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ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – ESPM/SP
PROGRAMA DE MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS DE CONSUMO
Clarisse Setyon
Sexo, mercadoria e hábitos de consumo
em
HQ
:
comunicação, empreendedorismo e gestão de si como produto.
São Paulo
2011
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Clarisse Setyon
S
exo
, mercadoria e hábitos de consumo
em
HQ
:
comunicação, empreendedorismo e gestão de si como produto.
Dissertação apresentada à ESPM como
requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Comunicação e Práticas de
Consumo.
Orientador(a): Profa. Dra. Gisela G. S. Castro
São Paulo
2011
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Clarisse Setyon
Sexo, mercadoria e hábitos de consumo
em
HQ
:
comunicação, empreendedorismo e gestão de si como produto.
Dissertação apresentada à ESPM
como requisito parcial para obtenção do título
de Mestre em Comunicação e Práticas de
Consumo.
Aprovado em ___________ de ________ de 2011
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________
Presidente: Profa. Gisela S. Castro, Doutora em Comunicação pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Orientadora, ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E
MARKETING (ESPM)
____________________________________________________________
Membro: Profa. Tânia M. Hoff, Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo,
ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING (ESPM)
____________________________________________________________
Membro: Prof. Heliodoro Teixeira Bastos Filho, Doutor em Ciências da Comunicação
pela Universidade de São Paulo, UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP)
Agradecimentos
Não resta a menor dúvida de que a alegria de finalizar este projeto prejudicará a
lembrança de todos aqueles a quem devo agradecer por terem estado ao meu lado
durante este percurso. Assim, começo pedindo desculpas a quem, por razões de
memória gasta, não será lembrado aqui.
A todos os docentes deste programa de mestrado, meus agradecimentos
especiais. Não foram poucas as ocasiões em que os questionei a respeito da validade da
teoria acadêmica sobre a prática de mercado, meu local de origem. Após três anos de
leitura com muito afinco, tenho certeza que minha prática teria sido muito mais bem
sucedida se eu já tivesse algum conhecimento da teoria. Obrigada a vocês por não terem
desistido de me motivar e, principalmente, por terem relevado vários de meus
questionamentos.
A todo o staff do Programa: obrigada.
Todos os meus colegas de sala da aula também merecem ser lembrados. Não
foram poucos os ombros e os ouvidos dos quais fiz uso para falar sobre as dificuldades,
a falta de entendimento sobre alguns autores e outros temas relacionados aos estudos e
ao projeto.
Meus colegas professores da ESPM, principalmente o Prof. Paulo Cunha que até
o último momento trouxe textos, livros e estórias de seus alunos que eventualmente
poderiam colaborar para o estudo. Obrigada.
Aos meus amigos, principalmente os de finais de semana. Para eles ao invés de
agradecimentos, talvez um pedido de desculpas seja mais adequado, devido à falta de
sociabilidade de minha parte durante este período. As leituras de textos tomaram o lugar
dos bate papos, mas, como vocês sabem, por que são amigos de verdade, foi temporário.
Meu anjo amigo Jean que, graças à rede social Facebook, teve seu interesse
despertado por meu trabalho e tornou-se apreciador e revisor do meu texto.
Daniela, minha terapeuta e sua constante dúvida sobre minha incapacidade
intelectual/acadêmica. Foram várias sessões em que, juntas, nos convencíamos que yes,
I can. E, é claro, ela tinha razão. O projeto foi finalizado.
Margarida, sem dúvida, você sabe o quanto foi fundamental neste processo todo.
Junto com o Pastel, vocês foram a “família” que me apoiou. Obrigada.
Por último, mas com toda certeza, no primeiríssimo lugar dos agradecimentos,
está a minha orientadora, Profa. Dra. Gisela G. Castro. Houve desencontros, claro.
Afinal, é uma relação longa, intensa, que consome ambas as partes. Entretanto, com sua
experiência, sua confiança em meu trabalho e muitas Coca Cola’s Zero, superamos
todas as dificuldades, enriquecemos este trabalho de uma maneira que nenhuma de nós
poderia prever em seu início, quando eu era apenas “uma pessoa do mercado”. Gisela,
muito obrigada pela paciência, pelas horas de investimento e por ter tido a vontade e
capacidade de fazer com que eu me gerisse para este projeto, como mandam as boas
práticas da pós-modernidade.
Resumo
Considerando que a cultura midiática é também cultura de consumo,
comunicação e consumo aparecem como práticas sociais fundamentais na
contemporaneidade. Analisando a forte presença da tematização da sexualidade na
produção midiática atual, descortina-se um cenário que aqui está sendo denominado
mercadorização do sexual.
Este cenário tem como pano de fundo a pós-modernidade, a sociedade do
espetáculo, o espaço social onde indivíduos autônomos, em busca de uma pseudo-
segurança procuram, avidamente, não apenas regras e modelos de conduta como
também o constante aprimoramento de suas subjetividades a fim de alcançar posição de
destaque junto aos seus grupos de referência. Nota-se hoje em dia a proliferação de uma
vasta gama de produtos, serviços e saberes relacionados ao que estamos chamando de
práticas de consumo no âmbito das relações sexuais. São muitos os discursos midiáticos
que têm colaborado para esta mercadorização da esfera sexual, transformando práticas e
objetos em produtos e serviços à disposição no mercado de varejo. Nesta reflexão sobre
a tematização do sexual na cultura midiática, são examinadas campanhas publicitárias e
programas de TV que tratam da sexualidade contemporânea. Mais especificamente, este
trabalho pretende examinar o discurso elaborado através das tirinhas de Adão
Iturrusgarai, publicadas no jornal Folha de S.Paulo.
Da vasta e variada produção do autor, recortamos para esse nosso estudo uma
série de tiras que, a nosso ver, tomam como tema a sexualidade contemporânea e
funcionam como ácida crítica social por meio da linguagem das histórias em
quadrinhos.
Palavras chave: comunicação e consumo, sexualidade, HQ, mercadorização
ABSTRACT
Considering that media culture is also consumer culture, communication and
consumption feature as fundamental social practices in today´s world. Analyzing the
strong presence of themes related to sexuality in the current media production, a
scenario, here named the mercantilization of the sexual sphere, is unveiled.
This scenario has post-modernity and the society of the spectacle as its
background. This is the social environment where autonomous individuals, in search of
the so-called security, are eagerly looking not only for rules and behavior models, but
also for the ongoing improvement of their subjectivities. This is necessary in order to
reach a stand out position in relation to their peer groups. It is visible, today, the
proliferation of a large collection of products, services and abilities related to what we
are here defining as consumption practices in the arena of sexual relations. Many are the
media speeches which have been supporting this type of mercantilization, rendering
practices and objects into products and services available in the retail market.
In this present study, we have examined advertising campaigns and TV
programs which deal with contemporary sexuality. More specifically, this work aims to
examine the speech provided through the cartoons of Adão Iturrusgarai, published in the
largest Brazilian daily newspaper.
From the large and varied production of this author, we have selected a series of
comic strips, which, we believe, function as an acid social criticism of the contemporary
sexuality in the language of the cartoons.
Key words: Communication and consumption, sexuality, cartoons, mercantilization
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1
1.1 A CENTRALIDADE DAS CULTURAS MIDIÁTICAS E DO CONSUMO
1.2 CULTO AO EMPREENDEDORISMO – A GESTÃO DE SI COMO PRODUTO
1.3 A TEMATIZAÇÃO DO SEXUAL NA MÍDIA
1.4 A BÚSSOLA DAS CAMPANHAS PUBLICITÁRIAS
CAPÍTULO 2
2.1 HQ, A HISTÓRIA EM QUADRINHOS
2.2 PRESENÇA DA ESTÉTICA DOS QUADRINHOS NAS ARTES
2.3 CARACTERISTICAS DA PUBLICAÇÃO FOLHA DE S.PAULO
2.4 O HUMOR TRANSGRESSIVO DE ADÃO ITURRUSGARAI
CAPÍTULO 3
3.1 CONSTITUIÇÃO E CONTRIBUIÇÕES DO JÚRI DE ESPECIALISTAS
3.2 ANÁLISE DO CORPUS DA PESQUISA
3.2.1 Sex Shop, um varejo como outro qualquer
3.2.2 Sexo, imaginário e consequências
3.2.3 Fetiche e fantasia como artigos de consumo
3.2.4 Dotes e habilidades como capital sexual
3.2.5 Transformação nas práticas cotidianas
3.2.6 O consumo de experiências
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Big Bang Bang, tirinhas de Adão Iturrusgarai publicadas nas edições de 24 e 25 de
março de 2007, no Caderno Ilustrada .............................................................................. 13
Figura 2: Capa da Revista ÉPOCA, edição 624, de 01/05/2010. ......................................... 28
Figura 3: Marta Suplicy apresentando o programa Comportamento Sexual na Rede Globo, os
anos 80. ....................................................................................................................... 31
Figura 4: Sue Johanson durante seu programa, manuseando um vibrador. ........................... 32
Figura 5: Sue Johanson com toy recomendado para iniciantes na prática de sexo anal. .......... 32
Figura 6: Home page da loja virtual DistinctiveToys, onde são encontrados os sex toys
recomendados por Sue Johanson ..................................................................................... 34
Figura 7: Vibrador Rabbit, citado no seriado Sex & the City. ............................................. 36
Figura 8: Website da Philips, tela de apresentação do massageador. .................................... 39
Figura 9: Website Philips UK, onde os massageadores sensuais são apresentados em meio aos
demais produtos da linha de Cuidados Pessoais da empresa. ............................................... 40
Figura 10: Mapa das mais sensíveis zonas de amor femininas, disponível no site da Philips 41
Figura 11: Mapa das mais sensíveis zonas de amor masculina, disponível no site da Philips 41
Figura 12: A modelo Daniela Sarahyba como garota propaganda da rede de lojas C&A . ..... 49
Figura 13: Representações humanas por Scott McCloud. ................................................... 56
Figura 14: The Yellow Kid, o Garoto Amarelo. ................................................................ 57
Figura 15: The Katzenjammer Kids, Os sobrinhos do Capitão ............................................ 57
Figura 16: Cartoon Cristo Salva? .................................................................................... 66
Figura 17: Tirinha de Rocky e Hudson ............................................................................ 68
Figura 18: Tirinha de Aline ........................................................................................... 68
Figura 19: Tirinha de Aline ........................................................................................... 70
Figura 20: Barbarella a aventureira espacial criada por Jean Claude Forest, que usa seu corpo e
sua sensualidade para derrotar seus inimigos. Uma de suas historias mais famosas, A Saga de
Xam, a heroína faz amor com Aiktor, um robô. ................................................................. 71
Figura 21: Sandálias Havaianas com personagens de Adão Iturrusgarai .............................. 71
Figura 22: Personagens Otto (Bernardo Marinho), Aline (Maria Flor) e Otto (Pedro Neschling),
da série Aline da TV Globo. ........................................................................................... 73
Figura 23: Tirinha de Rocky e Hudson ........................................................................... 109
9
Introdução
Em um mundo globalizado, é inegável a força dos discursos midiáticos nas
escolhas de modos de ser, viver e fazer. Nas palavras de Maria Immacolata Vassalo de
Lopes, “os meios agem no nível cultural e ideológico no sentido de introduzir padrões
“modernos” de conduta, contribuindo para a difusão do estilo de vida urbano” (2005, p.
22). Atualmente, parece difícil uma dissociação, ainda que parcial, entre formação de
subjetividades e os discursos midiáticos que atingem os indivíduos através de um sem
número de canais de difusão, sendo esses de massa ou nicho. Este trabalho contempla
um destes canais, ainda pouco estudado no Brasil, as histórias em quadrinhos e sua
relação com a estruturação de subjetividades.
O estudo dos quadrinhos no Brasil não é uma novidade e tem sido elaborado em
diversas universidades no País na forma de monografias, dissertações e teses. Estes
trabalhos podem ser encontrados não apenas em projetos das Ciências da Comunicação,
como também nas áreas de Psicologia, História, Pedagogia ou Medicina. Isto demonstra
a relevância merecidamente conferida a esta forma de comunicação de massa entre nós.
Foi em 1951, numa iniciativa inédita em todo o mundo que aconteceu na cidade
de São Paulo a I Exposição de Histórias em Quadrinhos
1
, tendo como um de seus
organizadores o jornalista, escritor e ilustrador Álvaro de Moya, considerado hoje um
dos maiores especialistas em quadrinhos do Brasil.
Moacy Cirne, docente da Universidade Federal Fluminense, começa a escrever
sobre quadrinhos em 1970. O autor considerava as HQ “a literatura por excelência do
século XX”
2
. Devido ao seu pioneirismo como estudioso do tema, o governo do Estado
do Rio Grande do Norte celebra, desde 2009, Prêmio Moacy Cirne de quadrinhos que
tem como objetivo a revelação de novos talentos, além de impulsionar a produção dos
HQ’s no Brasil.
O banco de teses da CAPES que contém teses e dissertações defendidas desde
1987
3
, apresenta um total de 311 trabalhos que versam sobre histórias em quadrinhos,
sendo 266 dissertações de mestrado. Apenas para efeito de comparação, ao
1
http://www.uscs.edu.br/revistasacademicas/caderno/caderno_com_v04_n01.pdf acesso em 27 de
dezembro de 2010.
2
http://pt.wikipedia.org/wiki/Moacy_Cirne acesso em 22 de janeiro de 2011.
3
As informações são fornecidas diretamente a Capes pelos programas de pós-graduação, que se
responsabilizam pela veracidade dos dados.
10
pesquisarmos nesta mesma base de dados, outras formas de mídias, temos 1787
dissertações de mestrado que pesquisam a televisão, 4131 resultados vinculados ao
termo “revista” e 1829 relacionadas a “cinema”
4
.
Foram encontrados trabalhos nas áreas de Linguística, Educação, Comunicação,
Letras, História, Antropologia, Filosofia, Artes, Psicologia, entre outras. Porém,
nenhum dos 266 projetos encontrados, tem o sexo, o sexual, a sexualidade,
subjetividade ou as práticas de consumo como temas, em conjunto com histórias em
quadrinhos.
Desse modo, entendemos o presente trabalho como singular contribuição para a
continuidade dos estudos de HQ em nosso País.
4
Pesquisa realizada em 27 de janeiro de 2011
11
Procedimentos metodológicos
Uma vez definido nosso objeto de estudo, foi possível determinar que tipo de
pesquisa científica seria desenvolvida, coletando e sistematizando dados empíricos para
posterior tradução em conceitos e questionamentos.
“A combinação inteligente de teoria e metodologia permite realizar a
mágica da metamorfose de um “assunto” em um “tema” propriamente científico” afirma
Ianni (2005 apud: LOPES, 2005, p.11). Foi em busca deste tipo de combinação que se
optou pela abordagem multimetodológica. Além de pesquisa bibliográfica indispensável
para a fundamentação teórico-conceitual, fez-se uso de pesquisa documental e empírica.
O corpus de nossa pesquisa empírica foi elaborado a partir de uma seleção de
tirinhas de Adão Iturrusgarai publicadas na edição impressa da Folha de S.Paulo.
Depois de organizadas em seis categorias temáticas, o material foi analisado com o
auxílio de um júri de especialistas, composto pelos Professores Drs. da ESPM: Lívia
Barbosa, Marcia Perencin Tondato, Eugênio Bucci e Gisela G. Castro, que se reuniu
especialmente para este fim. Este procedimento será apresentado em detalhes mais
adiante. Complementando a pesquisa empírica, foram também realizadas entrevistas
com profissionais ligados ao jornal Folha de S.Paulo. Apesar de nossos esforços em
conseguir entrevistar o próprio Adão Iturrusgarai
5
para esse trabalho, conseguimos
apenas que ele gentilmente nos atendesse um pedido desesperado de esclarecimento.
Além de representar um importante papel na atividade econômica do país, os
meios de comunicação de massa podem também ser considerados como os principais
veículos de divulgação da hegemonia cultural das classes dominantes. Atualmente,
reconhece-se que a lógica do mercado é a que predomina, impondo seus valores e
condicionamentos sobre modos de produção e distribuição da mídia, gerando
consequências em relação a seus conteúdos e natureza da informação.
Na atual sociedade globalizada, surgem gigantescos impérios que integram
vários setores da informação, da cultura e do entretenimento, monopolizando, algumas
vezes, a distribuição de conteúdo ao redor do mundo. Como exemplo, merece ser citada
5
Infelizmente, Adão Iturrusgarai que reside hoje em Gaiman na Patagônia (fonte: http://adao-
loja.blog.uol.com.br/ acesso em 27 de janeiro de 2011) e parece ser avesso a entrevistas ou sem tempo
livre para tal. Após várias tentativas de contato, o cartunista aceitou uma única troca de e-mails quando
nos esclareceu o significado de “cadeado chinês”, termo usado em uma das tirinhas selecionadas para o
corpus desta pesquisa.
12
a News Corporation, hoje o terceiro maior conglomerado de entretenimento no mundo
6
,
controlado pelo bilionário australiano Rupert Murdoch.
No Brasil as Organizações Globo também são responsáveis por uma ampla
distribuição de conteúdo, sendo assim uma importante divulgadora de valores sociais,
em uma ampla extensão territorial. Além da emissora aberta de TV (Rede Globo), 3ª.
maior do mundo com 5 emissoras próprias e 121 afiliadas, também é proprietária do
canal educacional aberto Futura. A organização participa também das empresas de
transmissões de TV via satélite (Sky) e a cabo (NET). Possui quatro emissoras de rádio e
mais três de web rádio. Ainda fazem parte do grupo quatro jornais (O Globo, Extra,
Expresso e Valor Econômico em conjunto com a Folha de S.Paulo), um portal de
internet (globo.com), dezenas de títulos de revistas, uma gravadora, uma distribuidora
de filmes para cinema, entre outros
7
.
Outros grandes conglomerados nacionais são o Grupo Abril
8
, RBS, também
ligado à Rede Globo e o Grupo Bandeirantes de Comunicação.
Pertencente ao Grupo Folha, a Folha de S.Paulo, surge em São Paulo em 1921,
com o nome original de Folha da Noite. Em 1960, o jornal original funde-se com a
Folha da Manhã e a Folha da Tarde, criados respectivamente em 1925 e 1945 e surge o
periódico como o conhecemos atualmente
9
.
Assim como os demais meios de comunicação, a lógica de mercado também faz
parte do tipo de publicação aqui estudada. Em pesquisa bibliográfica sobre HQ’s,
aprendemos que no fim do Século XIX, as tirinhas do Garoto Amarelo (The Yellow
Kid), criada por Richard Felton Outcault, foram utilizadas como munição na batalha de
concorrência entre dois dos mais importantes jornais nos EUA.
O humor das tirinhas de Adão publicadas na Folha de S.Paulo parece estar de
acordo com a linha editorial deste jornal que se apresenta como sendo conservador na
área da economia, liberal sobre temas políticos e revolucionário no aspecto cultural.
Acredita-se que o leitor da Folha, fiel ao seu jornal, convive de maneira pacífica com o
provocante trabalho de Adão Iturrusgarai. Carlos Eduardo Lins da Silva, ombudsman da
6
http://www.time.com/time/business/article/0,8599,1915722,00.html, acesso em 12 de janeiro de 2011.
7
http://pt.wikipedia.org/wiki/Organiza%C3%A7%C3%B5es_Globo, acesso em 27 de janeiro de 2011.
8
O maior em número de veículos: 74 - http://donosdamidia.com.br/inicial, acesso em 27 de janeiro de
2011.
9
http://www1.folha.uol.com.br/folha/conheca/historia.shtml, acesso em 27 de janeiro de 2011.
13
Folha no período de abril de 2008 a fevereiro de 2010, relatou em entrevista realizada
como parte de nossa pesquisa, que durante aquele período recebeu reclamação sobre
uma única tirinha de Adão, esta publicada no caderno Folhateen e cujo conteúdo teria
sido considerado excessivo para jovens leitores.
Além desta ocorrência citada por Lins e Silva, encontramos registros de
reclamações de apenas dois leitores em março de 1997. As queixas referiam-se à
publicação de duas tirinhas de Adão sobre as experiências da personagem Aline com o
consumo de LSD
10
. Ambos os leitores estariam preocupados com seus filhos, leitores
dos quadrinhos da Folha, pois acreditavam que Adão pode estar induzindo os jovens ao
consumo de drogas. O site do jornal deixa claro que os pais não buscavam da
publicação uma posição “moralista ou conservadora”, porém expressavam uma
preocupação devido ao tom banal assumido pelas tirinhas, e pediam que a temática
fosse alterada.
Em resposta aos leitores, Sérgio Dávila, na época editor do Caderno Ilustrada
afirma que “as tirinhas jamais sofreram qualquer tipo de corte na redação da Folha”.
Declara ainda o editor que “A Folha tem testado essa liberdade, ampliado seus limites,
auxiliando, em vários episódios, a disseminar a crença geral em sua importância”
11
.
Figura 1: Big Bang Bang, tirinhas de Adão Iturrusgarai publicadas nas edições de 24 e 25 de março de
2007, no Caderno Ilustrada
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ombudsman/omb_19970330.htm, (acesso em 04 de fevereiro
de 2011).
10
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ombudsman/omb_19970330.htm, acesso em 09 de janeiro de 2011.
11
Idem.
14
Com o objetivo de entender melhor o papel dos quadrinhos no universo da
comunicação de massa, foi de grande importância a fundamentação teórica obtida
através da leitura de autores como a pioneira nos estudos sobre quadrinhos no Brasil,
Zilda Augusto Anselmo, que em 1975 publica o livro Histórias em quadrinhos, no qual
procura desvendar o mundo das HQ e sua relação com o público adolescente. Também
foram de grande importância para este trabalho a leitura crítica que Umberto Eco faz da
linguagem dos quadrinhos, onde aponta sua determinação ideológica e sua linguagem
elementar, Jacques Marny que ilustra o humor dos HQ’s através das estórias de
Barbarela, Nildo Viana e seu estudo dos quadrinhos como fenômeno social, os
primeiros estudos sociológicos deste gênero de narrativa por Moacy Cirne e os segredos
e “truques” da criação de quadrinhos de Scott McCloud, entre outros.
15
CAPÍTULO 1
1.1 A CENTRALIDADE DAS CULTURAS MIDIÁTICAS E DO CONSUMO
A comunicação midiática tem se destacado de modo continuamente crescente,
contribuindo para a formação de padrões culturais e comportamentos, atuando como
pano de fundo para o desenvolvimento de subjetividades e construção de identidades.
Suportada por tecnologias recentes, ela atravessa fronteiras, permeia culturas, levando
mensagens simbólicas, simultaneamente, a praticamente todos os lugares. Para
Dominique Wolton (2003, p.7) “a comunicação permeia toda a tradição cultural”.
Nesta viagem pelo tempo e pelo espaço que faz a mídia, formando uma cultura
através de suas imagens, sons e acontecimentos, ela traz para o cotidiano uma espécie
de guia comportamental para a vida em sociedade. Isto parece ser adequado ao
contemporâneo, pois se tecnologia, globalização e constantes mudanças têm
transformado indivíduos em homens “desbussolados
12
nada parece mais conveniente
do que este guia de sobrevivência que a mídia nos oferece. Sobre a importância destes
sons, imagens e espetáculos que compõem a cultura midiática, Douglas Kellner (2006,
p.9) afirma que estes elementos seriam “o conteúdo para que os indivíduos forjem sua
identidade”.
Faz-se necessário entender formação de identidade nos dias atuais. Para que se
possa iniciar este entendimento, é importante ressaltar a impossibilidade de seu estudo,
dissociado da ordem sócio histórica na qual está inserido o indivíduo, pois o homem é
um ser social e histórico. É neste contexto social, é no seu cotidiano que o indivíduo
tem sua identidade em processo de transformação contínuo. Isto significa uma constante
metamorfose, afinal não como pensarmos em uma sociedade preenchida por
indivíduos estáveis, “prontos e acabados”, mas sim, e cada vez mais, continuamente
abertos a transformações e aprimoramentos.
Fazendo uso de seu poder de penetração e a credibilidade que lhe é conferida, a
máquina midiática tem como um de seus objetivos, mediar representações culturais,
transformando-as em símbolos e criando assim novos discursos e novos significados
sociais. A adoção individual deste ou daquele discurso é que irá contribuir para que o
indivíduo se posicione no mundo. Ao serem reproduzidos pelo indivíduo, estes
12
A psicanálise do homem desbussolado – Jorge Forbes. Trabalho apresentado em plenária do IV
Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, em 4 de agosto de 2004.
16
discursos também participam da construção de sua mutável identidade. Conforme Hall
(2001), os discursos e os sistemas de representação constroem os locais a partir dos
quais indivíduos atuam no cotidiano.
Parece não ser possível hoje viver, assistir ou relatar fatos, sem que estes sejam
permeados pelos discursos e/ou práticas sociais apreendidas através da mídia. Esta
sociedade midiática é também chamada de sociedade de consumo. As duas,
inseparáveis, se retroalimentam. Impossível dissociá-las. Assim como o ato de se
comunicar é condição inerente ao ser humano, também o são as práticas de consumo.
Consumimos comunicação. Comunicamos ao consumirmos. Para Baccega (2009, p.3)
“consumir significa investir no pertencimento à sociedade, tornar-se vendável”. O
consumo deve ser entendido como algo central na vida do sujeito que almeja viver em
sociedade.
Ao ocupar um lugar tão nobre no cotidiano, parece simples entender porque o
consumo ocupa também um lugar central na estruturação de valores, como mediador de
relações e como construtor de identidades. É através da aliança entre mídia e consumo
que se faz possível incorporar o indivíduo à lógica do valor discriminatório do
consumo. A identificação do indivíduo, além das dimensões fundamentais como nome,
atividade ou profissão, incorpora também a tipologia de consumo a que tem acesso, bem
como suas escolhas de bens e serviços. “Os bens sustentam estilos de vida”, conforme
ensinam Douglas & Isherwood (2004, p.8), mas não se trata apenas disto. Os valores
sociais que neles se investem comunicam princípios, ideias, estilos de vida e, algo que
parece ser tão presente nos tempos atuais: se interpretados com cuidado, eles também
comunicam mudanças. É aqui, talvez, que surge a função mais relevante da
comunicação midiática para o presente estudo: gerar, permanentemente, instrumentos
que auxiliem o consumidor a elaborar pensamentos, a fim de absorver, julgar e
ressignificar os valores e símbolos que são ofertados ininterruptamente através dos mais
diversos tipos de mercadorias.
Néstor Garcia Canclini (1999) autor que afirma não existir uma “teoria
sociocultural do consumo” (p. 76), entende que “nas sociedades contemporâneas, boa
parte da racionalidade das relações sociais se constrói, mais do que na luta pelos meios
de produção, da disputa pela apropriação dos meios de distinção simbólica” (p. 79).
Ainda que o consumo seja comumente associado ao mero consumismo, remetendo a
compulsões ou mesmo a vícios, os processos de consumo, como estudados atualmente,
17
são bastante mais complexos do que apenas uma atitude de impulso, ou a obediência
cega às incessantes publicidades que nos cercam.
O verdadeiro entendimento das práticas de consumo exige a densidade dos
estudos da Comunicação que, necessariamente se servem de aportes da antropologia,
sociologia, psicologia, filosofia e história, para mencionarmos apenas algumas das
principais ciências humanas e sociais envolvidas no campo da Comunicação. Sem essa
compreensão multidisciplinar e abrangente, faz realmente mais sentido banalizar o
consumo como mero vício.
Seres humanos são interpretativos, conferem significados às coisas em seu
meio. São estes significados, códigos, e símbolos que regem nossas condutas. Desse
modo, compreendemos que as relações sociais são estabelecidas por meio das mais
diferentes práticas de consumo. Visto desta maneira, o consumo funciona como um
código. A partir da capacidade de se desvendar este código é possível traduzir as
relações entre os indivíduos. Servindo-se de símbolos “pontes” e símbolos “muros”
(DOUGLAS & ISHERWOOD, 2004, p. 17), pode-se estreitar ou distanciar relações
com outros indivíduos e grupos sociais com os quais se deseja uma aproximação ou, ao
contrário, um distanciamento.
Desta maneira, parece imprescindível uma análise da emergência de certas
estratégias discursivas na comunicação mercadológica atual, bem como a maneira pela
qual estes discursos permeiam as práticas de consumo e a formação de subjetividades,
haja vista o lugar de destaque que o consumo ocupa atualmente. “É possível que o
consumo tenha uma dimensão que o relacione com as mais profundas e definitivas
questões que os seres humanos possam se fazer questões do ser e saber(BARBOSA
& CAMPBELL, 2006, p. 47).
Por que as culturas da mídia e do consumo estão no centro de tantas discussões e
debates nos dias de hoje? Refletir sobre sua centralidade e sobre os valores e fatores que
influenciam na constituição da subjetividade, na formação de distintas identidades
parece ser valioso para uma tentativa de compreensão e interpretação do sujeito
contemporâneo. Qual a relevância que estas culturas têm na formação das diferentes
subjetividades, no papel do sujeito como ator social?
Falar de subjetividade é falar de processos culturais, sociais, políticos,
psicológicos que situam, moldam e influenciam o modus operandi do individuo no
mundo. São seus sentimentos, suas experiências, sua história. Desde a máxima
18
cartesiana “penso, logo existo”, ainda relevante, até o momento presente, entendemos
que o sujeito autônomo se relaciona com o mundo através da sua razão, da sua
sensibilidade e singularidade. Ele vai a cada nova experiência, refletindo e refratando o
ambiente no qual está inserido, modulando e reformando assim, constantemente, sua
subjetividade.
Na fase atual do capitalismo, também denominada pós-industrial, novas
experiências se multiplicam em progressão geométrica. A diversidade de modelos
subjetivos que hoje são oferecidos resulta em uma crescente e constante necessidade de
se ajustar a subjetividade, de se produzir novas identidades. Suely Rolnik
13
se refere à
proliferação de modelos ofertados pela cultura midiática como “kits de perfis-padrão”,
os quais funcionam como “identidades prêt-a-porter”. (1997, p. 20). Entende-se que se
trate de ferramentas por meio das quais o indivíduo pode ajustar sua subjetividade ao
sabor dos ventos das cambiantes configurações conjunturais e mudanças sociais.
Vivemos tempos de incertezas, tempos de horizontalização de hierarquias,
tempos em que novos modos de organização desafiam conformações anteriormente
tidas como estáveis e duradouras. Assim, para que se possa manter vivo e participativo
em tal tipo de sociedade, faz-se necessário adaptar-se continuamente. Podemos pensar o
indivíduo da contemporaneidade como um “homem camaleão”. O camaleão, para ter
suas cores alteradas, realoca as células pigmentares que tem sobre a pele. Ao fazer isto,
influencia a cor da luz que é refletida sobre ele. Ao invés de realocar suas células, o
sujeito que vive nesta nossa sociedade realoca seus hábitos de consumo e, por meio
destes, sua imagem social, reconfigurando-se sempre que sentir a aproximação de mais
uma mudança sociocultural. Ele se serve de novos kits de perfis-padrão” a fim de
manter-se ajustado. Até que venha uma nova necessidade de alteração.
Rolnik explica que, devido às desestabilizações que emergem constantemente,
“as subjetividades são tomadas pela sensação de ameaça ou fracasso” (1997, p. 21). Isto
representa um desassossego, uma inquietação quase que permanente. É necessário então
o aperfeiçoamento da capacidade de flexibilização e de adaptação.
Ao falarmos sobre subjetividade é obrigatório falarmos sobre o social e o
individual, ou seja, o modo de ser, de agir, de se relacionar de cada um na sociedade em
que vive. Publicitários e profissionais de marketing parecem fazer uso de estudos de
subjetividade com o intuito de segmentar e conhecer mais profundamente os públicos-
13
Em: LINS, Daniel (org.) Cultura e subjetividade – saberes nômades, Campinas, SP: Papirus, 1997.
19
alvo aos quais pretendem dirigir suas mensagens comerciais, a fim de obter o efeito
desejado de estímulo ao consumo e fidelização de clientes.
Apesar dos avanços da internet e do mundo digital, a mídia de massa segue em
franco crescimento no Brasil
14
. Entretanto, há, cada vez mais, uma segmentação da
mídia, seja ela de massa ou não. Esta comunicação segmentada, direcionada a públicos
pré-definidos e pré-estudados, faz surgir também uma fragmentação social que vem
acompanhada de diferentes identificações sociais, econômicas e culturais, trazendo
como resultado o desenvolvimento de audiências especializadas.
É na esteira destas novas práticas midiáticas e das audiências fragmentadas que
surgem os novos empreendimentos midiáticos, que têm por objetivo, principalmente, a
criação de novas necessidades. São novas demandas incorporadas aos kits de perfis-
padrão, os quais auxiliam na inserção do indivíduo em seus nichos aspiracionais de
escolha. Estas inserções parecem acontecer em todos os ambientes de convivência do
sujeito pós-moderno, seja em nível profissional, seja em nível social.
Boltanski e Chiapelo (2009), autores que se debruçaram no estudo dos modelos
de gestão empresarial visando compreender as mudanças sociais contemporâneas,
trazem mostras claras de como, por exemplo, os anos 1990, quando comparados aos
anos 1960, diferem em relação aos discursos produzidos e à necessidade de adaptação
de subjetividades individuais.
Para Luc Boltanski e Éve Chiapello (2009, p. 121), no universo descortinado a
partir da última década do século passado, “tudo é possível, pois as novas palavras de
ordem são criatividade, reatividade e flexibilidade”. Segundo os autores, não está
mais em voga o modelo de gestão empresarial característico da década de 60, no qual a
empresa era o núcleo central do projeto social. 50 anos, conhecia-se a certeza da
carreira, das promoções por mérito. As demissões não eram mencionadas. O futuro
poderia e provavelmente teria sido brilhante para aqueles que foram eficientes. Havia
contratos de trabalho, uma definição implícita de garantia de emprego.
O final do século XX apresenta outra dimensão e novos paradigmas em relação
às relações profissionais. Junto com a explosão da burocracia, convivemos com a
vertiginosa mutação das tecnologias, a força inexorável da globalização e,
14
De acordo com o Ibope Monitor do jornal Propaganda & Marketing (edição de agosto de 2010), pela
primeira vez na história o Brasil foi o recordista mundial em termos de investimento em publicidade no
primeiro semestre de 2010. Apesar do crescimento em investimentos publicitários na internet, a mídia
televisiva representa 60,9 % dos investimentos feitos em publicidade no país.
20
principalmente com o estímulo ao desenvolvimento pessoal e profissional cada vez mais
autônomo. O novo ideário corporativo prega a liberdade, a criatividade, o trabalho em
forma de projetos e não mais concebido em termos de carreira linear e estável.
Sobretudo, são derrubadas as garantias de emprego como acesso ao trabalho
remunerado. Na palavra de Boltanski e Chiapello, as garantias “não constituem um
valor dominante nos anos 90”. (2009, p. 124).
O início dos anos 2000 revela que os sujeitos dependem cada vez mais de seus
próprios recursos para conquistar seus objetivos. O sucesso e o crescimento profissional
não estão mais fundamentalmente nas mãos das empresas. Empregos são agora
oportunidades transitórias, num cenário de mudanças que demanda constante
aperfeiçoamento de capacidades. O formato de trabalho por projeto faz de cada
profissional uma empresa. Nesse contexto de incertezas e mudanças, ampliar
competências tornou-se imperativo. “Saber ser” ganha precedência em relação ao “saber
fazer”. Faz-se necessário hoje que o indivíduo transforme-se em um gestor de capital
pessoal, o qual deve ser administrado na mesma velocidade das mudanças sociais, a fim
de minimizar os riscos decorrentes de uma má gestão.
Porém, justamente devido às constantes e aceleradas mudanças, como
reconhecer as melhores práticas de gestão de si? Como certificar-se de que o rumo
tomado é aquele de maior potencial? A quais fontes deve se ater o indivíduo que busca
incansavelmente “chegar lá” nesses nossos tempos de sucesso obrigatório?
A cultura midiática parece carregar consigo parte da responsabilidade pela
disseminação das melhores práticas sociais e das receitas de sucesso para cada um dos
segmentos a quem endereça seus conteúdos. A revista Você S.A, publicação mensal da
Editora Abril que está em sua edição número 150
15
, pode ser citada como exemplo de
um veículo que se apresenta como responsável por tratar de temas de interesses para
executivos em início de carreira. Seu editorial tem como foco três áreas principais:
gerência no ambiente de trabalho, autogestão em vistas à carreira e ainda a
administração do cotidiano entre a vida profissional e a vida pessoal. Observando suas
matérias de capa durante o ano de 2010, percebe-se como a revista se relaciona com os
interesses de seus consumidores:
Edição fevereiro/2010 – O novo jeito de encarar a carreira
Edição março/2010 – 32 soluções para seus problemas financeiros
15
Em dezembro de 2010.
21
Edição abril/2010 – Qualificação: o que é isto afinal?
Edição maio/2010 – Inveja. Como lidar com o olho gordo no trabalho?
Edição junho/2010 – Tá na hora de ganhar seu aumento
Edição julho/2010 – Carreira global (mesmo sem sair do Brasil)
Edição agosto/2010 Guia com 155 cargos e salários para você orientar sua
trajetória
Edição setembro/2010 – Você é feliz no trabalho? Conheça 3 atitudes de quem é
Edição outubro/2010 – Novas lições para domar esta fera: seu chefe
Edição novembro/2010 – 8 atitudes decisivas para fazer sucesso
Não aqui a intenção de analisar de modo específico o veículo Você S.A. ou o
conteúdo que ela apresenta, visto não ser este o corpus deste trabalho. Entretanto,
entende-se que esta revista, embora seja apenas uma entre tantas outras no mercado,
parece ser um perfeito reflexo do novo modelo de gestão empresarial citado acima, ou
ainda da constante necessidade de mudanças subjetivas a fim de manter-se competitivo
nos mundos profissional e social.
1.2 CULTO AO EMPREENDEDORISMO – A GESTÃO DE SI COMO PRODUTO
O tema geral desse estudo está relacionado com a mercadorização do sexual. A
intenção deste tema não é apenas trazê-lo para discussão para possibilitar novos olhares
sobre a comunicação e as práticas de consumo. O tema tem também como missão
questionar a relação entre a comunicação e o consumo de produtos e serviços destinados
a potencializar o desempenho sexual, bem como a maneira pela qual as subjetividades
são chamadas a se adaptar para que os indivíduos possam ser percebidos como inseridos
nesse contexto que se configura já há algum tempo.
Ao falarmos de gestão empresarial temos como objetivo tornar claro o ambiente
competitivo hoje existente. Com a ausência das garantias características da primeira
metade do século passado, cada um deve cuidar de si. Vence aquele que tiver condições
de oferecer o melhor rendimento, pois em uma economia capitalista globalizada, ser o
melhor profissional ou a melhor empresa, é, na maioria das ocasiões, sinônimo de
liderança de mercado e, consequentemente tende também a ser líder em lucratividade.
22
Porém, este ambiente competitivo estende-se para além da esfera profissional.
Suas demandas também vigoram no âmbito mais íntimo e pessoal. Assim como é
exigido do sujeito que ele aprenda a se autogerir e que encontre as orientações para sua
melhor performance no mundo corporativo, também na vida social suas escolhas, suas
ações e possíveis consequências devem ser objeto de intensa atenção.
A figura do sujeito empreendedor parece ser atualmente a forma de vida
dominante, hegemônica, nos diversos contextos. Constantes desafios e cobranças por
desempenho nos confrontam em todos os momentos. Porém, conforme mencionado,
a busca por referências pode ser problemática. Na ausência de balizadores seguros e
definitivos, a situação que se apresenta faz do mesmo sujeito que formula as perguntas
em busca de orientação, aquele que deve discernir onde obter as respostas que necessita.
O sujeito empreendedor não obtém sucesso por mero acaso. Ele precisa ser antes
de tudo, alguém que está disposto a arriscar. De acordo com Alain Ehrenberg (2010,
p.13), “o empreendedor foi erigido como um modelo de vida heroica porque ele resume
um estilo de vida que põe no comando a tomada de riscos”. Em uma sociedade regida
pelas incertezas e pelas constantes mudanças, o risco passa a se apresentar como quesito
de sobrevivência. Enfrentar desafios e superar riscos parece ser demonstração
indiscutível de sucesso.
Em cada esfera da vida é necessário exibir desempenho exemplar. Caso
contrário pode-se estar condenado ao ostracismo social. Nesse tempo de acirrado culto
da performance, qualquer deslize pode representar um preço alto a ser pago. Sendo
assim, o sujeito empreendedor deve cuidar de sua vida pessoal com o mesmo esmero
com que gere sua vida profissional. Na esfera social também o vel de exigência
precisa ser alto. Nada de contentar-se com índices medianos. É preciso ostentar
desempenho superlativo para que se possa atrair interesse e admiração. Essa premissa
vigora até mesmo nas áreas mais íntimas, como no âmbito das práticas sexuais, que
interessam mais diretamente a esse nosso estudo.
Aprendemos com Foucault que nossa conduta sexual pouco tem de “natural” ou
biologicamente condicionada. A história da sexualidade, projeto no qual o pensador
francês trabalhou nos últimos anos de sua vida, demonstra de forma exemplar algumas
das diferentes inflexões da moral sexual ao longo dos tempos. Examinando o contexto
contemporâneo, indicações nos levam a crer que o comportamento sexual passa a ser
mais abertamente discutido em público principalmente a partir da introdução no
23
mercado da pílula anticoncepcional feminina. Com esse novo objeto de desejo de toda
uma geração, a batalha pela liberação dos costumes teria se fortalecido a partir da
década de 1960 na Europa e nos Estados Unidos. No Brasil a partir dos anos 1970.
Tendo o contraceptivo como decisivo aliado, as relações sexuais passam a ser
mais amplamente reivindicadas por prazer e não apenas para reprodução. Nessa
mudança de paradigmas, a conduta sexual não precisaria mais ser regulada apenas pelas
amarras do matrimônio.
Maternidade e sexo estariam, enfim, desvinculados. Apesar de seus inegáveis
benefícios, este método contraceptivo, ainda o mais utilizado no mundo inteiro
16
, tem
sido duramente criticado por diferentes setores sociais ao longo do tempo. Quando “a
pílula” foi lançada nos Estados Unidos, a época era de prosperidade econômica. Crescia
uma nova geração disposta a rebelar-se contra os valores de uma sociedade dita
moralista e conservadora. Seus ídolos pregavam
novas
atitudes e perspectivas. Novos
padrões de comportamento valorizavam o espontâneo, o descompromisso
e a
liberalidade generalizada.
Com o agravamento da crise econômica e social que o mundo vem enfrentando
nas últimas décadas, passamos a conviver com toda sorte de incertezas. Como
consequência, verifica-se a competitividade desenfreada nos mais diferentes âmbitos da
vida. Como dissemos anteriormente, quando não mais garantias ou regras claras a
seguir, não basta mais ser bom: é preciso ser ótimo. Temos hoje como modelo o sujeito
empreendedor que se esmera na gestão de si como se fosse, ele próprio, um produto
cujo objetivo é ser bem sucedido. Entretanto, não mais apenas o sucesso é imperativo,
mas também a felicidade.
Em tempos de neoliberalismo, a felicidade, como parte da engenharia individual
de cada um, também parece ser mandatória. Para atingi-la o sujeito sai em busca da
miríade de ofertas que se apresentam. Nas palavras de Birman (2010, p. 34) “o projeto
de construção da felicidade humana ultrapassou agora um limiar fundamental e foi
enunciado como possível para todos os indivíduos”. estratégias de felicidades à
disposição de todos, independentemente de suas condições sociais ou financeiras.
para todos os gostos. O importante é apostar todas as fichas em si, promovendo e
ampliando seu valor social. Pode-se dizer que hoje certa anormalidade percebida em
relação àqueles que se afastam desta busca.
16
http://lqes.iqm.unicamp.br/canal_cientifico/pontos_vista/pontos_vista_divulgacao38-1.html acesso em
novembro de 2010.
24
Tendo estes princípios de sucesso e felicidade como alvos, outro importante
lançamento da indústria farmacêutica prometeria revolucionar a conduta sexual do
homem atual. O Viagra, famoso comprimido azul completou em 2010, doze anos de
mercado no Brasil. São várias as mensagens contidas em material promocional da Pfizer
que parecem endereçar as exigências do sujeito empreendedor característico da pós-
modernidade. Em catálogo publicitário, dirigido exclusivamente ao público médico, lê-
se o texto a seguir: “mais do que um diferencial, um desejo alcançado”. O material de
divulgação que acompanha a divulgação deste medicamento traz uma pirâmide
(adaptada de teorias de administração), dividida em três fases. A base é chamada de
“máxima rigidez de ereção”. A fase intermediária é denominada “confiança e
autoestima”. O topo da pirâmide recebe o nome de “satisfação”.
Em pesquisa citada pela campanha, homens e mulheres selecionados pelo
laboratório, teriam respondido a respeito daquilo que consideram importante numa
relação sexual. 87% das mulheres e 94% dos homens dizem ser a ereção indispensável
para um desempenho sexual satisfatório. Portanto, se o que importa é o bom
desempenho, a rigidez é o objetivo primário do medicamento e é desta maneira que ele
é promovido junto aos profissionais de saúde. Viagra promete rigidez grau 4,
“completamente duro e totalmente rígido”
17
. O material apresenta o relato da opinião de
algumas mulheres que tiveram relações com usuários de Viagra. 95% delas declararam
preferir que seus parceiros dessem continuidade ao tratamento com a sildenafila,
substancia contida na pílula azul.
Com a emancipação feminina através da pílula e a suposta solução para o
problema de ereção masculina, parece haver hoje uma lacuna a ser preenchida, um algo
a mais que se faz necessário nas relações sexuais. Um up na performance, como se dois
corpos não mais fossem capazes de trazer as satisfações e prazeres esperados. Como se
houvesse uma espécie de cansaço nas atividades sexuais “básicas”, cotidianas. Os
parceiros estão em busca de kits que lhes permitam potencializar prazer, reduzir a
monotonia das relações de longa duração, ou apenas mostrarem-se felizes e bem
sucedidos por dominarem novas táticas que possam ampliar o prazer da experiência
sexual.
17
De acordo com material promocional Pfizer, grau 1 significa “maior, mas não rígido”; grau 2: “rígido,
mas não o suficiente para penetração”; grau 3: “rígido o suficiente para penetração, mas não
completamente rígido”.
25
Reconhecendo a avidez destes consumidores por desempenhos ultra-humanos e
performances superdimensionadas, suas pré-disposições ao empreendedorismo no
aprimoramento constante das suas próprias identidades, mercadoriza-se a esfera sexual
de modo que os atributos ditos naturais já não sejam considerados suficientes. Em
qualquer idade e para qualquer um, não basta ser atraente, ativo e disponível. Além do
corpo turbinado por exercícios e próteses de todo tipo, é preciso constituir-se como um
verdadeiro atleta sexual, apropriando-se de saberes e recursos antes restritos a
profissionais do ramo. A constituição do sexual como arena de mercado pode ser
constatada em todos os momentos, nos mais diversos ambientes. Ela é visível,
sobremaneira, no discurso midiático. Bebendo na fonte do ideal contemporâneo,
oferecem-se os benefícios desejados como decorrência da aquisição de todo o tipo de
produtos e serviços, por meio de chamadas como: “Seja (a) melhor”, “Não decepcione
seu/sua parceiro(a)”, Guia sobre orgasmo para mulheres modernas”, “A arte do
pompoirismo: explore com maior intensidade a própria satisfação sexual”, “Por que
conformar-se com a média? Seja maior, mais rígido, mais intenso”
18
.
Consideremos como emblemática deste processo que estamos denominando a
mercadorização do sexual a proliferação e transformação de sex shops nas grandes
cidades brasileiras nos últimos anos. Uma simples busca por esta palavra-chave na
Internet traz 1.140.000 resultados, apenas no Brasil
19
. A entidade SEBRAE (Serviço de
Apoio às Micro e Pequenas Empresas) estima que o investimento inicial para
estabelecer esse tipo de negócio seria da ordem dos R$ 80.000,00
20
. Em artigo
oportunamente intitulado “Dicas para abrir um sex shop”, a revista Pequenas Empresas
& Grandes Negócios
21
sugere que o empreendedor considere oferecer palestras, cursos
e eventos no espaço de vendas, a fim de “incrementar a receita”. Contando com o
endosso de especialistas da área da saúde, esse tipo de iniciativa complementaria o
negócio, atraindo e expandindo a clientela.
O negócio sex shop parece estar deixando as escuras esquinas noturnas e seus
luminosos de neon a fim de se submeterem às práticas do varejo cotidiano, como
18
Títulos de alguns e-mails recebidos pela pesquisadora durante o período da pesquisa deste projeto.
19
Acesso em 17/12/2010, em www.google.com
20
http://www.sebrae-sc.com.br/ideais/default.asp?vcdtexto=2581 acesso em janeiro de 2011.
21
http://revistapegn.globo.com/Revista/Common/0,,EMI86718-17180,00-
DICAS+PARA+ABRIR+UMA+SEX+SHOP.html acesso em janeiro de 2011.
26
programas promocionais, manutenção de cadastro de clientes, ações de e-mail
marketing
22
, entre outros.
No final de 2009, a Erótika Fair, feira semestral que congrega os negócios de
sex shop em São Paulo, lançou o primeiro volume do Guia de Negócios Sex Shop. Diz a
autora do guia que a ideia surgiu a partir de um pedido do SEBRAE de Minas Gerais
23
.
O segundo volume do Guia está em fase de redação e deverá contemplar abertura e
administração de lojas virtuais. Nas palavras da autora, Paula Aguiar, ela deseja que
“todos possam empreender em vez de aventurar-se”. Por que aqui também, o
empreendedorismo não deveria levar ao sucesso?
Retomando o consumidor, seus desejos, necessidades e desafios constantes,
arriscamos dizer que um desempenho sexual impecável, além do esperado, configura o
leque de predicados exigidos em uma sociedade que cultua os que por alguma razão se
situam muito acima da média. Ehrenberg (2010, p. 29) afirma que “o mundo dos iguais
é aquele da massa anônima e indiferenciada”, ou seja, exatamente o espectro ao qual
não queremos pertencer. A conduta da massa não desperta atração ou cobiça. O que é
desejável é a performance diferenciada, desempenho e desenvoltura muito
extraordinários, algo que possa ser exibido por todos e por cada um. Estimula-se o
consumo de todo o tipo de produtos eróticos na luta cotidiana contra a insegurança
acerca do próprio desempenho. Sex toys, acessórios, lingerie provocante, práticas como
strip tease, dança do ventre, pompoirismo e pole dancing prometem novos e irresistíveis
prazeres e tornaram-se um must para indivíduos de qualquer idade e posição social.
Para além da proliferação dos sex shops na vida cotidiana, impossível não
observar a tematização do sexual na mídia, bem como sua crescente e massiva presença
nas últimas décadas.
22
A loja Revelateurs, uma sofisticada loja de lingerie com um sex shop, chamada de Boutique Erótica, no
fundo de sua loja mantém cadastro atualizado, oferecendo, através de ações de e-mail markerting
promoções sazonais, palestras, cursos, descontos especiais, etc. (www.revelateurs.com.br) a mais
recente inovação deste varejo localizado em bairro nobre de São Paulo (Moema), é, na home page a
escolha pela visualização da “posição do dia”. Ao clicar em “posição do dia”, o menu que segue sugere
uma posição sexual.
23
http://culturadigital.br/erotismo/2010/01/08/guia-de-negocios-sex-shop-nos-sebraes/ acesso em janeiro
de 2010.
27
1.3 A TEMATIZAÇÃO DO SEXUAL NA MÍDIA
Em 1967, uma edição da revista REALIDADE
24
foi recolhida das bancas por
estampar fotos de um parto natural. Exigia-se naquela época que veículos midiáticos
tratassem com pudor temas relacionados à sexualidade feminina, de modo a não ferir as
susceptibilidades do público. A retirada da revista das bancas foi feita a pedido do
Juizado de Menores. A matéria tratava ainda de assuntos tabu, tais como infidelidade,
sexo, virgindade, casamento e aborto. O conteúdo havia sido considerado “indigesto”
pelos representantes da lei. A edição foi liberada após 20 meses, período pelo qual se
arrastou o processo solicitado pela Editoria Abril
25
.
Saltando diretamente para o ano de 2010, constatamos que a revista semanal
ÉPOCA
26
, traz em sua capa o texto da matéria principal: “O Ministério da Saúde
recomenda: faça sexo A verdade sobre os efeitos de uma vida sexual ativa na sua
saúde”. A chamada da capa está relacionada a um depoimento de José Gomes
Temporão, então ministro da saúde, durante evento organizado para o lançamento de
uma campanha nacional de combate à hipertensão arterial. Durante entrevista concedida
à imprensa, Temporão enumerou alguns hábitos que ajudam a prevenir esta doença
crônica, que é um dos maiores desafios da saúde pública em todo o mundo. Disse o
ministro: “Dançar faz bem para reduzir a hipertensão. E fazer sexo também”. Segue o
ministro “além de cinco porções diárias de frutas, legumes e verduras transar cinco
vezes por dia. Não, isso não me parece razoável. Por semana, seria melhor”.
Comentando o depoimento do ministro, os jornalistas responsáveis pela reportagem
destacam que parece animador “que uma atividade prazerosa a mais prazerosa
oferecida pelo corpo humano – seja fonte de saúde”.
24
Publicação mensal da Editora Abril, criada em 1966, em plena ditadura militar, que foi publicada até
1978, apesar de ter sido obrigada a se reinventar a partir de 1968 com a chegada do AI-5.
25
http://www.canaldaimprensa.com.br/canalant/nostalgia/trint8/nostalgia1.htm acesso em 17/01/2011.
26
Edição da Revista ÉPOCA de 01/05/2010
28
Figura 2: Capa da Revista ÉPOCA, edição 624, de 01/05/2010.
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EGG0-15210-2,00.html acesso em dezembro de
2010.
Esta maior desenvoltura no tratamento do tema da sexualidade parece fazer
sentido. Apesar de ainda haver resistências a referências mais explícitas; da falta de
unanimidade quanto ao que seria ou não adequado, percebe-se uma clara liberação dos
modelos familiares antes predominantes. Comentando sobre a centralidade da mídia e
do consumo na pós-modernidade, o estudioso Don Slater (2002, p. 200) afirma:
“A cultura do consumo pós-moderno pode ser tratada como se
fosse uma espécie de desconstrucionismo no interior da vida
cotidiana, e que pode ser apresentada como se fosse um agente
da verdade e da desmistificação que arrebenta bolhas míticas,
dissolvendo unidades falsas e solapando a crença popular em
alicerces e certezas que endossavam a opressão. No limite, o
pós-modernismo diz que os sujeitos estão sendo liberados das
certezas (falsas) que a modernidade oferecia, assim como a
modernidade oferecia liberação das certezas da sociedade
tradicional”.
Considerando-se as palavras acima, constatamos que a tematização do sexo, que
muito tem suscitado acalorados debates, conquista um crescente espaço na mídia.
Sua presença é quase obrigatória nos diversos gêneros de produtos midiáticos,
funcionando como ferramenta de atração de interesse do público consumidor.
Assistimos a consolidação da esfera sexual como arena onde se enseja o consumo de
uma vasta gama de produtos, relacionados diretamente às práticas sexuais ou não.
Esta presença maciça do sexo na dia foi observada por Douglas Kellner em
texto sobre a cultura midiática atual. Citando o autor (2001, p.133): “O erotismo tem
29
invadido frequentemente os espetáculos da cultura ocidental e a sexualidade erotizada
tem sido usada para vender todo tipo de produto.”.
Os diversos aspectos relacionados ao sexo, erotismo, práticas sexuais, sempre
estiveram vinculados a determinadas condutas morais. Durante séculos coube,
principalmente às religiões de fundo judaico cristão, ditar regras sobre o que seria ou
não permitido. Hoje percebemos certo desregramento, tanto na esfera das práticas
cotidianas quanto no tratamento midiático da sexualidade.
Desse modo, dos cuidados do corpo à sua exposição a fim de expressar
sensualidade, as tramas envolvendo a sexualidade desde personagens de novela, objetos
e serviços estimuladores e potencializadores de práticas sexuais, até os escândalos
relacionados à vida íntima de celebridades: tudo está à disposição dos interessados. O
sexual parece ser um assunto sempre atual e controverso, que se apresenta multifacetado
na contemporaneidade. Convivem transgressões, moralismo e até mesmo certo
fundamentalismo em relação a essa complexa temática.
O erotismo parece ser o mote que tem tido lugar de destaque no discurso
midiático. Como exemplo, podem ser citadas diversas emissoras de TV que
diariamente dedicam partes de sua programação a pautas relativas à sexualidade e ao
erótico. Frequentemente estes programas e outros conteúdos midiáticos o legitimados
por indivíduos das mais diversas áreas. São modelos, artistas, médicos, políticos, líderes
de opinião diversos, que se apresentam aptos a contar, a uma audiência em constante
busca de referências para novas ações empreendedoras e formações identitárias, algo
ainda que ainda não seja de domínio público, a respeito de práticas sexuais “da moda”,
mais eficientes, irresistíveis, que entreguem um melhor desempenho.
Parece haver uma busca frenética por parte da audiência por novos modelos de
subjetividades e por eficazes modos de “ser” e “estar” no mundo. Visibilidade,
aparência são valores o apenas desejados, porém exigidos. Paula Sibilia (2008, p. 90)
chama este fenômeno de “tiranias da visibilidade”. Transformações econômicas, sociais,
políticas e culturais que presenciamos nas últimas décadas, entre outros efeitos, fizeram
com que as certezas existentes sobre determinados valores desmoronassem. Com isto,
ainda de acordo com Sibilia (idem) “visibilidade e aparências balizam, com uma
insistência crescente, a definição do que é cada sujeito”.
A presença maciça do sexo na mídia seria um destes sinais de mudança,
reinventando valores, comportamentos, subjetividades e consumidores. Paula Sibilia (p.
30
109) ao expressar esta relação entre consumo, centralidade midiática e sexualidade
exposta diz: “O homo privatus” se dissolve ao projetar sua intimidade na visibilidade
das telas”, ou seja, nesta dissolução, novas ideias de subjetividades disponibilizam-se,
criando e recriando configurações do “eu”.
Servimo-nos de Bauman (2001 p. 87), para reforçar nossa compreensão desta
busca de um aperfeiçoamento constante de si. Diz o autor “há muitas áreas em que
precisamos ser mais competentes, e cada uma delas requer uma compra. Compramos
para parecer, compramos para melhorar a impressão de quem nos consome”.
Reiteramos que a principal argumentação deste nosso estudo sugere que atualmente
também na esfera das práticas sexuais mais cotidianas, tudo se transformou em
mercadorias que devem ser consumidas com o objetivo principal de transformar o
indivíduo em um “performador” superior e, portanto, mais atraente e desejável para o
consumo no competitivo mercado das subjetividades contemporâneas.
De 1967 (Revista REALIDAE) a 2010 (Revista ÉPOCA), passaram-se 43 anos.
Neste período, quase meio século, não foram poucas as mudanças a respeito da
discussão e da exposição da temática da sexualidade. Em 2001, entra em cartaz, pela
primeira vez, uma peça teatral chamada “Os monólogos da Vagina”. Também em 2001,
no Rio de Janeiro, é lançada a peça Diálogos dos Pênis”. Porém, foi necessário, antes
disto e, para abrir caminho, que outras tentativas bem ou mal sucedidas acontecessem,
como por exemplo, a montagem do musical Hair em plena ditadura militar, em 1968,
que desagradou à censura pelos nus que apresentava, ou ainda o programa
“Comportamento sexual” da sexóloga Marta Suplicy, que, apesar de ter permanecido
“no ar durante cinco anos (foi apresentado de 1981 a 1986), acabou sendo
interrompido após este período. O programa tratava, entre outros, de temas como:
orgasmos, menstruação e impotência.
31
Figura 3: Marta Suplicy apresentando o programa Comportamento Sexual na Rede Globo, os anos 80.
Fonte: http://tvbau.blogspot.com/2010/01/1980-novo-tv-mulher.html acesso em janeiro de 2011.
Nilton Travasso
27
era o diretor responsável pela equipe não somente do
programa de Marta, mas também da chamada TV Mulher. Este era um programa de
variedades voltado para o público feminino e foi o primeiro horário televisivo da
emissora dirigido para a mulher moderna, à diferença das produções anteriores, cujo
público alvo era composto pelas tradicionais “donas de casa”
28
. A pauta de toda a
programação da TV Mulher era debater a evolução do perfil da mulher brasileira, o que
pareceria algo ousado e arriscado para a época.
De acordo com o depoimento do executivo, quando estreou, Marta recebia dois
tipos distintos de correspondência de seu público: “as tímidas” e as “agressivas”, sendo
estas últimas cartas com ofensas e grosserias dirigidas à apresentadora, incluindo-se aí
censura aos temas abordados durante a programação. Ainda assim, mesmo nos anos
1980, nota-se uma evolução. De acordo com o diretor do programa, em 1983, dois anos
após a sua estreia, a correspondência que chegava à emissora poderia ser chamada de
“corajosa”, pois já não continha protestos e era mais assertiva
29
.
27
Entrevista cedida por Nilton Travasso no site Memória Globo -
http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273-249786,00.html acesso em julho
de 2010.
28
http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273-249786,00.html acesso em
janeiro de 2011.
29
O programa tinha uma audiência diária média de dois milhões de pessoas. “Comportamento sexual”
foi ainda vítima do grupo conservador das Senhoras de Santana, que chegou a fazer manifestações em
frente à emissora. (http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273-249786,00.html
acesso em 13/06/2010) e (http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=263ASP030
acessado na mesma data).
32
Em 2003, estreia no Brasil, no canal de TV a cabo GNT, pertencente ao Sistema
Globo de Televisão, um programa apresentado por uma septuagenária canadense,
intitulado: Falando sobre Sexo com Sue Johanson. De acordo com o Observatório da
Imprensa, seis meses após sua estreia, este programa perdia em audiência para o
programa Saia Justa, líder de audiência também no GNT. Bastante diferente de Marta
Suplicy, a apresentadora canadense recebe cartas de seus telespectadores norte-
americanos sobre temas ousados como sexo oral, odores, masturbação, dentre outros.
As explicações da apresentadora são acompanhadas do manuseio de reproduções de
pênis e vaginas, a fim de torná-las mais elucidativas.
Figura 4: Sue Johanson durante seu programa, manuseando um vibrador.
Fonte: http://decibelonline.blogspot.com/2008/10/esta-madrugada.html acesso em janeiro de 2011.
Figura 5: Sue Johanson com toy recomendado para iniciantes na prática de sexo anal.
Fonte:
http://www.gazette.uwo.ca/article.cfm?section=Arts&articleID=2023&month=9&day=5&year=2008
acesso em janeiro de 2011.
Nascida em 1930, a simpática senhora apresenta-se como enfermeira e
educadora sexual por formação. Teria chegado ao sucesso atual após ter aberto, ainda
nos anos 1970, a primeira clínica de controle de natalidade no Canadá e em seguida
iniciar-se na carreira de professora. Suas aulas e palestras, com bom humor e franqueza
a respeito de um tema ainda visto na época como tabu, lotava classes e auditórios.
33
Durante 14 anos (de 1984 a 1998), Johanson teve um show de rádio, com uma hora de
duração, no qual recebia telefonemas dos ouvintes interessados em elucidar dúvidas a
respeito de suas práticas sexuais. Em 1985 seu programa migra para a televisão local e
em 1996 transforma-se em um programa nacional. Em 2002, já no formato atual de Talk
sex with Sue Johanson estreia na TV americana, cobrindo os temas amor,
relacionamentos e vida sexual. Hoje, além da América do Norte e Brasil, seu programa
é recebido por mais de 20 países na Europa e seus telespectadores seguem fazendo
chamadas telefônicas com perguntas relacionadas a ereção, controle de natalidade,
gravidez, doenças sexualmente transmissíveis, entre outros temas. No último segmento
de seu programa, Sue traz o módulo Hot Stuff Bag. Trata-se da apresentação, a cada
show, de um novo sex toy disponível no mercado. Aludindo a testes supostamente
realizados por sua equipe, Sue enumera os prós e contras do produto, conferindo-lhe
uma nota que varia de 1 a 4.
Fazendo uso de sua credibilidade em assuntos relacionados a sexo e práticas
sexuais, Sue Johanson tornou-se uma referência em matéria de sex toys. Esta reputação
é apropriada para fins comerciais, conforme constatamos em uma página de venda de
produtos eróticos na Internet
30
. Diferente de outros sites de venda de produtos eróticos,
este não apresenta qualquer imagem, título, cores ou identificação de que se trata de
uma loja virtual de produtos eróticos. Em tons sóbrios entre bege, branco e cinza, a
página principal do site traz a foto de Sue Johanson, fatos sobre sua carreira, o alcance
de seu programa televisivo e, finalmente, os testes e classificações atribuídas por ela aos
diversos brinquedinhos eróticos. A sobriedade do website pretende transmitir uma
seriedade no tratamento deste tipo de mercadoria, o que não é comum neste segmento
do mercado. Com uma aparência mais técnica do que apelativa ou erótica, que parece
querer demonstrar que nesta página faz-se “negócio”, grande parte dos produtos
exibidos traz como endosso a foto de Sue, seu comentário e a nota atribuída a cada um.
Em sua gina principal, Distinctive Toys declara seu orgulho em ser o
patrocinador do programa Talking sex with Sue Johanson, ressaltando o fato de ser o
único distribuidor de acessórios legitimados pela especialista. Encerra o texto com um
30
O website www.distinctivetoys.net, apresenta-se em sua home page como Sex Toys recommended by
Sue Johanson, acesso em outubro de 2010.
34
call to action
31
que resume integralmente sua proposta comercial: “Compre aqui com
confiança”.
Figura 6: Home page da loja virtual DistinctiveToys, onde são encontrados os sex toys recomendados
por Sue Johanson
Fonte: www.distinctivetoys.net acesso em janeiro 2011
Voltando a examinar a mudança no tratamento midiático relacionado a temáticas
ligadas à sexualidade, observamos a série televisiva Sex and the City, que após
conquistar legiões de espectadores em todo o mundo, foi transposta com relativo
sucesso para o cinema de Hollywood. Lançado pela emissora a cabo HBO em 1998, e
transmitido no Brasil pela emissora a cabo Multishow (também do grupo Globo) revela
a vida social de quatro mulheres solteiras, liberais, profissionais de sucesso, entre 30 e
50 anos, na cidade Nova York, abordando assuntos relacionados à promiscuidade
sexual, doenças sexualmente transmissíveis e sexo seguro, tendo como pano de fundo as
relações amorosas, os prazeres, angústias e as conquistas das protagonistas.
Os atuais telespectadores da série provavelmente não imaginam a censura que
seu conteúdo teria sofrido apenas algumas cadas atrás. Podemos afirmar que um
programa como Sex and the City é atualmente uma realidade graças ao enfraquecimento
de certas tradições morais, ou ao menos à perda de monopólio destas tradições como
lugares de veiculação de verdades absolutas. Comentando sobre este tema, o teórico J.
31
No campo do marketing, mais notadamente na área das suas estratégias de comunicação, chama-se call
to action aquela mensagem com tom imperativo que tem como objetivo conduzir o consumidor a uma
tomada de decisão, sempre apresentada como vantajosa.
35
Thompson afirma que “a partir do momento em que as práticas tradicionais são
chamadas a se defender, estas perdem o status de verdades inquestionáveis” (2008, p.
162).
No nono capítulo da primeira temporada da rie, intitulado “A tartaruga e a
lebre”, Miranda, personagem vivida pela atriz Cynthia Nixon, apresenta à sua amiga,
Charlotte, um vibrador especial denominado rabbit
32
. O produto recomendado pela
personagem é comprado pela amiga, ainda que esta reconheça que seu valor de venda é
elevado
33
. De posse da nova aquisição, Charlotte transforma-se em uma usuária voraz
de seu brinquedo, negligenciando inclusive suas saídas noturnas com as amigas. Com
isto o programa enfatiza, entre outros, o quanto o alto custo financeiro do vibrador pode
ser compensado pelo prazeroso valor simbólico do mesmo produto.
Atualmente, o toy de Miranda e Charlotte, parece ser um sucesso de vendas
34
. O
produto é vendido na seção de Health and Personal Care (Saúde e Cuidados Pessoais)
da loja virtual Amazon, o que parece transmitir a idéia de que tais acessórios contribuem
positivamente para promover o bem estar e a boa saúde de seus (suas) usuários (as). Na
descrição do produto, além da referência a respeito de ser este o vibrador apresentado
no seriado televisivo, ele é recomendado para mulheres que têm consciência a respeito
da qualidade daquilo que consomem. De olho nas novas adeptas, a descrição do produto
enfatiza ainda ser este o modelo recomendado para as usuárias que jamais fizeram uso
de um vibrador.
Como no processo de venda de quaisquer outros produtos de consumo,
ressaltam-se para o rabbit os supostos benefícios do acessório. As informações aludem
a uma genealogia deste tipo de produto
35
e realçam a qualidade do design e motor
32
A referência à palavra coelho deve-se ao fato de que este vibrador tem um estimulador clitoriano no
formato de um par de orelhas de coelho
33
http://www.youtube.com/watch?v=9G0sCbJ6qrE acesso em 14 de julho de 2010. O brinquedo é
apresentado em uma loja, e tem o seu preço divulgado US$ 92,00. Percebe-se de início certa rejeição
devido ao preço elevado. Ao ser retirado da embalagem, surge em primeiro plano o fascínio despertado
nas personagens envolvidas na cena.
34
É vendido, entre outros locais, na loja virtual Amazon por US$ 41,10, traz 59 comentários atribuídos a
compradores, sendo que 56 % deles dão a nota máxima ao produto (5). Outros 24 % dão nota quatro e
apenas 15 % dão a nota mínima (1), o que pode indicar ser o produto um best seller, não apenas por estar
à venda ainda após 12 anos de seu lançamento, como também pela quantidade de avaliações positivas
recebidas de seus usuários.
35
“resultado de séculos de exploração de prazeres sexuais dos japoneses”, o texto informa que o produto
seria derivado da arte de se reproduzir rostos de seres humanos e de animais em sex toys, desde a época
dos Shogun quando era proibida a reprodução de órgãos genitais masculinos.
36
silencioso, mencionando de modo factual a quantidade de pilhas necessárias para o seu
funcionamento. O texto encerra com o call to action: “Experimente um e sinta a
diferença. Este é o vibrador escolhido por muitas celebridades”
36
.
Figura 7: Vibrador Rabbit, citado no seriado Sex & the City.
Fonte: http://skinnymoose.com/health/?cat=1120 acesso em outubro de 2010.
A aparição deste vibrador no seriado não acontece por acaso. Afinal é sabido
que os discursos midiáticos não são ingênuos. Nas palavras de Kellner (2001, p. 123),
“os produtos da cultura da mídia não são entretenimento inocente, mas têm cunho
ideológico”. Parte desta ideologia parece conter elementos do que aqui está sendo
denominada a mercadorização do sexual, perceptível nos textos midiáticos examinados
neste estudo.
Parece haver um interesse, por parte dos produtores dos conteúdos, em não
apenas comercializar certos produtos propriamente ditos como, sobretudo, em construir
sentidos sociais que enfatizam sua importância para uma eficaz gestão de si. Cabe
refletir sobre a construção destes sentidos simbólicos, uma vez que os discursos da
mídia permeiam, orientam, modulam, ensejam certos tipos de comportamento
sociocultural, dentre os quais estão situadas as diversas práticas de consumo.
Kellner ensina que “a cultura da dia é vista como um terreno de disputa que
reproduz, em nível cultural, os conflitos fundamentais da sociedade” (2001, p.134). O
autor reforça este pensamento quando apresenta a noção de “horizonte social” (2001,
36
http://www.amazon.com/Vibratex-10-4-Rabbit-Habit-Vibrator/dp/B00005NAUI - acesso em 14 de
julho de 2010.
37
p.137), a qual se refere “às experiências, às práticas e aos aspectos reais do campo social
que ajudam a estruturar o universo da cultura da mídia e sua recepção” (idem).
Finalmente, o autor conclui afirmando que a “cultura veiculada pela mídia divulga
imagens e cenas poderosas em termos de identificação que podem influenciar
diretamente o comportamento, criando modelos de ação, moda e estilo” (2001, p.142).
Os interesses existentes por parte dos produtores de conteúdo midiático em
apresentar artigos diversos em forma de sentidos sociais e simbólicos encontram eco
também na indústria de bens de consumo. Néstor Garcia Canclini (1999, p. 76) lembra
que a comunicação não é eficaz se não inclui também interações de colaboração e
transação entre uns e outros”. Parece-nos que o autor se refere à mercadorização, ao
incentivo ao consumo.
Nas palavras de Garcia Canclini (1999, p. 78), “é inegável que as ofertas de bens
e a indução publicitária de sua compra não são atos arbitrários”. Continua o autor (1999,
p. 83) “comprar objetos, atribuir-lhes funções na comunicação com os outros, são os
recursos para se pensar o próprio corpo, a instável ordem social e as interações incertas
com os demais”. São práticas inerentes aos seres humanos. Assim como a linguagem, os
objetos simbólicos são códigos de comunicação entre as pessoas. Usar, possuir,
conhecer, têm significados e estes significados devem ser transmitidos, propagados aos
grupos de referencia escolhidos pelos indivíduos. Canclini talvez queira nos lembrar do
conceito de sociedade do espetáculo, onde exposição e performance são as concretas
possibilidades que o sujeito tem de se promover junto à cena social. Se avaliações sobre
as identidades dependem de olhares e palavras dos outros, importa sobremaneira como
nos mostramos aos outros, e isto é feito, entre outros, através de práticas de consumo e
dos símbolos eleitos por e para cada indivíduo.
Se de fato podemos dizer que é em torno do consumo simbólico que a sociedade
civil tem se organizado, a classificação de vibradores como aparatos de cuidado pessoal
e saúde parece estar em consonância também com as recentes iniciativas de uma das
maiores indústrias eletroeletrônicas do mundo, a Philips
37
. Em setembro de 2008, esta
empresa de origem holandesa que se apresenta como “uma companhia de Saúde e Bem
37
Presente em mais de 60 países. http://www.philips.co.uk/about/company/companyprofile.page acesso
em junho de 2010.
38
Estar, focada em aprimorar a vida das pessoas através de inovações constantes”
38
anunciou o lançamento de uma nova linha de produtos.
Foi sob a responsabilidade da sua recém-criada área de Relationship Care, ou
“cuidados da relação”, que, por sua vez funciona supervisionada pela divisão de
Cuidados Pessoais (Personal Care), que a Philips lançou diferentes massageadores
íntimos, após ter elaborado pesquisas de mercado que teriam confirmado que esta
iniciativa ocorria em momento oportuno. A pesquisa teria ainda indicado dois outros
aspectos relevantes: na Inglaterra, 35% do público adulto consideraria fazer uso de um
acessório íntimo se este fosse desenhado para ser utilizado por casais (ao invés do uso
individual, prática mais difundida no mercado). O mesmo estudo teria apontado uma
propensão por parte dos potenciais consumidores a experimentar este tipo de produto se
eles pudessem ser comprados em canais de distribuição menos constrangedores
39
do que
os tradicionais sex shops.
Coerentemente, o novo massageador é apresentado no site de vendas on line da
Philips inglesa
40
como um brinquedinho (sex toy) exageradamente qualificado como
“o mais satisfatório” para casais. Também atendendo às expectativas reveladas pelas
pesquisas de mercado que precederam este lançamento, a distribuição é complementada
por meio da rede inglesa Boots, com lojas (drugstores) de grande circulação em todo o
país. A linha completa consiste de três produtos: massageador individual (vendido em
embalagem que acompanha três velas), o mesmo produto em versão econômica (sem as
velas) e, como top de linha, a dupla de massageadores para casal (his and hers
41
). Todos
os três aparelhos exploram os benefícios oferecidos, a partir do discurso da sedução,
estímulo, aumento dos momentos de prazeres íntimos. “Relaxe, aproveite e deixe a
viagem começar”, é o call to action nas páginas de vendas
42
.
38
No original: is a diversified Health and Well-being company, focused on improving people’s lives
through timely innovations.
39
http://gizmodo.com/5048863/philips-intimate-massager-sex-toys-get-detailed-in-pics acesso em junho
de 2010.
40
http://shop.philips.co.uk/store/rpeeub2c/DisplayHomePage acesso em junho de 2010.
41
Dele e dela.
42
No original: Philips Intimate Dual Massagers help couple's to explore new ways to seduce and
stimulate each other with this pair of intimate massagers for him and her. Both massagers are designed
to enhance your most intimate moments of pleasure together. Relax, enjoy and let the journey begin...
39
A informação acerca dos benefícios desses massageadores enfatiza que foram
desenvolvidos para uso em corpos femininos e masculinos, explorando de modo
didático os pontos de estimulação sexual, o prazer erótico, áreas íntimas, carícias e
zonas erógenas. Válido para os dois aparelhos, aspectos práticos e técnicos também são
comunicados factualmente: “quatro modos de vibração”, “perfeitos para explorar e
brincar”; “compatíveis com óleos lubrificantes”, “fáceis de limpar”, “embalagem
discreta para recarga sem fio e armazenamento” e, finalmente, “material macio e
sensual”.
Figura 8: Website da Philips, tela de apresentação do massageador.
Fonte: http://www.philips.co.uk/c/-/for-him-and-her-hf8420_00/prd/. Acesso em janeiro 2011.
Parece-nos particularmente estratégico o fato de que na loja virtual da Philips
estes produtos são comercializados no mesmo ambiente em que são vendidos outros
produtos como aparelhos de TV ou escovas de dente elétricas. Apresentado como um
acessório ligado à saúde e cuidados pessoais, evita-se conotações que podem tornar o
erótico constrangedor para o consumidor habituado à marca. A estratégia parece ter
como objetivo, ainda, atrair o consumidor não afeito aos sex shops ou aos sites que
explicitamente comercializam conteúdo dito erótico.
40
Figura 9: Website Philips UK, onde os massageadores sensuais são apresentados em meio aos demais
produtos da linha de Cuidados Pessoais da empresa.
Fonte: http://www.healthcare.philips.com/gb_en/products/index.wpd acesso em janeiro 2011.
Um potencial comprador da rede Boots que tiver interesse em um
aprofundamento ainda maior sobre os produtos, ao clicar sobre “mais informações sobre
os massageadores da Philips”, será encaminhado a uma gina elaborada para sanar
dúvidas
43
. Está ali um vídeo
44
que explora os contornos e a ergonomia dos
massageadores, sem aparente conotação de erotismo. ainda um link que direciona o
internauta para o depoimento de Paula Hall, apresentada no site como uma sex expert.
Utilizando linguagem profissional que alude à fundamentação científica, sua promessa é
de que o uso dos massageadores proporcionará “novas experiências sexuais que podem
ajudar a reforçar a relação”. Utilizando terminologia científica, promete-se o incremento
do prazer por meio do aumento da produção de dopamina, o hormônio “feliz”,
responsável pela redução do stress
45
.
43
http://www.boots.com/en/Philips/Philips-Intimate-Massagers// acesso em 13 de junho de 2010.
44
Apenas com um áudio musical com duração de 1min44seg
45
http://www.boots.com/en/Philips/Philips-Intimate-Massagers/Expert-Advice/, idem.
41
Figura 10: Mapa das mais sensíveis “zonas de amor” femininas, disponível no site da Philips.
Fonte: http://www.philips.co.uk/c/sensual-massagers/19277/cat/Acesso em janeiro 2011.
Figura 11: Mapa das mais sensíveis “zonas de amor” masculinas, disponível no site da Philips.
Fonte: http://www.philips.co.uk/c/sensual-massagers/19277/cat/ Acesso em janeiro 2011.
Escrevendo sobre a relação entre a comunicação midiática e a formação de
subjetividade
46
, Suely Rolnik (2007, p. 3) constata que “não dá para parar de entregar-se
46
A vida na berlinda: “Como a mídia aterroriza com o jogo entre subjetividade-lixo e subjetividade-
luxo”. Revista Trópico, São Paulo.
42
ao assédio non stop dos estímulos”. A linguagem utilizada pela Philips para a venda de
seus massageadores nos parece ser repleta de assédios, assim como pressupõe a
linguagem publicitária. Mesclado ao assédio da mensagem estaria implícito que sua não
aceitação deve gerar certo receio, certas incertezas (afinal, o que poderia ocorrer ao não
se “reforçar a relação?”). No entendimento de Rolnik, o indivíduo que não adere aos
constantes estímulos estaria correndo o risco de não existir, caindo na indesejada
classificação das “subjetividades-lixo”
47
. Transforma-se em vítima do medo da morte
social, do medo de não poder se beneficiar da sensação do reconhecimento e da
admiração do outro, sensação tão prezada e disputada nos dias de hoje.
Faz parte deste mapa de sobrevivência social, como já vimos em Bauman
(2001, p. 91), a necessária disponibilidade de um corpo que viva sensações novas
48
. É
esta disponibilidade, aliada a uma permanente insatisfação e a uma busca de novas
experiências que a Philips parece esperar obter de seus potenciais consumidores de
massageadores íntimos. Estes potenciais usuários estão sendo convidados a fazer parte
de um mercado imenso, estimado pela empresa em um valor da ordem de 280 milhões
de euros
49
, apenas na Europa Ocidental. As taxas de crescimento estimadas para este
mercado estão entre 5 % e 15 %, o que parece justificar plenamente o investimento no
novo lançamento.
Nota-se por parte da empresa holandesa uma sincronia com os que os
profissionais de marketing denominam como tendências da contemporaneidade. É
provável que tenha sido graças ao sucesso de vendas dos massageadores que dois novos
acessórios tenham sido apresentados mais recentemente nesta mesma linha: um
lubrificante íntimo à base de água e um óleo para massagem, com sabor de fruta.
47
A autora classifica como “subjetividade-lixo” o contraponto, ou o lado de fora da “subjetividade-luxo”,
aquela formada pelo glamour das identidades prêt-à-porter.Trata-se de identidades formadas a partir dos
mapas das formas de existências sociais, assimiláveis e reconhecidas graças ao poder da mídia. A
“subjetividade-lixotem como cenário as guerras, favelas, violência, pobreza, desnutrição, enfim os que
não teriam acesso aos mapas de consumo e de existência social valorizada.
48
Nas palavras do autor: “estar apto significa ter um corpo pronto para viver sensações ainda não
testadas”
49
A Philips estima que o mercado para os “Cuidados da relaçãocomo um todo, teria sido de 70 milhões
de euros, apenas para a Inglaterra, conforme divulgado em sua página internacional de Relações com a
Imprensa
(http://www.newscenter.philips.com/main/standard/about/news/press/20080911_relationship_care.wpd
)
acesso em junho de 2010.
43
Deixando de lado, por ora, o ambiente industrial e retomando os veículos
midiáticos, outra evidência da presença mais explícita de conteúdo sexual e erótico nos
meios de comunicação de massa é o programa Papo Calcinha, lançado ao final de 2009
pelo canal de televisão Multishow
50
.
Nesse programa, quatro jovens mulheres (uma das quais se apresenta como
bissexual), conversam de modo franco e desenvolto sobre suas experiências com sex
toys, posições prediletas, partes do corpo mais erotizadas, limites para o primeiro
encontro, entre outros assuntos ligados à sexualidade. A proposta sugere ausência de
preconceito, o que parece ter sido bem aceito pela audiência. A mídia divulga que este
teria sido o programa mais visto da emissora até fevereiro de 2010
51
. A reportagem
refere-se a estudos preliminares que teriam apontado que os telespectadores “pediam
mais espaço para abordar a sexualidade na tevê”. Originalmente o público alvo focado
pelo programa seria formado por mulheres. Entretanto, segundo a mesma fonte, 62 % da
audiência seria masculina.
Mesmo no chamado horário nobre da televisão, espaço tradicionalmente
ocupado no Brasil pelas telenovelas, são exibidas cenas sugerindo grande naturalidade
em relação ao tema da sexualidade. Casais na cama podem ser vistos com frequência,
isso indica mudanças socioculturais que se refletem no espelho midiático. Paula Sibilia
(2008, p. 90) analisa este fato escrevendo que “após o desmoronamento daqueles muros
que separavam ambientes públicos e privados na sociedade industrial, torna-se visível
nada menos do que a intimidade de cada um e de qualquer um”. Cenas picantes podem
também ser encontradas nos chamados reality shows, programas de auditório e talk
shows, além de diversas campanhas publicitárias. A franca exibição da intimidade
parece expandir-se, tornando algumas campanhas audaciosas, fazendo corar os mais
tradicionais, ofendendo certos pudores.
50
O site da emissora anuncia o programa com o seguinte apelo: “quatro mulheres vão falar coisas que
ninguém poderia ouvir”, (http://multishow.globo.com/Papo-Calcinha/Materias/Papo-Calcinha-estreia-30-
11.html acesso em 13/06/2010
51
2,4 milhões de telespectadores já haviam visto o programa de acordo com a Revista Isto É (ed. 2101, p.
58).
44
1.4 A BÚSSOLA DAS CAMPANHAS PUBLICITÁRIAS
Em um mundo “desbussolado”, conforme citação anterior, a busca por rumos
pode se dar a partir de vários elementos. Um deles, mencionado por rios autores, é
o mundo da publicidade. Parte importante das estratégias de marketing é,
principalmente, através da publicidade a partir das quais são criadas novas demandas a
todos os momentos. Consumidores que jamais haviam pensado em determinados
produtos e/ou serviços, após serem impactados por uma mensagem publicitária, podem
passar a ter uma sensação de que sem aquele produto/serviço sua vida estaria com algo
faltando. Os sintomas podem se agravar caso o produto ou serviço em questão começar
a surgir na vida de outras pessoas do mesmo grupo social.
A publicidade não apenas ajuda a criar estas novas demandas, mas também
fornece kits de subjetividade. Também podemos contar a linguagem publicitária como
balizadora do que se anda fazendo, consumindo, praticando, nos grupos sociais de
interesse.
Como exemplo de campanha publicitária que funciona como uma espécie de
termômetro das sensibilidades atuais, examinamos um caso ocorrido em 2009. Em
setembro deste ano, a Alpargatas estreou na televisão um filme para os chinelos
Havaiana Fit. O comercial exibia como personagens avó e neta, esta em idade
aproximada de 25 anos, num encontro casual com o galã Cauã Raymond.
Em um primeiro momento, avó e neta discutem a adequação de se frequentar um
restaurante com chinelos no pé. Rotulada de atrasada” pela neta, a avó aprende que o
produto que a jovem tem nos pés não seria “um chinelo qualquer” e sim uma Havaiana
Fit, que pode ser usada em qualquer ambiente. Logo em seguida, entra no restaurante
Cauã Raymond. Ao vê-lo a avó diz à sua neta que ela deveria “arrumar um rapaz
assim”. Segue-se um diálogo no qual a neta responde: “mas deve ser muito chato casar
com um famoso, né?!”. Avó: ”mas quem falou em casamento? To falando em sexo!”.
Neta: “ah vó!” Avó: “depois eu é que sou atrasada?!”.
De acordo com publicação do Meio & Mensagem On Line
52
, parte dos
telespectadores sentiu-se ofendida pelo tom inesperado e ousado da conversa. Segundo
a matéria uma suposta “ala conservadora” teria feito reclamações junto às partes
52
http://www.mmonline.com.br/noticias.mm?url=Apos_reclamacoes__Havaianas_tira__sexo__da_TV –
acesso em 14 de julho de 2010
45
envolvidas: agência publicitária
53
, anunciante e CONAR. Entidade fundada por
publicitários em 1980, o Conselho de Auto-regulamentação Publicitária (CONAR) se
define como uma organização não governamental que visa impedir que a publicidade
enganosa ou abusiva cause constrangimento ao consumidor ou a empresas
54
.
Julgada pelo CONAR em novembro de 2009, a campanha das Havaianas teria
tido como principal queixa o fato de a avó estimular a neta à prática de ato sexual sem
compromisso e sem a menção da segurança necessária”. As denúncias afirmam que o
“comercial seria inadequado por constituir apelo excessivamente malicioso e contrário
aos valores socioeducativos”
55
.
Segundo Bauman (2001, p. 72) “se alguma vez na história os valores foram
abraçados em termos absolutos, isso certamente não é o que acontece hoje”. O autor
propõe demonstrar as dificuldades existentes para que se possa encontrar as fronteiras
entre o aquilo que pode ou não ser falado, ou exposto. Limites claros, caminhos
definidos, valores universais e verdades parecem ser difíceis de cartografar nos dias de
hoje.
Tempos de pós-modernidade são tempos em que valores fixos parecem ter
desaparecido. Uma aparente solidez que teria sido desmanchada. As pistas indicam que
se vivencia hoje um reordenamento dos códigos sociais, e a sociedade tenta, através de
suas práticas cotidianas, superar a miríade de dúvidas e o excesso de possibilidades, não
mais podendo contar com os tradicionais pilares de estruturação social vigentes outrora.
Retomando a campanha da Alpargatas, o direito de resposta concedido à agência
criadora do comercial de Havaianas afirma que esta pretendia “apenas privilegiar o bom
humor, a diversão e a surpresa”
56
. Segundo a avaliação da agência, o comercial em
questão e seus personagens “teriam uma postura condizente com o comportamento do
público jovem e adulto contemporâneo”
57
. Estas afirmações pretendem demonstrar um
alinhamento com aquilo que vem sendo não apenas explorado continuamente pela
mídia, mas também vem sendo de fato o comportamento praticado pelos jovens, que
53
AlmapBBDO.
54
www.conar.org.br acesso em maio de 2010
55
Texto conforme apresentado no site do Conar. www.conar.org.br, - decisões e casos Resumo das
decisões – Ano 2009 – Novembro/2009, idem.
56
Idem.
57
Idem.
46
atualmente convivem com valores socioeducativos bastante diferentes daqueles mais
conservadores que também que consomem os produtos midiáticos.
Recriando um conceito a partir do mestre Karl Marx, porém em um tom mais
contemporâneo, J. B. Thompson (2008, p. 161) afirma que a “tradição se desritualizou”.
Explica-nos ainda o autor que “as tradições foram transformadas à medida que seu
conteúdo simbólico foi sendo assumido pelos novos meios de comunicação”. É desta
desritualização que empresas e produtos parecem querer fazer uso ao comercializarem
seus produtos, transformando os meios de comunicação em uma espécie de guia daquilo
que seria prática social corrente e, claro, criando assim novas demandas.
Em novembro de 2009, o CONAR votou a favor de uma alteração no horário de
veiculação do comercial em questão, que passou a ser restrito à programação adulta.
Antes do julgamento, porém, a fabricante cedeu aos apelos das reclamações e retirou
seu filme do ar, espontaneamente. Entretanto, a criatividade e o senso de oportunidade
da agência e do anunciante produziram o “comercial do comercial”. A partir do filme
original, gerou-se um novo filme chamado Avó democrática”, exclusivo para a
internet, que comenta a polêmica. A mesma atriz que encarnou a avó aparece com um
notebook no colo, explicando a decisão do anunciante
58
. O filme agora se refere
principalmente à parte da audiência que aprovou a campanha, uma vez que nele, a avó
explica que ouve algumas pessoas que gostaram e outras que reclamaram e, anuncia que
para os que reclamaram, o filme foi tirado do ar, entretanto, para aqueles que gostaram e
que desejavam vê-lo novamente, o texto informava que o comercial original havia sido
colocado à disposição no site de Havaianas.
De um modo criativo, a Alpargatas optou por não incomodar eventuais
telespectadores que o acharam inadequado, malicioso, e contrário aos valores
socioeducativos, porém sem desfavorecer aqueles que parecem ter aceitado as
transformações e as desritualizações mencionadas por Thompson e, que haviam
portanto entendido a mensagem apenas como uma criação de bom humor, conforme, em
princípio, imaginado pela agência de propaganda Almap/BBDO
59
.
58
Texto do comercial: "Algumas pessoas reclamaram da propaganda das novas Havaianas Fit. Em
respeito a elas, Havaianas decidiu tirar o comercial da TV. Por outro lado, algumas pessoas adoraram a
propaganda. Em respeito a elas, Havaianas decidiu manter o comercial na internet. Democrático, né?! Se
você quiser assistir o comercial, entre no site. Viu como eu sou moderninha?!".
http://www.youtube.com/watch?v=wLFg37l8uyk&feature=related acesso em 18/01/2011.
59
O filme original ainda pode ser visto no site oficial de Havaianas http://br.havaianas.com/pt-BR/about-
havaianas/campaigns/ - acesso em janeiro de 2011.
47
Essa contradição de valores existente dentro do amplo espectro da audiência
televisiva do comercial de Havaianas, parece indicar como norma algo que é apontado
por Lipovetsky (2007) como “uma tendência do sistema econômico a se adaptar aos
anseios do espírito humano” (p. 31). Segundo o autor “a era democrática favorece esta
tendência, fazendo aparecer um tipo humano despojado de tradições, ávido de
novidades e de bem estar” (p.31). Analisando a campanha da Alpargatas, parece ser este
o mote que levou à sua criação. Na avaliação da Almap/BBDO, a maior parte do
público seria composta por indivíduos com esse perfil indicado pelo autor. Lipovetsky
comenta ainda no mesmo texto que “a economia moderna contribui principalmente para
estimular o homem, para desvinculá-lo dos preceitos sociais que se reproduziam de
geração em geração” (p. 31). A contribuição existe, entretanto, parece não desvincular a
todos.
Não deve ter sido sem dificuldades que o CONAR recomendou um ajuste no
horário permitido para a veiculação do filme de Havaianas, uma vez que seus membros
são, em sua maioria, eles próprios publicitários. Sendo um órgão de auto-
regulamentação, é composto pelos mesmos profissionais que em suas agências recebem
de seus clientes a missão de desenvolver materiais criativos, que gerem novas
demandas, atraindo assim potenciais consumidores para seus produtos e suas marcas. A
ousadia e o humor são algumas das ferramentas utilizadas desde sempre para atingir
este objetivo de chamar a atenção da audiência. A agência em questão demonstrou ter
entendido a solicitação do cliente e ousou produzir uma campanha mais provocante.
Pareceu-nos acertada a decisão ao levar o segundo filme para a Internet, um meio
democrático e não invasivo como a televisão e que não sofre o crivo do CONAR.
Uma situação similar ocorreu em julho de 2008, quando o mesmo órgão julgou a
campanha publicitária alusiva ao dia dos namorados de uma das maiores redes de varejo
de moda no mundo, a C&A. Com o título de “Papai e Mamãe não C&A sim”, a
agência DM9DDB lançou em televisão a primeira campanha elaborada para seu novo
cliente, após vencer uma acirrada concorrência em dezembro do ano anterior.
Assim como é esperado de publicitários que dispõem de verba para tal, a agência
elaborou pesquisa prévia junto ao público alvo da C&A e obteve como resultado a
indicação que o trabalho que seria elaborado deveria “sair da rotina”
60
. A referida
60
De acordo com depoimento de Sérgio Valente, presidente da agência DM9DDB
48
pesquisa teria apontado ainda que o público consumidor esperava “surpreender e ser
surpreendido” pela propaganda. Foi em busca desta surpresa que foi definido o
orçamento, selecionado o casting e criados os roteiros da campanha, a qual teve apuro
excepcional em sua produção. Profissionais de renome de filmes cinematográficos
foram contratados para entregar algo que de fato “saísse da rotina
61
, um produto de
qualidade excepcional. A ousadia venceria a tradição e finalmente chegar-se-ia ao
produto final esperado.
Composta por cinco filmes temáticos, a campanha trazia a atriz Daniela
Sarahyba nos papéis de astróloga, personal trainer, psicóloga, enfermeira e secretária,
respectivamente. Como astróloga, a personagem sugere à consumidora como se
preparar para a celebração do dia dos namorados: Urano na casa de Virgem vibrando
vai trazer um Dia dos Namorados bem ”papai-mamãe”. Agora, se ao invés de espalhar
velas pela casa, vo usar lingerie bem sexy, não vai ter papai-mamãe” não, sua
safadinha. Papai e mamãe não. No dia dos namorados surpreenda com C&A”.
Assim como nos demais roteiros, a mensagem traz como foco central o prazer
sexual potencializado através do uso de artifícios, produtos da C&A ou a promessa de
prazer ampliado por meio de posições sexuais não convencionais.
Para que houvesse uma total consolidação da mensagem que a rede de varejo
intencionava transmitir ao seu público, a campanha de televisão foi reforçada por vários
materiais promocionais distribuídos nas lojas
62
.
61
Para dirigir e produzir os comerciais, a DM9DDB contratou o diretor de fotografia polonês Andrzej
Sekula (de Pulp Fiction EUA 1994 - e Cães de Aluguel Reservoir Dogs, EUA 1992) e Heitor Dhalia
(diretor do longa metragem nacional, O cheiro do ralo).
62
O catálogo de produtos apresentava um jogo “caça-palavras”, onde as palavras a serem encontradas
eram: loucura, pegação, beijo de língua, intenso, surpresa, paixão, fantasia, morango com chantilly,
sexo, orgasmo múltiplo, sedução, kamasutra, desejo, dia dos namorados e amor. Nas demais 26 páginas
do catálogo são apresentadas fotos sensuais, ao lado das quais bonecos desenhados praticam ações como
dar as mãos e passear com cães. Sobre estes desenhos, há um sinal de proibido. Onde os desenhos
representam cenas de sexo, há sinais de exclamação.
49
Figura 12: A modelo Daniela Sarahyba como garota propaganda da rede de lojas C&A .
Fonte: http://www.portaldapropaganda.com.br/portal/propaganda/3875-caa-lancampanha-bem-
humorada-e-surpreendente-para-o-dia-dos-namorados acesso em junho de 2010.
Esta campanha parece ter buscado uma quebra de paradigma em relação
a certos preceitos sociais. A polêmica estava criada. Após alguns dias do início de sua
veiculação, a campanha foi retirada do ar pelo anunciante. O site do CONAR
63
informa
que a campanha foi julgada em julho de 2008 devido a reclamações diversas de
indivíduos que se sentiram incomodados pela alusão à posição “papai-mamãe”,
entendendo-a como ofensiva para os “padrões de decência”
64
.
Apesar dos argumentos de defesa da agência criadora da campanha, que
alegava não ter tido a intenção de afrontar valores familiares ou sociais uma vez que não
havia imagens de nudez nos comerciais, por unanimidade, o Conselho votou por manter
a sustação da campanha, que havia sido solicitada anteriormente, pois considerava
que “não havia como ignorar os exageros nas mensagens publicitárias da C&A”
65
.
Vale notar que, tanto no caso da C&A, como no das Havaianas, o fato do
CONAR ter acatado as reclamações que recebeu e julgando pela retirada das campanhas
do ar (no caso anteriormente relatado aqui, retardando apenas o horário permitido para a
veiculação do filme), parece não significar que as marcas envolvidas tenham sofrido
danos à sua imagem ou que tenham desaparecido da preferência dos consumidores
devido à ausência dos comerciais. Poder-se-ia arriscar afirmar que devido à polêmica
causada na mídia pela decisão do Conselho, tanto C&A como Havaianas ganharam
espaços “espontâneos” de divulgação em jornais, revistas e na Internet, prolongando
63
www.conar.org.br acesso em junho de 2010
64
Idem.
65
Idem.
50
assim sua presença também na mente dos consumidores, muitos dos quais
acompanharam atentamente a discussão e opinaram a respeito.
Como dissemos anteriormente nessa discussão, vários autores têm observado
certa prevalência dos apelos sexuais na comunicação de massa. Ao referir-se aos tempos
de hiper modernidade, Lipovetsky (2007. p. 22) pontua que:
“Cada um de nós está rodeado de solicitações sexuais, o real é
forçosamente mais frustrante, particularmente quando a vida
sexual está realmente carente. A questão torna-se mais
premente quando o conceito de felicidade fica conjugado ao
erotismo luxuriante”.
Conforme apontado pelo autor, o “real” seria aquilo que parece não mais
satisfazer. Parece haver uma indicação de que na realidade cotidiana, a relação baseada
apenas em dois corpos que se encontram, sem a mediação de nenhum gadget e/ou
fantasia que possa potencializar e amplificar a sensação do prazer, não seria mais
suficiente – nem propriamente desejável.
Baudrillard (2007) também discorre sobre o tema do prazer em A sociedade de
consumo (p. 96): “O indivíduo é, de todos os lados, convidado a deleitar-se a
comprazer-se. Depreende-se que é agradando a si mesmo que se têm todas as
probabilidades de agradar aos outros”. Parece que a situação examinada pelo
apocalíptico autor francês poucas décadas atrás não difere muito daquilo que
presenciamos em nossos dias.
Comerciais como os da C&A e das sandálias Havaianas, programas como
Falando sobre sexo com Sue Johanson, Papo Calcinha e o seriado Sex and the City,
bem como os massageadores íntimos da Philips apresentam uma releitura do
comportamento sexual em nossa sociedade.
Pode ser possível afirmar que, mais do que uma releitura, os dois comerciais em
especial teriam tido, de fato, a intenção de transgredir para chamar a atenção para suas
marcas. As agências de publicidade podem ter se permitido ousar. Entretanto, a ética
utilizada para o julgamento das campanhas parece ainda estar atenta a antigos
paradigmas, não conferindo legitimidade à transgressão. Para corroborar esta
possibilidade, encontramos em Vladimir Safatle (2008, p. 157) a seguinte afirmação:
“uma época como esta permite marcas que tragam, ao mesmo tempo, a enunciação da
transgressão e da norma”.
51
No caso específico da C&A, os mesmos consumidores pesquisados que
desejavam “surpreender e ser surpreendidos” naquele Dia dos Namorados teriam sido
agraciados pela campanha publicitária no momento em que esta afirma que o simples
fazer sexo “papai e mamãe” no dia dos namorados já não parece ser especial. O
desejável agora seria inovar, inventar, criar novas atitudes e renovados prazeres, através,
neste caso específico, das roupas vendidas pela empresa.
Provavelmente habituada a trabalhar “no fio da navalha”, como é comum na
produção de certo tipo de mensagens publicitárias e mercadológicas, a DM9DBB, saiu
em busca do mais ousado com a intenção de surpreender seu público-alvo. A reação que
motivou a sentença do CONAR permite inferir que, de certa maneira, a agência teria
exagerado na ousadia, ferindo susceptibilidades.
A enorme penetração da televisão, meio utilizado para os exemplos citados,
confere a ela grande potencial para a geração e transmissão de novas atitudes e novas
subjetividades que, por sua vez, passam a ser formadoras de novas culturas. Kellner
(2001) defende categoricamente a impossibilidade de dissociação dessas duas esferas:
“não comunicação sem cultura e não cultura sem comunicação(p. 53). Por sua
vez, comunicação midiática e cultura formam uma inseparável tríade com o consumo. A
compreensão de que cada um dos lados deste triângulo reflete e refrata o contexto social
no qual está inserido parece fácil.
Em termos comerciais, o marketing das empresas procura operar com uma
divisão clara entre os desejos e as necessidades de seus consumidores. Em paralelo, são
utilizadas na comunicação as características e benefícios ofertados pelos produtos e
serviços que são colocados no mercado. o os benefícios, que, após serem
criativamente elaborados por um discurso publicitário, servem de instrumento de
satisfação dos desejos ou de criação de demanda. Novamente voltando ao caso C&A, a
agência que produziu os comerciais buscou satisfazer os desejos de seu público,
transformando sua marca e seus produtos em um benefício que talvez pudesse ser
chamado de “ousadia”, criando assim demanda para aquilo que estava à venda.
Em estudos sobre a antropologia do consumo, Everardo Rocha (2004), sinaliza
que ”as chamadas necessidades básicas são inventadas e sustentadas na cultura” (p. 15).
Esta invenção e sustentação se dão através de estratégias discursivas. Discute-se hoje a
inexistência de uma distinção entre necessidades e desejos. Em uma sociedade de
consumo, território de efetivação da comunicação publicitária, onde o consumo dá
52
sentido aos indivíduos e às suas relações, sugere-se que não necessidades de fato,
apenas desejos.
Não parece um equívoco afirmar que não basta apenas usar uma roupa sensual,
ou estar atento aos conselhos da enfermeira canadense ou às dicas das ousadas meninas
de Papo Calcinha. Importante seria aceitar estes novos discursos como prova de ajuste
de subjetividade. Não basta estar atento, é preciso atender a estes apelos dos novos
tempos, empreender certos investimentos materiais e também subjetivos. Os discursos
transformadores funcionam de modo pedagógico. intenção de se criar, no grande
público, uma cognição a respeito dos assuntos relacionados ao sexual, ao erótico, sex
toys, que até algum tempo atrás era restrito, praticamente, a um público classificado
como “adulto”, sendo restrito a um segmento menor, aberto a conteúdos e ambientes
considerados diferentes e transgressores pela maioria.
A mercadorização do sexual reflete acontecimentos midiáticos fora de nosso
país também. Em julho de 2010, soube-se, através da Folha de S.Paulo, que o domínio
mundial “sex.com” seria o domínio mais valioso do mundo. Novamente posto à venda,
ele teria sido adquirido pela quantia de US$ 12 milhões. Comparável a este domínio,
hábitos há mais tempo aceitos socialmente, como os jogos de azar, sequer se aproximam
destes valores exorbitantes. O domínio “poker.org”, teria sido vendido por US$ 1
milhão
66
. O mesmo jornal diário anunciou, por meio de seu correspondente em Nova
York que o número de sex shops na Rússia teria tido um aumento de 5 para 150 nos
últimos dez anos
67
.
Não é apenas através das telas da página virtual de venda dos vibradores da
Philips, mas também por intermédio da publicidade e no âmbito da indústria do
entretenimento, que novas atitudes e práticas relacionadas ao sexo são ensinadas,
incentivadas, tensionando antigas normas e tabus. O discurso que acompanha este tipo
de conteúdo é apresentado também de modo a alavancar a valorização destas práticas,
produtos e serviços. Esta valorização seria imprescindível para atingir o que é mais
valioso na cultura do consumo: a própria subjetividade. Sabemos do papel central
desempenhado pelos discursos midiáticos na construção da subjetividade. Para Baccega
(2007, p.79), “a subjetividade nada mais é que o resultado da polifonia que cada
indivíduo carrega”. O “eu” plural que se apresenta no cotidiano é percebido e, se estiver
66
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/me0207201025.htm - acesso em julho de 2010
67
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1607201005.htm – acesso em julho de 2010
53
atento a esta polifonia midiática, reconhecido através de sua subjetividade, pelos
códigos que transmite por meio de suas práticas de consumo.
Em Kellner (2001, p. 10) aprendemos que:
“Numa cultura contemporânea dominada pela mídia, os meios
dominantes de informação e entretenimento são uma profunda
fonte e muitas vezes não percebidas de pedagogia cultural:
contribuem para nos ensinar como nos comportar e o que
pensar e sentir, em que acreditar o que temer e desejar – e o que
não”.
Dominar esta aprendizagem e seus códigos de consumo produzindo identidades
multifacetadas de acordo com os modelos fornecidos pela indústria cultural, ou seja,
possuir a capacidade de enquadramento dentro daquilo que Paula Sibilia (2002, p. 31)
chama de “toda uma série de dispositivos destinados a moldar os corpos e as
subjetividades de seus cidadãos”, representa a possibilidade de acesso aos mecanismos
de um “autopoliciamento generalizado” (idem) criado pelo consumo e para o consumo.
Estes mecanismos seriam uma espécie de sujeição às regras que, no entender da autora,
administram e modelam os sujeitos “com vistas à adequação, à normalidade,
produzindo, como consequência, certos corpos e modos de ser”.
Aprendemos com Sibilia que nos dias de hoje “o produto comprado e vendido,
em todos os casos, é o consumidor” (p. 35). No competitivo mercado das
subjetividades, a mesma lógica prevalece: ser o mais atraente para ser o escolhido, ter
sucesso; perigo é tornar-se obsoleto ou falho.
De acordo com a concepção de Garcia Canclini (2007)
68
, podemos entender o
consumo como “conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação
e uso dos produtos” (p.3). Este processo funcionaria também como a apropriação de
símbolos que, se bem administrados, poderiam proporcionar ao indivíduo a tão desejada
posição de destaque no mercado social.
Ao escrever sobre a importância dos meios de comunicação na formação de
identidades, Kellner (2001) comenta que, diferentemente de séculos atrás, na pós-
modernidade a construção de identidades ocorre como no teatro, através da
representação de papéis. Diz o autor “a identidade pós-moderna gira em torno do lazer e
está centrada na aparência, na imagem e no consumo” (p. 311). Kellner segue sobre o
68
Artigo completo disponível em http://www.dialogosfelafacs.net/articulos-teo-32NestorGarcia.php -
acesso em julho de 2010.
54
tema explicando que o lazer ao qual se refere poderia ser um jogo, onde todos conhecem
as regras e jogam de acordo a elas. O autor encerra sua afirmação dizendo que “o
jogador torna-se alguém quando é bem sucedido e obtém identidade por meio de
admiração e do respeito de outros jogadores” (idem).
A mercadorização do sexual, ao que tudo indica, tem se apresentado como
possibilidade de fornecer instrumentos para a gestão do indivíduo, ele também como
mercadoria, a fim de jogar e ganhar o jogo citado por Kellner. Habilidades sensuais,
conhecimentos sobre o erotismo, aquisição de sex toys, novos saberes a respeito de
práticas sexuais, parece ser um arsenal de projeção para o “eu”, que está sendo
construído e oferecido pelos meios de comunicação com uma intensidade crescente,
talvez tirando proveito de uma possível crise dos antigos paradigmas. Pode-se dizer que
se trata de uma pedagogia midiática, ao alcance de todos.
Ao afirmar que a “tradição se desritualizou”, J.B. Thompson (2008) explica que
“as tradições foram transformadas à medida que seu conteúdo simbólico foi sendo
assumido pelos novos meios de comunicação” (p. 261). A nosso ver, é extremamente
relevante que um dos principais jornais brasileiros exiba em suas ginas o olhar atento
do cartunista Adão Iturrusgarai, que se serve do humor para fazer uma crítica
contundente à mercadorização do sexual e à autogestão como produtos da atualidade.
Como linguagem característica de nossa época, as tirinhas do Adão serão examinadas
no próximo capítulo desta investigação.
55
CAPÍTULO 2
2.1. HQ, A HISTÓRIA EM QUADRINHOS
Não muitos teóricos que escrevem sobre histórias em quadrinhos, mas não é
incomum encontrar-se textos que se referem a elas como a “oitava arte”, tulo este que
também é disputado pela fotografia. Will Eisner, americano falecido em 2005, o mestre
dos HQ’s descrevia as “tirinhas” como arte sequencial (McCloud, 2004, p. 5). Nas
palavras de Scott McCloud, histórias em quadrinhos são “imagens pictóricas e outras
justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir
resposta no espectador” (2004, p. 9).
A partir deste conceito teórico, este trabalho considera os conjuntos de imagens
de Adão Iturrusgarai, publicadas em um veículo de comunicação de massa (a Folha de
S.Paulo) como portadoras de um discurso que faz parte da produção de conceitos de
consumo simbólico, tematizando o que se define aqui como mercadorização do sexual.
Para a transmissão de seus discursos, a arte sequencial se utilizada de figuras e
ícones. Por ícones, explica McCloud, podemos entender “qualquer imagem que
represente uma pessoa, local, coisa ou idéia” (2004, p. 27). Como será apresentado a
seguir, Adão se utiliza destas figuras e ícones com maestria.
Apesar destas figuras, conhecidas também como cartoons, geralmente,
apresentarem uma aparência que difere daquela da “vida real”, leitores tendem a
responder às histórias em quadrinhos da mesma maneira que responderiam a imagens
mais realistas (McCloud, 2004, p. 30). Um dos motivos pelos quais se entende que isto
ocorre, é o fato dos leitores atuais estarem envolvidos com este tipo de arte desde o
início do processo de alfabetização.
Outro aspecto importante dos desenhos de HQ é que os artistas, ao desenharem
rostos, eliminam certas características mais realistas a fim de chamar a atenção para
determinados detalhes. McCloud afirma que cartoon não é um jeito de desenhar, é
um modo de ver”. (2004, p. 202)
Um das facilidades de interpretação de histórias em quadrinhos surge a partir do
fato de que a espécie humana tem a capacidade de se reconhecer a partir apenas de
alguns traços simples, que nada têm de humanos, como os que seguem:
56
Figura 13: Representações humanas por Scott McCloud.
Fonte: http://scottmccloud.com/2009/02/25/27/ acesso em setembro de 2010.
Assim como traços básicos transformam-se em rostos e expressões, as HQ’s
também são representações de situações passíveis do cotidiano, representando os vários
papéis interpretados pelo indivíduo na sociedade, suas relações e práticas de consumo
simbólicas, de acordo com aquilo que está culturalmente estabelecido.
Adão Iturrusgarai tem proporcionado a seus leitores, através de suas tiras de
humor ácido, fragmentos deste espelho social no qual a arte sequencial parece apontar
para transformações em curso na contemporaneidade.
Diariamente, o leitor tem acesso aos quadrinhos em revistas periódicas, tiras de
jornais, charges diversas, habituando-se a este tipo de leitura, onde as imagens parecem
falar e onde a linguagem utilizada é a do cotidiano, intencionalmente familiar e
compreensível. Desta maneira, é conduzido a universos múltiplos, identificando-se com
os personagens e participando das aventuras narradas nos quadrinhos. A comunicação
se estabelece com certa facilidade graças ao diálogo direto e à riqueza de expressividade
das imagens. Para McCloud (2004, p. 64) “às vezes, uma simples forma ou um traço são
suficientes para desencadear uma conclusão”.
Oficialmente nascidas nos Estados Unidos, a partir da criação do personagem
Yellow Kid em 1895, por Richard Felton Outcault, as histórias em quadrinhos são
reconhecidas como uma das mais livres expressões da mídia de massa (ECO, 2005, p.
173). Pelo seu caráter de comunicação massiva, os quadrinhos exigem ideias que sejam
compreendidas pelo maior número possível de pessoas. Seu conteúdo deve estar
adequado ao gosto do público, o que faz com que tenham que ser submetidos às leis da
oferta e da procura do mercado, tornando-se assim um produto com finalidade
comercial.
Este caráter massivo, bem como o conhecimento daquilo que o público desejava
consumir parecia estar claro para os Srs. Hearst e Pulitzer que, ainda no final do
século 19, travaram uma reconhecida guerra jornalística e, consequentemente, uma
57
árdua disputa por leitores. A fim de atrair leitores para suas publicações, uma das
principais “armas” utilizadas foram justamente as histórias em quadrinhos. Apesar de
ter iniciado seus trabalhos para publicações do Sr. Pulitzer, o autor do Garoto Amarelo
foi atraído financeiramente pelo Sr. Hearst para publicar suas tirinhas no jornal, The
New York World
69
. Para contra atacar, o concorrente publicava Os Sobrinhos do
Capitão (Katzenjammer Kids), criados por Rudolph Dirks no The New York Journal
70
.
Figura 14: The Yellow Kid, o Garoto Amarelo.
Fonte: http://hqmaniacs.uol.com.br/principal.asp?acao=noticias&cod_noticia=12808 acesso em 01 de
fevereiro de 2011.
Figura 15: The Katzenjammer Kids, Os sobrinhos do Capitão
Fonte: http://www.alephbet.com/store/8117.htm acesso em 01 de fevereiro de 2011.
Inicialmente rejeitados, principalmente pelos educadores, os quadrinhos eram
considerados vulgares e sujeitos a reprovação moral
71
. Vários livros alimentaram uma
campanha difamatória na época, atacando as histórias. Uma das consequências desta
69
http://www.toonopedia.com/yellow.htm
70
http://www.kingfeatures.com/features/comics/katzkids/about.htm
71
Em 1954, o psiquiatra Frederic Wetham publicou em seu livro Seduction of the Innocent, acusações às
histórias em quadrinhos, dizendo que tinham o poder de transformar o jovem leitor em delinquente
(Nyberg, A.K. 1998. Seal of approval: the history of the comics code. Jackson, University of Mississipi
58
campanha foi a criação, nos Estados Unidos, do chamado Comics Code Authority
(CCA), também no ano de 1954, por parte da Association of Comics Magazine
Publishers
72
. O CCA foi um mecanismo da indústria gráfica, criado com o propósito de
regular, através de diretrizes próprias, o conteúdo publicado nos quadrinhos.
A exemplo do CCA foi criado no Brasil, em 1980, o CONAR, Conselho de
Auto-regulamentação Publicitária. Este órgão surgiu em resposta ao governo federal
que, nos anos de 1970, ameaçou criar uma espécie de censura prévia à propaganda
73
. A
auto-regulamentação foi a alternativa que se apresentou à época como solução àquilo
que acenava o governo.
Tendo a função de “zelar pela liberdade de expressão e defender os interesses
das partes envolvidas no mercado publicitário, inclusivo os do consumidor”
74
, o
Código foi plenamente aceito pelos grandes publicitários da época
75
e até hoje
representa agências, anunciantes e veículos de comunicação, nunca tendo sido
desrespeitado por nenhum deles e nas poucas vezes em que foi questionado pela Justiça,
teve suas causas ganhas
76
.
Retomando o CCA norte americano, os termos ou reprodução dos atos de
perversão sexual, relações sexuais ilícitas, sedução, estupro, sadismo e masoquismo
eram especificamente citados no código e proibidos nas publicações. Também era citada
a proibição da inserção de bebidas alcoólicas, tabaco, armas brancas, vampiros,
lobisomens e zumbis nas histórias. Ainda vale citar a obrigatoriedade de que o bem
deveria sempre triunfar sobre o mal.
Diferente do CONAR brasileiro, nosso código não proíbe, apenas impede que “a
publicidade enganosa ou abusiva cause constrangimento ao consumidor ou a empresas”.
O CONAR tem como objetivo promover a liberdade de expressão. Ele atende
denúncias, as julga, concede direito de defesa aos responsáveis pelo anúncio
denunciado, e apenas recomenda suspensão ou alteração do material. Este procedimento
não fere, em momento algum, as prerrogativas constitucionais da publicidade comercial
72
http://en.wikipedia.org/wiki/Comics_Code_Authority acesso em novembro de 2010.
73
www.conar.org.br, acesso em junho de 2010.
74
Idem.
75
Os principais redatores do Código foram Mauro Salles e Caio Domingues, com o apoio de Petrônio
Correa, Luis Fernando Furquim de Campos e Dionísio Poli.
76
www.conar.org.br acesso em outubro de 2010
59
do país. Agindo esta maneira, o CONAR não é um órgão de censura, pois trabalha
apenas com peças já veiculadas.
77
Voltando ao estudo dos quadrinhos, o clássico livro Para ler o Pato Donald,
escrito por Ariel Dorfman e Armand Mattelart no início da década de 1970, quando o
imperialismo norte americano exercia forte pressão sobre os sistemas políticos do
mundo inteiro, apresentou uma dura análise crítica dos quadrinhos de Walt Disney. A
partir desta produção, não foi mais possível pensar nas histórias em quadrinhos “como
uma simples leitura inocente”
78
(p. 79). A ideia dos autores que criticaram os
personagens de Disney teria sido uma espécie de denúncia das práticas imperialistas que
estavam sendo transmitidas também através de Donald, Huguinho, Zezinho, Luizinho,
Tio Patinhas e demais personagens de Patópolis. Os autores chamam a atenção,
principalmente, para a vida familiar dos personagens das histórias. Não existem mães,
pais, casamentos ou filhos, apenas tios e sobrinhos. Nas palavras dos autores “é
prognosticável que, se ocorre o crescimento demográfico, sempre será levado a efeito
por meio de circunstâncias extra sexuais” (DORFMAN & MATTELART, 1980, p. 24).
Os personagens têm casas, jamais lares. Na opinião dos autores, estas ausências
justificam-se a partir do objetivo de se ocultar das crianças uma sexualidade normal.
Em prefácio à edição brasileira de Para ler o Pato Donald, o estudioso de
quadrinhos Álvaro de Moya afirma que “este livro tem que ser, portanto encarado como
um panfleto, uma obra sectária, política, parcial, radical, esquerdista, antiimperialista e
anticolonialista em seu bom e mau sentido”. Justificam-se as palavras de Moya pelo
fato dos autores da obra serem de nacionalidade chilena e o livro ter sido escrito em um
período em que o governo chileno de Salvador Allende se debatia para resistir às
pressões do imperialismo praticado pelos EUA.
Queremos crer que como os estudos, em qualquer campo do saber, são feitos à
luz de um determinado contexto histórico, na atualidade, Para ler o Pato Donald não
receberia as mesmas críticas que recebeu décadas atrás. Evoluíram as relações dos
Estados Unidos com o Chile, assim como o olhar sobre os quadrinhos de Disney, que
parecem ter ficado em segundo plano nas atividades de lazer infantil, sendo substituídos
por toda sorte de distrações que têm origem nos computadores.
77
Idem.
78
http://publique.rdc.puc-rio.br/revistaalceu/media/alceu_n8_D'Oliveira.pdf, acesso em 25 de setembro
de 2010, Revista Alceu – Revista de Comunicação, Cultura e Política, v.4 – n. 8 -. 78 - 93.
60
2.2. PRESENÇA DA ESTÉTICA DOS QUADRINHOS NAS ARTES
Nas artes plásticas, foram principalmente Andy Warhol e Roy Lichtenstein, nos
anos 1960, que se serviram da estética dos quadrinhos para a criação de suas obras. No
cinema, foram influenciados pelas histórias em quadrinhos Orson Wells, Luiz Buñuel e
Federico Fellini, entre outros (p. 4 de A Pesquisa sobre histórias em quadrinhos na
Universidade de São Paulo: análise da produção de 1972 a 2005, Waldomiro
Vergueiro e Roberto Elísio dos Santos).
Não foram poucos os heróis que habitavam apenas o mundo dos quadrinhos, que
passaram a frequentar também as telas de cinema. Entre outros o Homem Aranha,
Mulher Maravilha, X-Men, Batman, o Incrível Hulk, Superhomem, o Quarteto
Fantástico; mais tarde Roger Rabbit, O Máscara, Homem de Ferro
79
, etc. O sucesso de
bilheteria destes filmes parece confirmar que os quadrinhos ganharam força suficiente
para atrair público também para além das tradicionais publicações em jornais e revistas.
Os quadrinhos e o cinema, além de serem, ambas, atividades de entretenimento,
têm também uma forte relação entre suas linguagens. As duas surgem no final do século
XIX, momento em que a cultura de massa começa a se fazer presente
80
. Para Umberto
Eco “no plano do enquadramento, a estória em quadrinhos é claramente devedora ao
cinema” (2005, p. 151). O entendimento é que ambos, quadrinhos e cinema têm
linguagem universal.
Quase meia década após o livro de Mattelart, Néstor García Canclini se refere
aos quadrinhos como um “gênero impuro”, aludindo à habilidade dos quadrinhos de
transitarem entre diversas características da comunicação: texto, imagem, popular,
artesanal, de massa.
“Poderíamos lembrar que as histórias em quadrinhos, ao gerar
novas ordens e técnicas narrativas, mediante a combinação
original de tempo e imagens em um relato de quadros
descontínuo, contribuíram para mostrar a potencialidade visual
da escrita e dramatismo que pode ser condensado em imagens
estáticas”. (Canclini, 2000, p. 339).
79
http://cinema10.com.br/materias/dos-quadrinhos-para-o-cinema, acesso em 25 de outubro de 2010.
80
http://www.ufscar.br/~cinemais/artcinehq.html acesso em 28 de janeiro de 2011
61
Em sua apresentação entre o visual e o verbal, os quadrinhos gozam de um alto
poder de penetração, facilitado pela predominância da comunicação da imagem em
relação ao texto.
É desde a fase pré-escolar que crianças têm contato com as histórias em
quadrinhos, quando a leitura das palavras ainda é um obstáculo. Talvez pelo precoce
contato com este tipo de publicação, os quadrinhos seguem fazendo parte da rotina de
leitura também dos adultos. Em qualquer idade ou frente a qualquer habilidade de
leitura, a imagem dos quadrinhos àquilo que pretende comunicar, uma agilidade que
apenas a história escrita dificilmente seria capaz de fazê-lo. Nas palavras de Moacy
Cirne “quadrinhos são uma narrativa gráfico-visual, impulsionada por sucessivos cortes
(...). O lugar significante do corte (...) será sempre o lugar de um corte espaciotemporal,
a ser preenchido pelo imaginário do leitor” (2000, p. 23).
Foi no contexto da pós-modernidade, quando as barreiras entre a baixa e a alta
cultura são tensionadas que as histórias em quadrinhos passam a ser um objeto de
estudo. Atualmente, os quadrinhos são estudados sob as mais diversas perspectivas
acadêmicas: educação, sociologia, linguística, estética, psicologia, entre outras. Diversas
instituições contam com centros de estudos de HQ, destacando-se, no Brasil, o Núcleo
de Pesquisa de História em Quadrinhos da Universidade de São Paulo.
Ao analisar as HQ’s, Umberto Eco afirma que para que possam se adequar ao
gosto do maior número possível de leitores é frequente o uso de estereótipos. Segundo o
autor, “a personagem e sua estória se caracterizam como modelo de vida para um leitor
médio” (ECO, p. 149). Estereótipos ou modelos de vida de um leitor médio fazem parte
da criação de uma espécie de linguagem universal, tão comum em produtos de
comunicação de massa, que devem ter como base a simplicidade e os padrões
reconhecíveis. Zilda Anselmo corrobora esta visão quando, ao se referir aos quadrinhos,
os define como “de uma linguagem universal por ser uma linguagem de imagem,
espontaneamente apercebida e facilmente decifrada” (1975, p. 37).
Estas curtas estórias, contadas através de sequencias de imagens, algumas vezes
auxiliadas por breve inserção de texto, legenda ou diálogos que parecem sair das bocas
dos personagens através de balões, se utilizam de uma linguagem universal. Esta
linguagem solicita aos leitores que criem suas próprias interpretações daquilo que o
autor teve a intenção de representar. Histórias em quadrinhos frequentemente fazem uso
de diferentes tipos de estilizações. Pequenos traços no rosto podem ser traduzidos por
62
diferentes humores, estados de espírito, faixas etárias. Estes modos de representação
estão institucionalizadas, sendo bem conhecidas e reconhecidas pelos leitores.
Assim como no século 19 em Nova York, ainda hoje, de acordo com Nildo
Viana, “a produção social das HQ está ligada às determinações sociais e às grandes
empresas produtoras”. O autor afirma ainda que o avanço dos HQ’s certamente passa,
ainda hoje, pela competição entre os grandes jornais. Se nas publicações de Hearst e
Pulitzer, os personagens do Garoto Amarelo
81
e Sobrinhos do Capitão
82
traziam para
seus leitores conteúdo relevante para a época, as tiras que são encontradas hoje nos
jornais diários estão inseridas no contexto social e histórico atual. Assim como outros
produtos midiáticos, as HQs também são produtos sociais e históricos. Afirma Viana
que “o que predomina, são os quadrinhos que manifestam as ideias e valores
dominantes”. Considerando a diversidade de modelos e valores com os quais
convivemos na contemporaneidade podemos afirmar que a linguagem dos quadrinhos
trazem a seus leitores a perspectiva oferecida pelo autor, sendo os trabalhos bastante
diferentes entre si. Embora não seja o único cartunista brasileiro a tematizar a
sexualidade, escolhemos Adão Iturrusgarai, pois ele aborda, a nosso ver, de forma ímpar
o que estamos chamando de mercadorização do sexual. Se compararmos o trabalho de
Adão com o de alguns de seus contemporâneos, como por exemplo, o cartunista
Glauco, é possível perceber que sua abordagem é bastante diversa. Enquanto a questão
de Glauco parece se relacionar com uma visão psicanalítica da sexualidade (a fixação
do personagem Geraldão, solteiro e ainda virgem, com sua mãe, com quem mora). O
olhar de Adão focaliza certo esvaziamento do pudor, do romântico e mesmo do erótico
quando a esfera sexual é perpassada pela mesma lógica mercantilista que parece reger
os modos de ser na sociedade do consumo.
Contextualizando nosso corpus no contexto geral da cultura midiática brasileira
atual, percebemos que essas tirinhas estabelecem constante e amplo diálogo com outros
meios de expressão, inclusive com o conteúdo editorial da própria Folha de S.Paulo.
Talvez Adão não fale sobre o sujeito médio, mas certamente fala ao sujeito médio, o
leitor do jornal onde publica seu trabalho.
81
O Garoto Amarelo trazia em suas estórias as tensões raciais e de classe que estavam presentes no novo
ambiente semiurbano, de consumo.
82
As estórias dos Sobrinhos do Capitão se debruçavam sobre as diabruras de dois rapazes, Hans e Fritz, e
um número mais ou menos restrito de vítimas, entre as quais a sua própria mãe e o Capitão.
63
Procuramos, durante meses, algumas pessoas que pudessem nos ajudar a
responder algumas perguntas a respeito da Folha de S.Paulo e sua relação com Adão
Iturrusgarai, mas não obtivemos sucesso. Apresentamos a seguir um perfil elaborado a
partir de informações obtidas de diferentes fontes.
2.3. CARACTERÍSTICAS DA PUBLICAÇÃO FOLHA DE S.PAULO
Em seu site
83
, a Folha de S.Paulo informa que de acordo com o IVC
84
, este
jornal é o de maior tiragem e circulação do país. A ANJ, Associação Nacional de
Jornais confirma a informação
85
. São distribuídos 294.882 exemplares do jornal durante
a semana. Desde alguns anos, o jornal posiciona-se como um veículo de jornalismo
crítico, apartidário e pluralista
86
.
É possível dizer que Adão Iturrusgarai não parece estar deslocado em relação ao
seu trabalho de conteúdo sexual, publicado neste jornal. Um criterioso
esquadrinhamento desta produção midiática, iniciado três anos, mostra que de fato a
mercadorização da sexualidade parece encaixar-se na linha editorial do veículo. Isto se
não apenas através do trabalho do cartunista, mas também a partir de conteúdos
pertinentes publicados em diferentes cadernos desde o início de 2008, conforme
segue
87
:
- Caderno Informática (23/01/2008) “Bordel sexo em troca de transmissão
on linematéria sobre mulheres disponíveis gratuitamente com a contrapartida que os
clientes permitam que suas façanhas sexuais sejam filmadas e exibidas na internet.
- Caderno Vitrine (07/06/2008) “Amor sem vergonha”, dicas de compras para
o Dia dos Namorados. Presentes que vão além do óbvio que podem ser encontrados em
sex shops e butiques eróticas.
83
http://www1.folha.uol.com.br/folha/conheca/circulacao.shtml acesso em 24 de janeiro de 2011.
84
Instituto Verificador de Circulação
85
http://www.anj.org.br/a-industria-jornalistica/jornais-no-brasil/maiores-jornais-do-brasil acesso em 28
de janeiro de 2011.
86
http://www1.folha.uol.com.br/folha/conheca/linha_editorial.shtml acesdo em 18 de janeiro de 2011.
87
Foram aqui priorizados os artigos relativos à mercadorização do sexual.
64
- Revista da Folha (22 /06/2008) – Mama Sutra”, matéria a respeito de aulas de
ioga e kits em sex shops como estimulantes para uma vida sexual ativa durante a
gravidez.
- Caderno Cotidiano (28/09/2008) – “Mulheres usam injeção para estimular
ponto G”, reportagem sobre procedimento médico que visaria estimular a zona erógena
feminina, serve como matéria paga anunciando a clínica onde é feito o procedimento.
- Caderno Cotidiano (27/12/2008) Stripper virtual fatura mais que dançarina
de boate”, matéria sobre este tipo de atividade profissional, focalizando seus altos
rendimentos e baixo investimento.
- Caderno Mundo (22/02/2009) “Site atrai apostando no adultério”, matéria
sobre site dos EUA que oferece namoro para casados, a partir do slogan “a vida é curta,
tenha um caso”
- Caderno Ilustrada (10/03/2009) “Sexo Nervoso”, matéria sobre lançamento
do livro Nerve The first ten years - uma compilação de estórias sobre homens,
mulheres e casais e suas escapadas sexuais. O livro celebra dez anos do primeiro livro
Nerve, publicado no ano 2000
88
.
- Folhateen (08/06/2009) “Aprendi com o pornô: explosão dos YouTubes do
sexo influencia comportamento dos jovens na cama”. Reportagem argumentando que o
acesso a vídeos eróticos influencia o comportamento dos jovens na cama.
- Revista da Folha (02/08/2009) “Sexo na floresta: ONG comercializa vídeos
de conteúdo erótico e pornográfico”. Reportagem segundo a qual estas vendas teriam
como objetivo para arrecadar fundos destinados à preservação ambiental.
- Folhateen (05/04/2010) “Faturando com sensualidade”, artigo sobre a
transformação do sexo em ganha-pão, “ainda que sem transar com outras pessoas”.
Shows sensuais na webcam, venda de calcinhas usadas e ensaios fotográficos rendem
grana extra a meninas.
- Caderno Equilíbrio (01/06/2010) “Os quitutes reproduzem 11 posições
sexuais do Kama Sutra". Na seção sexo e gastronomia sugestão e receita de biscoito
para celebrar o Dia dos Namorados.
- Caderno Cotidiano (18/04/2010) – matéria sobre a multiplicação de lan houses
de linha pornô e a individualização de cabines para garantir a privacidade ao público
interessado em acessar conteúdo sexual.
88
http://www.amazon.com/Nerve-First-Years-Nerve-com-Editors/dp/0811859878 acesso em 28 de
janeiro de 2011.
65
- Caderno Equilíbrio (15/04/2010) – “Sexo para consumo”, matéria sobre a
violência sexual envolvendo adolescentes e as chamadas “pulseirinhas do sexo”.
- Caderno Brasil (12/11/2009) “Foi bom para você?”, anúncio de gel
lubrificante por ocasião do apagão na cidade de São Paulo.
- Caderno Ilustrada (19/06/2010) – “O sexo como ele (não) é”, matéria sobre os
quadrinhos de Carlos Zéfiro, publicados no Brasil nos anos 1950 e o lançamento de
caixa com 4 livros do autor.
- Caderno Equilíbrio (15/06/2010) Falando daquilo”, crônica que tematiza o
conhecimento acerca dos órgãos sexuais femininos.
- Caderno Mercado (02/07/2010) nota sobre o valor do domínio “sex.com”, o
mais valioso da internet. Matéria destaca vantagem competitiva que proprietários do
domínio podem alcançar, devido à posição privilegiada em ferramentas de busca.
- Caderno Equilíbrio (30/11/2010) “Fiscais do sexo”, reportagem sobre
pessoas que pagam para ouvir conselhos íntimos e seguir regras de personal sex
trainers.
Parece ficar claro que a Folha de S.Paulo aborda a questão da
mercadorização do sexual com certa regularidade, refletindo padrões sociais da
atualidade. Não somente através dos quadrinhos de Adão Iturrusgarai que serão
examinados a seguir, mas também em forma de matérias e artigos em praticamente
todos seus cadernos diários. Como visto nos exemplos trazidos, o comércio de artigos e
serviços relacionados ao sexual são tratados de modo equivalente ao tratamento dado a
quaisquer outros produtos e serviços disponíveis no mercado de varejo.
Sobre Adão, o próximo capítulo ilustra a abrangência do trabalho deste
cartunista.
2.4. O HUMOR TRANSGRESSIVO DE ADÃO ITURRUSGARAI
A fim de conhecer um pouco mais a respeito de Adão Iturrusgarai, procuramos
aprender sobre a sua história pessoal, seu percurso profissional, seus trabalhos de
destaque que permitiram que suas criações chegassem ao grande público por meio,
sobretudo, das páginas do jornal de maior circulação do país.
66
Nascido em Cachoeira do Sul, no interior do Rio Grande do Sul, em 1965, o
artista publicou seu primeiro desenho aos 17 anos. Cartunista desde 1987 graduou-se
em Publicidade, não chegando a completar seu curso de graduação em Artes Plásticas.
Além de Porto Alegre, o autor viveu no Rio de Janeiro, em Paris, São Paulo e hoje mora
com a família na Patagônia.
Em 1990, Adão venceu o Salão Internacional de Humor de Piracicaba, que já
está em sua 37ª edição, com o seguinte cartoon:
Figura 16: Cartoon Cristo Salva?
Fonte: http://adao-velharia.blog.uol.com.br/arch2009-09-27_2009-10-03.html acesso em outubro de
2010.
À primeira vista, a figura acima apresenta uma típica cena de um dia à
beira mar. Se a imagem tivesse sido feita por um turista, poderia ser uma fotografia
tirada de um belvedere, local comum em alguns pontos do litoral brasileiro.
Adão Iturrusgarai parece ter um olhar distinto sobre esta que seria uma cena do
cotidiano. O cartunista traz aspectos que, a nosso ver, poderiam de fato estar
acontecendo sem que fossem notados, ou ainda, desejos que possivelmente estariam na
mente dos veranistas. Ao falar a respeito de personagens que ilustram as histórias em
quadrinhos, Umberto Eco afirma que:
“o personagem assumirá o que chamaremos de uma
“personalidade estética”, espécie de co-participalidade, uma
67
capacidade de tornar-se termo de referência para
comportamentos e sentimentos que também pertencem a todos
nós” (ECO, p. 250).
O cartoon de Adão parece estar alinhado com esta reflexão do escritor. Neste
desenho encontramos um casal que toma sol junto, deitados na canga, onde a mulher
está apalpando seu companheiro; um casal homossexual passeia pela areia sem atrair
olhares; há uma pessoa se afogando, mas parece não haver ninguém disposto a ajudá-la.
Dentre outros aspectos igualmente peculiares, o salva-vidas é caricaturado como Jesus
Cristo e tem preso à sua cadeira, um texto facilmente encontrado em para-brisas de
automóveis ou para-choques de caminhão: Só Cristo Salva. Seria uma sátira a este tipo
de cristianismo? Talvez a ironia seja justamente que nem o próprio Cristo parece
interessado em salvar quem quer que seja nesta praia. Nem ele e nem nenhum dos
demais banhistas parecem dispostos sequer a apartar uma briga que acontece entre um
rapaz musculoso e outro franzino. Este é o humor ácido de Adão.
Ainda em 1990, Adão editou a revista Dumdum, aonde chegou a ser processado
por motivos políticos, graças a seus quadrinhos de cunho obsceno, ainda que não
houvesse crítica política em seu trabalho
89
. O autor ganhou a causa.
No início dos anos 1990, antes dos estúdios de Hollywood lançarem um filme
como Os segredos de Brokeback Mountain (EUA/Canadá, Ang Lee, 2005), Adão
apresenta os personagens conhecidos pelo público até hoje, como a dupla de cowboys
homossexuais: Rocky e Hudson. O nome seria uma homenagem ao galã de cinema Rock
Hudson, que morreu de AIDS em 1985, apenas três meses após assumir publicamente a
doença, que naquela época estava ainda primordialmente associada à comunidade gay.
Em contraponto ao preconceito que levou o homenageado a viver sua
sexualidade às escondidas, Rocky e Hudson assumem sua homossexualidade sem
inibição. Em grande parte, o humor destes quadrinhos encontra-se, justamente, na
transgressão do estereótipo dos vaqueiros, normalmente entendidos como o ápice de
modelo de masculinidade viril, agressiva e destemida. Aqui eles formam um sensível
casal homossexual.
89
http://www.mundohq.com.br/site/detalhes.php?tipo=4&id=5 acesso em 15 de janeiro de 2011.
68
Figura 17: Tirinha de Rocky e Hudson
Fonte: http://eocurta.blogspot.com/2010/10/quem.html acesso em dezembro de 2010.
Nesta mesma época Adão trabalhou como redator de programas de humor da
Rede Globo de Televisão: TV Colosso (programa infantil exibido de 1993 a 1999),
Casseta & Planeta (no ar desde 1992). Também publicou seus quadrinhos nas revistas
Chiclete com Banana, Capricho e Bundas
90
. Tem livros publicados no Brasil e em
Portugal.
Em 1994 surge a polêmica e controvertida personagem Aline, cujas estórias são
publicadas na Folha de S.Paulo. Aline expressa de forma caricatural uma jovem
agitada, ousada, sexualmente liberada e ativa. Apesar de morar com seus dois
namorados, Pedro e Otto, constantemente se aventura além deles.
Figura 18: Tirinha de Aline
Fonte: http://adao-tiras.blog.uol.com.br/aline/ acesso em dezembro de 2010.
Em entrevista publicada na internet, o autor explica que: “As pessoas sempre
acham que me inspirei em alguém prá criar a Aline, numa determinada mulher,
90
http://www.lpm-
editores.com.br/site/default.asp?TroncoID=805134&SecaoID=948848&SubsecaoID=0&T
emplate=../livros/layout_autor.asp&AutorID=708091 acesso em julho de 2010.
69
namorada... Na verdade não foi assim. Aline talvez tenha
sido inspirada na coleção de personagens (pessoas) que cruzei pela minha vida. Incluo-
me nessa coleção de personagens. É a minha forma de ver o mundo, Aline não foi feita
por encomenda
91
“.
Completa o autor:
“a criação da Aline foi uma coisa completamente espontânea.
Aline nasceu por volta de 1994, em São Paulo, no dia seguinte
depois de uma ressaca... Achei que um triângulo amoroso dava
pano prá manga na criação de piadas... Talvez eu estivesse mais
inclinado a explorar um personagem feminino, acho que o
mundo é muito masculino, o mundo dos quadrinhos mais
ainda... Ela é uma personagem que se porta muitas vezes como
uma pessoa normal”
92
.
Normal ou não, inspirada ou não em amigas pessoais de Adão, impossível não
notar a semelhança, em vários aspectos, entre Aline a personagem Barbarella, criada
nos anos de 1960 por Jean Claude Forest. Nas palavras de Jacques Marny, “Barbarella é
enfim a mulher “livre”, tão livre nos atos como no corpo (...) escolhe seus companheiros
(...) se entrega a quem quer (...) Barbarella é praticante de strip tease(MARNY, 1970,
p. 217). Adão parece estar certo quando diz que “muitas vezes” sua personagem se
comporta como uma “pessoa normal”.
Como é esperado dos personagens das histórias em quadrinhos, Aline tem
humor. Assim como ela, Barbarella também é um personagem que faz rir. O humor de
Barbarela é assim descrito por Marny: “de todas as vezes que Barbarella se encontra
numa situação impossível, continua a manter um diálogo absolutamente normal. Há,
portanto um deslocamento que faz desaparecer o dramatismo da situação” (MARNY,
1970, p.222).
Nas tirinhas de Aline, encontramos situação semelhante, como mostra o trabalho
a seguir:
91
http://www.devir.com.br/hqs/entrevista_adao.php acesso em julho de 2010.
92
Idem.
70
Figura 19: Tirinha de Aline
Fonte: http://adao-tiras.blog.uol.com.br/aline/ acesso em dezembro de 2010
Podemos identificar ainda outra semelhança entre Barbarella e Aline, ao
comparar o que Adão pensa a respeito de sua criatura e o que diz Marny a respeito de
seu objeto de estudo. Assim como Adão afirma que sua personagem seria “normal”,
Marny afirma que Barbarella “parece-se com a mulher que gostaria de encontrar e que
na verdade, às vezes encontro na vida. É a moça livre que escolheu a sua moral”
(MARNY, 1970, p. 221).
Pelo que foi possível pesquisar a respeito da personagem dos anos 1960,
arriscamos sugerir que talvez Adão tenha se inspirado neste ícone de mulher sensual
com suas longas botas quando concebeu Aline. Talvez o charme e a sensualidade não
sejam os mesmos, mas não é difícil reconhecer o que ambas têm em comum.
71
Figura 20: Barbarella a aventureira espacial criada por Jean Claude Forest, que usa seu corpo e sua
sensualidade para derrotar seus inimigos. Uma de suas historias mais famosas, A Saga de Xam, a heroína
faz amor com Aiktor, um robô
93
.
Fonte: http://splashpages.wordpress.com/2008/03/ acesso em 28 de janeiro de 2011.
Aparentemente disposto a veicular seu trabalho nas mais distintas plataformas,
em 2005 o cartunista decide ilustrar sandálias e meias para a marca Havaianas. Ao
associar sua obra a um produto de consumo, Adão estabelece uma relação profissional
de caráter essencialmente e explicitamente comercial.
Figura 21: Sandálias Havaianas com personagens de Adão Iturrusgarai
Fonte: http://www.flickr.com/photos/37532893@N00/53461932 acesso janeiro de 2011.
93
http://splashpages.wordpress.com/2008/03/ acesso em 28 de janeiro de 2011.
72
Em 2009, o seriado Aline estreia na Rede Globo de Televisão, tendo a atriz
Maria Flor como protagonista, e os atores Pedro Neschling e Bernardo Marinho
representando Pedro e Otto. A série teve duração de oito semanas. Nas palavras do
diretor Maurício Farias, o programa transmite um “humor irreverente sem ser pesado”
94
. Apesar de não ter participado da adaptação dos quadrinhos para o seriado televisivo,
Adão faz ressalvas a respeito do bom comportamento de seu personagem na TV: sei
que será uma história para um público maior e até mais careta que o dos quadrinhos
95
”.
Nos diversos informativos da TV Globo a respeito do seriado, é interessante
notar a maneira como se buscou suavizar esta controvertida personagem. “Casal de
três”, “a garota mais moderninha dos quadrinhos”, “Aline é uma pessoa livre, que
acredita no amor e não se importa com que os outros estão pensando”, “O namoro dos
três é harmonioso e bem-resolvido”
96
. Através destes textos, parece haver, por parte da
emissora, certa preocupação com a inserção desta personagem de moral não
convencional em sua programação. Talvez possamos interpretar a presença desta
personagem na grade da maior emissora do País como uma indicação que a televisão,
sem dúvida, se adapta à instabilidade dos valores sociais em tempos de pós-
modernidade.
Recentemente a Rede Globo informou que oito capítulos inéditos do seriado
estão programados para estrear no dia 03 de fevereiro de 2011. Nas palavras do diretor
Maurício Farias, esta temporada de Aline “tem um aumento do universo adulto, mas sob
o ponto de vista do jovem”
97
. O texto da Rede Globo cita ainda que “Aline continua
muito livre, totalmente sem preconceitos”. Sem dúvida, um sinal dos tempos e uma
comprovação de que a primeira temporada da série teve um bom índice de audiência.
94
http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYN0-5273-268779,00.html acesso em 28 de
janeiro de 2011.
95
http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL938796-7084,00.html, idem.
96
Idem.
97
http://redeglobo.globo.com/novidades/noticia/2011/01/elenco-autor-e-direcao-apresentam-nova-
temporada-de-aline-imprensa.html acesso em 02 de fevereiro de 2011.
73
Figura 22: Personagens Otto (Bernardo Marinho), Aline (Maria Flor) e Otto (Pedro Neschling), da série
Aline da TV Globo.
Fonte: http://televisao.uol.com.br/ultimas-noticias/2009/10/01/ult4244u4005.jhtm acesso em outubro de
2010.
Adão foi premiado com o HQMix, o Oscar brasileiro de quadrinhos, em 1997 e
em 2005. Em seu blog
98
bem como em sua página na rede social Facebook
99
, é possível
encontrar tirinhas em português, em espanhol, em inglês e em francês. Podemos supor
que o artista não crie histórias sobre sexo e drogas com a intenção de chocar o público.
Brincalhão, Adão explica: “quem choca é galinha
100
”.
Em relação à produção de quadrinhos, Umberto Eco afirma: “para que o autor,
ou mesmo o produtor da estória em quadrinhos, possa construir seu produto tendo
diante dos olhos o modelo de um homem médio como cidadão ideal de uma sociedade
de massa isso é inegável” (2005, p. 179). Tomando como base o texto de Eco, parece
que, na construção de seus quadrinhos, Adão Iturrusgarai tematiza o homem médio,
porém repleto de contradições, através da caricaturização da lassidão dos valores. Com
seus exageros e humor ácido, o desenhista insiste no tensionamento da ideia de homem
médio, aquele indivíduo atual, pertencente a uma sociedade socialmente construída
como uma sociedade de consumo.
Haveria no trabalho do cartunista uma crítica social à hipocrisia moral existente
na atualidade em relação aos padrões de comportamento sexual? Ou estaria ele
indicando a liberalidade e desenvoltura das condutas sexuais como um dos compostos
indispensáveis das subjetividades contemporâneas?
No intuito de contribuir para a discussão a respeito da constituição das
subjetividades na cultura contemporânea, tendo como foco o que estamos denominando
como mercadorização da esfera sexual, apresentamos exemplares desses quadrinhos
98
http://adao.blog.uol.com.br/, acesso em 27 de janeiro de 2011.
99
http://www.facebook.com/pages/Adao-Iturrusgarai/44866107187 acesso em 28 de janeiro de 2011.
100
http://www.devir.com.br/hqs/adao.php acesso em 28 de janeiro de 2011.
74
publicados na Folha de S.Paulo. Consideramos como sendo a temática central dessas
tirinhas a relação entre certas práticas de consumo e a promessa de satisfação de desejos
e necessidades no que diz respeito às práticas relacionadas ao sexual na
contemporaneidade.
Para compor o corpus da pesquisa empírica que empreendemos como parte deste
estudo, selecionamos os desenhos em que Adão adota como tema hábitos de consumo
de práticas relacionadas ao sexual. Através de um olhar irônico sobre o mundo real, o
artista, com seu humor sarcástico, denuncia as mazelas da vida afetiva e das relações
sexuais em nossos dias. Suas tirinhas retratam uma vida sem erotismo, onde o prazer e a
felicidade parecem jamais serem alcançados. Os objetos – sex toys – e outros artifícios e
saberes acerca de práticas sexuais parecem ser vãs tentativas de se atingir a felicidade
por meio do consumo. não basta ter um(a) parceiro(a) para interagir. As relações
forçosamente devem ser complementadas por esses acessórios.
Não identificamos intenção dramática nesses quadrinhos. O autor transforma
pessoas em coisas, desglorificando o ser humano. As relações apresentadas por Adão
refletem a banalidade da relação entre homens e objetos, onde trocar um pelo outro,
muitas vezes não representa perda alguma. A pergunta que surge após a leitura de suas
tirinhas seria: quais as fronteiras existentes nos relacionamentos da contemporaneidade?
O sucesso, o empreendedorismo, as posturas buscadas a fim de “se levar
vantagem”, também fazem parte desse nosso corpus de pesquisa, dividido em seis (6)
categorias distintas que perfazem os objetivos de nosso projeto.
Devido à grande quantidade de tirinhas colecionadas no período de três anos, foi
necessária a criação de certos critérios para selecionar as que de fato seriam utilizadas
para compor o corpus deste trabalho. O primeiro critério foi o de apresentar aqui,
apenas os desenhos que apresentassem algum contexto sexual. A partir desse critério
inicial, selecionamos tirinhas que tivessem relação com práticas de consumo, seja de
produtos, serviços ou modos de ser.
Em seguida, estas tirinhas foram separadas por categorias de acordo com o tema
principal apresentado. Assim, concluímos que o material que tínhamos em mãos poderia
ser reunido em seis categorias ou séries, distintas. São elas:
Sex shop, um varejo como outro qualquer: As cinco tirinhas desta série são
ambientadas em sex shops e/ou relacionadas a produtos comercializados nestes
75
estabelecimentos. Nelas há representações de práticas comuns a qualquer ponto de
venda: oferta de brindes, pechinchas, apresentação de habilidades profissionais, relações
com vendedores e expectativa versus desempenho real do produto consumido.
Sexo, imaginário e consequências: Nesta série, as seis tirinhas de Adão
Iturrusgarai apresentam a visão do desenhista em relação às consequências possíveis de
algumas práticas sexuais e comportamentos sociais relacionados a determinadas práticas
de consumo. Estas consequências podem ser positivas (como, por exemplo, passar dois
milhões de anos no Paraíso por fazer sexo com uma senhora de idade - tirinha número
3) ou negativas, como ser condenado a milhões de anos de análise por perder a
companheira para uma sessão de sexo grupal. Seria a terapia sugerida por Adão uma
possível solução contemporânea para o sujeito que fracassa sexualmente? Aquele que
não adquiriu as habilidades sexuais suficientes para atender as expectativas de sua
companheira? Ou seria a terapia endereçada para aqueles que não se sentem satisfeitos
em suas relações?
Fetiche e fantasia como artigo de consumo: Na Sociedade do Espetáculo, as
experiências são um dos pilares da felicidade. Aqui o cartunista explora os fetiches e as
fantasias sexuais de seus personagens relacionando-os com os momentos de felicidade,
possivelmente, advindos destes.
Dotes e habilidades como capital sexual: As seis tirinhas desta série trazem
alguns exemplos de como o sujeito médio, aos olhos de Adão, faz uso de seus dotes e
habilidades principalmente para atrair seus parceiros. Com seu humor ácido, o artista
apresenta personagens “espertos”, exibindo suas qualidades a fim de atingir seus
objetivos, o que, como veremos, pode ou não acontecer...
Transformações nas práticas cotidianas: As mudanças que vêm sendo
percebidas nos dias atuais e que têm tido como apoio a mídia são exploradas aqui pelo
cartunista. Relações conjugais, opções sexuais, casamento e prazeres são os temas
escolhidos por Adão, que parece acreditar que certas práticas sociais não são mais as
mesmas se comparadas aos códigos vigentes há algumas décadas atrás.
76
O consumo das experiências: Assim como a série 3, aqui também o cartunista
parece indicar que qualquer experiência é válida. Utilizando um tom propositadamente
exagerado, Adão parece indicar que mais do que qualquer produto ou serviço, os
indivíduos contemporâneos preferem consumir experiências. Aos olhos do autor, parece
ser mais importante o sujeito poder dizer “eu fiz”, do que “eu sou”.
77
CAPÍTULO 3
3.1 O JÚRI DE ESPECIALISTAS
Para fundamentar a análise do corpus, foi indispensável a contribuição de um
júri de especialistas, especialmente convocado para fins desta pesquisa. Composto por
profissionais de diferentes procedências acadêmicas, oriundos do diversificado quadro
funcional da Escola Superior de Propaganda e Marketing, o júri contou com a
participação da Profa. Marcia Tondato doutora em Comunicação pela ECA-USP e
docente do Programa de Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo ESPM;
Profa. Lívia Barbosa, pós doutora em Antropologia pelo Museu Nacional (UFRJ) e
diretora do Centro de Altos Estudos de Propaganda e Marketing (CAEPM-ESPM);
Prof. Eugenio Bucci, jornalista e doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, diretor do curso de pós-graduação
lato sensu em Jornalismo com ênfase em direção editorial ESPM, sendo presidido pela
orientadora desta pesquisa, Profa. Gisela G. S. Castro, graduada em Psicologia pela
UFRJ e doutora em Comunicação e Cultura pela mesma instituição.
Reunidos especialmente para esta pesquisa, o júri examinou uma a uma as
tirinhas que perfazem o nosso corpus. Cada tira foi projetada em telão, sendo cada série
apresentadas em sequência. Um exemplar impresso deste mesmo material foi entregue
a cada membro do júri, que desse modo podia manusear livremente as imagens
impressas durante a projeção.
Foi pedido aos membros do júri que comentassem sobre o material apresentado
na medida em que se sentissem prontos. A conversa que se seguiu foi gravada, com a
permissão dos participantes, tendo sido feitas anotações e observações também durante
a sessão, que teve a duração de aproximadamente duas (2) horas.
78
3.2 ANÁLISE DO CORPUS DA PESQUISA
3.2.1 Sex Shop, um varejo como outro qualquer.
Em suas últimas semanas de gravidez, a mulher antecipa suas necessidades de
mãe e, sobretudo conta com o apoio do pai na compra de algumas mercadorias que
serão indispensáveis quando do nascimento do bebê, como por exemplo, um soutien
para amamentação. Ao sair para a compra, o pai retratado nesta tira parece ter sido
atraído por uma vitrine de sex shop. Seja pelo seu desconhecimento em relação ao
produto solicitado, seja como estratégia para “aquecer” a relação, ao invés de um
soutien para amamentação comum, ele compra uma lingerie erótica. Surpresa, a mulher,
ao questionar onde o produto foi comprado, não recebe a informação sobre a origem
do produto, mas é informada que o estabelecimento, como é comum no varejo, também
ofereceu uma promoção... Compre o soutien de couro negro e leve um chicotinho
grátis.
É flagrante a des-erotização proposta por Adão nesta tira. Ao apresentar uma
mulher grávida usando um sutiã comprado em um sex shop, o cartunista nos oferece a
impressão de esta ser uma cena comum entre casais. Notamos aí certa banalização
daquilo que este tipo de lingerie sugere. Um modelo semelhante ao do desenho é
vendido na sex shop virtual Sex Toy
101
. O produto é descrito como “provocante,
contorno de biquíni (...) o resto quem preenche é você”. Imagina-se que a decisão de
compra e de uso de um produto desta categoria demande um momento diferente daquele
proposto na tirinha, onde a felicidade do personagem parece surgir apenas quando
revela à sua companheira ter ganhado o chicote como brinde. O sex shop parece ter
101
http://www.sextoy.com.br/produtos/biquini-vazado-de-renda-preto, acesso em 01 de fevereiro de
2011.
79
entrado no convívio familiar, tornando-o parte do cotidiano. Não erotismo no casal
de Adão. Na verdade, depreende-se a miséria afetiva da dupla. Resta a insinuação
velada de uma (im)provável dominatrix grávida na fantasia do personagem marido.
Num ridículo nada erótico, percebe-se desde o início que a mulher não demonstra
sentir-se sensual ou pronta para o sexo.
Levar vantagem na negociação é objetivo de grande parte das transações
comerciais. A compra e a venda devem passar pela relação “ganha-ganha”. Levar mais
por menos é o que se busca. Aqui, talvez uma relação inversa de valores, onde o
cartunista propõe que o sexo com um ser humano, inicialmente, pode ter um custo
menor do que com um artigo do sex shop (a boneca inflável). A surpresa fica por conta
da vendedora que, mediante a possibilidade de auferir lucro, imediatamente se oferece
como mercadoria. O consumidor deixa a loja satisfeito com sua compra, tendo levado
aparente vantagem em sua negociação, e, quem sabe, pensando também nas prováveis
outras habilidades sexuais de sua recém-adquirida mercadoria.
Notamos aqui não apenas a mercadorização do sexual, mas também uma clara
referência à reificação do indivíduo e a solidão atroz. A vendedora, sem cerimônias,
entrega-se à proposta do cliente da loja, o apenas aceitando substituir um produto de
seu estoque, como também abandonando a loja com a qual não parece ter nenhum
compromisso. Talvez, ao contrário, esta profissional esteja tão comprometida em
satisfazer os clientes que não se importe em transformar-se, ela própria, em objeto de
desejo. Em todo o caso, o sorriso maroto com o qual ambos são retratados ao saírem
abraçados sugere que a dupla considera-se bem sucedida nesta transação comercial.
Pode-se ainda especular que o personagem masculino pode vir a perceber no
futuro que teria sido mais econômico servir-se da boneca inflável do que arcar com o
custo (não somente financeiro) de manter uma parceira de carne e osso.
80
A relação de oferta e procura no mercado de trabalho é aqui explorada.
Entretanto, isto é feito de um modo diferente daquele do varejo tradicional, onde o que
se busca é alguma experiência, por exemplo, em vendas, por parte do candidato ao
emprego. O empregador coloca a pergunta clássica que é feita em qualquer tipo de
empresa (note-se o sagaz trocadilho RAMO AMOR). Aline, a candidata, procura
compensar sua falta de experiência como vendedora de modo criativo, apelando para
suas habilidades sexuais e apresentando-as como um produto atraente e palatável para
os consumidores da loja.
Novamente aqui Adão tematiza a transformação do indivíduo em mercadoria.
Como em outros trabalhos, o autor expõe e critica a banalidade da relação gente/coisa.
Quais seriam as fronteiras desta relação? O que é, nesse caso, a mercadoria? Estabelecer
a distinção entre sujeito e objeto seria fundamental para sabermos o lugar que ocupamos
na sociedade, bem como na relação com nossos semelhantes.
Não é mais a praxe o varejo impedir seus clientes de tocar os produtos expostos
em um ponto de venda. Estudos de marketing afirmam que as chances de uma venda se
realizar são consideravelmente maiores quando é permitido ao consumidor
experimentar o produto de alguma forma, ainda que seja apenas tocando-o. Na série
81
intitulada “minha vida ridícula”
102
, Adão demonstra este princípio ao retratar-se como
personagem acompanhado de uma amiga durante a visita a um sex shop. Os dois tocam
nos produtos, riem alto, fazem gozação (beirando o desrespeito ao vendedor no jogo de
palavras utilizado), comportam-se como crianças, des-erotizando os produtos expostos,
o que conflita diretamente com os interesses comerciais do sex shop.
Em claro caso de des-serviço ao negócio, o vendedor os adverte e finalmente os
expulsa da loja. Demonstra-se aqui não apenas a antítese do comportamento ideal de um
profissional de vendas (ao expulsar os clientes da loja), mas também uma forma
antiquada de atendimento, que prega certa distância entre cliente e produto.
Com a proliferação de sex shops, não parece improvável que se concretize a
situação proposta por Adão. De acordo com o site G1/Globo, o setor conta com dez mil
pontos de vendas espalhados pelo país, tendo obtido um crescimento de 17 % no ano de
2010. De acordo com Paula Aguiar, presidente da ABEME
103
, “Nos últimos cinco anos,
vivemos uma alteração de comportamento de consumidores e empreendedores. No
início, as lojas eram voltadas para homens e ficou assim por muito tempo. Agora a
atenção do mercado está se voltando para as mulheres”
104
. Antenado, nosso cartunista
parece estar também informado desta situação.
Um sex shop não vende apenas simuladores destinados a potencializar as
relações sexuais. Entre seus produtos há também aqueles que prometem um auxílio para
a conquista do(a) parceiro(a) desejado(a). E, se o produto promete algo que está em total
sintonia com os desejos do consumidor, porque não aproveitar uma visita ao sex shop
102
Devido ao nome dado à série, entendemos tratar-se do próprio cartunista que se apresenta como
personagem nestes quadrinhos. Esta série também tem sido publicada na Folha de S.Paulo aos domingos
e nela Adão apresenta, algumas vezes, sua esposa e seus filhos.
103
Associação Brasileira de Empresas do Mercado Erótico e Sensual.
104
http://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/2011/01/sex-shops-mudam-e-se-tornam-butiques-
sensuais.html, acesso em 01 de fevereiro de 2011.
82
para levar este produto não para uso imediato, mas também para já manter um de
reserva para que, caso surja necessidade, ele estaria disponível. Nesse caos, trata-se
de economizar gastando mais.
Sem o artifício do produto, o sujeito parece não ter poder de atração algum. De
fato, o produto cumpre o que promete: atrai as mulheres, embora não exatamente do
modo desejado. Nosso consumidor teria comprado “gato por lebre”. A sensualidade
erótica e a atração amorosa idealizadas não acontecem.
Parece-nos que nesta tira o produto não atingiu as expectativas criadas pelo
personagem. Ele que esperava uma conquista rápida motivada apenas pelo ferômonio
105
que escolheu como sua ferramenta de gestão para atrair uma parceira. Claramente, esse
personagem não confia na sua própria capacidade de atração. Ele quer mais. Pretende
potencializar seu poder de conquista, talvez como um animal, pois é sabido que no reino
animal, a relação entre ferômonios e copula é direta e clara. Tendo comprado o produto
que provoca um tipo de “atração” diferente do esperado, o patético personagem constata
ter administrado mal o seu investimento...
3.2.2 Sexo, imaginário e consequências.
Como se houvesse uma hierarquia de práticas sexuais condenáveis (ao inferno)
relacionadas à idade dos praticantes, o autor aqui apresenta personagens mais jovens
praticando sexo oral (simbolizado pelo picolé) e condenados a um mês no inferno. Um
pouco mais maduros, os praticantes de sexo anal (simbolizado pela rosca queimada) têm
seu castigo ampliado em apenas dois meses. Com um pouco mais de idade (e, quem
sabe, experiência e astúcia), os participarem de uma suruba são punidos com 9 meses
no inferno. O último personagem, porém, não possui os dotes e a idade necessários
105
Ferômonios são substancias químicas captadas por animais da mesma espécie, que são capazes de
produzir reações fisiológicas ou comportamentais.
83
para qualquer uma das práticas anteriores. No auge da solidão, ele se vê obrigado à
prática da masturbação. Como penitência, recebe sentença exponencial.
Todos os quadros da tirinha acima apresentam a autonomia masculina nas
relações; em clara alusão de cunho machista. Parte do humor se deve ao uso dos ícones
nos dois primeiros quadrinhos. Esta representação do amadurecimento sexual é, sem
dúvida, cruel. Na juventude o prazer é a palavra de ordem e parece sempre haver
parceiros para se obter este tipo de satisfação. Com o avançar da idade, o indivíduo não
conta mais com os atrativos de anos anteriores. Sua triste tentativa de auto-satisfação é
cruamente exibida – e cruelmente punida.
A conhecida inveja feminina pelo pênis, teorizada por Freud, seria um bom
motivo para que as crianças fossem encaminhadas à prática da psicanálise. Nesta
tirinha, que tematiza a inveja da mulher em relação à outra mulher, vemos que os anos
se passam e os objetos de inveja mudam. Peitos, por exemplo, são essenciais para o
reconhecimento da feminilidade e, mais essenciais ainda para atrair os primeiros
namorados. O tamanho de mama considerado ideal pode variar a cada estação. De olho
nesse mercado, proliferam as próteses e todo o tipo de cirurgias e outros procedimentos
estéticos. De modo semelhante (e talvez ainda mais contundente entre nós), a bunda
também é responsável por despertar frustração e inveja, exigindo por sua vez um forte
investimento por parte daquelas que pretendem ser atraentes nesse país tropical.
Quando não mais esperanças de contar com os dotes físicos necessários para
a atração sexual, resta a mercadoria simbólica, representada aqui pelo caro vestido.
Neste caso, a vítima menos provida de recursos financeiros te que passar a vida
fazendo análise...
84
No trabalho de Adão, o sexo não é apenas causador de castigos. Em uma curiosa
reviravolta, o autor mostra que o tema também pode ser representado como uma boa
ação, tal como um gesto de solidariedade, cidadania ou mesmo responsabilidade social.
No exemplo acima, a prática sexual seria comparável à adoção de uma praça, que
permite ao cidadão exemplar, impecavelmente penteado, clássica camisa branca,
gravata discreta, uma permanência de 20 dias no Paraíso. A boa menina que parece
atender a todos os requisitos tradicionais de filha exemplar (sem minissaia, sem
piercings, sem tatuagens, com fita no cabelo), ganha uma estada mais longa no Paraíso
por ter adotado um gato de rua.
O cidadão que doa um órgão a fim de salvar uma vida, gozará do Paraíso por 9
meses. Porém, aquele que não precisará se preocupar em sair do Paraíso por toda a
eternidade é o garotão de boné virado ao contrário, que, espertamente (e, talvez por
excesso de hormônios) concorde em praticar sexo com uma senhora de idade avançada.
Por meio desta boa ação, (possivelmente favorecida por um irrefreável apetite sexual) o
rapaz garante seus 2 milhões de anos no Paraíso.
Uma vez mais no trabalho de Adão, está presente também nesta tirinha a relação
entre homens e objetos. Adotar uma praça ou doar um rim parece ser, na concepção do
autor, um tanto menos importante do que a satisfação sexual de uma senhora que não
possui os atrativos necessários para uma conquista amorosa. Solidarizar-se com as
necessidades sexuais dos idosos ainda não se transformou em mote de campanha
publicitária, como a doação de órgãos ou a responsabilidade social. Seria este o próximo
passo?
85
A impossibilidade do consumo. Ter ou não ter as habilidades necessárias. A
frustração de estar no lugar certo no momento errado ou, vice versa, no momento certo
mas no lugar errado. Na proposta do autor, anos de análise são necessários a fim de
possibilitar ao indivíduo entender o que o levou a uma dessas situações paradoxais.
Como vemos, a perplexidade e a indignação sempre podem ser ainda maiores, assim
como a conta do analista. O homem errado no lugar certo é o crítico impotente
encarregado de escrever sobre filmes pornô. Se não fosse impotente, o personagem
poderia se beneficiar do que poderia ser descrito como o emprego ideal masculino.
Adão parece fazer aqui uma metáfora de consumidores sem o devido poder
aquisitivo, frente a vitrines, gôndolas de supermercado, telas tantas. Está tudo ali, à
disposição para ser consumido, porém os indivíduos de olhos desejosos, telespectadores
de novelas, reality shows e massiva publicidade, conhecedores dos benefícios
prometidos por todas estas mercadorias, não podem alcançá-los. Bauman (2009, p. 75)
diria que trata-se de consumidores-falhos. Seus recursos são insuficientes.
Diferentes faixas etárias e momentos de vida. Tabus imaginados e quebrados. A
idealização do “outro”. São todos motivos de algum tempo no divã. Tudo leva a crer
que há aqui também uma hierarquia daquilo que é menos ou mais aceitável,
parametrado pelo tempo de “tratamento”. O que pode passar pela cabeça de um garoto
que encontra um vibrador no quarto dos pais? Certamente, um mês de análise o ajuda
86
a entender a situação. Afinal, isso não parece ser algo totalmente descabido. Vibradores
são vistos em filmes, na internet e são tema de conversa nos corredores da escola.
Um pai pode se decepcionar ao descobrir um baseado na carteira de seu filho.
Poderá achar que não foi um bom pai, ou quem sabe, imaginar que seu filho, para se
masturbar inspirando-se na imagem de corpo feminino que tem na parede do quarto,
precisa estar sob efeito de drogas. No entender de Adão, dois meses de terapia poderão
ajudá-lo a interpretar a situação. Afinal, no Brasil de hoje, temos um ex-presidente da
República defende a descriminalização da maconha
106
.
Uma mulher adulta que encontra um Viagra na carteira do namorado, necessitará
de 3 anos de análise, a fim de convencer-se de que não é sua falta de habilidade que
impede seu namorado de ter uma ereção sem a ajuda de estimulantes. A indústria
farmacêutica fatura milhões com a venda “pílula azul”. Apenas no segundo semestre de
2010, o produto teve um aumento de vendas de 39 % em um intervalo de três meses.
Isto ocorreu após o laboratório Pfizer, fabricante do comprimido em questão, ter
reduzido seus preços. De junho a agosto de 2010 teriam sido vendidos 2,25 milhões de
comprimidos
107
·.
o rapaz que encontra uma ovelha inflável no quarto de seu avô terá muitos
anos de terapia pela frente para, quem sabe, admitir e aceitar tanto a sexualidade na
terceira idade, quanto certas práticas e fantasias não convencionais, como a relação com
animais. Interessante notar que o produto em questão é hoje comercializado em sex
shops por menos de R$ 100,00
108
.
106
http://oglobo.globo.com/pais/mat/2009/02/11/fh-defende-descriminalizacao-da-maconha-para-
consumo-pessoal-754361820.asp acesso em 01 de fevereiro de 2011.
107
http://www.opovo.com.br/app/opovo/economia/2010/11/16/noticiaeconomiajornal,2065292/venda-de-
viagra-cresce-39-em-tres-meses.shtml acesso em 01 de fevereiro de 2011.
108
https://www.cliquesexshop.com.br/cat/119-bonecas-inflaveis/169-ovelha-inflavel-lamb acesso em 01
de fevereiro de 2011.
87
Esta tira parece sugerir que, por ser uma situação não tão incomum na
atualidade, as conseqüências psicológicas de encontrar sua companheira fazendo sexo
com outro homem podem ser trabalhadas em apenas 3 meses de terapia. Possivelmente,
dentre outras questões, o personagem precisará entender por que razão a sua mulher
precisa de outro homem e como ele próprio irá superar o estilhaçamento de sua
autoestima. Afinal, não foram poucas as vezes que o personagem pode assistir a cena
semelhante no cinema e na televisão. Nesta bem humorada visão de Adão, após uma
primeira decepção a próxima não parece ser tão impactante. Afinal, se sua mulher
estiver com dois homens na cama (provavelmente fazendo sexo, pois meias e cuecas
sobre os lençóis), frequentar a terapia durante 7 meses poderá ajudar. Nesse caso, tudo
indica que ele, de fato, não apresenta condições de atender as necessidades sexuais de
sua mulher. O trabalho terapêutico deverá ser um pouco mais prolongado, 3 anos, se ele
realmente perceber que satisfazer sua mulher exige muito mais do ele é capaz de
desempenhar.
Mas, se o apetite sexual dela for tão grande a ponto de você sequer conseguir
encontrá-la em meio a uma quantidade inimaginável de homens e mulheres, prepare-se
para passar o resto da sua vida fazendo análise. Talvez, na visão do autor, esse seja o
tempo necessário para trabalhar os danos à sua reputação, as dores da sua derrota em um
mundo de vencedores. Ou talvez Adão proponha alongar indefinidamente o tratamento
do personagem pelo fato dele não estar participando da significativa experiência que
seria o sexo em grupo.
88
3.2.3 Fetiche e fantasia como artigo de consumo
Podemos entender que, em certo sentido, a autoridade, por si só, funciona como
um fetiche. Nesta tirinha Adão parece querer transformar a norma, a disciplina em
perversão. Em especial, o uniforme escolar parece fazer parte das fantasias sexuais de
homens e mulheres. A imagem do uniforme estaria diretamente ligada à ideia de
juventude. A mulher sente-se mais jovem, inocente, virginal ao usá-lo. Pelas mesmas
razões, este tipo de vestimenta atrai também os homens. O fetiche é comum no mundo
ocidental e oriental, em especial ênfase para o Japão. É comum encontrar na pornografia
japonesa mulheres oferecendo-se a homens, vestidas com uniforme escolar
109
. Um
uniforme escolar (estilizado) pode ser encontrado à venda na maioria dos sex shops.
Escola, igreja, família e política regiam as normas sociais na modernidade. A
representação feita aqui por Adão do esfacelamento destes pilares parece clara. No
início deste trabalho, ao citarmos Canclini, dissemos que o autor afirma que na
atualidade, as relações sociais são construídas principalmente na “disputa pela
apropriação dos meios de distinção simbólica” (1999, p. 79). A distinção hierárquica
entre professor e aluna é afirmada na tirinha acima. Entretanto, esta afirmação é feita de
modo satírico. Com seu jaleco branco, o professor não apenas dá uma ordem em sala de
aula, como ainda é comum nos dias de hoje, mas explicita para a aluna Aline suas
próprias fantasias sexuais.
109
http://en.wikipedia.org/wiki/Schoolgirl_uniform_fetish#Schoolgirl_uniform acesso em novembro de
2010
89
O consumo do simbólico e a sempre delicada questão do imaginário sexual são o
mote desta tirinha. Aline não quer apenas fazer sexo. Para ela, dois corpos apenas
não são suficientes para a obtenção de prazer. Claramente dominadora, Aline exige que
seu parceiro participe de uma de suas fantasias sexuais. Não limites no terreno do
imaginário, a criatividade não enxerga fronteiras. Eis um campo fértil para todo o tipo
de apropriação mercadológica.
Adão parece querer demonstrar aqui o quanto a satisfação de desejos é sempre
tênue e provisória. No reino do simbólico, desejos e fantasias podem ser bastante
específicos. Detalhes sutis transformam um objeto qualquer em fetiche, objeto de
desejo. No caso acima, não basta um rato qualquer, tem que ser o Míckey. Não basta
qualquer versão do camundongo da Disney, vale o clássico vintage. Descobrir o
detalhe que transforma o comum em extraordinário, essa é a questão...
A situação de psicanálise é frequentemente representada no trabalho do autor
como uma prática inserida no cotidiano dos leitores, um dos caminhos para a busca
da felicidade. Alguns dos temas comumente tratados em sessões de análise são o uso de
drogas, problemas relacionados à sexualidade, etc. Os dois primeiros quadrinhos
contextualizam o relacionamento entre paciente e analista e as discussões rotineiras
desse tipo de tratamento. O quadro final traz a surpresa ao deslocar a resposta do
paciente para uma prática que, em princípio, não deveria estar relacionada às fantasias
90
sexuais, uma vez que é esperado que o sexo com a própria esposa não seja uma fantasia
e sim uma prática real. O humor ácido de Adão evidencia um “deslocamento” social a
partir do sintoma apresentado.
O pecado bíblico da traição parece não estar mais em voga. Errado, na
contemporaneidade, seria fantasiar com a própria esposa. Isso nos a entender que
fantasiar com outros parceiros seria mais adequado. Que resposta dará este terapeuta a
seu paciente, sabendo que o mesmo está em busca da felicidade? Abandonar as drogas
ou conformar-se em fazer sexo com sua esposa? A busca não é apenas pelas respostas,
mas principalmente pelas perguntas.
Uma vez mais Aline é representada tratando seus companheiros, Otto e Pedro,
como objetos sexuais. Dóceis, os rapazes estão seguros de que estão participando de
mais uma de suas fantasias sexuais. Enganam-se. As fotos, as fantasias e as poses viram
uma mercadoria que poderá ser negociada quando o momento se apresentar, isto é, se os
rapazes algum dia decidirem candidatar-se a algum cargo político, ambiente
reconhecidamente machista no Brasil.
Pode haver aqui, por parte do autor, uma referencia aos muitos escândalos – nem
sempre sexuais corriqueiros na esfera política. A tirinha remete ainda não apenas à
racionalidade feminina, mas também satiriza a inversão de papéis. Enquanto os rapazes
pensam em diversão e prazer sexual, Aline dá as cartas.
91
O sadomasoquismo, prática sexual onde um parceiro busca prazer em receber
sofrimento físico ou moral do outro, estava restrito a publicações de cunho
pornográfico, ou a produtos vendidos nos sex shops que eram frequentados apenas por
aqueles habituados a praticas sexuais que fogem ao padrão.
O humor de Adão subverte essa prática, representando-a nas situações mais
corriqueiras e consequentemente esvaziando seu forte conteúdo erótico. O autor aqui se
preocupou em vestir Aline adequadamente para o contexto sadomasoquista e, com
sagacidade, propõe uma relação entre os termos “contos eróticos” e “contas a pagar”.
Ressalte-se que o cartunista apresenta de forma natural os namorados, Otto e
Pedro, interagindo racionalmente um com o outro enquanto Aline aparentemente se
desmancha de prazer. Enquanto um deles está na cama com Aline, o outro se limita a
acompanhar o que acontece entre os dois, sem sinal de ciúmes.
Desejos insaciáveis. Habilidades adquiridas para aprimorar o desempenho. O
casal de amantes encena um tórrido strip tease. Entretanto, a companheira mostra-se,
além de mais hábil, mais racional e decidida do que seu acompanhante. Terminado o
espetáculo do strip, com a mesma motivação demonstrada por seu parceiro
anteriormente, agora ela exige por parte dele uma boa performance.
Adão parece indicar que a amante aguarda do companheiro, um retorno de seu
investimento (performático e talvez também monetário, caso ela tenha recorrido a um
92
treinamento específico no vasto cardápio de técnicas, objetos e práticas oferecido para
aprimorar o desempenho sexual das “moças de bem”).
O autor nos ainda uma indicação de que, uma vez terminado o espetáculo, a
moça esteja pronta para o ato sexual, enquanto o parceiro, com as mãos debaixo do
cobertor e seu sorriso de satisfação, possivelmente tenha atingido o orgasmo durante
o strip. O imperativo de se alcançar a condição de felicidade pode ter como
consequência transformar esta conquista em um projeto individual e, neste caso, não
mais a dois.
3.2.4 Dotes e habilidades como capital sexual
A exigência de dotes e habilidades para sobreviver com sucesso no mundo
contemporâneo faz com que Adão retrate com seu típico e ácido senso de humor
algumas das fantasias acerca de modelos especialmente idealizados. Com os atributos
que homens e mulheres tendem a considerar importantes, o conquistador se “vende”
apresentando todos os benefícios que tem a oferecer, graças aos seus dotes superlativos.
Com isto parece atrair a mulher que tenta conquistar.
Entretanto, apesar de seu corpo duplo e todas as vantagens que este sugere
proporcionar, o personagem não supera um dos maiores medos do homem e uma das
maiores decepções femininas: a falta de ereção. Com a mesma rapidez com que
aparentemente aceita ser seduzida ou pelo menos aceita testar este “super-homem”, ela
dispensa seu produto novo, tirando ainda proveito da duplicidade de corpos do patético
conquistador com um chute em seu duplo traseiro.
O autogerenciamento atual requer uma profundidade que vai além das
aparências. Assim como será rejeitado pelo consumidor um produto que apresenta uma
bela embalagem, porém não entrega aquilo que promete, a mesma regra vale para as
93
relações interpessoais. Como é recorrente nos trabalhos selecionados, nessa tira não
satisfação ou gozo. A tensão erótica está ausente, assim como o deliciar-se.
Em uma sociedade repleta de incertezas e mudanças, a adequação a novas
práticas é o que se espera do indivíduo que pretende vencer. E, fundamental, é preciso
se fazer ouvir (ou ver) neste contexto sempre cambiante. É preciso alardear as
iniciativas a fim de deixar claro qual é o objetivo: melhorar, superar-se e vencer.
Aqui, um dos esposos abandona sua companheira, pois ela, aparentemente não
conseguiu adequar seu modo de vestir-se às expectativas do marido ou da sociedade o
que seria inaceitável. Esta esposa estaria construindo telas de arame farpado entre o
casal e seus amigos, quando deveria estar construindo pontes, igualando-se aos seus
amigos. Apenas assim poderiam todos estar orgulhosos daquilo que ostentam.
Com uma pausa no diálogo dos amigos, Adão parece indicar que o interlocutor
tem necessidade de pensar a respeito do que foi dito. Ao mesmo tempo, o emissor da
mensagem parece curioso a respeito da opinião do amigo, aguarda uma resposta,
preferencialmente uma declaração de apoio. Finalmente, o ouvinte decide expor a sua
situação. Sua separação também está ligada ao vestuário da companheira, entretanto,
por um motivo oposto ao de seu colega de bar. Enquanto a esposa do primeiro não se
vestia adequadamente, a esposa do segundo não desenvolveu as habilidades de uma
stripper, tendo assim perdido o marido. A habilidade de se vestir bem se iguala à
habilidade de se despir. A importância daquilo que é destinado ao ambiente público
(vestir-se) ganha o mesmo peso da prática privada (strip tease). Para o aprendizado do
vestir-se os desfiles de moda, as revistas fashion e as vitrines das lojas. Para um
aperfeiçoamento da performance de “tirar a roupa”, uma busca no Google oferece
94
51.800 opções
110
, por até R$ 7,90
111
. opções para todos. Basta querer adquirir a
habilidade.
Imagem é tudo e Aline parece saber isto. Porém, não basta a autocontemplação.
Além dela é necessário que sejamos reconhecidos. A visibilidade é de importância
capital. Distorcendo o clássico conto infantil, Adão propõe um final feliz para Aline,
diferente da cruel e vaidosa madrasta de Branca de Neve. Naturalmente, Aline sabia que
não estava falando com um espelho, pois, na vida real, espelhos não respondem.
Entretanto, com o torso nu, exposto na janela, conseguiu atrair o olhar de algum
passante, obtendo a resposta que queria: um elogio ao seu corpo.
O que está em jogo nesta tira seria, fundamentalmente, a espetacularização do
corpo. Não indicação de que alguém aprecie a beleza. Aliás, os traços de Adão são
propositadamente não refinados como em certas ilustrações eróticas.
Outro aspecto relevante aqui representado diz respeito ao personagem Otto, que
esboça um pequeno sorriso de satisfação ao ouvir que sua namorada mereceu o elogio.
Assim como ele divide comodamente Aline com Pedro, Otto não demonstração
alguma de ciúmes ao ver sua namorada seminua à vista de todos. Seria essa uma
indicação de novos padrões morais e de costumes, ou uma crítica a certo esvaziamento
afetivo e erótico nas relações atuais?
110
http://www.google.com.br/search?hl=pt-
BR&rlz=1C1SKPL_enBR398BR413&biw=1280&bih=709&q=%22curso+de+strip+tease%22&btnG=Pe
squisar&aq=f&aqi=&aql=&oq= acesso em 01 de fevereiro de 2011.
111
http://aulas-musica-danca.vivastreet.com.br/curso-teatro+botafogo/curso-de-strip-tease-completo--
apreenda-seduzir-seu-homem-/28193019 acesso em 01 de fevereiro de 2011.
95
Quem é o cru entre nós? A ilustração no primeiro quadrinho, contendo
elementos icônicos como tênis, boné, rabo de cavalo, bermuda e saia curta, remete o
leitor a um casal de jovens amantes. Tudo leva a crer que a moça não teria experiência
sexual anterior e estaria a caminho de sua primeira relação. Tradicionalmente, nas
sociedades ocidentais, garotos costumam ter suas experiências sexuais um pouco mais
cedo. O autor representa o rapaz no papel de conselheiro e tranquilizador, procurando
transmitir segurança à sua jovem parceira.
O humor fica por conta do inesperado da resposta da jovem, que pode ser
inexperiente, porém se mostra muito bem informada. O drama representado na tirinha é
o eterno drama sexual masculino. Temores desse tipo fazem parte dos piores pesadelos
masculinos.
Classicamente se diz que a propaganda não vende produtos, mas benefícios. Os
manuais de publicidade ensinam que sua missão é encantar o público alvo e, através do
uso da retórica, atrai-lo para o consumo. Adão brinca com esta máxima da publicidade,
retratando seu uso fora de contexto. O personagem Astolfo (talvez um trocadilho com
96
as-tu-to?) transmite, de modo quase meigo, uma mensagem sobre os seus dotes físicos
parecendo mendigar por ajuda, As moças no bar entendem exatamente o “problema” de
Astolfo e se dispõem a oferecer auxílio. A oferta de ajuda também sugere a forma de
propaganda. Elas utilizam de modo mais sutil a mesma tática de Astolfo, o qual, por sua
vez é atraído pela promessa de remuneração. O resultado que Adão propõe é a inveja do
amigo que acaba considerando Astolfo um gênio. Astolfo soube se vender. Foi o
escolhido pelas consumidoras. Elas têm o dinheiro, portanto, o poder de escolha.
Estará Astolfo à altura da imagem que transmite a seu respeito? Elas são duas,
Astolfo é um só, sequer convidou seu amigo para acompanhar o grupo. Adão não a
impressão de ter algum problema com este tipo de ménage a trois. Uma experiência a
mais na vida sexual de Astolfo.
Como dissemos em uma sociedade em constante mudança, o indivíduo convive
com uma série de inseguranças. A fim de minimizar estas inseguranças, sai em busca de
aperfeiçoamentos, o que faz parte de uma constante autogestão. Isto também sugere
uma autonomia baseada em objetivos e realizações pessoais. O grande mote dos
discursos gerenciais dos anos 1990 é a livre escolha. Nesta tirinha Adão sugere que, aos
olhos de Aline, sua escolha profissional pouco difere do convencional. Orgulhosa como
os três profissionais dos quadrinhos anteriores, Aline, exibe a prova de sua busca por
aperfeiçoamento e certificação na parede de seu local de trabalho. Desse modo, mostra
ser competitiva e disposta a brigar com as mesmas “armas” (que os demais profissionais
retratados) no concorrido mercado das subjetividades.
3.2.5 Transformações nas práticas cotidianas
97
A existência de um descompasso nas relações estáveis aos olhos femininos e
masculinos. Interessante crítica do autor à ausência de comunicação e à mudança de
valores no plano conjugal. O humor fica por conta da inesperada reação da esposa bem
intencionada ao saber-se regularmente traída “há mais de uma década”.
Excesso de trabalho? Stress? Rotina no casamento? Aos olhos da pós-moderna
Aline, a frustração sexual é inadmissível. Através da janela indiscreta, certamente
inspirada no célebre filme de Hitchcock, Adão traz a personagem chocada e indignada
após presenciar uma cena que qualifica como “um crime horrível”. Interessante notar
que Adão retrata aqui o homem como o anti-herói nada viril, a cuja falta de libido Aline
reage com tanto vigor.
Pode-se dizer que Aline observa as atividades de seus vizinhos como se
assistisse a um reality show. Diferente daqueles que são apresentados pelas emissoras
de TV, este programa é menos explícito em relação às atividades sexuais do casal,
inclusive frustrando a audiência.
98
Por mais liberal que possa parecer a relação entre Aline e seus dois namorados,
eles reagem com indignação ao vê-la se ausentar de casa na passagem de ano. Diante da
tradicional ceia e champanhe à mesa, vemos Otto e Pedro aturdidos com a conduta da
moça. Tentando adivinhar o que passa pela cabeça do cartunista, poderíamos arriscar
dizer que os rapazes não estariam decepcionados pelo fato de Aline ter um amante, e
sim porque terão que passar o réveillon sem a companhia dela. Estaria Adão propondo
uma reflexão sobre o lugar da tradição na pós-modernidade?
Crenças, convenções, regionalismos e novas escolhas. A ordem social
tradicional, a permanência de um sistema estável de regras consolidadas, retratada aqui
em fase de desconstrução. Nesse ácido humor gaúcho às avessas, os personagens
parecem estar disputando algum prêmio a ser conquistado pela estória mais triste.
A la putcha
112
é uma expressão característica da cultura gaúcha,
tradicionalmente utilizada quando alguém é pego de surpresa. Esta típica expressão
regional permanece, assim como tradição das bombachas, chapéu e botas. Entretanto,
no plano das subjetividades, comportamentos convencionais não possuem a mesma
força.
112
http://www.alapucha.com.br/?lid=1. Acesso em fevereiro de 2011.
99
A mercadorização do sexual pode ser constatada o somente a partir da oferta
de produtos, mas também através da oferta de serviços. Agências de empregos, agências
de viagem, agências de publicidade ou mesmo agências de matrimônio alimentam
práticas de consumo em nível profissional ou pessoal. Adão aproveita o mote e,
coerente com o imaginário de sua personagem ultra-liberada, concebe uma agência de
amantes. Por que o não suprir essa demanda comercializando-se, explicitamente, esse
tipo de “serviço”?
Em outro nível da crítica presente nesta tirinha, podemos pensar que Adão
propõe uma reflexão bem humorada sobre a instituição do casamento. É comum em
muitos matrimônios que a chamada “crise dos sete anos” acabe com a relação
113
. Aline
não foi capaz de superar esta crise, chegando aos dez anos, como também resolve o
problema da monotonia optando pela diversificação, ao invés da separação.
A contemporaneidade e seus imperativos de saúde perfeita, corpo impecável,
eterna juventude. Para se adequar a estas implacáveis exigências sociais, o indivíduo
precisa estar pronto a abrir mão de diferentes prazeres mundanos. Produtos diet e light
proliferam nas gôndolas dos supermercados. Excesso de sal, açúcar e gordura
113
http://www.bolsademulher.com/amor/crise-dos-sete-anos-5702.html, acessado em 02 de fevereiro de
2011
100
demonizado nos consultórios médicos, em programas de TV e colunas de saúde em
jornais e revistas de grande circulação. A redução desses teores nos alimentos inflaciona
o seu preço, mas ainda assim estes são os preferidos de parte da população. É a cultura
do “menos é mais”.
Mas isto também seria válido para o sexo? É significativo como Adão
transforma o pote de geléia e o saleiro em símbolos fálicos e coloca em um mesmo
patamar os prazeres gastronômico e sexual. Talvez o autor nos queira lembrar que
brinquedinhos e técnicas mirabolantes seriam indispensáveis para o incremento do
prazer sexual, quem sabe apontando também para uma eventual compensação no sexo
pela redução dos prazeres na alimentação.
3.2.6 O consumo das experiências
Na série “empregos bizarros”, Adão faz referência a certas práticas cotidianas e
um tanto ilegais de varejo, transpondo-as para a esfera sexual. Nesta tirinha vemos a
consumidora retratada como uma viciada em drogas ou alguém que adquire um bilhete
de jogo do bicho numa esquina qualquer. O traficante, aqui retratado como uma figura
dark, vestida de preto, protegida por um par de óculos escuros que lhe confere certo
anonimato, tem um comportamento similar ao de um vendedor de rua. Oferece
abertamente o que tem para vender naquele dia e, coerente com os manuais de vendas,
focaliza os benefícios do produto que deseja comercializar.
Na área de propaganda, sabe-se que aquilo que encanta o consumidor são
sempre os benefícios potencialmente proporcionados pelo produto ou serviço
anunciado, e não as suas características. Nesse caso, o cartunista alude à conhecida a
dificuldade de certas mulheres em atingir o orgasmo. Se existe um comércio paralelo
de toxina botulínica (botox), a qual é utilizada, dentre outras, com a finalidade de se
101
aumentar a sensibilidade do ponto “G”
114
, por que razão não seria possível comprar o
próprio orgasmo, já pronto para o uso?
Mais um emprego bizarro, denominação aqui atenuada para “estranho”, onde
Adão apresenta a banalização da prática do sexo grupal, cuja narração parece ser aqui
transmitida ao vivo. Práticas sexuais não convencionais ao alcance de todos pelas ondas
do rádio. Subentende-se que o narrador-locutor seja um profissional remunerado,
compenetrado em não perder um só lance. O privado se torna público neste reality show
radiofônico, nesta sociedade do espetáculo.
Esta tirinha foi publicada na Folhateen, caderno semanal da Folha de S.Paulo
veiculado às segundas feiras e dedicado ao público adolescente. Abordando temas como
114
http://noticias.uol.com.br/ultnot/cienciaesaude/ultnot/2008/04/01/medicos-oferecem-injecoes-para-
aumentar-o-ponto-g.jhtm Acesso em 02 de fevereiro de 2011.
102
música, televisão, cinema, comportamento, saúde, sexo e esportes, o caderno também
possui um blog, twitter e chat no MSN de modo a relacionar-se melhor com seus
leitores. Adão é um dos cartunistas escalados periodicamente para esta publicação e
demonstra conhecer bem o público ao qual se dirige. O mundo dos adolescentes é
competitivo e repleto de sonhos. Seus sonhos nem sempre tem relação com o mundo
empresarial que talvez um dia irão integrar, ou com as famílias que formarão no futuro.
Aqui, eles aludem ao que é valorizado pelos jovens como mbolos da vida adulta:
acesso a bebida alcoólica, carros, filmes restritos, vida sexual socialmente liberada. O
humor fica por conta da transposição da tradicional brincadeira de boneca em jogo
sensual e erótico, sonho de consumo adolescente...
A mercadorização do sexual relaciona-se a produtos e serviços, que podem ser
os mais variados. Um curso de strip tease ou pole dancing, próteses diversas e todo o
tipo de brinquedinhos eróticos proliferam no mercado, ou até mesmo clínicas que
tratam de pacientes cujo comportamento sexual obsessivo é entendido como uma
patologia. Adão indica que estas clínicas oferecem atividades que têm por objetivo fazer
com que as pessoas se distraiam, focando em outras coisas, como por exemplo,
exercitando dobraduras em papel – a arte do origami.
A paciente retratada por Adão, entretanto, insiste em “pensar naquilo” e
orgulhosamente exibe sua obra aos funcionários da instituição os quais, ao que parece,
ainda terão que encontrar solução distinta para ajudar a problemática paciente. Ao
contrário da tira anterior, aqui Adão, retratando uma mulher mais madura, a coloca
como viciada em sexo, enquanto o homem ao seu lado, surpreso, distrai-se produzindo
uma delicada flor em seu exercício de dobradura.
103
Eu estive lá, eu tenho, eu fiz. Estas parecem ser as palavras de ordem da
sociedade do consumo, o qual recobre também a arena das experiências de vida. Qual
seria a próxima vivência a ser alardeada? Hoje as tentativas de radicalização talvez
aconteçam com maior intensidade no ambiente privado, mas de que servem se não
forem apresentadas a público? Adão indica que o escândalo e o radicalismo de ontem
não são os de hoje. Mudanças constantes. Ajustes permanentes. Desregulamentação do
cotidiano. Aludindo à crescente liberalização de costumes, esta tirinha ironiza a
pretensão dos cowboys Rocky e Hudson em chamar a atenção com sua
homossexualidade assumida. O humor fica por conta da exagerada solução encontrada
para o intento de escandalizar: eliminar o parceiro humano (banal) em troca de
alternativa mais exótica.
A receita não se mostra revolucionária. Ginseng, catuaba, ovos de codorna e
amendoim formam uma combinação reconhecida tempos por seu efeito afrodisíaco.
Em forma de vitamina, como é encomendada ao barman, sugere algo de grande valor
nutritivo. Vemos aqui o personagem ansioso, atento à preparação de seu pedido.
Apenas no último quadrinho aparece o elemento de humor desta tira. Para
acompanhar tal iguaria, que supõe como conseqüência um apetite sexual hipertrofiado,
nada menos do que seis (mulheres?) são escolhidas neste cardápio imaginário.
104
Apesar da promessa de desempenho muito acima da média, o personagem
propositadamente não foi desenhado com uma aparência de super-herói. Podemos
pensar que se trata de uma alusão às promessas de mercado segundo as quais certas
práticas que exigiam corpos belos, fortes e musculosos, hoje estariam ao alcance
também do sujeito médio, de corpo franzino. Basta acrescentar um aditivo afrodisíaco e
ele estaria pronto para desempenhar a desejada missão de Don Juan.
105
Considerações finais
É muito rico e, por vezes, parece não ter fim o trabalho de pesquisa e análise no
campo da Comunicação. Seja pelo fato deste campo envolver várias ciências sociais e
humanas, quanto pelo fato da comunicação permear todos os ambientes humanos. Este
trabalho, que teve início com a observação do conteúdo das tirinhas de Adão
Iturrusgarai publicadas na Folha de S.Paulo, chega à sua conclusão tendo passado pela
publicidade, por conteúdos televisivos e por discursos gerenciais de distintas décadas.
Durante a elaboração da pesquisa, aprendemos sobre a arte dos quadrinhos e sobre o
comércio que envolve sex shops, sex toys e demais atividades relacionadas ao
aprimoramento da performance sexual em nossos dias.
Todos estes envolvimentos tiveram como objetivo compreender a formação de
subjetividades contemporâneas, sempre mantendo em mente que o homem é um ser
social e histórico, portanto, procuramos não desvinculá-lo do contexto sociocultural no
qual está inserido.
Dentro do contexto da mercadorização do sexual, tema geral deste projeto, fez-
se necessário pesquisar diferentes conteúdos midiáticos. Entendemos que, em uma
sociedade midiatizada e de consumo, os indivíduos convivem com suas identidades em
constante processo de construção. Para esta construção contam com a decisiva
participação da máquina midiática, responsável pela mediação de representações
culturais, criação e veiculação de símbolos e pela produção de novos discursos e
significados.
Ao analisar determinadas estratégias discursivas na atual comunicação de
mercado e a maneira como estes discursos permeiam práticas de consumo e formação
de subjetividades, consolidamos nosso entendimento sobre as razões pela quais o
consumo ocupa lugar central na estruturação de valores e permeia a formação de
subjetividades nos dias de hoje.
Aprendemos que, principalmente nesta primeira década do século XXI, o
indivíduo depende mais e mais de seus próprios recursos e investimentos para alcançar
seus objetivos sociais e profissionais. Tendo em mente o sujeito empreendedor, que
gerencia o aprimoramento de si mesmo como um produto, este estudo procurou
relacionar comunicação e consumo de produtos e serviços destinados a potencializar a
autoimagem no hiper exigente mercado de subjetividades. Nesse contexto, a promessa
de um desempenho sexual espetacular figura como importante diferença competitiva,
106
uma vez que nos parece que dois corpos apenas em relações sexuais cotidianas não
trazem mais as experiências e prazeres esperados, atualmente.
Indivíduos são convocados a atenderem chamados de inserção em determinados
contextos sociais. Estes contextos nos parecem frequentemente competitivos, portanto,
para que atendam estes chamados, os indivíduos devem estar devidamente armados,
preparados, pois as expectativas são grandes, assim como a concorrência.
No mercado do sexual, adaptações e conhecimentos parecem ser as maneiras
pelas quais as subjetividades são chamadas a se adaptar e competir.
Ao falarmos de competição, buscamos trazer o ambiente competitivo de hoje
através dos discursos de gestão empresarial,
Tecnologia, globalização, desenvolvimento pessoal, performance a ser superada
a cada instante em qualquer atividade do cotidiano são as palavras de ordem da
contemporaneidade. Tudo isto, combinado com uma ausência de balizadores seguros e
definitivos, exige do sujeito a busca não só por respostas, mas, principalmente por
perguntas.
Em seu muito comentado Modernidade Líquida, Bauman constata que tudo,
por assim dizer, corre por conta do indivíduo. Cabe ao individuo descobrir o que é
capaz de fazer.” (2001, p.74). Argumentando de modo provocativo que talvez o pior
seja viver em um “mundo cheio de oportunidades”, um mundo onde “poucas coisas são
predeterminadas e menos ainda irrevogáveis” (idem), o autor enfatiza que é dever de
cada um escolher o que é melhor para si próprio a cada situação. As escolhas são
incessantes. Assim como os sucessos ou fracassos.
suficientes indicações de que o panorama que se apresenta na atualidade não
é dos mais tranquilos, principalmente em relação à insegurança dos indivíduos e a
formação de subjetividades em meio a tantas opções e possibilidades de escolha. Ao
mesmo tempo, percebe-se certo abandono das grandes soluções coletivas em prol de
resoluções pontuais e individuais. Parece não haver mais tanto interesse por causas
sociais, investimentos coletivos característicos das grandes narrativas do projeto da
modernidade. Mais e mais a busca por respostas e objetivos é um processo individual e
solitário.
Representações e discursos sociais são produzidos a partir dos apelos na
publicidade, da literatura de autoajuda, de certo tipo de jornalismo, da linguagem
sedutora da indústria do entretenimento. O senso comum modulado pela máquina
107
midiática. Todos parecem querer lembrar-nos o tempo inteiro da obrigação de sermos
“felizes” e “bem sucedidos”.
Estes discursos colaboram na formação de subjetividades. À disposição daqueles
que estão prontos a investir em sua autoimagem, encontramos referências em
incontáveis artigos de jornais e revistas, todo o tipo de serviços e produtos para serem
consumidos cotidianamente. Estas ofertas não falam apenas de como o indivíduo que
busca destaque deve se posicionar. Falam também, e principalmente, das dificuldades e
medos que deverão ser superados a fim de se atingir o objetivo final. Afinal, na
sociedade da privatização da subjetividade as soluções estão “dentro” de cada um e ao
alcance de cada um, basta saber a dose certa de investimento pessoal necessário para
alcança-las. Ir às compras, por exemplo, buscar aquilo que no momento lhe parece a
melhor solução.
O sucesso não é resultado do acaso ou do destino. Ele depende do empenho de
cada um. Finalmente, ele não é uma obra do destino, mas uma obrigação.
Num contexto onde a tríade felicidade, beleza e sucesso o palavras de ordem,
estas buscas constantes de aprimoramento por meio das mais diversas práticas de
consumo nos parecem longe de ser um porto seguro de longo prazo. Sequer de dio
prazo. Aprendemos que na pós-modernidade, identidades são instáveis. Se quiséssemos
exagerar, poderíamos dizer que a única coisa estável que está por é a constante
necessidade de mudar. Adaptarmos nossas subjetividades às demandas por
desempenhos superlativos, à por vezes brutal exigência de sermos felizes e bem
sucedidos, é o que se espera.
anos, Bauman (2001) vem apresentando sua visão a respeito da “sociedade
líquida” que se apresenta nos dias de hoje. Para isto, o autor nos explica que “os fluídos
não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a
mudá-la” (2001, p. 8). O autor nos lembra que estes fluidos, ou líquidos, preenchem
espaços apenas momentaneamente, assim como as identidades. Estas também se
aquietam apenas em sua configuração temporária.
A partir desta noção proposta por Bauman, parece que se torna difícil encontrar
um lugar, uma posição estável na qual o indivíduo pode sentir-se confortável e seguro
na sociedade atual. Mudanças são incessantes. A única constante parece ser o
interminável ajuste nas subjetividades.
108
Busca-se o reconhecimento social e para se atingir este reconhecimento a gestão
da própria vida parece ser solução adequada. Homens e mulheres priorizam as questões
de suas vidas privadas, pois assim acreditam ser possível atingir o êxito social buscado.
Levam suas vidas como se esta fosse uma pedra bruta que pode e deve ser
continuamente lapidada a fim de aumentar seu valor de mercado.
O tema não é novo. No final dos anos 1990, a revista EXAME publicava matéria
de capa intitulada A marca chamada VOCÊ
115
, assinada por Tom Peters, autor
apresentado em nota de rodapé na primeira gina da reportagem como “a principal
marca mundial na área de escrever, falar ou pensar sobre a nova economia” (p. 109).
Nesta matéria de 1997, Peters, que publicou diversos livros de sucesso global
nas áreas de gestão e marketing, afirmava que “somos os executivos chefes de nossas
próprias empresas: Eu S.A. Hoje em dia, o mais importante, para quem quer trabalhar e
fazer negócios, é ser o diretor de marketing da marca chamada Você
116
“.
Trabalhos como estes deram origem e fomentam o ideário da autoajuda, presente
não somente no âmbito profissional. Fica evidente que as linhas de definição de metas,
o desenvolvimento de estratégias e finalmente aplicação de um plano tático são válidas
tanto para o mercado profissional quanto para o cotidiano social. A busca é pelo
sucesso, pelo destaque através de um desempenho diferenciado.
Em interessante reflexão sobre a conquista da felicidade, Vera França (in:
FREIRE FILHO, p. 219) afirma que “vivemos em uma transição da era da disciplina
para a era da autonomia”. Conforme ensina a autora “cada qual deve cultivar da melhor
maneira seu capital social para alcançar uma melhor performance. Nesse contexto, os
sujeitos oscilam entre duas imagens: o individuo vencedor e o indivíduo fracassado”
(idem, p. 222).
É nesse quadro de permanente construção de identidades e de busca desenfreada
pelo sucesso e pela felicidade que o cartunista estudado aqui parece buscar inspiração
para seu trabalho diário. Frequentemente as tirinhas de Adão Iturrusgarai retratam o
tensionamento de valores morais e normas sociais, o crescente individualismo na busca
pelo sucesso e o prazer num contexto social onde imperam as regras de mercado. Ao
analisarmos o trabalho do cartunista, verificamos que seu humor ácido funciona como
cáustica critica social.
115
Edição 643, ano 31, No. 18 de 28 de agosto de 1997.
116
Idem, p. 109
109
No exemplo abaixo, notamos a sutileza com a qual o autor ilustra alguns dos
diferentes caminhos trilhados por indivíduos em busca de autoafirmação e
reconhecimento social, num contexto de normas líquidas que liberam e oprimem.
Figura 23: Tirinha de Rocky e Hudson
Fonte: Folha de S.Paulo de 09 de janeiro de 2011
Enquanto o casal de cowboys gay não tem problema algum em se beijar em
público, o casal que passa por eles tem motivos distintos para se recusarem a presenciar
a cena romantica do casal de vaqueiros. A moça, de aspecto tradiconal, com seu laço no
cabelo, vestida com recato, denunciando sua filiação conservadora, seu vestido abaixo
do joelho e suas botas sem salto parece chocada, moralmente afrontada, reagindo com
asco ao que vê. Seu namorado também concorda que é difícil “enxergar uma coisa
dessas”, porém seu motivo seria a excitação causada pelo teor homoerótico da cena.
Ao tematizar a mercadorização da esfera sexual, motivo que o levou a ser
selecionado como protagonista deste estudo, Adão se destaca pelas críticas que faz ao
consumo de serviços, saberes e produtos que prometem “turbinar” as práticas sexuais
contemporâneas. Através dos quadrinhos selecionados para esta pesquisa, Adão se
mostra especialmente sensível e hábil em detectar e ironizar as necessidades do
indivíduo contemporâneo que busca um lugar ao sol na atual sociedade do espetáculo e
do consumo. O cartunista tematiza o homem comum, com suas contradições no esforço
para gerir seu cotidiano de modo a obter vantagem, um diferencial competitivo no cruel
mercado das subjetividades. O artista caricaturiza, por exemplo, a desolação e a
onipresente frustração do sujeito atual em meio a relações nas quais objetos e pessoas
parecem exibir o mesmo status, onde o encontro amoroso é sempre impossível. Fast
fucking: sexo sem erotismo. A banalidade da sexualidade humana transformada em
mercadoria.
110
Encerramos este trabalho conscientes das múltiplas possibilidades que se
apresentam para sua eventual continuidade no campo acadêmico. Diversos aspectos que
deixaram de ser abordados por não se adequarem à linha de pesquisa escolhida, ou por
não serem compatíveis com o modesto escopo de uma dissertação de mestrado,
merecem desdobramentos futuros.
Um dos principais desejos vai em direção a um estudo de recepção das tirinhas
de Adão e demais conteúdos midiáticos aqui apresentados. O desenho do Programa de
Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo ESPM prevê a distribuição dos
projetos docentes e discentes em duas linhas de pesquisa, mutuamente excludentes.
Uma dessas linhas, à qual esta pesquisa se filia, dedica-se ao estudo das estratégias de
produção de mensagens midiáticas voltadas para o consumo. A segunda linha de
pesquisa do Programa se defronta com a recepção dessas mensagens e seus impactos
socioculturais.
Entendemos que como complemento à pesquisa aqui realizada no âmbito da
produção, uma investigação de fôlego no contexto da recepção tornaria este projeto
ainda mais interessante. O futuro é incerto mas, felizmente, as portas estão abertas. Na
verdade, longe de concluído, de certa forma o trabalho começa aqui.
111
Referências Bibliográficas
ACAYABA, Cíntia. C&A tira do ar campanha considerada erótica. Folha de S. Paulo,
São Paulo, 07 jun. 2008. Caderno Cotidiano 2, p. C1.
ANSELMO, Zilda Augusta. Histórias em quadrinhos. Petrópolis: Ed. Vozes, 1975.
BACCEGA, Maria Aparecida. Campo da comunicação. In: BARROS FILHO, Clóvis &
CASTRO, Gisela. Comunicação e práticas de consumo. São Paulo: Saraiva, 2007.
________________________. Inter-relações comunicação e consumo na trama cultural:
o papel do sujeito ativo. In: CASTRO, Gisela G.S. e TONDATO, Marcia P. (orgs.).
Caleidoscópio midiático: o consumo pelo prisma da comunicação. São Paulo: ESPM,
2009. E-book disponível em:
http://ppgcom.espm.br/images/docs/caleidoscopio_midiatico.pdf.
Acesso em fevereiro de 2011.
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