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E com efeito falou. Carlos ouviu um som de voz sonora, metálica e insinuante.
Cada palavra daqueles lábios misteriosos saía vibrante e afinada como a nota de
uma tecla. Tinha aquele não-sei-quê que só escuta nas salas onde falam mulheres
distintas, mulheres que obrigam a gente a prestar fé aos privilégios, às prerrogativas,
aos dons muito peculiares da aristocracia do sangue. Todavia, Carlos não se
recordava de ter ouvido semelhante voz, nem semelhante linguagem.
« Uma aventura de romance ! » dizia ele lá consigo, enquanto o dominó-
veludo, conjeturando o enleio em que pusera o seu entusiasta companheiro,
continuava a fazer gala do mistério, que é de todas as alfaias aquela que mais alinda
a mulher! Se elas pudessem andar sempre de dominó! Quantas mediocridades em
inteligência rivalizariam com Jorge Sand! Quantas fisionomias infelizes viveriam com
a fama da mulher de Abal el-Kader!
— « Então quem sou eu ? » - prosseguiu ela. — « Não me dirás ?… Não
dizes… Pois então, tu és Carlos, e eu sou Carlota… Fiquemos nisto, sim ? »
— « Enquanto eu não souber o teu nome, deixa-me chamar-te de « anjo » . »
— « Como quiseres ; mas sinto dizer-te que não és nada original! Anjo!… É
um apelido tão safado como Ferreira, Silva, Souza, Costa… et cetera. Não vale a
pena questionarmos : batiza-me à tua vontade. Ficarei sendo o teu « anjo de
Entrudo ». E a história ?… Imagina que te possuías de um amor impetuoso por essa
mulher, que fantasiaste linda, e insensivelmente lhe curvaste o joelho, pedindo-lhe
uma esperança, um sorriso afetuoso através da máscara, um aperto convulsivo de
mão, uma promessa, ao menos, de se mostrar um, dois, três anos depois. E essa
mulher, cada vez mais sublime, cada vez mais literata, cada vez mais radiosa,
protesta eloqüentemente contra as tuas instâncias, declarando-se muito feia,
indecentíssima de nariz, horrível até, e, como tal, pesa-lhe na consciência matar as
tuas cândidas ilusões, levantando a máscara. Tu que a não crês, instas, suplicas,
abrasas-te num ideal que toca as extremas do ridículo, e estás capaz de lhe dizer
que te abolas o crânio com um tiro de pistola, se ela não levanta a cortina daquele
mistério que te dilacera uma por uma as fibras do coração. Chamas-lhe Beatriz,
Laura, Fornarina, Natércia, e ela diz-te que se chama Custódia, ou Genoveva para te
aguar a poesia desses nomes, que, na minha humilde opinião, são completamente
fabulosos. O dominó quer fugir-te ardilosamente, e tu não lhe deixas um passo livre,
nem um dito espirituoso a outro, nem um lançar de olhos para as máscaras, que a
fixam como quem sabe que está ali uma rainha, envolta naquele manto negro. Por
fim, a tua perseguição é tal que a desconhecida Desdêmona finge assustar-se, e sai
contigo ao salão do teatro para levantar a máscara. Arfa-te o coração na ansiedade
de uma esperança : sentes o júbilo do cego de nascimento, que vai ver o sol ;
estremeces como a criança a quem vão dar um bonito, que ela não viu ainda, mas
imagina ser quanto o seu coração infantil ambiciona neste mundo… Ergue-se a
máscara !… Horror !… Vês um nariz… Um nariz-pleonasmo, um nariz homérico, um
nariz maio que o do duque de Choiseul, onde cabiam três jesuítas a cavalo !…
Recuas !… Sentes despregar-se-te o coração das entranhas, coras de vergonha e
foges desabridamente… »
— « Tudo isso é muito natural. »
— « pois não há nada mais artificial, meu caro senhor. Eu lhe conto o resto,
que é o mais interessante para o mancebo que faz do nariz de uma mulher o
termômetro de avaliar-lhe a temperatura do coração. Imagina, meu jovem Carlos,
que saíste do teatro depois, e entraste na Águia de Ouro a comer ostras, segundo o
costume dos elegantes do Porto. E quando pensavas, ainda aterrado, na aventura