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que é um mistério entre Deus e o homem e que nem os anjos compreendem:
gemido enérgico de todas as misérias terrenas, cuja intensidade só a Providência,
que as acumula ou dissipa, sabe pesar nas balanças da justiça e da piedade divinas.
A morte; esta idéia, tremenda, indiferente ou formosa, segundo a vida é
risonha, pálida ou negra, veio suavizar o martírio daquela alma atribulada, como em
estio ardente as grossas águas da trovoada refrigeram a terra, que estua sob os
raios aprumados do sol. Tinha-a buscado; buscado com a placidez horrível da
desesperança; como um remédio de cuja eficácia a consciência da imortalidade o
fazia duvidar. Seria não mais do que ir deitar-se em leito de dores externas? Talvez:
mas a mudança podia ser refrigério: tanto bastava. A morte parecia, contudo, fugir a
ele para que nem este último desejo se lhe cumprisse. Houve um instante em que
lhe ocorreu o pensamento de subir ao pináculo escarpado do Auseba e despenhar-
se no vale. Refugiu desta idéia, porque era covarde. Eurico, o sacerdote soldado,
não devia fenecer ímpia e vilmente; devia depor o peso intolerável da vida no campo
das batalhas pelejadas em nome da cruz e da Espanha. E no recontro daquele dia,
uma voz íntima lhe murmurava que o havia de obter.
Este anelar pela morte era uma bem triste cobiça! E quando se lembrava de
que essa mulher que aí jazia a poucos passos dele; essa mulher, em cuja adoração
concentrara todos os afetos dos mais formosos dias da vida; cuja imagem sonhada
nas solidões do Calpe, desenhada de contínuo diante dos olhos da sua alma,
gravada com um selo de saudade e de amargura em todas as suas cogitações; essa
mulher que, pouco havia, por horas de delicioso delírio, apertara contra o peito, e
que pudera, outrora, torná-lo o mais feliz dos homens; quando se lembrava de que
sobre isso tudo ele deixara cair a campa de bronze do sacerdócio, que ninguém
podia erguer, o desgraçado sentia estalarem-lhe uma a uma todas as fibras do
coração, e fugir-lhe do seio um grito semelhante ao que rebenta dos lábios do
condenado ao suplício do potro, no primeiro movimento da mão pesada do algoz.
E, como se quisesse ainda mais saciar-se de dor, encaminhou-se para o lado
onde Hermengarda repousava. Ao clarão da tocha que espargia uma luz mortiça, o
guerreiro contemplou-a naquele inquieto dormir. Era bela; mais bela que nos tempos
da primeira mocidade! O seu gesto angélico, desbotado pela palidez, emagrecido
pelos pesares e terrores, ganhara em expressão, em reflexo dos íntimos
pensamentos o que perdera em viço e em toques de inocência. Bonina
desabrochada nos campos da vida, brilhara com todas as pompas do seu vicejar à
luz da manhã; o ardor intenso do meio-dia a fizera pender; a viração da tarde lhe
traria, talvez, ainda frescor e viveza; mas a sua fragrância perdia-se nas auras que
passavam; nas suas cores harmoniosas revia-se, apenas, o céu! Aquela alma fugia
solitária pela terra num viver incompleto e volveria aos abismos da criação sem
conhecer o mais profundo e enérgico dos afetos humanos, o amor, que une dois
espíritos como dois fragmentos de um todo, os quais a Providência separou ao
lançá-los na terra, e que devem buscar-se, unir-se, completar-se, até irem, depois da
morte, formar, talvez, uma só existência de anjo no seio de Deus.
Mas quando Eurico se lembrou de que, porventura, isto era sonho; de que
podia ser que essa alma não passasse na vida tão vazia e solitária como ele julgava,
e que esse coração, que poucas horas antes pulsara tão perto do seu, batia, acaso,
por outrem, sentiu o suor frio manar-lhe da fronte. A tocha baça e fúnebre que mal
alumiava a irmã de Pelágio pareceu-lhe retinta em sangue; e, como cedro arrancado
por tufão repentino, foi encostar-se à rocha lateral, cuja superfície irregular lhe
escondia Hermengarda. O vê-Ia despertara todo o delírio do seu primeiro amor, e
aquela idéia intolerável, que tantas vezes o atormentara nas solidões do Calpe,