www.nead.unama.br
6
mais, por isso escrevia-me, pedindo que fizesse dos meus sentimentos pessoais e
sem eco uma página de história acabada; que ficasse só o amigo, e lá fosse ver a
sua amiga. E concluía com estas singulares palavras: "Quer uma garantia? Juro-lhe
que não casarei nunca." Compreendi que um vínculo de simpatia moral nos ligava
um ao outro; com a diferença que o que era em mim paixão específica, era nela uma
simples eleição de caráter. Éramos dois sócios, que entravam no comércio da vida
com diferente capital: eu, tudo o que possuía; ela, quase um óbolo. Respondi à carta
dela nesse sentido; e declarei que era tal a minha obediência e o meu amor, que
cedia, mas de má vontade, porque, depois do que se passara entre nós, ia sentir-me
humilhado. Risquei a palavra ridículo, já escrita, para poder ir vê-la sem este
vexame; bastava o outro.
— Aposto que seguiu atrás da carta? É o que eu faria, porque essa moça, ou
eu me engano ou estava morta por casar com o senhor.
— Deixe a sua fisiologia usual; este caso é particularíssimo.
— Deixe-me adivinhar o resto; o juramento era um anzol místico; depois, o
senhor, que o recebera, podia desobrigá-la dele, uma vez que aproveitasse com a
absolvição. Mas, enfim, correr à casa dele.
— Não corri; fui dous dias depois. No intervalo, respondeu ela à minha carta
com um bilhete carinhoso, que rematava com esta idéia: "não fale de humilhação,
onde não houve público." Fui, voltei uma e mais vezes e restabeleceram-se as
nossas relações. Não se falou em nada; ao princípio, custou-me muito parecer o que
era dantes; depois, o demônio da esperança veio pousar outra vez no meu coração;
e, sem nada exprimir, cuidei que um dia, um dia tarde, ela viesse a casar comigo. E
foi essa esperança que me retificou aos meus próprios olhos, na situação em que
me achava. Os boatos de nosso casamento correram mundo. Chegaram aos nossos
ouvidos; eu negava formalmente e sério; ela dava de ombros e ria. Foi essa fase da
nossa vida a mais serena para mim, salvo um incidente curto, um diplomata
austríaco ou não sei que, rapagão, elegante, ruivo, olhos grandes e atrativos, e
fidalgo ainda por cima. Quintília mostrou-se-lhe tão graciosa, que ele cuidou estar
aceito, e tratou de ir adiante. Creio que algum gesto meu, inconsciente, ou então um
pouco da percepção fina que o céu lhe dera, levou depressa o desengano à legação
austríaca. Pouco depois ela adoeceu; e foi então que a nossa intimidade cresceu de
vulto. Ela, enquanto se tratava, resolveu não sair, e isso mesmo lhe disseram os
médicos. Lá passava eu muitas horas diariamente. Ou elas tocavam, ou jogávamos
os três, ou então lia-se alguma cousa; a maior parte das vezes conversávamos
somente. Foi então que a estudei muito; escutando as suas leituras vi que os livros
puramente amorosos achava-os incompreensíveis, e, se as paixões aí eram
violentas, largava-os com tédio. Não falava assim por ignorante; tinha notícia vaga
das paixões, e assistira a algumas alheias.
— De que moléstia padecia?
— Da espinha. Os médicos diziam que a moléstia não era talvez recente, e ia
tocando o ponto melindroso. Chegamos assim a 1859. Desde março desse ano a
moléstia agravou-se muito; teve uma pequena parada, mas para os fins do mês
chegou ao estado desesperador. Nunca vi depois criatura mais enérgica diante da
iminente catástrofe; estava então de uma magreza transparente, quase fluida; ria, ou
antes, sorria apenas, e vendo que eu escondia as minhas lágrimas, apertava-me as
mãos agradecida. Um dia, estando só com o médico, perguntou-lhe a verdade; ele ia
mentir, ela disse-lhe que era inútil, que estava perdida. — Perdida, não, murmurou o
médico. — Jura que não estou perdida? — Ele hesitou, ela agradeceu-lho. Uma vez
certa que morria, ordenou o que prometera a si mesma.