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Universidade da Amazônia
A Normalista
NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal
CEP: 66060-902
Belém – Pará
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A NORMALISTA
de Adolfo Caminha
CAPÍTULO I
João Maciel da Mata Gadelha, conhecido em Fortaleza por João da Mata,
habitava, há anos, no Trilho, uma casinhola de porta e janela, cor de açafrão, com a
frente encardida pela fuligem das locomotivas que diariamente cruzavam defronte, e
de onde se avistava a Estação da linha férrea de Baturité. Era amanuense, amigado,
e gostava de jogar víspora em família aos domingos.
Nessa noite estavam reunidas as pessoas do costume. Ao centro da sala, em
torno de uma mesa coberta com um pano xadrez, à luz parca de um candeeiro de
louça esfumado, em forma de abajur, corriam os olhos sobre as velhas coleções
desbotadas, enquanto uma voz fina de mulher flauteava arrastando as sílabas numa
cadência morosa: — Vin...te e quatro! Sessen...ta e nove!... Cinqüen...ta e seis!...
Havia um silêncio morno e concentrado em que destacava o rolar abafado
das pedras no saquinho da baeta verde.
A sala era estreita, sem teto, chão de tijolo, com duas portas para o interior da
casa, paredes escorridas pedindo uma caiação geral. À direita, defronte da janela,
dormia um velho piano de aspecto pobre, encimado por um espelho não menos
gasto. O resto da mobília compunha-se de algumas cadeiras, um sofá entre as duas
portas do fundo, a mesa do centro, e uma espécie de console, colocada à esquerda,
onde pousavam dois jarros com flores artificiais.
De onde em onde zunia o falsete do amanuense:
Quadra! Ou caçoava: — Os anos de Cristo!... Os óculos do Padre Eterno!
Risadinhas explodiam a espaços, gostosas, indiscretas — uma pilhéria
ricocheteava nos quatro ângulos da mesa.
É boa! É boa! fazia João da Mata erguendo a cabeça, mostrando a
dentuça.
Depois voltava o silêncio, e a voz fina de mulher continuava a cantar os
números solenemente.
Víspora! saltou de repente um rapazola de óculos, bigodinho fino, flor na
botoeira do fraque de casimira clara.
Toda gente o conhecia — era o Zuza, quintanista de direito, filho do coronel
Souza Nunes.
Podem conferir, disse erguendo-se, risonho — segunda linha.
E estendeu o braço, passando o cartão para o amanuense.
Não desmarquem, não desmarquem, recomendou este espalmando a
mão. Pode ter sido engano. Errare humanum est...
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Houve um ligeiro sussurro de vozes e de caroços rolando sobre a mesa com
um surdo ruído de contas desfiadas. Todos desfizeram as marcações.
Numa das extremidades sentava-se João da Mata, de paletó de fazenda
parda sobre a camisa de meia, costas para a rua.
À direita mexia-se uma senhora gorducha, de seus trinta anos, metida num
casaco frouxo de rendas, cabelo penteado em cocó, estampa insinuante, bons
dentes: era a mulher do amanuense, que passava por sua legítima esposa não
obstante as insinuações malévolas da alcovitice vilã que entrevira escândalos na
vida privada de D. Terezinha. Contudo, era tida em conta de excelente dona-de-
casa, honesta, dizendo-se relacionada com as principais famílias de Fortaleza.
Ninguém ousava mesmo dirigir-lhe um gracejo de mau gosto, uma pilhéria
calculada. Inventava-se — calúnias do populacho — que se correspondia
ocultamente com o presidente da província. Ela, porém, gabava, batendo no peito
com orgulho, que tinha uma vida limpa, graças a Deus; que isso de patifarias não lhe
entrava em casa, não, mas era o mesmo. Estava ali o Janjão que não a deixava
mentir.
Ao pé de D. Terezinha aprumava-se Maria do Carmo, afilhada de João, uma
rapariga muito nova, com um belo arzinho de noviça, morena-clara, olhos cor de
azeitonas, carnes rijas, e cuja atenção volvia-se insistentemente para o Zuza.
As outras pessoas eram também da intimidade: o Loureiro, guarda-livros da
firma Carvalho & Cia., o Dr. Mendes, juiz municipal, mais a senhora, a Lídia
Campelo, filha da viúva Campelo, e o estudante. Às vezes ia mais gente e o víspora
prolongava-se até meia-noite.
João da Mata era um sujeito esgrouvinhado, esguio e alto, carão magro de
tísico, com uma cor hepática denunciando vícios de sangue, pouco cabelo, óculos
escuros através dos quais boliam dois olhos miúdos e vesgos. Usava pêra e bigode
ralo caindo sobre os beiços, tesos como fios de arame; a testa ampla confundia-se
com a meia calva reluzente. Falava depressa, com um sotaque abemolado,
gesticulando bruscamente, e, quando ria, punha em evidência a medonha dentuça
postiça. Noutros tempos fora mestre-escola no sertão da província, de onde se
mudara para a capital por conveniências particulares. Era então simplesmente o
professor Gadelha, o terror dos estudantes de gramática. O sertão foi-lhe
aborrecendo; estava cansado de ensinar a meninos, era preciso fazer pela vida
noutro meio mais vasto onde as suas qualidades, boas ou más, fossem aquilatadas
com justiça. Estava perdendo-se, inutilizando-se e fossilizando-se, por assim dizer,
entre um vigário seboso e pernóstico e um delegado de polícia ignorante: — “Não
era um águia, um Abílio Borges, um Macedo... mas reconhecia que também não era
burro. Até podia fazer figura em Fortaleza.”
E abalou com tanta felicidade que não tardou ser nomeado comissário de
socorros ao tempo da grande seca de 77, dois anos depois de sua chegada à
capital. Desde logo tornou-se conhecido, suas façanhas corriam impressas nos
pasquins domingueiros. De uma feita escapou milagrosamente de ser preso por
crime de defloramento numa menor, criada do Dr. Moraes e Silva; de outra feita
apanhou de rebenque na cara por haver caluniado um capitão de infantaria
propalando uma infâmia. Toda a gente o conhecia muitíssimo bem, por sinal tinha
uma cicatriz oblonga e funda na têmpora esquerda, e não largava o mau vezo de
roer o canto das unhas.
Depois da seca entregou-se de corpo e alma à polícia, à intriguinha partidária,
à rabulice, à cabala eleitoral, à chicana. Toda a vez que se anunciava um pleito,
punha em jogo as mil e uma sutilezas que só o seu espírito sagaz podia conceber.
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Ninguém como ele sabia copiar uma chapa em letra firme e aprumada. Aquilo a
pena cantava no papel que nem o lápis de um taquígrafo. E que letra, que
esplêndido talhe! Dir-se-ia traçada a nanquim, delicadamente, com a paciência de
um chinês. Ninguém como ele sabia tirar proveito duma vitória alcançada pelo
partido. Discutia, falava alto, berrava... impunha-se!
Extraordinário homem! diziam os chefes políticos; destes é que nós
precisamos, destes é que precisa o partido.
Mas João sabia vender caro seu peixe. Fazia política por uma espécie de
ambição egoísta, visando sempre tirar resultados positivos de suas artimanhas,
embora com prejuízo de alguém.
Dinheiro é o que ele queria, não lhe fossem falar em política sem interesse
pessoal.
— Histórias, homem, histórias! Isso de patriotismo é uma patranha, um rótulo
falso! O que se quer é dinheiro, o santo dinheirinho, a mamata. Qual pátria, qual
nada! Patacoadas!” Ele, João, trabalhava, lá isso era inegável: dava o seu voto,
cabalava, servia de testa-de-ferro, mas... tivessem paciência — era mão pra lá mão
para cá... Porque — argumentava — a política é uma especulação torpe como outra
qualquer, como a de comprar e vender couros de bode na praia, a mesmíssima
coisa; pois não é? Pra tudo é preciso jeito, muito jeitinho...
Agora, porém, andava meio retraído, dava o seu voto, calado, e — passe
muito bem! — A política só lhe trouxera desenganos e inimigos. Não estava mais
para servir de degrau a figurão algum. Que se fomentassem! É boa! Trabalhara que
nem besta de carga para no fim de contas ganhar o quê? Um pingue lugar de
amanuense? Um miserável emprego que se anda oferecendo aí a qualquer
vagabundo? Decididamente não o pilhavam mais para a canga... Estava
experimentado, meus senhores, experimentadíssimo.
E agora, com efeito, ninguém o via mais nas redações, entre os jornalistas da
terra, a esbravejar contra os adversários, nem nos cafés, quanto mais em dia de
eleição, sentado, como dantes, na sua cadeira de mesário, carrancudo,
circunspecto, a contar votos, a lavrar atas. Estava outro homem, completamente
outro: amigo de casa, vivendo para si, com poucas amizades, metódico, econômico,
às voltas com a sua atrabílis crônica, sem ambições, sem dívidas.
A sua grande paixão, o seu fraco era a Maria do Carmo, a menina de seus
olhos, a afilhadinha; queria um bem extraordinário à rapariga e tratava-a com um
carinho lânguido de amante apaixonado no supremo grau do amor incondicional.
Criara-a desde pequena, era como se fosse pai, tinha direitos sobre ela; podia
mesmo beijá-la — sem malícia, já se deixa ver — nas faces, na testa, nos braços e
até, por que não? na boca.
Às vezes, quando Maria voltava da Escola Normal, ele mandava-a sentar-se
na rede, a seu lado. A pequena guardava os livros e lá ia, sem fazer beiço, deitar-se
com o padrinho, amarfanhando o rico vestidinho de cretone passado a ferro pela
manhã. Obedecia-lhe cegamente, nunca lhe dissera uma palavra áspera; ao
contrário, — eram carinhos, cafunés no alto da cabeça, cócegas, histórias de alma
do outro mundo e gracinhas para ele rir... Tinha sempre um sorriso fresco e luminoso
para “o seu padrinho”. E João da Mata sentia um bem-estar incomparável, uma
delícia, um gozo inefável ante aquele esplêndido tipo de cearense morena, olhos cor
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de azeitona onde boiava uma névoa de ingenuidade, cabelos compridos descendo
até a altura dos quadris, desmanchando-se em ondas de seda finíssima... Quantas
vezes, quantas! punha-se, por trás dos grandes óculos escuros, a olhá-la como um
pateta, sem que ela sequer percebesse a fixidez de seu olhar cheio de desejo! Maria
estava-se pondo moça, entrava nos seus quinze anos, e o padrinho a adorá-la cada
vez mais!
João começou a enquizilar-se com as freqüentes visitas do Zuza. Por fim
notara certas tendências do estudante para a pequena, certo quebrar de olhos, uma
como insistência atrevida em dizer as coisas por metáforas... Isso o incomodava,
punha-lhe pruridos na calva, enraivecia-o. Quanto ao Loureiro não havia risco, o
guarda-livros estava para casar com a Campelinho, era um rapaz sério. Mas o
senhor Zuza?... Ali andava namoro, apostava. Tinha idéia de ter lido na Província
uns versos dedicados a M. C. e assinados por Z.*** Naquela noite, sobretudo,
pareceu-lhe ver o mariola passar uma carta, um papel a Maria. Boas! Era preciso pôr
um termo ao descaramento, sob pena de ele, João, desmoralizar-se no conceito da
gente séria. Lá por ser filho do Sr. coronel não fosse pensar que faria o que
entendesse. Alto lá! Tudo, menos patifaria dentro de sua casa.
E, enquanto ia enchendo os cartões automaticamente sem olhar para os
números, pensava em Maria do Carmo, mordendo com desespero as guias do
bigodaço.
Quando o Zuza, todo gabola e amaneirado, vermelho do calor da luz, gritou
víspora! numa voz triunfante e clara, João esteve quase atirando-lhe com o
cartão. Vieram-lhe desejos imoderados de estourar, de dar escândalo, trêmulo,
nervoso, a semicalva reluzente de suor.
Sim senhor, disse secamente devolvendo o cartão. Vamos à última...
E o jogo continuou. Fez-se novo silêncio. Agora era o Zuza, o futuro bacharel
que cantava pausadamente, tirando as pedras com a ponta dos dedos e colocando-
as devagar, cauteloso.
Davam nove horas na Sé quando todos se ergueram. A Campelinho suplicou
mais uma partida, o Loureiro também foi de opinião que se jogasse ainda uma vez,
todos, enfim, desejavam continuar, mas João da Mata opôs-se tenazmente: que era
tarde, tinha muito que escrever.
Uma só, meu padrinho, rogou Maria do Carmo tomando-lhe as duas mãos
e fitando-o com os seus magníficos olhos cor de azeitona.
O amanuense estremeceu. Agora era a própria afilhada, a Sra. D. Maria do
Carmo que lhe pedia com um sorriso extraordinário que jogassem! E na sua
imaginação acentuava-se a suspeita do namoro com o estudante.
Curvou-se e proferiu um palavrão ao ouvido da rapariga. Estava desesperado,
não se continha.
Não senhora, por hoje basta de víspora!
Todos admiraram a súbita mudança na sua fisionomia a princípio tão alegre.
A mulher do Dr. Mendes, muito afetada, acotovelou o marido e despediu-se
“até a primeira vista”.
Zuza foi o último a retirar-se, fitando em Maria um olhar embebido de ternura.
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A noite estava muito escura e calma. As estrelas tinham um brilho particular,
altas, minúsculas como cabeças de alfinetes em papel de seda escuro. Ouvia-se
distintamente, como por um tubo acústico, a toada dos soldados rezando à Virgem
da Conceição, no quartel de linha e o marulhar da praia, distante. A rua do Trilho,
deserta, com a sua iluminação incompleta, naqueles confins da cidade, parecia um
túnel subterrâneo. Fazia medo transitar ali a desoras.
Assim que se foram os habitués do víspora, João da Mata desabafou: —
“Uma patifaria! O Sr. Zuza pretendia sem dúvida abusar da sua confiança, plantar a
desordem no seio da família, mas estava muito enganado. Ali era casa de gente
pobre e honesta. Estava muito enganadinho, seu pelintra!”
Mas eu sei quem é a culpada, acrescentou furioso, a culpada é a Sra. D.
Maria do Carmo, porque se atreve a olhar para ele!
Aquilo não podia continuar, o Sr. Zuza não lhe punha mais os pés em casa
sob pretexto algum. Não se portava sério? Pois então — fora! pra rua!
Estavam fazendo de sua casa um alcouce! A Sra. D. Lídia vinha namorar o
outro às suas barbas; já uma vez caíra-lhe porta dentro uma imundície de carta
anônima denunciando certos abusos...
E colérico, soprando o bigode, sacudindo os braços, esmurrando a mesa,
berrava, com os olhos na alcova onde sumira-se D. Terezinha. Maria desaparecera
pelo corredor e chorava debruçada sobre a mesa de jantar, onde ardia uma vela de
carnaúba.
Que sujeito! gania o amanuense. Pensa ele que não tem mais do que
enfronhar-se num fato de casimira clara, com uma flor no peito, com modos de
safardana, e zás! plantar-se na pequena, mas está muito enganado! Aqui estou eu
(e batia com força no peito ossudo) para impedir escândalos em minha casa!
Debalde D. Terezinha aconselhava, aflita, que não desse escândalo, que
fosse dormir — “As paredes têm ouvidos, dizia ela dentro da alcova. O moço era
filho de gente graúda, e ele, Janjão, um simples empregado público. Tivesse modos.
Se houvesse má intenção por parte do Zuza, ela, Teté, seria a primeira a não
consentir que ele pisasse o chão de sua casa. Mas, não senhor, a gente deve
pensar antes de fazer as coisas. Pra que todo aquele espalhafato, por que
semelhante barulho?”
João da Mata, porém, estava fora de si, tinha a cabeça a arder como uma
brasa. Seu temperamento excessivamente irritável expandia-se com desespero ao
mesmo tempo que seu coração de homem gasto sentia pela primeira vez um quer
que era, uma agonia, uma sufocação ante a possibilidade de um namoro entre o
estudante e a afilhada. Não era precisamente receio de que o Zuza pudesse iludir a
rapariga desonrando-a e atirando-a por aí ao desprezo; era como revolta do instinto,
uma espécie de egoísmo animal que o torturava, acendendo-lhe todas as cóleras,
dominando-o, como se Maria fosse propriedade sua, exclusivamente sua por direito
inalienável. Via-a caída pelo acadêmico, toda voltada para ele, amando-o talvez,
preferindo-o a todos os outros homens, entregando-se-lhe. E o que seria dele, João,
depois? Nem mais uma beijoca na boquinha rubra e pequenina, nem mais um
abraço ao voltar da escola, cansadinha, o rosto afogueado pelo calor; nem mais uns
cafunés, nem um sorriso daqueles que ela sempre tinha para o padrinho... Isto é que
o desesperava!
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Desde a saída de Maria do colégio das Irmãs de Caridade tinha se operado
uma mudança admirável nos hábitos de João da Mata. Ela já não era para ele como
uma filha; estava quase moça, incomparavelmente mais bonita e fornida de carnes.
Já não era, que esperança! aquela Maria do Carmo da Imaculada Conceição, toda
santidade, magrinha, com uma cor esbranquiçada e mórbida de cera velha, o olhar
macilento, a falar sempre no padre Reitor e na Superiora e na Irmã Filomena e
noutras pieguices. Uma tontinha a Maria naquele tempo. Quando ia passar o
domingo em casa, uma vez no mês, metia-se para os fundos do quintal ou pelas
camarinhas, muito calada, muito sonsa, a ler a Imitação; não chegava à janela, não
aparecia às visitas, doida por voltar ao colégio. Aquilo punha o padrinho de mau
humor. Uma coisa assim fazia até vergonha a ele, que detestava tudo quanto
cheirasse a sacristia. Porque João da Mata dizia-se pensador livre; não acreditava
em santos, e maldizia os padres. Jesus, na sua opinião, era uma espécie de mito,
uma como legenda mística sem utilidade prática. Isso de colégios internos à guisa
de conventos não se acomodava com o seu temperamento. Também fora professor,
olé! e sabia muito bem o que isso era — “um coito de patifarias”. Queria a educação
como nos colégios da Europa, segundo vira em certo pedagogista, onde as meninas
desenvolvem-se física e moralmente como a rapaziada de calças, com uma rapidez
admirável, tornando-se por fim excelentes mães de família, perfeitas donas-de-casa,
sem a intervenção inquisitorial da Irmã de Caridade. Não compreendia (tacanhez de
espírito embora) como pudesse instruir-se na prática indispensável da vida social
uma criatura educada a toques de sineta, no silêncio e na sensaboria de uma casa
conventual, entre paredes sombrias, com quadros alegóricos das almas do
purgatório e das penas do inferno; com o mais lamentável desprezo de todas as
prescrições higiênicas, sem ar nem luz, rezando noite e dia — ora pro nobis, ora pro
nobis... Era da opinião do José Pereira da Província: Irmãs de Caridade foram feitas
para hospitais. O diabo é que no Ceará não havia colégios sérios. A instrução
pública estava reduzida a meia dúzia de conventilhos: uma calamidade pior que a
seca. O menino ou menina saía da escola sabendo menos que dantes e mais
instruído em hábitos vergonhosos. As melhores famílias sacudiam as filhas na
Imaculada Conceição como único recurso para não vê-las completamente
ignorantes e pervertidas. Afinal, para não contrariar o Mendonça que queria a filha
para santa, metera Maria do Carmo no “convento”.
D. Terezinha participava das mesmas idéias do Janjão: Uma menina
inteligente como Maria devia educar-se no Rio de Janeiro ou num colégio particular,
mas um colégio onde ela pudesse aprender o “traquejo social”. Pode ser que as
Irmãs sejam umas mulheres virtuosíssimas e castas, mas filha sua não punha os
pés em colégio de freiras...
João da Mata detestava a padraria. Dava-se apenas com um padre, o cônego
Feitosa, porque, dizia ele, era um sacerdote sem hipocrisia, um padre como ele
entendia que deviam ser todos os padres: asseado, inimigo da batina, com afilhadas
em casa... E por que não? Os padres são fisicamente (e sublinhava a palavra),
anatomicamente, fisiologicamente homens como os outros: têm coração, órgãos
sexuais, nervos como os outros homens. Portanto, assiste-lhes o mesmíssimo direito
de procriação, direito natural e até consagrado pela Escritura. O contrário é con-
trafazer a natureza humana que, afinal, não obedece a preceitos de castidade. Daí,
concluía João, daí o desregramento das classes religiosas condenadas a eterno celi-
bato. O próprio Cristo dissera numa parábola cheia de senso e de experiência:
“Crescei e multiplicai-vos.”
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“Por amor de Deus” não lhe falassem em padres. A educação moderna, a
educação livre, sem intervenção da batina — eis o que ele queria e apregoava alto e
bom som.
Havia meses que Maria do Carmo cursava a Escola Normal. Sua vida
traduzia-se em ler romances que pedia emprestados a Lídia, toda preocupada com
bailes, passeios, modas e tutti quanti... Ia à Escola todos os dias vestidinha com
simplicidade, muito limpa, mangas curtas evidenciando o meio-braço moreno e
roliço, em cabelo, o guarda-sol de seda na mão, por ali afora — toque, toque, toque
— até à praça do Patrocínio, como uma grande senhora independente.
Agora, sim, pensava o amanuense, Maria estava uma mocetona digna de
figurar em qualquer salão aristocrático.
A fama da normalista encheu depressa toda a capital. Não se compreendia
como uma simples retirante saída há pouco das Irmãs de Caridade fosse tão bem-
feita de corpo, tão desenvolta e insinuante. As outras normalistas tinham-lhe inveja e
faziam-lhe pirraças. Nas reuniões do Club Iracema era ela a preferida dos rapazes,
todos a procuravam.
João da Mata inflava. Certo não a entregaria por preço algum a qualquer
rapazola como o filho do coronel Souza Nunes.
Entretanto, o Zuza era um rapaz da moda. Montava a cavalo, fazia versos,
assinava a Gazeta Jurídica, freqüentava o palácio do presidente...
João conhecera-o uma noite no baile do Dr. Castro. Havia meses que se
achava em Fortaleza estudando o quinto ano de direito e gozando a sua fama de
rapaz rico. Às seis horas da tarde já lá estava ele, no Trilho, em casa do amanuense,
queixando-se da monotonia da vida cearense e gabando, com ares de fidalgo, a
capital de Pernambuco. Ali, sim, a gente pode viver, pode gozar. Muito progresso,
muito divertimento: corridas de cavalos, uma sociedade papa-fina muitíssimo bem-
educada, magníficos arrabaldes, certo bom gosto nas toaletes, nos costumes, certas
comodidades que ainda não havia no Ceará...
Ao que parece o Sr. Zuza não gosta do Ceará... disse-lhe um dia D.
Terezinha.
Absolutamente não, minha senhora. Sou meio exigente em matéria de
civilização; isto me parece ainda uma terra de bugres...
De bugres?!
...Sim, uma terra em que só se fala nas secas e no preço da carne verde.
V. Exª compreende, não pode corresponder à expectativa de um rapaz de certa
ordem, por assim dizer educado na Veneza Americana...
Deste modo o Sr. Zuza ofende os seus conterrâneos, os seus parentes...
Absolutamente não.
O que dizia é que o Recife está num plano muito superior a Fortaleza. Apenas
estabelecia um paralelo.
João da Mata achava-o pedante, desequilibrado, tolo. — “Não, o Sr. Zuza não
lhe punha mais os pés em casa por forma alguma!” bradava naquela noite.
Maria continuava a chorar lá dentro, na sala de jantar, inconsolável, triste,
com um grande desgosto na alma. De repente ouviu a voz do padrinho que a
chamava. Ergueu-se com um movimento brusco e rápido, o lenço nos olhos,
soluçando devagar.
João quis saber onde estava “a carta que o Zuza lhe havia entregue”.
Botasse-a pra ali, já!
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Trêmula, abafando a cólera que lhe oprimia a respiração, Maria não podia
falar.
Vamos, vamos!
Não tenho carta alguma, disse num acento doloroso.
João da Mata sentiu atear-se-lhe o fogo da concupiscência. Teve ímpetos de
tomar entre as mãos a cabeça da afilhada e beijá-la, beijá-la sofregamente, com a
fúria de um selvagem, no pescoço, na boca, nos olhos... ímpetos de beijá-la toda
inteira, como um doido. Maria dominava-o, fazia-lhe perder a tramontana.
Então aquele bandido não lhe entregou uma carta por debaixo da mesa, no
víspora? Entregou, sim senhora, dê-ma!
Não senhor, não me entregou coisa alguma, tornou a normalista, sem
levantar a cabeça fungando.
Estavam em frente um do outro, ao pé da mesa. As portas da sala já se
tinham fechado; ele com o paletó aberto mostrando a camisa de meia cor de carne,
o olhar fixo em Maria; ela com o seu vestidinho claro de chita, cabelos penteados
numa trança, acaçapada, submissa ante a cólera rude do padrinho.
Pois bem, concluiu este moderando a voz. Tome sentido: vossemecê não
me aparece mais àquele cabrocha, está ouvindo?
E depois duma pausa, com ternura:
Vá dormir, ande...
Soprou o gás e foi deitar-se com a mulher, na alcova.
Pois não achas Teté, dizia ele em camisa de dormir, aconchegado à D.
Terezinha, na larga cama de jacarandá: não achas que é um desaforo aquele patife
vir à nossa casa para namorar?
Não, que tolice! O Zuza até é um rapaz sério... Vem, coitado, porque nos
estima...
É boa! — fez João. Então vem porque nos estima, hein? Esta cá me fica,
Sra. D. Teté, esta cá me fica!
Homem, trate das suas hemorróidas que é melhor...
Ora, sabe que mais? Você é outra!
E deram-se as costas fazendo ranger a cama.
Com pouco ambos roncavam no discreto silêncio da alcova.
Sobre a cômoda, ao pé do oratório, ardia uma lamparina de azeite.
CAPÍTULO II
Foi numa tarde infinitamente calma de dezembro de 1877 que o capitão
Bernardino de Mendonça chegou a Fortaleza, pela estrada nova de Mecejana,
depois de penosíssima viagem.
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A seca dizimava populações inteiras no sertão. Famílias sucumbiam de fome
e de peste, castigadas por um sol de brasa. Centenas de foragidos, arrastando os
esqueletos seminus, cruzavam-se dia e noite no areal incandescente dos caminhos
— abantesmas da desgraça gemendo preces ao Deus dos cristãos, numa voz
rouquenha, quase soluçada. Era um horror de misérias e aflições.
Bernardino de Mendonça foi dos últimos que abalaram do interior da província
para o litoral na pista de socorros públicos. Totalmente desiludido, quase arruinado,
vendo todos os dias passarem por sua porta, em Campo Alegre, magotes de
emigrantes andrajosos que batiam do sertão num êxodo pungente, acossados pela
necessidade, resolvera também ir-se com a família para Fortaleza, embora mais
tarde fosse obrigado a procurar outros climas.
Era homem sadio, vigoroso, excessivamente trabalhador e dedicado. Contava
a esse tempo quarenta anos, nada mais nada menos, e dizia com soberba, gabando
o peito rijo, não se trocar por muito rapazola pimpão que aí vive nas cidades grandes
caindo de tédio e preguiça, cheio de vícios secretos. Corria-lhe nas veias largas e
azuis de matuto inteligente, puro e abundante sangue português. Nunca sofrera a
mais leve dor de cabeça. Conhecia a sífilis por ouvir falar. Casara muito moço,
imberbe ainda, aos dezesseis anos, com uma prima colateral, D. Eulália de
Mendonça Furtado, de uma família de Furtados da Telha. Até então só tivera três
filhos, um dos quais, o mais velho, chamado Lourenço, fora recrutado para o exército
por peralta incorrigível. Outro, o Casimiro, mais rude e também mais obediente, vivia
com os pais, era mesmo o vaqueiro de Mendonça que descobrira nele especial
vocação para esse inglório trabalho de andar atrás das boiadas — ecô! ecô! —
metido em couros, chapinhando açudes e lagoas, galopando à brida solta nas
várzeas, ao ar fresco das manhãs do norte, identificado, por assim dizer, com o
mugir nostálgico e penoso do gado. Desde menino, o pai acostumara-o à vida alegre
do campo, e agora aí vinha também, Deus o sabe, triste e apreensivo, caminho da
capital cearense, no seu pedrês choutão, escanchado entre dois grandes alforjes de
farinha e carne salgada.
Por último nascera Maria do Carmo, o último filho de Mendonça, a caçula. Em
1877 completava seis anos, e, para felicidade dos pais, era uma criança
verdadeiramente encantadora, com seu arzinho ingênuo e meigo de sertaneja. A
cor, os olhos, os dentes, o cabelo — tudo nela era um encanto: olhos puxando para
negros, dentes miudinhos e de uma brancura de algodão em rama, cabelos negros e
luzidios como a asa da graúna — morena-clara. Crescia sem outra educação a não
ser a que lhe davam os pais, de modo que, naquela idade, mal soletrava a Doutrina
Cristã.
Mendonça abalara de Campo Alegre quando de todo lhe tinham fugido as
esperanças de inverno seguro, depois de ter visto estrebuchar a última rês no solo
duro e estéril.
Todas as tardes, invariavelmente, da janela que dizia para o poente, ou em pé
na varanda, consultava o tempo, os horizontes cor de cinza, o céu de um azul
diáfano de safira, procurando bispar na inclemência da atmosfera imóvel a sombra
fresca de uma nuvem, um indício qualquer de chuva.
Surpreendia às vezes, crivando a transparência do ar, revoadas de aves de
arribação. Recolhia-se animado. Mas os dias passavam quentes e secos.
Outras vezes, à noitinha, clarões rápidos e lívidos abriam-se no poente como
reflexos de luz elétrica; ouvia-se rolar a trovoada muito ao longe. Mendonça punha-
se a escutar calado, sentia um como arrepio bom, e lá tornava a iludir-se
alimentando, toda uma noite, a doce esperança de ver pela manhã o solo úmido e a
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rama brotando verde e pujante da “fornalha”. Mas qual! As manhãs sucediam-se
cada vez mais tépidas, sem pingo de água, uma aragem leve, de cemitério,
arrepiando a folhagem do arvoredo. Um céu muito alto, varrido, monótono,
indecifrável como um dogma.
E pouco a pouco aquele estado de coisas foi atuando forte no espírito do
sertanejo, como as vibrações de um clarim que dá sinal de marcha; pouco a pouco
foi-se convencendo de que aquilo era uma situação impossível em que ele não devia
absolutamente permanecer.
Os açudes estorricavam mostrando os leitos gretados pelo sol, duros como
pedra; juritis encandeadas iam espapaçar ofegantes no chão, defronte da casa,
cascavéis chocalhavam no alpendre, ocultas, invisíveis, e todas as coisas tinham um
aspecto desolado e lúgubre que se comunicava às criaturas.
Passava gente todo santo dia, a pé, de trouxa ao ombro, arrastando-se
pesadamente.
Uma vez ele próprio, Mendonça, vira de perto a agonia lenta de uma mulher
asfixiada pela elefantíase — pernas inchadas, ventre inchado, rosto inchado
horrível!
Decididamente era tempo de arrumar também “os seus cacos” e — adeus
Campo Alegre, adeus carnaubais rumorejantes, adeus igrejinha branca! Ir-se-ia fazer
pela vida em qualquer parte, em Fortaleza, onde felizmente contava amigos
políticos, correligionários dedicados que certamente lhe não recusariam uma acha
de lenha, um pouco de água fresca, um punhado de farinha... Demais era homem,
graças a Deus, forte como novilho, tinha sangue nas veias — trabalharia!
Ao mesmo tempo lembrava-se da “sua velha”, da Eulália, que andava
adoentada, com umas pontadas no coração, muito fraca e cuja natureza talvez não
resistisse às fadigas duma viagem longa; pensava em Maria do Carmo, sua filha
querida, a menina de seus olhos, tão nova ainda, e punha-se a meditar nos horrores
da seca, nas febres de mau caráter, na quase absoluta falta de água, com um
desalento a aniquilar-lhe as forças, a dobrar-lhe a altivez de forte. Depois tornava ao
mesmo rio de idéias: não, aquele inferno do sertão, com um raio de tempo medonho
seria talvez pior, seria a sua desgraça. De si para si media, calculava,
meticulosamente, toda a gravidade da situação a que chegara. Não havia outro
recurso, outro jeito senão marchar para a capital, para onde quer que fosse, como
tantos outros infelizes empolgados pela miséria. Iria, que remédio? bater à porta de
um amigo, de um correligionário, de um cristão. Lembrou-se então do “compadre
João da Mata”, padrinho de Maria.
Muito bem: iria ao compadre.
Arribaram de manhã, muito cedo, ao romper da alva. Os cavalos, magros e
ruins, romperam num trote miúdo. Ao passarem defronte da igrejinha do povoado,
um pobre nicho todo fechado, com as suas janelinhas por pintar, solitário como uma
coisa inútil, D. Eulália ciciou uma oração, e os outros, Mendonça e Casimiro,
descobriram-se com respeito.
Havia oito anos que isto fora...
Enfiaram por uma estrada de areia que se prolongava indefinidamente,
torcendo e retorcendo-se em ziguezagues, ocultando-se aqui para brilhar lá adiante,
por cima da floresta imóvel, como uma enorme serpente amarela dormindo ao sol...
As pisadas dos animais abafavam-se na areia, e a pequena caravana sumia-se na
distância...
Ao cabo de doze longos dias em que paravam para repousar à sombra de
alguma árvore que ainda verdejava ou nalguma palhoça abandonada, avistaram o
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campanário branco e alegre do Coração de Jesus, direito e esguio como o minarete
de um templo muçulmano, destacando-se na meia sombra crepuscular, esbatido
pela irradiação do sol que tombava glorioso ao fundo da tarde pardacenta.
Morria no ar calmo o dobre melancólico de um sino...
Flutuava um cheiro vago de coisas podres. Para as bandas do Pajeú ardiam
restos de fogueiras a extinguirem-se.
Uma tarde infinitamente calma, essa...
Havia oito anos que isto fora, mas nos seus momentos de desânimo, Maria do
Carmo punha-se a relembrar toda essa tragédia de sua infância. Olhava para o
passado com a alma cheia de saudade, recordando, tintim por tintim, como se
estivesse lendo num livro, ninharias, minudências de sua vida naqueles tempos em
que ela, pobre e matutinha, via tudo cor-de-rosa através do prisma límpido e
imaculado de sua meninice. Transportava-se, num vôo da imaginação, a Campo
Alegre, e via-se, como por um óculos de ver ao longe, ao lado da mamãe,
costurando quieta ou soletrando a Cartilha, ou na novena do Senhor do Bonfim,
muito limpa, com o seu vestidinho de chita que lhe dera o Sr. vigário. Lembrava-se
do papai quando voltava do roçado, de camisa e ceroula, chapéu de palha de
carnaúba, tostado, trigueiro do sol, contando histórias de onças e maracajás...
Recapitulava, mentalmente, com uma precisão cronológica, toda a sua vida e
ficava horas e horas em cisma, a pensar, a pensar como se tivesse perdido o juízo...
Nas Irmãs de Caridade é que lhe sobrava tempo para isso. Vinham-lhe à
mente os episódios da viagem: uma grande cobra cascavel que o papai matara ao
pé duma árvore, à faca; as dificuldades que encontraram no caminho; um ceguinho
que cantava na estrada sem ter o que comer...
Nunca mais lhe saíra da cabeça um retirante que ela vira estendido no meio
do caminho, sobre o areal quente, ao meio-dia em ponto, morto, e completamente
nu, com os olhos já comidos pelos urubus, os intestinos fora, devorados pelas
varejeiras... Que feio aquilo!
Não era má, de resto, a sua vida agora, em casa dos padrinhos, não era, mas
se fosse possível tornar a ser criança, renascer e viver outra vez em Campo Alegre...
No dia seguinte ao da chegada à capital, D. Eulália morrera duma síncope cardíaca.
Maria lembrava-se muito bem; a mamãe fora para o cemitério na padiola da Santa
Casa de Misericórdia, toda de preto... Parecia vê-la ainda, com os olhos fundos,
entreabertos, mãos cruzadas sobre o peito, dentro do esquife...
Tempos depois vira-a em sonho, numa nuvem de incenso, cercada de anjos
com um manto azul recamado de estrelas, subindo para o céu... Por sinal acordou
sobressaltada, chamando pela madrinha, encolhendo-se toda na rede, fria de medo.
Dias depois Mendonça embarcara para o norte. Ainda acabrunhado pelo desgosto
que lhe trouxera a morte quase repentina da mulher, manifestou a João da Mata
desejos de ir tentar fortuna onde quer que fosse. Não podia continuar no Ceará,
viúvo e ocioso, de braços cruzados, sem dinheiro, olhando para o tempo,
decididamente não podia continuar. Mas, havia uma dificuldade — a Maria. Se o
compadre quisesse tomar a menina, encarregar-se de sua educação, mediante uma
mesada, um pequeno auxílio...
O amanuense aceitou. Que fosse imediatamente para o norte. A vida no
Ceará não valia coisíssima alguma. O Pará, sim, aquilo é que é terra de fartura e de
dinheiro. Um homem trabalhador e honesto, como o compadre, com um pouco de
experiência, podia enricar da noite para o dia. Os seringais, conhecia os seringais?
eram uma mina da Califórnia. Tantos fossem quantos voltavam recheados, de mão
no bolso e cabeça erguida. E o Ceará? Fome e miséria somente. Num mês morriam
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três mil pessoas, eram mortos a dar com o pé, morria gente até defronte do palácio
do governo, uma lástima!
E acrescentou que o Ceará era boa terra para os políticos e ricaços, que o
pobre em Fortaleza, ainda que pesasse quilogramas de honradez era sempre o
pobre, maltratado, espezinhado, ridicularizado, perseguido, enquanto que o
indivíduo mais ou menos endinheirado podia contar amplamente, largamente (e
abria os braços) com a simpatia geral: tinha ingresso em todos os salões, em toda a
parte, até no “santuário da família” fosse ele, embora, um patife, um grandíssimo
canalha. Usava chapéu alto e gravata branca? Tinha um título de bacharel? Não
fizesse cerimônia, podia entrar onde quisesse — “Uma terra de famintos, seu
compadre! Fome, miséria e patifaria era o que se via.” — Com a Maria do Carmo
não tivesse cuidado; ele, João da Mata, havia de tratá-la como filha, não lhe faltaria
nada; teria para ela todas as carícias, todos os afagos de um pai. Mendonça podia
mesmo demorar o tempo que quisesse no Pará, anos, séculos... a menina ficava em
casa de gente séria, pobre, é verdade, mas honrada.
Daí a dias, um domingo de muito sol e muito vento, realizou-se o embarque
do capitão Mendonça e do Casimiro.
Os conselhos de João calaram poderosamente no ânimo forte e resoluto do
sertanejo cuja confiança no compadre era ilimitada. Sabia-o conhecido em quase
todo o Ceará, estimado mesmo por pessoas de bem, admirava-lhe muito o “coração
generoso” e democrata, por tal forma que João se lhe afigurou o único homem capaz
de concorrer para a felicidade de sua filha — reflexões nascidas de boa-fé e da
experiência da vida social, que enchiam de íntima e doce consolação a alma
ingênua e simples do sertanejo.
Mendonça conhecia Fortaleza superficialmente; suas viagens à capital tinham
sido raríssimas; viera vezes contadas a negócio. Sabia os homens propensos ao
mal, por mais duma vez ele próprio fora vítima da ingratidão de indivíduos que se
diziam seus amigos e a quem fizera grandes benefícios; porém, a vida ruidosa e
dissoluta das capitais, esse tumultuar quotidiano de virtudes fingidas e vícios
inconfessáveis, esse tropel de paixões desencontradas, isso que constitui, por assim
dizer, a maior felicidade do gênero humano, esse acervo de mentiras galantes e
torpezas dissimuladas, esse cortiço de vespas que se denomina — sociedade,
desconhecia-o ele e nem sequer imaginava. Lá, no seu tranqüilo recanto de Campo
Alegre, onde só de longe em longe chegava o eco da vida elegante, ouvira falar em
mulheres que traíam os maridos, filhos que assassinavam os pais, incestos de
irmãos, homens que negociavam com a própria honra... e tudo isso parecia-lhe
simples “invenção das gazetas”, romances de sensação que ele ruminava devagar e
esquecia depressa.
“É uma grande alma aquele Mendonça!” admiravam os amigos.
E era-o.
Resolvera como que recomeçar a vida, esquecer o passado, recuperar o
tempo perdido, trabalhando como um mouro, entregando-se ao labor com todas as
suas forças, dia e noite, sem descanso, nas florestas do Pará.
E lá se fora barra fora, mais o Casimiro, na proa dum vapor brasileiro,
honrado e obscuro, no meio de dezenas de emigrantes que, como ele, iam fazer
pela vida até... sabiam lá!...
Antes de embarcar teve cuidados maternais para a filha. Comprou peças de
chita, rendas, fitas, bugigangas, fantasias, tudo escolhido, tudo bom, e uma maleta
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americana. Chamou-a à parte, beijou-a na testa e disse-lhe com os olhos cheios
d’água e a voz trêmula “que o papai havia de voltar se Deus quisesse, que ela fosse
boa e obediente aos padrinhos, que estudasse, estudasse muito, porque era feio
uma mulher ignorante, e, finalmente, que não esquecesse de rezar por alma da
mamãe”...
Maria lembrava-se de tudo.
Depois ela ficara sozinha em companhia dos padrinhos.
Nesse tempo moravam na rua de Baixo. Tinha-se mudado tudo: morrera-lhe a
mãe, morrera-lhe o pai duma febre, no alto Purus. O Casimiro ninguém dava notícia
dele, nunca mais voltara... O Lourenço, esse ela não conhecia — andava no sul feito
soldado. Estava só, por assim dizer, numa casa alheia. E, contudo, podia dizer que
não tinha tristezas, uma ou outra vez é que se punha a pensar no passado.
Depois que saíra da Imaculada Conceição a vida não lhe era de todo má. Ora
estava no piano, ensaiando trechos de música em voga, ora saía a passear com a
Lídia Campelo, de quem era muito amiga, amiga de escola, ora lia romances...
Ultimamente a Lídia dera-lhe a ler O Primo Basílio, recomendando muito cuidado
“que era um livro obsceno”: lesse escondido e havia de gostar muito. — “Imagina um
sujeito bilontra, uma espécie de José Pereira, sabes? o José Pereira, da Província,
sempre muito bem vestido, pastinhas, monóculo...”
Não contes, atalhou Maria, tomando o livro — quero eu mesma ler...
Gostaste?
Mas muito! Que linguagem, que observação, que rigor de crítica!... Tem um
defeito — é escabroso demais.
Onde foste tu descobrir esta maravilha, criatura?
É da mamãe. Vi-o na estante, peguei e li-o.
Maria folheou ao acaso aquela obra-prima, disposta a devorá-la. E, com
efeito, leu-a de fio a pavio, página por página, linha por linha, palavra por palavra,
devagar, demoradamente.
Uma noite o padrinho quase a surpreende no quarto, deitada, com o romance
aberto, à luz duma vela. Porque ela só lia O Primo Basílio à noite, no seu misterioso
quartinho do meio da casa pegado à sala de jantar.
Que regalo todas aquelas cenas da vida burguesa! Toda aquela complicada
história do Paraíso!... A primeira entrevista de Basílio com Luíza causou-lhe uma
sensação estranha, uma extraordinária superexcitação nervosa; sentiu um como
formigueiro nas pernas, titilações em certas partes do corpo, prurido no bico dos
seios púberes; o coração batia-lhe apressado, uma nuvem atravessou-lhe os olhos...
Terminou a leitura cansada, como se tivesse acabado de um gozo infinito... E veio-
lhe à mente o Zuza: se pudesse ter uma entrevista com o Zuza e fazer de Luíza...
Até aquela data só lera romances de José de Alencar, por uma espécie de
bairrismo mal-entendido, e a Consciência, de Heitor Malot publicada em folhetins na
Província. A leitura do Primo Basílio despertou-lhe um interesse extraordinário —
“Aquilo é que é um romance. A gente parece que está vendo as coisas, que está
sentindo...”
Não compreendera bem certas passagens, pensou em consultar a Lídia; sim,
a Campelinho devia saber a história da champanha passada num beijo para a boca
de Luíza. — Que porcaria! E assim também a tal “sensação nova” que Basílio
ensinara à amante... não podia ser coisa muito asseada...
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Terminada a leitura do último capítulo, Maria sentiu que não fossem dois
volumes, três mesmo, muitos volumes... Gostara imensamente!
No dia seguinte, antes de ir à Escola Normal, Maria teve uma entrevista
secreta com a amiga no quintal da viúva Campelo que morava defronte do
amanuense.
A Campelinho tinha acabado de banhar-se e estava arranjando umas flores
para a Nossa Senhora do Oratório. Da saleta de jantar via-se o quintalzinho, cercado
de estacas, estreito e comprido, com ateiras e um renque de manjericões ao fundo,
perto da cacimba. Uma pitombeira colossal arrastava os galhos sobre o telhado. O
chão úmido da chuva que caíra à noite, porejava uma frescura comunicativa e boa.
Lídia estava à fresca, de cabelos soltos sobre a toalha felpuda aberta nos ombros,
quando Maria apareceu.
Boa vida, hein? saudou esta. E logo, triunfante: — Acabei o Primo Basílio!
Que tal?
Magnífico, sublime! Olha, vem cá...
E dando o braço à outra dirigiu-se para o “banheiro”, uma espécie de arapuca
de palha seca de coqueiro, acaçapada, medonha, sem a mínima comodidade e para
onde se entrava por uma portinhola de tábua mal segura.
Uma vez ali, sentadas ambas num caixote que fora de sabão, única mobília
do “banheiro”, Maria sacou fora o Primo Basílio, cuidadosamente embrulhado numa
folha da Província. Queria que a Lídia explicasse uma passagem muito difusa, quase
impenetrável à sua inteligência.
É isto, menina, que eu não pude compreender bem. E, abrindo o livro, leu:
“...e ele (Basílio) quis-lhe ensinar então a verdadeira maneira de beber champanha.
Talvez ela não soubesse! — Como é? perguntou Luíza tomando o copo. — Não é
com o copo! Horror! Ninguém que se preza bebe champanha por um copo. O copo é
bom para o Colares... ‘Tomou um gole de champanha e num beijo passou-o para a
boca dela’, Luíza riu...”, etc., etc...
Como explicas tu isso?
Tola! fez a Campelinho. Uma coisa tão simples... Toma-se um gole de
champanha ou de outro qualquer líquido, junta-se boca a boca assim... E juntou a
ação às palavras.
...e pronto! bebe-se pela boca um do outro. Tão simples...
E que prazer há nisso?
Sei lá, menina! tornou a outra com um gesto de nojo, cuspindo. Pode lá
haver gosto...
Depois, as duas curvadas sobre o livro, unidas, coxa a coxa, braço a braço,
passaram à “sensação nova”.
Lídia apressou-se em dizer que as “mulheres do mundo” é que sabem essas
coisas... Quanto a ela não conhecia outras sensações além dos beijos na boca, às
escondidas, fora os abracinhos fortes e demorados, peito a peito, isto mesmo com
pessoa do coração... Contou então que o seu primeiro namorado, um estudante do
Liceu, um fedelho, tentara certa vez... Concluiu baixinho ao ouvido de Maria, com
receio de que alguém as estivesse observando.
E consentiste?
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Qual! Dei-lhe com um — não — na cara, e o tolo nunca mais me fez festa.
Leram ainda alguns trechos do romance, rindo, cochichando, acotovelando-
se, e depressa a conversação tomou rumo diverso recaindo sobre o Zuza e o
Loureiro.
A propósito, perguntou Maria curiosa, pretendes mesmo casar com o
guarda-livros?
Por que não? fez a outra erguendo-se. Muito breve tenho homem!
Decididamente este não me escapa, tenho-o seguro... Vai todas as noites à nossa
casa, como vês, está caidinho. A mamãe já não repara, deixa-se ficar com o dela...
Com o dela? inquiriu Maria com surpresa, muito admirada.
Apanhada em flagrante indiscrição, Lídia confessou, muito em segredo, que
uma noite encontrara D. Amanda na alcova com o Batista da Feira Nova, um
negociante...
Maria tomava sentido, recalcando a curiosidade que lhe espicaçava o espírito.
Calou-se para não ser indiscreta, e, depois de uma pausa em que folheava
maquinalmente o romance:
Dize uma coisa, Lídia: tu amas deveras o Loureiro?
Que pergunta, criatura? Certamente que sim. Ele então tem uma paixão
doida por mim! Bebe-me com o olhar e me come de beijos. É na boca, no pescoço,
na orelha, nos olhos, na nuca... Nunca vi gostar tanto de beijos! E é preciso que se
note, conhecemo-nos há três meses! E o teu Zuza?
O namoro de Maria com o filho do coronel Souza Nunes estava no começo. A
falar verdade, ela gostava do Zuza e casaria se ele quisesse, mas até aquela data
ainda não se tinham comunicado. Conheciam-se — nada mais.
Nessas confabulações íntimas com a amiga, Maria, que começava a
compreender a vida tal como ela é na sociedade, fingia-se ingênua, tolinha,
expediente que usava sempre que desejava saber a opinião da Lídia sobre isto ou
sobre aquilo.
A princípio evitava conversar em amores, corando a qualquer palavra mais
livre ou a qualquer fato menos sério que lhe contavam as colegas de estudo. Agora,
porém, ouvia tudo com interesse, procurando inteirar-se dos acontecimentos, sem
acanhamento, sem pejo. Pouco a pouco foi perdendo os antigos retraimentos que
trouxera da Imaculada Conceição. A convivência com as outras normalistas
transformara-lhe os hábitos e as idéias. A Lídia principalmente era a sua confidente
mais chegada. Quase sempre estavam juntas em casa, na Escola, nos passeios, em
toda parte onde se encontravam, de braços dados, aos cochichos... Havia entre elas
um comércio contínuo de carinhos, de afagos e de segredos. Gabavam-se mutua-
mente, tinham quase os mesmos hábitos, vestiam-se pelos mesmos moldes, como
duas irmãs.
Lídia Campelo tinha então vinte anos. Era uma rapariga alta, “fausse-maigre”
e bem-feita de corpo.
A razão por que ainda não se casara ninguém ignorava, toda a gente sabia —
é que a filha da viúva Campelo, por via do atavismo, puxava à mãe. Não havia na
cidade rapazola mais ou menos elegante, caixeiro de loja de modas que não se
gabasse de a ter beijado. Tinha fama de grande namoradeira, exímia em negócios
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de amor. O próprio João da Mata não gostava muito daquela amizade com Maria.
Mais de uma vez dissera a D. Terezinha as suas desconfianças, os seus escrúpulos,
os seus receios em relação a essa intimidade da afilhada com a Lídia: — “Não
consentisse a rapariga ir à casa da outra. Antes prevenir que curar.”
Havia mesmo quem ousasse afirmar que a Campelinho “já não era moça”.
Da viúva diziam-se horrores: “aquilo era casa aberta...” Tantos fossem,
quantos ela recebia com risinho sem-vergonha, arregaçando os beiços. A filha
seguia o mesmo caminho.
O certo, porém, é que o procedimento de D. Amanda não escandalizava a
sociedade. Vivia na sua modesta casinha do Trilho, muito concentrada, sem amigas,
num respeitoso isolamento, saindo à rua poucas vezes em companhia da filha, não
freqüentando os bailes nem o Passeio Público e muito menos as igrejas: vivia a seu
modo, comodamente, do minguado montepio de seu defunto marido.
“Uma mulher honesta!” protestava o Loureiro. Infâmias era o que se diziam
da pobre senhora, infâmias que caíam por terra, ante o indefectível procedimento de
D. Amanda!
E acrescentava convicto:
Tal mãe, tal filha!
CAPÍTULO III
O velho mostrador da sala de jantar deu meia-noite, uma hora, e Maria do
Carmo ainda estava acordada, a pensar no Zuza, arquitetando frases para
responder ao futuro bacharel em ciências jurídicas. Porque o estudante, como
suspeitou o amanuense, achara meio de comunicar-se com a rapariga, atirando-lhe
uma cartinha por baixo da mesa, quando jogavam o víspora.
Era a primeira vez que o Zuza lhe escrevia numa letra caligráfica, de mulher,
miudinha, igual e redonda. Ao apanhar o envelope, com um movimento disfarçado,
Maria sentiu o sangue afluir todo para o rosto, como se todo o mundo a tivesse
surpreendido em flagrante às barbas do padrinho. Ela mesmo, depois, admirou a
sua coragem, ela que nunca desrespeitara o amanuense, temendo-o como a seu
pai. Não pôde reprimir um susto, ficou fria, com os olhos baixos, sem prestar
atenção ao jogo. Pareceu-lhe ver através dos óculos escuros do padrinho um
lampejo de cólera concentrada. Tremia com o papel na mão, sem saber o que
fizesse. Mas o víspora continuava animado e ela pôde cautelosamente guardar o
objeto querido, pretextando sede e levantando-se para beber água no interior da
casa. Guardou-o bem guardado, no fundo de uma caixinha de fitas, sem ler, e voltou
imediatamente ao seu lugar com um alívio, muito lépida.
Quando o amanuense entrou a esbravejar contra o Zuza, esmurrando a
mesa, batendo portas, colérico, medonho, Maria ficou lívida! Ta, ta, ta, ta, ia tudo
águas abaixo, o seu “crime” ia ser descoberto, não havia fugir. Estava
irremediavelmente perdida! Enfiou pelo corredor com as mãos na cabeça, aflita.
Decididamente o padrinho ia expulsá-la de casa... seu primeiro ímpeto foi voltar,
atirar-se aos pés de João da Mata e pedir-lhe, suplicar-lhe por amor de Deus, por
quem era que a perdoasse, que fora uma fraqueza, uma criancice... Isto, porém,
seria complicar a situação, confessar-se culpada, entregar-se à cólera do
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amanuense. E ao sentar-se à mesa de jantar foi acometida por uma convulsão de
choro mudo, com a cabeça entre as mãos, cotovelos fincados na mesa, olhos fixos
na luz moribunda da velinha de carnaúba.
O padrinho berrou, jurou acabar com “a bandalheira”, disse horrores do Zuza,
e, afinal, que felicidade para a rapariga! foi se deitar com a mulher. Maria suspirou
forte como se lhe tivessem tirado um grande peso do coração; e agora, só no seu
quarto, lia e relia a carta do acadêmico, muito à fresca, sentindo um bem-estar
confortável na sua rede de varandas, branca e sarapintada de encarnado.
Fazia calor.
Maria costumava dormir com a vela acesa, numa palmatória de flandres.
Noutro quarto, defronte, ressonava a cozinheira, uma tirando para velha, chamada
Mariana, e, no corredor, o Sultão abanava as orelhas sacudindo as pulgas. De
quando em quando havia um barulho de asas na sala de jantar: era a sabiá
debatendo-se na gaiola, assombrada.
Agora, sim, Maria estava só, completamente só, podia ler à vontade, uma,
duas, três... quantas vezes quisesse, a carta do Zuza. Nada como a noite para os
namorados! Era só quando ela gozava a sua liberdade, à noite, no seu quarto, em
camisa, fazendo o que bem entendesse...
“Minha senhora”, dizia o futuro bacharel, muito respeitoso. “Tomo a liberdade
de me dirigir a V. Exª. confiado na sua infinita bondade, nessa bondade que se
revela em seus esplêndidos olhos de madona e na brandura meiga de sua voz cujo
timbre faz-me lembrar toda a melodia duma harpa eólia tangida por mãos de
serafins... Tomo esta liberdade para dizer-lhe simplesmente que a amo! e que este
amor só podia ser inspirado pela incomparável luz de seu olhar e pela música
sentimental de sua voz... Amo-a deveras... Só me resta esperar que V. Exª. aceite
este amor como tributo sincero de um coração avassalado por sua beleza
encantadora, e então serei o mais feliz dos homens.
D. V. Exª. adm. e escravo
José de Souza Nunes”
Isto numa letrinha microscópica, indecifrável quase.
Maria esteve meditando muito tempo sobre a resposta que devia dar ao
estudante, com os olhos na parede onde esbatia a sombra da rede ao comprido.
Para não responder ficava-lhe mal, era uma falta de consideração. Devia responder
fosse o que fosse. E, nessa dúvida, lia e relia a carta numa inquietação que lhe
tirava o sono. Realmente! começava cedo a sua carreira amorosa e começava por
um aspirante a bacharel! Seria verdade aquilo ou o rapaz queria divertir-se à sua
custa? O Zuza parecia-lhe um bom moço, muito bem-educado, incapaz de seduzir
uma rapariga honesta, de costumes irrepreensíveis, refratário a pagodeiras... Às
vezes, porém, tinha cara de pedante com os seus óculos de ouro, com a sua flor na
botoeira, dizendo que dê, dê-me você isto, faça você aquilo, ora sebo!
Maria implicava com certos modos do rapaz.
É verdade que tinha fortuna, era filho dum homem de bem, dum coronel...
Mas...
E lá vinha o mas, e a dúvida não se desfazia.
Imaginava-se ao lado do Zuza, numa casinha muito bem mobiliada, com
cortinas de cretone na sala de jantar e um viveiro de pássaros — ele, de chambre e
gorro sentado na escrivaninha a fazer versos, feliz, despreocupado; ela com um
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robe-de-chambre todo branco, fitinhas na frente de alto a baixo, cabelo solto, a ler o
último romance da moda, recostada na espreguiçadeira, sem filhos... Que vida!
Ao mesmo tempo lembrava-se de que o Zuza podia lhe sair um marido muito
besta e casmurro, cuidando somente da papelada de autos e requerimentos, um
advogado com escritório e tabuleta à porta para fazer... nada! Ela, por outro lado, a
cuidar dos filhos, muito besuntada, da sala para a cozinha numa azáfama de
burguesinha reles. Boas!
E não assentava idéias, a mente que nem um rodopio, fantasiando situações
disparatadas, coisas impossíveis.
Leu outra vez a carta, analisando-a palavra por palavra, repetindo as frases à
meia voz. Aquela linguagem alambicada e dengosa quis-lhe parecer tosca demais
para ter sido do punho dum estudante de direito. — Que idiota! pensava; comparar
seus olhos com olhos de madona e sua voz com uma harpa eólia! — E, num
arrebatamento, levantou-se e guardou a carta na caixinha de fitas. — “Qual olhos de
madona! Qual harpa eólia, qual nada, seu besta!”
Daí a pouco também ressonava com a respiração leve como uma carícia.
O dia seguinte era domingo. Todos em casa do amanuense acordaram muito
bem-dispostos. Havia missa cantada na Sé. Espocavam foguetes e repicavam sinos.
Meninos apregoavam numa voz cantada a Matraca a 40 réis! — um jornaleco
imundo que falava da vida alheia e que por duas vezes trouxera sujidades contra
João da Mata. Maria do Carmo quis ver o que dizia a Matraca, apesar de o padrinho
ter proibido expressamente a entrada do pasquim em sua casa. Ali só lhe entrava a
Província, dissera ele; isso mesmo porque o José Pereira não exigia pagamento de
assinatura. O mais era uma súcia de papéis nojentos que só serviam para... — Maria
deu um pulo até a casa da viúva Campelo e aí pôde comprar a Matraca. O padrinho
estava no banho. — O Namoro do Trilho de Ferro! gritavam os vendedores. Maria
teve um palpite. Certo aquilo era com ela. Que felicidade o padrinho estar no banho!
Pagou ao menino, pedindo-lhe pelo amor de Deus que não gritasse mais o Namoro
do Trilho de Ferro. Abriu o jornal ansiosa. Que horror! Havia, com efeito, uma piada
sobre ela e o Zuza. Mais que depressa correu a mostrar à Lídia.
Estás vendo, menina? Lê isto aqui. E apontou com o dedo.
Eram uns versos de pé de viola que contavam o recente namoro do Zuza:
“A normalista do Trilho,
ex-irmã de caridade,
está caída pelo filho
dum titular da cidade.
O rapazola é galante
e usa flor na botoeira:
D. Juan feito estudante
a namorar uma freira...
Eis por que, caros leitores,
eu digo como o Bahia:
Falem baixo, minhas flores,
Senão... a chibata chia!...”
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Lídia achou graça na versalhada. Ela também já saíra na Matraca.
Um desaforo, não achas? perguntou a normalista indignada.
Que se há de fazer, minha filha? Ninguém está livre destas coisas no
Ceará moleque. Não se pode conversar com um rapaz, porque não faltam
alcoviteiros. Olha, eu aposto em como isto que aqui está saiu da cachola do
Guedes.
Que Guedes?
Ó mulher, o Guedes, um do Correio... Dizem até que está feito redator
principal da Matraca.
E que mal fiz eu a esse Guedes que nem sequer me conhece?
Eu te digo. O Guedes andou a querer namorar-me. Chegou a escrever-me
uma carta muito errada e piegas, pedindo uma entrevista... Que fiz eu? Ri-me muito
das asneiras do bicho, troceio-o a valer e mandeio-o pastar bem... Ora, o Guedes
sabe que nós somos muito amigas e talvez queira vingar-se indiretamente. Aí está o
que é, menina. Manda-o plantar couves e rasga esta baboseira, que isto não vale
senão nada.
Não vale nada, mas toda a gente lê e acredita, é o que é.
Sabem lá qual é a “normalista do Trilho”!
A propósito Maria contou as ocorrências da véspera, a carta do Zuza, a cólera
do padrinho, muito vexada.
Estavam à janela, em pé, frente a frente. D. Amanda andava para os fundos
da casa a mourejar. No fim da rua, do lado da Estrada de Ferro, uma locomotiva
fazia manobras, chiando, a deitar vapor fora. Chegou até a frente da casa da viúva,
soltou um guincho rápido e voltou estralejando sobre os trilhos.
...E os sinos a repicarem na Sé e girândolas de foguetes estourando no ar.
Chegavam espaçados sons de música que o vento trazia.
Não sei se deva responder, disse Maria dando a carta à amiga. Ele com
certeza vem hoje para o víspora...
De forma que tens um compromisso a satisfazer...
Compromisso?
Sim, porque quem cala consente. Aceitaste a carta, agora é responder.
Diz-lhe que o amas também e que desde já o consideras teu noivo. Nisso de amor
quanto mais depressa melhor. Eu pelo menos o entendo assim. Queres, eu faço a
minuta.
Eu, escrever para um homem?
Tola! Que crime há nisso? Eles não escrevem para nós? Olha, tolinha, não
sejas criança. O homem foi feito para a mulher e a mulher para o homem.
Mas...
Não tem mas nem meio mas. Decide-te a namorar o rapaz e deixa-te de
meninices. Tu é que tens a lucrar. O Zuza tem fortuna, está a formar-se e com mais
um ano pode ser teu marido e fazer-te muito feliz.
—O que é que esperas de teu padrinho, um sujeito estúpido e usurário como
um urso? Já não tens pai nem mãe e ele já fala em tirar-te da Escola. É muito
homem para botar-te a cozinhar. Não sejas tola!...
Lídia interrompeu-se para cumprimentar um cavaleiro que passava. Era o
Zuza montado num alazão reluzente ao sol, de cauda aparada e arreios de prata. O
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estudante trajava flanela e meias-botas de polimento, chapéu castor desabado, uma
grande rosa branca no peito, luva, rebenque, muito vistoso com seus óculos de ouro
e seu bigodinho retorcido para cima.
Fazia o costumado passeio matinal e lembrara-se de passar à porta do
amanuense. Cumprimentou rasgadamente a Campelinho. Maria ocultou-se
envergonhada atrás do postigo olhando por entre as gretas.
Adorável! fez Lídia. E tu ainda queres mais, hein, minha tola?
Como sentia não ser ela a querida do Zuza! Ambos com vinte anos de idade,
encarando a vida por um mesmo prisma: passeios a cavalo, toaletes de verão e de
inverno, como nos figurinos, com chácara no Benfica, um faetonte para virem à
cidade, vacas de leite... Um maná!
Tinha “o seu”, o Loureiro, mas o guarda-livros parecia-lhe muito casmurro,
muito indiferente a essas coisas de bom gosto, aos requintes da vida aristocrática
que ela ambicionava tanto. Queria-o mais por um capricho, porque não encontrava
outro homem em melhores condições que desejasse casar com ela. Sabia de sua
má fama e agarrava-se ao Loureiro como a uma tábua de salvação. Tudo menos
ficar para tia. Verdade, verdade, o Loureiro não era um sujeito ignorante e pobre que
lhe fizesse vergonha; mas não tinha certo aprumo, certa elegância no trajar;
aferrava-se à calça e ao colete branco, invariavelmente, e ninguém o demovia
daquele velho hábito. Entretanto possuía seu cabedal em casas e apólices da dívida
pública. Ao passo que o outro, o Zuza, sabia empregar seu dinheiro divertindo-se,
trajando bem, passeando como um príncipe. Uma simples questão de
temperamento.
Atira-te, minha tola. Aproveita enquanto o Brás é tesoureiro...
Que queres tu que eu faça?
Escreva logo essa carta e faze como eu: marca o dia do casamento. Assim
é que se faz. Quem pensa não casa, lá diz o ditado, e é muito certo.
A voz de D. Terezinha chamou a Maria do outro lado da rua. Era hora do
almoço. O amanuense estava apressado porque tinha de ir à praia, ao embarque do
conselheiro Castro e Silva que seguia para o Rio de Janeiro.
João da Mata almoçou às carreiras, como quem vai tomar o trem, e abalou,
enfiando-se no inseparável e já velho chapéu-chile.
Seriam onze horas pouco mais ou menos. Um mormação de fornalha abafava
os transeuntes que desciam e subiam a rua de Baixo a pé, esbaforidos.
No porto havia grande lufa-lufa de gente que embarcava e desembarcava
simultaneamente, bracejando, falando alto. A maré de enchente, crispada pela
ventania de sudoeste, num contínuo vaivém, alagava o areal seco e faiscante. Gente
muita ao embarque do conselheiro. Curiosos de todas as classes, trabalhadores
aduaneiros de jaqueta azul, guardas de Alfândega e oficiais de descarga com ar
autoritário, de fardeta e boné, marinheiros da Capitania, confundiam-se numa
promiscuidade interessante. Jangadeiros, arregaçados até aos joelhos, chapéu de
palha de carnaúba, mostrando o peito robusto e cabeludo, iam armando a vela às
jangadas. A cada fluxo do mar havia gritos e assobios. Um alvoroço! Jangadas iam e
vinham em direção do Nacional, que tombava como um ébrio, aproado ao vento.
Apenas quatro navios mercantes fundeados e uma canhoneira argentina. Reluzia
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em caracteres garrafais, pintadinhos de fresco na popa duma barca italiana
“Civita Vecchia”.
O vapor apitou pedindo mala. Era uma maçada ir a bordo com a maré cheia e
um vento como aquele. Demais o sol estava de rachar. Um carro parou à porta da
Escola de Aprendizes marinheiros: era o conselheiro, metido numa sobrecasaca
muito comprida, cheia de atenções. Já o esperavam os amigos receosos de que o
vapor não suspendesse sem “o homem”.
A música da Polícia, formada à porta do quartel, gaguejou o Hino Nacional e o
conselheiro, cheio de si, cortejando à direita e à esquerda, muito ancho, seguiu a
tomar o escaler da Alfândega.
Pílulas! fez João da Mata limpando a testa. Não vale a pena a gente se
sacrificar com um calor deste!
Lá adiante encontrou o Loureiro, que vinha de despachar uma fatura no
Trapiche, muito apressado com a sua calça branca lustrosa de gomas sem uma
dobra.
“Por ali?” — “É verdade, tinha ido a negócio.”
Que há de novo? tornou o Loureiro.
Nada. Vou aqui ao embarque do conselheiro.
Hás de ganhar muito com isto...
Que queres, filho? A política, a política...
Qual política, homem! Com um solão deste não havia quem me fizesse ir a
embarque de filho da mãe nenhum.
Uma lufada de poeira redemoinhou a dois passos dos interlocutores
derribando bruscamente o chapéu do amanuense, pondo-lhe a calva à mostra.
Com os diabos! vociferou João da Mata abaixando-se mais que depressa
para apanhar o seu chile que rodava sobre as abas numa disparada vertiginosa por
ali afora.
Fiau! fiau! Pega! pega! prorrompeu a garotada numa vaia estrepitosa de
gritos e assobios.
Canalha! resmungava o homem, enquanto o Loureiro escafedia-se daquela
situação grotesca, sacudindo com a ponta dos dedos a poeira do paletó, muito
calmo.
O conselheiro tinha chegado ao trapiche com o seu préstito oficioso de
amigos.
O amanuense encavacou deveras — “Diabos levem conselheiros e tudo!”
dizia ele mal-humorado, piscando os olhos desesperadamente por trás dos óculos
escuros, cobrindo a calva com um lenço para não constipar. E dali mesmo voltou à
casa maldizendo-se por haver deixado os seus cômodos por uma estopada inútil
daquela.
Dava meio-dia. À porta do quartel de linha um soldado soprava a todo pulmão
numa corneta muito bem areada.
João da Mata caminhava devagar, automático, como quem vai com uma idéia
fixa. Que séca! Podia muito bem estar em casa àquela hora, metido na sua camisola
fresca, de papo para o ar na rede, ao aconchego morno da afilhada, saboreando-lhe
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o cheiro bom das carnes; entretanto ali vinha ofegante como um boi e suado como
dois burros, todo emporcalhado de poeira, furioso. Não lhe contassem para outra. Já
tinha pensado mesmo em abandonar para sempre a política. Pílulas! Mal lhe
chegava o tempo para pensar na Maria do Carmo, naquela deliciosa boquinha
fresca e rosada, boa para a gente levar a vida inteira a beijar...
O Zuza tinha-lhe acordado o instinto; receava agora que a menina se
deixasse levar pelas gabolices do estudante e então lá se iam os seus belos projetos
águas abaixo.
Nunca se preocupara tanto com Maria do Carmo. Desde que o Zuza começou
a freqüentar a rua do Trilho não lhe saía mais da cabeça a afilhada. A própria D.
Terezinha por vezes tinha estranhado os seus modos para com a menina.
Achava a Teté uma mulher gasta: queria uma rapariga nova e fresca,
cheirando a leite, sem pecados torpes, a quem ele pudesse ensinar certos segredos
do amor, ocultamente, sem que ninguém soubesse... Estava farto do “amor
conjugal”. Nunca experimentara o contato aveludado de um corpo de mulher
educada, virgem das impurezas do século. E quem melhor que Maria do Carmo,
uma normalista exemplar e recatada, poderia satisfazer os caprichos de seu
temperamento impetuoso? Era sua afilhada, mas, adeus! não havia entre ele e a
menina o menor grau de consangüinidade, portanto, não podia haver crime nas suas
intenções... Se Maria houvesse de cair nas garras de algum bacharelete safado
fosse ele, João da Mata, o primeiro a abrir caminho...
Demais, argumentava de si para si, podia arranjar tudo sem que ninguém
soubesse. O segredo ficaria entre ele e a afilhada, inviolável como a sepultura de um
santo.
E ia parafusando num meio simples e natural de conquistar o coração de
Maria. — Toda a questão era de oportunidade.
Àquela hora a normalista arrastava ao piano a valsa Minha esperança, cuja
cadência punha uma monotonia irritante na quietação morna da rua do Trilho.
CAPÍTULO IV
O futuro bacharel em leis ou simplesmente o Zuza, como era conhecido em
Fortaleza o filho do coronel Souza Nunes, passava uma vida regalada, usufruindo
largamente a fortuna do pai avaliada em cerca de cem contos de réis. O coronel
franqueava a burra ao filho com uma generosidade verdadeiramente paternal.
Queria-o assim mesmo, com todas as suas manias aristocráticas e afidalgadas, com
os seus jeitos elegantes, arrotando grandeza e bom gosto, tal qual o presidente da
província de quem se dizia amigo.
“Cada qual com seu igual” doutrinava o coronel. O que não admitia é que o
filho se metesse com gente de laia ruim, que ele, coronel, nunca descera de sua
dignidade para tirar o chapéu ou apertar a mão a indivíduos que não tivessem uma
posição social definida. Aprendera isso em pequeno com o pai, o finado
desembargador Souza Nunes, homem de costumes severos, que sabia dar aos
filhos uma educação esmerada, quase principesca. O Zuza, dizia ele, não era mais
do que uma vergôntea digna desse belo tronco genealógico dos legítimos Souza
Nunes, tão nobres quanto respeitados no Ceará.
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Era um orgulho para o coronel ver o filho passar a cavalo, com o presidente,
alvo do olhar bisbilhoteiro do mulherio elegante, em trajes de montaria, roupa de
flanela, botas, chapéu mole desabado.
O Zuza dava-se muito com o presidente que também pertencia a uma alta
linhagem de fidalgos de São Paulo e fora educado na Europa: um rapagão alegre,
amador de cavalos de raça, ilustrado e amigo de mulheres.
As revelações da Matraca sobre o namoro do Trilho de Ferro deram que falar
à cidade inteira. Nas rodas de calçada o fato propalou-se imediatamente à guisa de
escândalo. A princípio ninguém sabia ao certo qual era a tal “normalista ex-irmã de
caridade”. Que havia de ser a Lídia Campelo afirmavam uns. Mas a Campelinho
nunca fora religiosa quanto mais freira. Afinal sempre se veio a saber a verdade e
espalhou-se logo que a afilhada do João da Mata estava com um namoro pulha mais
o estudante. Não era Lídia mas dava no mesmo, dizia-se: ambas estudavam na
mesma escola, eram dignas uma da outra.
E toda a gente dizia sua pilhéria, atirava seu conceito à boca pequena, com
risadinhas sublinhadas — pilhérias e conceitos que chegavam até aos ouvidos do
coronel Souza Nunes, percucientes, incisivos como ferroadas de maribondos. “—
Não era possível, pensava ele. O Zuza era incapaz de semelhante criancice; um
rapaz de certa categoria não se deixa iludir por uma simples normalista sem eira
nem ramo de figueira, uma rapariga sem juízo, filha de pais incógnitos, educada em
casa dum amanuense reles. Quem, o Zuza? Pois não viram logo a monstruosidade
do absurdo? Era uma calúnia levantada a seu filho. Que esta! Não faltava mais nada
senão ver o nome do rapaz em letra redonda estampado na Matraca, um jornaleco
imundo como uma cloaca!”
Morava na rua Formosa, numa casa assobradada e vistosa com frontaria de
azulejos, varandas, e dois ananases de louça no alto da cimalha, à velha moda
portuguesa.
O coronel gostava de passar bem, de “fazer figura”, e, até certo ponto,
revelava uma natureza delicada que não era indiferente ao aspecto exterior das
coisas; sabia mesmo aquilatar objetos de arte, escolher bric-à-bracs. No que
respeita a asseio ninguém o excedia. Era o que se pode chamar “um homem de
bons costumes”, um pouco orgulhoso e duma susceptibilidade a toda prova em
matéria de dignidade pessoal: irrepreensível e caprichoso na intimidade doméstica
como na vida pública.
Fazia gosto a sala de visitas, forrada a papel-veludo claro com ramagens
cinzentas, mobiliada com inexcedível graça, sem ostentação, sem luxo, mas onde se
notava logo certa correção no arranjo dos móveis, na colocação dos quadros, na
limpidez dos cristais.
Ao fundo, entre as duas portas altas e esguias que diziam para o interior da
casa, ficava o piano, um Pleyel novo, muito lustroso, sempre mudo, sobre o qual
assentavam estatuetas de biscuit. À direita, descansando sobre grandes pregos
dourados, o retrato a óleo do coronel com a sua barba em ponta, olhava para o
piano, muito sério, em simetria com o da esposa.
O corredor da entrada separava a sala de visitas do gabinete do Zuza que
ficava à esquerda. — “Não faltava mais nada!” repetia mentalmente o coronel,
estendido na espreguiçadeira de lona, pernas trançadas, defronte da varanda,
aparando as unhas.
Em casa usava calças brancas, paletó de seda amarelo e sapatos de entrada
baixa com flores no rosto de lã.
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Era hora do almoço, o Zuza não devia tardar. Ia falar-lhe decididamente;
aquela história do namoro não lhe cheirava bem. Talvez o filho tivesse mesmo a
estroinice pueril de desfrutar a rapariga.
Daí a pouco entrou o estudante. Vinha muito jovial, cantarolando o Bocácio:
Se acaso algum de nós
tiver por sina atroz
mulher que se não cale
que a toda hora fale...
E repetia muito alegre:
Trá lá lá lá... trá lá lá lá...
Vens muito alegre, hein, meu filho? interrompeu o coronel da sala.
Zuza tinha entrado para o gabinete e começava a despir-se.
Ah! meu pai estava aí?
E logo:
Trago uma novidade.
Vejamos...
Vou a Baturité com o presidente.
Ainda bem, ainda bem... fez o coronel num tom desusado, sem erguer a
cabeça.
Como ainda bem? inquiriu o estudante aproximando-se.
Apenas trocara o fraque por um paletó de brim branco.
Porque... porque... Eu precisava mesmo falar-te. Ora, dize, uma coisa:
leste o último número da Matraca?
Zuza franziu os sobrolhos desconfiado, com um risinho seco. — “Não tinha
lido a Matraca, não. Um jornaleco imoral que andava por aí? Não, não tinha lido. Por
quê?”
Que história é uma de namoro no Trilho de Ferro? Fala-se em ti, no teu
nome, numa normalista...
Cresceu o assombro do rapaz.
Eu?!... Meu pai está gracejando...
Juro-te que não. Mas olha, quem diz é a Matraca e alguém afirmou-me
particularmente que a rua está cheia...
E esta! fez o Zuza cruzando os braços admirado. Pois meu pai não vê logo
que isto é um gracejo de mau gosto, um canalhismo de província?
O que é certo é que não te fica bem a brincadeira.
Absolutamente não, e eu preciso saber quem é o autor do pasquim...
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A criada avisou que o almoço estava na mesa.
...Sim, continuou Zuza, vou informar-me, preciso saber...
Eis aí está por que fazes bem indo passar uns dias a Baturité.
E polindo as unhas, o coronel dirigiu-se para a sala de jantar, grave como um
apóstolo do bem, enquanto o filho ia desabafando suas cóleras contra a sociedade
cearense.
“Uma sociedade que lê a Matraca e gosta!”
No outro dia, com efeito, o futuro bacharel seguia no expresso para Baturité
em companhia do Dr. Castro, presidente do Ceará.
Lia-se na Província:
“Segue amanhã, pela manhã, com destino a Baturité, a fim de visitar a
importante fábrica Proença, o Exmo. Sr. Presidente da Província. Acompanham o
ilustre amigo do Ceará os nossos distintos amigos e correligionários Srs. Dr. José de
Souza Nunes e José Pereira, nosso colega de redação. S. Exª. pretende demorar-se
alguns dias naquela cidade.”
Maria do Carmo leu com surpresa a notícia da Província e não pôde conter
um gesto de despeito. Era desse modo que o Sr. Zuza estava doido por ela! Ir-se
embora sem ao menos lhe comunicar! Nem sequer deixara um bilhetinho, um cartão
com duas palavras, duas somente! Que custava escrever num pedaço de papel —
Vou e volto?
Zangara-se deveras, atirando a folha para um lado, trombuda, furiosa.
Estava tudo acabado, não falaria mais no Zuza, não lhe escreveria: que fosse
bugiar! Moças havia muitas no Ceará: que procurasse uma lá a seu jeito e ela por
sua vez trataria de arranjar noivo, mas noivo para casar, noivo sério, noivo de bem!
Entretanto, Maria não tinha feito reparo na despedida do Zuza, um soneto em
decassílabos, com sílabas demais nuns versos e de menos noutros. Adeus — era o
título e vinha na terceira página da Província. Depois é que viu por que a Lídia
mostrou-lhe.
Já estavas fazendo mau juízo do rapaz, hein? disse a Campelinho.
Certamente, confirmou Maria. Nem ao menos teve a lembrança de me
avisar!
Como querias tu que ele avisasse se ainda não lhe respondeste a carta?
Maria esteve pensando com o jornal na mão, lendo e relendo os versos, e,
meio arrufada meio risonha:
Embora! O dever dele era me participar. O homem é que faz tudo...
E na manhã seguinte, muito cedo, pulou da rede e foi no bico dos pés,
embrulhada no lençol, ver passar o trem através da vidraça.
A locomotiva disparou numa rapidez crescente, soltando rolos de fumo e
fagulhas que pareciam uma irrisão aos olhos da normalista. A sineta, num badalar
contínuo, acordava os moradores do Trilho, àquela hora ainda nos lençóis.
Maria viu passar a enfiada de vagões estralejando sobre os trilhos e esteve
muito tempo em pé ouvindo o silvo longínquo da locomotiva que ia, como uma coisa
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doida, sertão adentro! Começou então a sentir-se só; teve vontade de abrir num
choro histérico como se lhe houvessem feito uma grande injustiça. Voltou para a
tepidez do seu quarto e lá deixou-se ficar até sair o sol, com um peso no coração,
encolhida na rede, sem ânimo para levantar-se, desejando um querer que era vago,
extraordinário, que lhe punha arrepios intermitentes na pele. Que bom se o Zuza
estivesse ali com ela, na mesma rede, corpo a corpo, aquecendo-a com seu calor...
Àquela hora onde estaria ele? Talvez em Arronches...; não, já devia ter chegado a
Mondubi... Imaginava-o metido num comprido guarda-pó de brim pardo, tomando
leite fresco na estação, ao lado do presidente, tirando do bolso da calça um maço de
notas de banco, muito amável, rindo... Depois o trem apitava. Havia um movimento
rápido de gente que embarcava às pressas, e... lá ia outra vez por aqueles
descampados afora, caminho da serra que se via ao longe, rente com as nuvens,
como aquelas cadeias colossais de montanhas onde há gelos eternos e que na
geografia têm o nome de Alpes...
De repente lembrou-se:
“— E se o trem desencarrilhasse...?” Ia adormecendo quando lhe veio à
mente esta idéia. Sentou-se na rede, esfregando os olhos, como se tivesse
acordado de um pesadelo. “— Se o trem desencarrilhasse o presidente morreria
também...”
...Teve um consolo. Não, o trem havia de chegar em paz com todos os
passageiros. Espreguiçou-se toda com estalinhos de juntas e, maquinalmente,
deixou escapar um — ai! ai! — muito lânguido e prolongado.
Lá fora recomeçava a labuta quotidiana. A criada puxava água da cacimba; o
cargueiro de água potável enchia os potes; cegos cantavam na rua uma lengalenga
maçante, pedindo esmola numa voz chorada; vendedores ambulantes ofereciam
cajus... Havia um ruído matinal de cidade grande que desperta.
Nesse dia Maria do Carmo não foi à Escola Normal: que estava incomodada,
com uma enxaqueca muito forte.
João da Mata tomou-lhe o pulso, mandou que mostrasse a língua, muito
solícito, com cuidados de pai: — “Não era nada, uma defluxeira.” E largou-se para a
Repartição, palitando os dentes.
A Lídia, essa tinha liberdade plena em casa da mãe, ia à Escola quando
queria e, se lhe convinha, lá não punha os pés. Deixou-se ficar também com a
Maria. — Tinham muito que conversar.
Que saudades, hein? começou a Campelinho.
Estavam sós, na sala do amanuense. D. Terezinha tinha ido à casa da viúva
mostrar um corte de fazenda que o Janjão lhe comprara.
Maria, derreada na cadeira de balanço, fechou o volume que estivera lendo,
e, com um bocejo: — “É verdade, o diabo do rapaz não lhe saía da lembrança. Nem
um castigo... Mas estava muito desgostosa da vida, já andavam inventando
histórias, calúnias...”
Não te importes minha tola. Ora! ora! ora!... Isso a gente faz ouvidos de
mercador, e vai para adiante. A vida é esta, e tola é quem se ilude.
Não, Lídia, as coisas não são como tu pensas. No Ceará basta um rapaz ir
duas vezes à casa de uma moça para que se diga logo que o namoro está feio, que
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é um escândalo, e nós é que somos prejudicadas. “Ah! porque já não é mais moça,
porque é uma sem-vergonha” é o quem dizem...
Pois olha, esta aqui há-de namorar até não poder mais. Queres que te diga
uma coisa? Isso de casamento é uma cantilena...
E, num assomo de despeito, a Campelinho lembrou mulheres casadas que
tinham amantes e que viviam muito bem na sociedade; citou a mulher do Dr.
Mendes, juiz municipal. Estava ali uma que fora encontrada aos beijos com o José
Pereira, da Província, em pleno Passeio Público! Quem era que não sabia?
Ninguém. Entretanto freqüentava as melhores famílias da capital — era a Sra. D.
Amélia! Queria outro exemplo?
E abaixando a voz:
Aqui mesmo em casa o tens, minha tola. Ninguém ignora neste mundo que
D. Terezinha é amigada com teu padrinho. E tudo mais é assim, querida Maria. A
canalha fala de inveja, invejosos é o que não faltam nesta terra.
Maria prestava atenção, silenciosa.
Então, disse ela por fim, achas que devo continuar o namoro?
Que dúvida, mulher! Eu é porque já tenho o meu. Assim mesmo...
Maria sentiu uma pontinha de ciúme roçar-lhe o coração. Disfarçou com um
risinho seco.
Eu estive pensando, disse, caso o Zuza me pregue uma taboca...
Nada mais simples: prega-lhe outra casando-te com o primeiro bilontra que
aparecer. Amor com amor se paga...
Não, falemos sério...
Que queres tu que se diga? Eu cá não costumo enganar ninguém. Sou
muito franca. — Pão, pão, queijo, queijo...
Dão licença? disse uma voz fora, na rua.
Era D. Amélia, mulher do Dr. Mendes.
Maria foi abrir a rótula.
Oh! por ali?...
É verdade, meninas, venho morta de calor. Uf! que solão, que solão!
Lídia, muito expedita e pronta, ajudou a desatar o véu e a tirar as luvas.
Como estava a Teté? perguntou D. Amélia muito afogueada, tirando o chapéu
defronte do espelho. D. Amanda ia bem? E sentando-se:
Já sei que não foram hoje à Escola... Boa vida! Não há como ser moça.
Pois, meninas, venho duma séca. Fui ali à casa da costureira experimentar o meu
vestido de cetim...
Isso que é boa vida, disse a Campelinho: passeios, vestidos...
Maria tinha ido chamar a madrinha: que era um pulo.
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Qual passeios! Quem tem filhos pode lá passear?
D. Terezinha não se fez esperar. Entrou sacudindo os quadris, bamboleando-
se toda.
Ora viva! disse atirando-se nos braços de D. Amélia. Como vai, como tem
passado? Que milagre!
Agora todas falavam a um tempo, rindo, gabando-se.
Sabem quem esteve ontem conosco?... O Zuza. Diz que volta sábado de
Baturité. Gabou muito a Maria: que é uma cearense distinta, muito prendada, chique
a valer, um horror! Ao que parece temos casório...
Qual casório! fez Maria com um rubor nas faces. Invenções...
Não havia de ser contra a minha vontade, disse D. Terezinha. Seria até
uma felicidade. Deus o permita...
Falaram de modas.
D. Terezinha alardeou o seu rico vestido de cetim, que a viúva Campelo
achara de muito bom gosto.
D. Amélia queixou-se do marido: um homem sem gosto, um mosca-morta,
muito desleixado, com venetas de doido. Ela até já se aborrecia, porque o Mendes
tinha o mau costume de beber aguardente; às vezes chegava tropeçando, com a
língua pegada, sem poder falar. Vestidos ela via-os de ano em ano. Um indiferente,
o Mendes. Sofria de uma erisipela na perna direita que o proibia de trabalhar meses
inteiros...
Pois olha, disse D. Terezinha, o meu faz-me as vontades, mesmo porque
eu não sou mulher de muitos me-deixes. Todos os meses é pra ali um vestido. Diabo
é quem os poupa! Também, minha filha, dou-lhe toda liberdade, fora e dentro de
casa. Felizmente não tenho queixa dele.
Lídia pediu a D. Amélia que tocasse alguma coisa, a Juanita, que era a valsa
da moda.
A propósito D. Amélia perguntou se já tinham ido ao teatro. Que fossem, que
fossem. O grupo lírico da Naguel estava fazendo sucesso. A Belle-Grandi era um
mulherão capaz de arrebatar uma platéia inteira. Que modos, que requebros!
Domingo ia a Juanita pela última vez em benefício da Aliverti. Que fossem. Era uma
opereta interessantíssima, por sinal tinha sido representada cem vezes na Corte! A
beneficiada ia fazer o papel de Juanita.
Eu é para que tenho jeito, atalhou a Campelinho, é para o teatro. Deve ser
uma vida tão cheia de sensações a das atrizes... Vestem-se de todas as formas,
recebem presentes ricos, jóias, anéis de brihante... são aplaudidas e ainda por cima
ganham dinheiro à ufa. Eu já disse à mamãe, mas ela não quer por coisa alguma,
diz que é uma vida imoral... Tolice! Há tanta gente boa nos teatros... A última vez
que fui ao circo chileno fiquei encantada pela Estrela do Mar!
É o que você pensa, menina, disse D. Amélia. Essas pobres mulheres
fazem um ror de sacrifícios... Sabe Deus quanto lhes custa uma noite de espetáculo!
Acabam quase sempre miseráveis, coitadas, nalgum quarto de hotel, a esmolas.
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30
Enquanto são moças ainda, ainda encontram quem lhe estenda a mão, porém,
depois, morrem por aí em qualquer pocilga, sem um real para a mortalha. Tibis,
menina, nem se lembre de tal coisa!
Maria, a um canto do sofá, pensava no estudante, perdida num labirinto de
reflexões, com uma languidez no olhar vago. O Zuza preocupava-a como um sonho
d’ouro. Começava a sentir o que nunca sentira por homem algum, certo desejo de
ter um marido a quem pudesse entregar-se de corpo e alma, certa sentimentalidade
sem causa positiva, uma como abstração do resto da humanidade. E quando D.
Amélia, sentando-se ao piano, começou a tocar a Juanita, veio-lhe um vago e
esquisito desejo de ir-se pelo mundo afora nos braços do “seu” Zuza, rodopiando
numa valsa entontecedora até cansar... Via-se nos braços dele, arquejando ao
compasso da música, quase sem tocar o chão, voando quase leve como um floco de
algodão, como uma pena, como uma coisa ideal e aérea... E lembrava-se do
padrinho. Ah! o padrinho queria tanto mal ao Zuza... Doravante ia agradar muito a
João, tratá-lo com mais carinho, dar-lhe muitos cafunés, fazer-lhe todas as vontades,
adulá-lo, a fim de que ele não ralhasse por causa do estudante. Que tola não ter
escrito logo ao Zuza, àquele Zuza que era agora a quantidade constante de seus
cálculos, a preocupação única de seu espírito, o seu alter ego!
Sim, porque de resto, ela não havia de ser nenhuma freira que ficasse por aí
solteirona, sempre casta como uma vestal.
A Lídia tinha razão — a mulher fez-se para o homem e o homem para a
mulher. Era sempre melhor aceitar a cartada que se lhe oferecia do que entregar-se
aí a qualquer caixeiro de armarinho, a qualquer lojista usurário e safado. Ao menos o
Zuza tinha dinheiro e posição, era um rapaz conceituado. Comparava-se com a Lídia
e sentia-se outra, muito outra, noiva de um moço elegante, estimada, querida por
todos. Ninguém se lembraria, depois, de sua origem humilde, todo o mundo a
respeitaria como esposa do Sr. Dr. José de Souza Nunes! Começava mesmo a
sentir uma grande afeição pelo Zuza.
As últimas notas do piano produziram-lhe uma comoçãozinha, uma ponta de
saudade sincera, um arrepio na epiderme. E, levantando-se muito desconfiada, foi
juntar-se às outras que palravam por quantas juntas tinham.
A voz de Campelinho timbrava muito fina e metálica, traduzindo todo um
temperamento nervoso e irrequieto.
Acharam deliciosa a valsa da Juanita. Maria também deu o seu parecer: que
era linda, que ia ensaiá-la. Falavam alto, numa intimidade de amigas velhas, sem
pensar nas horas que iam passando rapidamente.
Fazia sombra na calçada. Pela janela aberta entrava uma poeira sutil que
punha uma camada muito tênue e pardacenta no verniz gasto dos móveis. Vinha lá
de dentro, de envolta com o fumaceiro da cozinha, um cheiro gorduroso e excitante
de guisados.
Deram três horas.
Jesus! fez D. Amélia erguendo-se admirada. Três horas! Vou-me
chegando, meninas.
Agora fique para jantar, solicitou D. Terezinha. Nada de cerimônia, o
Janjão não tarda, é comida de pobre, mas sempre se passa...
Ora fique, Jesus!
Não Tetezinha, de minha alma, não posso, o Mendes me espera, aquilo é
um estouvado. Vim somente para pedir um favorzinho, mas é segredo...
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Oh! filha...
Entraram as duas para a sala de jantar. A Mendes pediu água, e, dando
estalinhos com a língua, acariciando a mão de D. Terezinha, disse muito baixo,
quase ao ouvido, engrossando a voz, que precisava de dez mil-réis para pagar a
costureira e vinha pedir-lhos até o fim do mês. A Teté não imaginava: tinha em casa
o essencial para a feira do dia seguinte! O Mendes pouco se importava que
houvesse ou não dinheiro... Tivesse paciência, sim? Pagava, sem falta, no fim do
mês.
Disse que os meninos andavam descalços, que as despesas eram muito
grandes, alegou o preço da carne... Um horror! Não se podia num tempo daquele
comer com pouco dinheiro. Não sobrava nem para um vestido!
Também estava muito “quebrada”, disse D. Terezinha compungida. O Janjão
tinha feito um ror de despesas naquele mês; dava graças a Deus quando lhe vinha
um dinheirinho do Pará, de rendas... Só ao velho Teixeira, um que emprestava
dinheiro a juros, deviam duzentos mil-réis. Em todo caso sempre ia ver se arranjava
pra cinco mil-réis. Era um instantinho.
Foi depressa à alcova, abriu com estrondo a gaveta da cômoda e daí a pouco
voltou com uma nota de 5$000, muito velha e ruça, quase em frangalhos, que
entregou à outra. Era só o que tinha para servi-la.
Muito obrigada, minha santa, não sabe quanto lhe agradeço... No fim do
mês, sem falta.
E guardando o dinheiro na velha bolsinha de couro da Rússia:
Agora deixe-me ir.
Por que não fica para jantar, insistiu D. Terezinha. O Janjão está
chegando, mande um recadinho ao Dr. Mendes.
Qual, filha, não posso. O Mendes é muito enjoado; fica para outra vez,
sim?
Beijaram-se depressa e a mulher do juiz municipal retirou-se com seu passo
miudinho, arrepanhando o vestido.
Apareçam, hein? disse da rua. Amor com amor se paga...
E desapareceu, como um foguete, na esquina.
Às quatro horas entrou o amanuense com a papelada debaixo do braço,
muito suado, assobiando a Mascotte.
A Campelinho tinha se escapulido: que eram horas de jantar.
Maria do Carmo sentara-se ao piano e ensaiava a Juanita.
D. Terezinha, essa andava para dentro, às voltas com a cozinheira, provando
as panelas, ralhando.
João apenas sacudiu os papéis sobre o sofá, foi direito à afilhada.
A santa está tocando a Juanita? Que mimo, Jesus! Como se pode ser
bonita assim!
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E sem dar tempo a Maria de defender-se, pôs-lhe um grande beijo na face. A
normalista sentiu um braseiro no rosto ao contato da barba espinhenta do
amanuense, e um bafo insuportável de álcool tomou-lhe as narinas. Era a primeira
vez, depois que saíra da Imaculada Conceição, que o padrinho lhe beijava em cheio
na face. O amanuense tinha-se aproximado devagarinho, de mãos para trás, e, de
repente, tomando-lhe a cabeça entre as mãos fedorentas a cigarro, beijou-a perto da
orelha, continuando cinicamente a assobiar.
Ela apenas pôde dizer — padrinho! agarrando-se à cadeira de mola. Ficou
muito séria, a limpar o rosto com a manga do casaco. Ah! mas dentro, nas
profundezas da sua alma teve um ódio imenso àquele homem nojento que abusava
de sua autoridade sobre ela para beijá-la! Fosse outro, ela teria correspondido com
uma bofetada na cara... Mas que fazer? Era seu padrinho, quase seu pai, devia
aturá-lo, tinha obrigação de submeter-se, porque estava em sua casa, comia de
seus pirões, e o papai lhe pedira muito que o respeitasse. A princípio até o estimava,
não o achava mau completamente; agora, porém, que uma espécie de instinto
irresistível a impelia para o Zuza, agora que o estudante ocupava um lugar no seu
coração, enchendo-o quase, o padrinho ia-se-lhe tornando repugnante e
desprezível. Não podia chegar-se a ele, vê-lo de perto, encará-lo frente a frente, sem
um profundo e oculto frenesi. Um homem que não cuidava dos dentes, que não se
banhava, um bêbado!
Esteve folheando o livro de músicas automaticamente, sem se mexer, sem
dar palavra, esperando que João se retirasse da sala. João, porém, bateu o postigo
com força, cambaleando, dando encontrões nos móveis, aproximou-se outra vez da
afilhada e, num movimento abrutalhado, abraçando-a por trás, curvando-se para a
frente, sobre ela, chimpou-lhe outro beijo, agora na boca, um beijo úmido, selvagem,
babando-a como um alucinado...
Maria quis gritar sufocada, mas o amanuense, tapando-lhe a boca, ameaçou:
Nada de gritos, hein! nada de gritos... Eu sou seu padrinho, posso lhe beijar onde
e quando quiser, está ouvindo? Nada de gritos!
E Maria, com os lábios muito vermelhos, como a polpa de uma fruta,
debruçada sobre o piano, desandou a chorar nervosamente.
João da Mata tinha bebido sofrivelmente na bodega do Zé Gato onde
costumava aquecer os pulmões ao voltar da Repartição. Nesse dia excedeu-se,
tomando em demasia, porque já lá estava o Perneta, um dos correios, que usava a
muleta, que também gostava da pinga e escrevia versos para o Judeu Errante.
Num momento deram cabo duma garrafa em cujo rótulo lia-se Reclame
atraente como visgo: Cumbe legítima!
E que loquacidade! Falaram por três deputados brasileiros sobre poesia e
política.
O Perneta, sujeito pretensioso e pernóstico, metido a literato, falando sempre
com certo ar dogmático, ventilou uma questão de literatura cearense — Que não
tínhamos poetas, disse; o que havia era uma troça de malandros e de pedantes
muito bestas, que escrevinhavam para a Província coisas tão ruins que até faziam
vergonha aos manes do glorioso José de Alencar; uma súcia de imitadores que se
limitavam a copiar os jornais da Corte.
Na sua opinião o Ceará só possuía um poeta verdadeiramente inspirado —
era Barbosa de Freitas. Esse sim, cantava o que sentia em versos magistrais, dignos
de Victor Hugo. Conhecera-o pessoalmente. Um boêmio! Fazia gosto ouvi-lo. Que
eloqüência, que verve, que talento! Sabia de cor muitas poesias dele, mas nenhuma
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se comparava ao Êxtase, “esse poema de amor” que valia por todas as poesias de
Juvenal Galeno. O João queria que recitasse?
Recita lá! fez o amanuense emborcando o cálice.
E o Perneta, com voz cavernosa, os cotovelos sobre a mesinha de ferro
pintada de amarelo, recitou de um fôlego o Êxtase:
Quando, às horas silentes da noite,
Doce flauta descanta no ar,
Quando as vagas soluçam baixinho
Sobre a praia que alveja o luar.
Terminou cansado, com um acesso de tosse, cuspinhando para o lado.
Sim, senhor! fez João da Mata com um murro na mesa. Isto é que é ser
poeta!
“Queriam alguma coisa?” veio perguntar o caixeiro, um rapazinho magro,
doente, com olheiras.
Não, menino, disse o amanuense; está acesa a lanterna, por ora. Foi
entusiasmo.
Estavam no fundo da bodega, numa saleta escura, sem saída por trás, com
as paredes encardidas, úmidas, cheirando a cachaça, onde os fregueses tomavam
bebidas: “Somente os fregueses de certa ordem”, prevenia o Zé Gato.
Pois é isto, continuou o Perneta. O pobre Barbosa de Freitas acabou como
o grande Luís de Camões, na enxerga dum hospital, e nisto, penso eu, está a sua
maior glória.
Apoiado!
E o que se vê hoje? Pedantismo somente. Os poetas de hoje usam fraque,
gravatas de seda e polainas, escrevem crônicas elegantes, fazem política.
Os Álvares de Azevedo e os Barbosa de Freitas são gênios que aparecem de
século em século, como certos cometas, no céu da literatura!
Que tal achas o Zuza como poeta? perguntou o amanuense.
Não me fales em semelhante gente. Aquilo é pior do que um cano de
esgoto, homem. Quem chama o Zuza de poeta não sabe o que é ser poeta, nunca
leu nosso Barbosa de Freitas. O Zuza emporcalha o papel — nada mais. Aquilo só
presta mesmo para capacho do presidente.
A conversa encaminhou-se para a política e João da Mata tomou a palavra.
— Que a política era a desgraça do Ceará; que estava cansado de trabalhar
gratuitamente para a política. O que queria agora era dinheiro para acabar de
levantar uma casinha no Outeiro.
E que tal o presidente? perguntou o Perneta. Achas que fará alguma coisa
em benefício do Ceará?
Homem, como sabes, eu sou governista, porque infelizmente sou
funcionário público, mas entendo que o Sr. Dr. Castro é um grandíssimo pândego.
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E noutro tom, limpando os óculos:
Nós precisamos é de homens sérios, seu Perneta, nós queremos gente
séria!
Contou então que na seca tinha ganho muito dinheiro à custa dos cofres
públicos; que fora comissário de socorros, e que os presidentes do Ceará eram uns
urubus que vinham beber o sangue do emigrante cearense.
Tinha assistido a muita ladroeira na seca de 77.
Aqui pra nós, acrescentou cauteloso, abaixando a voz, o atual presidente
não é — justiça lhe seja — um homem sem juízo, um idiota, um leigo, mas, a
continuar como vai, forçando a emigração para o sul, dentro de pouco transforma
esta terra numa espécie de feitoria de São Paulo. É embarcar muita gente para o
sul, seu compadre! Já lá foram quatorze mil e tantos! Isto é despovoar o Ceará, isto
é fazer pouco caso do Ceará, c’os diabos!
É bem feito! disse o Perneta, é muito bem feito para não sermos bestas.
Isto é uma terra em que os estranhos fazem o que querem e ninguém protesta,
ninguém reage. Nós só sabemos ser maus para nossos patrícios.
Mas olha que o Cearense tem comido o couro ao homem...
Qual comido o couro! O povo é que devia dar uma lição de mestre ao
governo, a este governo sem patriotismo e sem critério! E com esta me vou, que isso
de política fede... Queres mais alguma coisa?
Olha que demos cabo duma garrafa! Nem mais uma gota. Que horas tens?
O outro puxou um relógio de plaquê desbotado, dentro duma capa de
camurça, e erguendo-se:
Quatro menos cinco minutos. Safa! O tempo voa! Ó Zé, bota na conta isto:
uma garrafa de branca.
Já cá está, acudiu o Zé Gato, muito sujo, com um dedo amarrado num
pano preto, o lápis detrás da orelha, arrastando os chinelos.
...Na conta do Perneta, explicou João da Mata.
E saíram pisando em falso, por entre fardos de carne-seca e caixas de
cebola.
Ó João, perguntou na rua o aleijado, a menina casa sempre com o tipo?
Quem, a Maria?
Sim.
Casa, mas há-de ser com o diabo! Sujeitos daquela ordem não me entram
em casa...
Mas olha que é um casamentão!
Nem que ele viesse coberto de ouro num palanque de diamantes. Ela só
há-de casar com quem o padrinho quiser. E adeusinho, menino, adeusinho.
Separaram-se.
Passava um enterro caminho do cemitério. Quatro gatos-pingados, de preto,
conduziam o caixão cujos galões de fogo reluziam ao sol. Pouca gente
acompanhando: uns dez homens cabisbaixos, taciturnos, de chapéu na mão,
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marchavam a passo e passo. Na frente caminhava um padre, de estola e sobrepeliz,
olhando para os lados, indiferente, mais um menino de coro de batina encarnada
carregando a cruz.
O sino da Sé dobrava a finados melancolicamente. Gente chegava às janelas
para ver passar o préstito.
De quem é? Quem morreu? perguntava-se com mistério.
A terra lhe seja leve, fez o Zé Gato abanando a cabeça com um ar triste.
João da Mata parou à beira da calçada afagando a pêra com os dedos magros e
compridos, nervoso. — Quem morreria? pensava. — E, assim que o préstito passou,
foi andando devagar, cabeça baixa, equilibrando-se.
No outro lado da rua o Romão, o negro Romão, que fazia a limpeza da
cidade, passava muito bêbado, fazendo curvas, de calças arregaçadas até os
joelhos, peito à mostra, com um desprezo quase sublime por tudo e por todos,
gritando numa voz forte e aguardentada:
Arre corno!... Um garoto atirou-lhe uma pedra.
Mas o negro, pendido pra frente, ziguezagueando, tropeçando, encostando-se
às paredes, torto, baixo, o cabelo carapinha sujo de poeira, pardacento, repetia,
repetia insistentemente, alto e bom som, o estribilho que todo o Ceará estava
acostumado a ouvir-lhe — Arre corno! E que repercutia como uma verdade na
tristeza calma da rua.
CAPÍTULO V
Um tédio invencível, um desânimo infindo foi se apoderando de Maria do
Carmo a ponto de lhe alterar os hábitos e as feições. Começou a emagrecer, a
definhar, enfadando-se por dá cá aquela palha, maldizendo-se. Tudo a contrariava
agora, tinha momentos de completo abandono de si mesma, o mais leve transtorno
nos seus planos fazia-lhe vontade de chorar, de recolher-se ao seu quarto e
desabafar consigo mesma, sem que ninguém visse, num choro silencioso. Estava-se
tornando insociável como uma freira, tímida e nervosa como uma histérica. Ia à
Escola para não contrariar os padrinhos, para evitar desconfianças, mas o seu
desejo, o seu único desejo era viver só, completamente só, numa espécie de
deserto, longe de todo ruído, longe daquela gente e daquela casa, num lugar onde
ela pudesse ver o Zuza todos os dias e dizer-lhe tudo o que quisesse, tudo o que lhe
viesse à cabeça. O ruído que se levantou em torno de seu nome incomodava-a
horrivelmente, como o zumbir de uma vespa enorme que a perseguisse
constantemente. — Que inferno! Todo o mundo metia-se com a sua vida, como se
fosse um grande erro ela casar com o Zuza! Era melhor que fossem plantar batatas
e não estivessem encafifando-a. Havia de casar com o Zuza, porque queria, não era
da conta de ninguém, seu coração era livre como as andorinhas. Oh!...
Mas, menina, quem diz o contrário? perguntava a Campelinho. Eu sempre
te aconselhei que o melhor partido era aceitar o amor do estudante.
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Não era a Lídia, eram as outras, as invejosas, as brutas, que nem sequer
sabiam conjugar um verbo. Estava cansada de ouvir pilhérias e risinhos tolos, mas à
primeira que lhe dissesse tanto assim (e indicava o tamanho da unha), à primeira
que abusasse da sua paciência, ela, Maria, saberia responder na ponta da língua.
Umas namoradeiras que se punham a dar escândalos com os estudantes do Liceu,
umas sem-vergonhas! Havia de mostrar!
Ela é que era uma tola, dizia a Lídia; as normalistas falavam de invejosas;
mandasse-as plantar favas. Cada qual namora com quem quer, e, demais, não era
nenhuma admiração a Maria casar com o Zuza. Por que ele era rico e ela pobre?
Muito obrigada! Napoleão I tinha-se casado com uma simples camponesa, e, mais,
era um imperador!
E Maria do Carmo passava noites sem dormir, a pensar no futuro bacharel,
retratando-o na imaginação, amando-o de longe. Havia já seis dias que ele seguira
com o presidente, num domingo.
Que custo, que viagem sem fim! Aquela demora impacientava-a. Já era
tempo de terem voltado...
Todos os dias, à noitinha, ia esperar a Província, na janela, a ver se
encontrava alguma notícia dos excursionistas.
Mas, nada!
No domingo seguinte, porém, a folha oficial noticiou que “os ilustres touristes
deviam regressar à capital no dia imediato.
Oito dias! Tê-la-ia esquecido? Oito dias na serra, tomando banho de
cachoeira, passeando a cavalo, caçando, divertindo-se — que excelente vida! —
Maria do Carmo sentiu uma alegria deliciosa ao saber que daí a vinte e quatro horas
o Zuza estaria de volta, mais amável talvez, mais nutrido, mais gordo e mais bonito,
contando-lhe as minudências da viagem. Agora, sim, conversaria com ele,
perguntar-lhe-ia se gostara da serra, se tencionava partir logo para o Recife, se
pretendia casar no Ceará...
Nessa noite fez-se muito boa para o padrinho, chamou-o “padrinhozinho”,
acariciou-lhe os bigodes, alisou-lhe o cabelo, sem dar a entender o seu grande
contentamento, a sua grande felicidade. Durante o víspora esteve perto dele,
acompanhando-lhe o jogo, lembrando quando ele esquecia de marcar um número,
dando-lhe cafunés no alto da cabeça, com uma solicitude ingênua.
Quando os habitués do víspora se retiraram, João da Mata chamou a afilhada
à alcova, e, muito em segredo, como se fossem velhos namorados, pediu-lhe um
beijo na “boquinha”. Maria ofereceu-lhe os lábios com uma passividade de escrava,
sem a menor resistência, pondo-se nos bicos dos pés, porque João era muito alto, e
deixou que ele os sugasse em dois tempos, às pressas, antes que viesse D.
Terezinha.
Grande foi a admiração e a luxúria do amanuense. Maria entregara-se-lhe
sem um grito, sem um esforço! E suspendendo-a pela cintura, num ímpeto de
carnalidade indomável, apertou-a contra si, com força, rilhando os dentes, nervoso,
bambas as pernas, o coração aos pulos; mas soltou-a logo, D. Terezinha ali vinha
pelo corredor, arrastando os velhos sapatos achinelados. João pôs-se a assobiar, de
mãos para trás.
Estavam jogando a sério? perguntou a mulher.
Não. Por quê?
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Tão calados!...
Querias tu que estivéssemos a gritar como doidos? fez o amanuense ainda
trêmulo da comoção, enquanto Maria, sem dizer palavra, disfarçava na janela
olhando o céu.
D. Terezinha começara a desconfiar das intenções de João da Mata. Via-o
agora muito babado pela Maria, convidando-a sempre para junto de si, perseguindo-
a mesmo e notava que a rapariga ultimamente já não era a mesma para ele, evitava-
o, fugia de sua presença, esquivava-se como uma gatinha corrida pelo macho.
Um dia, vendo-a triste a um canto, perguntou-lhe o que tinha. Maria
conservou-se calada e séria, sem erguer a cabeça. D. Terezinha quis atribuir aquele
estado à ausência do Zuza, mas notou que havia no olhar da afilhada um como
ressentimento novo, de momento. Nesse dia, justamente, João esbravejara muito
contra a rapariga, ameaçando-a espancar se ela ousasse “pensar” no estudante.
Desde então começaram as suspeitas de D. Terezinha que conhecia certas
tendências instintivas de João. — De certo alguma coisa se passava entre eles.
Esses sobressaltos, essas arrelias... — Entretanto, deixava as coisas no mesmo pé,
sem dizer nada. Talvez fosse desconfiança...
E o mais curioso é que João agora tinha rusgas consecutivas com a mulher,
sem motivo, por ninharias, ao voltar da Repartição ou pela manhã, antes de se ir.
Um belo dia rompeu deveras. João sentiu logo o sangue subir-lhe à cabeça,
e, numa excitação violentíssima, num daqueles ímpetos de raiva que lhe eram tão
comuns devido à sua natureza irascível, ao seu temperamento bilioso, desandou
furioso contra D. Terezinha, arremetendo com a mão fechada, fulo de cólera. —
Naquela casa quem mandava era ele, ficasse sabendo! Não aturava desaforos de
mulher alguma quanto mais dela que não tinha nada com a sua vida!
E fique você sabendo, acrescentou com a sua vozinha estridente, dando
murros na mesa. Fique você sabendo que uma mulher amigada é como se fosse
uma fêmea qualquer, ouviu? Se duvidar ponho-lhe no olho da rua!
Palavras não eram ditas, D. Terezinha saltou como uma fera congestionada,
os olhos acesos de um fulgor fosforescente, desesperada, possessa, os braços em
arco e as mãos nas ilhargas:
Você o que quer sei eu, seu cachorro! Você quer é abusar da menina e
plantar-lhe um filho no bucho, seu grandis...
Não acabou a palavra, porque o amanuense, ferido no seu amor-próprio, na
sua autoridade de chefe da casa, cego, tresvairado, encheu-lhe a boca com uma
formidável bofetada que fê-la rodar.
Maria ficou perplexa, cosida à janela, muito trêmula, sem saber o que fizesse,
muda, como petrificada. Nos seus magníficos olhos cor de azeitona perpassou a
sombra duma desgraça. O padrinho tinha enlouquecido, pensou. E um pavor infantil
tomou-a toda.
Mal acordada dos efeitos da agressão, titubeante, manquejando com a mão
no queixo, D. Terezinha foi estender-se lá dentro da alcova, soluçando tão alto que
se ouvia fora, na rua.
Defronte, em casa da viúva Campelo, estava formada a panelinha do costume
— o Loureiro, a viúva e a afilhada.
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Eram quase nove horas da noite.
A Lídia com um pulo veio saber, muito curiosa, o que sucedera, tinha ouvido
choro... Se precisassem alguma coisa...
Mas o amanuense tranqüilizou-a: que não era nada; coisas de mulher, coisas de
mulher...
A Campelinho compreendeu que se tratava de assuntos íntimos e rodou nos
calcanhares. — Não era nada, era o doido do amanuense que andava aos
pontapés.
Gente canalha! fez o guarda-livros inalterável. Que educação, que fina
educação, recebia-se naquela casa!
Logo no dia seguinte à chegada do Zuza — uma segunda-feira luminosa de
outubro, muito azul no alto, com irradiações no granito das calçadas e uma aragem
insensível quase a arrepiar a fronde espessa dos arvoredos da praça do Patrocínio
— Maria do Carmo foi recebida na Escola Normal com um chuveiro imprevisto de —
parabéns — que as normalistas lhe davam à guisa de presentes de ano.
Parabéns! Parabéns! repetiam arrastando os pés para trás, abrindo alas, como se
cortejassem uma princesa. — Tinham combinado saudá-la pela chegada do Zuza
com esse espírito irrequieto de colegial despeitado que se apraz em chacotear outro,
e talvez com uma ponta de inveja a mordiscá-las por dentro.
A praça permanecia numa quietação abençoada, com os seus renques de
mungubeiras muito sombrias, verde-escuras e eternamente frescas, a desafiar,
frente a frente, a pujança outonal dos cajueiros em flor que os liceístas castigavam a
pedradas.
Meninos apregoavam numa voz clara e vibrante:
Loteria do Pará, 30 contos!
O edifício da Escola Normal, a um canto do quadrilátero, pintadinho de fresco,
cinzento, com as janelas abertas à claridade forte do dia, tinha o aspecto alegre
duma casa de noivos acabada de caiar-se.
Maria estava radiante! Que extraordinária alegria infiltrava-se-lhe na alma,
que excelente disposição moral! Acordara mais cedo que nos outros dias, como se
tivesse de ir a alguma festa matinal, a algum passeio no campo, espanejando-se
toda numa delícia incomensurável, feliz como uma ave que solta o primeiro vôo. Mas
ao entrar na Escola desapontou deveras! Seriam onze horas. O diretor ainda não
havia chegado. Raparigas de todos os tamanhos, trajando branco, azul e rosa,
conversavam animadas de livro na mão, formando grupos, rindo, no vestíbulo que
separava a sala de música do gabinete de ciências naturais, no pavimento superior.
Maria entrou vivamente alegre, de braço com a Lídia, dando — bom-dia! — às
colegas, uma bonita orquídea no peito, toda de branco, apertada por uma cinta.
Mas, a sua delicada susceptibilidade estremeceu ante a insólita manifestação que se
lhe fazia, e uns tons de rosa desmaiados, — um ligeiro rubor — coloriram-lhe o
moreno-claro das faces. — “Aceitava os parabéns, como não? Muito obrigada,
muitíssimo obrigada! Queriam debicá-la? Corujas! Fossem debicar a avó!”
Uma gargalhada irrompeu do grupo indiscreto, clamorosa e prolongada.
Meninas! Fez a Lídia. Isso não são modos!
Olha a baronesa!
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Como está grande!
Sua incelência...
Maria a custo pôde abafar a raiva que lhe sacudiu os nervos. Sentou-se à
varanda que dizia para uns terrenos devolutos do lado de Benfica, mordiscando a
pele dos beiços, trombuda, cara fechada, a olhar o arvoredo com um ar afetado de
absoluta indiferença.
Continuava o ruído. Havia um jogo contínuo de ditinhos picantes
acompanhados de risadinhas sublinhadas — Uma queria um botão de flor de
laranjeira, da grinalda, outra desejava apenas um copito de aluá, essa outra
contentava-se com um beijo na “noiva”, aquela queria ser madrinha do “primeiro
filho”...
Começaram a atirar-lhe bolinhas de papel.
Maria marcava compasso com o pé, furiosa, sem ver nada diante dos olhos.
Já basta! disse a Lídia abrindo os braços como para afastar as outras.
Tudo tem limite. Vocês estão se excedendo...
Umas ignorantes! saltou Maria acordando. Umas idiotas que querem levar
a gente ao ridículo por uma coisa à toa. Ainda hei de mostrar!...
O diretor! o diretor! veio avisar a Jacintinha, uma feiosa, d’olho vazado,
com sinais de bexiga no rosto, e que estava acabando de decorar alto a lição de
geografia.
Foi como se tivesse dito para um bando de crianças traquinas: — Aí vem o
tutu!
Houve uma debandada: umas embarafustaram pela sala de música, outras
pela de ciências, outras, finalmente, deixaram-se ficar em pé, lendo a meia voz muito
sérias. Fez-se um silêncio respeitoso, e daí a pouco surgiu no alto da escada a
figura antipática do diretor, um sujeito baixo, espadaúdo, cara larga e cheia com uma
pronunciada cavidade na calota do queixo, venta excessivamente grande e chata
dilatando a um sestro especial, cabelo grisalho descendo pelas têmporas em
costeletas compactas e brancas, olhos miúdos e vivos, testa inteligente...
Maria respirou com alívio.
Mas assim que o diretor deu as costas, entrando para o seu gabinete,
recomeçou o zunzum de vozes finas, a princípio baixinho, depois num crescendo.
Maria estava no mesmo lugar, à varanda, quieta e cabisbaixa, olhando o
compêndio aberto sobre o regaço.
O sol obrigou-a a fechar o livro. Ergueu-se e foi para a aula, carrancuda,
extremamente bela com o seu vestidinho de casa, apertado na cinta delgada.
Ao meio-dia, pontualmente, chegou o professor de geografia, o Berredo, um
homenzarrão, alto, grosso e trigueiro, barba espessa e rente, quase cobrindo o
rosto, olhos pequenos e concupiscentes. Cumprimentou o diretor, muito afetuoso,
limpando o suor da testa. E consultando o relógio:
Meio-dia! São horas de dar o meu recado. Com licença...
Contavam-se na sala de aula pouco mais de umas dez alunas, quase todas
de livro aberto sobre as carteiras, silenciosas agora, à espera do professor. Maria
ocupava um dos bancos da primeira fila.
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Ao entrar o Berredo, houve um arrastar de pés, todas simularam levantar-se,
e o ilustre preceptor sentou-se, na forma do louvável costume, passeando o olhar na
sala, vagarosamente, com bonomia paternal — tal um pastor de ovelhas a velar o
casto rebanho.
A sala era bastante larga para comportar outras tantas discípulas, com
janelas para a rua e para os terrenos devolutos, muito ventilada. Era ali que
funcionavam as aulas de ciências físicas e naturais, em horas diferentes das de
geografia. Não se via um só mapa, uma só carta geográfica nas paredes, onde
punham sombras escuras, peles de animais selvagens colocadas por cima de
vidraças que guardavam, intactos, aparelhos de química e física, redomas de vidro
bojudas e reluzentes, velhas máquinas pneumáticas nunca servidas, pilhas elétricas
de Bunsen, incompletas, sem amálgamas de zinco, os condutores pendentes num
abandono glacial; coleções de minerais, numerados, em caixinhas, no fundo da sala,
em prateleiras volantes... Nenhum indício, porém, de esfera terrestre.
O professor pediu um compêndio que folheou de relance. — Qual era a lição?
A Oceania? Pois bem...
Diga-me, senhora D. Maria do Carmo: A Oceania é ilha ou continente?
Maria fechou depressa o compêndio que estivera lendo, muito embaraçada,
e, fitando o mestre, batendo com os dedos na carteira, com um risinho:
Somente uma parte da Oceania pode ser considerada um continente.
Perfeitissimamente bem!
E perguntou, radiante, como se chama essa parte da Oceania que pode ser
considerada continente; explicou demorada e categoricamente a natureza das ilhas
australianas, elogiando as belas paisagens claras da Nova Zelândia, a sua
vegetação opulenta, as riquezas do seu solo, o seu clima, a sua fauna, com
entusiasmo de touriste, animando-se pouco e pouco, dando pulinhos intermitentes
na cadeira de braços que gemia ao peso de seu corpo.
Maria, muito séria, sem mover-se, ouvia com atenção, o olhar fixo nos olhos
do Berredo, bebendo-lhe as palavras, admirando-o, adorando-o quase, como se
visse nele um doutor em ciências, um sábio consumado, um grande espírito.
Decididamente era um talento, o Berredo! Gostava imenso de o ouvir falar, achava-o
eloqüente, claro, explícito, capaz de prender um auditório ilustrado. Era a sua aula
predileta, a de geografia, e o Berredo tornava-a mais interessante ainda. Os outros,
o professor de francês e o de ciências, nem por isso, davam sua lição, como
papagaios, e — adeus, até amanhã. O Berredo, não senhores, tinha um excelente
método de ensino, sabia atrair a atenção das alunas com descrições pitorescas e
pilhérias encaixadas a jeito no fio do discurso.
Muitas ilhas da Oceania, dizia ele, coçando a barba, são habitadas por
selvagens antropófagos, como os da América antes de sua descoberta...
Imaginem as senhoras que horror! Homens devorando-se uns aos outros,
comendo-se com a mesma satisfação, com a mesma voracidade, com o mesmo
canibalismo que nós outros, civilizados, trincamos um beef-steak ao almoço...
Houve uma casquinada de risos à surdina.
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Agora, se o Zuza te come, disse baixinho, por trás de Maria do Carmo,
uma moçoila de pince-nez. Toma cuidado, menina, o bicho tem cara de
antropófago...
E note-se, continuou o Berredo, as próprias mulheres não escapam à fúria
das tribos inimigas: devoram-se também...
Virgem! fez Maria com espanto...
As senhoras com certeza preferem viver no Ceará a habitar a Papuasia...
Credo! fizeram muitas a uma voz.
E no Brasil há desses selvagens? perguntou estouvadamente uma loura
que se escondia na última fila, estirando o pescoço.
O pedagogo sorriu, passando a mão cabeluda na barba; e muito delicado, num tom
benévolo:
Atualmente existem poucos... Restos de tribos extintas...
E continuou a falar com a loquacidade de um sacerdote a pregar moral,
explicando a vida e costumes dos selvagens da Nova Zelândia, citando Júlio Verne,
cujas obras recomendava às normalistas como um “precioso tesouro de
conhecimentos úteis e agradáveis”. — Lessem J. Verne nas horas de ócio; era
sempre melhor do que perder tempo com leituras sem proveito, muitas vezes
impróprias de uma moça de família...
Vá esperando... murmurou a Lídia.
Eu estou certo, dizia o Berredo, convicto, de que as senhoras não lêem
livros obscenos, mas refiro-me a estes romances sentimentais que as moças
geralmente gostam de ler, umas historiazinhas fúteis de amores galantes, que não
significam absolutamente coisa alguma e só servem de transtornar o espírito às
incautas... Aposto em como quase todas as senhoras conhecem a Dama das
camélias, a Lucíola...
Quase todas conheciam.
... Entretanto, rigorosamente, são péssimos exemplos...
Tomou um gole de água, e continuando:
Nada! As moças devem ler somente o grande Júlio Verne, o propagandista
das ciências. Comprem a Viagem ao centro da terra, Os filhos do capitão Grant e
tantos outros romances úteis, e encontrarão neles alta soma de ensinamentos
valiosos, de conhecimentos práticos...
O contínuo veio anunciar que estava terminada a hora.
Dias depois o Berredo lecionava, como de costume, a seu bel-prazer,
derreado na larga cadeira de espaldar, quando o contínuo, fazendo uma mesura,
anunciou “S. Exª. o Sr. Presidente da Província”, e imediatamente assomou à porta
da sala o ilustre personagem, mostrando a esplêndida dentadura num sorriso
fidalgo, com o peito da camisa deslumbrante de alvura, colarinhos muito altos e
tesos, gravata de seda cor de creme onde reluzia uma ferradura de ouro polido,
bigodes torcidos imperiosamente: um belíssimo tipo de sulista aristocrata. Estava um
pouco queimado da viagem a Baturité.
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O Berredo desceu logo do estrado a cumprimentá-lo com o seu característico
aprumo de homem que viajara à Europa. Todas as alunas ergueram-se.
Como passa V. Exª., bem? Estava agora mesmo...
O presidente pediu que não se incomodasse, que continuasse.
Acompanhavam-no, como sempre, o José Pereira e o Zuza.
Maria, ao dar com os olhos no estudante, ficou branca, um calafrio gelou-lhe a
espinha, baixou a cabeça, fria, fria, como se estivesse diante dum juiz inflexível.
S. Exª. tomou assento entre o professor e o diretor. José Pereira e o Zuza
sentaram-se nas extremidades da mesa.
As alunas tinham-se formalizado, muito respeitosas, imóveis quase, de livro
aberto, com medo à chamada. Houve um silêncio.
Pode continuar, disse o presidente para o Berredo. E este, inalterável:
V. Exª. não deseja argumentar?...
Não, não. Obrigado...
Neste caso...
E para as discípulas:
Diga-me a Sra. D. Sofia de Oliveira, quantos são os pólos da terra? Veja
como responde, é uma pequena recordação. Não se acanhe. Quantos são os pólos
da Terra?
O Berredo lembrou-se de fazer uma ligeira recapitulação para dar idéia do
adiantamento de suas alunas.
Sofia de Oliveira era uma pequerrucha de olhos acesos, morena, verdadeiro
tipo de cearense: queixo fino, em ângulo agudo, fronte estreita, olhos negros e
inteligentes.
Quantos são os pólos da Terra? fez ela olhando para o teto como
procurando a resposta, embatucada. — Os pólos?... Os pólos são quatro.
Risos.
Quatro? Pelo amor de Deus! Tenha a bondade de nomeá-los.
Norte, sul, leste e oeste.
Nova hilaridade.
Está acanhada, desculpou o Berredo voltando-se para o presidente. Até é
uma das minhas melhores alunas. — Não confunda, tornou para a normalista. Olhe
que são pólos e não pontos cardeais...
Outro disparate:
Há uma infinidade de pólos...
Ora!... Adiante, D. Maria do Carmo.
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Maria estremeceu, embatucando também, sem dizer palavra, sufocada. A
presença do Zuza anestesiava-a, incomodava-lhe atrozmente. Sob a pressão do
olhar magnético do estudante, que a fixava, sua fisionomia transformou-se.
Então, D. Maria?... Também está acanhada?
Passe adiante, pediu o Zuza compadecido.
Duas lágrimas rorejaram nas faces da normalista caindo com um sonzinho
seco sobre a carteira. Estava numa de suas crises nervosas. Outras duas lágrimas
acompanharam as primeiras, vieram outras, outras, e Maria, cobrindo o rosto com o
seu lencinho de rendas, desatou a chorar escandalosamente.
Sente-se incomodada? tornou o Berredo. D. Maria! Olhe... Tenha a
bondade de levantar a cabeça...
Está nervosa, disse o presidente com o seu belo ar de cético elegante.
Pudores de donzela, murmurou o diretor. Isto acontece...
O Berredo passou a mão no bigode, desapontado, e encontrando o olhar
faiscante de Lídia:
A senhora... Quantos são os pólos da Terra?
Dois: o pólo norte e o pólo sul.
Perfeitissimamente! confirmou o professor batendo com o pé no estrado e
esfregando as mãos satisfeito. — Dois, minhas senhoras, disse mostrando dois
dedos abertos, em ângulos; dois! O pólo norte, que é o extremo norte da linha
imaginária que passa pelo centro da Terra, e o pólo sul, isto é, a outra extremidade
diametralmente oposta; eis aqui está! Está ouvindo, D. Sofia? Está ouvindo D. Maria
do Carmo? São dois os pólos da Terra!
Estou satisfeito, disse o presidente erguendo-se.
Arrastar de cadeiras e pés, zunzum de vozes, e S. Exª. grave, correto e
calmo, retirou-se com o seu estado-maior.
O Zuza ferrou em Maria do Carmo um olhar tão demorado e comovido que
chegava a meter pena. Os seus óculos de ouro, muito límpidos e translúcidos,
tinham um brilho de cristal puro. Trazia na botoeira do redingote claro (o Zuza
gostava de roupas claras) uma flor microscópica.
Alguém murmurou ao vê-lo passar:
Sempre correto!
Maria deixou-se ficar sucumbida, de cabeça baixa, mordiscando a ponta do
lenço, com uma lágrima retardada a tremeluzir-lhe na asa do nariz, desesperada,
revoltada contra si mesma que não soubera responder uma coisa tão simples... Que
vergonha, que humilhação! pensava.
Não saber quantos pólos tem a Terra! E quem havia de responder? A Lídia,
logo a Lídia! O Zuza agora ficaria fazendo um juízo muito triste a seu respeito e não
a procuraria mais... Ah! era muito tola, decididamente! E jurava consigo “não ter mais
vergonha de homem algum”.
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Pediu licença ao professor e retirou-se antes de findar-se a aula para evitar os
gracejos das colegas, voltando à casa sem a Lídia, sozinha, acaçapada,
inconsolável.
Uma vez no seu discreto quartinho, bateu a porta com força, despiu-se às
carreiras, desabotoando os colchetes com espalhafato, aos empuxões, impaciente,
até ficar em camisa, e atirou-se à rede soltando um grande suspiro. Esteve muito
tempo a pensar no acadêmico, na “figura triste” que fizera na aula, em mil outras
coisas por associação de idéias, com o olhar, sem ver, numa velha oleografia do
“Cristo abrindo e mostrando o coração à humanidade”, que estava na parede.
Era uma desgraçada, suspirava tomada de desânimo. Todas tinham seus
namorados, viviam felizes, com o futuro mais ou menos garantido, amando,
gozando; todas tinham seu dia de felicidade, e ela?
Era como uma gata borralheira, sem pai nem mãe, obrigada a suportar os
desaforos de um padrinho muito grosseiro que até a proibia de casar. Nem amigas
tinha. A Lídia, essa parecia-lhe uma desleal, fingida, hipócrita; não viram como ela
tinha dado o quinau na aula? Uma ingrata... Sim, está visto que havia de ter um fim
muito triste...
O verdadeiro era fugir com o primeiro sujeito que lhe aparecesse, fugir para
fora do Ceará, ir-se de uma vez... Estava cansada de viver naquela casa...
E revoltava-se contra os padrinhos, contra a sociedade, contra Deus, contra
tudo, num desespero febril, ansiando por uma vida feliz, independente, livre de
cuidados ao lado de um homem que a soubesse compreender, que lhe fizesse todas
as vontades.
Por seu gosto não iria mais à Escola Normal para coisíssima alguma. Estava
muito bem educada, não precisava de aprender em colégio, já não era criança.
Acudiram-lhe reflexões absurdas, idéias extravagantes, pensamentos de
colegial estouvada, inquieta na rede, virando-se e revirando-se, ora fitando com
olhar piedoso a imagem do Cristo, ora mergulhando a vista numa telha de vidro,
espécie de clarabóia, que havia no telhado, e através da qual brilhava um pedaço de
céu sem nuvens.
Começou a sentir uma ponta de enxaqueca e caiu numa madorna, deitada de
costas, os braços cruzados sobre a cabeça, traindo a penugem rala das axilas,
respirando levemente, como uma criança. A camisa fina, quase transparente,
arregaçada por descuido até à parte superior da coxa esquerda, mostrava toda a
perna roliça, morena, cheia, sem depressões, arqueando-se no joelho...
CAPÍTULO VI
O primeiro cuidado do Zuza ao regressar da excursão presidencial a Baturité
foi ajustar contas com o redator da Matraca, ameaçando urbi et orbi fazê-lo engolir o
número do pasquim que trazia a versalhada torpe sobre o namoro do Trilho de
Ferro.
No Ceará não havia outro homem que usasse flor na lapela, dizia; o
estudante, filho de titular, que andava a cavalo mais o presidente da província, era
ele, Zuza. Estava claro, claríssimo, que a diatribe, o insulto, a infâmia referia-se à
sua pessoa, e o único meio simples, fácil e positivo de se ensinar um patife é dar-lhe
de rebenque na cara. Conclusão: o redator da Matraca não só ia engolir o
papelucho, mas também apanhar de rebenque no focinho, custasse o que custasse!
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Grandissíssimo canalha!
Mas no Ceará não se faz reparo nessas coisas, meu Zuza. O insulto nesta
terra é um divertimento como qualquer outro, como o entrudo, por exemplo. Cada
cidadão aqui é uma verdadeira Matraca. Não te importes, não te dês cuidado...Isto
dizia-lhe o José Pereira na redação da Província; mas o Zuza recalcitrava:
Eu?! Hei de tomar um desforço, custe o que custar. Se é costume nesta
terra os indivíduos se insultarem mutuamente, com a mesma facilidade com que
tomam uma xícara de café, pílulas! é preciso dar um ensino, é preciso que alguém
se levante!
É bobagem, filho. Toda a gente toma a defesa do réu e aí fica a vítima do
insulto com cara de besta. É o que é. Lá diz o rifão: quem não quer ser lobo...
Esse José Pereira fisicamente dir-se-ia irmão gêmeo do Berredo da Escola
Normal. Alto, cheio de corpo, trigueiro, a mesma barba espessa e negra cobrindo
quase todo o corpo, os mesmíssimos olhinhos vivos e concupiscentes. Dele é que
se dizia que fora surpreendido em flagrante adultério com a mulher do juiz municipal
no Passeio Público, um escândalo que por muitos dias serviu de pasto a boticários e
bodegueiros.
Começara a vida pública no Correio, como carteiro, e agora aí estava feito
redator da Província em cujo caráter tornou-se geralmente admirado por seus
folhetins alambicados, que o público digeria à guisa de pastilhas de Detan. Aos
sábados publicava no rodapé do jornal fantasias literárias, contos femininos em
estilo 1830, histórias dissolutas que eram lidas com avidez, mesmo com certa gula
pelo mulherio elegante e pela burguesia sentimental e piegas.
Cedo José Pereira começou a inchar como a rã de La Fontaine e a julgar-se,
com efeito, um grande escritor, “um talento”, capaz, olá! muitíssimo capaz de fazer
as delícias de qualquer sociedade inteligente e ilustrada. Daí certo ar autoritário,
certa prosápia que ele afetava em toda a parte, dizendo-se “contemporâneo de
Rocha Lima”, “amigo de Capistrano de Abreu”; certo aprumo pedante que não
condizia com a sua velha sobrecasaca de diagonal cujo estado incomodava deveras
a alta sociedade cearense.
Que diabo! um sujeito inteligente, com ares de fidalgo avarento, redator de um
jornal, sempre trazendo a mesmíssima sobrecasaca! E o chapéu? Sempre o mesmo
também, um triste chapéu de feltro com manchas oleosas! Oh! a respeitável
sociedade cearense exigia primeiro que tudo decência no trajar, e aquilo assim,
aquela sobrecasaca sórdida escandalizava-a como se escandaliza uma donzela
diante duma estátua nua. Pois o Sr. José Pereira não podia, sem grandes sacrifícios,
comprar um fato novo? Então, que diabo! não aparecesse entre pessoas de certa
ordem, ficasse em casa, fosse mais modesto. Sim, porque todo o homem de talento,
na opinião da sociedade cearense, deve acompanhar a moda em todas as suas
nuances, em todos os seus requintes, deve ter sempre uma casaca à última moda,
uma calça à última moda, e um chapéu à última moda, conforme os figurinos, para
os “momentos solenes”, deve ser enfim um sujeito “correto” na acepção mais lata da
palavra.
O Sr. Pereira sabia dar um laço na gravata, lá isto sabia, e também não
ignorava como se calça uma luva; mas (e isto é que preocupava a sociedade
cearense) o Sr. José Pereira, quer fosse a um baile de primeira ordem, quer fosse a
uma festa inaugural, quer fosse ao teatro, levava sempre invariavelmente a mesma
sobrecasaca surrada e o mesmo chapéu ruço! Um homem de talento sem gosto é o
que não se admite. A sociedade cearense, porém, ignorava que o Sr. José Pereira
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era casado, tinha filhos e ganhava apenas o essencial para o seu sustento e o da
família, cento e cinqüenta mil-réis por mês, uma ninharia.
Os seus amigos, às vezes, gracejando, propunham-lhe abrir uma subscrição
para a compra de um paletó novo e de um chapéu idem. José Pereira, porém, tinha
espírito e respondia-lhes ao pé da letra, mudando logo o rumo da conversa.
Nesse tempo o redator da Província ainda era calouro em política. Dava seu
voto e nada mais. A literatura é que o absorvia. Um livro novo era para ele a melhor
novidade; caísse embora o ministério, rebentasse uma revolução, ele conservava-se
a ler, virando páginas, devorando a obra como um alucinado, defronte do abajur de
papelão no seu modesto gabinete de escritor pobre. Conhecia Dumas pai de cor e
salteado; fora o seu primeiro “mestre”. Depois entregou-se a ler os Miseráveis,
declarando-se hugólatra incondicional em uma apreciação que fizera do grande
poeta. O artigo concluía deste modo:
“Victor Hugo é o Cristo da legenda transfigurado em profeta moderno. Ele é
todo um século. Tudo nele é grande como a natureza. Os Miseráveis são a apoteose
de todas as misérias humanas. Victor Hugo, o Mestre, é o Sol da Humanidade.
Amemo-lo como a um Deus!” isso produziu efeito entre os literatos contemporâneos
que não dispensaram elogios ao “valente folhetinista” da Província.
A fama de José Pereira encheu depressa toda a cidade. Dizia-se — aí vai o
José Pereira! como quem diz — aí vai um gênio. E ele saudava a todos
convictamente, tocando de leve a aba mole do chapéu preto de massa.
Em fins de 1886 José Pereira conservava-se ainda na Província, como um
dos principais redatores. A sua fama, se não decrescera, era a mesma com uma
pequena e insignificante diferença — é que ele já não era simplesmente um “talento
fecundo”, mas também um fecundíssimo canalha, um requintado “sedutor de
mulheres casadas”, o que afinal de contas não o prejudicava assaz no conceito do
mulherio. Havia as viúvas, casadas e solteiras que o defendiam tenazmente.
Não, diziam elas, o diabo não é tão feio como o pintam. José Pereira podia
ser um rapaz alegre, divertidíssimo, jovial e espirituoso, amigo das mulheres — vá,
mas, em suma, um excelente rapaz e um belo caráter. Porque o fato de um homem
apaixonar-se facilmente por muitas mulheres ao mesmo tempo ou em épocas
diferentes não quer significar que esse homem seja um sedutor e um patife. Demais,
José Pereira era artista, e o artista, escultor ou poeta, pintor ou músico, não pode
compreender a vida sem o amor...
Mas é um homem casado, profligavam outras.
Bem; mas o casamento...
E demonstravam que o casamento, longe de ser um atentado contra o livre-
arbítrio das partes, é, ao contrário, uma instituição que concede, tanto ao homem
como à mulher, plena liberdade de amar ao próximo como a si mesmo.
Entre as que adotavam a prática destas teorias tão abstrusas quanto originais,
distinguiam-se a mulher de João da Mata e a do Dr. Mendes.
Então, decididamente queres quebrar a cara ao redator da Matraca? dizia
ele ao Zuza.
Mas que dúvida!
Quem quer que fosse o verrinista havia de ficar sabendo de quantos paus se
faz uma jangada.
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Mas olha que é uma imprudência pueril, homem. Quando o insulto vem de
baixo, a gente deve responder com o desprezo. O desprezo é a arma invencível dos
espíritos superiores. Eu é como tenho resolvido questões desta natureza.
Qual desprezo! Não se mata com desprezo um réptil venenoso; pisa-se-o,
reduz-se a papas. Isto é o que fazem os espíritos superiores. Sabes quem é o biltre?
Homem, francamente, confesso-te que não o conheço. Dizem ser um tal
Guedes, vulgo Pombinha, um sujeito reles, troca-tintas, um miserável que nem vale
a pena de um escândalo...
Não vale a pena? Quebro-lhe a cara, ora se quebro... Onde fica a tipografia
do jornaleco?
Na rua de São Bernardo, creio eu, uma espécie de toca imunda com ares
de latrina.
Guedes (Pombinha)... rua de São Bernardo. Muito bem!
E o Zuza tomou nota do seu canhenho, guardando-o resolutamente.
Diabos me levem se eu não fizer uma estralada hoje.
Mudando de tom:
Quero que publiques hoje o meu soneto A Volta; deve sair hoje
infalivelmente.
É dedicado à mesma?
Certamente. Sabes que eu sempre fui muito correto nos meus amores. A
pequena está pelo beicinho. Há de cair como uma mosca, eu te garanto.
Um divertimento, hein?
Não sou muito capaz de casar. Aquele arzinho ingênuo, aqueles olhos de
madona traduzindo uma alma cheia de sentimentos bons... — tudo nela enfim,
agrada-me.
Mas é uma pobretona, filho. Aquilo é para a gente namorar, encher de
beijos e — pernas para que te quero! És muito calouro ainda nisso de amores.
Aproveita a tua mocidade, deixa-te de pieguismo, menino. A vida é uma comédia,
como lá disse o outro...
Então o Zuza, acendendo um cigarro, disse que estava aborrecido de
mulheres que se entregavam facilmente. Em Pernambuco namorara a filha de um
barão, e, se não fosse esperto, àquelas horas estaria talvez às voltas com o
minotauro de que fala Balzac. Era uma rapariga esplêndida, mas tão depravada, tão
impoluta que acabou fugindo com um jóquei do Prado pernambucano, um negro!
Quanto às mulheres de vida alegre, detestava-as; tinha gasto muito dinheiro,
precisava casar, mas casar com uma menina ingênua e pobre, porque é nas classes
pobres que se encontra mais vergonha e menos bandalheira. Ora, Maria do Carmo
parecia-lhe uma criatura simples, sem essa tendência fatal das mulheres modernas
para o adultério, uma menina que até chorava na aula simplesmente por não ter
respondido a uma pergunta do professor! Uma rapariga assim era um caso
esporádico, uma verdadeira exceção no meio de uma sociedade roída por quanto
vício há no mundo. Ia concluir o curso, e, quando voltasse ao Ceará, pensaria
seriamente no caso. A Maria do Carmo estava mesmo a calhar: pobrezinha, mas
inocente...
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É o que tu pensas, retorquiu o outro. Hoje não há que fiar em moças,
pobres ou ricas. Todas elas sabem mais do que nós outros. Lêem Zola, estudam
anatomia humana e tomam cerveja nos cafés. Então as tais normalistas, benza-as
Deus, são verdadeiras doutoras de borla e capelo em negócio de namoros. Sei de
uma que foi encontrada pelo professor de história natural a debuchar um
grandíssimo falo com todos os seus petrechos...
O quê, homem?
É o que estou a dizer-te, por sinal acabou amigando-se com um
bodegueiro de Arronches e lá vive muito bem com o sujeito. Creio até que já tem
filhos.
Ó senhor, então, ao que me vai parecendo, está muito adiantada a nossa
pequena sociedade! exclamou o Zuza muito admirado, cavalgando o pince-nez. Pois
olha, eu supunha isto aqui uma santidade.
É que há muito tempo não vinhas ao Ceará. Por cá também se dão
escândalos, como em Pernambuco, e escândalos de pasmar a um sacerdote da
moral, como o filho de meu pai.
O escritório da Província estava quase deserto. Apenas o José Pereira e o
estudante conversavam amigavelmente, sentados defronte um do outro à mesa dos
redatores, fumando enquanto lá dentro, nos fundos onde ficavam as oficinas, os
tipógrafos compunham atarefados a matéria do dia.
Seriam duas horas da tarde. O calor abafava.
Um rapazinho raquítico, em mangas de camisa, com manchas de tinta no
rosto e um ar amolentado, veio trazer as provas do expediente do governo.
Falta matéria? perguntou José Pereira, encarando-o. “Não sabia, não
senhor, ia ver.” E saiu voltando imediatamente: que o jornal estava completo.
Bem, disse o Zuza levantando-se, vou à casa do Sr. Guedes. Preciso
acabar com isso.
Mas olha, recomendou o redator, não vás fazer asneiras, hein?
Não, não. A coisa é simples. Addio.
E retirou-se fazendo piruetas com a bengala no ar.
É um criançola esse Zuza, murmurou José Pereira molhando a pena.
Imediatamente entrou o Castrinho, outro colaborador da Província, também
poeta e amigo particular de José Pereira, autor das Flores Agrestes publicadas há
dias e que tinham sido muito bem recebidas pela crítica indígena. Vinha trazer a
resposta ao crítico do Cearense que o chamara — plagiador de obras alheias.
Então temos polêmica? perguntou José Pereira sem levantar a cabeça,
revendo as provas.
Por que não! Hei-de provar à evidência que não preciso plagiar ninguém.
Aqui está o primeiro artigo. É de arromba!
O Castrinho sacou do bolso do paletó de alpaca um calhamaço de tiras de
papel gordurosas e sacudindo-as, como quem toma o peso a alguma coisa:
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Aqui está: hei-de rebater uma a uma, sem dó nem piedade, todas as
asserções do meu invejoso contendor.
te falo, disse o outro continuando o trabalho. Tem paciência um
pouquinho. O diabo das provas...
Sim, continua; não te quero interromper...
Plagiador ele, que tinha talento para dar e emprestar a toda a caterva de
versejadores cearenses! Havia de provar o contrário, porque tanto sabia burilar um
soneto como manejar a prosa.
Até estimara a provocação do Cearense, porque desse modo o público ficaria
sabendo quem eram os imitadores, os parasitas da poesia nacional. Aí estava o
juízo da imprensa fluminense, aí estava o juízo de toda a imprensa do Brasil, do
Amazonas ao Prata, sobre as Flores Agrestes. Um jornal do Sul — O Cometa
comparara-o até a Olavo Bilac e a Raimundo Corrêa!
Inveja, murmurou José Pereira. O verdadeiro talento é sempre vítima do
despeito das mediocridades.
E terminando a revisão:
Vejamos o que escreveste.
Somente isto, disse o Castrinho entregando a papelada. Hei-de convencer
ao zoilo do Cearense, por a mais b, que ele é o plagiador, o invejoso, o ignorante, a
besta, e eu o poeta consciencioso e moderno que não se limita a cantar Elviras e a
copiar Lamartine.
José Pereira derreou-se na cadeira de espaldar, um velho traste que fora da
Perseverança e Porvir, “atestado eloqüente de uma luta de heróis” como dizia o
Zuza, e, depois de acender a ponta do cigarro, que estava à beira da mesa, devorou
com olhar protetor a série de argumentos mais ou menos esmagadores com que o
outro pretendia aniquilar o articulista da folha adversa. Tinha a epígrafe — As Flores
Agrestes e a Inveja Furiosa, e concluía nestes termos: “Voltarei à questão para
esmagar com a lógica irrefutável da verdade o ousado e néscio criticista que me
acoimou de plagiador. O público verá qual de nós tem razão; eu que tive o aplauso
de quase totalidade da imprensa brasileira, ou o zoilo do Cearense, que pretendeu
obscurecer o meu merecimento.”
Magnífico! exclamou José Pereira levantando-se. Dá cá um abraço,
homem.
E estreitando o Castrinho, contra o peito:
Tens talento como um bruto, menino. Olha que quem escreveu isto vale o
que escreveu, caramba! Continua, Castrinho, continua, que ainda hás de vir a ser
um grande poeta. Desta massa é que se fazem os Byron e os Victor Hugo... E logo,
paternalmente: — Queres jantar comigo?
Obrigado. Hás-de permitir que te agradeça, hein? Adeusinho. Não esqueça
o artigo.
Absolutamente, não. Amanhã impreterivelmente, vê-lo-ás na segunda
página, todo, inteirinho. Adeus.
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Vendedores de jornais esperavam a Província, à porta da redação, inquietos,
turbulentos, a questionar por dá cá aquela palha, e já se ouvia o barulho do prelo lá
dentro, imprimindo a folha governista. Empregados públicos voltavam das
repartições taciturnos, em sobrecasacas sórdidas, mordendo cigarros Lopes Sá,
amarelos, linfáticos, o estômago a dar horas. Pouco movimento na rua do Major
Facundo: um ou outro transeunte macambúzio, de chapéu de sol, caixeiros que
atravessavam a rua ligeiros, em mangas de camisa, e alguns pobres-diabos
arrastando-se a pedir esmola.
A cidade permanecia na sua costumada quietação provinciana, muito cheia
de claridade, bocejando preguiçosamente de braços cruzados, à espera do
Progresso. Suava-se por todos os poros e respirava-se a custo, debaixo de uma
atmosfera equatorial, acabrunhadora. Estalava à distância, num ritmo cadenciado e
monótono, o canto estridente e metálico duma araponga, cujo eco repercutia em
todo o âmbito da pequena capital cearense.
Ao dobrar a rua da Assembléia, o Zuza parou, à espera que o bonde
passasse, e esteve considerando um instante. — De que lhe servia ir onde estava o
Guedes e quebrar-lhe as costelas a bengaladas? O rapaz podia repelir a agressão e
aí estava um conflito sério, em que um dos dois necessariamente havia de sair
ferido. Afinal de contas era provocar um escândalo inútil, vinha a polícia e a
vergonha era dele, Zuza, unicamente dele, um rapaz de posição, amigo do
presidente... Não valia a pena abrir luta com um pasquineiro. O melhor era, como
aconselhara o José Pereira, dar ao desprezo o cão. Se ele, porém, o abocanhasse
outra vez, então, decididamente, quebrava-lhe a cara. Apelava para a reincidência
do foliculário. Província estúpida! Estava doido por se ver livre de semelhante
canalhismo. E aquilo é que se chamava terra da luz!
Seguiu para casa preocupado com essas idéias com um nojo do Ceará.
O coronel divertia-se tranqüilamente com a passarada do viveiro, metido no
inseparável gorro de veludo bordado a ouro e retrós. Era amigo de pássaros e tinha-
os magníficos em gaiolas de arame penduradas na sala de jantar, além do viveiro,
também de arame, em forma de quiosque chinês, com uma bola de vidro no alto,
colocado no quintal, defronte da casinha de banhos.
Uma vidinha estúpida aquela! pensava o estudante estendendo-se na rede.
Morria-se de tédio e calor. Vieram-lhe saudades do Recife. Oh! o Recife, o Prado
aos domingos, os passeios, belos piqueniques a Caxangá... Lembrou-se de sua
última conquista amorosa — a Rosita, uma espanhola com quem estivera
seguramente seis meses. Um peixão! Morava na Madalena. Vira-a uma vez no
teatrinho da Nova Hamburgo, sozinha num camarote, muito bem vestida, com um
rico leque de plumas, anéis de brilhantes, esplêndida: era argentina.
Que de cerveja e ceatas e passeios de carro e pagodeiras nos hotéis!
Relembrava a primeira noite que passara com a Rosita, por sinal tinha tomado muita
champanha, tinha feito um figurão. A rapariga compreendeu que tratava com gente
fina e entregou-se. Uma noite deliciosa! Começou por uma ceia em casa dela na
Madalena, um chalezinho de porta e janela com varanda, forrado a papel sangue de
boi e jardinzinho na frente. A sala de visitas era um mimo com a sua mobília mignon
de assento estufado, piano, quadros do paganismo, bibelô... E a alcova? Um ninho,
um perfeito ninho de amores. Zuzinha — era como ela o tratava com toda ternura,
cobrindo-o de beijos, suspendendo-o nos braços como se levantasse uma criança,
sentando-o no colo — ela de peignoir de fustão com fitinhas azuis, uns olhos
matadores, úmidos de sensualidade, e ele à frescata, em mangas de camisa, sem
colarinho — um deboche!
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E uma saudade imensa invadia-o. Saudade da Rosita, saudade da república
— uma troça alegre de rapazes endinheirados e limpos — saudade dos banhos de
mar em Olinda...
Depois veio-lhe à mente a normalista, a cearense do Trilho de Ferro. Muito
bonitinha, é verdade, mas uma tola que não sabia tratar com rapazes educados. Lá
por ser pobre não; mas parecia-lhe tão atrasadinha, assim como apalermada,
indiferente a tudo. Além disso um nome de matuta — Maria do Carmo. Ainda se
fosse Maria Luíza, mas Maria do Carmo!...
Começou então a fazer considerações sobre Maria. Achava-a até parecida
com a Francina, uma rapariga de Pernambuco, também morena e de olhos cor de
azeitona, baixinha e sem-vergonha, “passada” por todos os estudantes de
academia. Mas mesmo muito parecida, agora é que se lembrava: era a Francina.
Um horror! No Ceará não se encontravam mulheres públicas de certa ordem. Tudo
era uma récua de meretrizes imundas, carregadas de sífilis até aos olhos. Os
rapazes viviam se queixando de moléstias secretas.
Levantou-se em ceroulas, para acender um cigarro, espreguiçando-se.
O quarto era pequeno, mas arranjado com certo decoro e bom gosto. O Zuza
herdara essa qualidade característica dos Souza Nunes — o amor à ordem. Tudo
dele era arrumado e limpo. Adorava a boemia, mas a boemia que não cospe no
assoalho e que toma banho ao menos uma vez por dia. Nisto de asseio, como em
muitas outras coisas, era correto e o pai o louvava por essa qualidade especial de se
portar com a máxima inteireza, no asseio do corpo, como no das ações. Toda a
mobília do pequeno compartimento consistia numa estante envidraçada, cadeiras,
um sofá e uma mesinha redonda, colocada no centro e coberta com um pano azul,
de lã. Comunicava com outro quarto menor onde estava a cama de ferro e uma
rede. Ma cabine à coucher, dizia o Zuza mostrando aos amigos esse interior
confortável de boêmio rico. A claridade entrava pela varanda e ia morrer em
penumbra lá dentro no segundo quarto. No papel claro das paredes destacavam
litografias encaixilhadas de poetas célebres e o retrato de Gambeta na postura
habitual em que o grande orador falava ao povo. Em política era o seu ídolo, dizia o
estudante, e no auge do entusiasmo, colocava-o acima de Mirabeau. Em cima da
mesa números avulsos da Revista Jurídica confundindo-se com jornais ilustrados, e
um porta-retratos com as fotografias do coronel e da esposa, olhando para os lados,
em sentidos opostos. Tal o “gabinete” do Zuza, o seu remanso de estudante
cuidadoso.
Tinha aberto ao acaso o seu romance querido, A Casa de Pensão. Um livro
importante, gabava; um livro que revelava o grau de adiantamento da literatura
brasileira, não deixando a desejar os melhores dos escritores naturalistas
portugueses. Este exagero do Zuza deve se levar em conta do ódio injusto que ele
votava a tudo quanto cheirasse a lusitanismo.
O estudante, porém, nunca passara a vista sequer num romance de Eça ou
numa crítica de Ramalho. — “Não queria, não podia tragar coisas que lhe
provocassem vômitos.” Preferia um churrasco à baiana ao “tal” Sr. Camilo Castelo
Branco, um sujeito inimigo do Brasil, que não perdia ocasião de nos ridicularizar. De
Portugal, Camões exclusivamente, isso mesmo porque o grande épico era uma
“glória universal”. Certas palavras tinham um encanto particular a seus ouvidos.
Gostava de frases cheias e retumbantes. Os Lusíadas? eram uma “epopéia imortal”,
dizia ele. Pronunciava a palavra epopéia com a boca cheia, a acentuando muito o é.
Uma obra de arte reconhecidamente boa era a seu ver uma epopéia, fosse qual
fosse o gênero — O Cristo e a Adúltera, de Bernardelli? Uma epopéia nacional!!!
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Começou a ler A Casa de Pensão em voz alta, em tom de recitativo,
pausadamente, repetindo frases inteiras, aplaudindo o romancista com entusiasmo,
exclamando de vez em vez: — Bonito, seu Zuza! como se fosse ele próprio o autor
do livro. Depois sacudindo o romance sobre uma cadeira, levantou-se
espreguiçando-se com estalinhos nas articulações, escancarando a boca num
bocejo largo. Que horas seriam? O despertador de níquel marcava quatro e meia. Ó
diabo! tinha-se descuidado. Estava convidado para jantar com o presidente às cinco
pontualmente. Começou a vestir-se assobiando trechos de música seródia. De
repente: “— E a normalista que não lhe tinha respondido a carta!” Muito atrasadinhas
as cearenses, pensava. Que mais queria ela? E defronte do espelho, pondo a
gravata: — “Era um rapaz chique, dava muita honra à Sra. D. Maria do Carmo
escrevendo-lhe uma carta amorosa, pois não? Era o que faltava, a Sra. D. Maria do
Carmo não lhe dar atenção! Mas havia de cair por força. Era uma questão de
tempo.”
Cinco horas. O Zuza enfiou a sobrecasaca às pressas, perfumou-se,
endireitou a gravata e — até logo — foi-se como um raio.
CAPÍTULO VII
À proporção que se aproximava o dia do casamento da Lídia com o guarda-
livros, as visitas deste à casa da viúva Campelo iam-se tornando de mais a mais
freqüentes. A Campelinho não cabia em si de contentamento; pudera! ia enfim ver-
se livre do perigo de ficar para tia. De resto o Loureiro era um ótimo rapaz, excelente
empregado, natural de bom gênio, tolerante em extremo e senhor de seu nariz. Era
como se fosse de casa, como se já fizesse parte da família, surdo como uma pedra
aos boatos mais ou menos mentirosos que corriam sobre a vida privada de D.
Amanda. Nunca se dera ao trabalho de averiguar se efetivamente o procedimento
de sua futura sogra merecia censuras da gente honesta, mesmo porque o seu
emprego não lhe deixava tempo para isso.
Não senhor, dizia ele, se porventura alguém procurava abrir-lhe os olhos; a
viúva era um modelo de mãe de família, coitada, vivendo modestamente do
minguado montepio de seu finado marido, afora um negociozinho de rendas, que
tinha no Pará, e que lhe deixava para mais de cinqüenta por cento. O mais eram
palavrórios, e ele no caráter de futuro genro da viúva, não podia consentir que
ninguém a difamasse impunemente.
João da Mata lhe dissera uma vez, ao ouvido, batendo-lhe amigavelmente no
ombro, que não se iludisse, que a Campelo recebia fora de hora o Batista da Feira;
que ele, João da Mata, vira muitas vezes, com os próprios olhos, o negociante entrar
cosido à parede alta noite, como um gato.
Histórias. O amanuense fazia mal andar propalando suspeitas que podiam
prejudicar, muito, os créditos da pobre senhora. Absolutamente não acreditava em
tais boatos. Conhecia bem o gênio e a vida de D. Amanda para desprezar
semelhantes falsidades. Em suma, era da escola de S. Tomé: ver para crer.
Até então só tinha motivos para louvar o procedimento da sua futura sogra. E
concluía: “— Por amor de Deus não falassem mais em tais coisas... Tinha olhos para
ver.”
Todas as noites, invariavelmente, lá ia ele dar o seu dedo de palestra com a
noiva, e, depois do víspora em casa do amanuense, ficavam os dois horas e horas
na calçada, num aconchego muito íntimo, ela apoiada nos seus ombros, fazendo-se
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meiga e apaixonada, ele babando-se de satisfação ao contato palpitante das carnes
rijas e abundantes de sua futura mulher. D. Amanda entrava propositalmente para os
deixar à vontade naquele arrebatamento de noivos sadios e vigorosos.
Uma noite o guarda-livros quis ir mais longe nas vivas demonstrações de seu
amor pela Campelinho. Com os lábios pregados à boca da Lídia, quase abraçados,
procurou com uma das mãos apalpar alguma coisa que a rapariga ocultava
religiosamente no templo inviolável de sua castidade.
Não, isso não! fez ela esquivando-se, toda cautelosa, com um ar de
surpresa.
Deixasse daquilo, que era muito feio entre noivos. Não havia necessidade;
tinham muito tempo, depois. Tivesse paciência, sim?
E muito terna, derreando-se de novo sobre os ombros do guarda-livros,
beijou-o na face áspera de espinhas, sem repugnância, e começou a cofiar-lhe
carinhosamente os bigodes, devagarinho, arregaçando-os, assanhando-os para
tornar a alisá-los, prolongando assim a delícia de Loureiro que nesses momentos era
como um escravo das mãozinhas brancas e delicadas da Lídia.
Mas, que tem? perguntou ele com a voz trêmula, um fluido estranho no
olhar terno.
Não, meu bem, isso não, que é feio, tornou a Campelinho. Tem paciência.
Não fazia mal, continuou Loureiro. Não eram noivos? não eram quase
casados? Que diabo! consentisse ao menos uma vez. Era um instantinho. Ora! uma
coisa tão simples, tão natural... Ninguém via, deixasse, que tolice!
E enquanto falava muito baixo, com hesitações trêmulas na voz embargada
pela sensualidade, estendia a mão por baixo, olhar fito nos olhos vivos e penetrantes
da rapariga.
Nem um ruído na rua do Trilho, nem uma voz, nem o vôo pesado de um
morcego: tudo silêncio, e uns restos de luar a extinguir-se esbatendo defronte nos
telhados. Apenas, ao longe, vago e indistinto quase, o ruído monótono do mar no
silêncio da noite calma.
Oh! não... suplicou a Campelinho sentindo o contato da mão grossa do
guarda-livros. Deixa...
Houve um frufru de vestidos machucados e o baque de uma cadeira.
Momentos depois o Loureiro despedia-se triunfante, pisando devagar,
caminho do HOTEL DRAGOT.
Desde então começou a retirar-se muito tarde. Havia noites em que só saía
depois de uma hora da madrugada. Ultimamente almoçava e jantava em casa da
viúva. Era mais econômico do que pagar no hotel, dizia D. Amanda: bastava que ele
contribuísse com trinta mil-réis mensais e tudo se arranjaria ali mesmo em família;
de modo que o Loureiro pouco a pouco foi-se fazendo, por assim dizer, dono da
casa, chefe da família. Por fim todas as despesas corriam por sua conta e risco.
Aluguel de casa, comedoria, roupa lavada e engomada, vestidos para a Lídia, tudo
era ele quem pagava de boa vontade, sem tugir nem mugir porque queria e tinha
prazer nisso. Muito econômico, amigo de seu dinheirinho, mas em se tratando das
Campelo, não tinha mãos a medir, era de uma prodigalidade sem limites. Coitadas!
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lamentava-se consigo, eram umas pobres; cada um sabe de si e Deus de todos;
tinha quase o dever de ampará-las, tanto mais quando estava para ser marido da
pequena. E abria o seu grande coração e a sua bolsa àquelas duas criaturas, que se
lhe afiguravam duas santas através do prisma azul de seu amor pela rapariga.
Subscritor da Sociedade de São Vicente de Paulo, um pouco devoto, às vezes tinha
rasgos de verdadeiro filantropo. D. Amanda e a filha eram aos seus olhos “duas
vítimas da maledicência de uma sociedade hipócrita e torpe até à raiz dos cabelos”.
Agora jantava e almoçava em casa da viúva, que já lhe sabia os gostos, as manias.
Ela mesma ia preparar a comida, os ovos quentes e a lingüiça assada ao almoço, o
feijão e o lombo assado para o jantar. D. Amanda estava radiante com o genro.
Tratava-o a velas de libra, fazia-lhe todas as vontades, escovava-lhe a roupa, e eram
cuidados de mãe carinhosa ou de criança que tem um pássaro na mão e receia que
lhe fuja.
Aos domingos o guarda-livros ia logo cedo para o Trilho, às vezes com a cara
por lavar, metido em calças pardas, abotoado até o pescoço. Era quando tinha
algum descanso das lidas quotidianas do armazém, da escrituração do Caixa. Às
seis horas da manhã já ele estava de caminho para o Trilho, muito à fresca, cigarro
ao canto da boca, prelibando as delícias de um dia em companhia da noiva, sem ter
que dar satisfação à Carvalho & Cia., com a consciência tranqüila de quem cumpriu
religiosamente o seu dever.
Nem sequer tomava café no hotel. Pulava da rede às pressas, sem perder
tempo, enfiava as botinas, as calças, o paletó surrado, e abalava por ali afora,
escadas abaixo. Às vezes ainda encontrava a porta da viúva fechada. Batia devagar
com a ponta dos dedos: “— Sou eu, Loureiro!” Imediatamente D. Amanda vinha
abrir, embrulhada nos lençóis, cabelos soltos, em mangas de camisa. E a faina
começava. Escancaravam-se as portas para dar entrada livre ao arzinho fresco da
manhã que se derramava por toda a casa como um fluido que se evaporasse de
repente de um depósito aberto. O Loureiro tirava o paletó, abria a toalha no ombro, e
enquanto se punha a ferver água para o café, refestelava-se num confortável banho
frio puxado de véspera na grande tina que havia no “banheiro”. Era tempo de cajus.
O guarda-livros tinha a mania dos depurativos. Antes do banho emborcava um copo
de mocororó “para retemperar o sangue”, dizia ele. Depois o cafezinho quente,
coado pelas mãos de D. Amanda, e, finalmente, o belo dia passado, currente
calamo, tranqüilamente num longo idílio naquele canto obscuro de Fortaleza, com a
“sua santa”. O hotel servia-lhe apenas para dormir, porque o Loureiro era filho do Rio
Grande do Norte onde perdera pai e mãe, não tinha no Ceará sequer um parente em
cuja casa pudesse passar as noites. Amigos capazes de merecerem toda a sua
confiança também não os tinha. Pacato, concentrado e pouco expansivo,
dificilmente comunicava-se a quem não o procurasse em primeiro lugar. Sua
natureza egoísta aprazia-se com a vida sedentária. — Um esquisitão de força, uma
espécie de urso! diziam os seus camaradas de comércio.
E os dias passavam, longos e modorrentos, cheios de sol, sem nuvens no
azul, iguais sempre, eternamente monótonos.
Novembro estava a chegar. Novembro, o mês dos cajus e das ventanias
desabridas, com as suas manhãs friorentas e claras, em que, às vezes, nuvens
sombrias acumulavam-se no horizonte e vão subindo até desmancharem-se
completamente num chuvisco ligeiro que apenas borrifa de leve a superfície seca do
solo, pondo cintilações diamantinas nas folhas do arvoredo; novembro, o mês dos
estudantes, o mês dos exames, que passa levando consigo as ilusões cor-de-rosa
dos que deixam os bancos preparatórios e dos que começam a vida pública.
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O Zuza não tinha pressa em se formar. De resto era uma questão de tempo o
seu bacharelato. Resolvera passar mais alguns meses no Ceará com a família, e
então ir-se-ia completar o curso. Já agora o Ceará não lhe era inteiramente uma
terra má. Habituava-se pouco a pouco a essa vida de província pacata em que se
trabalha um quase nada e fala-se muito da vida alheia. Maria do Carmo tinha-lhe
escrito uma cartinha lacônica e expressiva confessando o seu amor. Entregou-a ela
mesma, no Passeio Público, numa quinta-feira, à noite, uma belíssima noite de luar.
A avenida Caio Prado tinha o aspecto fantástico de um terraço oriental onde
passeavam princesas e odaliscas sob um céu de prata polida, com suas filas de
combustores azuis, encarnados e verdes, com as suas esfinges... Senhoras de
braço dado, em toaletes garridas, iam e vinham ao macadame, arrastando os pés,
ao compasso da música, conversando alto, entrechocando-se, numa promiscuidade
interessante de cores, que tinham reflexos vivos ao luar: de um lado e de outro da
avenida duas alas de cadeiras ocupadas por gente de ambos os sexos, na maior
parte curiosos que assistiam tranqüilamente o vaivém contínuo dos passeantes.
O plenilúnio muito alto dir-se-ia uma grande medalha de prata reluzente com
o anverso para a terra, suspensa por um fio invisível lá em cima na cúpula azul do
céu. Defronte da avenida o mar, na sua aparente imobilidade, tinha reflexos opalinos
que deslumbravam, crivado de cintilações, minúsculas, largo, imenso, desdobrando-
se por ali afora a perder de vista, e para o sul, muito ao longe, a luz branca do farol
tinha lampejos intermitentes, de minuto a minuto. No porto a mastreação dos navios
destacava nitidamente, inclinando-se num movimento incessante para um e outro
lado, como oscilações de um pêndulo invertido.
Uma noite admirável, hein, Maria? dizia Lídia de braço com a amiga,
levada pela onda dos diletantes.
A normalista, porém, não deu atenção à Campelinho, muito distraída,
caminhando maquinalmente, a pensar no estudante. Decididamente entregava-lhe a
carta, fosse como fosse. Eram oito horas já e o Zuza ainda não havia chegado.
Estava aflita, inquieta, impaciente. E se ele não fosse ao Passeio nessa noite? Ela
rasgaria a carta e nunca mais havia de o procurar. O seu coração batia com força. Ia
e vinha, cansada de esperar, com ímpetos de voltar para casa.
Tem paciência, menina, disse a outra. O rapaz não tarda. Está no clube,
talvez.
Qual clube. Era necessário acabar com aquilo. Começava a desconfiar do
Zuza. Certo que ele queria passar o tempo folgadamente, por isto fingira aquela
comédia de amor. Não era possível, não acreditava na sinceridade do Zuza. Se ele
fosse outro procurá-la-ia sempre, em toda parte, nos passeios, no teatro, nos bailes.
E ela é que estava fazendo uma figura ridícula a procurá-lo, como se ele fosse o
único homem do Ceará com quem ela pudesse ser feliz!
E lá veio o maldito nervoso, uma vontade de fechar os olhos a tudo e viver
para si, egoisticamente, como o bicho-da-seda, no seu casulo. Incomodava-lhe o
zunzum de vozes e as pisadas da multidão, a própria música começou a fazer-lhe
mal à cabeça. Que horror! Nem sequer podia passear!
Nisto ouviu uma voz que lhe pareceu a do estudante.
Boa-noite, minhas senhoras!
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Era realmente ele, que vinha chegando ao lado de José Pereira, muito
correto, de chapéu alto, calça de casimira clara, croisé aberto, grandes colarinhos
lustrosos de ponta virada e infalível flor na botoeira.
Maria voltou-se aturdida e um suspiro largo e bom escapou-lhe do peito.
Até que enfim! Ele ali estava, inteiro, completo, absoluto!
Agora, pensava em como entregar a carta sem que ninguém visse, sem
escândalo.
A Lídia sugeriu-lhe uma idéia — iriam à outra avenida, mais sombria e menos
freqüentada; ele naturalmente havia de ir também e então passava-lhe a carta num
aperto de mão franco e amigável.
Sim, vamos...
E dirigiram-se para a avenida Carapini, ensombrada pelos castanheiros, que
formavam uma como abóbada compacta de ramagens através das quais o luar
coava-se aqui e ali, pelas clareiras.
Puseram-se por ali a esperar, em pé defronte dos gnomos de louça, à beira
dos reservatórios de água onde cruzavam gansos e marrequinhas vadias que
grasnavam alegremente, inundadas de luar, ou caminhando devagar, iam contando
os minutos, enquanto a música, no coreto, executava trechos alegres de operetas
em voga. No botequim, rodeado de toscas mesinhas de madeira, abriam-se garrafas
de cerveja com estrondo, e havia um movimento desusado de gente. As normalistas
afastaram-se para mais longe.
Eles não vêm, disse Maria desanimada, enquanto a outra procurava com o
olhar o estudante, que se confundira na multidão.
Tem paciência, tolinha. Por que não hão de vir?
Com efeito, daí a pouco assomou no extremo oposto da avenida a figura
corpulenta de José Pereira, alta, larga, colossal, ao lado do Zuza, que lhe ficava pelo
ombro, apesar de alto também, com o seu corpo fino em contraste frisante com o
todo asselvajado do amigo. Vinham passo a passo, discretamente. Pararam no
botequim, numa roda de rapazes que discutiam calorosamente sobre política.
De braço dado, ombro a ombro, as duas raparigas tinham procurado o lugar
mais sombrio da avenida onde não podiam ser reconhecidas facilmente pelos
passeantes da Caio Prado.
Esperemo-los aqui, disse Lídia, sentando-se com um vago suspiro.
E continuava a chegar gente e a encher o Passeio por todas as avenidas do
primeiro plano, cruzando-se em todos os sentidos, acotovelando-se, confundindo-se.
Na Mororó, mais larga que as outras, havia uma promiscuidade franca de raparigas
de todas as classes: criadinhas morenas e rechonchudas, com os seus vestidos
brancos de ver a Deus, de avental, conduzindo crianças; filhas de famílias pobres
em trajes domingueiros, muito alegres na sua encantadora obscuridade; mulheres
de vida livre sacudindo os quadris descarnados, com ademanes característicos,
perseguidas por uma troça de sujeitos pulhas que se punham a lhes dizer gracinhas
insulsas. Toda uma geração nascente, ávida de emoções, cansada de uma vida
sedentária e monótona, ia espairecer no Passeio Público aos domingos e quintas-
feiras, gratuitamente, sem ter que pagar dez tostões por uma entrada, como no
teatro e no circo.
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Ali não havia distinção de classes, nem camarotes, nem cadeiras de primeira
ordem: todos tinham ingresso para saracotear nas avenidas ao ar puro das noites de
luar.
Apenas quem não tivesse três vinténs estava proibido de sentar-se, porque,
nesses dias, as cadeiras eram alugadas, havia assinaturas baratas. Lia-se mesmo
na Província o seguinte anúncio: “No estabelecimento Confúcio e no Clube vendem-
se cartões de assinatura de cadeiras no Passeio Público, com abatimento nos
preços.” Mas, ora, toda a gente possuía dois vinténs para alugar uma cadeira, e,
ademais, ia-se ao Passeio Público para andar, para se mostrar aos outros como
numa vitrine, não valia a pena ir para ficar sentado, casmurro, a ver desfilar o quê? o
mesmo carnaval de todos os domingos e quintas-feiras, as mesmas caras, as
mesmas toaletes. Não valia a pena decerto.
Quando a música parava, um realejo fanhoso, ao som do qual rodavam
cavalinhos de pau, em um dos ângulos do jardim, gemia, num tom dolente e irritante,
o Trovador, atordoando os ouvidos delicados do Zuza que achava aquilo
simplesmente insuportável e medonho como um assassinato em plena rua.
Como é que se consentia semelhante importunação em uma capital que tinha
foros de civilizada?
Oh! em Pernambuco o italiano que se lembrasse de tocar realejo à porta de
uma república era imediatamente punido a batatas e a cascas de laranja. Estava
muito atrasadinho o Ceará!
Gostava pouco de ir ao Passeio, o que fazia raríssimas vezes a convite de
José Pereira, que comparava aquilo a um paraíso.
O Passeio Público? dizia ele; o Passeio Público é um dos mais belos do
Brasil, é a coisa mais bem-feita que o Ceará possui. Que vista, que magnífico
panorama se aprecia da Avenida Caio Prado, à tarde! Nem o Passeio Público do Rio
de Janeiro!
E justificava o antibairrismo do estudante.
É que tu tens passado a melhor parte da tua vida na Corte e em
Pernambuco, menino, dizia ele. Se vivesses algum tempo nesta terra, havias de
gostar extraordinariamente. Mas o que te posso afirmar é que no Brasil não há uma
cidade tão bem alinhada como esta, uma iluminação mais rica do que a nossa e um
Passeio Público assim como este.
Não duvidava, não duvidava, mas o Ceará ainda estava muito atrasadinho,
lá isso estava.”
Afinal, chegou o momento que Maria do Carmo aguardava com a impaciência
febril de um desesperado. O redator da Província e o Zuza tinham deixado o grupo
de políticos e aproximavam-se a passos lentos. Ao passarem pelas normalistas a
Campelinho levantou-se e, muito desembaraçada, com esse tic indizível das
raparigas habituadas à convivência dos homens e à vida elegante, dirigiu-se aos
dois amigos, saudando-os rasgadamente com um belo sorriso aristocrata:
Como passou, Sr. José Pereira?... Sr. Zuza...
Oh! minha senhora... fizeram os dois ao mesmo tempo.
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E a Lídia, depois de perguntar a José Pereira, com quem tinha alguma
familiaridade, se vira, por ali, D. Amélia, e com uma ponta de cinismo, dirigiu-se ao
Zuza.
Que tal o passeio, Sr. Zuza?
Esplêndido, minha senhora! Está de encantar!
Isto é um inimigo do Ceará, D. Lídia, atalhou José Pereira rindo, com a sua
voz muito grossa, os dentes muito brancos e pequeninos. Isto é um vândalo!
Vândalo, não. Sou apenas um admirador, um amante do progresso. A meu
ver, repito, o Ceará tem muito ainda, mas mesmo muito (e deu umas castanholas
com o dedo) que andar para ser uma capital de primeira ordem.
Eu já sabia que o Sr. Zuza não gostava da terra de Iracema, disse a
normalista.
Maria tinha se deixado ficar à distância, sentada num banco de madeira encostado a
uma árvore, na meia sombra que havia de um lado da avenida, quieta, imóvel,
acaçapada, como uma coisa à toa... Sentia-se cada vez mais tola, mais matuta e
insociável.
A presença do acadêmico punha-lhe calafrios na espinha, e vinha-lhe logo um
desejo vago de isolar-se e não dizer palavra. Não sabia o que aquilo era; o certo é
que a presença do Zuza hipnotizava-a, fazia-lhe perder a cabeça, como se estivesse
diante de um monstro, de uma criatura misteriosa, cujo poder sobre ela fosse
enorme.
Zangava-se consigo mesma nesses momentos. Já estava em idade de perder
todo o acanhamento, e, que diabo! atirar-se à vida, à sociedade, sem medo, sem
receios infundados, sem pieguismos. Bolas! De si para si tornava a jurar nunca mais
ter medo de homem algum, mas no outro dia era a mesma da véspera, fraca,
impotente para dominar-se.
Pois estamos distraindo o espírito, tornou a Lídia. A avenida Caio Prado
está muito cheia; vimos apreciar o movimento daqui, da Avenida dos Charutos.
O Zé Povinho denominava Avenida dos Charutos a avenida Carapinin por ser
mais freqüentada por gente de cor, e Lídia achava muita graça naquilo, não podia
acertar com o verdadeiro nome da sombria aléia, ponto dileto de cozinheiras e
raparigas baratas da rua da Misericórdia.
Ah! fez o Zuza. Então V. Exª não veio só...?
Não, não. Vim com a minha amiga inseparável.
E voltou-se para Maria, que fingia olhar para o coreto da música.
Quem, D. Maria do Carmo? perguntou José Pereira voltando-se também.
Sim, a Maria...
Oh! exclamou o redator dirigindo-se para a normalista. Está triste hoje, D.
Maria? Uma moça bonita não se deixa ficar assim, na sombra. Como vai, como tem
passado, boazinha? Sempre acanhada!... Venha, faz favor? quero lhe apresentar a
um moço muito chique e que lhe aprecia muito.
Quem, o Sr. Zuza? Ela já conhecia. Estava descansando.
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Ó Zuza!
O acadêmico e a Lídia aproximaram-se.
E José Pereira num tom de cortesia:
Apresento-te aqui a Sra. D. Maria do Carmo, normalista, e uma das moças
mais distintas da nossa sociedade, uma flor!
Riram-se todos àquele disparate premeditado, pondo uma nota alegre nesse
obscuro recanto do Passeio.
Oh! Já se conheciam? Não sabia, por Deus! Então já conheces a moça
mais bonita do Trilho de Ferro, hein? Uma coisa que não sabes: faz versos
também...
Maria cumprimentou o estudante com um modo muito discreto, conservando-
se sentada, aflita.
A música deu começo a um tango repinicado, saltitante e carnavalesco,
espécie de Chorado Baiano, com rufos de tambor, em que sobressaía o clarinete
cujas notas, muito prolongadas e queixosas, morriam languidamente.
De quando em quando os instrumentos faziam uma pausa e rompia um coro
de vozes grossas. — Quem comeu do boi?... que a molecagem, lá fora, repetia
numa desafinação irritante de vozes finas.
Vamos tomar alguma coisa, insistiu José Pereira oferecendo o braço a
Lídia cortesmente. Ó Zuza, você dá o braço a D. Maria do Carmo.
E, dois a dois, dirigiram-se para o botequim, José Pereira à frente com a
Campelinho.
A ocasião era oportuna.
Maria a princípio desanimou completamente, mas, num ímpeto decisivo e
franco, fazendo um esforço supremo sobre si mesma, nervosa, mais tímida que
nunca, sacou a carta, passou-a ao estudante, com a mão trêmula, sem proferir
palavra, e imediatamente veio-lhe um arrependimento profundo de se ter
comprometido daquele modo, como se houvesse cometido um grande crime, como
se naquela carta fosse toda a sua honra, todo o seu pudor de rapariga honesta.
Estava perdida! Pensou, e já lhe parecia que toda a gente, — o Passeio Público em
peso — seguia-lhe as pegadas observando-lhe todos os movimentos.
Ah! fez o Zuza satisfeito. Pensei que não respondesse...
E sentindo-se dono daquela prenda, com um frêmito de pálpebras através dos
óculos de ouro, aconchegou a si o braço roliço da normalista meio descoberto.
Maria conservou-se calada, sentindo cada vez mais forte o poder misterioso
do estudante sobre seu coração extremamente sensível e bom. Deixou-se ir
automaticamente, como uma sonâmbula.
Sentaram-se. José Pereira quis saber o que desejavam tomar. Havia sorvete,
cidra, cerveja, vinho do Porto, chocolate...
Cerveja, acudiu a Lídia.
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Todos assentaram, depois de alguns minutos de indecisão, em tomar cerveja,
e o redator da Província, sempre alegre e cortês, enfiando a cabeça para dentro do
botequim, pediu três garrafas de Carls Berg, gelo e quatro copos.
O serviço do botequim era feito por um menino que entrava e saía sem
descanso, numa azáfama dos diabos, suado, com os cabelos empastados na testa,
sem paletó, uma toalha nauseabunda e úmida no ombro, acudindo, ele só, a todos
os chamados.
Rapazes impacientes, de chapéu caído para a nuca, tresandando ixora, muito
arrebitados, batiam com as bengalas sobre as mesinhas.
Uma garrafa de cerveja, menino!
Ó pequeno, aqui! Olha dois cafés!
O pobre caixeirinho não tinha trégua com a cara enfarruscada, resmungando.
De vez em quando, esfregava a toalha nas mesas com força, salpicando restos de
bebidas nos janotas.
Ó burro, estás cego?
O menino zangava-se e corria a outra mesa.
Vinha de dentro do quiosque um cheiro ativo de café requentado. Saíam
bandejinhas com chocolate e pão-de-ló.
Muito mal servido isto, objetou Zuza com o seu ar afetado de fidalgo,
limpando os bigodes. Tenho notado mesmo que aqui, no Ceará, não se usa
guardanapo...
É objeto de luxo, disse José Pereira, atirando também o seu dichote.
E pouco a pouco a conversação foi-se animando, pouco a pouco foi-se
estabelecendo uma como intimidade entre todos, ao passo que os copos se
esvaziavam.
Pediram mais uma garrafa de cerveja.
A própria Maria do Carmo tinha o rosto em fogo. Foi perdendo o acanhamento
e ria também com os outros quando o redator dizia uma pilhéria.
A Lídia, essa lambia os beiços a cada copo que virava de dois tragos. Era a
sua bebida predileta — a cerveja. Bebera pela primeira vez ali mesmo, no passeio,
por sinal o alferes Coutinho, do batalhão, é que tinha pago. Estava em meio do
terceiro copo. — “Aquilo é que era bebida agradável e higiênica”, dizia ela. Não
gostava de licores e bebidas adocicadas. A champanha mesmo enjoava-lhe.
E que tal acha o peru? perguntou maliciosamente José Pereira.
Isso era outra coisa: O peru era uma excelente bebida; bastava ter sido
inventada pelo presidente da Província, um moço de educação muito fina, viajado.
Diziam até que tinha ido à Rússia...
Então falou-se do presidente, que José Pereira não perdia ocasião de elogiar
exageradamente.
Um homem superior, gabava ele, um gentleman, um fidalgo de raça, uma
dessas criaturas que a gente ficava querendo bem por toda a vida. Pois não!
Excelente amigo, dedicado até, jogador de florete, sabendo montar a cavalo
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“divinamente” e atirando ao alvo com uma perfeição ultra! E que educação, que
finíssima educação social! O homem falava francês como um parisiense, entendia
inglês e tinha um modo excepcional de se portar em qualquer ocasião, solene. Com
tudo isto, acrescentava pigarreando, era muito bom democrata, sim senhores.
Passeava sem ordenança, a pé; ia ao mercado pela manhã “ver aquilo” como
qualquer plebeu, e jogava bilhar na Maison Moderne... Que queriam mais? De um
homem assim é que o Ceará precisava. Ele ali estava na pessoa do Castro.
Tratava o presidente familiarmente, como a um amigo de muita intimidade.
Por sua vez o Zuza elevava o presidente aos cornos da lua. A sua opinião
resumida era a seguinte: “Todos os cearenses juntos, trepados uns sobre os outros,
não chegavam aos pés do fidalgo paulista.”
A Lídia achava os olhos do presidente “simplesmente adoráveis”.
Eu o que mais admiro nele é o pescoço, a brancura escultural do pescoço,
disse Maria.
O presidente foi analisado escrupulosamente da cabeça aos pés, como uma
estátua grega, ao sabor da cerveja Carls Berg.
Já não havia quase ninguém no Passeio, quieto agora, sem o ruído
tumultuoso dos passeantes, sem música, todo iluminado pela claridade branda e
melancólica do luar. Apenas se ouvia o grasnar áspero dos gansos nos
reservatórios, a grita estridente das marrequinhas e a toada dos soldados no quartel,
rezando.
José Pereira tinha pedido mais uma garrafa de cerveja e instava para que
Maria do Carmo tomasse “um bocadinho só”. A normalista, porém, cobria o copo
com a mão, recusando. Que não: estava muito cheia, sentia uma pontinha de dor de
cabeça. Botasse para a Lídia...
Ora, fizesse favor, aceitasse, por vida de seus magníficos olhinhos de
princesa encantada, suplicou o redator da Província fixando os olhos em Maria que
esperava o assentimento do Zuza.
Por que não toma, D. Maria? perguntou este num tom quase imperativo. O
José Pereira pede-lhe com tão bons modos...
Maria aceitou com um gesto de repugnância.
À sua saúde, fez José Pereira tocando o copo no da normalista.
Houve um tilintar de cristais chocando-se de leve, e todos beberam
ruidosamente.
Agora vamo-nos chegando que se faz tarde, propôs Lídia levantando-se.
Mal sustinha-se em pé. José Pereira ofereceu-lhe o braço.
Uma languidez extrema tinha-se apoderado de Maria, cujas pálpebras
pesavam como chumbo. Foi preciso amparar-se ao estudante para não cair
redondamente.
Uma tonteira! queixou-se ela fechando os olhos.
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Não era nada, disse o outro passando-lhe o braço pela cintura; e enquanto o
redator seguia pela avenida com Lídia, deixavam-se ficar naquela posição, em pé
ambos e quase abraçados.
Olhe, D. Maria...
A rapariga tentou abrir os olhos, e nesse momento, naquele silencioso
recanto do Passeio estalou um beijo. Depois seguiram também, e, juntos, todos
quatro foram tomar café no Restaurante Tristão.
CAPÍTULO VIII
Maria do Carmo chegou à casa ofegante, esfalfada, com a cabeça a arder,
muito corada e alegre, o olhar cheio de meiguice, transfigurada pelos efeitos da
cerveja, rindo por dá cá aquela palha. Atirou-se com todo o peso do corpo nos
braços de João da Mata, fazendo-lhe festa, muito amorosa, como uma cadelinha de
estima depois de uma ausência. No seu olhar aveludado e submisso havia uma
súplica irresistível.
Cheguei um bocadinho tarde, não é assim, padrinho? perguntou cosendo-
se ao amanuense, a cabeça derreada para trás.
João olhou-a, olhou-a, hesitante, com um ar de extrema bonomia no rosto ainda há
pouco carrancudo.
Tinha acabado de ralhar pela demora da afilhada e agora achava-se sem
ânimo para dizer uma só palavra áspera à rapariga, cujo olhar fascina-va-o como um
abismo. Ali estava ela a seus pés, submissa e mais bela do que nunca, acariciando-
lhe a barba, toda sua, como uma escrava.
Sim, senhora, chegou um bocadinho tarde. Isto não são horas de uma
moça estar passeando...
Afetava um tom repreensivo e ao mesmo tempo paternal.
Quase dez horas! Não era bonito aquilo, tivesse mais juizinho. Enfim, por
aquela vez, o dito por não dito, mas por amor de Deus, não fizesse outra, senão,
senão...
Mas padrinho...
Não tem padrinho, não tem nada. Pode ir ao Passeio, mas, por favor, não
me volte a estas horas...
E afagava os cabelos de Maria, passava-lhe a mão nas faces, atoleimado,
imbecil como um velho impotente, o olhar aceso através dos óculos escuros, a calva
reluzente como uma grande bola de bilhar.
Tu bebeste cerveja, aposto, tornou tomando entre as mãos a cabeça da
rapariga e cheirando-lhe a boca. Ora se tomou...
Tomei, sim, padrinho, tomei um copo assim. E indicou o tamanho do copo.
Mas não estou tonta, não, padrinhozinho... Olhe, foi só um copo.
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E quem to pagou?
Quem pagou?... Ora, quem pagou...
Sim, quero saber quem te pagou a cerveja. Tu não levaste dinheiro...
Quem pagou foi o Sr. José Pereira...
Eu logo vi! Aposto em como o tal Sr. Zuza também entrou na festa.
Maria fez-se desentendida, e agarrando-se ao pescoço do amanuense, com
um pulo, plantou-lhe um beijo na testa.
João da Mata desequilibrou-se.
Ora, ora, ora, esta menina!...
Não sabia o que fizesse. Ralhar? Não. Maria estava encantadora e pagava-
lhe com beijos as recriminações. Calar? Também não. A rapariga era capaz de
reincidir na falta. O verdadeiro era não falar mais no Zuza. E João da Mata rematou
a conversa:
Vá, minha filha, vá dormir, que você não está boa...
Maria beijou, como de costume, a mão descarnada do padrinho, e, de um
salto, recolheu-se ao seu querido quarto do meio, caindo pesadamente na rede,
vestida como estava, sem ao menos lembrar-se de soltar os cabelos, tendo apenas
tirado os sapatinhos e desabotoado o corpete.
Arre! Estava muito fatigada, precisava descansar.
E adormeceu imediatamente com um sorriso adorável na pequenina boca
entreaberta.
Teve sonhos impossíveis e horrorosos nessa noite. Cerca de onze horas
acordou sobressaltada com um pesadelo. Sonhou, coisa extravagante! que ia
sozinha por um caminho deserto e interminável onde havia urzes e flores em
profusão. Estava perdida, sem saber o rumo que devia tomar, caminhando,
caminhando sem olhar para trás.
De repente — Arre corno! ouviu a voz aguardentada do Romão, o mesmo que
fazia a limpeza da cidade, e logo surgiu-lhe em frente a figura nauseabunda e
miserável do negro. Era um Romão colossal, grosso e musculoso como um
Hércules, nu da cintura para cima, as espáduas largas e reluzentes de suor, calças
arregaçadas até os joelhos, preto como carvão, as pernas curvas formando um
grande O, os braços levantados, segurando na cabeça chata um barril enorme
transbordando imundícias! — Arre corno! gania o negro no silêncio da noite clara,
cambaleando muito bêbado, perseguido por uma cáfila de cães que ladravam
desesperadamente. Fazia um luar esplêndido...
Assim que deu com os olhos nela, o negro atirou ao chão o barril de
porcarias, que se despedaçou empestando o ar. E o Romão, cambaleando sempre,
muito fedorento, atirou-se a ela, rilhando os dentes num frenesi estúpido, beijando-a,
besuntando-a.
Que horror! Ela, mais que depressa, cobrindo o rosto com as mãos, quis fugir,
sentindo toda a hediondez daquele corpo imundo, mas o negro deitou-a no chão
com força e... E Maria do Carmo acordou quase sem sentidos, sentando-se na rede,
com um grande peso no coração, aflita, sufocada, sem poder falar, porque tinha a
língua presa...
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Virgem Maria! suspirou logo que pôde voltar a si. Que sonho feio!...
Suava em bicas, muito pálida, como se acabasse de sair de um forno. Só
então reparou, muito admirada, que ainda estava com a mesma roupa com que fora
ao Passeio Público. Riscou um fósforo com a mão trêmula, acendeu a velinha de
carnaúba e começou a despir-se depressa.
Lá fora, na rua, passava uma serenata. Uma voz de homem cantava uma
modinha conhecida, acompanhada de violão e flauta:
Não cho... res, querida Elvi... ra...
Maria sentia-se doente, com um sabor desagradável na boca e uma dor forte
nas têmporas. Vinha-lhe uma vontade de vomitar, de deitar fora a cerveja que
bebera; sentia um mal-estar geral em todo o corpo, como se estivesse para cair
gravemente doente.
Que seria, Deus do céu? Aproximou a vela do espelho, um velho traste com o
aço muito estragado, e achou-se abatida, os olhos fundos, uma crosta
esbranquiçada na língua. Nunca mais havia de tomar a tal cerveja, uma bebida
selvagem, sem gosto, repugnante como um vomitório. Só tomara naquela noite por
causa do Zuza, porque ouvira dizer que “era moda nas grandes cidades”, na Corte e
no Recife, as senhoras tomarem cerveja. Mas credo! noutra não caía. Se soubesse
teria pedido cidra.
Quis chamar a Mariana para lhe fazer um chazinho de laranja, mas era muito
tarde, podiam desconfiar e, depois o padrinho agora dormia na sala de jantar...
Não, não, era melhor não incomodar a ninguém! aquilo havia de passar, se
Deus o permitisse.
Tinha até se esquecido de rezar...
Ajoelhou-se, mesmo em camisa, diante da oleografia que representava o
Cristo abrindo o coração à humanidade, balbuciou uma oração, persignou-se, e,
mais aliviada, mais fresca, adormeceu novamente, pensando no estudante.
O amanuense, no mesmo dia da briga com a mulher, resolvera de então em
diante dormir numa rede na sala de jantar. Uma figa! não estava mais para suportar
o calor infernal da alcova, e, além disto, viviam ultimamente, ele e D. Terezinha,
arengando consecutivamente, como duas crianças invejosas, pela coisa mais
insignificante. Ele, muito bilioso, achava que tudo em casa ia muito ruim, que D.
Terezinha não se importava com as coisas, que não se fazia mais economia. — “Um
gasto enorme de dinheiro! um desperdício sem nome, um esbanjar sem trégua, e,
afinal de contas, não passavam da carne cozida e do lombo assado com arroz. Isso
assim ia mal, muito mal. Depois ninguém fosse chorar por dinheiro...”
Quem, ela, chorar? Que esperança! Estava muito enganado, seu “papa-angu
de boceta”. Tinha muito para onde ir, não faltavam casas de gente séria no Ceará.
Socasse o seu dinheiro onde quisesse...
Toda a vizinhança, ávida de escândalos, ouvia com risinhos de pérfida
satisfação aqueles torniquetes às vezes imorais, até do amanuense com a mulher.
Era um divertimento.
Deus os fez e o diabo os ajuntou, dizia a mulher de um barbeiro que
morava ali perto, paredes-meias.
Quando João da Mata entrava na pinga então a coisa tomava proporções
assustadoras. Ameaçava expulsar a mulher de casa a pontapés, berrava como um
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possesso, batia portas, quebrava louça ao jantar, rogava pragas, e a própria criada
não escapava à sua cólera.
Mariana era uma rapariga muito pacata e em pouco se acostumou às
impertinências ríspidas de “seu Joãozinho”.
Para que havia de dar o pobre homem, dizia ela às vezes, penalizada,
cruzando os dedos sobre o ventre. Credo! a gente vê coisas! Hum, hum!...
E muito risona, muito tola com o seu ar idiota de animal dócil, lá se ia para a
cozinha cuidar das panelas e da louça, porque era ao mesmo tempo cozinheira e
copeira.
Quase todos os dias a mesma lengalenga, o mesmo duelo de palavrões de
porta de feira, a mesma pancadaria de descomposturas. Não era raro sair da boca
desdentada do amanuense uma obscenidade!
Jesus! exclamava Maria fugindo para o seu quarto com as mãos nos
ouvidos.
Ao ouvir a voz de João da Mata berrando como um danado, a vizinhança
chegava às janelas ávida de escândalo. Meninos em fralda de camisa, chupando o
dedo, paravam defronte da porta do amanuense, muito espantados, olhando cheios
de curiosidade pelas frinchas da rótula.
E a algazarra crescia lá dentro, como se papagueassem muitas pessoas a um
tempo.
As duas criaturas faziam as delícias da rua do Trilho, que se regozijava com
aqueles espetáculos gratuitos de um cômico irresistível.
— Aquilo ainda acabava mas era num escândalo badejo”, resmungava a
mulher do barbeiro, uma magricela com cara de quem está sempre com dor de
barriga.
O Loureiro repetia indignado, dando-se ares de homem sério e reformador de
costumes: “— Uma gente sem-vergonha. Uma canalha! Tomara já se casar para
ver-se longe de semelhante peste. Até era feio a Lídia ter amizade com aquela
gente.”
E aconselhava a rapariga que fosse, pouco a pouco, deixando de ir à casa de
João da Mata, porque não lhe ficava bem, a ela “rapariga de família”, em vésperas
de se casar, ter relações com uma corja daquela.
Já não se jogava o víspora em casa do amanuense. As velhas coleções dormiam
esquecidas no saquinho de baeta verde em cima do piano.
D. Terezinha transformava-se a olhos vistos. Pouco lhe importavam os móveis
cobertos de poeira e de fuligem das locomotivas; protestara nunca mais abrir o bico
para dar ordem naquela casa. Estava cansada de agüentar desaforos “do corno” do
Sr. João da Mata.
E tudo por quê? Por causa de uma peste que se lhe metera casa adentro e
agora andava mostrando os dentes e mais alguma coisa ao padrinho, com partes de
afilhada. Não, ela é que não servia de alcoviteira a ninguém, meu bem. Estava muito
enganadinho. Se quisesse fazer mal à sonsa da Maria fosse fazer onde bem
entendesse, mas ela, Teté, não servia de travesseiro, não, mas era o mesmo...
Estimava muito que lhe deixassem dormir só, na sua cama. Não perdia nada.
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Por seu lado o amanuense encarava a mulher com um desprezo solene.
Vinha-lhe agora um arrependimento profundo por ter feito a asneira de amigar-se
com D. Terezinha. Tanta rapariguinha fresca e bonita vivia à procura de um homem,
tanta retirante “moça” e pobre, tanta gente boa no mundo, fora amigar-se logo com
quem? com quem, Sr. João da Mata? Com uma sujeita feiosa que só tinha carne
nos quadris, um monstro de gordura, com pernas finas e ainda por cima estéril! Que
grandíssima cabeçada! Entretanto, podia estar muito bem casado com uma mulher
de certa ordem, rica mesmo, bem-educada e bonitona.
Depois que se mudara para a sala de jantar apoderou-se dele um
aborrecimento inexplicável por D. Terezinha. Passava horas e horas estendido na
rede, de papo para o ar, em ceroula e camisa de meia, acendendo cigarros, a
pensar na vida, como um grande capitalista que sonha no dinheiro acumulado
usurariamente, e Maria do Carmo aparecia-lhe na imaginação como um tesouro
preciosíssimo, que ele receava fosse cobiçado um belo dia pelo rapazio galante da
cidade. Estava ficando velho e era preciso aproveitar o resto da vida. É verdade que
em 77, na seca, tinha desfrutado muita “bichinha” famosa. Nesse tempo ele era
comissário de socorros... Mas nenhuma daquelas retirantes chegava aos pés da
afilhada. Chegava o quê? Nem havia termo de comparação. Maria, além de ser uma
rapariga asseada, e apetitosa como uma ata madura, tinha sobre as outras a
vantagem de ser inteligente e educada.
Estas qualidades da normalista tinham um encanto extraordinário aos olhos
do amanuense. Nunca em sua vida cheia de aventuras amorosas encontrara uma
rapariga nas condições de Maria do Carmo, filha de família, branca, singularmente
encantadora e que estivesse ao alcance de seu coração, ah! nunca.
Maria punha-o doido com os seus belos olhinhos cor de azeitona. A sua
imaginação criava planos fantásticos, inexeqüíveis, por meio dos quais ele pudesse
iludir a afilhada, e, zás! tirar-lhe o lírio branco da virgindade. Não queria precipitar-se
com risco de um escândalo comprometedor, isso não. Preferia insinuar-se pouco a
pouco, devagar, no ânimo da pequena, sem a sobressaltar, fazendo-lhe todas as
vontades, de modo que, na ocasião oportuna, no momento preciso ela se
entregasse prontamente, sem resistência.
Com efeito, Maria agora, para não desagradar ao padrinho, obedecia-lhe
cegamente, com a resignação indolente, fria duma escrava. Que havia de fazer, ela
uma pobre filha adotiva, se o padrinho era quem lhe dava de comer e de vestir?
Consentia, pudera não! sem a menor resistência, que o amanuense afagasse-lhe o
bico dos seios virgens e lhe passasse a mão pelas coxas tenras e polpudas...
Está fazendo cócega, padrinho, murmurava rindo, com um riso sem
expressão, que lhe vinha do fundo da alma de donzela.
Sossega, tolinha, ralhava João.
E ela não tinha remédio senão ficar quieta, imóvel, com o olhar úmido no teto,
abandonada às carícias sensuais daquele homem repugnante que a perseguia
como um animal no cio, mas que afinal de contas era seu padrinho...
Muitas vezes, ah! quase sempre, vinham-lhe ímpetos de reagir com toda a
força do seu pudor revoltado, mas ao mesmo tempo lembrava-se que era só no
mundo, porque já não tinha pai nem mãe, e podia ser muito desgraçada depois...
Sim, era preciso paciência para suportar tudo até que o Zuza se decidisse a ampará-
la sob a sua proteção de rapaz rico. Vivia agora, sabe Deus como, entre a
indiferença cruel de D. Terezinha e a vontade soberana do amanuense, por assim
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dizer sozinha naquela casa onde tudo tinha o aspecto sombrio e desolado da
pobreza desonesta. Ah! mas aquilo havia de acabar fosse como fosse...
A própria Lídia já não a procurava como dantes, toda orgulhosa com o seu
noivo. A felicidade da amiga aumentava-lhe ainda mais o desespero. Decididamente
era muito infeliz. Aí vinham-lhe outra vez as lágrimas e os soluços concentrados.
Recolhia-se com os olhos cheios de água ao seu quarto, com uma tristeza infinita no
coração e só achava conforto nas confidências amorosas do Zuza, que ela guardava
como uma relíquia no fundo de uma caixinha perfumada de sândalo. Esquecia-se a
lê-las devagar, repetindo frases inteiras, admirando a bela caligrafia em que elas
eram escritas, beijando-as sobre a assinatura do estudante, toda entregue ao seu
amor.
Havia uma semana que se correspondiam por cartas onde a vida de ambos
era descrita como num diário, minuciosamente, em todos os seus detalhes. Porque o
futuro bacharel desconfiara do modo frio com que o amanuense o recebia, e, sem
dizer nada a ninguém, resolvera nunca mais pôr os pés naquela casa que ele
“honrara” durante quase um mês com a sua presença. Pílulas!
Todos os dias encontrava o sujeito com uma cara de mata-mouros, a
pequena tinha ordem para não lhe aparecer, e mesmo era uma estopada ir ao Trilho
a pé, sujeitando-se à crítica idiota dos mequetrefes da vida alheia. Estava decidido
— não iria mais ao Trilho de Ferro. E cumpriu a sua palavra com a dignidade de um
fidalgo.
Encontravam-se diariamente na Escola que o Zuza freqüentava agora com a
pontualidade irrepreensível de um inglês. E, como não podiam conversar à vontade
sem escandalizar os créditos do estabelecimento já um tanto abalados, trocavam
cartinhas no intervalo das aulas.
Era voz geral na cidade que o estudante estava disposto a casar com a
normalista mesmo contra a vontade de seus pais e a despeito da burguesia
aristocrata que lamentava por sua vez tamanho “desastre”. Um rapaz fino, com um
futuro invejável diante de si, estimado, amigo do presidente, casar-se com uma
simples normalista sem eira nem beira! E em toda a parte, desde o Café Java até ao
Palácio da Presidência comentava-se, discutia-se ruidosamente o assombroso
acontecimento. Uns asseguravam que o Zuza estava desfrutando a rapariga para
depois — fuisset! pôr-se ao fresco e nunca mais pisar o solo cearense. Outros,
porém, eram de parecer que o acadêmico tinha boas intenções e até fazia bem
levantar da miséria uma criatura como a Maria, que estava se perdendo em
companhia do amanuense. Havia outro grupo que acreditava no casamento do Zuza
com a normalista porque, na sua opinião, a menina já “estava pronta”, isto é, o
estudante já lhe tinha “plantado no bucho um Zuzinha”. E, assim, multiplicavam-se
as opiniões, enquanto o Zuza, fazendo ouvidos de mercador, não se dava ao
trabalho de desfazer boatos. — Que se fomentassem todos. Não tinha que dar
satisfações a ninguém por seus atos.
Um belo domingo a Matraca lembrou-se outra vez de curtir o couro ao Zuza
em redondilhas escandalosas que enchiam quase toda uma página. Os vendedores
do pasquim atravessavam as ruas em disparada, esbaforidos, apregoando alto e
bom som — o Namoro do Trilho de Ferro!
Em todas as esquinas surgiam meninos maltrapilhos sobraçando o jornaleco,
arquejantes sob a luz crua do sol que incendiava a cidade nesse luminoso meio-dia
de novembro.
O casarão do governo, acaçapado e informe, com o seu aspecto branco e
tradicional de velho edifício português, do tempo do Sr. D. João VI, com a sua fila de
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janelas, alinhadas à maneira de hospital, espiando para a praça do General Tibúrcio,
parecia dormir um sono bom de sesta, batido pelo sol, na mudez solene de um
monumento arqueológico. Tinha dado meio-dia na Sé; ainda vibrava no espaço
iluminado e azul a última nota das cornetas.
Àquela hora o estudante acabara de almoçar com o presidente, e, pernas
cruzadas, reclinado numa cadeira de balanço, deliciava-se a fumar tranqüilo o seu
havana, mais o José Pereira, na larga sala de recepção do palácio.
De repente:
A Matraca a 40 réis! O namoro do Trilho de Ferro! O Estudante e a
Normalista! Grande Escândalo!
Um menino passava gritando a todo o pulmão numa voz fina de adolescente,
as notícias da folha domingueira.
Zuza, com o rosto afogueado pelo Bordeaux que tomara ao almoço,
estremeceu na cadeira.
Hein?
O vendedor de jornais repetia a lengalenga lá fora, na praça. Então o
estudante fulo de raiva, sacudindo fora o resto do charuto, levantou-se e foi direito à
janela.
Psiu! Psiu! Ó menino da Matraca!
Eu?
Sim, você mesmo!
Enquanto se esfrega um olho os dois encontraram-se embaixo, na porta do
palácio.
Que está você a gritar, seu patife? perguntou Zuza segurando o vendedor
pelas orelhas.
Nada, seu doutô; é o Namoro do Trilho.
Você ainda repete, seu grandíssimo corno!
E, depois de encher o pequeno de petelecos, o futuro bacharel tomou-lhe
todos os exemplares da Matraca rasgando-os imediatamente.
O outro abriu a goela a chorar encostando-se à parede, com a cabeça entre
os braços.
E puxe! continuou o Zuza implacável, com o seu olhar de míope. Vá, vá,
vá, e diga ao dono desta imundície que eu ainda lhe quebro a cara a bengaladas,
hein! Vá, vá, vá...
O pequeno não teve outro jeito senão ir-se arrastando pela parede, muito
triste, resmungando, protestando nunca mais vender a Matraca, enquanto o Zuza
explicava o caso ao José Pereira e ao presidente, que o receberam com uma
explosão de risos.
O caso não era para rir, dizia ele formalizado, limpando os óculos com a
ponta do lenço de seda. O caso não era para rir, que diabo! Ainda havia de quebrar
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a cara do redator da Matraca. Aquilo excedia as raias do decoro e do respeito que
se deve ter à sociedade. Que essa! Não era nenhum filho da mãe que estivesse a
servir de judas a Deus e ao mundo. Era assim que resolvia questões de dignidade
pessoal — à bengala!
Mas vem cá, ó Zuza, disse amigavelmente o fidalgo paulista; tu perdes o
tempo e o latim com semelhante gente...
Eu já o aconselhei, interrompeu José Pereira. O desprezo é a arma dos
fortes.
Qual desprezo, homem! O desprezo é a arma dos covardes. Eu cá resolvo
as coisas positivamente a bengaladas.
Quantas já deste no redator da Matraca? perguntou José Pereira para
confundir o Zuza.
Não dei nenhuma ainda, mas pretendo, antes de me ir embora, quebrar-lhe
os queixos, sabe você?
O presidente para não provocar mais a bílis do Zuza perguntou, a propósito
de jornais que se ocupavam da vida alheia, se tinham lido o Pedro II, e a conversa
descambou para o terreno árido da política local.
Que diz o papelucho? perguntou o fidalgo de dentro dos seus grandes
colarinhos lustrosos.
A mesma coisa de todos os dias, respondeu José Pereira com um gesto de
desprezo. Que você é um péssimo presidente, que você gosta de tomar champanha
e, finalmente, que você “vai encaminhando as coisas públicas para um abismo”.
Ora, suportem-se umas coisas destas! saltou o Zuza. Eis aí: é ou não para
se dar o cavaco?
Mas, Zuza, eu vou respondendo a cada artigo com a demissão de dez
funcionários amigos da oposição.
Queres ver uma coisa?... Que dia é hoje?...
Domingo...
Pois bem, vou mandar lavrar a demissão de alguns empregados públicos
que se dizem miúdos, com a data de hoje. Eis aí está como se resolvem questões
desta ordem. Insultam-me, não é assim? injuriam-me, acham que sou mau, que não
tenho juízo, que sou indiferente à sorte do Ceará... Pois bem, hoje mesmo muita
gente vai pagar pelos diretores do tal partido. Nada mais simples, não achas?
Ante a resolução pronta e decisiva do presidente o Zuza ficou perplexo.
Decididamente era um grande homem aquele!
Mas olha que vais reduzir à miséria muitas famílias...
O presidente teve um sorriso de suprema indiferença àquelas palavras do
estudante e dirigiu-se para a secretaria com o passo firme de quem caminha para
uma ação nobre com o seu belo porte de diplomata.
Zuza pretextou uma forte enxaqueca e abalou, a pensar no vendedor da
Matraca. Tinha feito mal em esbofetear o rapazinho, porque afinal de contas o
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pequeno estava inocente, nada tinha que ver com os desaforos publicados. Era um
simples vendedor, coitado.
Enfiou pela rua da Assembléia macambúzio, com um ar indolente, chapéu
derreado para trás, riscando o chão com a bengala, muito distraído.
“— Que diabo! A gente sempre faz asneiras...”
E, pecador arrependido, entrou em casa esbaforido, soltando, logo à entrada,
um bocejo de velho preguiçoso.
Entretanto a demora do Zuza na capital cearense começava a inquietar o
coronel Souza Nunes. Era época de exames e o estudante nem sequer falava em
tirar passagem para o Recife onde já devia se achar a fim de concluir o curso.
Se lhe entrasse na cabeça a idéia de casamento com a tal senhora
normalista, então, adeus, pensava o coronel; ia tudo águas abaixo. Seria talvez
preciso improvisar um passeio à Europa, do contrário o rapaz era capaz de fazer
uma estralada dos diabos.
Ia falar ao Zuza como pai, ia repreendê-lo severamente, dizer-lhe com a
franqueza rude de um superior para um subalterno que aquilo não podia continuar,
que era tempo de seguir para o Recife, que se preparasse.
Mas o filho tinha umas maneiras capciosas de convencê-lo, fazendo-se
enérgico, revoltando-se contra a maledicência pública, provando-lhe com
argumentos fortes que tudo que se dizia na rua era mentira, que ele, Zuza, até
desejava ir-se logo para Pernambuco, o que decididamente faria no primeiro vapor.
O certo é que os vapores passam, e tornam a passar e tu vais ficando,
objetou-lhe um dia o coronel que se abstinha de falar na normalista.
... Mas, ora, há tempo bastante para tudo. Os exames começam tarde este
ano.
Qual tarde, meu filho! tu estás perdendo um tempo precioso quando já
devias estar lá.
Havia entre os dois, pai e filho, uma familiaridade moderna, como se fossem
apenas irmãos.
A esposa do coronel é que não se envolvia em questões.
Adorava o filho, é verdade, tratava-o com todo carinho, tinha orgulho nele,
mas sempre muito boa, respeitava as resoluções do Zuza e evitava contrariá-lo na
mais pequena coisa. Demais D. Sofia estimava até que o filho se demorasse o mais
possível em sua companhia.
A formatura do Zuza era para ela uma questão secundária que havia de se
resolver mais cedo ou mais tarde; de si para si achava que o estudante tinha pouco
amor aos estudos, mas não revelava este seu pensamento a ninguém. Vivia
constantemente incomodada, com fortes dores no útero provenientes de um parto
infeliz em que fora preciso arrancar a criança a “forceps”.
Era uma senhora de quarenta anos com todos os característicos de uma boa
esposa: inimiga de passeios, importando-se pouco ou nada com a vida elegante,
arrastando a sua enfermidade incurável pelo interior sossegado da casa. O Zuza
tinha-lhe uma afeição supersticiosa. D. Sofia era a única mulher sincera e boa no
mundo a seus olhos de filho agradecido. Um pedido, um desejo de sua mãe era
satisfeito imediatamente, sem considerações, custasse o que custasse.
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Ela por sua vez, a pobre senhora, retribuía-lhe o afeto com a mesma
dedicação, com o mesmo desprendimento, não contrariando o mais leve
pensamento do rapaz.
“É o que me obriga a vir ao Ceará, dizia ele, é minha velha, do contrário
jamais eu tornaria a esta província insuportável.”
Mas entravam e saíam vapores e ele deixava-se ficar com o seu tédio, preso
irresistivelmente aos olhos cor de azeitona da normalista como a uma forte cadeia
de ferro. — “Tinha tempo, tinha tempo...” repetia, decidido a passar o Natal em
Fortaleza. Que diabo! deixassem-no ao menos provar a tradicional aluá. Os
exames? ninguém se incomodasse, faria-os em março; era até melhor, porque
assim podia estudar mais e “fazer figura”.
E os dias passavam e cada vez crescia mais no seu espírito o desejo
veemente, a ambição romântica de possuir completamente aquela rapariga que
tinha se apoderado de todo seu coração. Queria para esposa uma mulher nas
condições de Maria do Carmo, órfã, de origem obscura e pobre. Decididamente
casava-se desta vez embora isso custasse algum desgosto ao pai. Todo homem
deve ter a liberdade de escolher a mulher que melhor lhe quadrar.
Mas olha que a rapariga é normalista... lembrava José Pereira
maliciosamente.
Que importava isso? Fazia muito bom juízo da sociedade cearense para não
acreditar que todas as normalistas do Ceará fossem indignas de um rapaz de certa
ordem. O que queria é que a pequena soubesse corresponder à sua confiança.
CAPÍTULO IX
Foi num sábado, à noite, que se realizou cerimoniosamente, com toda a
pompa de uma festa de província, o casamento da Lídia com o guarda-livros, na
Igreja de N. S. do Patrocínio.
Às sete horas parou à porta da viúva Campelo um carro e saltou o Loureiro
todo de preto, gravata branca, o cabelo lustroso, repartido ao meio em trunfas,
empunhando o seu famoso claque. Estava glorioso dentro da sua casaca de pano
fino mandada fazer especialmente para o ato.
Que festa na rua do Trilho!
No quarteirão compreendido entre a rua das Flores e a do Senador Alencar
notava-se um movimento desusado de gente que se debruçava às janelas e parava
na calçada e nas esquinas para esperar a saída dos noivos. Uma curiosidade
flagrante estampava-se na fisionomia dos moradores que assistiam basbaques à
chegada dos carros comunicando a sua ruidosa alegria àquele pedaço de rua
habitualmente silenciosa e sossegada.
Havia folhas tapetando o chão defronte da casa da viúva onde reinava agora
uma estranha aglomeração de pessoas de ambos os sexos, compactas, abafadas,
espremidas entre as quatro paredes da pequena sala de visitas.
A noiva estava acabando de colocar a grinalda quando entrou o Loureiro
muito teso com um riso amável e desconfiado que lhe arrebitava o bigode espesso.
Dois sujeitos, também encasacados, de luvas, foram recebê-lo à porta — “Chegou o
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homem” anunciou uma voz, e a estas palavras cresceu o zunzum propagando-se
por ali fora entre os curiosos que se acotovelavam à porta, na rua.
E logo toda a gente repetiu transmitindo-se a grande notícia — “chegou o
noivo!” — e todos os olhares caíram de chofre sobre o guarda-livros transfigurado
em herói de comédia.
D. Amanda, muito azafamada, tomou-o pelo braço e conduziu-o à sala de
jantar para lhe oferecer um calicezinho de Porto.
Loureiro queixou-se do calor sacando fora as luvas, rubro, com a testa
reluzente de óleo, metido num colarinho em folha, todo ele rescendendo opópanax.
Nunca ninguém o vira tão bem-disposto, tão lépido, com um ar ao mesmo tempo
condescendente e soberano de capitalista sem débito. — “A noiva estava pronta?”
— perguntou. E, sem esperar resposta, começou a contar um incidente que lhe
sucedera no hotel no momento em que se vestia. Nada, uma infâmia que não lhe
atingia a sola dos sapatos. Uma carta anônima contra a reputação da Lídia, coisas
do Ceará, coisas dessa terra...
Incomodara-se a princípio, o sangue subira-lhe à cabeça ao ler semelhantes
torpezas, mas acalmara-se logo, porque não valia a pena a gente incomodar-se por
uma carta anônima escrita em péssima letra e, o que era mais, acrescentou convicto
o Loureiro, “sem assinatura!”
A viúva não se inquietou, atarefada, suando, muito apertada na sua toalete de
seda escarlate, os grandes seios ameaçando romper o corpete, e uma rosa no
cabelo. — Calúnias, nada mais, observou servindo o vinho. O guarda-livros
emborcou o cálice à saúde da noiva, gabando a boa qualidade do Porto.
A pequena sala de jantar, caiadinha de novo, tinha agora outro aspecto mais
asseado e alegre, sem manchas de gordura nas paredes amareladas como dantes,
com vasos de flores no aparador, iluminada a vela de espermacete. Sobre a mesa
do centro, coberta com um pano novo de riscadinho encarnado, pousavam duas
lanternas antigas em forma de sino, jarros, pratos com bolos e garrafas intactas
dispostas em simetria. O chão de tijolo ainda estava meio úmido da baldeação que
se fizera na véspera. De resto os mesmos móveis de costume: um lavatório de ferro
com espelho defronte do corredor, a mesa de jantar, o aparador de nogueira e o
guarda-louça, uma velha peça que fora do tempo do marido de D. Amanda.
A verdadeira casa do Loureiro, o ninho em que ele ia passar a lua-de-mel com
a Lídia era no Benfica, uma casinha também de porta e janela, mas muito fresca e
alegre, nova, ainda cheirando à tinta. Resolvera não fazer festa. Um “copito” de
vinho aos amigos, um taco de bolo e o deixassem em paz com a sua “querida”.
Tinha feito muitas despesas com o casamento. Da igreja iria diretamente “para a
chácara” onde ficava à disposição dos amigos. Isso de pândega em noite de núpcias
não era próprio, achava uma formidável maçada. Demais não era nenhum milionário
para não contar o dinheiro que gastava.
Uma miniatura, a casinha de Benfica, um sonho de poeta lírico, assobradada,
com a sua fachada azul ainda fresca, recebendo em cheio até o meio-dia toda a luz
do nascente. Logo à entrada havia uma escadinha de três degraus, de onde se via,
lá dentro, nitidamente, como por um cristal muito límpido, a sala de jantar e as
bananeiras do quintalejo, de um verde tenro... Sala de visitas, alcova, comunicando
com um quarto, casa de jantar, varanda, despensa, quarto para criado, cozinha e
quintal, tudo asseado e confortável, com uns tons aristocráticos matizando a
compostura graciosa dos móveis, papel claro nas paredes e lustre na sala de visitas.
Concluídas as obras da casa, o trabalho de renovação, Loureiro dera-se pressa em
mobiliá-la a seu jeito, conforme as suas posses e os seus hábitos de empregado
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zeloso e metódico. Não pedira conselhos a ninguém: escolhera ele mesmo os
móveis e os objetos decorativos, tudo novo e lustroso, como se tivesse saído da
fábrica naquele instante. Mandara vir dos Estados Unidos, por intermédio da Casa
Confúcio, um piano americano e uma máquina de costura. E, uma vez tudo pronto,
tudo no seu lugar, passou uma revista geral na casa, desde a sala de visitas até o
fundo do quintal, admirando com a alma cheia de satisfação a espécie de paraíso
que ele próprio criara para si.
“Sim, senhor, tinha cumprido rigorosamente o seu dever. Estava tudo que
nem um brinco! Agora, sim, podia casar.”
Lídia pasmou diante daquele novo mundo que se lhe oferecia à vista. Nunca
pensara que o guarda-livros soubesse preparar uma casa com tanta graça. Pela
primeira vez na sua vida o Loureiro revelara-se um homem moderno e civilizado.
Estava encantada! Já agora não invejava a sorte de Maria do Carmo: o Loureiro
podia competir com o Zuza em bom gosto! Quem diria? Supunha o guarda-livros
mais tolo, mais ignorante e sensaborão. Agora estava convencida de que o seu
homem era capaz de fazer figura em qualquer sociedade. Percorreu todos os
aposentos, revistando os móveis, admirando a qualidade fina dos objetos, com
exclamações de íntima alegria. Sentou-se ao piano e ensaiou uma escala, achando-
o excelente.
Esplêndido, hein, mamãe? Melhor que o das Cabrais!
Mirou-se ao espelho, numa peça magnífica, de cristal, que o guarda-livros
comprara num leilão particular por um preço exorbitante. Subia de ponto a satisfação
da rapariga. Esteve quase se atirando ao pescoço do noivo e beijando-o agradecida;
conteve-se, porém. A viúva, essa acompanhava a filha, embasbacada, dando graças
a Deus por ter encontrado semelhante genro — “Olha isto, menina, olha, aquilo!”
dizia, muito gorda, chamando a atenção da Lídia.
Da sala de visitas passaram à alcova. O guarda-livros guiava-as, na frente,
explicando os menores detalhes, a procedência dos objetos, o seu valor. — “Oh! a
cama!”, saltou a Lídia, sentando-se no belo leito de ferro azul com esmaltes de ouro,
armado à inglesa em forma de dossel.”
Achava muito elegante as camas que se estavam usando. Experimentou o
enxergão de arame calcando-o com o corpo. Magnífico! A viúva também se sentou
um instantinho, e continuaram a visita.
Era quase noite quando se retiraram.
Agora, uma semana depois, num sábado, toda a gente falava no casamento
da Campelinho como de um acontecimento extraordinário. A Campelinho, hein?
Quem diria!... Uma felizarda! E todos comentavam o fato com ruído, recapitulando a
vida inteira da viúva e da filha, lembrando episódios, cochichando malícias,
prognosticando o futuro da rapariga, admirando a boa fé do Loureiro. Coitado, ele
talvez ignorasse mesmo certos pormenores da vida da Lídia...
Daí quem sabia? talvez fossem muito felizes. Conheciam-se moças
malcomportadas que, depois, casando-se, tinham-se tornado verdadeiras mães de
família.
O Guedes, da Matraca, esse logo às seis horas começou a beber no Zé Gato
mais o Perneta, vomitando todo o seu despeito contra a Lídia que ele cobria de
impropérios aguardentados.
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Debalde, o Perneta procurava acalmá-lo, o Guedes estava fora de si, com os
olhos ensangüentados, esbravejando como uma fera.
Deixa-te disto, ó Guedes, aconselhava o Perneta. Olha que te podem
ouvir, homem!
Que ouçam, que ouçam, cambada de infames!
E batendo no peito orgulhoso:
Esse aqui beijou muito aquela tipa, sabes? Não preciso dela para
coisíssima alguma, estás ouvindo? Aquilo é uma sem-vergonha muito grande,
aquela fêmea!
Cala a boca, menino...
Cala a boca, por quê? Pensa você que tenho medo de caretas? Hei-de
dizer o que eu muito bem quiser, fique você sabendo!
Quem te diz o contrário, homem de Deus? O que não é bonito é estares aí
a dizer asneiras.
De vez em quando aproximava-se o Zé Gato e suplicava que não falassem
tão alto, que na rua se estava ouvindo. Mas o Guedes não atendia a coisa alguma,
com o pensamento na Lídia, transbordando cólera, possesso.
Escureceu e ele ainda lá estava no fundo da bodega esvaziando cálices de
aguardente, a falar desesperadamente.
Às sete horas dois foguetes queimados defronte da casa da viúva Campelo,
no Trilho, deram sinal de que os noivos iam sair. Com efeito, daí a pouco surgiu na
calçada Campelinho, caracterizada em noiva, afogada em seda branca, com uma
auréola de imortalidade, cabisbaixa, pisando devagar, de braço com a firma
Carvalho & Cia.
E àquela aparição levantou-se um rumor em todo o quarteirão. “Já vem, já
vem!” era a voz geral.
Logo após vinha o Loureiro com a viúva, em seguida Maria do Carmo e um
rapaz empregado no comércio, D. Terezinha, o Castrinho, e outras pessoas de mais
ou menos intimidade, duas a duas.
O cortejo desfilou a pé, ante a curiosidade indiscreta da vizinhança que se
debruçava nas janelas para ver melhor a noiva — “Como aquilo ia orgulhosa!” disse
a Justina Proença, uma paraense equívoca, vizinha de João da Mata. — Tão besta
é um quanto o outro — murmurou a mulher do barbeiro com um muxoxo.
Moleques com tabuleiros de doces na cabeça acompanhavam o préstito.
De repente houve um fecha-fecha na esquina onde iam dobrar os noivos.
Que é? Que foi? Recomeçou o zunzum mais forte, como um zumbido de
abelhas num cortiço e os boatos circularam vertiginosamente. Toda a gente queria
saber o que era, o que tinha sucedido. A verdade é que ao aproximar-se o
“casamento” da venda do Zé Gato, saltou de dentro o Guedes, bêbedo como uma
cabra, espumando, sem chapéu e pôs-se no meio da rua a vociferar obscenidades
contra a Campelinho mais o guarda-livros.
Um escândalo. Soaram apitos; compareceram guardas de polícia; o Zé Gato
saiu à rua para acalmar o borracho; foi alterada a ordem do préstito; a Lídia ficou
muito branca debaixo do véu e ia tendo uma síncope; o Loureiro quis avançar contra
o desordeiro, mais foi detido por João da Mata...
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Afinal de contas, depois de alguns segundos, fez-se a ordem e o “casamento”
seguiu em paz, direito à igreja do Patrocínio.
O Guedes forcejava por evadir-se dos braços do Zé Gato e do outro sujeito,
que procuravam conduzi-lo à venda.
Sou eu quem te pede, ó Guedes, vamos. Deixa de tolices rapaz; estás
dando escândalo, homem!
Não vou, porque não quero, está ouvindo? Não vou, porque não quero. Eu
hoje faço o diabo!
E agachava-se, e caía para trás e tombava para os lados, sem gravata, os
olhos esbugalhados, os cabelos em desordem, como um doido. Foi uma luta para
acalmá-lo.
Por fim o Zé Gato mandou vir uma xícara de café sem açúcar, deu-lhe a
cheirar limão, e, em pouco, o redator da Matraca dormia beatificamente, debruçado
sobre a mesa de ferro onde eram servidas as bebidas.
Coitado! lamentou o vendeiro. Um talento famoso! É um segundo tomo de
Barbosa de Freitas...
Cerca de uma hora depois voltaram os noivos com o seu bizarro cortejo de
amigos e amigas, mas agora vinham os dois na frente abrindo caminho,
conversando baixinho, com um belo ar de velha familiaridade. Nas fileiras do préstito
havia um rumor de franca liberdade. Falava-se um pouco alto, ouviam-se risadinhas
gostosas, tinha-se perdido a cerimônia grave de momentos antes. A volta não se
parecia com a ida. A alegria dos noivos comunicava-se instintivamente aos
circunstantes como se na verdade estes compartilhassem da íntima felicidade
daqueles.
Outra vez a casinhola da viúva encheu-se que nem um ovo. No meio dos
convidados havia estranhos que invadiam a sala sem cerimônia, imiscuindo-se no
tumulto de gente como se fossem amigos velhos, de paletó-saco e gravatas de
cores espaventosas.
Ninguém os conhecia, mas ninguém ousava despedi-los, deixando-os ficar,
por uma condescendência razoável. Curiosos de ambos os sexos se debruçavam da
parte de fora da janela para dentro, espremidos uns contra os outros.
Os noivos tinham-se sentado no sofá, defronte da janela, aconchegados,
prelibando as delícias do matrimônio na casinha de Benfica.
Loureiro limpava devagar com o lenço rescendendo opópanax o suor que lhe
corria em gotas da testa, encarando com supremo orgulho a curiosidade pulha dos
circunstantes.
Pousava os pés sobre o tapete deixando ver as meias de seda cor de carne
com pintas de ouro.
Lídia estava divina com a sua suntuosa “toalete” de noiva comprimindo-lhe os
quadris rijos e carnudos, muito séria, o rosto afogueado.
O guarda-livros contemplava-a de instante a instante com um profundo olhar
apaixonado, de dono que acaricia um objeto querido, sentindo-se mais do que nunca
irresistivelmente atraído pela formosura sensual da Campelinho.
D. Amanda, sempre muito solícita, veio convidá-los para a ceia: que estava
pronto o chá, e logo toda a gente enfiou pelo corredor atrás dos noivos sequiosa de
cerveja e vinho do Porto.
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Um rubor de ocasião solene tomou as faces do Castrinho disposto já a brindar
os noivos num grande rasgo de eloqüência demostênica.
A saleta de jantar resplandecia à luz dos dois castiçais de vidro com mangas
em forma de sino, colocados nas extremidades da mesa. A um canto, sobre uma
mesinha de pinho, uma bateria de garrafas de cerveja desafiava a ganância dos
convidados. Houve um assalto à mesa. Todos acercaram-se dela com a avidez de
gastrônomos, e, antes que os noivos tomassem assento à cabeceira, já havia
alguém sentado no extremo oposto. O Castrinho não pôde reprimir um — oh! de
indignação, que felizmente passou despercebido. “— Sentem-se, sentem-se”,
ordenava a viúva, inquieta como uma barata à volta da mesa, indicando as cadeiras.
Todos se sentaram com ruído, acotovelando-se. Ao lado dos noivos os padrinhos,
Carvalho & Cia e a esposa tinham o ar modesto de quem se vê cercado de honras
imerecidas. O Castrinho, que não faltava a festa alguma dessa ordem, sentou-se ao
centro com uma comoção visível no olhar agitado.
Os curiosos da rua tinham invadido o corredor e assistiam em pé, ao redor da
mesa, àquela cena banal, de doze pessoas que comiam bolo à guisa de pirão de
farinha; ao todo eram quatorze, mas o Loureiro e a Lídia, por um escrúpulo mal-
entendido, apenas provaram o delicioso manjar e cruzaram o talher.
O Castrinho não se fez demorar muito. Quando menos se esperava, ei-lo de
pé empunhando o cálice.
Silêncio, silêncio! advertiu uma voz.
O poeta das Flores Agrestes pigarreou solenemente abrangendo com um
olhar vitorioso toda a saleta, e enfiando a mão direita no bolso da calça, com um
grande ar de tribuno acostumado a falar às massas, começou:
Meus senhores e minhas senhoras.
Fez-se um silêncio grave e recolhido, em que destacava apenas, muito de
leve, o ruído dos talheres que continuaram a funcionar ativamente.
Eu faltaria ao mais sagrado dos deveres...
Uma voz: — Não apoiado.
...Se neste momento solene, em que toda a natureza veste-se de galas
para receber em seu vastíssimo seio os noivos presentes... eu, o mais humilde
amigo desta casa...
Não apoiado...
...Não erguesse a minha fraca voz para... para saudar... para saudar o
himeneu destas duas criaturas (apontando para os noivos) nascidas “no mesmo
galho, da mesma gota de orvalho”... como diria o nosso Casimiro de Abreu...
Bravo! murmurou o mesmo apartista dos não apoiado numa voz cava, com
a boca cheia.
O orador, visivelmente inquieto, sem tirar a mão de dentro do bolso, endireitou
a gravata com pancadinhas suaves, e, mergulhando o olhar na fruteira, continuou:
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Sim, meus senhores... e minhas senhoras, o casamento é a base de toda
sociedade civilizada; o casamento, como dizia certo escritor, cujo nome não vem ao
caso citar... o casamento é a mais nobre de todas as instituições, e o homem que se
casa dá um passo para o infinito, isto é, para Deus!...
Uma salva de palmas cobriu as palavras do Castrinho, que agradeceu
comovido. No peito de sua camisa, muito alva e lustrosa, reluzia uma pedra
duvidosa.
Crescia a animação da festa. Os talheres batiam nos pratos com mais força e
as palavras do liceísta comunicavam ao auditório certo entusiasmo sereno que se
traduzia em apetite voraz e insaciável secura nas gargantas. Ouviam-se trabalharem
as mandíbulas.
Houve uma pausa depois da qual o Castrinho, tomando o cálice cheio,
concluiu com ênfase:
...Portanto, eu brindo ao ditoso par, desejando-lhe um futuro de rosas
banhado pelos eflúvios do amor conjugal...
E, escorropichando o cálice:
Aos noivos!
Hip, hip, hurra!
Todos se levantaram.
Loureiro...
D. Lídia...
Sr. Castro não quer se servir de um pedacinho de bolo de mandioca?
ofereceu a viúva por trás do poeta.
Agradecido, minha senhora, agradecido... Estou satisfeito.
Então, mais um pouco de vinho...
Aceitava, pois não.
Não façam cerimônia, minha gente, observou D. Amanda. Já acabou, Sr.
João da Mata? Um pinguinho de doce de caju, Sr. Alferes... E você, menina, coma
sem cerimônia.
Maria do Carmo não podia disfarçar a tristeza, a ponta de inveja concentrada
que lhe tomava de assalto a alma inteira. Sentara-se à mesa por civilidade, para
corresponder aos reclamos da viúva, mas o seu único desejo era ir-se embora para
casa; a festa da amiga fazia-lhe mal aos nervos, e, demais, o Zuza proibia-lhe de ir a
qualquer parte onde ele não estivesse. Fora ao casamento da Lídia, porque o
padrinho a obrigara, não por sua espontaneidade. E agora ali estava casmurra,
silenciosa, com um arzinho recolhido de filha de Maria, vendo sem ver, ouvindo sem
ouvir as pessoas e os ruídos, numa abstração infinita, no meio de toda aquela gente
que festejava o casamento da amiga. Agora, mais do que nunca, por um excesso de
sensibilidade nervosa, doía-lhe no coração de pomba desolada não poder, como a
Lídia e como outras tantas raparigas felizes, amar livremente, sem ter que obedecer
aos caprichos de um padrinho atrabiliário e despótico como João da Mata. Enquanto
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os outros divertiam-se sorvendo cálices de vinho, saudando aos noivos, ela, toda
entregue a seus pensamentos, permanecia muda e bisonha como quando pela
primeira vez apresentara-se à sociedade, logo ao chegar de Campo Alegre, menina
ainda, matutinha. Ah! naquele tempo ela tinha o seu papai e a sua mamãe perto de
si, não era como agora, anos depois, uma simples, uma pobre, uma desprezada
órfã, assistindo com uma grande tristeza egoísta derramada nalma à felicidade
alheia triunfante...
Atenção, meus senhores! Atenção!
Desta vez ia falar o alferes Coutinho, quartel-mestre do batalhão, um moreno,
de costeletas, cabelo penteado em pastinhas, certo ar arrogante de pelintra
acostumado a todas as festas desde os sambas do Outeiro, aos bailes do Clube
Iracema; magricela, olhos cavados. Nas horas de ócio dava-se ao luxo de fabricar
sonetos no gênero piegas dos últimos trovadores de salão.
Arrastava ao piano as valsas em moda e dizia-se exímio tocador de flauta.
Convidado a toda parte, não perdia ocasião de exibir-se na poesia ou na
música. Tinha fama de primeiro recitador do Ceará, ninguém como ele sabia marcar
uma quadrilha, todo enfezado, sempre de lenço na mão, metido invariavelmente na
sua farda de alferes com colete branco.
Houve um silêncio profundo. Todas as vistas caíram de chofre sobre o militar
como se de sua boca fossem sair preciosas revelações.
Era o alferes Coutinho? Oh! magnífico! Psiu!... psiu!... Silêncio!...
Meus senhores. Respeitabilíssimas senhoras... Não dispondo de dotes
oratórios, tão úteis nas ocasiões solenes como esta, eu, que tenho a honra de
pertencer à falange dos discípulos de Castro Alves, Casimiro de Abreu, Varela e
tantos outros astros de primeira grandeza, que brilham no firmamento da poesia
brasileira, eu vou ler uns versos de minha lavra, que tomei a liberdade de dedicar
aos donos desta festa inolvidável...
Nem um aparte. O mesmo silêncio cauteloso e recolhido. A noiva abaixou a
cabeça afetando modéstia e Loureiro fixou o olhar atrevidamente no orador. Mas o
Coutinho, calmo e desembaraçado, sacou do bolso da farda um papel, e lendo:
Noite de Núpcias é o título dos pobres versos...
Não apoiado...
... que tenho a honra de oferecer à Exª. Srª. D. Lídia, uma das estrelas
mais fulgurantes que ornam o céu da sociedade cearense...
Lídia estremeceu com um belo sorriso de agradecimento.
... e ao Sr. Dias Loureiro, inteligente e zeloso guarda-livros da nossa praça,
ambos, portanto, dignos um do outro e da nossa eterna amizade...
Apoiadíssimo, confirmou Carvalho & Cia., palitando os dentes.
Sem mais preâmbulos o alferes entrou a declamar com uma convicção
admirável os tais versos de sua lavra, uma enfiada de palavrões antigos e
bolorentos, que ele procurava animar com a sua voz de trovão, seca e cavernosa,
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brandindo o papel com a mão esquerda e a direita gesticulando como se estivesse a
marcar compasso de música.
Ao terminar o último verso.
“Chovam bênçãos de amor sobre os que casam!”
Uma salva de palmas forte e prolongada ecoou na pequenina sala.
Bravo! muito bem! muito bem!
E o poeta sentou-se agradecendo com repetidos movimentos de cabeça às
manifestações de que era alvo. Diversas pessoas levantaram-se e foram
cumprimentá-lo de perto. Um velho calvo, que se sentava a seu lado, lembrou-se de
perguntar-lhe ao ouvido “se o Sr. Alferes era cearense”.
Não senhor, respondeu o Coutinho, voltando-se gravemente; sou guasca,
nasci na cidade de Porto Alegre.
E contou quando viera para o Ceará, disse a sua grande simpatia por essa
província e que pretendia se casar com uma cearense.
O “brinde de honra” feito em duas palavras por Carvalho & Cia., à D. Amanda,
“encarnação de todas as virtudes domésticas, senhoras de incomparável brandura e
sisudez”.
Hip! hip! hip! hurra!
Foi um delírio esse final de banquete nupcial, em que tomavam parte o
exército representado pelo alferes Coutinho, a poesia na pessoa do autor das Flores
Agrestes e o comércio em grosso simbolizado no ventre obeso de Carvalho & Cia.
Esgotaram-se as botelhas de vinho do Porto e de cerveja com um açodamento de
quem não bebia água há três dias e depara uma piscina abundante do precioso
líquido. E, ao levantarem-se da mesa, os convidados olhavam com soberano
desdém a toalha manchada de nódoas de vinho sobre a qual havia uma confusão
grotesca de copos e pratos em desordem, abandonados ali como restos de um
festim sardanapalesco. Uma coisa tinha sido respeitada e conservava-se no mesmo
lugar em que fora colocada pela mão zelosa de D. Amanda, era o paliteiro de prata
representando um alcaide com chapéu de três bicos e aspecto napoleônico, de
braços cruzados, numa imobilidade de objeto de luxo que se receia tocar por
escrúpulo.
Os espectadores intrusos evacuaram o corredor com a mesma facilidade e
ligeireza com que se tinham introduzido, e depressa a sala de jantar ficou entregue à
viúva e ao criado, que se ocuparam de cobrir os restos dos bolos recolhendo-os ao
guarda-comidas. O troço dos comensais, homens e senhoras, enchia a sala de
visitas, cujas cadeiras estavam todas ocupadas, e palrava agora desem-
baraçadamente numa atmosfera pesada de fumaça e heliotrópio — umas abanando-
se com os grandes leques de cetim, outros com os lenços, porque o calor crescia.
Transpirava-se por todos os poros, o que fazia o alferes Coutinho trazer
constantemente o lenço no pescoço, resguardando o colarinho onde já havia sinal
de suor. A janela estava tomada por algumas pessoas que formavam roda ao redor
do Loureiro, em pé. Senhoras entravam e saíam da alcova com o ar desconfiado,
compondo discretamente os vestidos.
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Deram dez horas no relógio da Sé, cujas badaladas faziam-se ouvir, graves e
sonolentas, em todo o âmbito da cidade.
Dez horas! Carvalho & Cia. consultou o relógio. Havia uma pequena diferença
de dez minutos. Safa! o tempo voava!
E, alto, levantando-se:
Vamos, Quininha?
É muito cedo ainda! acudiu a Lídia que conversava com Maria do Carmo,
no sofá.
É verdade, minha gente! saltou D. Terezinha saindo da alcova. Os noivos
precisam descansar. Dez horas!
Estávamos tão distraídos! disse o alferes Coutinho puxando os punhos.
Vamos, vamos, repetiram muitas vozes.
É cedo, minha gente! implorava a Lídia muito amável, com um sorriso de
irresistível faceirice.
Imediatamente todos se levantaram impulsionados pela mesma idéia à
procura dos chapéus, num rebuliço crescente, aos encontrões, enfiando pela alcova
e pelo corredor.
Estrondou um bocejo senil e demorado, que se propagou por ali afora — era
o velho calvo, de óculos, que se tinha encafuado a um canto da sala cochilando, e
que despertara agora num espreguiçamento, como se estivesse em sua própria
casa.
As senhoras agasalhavam-se nos fichus, defronte do espelho.
Amanda, de um lado para outro, de dentro para fora da alcova, não
descansava as pernas.
Começaram as despedidas.
Que de beijos estalados à queima-roupa! Em pé no meio da sala, os noivos
competentemente formalizados, agradeciam reconhecidos a chuva de felicitações
que caíam sobre eles à guisa de flores desfolhadas sobre suas cabeças, ao mesmo
tempo que Lídia ia distribuindo a uns e outros botões de laranjeira.
Que fossem muito felizes; que tivessem uma eterna lua-de-mel; que fossem
muito unidos sempre como dois irmãos; que não esquecessem as velhas
amizades...
Olhe, minha filha, aconselhou D. Terezinha com a mão no ombro da Lídia,
depois de a ter beijado. Olhe, seja sempre boa para seu maridinho, faça o que ele
quiser, o que ele mandar. O homem é que faz a mulher e a mulher é que faz o
homem. Adeus, ouviu?
Todos tiveram mais ou menos o que dizer aos noivos.
Não esqueça o que lhe pedi, ouviu Lídia? recomendou de fora uma voz de
mulher.
Boa-noite!
Sejam felizes!
Durmam bem!...
Em pouco todos tinham-se retirado. Havia ainda alguns curiosos fora, na
calçada. Loureiro mandou aproximar o carro que o esperava. A rua estava silenciosa
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e escura como se fosse alta noite. Defronte, em casa de João da Mata, fecharam-se
as portas apagando-se completamente a última luz que clareava aquele trecho da
rua do Trilho.
Amanda chamou a filha à alcova onde estiveram conversando alguns
minutos, e depois, abraçando-a ternamente com os olhos úmidos:
Deus os conduza em paz...
Lídia beijou comovida a mão da viúva e, dando o braço ao Loureiro, entrou no
carro que rodou em direção de Benfica, com a sua luzinha amarela tremeluzindo no
escuro.
Minutos depois D. Amanda recebia, como de costume, o Batista da Feira
Nova.
CAPÍTULO X
Quando chegaria sua vez? pensava Maria do Carmo nessa noite, sem poder
conciliar o sono, com um desalento profundo no coração apreensivo. Que tal, hein?
O Sr. Zuza não se resolvia a pedi-la em casamento, sempre com evasivas,
pretextando tolices, como se estivesse tratando com uma biraia qualquer! Por que
isso? por que não se decidia logo a dizer a verdade fosse ela qual fosse!
Era sempre melhor do que estar perdendo tempo sem tomar uma resolução
franca e definitiva. Quem sabe? talvez o padrinho não fizesse questão agora que a
tratava tão bem, que lhe fazia todas as vontades... Uma felizarda, a Lídia!... Casara
com um guarda-livros, mas embora, casara...
E imediatamente vinha-lhe uma confiança ilimitada no estudante. Já estava
tão acostumada com ele que nem era bom pensar em uma deslealdade. Paciência,
paciência — Roma não se fez em um dia... Consolava-se ao pensar nas
confidências íntimas do futuro bacharel, embebidas de ingênua e tocante
sinceridade, na franqueza altiva com que ele dizia todas as suas idéias e todas as
suas ações, como se já fossem noivos. Zuza contava-lhe tudo com a maior
simplicidade, dava-lhe conta de seus passeios, de seus planos, de suas intenções.
Pode-se mesmo dizer que não havia segredo entre os dois. Era lá possível
que o Zuza, aquele Zuza tão amável, tão sincero, tão bom a esquecesse, ele que
reprovava com frases repassadas de indignação o procedimento de certos
indivíduos para quem a mulher outra coisa não é senão uma espécie de fruto
amargo que a gente prova e deita fora? Qual! O Zuza era incapaz de descer até
onde começa o rebaixamento do caráter de um homem...
Animava-se ao fazer estas considerações tão simples, tão espontâneas,
saídas do mais íntimo de sua alma enamorada. Tinha momentos em que tudo
afigurava-se-lhe uma comédia, cujo protagonista — o estudante — aprazia-se em
vê-la rendida a seus pés por um simples capricho de rapaz do mundo que se diverte
à custa de muitas raparigas como ela, ainda não corrompidas pelos costumes
modernos. Nascida no interior de uma província essencialmente católica, educada
em um colégio religioso, o convívio com as suas colegas da Escola Normal não lhe
apagara de todo essa bondade característica dos filhos do sertão, que se revela em
uma confiança ingênua nos outros. Por isso é que ao mesmo tempo Maria não podia
acreditar que o Zuza faltasse à sua palavra para com ela. Duvidava às vezes, mas
não perdia de todo a confiança, porque amava deveras, e o amor transforma a
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pessoa ou objeto querido numa espécie de ídolo, que a gente adora como a um
modelo de virtudes incomparáveis.
Quando chegaria sua vez? E a figura de João da Mata surgia-lhe aos olhos
como uma visão pavorosa, que a fazia estremecer da cabeça aos pés. Sim, o
padrinho não gostava que se falasse no Zuza, implicava com ele, odiava-o
gratuitamente, sim, gratuitamente, porque o rapaz nunca lhe fizera o menor mal, até
pelo contrário uma vez emprestara-lhe cinqüenta mil-réis, e ela o sabia pela boca de
D. Terezinha. Que infelicidade, a sua, que caiporismo! além de o padrinho não
gostar do Zuza, aquela casa parecia agora um verdadeiro inferno: era o padrinho
para um lado e a madrinha para outro, ambos de cara fechada, sem se trocarem
palavras, e ela, Maria, para um canto, coitada, sem amigas, sem parentes, vivendo
uma vida de criminosa...
Que maldito inferno!... Antes nunca tivesse nascido.
Onze horas... meia-noite! e ela ainda velava, sem um bocadinho de sono, a
matutar na vida, a pensar em frioleiras.
Entrou a parafusar no casamento da Lídia, rememorando toda a festa, tintim
por tintim, com a pachorra de quem procura armar um castelo de cartas. — Assim
mesmo tinha ido muita gente, sim senhora, parecia até uma festa de gente rica,
inegavelmente a Lídia estava encantadora debaixo do véu de noiva. Nunca vira a
igreja de N. S. do Patrocínio tão cheia de povo! ah! mas fora uma coisa horrorosa o
escândalo provocado pelo Guedes. Que horror! Se fosse ela, Maria do Carmo, teria
caído no meio da rua com um ataque...
Palpitavam-lhe na imaginação, como num sonho, os menores acidentes
daquela noite, em que todos tomaram o seu cálice de vinho e só ela,
irresistivelmente mordida de inveja por ver a sua maior amiga num trono de
felicidade, ela somente se deixara ficar esquecida como qualquer lagalhé, na
impotência da sua tristeza. Entretanto, se não fora o padrinho, ela também podia
breve estar de caminho para a igreja, ao lado de seu noivo, metendo inveja às
outras. Então é que a festa seria de estrondo! O coronel Souza Nunes abriria o seu
salão iluminado como um palácio real, e haveria dança e música e um banquete
lauto. E iria o presidente da Província e toda a gente grande do Ceará. Que bom
seria!...
Nisto adormeceu e logo tornou-lhe a aparecer em sonho o negro Romão com
as calças arregaçadas, um barril na cabeça, a gritar — Arre corno! cercado de
garotos que lhe atiravam pedras e sacudiam-lhe punhados de farinha-do-reino na
carapinha, por detrás, no meio de gritos e assobios.
Depois o preto deixou cair o barril, que se derramou, inundando a calçada de
imundícias, e ei-lo montado num cavalo magro, a fazer de palhaço de circo, uivando
uma porção de asneiras, que a molecagem replicava sempre com o mesmo
estribilho, a uma voz: — É sim sinhô!
Depois... (não se lembrava do resto).
Davam duas horas no relógio do vizinho, quando acordou muito assustada e
nervosa a olhar para todos os lados, sem consciência exata do ambiente que a
cercava. Teve um sobressalto ao ver sobre uma cadeira, perto da rede, o vestido
com que fora ao casamento. — Credo, que susto!
A luzinha da vela de carnaúba agonizava numa poça de cera derretida.
E essa! Era a segunda vez que sonhava com o Romão, sem quê nem pra
quê… Com certeza estava para lhe suceder alguma desgraça. Que esquisitice! Um-
um...
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A porta do quarto, que se conservara entreaberta, rangeu nas dobradiças,
como se alguém a empurrasse de manso. Apoderou-se de Maria um pavor terrível;
arrepiaram-se-lhe os cabelos, e uma extraordinária sensação de frio percorreu-lhe o
sangue. Ficou assombrada, sem se mexer, com o ouvido alerta e os olhos fechados,
numa prostração de quem está sem sentidos. Pareceu-lhe ouvir chamar por seu
nome e então subiu de ponto o terror que lhe tapava a boca como uma mordaça de
ferro. Abriu os olhos para verificar se com efeito estava acordada e tornou a fechá-
los mais que depressa. Instintivamente fez um esforço supremo para gritar, para
chamar alguém, mas não podia abrir a boca, estarrecida.
Maria! repetiu a mesma voz, que ela julgara ouvir, uma voz fina, mas
abafada, como se saísse das entranhas da terra.
E logo:
Sou eu, Maria. É o padrinho...
De feito, João da Mata vinha se chegando, pé ante pé, sutilmente, segurando-
se à parede, equilibrando-se na ponta dos pés, como um ladrão, sem o menor ruído,
com estalinhos de juntas.
Maria encolheu-se toda debaixo do lençol, duvidando. Tremia como um
doente de sezões embiocada que nem caracol.
Não grites, Maria, olha que sou eu, teu padrinho, tornou João da Mata
agora quase ao ouvido da afilhada, agarrando-se ao punho da rede.
A rapariga respirou forte, como se saísse de dentro de um buraco, e pôde
abrir os olhos, meio aliviada, presa ainda de uma grande comoção. Ao medo
sucedera-lhe uma apreensão dolorosa, que o seu espírito repelia como impossível.
Não teve tempo de associar idéias, porque o amanuense foi-se sentando na rede, a
seu lado. — O padrinho por ali, no quarto dela, àquelas horas?... Estaria sonhando?
Padrinho...
Sou eu mesmo, minha flor... Olha, queres saber uma coisa?... Deixa-me
descansar um bocadinho e eu te direi, ouviste?... Espera...
Mas, padrinho!...
Olha, não fales alto... Sou eu, estás ouvindo, eu, teu padrinho mesmo...
Bico...
Maria do Carmo não compreendeu logo a presença de João da Mata ali, no
seu quarto, àquela hora.
Fez-se uma confusão inextricável, caótica, no seu espírito subitamente
assaltado por um turbilhão de idéias sem nexo, disparatadas; o coração pulsava-lhe
forte, como se tivesse acabado de fazer um grande esforço; operava-se em seu
duplo ser moral e físico um desses abalos extraordinários, que deixam a gente numa
prostração invencível. Pela primeira vez em sua vida achava-se frente a frente com
um homem, alta noite, no silêncio de um quarto escuro. Mal acordada do terrível
pesadelo que acabava de ter, vendo ainda esboçada na sua imaginação a figura
hedionda do negro com os bugalhos injetados, a boca abrindo-se num riso nervoso
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e alvar, o peito à mostra, a venta chata, ela permanecia imóvel, olhando para o
escuro como uma idiota.
A luz tinha-se apagado completamente. Ouvia-se a respiração asmática da
criada no quarto pegado à sala de jantar. Longe, em algum quintal, ladrava um cão.
Ao calor insuportável sucedia o friozinho bom da madrugada.
João estava em ceroula, nu da cintura para cima. Desde que chegara da festa
do Loureiro não fechara os olhos, a fumar no seu cachimbo curto, que preferia às
vezes aos cigarros e andava-lhe na cabeça o plano, há muito formado, de ir ao
quarto da afilhada uma noite. Nada mais fácil: da sala de jantar, onde dormia agora,
ao quarto eram dois passos; o diabo era se a menina abrisse a goela a chamar por
gente, isto é que era o diabo!... Qual! ela não tinha coragem para tanto, mormente
sabendo logo que era ele, o padrinho. — Mãos à obra, João; nada de pensar em
asneiras. Isso a gente inventa uma história de embalar crianças, diz que a vida é
esta, e... foi um dia uma donzela. Oh! pois ela não é tua afilhada? Demais, meu
besta, já lhe pegaste umas tantas vezes no bico dos seios, sem que ela reagisse, a
Maria, naturalmente porque sabes encampar a tua autoridade de padrinho. E depois,
que diabo! quem arrisca... Um, dois...
E, com um salto, o amanuense levantou-se, dirigindo-se ao quarto da
rapariga, cosendo-se às paredes, macio, cauteloso, todo agachado, pisando
devagar, no bico dos pés descalços.
A fresca da madrugada arrepiava-lhe o tronco magro e cabeludo.
Ah! como se sentia bem agora, sentado na mesma rede em que ela dormia,
sozinho com ela, adivinhando, no escuro, toda a incomparável perfeição de suas
formas rechonchudinhas de rapariga nova! O calor brando do corpo dela
comunicava-se agora a seu corpo, infiltrando-lhe no sangue um fluido bom e
vigoroso.
Sentia-se forte como um touro, ali, assim a seu lado, ele, um pobre homem
sem força, um magricela sem carnes.
E Maria esperava, numa aflição, o desenlace daquela trapalhada, que ela não
compreendia bem.
Estiveram ambos calados alguns minutos até que o amanuense,
escorregando para o fundo da rede, pousou a mão sobre o ombro da afilhada,
segredando-lhe — se ela estava com frio?
Frio?... não...
Pois olha, na sala de jantar faz um frio dos demônios. Por isso eu vim para
junto de ti...
Maria não disse nada.
Então o amanuense começou uma lengalenga, um despropósito de palavras
murmuradas como uma oração, numa voz que mal se ouvia, inclinado sobre a
afilhada, sufocando-a com seu hálito nauseabundo, roçando-lhe no rosto a ponta da
barba.
Olha, Maria, dizia-lhe, tu não sabes quanto eu abomino o Zuza... Há muito
que estava para te dizer umas certas coisas, mas era preciso segredo, muito
segredo... Agora, que estamos sós, deixa que te fale com franqueza... Tu amas o
rapaz, não é assim? Não mintas... sei que gostas muito dele, e até já se fala, na rua,
em casamento. Ainda hoje alguém afirmou-me que vocês se beijam na Escola
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Normal. Eu sei de tudo, minha afilhada, eu sei de tudo. Mas, olha bem o que te digo,
tudo depende de ti, só de ti...
Maria estremeceu no fundo da rede, debaixo do lençol, e sentiu-se
irresistivelmente presa às palavras de João da Mata. Se ele a quisesse deixar, nesse
momento, ela não consentiria, tão viva era a sua curiosidade, agora que o padrinho
lhe falara no Zuza; e o movimento quase imperceptível da rapariga não passou
despercebido a João da Mata.
Sim, minha cabocla, tudo depende de ti, porque eu também te quero muito
bem e não consentiria nunca nesse casamento, se... Olha, deixa dizer-te ao ouvido...
E, colando a boca ao ouvido de Maria:
...se não fosses boa para teu padrinho.
Pouco a pouco o amanuense ia-se deitando ao lado da rapariga,
acotovelando-a, machucando-a com o seu corpo ossudo, devagar, cautelosamente:
“— Estava bem armada a rede? Era preciso comprar outra, mais larga, mais
rica...”
Um grilo abriu a cantar monotonamente num canto do quarto — testemunha
oculta daquela cena inacreditável.
Entretanto Maria não dava palavra, com as pálpebras pesadas de sono,
respirando a custo, numa espécie de inconsciência muda, como hipnotizada. Este
estado porém durou pouco; espreguiçou-se, repuxando o lençol para se cobrir
melhor; e começou a achar certo encanto naquela intimidade secreta, ombro a
ombro com o padrinho. Seu instinto de mulher nova acordara agora obscurecendo-
lhe todas as outras faculdades, ao cheiro almiscarado que transudava dos sovacos
de João da Mata. Coisa extraordinária! aquele fartum de suor e sarro de cachimbo
produzia-lhe um efeito singular nos sentidos, como uma mistura de essências sutis e
deliciosas, desconcertando-lhe as idéias. Uma coisa impelia-a para o padrinho, sem
que ela compreendesse exatamente essa força oculta e misteriosa.
E quando ele, num tom paternal e amoroso, lhe falou no Zuza, Maria teve um
frêmito bom, como se tivesse caído por terra o paradeiro que mediava entre ela e o
estudante. Tudo dependia dela, somente dela... Ficou a pensar nestas palavras,
sem atinar com o seu verdadeiro sentido, alheada, os olhos fitos, quase sem
pestanejar, na telha de vidro por onde escoava agora uma claridade tênue de
alvorada.
João respirou, e passando-lhe o braço por trás do pescoço:
Então?...
É quase dia, padrinho, podem nos ver assim...
E que tem! já nos têm visto tantas vezes? Agora espera, só me vou se me
deres uma boquinha...
E, sem esperar resposta, o amanuense beijou-a na face, apertando-a contra
si, numa impaciência de quem não tem tempo a perder.
Maria repeliu-o brandamente.
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Juro-te, continuou ele, juro-te que casarás com o Zuza, mas, por amor de
Deus, deixa... ou não contes mais comigo para coisíssima alguma. Por alma de tua
mãe, que está no céu. Olha, sou eu quem te pede... Ninguém saberá, o próprio Zuza
não poderá saber nunca... É como se não tivesse havido nada, são segredos que
não aparecem, sabes? Eu te peço...
Tinha-se feito a verdade aos olhos da normalista, como um clarão que de
repente iluminasse todo o quarto, ao mesmo tempo que uma luta medonha travava-
se dentro de si, sem lhe dar tempo a pensar. Estava justamente em vésperas de ter
incômodo. Toda ela vibrava como uma lâmina de aço ao contato daquele homem
que comunicava-lhe ao corpo um fluido misterioso, transformando-a numa criatura
inconsciente atraída por um poder extraordinário como o da cobra sobre o rato.
As palavras do padrinho, embebidas de voluptuosidade e ternura, o nome do
Zuza pronunciado naquele instante, e, mais que tudo isso, a invocação feita à alma
de sua mãe, confundiam-lhe os sentidos, acordando no seu coração de donzela o
que ele tinha de mais delicado. Teve piedade de João, como se ele fosse na
verdade o mais desgraçado de todos os homens, sentia-o a seu lado, humilde como
um ser desprezível que reconhece a sua baixeza, com uma tremura na voz, rendido,
suplicante, e não teve coragem de o enxotar, de dar-lhe com a mão na cara e de
desaparecer para sempre daquela casa imoral onde ela vivia tristemente com as
doces recordações de seu passado, como uma flor que vegeta num montão de
ruínas. Ao contrário disto, a visível submissão do padrinho, doera-lhe nalma como a
ponta duma lanceta. Sem o saber, João da Mata encontrou a afilhada numa dessas
extraordinárias predisposições de corpo e alma, em que, por mais forte que seja, a
mulher não tem forças para resistir às seduções de um homem astuto e audacioso.
Conhecia suficientemente o gênio de Maria — nada mais, e isto lhe bastava para
que a vitória fosse certa, infavel.
De resto algumas palavras à toa murmuradas à surdina, o contato morno de
um corpo viril... e Maria do Carmo aumentava o número de suas dores.
A madrugada veio encontrá-la de joelhos, mãos juntas, duas grandes
lágrimas no olhar, como um anjo de sepultura, defronte da oleografia de Cristo
abrindo o coração à humanidade. Nunca o doce e meigo olhar de Jesus pareceu-lhe
tão doce e meigo.
Era domingo. Cantavam galos de campina nas ateiras do quintal. E enquanto,
lá fora, a cidade acordava e a vida recomeçava o seu eterno poema de alegrias e
dores, Maria procurava no coração de Jesus um conforto para o seu doloroso
arrependimento.
CAPÍTULO XI
Maria do Carmo passou uma semana inteira, oito dias consecutivos, sem ir à
Escola Normal, sem pôr os pés na rua, sucumbida, mortificada, com receios de
encarar os conhecidos, sem ânimo para se apresentar em público.
Se até então a vida fora-lhe um nunca acabar de desgostos e contrariedades,
o que seria agora, depois de se ter comprometido levianamente para todo o resto da
sua existência, entregando-se, num momento de desvario dos sentidos, aos desejos
concupiscentes do padrinho?
Estava doida, não havia que ver, estava doida naquele momento, não tinha
um bocadinho de juízo! Devia ter visto logo que uma mulher de certa ordem não se
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entrega por força alguma deste mundo a outro homem, que não seja o seu marido, o
dono de seu coração, o legítimo esposo de seu corpo e de sua alma. Que
desgraçada imprudência a sua! Que vergonha, santo Deus, que vergonha! Era para
isso que se tinha coração, para se deixar cair numa armadilha daquela... Se fosse
uma mulher forte e resoluta, capaz de todos os escândalos, contanto que soubesse
guardar sua honra... bem, não teria sucedido nada. Mas, não: fora uma grandíssima
tola, uma menina de escola, deixando-se levar pelo coração até o ponto de
compadecer-se do padrinho! Que infelicidade!...
E chorava que nem uma criança, com a cabeça no travesseiro, metida no seu
quarto, dizendo-se a mais infeliz de todas as mulheres, supersticiosa ao peso de sua
culpa irremediável, com grandes manchas lívidas ao redor dos olhos, inconsolável
na sua dor.
Às vezes supunha estar sonhando, como que procurava iludir-se a si própria,
enxugava os olhos na ponta do lençol, via-se ao espelho e experimentava um bem-
estar passageiro, um conforto muito íntimo; mas punha-se logo a pensar, a fazer
consigo mesma mil conjecturas, e desandava outra vez num choro silencioso, que
lhe sacudia o corpo todo em estremecimentos nervosos. Não sabia bem por que
chorava; uma coisa, porém, dizia-lhe que nunca mais seria feliz em sua vida, desde
o momento que, por uma condescendência imperdoável, entregara seu corpo àquele
homem...
À proporção que os dias passavam, sucedendo-se numa monotonia
aborrecida, uniformes como os elos de uma grande cadeia de ferro, crescia o
desânimo em Maria do Carmo, cujas feições transformavam-se a olhos vistos.
Tomava-lhe o rosto uma palidez de reclusa macerada pelos jejuns, cavavam-se-lhe
os olhos, onde se refletia visivelmente o estado de sua alma, e os cabelos iam
perdendo aquele brilho resplandecente que era o desespero do Zuza. Em uma
semana sua fisionomia adquirira uma expressão iniludível de dor concentrada.
No sábado recebeu um bilhete da Lídia convidando-a para jantar com ela no
dia seguinte. “Espero-te sem falta. Todas as minhas amigas têm vindo me visitar,
menos tu. Creio que não te dei motivo para procederes desse modo. Por andar
incomodada é que ainda não fui te ver.”
Quedou-se numa imobilidade profundamente triste, com a face na mão, a
olhar para a letra da amiga, escrita em papel-amizade, e ficou assim muito tempo,
como num êxtase. Veio-lhe à mente o Zuza. Já não se lembrava dele, toda entregue
à sua dor. Há uma semana que o não via, nem sequer tinha notícia dele, e agora o
estudante aparecia-lhe vagamente na imaginação como a lembrança remota de uma
coisa que se viu em sonho. As lágrimas começaram a cair-lhe dos olhos duas a
duas, silenciosamente, sobre o bilhete da Lídia.
Uma... duas...
Duas horas da tarde. O amanuense ainda não tinha voltado da repartição. D.
Terezinha costurava na sala de jantar, cantarolando uma modinha cearense, em
desafio com o sabiá, que desferia o seu eterno e monótono dobrado, esquecido ao
sol. Havia no tépido interior daquela casa a calma preguiçosa dessa hora do dia, em
que se ouve o voar do moscardo impertinente e cantos de galo ao longe, nos
quintais. Mariana suspirava na cozinha às voltas com as panelas, cachimbando.
Sultão, esse dormia tranqüilamente o seu sono do meio-dia, aos pés de D.
Terezinha, orelhas murchas, deitado de banda.
Todos os dias, invariavelmente, era a mesma quietação, a mesma sonolência,
o mesmo ramerrão, até que viesse o amanuense com as suas hemorróidas ou com
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a sua cachaça dar à casa o ar de sua graça. Freqüentemente João chegava às
quatro horas, demorando-se às vezes até às cinco, o que não era muito raro.
Nesse dia, porém, antes que o velho pêndulo da sala de jantar marcasse quatro
horas, entrou de chapéu na cabeça, como de costume, para não constipar, e foi
direito ao quarto da afilhada.
“— Como tinha passado o dia? Muito fastio ainda?” — E puxando uma
cadeira sentou-se ao lado de Maria, que se conservava deitada.
Ao pé da rede, sobre a esteira gasta, eternizava-se uma tigela com resto de
caldo, onde flutuavam moscas. João fez um gesto de aborrecimento, e apanhando a
tigela:
Mariana!
Demônio de gente! Naquela casa ele é que fazia tudo, e, se havia uma
pessoa doente, era o mesmo que nada.
Mariana!
Inhô!
Não está ouvindo chamar, seu diabo!
D. Terezinha continuava a cantarolar, sem se dar por achada, por pirraça.
Mariana apareceu à porta do quarto, sem casaco, os seios moles dentro do
cabeção da camisa tisnada, pés descalços, cabelos assanhados.
João mediu-a com o olhar, de alto a baixo, e entregando-lhe a louça:
Por que ainda não tirou isto?
Estava cuidando do jantar...
Cuidando do jantar, hein? Cuidando do jantar?... Burra!...
A criada, porém, deu-lhe as costas e saiu rindo, com o seu ar idiota.
Uma pessoa somente interessava-se pela saúde de Maria do Carmo — era
ele, João da Mata, cujos cuidados para com ela redobravam dia a dia.
D. Terezinha, essa nem sequer chegava à porta do quarto, resmungando
sempre, rogando pragas, dizendo indiretas, que Maria do Carmo ouvia com lágrimas
nos olhos.
Nunca João fora tão bom para a afilhada como agora. Trazia-lhe mimos da
rua, bons-bocados, confeitos, rendas, com uma solicitude paternal, animando-a,
prometendo-lhe muitas felicidades, contando-lhe tudo quanto ouvia dizer na rua,
dando-lhe notícias dos conhecidos.
Teve febre hoje? continuou ele tornando a sentar-se.
Não sei...
Deixe ver o pulso... Não, nem um bocadinho... Bom, não se amofine, hein,
não se amofine. Amanhã, se Deus quiser, pode levantar-se. E baixo:
Tolice!... Morrendo sem quê nem pra quê! Se continuas, é pior... podem
até saber... Isto a gente faz cara alegre e vai para diante como as outras, minha
tola... Olha a tua amiga, a Lídia... Casou e casou bem... E assim a maior parte...
Deixa de tolices.
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Logo no dia seguinte à noite do seu defloramento Maria do Carmo queixou-se
de fortes dores na cabeça e nos quadris, indisposição geral, e uma ausência quase
absoluta de apetite. Não podia ver comida de espécie alguma nem sentir ao menos
o cheiro de guisados. Tudo a enjoava provocando-lhe náuseas. Cada vez que se
lembrava de João vinham-lhe arrepios na pele e “agasturas na boca do estômago”.
Pungia-lhe uma espécie de remorso, que a fazia passar horas inteiras num
abatimento medonho, encafuada no quarto, sem coragem para continuar a vida
como dantes. Lamentava-se como uma desgraçada: — Que vida! que vida!
Não quis almoçar e passou o dia com uma xícara de café, que a Mariana lhe
levara.
D. Terezinha não se abalava: era como se Maria do Carmo não existisse. Que
fosse para lá com os seus faniquitos, não tinha obrigação de criar filhos de ninguém.
Antes de ir para a repartição João lhe recomendara: — Olhe: Maria amanheceu
doente. Está com uma pontinha de febre, não a deixe morrer à fome, hein...
Foi como se não recomendasse, porque D. Terezinha nem sequer pôs os pés
no quarto da rapariga. Limitou-se a dizer à criada: — Ouviste? Não deixes morrer de
fome a mimosa...
Ah! esse desprezo, essa indiferença da madrinha doía nalma de Maria como
um insulto. Lembrava-se às vezes de a mandar chamar e pedir-lhe por amor de
Deus que não a tratasse assim, que não a desprezasse... Mas ao mesmo tempo
achava que isso era confessar a sua culpa, porque na verdade nunca houvera entre
elas causa para o mais leve rompimento, a não ser as impertinências de João da
Mata. Que culpa tinha ela que o padrinho dissesse desaforos à mulher?
E assim ia passando agora, abandonada, sem uma pessoa que se
interessasse verdadeiramente por sua sorte, a não ser João da Mata.
Trataram-te bem? perguntava o amanuense ao voltar do trabalho.
Trataram... murmurava ela.
Mas a verdade é que Maria passava uma vida miserável. De manhã,
enquanto João ainda estava em casa, ele mesmo ia levar-lhe café com torradinhas
de pão, mas depois, ela ficava entregue à preguiça da criada e à indiferença da
madrinha, em termos de morrer de fraqueza. Davam-lhe um caldo ao meio-dia, único
alimento com que ela esperava o jantar às quatro horas, quando o padrinho viesse.
Por fim quase que não podia suportar aquilo, e nove dias depois, num domingo,
levantou-se resolvida a ir jantar com a Lídia, ao menos por desfastio, que aquela
casa era um horror! Mostrou a João a carta da amiga, acrescentando que até era
bom para ela passar o resto do dia fora, no Benfica, ouvir tocar piano, distrair, enfim,
porque andava muito triste.
O amanuense aprovou prontamente: que sim! mas era preciso saber se já
estava completamente boa, se não sentia mais nada.
Mais nada, passei bem a noite.
João tomou-lhe o pulso com carinho.
Pois bem, vista-se e vamos. Amanhã pode ir até à escola, não é assim?
E, noutro tom:
Não vale a pena a gente se amofinar por qualquer coisa, filha. A vida é isto
mesmo — andar para adiante sempre com cara alegre. Vamos, vá se vestir.
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Ainda não tinha dado meio-dia no pêndulo. Maria foi ao quarto, abriu baús,
mais consolada, escolheu o melhor dos seus vestidos de cretone, um azul de
riscados brancos, em pouco saiu ao lado do padrinho, traçando o fichu, sem dar
palavra a D. Terezinha.
Ninguém na rua do Trilho, deserta àquela hora como uma rua de aldeia.
Seguiram para a Praça do Ferreira a tomar o bonde de Pelotas. Pouca gente
na praça ensombrada por suas enormes mungubeiras. Dois sujeitos, sentados um
defronte do outro, jogavam silenciosamente o dominó no Café Java. Às portas
da Maison Moderne famílias esperavam os bondes em pé, silenciosas, com ar de
infinito aborrecimento. Dentro jogava-se bilhar. Muitas pessoas rodeavam uma das
mesas para ver jogar o presidente, que, em colete, escanchado num ângulo da
mesa, calculava o efeito das bolas. Maria teve um estremecimento ao vê-lo. Certo o
Zuza também andava por ali... Instintivamente procurou-o com o olhar, mas ninguém
que se parecesse com o estudante. O José Pereira tomava cerveja a um canto mais
o Castrinho.
Os bondes iam chegando uns atrás dos outros, enfileirados.
Antes de subir para o de Pelotas, Maria lançou um último olhar à sala dos
bilhares. O José Pereira sem o Zuza! Era realmente assombroso!
Mas daí a pouco o bonde rodava outra vez caminho do Benfica, e invadiu-lhe
o coração uma melancolia sem causa, uma tristeza vaga que lhe deu vontade de
estar só, de voltar à casa.
Lídia veio receber a amiga de braços abertos, muito alegre, de branco, com
papelotes no cabelo e sandálias de cetim. — Ora, até que enfim! Já não a esperava
mais, Sra. D. Maria. Noiva de fidalgo... pudera!
Não diga isso, minha negra, não vim há mais tempo porque tenho andado
adoentada. Tu não imaginas...
Cobriram-se de beijos.
Lídia mandou-os entrar para a sala de visitas.
Como vai D. Terezinha, Sr. João? perguntou maliciosamente
escancarando as janelas.
Bem, respondeu o amanuense num tom seco, pondo o chapéu sobre uma
cadeira. E logo: — Homem, isto está que nem um paraíso!
Qual paraíso! Está nos debicando?...
Não senhora, longe de mim tal pensamento. O que digo é a verdade: O
Loureiro preparou isto à fidalga!
E ia examinando, através dos detestáveis óculos escuros, os quadros, o papel
da sala, o piano, os bibelôs, com uma curiosidade infantil, estendendo o olhar de vez
em quando até o interior da casa disfarçadamente.
Maria tinha-se sentado no sofá e por sua vez confirmava a admiração do
amanuense. — Sim senhora, tudo muito bem arranjadinho, muito chique...
Vejam só, vejam só a graça! repetia a outra, sentando-se ao lado da
amiga.
“E o Sr. Loureiro, como ia?” inquiriu Maria.
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Bem, menina, muito atarefado com o emprego. É uma vidinha cansada,
esta de guarda-livros. O Loureiro, coitado, não tem sossego de espírito. Vive na loja
e ainda por cima trabalha em casa. Um horror! Tu é que estás magrinha; estou te
achando tão abatida, tão pálida...
Saudades tuas...
Saudades, eu sei de quem...
Riram.
Agora é que reparo, continuou Lídia muito amável, tira o fichu e vamos ver
a casa.
E levantando-se:
Preciso conversar muito contigo. Já não te lembravas de mim, hein?... Sr.
João tenha a bondade de esperar um pouquinho — o Loureiro não tarda: está às
voltas com a papelada.
Oh! minha senhora...
João da Mata deliciava-se a observar os quadros e as estatuetas de terracota,
de mãos para trás, como se estivesse numa exposição. Depois chegou à janela por
onde entrava um arzinho puro impregnado de essência de resedás. Defronte enchia
a vista o verde sombrio duma esplêndida floresta de cajueiros onde oscilavam
pequenos pontos amarelos e vermelhos quebrando a monotonia da paisagem larga
e igual, batida de sol. O palacete azul do Loureiro perdia-se num fundo de verdura. À
direita, lá longe, na esquina de um grande sítio, passava a linha de bonde. E que
frescura! Dava vontade à gente pecar muitas vezes por dia, como Adão no Paraíso,
ali, assim, naquele pedacinho do Ceará, sem seca e sem política, entretendo
relações sentimentais com a natureza agreste e sincera.
Bom para se copiar um balanço, isto aqui, costumava dizer o ingênuo
guarda-livros.
João pôs-se a contemplar, com um enlevo nalma, toda essa poesia selvagem
iluminada por um sol implacável.
De súbito:
Olá, seu Mata, como vai você? Que milagre foi este?
Era o guarda-livros, em chinelos, calça branca e paletó de seda amarelo.
João voltou-se.
Oh!... Estava admirando a grandeza do Criador... Você assim mesmo tem
gosto, seu Loureiro, você é um danado, homem! Sim senhor, isto aqui é um maná!
Faz vir água à boca...
Escolhi este local por ser muito isolado da civilização. Detesto o ruído da
cidade...
Tens também a tua veia poética, hein?
Qual veia poética! Isso de versos não é comigo. Tenho até horror à poesia.
O que eu quero é o sossego, o bem-estar, o conforto...
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Fazes muito bem, filho, não há nada como se viver no seu cantinho, com a
sua mulher e os seus filhos, comendo com o suor de seu rosto. Eu, se pudesse,
fazia o mesmo — desertaria da capital, do centro da civilização, para viver
comodamente, bem longe de toda essa porcaria que se chama sociedade. Fazes
muito bem. Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele.
E você, como vai?
Homem, assim mesmo: nem para diante nem para trás, remando contra a
maré... Têm me aparecido umas dorzinhas do lado esquerdo...
Por que não usa você o vinho de caju?
O guarda-livros fez a apologia do vinho de caju, citando casos de curas
assombrosas produzidas pelo uso quotidiano desse depurativo. Ele mesmo,
Loureiro, tinha-se curado radicalmente de um dartro na perna esquerda. Na sua
opinião o vinho de caju era muitíssimo superior à salsa, ao iodureto e a quanta
panacéia receita-se por aí sem resultado.
O amanuense, porém, afirmou que o seu mal era no pulmão, que já tinha
consultado ao Dr. Melo.
Não te fies em médicos do Ceará, que dão cabo de ti. Olhe o Calado,
conferente da Alfândega: diagnosticaram-lhe lesão cardíaca, e o pobre homem,
coitado, estirou a canela no Rio de Janeiro, com uma enfermidade nos rins. Uns
ignorantes, seu João, uns magarefes da humanidade é o que eles são. Meta-se no
vinho de caju, que é o grande remédio para as moléstias do sangue.
Enquanto os dois, sentados no sofá, de pernas trançadas, iam discutindo
banalidades, Lídia e Maria do Carmo comunicavam-se como boas amigas, numa
intimidade franca e expansiva, abrindo-se mutuamente em confidências de colegiais
felizes. Primeiro tinham percorrido toda a casa. Lídia mostrara à outra todos os seus
confortos e todas as suas jóias desde a cama de casados, ampla e fresca, até o
presente de noivado, um magnífico jogo de pulseiras cravejadas de pérolas, em
forma de serpente, o guarda-vestidos, os vidros de essências, os chapéus, as
toalhas de labirinto, feitas no Aracati e tudo mais que o Loureiro comprara com
aquela bondade ingênua que o caracterizava.
Maria via tudo aquilo embasbacada, com surpresas no olhar, falando por
monossílabos, examinando com inveja cada objeto que seus olhos deparavam,
achando tudo muito bom, muito fino, de muito bom gosto. E a outra: olha isto, vê lá,
aqui está o meu relógio de algibeira, comprado no Jaques, tu ainda não viste a
minha cinta de tartaruga; é verdade, e o meu tinteiro de prata, presente do Carvalho,
e o meu leque de plumas...
Foram sair na sala de jantar, e aí, uma defronte à outra, em cadeiras de
balanço, Lídia entrou indiscretamente a falar no Zuza.
Ainda o amas muito? Então fica para a volta?...
Maria não compreendeu a pergunta.
Como fica para a volta?
Sim, de certo, creio que vocês não se casaram...
Não te compreendo...
Olha a engraçada!... Quer um peitinho?!
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Por Deus como te não entendo...
Pergunto se o casamento é quando o Zuza voltar, não te faças de tola...
Quando o Zuza voltar?
E então?...
Mas voltar de onde?...
Estás hoje muito misteriosa, minha espertalhona.
Maria teve um pressentimento: — “E o Zuza tinha ido embora?”
Pois não embarcou anteontem?
Olhavam-se as duas sem se compreenderem, como se estivessem jogando o
disparate.
Para onde?
Para o Recife, ora adeus! para onde havia de ser?... A estas horas anda
ele bem longe do Mucuripe.
Maria do Carmo empalideceu, como se acabasse de saber uma notícia
funesta.
Estás gracejando, murmurou com voz trêmula.
Não sabias?
Não, não sabia...
Pois a Província deu a notícia.
Infame!
E Maria não pôde resistir à comoção que lhe sufocava, os olhos
umedeceram-se-lhe de lágrimas, e desatou a chorar com o rosto mergulhado no
lencinho de rendas.
Que é isso, criatura? Tolice!
Lídia não contava com esse pieguismo da amiga. Ora adeus, o rapaz havia
de voltar, que asneira!
Era preciso paciência para tudo, e então? Ela mesma, Lídia, não esperara
pelo Loureiro quase um ano? Tolice...
Deixa-te disso, filha, vamos tocar piano. Estás nervosa.
Inclinada sobre a pobre rapariga, que soluçava como se lhe tivesse morrido alguém,
Lídia procurava carinhosamente arrancar-lhe o lenço dos olhos alisando-lhe os
cabelos, comovida.
Então?... Levanta, vamos para a sala, que está mais fresco. Não sê
criança, vamos...
Sou uma desgraçada, disse Maria enxugando os olhos com força.
Que desgraçada o quê, estás feito criança...
Isso acontece a todo o mundo, criatura. Vamos, vamos para a sala. Já viste o meu
álbum?
Maria levantou-se devagar, preguiçosamente, com as faces escarlates, as
pestanas úmidas, assoando-se; e arrependida:
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Não, fiquemos aqui mesmo; depois se toca. Não foi nada — um nervoso...
Bem, mas não te ponhas a choramingar por aí, como uma tola. Tu sabes, a
família do Zuza não quer o casamento, quem sabe se o rapaz foi obrigado a
embarcar à última hora? Espera cartas, se ele não te escrever, então sim, podes
ficar certa de que não te ama.
Tornaram a sentar-se.
A criada, alta como um pau-de-sebo, veio saber da Sra. D. Lídia “se a sopa
era de macarrão ou de arroz”.
De macarrão mesmo, Tomázia, faça de macarrão, mas faça uma sopa
gostosa, ouviu?
E para a amiga.
Não imaginas quanto aborreço a cozinha. Há dias em que não ponho lá os
pés. Felizmente o Loureiro arranjou uma boa criada, que até já foi cozinheira do Dr.
Paula Souza, da Estrada de Ferro. É assim como viste, seca e ríspida, mas uma
excelente criada. Faz tudo a meu gosto.
Mas, então o Zuza embarcou, hein? tornou Maria voltando à conversa.
Não falemos mais nisto. Estás hoje muito sentimental e eu não quero que
passes mal o resto do dia em minha casa, sabes? Não falemos mais nisto.
Mas diz-me... aquilo foi uma tolice... diz-me, não o viste mais?
Não. O José Pereira é que está muito nosso amigo, sabes? Tem vindo
aqui duas vezes nesta semana. E que amabilidades, menina, que delicadeza!
Ofereceu-se para apresentar o Loureiro ao presidente da Província, mandou-nos
outro dia um camarote para o teatro...
E tu, como passas a nova vida?
Perfeitamente. Desejava antes morar na cidade, mas o Loureiro é muito
impertinente, diz que prefere isto — paciência. Agora quando vierem os filhos, isso
então... Por enquanto estou muito satisfeita. Um bocado triste isto aqui no Benfica,
mas... vai-se passando. É verdade, precisas vir passar uns dias comigo, estás muito
magra; o ar aqui é melhor que na cidade. Tens ido à Escola?
À Escola? qual! Passei oito dias em casa, como uma freira, sem ir a parte
alguma. Creio que não irei mais àquilo.
Eu no teu caso faria o mesmo. Agora então, que estou casada, olha...Fez
um gesto com as mãos.
... bananas, não estou para suportar desaforos daquela canalha. Porque
tudo aquilo é uma canalha, menina. Fazes muito bem não pondo os pés naquela
feira de reputações. As raparigas ali aprendem a ser falsas e imorais. Conheço muito
o tal Sr. Berredo, o tal Sr. Padre Lima e mais os outros todos. O próprio diretor... eu
cá sei...
Maria estava mais consolada ante a solicitude da amiga. Achava-a mais
amável e mais expansiva.
Foram para a sala de visitas de braço trançado, nas cinturas, e Lídia cantou
ao piano Non m’amava, a velha romanza sentimental, que encheu de lágrimas os
olhos de Maria.
E os dias passavam uns após outros, longos, intermináveis, como uma
repetição monótona que faz mal aos nervos.
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Vieram as festas, o Natal e o Ano-Bom.
Maria do Carmo cada vez mais magra, sentindo-se definhar dia a dia,
descrente de tudo, tinha agora uma certeza cruel que a torturava barbaramente, a
certeza de que estava para ser mãe, de que muito breve o seu nome estaria
completamente desmoralizado. Sentia bulir dentro de si uma coisa estranha, que lhe
incomodava como uma perseguição, e mais de uma vez nos seus momentos de
grande desânimo, atravessara-lhe a mente a idéia sinistra do suicídio. Sim, preferia
matar-se a assistir às exéquias de sua honra na praça pública, em todas as ruas da
cidade, em todas as bocas. Estava irremediavelmente perdida, não tinha pai nem
mãe, nem alguém que lhe fosse sincero no mundo, pois bem, acabar-se-ia de uma
vez, sem ter que dar satisfação a ninguém por isso. Era um pecado, mas não era
uma vergonha, porque não teria que corar nunca diante da sociedade, como uma
criminosa, como uma culpada. Não, mil vezes não! Outra, que não ela, preferisse
arrastar uma existência vergonhosa, a morrer fosse como fosse.
Uma ocasião esteve prestes a ingerir uma dose de láudano, mas faltou-lhe
coragem. Começou a imaginar mil coisas. Via-se morta, dentro de um caixão azul,
de mãos cruzadas sobre o peito, numa sala onde havia gente chorando e um
crucifixo à cabeceira entre velas de cera que ardiam lugubremente. Que horror!
Recuou espantada fazendo em pedaços o vidro de veneno.
Às vezes vinham-lhe resignações, um desejo místico de ser irmã de caridade,
depois que desse à luz a criança, arredar-se para sempre do mundo e ir viver na
Santa Casa de Misericórdia, curando os enfermos, metida nas suas vestes azuis,
debaixo de um grande chapéu de asas, dedicar-se toda a Deus, como uma santa.
Dera para devota; não faltava à missa aos domingos, na Sé, vestida com
muita simplicidade e rezava sempre com uma contrição admirável, ao deitar-se e ao
acordar, defronte da oleografia do Coração de Jesus.
Foi em casa da Lídia que ela teve a certeza de achar-se grávida. Até então
ignorava certos segredos da maternidade, certos fenômenos da fisiologia amorosa,
que nunca lhe tinham dito, nem mesmo as companheiras de Escola, “aliás versadas
em assuntos dessa natureza”.
Tinha ido passar uma semana com a amiga, nas festas, e um dia a Lídia
disse-lhe que “estava pronta” e que ela, Maria, havia de ser a madrinha do primeiro
filho.
Então, aproveitando a oportunidade, Maria do Carmo quis saber como as
mulheres tinham a certeza de estar grávidas.
Lídia explicou tudo minuciosamente: a suspensão das regras, os antojos, as
dores na madre e, finalmente, os primeiros movimentos do feto no útero. Depois
leram junto a Fisiologia do matrimônio de Debay, que o Loureiro tivera o cuidado de
comprar, especialmente o capítulo — Da Calipedia ou Arte de Procriar Filhos, o mais
importante, na opinião da esposa do guarda-livros.
Todo o meu desejo, dizia a Lídia com o livro sobre a perna, todo meu
desejo é que o pequeno menino ou menina se pareça com o presidente da
Província. Ainda no último baile em palácio não tirei os olhos dele.
E Maria nesse dia, ao jantar, teve um grande enjôo da comida, cruzando o
talher logo no primeiro prato, inapetente. Não havia dúvida, “estava pronta” também,
como a Lídia, e esta idéia tornou-se uma idéia fixa, de todos os dias, de todas as
horas, de todos os minutos. Ela com um filho, Jesus! Decididamente estava perdida
para sempre no conceito honesto da gente séria. Não passaria mais de uma simples
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rapariga que “já teve filho”! As revelações da Lídia tinham-lhe aberto os olhos; sentia
agora perfeitamente bulir a criança, e até, na sua alucinação, parecia-lhe ouvir os
vagidos do bebê. Se fosse possível evitar o seu desenvolvimento, matá-lo mesmo no
ventre... Mas, não: seria uma barbaridade, uma malvadez. Afinal de contas era seu
filho, filho de suas entranhas, embora fruto de um crime...
E Maria agoniava-se, fazendo essas considerações e mil outras conjecturas
absurdas, sem coragem para esperar o desenlace daquele drama secreto de que
ela era a protagonista. Vivia assombrada e não raro caía num desfalecimento que
lhe tirava a ação do corpo e do espírito.
Por uma espécie de instinto, previa todas as conseqüências do seu estado e
pressentia o desprezo acerbo que havia de lhe cair sobre a cabeça
implacavelmente, como uma grande mão de ferro, esse desprezo convencional e
hipócrita de uma sociedade ávida de escândalos, cevando-se da desgraça alheia,
banqueteando-se em torno da vítima, como para torturá-la ainda mais.
E enquanto a Lídia ganhava, com sorrisos de triunfo as simpatias dessa
mesma sociedade que a poucos meses a maldizia, ela, Maria do Carmo, sobre cuja
reputação nunca pairara a sombra de uma nódoa, via-se pouco a pouco ludibriada,
tratada como uma mulher à-toa, num abandono completo, sem amigas, sem honra,
pobre, sem pai nem mãe, mísera cadela que a gente enxota a pontapés de dentro
de casa por safada e indecente.
CAPÍTULO XII
O Zuza abalara de feito numa sexta-feira, dias depois do casamento da Lídia.
Por toda parte se comentava, com risinhos sublinhados, o escandaloso namoro com
a normalista, e o pai, o coronel Souza Nunes, escrupuloso em tudo que lhe dizia
respeito, exigiu do filho que embarcasse no primeiro vapor, sob penas severas.
Mas, meu pai...
Tenha santa paciência, vossemecê embarca ou diz por que não embarca.
Fala-se em toda a cidade nos seus namoros com a rapariga e eu não quero, não
consinto em semelhante escândalo. Sei muito bem o que isso é. Não pode ser boa
mãe de família uma rapariga educada em companhia de um safardana reconhecido,
como o tal Sr. João da Mata. Prepare as malas e deixe-se de histórias, que é perder
tempo.
Nestas condições o estudante não teve jeito senão resignar-se ante a vontade
imperiosa do pai e anunciar ao José Pereira o seu embarque daí a dois dias.
De acordo, aprovou o redator da Província. Deves tratar quanto antes da
tua formatura e então podes voltar ao Ceará e fazer um figurão na nossa
magistratura, que já conta em seu seio bons talentos, rapazes da tua estatura,
inteligentes e resolutos.
Sentia muito que o Zuza não se demorasse mais algum tempo, mas, enfim,
como esperava em breve tornar a vê-lo formadinho, com o seu título de bacharel,
“dando sorte” na capital cearense, que diabo! era preciso abafar a saudade e
consolar-se.
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O Zuza, porém, estava contrariado. Agora que as coisas corriam-lhe tão bem,
que a rapariga entregava-se-lhe de corpo e alma, é que o obrigavam a embarcar da
noite para o dia, sem ao menos ter tempo de despedir-se dela, de dar-lhe uma
beijoca, um abraço sequer, às escondidas. É verdade que o seu amor não era lá
para que se dissesse um amor extraordinário, uma dessas paixões incendiárias que
decidem do futuro de um cristão, mas, tinha a sua simpatia por aqueles olhinhos
ternos como os de uma santa, lá isso tinha... Tão boas as palestras ao meio-dia, na
Escola Normal, enquanto as outras normalistas divertiam-se lá para dentro, à espera
dos professores! Uma gentinha levada da breca, essas normalistas! Com que
facilidade a Maria do Carmo, aliás, uma das mais comportadas, entregava-lhe a face
para beijar e escrevia-lhe cartinhas perfumadas, cheias de juras e protestos de
amor! Se fosse outro, até já podia ter feito uma asneira... Arrependia-se agora de
não ter aproveitado os melhores momentos... Grandíssimo calouro! podia ter
desfrutado a valer.
E concluiu, preparando-se para sair:
Ora sabem que mais? Há males que vêm para bem. A cidade está cheia
do meu nome e do nome da rapariga, o verdadeiro é ir-me embora mesmo, sem dar
satisfação a ninguém. Meu pai é um homem de juízo. Eu podia muito bem engraçar-
me deveras com a menina para casar e depois... sabe Deus as conseqüências. Já
se foi o tempo de um homem sacrificar posição e futuro por uma mulher pobre.
Concluo o meu curso e sigo para a Europa, é o verdadeiro, ora adeus!
Enfiou a manga do redingote, atabalhoado, e saiu a despedir-se dos amigos.
Toda a cidade soube logo da viagem intempestiva do estudante. A notícia
propalou-se com a rapidez de fogo em palha, por todos os botequins, por todos os
cafés e restaurantes, avolumando-se, como se se tratasse de um grande
acontecimento.
Quem, o Zuza, o filho do coronel Souza Nunes? Então não se casava com a
normalista?
Por esta já esperava eu, diziam uns convictamente.
E eu, repetiam outros.
Pela cara se conhece quem tem lombrigas, seu Sussuarana, afirmava um
sujeito reles na botica do Travassos. Aquele tipo sempre me pareceu uma bisca.
Agora a pobre rapariga é quem fica por aí com cara de besta, sem achar quem lhe
roa os ossos.
Pode dizer, seu compadre. Esses fidalgos o que querem é isso mesmo —
desfrutar e pôr-se ao fresco. Todo o nosso mal é recebermos em nossas casas
qualquer sunga-neném que chegue a esta terra. Nós, os pais de família, é que
somos os culpados.
E o compadre João da Mata o que pretende fazer?
Eu sei lá, homem de Deus, aquele é outro...
A viagem imprevista do Zuza assumia proporções de escândalo. Nas fileiras
políticas especialmente, entre os partidos contrários à administração presidencial,
alardeava-se o fato: que o rapaz era um produto da política do governo, que todos
os amigos do presidente mediam-se pela mesma bitola, que era tudo uma súcia de
bandidos de casaca, usurpadores da honra cearense, o diabo!
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Os jornais da oposição rosnaram contra a moralidade dos governistas,
responsabilizando o presidente pelo “desmembramento de caracteres” que ia pela
sociedade cearense, alcunhando-o de negro Romão. Tal dizia que “S. Exª era
homem de costumes dissolutos, acostumado a beber cerveja nos cafés cantantes de
Paris, e a passear de braço com as cocottes no Bois de Boulogne”. Tal outro
afirmava que “S. Exª sabia manobrar perfeitamente um phaeteon, montava muito
bem a cavalo, mas não tinha capacidade para dirigir os destinos de um país”.
Insinuava aquele que “a viagem inesperada de certo bacharel por formar-se
era um atentado contra os nossos brios e contra a moral pública”; aquele outro
confirmava que “a polícia devia dar caça a um tal Sr. bacharel de nome açucarado
contra quem pesavam as mais sérias acusações no tocante ao seu procedimento
para com a família cearense”.
E toda a gente sabia que se tratava do Zuza e da Maria do Carmo.
O estudante, azucrinado por todos os lados, numa roda viva de indiretas,
perdia a cabeça, indagava na agência se o vapor já tinha chegado, esbaforido, às
carreiras, doido já por se ver barra afora, debruçado, tranqüilamente na amurada, a
ver sumirem-se no horizonte, como visões de uma noite mal dormida, as areias do
Mucuripe.
Uf!... Estava cansado de suportar tanta sujidade! Decididamente não voltaria
mais ao Ceará por preço algum. Diabo de província onde ninguém está livre da
calúnia e da descompostura pela imprensa desde que não se submete às
imposições duma política de interesses pessoais.
Revoltava-se de novo contra o Ceará, contra os costumes cearenses, contra
a política, “essa política sem ideal e sem patriotismo, que só servia para nos
rebaixar, obrigando o indivíduo a vender-se por amor de sua mulher e de seus
filhos”. Que diabo tinha ele com a política para que se viesse meter com a sua vida?
Só porque era amigo do presidente da Província e filho de político? Sebo! Então não
se podia ter amigos no Ceará, decididamente. E por que tanto barulho em torno do
seu nome, por que, não lhe diriam? Por causa de um simples namoro com uma
pobre normalista sem eira nem beira? Era o cúmulo!
Com que deliciosa alegria ele ergueu-se da rede no dia do embarque, de
manhã muito cedo, as malas no meio do quarto prontas, a passagem comprada no
bolso, sem dívidas, sem compromissos, completamente pronto a deixar o Ceará!
Quando vieram lhe chamar para o banho, às seis horas, já há muito estava de pé,
em chambre, muito bem-disposto, fumando o seu cigarro, passando uma vista de
olhos na maleta do camarote onde refulgia, numa frescura capitosa, a roupa branca
— ceroulas, camisas, meias e toalhas de rosto — tudo arrumado cautelosamente,
com um cuidado feminino, umas cheirando ainda a sabão, passadinhas a ferro
outras.
Ah! ia deixando fora a Casa de Pensão. Tomou do livro que se achava sobre
a mesa e colocou-o na maleta, ao lado, para ler em viagem.
Agora sim, não faltava mais nada. Só pedia a Deus que não chovesse,
porque um embarque debaixo de aguaceiro era um desastre horroroso.
De feito ameaçava chover. Era em janeiro. Há dias caía sobre a cidade uma
chuvinha sintomática de inverno, persistente e miúda, acompanhada de trovões
longínquos, lavando a atmosfera, encharcando as ruas, alentando a população,
enverdecendo as árvores. Os longos meses de seca iam ser compensados por uma
abundância de chuvas consoladoras e refrigerantes. As manhãs iam se tornando
frescas e já se viam passar, em tabuleiro, feixes de feijão verde e hortaliças para a -
feira.
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Zuza tinha aberto a vidraça para consultar o tempo. Os telhados, defronte,
estavam úmidos e o céu de uma cor esmaecida de safira, arqueava-se, sem uma
nuvem na penumbra da antemanhã. Passava um fiscal da Câmara com o seu boné,
jaqueta com botões dourados, chapéu de chuva debaixo do braço, assoando-se com
estrondo.
Tudo fechado ainda, com efeito! pensou o Zuza. Entretanto já tinham dado
seis horas.
Entrou e pôs-se a reler as cartas de Maria do Carmo, trincando a ponta do
bigode.
“Meu querido Zuza...”
Nesta a normalista jurava como não tinha ido ao Clube Iracema; que era uma
calúnia o que tinham dito ao estudante...
“Tua querida Maria”.
Zuza meneou a cabeça com um ar de riso e abriu outra.
“Zuza do meu coração...”
Nesta outra Maria lamentava que o rapaz não tivesse aparecido na Escola
Normal na véspera.
“Tu já não me amas, Zuza; não queiras matar-me de saudades. Todo os dias
peço a Deus por ti e tu nem sequer te lembras da tua futura esposa!”
E assim, uma a uma, o futuro bacharel releu toda a série de cartas da normalista,
enfeixando-as depois, dobradinhas, com um cadarço.
Que horror, meu Deus, quanta banalidade! E ela a tomar a coisa a sério! A
gente sempre faz asneiras de criança nessa idade!...
E guardando o maço de cartas no fundo da maleta: “— Magnífico rol de
asneiras para fazer rir a rapaziada de Pernambuco.”
As horas passavam vertiginosas. A larga claridade do sol penetrava no quarto
pela janela aberta, como uma visita sem-cerimônia, anunciando um dia seco e
esplêndido.
Já lá fora, na rua, recomeçava a labuta quotidiana. Um barbeiro, que morava
defronte, amolava as navalhas assobiando um trecho de Fandango, com as pernas
cruzadas, de frente para a rua. Passavam burricos com cargas de água, procurando
as coxias. Meninos apregoavam o Cearense.
José Pereira ficara de vir almoçar com o Zuza, mais cedo que de costume,
para seguirem juntos ao ponto de embarque.
D. Sofia andava numa faina, da sala para a cozinha, com os olhos
empanados de lágrimas, esquecendo as suas dores de útero para pensar no Zuza,
no seu filho que se ia embora.
O coronel, esse não se alterava, calmo, consultando o relógio de vez em
quando, bem-humorado nesse dia, passeando o seu grande ar de homem
independente.
Cerca de 10 horas entrou o redator da Província anunciando a chegada do
vapor.
A que horas sai? perguntou o estudante.
Está marcado para as duas. Em todo caso é prudente ir mais cedo...
Sem dúvida. Ao meio-dia, o mais tardar, devo estar a bordo. Qual é o
vapor?
O Espírito Santo.
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Diabo, uma carroça!
José Pereira entrara para o quarto do Zuza, e, sentado na larga rede de
varandas encarnadas, perna traçada com desembaraço, passeava o olhar
morosamente naquele tabernáculo de rapaz solteiro, agora em desordem, como um
ninho abandonado, enquanto o estudante acabava de fazer a toalete no aposento
contíguo.
Na frente das duas malas, uma grande e outra menor, lia-se em letreiros
impressos e nítidos — José de Souza Nunes — Recife. Perto estava um caixote com
livros e o mesmo dístico no alto.
Dez e meia! Fez o redator levando o relógio ao ouvido.
Imediatamente surgiu o Zuza lépido, esfregando as mãos, como se saísse de
um banho de perfumes.
Prontinho, disse ele.
E misteriosamente:
Então, com que a canalha tem-se divertido à minha custa, hein?
Como assim?
Oh! homem, inventaram por aí que eu deflorei a Maria do Carmo. Não leste
o Pedro II e o Cearense?
E tens culpa no cartório?
Não, com os diabos, mas isso é um horror! Ninguém pode mais gracejar,
ninguém tem mais o direito de chegar-se a uma rapariga honesta sem intenções
malévolas. Cada vez me convenço mais de que isso é uma terra de selvagens, seu
José Pereira! Isto é um país de bárbaros. Vocês da imprensa devem civilizar este
povo, devem ensinar esta gente a pensar e a ter juízo, do contrário...
Mas, fala a verdade, interrompeu o outro com um ar de riso malicioso; tu
nunca...
Palavra como não! É verdade que lhe dei alguns beijos, mas o nosso
namoro nunca foi além disso, mesmo porque, tu compreendes a minha
responsabilidade... Depois, só fui à casa do padrinho umas três vezes, no máximo.
Calúnia, simples calúnia...
É. Este povo é muito indiscreto...
Indiscreto não — alcoviteiro, mentiroso, ignorante e besta, é o que ele é.
E depois de uma pausa:
Bem, vamos almoçar que deve ser hora.
Uma vez instalado a bordo, no seu camarote do lado do mar, o futuro
bacharel, de binóculo a tiracolo e boné, respirou a todo o pulmão e foi assistir da
tolda à manobra do vapor que suspendia o ferro.
Eram duas horas em ponto. O tempo estava magnífico. Ventava forte e o mar
em ressaca atirava sobre o quebra-mar uma toalha de espuma que se desmanchava
em poeira tenuíssima irisada pelo sol. A cada golpe de mar havia uma algazarra na
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praia coalhada de gente. Escaleres navegavam para terra puxados a remo,
destacando a bandeira do escaler da Capitania do Porto.
Zuza assestou o binóculo, e, sacando do lenço, correspondeu aos acenos
que lhe faziam de um escaler que se afastava. Sentia agora uma ponta de saudade
espicaçar-lhe o coração. Através da confusão que reinava no seu espírito, como um
ponto luminoso por entre um nevoeiro denso, via mentalmente e nitidamente a
cabeça branca de D. Sofia, de sua boa mãe, e só então sentiu que uma coisa
prendia-lhe ao Ceará, atraía-lhe a essa terra que ele tanto detestava — sim, queria
mal ao Ceará não sabia mesmo por que, por índole, por sistema, por pedantismo,
mas não podia esquecer nunca o Ceará, porque nele ficava a sua velha que ainda
há pouco, abraçando-o entre lágrimas, metera-lhe no bolso uma nota de cem mil-réis
lisa e cheirando a fundo de baú.
Boa a santa velhinha! pensava ele, e já não enxergava coisa alguma, porque
os vidros do binóculo estavam úmidos e enevoados...
Depois, enquanto o vapor singrava em direção ao Mucuripe, começou a
examinar a costa cearense, como se nunca a tivesse visto de fora, da tolda de um
navio. Viu passar diante de seus olhos arregalados todo o litoral da Fortaleza, desde
o farol de Mucuripe até a ponta dos Arpoadores...
Primeiro o farol, lá muito ao longe, esbranquiçado, cor de areia, ereto, batido
pelos ventos; depois a extensa faixa de areia que se desdobra em ziguezague até à
cidade; a praia alvacenta e rendilhada de espumas. Em seguida o novo edifício da
Alfândega, em forma de gaiola, acaçapado, sem arquitetura, tão feio que o mar
parece recuar com medo à sua catadura.
Noutro plano, coqueiros maltratados pelo rigor do sol, erguendo-se da areia
movediça que os ameaçava soterrar, uns já enterrados até a fronde, outros
inclinados, prestes a desabar; o torreão dos judeus Boris, imitando a torre de um
castelo medieval, cinzento e esguio; o seminário, por trás no alto da Prainha, com as
suas torres triangulares; as torres vetustas e enegrecidas da Sé; o Passeio Público,
com os seus três planos em escadarias; a S. C. de Misericórdia, branca, no alto; o
Gasômetro; a Cadeia; e, por ali afora, o arraial Moura Brasil, invadido pelo mar,
reduzido a um montão de casebres trepados uns sobre os outros...
“Sim, senhor, pensou o Zuza, bonito aspecto para se ver de longe, barra
afora...”
Dentro em pouco o vapor começou a tombar desesperadamente. Fortaleza já
não era mais do que uma pintura microscópica, diluindo-se muito ao longe na tinta
alvacenta do horizonte...
. ..E só agora, três dias depois da partida do Zuza, é que Maria do Carmo
sentia a dor do seu abandono, ao mesmo tempo que adquiria a certeza esmagadora
de que estava para ser mãe; sim, para ser mãe de um filho espúrio, concebido num
momento de desvario, mal acordada de um pesadelo horrível. Era demais, era! Se
dissesse que ela tinha deixado o seu quarto para ir ter à rede do padrinho,
oferecendo-se-lhe como uma fêmea desavergonhada, vá; era justo que caísse sobre
si toda a cólera dos homens, mas, ao contrário, ele, o infame do padrinho é que fora
alta noite ao seu quarto, provocar-lhe, impor-lhe, para bem dizer, uma coisa
daquelas, e ela, coitada, tão inexperiente, tão tola que nem ao menos tivera
coragem para dar um escândalo, expulsando-o, como se expulsa um ladrão, dando-
lhe com a mão no focinho, embora com sacrifício de sua vida.
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Chegavam a seus ouvidos, indistintamente, como um surdo rumor de
cochichos, os ecos de maledicência. Na Escola Normal as outras raparigas
atiravam-lhe indiretas fortes, que ela já não tinha ânimo de repelir como dantes.
Viam-na triste, para um canto, muito desconfiada, com grandes olheiras.
Todas notavam as alterações de sua fisionomia, e certo desleixo no trajar, que
faziam dela uma outra Maria do Carmo, albardeira e insociável, inimiga da
convivência das companheiras, egoísta, intratável.
Aquilo é coisa... comentavam maliciosamente as normalistas. A Maria viu
alma do outro mundo, não é possível.
Que o quê, menina, são desgostos de família. Dizem que o padrinho a
maltrata.
Quem, o João da Mata? Um grandíssimo miserável. Daí talvez seja isso
mesmo.
Não se iludam, meninas, insinuou a zarolha, a Maria ficou assim depois
que o Sr. Zuza foi-se embora. Ela dantes era até uma rapariga muito alegre, vocês
não se lembram?
Coisas deste mundo, mulher, coisas deste mundo. Ninguém deve fazer
mau juízo das pessoas.
O diretor um dia maltratou-a. Ao chegar viu desenhada na pedra da aula, a
giz, uma obscenidade. Ficou furioso, disse muitas grosserias às raparigas e quis
saber quem era a autora de semelhante indecência.
Silêncio profundo. Ninguém se atrevia a responder.
Tenham a bondade de dizer quem fez isto! repetiu o diretor, e, de relance,
viu, na última fila, um dedo que apontava para Maria do Carmo.
Ah! foi a senhora, D. Maria do Carmo?
Maria empalideceu.
Eu, não senhor!
Tenha a bondade, faça o favor de vir apagar isto.
Mas não fui eu, Sr. diretor, tornou ela erguendo-se.
Embora, venha sempre: a senhora paga pelas outras.
Não senhor, não posso responder por uma falta que não cometi.
Não vem?
Não senhor.
Toda a aula estava voltada para Maria do Carmo, medindo-a de alto a baixo,
como se vissem nela uma transfiguração extraordinária.
Então a senhora não vem? repetiu o homem fazendo uma carranca
medonha.
Não senhor...
Retire-se da aula! fez ele apontando a porta. A senhora é uma
insubordinada, desobedeceu à primeira autoridade deste estabelecimento. Vamos,
retire-se!
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Houve um silêncio grave, e Maria, tomando os livros, séria e resignada, sem
olhar para as colegas, retirou-se taciturna, ouvindo atrás de si o atrito da esponja na
pedra.
E tudo mais era assim, sucediam-se as contrariedades como um castigo.
Crescia-lhe na alma o desgosto, como uma nuvem que sobe no horizonte
vagarosamente alastrando pouco a pouco toda a vasta cúpula do céu para se
desfazer em chuva caudalosa. Tinha pena de não ser, como as “outras mulheres”,
indiferente a tudo, até nos momentos mais difíceis da vida. Vinham-lhe às vezes
alegrias intermitentes, uma resignação infinita animava todo seu ser, e dispunha-se
a enfrentar todas as conseqüências do seu desatino com uma calma heróica, sem
dar mostra da mais leve tristeza.
Nesses momentos abria-se em efusões de ingênua bondade para com D.
Terezinha, procurando-a, puxando conversa, oferecendo-se-lhe para pentear o
cabelo, gabando-lhe os vestidos, com uma humildade de escrava. Mas a madrinha,
seca e indomável, aborrecia-se com aquilo, enfadava-se, sempre de cara fechada,
respondendo por monossílabos às perguntas da afilhada. Quando amanhecia mal-
humorada, com as suas desconfianças, enquizilava-se demais. — “Deixe-me,
criatura, deixe-me, por amor de Deus, oh!” Maria não dizia palavra, recolhia-se ao
silêncio do seu quarto a costurar ou a ler o Almanaque das senhoras por desfastio,
para se distrair.
Entretanto João da Mata progredia no vício de beber aguardente. Andava
agora muito chegado ao Perneta e ao Guedes, de quem se dizia amigo do coração.
A bodega do Zé Gato continuava a ser o ponto de suas reuniões, onde se
demoravam às vezes até alta noite a jogar a bisca num esquecimento absoluto de
família e de deveres, saturados de álcool, lívidos à luz de um miserável candeeiro de
querosene. O triste ordenado que lhes pingava no bolso em cada fim de mês
escorria-lhes por entre os dedos como azougue, transformando-se em fichas na
banca do jogo e desaparecendo como por encanto, sem que eles próprios
soubessem como.
Quantas vezes sucedia entrar em casa sem um real no bolso para mandar à
feira no dia seguinte!
Era preciso então tomar dinheiro a juros aos agiotas, correr toda a cidade
atrás de alguém que lhe emprestasse alguns mil-réis até o fim do mês, contar as
suas necessidades, as pequeninas misérias domésticas, inventar situações incríveis.
Porque os seus “amigos do coração”, o Perneta e o Guedes, da Matraca, também
eram pobretões e perdulários, sentiam muito as necessidades do Janjão, mas não
lhe podiam ser úteis por forma alguma, senão dando-lhe a ganhar no jogo quando a
sorte não os protegia.
É. Eu bem sei que vocês também têm família como eu e precisam também.
É o diabo, é o diabo!
Daí as dissensões, os conflitos, em casa, com a mulher por causa de
dinheiro. Ele já não conseguia impor à D. Terezinha a sua autoridade de chefe de
casa, como dantes; ao contrário, agora suportava-lhe as impertinências, as
saraivadas de impropérios, com uma passividade de animal submisso.
Tenha vergonha, homem de Deus, tenha vergonha, que você já não é
criança, dizia-lhe ela nas bochechas, quase lhe abanando o queixo. Olhe para as
barbas que tem na cara, porte-se como gente!
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E ele ouvia tudo aquilo sem dizer água vai, caladinho como um prego,
murcho, impotente!
Como os tempos mudam! Há poucos dias era ele forte, o mandachuva
naquela casa; bastava um olhar seu, por cima dos óculos escuros, para que todos,
D. Terezinha, Maria do Carmo e a Mariana, estremecessem com medo, porque
sabiam de quanto ele era capaz nos momentos de cólera; agora não, tinham-se
trocado os papéis: bastava um olhar de D. Terezinha para que ele lhe desse as
costas disfarçadamente para evitar barulho.
Basta, basta, basta! costumava dizer quando a mulher dirigia-se para ele
com os olhos chamejantes, de mãos fechadas.
E escafedia-se até o fundo do quintal para não lhe ouvir os disparates.
Estava magro, muito magro, e queixava-se de dores nos intestinos.
Diabo da repartição não lhe deixava tempo para nada. Era um trabalhar sem
descanso, sentado a uma banca, das nove às três, copiando ofícios, riscando papel
estupidamente. Se ao menos tivesse quem lhe arranjasse com o ministro uma
aposentadoria ainda que fosse com a metade do ordenado... Mas, qual! tudo uns
políticos sem importância, uns lagalhés que iam para a câmara proferir
barbaridades, a repetir que o país estava à beira de um abismo e nada mais! Até
estimava que lhe demitissem do emprego, porque iria fazer pela vida noutra parte, e
escusava perder tempo e emporcalhar papel, para no fim do mês — tome lá o seu
ordenado, uns míseros vinténs que mal chegavam para o boi. Uma desgraça!
De resto a Maria não lhe dava muito cuidado. A princípio ainda lhe fizera uns
carinhos, dera-lhe uns cortes de chita e um rico vestido de cassa da Índia “para
agradar”, porque também seria uma ingratidão vê-la para um canto a se acabar,
magra e amarela que nem uma lesma. Achava até que tinha feito muito. Outros
havia piores do que ele, ora!
Meu bem, tristezas não pagam dívidas. É andar, é andar sem olhar para
trás.
Mas quando, um belo dia, Maria declarou-lhe positivamente que estava
prenhe, que sentia “uma coisa” bulir-lhe na barriga, João estremunhou. — Que se há
de fazer, filha? Agora é ter paciência. Foi uma fatalidade, foi uma fatalidade. Há de
se arranjar a coisa do melhor modo possível. Vais aí para qualquer sítio, fora da
cidade, e ninguém saberá de coisa alguma. Dá-se tanto disto...
E depois? murmurou Maria mordendo a ponta do lenço, cabisbaixa.
E depois? E depois... ora adeus! e depois dá-se a alguém para criar o
trambolho e tu voltas à tua santa vidinha.
Maria soluçava baixo, fungando numa crise nervosa.
Já te pões a chorar como uma criança! Tolice! Estou a dizer-te que o caso
é muito simples.
Uma tarde em que os Mendes, o juiz municipal e a mulher, tinham ido
passear ao Trilho, João da Mata entrou alvoroçado, sem fôlego, com uma notícia a
escapulir-lhe da boca. — Sabem quem está muito doente?
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Todos voltaram-se surpreendidos, com o olhar cheio de curiosidade. — Não,
ninguém sabia. Algum conhecido?
O presidente, o Dr. Castro, teve um ataque há pouquinho. A rua está cheia.
Diz que está bem mal.
De quê, menino? interrogou o juiz muito admirado e já nervoso.
Houve logo um interesse comovido nos circunstantes.
E João, sentando-se, sem apertar a mão aos Mendes, pálido, limpando a
testa, foi dizendo o que sabia: — Muita gente defronte do palácio. Tinham sido
chamados todos os médicos, e todos, menos o Dr. Melo, eram de parecer que se
tratava de um caso de febre amarela. O presidente tinha acabado de jantar e lia à
cabeceira da mesa a correspondência do sul chegada naquele momento, quando
começou a sentir-se mal — embrulho no estômago, tonteira, calafrios.
Imediatamente, ergueu-se lívido, e, ao dar o primeiro passo, caiu fulminado!
Ai! fez D. Terezinha cruzando as mãos sobre o regaço. E depois?
Depois conduziram-no à cama, sem sentidos, vomitando uma coisa preta...
João fez esgares de nojo. Todos cuspiram.
... E quando os médicos chegaram já o encontraram sem pingo de sangue
no rosto, vomitando ainda golfadas de bílis sobre a esposa que o amparava, coitada,
nem sei mesmo como...
Coitado! lamentaram num tom arrastado as duas senhoras.
Maria do Carmo ouvia silenciosa e compungida a narração do padrinho, ao
lado do piano, com os olhos úmidos e o ar assustado.
Mas, João, isto é sério? perguntou o juiz municipal erguendo-se com os
braços cruzados, estupefato.
Oh! senhor, pois eu havia de inventar uma coisa desta? Admiro até como
vocês ainda não sabiam, porque a rua está cheia. Eu soube ali, na bodega do Zé
Gato.
Fez-se um silêncio repassado de suspiros.
Um homem tão forte, vendendo saúde! fez o juiz.
Mas bebia muito, coitado, tornou João da Mata respirando com força. Era
homem que não bebia água!
Por isso não, atalhou D. Terezinha. Que asneira! Tanta gente se embriaga
todos os dias e não lhe sucede nada...
Daí pode ser que escape, murmurou D. Amélia; não queriam sepultar o
homem em vida.
Pode ser...
Pode ser, repetiu o juiz. A ciência faz milagres.
Que dúvida!
Então o Mendes tomando o chapéu, muito impressionado, as mãos trêmulas:
Bem, vamo-nos Amélia. Esta vida, esta vida!
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Era cedo, insistiu D. Terezinha triste. Mas os Mendes pretextaram afazeres,
lembraram as crianças que tinham ficado com a criada e despediram-se.
Maria do Carmo passou a noite nervosa, com insônias, sentida com a doença
do Dr. Castro, muito apreensiva.
Não podia se conformar com a idéia da morte do presidente, o homem da
moda, o “querido das moças”, o grande amigo do Ceará, que tantos benefícios fizera
a essa província, mandando construir açudes no sertão, reconstruindo o Passeio
Público, ativando as obras do porto, facilitando a emigração, prodigalizando
esmolas, e, finalmente, introduzindo em Fortaleza certos costumes parisienses,
como por exemplo, o sistema de passear a cavalo a chouto, de aparar a cauda aos
animais de sela. Lembrava as qualidades pessoais do fidalgo paulista, o seu modo
de falar num sotaque aportuguesado, muito moderado na conversação íntima, as
suas maneiras delicadas, os belos dentes branquejando sob um bigode sedoso e
bem tratado. Uma vez, no baile oferecido à oficialidade do cruzador “1º de Março”
dançara com ele uma quadrilha, por sinal bebera muita champanha nessa noite a
ponto de ficar um pouco tonta da cabeça. Coitado! uma alma boa. É verdade que
tinha demitido o Pinheirão mais os filhos, deixando-os na miséria, mas no dia
seguinte mandara-lhes um envelope com cinqüenta mil-réis. Tudo por causa da
política; a política é que o fazia mau. Tinha rasgos de generosidade fidalga, lá isso
era inegável, tanto assim que um dia dera ao negro Romão, um negro sujo como
aquele, cinco mil-reisinhos. Era uma pena se morresse, coitado, havia de fazer uma
falta tão grande! — Compadecia-se como se fosse seu parente. Balbuciou uma
promessa às almas do purgatório e só muito tarde, pela uma hora da manhã,
conseguiu adormecer.
Ao outro dia procurou saber logo como ia o presidente. As notícias eram cada
vez mais desagradáveis. As janelas do palácio continuavam fechadas e os
transeuntes olhavam contristados o casarão ao redor do qual pairava uma
melancolia lúgubre. Os boatos multiplicavam-se penetrando todas as casas como
um vento de desgraça. A Província suspendeu a publicação por condolência, e os
jornais da oposição fizeram uma pausa nos seus ataques à administração provincial.
As filhinhas do presidente estavam em casa do José Pereira, na rua Major Facundo,
duas crianças louras e inteligentes, que falavam francês, uma nascida em Paris, e
outra no Rio de Janeiro. Às duas horas já se dizia que o “homem” não escapava. Um
cabo de ordem arrastando o chanfalho, passava a toda pressa em direção do
telégrafo. O espírito público começava a inquietar-se com a sorte do presidente, e os
próprios adversários políticos enchiam-se de penas concentradas.
Pela noite desabou um formidável aguaceiro e toda a população, por assim
dizer toda, aguardava ansiosa, dentro da casa, ao sussurro da chuva que caía fora,
sacudida pelo vento sul, notícias sobre o estado do Dr. Castro.
Maria, como toda a gente, sentia um peso no coração ao lembrar-se daquele
homem sadio e robusto, a seus olhos a síntese da mais requintada elegância, que
tanto amara o Ceará, e cujo nome andava gravado a canivete até no tronco dos
cajueiros, nos sertões por onde tinha andado, tão moço ainda e já às portas da
morte acabando-se como qualquer mortal! — A providência às vezes era injusta,
como os homens: poupava um ente abominável como o padrinho e um pelintra
desleal como o Zuza, para aniquilar, enquanto se esfrega um olho, um homem da
força do Dr. Castro, “útil ao país e benfeitor da humanidade”!
Indignava-se com essa preferência injusta das cortes celestes, e, de si para
si, concluía que não valia a pena uma pessoa ser honesta, trabalhar noite e dia,
dedicar-se a uma causa nobre, engrandecer-se aos olhos da humanidade para um
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belo dia — toma! vá para a cova que é o seu lugar! Uma coisa estúpida a vida, afinal
de contas.
Entretanto outros viviam aí a cometer mil desatinos, a roubar, a assassinar, a
iludir os incautos e tinham vida para um século inteiro, livres de congestões, de febre
amarela, e de quanta doença há.
Acordou cedo e foi-se pôr à janela à espera de alguém que lhe desse notícias
do presidente. O céu estava carregado de nuvens compactas, e neblinava. A casa
da viúva Campelo, defronte, estava fechada; a viúva tinha ido passar uns dias com a
filha no Benfica.
Passou um empregado da Estrada de Ferro, condutor de trem, com as calças
arregaçadas, comendo pão. Maria chamou-o: — O Sr. sabe me dizer como vai o
presidente?
Faleceu às duas horas da madrugada, respondeu o sujeito mastigando,
indiferente.
Obrigado, disse Maria empalidecendo, e entrou imediatamente, batendo o
postigo. — Coitado! foi dizendo pela casa com grande mágoa na voz. Coitado! Que
pena!
Que foi? perguntou o amanuense que subia o corredor em ceroula.
O presidente, que morreu!...
João parou assombrado como se lhe tivesse caído um raio defronte.
Morreu, hein?!
Disse-me agora mesmo um empregado da Estrada de Ferro.
Realmente! E vá a gente se fiar na justiça divina! Morre um homem
daqueles, da noite para o dia, como qualquer bêbado!
E lá se foi resmungando contra Deus e contra os padres.
Os sinos da Sé começaram a dobrar a finados. Aumentava a chuva, que já se
ouvia chiar nas calçadas, como uma panela fervendo.
Maria entrou para o seu quarto, aflita. Essa manhã foi para ela de tristeza e
desânimo. Acudiam-lhe à imaginação lembranças extravagantes, idéias lúgubres,
como aves negras que pousavam de chofre num arvoredo, alvoroçadas, cantando
sinistramente. Caía em abstrações prolongadas em que se punha a contar os dedos
maquinalmente, como se fosse ensandecer. Apoderou-se dela um medo pueril, um
inexplicável pavor das coisas sombrias, um supersticioso receio de almas do outro
mundo, um mal-estar, um quer que era que lhe trancava a respiração, que lhe
oprimia o peito.
Procurava disfarçar as apreensões, arrumando os trastes do quarto, mexendo
nos baús, numa inquietação crescente, num vira-e-mexe cada vez mais açodado,
abrindo e fechando gavetas, atarantada, com o coração aos pulos.
O enterro! o enterro! bradou da porta a Mariana que ia às compras.
Todos correram à janela. D. Terezinha na precipitação deixou cair um copo,
que se esfarinhou, e João da Mata esquecera os óculos, enfiando as mangas da
camisa.
Maria arrancou como uma louca, dando um encontrão na mesa do centro da
sala de visitas.
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Continuava a chover, agora devagar, com uma insistência importuna, o sol a
espiar por trás duma nuvem, frio indeciso, mandando, com um supremo desdém
pelas coisas cá de baixo, uma réstea de luz tímida e complacente sobre a manhã
úmida.
O enterro do presidente passava na esquina, caminho do cemitério.
Maria do Carmo assistia com a respiração suspensa e um nó na garganta ao
desfilar do préstito, o caixão levado por seis homens de preto, coberto de galões
dourados debaixo da chuva miúda, o acompanhamento — uma comparsaria
dispersa de gente de todas as classes de chapéu-de-chuva aberto, marchando
resignadamente ao som da música do batalhão que tocava a funeral.
Os padres já tinham passado, na frente, com os seus acólitos, muito graves,
olhando para o chão, evitando as poças de água. Um carro seguia atrás todo
fechado, devagar.
E a chuva a cair e a música a tocar o funeral deixando por onde passava uma
tristeza vaga que lembrava um dia de finados entre sepulturas...
D. Terezinha enxugava os olhos com a aba do casaco e João da Mata
pigarreava disfarçando a comoção.
Maria ficou à janela vendo passar o resto do acompanhamento, sujeitos sem
paletó, de chapéu de palha de carnaúba, outros sem chapéu...
Que triste, meu Deus!
E entrou muito inquieta, com um frio na medula, as pupilas dilatadas, pálida,
toda trêmula. Mas no meio da sala perdeu o equilíbrio — escureceu-lhe a vista,
tropeçou numa cadeira e estendeu-se no chão pesadamente, como morta.
Chega! A Maria teve uma coisa! gritou D. Terezinha, correndo para a
afilhada. Chega Janjão, chega depressa!
A água-flórida, a água-flórida, em cima da cômoda.
O amanuense precipitou-se pelo corredor a grandes passadas, atônito,
aterrado, sem saber o que fizesse, seguido pelo Sultão que lhe tomou a frente
ganindo.
Jesus, o que foi?
Sei lá, uma coisa que lhe deu de repente... Segura aí nos braços...
E ambos, João da Mata e a mulher, pálidos, muito vexados, conduziram a
rapariga para a alcova, arrastando os pés com o peso.
Chega depressa a água-flórida, mandou João abanando o rosto à doente.
D. Terezinha trouxe a garrafa e começou logo o afanoso trabalho de umedecer as
têmporas de Maria, dando-lhe a cheirar o líquido, friccionando-lhe a testa com força,
numa aflição.
Um copo com água, um copo com água, Janjão.
Maria deu um grande suspiro, entreabrindo os olhos, estendida ao comprido
na larga cama de jacarandá.
Cheira mais, cheira mais, recomendava D. Terezinha, agora mais aliviada.
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Maria murmurou que estava melhor.
Já pode se sentar? perguntou o amanuense, chegando o copo. Vá, faça
um esforçozinho... Upa!
Não seria bom chamar o médico? lembrou D. Terezinha.
Maria fez com a mão “que não”, e com a voz fatigada, apoiada ao espelho da
cama: — “Não era preciso, já estava boa...”
Sentes alguma coisa? quis saber o amanuense. Se sentes, dize.
Apenas uma dorzinha aqui... — E indicou o flanco esquerdo.
Bom, bom, bom, quietinha...
E desde esse dia aumentaram as suspeitas de D. Terezinha, que observava
agora os menores movimentos da afilhada, insistentemente, examinando-lhe a roupa
usada, medindo-lhe o volume da barriga, perseguindo-a com os olhos.
Isto, isto ainda acaba mal! pensava ela.
CAPÍTULO XIII
Em poucos meses o estado interessante de Maria do Carmo foi carecendo de
cuidados mais sérios, e João da Mata assim o julgou, tratando logo de arranjar uma
casa, um sítio nos subúrbios onde ela pudesse, tranqüilamente e sem escândalo,
alijar a carga, desembuchar a criança. Mas onde e como poderia ele dispor as
coisas do melhor modo, sem despertar a curiosidade pública? Esta era a grande
questão que afligia o amanuense, cada vez que o seu olhar vesgo descia sobre o
ventre da afilhada, vendo-o crescer dia a dia, tomar uma forma esférica iniludível,
arredondar-se, arquear-se para fora numa convexidade característica e esmagadora.
— “E agora?” interrogava-se ele, passando a mão na calva. O caso ia se tornando
grave, urgia fazer qualquer arranjo logo e logo, antes que a Teté rebentasse por aí
com quatro pedras a acusá-lo violentamente, atirando-lhe em rosto a sua
infidelidade, o seu crime, a sua pouca-vergonha. A rapariga engordava a olhos
vistos; só um cego não veria dentro daquela redondeza uma criatura humana em
formação.
Toda ela — o ventre, os seios, os braços, o rosto — inchava, adquiria um
cunho extraordinário de maturidade precoce. Notava-lhe agora asperezas na pele,
uma cor seca de folha sazonada e certo ar amolentado que se traduzia numa
sonolência infinita e na prematura tendência para o abandono de si mesma.
Com efeito, Maria, apenas com quatro meses de grávida, tinha perdido muito
da antiga expressão insinuante e viva de sua fisionomia. Na idade em que a mulher,
como a flor, em plena exuberância dos tecidos, desabotoa numa singular alacridade
de cores, toda frescura e beleza, ela que não transpusera ainda os dezoito anos,
olhava a vida com uma indiferença única, estiolando ali assim entre as paredes
daquela casa sem ar e sem luz, esperando resignadamente o seu fim. Queria ver até
quando duraria aquele estado de coisas, até onde a queriam levar!
Já não chegava à janela com vergonha de ser vista pela vizinhança e pelos
conhecidos — refugiara-se, como uma culpada, no ádito misterioso do seu quarto,
egoisticamente, sem ao menos lembrar-se da Lídia que não a esquecia e que lhe
mandava de onde em onde presentinhos, recados e abraços.
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E João inquietava-se, procurando meios de evadir-se da alhada em que se
metera com risco de um escândalo medonho!
Havia um mês que Maria do Carmo caíra com o ataque no meio da sala. D.
Terezinha ruminava sutilidades para descobrir uma sombra sequer, um vestígio que
confirmasse de uma vez as suas suspeitas. Batera todos os aposentos, todos os
cantos da casa, indagara da lavadeira se não vira alguma nódoa, alguma mancha na
roupa da afilhada; acordava vezes sem conta, alta noite, prestando ouvidos a
qualquer ruído, por mais leve, e nada! absolutamente nada! Faziam-lhe espécie os
modos reservados de Maria, esse impenetrável desgosto que a punha triste, com um
ar esquisito de “galinha choca”. Alguma coisa havia, por força, era capaz de jurar.
D. Terezinha nunca mais dormira com João da Mata e era só quem passava
bem naquela casa; até estava criando banha no pescoço. Pudera! uma vida
relativamente calma, senhora absoluta de seu nariz, ganhando um dinheirão com o
negócio de rendas que mandava para o norte pelo despenseiro do vapor, tudo
corria-lhe às mil maravilhas. Queria ter um pezinho para rusga, isso queria. E se
ainda “fazia vida” com o Janjão, era por condescendência, para não dar escândalo;
achava feio uma mulher deitar-se com um homem e depois — passe muito bem —
abalar por esse mundo afora, como uma doida, atrás de aventuras. Não era mulher
para essas coisas; o que queria era o seu descanso — comer bem, dormir bem,
passar bem; não admitia que a fizessem de tola.
Tinha uma amiga sincera — a Amélia, senhora do Dr. Mendes. Essa, sim,
sabia-lhe apreciar as virtudes, dar-lhe importância, tratá-la com consideração,
mesmo porque ela, Terezinha, trabalhava para ganhar a vida honradamente.
Você é tola, Teté, a gente não deve se matar, dizia-lhe a mulher do Dr.
Mendes.
Lá isso é verdade, mas você o que quer? É fado, é mania...
As conhecidas admiravam-lhe a boa disposição para o trabalho. Sentava-se à
máquina às dez horas do dia, cabelos úmidos sobre a toalha de banho estendida
nos ombros, e labutava três, quatro horas consecutivas a cantarolar modinhas,
costurando para o fornecedor da polícia.
E sempre gorda, sadia e forte!
Mulher mouro! dizia João da Mata aos amigos.
Uma tarde, ao voltar da rua, o amanuense entrou alegre, como se tivesse
tirado a sorte grande na loteria, saboreando um charuto mau que lhe dera o Guedes.
Vinha um pouco toldado.
Olha esse jantar! bradou para dentro, atirando fora a ponta do charuto. E
começou a cantar desafinadamente os Sinos de Corneville, então muito repisados:
Vai marinhei... ro,
voa ligei... ro,
velas à brisa
no espelho do mar!
E logo:
Nunca percas a esperan... ça,
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quando houver temporal,
que há de vir a bonan... ça,
e depois o... final!
À cena a Naghel, à cena a Naghel! bradava o amanuense batendo as
palmas com fúria.
Ainda mais esta! resmungou D. Terezinha na sala de jantar.
Olha essa lambugem! tornou João enfiando pelo corredor.
Estava num de seus dias felizes. Foi até à cozinha acompanhado pelo Sultão
que lhe pulava às pernas, ganindo alegre. Mariana mexia o pirão escaldado de
farinha num velho alguidar de barro, com a saia arrepanhada na cintura, o casaco
desabotoado, exibindo, como de costume, o seu detestável colo nu.
Como vai isto, ó estafermo! rosnou o amanuense, espalmando a mão em
cheio nas ancas da rapariga.
Sô Janjão!... fez esta pudicamente.
E João, trauteou, fazendo festa ao cão:
Mariana diz que tem
sete saias de veludo...
Tenha modos, homem de Deus, repreendeu D. Terezinha. Tenha juízo, dê-
se a respeito!
É boa! Então já não se pode ser alegre?! Ora muito obrigado!
Durante o jantar declarou que a Maria, no dia seguinte, domingo, iria passar
uma semana ao Cocó, em casa da tia Joaquina, conhecida pela velha dos cajus.
Faz ela muito bem, aprovou D. Terezinha com enfado, cortando o cozido.
E João, muito meigo, olhando por cima dos óculos:
Você compreende, ela anda adoentada, teve outro dia aquele ameaço...
não tem apetite, e o médico, o Dr. Azevedo, disse-me a mim que aquela gordura não
vale nada, é toda postiça, é uma gordura falsa... Sim, a rapariga, coitada, precisa
tomar o seu leitinho, descansar um pouco...
Maria, que se sentara defronte da madrinha, não pôde ocultar seu embaraço.
Fez-se escarlate, e muito submissa:
É, se a madrinha consentir...
Ainda mais esta! Podes ir até para a China quanto mais para Cocó!...
E tu, não queres ir também? perguntou João com certa frieza.
Mas D. Terezinha torceu o beiço com desdém: — “Só se estivesse doida,
credo!”
Vá você com a sua afilhada...
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Ah! se eu pudesse passar uma temporadinha fora... suspirou João. Mas qual,
minha filha, não posso faltar um só dia à repartição, que o chefe não venha logo com
os seus arrebatamentos: que o governo não sustenta vadios, que o empregado
público deve ser infalível como o papa, e tanta asneira!... Coitado, já está velho e
suspira, como eu, por uma aposentadoria.
Houve um ligeiro silêncio.
Pois é isto, tornou o amanuense limpando o bigode com a toalha. Está
ouvindo, Maria? Prepara o seu bauzinho, a sua roupinha. Amanhã, depois da missa
da madrugada. É para lá do Outeiro, na Aldeota, um sitiozinho, um lugar muito bom,
muito saudável. A casa é que é pobre, mas ora! pobres somos nós também...
Os talheres batiam nos pratos com força, João falava mastigando, com a
boca cheia, cortando o invariável e sediço lombo assado, com uma voracidade
espantosa.
Galinhas debicavam debaixo da mesa, cacarejando. Sultão, muito
rechonchudo, sentado nas patas traseiras, orelhas em pé, alongava o olhar súplice
para cima, à espera que lhe caísse um osso ou uma pelanca. Ouvia-se o miar
desesperado de um gato na cozinha. De onde em onde a voz de Mariana punha em
debandada os parasitas de crista: — “Xô, galinha! Xô...”
Havia um rumor de asas pesadas, e um velho galo de cauda furta-cor
estendia o pescoço num cocorocó estridente e prolongado que fazia João fechar os
ouvidos, berrando para a Mariana que enxotasse “aquele demônio”.
A sala de jantar era uma espécie de alpendre assentado sobre grossos
pilares de tijolo, abrindo toda para o quintal, onde, àquela hora, via-se roupa lavada
a enxugar, de uma brancura de hóstia, ao redor da cacimba. Fazia ângulo à
esquerda com a cozinha, e, à direita, um velho muro escalavrado separava o quintal
de outros quintais, com uma medonha dentadura de cacos de garrafas.
Desde as três horas começava a fazer sombra no alpendre e às quatro já se
podia respirar ali a frescura das ateiras.
Sobre a mesa nada mais que uma toalha com manchas de gordura, pratos e
copos em desordem, uma moringa muito estragada, bananas e laranjas.
D. Terezinha fazia bocados de pirão com os dedos em pinha e atirava ao
Sultão.
Boa alma aquela tia Joaquina, continuou o amanuense acendendo o
cigarro. O mestre Cosme, esse é um homem pobre, coitado, mas honesto como
poucos. Vive de vender lenha na feira... Bom velho!
Leva estes pratos, Mariana, disse D. Terezinha erguendo-se.
Tinha jantado num momento.
A tia Joaquina, conhecida no mercado pela velha dos cajus, e mais o mestre
Cosme, eram um pobre casal que morava na Aldeota, cerca de um quilômetro da
cidade, numa casinhola de taipa, dentro de um largo cercado de pau-a-pique
plantado de cajueiros, todo verde no inverno, com um grande poço no centro,
cavado toscamente, e ao fundo do qual sangrava um veio de água cristalina.
Era aí que viviam, há anos, desde a seca de 77 —, entre brenhas de
camapus e matapasto, à sombra dos cajueiros, felizes, sem filhos. Corria-lhes a vida
como um abundante manancial de águas límpidas em leito de areia.
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Pela manhã, muito cedo, mestre Cosme saltava da rede armada no alpendre,
enfiava a grossa camisa de algodão e lá ia com uma xícara de café no estômago,
atrás da jumenta, da sua inseparável jumenta, que lhe dava o pão de cada dia e que
carinhosamente chamava-a Coruja. O dócil animal costumava pastar à beira da
cerca, tão feliz quanto o dono cuja presença punha-lhe uma expressão reconhecida
no olhar manso. Mestre Cosme metia-lhe o focinho no freio, armava-lhe a cangalha,
e abalava para o morro do Cocó a explorar a mata, a fazer lenha para vender no
mercado a dez tostões a carga. Um dinheirão!
Mestre Cosme não queria vida melhor. Ao pôr-do-sol voltava com os seus
ricos dobrões na ponta do lenço, escanchado na Coruja, sem cuidados, debaixo de
seu grande chapéu de palha de carnaúba.
Tia Joaquina ficava trocando os bilros na almofada. Mas, em chegando o fim
do ano, ia também à cidade fazer o seu negócio, com uma grande cuia na cabeça:
— “Olha o cajuzinho bom do Cocó! Olha o cajuzinho bom!” E voltava com a cuia
vazia e com a isquinha de fígado para a ceia ou com o cangulinho fresco de alto-
mar.
Chamavam-na a velhinha dos cajus, porque os cajus que tia Joaquina vendia
tinham um sabor especial, eram doces como açúcar.
Queriam-se os dois como um casal novo em lua-de-mel. “Meu velho” e “minha
velha” — é como se tratavam.
João da Mata conhecia-o de longa data, desde a seca, por sinal naquele
tempo tinham uma filha moça — também Maria (Maria das Dores) que morrera das
febres em 77. João era comissário de socorros e fazia-lhes muitos benefícios.
Mestre Cosme morava, então, no Pajeú, numa palhoça miserável.
Tempo de calamidades! murmurava o velho ao lembrar-se da seca.
O amanuense viu o mestre Cosme no mercado e teve a idéia de lhe falar na
ida de Maria do Carmo para a Aldeota. — “Tinha um grande favor a pedir ao mestre
Cosme” começou, pousando a mão no ombro do velho.
Pois diga lá... Seu Joãozinho sabe que a gente vive no mundo para servir
uns aos outros...
É isto, mestre Cosme. A Maria, minha afilhada, tem andado doente,
coitada, está fraquinha, precisa tomar um pouco de leite fora da cidade... Eu queria
que ela fosse passar uns tempos no Cocó, a rapariga tem um fastio que até mete
pena...
O bom velho ficou admirado: “— Só isso?... Ora, seu Joãozinho, isso não é
favor! Eu até estimo. A menina pode ir quando quiser. É casa de pobre, vossemecê
bem sabe, mas a gente sempre veve...”
Pois está bem, mestre Cosme, a pequena vai domingo cedo. Diga à tia
Joaquina. Deixe estar que não lhe esquecerei. Lembra-se da seca?...
Se me alembro? Ora, ora, ora, como se fosse hoje. Comi muita farinha do
seu Joãozinho, pois não hei de me alembrar? Aquilo é que foi morrer gente!...
Bem. Você ainda mora na mesma casa, não é assim?
Sim senhor, pra lá do Osil; na Aldeota, à direita de quem sobe...
Muito bem, adeus. Domingo, sem falta. Tome, é para você comprar de
fumo.
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E João deu um níquel ao velho.
Estava tudo arranjado.
O amanuense começou a ver claro na espessa caligem de seu espírito.
Decididamente era um homem de recurso!
No domingo, com efeito, depois da missa da madrugada na Sé, Maria do
Carmo e o padrinho seguiram para a Aldeota, a pé.
Ainda tremeluziam estrelas no alto. Para as bandas do Coração de Jesus, por
entre coqueiros que se avistavam da praça do Colégio, nuvens esfarripavam-se
numa soberba apoteose de púrpura e violeta.
Tinham-se apagado as luzes da cidade e pouco a pouco, imperceptivelmente,
como numa mágica, sucediam-se as nuances, cada vez mais claras, esbatendo o
contorno das coisas há pouco difundidas numa meia-tinta escura. Ia-se fazendo
gradativamente a majestosa mise-en-scène do dia, clarões rasgavam-se de um e de
outro lado do horizonte, incendiando a fachada dos edifícios e o cabeço dos montes
longínquos, iluminando tudo...
Ao passarem pela Imaculada Conceição, a normalista olhou por entre as
grades do colégio. Lá estavam, como antes, sombrios e silenciosos, os quatro pés
de tamarindo, numa imobilidade tímida e respeitosa. Ouvia-se lá dentro o coro
abafado das educandas — ora pro nobis... ora pro nobis. Maria teve um
estremecimento, um vago desejo de viver como as irmãs de caridade; mas passou
logo...
Ia vestida de preto, com o pescoço e a cabeça envolvidos num fichu cor de
creme, segurando o Manual da Missa.
João ao lado fumava distraidamente, muito preocupado.
Chegaram à praça do Asilo. O grande edifício, à esquerda, abria as janelas
sonolentas para o descampado. Havia luz dentro. À direita, no meio da praça, a
“cacimba do povo”, cor de tijolo, em forma de quiosque, desolada àquela hora, tinha
um aspecto misterioso quase lúgubre. E adiante, lá longe, por trás da floresta baixa
e espessa, branquejavam os morros do alto Cocó.
Já era dia. Mulheres em tamancos passavam para a cidade falando alto, de
cachimbo no queixo, cuia de hortaliças na cabeça, ar desenvolto, xale trançado.
João da Mata perguntou a uma delas “se ainda estava longe o mestre
Cosme?”
Um, um, respondeu a mulher, meneando a cabeça, sem tirar o cachimbo
da boca.
E voltando-se:
Está vendo aquele cercado lá adiante, aquela casinha branca na
encruzilhada? Pois é ali.
Obrigado.
Corria um ar fresco e matinal. Revoadas de periquitos, num vôo de flecha,
cortavam a limpidez da atmosfera e desciam de um e de outro lado da estrada sobre
o matagal espesso e verde. As primeiras chuvas do ano tinham fecundado a terra
cuja exuberância ostentava-se agora prodigiosamente na esplêndida paisagem que
os olhos de Maria do Carmo viam com admiração. Sentia-se um fartum de terra
úmida que fazia gosto. As matas da Aldeota, de um verde-gaio pitoresco, estendiam-
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se por ali afora, a perder de vista, eriçadas pelo terral, sob a larga irradiação do sol
nascente.
Aquela estrada branca de areia, larga e interminável, desenrolava-se aos
olhos da normalista como uma via-láctea de ilusões, como um caminho de ouro que
a conduzisse a uma outra vida, completamente outra daquela que até ali vivera, a
uma vida sossegada, sem hipocrisias e sem traições, sem dores e sem lágrimas...
Fazia-lhe bem, como um tônico, o ar fresco da manhã que lhe bafejava o
rosto. Sentia-se melhor respirando aquele ar, bebendo toda a selvagem frescura do
campo, todo o delicioso, o inefável perfume que se levantava dos crótons e das
salsas-bravas.
Que dizes a isto, hein? perguntou João bruscamente, apontando o campo.
Vais engordar minha filha, vais passar bem. Para longe a tristeza, para longe as
mágoas, e deixa correr o marfim.
E descrevendo um círculo com a mão espalmada:
Como está isto bonito!
Não há notícia de inverno igual. Mete inveja a quem mora naquele inferno da
cidade. Uma delícia, Maria, isto é que é vida! O que vais engordar!
Aproximaram-se da casinha de mestre Cosme. Vacas babujavam
silenciosamente e voltavam a cabeça com uma vagarosa melancolia no olhar.
Os velhos já estavam de pé na porteira do cercado.
Ora muito bom-dia! saudou o amanuense.
Louvado seja N. S. Jesus Cristo, correspondeu tia Joaquina recuando. —
Então é esta a sua afilhada?
Esta mesma, tia Joaquina. Moça feita e... bonitona, como está vendo.
Entrem, entrem, convidou mestre Cosme solícito.
Sim senhor! fez a velha admirada. Bonita mesmo, pode dizer! Coitadinha,
parece que vem tão cansada...
Maria teve um sorriso consolado. Estava, com efeito, cansada e pálida.
Houve logo um princípio de intimidade entre ela e os velhos que não
cessavam de contemplar o seu belo perfil de noviça envolto numa penumbra de
melancolia.
Provisoriamente instalada no seu bucólico e nemoroso retiro da Aldeota,
longe de tudo que lhe arreliava o juízo, a um bom quilômetro das rabugices de D.
Terezinha e do mau hálito de João da Mata, outra foi com efeito a vida de Maria do
Carmo. O viver simples e sossegado de mestre Cosme e da tia Joaquina, o aspecto
úmido da mata resplandecendo num fundo verde-claro e onde variados matizes da
flora agreste punham efeitos surpreendentes, o bom leite puro e fresco bebido pela
madrugada à porta do curral, e, à tardinha, quase ao anoitecer, o violão de mestre
Cosme gemendo saudades de um país remoto e abençoado, a liberdade que se
bebia ali na larga convivência da natureza, tudo isso robustecia-lhe o corpo e a
alma, inoculando-lhe no sangue um conforto viril, ressuscitando-lhe o quase extinto
amor à vida, à alegria, à mocidade, e às apagadas reminiscências do bom tempo em
que ela, ainda inocente, em Campo Alegre, ia esperar o papai que voltava da
vazante!
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Que mudança na sua vida, que transformações desde 77! Antes nunca
tivesse saído da Imaculada Conceição para se meter numa escola sem disciplina e
sem moralidade, sem programa e sem mestres, e onde uma rapariga, filha de
família, é expulsa da aula porque outra de maus costumes escreveu obscenidades
na pedra!
Mil vezes a Imaculada Conceição com os seus claustros, com as suas
capelas, com o seu silêncio respeitoso, com a sua disciplina austera; ao menos não
teria voltado à casa dos padrinhos, àquela maldita casa de hipócritas, e não teria
dado espetáculos com o Sr. Zuza.
Ah! o Zuza... Vinha-lhe um forte desejo de vingar-se do estudante, de caluniá-
lo, de culpá-lo pela sua desgraça. Àquela hora o que não estariam dizendo dela na
cidade?...
Pensava essas coisas no seu pobre quartinho de taipa abrindo para a
natureza, enquanto a tia Joaquina fazia rendas.
Dentro de um mês era notável a influência do campo na sua saúde. Criara
novas cores, novo sangue, muito solícita agora nas preocupações domésticas.
A menina Maria está criando banha! admirava a tia Joaquina. Sim senhora!
O leite, tia Joaquina, o leitinho é que tem me feito bem.
João da Mata aos domingos, invariavelmente, ia ver a afilhada, afetando
grande interesse por seu estado. Dizia-lhe as novidades, os escândalos, dava-lhe
lembranças da Lídia Campelo, e, ao retirar-se prevenia: — “Se houver necessidade
mandem-me dizer.”
Vá descansado, seu Joãozinho, vá descansado, que há de chegar o dia...
Mas o estado de Maria do Carmo não inspirava cuidados. O útero revigorava,
funcionando com a regularidade precisa duma excelente máquina moderna, por
sinal Maria, desde que se mudara para a Aldeota, nunca mais sentira pontadas.
O amanuense exultava, alegre e feliz. A princípio receara um aborto, mas
agora tinha a certeza de que triunfavam as qualidades procriadoras da rapariga.
É, pensava ele, roendo o canto das unhas. Um bom útero é tudo na
mulher: equivale a um bom cérebro!
E esquecia-se a filosofar na vida intra-uterina, admirando-se muito de que
uma simples gota de esperma pudesse gerar um homem!
CAPÍTULO XIV
A ausência de Maria do Carmo não passou despercebida às rodas de calçada
e aos freqüentadores do Café Java, cujo tema quotidiano — a política — não lhe
satisfazia o prurido de entrar pela vida alheia a esmiuçar escândalos como quem
procura agulha em palheiro.
Nas portas de botica, nos cafés, nas repartições públicas, no mercado, em
toda parte comentava-se o desaparecimento da normalista, em tom misterioso e
com risadinhas sublinhadas a princípio, depois abertamente, sem rebuços, com uma
ponta de perfídia traindo a sisudez convencional da burguesia aristocrata.
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Que tinha ido tomar ares a Maracanaú, afirmavam uns acentuando a ironia;
outros — que andava adoentada de uma pneumonia “proveniente de arranjos na
madre”; outros — que estava proibida de sair à rua e de chegar à janela por
desconfianças do amanuense. Alguns, porém, como o José Pereira, comunicavam
secretamente, pedindo toda a cautela, que a rapariga tinha sido raptada por um
paraense e que se achava depositada no Cocó, em casa de uma tal Joaquina
Xenxem, por sinal o Manoel Pombinha, tipógrafo, “os vira passar uma noite
embuçados numa capa preta”, caminho do Outeiro.
Na Escola Normal rebentavam suspeitas à flor das discussões que
preenchiam o intervalo das aulas.
Quem, a Maria do Carmo? Aquela mesma não era mais moça, não, meu
bem... Ela sempre fora muito metida a aristocrata, por isto mesmo caíra nas mãos de
um Zuza. Era bem feito! Uma grandíssima orgulhosa com carinha de santa. Aí
estava a santidade...
Vinham à baila casos análogos de filhas-famílias que tinham ido para fora da
cidade tomar ares e, no fim de contas, iam mas era “desembuchar” onde ninguém
pudesse ver...
Então, já apareceu a rapariga? perguntava-se com interesse.
O Guedes ardia em desejos de saber a verdade nua e crua. Diabo de tantas
histórias e ninguém descobria a incógnita do problema.
Aproveitou uma ocasião em que João da Mata jogava a bisca no Zé Gato. O
amanuense estava já um pouco atordoado pela cachaça.
É agora! pensou o redator da Matraca, e formalizou-se, carregando o
chapéu para a nuca.
Então é verdade o que se diz por aí, ó João?
Sobre os amores secretos do falecido presidente?
Não, homem, não é essa a ordem do dia. Isso passou. A questão é outra.
Desembucha!
Pergunto se é verdade o que corre sobre...
... Sobre a Maria do Carmo? Uma calúnia, seu Guedes, uma calúnia! Você
bem conhece este povo.
Eu já tinha dito isso mesmo a alguns amigos: que a D. Mariquinha era
incapaz de semelhante procedimento.
Idem, idem, atalhou o Perneta embaralhando as cartas. Essa é a minha
opinião.
E que fosse verdade, continuou João da Mata partindo o baralho, e que
fosse verdade, não era da conta de ninguém!
Que dúvida! confirmou o Guedes.
Mando copas, rosnou a amanuense.
E o jogo continuou sem que o Guedes soubesse a verdade.
Mas, ao retirarem-se cerca de meia-noite, interpelou novamente o amanuense
na esquina, à luz de um lampião. João da Mata cambaleava, equilibrando-se, a
praguejar contra o calçamento das ruas e contra a Câmara Municipal. A rua do Trilho
perdia-se na escuridão, silenciosa como um subterrâneo.
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O Guedes tinha tomado pouco nessa noite e fumava o seu cigarro com um
grande ar de superioridade, pisando forte, o gesto largo e o paletó aberto num
abandono frouxo de boêmio.
Cuidado, não vá cair, avisava com as mãos nos ombros do outro.
Qual cair nada, homem! Pensas tu que estou bêbado, hein? Estás muito
enganado! O diabo dos óculos escuros é que não me deixam ver bem...
Por aqui, por aqui, guiava o Guedes, cauteloso. Espera, vais fumar um
cigarrinho fino...
Pararam. Um polícia passou do outro lado da rua, sonolento e lúgubre.
Então o redator da Matraca abraçando o amigo pelo pescoço, depois de lhe
ter dado o lume:
Tu não me quiseste ser franco ainda agora na presença do Perneta, mas
nós somos amigos... tu sabes... Aonde diabo meteste tu a rapariga?
João cuspinhou para o lado.
Hein?
A Maria do Carmo, onde anda ela?
Ah! seu marreco, você quer saber onde está a rapariga, hein? Pois não lhe
digo, não...
Fala sério, homem. Dizem que está no Cocó, que teve um filho?... Juro-te
como esta boca não se abrirá... Sentemo-nos aqui um pouquinho, que ainda não
deu meia-noite.
Sentaram-se à beira da calçada, debaixo do gás, e o amanuense,
encostando-se à coluna do lampião, o chapéu, o inseparável chile enterrado na
cabeça, foi dizendo à meia voz.
A coisa não é como se diz, seu Guedes, a verdade é esta, que eu lhe
confio, porque sei que você é meu amigo: a menina está no Cocó, mas ainda não
teve a criança...
Ah!
Sim, quero dizer, você bem sabe o que eu quero dizer...
O Guedes era todo ouvidos.
Luziam-lhe os bugalhos no fundo das órbitas, parados, imóveis, caindo sobre
o amanuense com a fixidez de clarabóias de vidro. Sentia um prazer especial, uma
comoçãozinha esquisita, um extraordinário bem-estar ao ouvir a história, a
verdadeira história do escândalo, narrada por João da Mata, pela própria boca do
padrinho da rapariga, gente de casa, testemunha ocular.
Encolhia-se todo de gozo, ante aquelas maravilhosas palavras do
amanuense.
E o pai?
Que pai? O pai morreu no Pará...
Não, homem, o pai da criança...
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Sim... o pai da criança, o Zuza? Pois não se foi embora para o Recife?
Aquilo é um infame, um biltre.... Eu cá previa tudo quando proibi formalmente que a
pequena lhe mostrasse o nariz, logo a princípio, mas que querem? encontravam-se
na Escola Normal, no Passeio Público, e, afinal, foi o que resultou...
Soaram doze badaladas graves e dormentes na Sé. João contou uma a uma.
Meia-noite, seu compadre, vou-me embora, adeus. Perdi hoje tanto como
dez pintos.
E separaram-se friamente, como dois desconhecidos.
Perto de casa o amanuense esbarrou com um vulto que se movia no escuro
— era um burro, o pobre animal babujava a rama da coxia, solitário e mudo.
Uma vez senhor do segredo, o Guedes não se conteve, disse-o ao ouvido do
Perneta e com pouco ninguém ignorava na cidade “que a normalista do Trilho fora
desembuchar, ao Cocó, um filho do Zuza”.
Do Zuza!? exclamou o José Pereira ao saber a novidade na redação da
Província, pela manhã.
Sim, do Zuza, confirmou o Castrinho pousando a pena atrás da orelha. É o
que diz o público, Vox populi...
E esta!
José Pereira arrepanhou as abas da sobrecasaca, e, passeando o olhar sobre
a banca de trabalho, onde destacavam dois grandes dicionários de Aulete, sentou-
se vagarosamente, voltando para o poeta.
Admira-se você, tornou este. Oh! homem, pois um fato que toda a gente
previa!...
O outro recomendou que falasse mais baixo por causa dos tipógrafos...
E o Castrinho, à meia voz, estrangulado por uns colarinhos
extraordinariamente altos:
Qual! O fato está no domínio público, não há por aí quem não o saiba.
Dizem que o velho Souza Nunes só falta perder a cabeça.
Em todo caso sempre era prudente guardar certo sigilo, negar mesmo, se
possível fosse, uma vez que se tratava da reputação do Zuza...
Meninos de bolsa a tiracolo questionavam com o agente da folha, do outro
lado do tabique que dividia a sala da redação e onde se viam empilhamentos de
jornais sobre uma velha mesa gasta.
Daí a pouco entrou o Elesbão, outro redator, um sujeito lúgubre, muito pálido,
faces encovadas, olhar triste, tossindo devagar. Foi perguntando, numa voz sumida
e lenta, de que se tratava.
O Castrinho disse, impertigando-se na cadeira, que se tratava “dos brios da
sociedade cearense”. O outro arregalou os olhos com ar de espanto. — Como
assim? E explicou: Tinha estado fora, na Guaíuba, a leites, não sabia as novidades.
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Um fato muito natural, disse José Pereira, nada mais que a reprodução de
fatos velhos... Não valia a pena tocar na ferida...
Mas o Elesbão estranhou que “os colegas” tivessem segredos para ele. E
depois de saber “o mistério”:
Magnífico assunto para folhetim realista, hein?
Escrevia folhetins realistas para o rodapé da Província e trabalhava num livro
de fôlego, os Mistérios de Arronches, com que, dizia, pretendia fundar uma escola
“mais consentânea com o estado atual da ciência”.
A sua opinião sobre o novo escândalo que preocupava agora a população
cearense era que “nós ainda não tínhamos compreendido o importante papel da
mulher na civilização”.
A educação feminina, acrescentou com cansaços na voz, a educação
feminina é um mito ainda não compreendido pelos corifeus da moderna pedagogia.
Queríamos introduzir no Ceará os dissolventes costumes parisienses, a forciori, mas
não eram essas as tendências do nosso povo essencialmente católico e
essencialmente crédulo. Não admitia a teocracia tal como aceitavam os padres —
“essa corja de especuladores” — mas era preciso respeitar as crenças populares, o
verdadeiro sentimento religioso, sem hipocrisia, sem preconceitos.
De quando em quando a tosse o interrompia, uma tossezinha seca e
pigarreada; levava a mão ao peito e expectorava. — “Diabo de catarro não o deixava
em paz!”
E, continuando:
O que é a Escola Normal, não me dirão? Uma escola sem mestres, um
estabelecimento anacrônico, onde as moças vão tagarelar, vão passar o tempo a ler
romances e a maldizer o próximo, como vocês sabem melhor que eu...
José Pereira contestou, lembrando o Berredo, “uma ilustração invejável”, o
padre Lima, “um excelente educador em cujas aulas as raparigas aprendiam ao
mesmo tempo a ciência e a religião”.
Mas não têm método, não fazem caso daquilo, vão ali por honra da firma,
por amor aos cobres, rebateu o Elesbão, forcejando por falar alto.
Aquilo é uma sinecura, não temos educadores, é o que é.
Você deste modo ofende o atual diretor da Escola Normal, tido e havido
como um pedagogista de primo cartello! advertiu o Castrinho, que se conservara
calado.
Não ofendo a ninguém, ao contrário, folgo em reconhecer nele um homem
estudioso e bem-intencionado, mas isto não basta, meu caro...
Novo acesso de tosse desta vez mais prolongado.
...É preciso orientação e muito bom senso, isto é, justamente o que falta
aos nossos corpos docentes...
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Tudo isso é inútil, Elesbão, tudo isso é completamente inútil quando uma
mulher tende fatalmente para um homem. Foi o que se deu com a Maria do Carmo...
É verdade, gabou o Castrinho roendo as unhas desesperadamente. Dizem
que é inteligente e bem-educada.
E além disto, acrescentou José Pereira, uma rapariga até morigerada...
Não creio, duvidou o Elesbão batendo com o pé, curvado, já com uma
poça de cuspo ao lado da cadeira, no chão. O amor tem suas exigências
incontestavelmente, mas, quando a mulher é bem-educada e tem noções exatas da
vida, dificilmente se entregará a qualquer mariola que se lhe chegue.
E sentenciosamente:
Todo fenômeno é conseqüência de uma causa. Não há efeito sem causa.
No caso vertente a causa é a falta de educação, a falta absoluta de quem saiba
dirigir a mocidade feminina. A nossa educação doméstica é detestável, os nossos
costumes são de um povo analfabeto.
Um tipógrafo aproximou-se e pediu licença ao Sr. José Pereira para perguntar
uma palavra.
O que é?
O rapaz mostrou o original. — “Está aqui”, disse apontando com o dedo sujo
de tinta.
Crápula, disse o José Pereira.
O tipógrafo foi repetindo — crápula, crápula...
Que é isso? inquiriu Elesbão curioso.
Era um artigo contra o Pedro II, uma formidável descompostura a um dos
redatores da folha oposicionista.
Entraram a falar do novo presidente da província.
A notícia do escândalo chegou até ao Benfica, à casa do Loureiro. A Lídia
ficou estupefata.
A Maria, hein?! Tão calada, tão sonsa...
E repetia:
Este mundo, este mundo!...
Ao mesmo tempo apoderava-se dela um pesar sincero pela amiga. Tão moça
ainda, coitada, tão boazinha...
São coisas, são coisas, rosnava o Loureiro. Eu nunca me enganei com
aquela gente. Uma súcia de doidos, a começar pelo tal Sr. João da Mata, um tipo
que anda caindo nas ruas bêbado como uma cabra.
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Que é isso, Loureiro! ralhava a Campelinho empinada, carregando os seus
oito meses de prenhez.
Pensou em escrever à Maria lamentando o deplorável acontecimento, mas
não sabia ao certo onde ela parava. Ouvia falar no Outeiro, na Aldeota, no Cocó...
Se fosse possível, até iria, ela mesma, dar um abraço na sua amiga de escola,
consolá-la. Imaginava-a muito triste, cortada de desgostos, num abandono
pungente, em casa de alguma mulher à-toa, sem ter quem lhe aparasse as
lágrimas...
Pobre Maria! É assim — uns tão felizes e tão maus, outros ao contrário, bons
e infelizes...
E Lídia soltava uns suspiros vagos, transpassados de pena ao lembrar-se da
sua velha companheira agora atirada ao desprezo como um ente nulo e prejudicial à
sociedade!
Este mundo, este mundo!...
Entretanto, corria-lhe a vida deliciosamente, não lhe faltava coisíssima
alguma, o Loureiro a estimava cada vez mais, comia e vestia do melhor, tinha
relações com as principais famílias da capital, ia ao teatro e freqüentava o Clube
Iracema; gozava!
Se pudesse repartir a sua felicidade com a Maria, coitadinha...
Ultimamente andava muito preocupada com o enxoval do seu primeiro filho.
Até já havia escolhido um nome para ele, para o pequeno — chamar-se-ia Julieta ou
Romeu. O Loureiro tinha-lhe dito que Romeu era nome de gato, mas ela teimava em
batizar o filho com esse nome, se fosse “menino”. Os padrinhos também já estavam
designados — o comendador Carreira e a esposa.
Por sua vez a mulher do juiz municipal correu logo à casa de João da Mata
numa ânsia de saber como as coisas tinham se passado. Era da escola de S. Tomé
— ver para crer. Vestiu-se às pressas, atabalhoadamente, e voou para o Trilho de
Ferro, como uma seta, atirando-se nos braços de D. Terezinha, esfalfada, sem
fôlego, o rosto quente do mormaço.
A mulher do amanuense saudou-a com o seu invariável — salvou-se uma
alma! proferido entre beijos.
Sem esperar oportunidade, D. Amélia foi direito ao móvel da sua inesperada
visita. — “Então era mesmo certo o que se dizia na rua?”
De quê?
Da Maria...
Se era? Tão certo como dois com dois são quatro. Jurava sobre os Santos
Evangelhos.
O demônio metera-se-lhe em casa com a rapariga, e por tal modo que, de
certo tempo àquela parte, nem fazia gosto a gente viver.
A Amélia não fazia idéia — uma vergonha! criatura, uma vergonha! Ela,
Terezinha, estava cansada de sofrer desapontamentos, nem sequer saía à rua para
não ser olhada com maus olhos. Haviam de pensar que ela era outra...
E onde está a Maria?
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Sei lá, menina, sei lá... No Cocó, na Aldeota, no inferno. Tomara que
aquela peste não me entre mais em casa.
E tu não viste logo se ela estava grávida?
Vi lá o quê! Andava aqui toda espremida com um arzinho de mosca morta,
metida no quarto que nem uma freira. Uma sonsa, Amélia, uma sonsa é o que ela é.
O tal do Sr. Zuza, hein?!
Qual Zuza, mulher, elas é que são as culpadas, porque não se dão ao
respeito, não têm vergonha.
E o que diz a isso o Sr. Joãozinho? Furioso, hein?
É o que tu pensas, indiferente como se não fosse com gente dele...
E o diálogo continuou animado, sem que D. Terezinha revelasse à amiga as
suas suspeitas acerca de João da Mata e Maria do Carmo.
Amélia falou sobre o José Pereira, queixando-se de que ele há muitos dias
não aparecia em sua casa, “todo embebido com a outra, com a Lídia”. O redator da
Província não tirava os pés do Benfica, e, às vezes, voltava depois das nove, no
último bonde.
A Teté não achava feio isso, um homem ir diariamente, às mesmas horas, à
casa duma senhora casada! Era feíssimo! Já andavam até dizendo coisas... E então
o José Pereira que não era tolo e tinha fama...
Queira Deus que a tal Sra. D. Lídia não vá se arrepender... É verdade, a
mãe, a viúva Campelo, como vai?
Naquilo mesmo, respondeu D. Terezinha com um sorriso de malícia,
piscando um olho.
Riram baixinho e a conversa recaiu sobre D. Amanda àquela hora entregue
ao seu delicioso farniente de mulher solteira que dispõe do tempo a seu bel-prazer e
da algibeira de um capitalista generoso.
Toda a cidade vivia agora do escândalo, dando-lhe vulto, criando novelas de
romance, esmiuçando pequeninos acidentes domésticos, com um olho na política e
outro na normalista, à espera de chuvas e de novos acontecimentos sensacionais.
João da Mata não se inquietava muito, de resto, e continuava a sua vida
inalterável de empregado subalterno, sem prestar ouvidos à maledicência,
encantonado no seu absoluto desprezo à sociedade e à opinião pública, cada vez
mais submisso à mulher que o cobria de injúrias e labéus.
Sedutor de filhas alheias! dizia-lhe ela na cara, ameaçadoramente. Peste!
Coisa-ruim! Sem-vergonha!
E ele punha-se a cantarolar, com os ouvidos arrolhados, o olhar no teto,
estendido na rede, mudo, impotente como um eunuco.
Uma noite, pela madrugada, despertou com o desejo veemente de ir ter com
D. Terezinha, na alcova. Há meses não se chegava a mulher alguma, cheio de
aborrecimento pelo outro sexo, frio, mole, inacessível quase às carícias da fêmea.
Agora, porém, renascia-lhe a virilidade, sentia uma forte vontade indomável e
impetuosa, de amar fisicamente, de crucificar-se nos braços de uma mulher que não
fosse de todo mundo e confundir o seu sangue com o dela num demorado e in-
descritível espasmo. Tremiam-lhe as carnes como ao contato de um condutor
elétrico, uma formidável ereção a distender-lhe os nervos, escabujando na rede em
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espreguiçamentos lúbricos, vergando, como um vencido, ao poder irresistível da
animalidade humana. O sangue pulava-lhe nas artérias numa hipernésia que lhe
atordoava os sentidos, que lhe tirava a respiração, impelindo-o para a mulher.
Pensou na Mariana, que dormia ali perto, mas a Mariana era uma criada que
não se lavava, um estafermo sem sexo, incapaz de satisfazer os apetites de um
homem. Não havia jeito senão tentar a Teté. E lá se foi, sutilmente, pé ante pé,
corredor afora, direito à alcova da infeliz senhora.
A alcova tinha uma porta para o corredor. João olhou pelo buraco da
fechadura, mas não pôde ver senão o espelho do velho toucador, defronte, inclinado
para a frente, refletindo um vaso noturno, e roupas espalhadas no chão.
Bateu de leve, e, receoso da criada, deu volta pela sala da frente, tateando no
escuro, sem ruído. A outra porta da alcova conservava-se entreaberta: empurrou de
leve enfiando a cabeça para dentro.
Teté! chamou numa voz quase imperceptível.
Silêncio profundo. Os cortinados da cama estavam cerrados. João foi
entrando devagar, equilibrando-se no bico dos pés.
Teté! repetiu à meia voz.
Ninguém respondeu. Adiantou-se e escancarou as cortinas, mas — oh! — o
leito matrimonial, largo e fresco, branquejava desolado, sem sombra de mulher.
João ficou boquiaberto, muito admirado. “— Que significava aquilo?” Os
lençóis revoltos acusavam o desespero de uma pessoa que não teve tempo a
perder. Ante a clarividência assombrosa da realidade, o amanuense rodou sobre os
calcanhares, e, resignado como um boi, sem proferir palavra, murcho, sentiu
desaparecer-lhe subitamente o forte desejo que ainda há pouco o espicaçava como
uma urtiga. Retirou-se macambúzio a pensar nos caprichos da sorte.
CAPÍTULO XV
Quando mestre Cosme, uma manhã, foi avisar a João da Mata, que “a
menina estava com as dores”, o amanuense dormia ainda sob os lençóis e nem
sequer sonhava na afilhada.
Ergueu-se da rede, com um pulo, enfiou as calças, lavou-se num instante, e
abalou mais o velho para a Aldeota, sem dizer palavra a D. Terezinha.
“Já tinham arranjado parteira?” inquiriu acelerando o passo.
Já, inhôr sim, a comadre Joana Pataca, uma do Outeiro.
Boa?
Mestre Cosme não afirmava porque não a conhecia bem, mas era limpa e
não tinha má cara. Diz que era a melhor parteira do Outeiro. Agora, se seu
Joãozinho não quisesse... A mulher já estava cuidando da menina...
Quando apareceram as dores? — Se Maria gemia muito...
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O velho informou tudo minuciosamente sem ocultar um só detalhe, juntando
às palavras os seus gestos rudes de homem do campo.
A rapariga há dois dias queixava-se de umas dores nas “ancas e no pé da
barriga”, acompanhadas de fraqueza nas pernas e grande falta de ar... Se gemia?
Muito, coitada, metia até pena. Pudera! novinha ainda... A parteira dissera logo que
a criança estava no nascedouro. Àquela noite as dores tinham piorado, ninguém
dormira, velando a pobre moça. Eram chás e fricções, e — corre daqui e chega
depressa — todos com cuidado, rezando à N. S. do Bom Parto.
Logo da porteira do sítio João escutou os gemidos de Maria do Carmo,
trêmulos, sentidos, longos... e aquilo apertou-lhe o coração.
No pequeno quarto de taipa, com uma janelinha para o descampado, achava-
se tia Joaquina, à cabeceira da normalista, alisando-lhe os cabelos, com carinho, e
uma outra mulher gorda, pançuda, sem casaco, muito trigueira, com marcas de
bexiga no rosto, meio idosa.
Dão licença? murmurou João da Mata descobrindo-se com respeito.
A mulher gorda tomou o casaco, às pressas, e Maria volveu os olhos úmidos
e profundamente melancólicos para o padrinho, gemendo.
Mestre Cosme trouxe um tamborete.
Sentia-se um cheiro ativo de alfazema queimada: encostado à parede
fumegava o braseiro:
Então, como vai? perguntou João tomando a mão da afilhada. Muitas
dores, hein?
Assim... respondeu a rapariga mordendo o beiço com um gesto doloroso,
revirando-se na rede, e continuou a gemer alto.
A senhora é que é a parteira? tornou João para a mulher gorda que se
conservara imóvel com o queixo na mão.
Sua criada Joana Pataca.
Já verificou se a criança está perfeita, se não há novidade?
Ora, ora, ora... há que tempo! Daqui a pouquinho o menino está fora, se
Deus quiser.
O amanuense encarou por cima dos óculos, com ar de desconfiança, o todo
obeso da mulher. E, sentando-se:
A senhora tem licença para assistir?
Não era preciso licença, não senhor. No Ceará qualquer mulher podia ser
parteira contanto que merecesse confiança. Ela, Joana Pataca, era muito conhecida
no Outeiro, por sinal tinha partejado uma vez a mulher do comandante do batalhão...
Vossemecê duvida?
Não, não... é que eu queria saber... Então não é preciso licença?
Inhôr não. É qualquer uma.
Está bom, está bom... Mas não se descuide... Olhe, não vá esquecer...
A parteira pousou no chão o cachimbo, que estivera fumando, e foi aquecer
uns panos.
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Deu meio-dia e a rapariga não teve a criança. As dores tinham melhorado um
pouco. Tia Joaquina batia os beiços rezando “— Tenha paciência, minha filha, tenha
fé no Senhor do Bonfim”, dizia ela muito solícita.
João da Mata passou todo esse dia na Aldeota, aguardando o sucesso,
bebendo aguardente e acendendo cigarros, esquecido da repartição.
Mestre Cosme armara-lhe uma rede no alpendre e fora-se a desbastar a
mata, escanchado na Coruja.
Fazia um belo dia de sol, calmo e luminoso. O arvoredo imóvel dormitava na
esplêndida pulverização da luz que o narcotizava para beber-lhe a seiva. O
passaredo aninhava-se na verde espessura dos cajueiros em flor, contubernal e
gárrulo; rolas bravas debicavam nas clareiras os minúsculos diamantes que o sol
punha na areia. E no silêncio e na beatitude daquela espécie de eremitério João
pôde dormir um sono bom de duas horas, embalado pelos gemidos da afilhada
como por um vago e monótono estribilho trespassado de melancolia.
Às sete horas da noite, ao acender-se a primeira vela, Maria teve um
sobressalto e ergueu-se bruscamente com uma fortíssima dor no baixo-ventre, muito
branca, o olhar desvairado e os cabelos em desordem.
Que é isso, comadre! repreendeu a parteira agarrando-a.
Minha filha! fez tia Joaquina.
E em pé, entre as duas mulheres, com a cabeça arqueada para trás,
contorcendo-se numa aflição suprema, a rapariga soltava gemidos estrangulados,
cortada de dores, agarrando-se como uma louca ao pescoço das velhas, no bico dos
pés, em camisa.
Houve uma confusão extrema.
Sente-se, comadre, sente-se, por amor de Deus! suplicava a parteira,
agarrando-a com jeito.
Sente-se, minha filha, repetia a outra.
João da Mata acudiu gelado.
Calma! calma! bradou estacando à porta do quarto.
Mas era tarde. Ouviu-se uma pancada surda no chão, como a queda de um
bolão de barro úmido e, imediatamente, rios de sangue jorraram aos pés da parteira,
e no linho branco da camisa de Maria do Carmo desenhou-se larga faixa rubra, de
alto a baixo, como uma bandeira de guerra desdobrada.
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! rosnou Joana Pataca
estremecendo.
E Maria tombou como um fardo, sem sentidos, na rede fria.
Passou-se a noite às voltas. O amanuense resolveu não chamar médico —
que era uma asneira, o perigo tinha passado. A parturiente adormecera,
profundamente, depois de lhe terem ministrado um hidromel de aguardente.
Sobre uma grande caixa de pinho, a um canto do quarto, envolvido em panos,
o recém-nascido — uma criança nutrida e robusta — dormia o sono eterno, roxo, de
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olhos fechados, as gordas mãozinhas cruzadas sobre o peito, com um fio de sangue
a escorrer-lhe do nariz.
João não pregara olhos, pensativo, com a calva entre as mãos, ao lado da
afilhada. — Era o diabo, era o diabo! Até lhe doía a cabeça! Grandíssima besta, a
parteira, que nem ao menos soubera apanhar a criança! Estúpida! deixar morrer
uma criança tão bem-feita e nutrida! Isso só acontecia a ele, João da Mata.
De meia em meia hora acendia um cigarro automaticamente e punha-se para
ali a ruminar silenciosamente, à luz duma triste vela de carnaúba, que pingava a sua
cera denegrida, no gargalo duma velha botija de genebra, esbatendo ao fundo do
quarto o perfil do recém-nascido.
Diabo! pensava o amanuense quebrando a cinza do cigarro. Um caiporismo!
Tantos cuidados, tanta aflição, e, afinal de contas, lá ia tudo águas abaixo. Por um
lado era uma felicidade o pequeno ter morrido, porque isso de filho natural sempre
dava que falar às más línguas e até podia-se descobrir a verdade.
Consolava-se com esta idéia.
Perto, numa palhoça vizinha, havia um samba que durava desde o anoitecer.
No silêncio da noite ecoava um alarido medonho, vozes aguardentadas, sapateados
que estremeciam o chão, cantos, desafios ao som duma viola cansada.
Maria ressonava docemente, com o rosto voltado para a parede, o tronco
repousando sobre chumaços de pano onde brilhavam manchas de sangue. Cerca
de onze horas moveu-se devagar, abrindo os olhos e soerguendo-se, como quem
acorda de um pesadelo; mas faltaram-lhe as forças e repousou novamente.
“Queria alguma coisa?” perguntou João.
Onde está meu filho?
Não te lembres disso agora, vê se descansas...
Mas onde puseram ele? Está vivo?
Qual vivo, filha! Pois querias tu que escapasse?
E em tom lamentoso:
Coitado, ao menos está no céu, livre das misérias deste mundo...
Maria não se conteve: repuxou o lençol, e, com os olhos cheios de água,
murmurou numa voz entrecortada pelos soluços:
Pobrezinho!... Por que não me disseram logo?...
Já te pões a chorar!
Maria do Carmo soluçava com desespero, sentindo crescer dentro de si, no
íntimo do seu coração, avassalando-a, abalando todo o seu ser, toda a sua delicada
alma de mulher, como um sopro violento e devastador, esse inestimável desgosto
que as mães sentem ao ver o filho morto. Ela, que desejava tanto criá-lo, amamentá-
lo com o seu leite, que era o seu próprio sangue, a sua própria vida, amá-lo, adorá-
lo, com toda a força do seu coração!... Era um filho natural, mas era seu filho,
nascido em suas entranhas, carne de sua carne, sangue de seu sangue, havia de
amá-lo muito...
Quero vê-lo, deixe-me vê-lo! pediu aflita.
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Que tolice! fez João agasalhando-a melhor. Não pense nisto agora,
criatura, os médicos recomendam toda a calma. A criança está morta, que se há de
fazer?...
Continuavam os soluços, um choro estugado, interrompido por uma
tossezinha convulsa.
Mau! mau! tornou João.
E, imediatamente, foi buscar o cadáver do filho, depondo-o carinhosamente
sobre os joelhos.
Tia Joaquina apareceu, envolvida numa larga coberta de chita feita de
retalhos. “— O que era?...”
Nada, tia Joaquina. Ela que desejou ver o filho, explicou João. Uma
imprudência. Até pode lhe fazer mal...
Vejam a vela, por favor, pediu Maria. Quero ver meu filho...
E ao mirar o rosto lívido da criança, os bracinhos rechonchudos, o filete de
sangue escorrendo do nariz como um veio de rubi, a rapariga sentiu um calafrio e
um grande vácuo no peito, como se lhe tivessem arrancado um pedaço do corpo. E
entrou a soluçar outra vez de um modo tão penoso e comovente que João da Mata
não pôde recalcar duas lágrimas, as primeiras de sua vida, que rolaram vagarosas
nas suas faces magras, como duas linfas cristalinas na aspereza tosca duma rocha.
No dia seguinte, antes do sol nascer, mestre Cosme foi ao fundo do sítio cavar uma
sepultura para o pequenino cadáver. João acompanhou-o taciturno. Pararam ao pé
de um grande cajueiro, que ficava defronte da casa, e, com pouco, o amanuense viu
sumir-se debaixo da terra úmida o corpo do seu primeiro filho.
Mestre Cosme socou bem a areia, nivelou o terreno com os pés, e suspirou
com força, como depois de um trabalho penoso.
João assistiu em pé, sem dar palavra, mãos para trás, olhos cravados na
terra.
Pronto! fez o velho pousando a enxada no ombro.
Bem, murmurou João. E seguiram por entre as ateiras calados e graves.
Seriam seis horas da manhã. No alto de um coqueiro que farfalhava à beira
do cercado, cantava uma graúna, e as notas límpidas do seu canto vibravam
demoradamente na transparência do ar, sobre a verde monotonia do campo, como
um toque de alvorada!
Tinha-se calado o samba havia pouco.
Meses depois, quando Maria do Carmo apresentou-se na Escola Normal para
concluir o curso interrompido, estava nédia e desenvolta, muito corada, com uma
estranha chama de felicidade no olhar. A sua presença foi como uma ressurreição.
— A Maria do Carmo, hein?! Nem parecia a mesma! — Houve um alarido entre as
normalistas: abraços, beijos, cochichos... Até o edifício tinha-se pintado de novo
como para recebê-la!
O programa era outro, mais extenso, mais amplo, dividido metodicamente em
Educação Física, Educação Intelectual, Educação Nacional ou Cívica, Educação
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Religiosa... pelos moldes de H. Spencer e Pestalozzi; o horário das aulas tinha sido
alterado, havia uma escola anexa de aplicação, estava tudo mudado!
A esse tempo um grande acontecimento preocupava toda a cidade. Liam-se
na seção telegráfica da Província as primeiras notícias sobre a proclamação da
república brasileira. Dizia-se que o barão de Ladário tinha sido morto a pistola por
um oficial de linha, na praça da Aclamação, e que o imperador não dera uma palavra
ao saber dos acontecimentos, em Petrópolis.
O Ceará estremecia a esses boatos. Grupos de militares cruzavam as ruas,
ouviam-se toques de corneta no batalhão e na Escola Militar. Tratava-se de depor o
presidente da província, um coronel do exército. Os canhões La Hitte, da fortaleza
de N. Sra. d’Assunção, dormiam enfileirados na praça dos Mártires, defronte do
Passeio Público guardados por alunos de patrona e gola azul.
Ninguém se lembrava de escândalos domésticos nem de pequeninos fatos
particulares.
Um homem revoltava-se, indignado com o novo estado de coisas — era João
da Mata.
É boa! bradava ele na bodega do Zé Gato, esmurrando a mesa. Isto é um
país sem dignidade, uma nação de selvagens! Expulsar do trono um monarca da
força de Pedro II, mandá-lo para o estrangeiro doente e quase louco, é o cúmulo da
ignorância e da selvageria!
E Maria do Carmo, agora noiva do alferes Coutinho da polícia, via diante de si
um futuro largo, imensamente luminoso, como um grande mar tranqüilo e dormente.
FIM
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