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coração com o cérebro, a ver se sentia alguma cousa além da pura repetição
mental, mas, por mais que evocasse as comoções extintas, não lhe voltava
nenhuma. Cousas truncadas!
Se ela conseguisse espiar para dentro do coração da sobrinha , pode ser que
achasse ali a sua imagem, e então... Desde que esta idéia penetrou no espírito de
D. Paula, complicou-lhe um pouco a obra de reparação e cura. Era sincera, tratava
da alma da outra, queria vê-la restituída ao marido. Na constância do pecado é que
se pode desejar que outros pequem também, para descer de companhia ao
purgatório; mas aqui o pecado já não existia. D. Paula mostrava à sobrinha a
superioridade do marido, as suas virtudes e assim também as paixões, que podiam
dar um mau desfecho ao casamento, pior que trágico, o repúdio.
Conrado, na primeira visita que lhes fez, nove dias depois, confirmou a
advertência da tia; entrou frio e saiu frio. Venancinha ficou aterrada. Esperava que
os nove dias de separação tivessem abrandado o marido, e, em verdade, assim era;
mas ele mascarou-se à entrada e conteve-se para não capitular. E isto foi mais
salutar que tudo o mais. O terror de perder o marido foi o principal elemento de
restauração. O próprio desterro não pôde tanto.
Vai senão quando, dois dias depois daquela visita, estando ambas ao portão
da chácara, prestes a sair para o passeio do costume, viram vir um cavaleiro.
Venancinha fixou a vista, deu um pequeno grito, e correu a esconder-se atrás do
muro. D. Paula compreendeu e ficou. Quis ver o cavaleiro de mais perto; viu-o dali a
dois ou três minutos, um galhardo rapaz, elegante, com as suas finas botas
lustrosas, muito bem-posto no selim; tinha a mesma cara do outro Vasco, era o filho;
o mesmo jeito da cabeça, um pouco à direita, os mesmos ombros largos, os
mesmos olhos redondos e profundos.
Nessa mesma noite, Venancinha contou-lhe tudo, depois da primeira palavra
que ela lhe arrancou. Tinham-se visto nas corridas, uma vez, logo que ele chegou da
Europa. Quinze dias depois, foi-lhe apresentado em um baile, e pareceu-lhe tão
bem, com um ar tão parisiense, que ela falou dele, na manhã seguinte, ao marido.
Conrado franziu o sobrolho, e foi este gesto que lhe deu uma idéia que até então
não tinha. Começou a vê-lo com prazer; daí a pouco com certa ansiedade. Ele
falava-lhe respeitosamente, dizia-lhe cousas amiga, que ela era a mais bonita moça
do Rio, e a mais elegante, que já em Paris ouvira elogiá-la muito, por algumas
senhoras da família Alvarenga. Tinha graça em criticar os outros, e sabia dizer
também umas palavras sentidas, como ninguém. Não falava de amor, mas
perseguia-a com os olhos, e ela, por mais que afastasse os seus, não podia afastá-
los de todo. Começou a pensar nele, amiudadamente, com interesse, e quando se
encontravam, batia-lhe muito o coração, pode ser que ele lhe visse então, no rosto,
a impressão que fazia.
D. Paula, inclinada para ela, ouvia essa narração, que aí fica apenas
resumida e coordenada. Tinha toda a vida nos olhos; a boca meio aberta, parecia
beber as palavras da sobrinha, ansiosamente, como um cordial. E pedia-lhe mais,
que lhe contasse tudo, tudo. Venancinha criou confiança. O ar da tia era tão jovem,
a exortação tão meiga e cheia de um perdão antecipado, que ela achou ali uma
confidente e amiga, não obstante algumas frases severas que lhe ouviu, mescladas
às outras, por um motivo de inconsciente hipocrisia. Não digo cálculo; D. Paula
enganava-se a si mesma. Podemos compará-la a um general inválido, que forceja
por achar um pouco do antigo ardor na audiência de outras campanhas.