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campanário branco e alegre do Coração de Jesus, direito e esguio como o minarete
de um templo muçulmano, destacando-se na meia sombra crepuscular, esbatido
pela irradiação do sol que tombava glorioso ao fundo da tarde pardacenta.
Morria no ar calmo o dobre melancólico de um sino...
Flutuava um cheiro vago de coisas podres. Para as bandas do Pajeú ardiam
restos de fogueiras a extinguirem-se.
Uma tarde infinitamente calma, essa...
Havia oito anos que isto fora, mas nos seus momentos de desânimo, Maria do
Carmo punha-se a relembrar toda essa tragédia de sua infância. Olhava para o
passado com a alma cheia de saudade, recordando, tintim por tintim, como se
estivesse lendo num livro, ninharias, minudências de sua vida naqueles tempos em
que ela, pobre e matutinha, via tudo cor-de-rosa através do prisma límpido e
imaculado de sua meninice. Transportava-se, num vôo da imaginação, a Campo
Alegre, e via-se, como por um óculos de ver ao longe, ao lado da mamãe,
costurando quieta ou soletrando a Cartilha, ou na novena do Senhor do Bonfim,
muito limpa, com o seu vestidinho de chita que lhe dera o Sr. vigário. Lembrava-se
do papai quando voltava do roçado, de camisa e ceroula, chapéu de palha de
carnaúba, tostado, trigueiro do sol, contando histórias de onças e maracajás...
Recapitulava, mentalmente, com uma precisão cronológica, toda a sua vida e
ficava horas e horas em cisma, a pensar, a pensar como se tivesse perdido o juízo...
Nas Irmãs de Caridade é que lhe sobrava tempo para isso. Vinham-lhe à
mente os episódios da viagem: uma grande cobra cascavel que o papai matara ao
pé duma árvore, à faca; as dificuldades que encontraram no caminho; um ceguinho
que cantava na estrada sem ter o que comer...
Nunca mais lhe saíra da cabeça um retirante que ela vira estendido no meio
do caminho, sobre o areal quente, ao meio-dia em ponto, morto, e completamente
nu, com os olhos já comidos pelos urubus, os intestinos fora, devorados pelas
varejeiras... Que feio aquilo!
Não era má, de resto, a sua vida agora, em casa dos padrinhos, não era, mas
se fosse possível tornar a ser criança, renascer e viver outra vez em Campo Alegre...
No dia seguinte ao da chegada à capital, D. Eulália morrera duma síncope cardíaca.
Maria lembrava-se muito bem; a mamãe fora para o cemitério na padiola da Santa
Casa de Misericórdia, toda de preto... Parecia vê-la ainda, com os olhos fundos,
entreabertos, mãos cruzadas sobre o peito, dentro do esquife...
Tempos depois vira-a em sonho, numa nuvem de incenso, cercada de anjos
com um manto azul recamado de estrelas, subindo para o céu... Por sinal acordou
sobressaltada, chamando pela madrinha, encolhendo-se toda na rede, fria de medo.
Dias depois Mendonça embarcara para o norte. Ainda acabrunhado pelo desgosto
que lhe trouxera a morte quase repentina da mulher, manifestou a João da Mata
desejos de ir tentar fortuna onde quer que fosse. Não podia continuar no Ceará,
viúvo e ocioso, de braços cruzados, sem dinheiro, olhando para o tempo,
decididamente não podia continuar. Mas, havia uma dificuldade — a Maria. Se o
compadre quisesse tomar a menina, encarregar-se de sua educação, mediante uma
mesada, um pequeno auxílio...
O amanuense aceitou. Que fosse imediatamente para o norte. A vida no
Ceará não valia coisíssima alguma. O Pará, sim, aquilo é que é terra de fartura e de
dinheiro. Um homem trabalhador e honesto, como o compadre, com um pouco de
experiência, podia enricar da noite para o dia. Os seringais, conhecia os seringais?
eram uma mina da Califórnia. Tantos fossem quantos voltavam recheados, de mão
no bolso e cabeça erguida. E o Ceará? Fome e miséria somente. Num mês morriam