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Universidade da Amazônia
A Escrava
Isaura
de de Bernardo GuimarãesBernardo Guimarães
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
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CEP: 66060-902
Belém – Pará
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A Escrava Isaura
de Bernardo Guimarães
CAPÍTULO I
Era nos primeiros anos do reinado do Sr. D. Pedro II.
No fértil e opulento município de Campos de Goitacases, à margem do
Paraíba, a pouca distância da vila de Campos, havia uma linda e magnífica fazenda.
Era um edifício de harmoniosas proporções, vasto e luxuoso, situado em
aprazível vargedo ao sopé de elevadas colinas cobertas de mata em parte
devastada pelo machado do lavrador. Longe em derredor a natureza ostentava-se
ainda em toda a sua primitiva e selvática rudeza; mas por perto, em torno da
deliciosa vivenda, a mão do homem tinha convertido a bronca selva, que cobria o
solo, em jardins e pomares deleitosos, em gramais e pingues pastagens,
sombreadas aqui e acolá por gameleiras gigantescas, perobas, cedros e copaíbas,
que atestavam o vigor da antiga floresta. Quase não se via aí muro, cerca, nem
valado; jardim, horta, pomar, pastagens, e plantios circunvizinhos eram divididos por
viçosas e verdejantes sebes de bambus, piteiras, espinheiros e gravatás, que
davam ao todo o aspecto do mais aprazível e delicioso vergel.
A casa apresentava a frente às colinas. Entrava-se nela por um lindo
alpendre todo enredado de flores trepadeiras, ao qual subia-se por uma escada de
cantaria de seis a sete degraus. Os fundos eram ocupados por outros edifícios
acessórios, senzalas, pátios, currais e celeiros, por trás dos quais se estendia o
jardim, a horta, e um imenso pomar, que ia perder-se na barranca do grande rio.
Era por uma linda e calmosa tarde de outubro. O Sol não era ainda posto, e
parecia boiar no horizonte suspenso sobre rolos de espuma de cores cambiantes
orlados de fêveras de ouro. A viração saturada de balsâmicos eflúvios se
espreguiçava ao longo das ribanceiras acordando apenas frouxos rumores pela
copa dos arvoredos, e fazendo farfalhar de leve o tope dos coqueiros, que miravam-
se garbosos nas lúcidas e tranqüilas águas da ribeira.
Corria um belo tempo; a vegetação reanimada por moderadas chuvas
ostentava-se fresca, viçosa e luxuriante; a água do rio ainda não turvada pelas
grandes enchentes, rolando com majestosa lentidão, refletia em toda a pureza os
esplêndidos coloridos do horizonte, e o nítido verdor das selvosas ribanceiras. As
aves, dando repouso ás asas fatigadas do contínuo voejar pelos pomares, prados e
balsedos vizinhos, começavam a preludiar seus cantos vespertinos.
O clarão do Sol poente por tal sorte abraseava as vidraças do edifício, que
esse parecia estar sendo devorado pelas chamas de um incêndio interior.
Entretanto, quer no interior, quer em derredor, reinava fundo silêncio, e perfeita
tranqüilidade. Bois truculentos, e médias novilhas deitadas pelo gramal, ruminavam
tranqüilamente à sombra de altos troncos. As aves domésticas grazinavam em tomo
da casa, balavam as ovelhas, e mugiam algumas vacas, que vinham por si mesmas
procurando os currais; mas não se ouvia, nem se divisava voz nem figura humana.
Parecia que ali não se achava morador algum. Somente as vidraças arregaçadas de
um grande salão da frente e os batentes da porta da entrada, abertos de par em par,
denunciavam que nem todos os habitantes daquela suntuosa propriedade se
achavam ausentes.
A favor desse quase silêncio harmonioso da natureza ouvia-se
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distintamente o arpejo de um piano casando-se a uma voz de mulher, voz
melodiosa, suave, apaixonada, e do timbre o mais puro e fresco que se pode
imaginar.
Posto que um tanto abafado, o canto tinha uma vibração sonora, ampla e
volumosa, que revelava excelente e vigorosa organização vocal.
O tom velado e melancólico da cantiga parecia gemido sufocado de uma
alma solitária e sofredora.
Era essa a única voz que quebrava o silêncio da vasta e tranqüila vivenda.
Por fora tudo parecia escutá-la em místico e profundo recolhimento.
As coplas, que cantava, diziam assim:
Desd'o berço respirando
Os ares da escravidão,
Como semente lançada
Em terra de maldição,
A vida passo chorando
Minha triste condição.
Os meus braços estão presos,
A ninguém posso abraçar,
Nem meus lábios, nem meus olhos
Não podem de amor falar;
Deu-me Deus um coração
Somente para penar.
Ao ar livre das campinas
Seu perfume exala a flor;
Canta a aura em liberdade
Do bosque o alado cantor;
Só para a pobre cativa
Não há canções, nem amor.
Cala-te, pobre cativa;
Teus queixumes crimes são;
E uma afronta esse canto,
Que exprime tua aflição.
A vida não te pertence,
Não é teu teu coração.
As notas sentidas e maviosas daquele cantar escapando pelas janelas
abertas e ecoando ao longe em derredor, dão vontade de conhecer a sereia que tão
lindamente canta. Se não é sereia, somente um anjo pode cantar assim.
Subamos os degraus, que conduzem ao alpendre, todo engrinaldado de
viçosos festões e lindas flores, que serve de vestíbulo ao edifício.
Entremos sem cerimônia. Logo à direita do corredor encontramos aberta
uma larga porta, que dá entrada à sala de recepção, vasta e luxuosamente
mobiliada. Acha-se ali sozinha e sentada ao piano uma bela e nobre figura de moça.
As linhas do perfil desenham-se distintamente entre o ébano da caixa do piano, e as
bastas madeixas ainda mais negras do que ele. São tão puras e suaves essas
linhas, que fascinam os olhos, enlevam a mente, e paralisam toda análise. A tez é
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como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança
delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. O colo
donoso e do mais puro lavor sustenta com graça inefável o busto maravilhoso. Os
cabelos soltos e fortemente ondulados se despenham caracolando pelos ombros em
espessos e luzidios rolos, e como franjas negras escondiam quase completamente o
dorso da cadeira, a que se achava recostada. Na fronte calma e lisa como mármore
polido, a luz do ocaso esbatia um róseo e suave reflexo; di-la-íeis misteriosa
lâmpada de alabastro guardando no seio diáfano o fogo celeste da inspiração.
Tinha a face voltada para as janelas, e o olhar vago pairava-lhe pelo
espaço.
Os encantos da gentil cantora eram ainda realçados pela singeleza, e
diremos quase pobreza do modesto trajar. Um vestido de chita ordinária azul clara
desenhava-lhe perfeitamente com encantadora simplicidade o porte esbelto e a
cintura delicada, e desdobrando-se-lhe em roda amplas ondulações parecia uma
nuvem, do seio da qual se erguia a cantora como Vênus nascendo da espuma do
mar, ou como um anjo surgindo dentre brumas vaporosas. Uma pequena cruz de
azeviche presa ao pescoço por uma fita preta constituía o seu único ornamento.
Apenas terminado o canto, a moça ficou um momento a cismar com os
dedos sobre o teclado como escutando os derradeiros ecos da sua canção.
Entretanto abre-se sutilmente a cortina de cassa de uma das portas
interiores, e uma nova personagem penetra no salão. Era também uma formosa
dama ainda no viço da mocidade, bonita, bem feita e elegante.
A riqueza e o primoroso esmero do trajar, o porte altivo e senhoril, certo
balanceio afetado e langoroso dos movimentos davam-lhe esse ar pretensioso, que
acompanha toda moça bonita e rica, ainda mesmo quando está sozinha. Mas com
todo esse luxo e donaire de grande senhora nem por isso sua grande beleza
deixava de ficar algum tanto eclipsada em presença das formas puras e corretas, da
nobre singeleza, e dos tão naturais e modestos ademanes da cantora. Todavia
Malvina era linda, encantadora mesmo, e posto que vaidosa de sua formosura e alta
posição, transluzia-lhe nos grandes e meigos olhos azuis toda a nativa bondade de
seu coração.
Malvina aproximou-se de manso e sem ser pressentida para junto da
cantora, colocando-se por detrás dela esperou que terminasse a última copia.
— Isaura!... disse ela pousando de leve a delicada mãozinha sobre o ombro
da cantora.
— Ah! é a senhora?! — respondeu Isaura voltando-se sobressaltada.
— Não sabia que estava aí me escutando.
— Pois que tem isso?.., continua a cantar... tens a voz tão bonita!...
mas eu antes quisera que cantasses outra coisa; por que é que você gosta tanto
dessa cantiga tão triste, que você aprendeu não sei onde?...
— Gosto dela, porque acho-a bonita e porque... ah! não devo falar...
— Fala, Isaura. Já não te disse que nada me deves esconder, e nada
recear de mim?...
— Porque me faz lembrar de minha mãe, que eu não conheci, coitada!...
Mas se a senhora não gosta dessa cantiga, não a cantarei mais.
— Não gosto que a cantes, não, Isaura. Hão de pensar que és maltratada,
que és uma escrava infeliz, vítima de senhores bárbaros e cruéis. Entretanto passas
aqui uma vida que faria inveja a muita gente livre. Gozas da estima de teus
senhores. Deram-te uma educação, como não tiveram muitas ricas e ilustres damas
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que eu conheço. És formosa, e tens uma cor linda, que ninguém dirá que gira em
tuas veias uma só gota de sangue africano. Bem sabes quanto minha boa sogra
antes de expirar te recomendava a mim e a meu marido. Hei de respeitar sempre as
recomendações daquela santa mulher, e tu bem vês, sou mais tua amiga do que tua
senhora. Oh! não; não cabe em tua boca essa cantiga lastimosa, que tanto gostas
de cantar. — Não quero, — continuou em tom de branda repreensão, — não quero
que a cantes mais, ouviste, Isaura?... se não, fecho-te o meu piano.
— Mas, senhora, apesar de tudo isso, que sou eu mais do que uma simples
escrava? Essa educação, que me deram, e essa beleza, que tanto me gabam, de
que me servem?... são trastes de luxo colocados na senzala do africano. A senzala
nem por isso deixa de ser o que é: uma senzala.
— Queixas-te da tua sorte, Isaura?...
— Eu não, senhora; não tenho motivo... o que quero dizer com isto é que,
apesar de todos esses dotes e vantagens, que me atribuem, sei conhecer o meu
lugar.
— Anda lá; já sei o que te amofina; a tua cantiga bem o diz. Bonita como
és, não podes deixar de ter algum namorado.
— Eu, senhora!... por quem é, não pense nisso.
— Tu mesma; pois que tem isso?... não te vexes; pois é alguma coisa do
outro mundo? Vamos já, confessa; tens um amante, e é por isso que lamentas não
teres nascido livre para poder amar aquele que te agradou, e a quem caíste em
graça, não é assim?...
— Perdoe-me, sinhá Malvina; — replicou a escrava com um cândido
sorriso. — Está muito enganada; estou tão longe de pensar nisso!
— Qual longe!... não me enganas, minha rapariguinha!... tu amas, e és mui
linda e bem prendada para te inclinares a um escravo; só se fosse um escravo,
como tu és, o que duvido que haja no mundo. Uma menina como tu, bem pode
conquistar o amor de algum guapo mocetão, e eis aí a causa da choradeira de tua
canção. Mas não te aflijas, minha Isaura; eu te protesto que amanhã mesmo terás a
tua liberdade; deixa Leôncio chegar; é uma vergonha que uma rapariga como tu se
veja ainda na condição de escrava.
— Deixe-se disso, senhora; eu não penso em amores e muito menos em
liberdade; às vezes fico triste à toa, sem motivo nenhum...
— Não importa. Sou eu quem quero que sejas livre, e hás de sê-lo.
Neste ponto a conversação foi cortada por um tropel de cavaleiros, que
chegavam e apeavam-se á porta da fazenda.
Malvina e Isaura correram à janela a ver quem eram.
CAPÍTULO II
Os cavaleiros, que acabavam de apear-se, eram dois belos e elegantes
mancebos, que chegavam da vila de Campos. Do modo familiar, por que foram
entrando, logo se depreendia que era gente de casa.
De feito um era Leôncio, marido de Malvina; e outro Henrique, irmão da
mesma.
Antes de irmos adiante forçoso nos é travar conhecimento mais íntimo com
os dois jovens cavaleiros.
Leôncio era filho único do rico e magnífico comendador Almeida,
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proprietário da bela e suntuosa fazenda em que nos achamos. O comendador, já
bastante idoso e cheio de enfermidades depois do casamento de seu filho, que
tivera lugar um ano antes da época em que começa esta história, havia-lhe
abandonado a administração e usufruto da fazenda, e vivia na corte, onde procurava
alivio ou distração aos achaques que o atormentavam.
Leôncio achara desde a infância nas larguezas e facilidades de seus pais
amplos meios de corromper o coração e extraviar a inteligência.
Mau aluno e criança incorrigível, turbulento e insubordinado, andou de
colégio em colégio, e passou como gato por brasas por cima de todos os
preparatórios, cujos exames todavia sempre salvara à sombra do patronato.
Os mestres não se atreviam a dar ao nobre e munífico comendador o
desgosto de ver seu filho reprovado. Matriculado na escola de medicina logo no
primeiro ano enjoou-se daquela disciplina, e como seus pais não sabiam contrariá-lo,
foi-se para Olinda a fim de freqüentar o curso jurídico. Ali depois de ter dissipado não
pequena porção da fortuna paterna na satisfação de todos os seus vícios e loucas
fantasias, tomou tédio também aos estudos jurídicos, e ficou entendendo que só na
Europa poderia desenvolver dignamente a sua inteligência, e saciar a sua sede de
saber, em puros e abundantes mananciais. Assim escreveu ao pai, que deu-lhe
crédito e o enviou a Paris, donde esperava vê-lo voltar feito um novo Humboldt.
Instalado naquele vasto pandemônio do luxo e dos prazeres, Leôncio raras vezes, e
só por desfastio, ia ouvir as eloqüentes preleções dos exímios professores da época,
e nem tampouco era visto nos museus, institutos e bibliotecas. Em compensação era
assíduo freqüentador do Jardim Mabile, assim como de todos os cafés e teatros
mais em voga, e tomara-se um dos mais afamados e elegantes leões dos bulevares.
No fim de alguns anos, ora de residência em Paris, ora de giros recreativos pelas
águas e pelas principais capitais da Europa, tinha ele tão copiosa e
desapiedadamente sangrado a bolsa paterna, que o comendador a despeito de toda
a sua condescendência e ternura para com seu único e querido filho, viu-se na
necessidade de revocá-lo à sombra dos pátrios lares a fim de evitar uma completa
ruína.
Mas, mesmo assim, para não magoá-lo colhendo-lhe súbita e rudemente as
rédeas na carreira dos desvarios e dissipações, assentou de atraí-lo suavemente
acenando-lhe com a perspectiva de um rico e vantajosíssimo casamento.
Leôncio pegou na isca e voltou à pátria um perfeito dândi, gentil e elegante
como ninguém, trazendo de suas viagens, em vez de conhecimentos e experiência,
enorme dose de fatuidade e petulância e um tão perfeito traquejo da alta sociedade,
que o tomaríeis por um príncipe.
Mas o pior era que, se trazia o cérebro vazio, voltava com a alma
corrompida e o coração estragado por hábitos de devassidão e libertinagem.
Alguns bons e generosos instintos, de que o dotara a natureza, haviam-se
apagado em seu coração ao roçar de péssimas doutrinas confirmadas por exemplos
ainda piores.
De volta da Europa, Leôncio contava vinte e cinco anos. O pai advertiu-lhe
com palavras insinuantes e jeitosas, que já era tempo de empregar-se em alguma
coisa, de abraçar alguma carreira; que já se tinha aproveitado da bolsa paterna mais
do que era preciso para sua educação, e que era mister ir aprendendo se não a
aumentar, ao menos a conservar uma fortuna, à testa da qual teria de achar-se mais
tarde ou mais cedo. Depois de muita hesitação, Leôncio optou enfim pela carreira do
comércio que lhe pareceu ser a mais independente e segura de todas; mas as suas
idéias largas e audaciosas a este respeito aterraram o bom do comendador. O
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comércio de importação e exportação de gêneros, mesmo em larga escala, o próprio
tráfego de africanos, lhe pareciam especulações degradantes e impróprias de sua
alta posição e esmerada educação. O negócio de balcão e a retalho, esse inspirava-
lhe asco e compaixão. Só lhe convinham as altas especulações cambiais, as
operações bancárias e transações em que jogasse com avultados capitais.
Só assim poderia duplicar em pouco tempo a fortuna paterna. Com o que
tinha observado na Bolsa de Paris e em outras praças européias, presumia-se com
habilitação bastante para dirigir as operações do mais importante estabelecimento
bancário, ou as mais grandiosas empresas industriais.
O pai porém não se animou a confiar sua fortuna aos azares especulativos
daquele financeiro em botão, e que até ali só tinha dado provas de grande talento
para consumir, em pouco tempo e em pura perda, somas consideráveis. Resolveu
portanto a não tocar-lhe mais naquele assunto, esperando que o mancebo criasse
mais algum juízo.
Vendo que seu pai esquecia-se completamente dos planos de criar-lhe um
pecúlio próprio, Leôncio olhou para o casamento como o meio suave e natural de
adquirir fortuna, como a única carreira que se lhe oferecia para ter dinheiro a
esbanjar a seu bel-prazer.
Malvina, a formosa filha de um riquíssimo negociante da corte, amigo do
comendador, já estava destinada a Leôncio por comum acordo e aquiescência dos
pais de ambos. A família do comendador foi à corte; os moços viram-se, amaram-se
e casaram; foi coisa de poucos dias. Pouco tempo depois de seu casamento
Leôncio passou pelo desgosto de perder sua mãe por um golpe inesperado. Esta
boa e respeitável senhora não tinha sido muito feliz nas relações da vida íntima com
seu marido, que, como homem de coração árido e frio, desconhecia as santas e
puras delícias da afeição conjugal, e com suas libertinagens e devassidões
dilacerava cotidianamente o coração de sua esposa. Para cúmulo de males linha ela
perdido ainda na infância todos os seus filhos, ficando-lhe só Leôncio. Lastimava-se
principalmente por não ter-lhe deixado o céu ao menos uma filha, que lhe servisse
de companhia e consolação em sua desolada velhice. Quis entretanto a sorte
deparar-lhe em sua própria casa uma tal ou qual compensação a seus infortúnios
em uma frágil criatura, que veio de alguma sorte encher o vácuo que sentia em seu
bondoso e terno coração, e tornar menos triste e solitário o lar, em que passava os
dias tão monótonos e enfadonhos.
Havia nascido em casa uma escravinha, que desde o berço atraiu por sua
graça, gentileza e vivacidade toda a atenção e solicitude da boa velha.
Isaura era filha de uma linda mulata, que fora por muito tempo a mucama
favorita e a criada fiel da esposa do comendador. Este, que como homem libidinoso
e sem escrúpulos olhava as escravas como um serralho à sua disposição, lançou
olhos cobiçosos e ardentes de lascívia sobre a gentil mucama. Por muito tempo
resistiu ela ás suas brutais solicitações; mas por fim teve de ceder às ameaças e
violências. Tão torpe e bárbaro procedimento não pôde por muito tempo ficar oculto
aos olhos de sua virtuosa esposa, que com isso concebeu mortal desgosto.
Acabrunhado por ela das mais violentas e amargas exprobrações, o
comendador não ousou mais empregar a violência contra a pobre escrava, e nem
tampouco conseguiu jamais por outro qualquer meio superar a invencível
repugnância que lhe inspirava. Enfureceu-se com tanta resistência, e deliberou em
seu coração perverso vingar-se da maneira a mais bárbara e ignóbil, acabrunhando-
a de trabalhos e castigos.
Exilou-a da sala, onde apenas desempenhava levianos e delicados
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serviços, para a senzala e os fragueiros trabalhos da roça, recomendando bem ao
feitor que não lhe poupasse serviço nem castigo. O feitor, porém, que era um bom
português ainda no vigor dos anos, e que não tinha as entranhas tão empedernidas
como o seu patrão, seduzido pelos encantos da mulata, em vez de trabalho e surras,
só lhe dava carícias e presentes, de maneira que daí a algum tempo a mulata deu à
luz da vida a gentil escravinha, de que falamos. Este fato veio exacerbar ainda mais
a sanha do comendador contra a mísera escrava. Expeliu com impropérios e
ameaças o bom e fiel feitor, e sujeitou a mulata a tão rudes trabalhos e tão cruel
tratamento, que em breve a precipitou no túmulo, antes que pudesse acabar de criar
sua tenra e mimosa filhinha.
Eis aí debaixo de que tristes auspícios nasceu a linda e infeliz Isaura.
Todavia, como para indenizá-la de tamanha desventura, uma santa mulher, um anjo
de bondade, curvou-se sobre o berço da pobre criança e veio ampará-la à sombra
de suas asas caridosas. A mulher do comendador considerou aquela tenra e
formosa cria como um mimo, que o céu lhe enviava para consolá-la das angústias e
dissabores, que tragava em conseqüência dos torpes desmandos de seu devasso
marido.
Levantou ao céu os olhos banhados em lágrimas, e jurou pela alma da
infeliz mulata encarregar-se do futuro de Isaura. criá-la e educá-la, como se fosse
uma filha.
Assim o cumpriu com o mais religioso escrúpulo. À medida que a menina foi
crescendo e entrando em idade de aprender, foi-lhe ela mesma ensinando a ler e
escrever, a coser e a rezar. Mais tarde procurou-lhe também mestres de música, de
dança, de italiano, de francês, de desenho, comprou-lhe livros, e empenhou-se
enfim em dar à menina a mais esmerada e fina educação, como o faria para com
uma filha querida. Isaura, por sua parte, não só pelo desenvolvimento de suas
graças e atrativos corporais, como pelos rápidos progressos de sua viva e robusta
inteligência, foi muito além das mais exageradas esperanças da excelente velha, a
qual em vista de tão felizes e brilhantes resultados, cada vez mais se comprazia em
lapidar e polir aquela jóia, que ela dizia ser a pérola entrançada em seus cabelos
brancos. — O céu não quis dar-me uma filha de minhas entranhas, — costumava ela
dizer, — mas em compensação deu-me uma filha de minha alma.
O que porém mais era de admirar na interessante menina, é que aquela
predileção e extremosa solicitude de que era objeto, não a tornava impertinente,
vaidosa ou arrogante nem mesmo para com seus parceiros de cativeiro. O mimo,
com que era tratada, em nada lhe alterava a natural bondade e candura do coração.
Era sempre alegre e boa com os escravos, dócil e submissa com os senhores.
O comendador não gostava nada do singular capricho de sua esposa para
com a mulatinha, capricho que qualificava de caduquice.
— Forte loucura! — costumava exclamar com acento de comiseração.
— Está ai se esmerando em criar uma formidável tafulona, que lá pelo
tempo adiante há de lhe dar água pela barba. As velhas, umas dão para rezar,
outras para ralhar desde a manhã até à noite, outras para lavar cachorrinhos ou para
criar pintos; esta deu para criar mulatinhas princesas. É um divertimento um pouco
mais dispendioso na verdade; mas.., que lhe faça bom proveito; ao menos enquanto
se entretém por lá com o seu embeleco, poupa-me uma boa dúzia de impertinentes
e rabugentos sermões... Lá se avenha!...
Poucos dias depois do casamento de Leôncio, o comendador, com toda a
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família, inclusive os dois novos desposados, transportou-se de novo para a fazenda
de Campos. Foi então que o comendador entregou a seu filho toda a administração
e usufruto daquela propriedade, com toda a escravatura e mais acessórios nela
existentes, declarando-lhe que achando-se já bastante velho, enfermo e cansado,
queria passar tranqüilamente o resto de seus dias livre de afazeres e preocupações,
para o que bastavam-lhe com sobejidão as rendas que para si reservava. Feita em
vida esta magnífica dotação a seu filho, retirou-se para a corte. Sua esposa porém
preferiu ficar em companhia do filho, o que foi muito do gosto e aprovação do
marido.
Malvina, que apesar da sua vaidade aristocrática tinha alma cândida e boa,
e um coração bem formado, não pôde deixar de conceber logo desde o principio o
mais vivo interesse e terna afeição pela cativa Isaura.
Era esta com efeito de índole tão bondosa e fagueira, tão dócil, modesta e
submissa, que apesar de sua grande beleza e incontestáveis dotes de espírito,
conquistava logo ao primeiro encontro a benevolência de todos.
Isaura tornou-se imediatamente, não direi a mucama favorita, mas a fiel
companheira, a amiga de Malvina que, afeita aos prazeres e passatempos da corte,
muito folgou de encontrar tão boa e amável companhia na solidão que ia habitar.
— Por que razão não libertam esta menina? — dizia ela um dia à sua sogra.
— Uma tão boa e interessante criatura não nasceu para ser escrava.
— Tem razão, minha filha, — respondeu bondosamente a velha; — mas
que quer você?... não tenho ânimo de soltar este passarinho que o céu me deu para
me consolar e tornar mais suportáveis as pesadas e compridas horas da velhice.
— E também libertá-la para quê? Ela aqui é livre, mais livre do que eu
mesma, coitada de mim, que já não tenho gostos na vida nem forças para gozar da
liberdade. Quer que eu solte a minha patativa? e se ela transviar-se por aí, e nunca
mais acertar com a porta da gaiola?... Não, não, minha filha; enquanto eu for viva,
quero tê-la sempre bem pertinho de mim, quero que seja minha, e minha só. Você
há de estar dizendo lá consigo - forte egoísmo de velha! - mas também eu já poucos
dias terei de vida; o sacrifício não será grande. Por minha morte ficará livre, e eu
terei o cuidado de deixar-lhe um bom legado.
De feito, a boa velha tentou por diversas vezes escrever seu testamento a
fim de garantir o futuro de sua escravinha, de sua querida pupila; mas o
comendador, auxiliado por seu filho com delongas e fúteis pretextos, conseguia ir
sempre adiando a satisfação do louvável e santo desejo de sua esposa, até o dia em
que, fulminada por um ataque de paralisia geral, ela sucumbiu em poucas horas sem
ter tido um só momento de lucidez e reanimação para expressar sua última vontade.
Malvina jurou sobre o cadáver de sua sogra continuar para com a infeliz
escrava a mesma proteção e solicitude que a defunta lhe havia prodigalizado. Isaura
pranteou por muito tempo a morte daquela que havia sido para ela mãe desvelada e
carinhosa; e continuou a ser escrava não já de uma boa e virtuosa senhora, mas de
senhores caprichosos, devassos e cruéis.
CAPÍTULO III
Falta-nos ainda conhecer mais de perto a Henrique, o cunhado de Leôncio.
Era ele um elegante e bonito rapaz de vinte anos, frívolo, estouvado e vaidoso,
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como são quase sempre todos os jovens, mormente quando lhes coube a ventura
de terem nascido de um pai rico. Não obstante esses ligeiros senões, tinha bom
coração e bastante dignidade e nobreza de alma. Era estudante de medicina, e
como estava-se em férias, Leôncio o convidara a vir visitar a irmã e passar alguns
dias em sua fazenda.
Os dois mancebos chegavam de Campos, onde Leôncio desde a véspera
linha ido ao encontro do cunhado.
Só depois de casado Leôncio, que antes disso poucas e breves estadas
fizera na casa paterna, começou a prestar atenção à extrema beleza e às graças
incomparáveis de Isaura. Posto que lhe coubesse em sorte uma linda e excelente
mulher, ele não se havia casado por amor, sentimento esse a que seu coração até
ali parecia absolutamente estranho. Casara-se por especulação, e como sua mulher
era moça e bonita, sentira apenas por ela paixão, que se ceva no gozo dos prazeres
sensuais, e com eles se extingue. Estava reservado à infeliz Isaura fazer vibrar
profunda e violentamente naquele coração as fibras que ainda não estavam de todo
estragadas pelo atrito da devassidão.
Concebeu por ela o mais cego e violento amor, que de dia em dia ia
crescendo na razão direta dos sérios e poderosos obstáculos que encontrava,
obstáculos a que não estava afeito, e que em vão se esforçava para superar. Mas
nem por isso desistia de sua tresloucada empresa, porque em fim de contas, —
pensava ele, — Isaura era propriedade sua, e quando nenhum outro meio fosse
eficaz, restava-lhe o emprego da violência.
Leôncio era um digno herdeiro de todos os maus instintos e da brutal
devassidão do comendador.
Pelo caminho, como sua mente andava sempre cheia da imagem de Isaura,
Leôncio conversara longamente com seu cunhado a respeito dela, exaltando-lhe a
beleza, e deixando transluzir com revoltante cinismo as lascivas intenções que
abrigava no coração. Esta conversação não agradava muito a Henrique, que às
vezes corava de pejo e de indignação por sua irmã, mas não deixou de excitar-lhe
viva curiosidade de conhecer uma escrava de tão extraordinária beleza.
No dia seguinte ao da chegada dos mancebos às oito horas da manhã,
Isaura, que acabava de espanejar os móveis e arranjar o salão, achava-se sentada
junto a uma janela e entrelinha-se a bordar, à espera que seus senhores se
levantassem para servir-lhes o café. Leôncio e Henrique não tardaram em aparecer,
e parando à porta do salão puseram-se a contemplar Isaura, que sem se aperceber
da presença deles continuava a bordar distraidamente.
— Então, que te parece? segredava Leôncio a seu cunhado. — Uma
escrava desta ordem não é um tesouro inapreciável? Quem não diria que uma
andaluza de Cádiz, ou uma napolitana?...
Não é nada disso; mas é coisa melhor, respondeu Henrique maravilhado;
é uma perfeita brasileira.
— Qual brasileira! é superior a tudo quanto há. Aqueles encantos e aquelas
dezessete primaveras em uma moça livre, teriam feito virar o juízo a muita gente
boa. Tua irmã pretende com instância, que eu a liberte, alegando que essa era a
vontade de minha defunta mãe; mas nem tão tolo sou eu, que me desfaça assim
sem mais nem menos de uma jóia tão preciosa. Se minha mãe teve o capricho de
criá-la com todo o mimo e de dar-lhe uma primorosa educação, não foi decerto para
abandoná-la ao mundo, não achas?... Também meu pai parece que cedeu às
instâncias do pai dela, que é um pobre galego, que por ai anda, e que pretende
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libertá-la; mas o velho pede por ela tão exorbitante soma, que julgo nada dever
recear por esse lado. Vê lá, Henrique, se há nada que pague uma escrava assim?...
— É com efeito encantadora — replicou o moço, — se estivesse no serralho
do sultão, seria sua odalisca favorita. Mas devo notar-te, Leôncio, – continuou,
cravando no cunhado um olhar cheio de maliciosa penetração, — como teu amigo e
como irmão de tua mulher, que o teres em tua sala e ao lado de minha irmã uma
escrava tão linda e tão bem tratada não deixa de ser inconveniente e talvez perigoso
para a tranqüilidade doméstica...
— Bravo! — atalhou Leôncio, galhofando, — para a idade que tens, já estás
um moralista de polpa!... mas não te dê isso cuidado, meu menino; tua irmã não tem
dessas veleidades, e é ela mesma quem mais gosta de que Isaura seja vista e
admirada por todos. E tem razão; Isaura é como um traste de luxo, que deve estar
sempre exposto no salão.
— Querias que eu mandasse para a cozinha os meus espelhos de
Veneza?...
Malvina, que vinha do interior da casa, risonha, fresca e alegre como uma
manhã de abril, veio interromper-lhes a conversação.
— Bom dia, senhores preguiçosos! — disse ela com voz argentina e festiva
como o trino da andorinha. — Até que enfim sempre se levantaram!
— Estás hoje muito alegre, minha querida, — retorquiu-lhe sorrindo o
marido; — viste algum passarinho verde de bico dourado?...
— Não vi, mas hei de ver; estou alegre mesmo, e quero que hoje aqui em
casa seja um dia de festa para todos. Isto depende de ti, Leôncio, e estava aflita por
te ver de pé; quero dizer-te uma coisa; já devia tê-la dito ontem, mas o prazer de ver
este ingrato de irmão, que há tanto tempo não vejo, me fez esquecer...
— Mas o que é?... fala, Malvina.
— Não te lembras de uma promessa, que sempre me fazes, promessa
sagrada, que há muito tempo devia ter sido cumprida?... hoje quero absolutamente,
exijo, o seu cumprimento.
— Deveras?... mas que promessa?... não me lembro.
— Ah! como te fazes de esquecido!... não te lembras, que me prometeste
dar liberdade a...
— Ah! já sei, já sei; — atalhou Leôncio com impaciência. – Mas tratar disso
aqui agora? em presença dela?... que necessidade há de que nos ouça?
— E que mal faz isso? mas seja como quiseres, — replicou a moça
tomando a mão de Leôncio e levando-o para o interior da casa; — vamos cá para
dentro. Henrique, espera aí um momento, enquanto eu vou mandar preparar-nos o
café.
Só depois da chegada de Malvina, Isaura deu pela presença dos dois
mancebos, que a certa distância a contemplavam cochichando a respeito dela.
Também pouco ouviu ela e nada compreendeu do rápido diálogo que tivera lugar
entre Malvina e seu marido. Apenas estes se retiraram ela também se levantou e ia
sair, mas Henrique, que ficara só, a deteve com um gesto.
— Que me quer, senhor? — disse ela baixando os olhos com humildade.
— Espera ai, menina; tenho alguma coisa a dizer-te, — replicou o moço, e
sem dizer mais nada colocou-se diante dela devorando-a com os olhos, e como
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extático contemplando-lhe a maravilhosa beleza.
Henrique sentia-se acanhado diante daquela nobre figura radiante de
beleza, e de angélica serenidade. Por seu lado Isaura também olhava para o moço,
atônita e tolhida, esperando em vão que lhe dissesse o que queria. Por fim
Henrique, afoito, e estouvado como era, lembrando-se que Isaura, a despeito de
toda a sua formosura, não passava de uma escrava, entendeu que fazia um ridículo
papel, deixando-se ali ficar diante dela em muda e extática contemplação, e
chegando-se a ela com todo o desembaraço e petulância travou-lhe da mão, e...
— Mulatinha, disse, — tu não fazes idéia de quanto és feiticeira.
— Minha irmã tem razão; é pena que uma menina assim tão linda não seja
mais que uma escrava. Se tivesses nascido livre, serias incontestavelmente a rainha
dos salões.
— Está bem, senhor, está bem! replicou Isaura soltando-se da mão de
Henrique; se é só isso o que tinha a dizer-me, deixe-me ir embora.
— Espera ainda um pouco; não sejas assim má; eu não te quero fazer mal
algum. Oh! quanto eu daria para obter a tua liberdade, se com ela pudesse obter
também o teu amor!... És muito mimosa e muito linda para ficares por muito tempo
no cativeiro; alguém impreterivelmente virá arrancar-te dele, e se hás de cair nas
mãos de algum desconhecido, que não saberá dar-te o devido apreço, seja eu,
minha Isaura, seja o irmão de tua senhora, que de escrava te haja de fazer uma
princesa...
—Ah! senhor Henrique! retorquiu a menina com enfado; — o senhor não se
peja de dirigir esses galanteios a uma escrava de sua irmã? isso não lhe fica bem;
há por aí tanta moça bonita, a quem o senhor pode fazer a corte...
— Não; ainda não vi nenhuma que te iguale, Isaura, eu te juro.
— Olha, Isaura; ninguém mais do que eu está nas circunstâncias de
conseguir a tua liberdade; sou capaz de obrigar Leôncio a te libertar, porque, se me
não engano, já lhe adivinhei os planos e as intenções, e protesto-te que hei de burlá-
los todos; é uma infâmia em que não posso consentir. Além da liberdade terás tudo
o que desejares, sedas, jóias, carros, escravos para te servirem, e acharás em mim
um amante extremoso, que sempre te há de querer, e nunca te trocará por quanta
moça há por esse mundo, por bonita e rica que seja, porque tu só vales mais que
todas elas juntas.
— Meu Deus! — exclamou Isaura com um ligeiro tom de mofa; — tanta
grandeza me aterra; isso faria virar-me o juízo. Nada, meu senhor; guarde suas
grandezas para quem melhor as merecer; eu por ora estou contente com a minha
sorte.
— Isaura!... para que tanta crueldade!... escuta, — disse o moço lançando o
braço ao pescoço de Isaura.
— Senhor Henrique! - gritou ela esquivando-se ao abraço, — por quem é,
deixe-me em paz!
— Por piedade, Isaura! - insistiu o rapaz continuando a querer abraçá-la; —
oh!... não fales tão alto!... um beijo... um beijo só, e já te deixo...
— Se o senhor continua, eu grito mais alto. Não posso aqui trabalhar um
momento, que não me venham perturbar com declarações que não devo escutar...
— Oh! como está altaneira! - exclamou Henrique, já um tanto agastado com
tanta resistência. – Não lhe falta nada!... tem até os ares desdenhosos de uma
grande senhora!... não te arrufes assim, minha princesa...
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— Arre lá, senhor! — bradou a escrava já no auge da impaciência.
— Já não bastava o senhor Leôncio!... agora vem o senhor também...
— Como?... que estás dizendo?... também Leôncio?... oh!... oh! bem o
coração me estava adivinhando!... que infâmia!... mas decerto tu o escutas com
menos impaciência, não é assim?
— Tanto como escuto ao senhor.
— Não duvido Isaura; a lealdade, que deves a tua senhora, que tanto te
estima, não te permite que dês ouvidos àquele perverso. Mas comigo o caso é
diferente; que motivo há para seres cruel assim?
— Eu cruel para com meus senhores!!! Ora, senhor, pelo amor de Deus!...
Não esteja assim a escarnecer de uma pobre cativa.
— Não! não escarneço... Isaura!... escuta, — exclamava Henrique
forcejando para abraçá-la e furtar-lhe um beijo.
— Bravo!... bravíssimo! — retumbou pelo salão uma voz acompanhada de
sardônica e estrepitosa gargalhada.
Henrique voltou-se sobressaltado. Toda a sua amorosa exaltação tinha-se-
lhe gelado de súbito no âmago do coração.
Leôncio estava em pé no meio da porta, de braços cruzados e olhando para
ele com sorriso do mais insultante escárnio.
— Bravo! muito bem, senhor meu cunhado! - continuou Leôncio no mesmo
tom de mofa. — Está pondo em prática belissimamente as suas lições de moral!...
requestando-me as escravas!... está galante!... sabe respeitar divinamente a casa de
sua irmã!...
— Ah! maldito importuno! murmurou Henrique, trincando os dentes de
cólera, e seu primeiro impulso foi investir de punho fechado, e responder com
cachações aos insolentes sarcasmos do cunhado.
Refletindo porém um momento, sentiu que lhe seria mais vantajoso
empregar contra o seu agressor a mesma arma de que se servira contra ele, o
sarcasmo, que as circunstâncias lhe permitiam vibrar de modo vitorioso e decisivo.
Acalmou-se, pois, e com sorriso de soberano desdém:
— Ah! perdão, meu cunhado! — disse ele não sabia que a peregrina jóia do
seu salão lhe merecesse tanto cuidado, que o levasse a ponto de andá-la
espionando; creio que tem mais zelo por ela do que mesmo pelo respeito que se
deve à sua casa e à sua mulher. Pobre de minha irmã!... é bem simples, e admira
que, há mais tempo, não tenha conhecido o belo marido que possui!...
— O que estás dizendo, rapaz? — bradou Leôncio com gesto ameaçador;
— repete; que estás dizendo?
— O mesmo que o senhor acaba de ouvir, — redargüiu Henrique com
firmeza, — e fique certo que o seu indigno procedimento não há de ficar por muito
tempo oculto à minha irmã.
— Qual procedimento!? tu deliras, Henrique?...
— Faça-se de esquerdo!... pensa que não sei tudo?... enfim adeus, senhor
Leôncio: eu me retiro, porque seria altamente inconveniente, indigno e ridículo da
minha parte estar a disputar com o senhor por amor de uma escrava.
— Espera, Henrique... escuta...
— Não, não; não tenho negócio nenhum com o senhor. Adeus! — disse e
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retirou-se precipitadamente.
Leôncio sentiu-se esmagado, e arrependeu-se mil e uma vezes de ter
provocado tão imprudentemente aquele leviano e estouvado rapaz.
Ignorava que seu cunhado estivesse ao fato da paixão que sentia por
Isaura, e dos esforços que empregava para vencer-lhe a isenção e lograr seus
favores. verdade que lhe havia falado sem muito rebuço a esse respeito; mas
algumas palavras ditas entre rapazes, em tom de mera chocarrice, não constituíam
base suficiente para que sobre ela Henrique pudesse articular uma acusação contra
ele em face de sua mulher.
Decerto a rapariga lhe havia revelado alguma coisa, e isto o fazia espumar
de despeito e raiva contra um e outra. Bem pouco lhe importava a perturbação da
paz doméstica, o que o enfurecia era o perigo em que se colocara de ver
desconcertados os seus perversos desígnios sobre a gentil escrava.
— Maldição! — rugia ele lá consigo. — Aquele maluco é bem capaz de
desconcertar todos os meus planos. Se sabe alguma coisa, como parece, não porá
dúvida em levar tudo aos ouvidos de Malvina...
Leôncio ficou por alguns momentos em pé, imóvel, sombrio, carrancudo,
com o espírito entregue à cruel inquietação que o fustigava.
Depois, pairando as vistas em derredor, deu com os olhos em Isaura, a
qual, desde que Leôncio se apresentara, corrida, trêmula e anelante, fora sumir-se
em um canto da sala; dali presenciara em silenciosa ansiedade a altercação dos
dois moços, como corça mal ferida escutando o rugir de dois tigres, que disputaram
entre si o direito de devorá-la. Por seu lado também se arrependia do intimo d'alma,
e raivava contra si mesma pela indiscreta e louca revelação, que em um assomo de
impaciência deixara escapar dos seus lábios. Sua imprudência ia ser causa da mais
deplorável discórdia no seio daquela família, discórdia, de que por fim de contas ela
viria a ser a principal vítima. A desavença entre os dois mancebos era como o
choque de duas nuvens, que se encontram e continuam a pairar tranqüilamente no
céu; mas o raio desprendido de seu seio teria de vir certeiro sobre a fronte da infeliz
cativa.
CAPÍTULO IV
— Ah! estás ainda ai?... fizeste bem, — disse Leôncio mal avistou Isaura,
que trêmula e confusa não ousara sair do cantinho, a que se abrigara, e onde fazia
mil votos ao céu para que seu senhor não a visse, nem se lembrasse dela naquele
momento. — Isaura, continuou ele, — pelo que vejo, andas bem adiantada em
amores!... estavas a ouvir finezas daquele rapazola...
— Tanto como ouço as suas, meu senhor, por não ter outro remédio.
Uma escrava, que ousasse olhar com amor para seus senhores, merecia
ser severamente castigada.
— Mas tu disseste alguma coisa àquele estouvado, Isaura?...
— Eu?! — respondeu a escrava perturbando-se; — eu, nada que possa
ofender nem ao senhor nem a ele...
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— Pesa bem as tuas palavras, Isaura; olha, não procures enganar-me. —
Nada lhe disseste a meu respeito?
— Nada.
— Juras?
— Juro, — balbuciou Isaura.
— Ah! Isaura, Isaura!... tem cuidado. Se até aqui tenho sofrido com
paciência as tuas repulsas e desdéns, não estou disposto a suportar que em minha
casa, e quase em minha presença, estejas a escutar galanteios de quem quer que
seja, e muito menos revelar o que aqui se passa. Se não queres o meu amor, evita
ao menos de incorrer no meu ódio.
— Perdão, senhor, que culpa tenho eu de andarem a perseguir-me?
— Tens alguma razão; estou vendo que me verei forçado a desterrar-te
desta casa, e a esconder-te em algum canto, onde não sejas tão vista e cobiçada...
— Para quê, senhor...
— Basta; não te posso ouvir agora, Isaura. Não convém que nos encontrem
aqui conversando a sós. Em outra ocasião te escutarei. — preciso estorvar que
aquele estonteado vã intrigar-me com Malvina — murmurava Leôncio retirando-se. -
Ah! cão! maldita a hora em que te trouxe à minha casa!
— Permita Deus que tal ocasião nunca chegue! — exclamou tristemente
dentro da alma a rapariga, vendo seu senhor retirar-se.
Ela via com angústia e mortal desassossego as continuas e cada vez mais
encarniçadas solicitações de Leôncio, e não atinava com um meio de opor-lhes um
paradeiro. Resolvida a resistir até à morte, lembrava-se da sorte de sua infeliz mãe,
cuja triste história bem conhecia, pois a tinha ouvido, segredada a medo e
misteriosamente, da boca de alguns velhos escravos da casa, e o futuro se lhe
antolhava carregado das mais negras e sinistras cores. Revelar tudo a Malvina era o
único meio, que se lhe apresentava ao espírito, para pôr termo às ousadias do seu
marido, e atalhar futuras desgraças. Mas Isaura amava muito sua jovem senhora
para ousar dar semelhante passo, que iria derramar-lhe no seio um pego de
desgostos e amarguras, quebrando-lhe para sempre a risonha e doce ilusão em que
vivia.
Preferia antes morrer como sua mãe, vitima das mais cruéis sevícias, do
que ir por suas mãos lançar uma nuvem sinistra no céu até ali tão sereno e
bonançoso de sua querida senhora.
O pai de Isaura, o único ente no mundo, que à exceção de Malvina se
interessava por ela, pobre e simples jornaleiro, não se achava em estado de poder
protegê-la contra as perseguições e violências de que se achava ameaçada. Em tão
cruel situação Isaura não sabia senão chorar em segredo a sua desventura, e
implorar ao céu, do qual somente podia esperar remédio a seus males.
Bem se compreende pois agora aquele acento tão dorido, tão repassado de
angústia, com que cantava a sua canção favorita. Malvina enganava-se atribuindo
sua tristeza a alguma paixão amorosa. Isaura conservava ainda o coração no mais
puro estado de isenção. Com quanto mais dó não a teria lastimado sua boa e
sensível senhora, se pudesse adivinhar a verdadeira causa dos pesares que o
ralavam.
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CAPÍTULO V
Isaura despertando de suas pungentes e amargas preocupações tomou seu
balainho de costura e ia deixar o salão, resolvida a sumir-se no mais escondido
recanto da casa, ou amoitar-se em algum esconderijo do pomar. Esperava assim
esquivar-se à repetição de cenas indecentes e vergonhosas, como essas por que
acabava de passar. Apenas dera os primeiros passos foi detida por uma
extravagante e grotesca figura, que penetrando no salão veio postar-se diante de
seus olhos.
Era um monstrengo afetando formas humanas, um homúnculo em tudo mal
construído, de cabeça enorme, tronco raquítico, pernas curtas e arqueadas para
fora, cabeludo como um urso, e feio como um mono.
Era como um desses truões disformes, que formavam parte indispensável
do séquito de um grande rei da Média Idade, para divertimento dele e de seus
cortesões. A natureza esquecera de lhe formar o pescoço, e a cabeça disforme
nascia-lhe de dentro de uma formidável corcova, que a resguardava quase como um
capuz. Bem reparado todavia, o rosto não era muito irregular, nem repugnante, e
exprimia muita cordura, submissão e bonomia.
Isaura teria soltado um grito de pavor, se há muito não estivesse
familiarizada com aquela estranha figura, pois era ele, sem mais nem menos, o
senhor Belchior, fiel e excelente ilhéu, que há muitos anos exercia naquela fazenda
mui digna e conscienciosamente, apesar de sua deformidade e idiotismo, o cargo de
jardineiro. Parece que as flores, que são o símbolo natural de tudo quanto é belo,
puro e delicado, deviam ter um cultor menos disforme e repulsivo. Mas quis a sorte
ou o capricho do dono da casa estabelecer aquele contraste, talvez para fazer
sobressair a beleza de umas à custa da fealdade do outro.
Belchior tinha em uma das mãos o vasto chapéu de palha, que arrastava
pelo chão, e com a outra empunhava. não um ramalhete, mas um enorme feixe de
flores de todas as qualidades, à sombra das quais procurava eclipsar sua
desgraciosa e extravagante figura. Parecia um desses vasos de louça, de formas
fantásticas e grotescas, que se enchem de flores para enfeitar bufetes e aparadores.
—Valha-me Deus! — pensou Isaura ao dar com os olhos no jardineiro.
— Que sorte é a minha! ainda mais este!... este ao menos é de todos o mais
suportável: os outros me amofinam, e atormentam: este as vezes me faz rir.
— Muito bem aparecido, senhor Belchior! então, o que deseja?
— Senhora Isaura, eu... eu... vinha... — resmungou embaraçado o
jardineiro.
—Senhora!... eu senhora!... também o senhor pretende caçoar comigo,
senhor Belchior?...
— Eu caçoar com a senhora!... não sou capaz... minha língua seja comida
de bichos, se eu faltar com o respeito devido à senhora... Vinha trazer-lhe estas
froles, se bem que a senhora mesma é uma frol...
— Arre lá, senhor Belchior!... sempre a dar-me de senhora!... se continua
por essa forma, ficamos mal, e não aceito as suas froles... Eu sou Isaura, escrava da
senhora D. Malvina; ouviu, senhor Belchior!
— Embora lá isso; e soverana cá deste coração, e eu, menina, dou-me por
feliz se puder beijar-te os pés. Olha, Isaura...
— Ainda bem! Agora sim; trate-me desse modo.
— Olha, Isaura, eu sou um pobre jardineiro, lá isso é verdade; mas sei
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trabalhar, e não hás de achar vazio o meu mealheiro, onde já tenho mais de meio mil
cruzados. Se me quiseres, como eu te quero, arranjote a liberdade, e caso-me
contigo, que também não és para andar aí assim como escrava de ninguém.
— Muito obrigada pelos seus bons desejos; mas perde seu tempo, senhor
Belchior. Meus senhores não me libertam por dinheiro nenhum.
— Ah! deveras!... que malbados!... ter assim no catibeiro a rainha da
Jermosura!... mas não importa, Isaura; terei mais gosto em ser escravo de uma
escrava como tu, do que em ser senhor dos senhores de cem mil cativos. Isaura!...
não fazes idéia de como te quero. Quando vou molhar as minhas froles, estou a
lembrar-me de ti com uma soidade!...
— Deveras! ora viu-se que amor!...
— Isaura! — continuou Belchior, curvando os joelhos, — tem piedade deste
teu infeliz cativo...
— Levante-se, levante-se, — interrompeu Isaura com impaciência.
— Seria bonito que meus senhores viessem aqui encontrá-lo fazendo esses
papéis!... que estou-lhe dizendo?... ei-los aí!... ah! senhor Belchior!
De feito, de um lado Leôncio, e de outro Henrique e Malvina, os estavam
observando.
Henrique, tendo-se retirado do salão, despeitado e furioso contra seu
cunhado, assomado e leviano como era, foi encontrar a irmã na sala de jantar, onde
se achava preparando o café e ali em presença dela não hesitou em desabafar sua
cólera, soltando palavras imprudentes, que lançaram no espírito da moça o germe
da desconfiança e da inquietação.
— Este teu marido, Malvina, não passa de um miserável patife — disse
bufando de raiva.
— Que estás dizendo, Henrique?!... que te fez ele?... – perguntou a moça,
espantada com aquele rompante.
—Tenho pena de ti, minha irmã... se soubesses... que infâmia!...
— Estás doido, Henrique!... o que há então?
— Permita Deus que nunca o saibas!... que vilania!...
— O que houve então, Henrique?... fala, explica-te por quem és,
exclamou Malvina, pálida e ofegante no cúmulo da aflição.
— Oh! que tens?... não te aflijas assim, minha irmã, - respondeu Henrique,
já arrependido das loucas palavras que havia soltado. Tarde compreendeu que fazia
um triste e deplorável papel, servindo de mensageiro da discórdia e da desconfiança
entre dois esposos, que até ali viviam na mais perfeita harmonia e tranquilidade.
Tarde e em vão procurou atenuar o terrível efeito de sua fatal indiscrição.
— Não te inquietes, Malvina, continuou ele procurando sorrir-se; - teu
marido é um formidável turrão, eis aí tudo; não vás pensar que nos queremos bater
em duelo.
— Não; mas vieste espumando de raiva, com os olhos em fogo, e com um
ar...
— Qual!... pois não me conheces?... sempre fui assim; por – dá cá aquela
palha — pego fogo, mas também é fogo de palha.
— Mas pregaste-me um susto!...
— Coitada!... toma isto, — disse-lhe Henrique, oferecendo-lhe uma xícara
de café, é a melhor coisa que há para aplacar sustos e ataques de nervos.
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Malvina procurou acalmar-se, mas as palavras do irmão tinham-lhe
penetrado no âmago do coração, como a dentada de uma víbora, aí deixando o
veneno da desconfiança.
O aparecimento de Leôncio, que vinha do salão, pôs termo a este incidente.
Os três tomaram café à pressa e sem trocarem palavras; estavam já ressabiados
uns com outros, olhavam-se com desconfiança, e de um momento para outro a
discórdia insinuara-se no seio daquela pequena família, ainda há pouco tão feliz,
unânime e tranqüila. Tomado o café retiraram-se, mas todos por um impulso
instintivo, dirigiram seus passos para o salão, Henrique e Malvina de braços dados
pelo grande corredor da entrada, e Leôncio sozinho por compartimentos interiores,
que comunicavam com o salão. Era ali com efeito que se achava o pomo fatal, mas
inocente, que devia servir de instrumento da desunião e descalabro daquela
nascente família.
Chegaram ainda a tempo de presenciar o final da cena ridícula, que Belchior
representava aos pés de Isaura. Leôncio, porém, que os espiava através das
sanefas entreabertas de uma alcova, não avistava Henrique e Malvina, que haviam
parado no corredor junto à porta da entrada.
— Oh! oh! — exclamou ele no momento em que Belchior prostrava-se aos
pés de Isaura. Creio que tenho dentro de casa um ídolo, diante do qual todos vêm
ajoelhar-se e render adorações!... até o meu jardineiro!... Olá, senhor Belchior, está
bonito!... Continue com a farsa, que não está má... mas para tratar dessa flor não
precisamos de seus cuidados, não; tem entendido, senhor Belchior!...
— Perdão, senhor meu, — balbuciou o jardineiro erguendo-se trêmulo e
confuso; — eu vinha trazer estas froles para os basos da sala...
— E apresentá-las de joelhos!... essa é galante!... Se continua nesse papel
de galã, declaro-lhe que o ponho pela porta fora com dois pontapés nessa corcova.
Corrido, confuso e azoinado, Belchior, cambaleando e esbarrando pelas
cadeiras, lá se foi às cegas em busca da porta da rua.
— Isaura! ó minha Isaura! — exclamou Leôncio saindo da alcova,
avançando com os braços abertos para a rapariga, e dando à voz até ali áspera e
rude, a mais suave e tema inflexão.
Um ai agudo e pungente, que ecoou pelo salão, o faz parar mudo, gélido e
petrificado. Tinha avistado no meio da porta Malvina, que, pálida e desfalecida,
ocultava a fronte no ombro de seu irmão, que a amparava nos braços.
— Ah! meu irmão! — exclamou ela voltando de seu delíquio, — agora
compreendo tudo que ainda há pouco me dizias.
E com uma das mãos comprimindo o coração, que parecia querer-lhe
estalar de dor, e com a outra escondendo no lenço as lágrimas, que dos formosos
olhos lhe brotavam aos pares, correu a encerrar-se em seu aposento.
Leôncio desconcertado pelo terrível contratempo, de que acabava de ser
vítima, ficou largo tempo a passear, frenético e agitado, de um a outro lado, ao longo
do salão, furioso contra o cunhado, a cuja impertinente leviandade atribuía as fatais
ocorrências daquela manhã, que ameaçavam burlar todos os seus planos sobre
Isaura, e excogitando meios de safar-se das dificuldades em que se via empenhado.
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Isaura, tendo resistido em menos de uma hora, a três abordagens
consecutivas, dirigidas contra o seu pudor e isenção, aturdida, cheia de susto,
confusão e vergonha, correu a esconder-se entre os laranjais como lebre medrosa,
que ouve ladrarem pelos prados os galgos encarniçados a seguirem-lhe a pista.
Henrique altamente indignado contra o cunhado não lhe queria ver a cara;
tomou sua espingarda e saiu disposto a passar o dia inteiro passarinhando pelos
matos, e a retirar-se impreterivelmente para a corte ao romper do dia seguinte.
Os escravos ficaram pasmos, quando à hora do almoço Leôncio achou-se
sozinho à mesa. Leôncio mandou chamar Malvina, mas esta, pretextando uma
indisposição, não quis sair de seu quarto. Seu primeiro movimento foi um ímpeto de
cólera brutal; esteve a ponto de atirar toalha, pratos, talheres e tudo pelos ares, e ir
esbofetear o desassisado e insolente rapaz, que em má hora viera à sua casa para
perturbar a tranqüilidade do seu viver doméstico. Mas conteve-se a tempo, e
acalmando-se entendeu que melhor era não se dar por achado, e encarar com ares
da maior indiferença e mesmo de desdém, os arrufos da esposa, e o mau humor do
cunhado. Estava bem persuadido que lhe seria difícil, se não impossível, dissimular
mais aos olhos da esposa o seu torpe procedimento; incapaz, porém, de retratar-se
e implorar perdão, resolveu amparar-se da tempestade, que ia despenhar-se sobre
sua cabeça, com o escudo da mais cínica indiferença. Inspiravam-lhe este alvitre o
orgulho, e o mau conceito em que tinha todas as mulheres, nas quais não
reconhecia pundonor nem dignidade.
Depois do almoço Leôncio montou a cavalo, percorreu as roças e cafezais,
coisa que bem raras vezes fazia, e ao descambar do Sol voltou para casa, jantou
com o maior sossego e apetite, e depois foi para o salão, onde, repoltreando-se em
macio e fresco sofá, pôs-se a fumar tranqüilamente o seu havana.
Nesse comenos chega Henrique de suas excursões venatórias, e depois de
procurar em vão a irmã por todos os cantos da casa, vai enfim encontrá-la encerrada
em seu quarto de dormir desfigurada, pálida, e com os olhos vermelhos e inchados
de tanto chorar.
— Por onde andaste, Henrique?... estava aflita por te ver, — exclamou a
moça ao avistar o irmão. — Que má moda é essa de deixar a gente assim sozinha!...
— Sozinha?!... pois até aqui não vivias sem mim na companhia de teu belo
marido?...
— Não me fales nesse homem... eu andava iludida; agora vejo que andava
pior do que sozinha, na companhia de um perverso.
— Ainda bem que presenciaste com teus próprios olhos o que eu não tinha
ânimo de dizer-te. Mas, vamos! que pretendes fazer?...
— O que pretendo?... vais ver neste mesmo instante... Onde está ele?...
viste-o por ai?...
— Se me não engano, vi-o no salão; havia lá um vulto sobre um sofá.
— Pois bem, Henrique, acompanha-me até lá.
— Por que razão não vais só? poupa-me o desgosto de encarar aquele
homem...
— Não, não; é preciso que vás comigo; estava à tua espera mesmo para
esse fim. Preciso de uma pessoa que me ampare e me alente. Agora até tenho
medo dele.
— Ah! compreendo; queres que eu seja teu guarda-costas, para poderes
descompor a teu jeito aquele birbante. Pois bem; presto-me de boa vontade, e
veremos se o patife tem o atrevimento de te desrespeitar. — Vamos!
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CAPÍTULO VI
— Senhor Leôncio, — disse Malvina com voz alterada aproximando-se do
sofá, em que se achava o marido, — desejo dizer-lhe duas palavras, se isso não o
incomoda.
— Estou sempre às tuas ordens, querida Malvina, — respondeu levantando-
se lesto e risonho, e como quem nenhum reparo fizera no tom cerimonioso com que
Malvina o tratava. — Que me queres?...
— Quero dizer-lhe, — exclamou a moça em tom severo, e fazendo vãos
esforços para dar ao seu lindo e mavioso semblante um ar feroz, quero dizer-lhe
que o senhor me insulta e me atraiçoa em sua casa, da maneira a mais indigna e
desleal...
— Santo Deus!... que estás aí a dizer, minha querida?... explica-te melhor,
que não compreendo nem uma palavra do que dizes...
— Debalde, que o senhor se finge surpreendido; bem sabe a causa do meu
desgosto. Eu já devia ter pressentido esse seu vergonhoso procedimento; há muito
que o senhor não é o mesmo para comigo, e me trata com tal frieza e indiferença...
— Oh! meu coração, pois querias que durasse eternamente a lua-de-mel?...
isso seria horrivelmente monótono e prosaico.
— Ainda escarneces, infame! – bradou a moça, e desta vez as faces se lhe
afoguearam de extraordinário rubor, e fuzilaram-lhe nos olhos lampejos de cólera
terrível.
— Oh! não te exasperes assim, Malvina; estou gracejando – disse Leôncio
procurando tomar-lhe a mão.
— Boa ocasião para gracejos!... deixe-me, senhor!... que infâmia!... que
vergonha para nós ambos!...
— Mas enfim não te explicarás?
— Não tenho que explicar; o senhor bem me entende. Só tenho que exigir...
— Pois exige, Malvina.
— Dê um destino qualquer a essa escrava, a cujos pés o senhor costuma
vilmente prostrar-se: liberte-a, venda-a, faça o que quiser. Ou eu ou ela havemos de
abandonar para sempre esta casa; e isto hoje mesmo. Escolha entre nos.
— Hoje?!
— E já!
— És muito exigente e injusta para comigo, Malvina, - disse Leôncio depois
de um momento de pasmo e hesitação. — Bem sabes que é meu desejo libertar
Isaura; mas acaso depende isso de mim somente? é a meu pai que compete fazer o
que de mim exiges.
— Que miserável desculpa, senhor! seu pai já lhe entregou escravos e
fazenda, e dará por bem feito tudo quanto o senhor fizer. Mas se acaso o senhor a
prefere a mim...
— Malvina!... não digas tal blasfêmia!...
— Blasfêmia!... quem sabe!... mas enfim dê um destino qualquer a essa
rapariga, se não quer expelir-me para sempre de sua casa. Quanto a mim, não a
quero mais nem um momento em meu serviço; é bonita demais para mucama.
— O que lhe dizia eu, senhor Leôncio? acudiu Henrique, que já cansado e
envergonhado do papel de mudo guarda-costas, entendeu que devia intervir
também na querela. — Está vendo?.. eis aí o fruto que se colhe desses belos trastes
de luxo, que quer por força ter em seu salão...
— Esses trastes não seriam tão perigosos, se não existissem vis
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mexeriqueiros, que não hesitam em perturbar o sossego da casa dos outros para
conseguir seus fins perversos...
— Alto lá, senhor!... para impedir que o senhor não transportasse o seu
traste de luxo do salão para a alcova, percebe?... o escândalo cedo ou tarde seria
notório, e nenhum dever tenho eu de ver de braços cruzados minha irmã
indignamente ultrajada.
— Senhor Henrique! bradou Leôncio avançando para ele, hirto de cólera e
com gesto ameaçador.
— Basta, senhores — gritou Malvina interpondo-se aos dois mancebos. -
Toda a disputa por tal motivo é inútil e vergonhosa para nós todos. Eu já disse a
Leôncio o que tinha de dizer; ele que se decida; faça o que entender. Se quiser ser
homem de brio e pundonor, ainda é tempo. Se não, deixe-me, que eu o entregarei
ao desprezo que merece.
— Oh! Malvina! estou pronto a fazer todo o possível para te tranqüilizar e
contentar: mas deves saber que não posso satisfazer o teu desejo sem primeiro
entender-me com meu pai, que está na corte. É preciso mais que saibas, que meu
pai nenhuma vontade tem de libertar Isaura, tanto assim, que para se ver livre das
importunações do pai dela, que também quer a todo custo libertá-la, exigiu uma
soma por tal forma exorbitante, que é quase impossível o pobre homem arranjá-la.
— O de casa!... dá licença?— bradou neste momento com voz forte e
sonora uma pessoa, que vinha subindo a escada do alpendre.
— Quem quer que é, pode entrar, — gritou Leôncio dando graças ao céu,
que tão a propósito mandava-lhe uma visita para interromper aquela importuna e
detestável questão e livrá-lo dos apuros em que se via entalado.
Entretanto, como se verá, não tinha muito de que congratular-se. O visitante
era Miguel, o antigo feitor da fazenda, o pai de Isaura, que havia sido outrora
grosseiramente despedido pelo pai de Leôncio.
Este, que ainda o não conhecia, recebeu-o com afabilidade.
— Queira sentar-se, — disse-lhe, — e dizer-nos o motivo por que nos faz a
honra de procurar,
— Obrigado! — disse o recém-chegado, depois de cumprimentar
respeitosamente Henrique e Malvina. — V. Sa. sem dúvida é o senhor Leôncio?...
— Para o servir.
— Muito bem!... é com V. Sa. que tenho de tratar na falta do senhor seu
pai. O meu negócio é simples, e julgo que o posso declarar em presença aqui do
senhor e da senhora, que me parecem ser pessoas de casa.
— Sem dúvida! entre nós não há segredo, nem reservas.
— Eis aqui ao que vim, senhor meu, — disse Miguel, tirando da algibeira de
seu largo sobretudo uma carteira, que apresentou a Leôncio; — faça o favor de abrir
esta carteira; aqui encontrará V. Sa. a quantia exigida pelo senhor seu pai, para a
liberdade de uma escrava desta casa por nome Isaura.
Leôncio enfiou, e tomando maquinalmente a carteira, ficou alguns instantes
com os olhos pregados no teto.
— Pelo que vejo, — disse por fim, — o senhor deve ser o pai... aquele que
dizem ser o pai da dita escrava. — é o senhor. — não me lembra o nome..
— Miguel, um criado de V. Sa.
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— É verdade; o senhor Miguel. Folgo muito que tenha arranjado meios de
libertar a menina; ela bem merece esse sacrifício.
Enquanto Leôncio abre a carteira, e conta e reconta mui pausadamente
nota por nota o dinheiro, mais para ganhar tempo a refletir sobre o que deveria fazer
naquelas conjunturas, do que para verificar se estava exata a soma, aproveitemo-
nos do ensejo para contemplar a figura do bom e honrado português, pai da nossa
heroína, de quem ainda não nos ocupamos senão de passagem.
Era um homem de mais de cinqüenta anos; em sua fisionomia nobre e
alerta transpirava a franqueza, a bonomia, e a lealdade.
Trajava pobremente, mas com muito alinho e limpeza, e por suas maneiras
e conversação, conhecia-se que aquele homem não viera ao Brasil, como quase
todos os seus patrícios, dominado pela ganância de riquezas. Tinha o trato e a
linguagem de um homem polido, e de acurada educação. De feito Miguel era filho de
uma nobre e honrada família de miguelistas, que havia emigrado para o Brasil. Seus
pais, vítimas de perseguições políticas, morreram sem ter nada que legar ao filho,
que deixaram na idade de dezoito a vinte anos. Sozinho, sem meios e sem proteção,
viu-se forçado a viver do trabalho de seus braços, metendo-se a jardineiro e
horticultor, mister este, que como filho de lavrador, robusto, ativo e inteligente,
desempenhava com suma perícia e perfeição.
O pai de Leôncio, tendo tido ocasião de conhecê-lo, e apreciando o seu
merecimento, o engajou para feitor de sua fazenda com vantajosas condições. Ali
serviu muitos anos sempre mui respeitado e querido de todos, até que aconteceu-
lhe a fatal, mas muito desculpável fraqueza, que sabemos, e em consequência da
qual foi grosseiramente despedido por seu patrão. Miguel concebeu amargo
ressentimento e mágoa profunda, não tanto por si, como por amor das duas infelizes
criaturas, que não podia proteger contra a sanha de um senhor perverso e brutal.
Mas forçoso lhe foi resignar-se. Não lhe faltava serviço nem acolhimento
pelas fazendas vizinhas. Conhecedores de seu mérito, os lavradores em redor o
aceitariam de braços abertos; a dificuldade estava na escolha.
Optou pelo mais vizinho, para ficar o mais perto possível de sua querida
filhinha.
Como o comendador quase sempre achava-se na corte ou em Campos,
Miguel tinha muita ocasião e facilidade de ir ver a menina, à qual cada vez ia criando
mais entranhado afeto. A esposa do comendador, na ausência deste, dava ao
português franca entrada em sua casa, e facilitava-lhe os meios de ver e afagar a
filhinha, com o que vivia ele mui consolado e contente. De feito o céu tinha dado à
sua filha na pessoa de sua senhora uma segunda mãe tão boa e desvelada, como
poderia ser a primeira, e que mais do que esta lhe podia servir de amparo e
proteção. A morte inesperada daquela virtuosa senhora veio despedaçar-lhe o
coração, quebrando-lhe todas as suas lisonjeiras esperanças.
Muito pode o amor paterno em uma alma nobre e sensível!...
Miguel, sobrepujando todo o ódio, repugnância e asco, que lhe inspirava a
pessoa do comendador, não hesitou em ir humilhar-se diante dele, importuná-lo com
suas súplicas, rogar-lhe com as lágrimas nos olhos, que abrisse preço à liberdade de
Isaura.
— Não há dinheiro que a pague; há de ser sempre minha, — respondia com
orgulhoso cinismo o inexorável senhor ao infeliz e aflito pai.
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Um dia enfim para se ver livre das importunações e súplicas de Miguel,
disse-lhe com mau modo:
— Homem de Deus, traga-me dentro de um ano dez contos de réis, e lhe
entrego livre a sua filha e... deixe-me por caridade. Se não vier nesse prazo, perca
as esperanças.
— Dez contos de réis! é soma demasiado forte para mim.. – mas não
importa!... ela vale muito mais do que isso. Senhor comendador, vou fazer o
impossível para trazer-lhe essa soma dentro do prazo marcado. Espero em Deus,
que me há de ajudar.
O pobre homem, à força de trabalho e economia, impondo-se privações,
vendendo todo o supérfluo, e limitando-se ao que era estritamente necessário, no
fim do ano apenas tinha arranjado metade da quantia exigida. Foi-lhe mister recorrer
à generosidade de seu novo patrão, o qual, sabendo do santo e nobre fim a que se
propunha seu feitor, e do vexame e extorsão de que era vítima, não hesitou em
fornecer-lhe a soma necessária, a título de empréstimo ou adiantamento de salários.
Leôncio, que como seu pai julgava impossível que Miguel em um ano
pudesse arranjar tão considerável soma, ficou atônito e altamente contrariado,
quando este se apresentou para lha meter nas mãos.
— Dez contos, – disse por fim Leôncio acabando de contar o dinheiro. — É
justamente a soma exigida por meu pai. — Bem estólido e avaro é este meu pai,
murmurou ele consigo, — eu nem por cem contos a daria. — Senhor Miguel, —
continuou em voz alta, entregando-lhe a carteira, — guarde por ora o seu dinheiro;
Isaura não me pertence ainda; só meu pai pode dispor dela. Meu pai acha-se na
corte, e não deixou-me autorização alguma para tratar de semelhante negócio.
Arranje-se com ele.
— Mas V. Sa. é seu filho e herdeiro único, e bem podia por si mesmo...
— Alto lá, senhor Miguel! meu pai felizmente é vivo ainda, e não me é
permitido desde já dispor de seus bens, como minha herança.
— Embora, senhor; tenha a bondade de guardar esse dinheiro e enviá-lo ao
senhor seu pai, rogando-lhe da minha parte o favor de cumprir a promessa que me
fez de dar liberdade a Isaura mediante essa quantia.
— Ainda pões dúvida, Leôncio?! – exclamou Malvina impaciente e
indignada com as tergiversações do marido. — Escreve, escreve quanto antes a teu
pai; não te podes esquivar sem desonra a cooperar para a liberdade dessa rapariga.
Leôncio, subjugado pelo olhar imperioso da mulher, e pela força das
circunstâncias, que contra ele conspiravam, não pôde mais escusar-se. Pálido e
pensativo, foi sentar-se junto a uma mesa, onde havia papel e tinta, e de pena em
punho pôs-se a meditar em atitude de quem ia escrever. Malvina e Henrique,
debruçados a uma janela, conversavam entre si em voz baixa. Miguel, sentado a um
canto na outra extremidade da sala, esperava pacientemente, quando Isaura, que do
quintal, onde se achava escondida, o tinha visto chegar, entrando no salão sem ser
sentida, se lhe apresentou diante dos olhos. Entre pai e filha travou-se a meia voz o
seguinte diálogo:
— Meu pai!... que novidade o traz aqui?... a modo que lhe estou vendo um
ar mais alegre que de costume.
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— Calada! — murmurou Miguel, levando o dedo à boca e apontando para
Leôncio. — Trata-se da tua liberdade.
— Deveras, meu pai!... mas como pôde arranjar isso?
— Ora como?!... a peso de ouro. Comprei-te, minha filha, e em breve vais
ser minha.
— Ah! meu querido pai!... como vossemecê é bom para sua filha!... se
soubesse quantos hoje já me vieram oferecer a liberdade!... mas por que preço! meu
Deus!... nem me atrevo a lhe contar. Meu coração adivinhava, continuou beijando
com terna efusão as mãos de Miguel; — eu não devia receber a liberdade senão das
mãos daquele que me deu a vida!...
— Sim, querida Isaura! — disse o velho apertando-a contra o coração. — O
céu nos favoreceu, e em breve vais ser minha, minha só, minha para sempre!...
— Mas ele consente?... perguntou Isaura apontando para Leôncio.
— O negócio não é com ele, é com seu pai, a quem agora escreve.
— Nesse caso tenho alguma esperança; mas se minha sorte depender
somente daquele homem, serei para sempre escrava.
— Arre! com mil diabos!... resmungou consigo Leôncio levantando-se, e
dando sobre a mesa um furioso murro com o punho fechado. — Não sei que volta
hei de dar para desmanchar esta inqualificável loucura de meu pai!
— Já escreveste, Leôncio? — perguntou Malvina voltando-se para dentro.
Antes que Leôncio pudesse responder a esta pergunta, um pajem, entrando
rapidamente pela sala, entrega-lhe uma carta tarjada de preto.
— De luto!... meu Deus!... que será! — exclamou Leôncio, pálido e trêmulo,
abrindo a carta, e depois de a ter percorrido rapidamente com os olhos lançou-se
sobre uma cadeira, soluçando e levando o lenço aos olhos.
— Leôncio! Leôncio!... que tem?... exclamou Malvina pálida de susto; e
tomando a carta que Leôncio atirara sobre a mesa, começou a ler com voz
entrecortada: "Leôncio, tenho a dar-te uma dolorosa notícia, para a qual teu coração
não podia estar preparado. E um golpe, pelo qual todos nós temos de passar
inevitavelmente, e que deves suportar com resignação. Teu pai já não existe;
sucumbiu anteontem subitamente, vítima de uma congestão cerebral..."
Malvina não pôde continuar; e nesse momento, esquecendo-se das injúrias
e de tudo que lhe havia acontecido naquele nefasto dia, lançou-se sobre seu marido,
e abraçando-se com ele estreitamente, misturava suas lágrimas com as dele.
—Ah! meu pai! meu pai!... tudo está perdido! — exclamou Isaura, pendendo
a linda e pura fronte sobre o peito de Miguel. — Já nenhuma esperança nos resta!...
—Quem sabe, minha filha! — replicou gravemente o pai. – Não
desanimemos; grande é o poder de Deus!...
CAPÍTULO VII
Na fazenda de Leôncio havia um grande salão toscamente construído, sem
forro nem soalho, destinado ao trabalho das escravas que se ocupavam em fiar e
tecer lã e algodão.
Os móveis deste lugar consistiam em tripeças, tamboretes, bancos, rodas
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de fiar, dobadouras, e um grande tear colocado a um canto.
Ao longo do salão, defronte de largas janelas guarnecidas de balaústres,
que davam para um vasto pálio interior, via-se postada uma fila de fiandeiras. Eram
de vinte a trinta negras, crioulas e mulatas, com suas tenras crias ao colo ou pelo
chão a brincarem em redor delas.
Umas conversavam, outras cantarolavam para encurtarem as longas horas
de seu fastidioso trabalho. Viam-se ali caras de todas as idades, cores e feitios,
desde a velha africana, trombuda e macilenta, até à roliça e luzidia crioula, desde a
negra brunida como azeviche até à mulata quase branca.
Entre estas últimas distinguia-se uma rapariguinha, a mais faceira e gentil
que se pode imaginar nesse gênero. Esbelta e flexível de corpo, tinha o rostinho
mimoso, lábios um tanto grossos, mas bem modelados, voluptuosos, úmidos, e
vermelhos como boninas que acabam de desabrochar em manhã de abril. Os olhos
negros não eram muito grandes, mas tinham uma viveza e travessura encantadoras.
Os cabelos negros e anelados podiam estar bem na cabeça da mais branca fidalga
de além-mar. Ela porém os trazia curtos e mui bem frisados à maneira dos homens.
Isto longe de tirar-lhe a graça, dava à sua fisionomia zombeteira e espevitada um
chispe original e encantador. Se não fossem os brinquinhos de ouro, que lhe
tremiam nas pequenas e bem molduradas orelhas, e os túrgidos e ofegantes seios
que como dois trêfegos cabritinhos lhe pulavam por baixo de transparente camisa,
tomá-la-íeis por um rapazote maroto e petulante. Veremos em breve de que ralé era
esta criança, que tinha o bonito nome de Rosa.
No meio do sussurro das rodas, que giravam, das monótonas cantarolas
das fiandeiras, do compasso estrépito do tear, que trabalhava incessantemente, dos
guinchos e alaridos das crianças, quem prestasse atento ouvido, escutaria a
seguinte conversação, travada timidamente e a meia voz em um grupo de fiandeiras,
entre as quais se achava Rosa.
— Minhas camaradas, — dizia a suas vizinhas uma crioula idosa, matreira e
sabida em todos os mistérios da casa desde os tempos dos senhores velhos, —
agora que sinhô velho morreu, e que sinhá Malvina foi-se embora para a casa de
seu pai dela, é que nós vamos ver o que e rigor de cativeiro.
— Como assim, tia Joaquina?!...
— Como assim!... vocês verão. Vocês bem sabem, que sinhô velho não era
de brinquedo; pois sim; lá diz o ditado — atrás de mim virá quem bom me fará. —
Este sinhô moço Leôncio... hum!... Deus queira que me engane... quer-me parecer
que vai-nos fazer ficar com saudade do tempo de sinhô velho...
— Cruz! ave Maria!... não fala assim, tia Joaquina!... então é melhor matar a
gente de uma vez...
— Este não quer saber de fiados nem de tecidos, não; e daqui a pouco nós
tudo vai pra roça puxar enxada de sol a sol, ou pra o cafezal apanhar café, e o pirai
do feitor aí rente atrás de nós. Vocês verão. Ele o que quer é café, e mais café, que
é o que dá dinheiro.
— Também, a dizer a verdade, não sei o que será melhor, — observou
outra escrava, — se estar na roça trabalhando de enxada, ou aqui pregada na roda,
desde que amanhece até nove, dez horas da noite. Quer-me parecer que lã ao
menos a gente fica mais à vontade.
— Mais à vontade?!.., que esperança! — exclamou uma terceira.
— Antes, aqui, mil vezes! aqui ao menos a gente sempre está livre do
maldito feitor.
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— Qual, minha gente! — ponderou a velha crioula — tudo é cativeiro. Quem
teve a desgraça de nascer cativo de um mau senhor, dê por aqui, dê por acolá, há
de penar sempre. Cativeiro é má sina; não foi Deus que botou no mundo semelhante
coisa, não; foi invenção do diabo. Não vê o que aconteceu com a pobre Juliana, mãe
de Isaura?
— Por falar nisso, — atalhou uma das fiandeiras, — o que fica fazendo
agora a Isaura?... enquanto sinhá Malvina estava aí, ela andava de estadão na sala,
agora...
— Agora fica fazendo as vezes de sinhá Malvina, — acudiu Rosa com seu
sorriso maligno e zombeteiro.
— Cala a boca, menina! — bradou com voz severa a velha crioula.
— Deixa dessas falas. Coitada da Isaura. Deus te livre a você de estar na
pele daquela pobrezinha! se vocês soubessem quanto penou a pobre da mãe dela!
ah! aquele sinhô velho foi um home judeu mesmo, Deus te perdoe. Agora com
Isaura e sinhô Leôncio a coisa vai tomando o mesmo rumo. Juliana era uma mulata
bonita e sacudida; era da cor desta Rosa mas inda mais bonita e mais bem feita...
Rosa deu um muxoxo, e fez um momo desdenhoso.
— Mas isso mesmo foi a perdição dela, coitada! — continuou a crioula
velha. — O ponto foi sinhô velho gostar dela... eu já contei a vocês o que é que
aconteceu. Juliana era uma rapariga de brio, e por isso teve de penar, até morrer.
Nesse tempo o feitor era esse siô Miguel, que anda aí, e que é pai de Isaura. Isso é
que era feitor bom!... todo mundo queria ele bem, e tudo andava direito. Mas esse
siô Francisco, que ai anda agora, cruz nele!... é a pior peste que tem botado os pés
nesta casa. Mas, como ia dizendo, o siô Miguel gostava muito de Juliana, e
trabalhou, trabalhou até ajuntar dinheiro para forrar ela. Mas nhonhô não esteve por
isso, ficou muito zangado, e tocou o feitor para fora.
Também Juliana pouco durou; pirai e serviço deu co'ela na cova em pouco
tempo. Picou aí a pobre menina ainda de mama, e se não fosse sinhá velha, que era
uma santa mulher, Deus sabe o que seria dela!... também, coitada!... antes Deus a
tivesse levado!...
— Por quê, tia Joaquina?...
— Porque está-me parecendo, que ela vai ter a mesma sina da mãe...
— E o que mais merece aquela impostora? — murmurou a invejosa e
malévola Rosa. — Pensa que por estar servindo na sala é melhor do que as outras,
e não faz caso de ninguém. Deu agora em namorar os moços brancos, e como o pai
diz que há de forrar ela, pensa que e uma grande senhora. Pobre do senhor
Miguel!... não tem onde cair morto, e há de ter para forrar a filha!
— Que má língua é esta Rosa! — murmurou enfadada a velha crioula,
relanceando um olhar de repreensão sobre a mulata. – Que mal te fez a pobre
Isaura, aquela pomba sem fel, que com ser o que e, bonita e civilizada como
qualquer moça branca, não é capaz de fazer pouco caso de ninguém?... Se você se
pilhasse no lugar dela, pachola e atrevida como és, havias de ser mil vezes pior.
Rosa mordeu os beiços de despeito, e ia responder com todo o atrevimento
e desgarre, que lhe era próprio, quando uma voz áspera e atroadora, que, partindo
da porta do salão, retumbou por todo ele, veio pôr termo à conversação das
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fiandeiras.
— Silêncio! — bradava aquela voz. — Arre! que tagarelice!... parece que
aqui só se trabalha de língua!...
Um homem espadaúdo e quadrado, de barba espessa e negra, de
fisionomia dura e repulsiva, apresenta-se à porta do salão, e vai entrando. Era o
feitor. Acompanhava-o um mulato ainda novo, esbelto e aperaltado, trajando uma
bonita libré de pajem, e conduzindo uma roda de fiar. Logo após eles entrou Isaura.
As escravas todas levantaram-se e tomaram a bênção ao feitor.
Este mandou colocar a roda em um espaço desocupado, que infelizmente
para Isaura ficava ao pé de Rosa.
— Anda cá, rapariga; — disse o feitor voltando-se para Isaura. — De hoje
em diante é aqui o teu lugar; esta roda te pertence, e tuas parceiras que te dêem
tarefa para hoje. Bem vejo que te não há de agradar muito a mudança; mas que
volta se lhe há de dar?... teu senhor assim o quer. Anda lá; olha que isto não é
piano, não; é acabar depressa com a tarefa para pegar em outra. Pouca conversa e
muito trabalhar...
Sem se mostrar contrariada nem humilhada com a nova ocupação, que lhe
davam, Isaura foi sentar-se junto a roda, e pôs-se a prepará-la para dar começo ao
trabalho. Posto que criada na sala e empregada quase sempre em trabalhos
delicados, todavia era ela hábil em todo o gênero de serviço doméstico: sabia fiar,
tecer, lavar, engomar, e cozinhar tão bem ou melhor do que qualquer outra. Foi pois
colocar-se com toda a satisfação e desembaraço entre as suas parceiras; apenas
notava-se no sorriso, que lhe adejava nos lábios, certa expressão de melancólica
resignação; mas isso era o reflexo das inquietações e angústias, que lhe oprimiam o
coração, que não desgosto por se ver degradada do posto que ocupara toda sua
vida junto de suas senhoras.
Cônscia de sua condição, Isaura procurava ser humilde como qualquer
outra escrava, porque a despeito de sua rara beleza e dos dotes de seu espirito, os
fumos da vaidade não lhe intumesciam o coração, nem turvavam-lhe a luz de seu
natural bom senso. Não obstante porém toda essa modéstia e humildade transiuzia-
lhe, mesmo a despeito dela, no olhar, na linguagem e nas maneiras, certa dignidade
e orgulho nativo, proveniente talvez da consciência de sua superioridade, e ela sem
o querer sobressaía entre as outras, bela e donosa, pela correção e nobreza dos
traços fisionômicos e por certa distinção nos gestos e ademanes. Ninguém diria que
era uma escrava, que trabalhava entre as companheiras, e a tomaria antes por uma
senhora moça, que, por desenfado, fiava entre as escravas. Parecia a garça-real,
alçando o colo garboso e altaneiro, entre uma chusma de pássaros vulgares.
As outras escravas a contemplavam todas com certo interesse e
comiseração, porque de todas era querida, menos de Rosa, que lhe tinha inveja e
aversão mortal. Em duas palavras o leitor ficará inteirado do motivo desta
malevolência de Rosa. Não era só pura inveja; havia aí alguma coisa de mais
positivo, que convertia essa inveja em ódio mortal.
Rosa havia sido de há muito amásia de Leôncio, para quem fora fácil
conquista, que não lhe custou nem rogos nem ameaças. Desde que, porém,
inclinou-se a Isaura, Rosa ficou inteiramente abandonada e esquecida.
A gentil mulatinha sentiu-se cruelmente ferida em seu coração com esse
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desdém, e como era maligna e vingativa, não podendo vingar-se de seu senhor,
jurou descarregar todo o peso de seu rancor sobre a pessoa de sua infeliz rival.
— Um raio que te parta, maldito! — Má lepra te consuma, coisa ruim! —
Uma cascavel que te morda a língua, cão danado! — Estas e outras pragas
vomitavam as escravas resmungando entre si contra o feitor, apenas este voltou-
lhes as costas. O feitor é o ente mais detestado entre os escravos; um carrasco não
carrega com tantos ódios abominado mais do que o senhor cruel, que o muniu do
azorrague desapiedado para açoitá-los e acabrunhá-los de trabalhos. É assim que o
paciente se esquece do juiz, que lavrou a sentença para revoltar-se contra o algoz,
que a executa.
Como já dissemos, coube em sorte a Isaura sentar-se perto de Rosa. Esta
assestou logo contra sua infeliz companheira a sua bateria de ditérios e remoques
sarcásticos e irritantes.
— Tenho bastante pena de você, Isaura. disse Rosa para dar começo às
operações.
— Deveras! — respondeu Isaura, disposta a opor às provocações de Rosa
toda a sua natural brandura e paciência. Pois por quê, Rosa?...
— Pois não é duro mudar-se da sala para a senzala, trocar o sofá de
damasco por esse cepo, o piano e a almofada de cetim por essa roda? Por que te
enxotaram de lá, Isaura?
— Ninguém me enxotou, Rosa; você bem sabe. Sinhá Malvina foi-se
embora em companhia de seu irmão para a casa do pai dela. — Portanto nada
tenho que fazer na sala, e é por isso que venho aqui trabalhar com vocês.
— E por que é que ela não te levou, você, que era o ai-jesus dela?... Ah!
Isaura, você cuida que me embaça, mas está muito enganada; eu sei de tudo. Você
estava ficando muito aperaltada, e por isso veio aqui para conhecer o seu lugar.
— Como és maliciosa! — replicou Isaura sorrindo tristemente, mas sem se
alterar; pensas então que eu andava muito contente e cheia de mim por estar lá na
sala no meio dos brancos?... como te enganas!... se me não perseguires com a tua
má língua, como principias a fazer, creio que hei de ficar mais satisfeita e sossegada
aqui.
— Nessa não creio eu; como é que você pode ficar satisfeita aqui, se não
acha moços para namorar?
— Rosa, que mal te fiz eu, para estares assim a amofinar-me com essas
falas?...
— Olhe a sinhá, não se zangue!... perdão, dona Isaura; eu pensei que a
senhora tinha esquecido os seus melindres lá no salão.
— Podes dizer o que quiseres, Rosa; mas eu bem sei, que na sala ou na
cozinha eu não sou mais do que uma escrava como tu. Também deves-te lembrar,
que se hoje te achas aqui, amanhã sabe Deus onde estarás. Trabalhemos, que é
nossa obrigação. deixemos dessas conversas que não têm graça nenhuma.
Neste momento ouvem-se as badaladas de uma sineta; eram três para
quatro horas da tarde; a sineta chamava os escravos a jantar. As escravas
suspendem seus trabalhos e levantam-se; Isaura porém não se move, e continua a
fiar.
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— Então? — diz-lhe Rosa com o seu ar escarninho, — você não ouve,
Isaura? são horas; vamos ao feijão.
— Não, Rosa; deixem-me ficar aqui; não tenho fome nenhuma. Fico
adiantando minha tarefa, que principiei muito tarde.
— Tem razão; também uma rapariga civilizada e mimosa como você não
deve comer do caldeirão dos escravos. Quer que te mande um caldinho, um
chocolate?...
— Cala essa boca, tagarela! — bradou a crioula velha, que parecia ser a
priora daquele rancho de fiandeiras. — Forte lingüinha de víbora!... deixa a outra
sossegar. Vamos, minha gente.
As escravas retiraram-se todas do salão, ficando só Isaura, entregue ao
seu trabalho e mais ainda às suas tristes e inquietadoras reflexões. O fio se estendia
como que maquinalmente entre seus dedos mimosos, enquanto o pezinho nu e
delicado, abandonando o tamanquinho de marroquim, pousava sobre o pedal da
roda, a que dava automático impulso. A fronte lhe pendia para um lado como
açucena esmorecida, e as pálpebras meio cerradas eram como véus melancólicos,
que encobriam um pego insondável de tristura e desconforto. Estava deslumbrante
de beleza naquela encantadora e singela atitude.
— Ah! meu Deus! — pensava ela; nem aqui posso achar um pouco de
sossego!... em toda parte juraram martirizar-me!... Na sala, os brancos me
perseguem e armam mil intrigas e enredos para me atormentarem. Aqui, onde entre
minhas parceiras, que parecem me querer bem, esperava ficar mais tranqüila, há
uma, que por inveja, ou seja lá pelo que for, me olha de revés e só trata de
achincalhar-me.
— Meu Deus! meu Deus!... já que tive a desgraça de nascer cativa, não era
melhor que tivesse nascido bruta e disforme, como a mais vil das negras, do que ter
recebido do céu estes dotes, que só servem para amargurar-me a existência?
Isaura não teve muito tempo para dar larga expansão às suas angustiosas
reflexões. Ouviu rumor na porta, e levantando os olhos viu que alguém se
encaminhava para ela.
— Ai! meu Deus! — murmurou consigo. — Aí temos nova importunação!
nem ao menos me deixam ficar sozinha um instante.
Quem entrava era, sem mais nem menos, o pajem André, que já vimos em
companhia do feitor, e que mui ancho, empertigado e petulante se foi colocar
defronte de Isaura.
— Boa tarde, linda Isaura. Então, como vai essa flor? — saudou o pachola
do pajem com toda a faceirice.
— Bem, respondeu secamente Isaura.
— Estás mudada?... tens razão, mas é preciso ir-se acomodando com este
novo modo de vida. Deveras que para quem estava acostumada lá na sala, no meio
de sedas e flores e águas-de-cheiro, há de ser bem triste ficar aqui metida entre
estas paredes enfumaçadas que só tresandam a sarro de pito e morrão de candeia.
— Também tu, André, vens por tua vez aproveitar-te da ocasião para me
atirar lama na cara?...
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— Não, não, Isaura; Deus me livre de te ofender; pelo contrário, dói-me
deveras dentro do coração ver aqui misturada com esta corja de negras beiçudas e
catinguentas uma rapariga como tu, que só merece pisar em tapetes e deitar em
colchões de damasco. Esse senhor Leôncio tem mesmo um coração de fera.
— E que te importa isso? eu estou bem satisfeita aqui.
— Qual!... não acredito; não é aqui teu lugar. Mas também por outra banda
estimo bem isso.
— Por quê?
— Porque, enfim, Isaura, a falar-te a verdade, gosto muito de você, e aqui
ao menos podemos conversar mais em liberdade...
— Deveras!... declaro-te desde já que não estou disposta a ouvir tuas
liberdades.
— Ah! é assim! — exclamou André todo enfunado com este brusco
desengano. — Então a senhora quer só ouvir as finezas dos moços bonitos lá na
sala!... pois olha, minha camarada, isso nem sempre pode ser, e cá da nossa laia
não és capaz de encontrar rapaz de melhor figura do que este seu criado. Ando
sempre engravatado, enluvado, calçado, engomado, agaloado, perfumado, e o que
mais e, — acrescentou batendo com a mão na algibeira, — com as algibeiras
sempre a tinir. A Rosa, que também é uma rapariguinha bem bonita, bebe os ares
por mim; mas coitada!... o que é ela ao pé de você?...
Enfim, Isaura, se você soubesse quanto bem te quero, não havias de fazer
tão pouco caso de mim. Se tu quisesses, olha... escuta.
E dizendo isto o maroto do pajem, avizinhando-se de Isaura, foi-lhe
lançando desembaraçadamente o braço em torno do colo, como quem queria falar-
lhe em segredo, ou talvez furtar-lhe um beijo.
— Alto lá! —exclamou Isaura repelindo-o com enfado. – Está ficando
bastante adiantado e atrevido. Retire-se daqui, se não irei dizer tudo ao senhor
Leôncio.
— Oh! perdoa, Isaura; não há motivo para você se arrufar assim. És muito
má, para quem nunca te ofendeu, e te quer tanto bem. Mas deixa estar, que o tempo
há de te amaciar esse coraçãozinho de pedra.
— Adeus; eu já me vou embora; mas olha lá, Isaura; pelo amor de Deus,
não vá dizer nada a ninguém. Deus me livre que sinhó moço saiba do que aqui se
passou; era capaz de me enforcar. O que vale, — continuou André consigo e
retirando-se, — o que vale é que neste negócio parece-me que ele anda tão
adiantado como eu.
Pobre Isaura! sempre e em toda parte esta contínua importunação de
senhores e de escravos, que não a deixam sossegar um só momento! Como não
devia viver aflito e atribulado aquele coração!
Dentro de casa contava ela quatro inimigos, cada qual mais porfiado em
roubar-lhe a paz da alma, e torturar-lhe o coração: três amantes, Leôncio, Belchior, e
André, e uma êmula terrível e desapiedada, Rosa. Fácil lhe fora repelir as
importunações e insolências dos escravos e criados; mas que seria dela, quando
viesse o senhor?!...
De feito, poucos instantes depois Leôncio, acompanhado pelo feitor, entrava
no salão das fiandeiras. Isaura, que um momento suspendera o seu trabalho, e com
o rosto escondido entre as mãos se embevecia em amargas reflexões, não se
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apercebera da presença deles.
— Onde estão as raparigas que aqui costumam trabalhar?... perguntou
Leôncio ao feitor, ao entrar no salão.
— Foram jantar, senhor; mas não tardarão a voltar.
— Mas uma cá se deixou ficar... ah! é a Isaura... Ainda bem! — refletiu
consigo Leôncio, — a ocasião não pode ser mais favorável; tentemos os últimos
esforços para seduzir aquela empedernida criatura.
Logo que acabem de comer, — continuou ele dirigindo-se ao feitor, — leve-
as para a colheita do café. Há muito que eu pretendia recomendar-lhe isto e tenho-
me esquecido. Não as quero aqui mais nem um instante; isto é um lugar de
vadiação, em que perdem o tempo sem proveito algum, em continuas palestras. Não
faltam por aí tecidos de algodão para se comprar.
Mal o feitor se retirou, Leôncio dirigiu-se para junto de Isaura.
— Isaura! murmurou com voz meiga e comovida.
— Senhor! — respondeu a escrava erguendo-se sobressaltada; depois
murmurou tristemente dentro d'alma: — meu Deus! é ele!... é chegada a hora do
suplício.
CAPÍTULO VIII
Agora nos é indispensável abandonar por alguns instantes Isaura em sua
penível situação diante de seu dissoluto e bárbaro senhor para informarmos o leitor
sobre o que ocorrera no seio daquela pequena família, e em que pé ficaram os
negócios da casa, depois que a notícia da morte do comendador, estalando como
uma bomba no meio das intrigas domésticas, veio dar-lhes dolorosa diversão no
momento em que elas, refervendo no mais alto grau de ebulição, reclamavam
forçosamente um desenlace qualquer.
Aquela morte não podia senão prolongar tão melindrosa e deplorável
situação, pondo nas mãos de Leôncio toda a fortuna patema, e desatando as últimas
peias que ainda o tolhiam na expansão de seus abomináveis instintos.
Leôncio e Malvina estiveram de nojo encerrados em casa por alguns dias,
durante os quais parece que deram tréguas aos arrufos e despeitos recíprocos.
Henrique, que queria absolutamente partir no dia seguinte, cedendo enfim aos rogos
e instâncias de Malvina, consentiu em ficar-lhe fazendo companhia durante os dias
de nojo.
— Conforme for o procedimento de meu marido, disse-lhe ela, — iremos
juntos. Se por estes dias não der liberdade e um destino qualquer a Isaura, não
ficarei mais nem um momento em sua casa.
Leôncio encerrado em seu quarto a ninguém falou, nem apareceu durante
alguns dias, e parecia mergulhado no mais inconsolável e profundo pesar.
Entretanto, não era assim. É verdade que Leôncio não deixou de sofrer certo
choque, certa surpresa, que não golpe doloroso, com a noticia do falecimento de seu
pai; mas no fundo d'alma, — força é dizê-lo, — passado o primeiro momento de
abalo e consternação chegou até a estimar aquele acontecimento, que tanto a
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propósito vinha livrá-lo dos apuros em que se achava enleado em face de Malvina e
de Miguel. Portanto, durante a sua reclusão, em vez de entregar-se à dor que lhe
deveria causar tão sensível golpe, Leôncio, que por maneira nenhuma podia
resignar-se a desfazer-se de Isaura, só meditava os meios de safar-se das
dificuldades, em que se achava envolvido, e urdia planos para assegurar-se da
posse da gentil cativa. As dificuldades eram grandes, e constituíam um nó, que
poderia ser cortado, mas nunca desatado. Leôncio havia reconhecido a promessa
que seu pai fizera a Miguel, de alforriar Isaura mediante a soma enorme de dez
contos de réis.
Miguel tinha pronta essa quantia, e lha tinha vindo meter nas mãos,
reclamando a liberdade de sua filha. Leôncio reconhecia também, e nem podia
contestar, que sempre fora voto de sua falecida mãe deixar livre Isaura por sua
morte. Por outro lado Malvina, sabedora de sua paixão e de seus sinistros intentos
sobre a cativa, justamente irritada, exigia com império a imediata alforria da mesma.
Não restava ao mancebo meio algum de se tirar decentemente de tantas
dificuldades senão libertando Isaura. Mas Leôncio não podia se conformar com
semelhante idéia. O violento e cego amor, que Isaura lhe havia inspirado, o incitava
a saltar por cima de todos os obstáculos, a arrostar todas as leis do decoro e da
honestidade, a esmagar sem piedade o coração de sua meiga e carinhosa esposa,
para obter a satisfação de seus frenéticos desejos. Resolveu pois cortar o nó,
usando de sua prepotência, e protelando indefinidamente o cumprimento de seu
dever, assentou de afrontar com cínica indiferença e brutal sobranceria as justas
exigências e exprobrações de Malvina.
Quando esta, depois de deixar passar alguns dias em respeito à dor de que
julgava seu marido acabrunhado, lhe tocou naquele melindroso negócio:
— Temos tempo, Malvina, — respondeu-lhe o marido com toda a calma. —
É-me preciso em primeiro lugar dar balanço e fazer o inventário da casa de meu pai.
Tenho de ir à corte arrecadar os seus papéis e tomar conhecimento do estado de
seus negócios. Na volta e com mais vagar trataremos de Isaura.
Ao ouvir esta resposta o rosto de Malvina cobriu-se de palidez mortal; ela
sentiu esfriar-lhe o coração apertado entre as mãos geladas do mais pungente
dissabor, como se ali se esmoronasse de repente todo o sonhado castelo de suas
aventuras conjugais. Ela esperava que o marido fulminado por tão doloroso golpe
naqueles dias de amarga meditação e abatimento, retraindo-se no santuário da
consciência, reconhecesse seus erros e desvanos, implorasse o perdão deles, e se
propusesse a entrar nas sendas do dever e da honestidade. As frias desculpas e
fúteis evasivas do marido vieram submergi-la de chofre no mais amargo e profundo
desalento.
— Como?! — exclamou ela com um acento que exprimia a um tempo altiva
indignação e o mais entranhado desgosto. — Pois ainda hesitas em cumprir tão
sagrado dever?... se tivesses alma, Leôncio, terias considerado Isaura como tua
irmã, pois bem sabes que tua mãe a amava e idolatrava como a uma filha querida, e
que era seu mais ardente desejo libertá-la por sua morte e deixar-lhe um legado
considerável, que lhe assegurasse o futuro. Sabes também que teu pai havia feito
promessa solene ao pai de Isaura de dar-lhe alforria pela quantia de dez contos de
réis, e Miguel já te veio pôr nas mãos essa exorbitante quantia. Sabes tudo isto, e
ainda vens com dúvidas e demoras!...
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Oh! isto é muito!... não vejo motivo nenhum para demorar o cumprimento de
um dever de que há muito tempo já devias ter-te desempenhado.
— Mas para que semelhante pressa?... não me dirás Malvina? — replicou
Leôncio com a maior brandura e tranqüilidade. — De que proveito pode ser agora a
liberdade para Isaura? porventura não está ela aqui bem? é maltratada?... sofre
alguma privação?... não continua a ser considerada antes como uma filha da família,
do que como uma escrava? queres que desde já a soltemos à toa por esse
mundo?... assim decerto não cumpriremos o desejo de minha mãe, que tão solicita
se mostrava pela sorte futura de Isaura. Não, minha Malvina; não devemos por ora
entregar Isaura a si mesma. É preciso primeiro assegurar-lhe uma posição decente,
honesta e digna de sua beleza e educação, procurando-lhe um bom marido, e isso
não se arranja assim de um dia para outro.
— Que miserável desculpa, meu amigo!... Isaura por ora não precisa de
marido para protegê-la; tem o pai, que é homem muito de bem, e acaba de dar
provas de quanto adora sua filha. Entreguemo-la ao senhor Miguel, que ficará em
muito boas mãos, e debaixo de muito boa sombra.
— Pobre do senhor Miguel! — replicou Leôncio com sorriso desdenhoso. —
Terá bons desejos, não duvido; mas onde estão os meios, de que dispõe, para fazer
a felicidade de Isaura, principalmente agora em que decerto empenhou os cabelos
da cabeça para arranjar a alforria da filha, se é que isso não proveio de esmolas,
que lhe fizeram, como me parece mais certo.
Por única resposta Malvina abanou tristemente a cabeça e suspirou.
Todavia quis ainda acreditar na sinceridade das palavras de seu marido, fingiu-se
satisfeita e retirou-se sem dar mostras de agastamento. Não podia, porém, prolongar
por mais tempo aquela situação para ela tão humilhante, tão cheia de ansiedade e
desgosto, e no outro dia insistiu ainda com mais força sobre o mesmo objeto. Teve
em resposta as mesmas evasivas e moratórias. Leôncio afetava mesmo tratar desse
negócio com certa indiferença desdenhosa, como quem estava definitivamente
resolvido a fazer o que quisesse. Malvina desta vez não pôde conter-se, e rompeu
com seu marido. Este, como já friamente havia deliberado, aparou os raios da
cólera feminina no escudo de uma imprudência cínica e galhofeira, o que levou ao
último grau de exacerbação a cólera e o despeito de Malvina.
No outro dia Malvina, sem dar satisfação alguma a quem quer que fosse,
deixava precipitadamente a casa de Leôncio, e partia em companhia de seu irmão
Henrique a caminho do Rio de Janeiro, jurando no auge da indignação nunca mais
pôr os pés naquela casa, onde era tão vilmente ultrajada, e varrer para sempre da
lembrança a imagem de seu desleal e devasso marido. No assomo do despeito não
calculava se teria forças bastantes para levar a efeito aqueles frenéticos juramentos,
inspirados pela febre do ciúme e da indignação; ignorava que nas almas tenras e
bondosas como a sua o ódio se desvanece muito mais depressa do que o amor; e o
amor, que Malvina consagrava a Leôncio, a despeito de seus desmandos e
devassidões, era muito mais forte do que o seu ressentimento, por mais justo que
este fosse.
Leôncio por seu lado, levando por diante o seu plano de opor aos assomos
da esposa a mais inerte e cínica indiferença, viu de braços cruzados e sem fazer a
minima observação, os preparativos daquela rápida viagem, e recostado ao
alpendre, fumando indolentemente o seu charuto, assistiu à partida de sua mulher,
como se fora o mais indiferente dos hóspedes.
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Entretanto, essa indiferença de Leôncio nada tinha de natural e sincera; não
que ele sentisse pesar algum pela brusca partida de sua mulher; pelo contrário, era
júbilo, que sentia com a realização daquela caprichosa resolução de Malvina, que
assim lhe abandonava o campo inteiramente livre de embaraços, para prosseguir em
seus nefandos projetos sobre a infeliz Isaura. Com aquele fingido pouco-caso,
conseguia disfarçar o prazer e satisfação, em que lhe transbordava o coração; e
como era aforismo adotado e sempre posto em prática por ele, posto que em
circunstâncias menos graves, — que contra as cóleras e caprichos femininos não
há arma mais poderosa do que muito sangue-frio e pouco-caso, Malvina não pôde
descobrir no fundo daquela afetada indiferença o júbilo intenso em que nadava a
alma de seu marido.
O que era feito porém da nobre e infeliz Isaura durante esses longos dias de
luto, de consternação, de ansiedade e dissabores?
Desde que ouviu a leitura da carta, em que se noticiava a morte do
comendador, Isaura perdeu todas as lisonjeiras esperanças que um momento antes
Miguel fizera desabrochar em seu coração. Transida de horror, compreendeu que
um destino implacável a entregava vítima indefesa entre as mãos de seu tenaz e
desalmado perseguidor. Sabedora da miseranda sorte de sua mãe, não encontrava
em sua imaginação abalada outro remédio a tão cruel situação senão resignar-se e
preparar-se para o mais atroz dos martírios. Um cruel desalento, um pavor mortal
apoderou-se de seu espírito, e a infeliz, pálida, desfeita, e como que alucinada, ora
vagava à toa pelos campos, ora escondida nas mais espessas moitas do pomar, ou
nos mais sombrios recantos das alcovas, passava horas e horas entre sustos e
angústias, como a tímida lebre, que vê pairando no céu a asa sinistra do gavião de
garras sangrentas.
Quem poderia ampará-la? onde poderia encontrar proteção contra as
tirânicas vontades de seu libertino e execrável senhor? Só duas pessoas poderiam
ter por ela comiseração e interesse; seu pai e Malvina. Seu pai, obscuro e pobre
feitor, não tendo ingresso em casa de Leôncio, e só podendo comunicar-se com ela
a custo e furtivamente, em pouco ou nada podia valer-lhe. Malvina, que sempre a
havia tratado com tanta bondade e carinho, ai! a própria Malvina, depois da cena
escandalosa em que colhera seu marido, dirigindo a Isaura palavras enternecidas,
começou a olhá-la com certa desconfiança e afastamento, terrível efeito do ciúme,
que torna injustas e rancorosas as almas ainda as mais cândidas e benevolentes A
senhora, com o correr dos dias, tornava-se cada vez menos tratável e benigna para
com a escrava, que antes havia tratado com carinho e intimidade quase fraternal.
Malvina era boa e confiante, e nunca teria duvidado da inocência de Isaura,
se não fosse Rosa, sua terrível êmula e figadal inimiga.
Depois do desaguisado, de que Isaura foi causa inocente, Rosa ficou sendo
a mucama ou criada da câmara de Malvina, e esta às vezes desabafava em
presença da maligna mulata os ciúmes e desgostos que lhe ferviam e transvazavam
do coração.
— Sinhá está-se fiando muito naquela sonsa... — dizia-lhe a maliciosa
rapariga. — Pois fique certa que não são de hoje esses namoricos; há muito tempo
que eu estou vendo essa impostora, que diante da sinhá se faz toda simplória,
andar-se derretendo diante de sinhô moço.
— Ela mesmo é que tem a culpa de ele andar assim com a cabeça virada.
Estes e outros quejandos enredos, que Rosa sabia habilmente insinuar nos
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ouvidos de sua senhora, eram bastantes para desvairar o espírito de uma cândida e
inexperiente moça como Malvina, e foram produzindo o resultado que desejava a
perversa mulatinha.
Acabrunhada com aquele novo infortúnio, Isaura fez algumas tentativas
para achegar-se de sua senhora, e saber o motivo por que lhe retirava a afeição e
confiança, que sempre lhe mostrara, e a fim de poder manifestar sua inocência. Mas
era recebida com tal frieza e altivez, que a infeliz recuava espavorida para de novo ir
mergulhar-se mais fundo ainda no pego de suas angústias e desalentos.
Todavia, enquanto Malvina se conservava em casa, era sempre uma
salvaguarda, uma sombra protetora, que amparava Isaura contra as importunações
e brutais tentativas de Leôncio. Por menor que fosse o respeito, que lhe tinha o
marido, ela não deixava de ser um poderoso estorvo ao menos contra os atos de
violência, que quisesse pôr em prática para conseguir seus execrandos fins. Isaura
ponderava isso tudo, e é custoso fazer-se idéia do estado de terror e desfalecimento
em que ficou aquela pobre alma quando viu partir sua senhora, deixando-a
inteiramente ao desamparo, entregue sem defesa aos insanos e bárbaros caprichos
daquele que era seu senhor, amante e algoz ao mesmo tempo.
De feito, Leôncio mal viu sumir-se a esposa por trás da última colina, não
podendo conter mais a expansão de seu satânico júbilo, tratou logo de pôr o tempo
em proveito, e pôs-se a percorrer toda a casa em procura de Isaura. Foi enfim dar
com ela no escuro recanto de uma alcova, estendida por terra, quase exânime,
banhada em pranto e arrancando do peito soluços convulsivos.
Poupemos ao leitor a narração da cena vergonhosa que aí se deu.
Contentemo-nos com dizer que Leôncio esgotou todos os meios brandos e
suasivos ao seu alcance para convencer a rapariga que era do interesse e dever
dela render-se a seus desejos. Fez as mais esplêndidas promessas, e os mais
solenes protestos; abaixou-se até às mais humildes súplicas, e arrastou-se vilmente
aos pés da escrava, de cuja boca não ouviu senão palavras amargas, e terríveis
exprobrações; e vendo enfim que eram infrutíferos todos esses meios, retirou-se
cheio de cólera, vomitando as mais tremendas ameaças.
Para dar a essas ameaças começo de execução, nesse mesmo dia mandou
pô-la trabalhando entre as fiandeiras, onde a deixamos no capítulo antecedente. Dali
teria de ser levada para a roça, da roça para o tronco, do tronco para o pelourinho, e
deste certamente para o túmulo, se teimasse em sua resistência às ordens de seu
senhor.
CAPÍTULO X
Leôncio impaciente e com o coração ardendo nas chamas de uma paixão
febril e delirante não podia resignar-se a adiar por mais tempo a satisfação de seus
libidinosos desejos. Vagando daqui para ali por toda a casa como quem dava ordens
para reformar o serviço doméstico, que dai em diante ia correr todo por sua conta,
não fazia mais do que espreitar todos os movimentos de Isaura, procurando ocasião
de achá-la a sós para insistir de novo e com mais força em suas abomináveis
pretensões. De uma janela viu as escravas fiandeiras atravessarem o pátio para
irem jantar, e notou a ausência de Isaura.
— Bom!... vai tudo às mil maravilhas, murmurou Leôncio com satisfação;
nesse momento passava-lhe pela mente a feliz lembrança de mandar o feitor levar
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as outras escravas para o cafezal, ficando ele quase a sós com Isaura no meio
daqueles vastos e desertos edifícios.
— Dir-me-ão que, sendo Isaura uma escrava, Leôncio, para achar-se a sós
com ela não precisava de semelhantes subterfúgios, e nada mais tinha a fazer do
que mandá-la trazer à sua presença por bem ou por mal. Decerto ele assim podia
proceder, mas não sei que prestígio tem, mesmo em uma escrava, a beleza unida à
nobreza da alma, e à superioridade da inteligência, que impõe respeito aos entes
ainda os mais perversos e corrompidos. Por isso Leôncio, a despeito de todo o seu
cinismo e obcecação, não podia eximir-se de render no fundo d'alma certa
homenagem à beleza e virtudes daquela escrava excepcional, e de tratá-la com
mais alguma delicadeza do que às outras.
— Isaura, — disse Leôncio, continuando o diálogo que deixamos apenas
encetado, — fica sabendo que agora a tua sorte está inteiramente entre as minhas
mãos.
— Sempre esteve, senhor, — respondeu humildemente Isaura.
— Agora mais que nunca. Meu pai é falecido, e não ignoras que sou eu o
seu único herdeiro. Malvina por motivos, que sem dúvida terás adivinhado, acaba de
abandonar-me, e retirou-se para a casa de seu pai. Sou eu, pois, que hoje
unicamente governo nesta casa, e disponho do teu destino. Mas também, Isaura, de
tua vontade unicamente depende a tua felicidade ou a tua perdição.
— De minha vontade!... oh! não, senhor; minha sorte depende unicamente
da vontade de meu senhor.
— E eu bem desejo - replicou Leôncio com a mais terna inflexão de voz, —
com todas as forças de minha alma, tornar-te a mais feliz das criaturas; mas como,
se me recusas obstinadamente a felicidade, que tu, só tu me poderias dar?...
— Eu, senhor?! oh! por quem é, deixe a humilde escrava em seu lugar;
lembre-se da senhora D. Malvina, que é tão formosa, tão boa, e que tanto lhe quer
bem. É em nome dela que lhe peço, meu senhor; deixe de abaixar seus olhos para
uma pobre cativa, que em tudo está pronta para lhe obedecer, menos nisso, que o
senhor exige...
— Escuta, Isaura; és muito criança, e não sabes dar ás coisas o devido
peso. Um dia, e talvez já tarde, te arrependerás de ter rejeitado o meu amor.,
— Nunca! - exclamou Isaura. — Eu cometeria uma traição infame para com
minha senhora, se desse ouvidos às palavras amorosas de meu senhor.
— Escrúpulos de criança!... escuta ainda, Isaura. Minha mãe vendo a tua
linda figura e a viveza de teu espírito, — talvez por não ter filha alguma, — desvelou-
se em dar-te uma educação, como teria dado a uma filha querida. Ela amava-te
extremosamente, e se não deu-te a liberdade foi com o receio de perder-te; foi para
conservar-te sempre junto de si. Se ela assim procedia por amor, como posso eu
largar-te de mão, eu que te amo com outra sorte de amor muito mais ardente e
exaltado, um amor sem limites, um amor que me levará à loucura ou ao suicídio, se
não... mas que estou a dizer!... Meu pai, — Deus lhe perdoe, – levado por uma
sórdida avareza, queria vender tua liberdade por um punhado de ouro, como se
houvesse ouro no mundo que valesse os inestimáveis encantos, de que os céus te
dotaram.
— Profanação!... eu repeliria, como quem repele um insulto, todo aquele
que ousasse vir oferecer-me dinheiro pela tua liberdade. Livre és tu, porque Deus
não podia formar um ente tão perfeito para votá-lo à escravidão. Livre és tu, porque
assim o queria minha mãe, e assim o quero eu. Mas, Isaura, o meu amor por ti é
imenso; eu não posso, eu não devo abandonar-te ao mundo. Eu morreria de dor, se
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me visse forçado a largar mão da jóia inestimável, que o céu parece ter-me
destinado, e que eu há tanto tempo rodeio dos mais ardentes anelos de minha
alma...
— Perdão, senhor; eu não posso compreendé-lo; diz-me que sou livre, e
não permite que eu vá para onde quiser, e nem ao menos que eu disponha
livremente de meu coração?!
— Isaura, se o quiseres, não serás somente livre; serás a senhora, a deusa
desta casa. Tuas ordens, quaisquer que sejam, os teus menores caprichos serão
pontualmente cumpridos; e eu, melhor do que faria o mais terno e o mais leal dos
amantes, te cercarei de todos os cuidados e carinhos, de todas as adorações, que
sabe inspirar o mais ardente e inextinguível amor. Malvina me abandona!... tanto
melhor! em que dependo eu dela e de seu amor, se te possuo?! Quebrem-se de
uma vez para sempre esses laços urdidos pelo interesse! esqueça-se para sempre
de mim, que eu nos braços de minha Isaura encontrarei sobeja ventura para poder
lembrar-me dela.
— O que o senhor acaba de dizer me horroriza. Como se pode esquecer e
abandonar ao desprezo uma mulher tão amante e carinhosa, tão cheia de encantos
e virtudes, como sinhá Malvina? Meu senhor, perdoe-me se lhe falo com franqueza;
abandonar uma mulher bonita, fiel e virtuosa por amor de uma pobre escrava, seria
a mais feia das ingratidões.
A tão severa e esmagadora exprobração, Leôncio sentiu revoltar-se o seu
orgulho. escrava insolente! — bradou cheio de cólera. – Que eu suporte sem irritar-
me os teus desdéns e repulsas, ainda vá: mas repreensões!... com quem pensas tu
que falas?...
— Perdão! senhor!... exclamou Isaura aterrada e arrependida das palavras
que lhe tinham escapado.
— E, entretanto, se te mostrasses mais branda comigo... mas não, é muito
aviltar-me diante de uma escrava; que necessidade tenho eu de pedir aquilo que de
direito me pertence? Lembra-te, escrava ingrata e rebelde, que em corpo e alma me
pertences, a mim só e a mais ninguém. És propriedade minha; um vaso, que tenho
entre as minhas mãos e que posso usar dele ou despedaçá-lo a meu sabor.
— Pode despedaçá-lo, meu senhor; bem o sei; mas, por piedade, não
queira usar dele para fins impuros e vergonhosos. A escrava também tem coração, e
não é dado ao senhor querer governar os seus afetos.
— Afetos!... quem fala aqui em afetos?! Podes acaso dispor deles?...
— Não, por certo, meu senhor; o coração é livre; ninguém pode escravizá-
lo, nem o próprio dono.
— Todo o teu ser é escravo; teu coração obedecerá, e se não cedes de
bom grado, tenho por mim o direito e a força... mas para quê? para te possuir não
vale a pena empregar esses meios extremos.
—Os instintos do teu coração são rasteiros e abjetos como a tua condição;
para te satisfazer far-te-ei mulher do mais vil, do mais hediondo de meus negros.
— Ah! senhor! bem sei de quanto é capaz. Foi assim que seu pai fez morrer
de desgosto e maus-tratos a minha pobre mãe; já vejo que me é destinada a mesma
sorte. Mas fique certo de que não me faltarão nem os meios nem a coragem para
ficar para sempre livre do senhor e do mundo.
— Oh! — exclamou Leôncio com satânico sorriso, — já chegaste a tão
subido grau de exaltação e romantismo!... isto em uma escrava não deixa de ser
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curioso. Eis o proveito que se tira de dar educação a tais criaturas! Bem mostras que
és uma escrava, que vives de tocar piano e ler romances. Ainda bem que me
preveniste; eu saberei gelar a ebulição desse cérebro escaldado. Escrava rebelde e
insensata, não terás mãos nem pés para pôr em prática teus sinistros intentos. Olá,
André, — bradou ele e apitou com força no cabo do seu chicote.
— Senhor! — bradou de longe o pajem, e um instante depois estava em
presença de Leôncio.
— André, — disse-lhe este com voz seca e breve — traze-me já aqui um
tronco de pés e algemas com cadeado.
— Virgem santa! — murmurou consigo André espantado. – Para que será
tudo isto?... ah! pobre Isaura!...
— Ah! meu senhor, por piedade! — exclamou Isaura, caindo de joelhos aos
pés de Leôncio, e levantando as mãos ao céu em contorções de angústia; pelas
cinzas ainda quentes de seu pai, há poucos dias falecido, pela alma de sua mãe,
que tanto lhe queria, não martirize a sua infeliz escrava. Acabrunhe-me de trabalhos,
condene-me ao serviço o mais grosseiro e pesado, que a tudo me sujeitarei sem
murmurar; mas o que o senhor exige de mim, não posso, não devo fazê-lo, embora
deva morrer.
— Bem me custa tratar-te assim, mas tu mesma me obrigas a este excesso.
Bem vês que me não convém por modo nenhum perder uma escrava como tu és.
Talvez ainda um dia me serás grata por ter-te impedido de matar-te a ti mesma.
— Será o mesmo! — bradou Isaura levantando-se altiva, e com o acento
rouco e trémulo da desesperação, — não me matarei por minhas próprias mãos,
mas morrerei às mãos de um carrasco.
Neste momento chega André trazendo o tronco e as algemas, que deposita
sobre um banco, e retira-se imediatamente.
Ao ver aqueles bárbaros e aviltantes instrumentos de suplício turvaram-se
os olhos a Isaura, o coração se lhe enregelou de pavor, as pernas lhe desfaleceram,
caiu de joelhos e debruçando-se sobre o tamborete, em que fiava, desatou uma
torrente de lágrimas.
— Alma de minha sinhá velha! — exclamou com voz entrecortada de
soluços, — valei-me nestes apuros; valei-me lá do céu, onde estais, como me valíeis
cá na Terra.
— Isaura, — disse Leôncio com voz áspera apontando para os instrumentos
de suplício, — eis ali o que te espera, se persistes em teu louco emperramento.
Nada mais tenho a dizer-te; deixo-te livre ainda, e fica-te o resto do dia para
refletires. Tens de escolher entre o meu amor e o meu ódio. Qualquer dos dois, tu
bem sabes, são violentos e poderosos. Adeus!...
Quando Isaura sentiu que seu senhor se havia ausentado, ergueu o rosto, e
levantando ao céu os olhos e as mãos juntas, dirigiu à Rainha dos anjos a seguinte
fervorosa prece, exalada entre soluços do mais íntimo de sua alma:
— Virgem senhora da Piedade, Santíssima Mãe de Deus!... vós sabeis se
eu sou inocente, e se mereço tão cruel tratamento. Socorrei-me neste transe aflitivo,
porque neste mundo ninguém pode valer-me. — Livrai-me das garras de um algoz,
que ameaça não só a minha vida, como a minha inocência e honestidade. Iluminai-
lhe o espírito e infundi-lhe no coração brandura e misericórdia para que se
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compadeça de sua infeliz cativa. É uma humilde escrava que com as lágrimas nos
olhos e a dor no coração vos roga pelas vossas dores sacrossantas, pelas chagas
de vosso Divino Filho: valei-me por piedade.
Quanto Isaura era formosa naquela suplicante e angustiosa atitude! oh!
muito mais bela do que em seus momentos de serenidade e prazer!... se a visse
então, Leôncio talvez sentisse abrandar-se o férreo e obcecado coração. Com os
olhos arrasados em lágrimas, que em fio lhe escorregavam pelas faces desbotadas,
entreaberta a boca melancólica, que lhe tremia ao passar da prece murmurada entre
soluços, atiradas em desordem pelas espáduas as negras e opulentas madeixas,
voltando para o céu o busto mavioso plantado sobre um colo escultural, ofereceria
ao artista inspirado o mais belo e sublime modelo para a efígie da Mãe Dolorosa, a
quem nesse momento dirigia suas ardentes súplicas. Os anjos do céu, que por certo
naquele instante adejavam em torno dela agitando as asas de ouro e carmim, não
podiam deixar de levar tão férvida e dolorosa prece aos pés do trono da
Consoladora dos aflitos.
Absorvida em suas mágoas Isaura não viu seu pai, que, entrando pelo salão
a passos sutis e cautelosos, encaminhava-se para ela.
— Oh! felizmente ela ali está, — murmurava o velho, — o algoz aqui
também andava! oh! pobre Isaura!... que será de ti?!...
— Meu pai por aqui!... — exclamou a infeliz ao avistar Miguel. — Venha,
venha ver a que estado reduzem sua filha.
— Que tens, filha?... que nova desgraça te sucede?
— Não está vendo, meu pai?... eis ali a sorte, que me espera, — respondeu
ela apontando para o tronco e as algemas, que ali estavam ao pé dela.
— Que monstro, meu Deus!... mas eu já esperava por tudo isto...
— É esta a liberdade que pretende dar àquela que a mãe dele criou com
tanto amor e carinho. O mais cruel e aviltante cativeiro, um martírio continuado da
alma e do corpo, eis o que resta à sua desventurada filha... Meu pai, não posso
resistir a tanto sofrimento!... restava-me um recurso extremo; esse mesmo vai-me
ser negado. Presa, algemada, amarrada de pés e mãos!... oh!... meu pai! meu pai!...
isto é horrível!...
— Meu pai, a sua faca, – acrescentou depois de ligeira pausa com voz
rouca e olhar sombrio, – preciso de sua faca.
— Que pretendes fazer com ela, Isaura? que louco pensamento é o teu?...
— Dê-me essa faca, meu pai; eu não usarei dela senão em caso extremo;
quando o infame vier lançar-me as mãos para deitar-me esses ferros, farei saltar
meu sangue ao rosto vil do algoz.
— Não, minha filha; não serão necessários tais extremos. Meu coração já
adivinhava tudo isto, e já tenho tudo prevenido. O dinheiro, que não serviu para
alcançar a tua liberdade, vai agora prestar-nos para arrancar-te às garras desse
monstro. Tudo está já disposto, Isaura. Fujamos.
— Sim, meu pai, fujamos; mas como? para onde?
— Para longe daqui, seja para onde for; e já, minha filha, enquanto não
suspeitem coisa alguma, e não te carregam de ferros.
— Ah! meu pai, tenho bem medo; se nos descobrem, qual será a minha
sorte!...
— A empresa é arriscada, não posso negar-te; mas ânimo. Isaura; é nossa
única tábua de salvação; agarremo-nos a ela com fé, e encomendemo-nos à divina
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providência. Os escravos estão na roça; o feitor levou para o cafezal tuas
companheiras, teu senhor saiu a cavalo com o André; não há talvez em toda a casa
senão alguma negra lá pelos cantos da cozinha. Aproveitemos a ocasião, que
parece mesmo nos vir das mãos de Deus, no momento em que aqui estou
chegando. Eu já preveni tudo.
Lá no fundo do quintal à beira do rio está amarrada uma canoa; é quanto
nos basta. Tu sairás primeiro e irás lá ter por dentro do quintal; eu sairei por fora
alguns instantes depois e lá nos encontraremos. Em menos de uma hora estaremos
em Campos, onde nos espera um navio, de que é capitão um amigo meu, e que tem
de seguir viagem para o Norte nesta madrugada. Quando romper o dia, estaremos
longe do algoz que te persegue. Vamo-nos, Isaura; talvez por esse mundo
encontremos alguma alma piedosa, que melhor do que eu te possa proteger.
— Vamo-nos, meu pai; que posso eu recear?... posso acaso ser mais
desgraçada do que já sou?...
Isaura, cosendo-se com a sombra do muro, que rodeava o pátio, abriu o
portão, que dava para o quintal, e desapareceu. Momentos depois Miguel rodeando
por fora os edifícios costeava o quintal, e achava-se com ela à margem do rio.
A canoa vogando sutilmente bem junto à barranca, impelida pelo braço
vigoroso de Miguel, em poucos minutos perdeu de vista a fazenda.
CAPÍTULO XI
Já são passados mais de dois meses depois da fuga de Isaura, e agora,
leitores, enquanto Leôncio emprega diligências extraordinárias e meios extremos, e
desatando os cordões da bolsa, põe em atividade a polícia e uma multidão de
agentes particulares para empolgar de novo a presa, que tão sorrateiramente lhe
escapara, façamo-nos de vela para as províncias do Norte, onde talvez primeiro que
ele deparemos com a nossa fugitiva heroína.
Estamos no Recife. É noite e a formosa Veneza da América do Sul, coroada
de um diadema de luzes, parece surgir dos braços do oceano, que a estreita em
carinhoso amplexo e a beija com amor. É uma noite festiva: em uma das principais
ruas nota-se um edifício esplendidamente iluminado, para onde concorre grande
número de cavalheiros e damas das mais distintas e opulentas classes. É um lindo
prédio onde uma sociedade escolhida costuma dar brilhantes e concorridos saraus.
Alguns estudantes dos mais ricos e elegantes, também costumam descer da velha
Olinda em noites determinadas, para ali virem se espanejar entre os esplendores e
harmonias, entre as sedas e perfumes do salão do baile; e aos meigos olhares e
angélicos sorrisos das belas e espirituosas pernambucanas, esquecerem por
algumas horas os duros bancos da Academia e os carunchosos praxistas.
Suponhamos que também somos adeptos daquele templo de Terpsícore,
entremos por ele a dentro, e observemos o que por aí vai de curioso e interessante.
Logo na primeira sala encontramos um grupo de elegantes mancebos, que
conversam com alguma animação. Escutemo-los.
— É mais uma estrela que vem brilhar nos salões do Recife, — dizia Álvaro,
— e dar lustre a nossos saraus. Não há ainda três meses, que chegou a esta cidade,
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e haverá pouco mais de um, que a conheço.
— Mas creia-me, Dr. Geraldo, é ela a criatura mais nobre e encantadora
que tenho conhecido. Não é uma mulher; é uma fada, é um anjo, é uma deusa!...
— Cáspite! — exclamou o Dr. Geraldo; fada! anjo! deusa!... São portanto
três entidades distintas, mas por fim de contas verás que não passa de uma mulher
verdadeira. Mas dize-me cá, meu Álvaro; esse anjo, fada, deusa, mulher ou o que
quer que seja, não te disse de onde veio, de que família é, se tem fortuna, etc., etc.,
etc.?
— Pouco me importo com essas coisas, e poderia responder-te que veio do
céu, que é da família dos anjos, e que tem uma fortuna superior a todas as riquezas
do mundo: uma alma pura, nobre e inteligente, e uma beleza incomparável. Mas
sempre te direi que o que sei de positivo a respeito dela é que veio do Rio Grande
do Sul em companhia de seu pai, de quem é ela a única família; que seus meios são
bastantemente escassos, mas que em compensação ela é linda como os anjos, e
tem o nome de Elvira,
— Elvira! — observou o terceiro cavalheiro — bonito nome na verdade!...
mas não poderás dizer-nos, Álvaro, onde mora a tua fada?...
— Não faço mistério disso; mora com seu pai em uma pequena chácara no
bairro de Santo Antônio, onde vivem modestamente, evitando relações, e
aparecendo mui raras vezes em público. Nessa chácara, escondida entre moitas de
coqueiros e arvoredos, vive ela como a violeta entre a folhagem, ou como fada
misteriosa em uma gruta encantada.
— É célebre! — retorquiu o doutor — mas como chegaste a descobrir essa
ninfa encantada, e a ter entrada em sua gruta misteriosa?
— Eu vos conto em duas palavras. Passando eu um dia a cavalo por sua
chácara, avistei-a sentada em um banco do pequeno jardim da frente. Surpreendeu-
me sua maravilhosa beleza. Como viu que eu a contemplava com demasiada
curiosidade, esgueirou-se como uma borboleta entre os arbustos floridos e
desapareceu. Formei o firme propósito de vê-la e de falar-lhe, custasse o que
custasse. Por mais, porém, que indagasse por toda a vizinhança, não encontrei uma
só pessoa que se relacionasse com ela e que pudesse apresentar-me. Indaguei por
fim quem era o proprietário da chácara, e fui ter com ele. Nem esse podia dar-me
informações, nem servir-me em coisa alguma. O seu inquilino vinha todos os meses
pontualmente adiantar o aluguel da chácara; eis tudo quanto a respeito dele sabia.
Todavia continuei a passar todas as tardes por defronte do jardim, mas a pé para
melhor poder surpreendê-la e admirá-la; quase sempre, porém, sem resultado.
Quando acontecia estar no jardim, esquivava-se sempre às minhas vistas como da
primeira vez. Um dia, porém, quando eu passava, caiu-lhe o lenço ao levantar-se do
banco; a grade estava aberta; tomei a liberdade de penetrar no jardim, apanhei o
lenço, e corri a entregar-lho, quando já ela punha o pé na soleira de sua casa.
Agradeceu-me com um sorriso tão encantador, que estive em termos de cair de
joelhos a seus pés; mas não mandou-me entrar, nem fez-me oferecimento algum.
— Esse lenço, Álvaro, — atalhou um cavalheiro, — decerto ela o deixou cair
de propósito, para que pudesses vê-la de perto e falar-lhe. É um apuro de
romantismo, um delicado rasgo de coquetterie.
— Não creio; não há naquele ente nem sombra de coquetterie; tudo nela
respira candura e singeleza. O certo é que custei a arrancar meus pés daquele
lugar, onde uma força magnética me retinha, e que parecia rescender um misterioso
eflúvio de amor, de pureza e de aventura...
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Álvaro pára em sua narrativa, como que embevecido em tão suaves
recordações.
— E ficaste nisso, Álvaro! — perguntava outro cavalheiro; — o teu romance
está-nos interessando; vamos por diante, que estou aflito por ver a peripécia...
— A peripécia?.., oh! essa ainda não chegou, e nem eu mesmo sei qual
será. Esgotei enfim os estratagemas possíveis para ter entrada no santuário daquela
deusa; mas foi tudo baldado. O acaso enfim veio em meu socorro, e serviu-me
melhor do que toda a minha habilidade e diligência. Passeando eu uma tarde de
carro no bairro de Santo Antônio, pelas margens do Beberibe, passeio que se
tornara para mim uma devoção, avistei um homem e uma mulher navegando a todo
pano em um pequeno bote.
Instantes depois o bote achou-se encalhado em um banco de areia.
Apeei-me imediatamente, e tomando um escaler na praia, fui em socorro
dos dois navegantes que em vão forcejavam por safar a pequena embarcação. Não
podem fazer idéia da deliciosa surpresa que senti, ao reconhecer nas duas pessoas
do bote a minha misteriosa da chácara e seu pai...
— Por essa já eu esperava; entretanto o lance não deixa de ser dramático;
a história de seus amores com a tal fada misteriosa vai tomando visos de um poema
fantástico.
— Entretanto, é a pura realidade. Como estavam molhados e enxovalhados,
convidei-os a entrarem no meu carro. Aceitaram depois de muita relutância, e
dirigimo-nos para a casa deles. É escusado contarvos o resto desde então, se bem
que com algum acanhamento foi-me franqueado o umbral da gruta misteriosa.
— E pelo que vejo, — interrogou o doutor, — amas muito essa mulher?
— Se amo! adoro-a cada vez mais, e o que é mais, tenho razões para
acreditar que ela... pelo menos não me olha com indiferença.
— Deus queira que não andes embaído por alguma Circe de bordel, por
alguma dessas aventureiras, de que há tantas pelo mundo, e que, sabendo que és
rico, arma laços ao teu dinheiro! Esse afastamento da sociedade, esse mistério, em
que procuram tão cuidadosamente envolver a sua vida, não abonam muito em favor
deles.
— Quem sabe se são criminosos que procuram subtrair-se às pesquisas da
polícia? — observou um cavalheiro.
— Talvez moedeiros falsos, — acrescentou outro.
— Tenho má-fé, — continuou o doutor — todas as vezes que vejo uma
mulher bonita viajando em países estranhos em companhia de um homem, que de
ordinário se diz pai ou irmão dela. O pai de tua fada, Álvaro, se é que é pai, é talvez
algum cigano, ou cavalheiro de indústria, que especula com a formosura de sua
filha.
— Santo Deus!... misericórdia! - exclamou Álvaro. — Se eu adivinhasse que
veria a pessoa daquela criatura angélica apreciada com tanta atrocidade, ou antes
tão impiamente profanada, quereria antes ser atacado de mudez, do que trazê-la à
conversação. Creiam, que são demasiado injustos para com aquela pobre moça,
meus amigos. Eu a julgaria antes uma princesa destronizada, se não soubesse que
é um anjo do céu. Mas vocês em breve vão vê-la, e eu e ela estaremos vingados;
pois estou certo que todos a uma voz a proclamarão uma divindade. Mas o pior é
que desde já posso contar com um rival em cada um de vocês.
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— Por minha parte, disse um dos cavalheiros, — pode ficar tranqüilo, pois
sempre tive horror às moças misteriosas.
— E eu, que não sou mais do que um simples mortal, tenho muito medo de
fadas, — acrescentou o outro.
— E como é, perguntou o Dr. Geraldo, — que vivendo ela assim arredada
da sociedade, pôde resolver-se a deixar a sua misteriosa solidão, para vir a este
baile tão público e concorrido?...
— E quanto não me custou isso, meu amigo! — respondeu Álvaro. — Veio
quase violentada. Há muito tempo que procuro convencê-la por todos os modos, que
uma senhora jovem e formosa, como é ela, escondendo seus encantos na solidão,
comete um crime, contrário às vistas do Criador, que formou a beleza para ser vista,
admirada e adorada; pois sou o contrário desses amantes ciumentos e atrabiliários,
que desejariam ter suas amadas escondidas no âmago da terra. Argumentos,
instâncias, súplicas, tudo foi perdido; pai e filha recusavam-se constantemente a
aparecerem em público, alegando mil diversos pretextos. Vali-me por fim de um
ardil; fiz-lhes acreditar que aquele modo de viver retraído e sem contato com a
sociedade em um país, onde eram desconhecidos, já começava a dar que falar ao
público e a atrair suspeitas sobre eles, e que até a polícia começava a olhá-los com
desconfiança: mentiras, que não deixavam de ter sua plausibilidade...
— E tanta, — interrompeu o doutor. — que talvez não andem muito longe
da verdade.
— Fiz-lhes ver, — continuou Álvaro, — que por infundadas e fúteis que
fossem tais suspeitas, era necessário arredá-las de si, e para isso cumpria-lhes
absolutamente freqüentar a sociedade. Este embuste produziu o desejado efeito.
— Tanto pior para eles, — retorquiu o doutor; — eis aí um indício bem mau,
e que mais me confirma em minhas desconfianças. Fossem eles inocentes, e bem
pouco se importariam com as suspeitas do público ou da policia, e continuariam a
viver como dantes.
— Tuas suspeitas não têm o menor fundamento, meu doutor. Eles têm
poucos meios, e por isso evitam a sociedade, que realmente, impõe duros sacrifícios
às pessoas desfavorecidas da fortuna, e eles... mas ei-los, que chegam... Vejam e
convençam-se com seus próprios olhos.
Entrava nesse momento na ante-sala uma jovem e formosa dama pelo
braço de um homem de idade madura e de respeitável presença.
— Boa noite, senhor Anselmo!... boa noite, D. Elvira!... felizmente ei-los
aqui! — isto dizia Álvaro aos recém-chegados, separando-se de seus amigos, e
apressurando-se para cumprimentar a aqueles com toda a amabilidade e cortesia.
Depois oferecendo um braço a Elvira e outro ao senhor Anselmo, os vai conduzindo
para as salas interiores, por onde já turbilhona a mais numerosa e brilhante
sociedade. Os três interlocutores de Álvaro, bem como muitas outras pessoas, que
por ali se achavam, puseram-se em ala para verem passar Elvira, cuja presença
causava sensação e murmurinho, mesmo entre os que não estavam prevenidos.
— Com efeito!... é de uma beleza deslumbrante! Que porte de rainha!...
— Que olhos de andaluza!...
— Que magníficos cabelos!
— E o colo!... que colo!... não reparaste?...
— E como se traja com tão elegante simplicidade! — assim murmuravam
entre si os três cavalheiros como impressionados por uma aparição celeste.
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— E não reparaste, — acrescentou o Dr. Geraldo, — naquele feiticeiro
sinalzinho, que tem na face direita?... Álvaro tem razão; a sua fada vai eclipsar todas
as belezas do salão. E tem de mais a mais a vantagem da novidade, e esse
prestígio do mistério, que a envolve. Estou ardendo de impaciência por lhe ser
apresentado; desejo admirá-la mais de espaço.
Neste tom continuaram a conversar, até que, passados alguns minutos,
Álvaro, tendo cumprido a grata comissão de apresentador daquela nova pérola dos
salões, estava de novo entre eles.
— Meus amigos, — disse-lhes ele com ar triunfante. — convido-os para o
salão. Quero já apresentar-lhes D. Elvira para desvanecer de uma vez para sempre
as injuriosas apreensões, que ainda há pouco nutriam a respeito do ente o mais belo
e mais puro, que existe debaixo do Sol, se bem que estou certo que só com a
simples vista ficaram penetrados de assombro até a medula dos ossos.
Os quatro cavalheiros se retiraram e desapareceram no meio do turbilhão
das salas interiores. Foram, porém, imediatamente substituídos por um grupo de
lindas e elegantes moças, que cintilantes de sedas e pedrarias como um bando de
aves-do-paraíso, passeavam conversando.
O assunto da palestra era também D. Elvira; mas o diapasão era totalmente
diverso, e em nada se harmonizava com o da conversação dos rapazes. Nenhum
mal nos fará escutá-las por alguns instantes.
— Você não saberá dizer-nos, D. Adelaide, quem é aquela moça, que ainda
há pouco entrou na sala pelo braço do senhor Álvaro?
— Não, D. Laura; é a primeira vez que a vejo, parece-me que não é desta
terra.
— Decerto; que ar espantado tem ela!... parece uma matuta, que nunca
pisou em um salão de baile; não acha, D. Rosalina?
— Sem dúvida!.., e você não reparou na toilette dela?... meu Deus!... que
pobreza! a minha mucama tem melhor gosto para se trajar.
— Aqui a D. Emília é que talvez saiba quem ela é.
— Eu? por quê? é a primeira vez que a vejo, mas o senhor Álvaro já me
tinha dado notícias dela, dizendo que era um assombro de beleza.
— Não vejo nada disso; é bonita, mas não tanto, que assombre.
— Aquele senhor Álvaro sempre é um excêntrico, um esquisito; tudo quanto
é novidade o seduz. E onde iria ele escavar aquela pérola, que tanto o traz
embasbacado?...
— Veio de arribação lá dos mares do Sul, minha amiga, e a julgar pelas
aparências não é de todo má.
— Se não fosse aquela pinta negra, que tem na face, seria mais suportável.
— Pelo contrário, D. Laura; aquele sinal é que ainda lhe dá certa graça
particular...
— Ah! perdão, minha amiga; não me lembrava que você também tem na
face um sinalzinho semelhante; esse deveras fica-te muito bem, e dá-te, muita
graça; mas o dela, se bem reparei, é grande demais; não parece uma mosca, mas
sim um besouro, que lhe pousou na face.
— A dizer-te a verdade, não reparei bem. Vamos, vamos para o salão; é
preciso vê-la mais de perto, estudá-la com mais vagar para podermos dar com
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segurança a nossa opinião.
E, dito isto, lá se foram elas com os braços enlaçados, formando como
longa grinalda de variegadas flores, que lá se foi serpeando perder-se entre a
multidão.
CAPÍTULO XII
Álvaro era um desses privilegiados, sobre quem a natureza e a fortuna
parece terem querido despejar à porfia todo o cofre de seus favores. Filho único de
uma distinta e opulenta família, na idade de vinte e cinco anos, era órfão de pai e
mãe, e senhor de uma fortuna de cerca de dois mil contos.
Era de estatura regular, esbelto, bem feito e belo, mais pela nobre e
simpática expressão da fisionomia do que pelos traços físicos, que entretanto não
eram irregulares. Posto que não tivesse o espírito muito cultivado, era dotado de
entendimento lúcido e robusto, próprio a elevar-se à esfera das mais transcendentes
concepções. Tendo concluído os preparatórios, como era filósofo, que pesava
gravemente as coisas, ponderando que a fortuna de que pelo acaso do nascimento
era senhor, por outro acaso lhe podia ser tirada, quis para ter uma profissão
qualquer, dedicar-se ao estudo do Direito. No primeiro ano, enquanto pairava pelas
altas regiões da filosofia do direito, ainda achou algum prazer nos estudos
acadêmicos; mas quando teve de embrenhar-se no intrincado labirinto dessa árida e
enfadonha casuística do direito positivo, seu espírito eminentemente sintético recuou
enfastiado, e não teve ânimo de prosseguir na senda encetada. Alma original, cheia
de grandes e generosas aspirações, aprazia-se mais na indagação das altas
questões políticas e sociais, em sonhar brilhantes utopias, do que em estudar e
interpretar leis e instituições, que pela maior parte, em sua opinião, só tinham por
base erros e preconceitos os mais absurdos.
Tinha ódio a todos os privilégios e distinções sociais, e é escusado dizer
que era liberal, republicano e quase socialista.
Com tais idéias Álvaro não podia deixar de ser abolicionista exaltado, e não
o era só em palavras. Consistindo em escravos uma não pequena porção da
herança de seus pais, tratou logo de emancipá-los todos. Como porém Álvaro tinha
um espírito nimiamente filantrópico, conhecendo quanto é perigoso passar
bruscamente do estado de absoluta submissão para o gozo da plena liberdade,
organizou para os seus libertos em uma de suas fazendas uma espécie de colônia,
cuja direção confiou a um probo e zeloso administrador. Desta medida podiam
resultar grandes vantagens para os libertos, para a sociedade, e para o próprio
Álvaro.
A fazenda lhes era dada para cultivar, a título de arrendamento, e eles
sujeitando-se a uma espécie de disciplina comum, não só preservavam-se de
entregar-se à ociosidade, ao vício e ao crime, tinham segura a subsistência e
podiam adquirir algum pecúlio, como também poderiam indenizar a Álvaro do
sacrifício, que fizera com a sua emancipação. Original e excêntrico como um rico
lorde inglês, professava em seus costumes a pureza e severidade de um quaker.
Todavia, como homem de imaginação viva e coração impressionável, não deixava
de amar os prazeres, o luxo, a elegância, e sobretudo as mulheres, mas com certo
platonismo delicado, certa pureza ideal, próprios das almas elevadas e dos corações
bem formados.
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Entretanto, Álvaro ainda não havia encontrado até ali a mulher que lhe devia
tocar o coração, a encarnação do tipo ideal, que lhe sorria nos sonhos vagos de sua
poética imaginação. Com tão excelentes e brilhantes predicados, Álvaro por certo
devia ser objeto de grande preocupação no mundo elegante, e talvez o almejo
secreto, que fazia palpitar o coração de mais de uma ilustre e formosa donzela. Ele,
porém, igualmente cortês e amável para com todas, por nenhuma delas ainda havia
dado o mínimo sinal de predileção.
Pode-se fazer idéia do desencanto, do assombro, da terrível decepção que
reinou nos círculos das belas pernambucanas ao verem o vivo interesse e solicitude
de que Álvaro rodeava uma obscura e pobre moça; a deferência com que a tratava,
e os entusiásticos elogios que sem rebuço lhe prodigalizava. Juno e Palas não
ficaram tão despeitadas, quando o formoso Páris conferiu a Vênus o prêmio da
formosura.
Já antes daquele sarau, Álvaro em alguns círculos de senhoras havia falado
de Elvira em termos tão lisonjeiros e mesmo com certa eloquência apaixonada, que
a todas surpreendeu e inquietou. As moças ardiam por ver aquele protótipo de
beleza, e já de antemão choviam sobre a desconhecida e o seu campeão mil
chascos e malignos apodos. Quando, porém, a viram, apesar dos contrafeitos e
desdenhosos sorrisos que apenas lhes roçavam a flor dos lábios, sentiram uma
desagradável impressão pungir-lhes no íntimo do coração. Peço perdão às belas, de
minha rude franqueza; a vaidade é, com bem raras exceções, companheira
inseparável da beleza e onde se acha a vaidade, a inveja, que sempre a acompanha
mais ou menos de perto, não se faz esperar por muito tempo. A beleza da
desconhecida era incontestável; sua modéstia e timidez em nada prejudicavam a
singela e nativa elegância de que era dotada; o traje simples e mesmo pobre em
relação ao luxo suntuoso, que a rodeava assentava-lhe maravilhosamente, e
realçava-lhe ainda mais os encantos naturais. O efeito deslumbrante, que Elvira
produziu logo ao primeiro aspecto, e o empenho com que Álvaro procurava fazer
sobressaltar os sedutores atrativos de Elvira, como de propósito para eclipsar as
outras belezas do salão, eram de sobejo para irritar-lhes a vaidade e o amor-próprio.
Uma e outra deviam ser naquela noite o alvo de mil olhares desdenhosos, de mil
sorrisos zombeteiros, e acerados epigramas.
Álvaro nem dava fé da mal disfarçada hostilidade com que ele e a sua
protegida, — podemos dar-lhe esse nome, — eram acolhidos naquela reunião; mas
a tímida e modesta Elvira, que em parte alguma encontrava lhaneza e cordialidade,
achava-se mal naquela atmosfera de fingida amabilidade e cortesania, e em cada
olhar via um escárnio desdenhoso, em cada sorriso um sarcasmo.
Já sabemos quem era Álvaro; agora travemos conhecimento com o seu
amigo, o Dr. Geraldo.
Era um homem de trinta anos; bacharel em Direito e advogado altamente
conceituado no foro do Recife. Entre as relações de Álvaro era a que cultivava com
mais afeto e intimidade; uma inteligência de bom quilate, firme e esclarecida, um
caráter sincero, franco e cheio de nobreza, davam-lhe direito a essa predileção da
parte de Álvaro. Seu espírito prático e positivo, como deve ser o de um consumado
jurisconsulto, prestando o maior respeito às instituições e mesmo a todos os
preconceitos e caprichos da sociedade, estava em completo antagonismo com as
idéias excêntricas e reformistas de seu amigo; mas esse antagonismo, longe de
perturbar ou arrefecer a recíproca estima e afeição, que entre eles reinava, servia
antes para alimentá-las e fortalecê-las, quebrando a monotonia que deve reinar nas
relações de duas almas sempre acordes e uníssonas em tudo. Estas tais por fim de
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contas, vendo que o que uma pensa, a outra também pensa, o que uma quer, a
outra igualmente quer, e que nada têm a se comunicarem, enjoadas de tanto se
dizerem — amém, — ver-se-ão forçadas a recolherem-se ao silêncio e a dormitarem
uma em face da outra; plácida, cômoda e sonolenta amizade!... De mais, a
contrariedade de tendências e opiniões são sempre de grande utilidade entre
amigos, modificando-se e temperando-se umas pelas outras.
É assim que muitas vezes o positivismo e o senso prático do Dr. Geraldo
serviam de corretivo às utopias e exaltações de Álvaro, e vice-versa.
Da boca do próprio Álvaro já ouvimos por que acaso veio ele conhecer D.
Elvira, e como conseguiu levá-la ao sarau, a que ainda continuamos a assistir.
— Meu pai, — dizia uma jovem senhora a um homem respeitável, em cujo
braço se arrimava, entrando na ante-sala, onde ainda nos conservamos de
observação. — Meu pai, fiquemos por aqui um pouco nesta sala, enquanto está
deserta. Ah! meu Deus! — continuou ela com voz abafada, depois de se terem
sentado junto um do outro; — que vim eu aqui fazer, eu pobre escrava, no meio dos
saraus dos ricos e dos fidalgos!... este luxo, estas luzes, estas homenagens, que me
rodeiam, me perturbam os sentidos e causam-me vertigem. É um crime que cometo,
envolvendo-me no meio de tão luzida sociedade; é uma traição, meu pai; eu o
conheço, e sinto remorsos... Se estas nobres senhoras adivinhassem que ao lado
delas diverte-se e dança uma miserável escrava fugida a seus senhores!... Escrava!
— exclamou levantando-se-escrava!... afigura-se-me que todos estão lendo, gravada
em letras negras em minha fronte, esta sinistra palavra!... fujamos daqui, meu pai,
fujamos! esta sociedade parece estar escarnecendo de mim; este ar me sufoca...
fujamos.
Falando assim a moça, pálida e ofegante, lançava a cada frase olhares
inquietos em roda de si, e empuxava o braço de seu pai, repetindo sempre com
ansiosa sofreguidão:
— Vamo-nos, meu pai; fujamos daqui.
— Sossega teu coração, minha filha, — respondeu o velho procurando
acalmá-la. — Aqui ninguém absolutamente pode suspeitar quem tu és. Como
poderão desconfiar que és uma escrava, se de todas essas lindas e nobres
senhoras nem pela formosura, nem pela graça e prendas do espirito nenhuma pode
levar-te a palma?
— Tanto pior, meu pai; sou alvo de todas as atenções, e esses olhares
curiosos, que de todos os cantos se dirigem sobre mim, fazem-me a cada instante
estremecer; desejaria até que a terra se abrisse debaixo de meus pés, e me sumisse
em seu seio.
— Deixa-te dessas idéias; esse teu medo e acanhamento é que poderiam
nos pôr a perder, se acaso houvesse o mais leve motivo de receio. Ostenta com
desembaraço todos os seus encantos e habilidades, dança, canta, conversa,
mostra-te alegre e satisfeita, que longe de te suporem uma escrava, são capazes de
pensar que és uma princesa.
—Toma ânimo, minha filha, ao menos por hoje; esta também, assim como é
a primeira, será a derradeira vez que passaremos por este constrangimento; não nos
é possível ficar por mais tempo nesta terra, onde começamos a despertar suspeitas.
— É verdade, meu pai!... que fatalidade!... — respondeu a moça com uma
triste oscilação de cabeça. — Assim pois estamos condenados a vagar de pais em
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país, sequestrados da sociedade, vivendo no mistério, e estremecendo a todo
instante, como se o céu nos tivesse marcado com um ferrete de maldição!... ah! esta
partida há de me doer bem no coração!... não sei que encanto me prende a este
lugar. Entretanto, terei de dizer adeus eterno a... esta terra, onde gozei alguns dias
de prazer e tranqüilidade! Ah! meu Deus!... quem sabe se não teria sido melhor
morrer entre os tormentos da escravidão!...
Neste momento entrava Álvaro na ante-sala percorrendo-a com os olhos,
como quem procurava alguém.
— Onde se sumiriam? — vinha ele murmurando; — teriam tido a triste
lembrança de se irem embora?... oh! não; felizmente ei-los ali! — exclamou
alegremente, dando com os olhos nos dois personagens que acabamos de ouvir
conversar. — D. Elvira, V. Ex.ª. é modesta demais; vem esconder-se neste recanto,
quando devia estar brilhando no salão, onde todos suspiram pela sua presença.
Deixe isso para as tímidas e fanadas violetas; à rosa compete alardear em plena luz
todos os seus encantos.
— Desculpe-me, — murmurou Isaura - uma pobre moça criada como eu na
solidão da roça, e que não está acostumada a tão esplêndidas reuniões, sente-se
abafada e constrangida...
— Oh! não... há de acostumar-se, eu espero. As luzes, o esplendor, as
harmonias, os perfumes, constituem a atmosfera em que deve brilhar a beleza, que
Deus criou para ser vista e admirada. Vim buscá-la a pedido de alguns cavalheiros,
que já são admiradores de V. Exa. Para interromper a monotonia das valsas e
quadrilhas, costumam aqui as senhoras encantar-nos os ouvidos com alguma
canção, ária, modinha, ou seja o que for. Algumas pessoas a quem eu disse, —
perdoe-me a indiscrição, filha do entusiasmo — que V. Exa. possui a mais linda voz,
e canta com maestria, mostram o mais vivo desejo de ouvi-la.
— Eu, senhor Álvaro!... eu cantar diante de uma tão luzida reunião!... por
favor, queira dispensar-me dessa nova prova. É em seu próprio interesse que lhe
digo; canto mal, sou muito acanhada, e estou certa que irei solenemente desmenti-
lo. Poupe-nos a nós ambos essa vergonha.
— São desculpas, que não posso aceitar, porque já a ouvi cantar, e creia-
me, D. Elvira, se eu não tivesse a certeza de que a senhora canta admiravelmente,
não seria capaz de expô-la a um fiasco. Quem canta como V. Exa. não deve
acanhar-se, e eu por minha parte peço-lhe encarecidamente que não cante outra
coisa, senão aquela maviosa canção da escrava, que outro dia a surpreendi
cantando, e afianço a V. Exa. que arrebatará os ouvintes.
— Por que razão não pode ser outra? essa desperta-me recordações tão
tristes...
— E é talvez por isso mesmo, que é tão linda nos lábios de V. Exa.
— Ai! triste de mim! - suspirou dentro da alma D. Elvira: — aqueles mesmos
que mais me amam, tomam-se, sem o saber, os meus algozes!...
Elvira bem quisera escusar-se a todo transe; cantar naquela ocasião era
para ela o mais penoso dos sacrifícios. Mas não lhe era mais possível relutar, e
lembrando-se do judicioso conselho de seu pai, não quis mais ver-se rogada, e
aceitando o braço que Álvaro lhe oferecia, foi por ele conduzida ao piano, onde
sentou-se com a graça e elegância de quem se acha completamente familiarizada
com o instrumento.
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Uma multidão de cabeças curiosas, e de corações palpitando na mais
ansiosa expectação, se apinharam em volta do piano; os cavalheiros estavam
ansiosos por saberem se a voz daquela mulher correspondia à sua extraordinária
beleza; se a fada seria também uma sereia; as moças esperavam, que ao menos
naquele terreno, teriam o prazer de ver derrotada a sua formidável êmula, e já
contavam compará-la com o pavão da fábula, queixando-se a Juno que, o tendo
formado a mais bela das aves, não lhe dera outra voz mais que um guincho áspero e
desagradável.
A conjuntura era delicada e solene; a moça achava-se na difícil situação de
uma prima-dona, que, precedida de uma grande reputação, faz a sua estréia perante
um público exigente e ilustrado. Em tomo dela fazia-se profundo silêncio; as
respirações estavam como que suspensas, ao passo que parecia ouvir-se o palpitar
de todos os corações no ofego da expectação. Álvaro, apesar de conhecer já a
excelência da voz de Elvira e sua maestria no canto, não deixava de mostrar-se
inquieto e comovido. Elvira por sua parte pouco se importaria de cantar bem ou mal;
desejaria até passar pela moça a mais feia, a mais desengraçada e a mais tola
daquela reunião, contanto que a deixassem a um canto esquecida e sossegada. Dir-
se-ia que estava debaixo do império de algum terrível pressentimento. Mas Elvira
amava a Álvaro, e grata ao delicado empenho, com que este, cheio de solicitude e
entusiasmo, se esforçava por apresentá-la como um protótipo de beleza e de talento
aos olhos daquela brilhante sociedade, para satisfazê-lo, e não desmentir a lisonjeira
opinião, que propalara a respeito dela, desejava cantar o melhor que lhe fosse
possível. Era ao triunfo de Álvaro que aspirava mais do que ao seu próprio.
Uma vez sentada ao piano, logo que seus dedos mimosos e flexíveis,
pousando sobre o teclado, preludiaram alguns singelos acordes, a moça sentiu-se
outra, revelando aos circunstantes maravilhados um novo e original aspecto de sua
formosura. A fisionomia, cuja expressão habitual era toda modéstia, ingenuidade e
candura, animou-se de luz insólita; o busto admiravelmente cinzelado, ergueu-se
altaneiro e majestoso; os olhos extáticos alçavam-se cheios de esplendor e
serenidade; os seios, que até ali apenas arfavam como as ondas de um lago em
tranqüila noite de luar, começaram de ofegar, túrgidos e agitados, como oceano
encapelado; seu colo distendeu-se alvo e esbelto como o do cisne que se apresta a
desprender os divinais gorjeios. Era o sopro da inspiração artística, que, roçando-lhe
pela fronte, a transformava em sacerdotisa do belo, em intérprete inspirada das
harmonias do céu. Ali sentia-se ela rainha sobre seu trono ideal; ali era Calíope
sentada sobre a tripo de sagrada, avassalando o mundo ao som de enlevadoras e
inefáveis harmonias. Das próprias inquietações e angústias da alma soube ela tirar
alento e inspiração para vencer as dificuldades da árdua situação em que se achava
empenhada. Banhou os lábios com as lágrimas do coração, e a voz lhe rompeu do
peito com tão original e arrebatadora vibração, em modulações tão puras e suaves,
tão repassadas de sublime melancolia, que mais de uma lágrima viu-se rolar pelas
faces dos freqüentadores daquele templo dos prazeres, dos risos, e da frivolidade!
Elvira acabava de alcançar um triunfo colossal. Mal terminara o canto, o
salão restrugiu entre os mais estrondosos aplausos, e parecia que vinha desabando
ao ruído atordoador das palmas e dos vivas!
A fada de Álvaro é também uma sereia; — dizia o Dr. Geraldo a um dos
cavalheiros, em cuja companhia já o vimos. — Resume tudo em si... que timbre de
voz tão puro e tão suave; julguei-me arrebatado ao sétimo céu, ouvindo as
harmonias dos coros angélicos.
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— É uma consumada artista... no teatro faria esquecer a Malibran, e
conquistaria reputação européia. Álvaro tem razão; uma criatura assim não pode ser
uma mulher ordinária, e muito menos uma aventureira... A música dando o sinal para
a quadrilha, interrompe a conversação ou não nô-la deixa ouvir.
— D. Elvira, — diz Álvaro dirigindo-se à sua protegida, que já se achava
sentada ao pé de seu pai, — lembre-se, que me fez a honra de conceder-me esta
quadrilha.
Elvira esforçou-se por sorrir e combater o terrível abatimento, que ao deixar
o piano de novo se apoderara de seu espírito.
Tomou o braço de Álvaro, e ambos foram ocupar o seu lugar na quadrilha.
CAPÍTULO XIII
Agora os leitores já sabem, se é que há mais tempo não adivinharam, que a
suposta Elvira não é mais do que a escrava Isaura, assim como Anselmo não passa
do feitor Miguel, ambos os quais são já nossos conhecidos antigos. Como também
sabem que Isaura não só era dotada de espírito superior, como também recebera a
mais fina e esmerada educação, não lhe estranharam a distinção das maneiras, a
elegância e elevação da linguagem, e outros dotes, que faziam com que essa
escrava excepcional pudesse aparecer e mesmo brilhar no meio da mais luzida e
aristocrática sociedade.
Foi a situação desesperada, em que via sua querida filha, que inspirou a
Miguel o expediente extremo de uma fuga precipitada, exposta a mil azares e
perigos. Lembrava-se ele com horror do miserando destino de que em iguais
circunstâncias fora vítima a mãe de Isaura, e bem sabia que Leôncio, tão desalmado
como o pai, e ainda mais corrupto e libertino, era capaz de excessos e atentados
ainda maiores.
Tendo perdido a esperança de libertar a filha, entendeu que podia utilizar-se
da soma, que para esse fim tinha agenciado, empregando-a em arrancar a pobre
vitima das mãos do algoz, por qualquer meio que fosse.
Bem via que aos olhos do mundo tirar uma escrava da casa de seus
senhores, e proteger-lhe a fuga, além de ser um crime, era um ato desairoso e
indigno de um homem de bem; mas a escrava era uma filha idolatrada, e uma pérola
de pureza, prestes a ser poluída ou esmagada pela mão de um senhor verdugo, e
esta consideração o justificava aos olhos da própria consciência.
Bem se lembrara o infeliz pai de dar denúncia do fato às autoridades,
implorando a proteção das leis em favor de sua filha para que não fosse vitima das
violências e sevícias de seu dissoluto e brutal senhor. Mas todos a quem consultava
respondiam-lhe a uma voz:
— Não se meta em tal; é tempo perdido. As autoridades nada têm que ver
com o que se passa no interior da casa dos ricos. Não caia nessa; muito feliz será,
se somente tiver de pagar as custas, e não lhe arrumarem por cima algum processo,
com que tenha de ir dar com os costados na cadeia. — Onde se viu o pobre ter
razão contra o rico, o fraco contra o forte?...
Miguel entretinha relações ocultas com alguns dos antigos escravos da
fazenda de Leôncio, os quais, lembrando-se ainda com saudades do tempo de sua
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boa administração, conservavam-lhe o mesmo respeito e afeição, e por meio deles
tinha exata informação do que se passava na fazenda. Sabendo dos cruéis apuros a
que sua filha se achava reduzida depois da morte do comendador, não hesitou mais
um instante, e tratou de tomar todas as providências e medidas de segurança para
roubar a filha, e pô-la fora do alcance de seu bárbaro senhor. Na mesma
madrugada, que seguiu-se à tarde, em que a raptou, fazia-se de vela com Isaura
para as províncias do Norte em um navio negreiro, de que era capitão um português,
antigo e dedicado amigo seu. Este chegando às alturas de Pernambuco, como daí
tinha de singrar para a costa da África, largou-os no Recife, prometendo-lhes que
dentro em três ou quatro meses estaria de volta e pronto a conduzi-los para onde
quisessem.
Miguel que em sua profissão de jardineiro ou de feitor havia passado a vida
desde a infância dentro de um horizonte acanhado e em círculo mui limitado de
relações, tinha pouco conhecimento e nenhuma experiência do mundo, e portanto
não podia calcular todas as conseqüências da difícil posição em que ia colocar a si e
a sua filha. Durante os longos anos que esteve feitorando a fazenda do comendador
e de outros, não se dera senão uma ou outra fuga insignificante de escravos, por
alguns dias e para alguma fazenda vizinha, e, portanto, não é para admirar que ele
quase completamente ignorasse a amplitude dos direitos, que tem um senhor sobre
o escravo, e os infinitos meios e recursos de que pode lançar mão para capturá-los
em caso de fuga. Entendeu, pois, que em Pernambuco poderia viver com sua filha
em plena seguridade, ao menos por três ou quatro meses, uma vez que se
afastassem da sociedade o mais que pudessem, e procurassem esconder sua vida
na mais completa obscuridade.
Isaura também, se bem que tivesse o espírito mais atilado e esclarecido,
longe do objeto principal de seu terror e aversão, não deixava de sentir-se tranqüila,
e até certo ponto descuidosa dos perigos a que vivia exposta. Mas essa tal ou qual
tranquilidade só durou até o dia em que pela primeira vez viu Álvaro. Amou-o com
esse amor exaltado das almas elevadas, que amam pela primeira e única vez, e
esse amor, como bem se compreende, veio tornar ainda mais crítica e angustiosa a
sua já tão precária e mísera situação.
Álvaro tinha na fisionomia, nas maneiras, na voz e no gesto, um não sei quê
de nobre, de amável e profundamente simpático, que avassalava todos os corações.
O que não seria ele para aquela que única até ali lhe soubera conquistar o amor?
Isaura não pôde resistir a tão prestigiosa sedução; amou-o com o ardor e
entusiasmo de um coração virgem; e com a imprevidência e cegueira de uma alma
de artista, embora não visse nesse amor mais do que uma nova fonte de lágrimas e
torturas para seu coração.
Medindo o abismo que a separava de Álvaro, bem sabia que de nenhuma
esperança podia alimentar-se aquela paixão funesta, que deveria ficar para sempre
sepultada no íntimo do coração, como um cancro a devorá-lo eternamente.
No seu cálice de amarguras, já quase a transbordar, tinha de receber da
mão do destino mais aquele travo cruel, que lhe devia queimar os lábios e
envenenar-lhe a existência.
Já bastante lhe pesava andar enganando a sociedade a respeito de sua
verdadeira condição; alma sincera e escrupulosa, envergonhava-se consigo mesma
de impor às poucas pessoas que com ela tratavam de perto, um respeito e
consideração a que nenhum direito podia ter. Mas considerando que de tal disfarce
nenhum grande mal podia resultar à sociedade, conformava-se com sua sorte.
Deveria, porém, ela, ou poderia sem inconveniente manter o seu amante na mesma
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ilusão? Com seu silêncio, conservando-o na ignorância de sua condição de escrava,
deveria deixar alimentar-se, crescer profunda e enérgica paixão, que o moço por ela
concebera?... não seria isto um vil embuste, uma indignidade, uma traição infame?
não teria ele o direito, ao saber da verdade, de acabrunhá-la de amargas
exprobrações, de desprezá-la, de calcá-la aos pés, de tratá-la enfim como escrava
abjeta e vil, que ficaria sendo?
— Oh! isto para mim seria mais horrível que mil mortes! — exclamava ela
no meio do angustioso embate de idéias que se lhe agitavam no espírito. — Não,
não devo iludi-lo; isto seria uma infâmia... vou-lhe descobrir tudo; é esse o meu
dever, e hei de cumpri-lo. Ficará sabendo que não pode, que não deve amar-me;
porém ao menos não ficará com o direito de desprezar-me.. uma escrava, que
procede com lisura e lealdade, pode ao menos ser estimada. Não; não devo
enganá-lo; hei de revelar-lhe tudo.
Esta era a resolução que lhe inspiravam seu natural pundonor e lealdade, e
os ditames de uma consciência reta e delicada, mas quando chegava o momento de
pô-la em prática fraqueava-lhe o coração. E Isaura ia diferindo de dia para dia a
execução de seu propósito.
Falecia-lhe de todo a coragem para quebrar por suas próprias mãos a doce
quimera, que tão deliciosamente a embalava, e em que às vezes conseguia
esquecer por longo tempo sua mísera condição, para lembrar-se somente que
amava e era amada.
— Deixemos durar mais um dia — refletia consigo. — esta ilusória, mas
inefável ventura. Sou uma condenada, que arrancam da masmorra para subir ao
palco e fazer por momentos o papel de rainha feliz e poderosa; quando descer, serei
de novo sepultada em minha masmorra para nunca mais sair. Prolonguemos estes
instantes; não será lícito deixar passar ao menos em sonhos uma hora de felicidade
sobre a fronte do infeliz condenado?... sempre será tempo de quebrar esta frágil
cadeia de ouro, que me prende ao céu, e baquear de novo no inferno de meus
sofrimentos.
Nesta indecisão, nesta luta interna, em que sempre a voz da paixão abafava
os ditames da razão e da consciência, passaram-se alguns dias até àquele, em que
Álvaro os induziu por meios quase violentos a aceitarem convite para um baile.
Desde então Isaura entendeu que seria uma deslealdade, uma infâmia inqualificável,
conservar por mais tempo o seu amante na ilusão a respeito de sua condição, e que
não havia mais meio de prolongar, sem desdouro para eles, tão falsa e precária
situação.
Era muito abusar da ignorância do nobre e generoso mancebo! Uma
escrava fugida apresentar-se em um baile, e apavonar-se em seu braço à face da
mais brilhante e distinta classe de uma importante capital!... era pagar com a mais
feia ingratidão e a mais degradante deslealdade os serviços, que com tanta
delicadeza e amabilidade lhe havia prestado. Isto repugnava absolutamente aos
escrúpulos da melindrosa consciência de Isaura. É verdade que Miguel, aterrado
pelas considerações que Álvaro lhe fizera, viu-se forçado a anuir ao seu gracioso
convite; Isaura porém guardara absoluto silêncio, o que ambos tomaram por um
sinal de aquiescência.
Enganavam-se. Isaura recolhida ao silêncio não fazia mais do que tentar
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esforços supremos para sacudir o fardo daquele disfarce, que tanto lhe pesava
sobre a consciência, rasgando resolutamente o véu que encobria aos olhos do
amante sua verdadeira condição. Por mais, porém, que invocasse toda a sua
energia e resolução, no momento decisivo a coragem a abandonava. Já a palavra
lhe pairava pelos lábios entreabertos, já tinha o passo formado para ir prostrar-se
aos pés de Álvaro, mas encontrando pousado sobre ela o olhar meigo e apaixonado
do mancebo, ficava como que fascinada; a palavra não ousava romper os lábios
paralisados e refluía ao coração, e os pés recusavam-se ao movimento como se
estivessem pregados no chão. Isaura estava como o desgraçado a quem
circunstâncias fatais arrastam ao suicídio, mas que ao chegar à borda do precipício
medonho em que deseja arrojar-se, recua espavorido.
— Fraca e covarde criatura que eu sou! — pensou ela por fim esmorecida: -
que miséria! nem tenho coragem para cumprir um dever! não importa; para tudo há
remédio; cumpre que ele ouça da boca de meu pai, o que eu não tenho ânimo de
dizer-lhe.
Esta idéia luziu-lhe no espírito como uma tábua salvadora; agarrou-se a ela
com sofreguidão, e antes que de novo lhe fraqueasse o ânimo, tratou de pô-la em
execução.
— Meu pai, — disse ela resolutamente apenas Álvaro transpôs o portão do
pequeno jardim, — declaro-lhe que não vou a esse baile; não quero, nem devo por
forma nenhuma lá me apresentar.
— Não vais?! - exclamou Miguel atônito. — E por que não disseste isto há
mais tempo, quando o senhor Álvaro ainda aqui se achava? agora que já demos
nossa palavra...
— Para tudo há remédio, meu pai, — atalhou a filha com febril vivacidade –
e para este caso ele é bem simples. Vá meu pai depressa à casa desse moço, e
diga-lhe o que eu não tive ânimo de dizer-lhe; declare-lhe quem eu sou, e está tudo
acabado.
Dizendo isto, Isaura estava pálida, falava com precipitação, os lábios
descarados lhe tremiam, e as palavras, proferidas com voz convulsa e estridente,
parecia que lhe eram arrancadas a custo do coração. Era o resultado do extremo
esforço que fazia, para levar a efeito tão penível resolução. O pai olhava para ela
com assombro e consternação.
— Que estás a dizer, minha filha! — replicou-lhe ele — estás tão pálida e
alterada!.. parece-me que tens febre... sofres alguma coisa?
— Nada sofro, meu pai; não se inquiete pela minha saúde. O que eu estou
lhe dizendo é que é absolutamente necessário que meu pai vá procurar esse moço e
confessar-lhe tudo...
— Isso nunca!... estás louca, menina?... queres que eu te veja encerrada
em uma cadeia, conduzida em ferros para a tua província, entregue a teu senhor, e
por fim ver-te morrer entre tormentos nas garras daquele monstro! oh! Isaura, por
quem és, não me fales mais nisso. Enquanto o sangue me girar nestas veias,
enquanto me restar o mais pequenino recurso, hei de lançar mão dele para te
salvar...
— Salvar-me por meio de uma indignidade, de uma infâmia, meu pai!...
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retorquiu a moça com exaltação. — Como posso eu, sem cometer a mais vil
deslealdade, aparecer apresentada por ele como uma senhora livre em uma sala de
baile?... Quando esse senhor e tantas outras ilustres pessoas souberem que
ombreou com elas, e a par delas dançou uma miserável escrava fugida...
— Cala-te, menina! — interrompeu o velho, incomodado com a exaltação da
filha. — Não fales assim tão alto... tranqüiliza-te; eles nunca saberão de nada. O
mais breve que puder ser deixaremos esta terra; amanhã mesmo, se for possível.
Embarcaremos em qualquer paquete, e iremos para bem longe, para os Estados
Unidos, por exemplo. Lá, segundo me consta, poderemos ficar fora do alcance de
qualquer perseguição. Eu com o meu trabalho, e tu com as tuas prendas e
habilitações, podemos viver sem sofrer necessidades em qualquer canto do mundo.
— Ah! meu pai! essa idéia de irmos para tão longe, sem esperança de um
dia podermos voltar, me oprime o coração.
— Que remédio, minha filha!.., já agora, ainda que tenhamos de ir parar ao
fim do mundo, nos é forçoso fugir às garras do monstro.
— Mas esse moço, que tanto se interessa por nós, o senhor Álvaro, nobre e
generoso como é, sabendo da minha verdadeira condição, e das terríveis
circunstâncias que nos obrigam a andar assim fugitivos e disfarçados pelo mundo,
talvez queira e possa nos amparar e valer contra as perseguições...
— E quem nos afiança isso?... o mais certo é ele entregar-te ao desprezo,
logo que saiba que não passas de uma escrava fugida, se, despeitado com o logro
que levou, não for o primeiro a denunciar-te à polícia. No transe em que nos
achamos, é de absoluta necessidade enganar a ele e a todos; se revelarmos a quem
quer que seja o segredo de nossa posição, estamos perdidos. Toma coragem, e
vamos ao baile, minha filha; é um sacrifício cruel, mas passageiro, a que devemos
nos sujeitar a bem de nossa segurança. Em breve estaremos longe, e se algum dia
souberem quem tu eras, que nos importa? nunca mais nos verão o rosto, nem
ouvirão nossos nomes. Tens a consciência escrupulosa em demasia. Se ignoram
quem tu és, a tua companhia em nada os pode infamar. Com isso não fazes mal a
ninguém; é uma medida de salvação, que todos te perdoariam.
— Meu pai parece que tem razão; mas não sei por que, repugna-me
absolutamente ao coração dar esse passo.
— Mas é preciso dá-lo, minha filha, se não queres para nós ambos a
desgraça e a morte. Se não formos a esse baile, e desaparecermos de um dia para
outro, como nos é forçoso, então as suspeitas que começamos a despertar tomarão
muito maior vulto, e a policia pôr-se-á à nossa pista, e nos perseguirá por toda parte.
É um sacrifício na verdade, mas não será ele muito mais suave do que as
perseguições da polícia, a prisão, as torturas e a morte, que é o que podes esperar
em casa de teu senhor?...
Isaura não respondeu; seu espírito agitava-se entre as mais pungentes e
amargas reflexões.
As palavras de seu pai a tinham abismado em glacial e profundo desalento.
Aturdida por tantos golpes, sua alma debatia-se em um mar de dúvidas e
perplexidades, como frágil barca em meio de um oceano irritado, sacudida aos
boléus por vagalhões desencontrados.
O grito de sua consciência escrupulosa e delicada, a lisura e sinceridade de
seu coração, que não podia acomodar-se com o embuste e a mentira, e uma
espécie de vago pressentimento que lhe pesava sobre o espírito, a desviavam
daquele baile, e por momentos pareciam fixar definitivamente a sua resolução; e
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firme neste propósito dizia consigo mesma: — não, não irei.
Por outro lado as considerações de seu pai, que pareciam tão razoáveis,
bem como o desejo de ver Álvaro ainda uma vez, de gozar por algumas horas a sua
presença, faziam-lhe de novo flutuar o espírito no mar das irresoluções. A lembrança
de que em breve, talvez no dia seguinte, tinha de deixar aquela terra e separar-se de
Álvaro, sem esperança alguma de jamais tornar a vê-lo, sem poder dizer-lhe um
adeus, sem que ele pudesse saber quem ela era, nem para onde ia, dilacerava-lhe o
coração. Partir sem ter um ente a quem apertar nos braços na hora da despedida,
nem ter um seio onde verter as lágrimas da mais pungente saudade; partir para levar
uma vida errante e fugitiva, sem esperança nem consolação alguma, através de mil
trabalhos e perigos, para terminá-la talvez entre os tormentos da mais atroz
escravidão, oh!...isto era pavoroso! — e, entretanto, era esse o único futuro que a
pobre Isaura tinha diante dos olhos. Mas não; tinha ainda diante de si uma noite
inteira de prazer e de ventura, uma noite esplêndida de baile e regozijo de seu
amante, respirando o mesmo ar, inebriando-se de sua voz, bebendo o seu hálito,
recolhendo dentro d'alma seus olhares apaixonados, sentindo na sua a pressão
daquela mão adorada, contando as pulsações daquele coração, que só por ela
palpitava. Oh! uma noite assim valia bem uma eternidade, viessem depois embora
as angústias e perigos, a escravidão e a morte!
Cândida e modesta como era, nem por isso Isaura deixava de ter
consciência do quanto valia. Vendo-se o objeto do amor de um jovem de espírito
elevado, e dotado de tão nobres e brilhantes qualidades como Álvaro, ainda mais se
confirmou na idéia que de si mesma fazia.
Com sua natural perspicácia e penetração, bem depressa convenceu-se de
que o afeto que o mancebo lhe consagrava não era simples e superficial
homenagem rendida a seus encantos e talentos, nem tampouco passageiro capricho
de mocidade, mas verdadeira paixão, sincera, enérgica e profunda. Era isso para ela
motivo de um orgulho íntimo, que a elevava a seus próprios olhos, e por momentos a
fazia esquecer-se que era uma escrava.
— Estou convencida de que sou digna do amor de Álvaro, senão, ele não
me amaria; e se sou digna de seu amor, por que não o serei de me apresentar no
seio da mais brilhante sociedade? A perversidade dos homens pode acaso destruir o
que há de bom e de belo na feitura do Criador? Assim refletia Isaura, e exaltada com
estas idéias e com a sedutora perspectiva de algumas horas de inefável ventura em
companhia do amante exclamava dentro d'alma: — Hei de ir, hei de ir ao baile!
Enquanto Isaura, silenciosa e com a face na mão, se embebia em suas
cismas, procurando firmar-se em uma resolução, o pai, não menos inquieto e
preocupado, passeava distraído entre os canteiros do jardim, aguardando com
ansiedade uma resposta definitiva de sua filha.
— Irei, meu pai, irei ao baile, — disse ela por fim levantando-se, mas vou
preparar-me para ele como a vítima que tem de ser conduzida ao sacrifício entre
cânticos e flores. Tenho um cruel pressentimento, que me acabrunha...
— Pressentimento de quê, Isaura?...
— Não sei, meu pai; de alguma desgraça.
— Pois quanto a mim, Isaura, o coração como que está-me adivinhando que
de ir a esse baile resultará a nossa salvação.
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CAPÍTULO XIV
Não pense o leitor que já se acha terminado o baile a que estávamos
assistindo. A pequena digressão que por fora dele fizemos no capitulo antecedente,
nos pareceu necessária para explicar por que conjunto de circunstâncias fatais a
nossa heroína, sendo uma escrava, foi impelida a tomar a audaciosa resolução de
apresentar-se em um esplêndido e aristocrático sarau, — fraqueza de coração, ou
timidez de caráter, que pode ser desculpada, mas não plenamente justificada em
uma pessoa de consciência tão delicada e de tão esclarecido entendimento.
O baile continua, mas já não tão animado e festivo como ao princípio. Os
aplausos frenéticos, a admiração geral, de que Isaura se havia tornado objeto da
parte dos cavalheiros, tinham produzido um completo resfriamento entre as mais
belas e espirituosas damas da reunião.
Arrufadas com seus cavalheiros prediletos, em razão das entusiásticas
homenagens, que francamente iam render aos pés daquela que implicitamente
estavam proclamando a rainha do salão, já nem ao menos queriam dançar, e em
vez de tisos folgazões, e de uma conversação franca e jovial, só se ouviam pelos
cantos entre diversos grupos expansões misteriosamente sussurradas, e cochichos
segredados entre amarelas e sarcásticas risotas.
Propagava-se entre as moças como que um sussurro geral de
descontentamento. Era como esses rumores surdos e profundos, que restrugem ao
longe pelo espaço, precedendo uma grande tempestade.
Dir-se-ia que já estavam adivinhando que aquela mulher, que por seus
encantos e dotes incomparáveis as estava suplantando a todas, não era mais do
que - uma escrava. Muitas mesmo se foram retirando, nomeadamente aquelas que
afagavam alguma esperança, ou se julgavam com algum direito sobre o coração de
Álvaro. Aniquiladas sob o peso dos esmagadores triunfos de Isaura, não se achando
com ânimo de manterem-se por mais tempo na liça, tomaram o prudente partido de
irem esconder no misterioso recinto das alcovas o despeito e vergonha de tão cruel
e solene derrota.
Não diremos todavia que no meio de tantas e tão nobres damas, distintas
pelos encantos do espírito e do corpo, não houvesse muitas que, com toda a
isenção e sem a menor sombra de inveja, admirassem a beleza de Isaura, e
aplaudissem de coração e com sincero prazer os seus triunfos, e foram essas que
conseguiram ir dando alguma vida ao sarau, que sem elas teria esmorecido
inteiramente. Todavia não é menos certo que do belo sexo, sem distinção de
classes, ao menos a metade é ludibrio dessas invejas, ciúmes e rivalidades
mesquinhas.
Deixamos Isaura indo tomar parte em uma quadrilha, tendo Álvaro por seu
par. Enquanto dançam, entremos em uma saleta, onde há mesas de jogo, e bufetes
guarnecidos de licoreiras, de garrafas de cerveja e champanha. Esta saleta
comunica imediatamente com o salão onde se dança, por uma larga porta aberta.
Acham-se ai uma meia dúzia de rapazes, pela maior parte estudantes, desses com
pretensões a estróinas e excêntricos à Byron, e que já enfastiados da sociedade,
dos prazeres e das mulheres, costumam dizer que não trocariam uma fumaça de
charuto, ou um copo de champanha, pelo mais fagueiro sorriso da mais formosa
donzela; desses descridos, que vivem a apregoar em prosa e verso que na aurora
da vida já têm o coração mirrado pelo sopro do cepticismo, ou calcinado pelo fogo
das paixões, ou enregelado pela saciedade; desses misantropos enfim, cheios de
esplim, que se acham sempre no meio de todos os bailes e reuniões de toda
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espécie, alardeando o seu afastamento e desdém pelos prazeres da sociedade e
frivolidades da vida.
Entre eles acha-se um, sobre o qual nos é mister deter por mais um pouco a
atenção, visto que tem de tomar parte um tanto ativa nos acontecimentos desta
história. Este nada tem de esplenético nem de byroniano; pelo contrário o seu todo
respira o mais chato e ignóbil prosaísmo.
Mostra ser mais velho que os seus comparsas uma boa dezena de anos.
Tem cabeça grande, cara larga, e feições grosseiras. A testa é desmesuradamente
ampla, e estofada de enormes protuberâncias, o que, na opinião de Lavater, é
indicio de espírito lerdo e acanhado a roçar pela estupidez. O todo da fisionomia
tosca e quase grotesca revela instintos ignóbeis, muito egoísmo e baixeza de
caráter. O que, porém, mais o caracteriza é certo espírito de cobiça, e de sórdida
ganância, que lhe transpira em todas as palavras, em todos os atos, e
principalmente no fundo de seus olhos pardos e pequeninos, onde reluz
constantemente um raio de velhacaria. É estudante, mas pelo desalinho do trajo,
sem o menor esmero e nem sombra de elegância, parece mais um vendilhão.
Estudava há quinze anos à sua própria custa, mantendo-se do rendimento de uma
taverna, de que era sócio capitalista. Chama-se Martinho.
— Rapaziada, — disse um dos mancebos, — vamos nós aqui a uma partida
de lansquenê, enquanto esses basbaques ali estão a arrastar os pés e a fazer
mesuras.
— Justo! — exclamou outro, sentando-se a uma mesa e tomando baralhos.
—Já que não temos coisa melhor a fazer, vamos às cartas.
— Demais, no baralho é que está a vida. A vista de uma sota me faz às
vezes estremecer o coração em emoções mais vivas do que as sentiria Romeu a um
olhar de Julieta... Afonso, Alberto, Martinho, andem para cá; vamos ao lansquenê;
duas ou três corridas somente...
— De boa vontade aceitaria o convite, — respondeu Martinho, — se não
andasse ocupado com um outro jogo, que de um momento para outro, e sem nada
arriscar, pode meter-me na algibeira não menos de cinco contos de réis limpinhos.
— De que diabo de jogo estás aí a falar?... nunca deixarás de ser maluco?...
deixa-te de asneiras, e vamos ao lansquenê.
— Quem tem um jogo seguro como eu tenho, há de ir meter-se nos azares
do lansquenê, que já me tem engolido bem boas patacas?... Nem tão tolo serei eu.
— Com mil diabos, Martinho!... então não te explicarás?... que maldito jogo
é esse?...
— Ora, adivinhem lá... Não são capazes. uma bisca de estrondo. Se
adivinharem, dou-lhes uma ceia esplêndida no melhor hotel desta cidade; bem
entendido, se encartar a minha bisca.
Dessa ceia estamos nós bem livres, pobre comedor de bacalhau ardido,
e porque não é possível haver quem adivinhe as asneiras que passam lá por esses
teus miolos extravagantes. O que queremos é o teu dinheiro aqui sobre a mesa do
lansquenê.
— Ora, deixem-me em paz, — disse Martinho, com os olhos atentamente
dirigidas para o salão de dança. — Estou calculando o meu jogo... suponham que é
o xadrez, e que eu vou dar xeque-mate à rainha... dito e feito, e os cinco contos são
meus...
— Não há dúvida, o rapaz está doido varrido... Anda lá, Martinho; descobre
o teu jogo, ou vai-te embora, e não nos estejas a maçar a paciência com tuas
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maluquices.
— Malucos são vocês. O meu jogo é este... mas quanto me dão para
descobri-lo? olhem que é coisa curiosa.
— Queres-nos atiçar a curiosidade para nos chuchar alguns cobres, não é
assim?... pois desta vez afianço-te da minha parte, que não arranjas nada. Vai-te
aos diabos com o teu jogo, e deixa-nos cá com o nosso. As cartas, meus amigos, e
deixemos o Martinho com suas maluquices.
— Com suas velhacarias, dirás tu... não me pilha.
— Ah! toleirões! — exclamou o Martinho, — vocês ainda estão com os
beiços com que mamaram. Andem cá, andem, e verão se é maluquice, nem
velhacaria. Enfim quero mostrar-lhes o meu jogo, porque desejo ver se a opinião de
vocês estará ou não de acordo com a minha. Eis aqui a minha bisca. — concluiu
Martinho mostrando um papel, que sacou da algibeira; — não é nada mais que um
anúncio de escravo fugido.
— Ah! ah! ah! esta não é má!...
— Que disparate!... decididamente estás louco, meu Martinho.
— A que propósito vem agora anúncio de escravo fugido?...
— Foste acaso nomeado oficial de justiça ou capitão-do-mato?
Estas e outras frases escapavam aos mancebos de envolta, em um coro de
intermináveis gargalhadas, que competiam com a orquestra do baile.
— Não sei de que tanto se espantam, — replicou frescamente o Martinho;
— o que admira é que ainda não vissem este grande anúncio em avulso, que veio
do Rio de Janeiro, e foi distribuído por toda a cidade com o jornal do Comércio.
— Porventura somos esbirros ou oficiais de justiça, para nos embaraçarmos
com semelhantes anúncios?
— Mas olhem que o negócio é dos mais curiosos, e as alvíssaras não são
para se desprezarem.
— Pobre Martinho! quanto pode em teu espírito a ganância de ouro, que
faz-te andar à cata de escravos fugidos em uma sala de baile! — pois é aqui que
poderás encontrar semelhante gente?...
— Olé... quem sabe?!... tenho cá meus motivos para desconfiar que por
aqui mesmo hei de achá-la, assim como os cinco continhos que, aqui entre nós, vêm
agora mesmo ao pintar, pois que o armazém de meu sócio bem pouco tem rendido
nestes últimos tempos.
Martinho chamava armazém à pequena taverna de que era sócio Ditas
aquelas palavras foi postar-se junto à porta que dava para o salão e ali ficou por
largo tempo a olhar, ora para os que dançavam, ora para o anúncio, que tinha
desdobrado na mão, como quem averigua e confronta os sinais.
— Que diabo faz ali o Martinho? — exclamou um dos mancebos que
entretidos com as mímicas do Martinho, tomando-as por palhaçadas, tinham-se
esquecido de jogar.
— Está doido, não resta a menor dúvida. — observou outro. — Procurar
escravo fugido em uma sala de baile!... Ora não faltava mais nada! Se andasse à
cata de alguma princesa, decerto a iria procurar no quilombos.
— Mas talvez seja algum pajem, ou alguma mucama, que por ai anda.
— Não me consta que haja nenhum pajem nem mucama ali dançando, e ele
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não tira os olhos dos que dançam.
— Deixá-lo; este rapaz, além de ser um vil traficante, sempre foi um
maníaco de primeira força.
— É ela! — disse o Martinho, deixando a porta, e voltando-se para seus
companheiros; - é ela; já não tenho a menor dúvida; é ela, e está segura.
— Ela quem, Martinho?...
— Ora! pois quem mais há de ser?...
— A escrava fugida?!...
— A escrava fugida, sim, senhores!... e ela está ali dançando.
— Ah! ah! ah! ora, vamos ver mais esta, Martinho!... até onde queres levar a
tua farsa? deve ser galante o desfecho. Isto é impagável, e vale mais que quantos
bailes há no mundo. — Se todos eles tivessem um episódio assim, eu não perdia
nem um. — Assim clamavam os moços entre estrondosas gargalhadas.
— Vocês zombam? — olhem que a farsa cheira um pouco a tragédia.
— Melhor! Melhor! — vamos com isso, Martinho!
— Não acreditam?... pois escutem lá, e depois me dirão que tal é a farsa.
Dizendo isto, Martinho sentou-se em uma cadeira, e desdobrando o
anúncio, pôs-se em atitude de lê-lo. Os outros se agruparam curiosos em torno dele.
— Escutem bem, — continuou Martinho. — Cinco contos! – eis o título
pomposo, que em eloqüentes e graúdos algarismos se acha no frontispício desta
obra imortal, que vale mais que a Ilíada de Camões...
— E que os Lusíadas de Homero, não é assim, Martinho? deixa-te de
preâmbulos asnáticos, e vamos ao anúncio.
— Eu já lhes satisfaço, — disse Martinho, e continuou lendo:
Fugiu da fazenda do Sr. Leôncio Gomes da Fonseca, no município de
Campos, província do Rio de Janeiro, uma escrava por nome Isaura, cujos sinais
são os seguintes: Cor clara e tez delicada como de qualquer branca; olhos pretos e
grandes; cabelos da mesma cor, compridos e ligeiramente ondeados; boca
pequena, rosada e bem feita; dentes alvos e bem dispostos; nariz saliente e bem
talhado; cintura delgada, talhe esbelto, e estatura regular; tem na face esquerda um
pequeno sinal preto, e acima do seio direito um sinal de queimadura, mui
semelhante a uma asa de borboleta. Traja-se com gosto e elegância, canta e toca
piano com perfeição. Como teve excelente educação e tem uma boa figura, pode
passar em qualquer parte por uma senhora livre e de boa sociedade. Fugiu em
companhia de um português, por nome Miguel, que se diz seu pai. É natural que
tenham mudado o nome. Quem a apreender, e levar ao dito seu senhor, além de se
lhe satisfazerem todas as despesas, receberá a gratificação de 5:OOO$OOO.
— Deveras, Martinho? – exclamou um dos ouvintes, — está nesse papel o
que acabo de ouvir? acabas de nos traçar o retrato de Vênus, e vens dizer-nos que
é uma escrava fugida!...
—Se não querem acreditar ainda, leiam com seus próprios olhos: aqui está
o papel...
— Com efeito! acrescentou outro — uma escrava assim vale a pena
apreendê-la, mais pelo que vale em si, do que pelos cinco contos. Se eu a pilho,
nenhuma vontade teria de entregá-la ao seu senhor.
—Já não me admira que o Martinho a procure aqui; uma criatura tão perfeita
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só se pode encontrar nos palácios dos príncipes.
— Ou no reino das fadas; e pelos sinais e indícios estou vendo que não
pode ser outra senão essa nova divindade que hoje apareceu...
— Sem mais nem menos; deu no vinte, atalhou Martinho, e chamando-os
para junto da porta: — Agora venham cá, — continuou, — e reparem naquela bonita
moça, que dança de par com Álvaro. Pobre Álvaro como está cheio de si! se
soubesse com quem dança, caía-lhe a cara aos pés. Reparem bem, meus senhores,
e vejam se não combinam perfeitamente os sinais?...
— Perfeitamente! — acudiu um dos moços, — é extraordinário! Lá vejo o
sinalzinho na face esquerda, e que lhe dá infinita graça. Se tiver a tal asa de
borboleta sobre o seio, não pode haver mais dúvida. O céus! é possível que uma
moça tão linda seja uma escrava!
— E que tenha a audácia de apresentar-se em um bailes destes?
acrescentou outro. Ainda não posso capacitar-me.
— Pois cá para mim, — disse o Martinho — o negócio é liquido, assim como
os cinco contos, que me parece estarem já me cantando na algibeira; e até logo,
meus caros.
E dizendo isto dobrou cuidadosamente o anúncio, meteu-o na algibeira, e
esfregando as mãos com cínico contentamento, tomou o chapéu, e retirou-se.
— Forte miserável... — disse um dos comparsas — que vil ganância de
ouro a deste Martinho! estou vendo que é capaz de fazer prender aquela moça aqui
mesmo em pleno baile.
— Por cinco contos é capaz de todas as infâmias do mundo. Tão vil criatura
é um desdouro para a classe a que pertencemos; devemos todos conspirar para
expeli-lo da Academia. Cinco contos daria eu para ser escravo daquela rara
formosura.
— É assombroso! Quem diria, que debaixo daquela figura de anjo estaria
oculta uma escrava fugida!
— E também quem nos diz que no corpo da escrava não se acha asilada
uma alma de anjo?...
CAPÍTULO XV
Havia terminado a quadrilha. Álvaro ufano, e cheio de júbilo, conduzia o seu
formoso par através da multidão, através de uma viva fuzilaria de olhares de inveja e
de admiração, que se cruzavam em sua passagem; a pretexto de oferecer-lhe algum
refresco, a foi levando para uma sala dos fundos, que se achava quase deserta. Até
ali ainda ele não havia feito a Elvira uma declaração de amor em termos positivos,
se bem que esse amor se estivesse revelando a cada instante, e cada vez mais
ardente e apaixonado, em seus olhos, em suas palavras, em todos os seus
movimentos e ações. Álvaro julgava já ter adquirido completo conhecimento do
coração de sua amada, e nos dois meses durante os quais a havia estudado, não
havia descoberto nela senão novos encantos e perfeições. Estava plenamente
convencido que de todas as formosuras que até ali tinha conhecido, Elvira era em
tudo a mais digna de seu amor, e já nem por sombras duvidava da pureza de sua
alma, da sinceridade do seu afeto. Pensava portanto que, sem receio algum de
comprometer o seu futuro, podia abandonar o coração ao império daquela paixão,
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que já não podia dominar. Quanto à origem e procedência de Elvira, era coisa de
que nem de leve se preocupava, e nunca se lembrou de indagar. A distinção de
classes repugnava a seus princípios e sentimentos filantrópicos. Fosse ela uma
princesa que o destino obrigava a andar foragida, ou tivesse o berço na palhoça de
algum pobre pescador, isso lhe era indiferente. Conhecia-a em si mesma, sabia que
era uma das criaturas mais perfeitas e adoráveis que se pode encontrar sobre a
Terra, e era quanto lhe bastava.
Observava Álvaro em seus costumes, como já sabemos, a severidade de
um quaker, e seria incapaz de abusar do amor que havia inspirado à formosa
desconhecida, aninhando em seu espírito um pensamento de sedução.
Naquela noite pois o apaixonado mancebo, rendido e deslumbrado mais
que nunca pelos novos encantos e atrativos que Elvira alardeava entre os
esplendores do baile, não pôde e nem quis dilatar por mais tempo a declaração, que
a cada instante lhe ardia nos olhos, e esvoaçava pelos lábios, e apenas achou-se
em lugar onde pudesse não ser ouvido senão de Elvira:
— D. Elvira, - lhe disse com voz grave e comovida, — se a senhora é um
anjo em sua casa, nos salões do baile é uma deusa. O meu coração há muito já lhe
pertence; sinto que o meu destino de hoje em diante depende só da senhora.
Funesta ou propícia, a senhora será sempre a minha estrela nos caminhos da vida.
Creio que me conhece bastante para acreditar na sinceridade de minhas palavras.
Sou senhor de uma fortuna considerável; tenho posição honrosa e respeitável na
sociedade; mas não poderia jamais ser feliz, se a senhora não consentir em partilhar
comigo esses bens, que a fortuna prodigalizou-me.
Estas palavras de Álvaro, tão meigas, tão repassadas do mais sincera e
profundo amor, que em outras condições teriam caído como bálsamo celeste sobre
o coração de Isaura a banhá-lo em inefáveis eflúvios de ventura, eram agora para
ela como um atroz e pungente sarcasmo do destino, um hino do céu ouvido entre as
torturas do inferno.
Via de um lado um anjo, que, tomando-a pela mão com um suave sorriso,
mostrava-lhe um éden de delícias, ao qual se esforçava por conduzi-la, enquanto de
outro lado a hedionda figura de um demônio atava-lhe ao pé um pesado grilhão, e
com todo o seu peso a arrastava para um gólfão de eternos sofrimentos.
É que a pobre Isaura, cheia de sustos e desconfianças, durante uma pausa
tinha notado os movimentos do infame Martinho, quando encostado ao umbral da
saleta com um papel na mão, parecia examiná-la com a mais minuciosa atenção.
Aquela vista produziu nela o efeito de um raio; não duvidou mais que estava
descoberta, e irremissivelmente perdida para sempre. Súbita vertigem lhe escureceu
os olhos, pareceu-lhe que o chão lhe faltava debaixo dos pés, e que ia sendo
tragada pelas fauces de um abismo imensurável. Para não cair foi-lhe preciso
agarrar-se fortemente com ambas as mãos ao braço de Álvaro, arrimando-se em
seu peito.
— Que tem, minha senhora? — perguntara-lhe este, assustado. — Está
incomodada?...
— Algum tanto, — respondeu Elvira com voz desfalecida e arquejante, e
reanimando-se pouco a pouco. — Foi uma dor aguda... uma pontada deste lado...
mas vai passando... não estou acostumada com este aperto... o remoinhar da dança
me fez mal.
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— Mas há de acostumar-se em pouco tempo — replicou-lhe Álvaro,
segurando-lhe uma das mãos e sustendo-a com um braço pela cintura. - A senhora
nasceu para brilhar nos salões... mas, se quer retirar-se...
— Não, senhor; continuemos; já agora estamos na final...
Com estas respostas evasivas Álvaro tranqüilizou-se, e em razão dos
movimentos rápidos da quadrilha na marca final, que imediatamente seguiu-se, não
pôde notar a extrema palidez e profundo transtorno das feições de Elvira. A infeliz já
não dançava, arrastava-se automaticamente pela sala; seu espírito não estava ali,
não ouvia nem via outra coisa senão a figura repugnante do Martinho, postada como
esfinge ameaçadora junto à porta da saleta, para a qual ela volvia de quando em
quando olhos cheios de ansiedade e pavor.
E o sangue todo lhe refluía ao coração, que lhe tremia como o da pomba
que sente estendida sobre o colo a garra desapiedada do gavião.
Em tal estado de susto e perturbação, Isaura não atinava com o que devia
responder àquela tão sincera e apaixonada declaração do mancebo. Guardou
silêncio por alguns instantes, o que Álvaro interpretou por timidez ou emoção.
— Não me quer responder? — continuou com voz meiga, — uma só palavra
é bastante...
— Ah! senhor, — murmurou ela suspirando, o que posso eu responder às
doces palavras que acabo de ouvir de sua boca? Elas me encantam, mas...
Elvira interrompeu-se bruscamente; um súbito estremecimento agitando o
braço de Álvaro o fez olhar para ela com sobressalto e inquietação.
— É ele!... — este som sussurrou-lhe pelos lábios como um gemido rouco e
convulsivo; acabava de avistar Martinho, entrando na sala em que se achavam, e
sentiu mortal calafrio percorrer-lhe todo o como.
— Desculpe-me, senhor — continuou ela — não é possível por hoje ouvir
suas doces palavras; sinto-me mal; preciso retirar-me. Se o senhor tivesse a
bondade de levar-me onde está meu pai...
— Por que não, D. Elvira?... mas oh!... como está pálida!... está sofrendo
muito, não é assim?... quer que eu a acompanhe?... que lhe chame um médico?...
aqui mesmo os há...
— Obrigada, senhor Álvaro; não se inquiete; isto é um mal passageiro,
cansaço talvez; em chegando a casa ficarei boa.
— E quer então retirar-se sem me deixar uma só palavra de consolação e
de esperança?...
— De consolação talvez, mas de esperança...
— Por que não?
— Se nem eu mesma posso tê-la...
— Então não me ama...
— Amo-o muito.
— Então será minha...
— Isso é impossível...
— Impossível!... que obstáculo pode haver?...
— Não sei dizer-lhe, senhor; minha desgraça.
Esta amorosa confidência no momento em que se achava no ponto mais
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interessante, foi bruscamente interrompida pela presença de Martinho, que se lhes
atravessou pela frente, fazendo uma profunda reverência. Álvaro indignado carregou
o sobrolho, e esteve a ponto de enxotar o importuno, como quem enxota um cão.
Elvira estacou como que petrificada de pavor.
— Senhor Álvaro, disse-lhe respeitosamente o Martinho, — com a
permissão de V. Sª. preciso dizer duas palavras a esta senhora, a quem V. S.a dá o
braço.
— A esta senhora! — exclamou maravilhado o cavalheiro. – Que tem o
senhor que ver com esta senhora?
— Negócio de suma importância; ela bem o sabe, melhor do que eu e o
senhor.
Álvaro, que bem conhecia o Martinho, e sabia quanto era abjeto e
desprezível, julgando ser aquilo manobra de algum rival invejoso, e covarde, que se
servia daquele miserável para ultrajá-lo ou expô-lo ao ridículo, teve um assomo de
indignação, mas contendo-se por um momento:
— Tem a senhora algum negócio com este homem? – perguntou a Elvira.
— Eu?!... nenhum, por certo; nem mesmo o conheço, — balbuciou a moça,
pálida e a tremer.
— Mas, meu Deus! D. Elvira, por que treme assim? como está pálida!..,
maldito importuno, que assim a faz sofrer!... oh! pelo céu, D. Elvira, não se assuste
assim. Aqui estou eu a seu lado, e ai daquele que ousar ultrajar-nos!
— Ninguém quer ultrajá-los, senhor Álvaro — replicou o Martinho; mas o
negócio é mais sério do que o senhor pensa.
— Enfim, senhor Martinho, deixe-se de rodeios e diga-nos aqui mesmo o
que quer com esta senhora.
— Posso dizê-lo; mas seria melhor que V. Sª. o ignorasse.
— Oh! temos mistério!... pois nesse caso declaro-lhe que não abandonarei
esta senhora um só instante, e se o senhor não quer dizer ao que veio, pode retirar-
se.
— Nessa não caio eu, que não hei de perder o meu tempo, e o meu
trabalho, e nem os meus cinco contos. — Estas últimas palavras resmungou-as ele
entre os dentes.
— Senhor Martinho, por favor queira não abusar mais da minha paciência.
Se não quer dizer ao que veio, ponha-se já longe da minha presença...
— Oh! senhor! retorquiu Martinho, sem se perturbar; — já que a isso me
força, pouco me custa fazer-lhe a vontade, e com bastante pesar tenho de declarar-
lhe, que essa senhora a quem dá o braço, é uma escrava fugida!...
Álvaro, se bem que conhecesse a vilania e impudência do caráter de
Martinho, no primeiro momento ficou pasmo ao ouvir aquela súbita e imprevista
delação. Não podia dar-lhe crédito, e refletindo um instante confirmou-se mais na
idéia de que tudo aquilo não passava de uma farsa posta em jogo por algum indigno
rival, com o fim de desgostá-lo ou insultá-lo. A pessoa do Martinho, que não poucas
vezes, na qualidade de truão ou palhaço, servia de instrumento às vinganças e
paixões mesquinhas de entes tão ignóbeis como ele, servia para justificar a
desconfiança de Álvaro, que acabou por não sentir senão asco e indignação por tão
infame procedimento.
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— Senhor Martinho, — bradou ele com voz severa, — se alguém pagou-lhe
para vir achincalhar-me a mim e a esta senhora, diga quanto ganha, que estou
pronto a dar-lhe o dobro para nos deixar em paz.
A esta sanguinolenta afronta, a larga e impudente cara do Martinho nem de
leve se alterou, e por única resposta:
— Torno a repetir, — bradou com todo o descaramento, — e em voz bem
alta, para que todos ouçam: esta senhora que aqui se acha, é uma escrava fugida, e
eu estou encarregado de apreendê-la e entregá-la a seu senhor.
Entretanto Isaura, avistando seu pai, que também a procurava por toda a
parte com os olhos, largando o braço de Álvaro correu a ele, lançou-se-lhe nos
braços, e escondendo o rosto em seu ombro:
— Que opróbrio, meu pai! - exclamou com voz sumida e a soluçar.
Eu bem estava pressentindo!...
— Este homem, se não é um insolente, ou está louco ou bêbado,
bradava Álvaro pálido de cólera. — Em todo o caso deve ser enxotado como indigno
desta sociedade.
Já alguns amigos de Álvaro agarrando o Martinho pelo braço, se dispunham
a pô-lo pela porta a fora, como a um ébrio ou alienado.
Devagar, meus amigos, devagar!... disse-lhes ele com toda a calma. — Não
me condenem sem primeiro ouvirem-me. Escutem primeiro este anúncio que lhes
vou ler, e se não for verdade o que eu digo, dou-lhes licença para me cuspirem na
cara, e me atirarem da janela abaixo.
Entretanto, esta pequena altercação começava a atrair a atenção geral, e
numerosos grupos movidos de curiosidade se apinhavam em torno dos contendores.
A frase fatal - esta senhora é uma escrava! — proferida em voz alta por Martinho,
transmitida de grupo em grupo, de ouvido em ouvido, já havia circulado com incrível
celeridade por todas as salas e recantos do espaçoso edifício. Um sussurro geral se
propagara por todo ele, e damas e cavalheiros, e tudo o que ali se achava, inclusive
músicos, porteiros e fâmulos, atropelando-se uns aos outros, arrojavam-se afanosos
para a sala, onde se dava o singular incidente que estamos relatando.
A sala estava literalmente apinhada de gente, que afiava o ouvido e
alongava o pescoço o mais que podia para ver e ouvir o que se passava.
Foi no meio desta multidão silenciosa, imóvel, estupefata e anelante, que
Martinho, sacando tranqüilamente da algibeira o anúncio, que nós já conhecemos,
desdobrou-o ante seus olhos, e em voz bem alta e sonora o leu de principio a fim.
— Bem se vê, — continuou ele concluída a leitura, — que os sinais
combinam perfeitamente, e só um cego não verá naquela senhora a escrava do
anúncio. Mas para tirar toda a dúvida, só resta examinar se ela tem o tal sinal de
queimadura acima do seio, e é coisa que desde já se pode averiguar com licença da
senhora.
Dizendo isto, Martinho com impudente desembaraço se encaminhava para
Isaura.
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— Alto lá, vil esbirro!... bradou Álvaro com força, e agarrando o Martinho
pelo braço, o arrojou para longe de Isaura, e o teria lançado em terra, se ele não
fosse esbarrar de encontro ao grupo, que cada vez mais se apertava em torno deles.
— Alto lá! nem tanto desembaraço! escrava, ou não, tu não lhe deitarás as mãos
imundas.
Aniquilada de dor e de vergonha, Isaura erguendo enfim o rosto, que até ali
tivera sempre debruçado e escondido sobre o seio de seu pai, voltou-se para os
circunstantes, e ajuntando as mãos convulsas no gesto da mais violenta agitação:
— Não é preciso que me toquem, — exclamou com voz angustiada.
— Meus senhores, e senhoras, perdão! cometi uma infâmia, uma
indignidade imperdoável!... mas Deus me é testemunha, que uma cruel fatalidade a
isso me levou. Senhores, o que esse homem diz, é verdade. Eu sou... uma
escrava!...
O rosto da cativa cobriu-se de lividez cadavérica, como lírio ceifado pendeu-
lhe a fronte sobre o seio, e o donoso corpo desabou como bela estátua de mármore,
que o furacão arranca do pedestal, e teria rojado pela terra, se os braços de Álvaro e
de Miguel não tivessem prontamente acudido para amparar-lhe a queda.
Uma escrava!... estas palavras, soluçadas no peito de Isaura como o
estertor do arranco extremo, murmuradas de boca em boca pela multidão
estupefata, ecoaram largo tempo pelos vastos salões, como o rugir sinistro das
lufadas da noite pela grenha de fúnebre arvoredo.
Este estranho incidente produziu no sarau o mesmo efeito que faria em um
acampamento a explosão de um paiol de pólvora; nos primeiros momentos, susto,
pasmo e uma espécie de estertor de angústia; depois, agitação, alarma, movimento
e alarido.
Álvaro e Miguel conduziram Isaura desfalecida ao boudoir das damas, e aí,
ajudados por algumas senhoras compassivas, prestaram-lhe os socorros que o caso
reclamava, e não a abandonaram enquanto não recobrou completamente os
sentidos. Martinho, inquieto e ressabiado, os seguia e espiava o mais de perto que
lhe era possível, com receio de que lhe roubassem a presa.
É impossível descrever a celeuma que se levantou, a agitação que
sublevou todos os espíritos, e as diversas e opostas impressões que produziu nos
ânimos aquela inesperada revelação. Com que cara ficariam tantas belezas de
primeira ordem, tantas damas das mais distintas jerarquias sociais, ao saberem que
aquela que as havia suplantado a todas, em formosura, donaire, talentos e graças
do espírito, não era mais que uma escrava! eu mesmo não sei dizer; os leitores que
façam idéia.
Entretanto em muitas delas o cruel desapontamento por que acabavam de
passar não deixava de ser mesclado de um certo contentamento íntimo, mormente
naquelas que se sentiam enfadadas pelas deferências e homenagens que certos
cavalheiros, tomados de entusiasmo, haviam francamente rendido à gentil
desconhecida. Estavam humilhadas, mas também vingadas. Quanto ás que tinham
esperanças ou pretensões ao amor de Álvaro, — e não eram poucas, — essas
exultaram de júbilo ao saberem do caso, e o nobre mancebo tornou-se o alvo de mil
desapiedados apodos e pilhérias.
— O que me diz do escravo da escrava? — diziam elas – com que cara não
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ficaria o pobre homem!...
— Com a mesma. Decerto vai forrá-la e casar-se com ela. Aquilo é um
maluco capaz de todas as asneiras.
— E que mau! Terá ao mesmo tempo mulher e talvez uma boa cozinheira.
Triste consolação! o estigma do cativeiro não podia apagar da bela fronte de
Isaura, antes mais realçava o cunho de superioridade que o sopro divino nela havia
gravado em caracteres indeléveis.
Entre os mancebos a impressão era bem diferente. Poucos, bem poucos,
deixavam de tomar vivo interesse e compaixão pela sorte da infeliz e formosa
escrava. Por todos os cantos falava-se e discutia-se com calor a respeito do caso.
Alguns, a despeito da evidência dos indícios e da confissão de Isaura, ainda
duvidavam da verdade que tinham diante dos olhos.
— Não; aquela mulher não pode ser uma escrava, — diziam eles, — aqui
há algum mistério, que algum dia se desvendará.
— Qual mistério? o caso é muito factível, e ela mesma o confessou.
— Mas quem será esse bruto e desalmado fazendeiro, que conserva no
cativeiro uma tão linda criatura?
— Deve ser algum lorpa de alma bem estúpida e sórdida.
— Se não for algum sultãozinho de bom gosto, que a quer para o seu
serralho.
— Seja como for, esse bruto deve ser constrangido a dar-lhe a liberdade.
Na senzala uma mulher que merecia sentar-se num trono!...
— Também só o infame do Martinho, com o seu satânico instinto de cobiça,
poderia farejar uma escrava na pessoa daquele anjo! Que impudência! se o visse
agora aqui, era capaz de estrangulá-lo!
Entretanto, Martinho, que se havia previamente munido de um mandado de
apreensão, e se fazia acompanhar de um oficial de justiça, exigia terminantemente
que se lhe fizesse entrega de Isaura. Álvaro, porém, interpondo o valimento e
prestígio de que gozava, opôs-se decididamente a essa exigência, e tomando por
testemunhas as pessoas que ali se achavam, constituiu-se fiador da escrava,
comprometendo-se a entregá-la a seu senhor, ou a quem por ordem dele a
reclamasse. Em vão Martinho quis insistir; uma multidão de vozes, que o apupavam
e cobriam de injúrias, forçaram-no a calar-se e desistir de sua pretensão.
— Ah! malditos! querem-me roubar! — bradava Martinho como um
possesso. — Meus cinco contos! ai! meus cinco contos! lá se vão pela água abaixo.
E dizendo isto procurou a escada, e saltando-a aos dois e três degraus, lá
se foi bramindo pela porta a fora.
CAPÍTULO XVI
Já é passado cerca de um mês depois dos acontecimentos que acabamos
de narrar. Isaura e Miguel, graças à valiosa intervenção de Álvaro, continuam a
habitar a mesma pequena chácara no bairro de Santo Antônio. Já não lhes sendo
mais possível pensar em fugir para mais longe nem ocultarem-se, ali se conservam
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por conselho de seu protetor, esperando o resultado dos passos que este se
comprometera a dar em favor deles, porém sempre na mais angustiosa inquietação,
como Dâmocles tendo sobre a cabeça aguda espada suspensa por um fio.
Álvaro vai quase todos os dias à casa dos dois foragidos, e ali passa longas
horas entretendo-os sobre os meios de conseguir a liberdade de sua protegida, e
procurando confortá-los na esperança de melhor destino.
Para nos inteirarmos do que tem ocorrido desde a fatal noite do baile,
ouçamos a conversação que teve lugar em casa de Isaura, entre Álvaro e o seu
amigo Dr. Geraldo.
Este, na mesma manhã que seguiu-se á noite do baile, deixara o Recife e
partira para uma vila do interior, onde tinha sido chamado a fim de encarregar-se de
uma causa importante. De volta à capital no fim de um mês, um de seus primeiros
cuidados foi procurar Álvaro, não só pelo impulso da amizade, como também
estimulado pela curiosidade de saber do desenlace que tivera a singular aventura do
baile. Não o tendo achado em casa por duas ou três vezes que aí o procurou,
presumiu que o meio mais provável de encontrá-lo seria procurá-lo em casa de
Isaura, caso ela ainda se achasse no Recife residindo na mesma chácara; não se
iludiu.
Álvaro, tendo reconhecido a voz de seu amigo, que da porta do jardim
perguntava por ele, saiu ao seu encontro; mas antes disso, tendo assegurado aos
donos da casa que a pessoa que o procurava era um amigo íntimo, em quem
depositava toda confiança, pediu-lhes licença para o fazer entrar.
Geraldo foi introduzido em uma pequena sala da frente. Posto que pouco
espaçosa e mobiliada com a maior simplicidade, era esta salinha tão fresca, sombria
e perfumada, tão cheia de flores desde a porta da entrada, a qual bem como as
janelas estava toda entrelaçada de ramos e festões de flores, que mais parecia um
caramanchão ou gruta de verdura, do que mesmo uma sala. Quase toda a luz lhe
vinha pelos fundos através de uma larga porta dando para uma varanda aberta, que
olhava para o mar. Dali a vista, enfiando-se por entre troncos de coqueiros, que
derramavam sombra e fresquidão em tomo da casa, deslizava pela superfície do
oceano, e ia embeber-se na profundidade de um céu límpido e cheio de fulgores.
Miguel e Isaura depois de terem cumprimentado o visitante e trocado com
ele algumas palavras de mera civilidade, presumindo que queriam estar sós,
retiraram-se discretamente para o interior da casa.
— Na verdade, Álvaro, — disse o doutor sorrindo-se, — é uma deliciosa
morada esta, e não admira que gostes de passar aqui grande parte do teu tempo.
Parece mesmo a gruta misteriosa de uma fada. É pena que um maldito nigromante
quebrasse de repente o encanto de tua fada, transformando-a em uma simples
escrava!
— Ah! não gracejes, meu doutor; aquela cena extraordinária produziu em
meu espírito a mais estranha e dolorosa impressão: porém, francamente te
confesso, não mudou senão por instantes a natureza de meus sentimentos para
com essa mulher.
— Que me dizes?... a tal ponto chegará a tua excentricidade?!..
— Que queres? a natureza assim me fez. Nos primeiros momentos a
vergonha e mesmo uma espécie de raiva me cegaram; vi quase com prazer o transe
cruel por que ela passou. Que triste e pungente decepção!
—Vi em um momento desmoronar-se e desfazer-se em lama o brilhante
castelo que minha imaginação com tanto amor tinha erigido!... uma escrava iludir-me
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por tanto tempo, e por fim ludibriar-me, expondo-me em face da sociedade à mais
humilhante irrisão! faze idéia de quanto eu ficaria confuso e corrido diante daquelas
ilustres damas, com as quais tinha feito ombrear uma escrava em pleno baile,
perante a mais distinta e brilhante sociedade!...
— E o que mais é, — acrescentou Geraldo, — uma escrava que as
ofuscava a todas por sua rara formosura e brilhantes talentos. Nem de propósito
poderias preparar-lhes mais tremenda humilhação, um crime, que nunca te
perdoarão, posto que saibam que também andavas iludido.
— Pois bem, Geraldo; eu, que naquela ocasião, desairado e confuso, não
sabia onde esconder a cara, hoje rio e me aplaudo por Ter dado ocasião a
semelhante aventura. Parece que Deus de propósito tinha preparado aquela
interessante cena, para mostrar de um modo palpitante quanto é vã e ridícula toda a
distinção que provém do nascimento e da riqueza, e para humilhar até o pó da terra
o orgulho e fatuidade dos grandes, e exaltar e enobrecer os humildes de
nascimento, mostrando que uma escrava pode valer mais que uma duquesa.
Pouco durou aquela primeira e desagradável impressão. Bem depressa a
compaixão, a curiosidade, o interesse, que inspira o infortúnio em uma pessoa
daquela ordem, e talvez também o amor, que nem com aquele estrondoso
escândalo pudera extinguir-se em meu coração, fizeram-me esquecer tudo, e
resolvi-me a proteger francamente e a todo o transe a formosa cativa. Apenas
consegui que Isaura recobrasse os sentidos, e a vi fora de perigo, corri à casa do
chefe de polícia, e expondo-lhe o caso, graças às relações de amizade, que com
ele tenho, obtive permissão para que Isaura e seu pai, — fica sabendo que é
realmente seu pai, — pudessem recolher-se livremente à sua casa, ficando eu por
garantia de que não desapareceriam; e assim se efetuou, a despeito dos bramidos
do Martinho, que teimava em não querer largar a presa. Todavia, no dia seguinte
pela manhã, o mesmo chefe, pesando a gravidade e importância do negócio, quis
que ela fosse conduzida à sua presença para interrogá-la e verificar a identidade de
pessoa.
Encarreguei-me de conduzi-la. Oh! se a visses então!... Através das
lágrimas, que lhe arrancava sua cruel situação, transparecia, em todo o seu brilho, a
dignidade humana. Nada havia nela que denunciasse a abjeção do escravo, ou que
não revelasse a candura e nobreza de sua alma. Era o anjo da dor exilado do céu e
arrastado perante os tribunais humanos.
Cheguei a duvidar ainda da cruel realidade. O chefe de polícia, possuído de
respeito e admiração diante de tão gentil e nobre figura, tratou-a com toda a
amabilidade, e interrogou-a com brandura e polidez. Coberta de rubor e pejo
confessou tudo com a ingenuidade de uma alma pura. Fugira em companhia de seu
pai, para escapar ao amor de um senhor devasso, libidinoso e cruel, que a poder de
violências e tormentos tentava forçá-la a satisfazer seus brutais desejos. Mas
Isaura, a quem uma natureza privilegiada secundada pela mais fina e esmerada
educação, inspirara desde a infância o sentimento da dignidade e do pudor, repeliu
com energia heróica todas as seduções e ameaças de seu indigno senhor. Enfim,
ameaçada dos mais aviltantes e bárbaros tratamentos, que já começavam a traduzir-
se em vias de fato, tomou o partido extremo de fugir, o único que lhe restava.
— O motivo da fuga, Álvaro, a ser verdadeiro, é o mais honroso possível
para ela, e a toma uma heroína; mas... enfim de contas ela não deixa de ser uma
escrava fugida.
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— E por isso mesmo mais digna de interesse e compaixão. Isaura tem-me
contado toda a sua vida, e segundo creio, pode alegar, e talvez provar direito à
liberdade. Sua senhora velha, mãe do atual senhor, a qual criou-a com todo o mimo,
e a quem ela deve a excelente educação que tem, tinha declarado por vezes diante
de testemunhas, que por sua morte a deixaria livre; a morte súbita e inesperada
desta senhora, que faleceu sem testamento, é a causa de Isaura achar-se ainda
entre as garras do mais devasso e infame dos senhores.
— E agora, o que pretendes fazer?...
— Pretendo requerer que Isaura seja mantida em liberdade, e que lhe seja
nomeado um curador a fim de tratar do seu direito.
— E onde esperas encontrar provas ou documentos para provar as
alegações que fazes?
— Não sei, Geraldo; desejava consultar-te, e esperava-te com impaciência
precisamente para esse fim. Quero que com a tua ciência jurídica me esclareças e
inspires neste negócio. Já lancei mão do primeiro e mais óbvio expediente que se
me oferecia, e logo no dia seguinte ao do baile escrevi ao senhor de Isaura com as
palavras as mais comedidas e suasivas, de que pude usar, convidando-o a abrir
preço para a liberdade dela. Foi pior; o libidinoso e ciumento Rajá enfureceu-se e
mandou-me em resposta esta carta insolente, que acabo de receber, em que me
trata de sedutor e acoutador de escravas alheias, e protesta lançar mão dos meios
legais para que lhe seja entregue a escrava.
— É bem parvo e descortês o tal sultanete, — disse Geraldo depois de ter
percorrido rapidamente a carta, que Álvaro lhe apresentou; — mas o certo é que,
pondo de parte a insolência...
— Pela qual há de me dar completa e solene satisfação, eu o protesto.
— Pondo de parte a insolência, se nada tens de valioso a apresentar em
favor da liberdade da tua protegida, ele tem o incontestável direito de reclamar e
apreender a sua escrava onde quer que se ache.
— Infame e cruel direito é esse, meu caro Geraldo. É já um escárnio dar-se
o nome de direito a uma instituição bárbara, contra a qual protestam altamente a
civilização, a moral e a religião. Porém, tolerar a sociedade que um senhor tirano e
brutal, levado por motivos infames e vergonhosos, tenha o direito de torturar uma
frágil e inocente criatura, só porque teve a desdita de nascer escrava, é o requinte
da celeradez e da abominação.
— Não é tanto assim, meu caro Álvaro; esses excessos e abusos devem
ser coibidos; mas como poderá a justiça ou o poder público devassar o interior do lar
doméstico, e ingerir-se no governo da casa do cidadão? que abomináveis e
hediondos mistérios, a que a escravidão dá lugar, não se passam por esses
engenhos e fazendas, sem que, já não digo a justiça, mas nem mesmo os vizinhos,
deles tenham conhecimento?...
— Enquanto houver escravidão, hão de se dar esses exemplos. Uma
instituição má produz uma infinidade de abusos, que só poderão ser extintos
cortando-se o mal pela raiz.
— É desgraçadamente assim; mas se a sociedade abandona
desumanamente essas vítimas ao furor de seus algozes, ainda há no mundo almas
generosas que se incumbem de protegê-las ou vingá-las. Quanto a mim protesto,
Geraldo, enquanto no meu peito pulsar um coração, hei de disputar Isaura à
escravidão com todas as minhas forças, e espero que Deus me favorecerá em tão
justa e santa causa.
— Pelo que vejo, meu Álvaro, não procedes assim só por espírito de
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filantropia, e ainda amas muito a essa escrava.
— Tu o disseste, Geraldo; amo-a muito, e hei de amá-la sempre e nem
disso faço mistério algum. E será coisa estranha ou vergonhosa amar-se uma
escrava? O patriarca Abraão amou sua escrava Agar, e por ela abandonou Sara,
sua mulher. A humildade de sua condição não pode despojar Isaura da cândida e
brilhante auréola de que a via e até hoje a vejo circundada. A beleza e a inocência
são astros que mais refulgem quando engolfados na profunda escuridão do
infortúnio.
— É bela a tua filosofia, e digna de teu nobre coração; mas que queres? as
leis civis, as convenções sociais, são obras do homem, imperfeitas, injustas, e
muitas vezes cruéis. O anjo padece e geme sob o jugo da escravidão, e o demônio
exalça-se ao fastígio da fortuna e do poder.
— E assim pois, — refletiu Álvaro com desânimo, — nessas desastradas
leis nenhum meio encontras de disputar ao algoz essa inocente vítima?
— Nenhum, Álvaro, enquanto nenhuma prova puderes aduzir em prol do
direito de tua protegida. A lei no escravo só vê a propriedade, e quase que prescinde
nele inteiramente da natureza humana. O senhor tem direito absoluto de
propriedade sobre o escravo, e só pode perdê-lo manumitindo-o ou alheando-o por
qualquer maneira, ou por litígio provando-se liberdade, mas não por sevícias que
cometa ou outro qualquer motivo análogo.
— Miserável e estúpida papelada que são essas vossas leis. Para ilaquear
a boa-fé, proteger a fraude, iludir a ignorância, defraudar o pobre e favorecer a usura
e rapacidade dos ricos, são elas fecundas em recursos e estratagemas de toda a
espécie. Mas quando se tem em vista um fim humanitário, quando se trata de
proteger a inocência desvalida contra a prepotência, de amparar o infortúnio contra
uma injusta perseguição, então ou são mudas, ou são cruéis. Mas não obstante
elas, hei de empregar todos os esforços ao meu alcance para libertar a infeliz do
afrontoso jugo que a oprime. Para tal empresa alenta-me não já somente um
impulso de generosidade, como também o mais puro e ardente amor, sem pejo o
confesso.
O amigo de Álvaro arrepiou-se com esta deliberação tão franca e
entusiasticamente proclamada com essa linguagem tão exaltada, que lhe pareceu
um deplorável desvario da imaginação.
— Nunca pensei, replicou com gravidade, — que a tal ponto chegasse a
exaltação desse teu excêntrico e malfadado amor. Que por um impulso de
humanidade procures proteger uma escrava desvalida, nada mais digno e mais
natural. O mais não passa de delírio de uma imaginação exaltada e romanesca.
Será airoso e digno da posição que ocupas na sociedade, deixares-te dominar de
uma paixão violenta por uma escrava?
— Escrava! — exclamou Álvaro cada vez mais exaltado, — isso não passa
de um nome vão, que nada exprime, ou exprime uma mentira. Pureza de anjo,
formosura de fada, eis a realidade! Pode um homem ou a sociedade inteira
contrariar as vistas do Criador, e transformar em uma vil escrava o anjo que sobre a
Terra caiu das mãos de Deus?...
— Mas por uma triste fatalidade o anjo caiu do céu no lodaçal da
escravidão, e ninguém aos olhos do mundo o poderá purificar dessa nódoa, que lhe
mancha as asas. Álvaro, a vida social está toda juncada de forcas caudinas, por
debaixo das quais nos é forçoso curvar-nos, sob pena de abalroarmos a fronte em
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algum obstáculo, que nos faça cair. Quem não respeita as conveniências e até os
preconceitos sociais, arrisca-se a cair no descrédito ou no ridículo.
— A escravidão em si mesma já é uma indignidade, uma úlcera hedionda
na face da nação, que a tolera e protege. Por minha parte, nenhum motivo enxergo
para levar a esse ponto o respeito por um preconceito absurdo, resultante de um
abuso que nos desonra aos olhos do mundo civilizado. Seja eu embora o primeiro a
dar esse nobre exemplo, que talvez será imitado. Sirva ele ao menos de um protesto
enérgico e solene contra uma bárbara e vergonhosa instituição.
— És rico, Álvaro, e a riqueza te dá bastante independência para poderes
satisfazer os teus sonhos filantrópicos e os caprichos de tua imaginação romanesca.
Mas tua riqueza, por maior que seja, nunca poderia reformar os prejuízos do mundo,
nem fazer com que essa escrava, a quem segundo todas as aparências quererias
ligar o teu destino, fosse considerada, e nem mesmo admitida nos círculos da alta
sociedade...
— E que me importam os círculos da alta sociedade, uma vez que sejamos
bem acolhidos no meio das pessoas de bom senso, e coração bem formado?
Demais, enganas-te completamente, meu Geraldo. O mundo corteja sempre o
dinheiro, onde quer que ele se ache. O ouro tem um brilho que deslumbra, e apaga
completamente essas pretendidas nódoas de nascimento. Não nos faltarão, nunca,
eu te afianço, o respeito, nem a consideração social, enquanto nos não faltar o
dinheiro.
— Mas, Álvaro, esqueces-te de uma coisa muito essencial; e se te não for
possível obter a liberdade de tua protegida?...
A esta pergunta Álvaro empalideceu, e oprimido pela idéia de tão cruel
como possível alternativa, sem responder — palavra olhava tristemente para o
horizonte, quando o boleeiro de Álvaro, que se achava postado com sua caleça junto
à porta do jardim, veio anunciar-lhe que algumas pessoas o procuravam e
desejavam falar-lhe, ou ao dono da casa.
— A mim! — resmungou Álvaro; porventura estou eu em minha casa?...
mas como também procuram o dono desta... faça-os entrar.
— Álvaro, disse Geraldo espreitando por uma janela, — se me não engano,
é gente da polícia; parece-me que lá vejo um oficial de justiça.
— Teremos outra cena igual à do baile?...
— Impossível!... com que direito virão tocar-me no depósito sagrado, que a
mesma polícia me confiou!...
— Não te fies nisso. A justiça é uma deusa muito volúvel e fértil em
patranhas. Hoje desmanchará o que fez ontem.
CAPÍTULO XVII
O primeiro cuidado de Martinho logo ao sair do baile, em que viu malograda
a sua tentativa de apreender Isaura, foi escrever ao senhor dela uma longa e
minuciosa carta, comunicando-lhe que tinha tido a fortuna de descobrir a escrava
que tanto procurava.
Contava por miúdo as diligências que fizera para esse fim, até descobri-la
em um baile público e encarecia o seu próprio mérito e perspicácia para esbirro,
dizendo que a não ser ele, ninguém seria capaz de farejar uma escrava na pessoa
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de uma moça tão bonita e tão prendada.
Alterando os fatos e as circunstâncias do modo o mais atroz e calunioso,
dizia-lhe em frases de taverneiro, que Miguel se estabelecera no Recife
com Isaura a fim de especular com a formosura da filha, a qual, a poder de armar
laços à rapaziada vadia e opulenta, tinha por fim conseguido apanhar um patinho
bem gordo e fácil de depenar. Era este um pernambucano por nome Álvaro, moço
duas vezes milionário, e mil vezes desmiolado, que tinha por ela uma paixão louca.
Este moço, a quem ela trazia iludido e engodado ao ponto de ele querer desposá-la,
caiu na tolice de levá-la a um baile, onde ele Martinho teve a fortuna de descobri-la,
e a teria apreendido, e estaria ela já de marcha para o poder de seu senhor, se não
fosse a oposição do tal senhor Álvaro, que apesar de ficar sabendo de que ralé era a
sua heroína, teve a pouca-vergonha de protegê-la escandalosamente.
Prevalecendo-se das valiosas relações, e da influência de que gozava no país em
razão de sua riqueza, conseguiu impedir a sua apreensão, e tornando-se fiador dela
a conservava em seu poder contra toda a razão e justiça, protestando não entregá-la
senão ao seu próprio senhor. Julga que a intenção de Álvaro é tentar meios de
libertá-la, a fim de fazê-la sua mulher ou sua amásia. Julgava de seu dever
comunicar-lhe tudo isso para seu governo.
Era este em suma o conteúdo da carta de Martinho, a qual seguiu para o
Rio de Janeiro no mesmo paquete que levava a carta de Álvaro, fazendo
proposições para a liberdade de Isaura. Leôncio, contente com a descoberta, mas
cheio de ciúme e inquietação em vista das informações de Martinho, apressou-se
em responder a ambos, e o mesmo paquete que trouxe a resposta insolente e
insultuosa que dirigiu a Álvaro, foi portador da que se destinava a Martinho, na qual
o autorizava a apreender a escrava em qualquer parte que a encontrasse, e para
maior segurança remetia-lhe também procuração especial para esse fim, e mais
algumas cartas de recomendação de pessoas importantes para o chefe de policia,
para que o auxiliasse naquela diligência.
Martinho mais que depressa dirigiu-se à casa da polícia, e apresentando ao
chefe todos esses papéis, requereu-lhe que mandasse entregar-lhe a escrava.
O chefe em vista dos documentos de que Martinho se achava munido,
entendeu que não lhe era possível denegar-lhe o que pedia, e expediu ordem por
escrito, para que lhe fosse entregue a escrava em questão. e deu-lhe um oficial de
justiça e dois guardas para efetuarem a diligência.
Foi, portanto, o Martinho, que, munido de todos os poderes,
competentemente autorizado pela polícia, apresentou-se com sua escolta à porta da
casa de Isaura, para arrebatar a Álvaro a cobiçada presa.
— Ainda este infame! — murmurou Álvaro entre os dentes ao ver entrar o
Martinho. — Era um rugido de cólera impotente, que o angustiado mancebo
arrancara do íntimo da alma.
— Que deseja de mim o senhor? — perguntou Álvaro em tom seco e altivo.
— V. Sa. que bem me conhece, — respondeu Martinho, — já pode presumir
pouco mais ou menos o motivo que aqui me traz.
— Nem por sombras posso adivinhá-lo, antes me causa estranheza esse
aparato policial, de que vem acompanhado.
— Sua estranheza cessará, sabendo que venho reclamar uma escrava
fugida, por nome Isaura, que há muito tempo foi por mim apreendida no meio de um
baile, no qual se achava V. Sa. e devendo eu enviá-la a seu senhor no Rio de
Janeiro, V. Sa. a isso se opôs sem motivo algum justificável, conservando-a até hoje
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em seu poder contra todo o direito.
— Alto lá, senhor Martinho! penso que não é pessoa competente para dar
ou tirar direito a quem lhe parecer. O senhor bem sabe que eu sou depositário dessa
escrava, e que com todo o direito e consentimento da autoridade a tenho debaixo de
minha proteção.
— Esse direito, se é que se pode chamar direito a uma arbitrariedade,
cessou, desde que V. Sa. nada tem alegado em favor da mesma escrava. E demais,
— continuou apresentando um papel, — aqui está ordem expressa e terminante do
chefe de polícia, mandando que me seja entregue a dita escrava. A isto nada se
pode opor legalmente.
— Pelo que vejo, senhor Martinho, — disse Álvaro depois de examinar
rapidamente o papel que Martinho lhe entregara, — ainda não desistiu de seu
indigno procedimento, tornando-se por um pouco de dinheiro o vil instrumento do
algoz de uma infeliz mulher? Reflita, e verá que essa infame ação só pode inspirar
asco e horror a todo o mundo.
Martinho achando-se acostado pela policia, julgou-se com direito de
mostrar-se áspero e arrogante, e, portanto, com imperturbável sangue-frio:
— Senhor Álvaro, — respondeu, — eu vim a esta casa somente com o fim
de exigir em nome da autoridade a entrega de uma escrava fugida, que aqui se acha
acoutada, e não para ouvir repreensões, que o senhor não tem direito de dar-me.
Trate de fazer o que a lei ordena e a prudência aconselha, se não quer que use de
meu direito...
— Qual direito?!...
— De varejar esta casa e levar à força a escrava.
— Retira-te, miserável esbirro! — bradou Álvaro com força, não podendo
mais sopear a cólera. — Desaparece de minha presença, se não queres pagar caro
o teu atrevimento!...
— Senhor Álvaro!... veja o que faz!
O Dr. Geraldo, não achando muita razão em seu amigo, por prudência até
ali se tinha conservado silencioso, mas vendo que a cólera e imprudência de Álvaro
ia excedendo os limites, julgou de seu dever intervir na questão, e aproximando-se
de Álvaro, e puxando-lhe o braço:
— Que fazes, Álvaro? — disse-lhe em voz baixa. — Não vês que com esses
arrebatamentos não consegues senão comprometer-te, e agravar a sorte de Isaura?
mais prudência, meu amigo.
— Mas... que devo eu fazer?... não me dirás?
— Entregá-la.
— Isso nunca!... — replicou Álvaro terminantemente.
Conservaram-se todos silenciosos por alguns momentos. Álvaro parecia
refletir.
— Ocorre-me um expediente, — disse ele ao ouvido de Geraldo, — vou
tentá-lo.
E sem esperar resposta aproximou-se de Martinho.
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— Senhor Martinho, — disse-lhe ele, — desejo dizer-lhe duas palavras em
particular, com permissão aqui do doutor.
— Estou às suas ordens, - replicou Martinho.
— Estou persuadido, senhor Martinho, — disse-lhe Álvaro em voz baixa,
tomando-o de parte, — que a gratificação de cinco contos é o motivo principal que o
leva a proceder desta maneira contra uma infeliz mulher, que nunca o ofendeu. Está
em seu direito, eu reconheço, e a soma não é para desprezar. Mas se quiser desistir
completamente desse negócio, e deixar em paz essa escrava, dou-lhe o dobro
dessa quantia.
— O dobro!... dez contos de réis! exclamou Martinho arregalando os olhos.
— Justamente; dez contos de réis de hoje mesmo.
— Mas, senhor Álvaro, já empenhei minha palavra para com o senhor da
escrava, dei passos para esse fim, e...
— Que importa!... diga que ela evadiu-se de novo, ou dê outra qualquer
desculpa...
— Como, se é tão público que ela se acha em poder de V. S.ª ?...
— Ora!... isso é sua vontade, senhor Martinho; pois um homem vivo e
atilado como o senhor embaraça-se com tão pouca coisa!...
— Vá, feito — disse Martinho depois de refletir um instante. – Já que V.Sª.
tanto se interessa por essa escrava, não quero mais afligi-lo com semelhante
negócio, que a dizer-lhe a verdade bem me repugna. Aceito a proposta.
— Obrigado; é um importante serviço que vai me prestar.
— Mas que volta darei eu ao negócio para sair-me bem dele?
— Veja lá; sua imaginação é fácil em recursos, e há de inspirar-lhe algum
meio de safar-se de dificuldades com a maior limpeza.
Martinho ficou por alguns momentos a roer as unhas, pensativo e com os
olhos pregados no chão. Por fim levantando a cabeça e levando à testa o dedo
índice:
— Atinei! exclamou. — Dizer que a escrava desapareceu de novo, não é
conveniente, e iria comprometer a V. Sa. que se responsabilizou por ela. Direi
somente que, bem averiguado o caso, reconheci que a moça, que V.Sa. tem em seu
poder, não é a escrava em questão, e está tudo acabado.
Essa não é mal achada... mas foi um negócio tão público...
— Que importa!... não se lembra V.Sa. de um sinal em forma de
queimadura em cima do seio esquerdo, que vem consignado no anúncio? direi, que
não se achou semelhante sinal, que é muito característico, e está destruída a
identidade de pessoa. Acrescentarei mais que a moça, por quem V. Sa. se interessa,
vista de noite é uma coisa, e de dia é outra; que em nada se parece com a linda
escrava que se acha descrita no anúncio, e que em vez de ter vinte anos mostra ter
seus trinta e muitos para quarenta, e que toda aquela mocidade e formosura era
efeito dos arrebiques, e da luz vacilante dos lustres e candelabros.
— O senhor é bem engenhoso. — observou Álvaro sorrindo-se; — mas os
que a viram nenhum crédito darão a tudo isso. Resta, porém, ainda uma dificuldade,
senhor Martinho; é a confissão que ela fez em público!... isto há de ser custoso de
embaraçar-se.
— Qual custoso!... alega-se que ela é sujeita a acessos de histerismo, e é
sujeita a alucinações.
— Bravo, senhor Martinho; confio absolutamente em sua perícia e
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habilidade. E depois?
— E depois comunico tudo isso ao chefe de policia, declaro-lhe que nada
mais tenho com esse negócio, passo a procuração a qualquer meirinho, ou capitão-
do-mato, que se queira encarregar dessa diligência, e em ato contínuo escrevo ao
senhor da escrava comunicando-lhe o meu engano, com o que ele por certo
desistirá de procurá-la mais por aqui, e levará a outras partes as suas pesquisas.
Que tal acha o meu plano?...
— Admirável, e cumpre não perdermos tempo, senhor Martinho.
— Vou já neste andar, e em menos de duas horas estou aqui de volta, a dar
parte do desempenho de minha comissão.
— Aqui não, que não poderei demorar-me muito. Espero-o em minha casa,
e lá receberá a soma convencionada.
— Podem-se retirar, — disse Martinho ao oficial de justiça e aos guardas,
que se achavam postados do lado de fora da porta. – Sua presença não é mais
necessária aqui. Não há dúvida! — continuou ele consigo mesmo: — isto vai a
dobrar como no lansquenê. Esta escrava é uma mina, que me parece não estar
ainda esgotada.
E retirou-se, esfregando as mãos de contentamento.
— Então, que arranjo fizeste com o homem, meu Álvaro? — perguntou
Geraldo, apenas Martinho voltou as costas.
— Excelente, — respondeu Álvaro; — a minha lembrança surtiu o desejado
efeito, e ainda mais do que eu esperava.
Álvaro em poucas palavras deu conta ao seu amigo do mercado que fizera
com o Martinho.
— Que caráter desprezível e abjeto o deste Martinho! — exclamou Geraldo.
— De um tal instrumento não se pode esperar obra que preste. E julgas ter
conseguido muita coisa, Álvaro, com o passo que acabas de dar?...
— Não muito, porém alguma coisa sempre posso conseguir. Pelo menos
consigo deter o golpe por algum tempo, e como diz lá o rifão popular, meu Geraldo,
enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.
Enquanto Leôncio, persuadido que a sua escrava não se acha aqui no
Recife, a procura por todo esse mundo, ela fica aqui tranqüilamente à minha sombra,
livre das perseguições e dos maus-tratos de um bárbaro senhor; e eu terei tempo
para ativar os meios de arranjar provas e documentos que justifiquem o seu direito à
liberdade. É quanto me basta por agora; quanto ao resto, já que pareces julgar a
minha causa irremissivelmente perdida, a justiça divina me inspirará o modo por que
devo proceder.
— Como te enganas, meu pobre Álvaro!... cuidas que arredando o Martinho
ficas por enquanto livre de perseguições e pesquisas contra a tua protegida? que
cegueira!... não faltarão malsins igualmente esganados por dinheiro, que pelos cinco
contos de réis, que para estes miseráveis é uma soma fabulosa, se ponham à cata
de tão preciosa presa. Agora principalmente, que o Martinho deu o alarma, e que
esse negócio tem atingido a um certo grau de celebridade, em vez de um,
aparecerão cem Martinhos no encalço da bela fugitiva, e não terão mais que fazer
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senão seguir a trilha batida pelo primeiro.
— És muito meticuloso, Geraldo, e encaras as coisas sempre pelo lado pior.
É bem provável que peguem as patranhas inventadas pelo Martinho, e que ninguém
mais se lembre de descobrir a cativa Isaura nessa moça, por quem me interesso, e
embora mil malsins a procurem por todos os cantos do mundo, pouco me importará.
Sempre obtenho uma dilação, que poderá me ser muito vantajosa.
— Pois bem, Álvaro; vamos que assim aconteça; mas tu não vês que
semelhante procedimento não é digno de ti?... que assim incorres realmente nos
epítetos afrontosos, com que obsequiou-te o tal Leôncio, e que te tomas
verdadeiramente um sedutor e acoutador de escravos alheios?...
Desculpa-me, meu caro Geraldo; não posso aceitar a tua reprimenda.
— Ela só pode ter aplicação aos casos vulgares, e não às circunstâncias
especialíssimas em que eu e Isaura nos achamos colocados. Eu não dou couto,
nem capeio a uma escrava: protejo um anjo, e amparo uma vítima inocente contra a
sanha de um algoz. Os motivos que me impelem, e as qualidades da pessoa por
quem dou estes passos, nobilitam o meu procedimento, e são bastantes para
justificar-me aos olhos de minha consciência.
— Pois bem, Álvaro; faze o que quiseres; não sei que mais possa dizer-te
para demover-te de um procedimento, que julgo não só imprudente, como, a falar-te
com sinceridade, ridículo, e indigno da tua pessoa.
Geraldo não podia dissimular o descontentamento que lhe causava aquela
cega paixão, que levava o seu amigo a atos que qualificava de burlesco desatino, e
loucura inqualificável. Por isso, longe de auxiliá-lo com seus conselhos, e indicar-lhe
os meios de promover a libertação de Isaura, procurava com todo o empenho
demovê-lo daquele propósito, pintando o negócio ainda mais difícil do que realmente
o era. De bom grado, se lhe fosse possível, teria entregado Isaura a seu senhor
somente para livrar Álvaro daquela terrível tentação, que o ia precipitando na senda
das mais ridículas extravagâncias.
CAPITULO XVIII
Achando-se só, Álvaro sentou-se junto a uma mesa, e apoiando nela os
cotovelos com a fronte entre as mãos, ficou a cismar profundamente.
Isaura, porém, pressentindo pelo silêncio que reinava na sala, que já ali não
havia pessoas estranhas, foi ter com ele.
— Senhor Álvaro, — disse ela chegando-se de manso e timidamente; —
desculpe-me... eu venho decerto lhe aborrecer... queria talvez estar só...
— Não, minha Isaura; tu nunca me aborreces; pelo contrário, és sempre
bem-vinda junto de mim...
— Mas vejo-o tão triste!... parece-me que aqui entrou mais gente, e
alteravam-se vozes. Deram-lhe algum desgosto, meu senhor?...
— Nada houve de extraordinário, Isaura; foram algumas pessoas que
vieram procurar o doutor Geraldo.
— Mas então, por que está assim triste e abatido?
— Não estou triste nem abatido. Estava meditando nos meios de arrancar-te
do abismo da escravidão, meu anjo, e elevar-te à posição para que o céu te criou.
— Ah! senhor, não se mortifique assim por amor de uma infeliz, que não
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merece tais extremos, É inútil lutar contra o destino irremediável que me persegue.
— Não fales assim, Isaura. Tens em bem pouca conta a minha proteção e o
meu amor!...
— Não sou digna de ouvir de sua boca essa doce palavra. Empregue seu
amor em outra mulher que dele seja merecedora, e esqueça-se da pobre cativa, que
tornou-se indigna até de sua compaixão ocultando-lhe a sua condição, e fazendo-o
passar pelo vergonhoso pesar de...
— Cala-te, Isaura... até quando pretendes lembrar-te desse maldito
incidente?... eu somente fui o culpado forçando-te a ir a esse baile, e tinhas razão de
sobra para não revelar-me a tua desgraça. Esquece-te disso; eu te peço pelo nosso
amor, Isaura.
— Não posso esquecer-me, porque os remorsos me avivam sempre n'alma
a lembrança dessa fraqueza. A desgraça é má conselheira, e nos perturba e anuvia
o espirito. Eu o amava, assim como o amo ainda, e cada vez mais... perdoe-me esta
declaração, que é sem dúvida uma ousadia na boca de uma escrava.
— Fala, Isaura, fala sempre, que me amas. Pudesse eu ouvir de teus lábios
essa palavra por toda a eternidade.
— Era um triste amor na verdade, um amor de escrava, um amor sem
sorriso nem esperança. Mas a ventura de ser amada pelo senhor era uma idéia tão
consoladora para mim! Amando-me o senhor me nobilitava, a meus próprios olhos, e
quase me fazia esquecer a realidade de minha humilde condição. Eu tremia ao
pensar que descobrindo-lhe a verdade, ia perder para sempre essa doce e única
consolação que me restava na vida. Perdoe, meu senhor, perdoe à escrava infeliz,
que teve a louca ousadia de amá-lo.
— Isaura, deixa-te de vãos escrúpulos, e dessas frases humildes, que de
modo nenhum podem caber em teus lábios angélicos. Se me amas, eu também te
amo, porque em tudo te julgo digna do meu amor; que mais queres tu?... Se antes
de conhecer a condição em que nasceste, eu te amei subjugado por teus raros
encantos, hoje que sei que a tantos atrativos reúnes o prestigio do infortúnio e do
martírio, eu te adoro, eu te idolatro mais que nunca.
— Ama-me, e é essa idéia, que ainda mais me mortifica!... de que nos serve
esse amor, se nem ao menos posso ter a fortuna de ser sua escrava, e devo sem
remédio morrer entre as mãos de meu algoz..
— Nunca, Isaura! — exclamou Álvaro com exaltação: — minha fortuna,
minha tranquilidade, minha vida, tudo sacrificarei para libertar-te do jugo desse vil
tirano. Se a justiça da Terra não me auxilia nesta nobre e generosa empresa, a
justiça do céu se fará cumprir por minhas mãos.
— Oh! senhor Álvaro!... não vá sacrificar-se por uma pobre escrava, que
não merece tais excessos. Abandone-me à minha sina fatal; já não é pouca
felicidade para mim ter merecido o amor de um cavalheiro tão nobre e tão amável,
como o senhor; esta lembrança me servirá de alento e consolação em minha
desgraça. Não posso, porém, consentir que o senhor avilte o seu nome e a sua
reputação, amando com tal extremo a uma escrava.
— Por piedade, Isaura, não me martirizes mais com essa maldita palavra,
que constantemente tens nos lábios. Escrava tu!... não o és, nunca o foste, e nunca
o serás. Pode acaso a tirania de um homem ou da sociedade inteira transformar em
um ente vil, e votar à escravidão aquela que das mãos de Deus saiu um anjo digno
do respeito e adoração de todos? Não, Isaura; eu saberei erguer-te ao nobre e
honroso lugar a que o céu te destinou, e conto com a proteção de um Deus justo,
porque protejo um dos seus anjos.
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Álvaro, não obstante ficar sabendo, depois da noite do baile, que Isaura era
uma simples escrava, nem por isso deixou de tratá-la daí em diante com o mesmo
respeito, deferência e delicadeza, como a uma donzela da mais distinta jerarquia
social. Procedia assim de acordo com os elevados princípios que professava, e com
os nobres e delicados sentimentos do seu coração. O pudor, a inocência, o talento,
a virtude e o infortúnio, eram sempre para ele coisas respeitáveis e sagradas, quer
se achassem na pessoa de uma princesa, quer na de uma escrava. Sua afeição era
tão casta e pura como a pessoa que dela era objeto, e nunca de leve lhe passara
pelo pensamento abusar da precária e humilde posição de sua amante, para
profanar-lhe a candura imaculada.
Nunca de sua parte um gesto mais ousado, ou uma palavra menos casta
haviam feito assomar ao rosto da cativa o rubor do pejo, e nem tampouco os lábios
de Álvaro lhe haviam roçado o mais leve beijo pelas virginais e pudicas faces.
Apenas depois de instantes e repetidas súplicas de Isaura, havia tomado a liberdade
de tratá-la por tu, e isso mesmo quando se achavam a sós.
Somente agora pela primeira vez, Álvaro, dominado pela mais suave e
veemente emoção, ao proferir as últimas palavras, enlaçando o braço em torno ao
colo de Isaura a cingia brandamente contra o coração.
Estavam ambos enlevados na doçura deste primeiro amplexo de amor,
quando o ruído de um carro, que parou à porta do jardim, e logo após um forte e
estrondoso — ó de casa! — os fizeram separar-se.
No mesmo momento entrava na sala o baleeiro de Álvaro, e anunciava-lhe
que novas pessoas o procuravam.
— Oh, meu Deus!... que será isto hoje!... serão ainda os malditos
esbirros?... — refletiu Álvaro, e depois dirigindo-se a Isaura:
— É prudente que te retires, minha amiga, — disse-lhe; ninguém sabe o que
será e não convém que te vejam.
— Ah! que eu não sirva senão para perturbar-lhe o sossego! - murmurou
Isaura retirando-se.
Um momento depois Álvaro viu entrar na sala um elegante e belo mancebo,
trajado com todo o primor, e afetando as mais polidas e aristocráticas maneiras; mas
apesar de sua beleza, tinha ele na fisionomia, como Lusbel, um não seu quê de
torvo e sinistro, e um olhar sombrio, que incutia pavor e repulsão.
— Este por certo não é um esbirro, — pensou Álvaro, e indicando uma
cadeira ao recém-chegado: — Queira sentar-se, — disse-lhe, e — tenha a bondade
de dizer o que pretende deste seu criado.
— Desculpe-me, — respondeu-lhe o cavalheiro, passeando um olhar
escrutador em roda da sala: — não é a V. Sa. que eu desejava falar, mas sim ao
morador desta casa ou à sua filha.
Álvaro estremeceu. Estava claro que aquele mancebo, se bem que
nenhuma aparência tivesse de um esbirro, andava à pista de Isaura.
Todavia no intuito de verificar se era fundada a sua apreensão, antes de
chamar os donos da casa quis sondar as intenções do visitante.
— Não obstante, — respondeu ele, como estou autorizado pelos donos da
casa a tratar de todos os seus negócios, pode V. S.ª dirigir-se a mim, e dizer o que
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deles pretende.
— Sim, senhor; não ponho a menor dúvida, pois o que pretendo não é
nenhum mistério. Constando-me com certeza, que aqui se acha acoutada uma
escrava fugida, por nome Isaura, venho apreendê-la...
— Nesse caso deve entender-se comigo, que sou o depositário dessa
escrava.
— Ah!.. pelo que vejo, V. Sa. é o senhor Álvaro!...
— Um criado de V. Sa.
— Bem; muito estimo encontrá-lo por aqui; pois saiba também que eu sou
Leôncio, o legítimo senhor dessa escrava.
Leôncio.... o senhor de Isaura! Álvaro ficou como esmagado sob o peso
desta fulminante e tremenda revelação. Mudo e atônito, contemplou por alguns
instantes aquele homem de sombria catadura, que se lhe apresentava aos olhos,
implacável e sinistro como Lúcifer, prestes a empolgar a vítima, que deseja arrastar
aos infernos. Suor frio porejou-lhe pela testa, e a mais pungente angústia apertou-
lhe o coração.
— É ele!... é o próprio algoz!... ai, pobre Isaura!... — foi este o eco lúgubre,
que remurmurou-lhe dentro d'alma enregelada pelo desalento.
CAPITULO XVIII
O leitor provavelmente não terá ficado menos atônito do que ficou Álvaro,
com o imprevisto aparecimento de Leôncio no Recife, e indo bater certo na casa em
que se achava refugiada a sua escrava.
É preciso, portanto, explicar-lhe como isso aconteceu, para que não pense
que foi por algum milagre.
Leôncio, depois de ter escrito e entregado no correio as duas cartas que
conhecemos, uma dirigida a Álvaro, outra a Martinho, nem por isso ficou mais
tranqüilo. Devorava-lhe a alma uma inquietação mortal, um ciúme desesperador. A
notícia de que Isaura se achava em poder de um belo e rico mancebo, que a amava
loucamente, era para ele um suplício insuportável, um cancro, que lhe corroía as
entranhas, e o fazia estrebuchar em ânsias de desespero, avivando-lhe cada vez
mais a paixão furiosa que concebera por sua escrava. Achava-se ele na corte, para
onde, logo que teve notícias de Isaura, se dirigia imediatamente, a fim de se achar
em um centro, de onde pudesse tomar medidas prontas e enérgicas para a captura
da mesma.
Tendo escrito e entregue as cartas na véspera da partida do vapor pela
manhã, levou o resto do dia a cismar. A terrível ansiedade em que se achava não
lhe permitia esperar a resposta e o resultado daquelas cartas, sendo muito mais
morosas e espaçadas do que hoje as viagens dos paquetes naquela época, em que
apenas se havia inaugurado a navegação a vapor pelas costas do Brasil. Demais,
ocorria-lhe freqüentemente ao espírito o anexim popular — quem quer vai, quem
não quer manda. — Não podia fiar-se na diligência e boa vontade de pessoas
desconhecidas, que talvez não pudessem lutar vantajosamente contra a influência
de Álvaro, o qual, segundo lho pintavam, era um potentado em sua terra. O ciúme e
a vingança não gostam de confiar a olhos e mãos alheias a execução de seus
desígnios.
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— É indispensável que eu mesmo vá, — pensou Leôncio, e firme nesta
resolução foi ter com o ministro da justiça, com quem cultivava relações de amizade,
e pediu-lhe uma carta de recomendação, — o que eqüivale a uma ordem, — ao
chefe de polícia de Pernambuco, para que o auxiliasse eficazmente para o
descobrimento e captura de uma escrava. Já de antemão Leôncio também se havia
munido de uma precatória e mandado de prisão contra Miguel, a quem havia feito
processar e pronunciar como ladrão e acoutador de sua escrava. O sanhudo paxá
de nada se esquecia para tornar completa a sua vingança.
No outro dia Leôncio seguia para o Norte no mesmo vapor que conduzia
suas cartas.
Estas, porém, chegaram ao seu destino algumas horas antes que o seu
autor desembarcasse no Recife.
Leôncio, apenas pôs pé em terra, dirigiu-se ao chefe de policia, e
entregando-lhe a carta do ministro inteirou-o de sua pretensão.
Tenho a informar-lhe, senhor Leôncio, — respondeu-lhe o chefe — que
haverá talvez pouco mais de duas horas que daqui saiu uma pessoa autorizada por
V. S.a para o mesmo fim de apreender essa escrava, e ainda há pouco aqui chegou
de volta declarando que tinha-se enganado, e que acabava de reconhecer que a
pessoa, de quem desconfiava, não é e nem pode ser a escrava que fugiu a V. S.a.
— Um certo Martinho, não, senhor doutor?...
— Justamente.
— Deveras!... que me diz, senhor doutor?
— A verdade; ainda aí estão à porta o oficial de justiça e os guardas, que o
acompanharam.
— De maneira que terei perdido o meu tempo e a minha viagem!... oh! não,
não; isto não é possível. Creia-me, senhor doutor, aqui há patranha... o tal senhor
Álvaro dizem que é muito rico...
— E o tal Martinho um valdevinos capaz de todas as infâmias.
Tudo pode ser; mas a V. Sa. como interessado, compete averiguar essas
coisas.
— E é o que venho disposto a fazer. Irei lá eu mesmo verificar o negócio por
meus próprios olhos, e já, se for possível.
— Quando quiser. Ali estão o oficial de justiça e os guardas, que ainda
agora de lá vieram, e ninguém melhor do que eles pode guiar a V. Sa. e efetuar a
captura, caso reconheça ser a sua própria escrava.
—Também me é preciso que V. Sa. ponha o — cumpra-se — nesta
precatória — disse Leôncio apresentando a precatória contra Miguel — é necessário
punir o patife que teve a audácia de desencaminhar e roubar-me a escrava.
O chefe satisfez sem hesitar ao pedido de Leôncio, que acompanhado da
pequena escolta, que fez subir ao seu carro, no mesmo momento se dirigiu à casa
de Isaura, onde o deixamos em face de Álvaro.
A situação deste não era só crítica; era desesperada. O seu antagonista ali
estava armado de seu incontestável direito para humilhá-lo, esmagá-lo, e o que mais
é, despedaçar-lhe a alma, roubando-lhe a amante adorada, o ídolo de seu coração,
que ia-lhe ser arrancada dos braços para ser prostituída ao amor brutal de um
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senhor devasso, se não sacrificada ao seu furor. Não tinha remédio senão curvar-se
sem murmurar ao golpe do destino, e ver de braços cruzados metida em ferros, e
entregue ao azorrague do algoz a nobre e angélica criatura, que, única entre tantas
belezas, lhe fizera palpitar o coração em emoções do mais extremoso e puro amor.
Deplorável contingência, a que somos arrastados em conseqüência de uma
instituição absurda e desumana!
O devasso, o libertino, o algoz, apresenta-se altivo e arrogante, tendo a seu
favor a lei, e a autoridade, o direito e a força, lança a garra sobre a presa, que é
objeto de sua cobiça ou de seu ódio, e pode frui-la ou esmagá-la a seu talante,
enquanto o homem de nobre coração, de impulsos generosos, inerme perante a lei,
aí fica suplantado, tolhido, manietado sem poder estender o braço em socorro da
inocente e nobre vítima, que deseja proteger. Assim, por uma estranha aberração,
vemos a lei armando o vício, e decepando os braços à virtude.
Estava pois Álvaro em presença de Leôncio como o condenado em
presença do algoz. A mão da fatalidade o socalcava com todo o seu peso
esmagador, sem lhe deixar livre o mínimo movimento.
Vinha Leôncio ardendo em fúrias de raiva e de ciúme, e prevalecendo-se
de sua vantajosa posição, aproveitou a ocasião para vingar-se de seu rival, não com
a nobreza de cavalheiro, mas procurando humilhá-lo à força de impropérios.
— Sei que há muito tempo, — disse Leôncio, continuando o diálogo que
deixamos interrompido no capítulo antecedente, — V. Sa. retêm essa escrava em
seu poder contra toda a justiça, iludindo as autoridades com falsas alegações, que
nunca poderá provar. Porém agora venho eu mesmo reclamá-la e burlar os seus
planos, e artifícios.
— Artifícios não, senhor. Protegi e protejo francamente uma escrava contra
as violências de um senhor, que quer tornar-se seu algoz; eis aí tudo.
— Ah!... agora é que sei que qualquer aí pode subtrair um escravo ao
domínio de seu senhor a pretexto de protegê-lo, e que cada qual tem o direito de
velar sobre o modo por que são tratados os escravos alheios.
— V. Sa. está de disposição a escarnecer, e eu declaro-lhe que nenhuma
vontade tenho de escarnecer, nem de ser escarnecido.
— Confesso-lhe que desejo muito a liberdade dessa escrava, tanto quanto
desejo a minha felicidade, e estou disposto a fazer todos os sacrifícios possíveis
para consegui-la. Já lhe ofereci dinheiro, e ainda ofereço.
— Dou-lhe o que pedir... dou-lhe uma fortuna por essa escrava. Abra
preço...
— Não há dinheiro que a pague; nem todo o ouro do mundo, porque não
quero vendê-la.
— Mas isso é um capricho bárbaro, uma perversidade...
— Seja capricho da qualidade que V. Sa. quiser; porventura não posso ter
eu os meus caprichos, contanto que não ofenda direitos de ninguém?... porventura
V. Sa. não tem também o seu capricho de querê-la para si?... mas o seu capricho
ofende os meus direitos, e eis aí o que não posso tolerar.
— Mas o meu capricho é nobre e benfazejo, e o seu é uma tirania, para não
dizer uma vilania. V. Sa. mancha a sua vida com uma nódoa indelével conservando
na escravidão essa mulher; cospe o desrespeito e a injúria sobre o túmulo de sua
santa mãe, que criou com tanta delicadeza, educou com tanto esmero essa
escrava, para torná-la digna da liberdade que pretendia dar-lhe, e não para
satisfazer aos caprichos de V. Sa. Ela por certo lá do céu, onde está, o amaldiçoará,
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e o mundo inteiro a acompanhará na maldição ao homem que retém no mais
infamante cativeiro uma criatura cheia de virtudes, prendas e beleza.
— Basta, senhor!.. agora fico também sabendo, que uma escrava, só pelo
fato de ser bonita e prendada, tem direitos à liberdade. Pique também V. Sa.
sabendo, que se minha mãe não criou essa rapariga para satisfazer aos meus
caprichos, muito menos para satisfazer aos de V. Sa. a quem nunca conheceu nesta
vida. Senhor Álvaro, se deseja ter alguma linda escrava para sua amásia procure
outra, compre-a, que a respeito desta, pode perder toda a esperança.
— Senhor Leôncio, V. Sa. decerto esquece-se do lugar onde está, e da
pessoa com quem fala, e julga que se acha em sua fazenda falando aos seus
feitores ou a seus escravos. Advirto-lhe, para que mude de linguagem.
— Basta, senhor; deixemo-nos de vás disputas, e nem eu vim aqui para ser
catequizado por V. Sa. O que quero é a entrega da escrava e nada mais. Não me
obrigue a usar do meu direito levando-a à força.
Álvaro, desvairado por tão grosseiras e ferinas provocações, perdeu de todo
a prudência e sangue-frio.
Entendeu que para sair-se bem na terrível conjuntura em que se achava, só
havia um caminho, — matar o seu antagonista ou morrer-lhe às mãos, — e cedendo
a essas sugestões da cólera e do desespero, saltou da cadeira em que estava,
agarrou Leôncio pela gola e sacudindo-o com força:
— Algoz! — bradou espumando de raiva, — ai tens a tua escrava! mas
antes de levá-la, hás de responder pelos insultos que me tens dirigido, ouviste?... ou
acaso pensas que eu também sou teu escravo?..
— Está louco, homem! — disse Leôncio amedrontado. — As leis do nosso
país não permitem o duelo.
— Que me importam as leis!... para o homem de brio a honra é superior às
leis, e se não és um covarde, como penso...
—Socorro, que querem assassinar-me, — bradou Leôncio
desembaraçando-se das mãos de Álvaro, e correndo para a porta.
— Infame! — rugiu Álvaro, cruzando os braços e rangendo os dentes num
sorrir de cólera e desdém...
No mesmo momento, atraídos pelo barulho, entravam na sala de um lado
Isaura e Miguel, do outro o oficial de justiça e os guardas.
Isaura estava com o ouvido aguçado, e do interior da casa ouvira e
compreendera tudo.
Viu que tudo estava perdido, e correu a atalhar o desatino, que por amor
dela Álvaro ia cometer.
— Aqui estou, senhor! — foram as únicas palavras que pronunciou
apresentando-se de braços cruzados diante de seu senhor.
— Ei-los ai; são estes! — exclamou Leôncio indicando aos guardas Isaura e
Miguel. Prendam-os!.. prendam-os!...
—Vai-te, Isaura, vai-te, — murmurou Álvaro com voz trêmula e sumida,
achegando-se da cativa. — Não desanimes; eu não te abandonarei.
— Confia em Deus e em meu amor.
Uma hora depois Álvaro recebia em casa a visita de Martinho. Vinha este
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mui ancho e lampeiro dar conta de sua comissão, e sôfrego por embolsar a soma
convencionada.
— Dez contos!... oh! — vinha ele pensando. — uma fortuna! agora sim,
posso eu viver independente!... Adeus, surrados bancos de Academia!... adeus,
livros sebosos, que tanto tempo andei folheando à toa!... vou atirar-vos pela janela a
fora; não preciso mais de vós: meu futuro está feito. Em breve serei capitalista,
banqueiro, comendador, barão, e verão para quanto presto!...
E à força de multiplicar cálculos de usura e agiotagem, já Martinho havia
centuplicado aquela soma em sua imaginação.
— Meu caro senhor Álvaro, — veio logo dizendo sem mais preâmbulos, —
está tudo arranjado à medida de nossos desejos. Pode V. Sa. viver tranqüilo em
companhia da gentil fugitiva, que daqui em diante ninguém mais o importunará.
— De feito o procedimento de V. S.ª nesta questão tem sido muito belo e
digno de elogios; é próprio de um coração grande e generoso como o de V. Sa. Não
se dá maior desaforo! no cativeiro uma menina tão mimosa e tão prendada!...
— Agora aqui está a carta, que escrevo ao lorpa do sultãozinho. Prego-lhe
meia dúzia de carapetões, que o hão de desorientar completamente.
Assim falando, Martinho desdobrou a carta, e já começava a lê-la, quando
Álvaro impacientado o interrompeu.
— Basta, senhor Martinho, — disse-lhe com mau humor; — o negócio está
arranjado; não preciso mais de seus serviços.
— Arranjado!... como?...
— A escrava está em poder de seu senhor.
— De Leôncio!... impossível!
— Entretanto, é a pura verdade; se quiser saber mais vá à polícia, e
indague.
— E os meus dez contos?...
— Creio que não lhos devo mais.
Martinho soltou um urro de desespero, e saiu da casa de Álvaro com tal
precipitação, que parecia ir rolando pelas escadas abaixo.
Descrever o mísero estado em que ficou aquela pobre alma, é empresa em
que não me meto; os leitores que façam idéia.
O cão faminto, iludido pela sombra, largou a carne que tinha entre os
dentes, e ficou sem uma nem outra.
CAPITULO XIX
— Olha como arranjas isso, Rosa; esta rapariga é mesmo uma estouvada;
não tem jeito para nada. Bem mostras que não nasceste para a sala; o teu lugar é
na cozinha.
— Ora vejam lá a figura de quem quer me dar regras!... quem te chamou
aqui, intrometido? O teu lugar também não é aqui, é lá na estrebaria. Vai lá governar
os teus cavalos, André, e não te intrometas no que não te importa.
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— Cala-te dai, toleirona; — replicou André mudando de lugar algumas
cadeiras. — O que sabes é só tagarelar. Não é aqui o lugar destas cadeiras... Olha
como estão estes jarros!... ainda nem alimpaste os espelhos!... forte desajeitada e
preguiçosa que és!... No tempo de Isaura andava tudo isto aqui que era um mimo;
fazia gosto entrar-se nesta sala. Agora, é isto. Está claro que não és para estas
coisas.
— Essa agora é bem lembrada! — retorquiu Rosa, altamente despeitada. -
Se tens saudades do tempo de Isaura, vai lá tirá-la do quarto escuro do tronco, onde
ela está morando. Esse decerto ela não há de ter gosto para enfeitá-lo de flores.
— Cala a boca, Rosa; olha que tu também lá podes ir parar.
— Eu não, que não sou fujona.
— Por que não achas quem te carregue, se não fugirias até com o diabo.
Coitada da Isaura! uma rapariga tão boa e tão mimosa, tratada como uma negra da
cozinha! e não tens pena dela, Rosa?
— Pena por que, agora?... quem mandou ela fazer das suas?
— Pois olha, Rosa, eu estava pronto a agüentar a metade do castigo que
ela está sofrendo, mas na companhia dela, está entendido.
— Isso pouco custa, André; é fazer o que ela fez. Vai, como ela, tomar ares
em Pernambuco, que infalivelmente vais para a companhia de Isaura.
— Quem dera!... se soubesse que me prendiam com ela, isso é que era um
fugir. Mas o diabo é que a pobre Isaura agora vai deixar a nós todos para sempre.
Que falta não vai fazer nesta casa!...
— Deixar como?
— Você verá.
— Foi vendida?...
— Qual vendida!
— Alheada?
— Nem isso
— Está forra?...
— Que abelhuda!... Espera, Rosa; tem paciência um pouco, que hoje
mesmo talvez você venha a saber tudo.
— Ora ponha-se com mistérios... então o que você sabe os outros não
podem saber?...
— Não é mistério, Rosa; é desconfiança minha. Aqui em casa não tarda a
haver novidade grossa; vai escutando.
— Ah! ah! — respondeu Rosa galhofando. — Você mesmo está com cara
de novidade.
— Psiu!... bico calado, Rosa!... ai vem nhonhô.
Pelo diálogo acima o leitor bem vê, que nos achamos de novo na fazenda
de Leôncio, no município de Campos, e na mesma sala, em que no começo desta
história encontramos Isaura entoando sua canção favorita.
Cerca de dois meses são decorridos depois que Leôncio fora ao Recife
apreender sua escrava. Leôncio e Malvina tinham-se reconciliado, e vindos da corte
tinham chegado à fazenda na véspera. Alguns escravos, entre os quais se acham
Rosa e André, estão asseando o soalho, arranjando e espanando os móveis
daquele rico salão, testemunha impassível dos mistérios da família, de tantas cenas
ora tocantes e enlevadoras, ora vergonhosas e sinistras, e que durante a ausência
de Malvina se conservara sempre fechado.
Qual é, porém, a sorte de Isaura e de Miguel, desde que deixaram
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Pernambuco? que destino deu Leôncio ou pretende dar àquela?... por que maneira
se reconciliou com sua mulher?
Eis o que passamos a explicar ao leitor, antes de prosseguirmos nesta
narrativa.
Leôncio, tendo trazido Isaura para sua fazenda, a conservara na mais
completa e rigorosa reclusão. Não era isto só com o fim de castigá-la ou de cevar
sua feroz vingança sobre a infeliz cativa. Sabia quanto era ardente e capaz de
extremos o amor que o jovem pernambucano concebera por Isaura; tinha ouvido as
últimas palavras que Álvaro lhe dirigia — confia em Deus, e em meu amor; eu não te
abandonarei.
— Era uma ameaça, e Álvaro, rico e audacioso como era, dispunha de
grandes meios para pô-la em execução, quer por alguma violência, quer por meio de
astúcias e insídias. Leôncio, portanto, não só encarcerava com todo o rigor a sua
escrava, como também armou todos os seus escravos, que daí em diante distraídos
quase completamente dos trabalhos da lavoura, viviam em alerta dia e noite como
soldados de guarnição a uma fortaleza.
Mas a alma ardente e feroz do jovem fazendeiro não desistia nunca de seu
louco amor, e nem perdia a esperança de vencer a isenção de Isaura.
E já não era só o amor ou a sensualidade que o arrastava; era um capricho
tirânico, um desejo feroz e satânico de vingar-se dela e do rival preferido. Queria
gozá-la, fosse embora por um só dia, e depois de profanada e poluída, entregá-la
desdenhosamente ao seu antagonista, dizendo-lhe: — Venha comprar a sua
amante; agora estou disposto a vendê-la, e barato.
Encetou pois contra ela nova campanha de promessas, seduções e
protestos, seguidos de ameaças, rigores e tiranias. Leôncio só recuou diante da
tortura e da violência brutal, não porque lhe faltasse ferocidade para tanto, mas
porque conhecendo a têmpera heróica da virtude de Isaura, compreendeu que com
tais meios só conseguiria matá-la, e a morte de Isaura não satisfazia o seu
sensualismo, e nem tampouco a sua vingança. Portanto tratou de meditar novos
planos, não só para recalcar debaixo dos pés o que ele chamava o orgulho da
escrava, como de frustrar e escarnecer completamente as vistas generosas de
Álvaro, tomando assim de ambos a mais cabal vingança.
Além de tudo, Leôncio via-se na absoluta necessidade de reconciliar-se com
Malvina, não que o pundonor, a moral, e muito menos a afeição conjugal a isso o
induzissem, mas por motivos de interesse, que em breve o leitor ficará sabendo.
Com esse fim pois, Leôncio foi à corte e procurou Malvina.
Além de todas as más qualidades que possuía, a mentira, a calúnia, o
embuste eram armas que manejava com a habilidade do mais refinado hipócrita.
Mostrou-se envergonhado e arrependido do modo por que a havia tratado, e jurou
apagar com o seu futuro comportamento até a lembrança de seus passados
desvarios. Confessou, com uma sinceridade e candura de anjo, que por algum
tempo se deixara enlevar pelos atrativos de Isaura, mas que isso não passara de
passageiro desvario, que nenhuma impressão lhe deixara na alma.
Além disso assacou mil aleives e calúnias por conta da pobre Isaura. Alegou
que ela, como refinada loureira que era, empregara os mais sutis e ardilosos
artifícios para seduzi-lo e provocá-lo, no intuito de obter a liberdade em troco de seus
favores. Inventou mil outras coisas, e por fim fez Malvina acreditar que Isaura fugira
de casa seduzida por um galã, que há muito tempo a requestava, sem que eles o
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soubessem; que fora este quem fornecera ao pai dela os meios de alforriá-la, e que,
não o podendo conseguir, combinaram de mãos dadas e efetuaram o plano de
rapto; que chegando ao Recife, um moço que tanto tinha de rico, como de
extravagante e desmiolado, enamorando-se dela a tomara a seu primeiro amante;
que Isaura com seus artifícios, dando-se por uma senhora livre o tinha enleado e
iludido por tal forma, que o pobre moço estava a ponto de casar-se com ela, e
mesmo depois de saber que era cativa não queria largá-la, e praticando mil
escândalos e disparates estava disposto a tudo para alforriá-la. Fora das mãos
desse moço que ele a fora tomar no Recife.
Malvina, moça ingênua e crédula, com um coração sempre propenso à
ternura e ao perdão, deu pleno crédito a tudo quanto aprouve a Leôncio inventar não
só para justificar suas faltas passadas, como para predispor o comportamento que
dai em diante pretendia seguir.
Na qualidade de esposa ofendida irritara-se outrora contra Isaura, quando
surpreendera seu marido dirigindo-lhe falas amorosas; mas o seu rancor ia-se
amainando, e se desvaneceria de todo, se Leôncio não viesse com falsas e
aleivosas informações atribuir-lhe os mais torpes procedimentos. Malvina começou a
sentir por Isaura desde esse momento, não ódio, mas certo afastamento e desprezo,
mesclado de compaixão, tal qual sentiria por outra qualquer escrava atrevida e mal
comportada.
Era quanto bastava a Leôncio para associá-la ao plano de castigo e
vingança, que projetava contra a desditosa escrava. Bem sabia que Malvina com a
sua alma branda e compassiva jamais consentiria em castigos cruéis; o que
meditava, porém, nada tinha de bárbaro na aparência, se bem que fosse o mais
humilhante e doloroso flagício imposto ao coração de uma mulher, que tinha
consciência de sua beleza, e da nobreza e elevação de seu espírito.
— E o que pretendes fazer de Isaura? perguntou Malvina.
— Dar-lhe um marido e carta de liberdade.
— E já achaste esse marido?
— Pois faltam maridos?... para achá-lo não precisei sair de casa.
— Algum escravo, Leôncio?... oh!... isso não.
— E que tinha isso, uma vez que eu também forrasse o marido? era cré
com cré, lé com lé. Bem me lembrei do André, que bebe os ares por ela; mas por
isso mesmo não a quero dar àquele maroto.
—Tenho para ela peça muito melhor.
— Quem, Leôncio?
— Ora quem!... o Belchior.
— O Belchior!... exclamou Malvina rindo-se muito. Estás caçoando; fala
sério, quem é?...
— O Belchior, senhora; falo sério.
— Mas esperas acaso, que Isaura queira casar-se com aquele monstrengo?
— Se não quiser, pior para ela; não lhe dou a liberdade, e há de passar a
vida enclausurada e em ferros.
— Oh!... mas isso é demasiada crueldade, Leôncio. De que serve dar-lhe a
liberdade em tudo, se não lhe deixas a de escolher um marido?...
— Dá-lhe a liberdade, Leôncio, e deixa ela casar-se com quem quiser.
— Ela não se casará com ninguém: irá voando direitinho para Pernambuco,
e lá ficará muito lampeira nos braços de seu insolente taful, escarnecendo de mim...
— E que te importa isso, Leôncio? — perguntou Malvina com certo ar
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desconfiado.
— Que tenho!... — replicou Leôncio um pouco perturbado com a pergunta.
— Ora que tenho!... é o mesmo que perguntar-me se tenho brio nas faces. Se
soubesses como aquele papalvo provocou-me atirando-me insultos atrozes!... Como
desafiou-me com mil bravatas e ameaças, protestando que havia de arrancar Isaura
ao meu poder...
—Se não fosse por tua causa, e também por satisfazer os votos de minha
mãe, eu nunca daria a liberdade a essa escrava, embora nenhum serviço me
prestasse, e tivesse de tratá-la como uma princesa, só para quebrar a proa e
castigar a audácia e petulância desse impudente rufião.
— Pois bem, Leôncio; mas eu entendo que Isaura mais facilmente se
deixará queimar viva, do que casar-se com Belchior.
— Não te dê isso cuidado, minha querida; havemos de catequizá-la
convenientemente. Tenho cá forjado o meu plano, com o qual espero reduzi-la a
casar-se com ele de muito boa vontade.
— Se ela consentir, não tenho motivo para me opor a esse arranjo.
Leôncio de feito havia habilmente preparado o seu plano atroz.
Tendo trazido do Recife a Miguel debaixo de prisão, juntamente com Isaura,
ao chegar em Campos fê-lo encerrar na cadeia, e condenar a pagar todas as
despesas e prejuízos que tivera com a fuga de Isaura, as quais fizera orçar em uma
soma exorbitante. Ficou, portanto, o pobre homem exausto dos últimos recursos que
lhe restavam, e ainda por sobrecarga devendo uma soma enorme, que só longos
anos de trabalho poderiam pagar. Como Leôncio era rico, amigo dos ministros e
tinha grande influência no lugar, as autoridades locais prestaram-se de boa mente a
todas estas perseguições.
Depois que Leôncio, desanimado de poder vencer a obstinada relutância de
Isaura, mudou o seu plano de vingança, foi ele em pessoa procurar a Miguel.
— Senhor Miguel, — disse-lhe em tom formalizado, — tenho comiseração
do senhor e de sua filha, apesar dos incômodos e prejuízos que me têm dado, e
venho propor-lhe um meio de acabarmos de uma vez para sempre com as
desordens, intrigas e transtornos com que sua filha tem perturbado minha casa e o
sossego de minha vida.
— Estou pronto para qualquer arranjo, senhor Leôncio, — respondeu
respeitosamente Miguel, — uma vez que seja justo e honesto.
— Nada mais honesto, nem mais justo. Quero casar sua filha com um
homem de bem, e dar-lhe a liberdade; porém para esse fim preciso muito de sua
coadjuvação.
— Pois diga em que lhe posso servir.
— Sei que Isaura há de sentir alguma repugnância em casar-se com a
pessoa que lhe destino, em razão de tola e extravagante paixão, que parece ainda
ter por aquele infame peralvilho de Pernambuco, que meteu-lhe mil caraminholas na
cabeça, e encheu-a de idéias extravagantes e loucas esperanças.
Creio que ela não deve lembrar-se desse moço senão por gratidão...
— Qual gratidão!... pensa vossemecê que ele está fazendo muito caso
dela?... tanto como do primeiro sapato que calçou. Aquilo foi um capricho de cabeça
estonteada, uma fantasia de fidalgote endinheirado, e a prova aqui está; leia esta
carta... O patife tem a sem-cerimônia de escrever-me, como se entre nós nada
houvesse, assim com ares de amigo velho, participando-me que se acha casado!...
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que tal lhe parece esta?... que tenho eu com seu casamento!... Mas isto ainda não é
tudo; aproveitando a ocasião, pede-me com todo o desfaçamento que em todo e
qualquer tempo, que eu me resolva a dispor de Isaura, nunca o faça sem participar-
lhe, porque muito deseja tê-la para mucama de sua senhora! até onde pode chegar
o cinismo e a impudência!...
— Com efeito, senhor!... isto da parte do senhor Álvaro é custoso de
acreditar!
— Pois capacite-se com seus próprios olhos; leia; não conhece esta letra?...
E dizendo isto Leôncio apresentou a Miguel uma carta, cuja letra imitava
perfeitamente a de Álvaro.
— A letra é dele; não resta dúvida, — disse Miguel pasmado do que
acabava de ler. - Há neste mundo infâmias que custa-se a compreender.
— E também lições cruéis, que é preciso não desprezar, não é assim,
senhor Miguel?... Pois bem; guarde essa carta para mostrar à sua filha; é bom que
ela saiba de tudo para não contar mais com esse homem, e varrer do espírito as
fumaças que porventura ainda lhe toldam o juízo. Faça também vossemecê o que
estiver em seu possível afim de predispor sua filha para esse casamento, que é de
muita vantagem, e eu não só lhe perdoarei tudo quanto me fica devendo, como lhe
restituo o que já me deu, para vossemecê abrir um negócio aqui em Campos e viver
tranqüilamente o resto de seus dias, em companhia de sua filha e de seu genro.
— Mas quem é esse genro? V. S.ª me não disse ainda.
— É verdade... esquecia-me. É o Belchior, o meu jardineiro; não conhece?...
— Muito!... oh! senhor!... com que miserável figura quer casar minha filha!...
pobre Isaura!... duvido muito que ela queira.
— Que importa a figura, se tem uma boa alma, e é honesto e trabalhador?...
Lá isso é verdade; o ponto é ela querer.
— Estou certo que aconselhada e bem catequizada por vossemece há de
se resolver.
— Farei o que puder; mas tenho poucas esperanças.
— E se não quiser, pior para ela e para vossemecê: o dito por não dito; fica
tudo como estava, — disse terminantemente Leôncio.
Miguel não era homem de têmpera a lutar contra a adversidade. O cativeiro
e reclusão perene de sua filha, a miséria que se lhe antolhava acompanhada de mil
angústias, eram para ele fantasmas hediondos, cujo aspecto não podia encarar sem
sentir mortal pavor e abatimento.
Não achou muito oneroso o preço pelo qual o desumano senhor, livrando-o
da miséria, concedia liberdade à sua filha, e aceitou o convênio.
CAPÍTULO XX
Enquanto Rosa e André espanejavam os móveis do salão, tagarelando
alegremente, uma cena bem triste e compungente se passava em um escuro
aposento atinente às senzalas, onde Isaura sentada sobre um cepo, com um dos
alvos e mimosos artelhos preso por uma corrente cravada à parede, há dois meses
se achava encarcerada.
Miguel ai tinha sido introduzido por ordem de Leôncio, para dar parte à filha
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do projeto de seu senhor, e exortá-la a aceitar o partido que lhes propunha. Era
pungente e desolador o quadro que apresentavam aquelas duas míseras criaturas,
pálidas, extenuadas e abatidas pelo infortúnio, encerrados em uma estreita e
lôbrega espelunca. Ao se encontrarem depois de dois longos meses, mais oprimidos
e desgraçados que nunca, a primeira linguagem com que se saudaram não foi mais
do que um coro de lágrimas e soluços de indizível angústia, que abraçados por largo
tempo estiveram entornando no seio um do outro.
— Sim, minha filha; é preciso que te resignes a esse sacrifício, que é
desgraçadamente o único recurso que nos deixam. É com esta condição que venho
abrir-te as portas desta triste prisão, em que há dois meses vives encerrada. É, sem
dúvida, um cruel sacrifício para teu coração; mas é sem comparação mais
suportável do que esse duro cativeiro, com que pretendem matar-te.
— É verdade, meu pai; o meu carrasco dá-me a escolha entre dois jugos;
mas eu ainda não sei qual dos dois será mais odioso e insuportável.
— Eu sou linda, dizem; fui educada como uma rica herdeira; inspiraram-me
uma alta estima de mim mesma com o sentimento do pudor e da dignidade da
mulher; sou uma escrava, que faz muita moça formosa morder-se de inveja; tenho
dotes incomparáveis do corpo e do espírito; e tudo isto para quê, meu Deus!?... para
ser dada de mimo a um mísero idiota!... Pode-se dar mais cruel e pungente
escárnio?!...
E uma risada convulsiva e sinistra desprendeu-se dos lábios descorados de
Isaura, e reboou pelo lúgubre aposento, como o estrídulo ulular do mocho entre os
sepulcros.
— Não é tanto como se te afigura na imaginação abalada pelos sofrimentos.
O tempo pode muito, e com paciência e resignação hás de te acostumar a esse
novo viver, sem dúvida muito mais suave do que este inferno de martírios, e
poderemos ainda gozar dias se não felizes, ao menos mais tranqüilos e serenos.
— Para mim a tranqüilidade não pode existir senão na sepultura, meu pai.
Entre os dois suplícios que me deixam escolher, eu vejo ainda alguma coisa, que me
sorri como uma idéia consoladora, um recurso extremo, que Deus reserva para os
desgraçados, cujos males são sem remédio.
— É da resignação sem dúvida, que queres falar, não é, minha filha?... Ah!
meu pai, quando a resignação não é possível, só a morte...
— Cala-te, filha!... não digas blasfêmias e palavras loucas. Eu quero, eu
preciso, que tu vivas. Terás ânimo de deixar teu pai neste mundo sozinho, velho e
entregue à miséria e ao desamparo? Se me faltares, o que será de mim nas tristes
conjunturas em que me deixas?...
— Perdoe-me, meu bom, meu querido pai; só em um caso extremo eu me
lembraria de morrer. Eu sei que devo viver para meu pai, e é isso que eu quero;
mas para isso será preciso que eu me case com um disforme?... oh! isto é escárnio
e opróbrio demais! Tenham-me debaixo do mais rigoroso cativeiro, ponham-me na
roça de enxada na mão, descalça e vestida de algodão, castiguem-me, tratem-me
enfim como a mais vil das escravas, mas por caridade poupem-me este ignominioso
sacrifício!...
— Belchior não é tão disforme como te parece; e demais o tempo e o
costume te farão familiarizar com ele. Há muito tempo não o vês; com a idade ele
vai-se endireitando, que é ele ainda muito criança.
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Agora o desconhecerás; já não tem aquele exterior tão grosseiro e
desagradável, e tem tomado outras maneiras menos toscas. Toma ânimo, minha
filha; quando saíres deste triste calabouço, o ar da liberdade te restituirá a alegria e
a tranqüilidade, e mesmo com o marido que te dão poderás viver feliz...
— Feliz! — exclamou Isaura com amargo sorriso: — não me fale em
felicidade, meu pai. Se ao menos eu tivesse o coração livre como outrora... se não
amasse a ninguém. Oh!... não era preciso que ele me amasse, não; bastava que me
quisesse para escrava, aquele anjo de bondade, que em vão empregou seus
generosos esforços para arrancar-me deste abismo. Quanto eu seria mais feliz do
que sendo mulher desse pobre homem, com quem me querem casar! Mas ai de
mim! devo eu pensar mais nele? pode ele, nobre e rico cavalheiro, lembrar-se ainda
da pobre e infeliz cativa!...
— Sim, minha filha, não penses mais nesse homem; varre da tua idéia esse
amor tresloucado; sou eu quem te peço e te aconselho.
— Por que, meu pai?... como poderei ser ingrata a esse moço?...
— Mas não deves contar mais com ele, e muito menos com o seu amor.
— Por que motivo? porventura se terá ele esquecido de mim?...
— Tua humilde condição não permite que olhes com amor para tão alto
personagem; um abismo te separa dele. O amor que lhe inspiraste, não passou de
um capricho de momento, de uma fantasia de fidalgo. Bem me pesa dizer-te isto,
Isaura; mas é a pura verdade.
— Ah! meu pai! que está dizendo!... se soubesse que mal me fazem essas
terríveis palavras!... deixe-me ao menos a consolação de acreditar que ele me
amava, que me ama ainda. Que interesse tinha ele em iludir uma pobre escrava?...
— Eu bem quisera poupar-te ainda este desgosto; mas é preciso que saibas
tudo. Esse moço... ah! minha filha, prepara teu coração para mais um golpe bem
cruel.
— Que tem esse moço?... perguntou Isaura trêmula e agitada. Fale, meu
pai; acaso morreu?...
— Não, minha filha, mas... está casado.
— Casado!... Álvaro casado!... oh! não; não é possível!... quem lhe disse,
meu pai?...
— Ele mesmo, Isaura; lê esta carta.
Isaura tomou a carta com mão trêmula e convulsa, e a percorreu com olhos
desvairados. Lida a carta, não articulou uma queixa, não soltou um soluço, não
derramou uma lágrima, e ela, pálida como um cadáver, os olhos estatelados, a boca
entreaberta, muda, imóvel, hirta, ali ficou por largo tempo na mesma posição; dir-se-
ia que fora petrificada como a mulher de Ló, ao encarar as chamas em que ardia a
cidade maldita.
Enfim por um movimento rápido e convulso atirou-se ao seio de seu pai, e
inundou-o de uma torrente de lágrimas.
Este pranto copioso aliviou-a; ergueu a cabeça, enxugou as lágrimas, e
pareceu ter recobrado a tranqüilidade, mas uma tranqüilidade gélida, sinistra,
sepulcral. Parecia que sua alma se tinha aniquilado sob a violência daquele golpe
esmagador, e que de Isaura só restava o fantasma.
— Estou morta, meu pai!... não sou mais que um cadáver... façam de mim o
que quiserem...
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Foram estas as últimas palavras que com voz fúnebre e sumida proferiu
naquele lôbrego recinto.
— Vamos, minha filha, disse Miguel beijando-a na fronte. Não te entregues
assim ao desalento; tenho esperança de que hás de viver e ser feliz.
Miguel, espírito acanhado e rasteiro, coração bom e sensível, mas
inteiramente estranho às grandes paixões, não podia compreender todo o alcance
do sacrifício que impunha à sua filha. Encarando a felicidade mais pelo lado dos
interesses da vida positiva e material, não pelos gozos e exigências do coração,
ousava conceber sinceras esperanças de mais felizes e tranqüilos dias para sua
filha, e não via que, sujeitando-a a semelhante opróbrio, aviltando-lhe a alma, ia
esmagar-lhe o coração. Queria que ela vivesse, e não via que aquele ignominioso
consórcio, depois de tantas e tão acerbas torturas por que passara, era o golpe de
compaixão, que, terminando-lhe a existência, vinha abreviar-lhe os sofrimentos.
Malvina achava-se no salão, e ali esperava o resultado da conferência que
Miguel fora ter com sua filha. Rosa e André, de braços cruzados junto à porta da
entrada, também ali se achavam às suas ordens.
Malvina sentiu um doloroso aperto de coração ao ver assomar na porta o
vulto de Isaura, arrimada ao braço de Miguel, lívida e desfigurada como enferma em
agonia, os cabelos em desalinho, e com passos mal seguros penetrar, como um
duende evocado do sepulcro, naquele salão, onde não há muito tempo a vira tão
radiante de beleza e mocidade, naquele salão, que parecia ainda repetir os últimos
acentos de sua voz suave e melodiosa.
Mesmo assim ainda era bela a mísera cativa. A magreza fazendo
sobressaírem os contornos e ângulos faciais, realçava a pureza ideal e a severa
energia daquele tipo antigo.
Os grandes olhos pretos cobertos de luz baça e melancólica eram como
cirios funéreos sob a arcada sombria de uma capela tumular. Os cabelos entornados
em volta do colo, faziam ondular por eles leves sombras de maravilhoso efeito, como
festões de hera a se debruçarem pelo mármore vetusto de estátua empalidecida
pelo tempo. Naquela miseranda situação, Isaura oferecia ao escultor um formoso
modelo da Níobe antiga.
— Aquela é Isaura!... oh!... meu Deus! coitada! — murmurou Malvina ao vê-
la, e foi-lhe mister enxugar duas lágrimas, que a seu pesar umedeceram-lhe as
pálpebras. Esteve a ponto de ir implorar clemência a seu esposo em favor da
pobrezinha, mas lembrou-se das perversas inclinações e mau comportamento, que
Leôncio aleivosamente atribuíra a Isaura, e assentou de revestir-se de toda a
impassibilidade que lhe fosse possível.
— Então, Isaura, — disse Malvina com brandura, — já tomaste a tua
resolução?... estás decidida a casar com o marido que te queremos dar?
Isaura por única resposta abaixou a cabeça e fitou os olhos no chão.
— Sim, senhora, — respondeu Miguel por ela — Isaura está resolvida a se
conformar com a vontade de V. Sa.
— Faz muito bem. Não é possível que ela esteja a sofrer por mais tempo
esse cruel tratamento, em que não posso consentir enquanto estiver nesta casa.
Não foi para esse fim que sua defunta senhora criou-a com tanto mimo, e deu-lhe
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tão boa educação. Isaura, apesar de tua descaída, quero-te bem ainda, e não
tolerarei mais semelhante escândalo. Vamos dar-te ao mesmo tempo a liberdade e
um excelente marido.
— Excelente!... meu Deus! Que escárnio! — refletiu Isaura.
— Belchior é muito bom moço, inofensivo, pacífico e trabalhador; creio que
hás de dar-te otimamente com ele. Demais para obter a liberdade nenhum sacrifício
é grande, não é assim, Isaura?
— Sem dúvida, minha senhora; já que assim o quer, sujeito-me
humildemente ao meu destino. Arrancam-me da masmorra — (continuou Isaura em
seu pensamento), — para levarem-me ao suplício.
— Muito bem, Isaura; mostras que és uma rapariga dócil e de juízo.
André, vai chamar aqui o senhor Belchior. Quero eu mesma ter o gosto de
anunciar-lhe que vai enfim realizar o seu sonho querido de tantos anos. Creio que o
senhor Miguel também não ficará mal satisfeito com o arranjo que damos a sua filha;
sempre é alguma coisa sair do cativeiro e casar-se com um homem branco e livre.
Antes assim do que fugir, e andar foragida por esse mundo. Isaura, para prova de
quanto desejo o teu bem, quero ser madrinha neste casamento, que vai pôr termo a
teus sofrimentos, e restabelecer nesta casa a paz e o contentamento, que há muito
tempo dela andavam arredados.
Ditas estas palavras, Malvina abriu um cofre de jóias, que estava sobre uma
mesa, e dele tirou um rico colar de ouro, que foi colocar no pescoço de Isaura.
— Aceita isto, Isaura, — disse ela, — é o meu presente de noivado.
— Agradecida, minha boa senhora, — disse Isaura, e acrescentou em seu
coração: — é a corda, que o carrasco vem lançar ao pescoço da vítima.
Neste momento vem entrando Belchior acompanhado por André.
— Eis-me aqui, senhora minha, — diz ele, — o que deseja deste seu menor
criado?
— Dar-lhe os parabéns, senhor Belchior, — respondeu Malvina.
Parabéns!... mas eu não sei por quê!...
— Pois eu lhe digo; fique sabendo que Isaura vai ser livre, e... adivinhe o
resto.
— E vai-se embora decerto... oh!... é uma desgraça!
— Já vejo que não é bom adivinhador. Isaura está resolvida a casar-se com
o senhor.
— Que me diz, patroa!... perdão, não posso acreditar. Vossemecê está
zombando comigo.
— Digo-lhe a verdade; ai está ela, que não me deixará mentir.
— Apronte-se, senhor Belchior, e quanto antes, que amanhã mesmo há de
se fazer o casamento aqui mesmo em casa.
— Oh! senhora minha! divindade da Terra! exclamou Belchior indo-se
atirar aos pés de Malvina e procurando beijá-los, — deixe-me beijar esses pés...
— Levante-se daí, senhor Belchior; não é a mim, é a Isaura que deve
agradecer.
Belchior levanta-se e corre a prostrar-se aos pés de Isaura.
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— Oh! princesa de meu coração! — exclamou ele atracando-se ás pernas
da pobre escrava, que fraca como estava, quase foi à terra com a força daquela
furiosa e entusiástica atracação. Era para fazer rebentar de riso, a quem não
soubesse quanto havia de trágico e doloroso no fundo daquela ímpia e ignóbil farsa.
— Isaura!... não olhas para mim? aqui tens a teus pés este teu menor
cativo, Belchior!... olha para ele, para este teu adorador, que hoje é mais do que um
príncipe... dá cá essa mãozinha, deixa-me comê-la de beijos...
— Meu Deus! que farsa hedionda obrigam-me a representar! -murmurou
Isaura consigo, e voltando a face abandonou a mão a Belchior, que colando a ela a
boca no transporte do entusiasmo, desatou a chorar como uma criança.
— Olha que palerma! — disse André para Rosa, que observava de parte
aquela cena tragicômica. — E venham cá dizer-me que não é o mel para a boca do
asno!
— Eu antes queria que me casassem com um jacaré.
— Este meu sinhô moço tem idéias do diabo! quem havia de lembrar-se de
casar uma sereia com um boto?
— Invejoso!... você é que queria ser o boto, por isso está aí a torcer o nariz.
Toma!... bem feito!... agora o que faltava era que o nhonhô te desse de dote à
Isaura.
— Isso queria eu!... aposto que Isaura não vai casar de livre vontade! e
depois... nós cá nos arranjaríamos... havia de enfiar o boto pelo fundo de uma
agulha.
— Sai daí, tolo!... pensa que Isaura faz caso de você?...
— Não te arrebites, minha Rosa; já agora não há remédio senão contentar-
me contigo, que em fim de contas também és bem bonitinha, e... tudo que cai no
jequi, é peixe.
— É baixo!... agüente a sua tábua, e vá consolar-se com quem quiser,
menos comigo.
CAPÍTULO XXI
— Então, Leôncio, — dizia Malvina a seu esposo no outro dia pela manhã,
— deste as providências necessárias para arranjar-se esse negócio hoje mesmo?
— Creio que é a centésima vez que me fazes essa pergunta, Malvina, —
respondeu Leôncio sorrindo-se. — Todavia pela centésima vez te responderei
também, que as providências que estão da minha parte, já foram todas dadas.
Ontem mesmo mandei um próprio a Campos, e não tardarão a chegar por aí o
tabelião para passar escritura de liberdade a Isaura com toda a solenidade, e
também o padre para celebrar o casamento. Bem vês que de nada me esqueci.
Tratem de estar todos prontos; e tu, Malvina, manda já preparar a capela para se
efetuar esse casamento, que pareces desejar com mais ardor, — acrescentou
sorrindo, - do que desejaste o teu próprio.
Malvina saiu do salão, deixando Leôncio em companhia de um terceiro
personagem, que também ali se achava, por nome Jorge, a quem o leitor ainda não
conhece. Dizendo que era um parasita, ainda não temos dito tudo.
Este gênero contém muitas variedades, e mesmo cada indivíduo tem sua
cor e feição particular. Era um homem bem apessoado, espirituoso serviçal, cheio de
cortesia e amabilidade, condições indispensáveis a um bom parasita. Jorge não vivia
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da seiva e da sombra de uma só árvore; saltava de uma a outra, e assim
peregrinava por longas distâncias, o que era da sua parte um excelente cálculo, pois
proporcionava-lhe uma vida mais variada e recreativa, ao mesmo tempo que tornava
sua companhia menos incômoda e fatigante aos seus numerosos amigos. Conhecia
e entretinha relações de amizade com todos os fazendeiros das margens do Paraíba
desde São João da Barra até São Fidélis. A crer no que dizia, andava sempre cheio
de afazeres e dando andamento a mil negócios importantes, mas estava sempre
pronto a prescindir deles a convite de qualquer desses amigos para passar uns oito
ou quinze dias em sua companhia.
Na solidão em que Leôncio se achou depois de seu rompimento com
Malvina, Jorge foi para ele um excelente recurso quando se achava na fazenda.
Servia-lhe de companheiro não só à mesa, como ao jogo e à caça: entretinha-o a
contar-lhe anedotas divertidas e escandalosas, aplaudia-lhe os desvarios e
extravagâncias, e lisonjeava-lhe as ruins paixões, enquanto Leôncio, que o
acreditava realmente um amigo, fazia dele o seu confidente, e comunicava-lhe os
seus mais íntimos pensamentos, os seus planos de perversidade, e os mais
secretos negócios de família.
Para melhor entrarmos no mistério dos planos atrozes e ignóbeis, das
satânicas maquinações de Leôncio, ouçamos a conversação íntima, que vão tratar
estes dois entes dignos um do outro.
— Até que por fim, Jorge, achei um meio engenhoso e seguro de aplanar
todas as dificuldades. Desta maneira espero que tudo se vai arranjar ás mil
maravilhas.
— Seguramente, e já de antemão te dou os parabéns pelos teus triunfos, e
aplaudo-te pela feliz combinação de teus planos.
— Mas escuta ainda para melhor poderes compreendê-los. Com este
casamento ficam satisfeitos os desejos de minha mulher, sem que Isaura escape de
todo ao meu poder. Como o pai dela está debaixo de minha restrita dependência, eu
saberei reter junto de mim esse estúpido jardineiro com quem caso-a, e depois... tu
bem sabes, o tempo e a perseverança amansam as feras mais bravias. Entretanto a
atrevida escrava receberá o castigo que merece sua inqualificável rebeldia. Era-me
absolutamente necessário dar este passo, porque minha mulher recusa-se
obstinadamente a reconciliar-se comigo, enquanto eu conservar Isaura cativa em
meu poder, capricho de mulher, com que bem pouco me importaria, se não fosse...
— isto aqui entre nós, meu amigo; confio em tua discrição.
— Podes falar sem susto, que meu coração é como um túmulo para o
segredo da amizade.
— Bem; dizia-te eu, que bem pouco me importaria com os arrufos e
caprichos de minha mulher, se não fosse o completo desarranjo em que
desgraçadamente vão os meus negócios. Em conseqüência de uma infinidade de
circunstâncias, que é escusado agora explicar-te, a minha fortuna está ameaçada de
levar um baque horrendo, do qual não sei se me será possível levantá-la sem auxilio
estranho. Ora meu sogro é o único que com o auxilio de seu dinheiro ou de seu
crédito pode ainda escorar o edifício de minha fortuna prestes a desabar.
— Em verdade procedes com tino e prudência consumada. Oh! teu sogro!...
conheço-o muito; é uma fortuna sólida, e uma das casas mais fortes do Rio de
Janeiro; teu sogro não te deixará ficar mal. Quer extremosamente à filha, e não
quererá ver arruinado o marido dela.
— Disso estou eu certo. Mas isto ainda não é tudo; escuta ainda, Jorge. O
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meu rival, esse tal senhor Álvaro, que tanto cobiçou a minha Isaura para sua
amizade, que não teve pejo de seduzi-la, acoutá-la e protegê-la pública e
escandalosamente no Recife, esse grotesco campeão da liberdade das escravas
alheias, que protestou me disputar Isaura a todo o risco, ficará de uma vez para
sempre desenganado de sua estulta pretensão. Vê pois, Jorge, quantos interesses e
vantagens se conciliam no simples fato desse casamento.
— Plano admirável na verdade, Leôncio! - exclamou Jorge enfaticamente.
— Tens um tino superior, e uma inteligência sutil e fértil em recursos!... se te
desses á política, asseguro-te que farias um papel eminente; serias um estadista
consumado. Esse Dom Quixote de nova espécie, amparo da liberdade das escravas
alheias, quando são bonitas, não achará senão moinhos de vento a combater. Muito
havemos de nos rir de seu desapontamento, se lhe der na cabeça continuar sua
burlesca aventura.
— Creio que nessa não cairá ele; mas se por cá aparecesse, muito
tínhamos que debicá-lo.
— Meu senhor, — disse André entrando na sala, — aí estão na porta uns
cavalheiros, que pedem licença para apear e entrar.
— Ah! já sei, — disse Leôncio, — são eles, são as pessoas que mandei
chamar; o vigário, o tabelião e mais outros... bom! já não nos falta tudo. Vieram mais
depressa do que eu esperava. Manda-os apear e entrar, André.
André sai, Leôncio toca uma campainha, e aparece Rosa.
— Rosa, diz-lhe ele, — vai já chamar sinhá Malvina e Isaura, e o senhor
Miguel e Belchior. Já devem estar prontos; precisa-se aqui já da presença de todos
eles.
— Estou aflito por ver o fim a esta farsa, - disse Leôncio a seu amigo, —
mas quero que ela se represente com certo aparato e solenidade, para inculcar que
tenho grande prazer em satisfazer o capricho de Malvina e melhor iludir a sua
credulidade; mas — fique isto aqui entre nós, — este casamento não passa de uma
burla. Tenho toda a certeza de que Isaura despreza do fundo d'alma esse miserável
idiota, que só em nome será seu marido. Entretanto ficarei me aguardando para
melhores tempos, e espero que o meu plano surtirá o desejado efeito.
— Cá por mim não tenho a menor dúvida a respeito do resultado de um
plano tão maravilhosamente combinado.
Mal Jorge acabava de pronunciar estas palavras, apareceu à porta do salão
um belo e jovem cavalheiro, em elegantes trajos de viagem, acompanhado de mais
três ou quatro pessoas. Leôncio, que já ia pressuroso recebê-los e cumprimentá-los,
estacou de repente.
— Oh!... não são quem eu esperava!... murmurou consigo. – Se me não
engano... é Álvaro!...
— Senhor Leôncio! — disse o cavalheiro cumprimentando-o.
— Senhor Álvaro, — respondeu Leôncio, — pois creio que é a esse senhor,
que tenho a honra de receber em minha casa.
— É ele mesmo, senhor; um seu criado.
— Ah! muito estimo... não o esperava... queira sentar-se... quis então vir dar
um passeio cá pelas nossas províncias do Sul?...
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Estas e outras frases banais dizia Leôncio, procurando refazer-se da
perturbação em que o lançara a súbita e inesperada aparição de Álvaro naquele
momento crítico e solene.
No mesmo momento entravam no salão por uma porta interior Malvina,
Isaura, Miguel e Belchior. Vinham já preparados com os competentes trajos para a
cerimônia do casamento.
— Meu Deus!... o que estou vendo!... — murmurou Isaura, sacudindo
vivamente o braço de Miguel: - estarei enganada?... não... é ele.
— É ele mesmo... Deus!... como é possível?
— Oh! — exclamou Isaura; e nesta simples interjeição, que exalou como um
suspiro, expressava o desafogo de um pego de angústias, que lhe pesava sobre o
coração. Quem de perto a olhasse com atenção veria um leve rubor naquele rosto,
que a dor e os sofrimentos pareciam ter condenado a uma eterna e marmórea
palidez; era a aurora da esperança, cujo primeiro e tímido arrebol assomava nas
faces daquela, cuja existência naquele momento ia sepultar-se nas sombras de um
lúgubre ocaso.
— Não esperava pela honra de recebê-lo hoje nesta sua casa, — continuou
Leôncio recobrando gradualmente o seu sangue-frio e seu ar arrogante.
Entretanto há de permitir que me felicite a mim e ao senhor por tão oportuna visita. A
chegada de V. Sa. hoje nesta casa parece um acontecimento auspicioso, e até
providencial.
— Sim?!... muito folgo com isso... mas não terá V. Sa. a bondade de dizer
por quê?...
— Com muito gosto. Saiba que aquela sua protegida, aquela escrava, por
quem fez tantos extremos em Pernambuco, vai ser hoje mesmo libertada e casada
com um homem de bem. Chegou V. Sa. mesmo a ponto de presenciar com os seus
próprios olhos a realização dos filantrópicos desejos, que tinha a respeito da dita
escrava, e eu da minha parte muito folgarei se V. Sa. quiser assistir a esse ato, que
ainda mais solene se tornará com a sua presença.
— E quem a liberta? - perguntou Álvaro sorrindo-se sardonicamente.
— Quem mais senão eu, que sou seu legitimo senhor? — respondeu
Leôncio com altiva seguridade.
— Pois declaro-lhe, que o não pode fazer, senhor: — disse Álvaro com
firmeza. - Essa escrava não lhe pertence mais.
-—Não me pertence!... — bradou Leôncio levantando-se de um salto, — o
senhor delira ou está escarnecendo?...
— Nem uma, nem outra coisa, - respondeu Álvaro com toda a calma: -
repito-lhe; essa escrava não lhe pertence mais.
— E quem se atreve a esbulhar-me do direito que tenho sobre ela?
— Os seus credores, senhor, — replicou Álvaro, sempre com a mesma
firmeza e sangue-frio. — Esta fazenda com todos os escravos, esta casa com seus
ricos móveis, e sua baixela, nada disto lhe pertence mais; de hoje em diante o
senhor não pode dispor aqui nem do mais insignificante objeto. Veja, — continuou
mostrando-lhe um maço de papéis, - aqui tenho em minhas mãos toda a sua fortuna.
O seu passivo excede extraordinariamente a todos os seus haveres; sua ruína é
completa e irremediável, e a execução de todos os seus bens vai lhe ser
imediatamente intimada.
A um aceno de Álvaro, o escrivão que o acompanhava apresentou a
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Leôncio o mandado de seqüestro e execução de seus bens. Leôncio, arrebatando o
papel com mão trêmula, passeou rapidamente por ele os olhos faiscantes de cólera.
— Pois quê! - exclamou ele, — é assim violenta e atropeladamente que se
fazem estas coisas! porventura não posso obter alguma moratória, e salvar minha
honra e meus bens por outro qualquer meio?...
— Seus credores já usaram para com o senhor de todas as
condescendências e contemporizações possíveis. Saiba ainda demais, que hoje sou
eu o principal, se não o único credor seu; pertencem-me, e estão em minhas mãos
quase todos os seus títulos de dívida, e eu não estou de ânimo a admitir transações
nem protelações de natureza alguma.
—Dar seus bens a inventário eis o que lhe cumpre fazer; toda e qualquer
evasiva que tentar será inútil.
— Maldição! — bradou Leôncio, batendo com o pé no chão e arrancando os
cabelos.
Meu Deus!... meu Deus!... que desgraça!... e que... vergonha!...
exclamou Malvina, soluçando.
CAPÍTULO XXII
Deixemos por um momento suspensa a cena do capítulo antecedente, e
interrompido o diálogo entre os dois mancebos. Eles ai ficam em face um do outro,
como o leão altivo e magnânimo tendo subjugado o tigre daninho e traiçoeiro, que
rosna em vão debaixo das possantes garras de seu antagonista. É-nos preciso
explicar por que série de circunstâncias Álvaro veio aparecer em casa do senhor de
Isaura, a ponto de vir burlar os seus planos atrozes, mesmo no momento em que
iam ter final execução.
Depois que Isaura lhe fora arrebatada, Álvaro caiu na mais acerba
prostração de ânimo.
Ferido em seu orgulho, esbulhado do objeto de seu amor, escarnecido e
vilipendiado pela arrogância de um insolente escravocrata, entregou-se ao mais
sombrio desespero. Mal soube o seu revés, o Dr. Geraldo correu em socorro
daquela nobre alma tão cruelmente golpeada pelo destino. Graças aos cuidados e
conselhos daquele tão solícito quão inteligente amigo, a dor de Álvaro foi-se
tornando mais calma e resignada. Por suas exortações Álvaro chegou mesmo a
convencer-se que o melhor partido que lhe ficava a tomar nas difíceis conjunturas
em que se achava, era procurar esquecer-se de Isaura.
Todo o esforço que fizeres, — dizia-lhe o amigo, — em favor da liberdade
de Isaura, será rematada loucura, que não terá outro resultado senão envolver-te em
novas dificuldades, cobrindo-te de ridículo e de humilhação. Já passaste por duas
decepções bem cruéis, a do baile, e esta última ainda mais triste e humilhante.
Quase te fizeste réu de polícia, querendo disputar uma escrava a seu legítimo
senhor. Pois bem; as seguintes serão ainda piores, eu te asseguro, e te farão ir
rolando de abismo em abismo até tua completa perdição.
Atendendo a estas e mil outras considerações de Geraldo, Àlvaro procurou
firmar o espírito e a vontade no propósito de renunciar ao seu amor, e a todas as
suas pretensões filantrópicas sobre Isaura. Foi debalde. Depois de um mês de luta
consigo mesmo, de sempre frustradas veleidades de revolta contra os impulsos do
coração, Álvaro sentiu-se fraco, e compreendeu que semelhante tentativa era uma
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luta insensata contra a força onipotente do destino. Embalde procurou, já nas graves
ocupações do espírito, já nas distrações frívolas da sociedade, um meio de apagar
da lembrança a imagem da gentil cativa. Ela lhe estava sempre presente em todos
os sonhos d'alma, ora resplendente de beleza e graça, donosa e sedutora como na
noite do baile, ora pálida e abatida, vergada ao peso de seu infortúnio, com os
pulsos algemados, cravando nele os olhos suplicantes como que a dizer-lhe:
— Vem, não me abandones; só tu podes quebrar estes ferros que me
oprimem.
O espírito de Álvaro firmou-se por fim na íntima e inabalável convicção de
que o céu, pondo em contato o seu destino com o daquela encantadora e infeliz
escrava, tivera um desígnio providencial, e o escolhera para instrumento da nobre e
generosa missão de arrebatá-la à escravidão, e dar-lhe na sociedade o elevado
lugar que por sua beleza, virtudes e talentos, lhe competia.
Resolveu-se portanto, fosse qual fosse o resultado, a prosseguir nessa
generosa tentativa, com a cegueira do fanatismo, senão com o arrastamento de uma
inspiração providencial.
Álvaro partiu para o Rio de Janeiro. Ia ao acaso, sem plano nenhum
formado, sem bem saber o que devia fazer para chegar aos seus fins; mas tinha
como uma intuição vaga de que o céu lhe depararia ocasião e meios de levar a cabo
a sua empresa. O que queria em primeiro lugar era colocar-se nas vizinhanças de
Leôncio, a fim de poder colher informações e investigar se porventura algum recurso
haveria para obrigar o senhor de Isaura a manumiti-la.
Desembarcou na corte com o fim de dirigir-se brevemente para Campos.
Antes porém de partir para seu destino, procurou colher entre as pessoas do
comércio algumas informações a respeito de Leôncio.
— Oh! conheço muito esse sujeito, — disse logo o primeiro negociante, a
quem Álvaro se dirigiu. — Esse moço está falido, e em completa ruína. Se V. Sa.
também é credor dele, pode pôr as suas barbas de molho, porque as dos vizinhos
estão a arder. Essa casa bem liquida, mal dará para um rateio, em que toque
cinqüenta por cento a cada credor.
Esta revelação foi para Álvaro como um relâmpago que se abre aos olhos
do viandante extraviado em noite tormentosa, mostrando-lhe de repente e bem ao
perto o albergue hospitaleiro que demanda.
— E V. Sa. porventura é também credor desse fazendeiro? — perguntou
Álvaro.
— Infelizmente, e um dos principais...
— E a quanto montará a fortuna do tal Leôncio?
— A menos de nada, presentemente, pois como já lhe disse, o seu
passivo excede talvez em mais do dobro a todos os seus bens.
— Mas esse passivo mesmo, em que soma é calculado pouco mais ou
menos?
— Calcula-se aproximadamente em quatrocentos e tantos a quinhentos
contos, enquanto que a fazenda de Campos, com escravos e todos os mais
acessórios, não excederá talvez a duzentos. Já temos tido com esse fazendeiro
todas as atenções possíveis, e lhe temos dado mais moratórias do que a lei
concede; não somos obrigados a mais, e agora estamos resolvidos a cair-lhe em
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cima com a execução.
— E quais são os outros credores? V. S.ª quererá indicar-mos?
— E por que não? — respondeu o negociante, e passou a indicar a Álvaro
os nomes e moradas dos demais credores.
De feito, a casa de Leôncio, já desde os últimos anos da vida de seu pai, ia
em contínuo regresso e desmantelamento. O velho comendador, entregando-se no
último quartel da vida a excessos e devassidões, que nem na mocidade são
desculpáveis, vivendo quase sempre na corte, e deixando quase em completo
abandono a administração da fazenda, havia já esbanjado não pequena porção de
sua fortuna.
Por efeito da má administração, não só as safras começaram a escassear
consideravelmente, como também o número de escravos foi-se reduzindo pela
morte e pelas freqüentes fugas, sem que tanto o comendador como seu filho
deixassem de substituí-los por outros novos, que iam comprando a prazo, tornando
cada vez mais pesado o ônus das dívidas.
Depois da morte do comendador, as coisas foram de mal a pior. Leôncio,
com a educação e a índole que lhe conhecemos, era o homem menos próprio
possível para dirigir e explorar um grande estabelecimento agrícola.
Seus desvarios e extravagâncias, e por último sua nefasta e insensata
paixão por Isaura, fizeram-no perder de todo a cabeça, arrojando-se em um plano
inclinado de despesas ruinosas, sem cálculo nem previsão alguma. Com os enormes
dispêndios que teve de fazer em conseqüência da fuga de Isaura, mandando
procurá-la por todos os cantos do império, acabou de cavar o abismo de sua ruína.
Em pouco tempo o jovem fazendeiro estava de todo insolvável, sem um real em
caixa, e com uma multidão de letras protestadas na carteira de seus credores.
Quando estes acordaram e se lembraram de lhe abrir a falência e executar os seus
bens, compreenderam que mal poderiam embolsar-se da metade do que lhes era
devido, e, portanto, trataram com sofreguidão de promover os meios executivos,
antes que o mal fosse a mais.
Depois de conferenciar com os credores de Leôncio, propôs-lhes a compra
de todos os seus créditos pela metade do seu valor. Para evitar qualquer
odiosidade, que semelhante procedimento pudesse acarretar sobre sua pessoa,
declarou-lhes que nenhuma intenção tinha de vexar nem oprimir o infeliz fazendeiro,
que pelo contrário era seu intuito protegê-lo e livrá-lo do vexame de uma rigorosa
execução judicial, e deixá-lo ao abrigo da miséria. E realmente, a despeito da
aversão e desprezo que Leôncio lhe merecia, Álvaro não pretendia levar ao último
extremo os meios de vingança, que por um acaso as circunstâncias tinham posto em
suas mãos. Era ele dez vezes mais rico do que o seu adversário, e de muito bom
grado, se não houvesse outro recurso, por um contrato amigável daria uma soma
igual a toda a fortuna deste, pela liberdade de Isaura.
Agora, que o destino vinha pôr em suas mãos toda a fortuna desse
adversário caprichoso, arrogante e desalmado, Álvaro, sempre generoso, nem por
isso desejava vê-lo reduzido à miséria.
Os credores não hesitaram um momento em aceitar a proposta.
Com razão preferiram saldar suas contas por um modo fácil e expedito, em
dinheiro contado, recebendo a metade, do que sujeitando-se às despesas, delongas
e dificuldades de uma execução em escravos e bens de raiz, quando nenhuma
probabilidade havia de que no rateio pudessem obter mais de metade.
Senhor de todos os títulos de divida de Leôncio, isto é, de toda a sua
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fortuna, Álvaro partiu para Campos a fim de promover por sua conta a execução dos
bens do mesmo, e munido de todos os papéis e documentos, acompanhado de um
escrivão e dois oficiais de justiça, apresentou-se em pessoa em casa de Leôncio
para intimar-lhe em pessoa a sentença de sua perdição.
— Oh! maldição! — exclamara Leôncio, arrancando os cabelos em
desespero, depois que ouvira dos lábios de Álvaro aquele arresto esmagador.
Atordoado e quase louco com a violência do golpe, ia sair correndo pela
porta a fora.
— Espere ainda, senhor, — disse Álvaro detendo-o pelo braço. — Agora
quanto à escrava de que há pouco se falava, o que pretendia fazer dela?
— Libertá-la, já lhe disse, — respondeu Leôncio com rudeza.
— E mais alguma coisa; creio que também me disse que ia casá-la; e,
desculpe-me a pergunta, haveria para isso consentimento da parte dela?
— Oh! não! não!... eu era arrastada, senhor! — exclamou Isaura
resolutamente.
— É verdade, senhor Álvaro, — atalhou Miguel, ela ia casar-se, por assim
dizer, forçada. O senhor Leôncio, como condição da liberdade dela obrigava-a a
casar-se com aquele pobre homem que V. Sa. ali vê.
— Com aquele homem?! - exclamou Álvaro cheio de pasmo e indignação,
olhando para o homúnculo que Miguel lhe indicava com o dedo.
— Sim, senhor, — continuou Miguel, — e se ela não se sujeitasse a esse
casamento, teria de passar o resto da vida presa em um quarto escuro,
incomunicável, com o pé enfiado em uma grossa corrente, como tem vivido desde
que veio do Recife até o dia de hoje...
— Verdugo! — bradou Álvaro, não podendo mais sopear sua indignação. —
A mão da justiça divina pesa enfim sobre ti para punir tuas monstruosas atrocidades!
— O que vergonha!.., que opróbrio, meu Deus! — exclamou Malvina,
debruçando-se a uma mesa, e escondendo o rosto entre as mãos.
— Pobre Isaura! — disse Álvaro com voz comovida, estendendo os braços
à cativa.— Chega-te a mim... Eu protestei no fundo de minha alma e por minha
honra desafrontar-te do jugo opressor e aviltante, que te esmagava, porque via em ti
a pureza de um anjo, e a nobre e altiva resignação da mártir. Foi uma missão santa,
que julgo ter recebido do céu, e que hoje vejo coroada do mais feliz e completo
resultado. Deus enfim, por minhas mãos vinga a inocência e a virtude oprimida, e
esmaga o algoz.
— Deixe-se de blasonar, senhor! — gritou Leôncio agitando-se em
gesticulações de furor: — isto não passa de uma infâmia, uma traição, e ladroeira...
— Isaura! — continuou Álvaro com voz sempre firme e grave: — se esse
algoz ainda há pouco tinha em suas mãos a tua liberdade e a tua vida, e não tas
cedia senão com a condição de desposares um ente disforme e desprezível, agora
tens nas tuas a sua propriedade; sim, que as tenho nas minhas, e as passo para as
tuas. Isaura, tu és hoje a senhora, e ele o escravo; se não quiser mendigar o pão, há
de recorrer à nossa generosidade.- Senhor! - exclamou Isaura correndo a lançar-se
aos pés de Álvaro; — oh! quanto sois bom e generoso para com esta infeliz
escrava!... mas em nome dessa mesma generosidade, de joelhos eu vos peço,
perdão! perdão para eles...— Levanta-te, mulher generosa e sublime! — disse
Álvaro estendo-lhe as mãos para levantar-se. — Levanta-te, Isaura; não é a meus
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pés, mas sim em meus braços, aqui bem perto do meu coração, que te deves lançar,
pois a despeito de todos os preconceitos do mundo, eu me julgo o mais feliz dos
mortais em poder oferecer-te a mão de esposo!...— Senhor, — bradou Leôncio com
os lábios espumantes e os olhos desvairados, — aí tendes tudo quanto possuo;
pode saciar sua vingança, mas eu lhe juro, nunca há de ter o prazer de ver-me
implorar a sua generosidade. E dizendo isto entrou arrebatadamente em uma alcova
contígua à sala. — Leôncio! Leôncio!... onde vais! — exclamou Malvina precipitando-
se para ele; mal, porém, havia ela chegado à porta, ouviu-se a explosão atroadora
de um tiro — Ai!... — gritou Malvina, e caiu redondamente em terra. Leôncio tinha-se
rebentado o crânio com um tiro de pistola.
Fim
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