentam-
se, sentam-se cada um a sua carteira, falam no que têm que falar acerca do
negócio, e acabou-se. O que não têm é relações íntimas, escusam mesmo de se
tratar pôr tu.
E como Godofredo olhava o chão, refletia, os dois caíram sobre ele.
— Tapas assim a boca ao mundo – disse o Carvalho.
— Salvas-te do ridículo – disse o Medeiros.
— Manténs a firma intacta e unida...
— Livras tua mulher de má fama!...
— Conservas um sócio inteligente e trabalhador.
— E talvez um amigo!
Então uma fadiga invadiu Godofredo. Os seus nervos relaxaram. Veio-lhe um
desejo de não pensar mais naquele desgosto, não falar mais nisso, dormir tranqüilo;
e cedeu, abandonou-se, perguntou com a voz do coração:
— Então vocês acham, em sua honra, que assim tudo fica bem?
— Achamos – disseram ambos.
Godofredo apertou a mão a um, depois ao outro, comovido, quase com
lágrimas:
— Obrigado, Carvalho. Obrigado, Medeiros.
Depois, para fazer logo tapar as bocas do mundo, foram ao Passeio Público –
onde havia essa noite iluminação e fogo preso, indo primeiro tomar sorvete ao
Martinho.
CAPÍTULO VIII
Então começou para Godofredo uma existência abominável.
Tinham passado semanas e Machado voltara, ocupava agora, como sempre,
a sua carteira no gabinete de reps verde. Godofredo temera sempre aquele
encontro, não julgara possível que eles pudessem passar dias, um ao lado do outro,
manejando os mesmos papéis, tocando-se pôr mil interesses comuns, com a idéia
daquele dia nove de julho, aquele encontro sobre o sofá. Mas pôr fim tudo se
passara convenientemente, e não havia atritos.
Na véspera da sua chagada Machado escrevera-lhe uma carta, polida, quase
humilde, em que se percebia mesmo certo tom de tristeza; dizia-lhe que ia voltar,
que no dia seguinte apareceria no escritório, e que esperava que toda a idéia do
passado desaparecesse nas suas novas relações, e que estas fossem sempre
dominadas pôr uma respeitosa cortesia; acrescentava que compreendendo porém
as dificuldades desta nova situação, ele só a aceitava pôr algum tempo para salvar a
dignidade e fazer calar a maledicência, reservando-se o deixar a firma logo que o
pudesse fazer sem escândalo. Nesse dia, Godofredo foi mais cedo ao escritório, e
fez uma coisa hábil: disse ao guarda-livros, diante do caixeiro, que houvera entre
ele e o sr. Machado certas desinteligências, e que as suas relações tinham sofrido
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modificações.. Estas palavras vagas tinham pôr fim evitar a surpresa, os
comentários do guarda-livros, quando os visse agora, defronte um do outro, secos,
corteses, e tratando-se pôr senhor Alves e senhor Machado. O guarda-livros
murmurou que sentia muito; e dali a instantes Machado apareceu. Foi um momento
desagradável. Durante todo o resto do dia mal puderam dar atenção ao que faziam:
e o menor movimento do Machado, o puxar do lenço, um passo ao soalho
despertavam em Godofredo toda a sorte de lembranças desagradáveis. Uma ou
duas vezes atravessou-o um desejo violento de o vituperar, acusá-lo de todas as
tristezas que agora enchiam a sua vida: mas conteve-se, apenas se vendo
impotente para engolir um ou outro suspiro.
A atitude do Machado foi respeitosa e triste. E quase não trocaram uma
palavra. O quer que fosse de angustioso pesava no ar. E o estúpido do caixeiro
tornava todo este embaraço mais saliente, teimando em andar em bicos de pés,
como numa casa onde há um morimbundo.
Outros dias iguais repetiram-se; mas pouco a pouco a presença do Machado
deixou de impressionar Godofredo. Já o podia ver sem pensar no sofá. Estabeleceu-
se uma rotina. O que entrava pôr último dava os bons-dias polidos ao outro – e
depois só falavam em assuntos de negócio; quando não havia que fazer, o Machado
saía, abandonando o gabinete a Godofredo, que ficava lendo os jornais no sofá. E
isto continuou regular, sem atritos, porque Machado não tinha senão, no fundo,
estima pelo bom Alves, e Alves, a seu pesar, conservava um fundo de simpatia pôr
aquele rapaz que quase educara. Debalde se dizia a si mesmo que fora do negócio
era um traste: o simples tom da sua voz, os seus bonitos modos atraíam-no a seu
pesar.
Assim foi que, quando vieram os primeiros dias de outubro, toda aquela
tumultuosa agitação que se fizera na vida de Godofredo, e que o trouxera semanas
como sonâmbulo, se calmou. Ludovina estava na Ericeira com o pai: e a lembrança
daquele momento em que a vira no sofá amarela, que ao princípio fora no coração
do pobre Godofredo como uma chaga viva que o menor movimento, o menor atrito,
irritava – era como uma ferida ainda, mas cicatrizada, causando apenas uma dessas
surdas e vagas dores a que o corpo se habitua. O choque desagradável do encontro
com o Machado passara também; no escritório da rua dos Douradores estabelecera-
se agora uma rotina de relações frias, corteses, toleráveis. E agora, mais calmo,
Godofredo podia reparar mais, sentir mais todos os detalhes daquela vida de viúvo,
que devia ser agora a sua para sempre – e só descobria desconforto e tristeza. Ao
princípio pensara em deixar a casa da rua de São Bento, ir viver para o hotel; mas
depois receou a opinião, a maledicência. Ninguém sabia que ele estava separado de
sua mulher. Supunha-se que ela estava a banhos, com o pai, e que Godofredo a ia
ver de vez em quando. E ele tinha pôr todos os meios de manter esta ficção. Além
disso, que havia de fazer às duas criadas? Porque persistia na idéia de manter o
silêncio em torno da sua desgraça, conservando sob chave, ligadas a ele pelo
interesse duma boa situação, aquelas duas criaturas que a conheciam. Ficara pois
em São Bento, e a sua existência, ali, era desgraçada. Um a um os confortos que
ele tanto amava tinham desaparecido – porque as duas mulheres, sem ama que as
vigiasse, tendo percebido que o senhor as não despediria, dependia da língua delas,
estavam inteiramente relaxadas. A tortura do dia começava para Godofredo às nove
horas. Era toda uma tortura para que lhe trouxessem água para a barba: nunca
havia água quente; a cozinheira, que se levantava agora tarde, não tinha o lume
aceso às dez horas. Depois era outra luta para obter o almoço, e quando vinha, feito
à pressa, sem cuidado, sem vaidade, quase o enjoava. Desde agosto que todas as
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manhãs lhe apareciam os mesmos ovos quentes – ora crus, ora cozidos de todo – e
os mesmos bifes córneos, negros, como duas liras de couro tisnado. Ele sentava-se,
olhava com horror para o guardanapo sujo. Ai, onde estava o tempo em que
Ludovina ela própria lhe is fazer o seus ovos quentes, pelo relógio de areia? Então
havia sempre flores na mesa, e o seu Diário de Notícias e o seu Jornal do Comércio
estavam ao lado do prato, ele desdobrava-os, sentindo em redor o rumor das saias
dela, o calor da sua presença, o vago aroma de vinagre de toilette.
Quando voltava às quatro horas, os restos deste triste almoço ainda estavam
sobre a mesa, com o molho dos bifes seco no prato, um resto de chá no fundo da
chávena, — tudo sujo e triste sob o vôo das moscas. Pelo chão ficavam migalhas de
semanas. Todos os dias se quebrava alguma coisa. E ao fim do mês eram contas
enormes, um desperdício, um excesso absurdo de gastos. Já duas vezes encontrara
homens na escada, ou visitas para as criadas. A sua roupa suja arrastava pelos
cantos – e, quando ele se enfurecia, entrava na cozinha como uma bomba, dava
berros, as duas criaturas não respondiam, fingiam uma compunção mais odiosa
ainda do que uma resposta insolente. Baixavam a cabeça, davam com respeito uma
desculpa absurda, depois ficavam dentro rindo, e bebendo copinhos de vinho.
Mas o pior eram as noites solitárias. Fora sempre um homem muito caseiro,
que às nove recolhia, calçava os seus chinelos e gozava o seu interior.
Ordinariamente, na sala, Ludovina tocava um bocado de piano; ele mesmo ia
acender as luzes, com a devoção de quem prepara um altar, porque adorava a
música; e vinha acabar o seu charuto, numa poltrona, ouvindo-a tocar, vendo a
massa negra do seu cabelo que lhe pendia nas costas, numa graça de desalinho e
de abandono. E havia certas músicas que lhe davam a sensação de Ter o coração
acariciado pôr alguma coisa de aveludado e doce, que o fazia desfalecer: sobretudo
uma certa valsa Souvenir d’Andalousie... Há quanto tempo ele a não ouvia.
Enquanto durou o verão, todas as tardes dava o seu passeio: mas o
espetáculo mesmo das ruas trazia-lhe à memória a sua felicidade perdida. Era uma
varanda aberta, com uma senhora de vestido claro tomando o fresco, que lhe
recordava a sua casa deserta, onde não havia um rumor de saia; ou era ao
anoitecer, uma janela deixando sair a claridade discreta dum serão tranqüilo, e
donde vinham sons de piano... Ele, fatigado, com os botins empoeirados, sentia
então, dum modo agudo e doloroso, a evidência da sua solidão.
Mas as noites piores eram as que passava no Passeio Público: levava-o lá o
horror de estar só; mas aquela solidão entre gente, sob árvores alumiadas a gás,
vendo tanto homem levando uma mulher pelo braço, era-lhe mais dolorosa que a
sua sala deserta e fria, com o seu piano fechado.
Depois foi pior quando começou o inverno. Novembro foi muito chuvoso Ele
voltava do escritório, e, depois do jantar ordinário que comia à pressa, ficava, com os
pés nos chinelos, aborrecendo-se e errando da sala para o quarto. Nenhuma
cadeira, pôr mais confortável, lhe dava a satisfação de repouso e de bem-estar; e os
seus livros queridos pareciam ter perdido subitamente todo o interesse, desde que
não a sentia ao seu lado, costurando à mesma luz a que ele lia. E um pudor, um
escrúpulo, uma vaga vergonha impediam-no de ir aos teatros.
Além disso uma inquietação tomava-o constantemente, desde que ela voltara
da Ericeira e que a sabia ali na mesma rua, a dez minutos de caminho daquela casa
onde ele sofria todas as melancolias da viuvez. Vinte vezes pôr noite, o seu
pensamento fazia esse caminho, subia as escadas do Neto, penetrava na sala que
ele conhecia, com a sua chaise-longue que ela se costumava sentar quando iam ver
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o Papá; e vinha-lhe um ciúme, um desespero pensando que a essa hora ela estaria
lá sentada, com uma costura ou um livro na mão, tranqüila, sem pensar nele.
O Neto, à volta da Ericeira, viera vê-lo. E cada palavra daquele maroto fora
uma punhalada. Tinham gozado muito na Ericeira – não viam ninguém, enfim,
porque as circunstâncias da Ludovina não permitiam folias e pic-nics – mas tinham
passado bem em família. Ludovina tomara banhos; estava forte, gorda, e nunca ele
a vira com tão boa cara; tinha-se aplicado muito ao piano, e parecia resignada e de
bom humor. E depois de lha pintar assim tão apetecível saíra, sem dizer a palavra
pôr que Godofredo ansiava – uma simples palavra: fazer as pazes.
Porque o desejava ardentemente. Somente não queria das o primeiro passo,
pôr orgulho, pôr dignidade, pôr um resto de amuo e de ciúme. Mas entendia que
Neto é que devia impor essa reconciliação – e começava agora a odiá-lo, vendo que
ele queria conservar a filha em casa. Percebia bem. O patife não desgostava dos
trinta mil réis, que lhe vinham assim todos os meses. Pensou mesmo em lhe retirar a
mesada. Um sentimento de cavalheirismo impedia-lhe de o fazer.
E o que o torturava não a ter visto ainda. Debalde passava e repassava pela
casa de Neto; debalde ia aos domingos à missa, à igreja dela; debalde ia passar
pela casa da modista dela, uma dona Justina no largo do Carmo, com a esperança
de a ver de lá sair, ou entrar. Nunca a encontrou até dois dias antes do Natal. Estava
nessa manhã, numa tabacaria ao alto do Chiado, acendendo o charuto, quando se
voltou, a viu pelas costas. Ficou tão perturbado, tão trêmulo, que em lugar de correr
a segui-la, a vê-la, como o seu desejo reclamava furiosamente, recolheu-se para o
fundo da loja, esteve ali a hesitar, a sentir bater o coração, com o ar pálido e
estúpido. De repente quis vê-la ainda uma vez, mas debalde subiu, desceu o
Chiado, não a encontrou; tinha-a perdido, e foi para casa com uma saudade imensa,
tendo diante dos olhos toda a noite a figura alta, vestida de preto, com uma flor
amarela no chapéu.
O encanto porém quebrara-se, e uma semana depois, ia descendo a Calçada
do Correio, avistou-a que subia, com a irmã. Foi a mesma perturbação, o mesmo
embaraça, a mesma idéia absurda de se esconder aos pulos, decidiu-se ao
encontro: afirmou o passo, deu um leve puxão aos punhos, aprumou-se, marchou. E
pelo canto do olho, tremendo todo, viu-a baixar os olhos e corar, perturbada
também.
Foi para casa num extraordinário estado de exaltação. Sentia que a adorava,
e o coração desfalecia-lhe à idéia deliciosa de a apertar outra vez nos braços. E ao
mesmo tempo era um ciúme furioso e vago, ciúme dos outros homens, da rua, dos
passos que ela dava, das palavras que poderia dizer a outros, dos olhares que
poderia dar a outros. Queria-a para si, ali, debaixo de chave, entre aquelas paredes
que eram suas, na prisão dos seus braços. E não pôde parar, em casa, saiu era
quase meia-noite, foi olhar as janelas do Neto. Depois voltou, escreveu-lhe uma
carta absurda, seis páginas de paixão a que se misturavam ainda acusações.
Rasgou-a, ao relê-la, achando-lhe muitas palavras e insuficientemente amorosa.
Não dormiu nessa noite. Via constantemente a sua bela face corar, as pálpebras
baixarem-se-lhe. E estava como disse o Neto, mais cheia, mais bela. Oh, que mulher
divina! E era sua, a sua mulher! Positivamente aquilo não poderia durar, aquela vida
infeliz e solitária!
Todo o janeiro passou sem ele a tornar a ver – e a sua paixão crescia. Agora
esperava um acaso que os ligasse; cada manhã imaginava que o dia não se
passaria sem ele a ver, e estava decidido a falar-lhe. Uma vez já encontrando o
Neto, falara vagamente nos inconvenientes daquela separação. O Neto encolhera os
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ombros, com um ar de melancolia e de dor paternal. Era bem triste, mas que se
havia de fazer? Depois, uma noite no Murtinho tornou a falar-lhe. E o Neto disse que
refletira, e que estava decidido a ir fazer com a filha uma viajata até o Minho, para
evitar falatórios. Godofredo ficou assombrado, não se conteve:
— Mas não há-de ser à minha custa.
E voltou-lhe as costas, veio para casa furioso. Eram sete horas da noite, e
havia um luar claro e frio. Ele chegava à sua porta, quando deu de rosto no passeio
com Ludovina, que recolhia, acompanhada pela irmã. Instintivamente, desceu
vivamente do passeio, afastou-se; mas logo voltou, com uma inspiração, apressou,
chamou:
— Ludovina!
Ela parara, voltou-se, espantada. Estavam junto duma loja de mercearia, na
luz do gás, e ficaram um defronte do outro, sem achar uma palavra, enleados, com
todo o sangue nas faces. Godofredo estava tão perturbado que nem cumprimentou
a cunhada, nem sequer a viu. E as suas primeiras palavras foram absurdas.
— Então diz que vais para o Minho?
E ele, numa voz atrapalhada:
Ludovina olhou-o espantada, depois olhou para a irmã.
— Para o Minho? – murmurou.
E ele, numa voz atrapalhada:
— Disse-me teu pai... Eu achei que era a coisa mais ridícula!... Oh, Teresinha,
desculpe, que a não tinha visto... Tem passado Bem? E então tu, Ludovina, tens
passado bem?
Ela encolheu os ombros:
— Assim, assim...
Ele devorava-a com os olhos, achando-a adorável, naquela capa de veludo
que ele lhe não conhecia, e que devia ser nova.
— Diz que te divertisse muito.
Ela teve um sorriso amargo:
— Eu? Boa... – E acrescentou com um vago suspiro: - O que me tenho é
aborrecido e chorado.
Um amor, uma piedade imensa invadiu-o E com a voz trêmula, quase
chorando:
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— Ora essa, ora essa...
Depois, acrescentou ao acaso, já num tom de intimidade, como se desde
esse momento a reconciliação estivesse feita:
— Pois aquilo lá em casa não vai bem... A Margarida tem-se desleixado
muito. E é verdade, que te queria perguntar... Como diabo se acende o candeeiro de
escrever, que não tem sido possível pô-lo em ordem?
Era riu, Teresa também. Ela tinha percebido bem, de ora em diante era outra
vez a mulher de Godofredo. Disse:
— Se queres eu lá vou ensinar a Margarida a arranjar isso.
Todo ele foi um grito de alegria:
— Pois vem, pois vem! A Teresinha pode vir também. É um instante.
E subiu adiante, galgou a escada, abriu a porta, desfalecendo de
voluptuosidade ao ouvir o rumor das sais dela pela escada acima. Ouvindo vozes,
Margarida tinha corrido, e ao avistar as senhoras ficou embatucada.
—Traga cá esse candeeiro de escrever... – gritava atarantadamente
Godofredo.
Ludovina e a irmã tinham penetrado na sala de jantar e conservavam-se de
pé, de chapéu, com as mãos nos regalos. Godofredo, no entanto, como parvo,
correra à cozinha, depois entrara no quarto, depois precipitara-se a acender as luzes
da sala das visitas, onde não havia gás. Ludovina no entanto olhava a sala de jantar,
o aparador, escandalizada já daquele desleixo que ali se sentia – parando a
contemplar indignada uma linda fruteira de cristal que tinha uma asa quebrada.
Godofredo veio encontrá-la assim.
— Ai, isso vai aí uma destruição que nem tu imaginas. Olha, vem cá dentro,
vem ver, vem ao nosso quarto.
Ele mesmo entrou, ela teve um rubor de virgem que penetra na câmara
nupcial; e, apenas entrou, ele apoderou-se dela, arrastou-a para a alcova do
lavatório, e ali no escuro, violentamente, freneticamente, beijou-a pelos olhos, pelo
cabelo, pelo chapéu, fartando-se da doçura que ela trazia do frio da rua.
Ela disse baixo:
— Não, não, olha a Teresa!
— Manda-a embora, eu vou levá-la – murmurou ele. – Tu ficas, amor, nunca
mais nos separam.
Ela consentiu, num beijo.
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CAPÍTULO IX
No dia seguinte, num momento de enternecimento, querendo dar à sua
felicidade um meio mais poético – e como o tempo estava adorável -, Godofredo
propôs o irem estar uns dias a Sintra. E aí foi uma lua-de-mel. Estavam na
Lawrence, tinham um pequeno salão para eles sós; levantavam-se tarde, Godofredo
quis champagne ao jantar, e beijavam-se às escondidas debaixo das árvores. E
Godofredo não a deixava um instante, ávido de gozar de novo aquela intimidade,
que ele julgava perdida, sentindo um prazer infinito em a ver apertar o colete,
encontrar um chambre dela sobre uma cadeira, ou assistir-lhe ao penteado.
Ao fim de quatro dias voltaram; e esta lua-de-mel prolongou-se ainda em
Lisboa, cheia e larga, sem considerações pôr despesas, com carruagem da
companhia, e camarote em São Carlos. Godofredo queria mostrar-se pôr toda a
parte com ela, para tapar as bocas do mundo. Em São Carlos mesmo tomava
sempre uma frisa, bem em evidência, fazendo exposição da sua felicidade
doméstica. E como Ludovina, com os ares da Ericeira, voltara mais forte, mais cheia,
magnífica na sua forte beleza de trigueirona forte, os homens na platéia olhavam-na
muito; havia sempre algum binóculo fixo sobre ela.
— Lá estão a olhar – dizia Godofredo. – Estão pasmados de nos ver juntos...
Pois é para que saibam.
E à frente do camarote puxava devagar os punhos, sorria à sua Lulu.
Numa dessas noites dava-se a Africana, pela primeira vez. E Ludovina, que
durante toda a representação estivera torturada com um par de botinas novas, quis
sair no meio do quinto ato; e ele cedeu logo, apesar do prazer que lhe davam os
gorgeios patéticos da Alteroni, sob as ramagens das mancenilheiras, à luz trágica da
lua cheia. Agasalhou-a, deu-lhe o braço: - e no peristilo, a um canto, esperavam que
se aproximasse a carruagem da companhia, quando, de repente, apareceu o
Machado, de charuto na boca, enfiando o paletot. Ele decerto não os viu porque
continuou, através do peristilo, assobiando, com o seu ar um pouco gingado, de
gravata branca, acabando de abotoar o paletot . Mas de repente deu com eles! Um
momento pareceu hesitar, ficou enleado, pálido, com os dedos esquecidos nos
botões. Depois decidiu-se, tirou profundamente o chapéu. De dentro da gola branca
da saída de baile, ela fez um ligeiro movimento de cabeça, baixou os olhos, séria,
impassível, imóvel, com a sua grande cauda azul apanhada na mão. E Godofredo,
depois de hesitar também um instante, terminou pôr dizer alto um olá Machado, boa
noite! Machado saíra vivamente, para fora.
No dia seguinte, quando Godofredo entrou no escritório, Machado já estava à
sua carteira. Depois dos cumprimentos secos e usuais, Godofredo esteve um
momento remexendo os papéis, lendo a correspondência; depois deu um olhar vago
e distraído ao jornal; evidentemente estava preocupado, com o pensamento noutra
coisa; e de repente recostou-se, fez estalar os dedos, perguntou ao Machado:
— Então ontem que tal lhe pareceu a Alteroni?
Era a primeira vez que lhe dirigia uma palavra – estranha aos negócios da
firma! Machado ergueu-se um pouco nervoso para responder:
— Gostei muito... E você?... Boa voz, hein?
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E estas banais palavras, apenas soltas, foram como portas dum dique que se
abre. Godofredo erguera-se também – e foi um fluxo de palavras, dum e doutro, ao
princípio hesitantes, depois tomando calor, aproximando-os um do outro, formando
uma viva corrente de simpatia. Era como dois amigos que se encontram depois
duma ausência; e cada um reconhecia no outro aquilo que nele sempre estimara:
com um trivial gracejo do Machado sobre o tenor, Godofredo ia rebentando a rir – e
uma observação de Godofredo sobre o uníssono das rabecas interessou
imensamente o outro, fê-lo pensar que o Godofredo era realmente um grande
entendedor de música. Depois Godofredo falou da estada em Sintra. E um momento
conversaram sobre Sintra, dizendo cada um os sítios que lá preferia, a impressão
que eles lhe davam – como se depois daquela longa separação sentissem a
necessidade de conferirem as suas idéias e os seus gostos respectivos. Depois,
como Machado tinha de sair mais cedo – o shake-hands que deram à despedida foi
profundo, ardente, duma reconciliação completa, unindo-os outra vez e para sempre.
Então, outra vez, a vida de Godofredo foi calma e feliz. Na casa da rua de
São Bento entrara de novo a ordem e a alegria; os ovos ao almoço já não apareciam
crus ou duros; já à noite o Souvenir d’Andalousie dava a Godofredo aquele não sei
quê dos vergéis de Granada, e a todo o momento a voz dela, o frou-frou dos
vestidos dela banhavam de alegria o seu coração. E o inverno tinha assim passado,
passava a primavera, estava-se nos primeiros calores de março quando, uma
manhã, ao sair, ao passar no corredor, avistou entre portas a Margarida que dava
sub-repticiamente, e em segundo, uma carta à senhora. Foi como um rochedo que
lhe arremessassem contra o peito. Mal atinava com o fecho da porta; imaginou logo
outro homem, outro amante, e a sua felicidade, aquela felicidade tão laboriosamente
reconstruída, de novo rachada pôr todos os laços. Sentiu um terror, como se visse
vítima dum fado, dum fado terrível e bestial, da fatal incontinência da fêmea. Pensou
que seria outra vez o Machado; e passou-lhe nos olhos uma onda de sangue,
pensou que desta vez não haveria nem conferências, nem consultas, nem
testemunhas, mas que entraria no escritório, e lhe meteria à queima-roupa uma bala
no coração.
E sentiu-se tão agitado que não supôs poder tolerar o aspecto do Machado;
não foi ao escritório, vagueou pela Baixa, tendo sempre diante dos olhos a mão da
criada, o papelinho branco, o ar embaraçado da Ludovina. Entrou em casa, sombrio
e taciturno. E não podia estar quieto , ia duma sala a outra, atirava com as portas,
com o ar dum homem que sufocava, sentindo em volta de si o ar carregado de
engano e de traição; Ludovina espantada terminou pôr lhe perguntar o que tinha ele.
— Nervos – respondeu com mau modo.
E daí a momentos, cedendo a um impulso furioso, voltou-se para ela,
declarou que estava farto de mistérios, que aquela vida era um inferno, e que queria
saber que papel era o que lhe tinha dado a Margarida.
Ela olhou-o, pasmada daquela violência, daquela voz estridente, levando
instintivamente a mão ao bolso do robe de chambre.
Ele seguira-lhe o movimento:
— Ah, tens aí a carta! Deixa ver...
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Ela então mostrou-se ofendida com aquela desconfiança. Recomeçavam
outra vez as suspeitas, as questões? O que, não podia ela receber um papel sem
ele querer meter o nariz!
Ele, pálido, com os punhos fechados, gritou:
— Ou me dás a carta, ou te racho!
Ela fez-se pálida, chamou-lhe malcriado, caiu para o sofá a chorar, com as
mãos no rosto.
— Dá-me a carta! – gritava ele em bicos de pés. – Dá-me a carta! E desta vez
não há-de ser como da outra vez. Vais para um convento, mato-te!
E não esperou a resposta, arremessou-se sobre ela, torceu-lhe o braço,
rasgou a algibeira do robe de chambre, apoderou-se da carta. Mas não podia
perceber a letra: era uma garatuja, sem ortografia, num pedaço de papel pautado.
Começava minha querida senhora; vinha assinada Maria do Carmo, e falava-se lá
de esmola, do pequenito que estava melhor do sarampo e de orações que não
deixariam de se rezar pôr aquela boa esmola.
Trêmulo, murcho, humilhado, com o papel na mão, ele veio sentar-se ao lado
de Ludovina que chorava entre as mãos, e passando-lhe o braço pela cintura,
balbuciou:
— Está bem, vejo que não é nada, desculpa, dize lá o que é.
Ela repeliu-o, pôs-se de pé, toda ofendida. Estava satisfeito? Tinha lido a
carta, hein? Era dum homem, não era?...
Ele balbuciou, envergonhado:
— Mas também todos esses mistérios...
E como ela, bela e de pé, limpava os olhos engolindo os soluços, ele não se
conteve, teve necessidade do seu perdão, pôs-se de joelhos, e com as mãos postas,
murmurou:
— Perdoa, Luluzinha, foi tolice minha...
Com um outro soluço ainda maior, ela bateu-lhe com a ponta dos dedos na
face...
E ele então quase chorou também, beijou-lhe as mãos, abraçou-lhe os
joelhos, terminou pôr se erguer agarrado às saias dela, encheu-lhe o pescoço de
beijos. E ainda na comoção dos dois, entre abraços, ela contou-lhe a história das
esmolas secretas que fazia a uma pobre rapariga que conhecera na Ericeira, que um
patife seduzira e abandonara com dois filhos, um ainda de mama...
— Mas para que fizeste mistério, meu amor? – continuava ele, comovido e
apaixonado.
Ela então confessou que já lhe dera mais de cinco mil réis, - e tinha que ele
achasse extravagância...
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E a alegria que ele sentia era tão viva que exclamou:
— Qual extravagância! Dá-lhe outros cinco... É pôr minha intenção:
Tudo terminou num beijo.
E então Godofredo sentiu-se envergonhado da sua cólera dessa man
contra o Machado. Lá pensara outra vez em matar o Machado! E agora sentia a
necessidade de o rever, apertar-lhe profundamente a mão – sentindo nesse instante
pôr ele uma amizade maior, não sei que reconhecimento vago que o enternecia.
Mas no outro dia, quando entrou no escritório, não se conteve, sem motivo
abraçou pela conta o Machado. E o outro correspondeu ao abraço, sem estranhar
esta efusão, mas com um modo, um ar de enternecimento, um abandono triste que
surpreendeu Alves, e a sua surpresa foi maior quando viu que Machado tinha os
olhos vermelhos, como se tivesse chorado.
— É minha mãe que está muito mal – disse o Machado, respondendo à
interrogação do seu sócio.
E Alves, com a sua alegria cortada pôr aquela dor, só pôde murmurar:
— Diabo!
Era o diabo, era! E o médico não dava esperança. A pobre senhora sofria
duma complicação de doenças de fígado, de bexiga, de coração, que pareciam
resolver-se agora, num desarranjo total da vida. Na véspera tinha tido um desmaio
de duas horas. Ele julgara-a morta: e nessa manhã tinha um alívio, extraordinário, de
que ele desconfiava. E o pobre Machado suspirava dizendo isto. O amor da mãe
fora até aí o seu sentimento mais vivo: eles tinham vivido ambos, sempre juntos; pôr
causa dela ele nunca quisera casar, e agora aquela perda parecia tirar da sua vida
tudo o que lha tornava cara...
— Deus não há-de querer uma desgraça – murmurou Godofredo comovido...
O Machado encolheu os ombros, e daí a instantes saiu, para voltar para junto
da sua pobre doente.
Todos os dias então, três, quatro vezes, Godofredo ia à casa de Machado
saber notícias. A pobre senhora piorava: felizmente não sofria, e os seus últimos
instantes eram consolados pôr aquele amor em que o filho a envolvia, não se
arredando um instante do leito dela, recalcando a dor, escondendo a palidez,
animando-a, falando de planos e de idas para o campo, e gracejando como nos
bons tempos. Depois uma tarde Godofredo chegou a saber notícias. A criada
apareceu com o avental nos olhos. A senhora morrera havia uma hora, como um
passarinho. Ele entrou, Machado caiu-lhe nos braços, perdido de choro.
Godofredo não o deixou mais, Passou essa noite com ele: ocupou-se do
enterro, dos convites, da compra dun terreno no Alto de São João. E ao outro dia, na
solenidade dos pêsames, os amigos da casa davam-lhe a ele apertos de mão, tão
sentidos e tão mudos, como ao próprio Machado – reconhecendo, nele, mais que
um irmão de Machado, quase um pai.
O enterro foi concorrido; havia vinte carruagens; Godofredo levava a chave do
caixão, e no cemitério dirigiu tudo, convidou os amigos mais íntimos para as borlas
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do esquife, cochichou com os padres, prodigalizou-se, e, quando o caixão desceu à
cova, as únicas lágrimas que houveram foram as dele.
No dia seguinte Machado partiu para Vila Franca para casa duma tia; e
Godofredo foi levá-lo à estação, ocupou-se da sua bagagem, chorou outra vez ao
abraçá-lo.
Passados quinze dias Machado voltou, ocupou outra vez a sua carteira no
gabinete de reps verde. Mas não parecia o mesmo. Estava mais sereno, sim, mas
tão triste no seu luto, que Godofredo, sempre romântico, pensou de si para si que
aqueles lábios nunca mais sorririam.
Depois, vendo-o demorar-se à carteira, sem vontade de ir para casa – para
casa agora vazia, para o jantar solitário -, veio-lhe um dos seus bruscos impulsos de
bondade, esqueceu tudo, abriu os braços ao Machado:
— O que lá vai! Venha você daí jantar conosco!
E nem o deixou hesitar, quase lhe enfiou o , paletot, arrastou-o pela escada
abaixo, chamou uma tipóia, atirou-o para dentro, levou-o em triunfo à rua de São
Bento. Machado todo o caminho não disse nada, tremendo àquele encontro,
palidecendo já, procurando uma palavra natural para lhe dizer... Logo na escada
sentiram o som do piano, e daí a instantes Godofredo, metendo a cabeça através do
reposteiro da sala, exclamava radiante:
— Ludovina, trago-te aqui um convidado.
Ela erguera-se, e achou-se diante do Machado, que se curvava
profundamente, disfarçando a sua perturbação na profundidade daquela cortesia.
Ela fizera-se escarlate – mas a sua voz foi clara e firme, quando lhe estendeu a mão,
dizendo:
— Como está, sr. Machado? Então chegou bem?
Ele balbuciou umas palavras, e ficou de pé, esfregando as mãos, devagar –
enquanto Ludovina dissipava aquele embaraço, com uma infinidade de palavras,
contando a Godofredo uma infinidade de palavras, contando a Godofredo uma visita
duns certos Mendonça, e falando do Mendonça, e do Mendonça pequeno,
vivamente, nervosa e com as orelhas a arder.
Depois, para dar as suas ordens, apressou-se a sair.
Quando ficaram sós, Godofredo teve esta palavra profunda:
— Isto, quando há boa educação, tudo se vem a acabar bem!
Daí a pouco ela voltou, mais serena, tendo decerto posto na face uma
camada de pó-de-arroz. Machado sentara-se no famoso sofá amarelo, e quis-se
erguer, dar-lhe esse lugar. Mas ela não consentiu, sentou-se ao lado, na poltrona
amarela, e, como se quisesse emendar um esquecimento, apressou-se a dizer dum
fôlego, como um recado:
— Eu senti muito a perda que o sr. Machado...
Ele curvava-se, murmurando uma palavra.
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E Godofredo acudiu, exclamando:
— Nisso não se fala agora! Devem-se aceitar os decretos de Deus, acabou-
se.
Mas uma senhora passara sobre a face comovida de Machado, e um bafo
morno de tristeza pesou na sala. E foi esta tristeza que, subitamente, os pôs à
vontade. Era como se o Machado, com aquele luto pesado, aquela saudade da mãe,
aquele túmulo ainda recente, não fosse o mesmo que ali bebera copos de vinho do
Porto, com ela nos braços, sobre o sofá amarelo; mas um outro Machado, um rapaz
grave, com uma dor que era necessário consolar, envelhecido, e para sempre
incompatível com coisas de amor. Ela achava-o mudado, e olhando-o não se
recordava de como ele era noutros tempos; ele também a achava tão estranha,
como se fosse a primeira vez que viesse àquela casa. O marido esquecia, eles
esqueciam ambos também. E terminaram pôr se olhar, falar, naturalmente, sem
embaraço, ela dizendo “sr. Machado”, ele respondendo “vossa excelência” frios,
tendo para sempre acabado de estremecer um defronte do outro, como dois carvões
apagados.
E o jantar foi tranqüilo, calmo, íntimo, quase alegre.
Então a vida continuou, desenrolando-se, banal e corredia como ela é. O luto
de Machado acabou, ele voltou aos teatros, teve outras vezes raparigas espanholas
e namorou senhoras. Depois o Neto morreu, de repente, de apoplexia, dentro dum
omnibus: e a Teresinha veio viver com a irmã. Ao fim de dois anos Machado casou,
com uma menina Cantanhede, pôr quem ele concebera uma paixão absurda,
frenética, que não podia esperar, o fez concluir namoro, enxoval, licenças e
casamento, tudo dentro dum mês.
Houve um baile. Ludovina apareceu com uma bela toilette, mas dançou
pouco, porque houvera um engano nos sapatos – e os que tinha nos pés
torturavam-na a ponto que esteve para desmaiar.
Depois ao fim dum ano a pobre Cantanhede morreu de parto – e outra vez
Machado soluçou perdido de choro nos braços de Godofredo; outra vez Godofredo
recebeu a chave do caixão, deu apertos de mão profundos e mudos, na noite de
pêsames. Mas desta vez Ludovina ajudava-o, Ludovina chorando também, porque
ela e a pobre Cantanhede eram íntimas, não se deixavam, passavam o seu dia a
beijar-se. E a dor de Ludovina foi tão grande quase como a do Machado.
Depois a vida continuou banal e corredia como ela é. Ao fim de dois anos
Machado tinha pôr amante uma atriz do Ginásio. E pôr esse tempo houve em casa
do Alves um desgosto – o casamento de Teresa, feito contra vontade da irmã e do
cunhado, com um empregado da alfândega, um imbecil, um tacanho, sem vintém,
sem cabeça, que seduzira a menina pôr ser louro como uma espiga. E foi necessário
casá-la porque se definhava, ameaçava de se deitar da janela abaixo, e havia outras
desconfianças. Foi necessário casá-la.
E os meses passaram, depois os anos. A firma Alves e Cia. Crescia,
enriquecia. O escritório, agora mais largo, mais rico, com seis caixeiros, era à
esquina da rua da Prata. Godofredo estava mais calvo, Ludovina engordara: tinham
carruagem; e no verão iam para Sintra. Depois Machado casou outra vez, com uma
viúva, casamento inexplicável porque nem era bonita, nem rica; tinha apenas uns
olhos extraordinários, muito negros, muito pestanudos, muito quebrados, a expirar
de langor.
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Foi um casamento à capucha – e os noivos partiram para Paris. Voltaram,
vieram viver para o pé dos Alves, que agora tinham mudado para um palacete a
Buenos Aires. E uma outra grande amizade nasceu logo entre a Ludovina e a
senhora dos olhos langorosos: bem depressa Ludovina se tornou a escrava desta
curiosa criatura que escravizava também o marido, tinha uma influência absoluta em
Godofredo, dominava tudo em redor de si, criados, relações, fornecedores, sem
nenhum esforço, sem qualidade nenhuma superior, só com a sua figurinha roliça e
os seus olhos pestanudos que expiravam de langor.
Agora as duas famílias vivem junto uma da outra – e ao lado uma da outra
vão envelhecendo. No dia dos anos de Ludovina há sempre um grande baile – e,
sempre inseparável deste dia, vem à memória de Alves aquele outro dia de anos,
em que ele entrou em casa, e viu no sofá amarelo... Mas há quanto tempo isso vai.
E esta lembrança agora só faz sorrir. E fá-lo também pensar – porque este fato
permanece como o grande acontecimento da sua vida e dele extrai geralmente a
sua filosofia e as suas reflexões usuais. Como ele diz muitas vezes ao Machado –
que coisas prudente é a prudência! Se naquele dia do sofá amarelo ele se tivesse
abandonado ao seu furor, ou se tivesse persistido depois em idéias de vingança e
rancor, qual teria sido a sua vida? Estaria agora ainda separado de sua mulher,
teria quebrado a sua amizade íntima e comercial com o seu sócio, a sua firma não
teria prosperado, nem a sua fortuna aumentado; e o seu interior teria sido o dum
solteirão azedado, dependente de criadas, maculado talvez pela libertinagem.
Nesses longos vinte anos que tinham passado, quantas coisas belas teria perdido,
quantos regalos domésticos, quantos confortos, quantos doces serões de família,
quantas satisfações da amizade, quantos longos dias de paz e de honra! A estas
horas estaria velho, azedado, com a vida estragada, a saúde arruinada, e aquela
vergonha do seu passado queimando-o sempre!
E assim, que diferença!
Tinha estendido os braços à esposa culpada, ao amigo desleal, e, com este
simples abraço, tornara para sempre a sua esposa um modelo, o seu amigo um
coração irmão e fiel. E agora ali estavam todos juntos, lado a lado, honrados,
serenos, ricos, felizes, envelhecendo de camaradagem no meio da riqueza e da paz.
Às vezes, pensando nisto, Alves não pode deixar de sorrir de satisfação. Bate
então no ombro do seu amigo, lembra-lhe o passado, diz-lhe:
— E nós que estivemos para nos bater, Machado! A gente em novo sempre é
muito imprudente... E pôr causa duma tolice, amigo Machado!
E o outro bate-lhe no ombro também, responde sorrindo:
— Pôr causa duma grande tolice, Alves amigo.
Fim
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