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Capítulos de
História
J. Capistrano de Abreu
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J. Capistrano de Abreu
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RASILEIRA
Sem título-1 23/11/2000, 16:471
O Brasil Visto por Estrangeiros
Colonial
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Anotações de João Capistrano de Abreu
(No exemplar de sua biblioteca)
CAP. I
pág. 21
What is sacred and dear to the native is trodden under foot, and pressure is ex-
erted on him to adapt his way of feeling and living to our own.
Instead of being encouraged to develop his native industries, he is taught to do
work that we do and that we value; instead of developing his work, which leaves him
time to live, he is driven into our plantation of factory system. The basis of his social
life and of such of his beliefs as are foreign to our feelings is undermined and he is
given as a substitute nothing that has a solid foundation is his mode of life and
thought. Furthermore the incentive to continue his own industrial pursuits, which re-
quire time and loving devotion, is lost when cheap factory products may be had with
little troubles, and when effective tools may be had almost for the asking. Thus it hap-
pens that home industries which forms the background of native life decays. The dis-
eases of civilisation are imported and work havoc among people that have not devel-
oped that immunity which is protecting the white invaders. Unless the population is
dense this inevitable result of all these causes is the extinction of the native population.
-- F. Boas. The Nation, 15 de fev. de 1919.
CAP IX
pág. 211
Depois de desembarcados, e de receberem uma copiosísssima salva de gritos e apeli-
dos infames, não só dos moços e negros, mas também dos práticos da sua mesma nação e
pátria, aquele que não leva dinheiro ou carta para algum amigo ou parente, logo aquela
primeira noite, alberga pelos alpendres das igrejas ou dentro de algum navio dos que na
ribeira estão varados, com tanta miséria e desventura como se com gran fortuna os houvera
o mar lançado em algum porto ou terra de inimigos. Assim passam o segundo e o terceiro
dia, empenhando ou vendendo a capa ou a espada se a levam, até se desenganarem do es-
tilo da terra. E vão, de quatro em quatro, de seis em seis, tomando suas casinhas donde se
estão pasmando e consumindo à pura fome, de que muitos vêm a enfermar e morrer. E os
que são de tão robusta natureza que podem superar com saúde todos estes contrastes
vão entretendo o tempo e suas misérias, como melhor podem, à sombra das esper-
anças que os práticos lhes dão, da armada que dali a dois ou três meses se há de fazer
para o Malabar. -- C. Lobo. Memórias de um soldado da Índia, 16/17."
(No exemplar de Adriano de Abreu)
CAP. VIII
(Guerras flamengas)
La flotte marchande s’adonnait surtout au trafic entre les pays baignés par la mer
Baltique, specialment le port de Dantzig, d’une part, et de la France, l’Espagne et le
Portugal d’autre part. Dans les pays baltiques elle échangeait contre du blé, du bois, des
matières textiles et des metaux, ses cargaisons de sel, d’épices et de produits alimen-
taires de l’industrie hollandaise.
Elle portait en Espagne et en Portugal les blés des pays baltiques et les bois de la
Norvège, ainsi que des denrées alimentaires hollandaises (fromages et harengs), et y
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prenait en échange du sel, de l’huile, des laines, du vin, des fruits et des épices. (Ch. de
Launay et Von der Linden, Hist. de l’exp. colon. 2º 5/6.)
Anotações de John Casper Branner
(No exemplar de Adriano de Abreu)
CAP. I
pág. 7, linha 14
White the exception of the regions about the Bay of Bahia and about Rio and
Santos.
CAP I
pág. 7, linha 17
This is not true in a geologic sense. Branner’s map showing the relief of the
ocean’s bottom along this coast (The Stone Reefs of Brazil) shows that the old coast
line is now far off at sea. The configuration of the region from near Victoria to Santos
shows also that there has been a recent depression of the coast and a corresponding in-
vasion by the sea. On the other hand the growth of the coral reef nort of Rio shows a
slow but constant encroachment of the land upon the sea.
CAP. I
pág. 8, linha 7
The precarious nature of the river bars is due chiefly to the varying volume of
the streams and these varying volume are due to the fluctuating rainfall in the regions
where the streams rise. A river like the S. Francisco has water enough at all seasons to
keep its mouth open and clean of sand, but the weaker streams have water enough to
keep their mouths open only in times, of enchentes. At such times these weaker streams
serve as ports and harbours, but when the dry season comes the streams diminish in
volume, and the waves of the sea are able to throw the sands back into the stream
mouths and to choke them up. Ships entering the mouths of these rivers during the
season of the "enchentes", sweep aside the obstructions thrown across the mouths of
the streams by the waves. I have known this to happen at Aracaju.
CAP. I
pág. 11, linha 16
The Serra do Espinhaço is an aged and respectable myth so far as north-eastern
Bahia is concerned. The Serra de Jacobina which was formely regarded as a part of the
Serra do Espinhaço runs in an almost straight line from Jacobina to Vila Nova or Bon-
fim.
At this last place the serra bends toward the northwest and becoming gradually
lower it desappers entirely just west of the village of Jurema -- The railway from Bahia
to Juazeiro does not cross an serra in the vicinity of Bonfim and even its route does
not follow the low valley that runs due north from near Tiririca in the direction of Boa
Vista on the Rio S. Francisco. The top of the watershead in the valley has an elevation
of 425 meters above sea-level. The highest point on the railways is 683 meters and the
elevation of Juazeiro is 372 meters. If one supposes that the railway crosses a serra, it is
evidently a very low one, only 311 meters above Juazeiro; while if it crossed the lowest
point on the watershead it would only have to pass 53 meters above the level of Juazeiro.
224 J. Capistrano de Abreu
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To the east of this railway toward Paulo Afonso there are various peaks and
ridges but they are isolated and have no direct connection with the mountains west and
southwest of Bonfim.
CAP. I
pág. 12, linha 25
This is true of the ordinary stages of these streams no doubt but during rainy
seasons the "rios Verde, Jacaré and Salitre" carry down enormous floods. Those
streams especially the Jacaré and the Salitre are much larger than were formely sup-
posed. The Jacaré has a length of about 400 kilometers and the Salitre of about 300
kilometers not to mention their branches and feeders.
CAP. I
pág. 13, linha 6
Volume -- em vez da palavra -- força.
CAP. I
pág. 15, linha 12
The elevation of the caatinga region of Bahia, the dry atmosphere and the even tem-
perature make this one the most healthful climates in the world.
The studies I have lately made of the geology of the secca region convince me
that much relief can be had over a large part of the area by the sinking of ordinary wells
and the use of common pumps. There are many places where water cannot be had in
this way, but there are thousands of square kilometers in Bahia where water can be so
had in sufficient abundance for domestic uses. The people there are not now ac-
quainted with the methods of well sinking and pumping.
Anotações de Philipp von Luetzelburg
(No exemplar de Adriano de Abreu)
Epífitos e cipós. Vegetação no chão, musgos e fetos
(pteridophytasas)
Catinga: Vegetação xerófila caracterizada pelos seguintes sinais: raízes, ou profun-
das em procura d’água subterrânea ou horizontais, muitas vezes engrossadas (reser-
vatórios d’água ou de substâncias nutritivas, fécula, etc.); arbustos e árvores sem tronco
bem formado, ramificação baixa e muito partida, forma de chapéu de sol; folhas
miúdas ou duras, coriáceas ou lanigerosas e moles (para evitar a transpiração contínua)
quando folhas miúdas e pinatas, são estas movediças; folhas muitas vezes transfor-
madas em espinhos, árvores misturadas com cactáceas no chão; de vez em quando cac-
táceas ou bromeliáceas. Não se observa epifitismo; as cascas em geral são lisas. Perda
de folhas para o fim da seca não geral e muito irregular.
Palmeiras nas zonas mais úmidas.
O sertanejo distingue -- Catinga -- Gerais -- Sertão:
catinga: vegetação mais abudante em árvores e arbustos, chão de areia;
gerais: zonas enormes de catinga uniforme;
sertão: vegetação -- catinga com mais cactáceas, chão pedroso;
Capítulos de História Colonial 225
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cerrado: catinga especialmente nas serras e chapadas aonde abundam pedras, e o
chão é bastante duro; com vegetação especialmente de árvores e arbustos baixos (1m
na média); abundantes são neles os arbustos espinhosíssimos e muito ramificados;
capoeira: matas com paus altos mas muito decimados pelo fogo. Aparecem pal-
meiras, bambus, no chão; de vez em quando, fetos e, em cima, epífitos. (Bahia central,
rio de Contas, Lençóis, etc.);
agreste: vegetação xerófila muito diferente da catinga; raízes profundas sustentam
troncos regulares e altos com ramagem bem proporcionada e folhas grandes e duras
(coriáceas), com cascas grossas e muitas vezes suberosas; árvores misturadas com pal-
meiras, agrupadas ou separadas dão ao agreste o aspecto de um parque. O chão, capim
e palmeiras baixas, raseiras; arbustos e ervas dicotiledôneas; raramente se vê uma cac-
tácea isolada.
As folhas das árvores do agreste caem irregularmente, de forma que o agreste
nunca perde sua cor esverdeada. O capim, que cobre o chão do agreste densamente é
duro, silicoso e torna-se amarelo durante a estação das secas;
tabuleiros: são uma espécie de agrestes serranos, os quais, por serem nas chapadas
e serras ricas em pedras com o chão duro, não têm as árvores tão altas e bem desen-
volvidas como as do agreste em geral.
226 J. Capistrano de Abreu
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I
Antecedentes indígenas
A quase totalidade do Brasil demora no hemisfério
meridional, e entre o Equador e o Trópico de Capricórnio alcança o país
as maiores dimensões.
Cercam-no ao sul, a sudoeste, oeste e noroeste as nações castelha-
nas do continente, exceto o Chile, por se interpor a Bolívia, e o Panamá,
por se interpor a Colômbia. Se confrontará algum dia com o Equador
hão de decidir negociações ainda ilíquidas. Desde o alto rio Branco até beira-
mar seguem-se colônias de Inglaterra, Holanda e França, ao norte.
Banha-o ao oriente o oceano Atlântico, numa extensão pouco mais ou
menos de oito mil quilômetros. Como o cabo de Orange, limite com a
Guiana Francesa, dista 37 graus do Xuí, limite com o Uruguai, salta logo aos
olhos a insignificância da periferia marítima; repete-se o espetáculo obser-
vado na África e na Austrália; nem o mar invade, nem a terra avança; faltam
mediterrâneos, penínsulas, golfos, ilhas consideráveis; os dois elementos co-
existem quase sem transições e sem penetração; com recursos próprios o
homem não pôde ir além da pescaria em jangadas.
A borda litorânea dispõe-se em dois rumos principais. Noroeste-
sudeste do Pará a Pernambuco, nordeste-sudoeste de Pernambuco ao
extremo Sul.
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A costa de NO-SE corre baixa, quase retilínea, intermeada de du-
nas e lençóis de areia, aquém do Amazonas; baixa, lamacenta, de contor-
nos variáveis, entre o Amazonas e o Oiapoque. Os materiais marinhos,
os sedimentos fluviais dão-lhe o aspecto das costas compensadas; os
portos rareiam, as barras dos rios são as verdadeiras entradas, em geral
precárias. O desenvolvimento econômico ou as exigências administrati-
vas mais que as condições naturais levam a navegação de longo curso
para Belém, S. Luís, Amarração, Fortaleza, Natal, Paraíba e Recife. Ou-
tros portos servem apenas à cabotagem. Tutóia franqueia o Parnaíba a
embarcações de maior porte.
A costa de sudoeste desde Pernambuco até Santa Catarina arrima-
se à serra do Mar, varia de aspecto, aqui extensões arenosas, além barrei-
ras vermelhas, encostas cobertas de matas, ou montanhas que arcam
com as ondas. Nela existem as maiores baías do Brasil: Todos os Santos,
Camamu, Rio, Angra dos Reis, Paranaguá. A navegação de alto bordo
procura as capitais dos estados, exceto as de Sergipe e Paraná, mais os
portos de Santos, Paranaguá e S. Francisco do Sul. Também neste tre-
cho se encontram as maiores e mais numerosas ilhas, em geral dentro de
baías, todas de procedência continental.
A partir de Santa Catarina a costa se abaixa novamente; no Rio
Grande do Sul dominam lagunas, cujo extenso litoral interno só poderá
verdadeiramente prosperar quando a arte der a saída franca que a
natureza lhes negou para o oceano.
As ilhas de procedência vulcânica, Fernão de Noronha, fronteira
ao Rio Grande do Norte, Trindade, fronteira a Espírito Santo, pouco
representam agora. Trindade parece imprópria à ocupação permanente:
a Inglaterra só a disputou nos últimos anos por se prestar ao amarradio
de cabos transatlânticos.
A faixa marítima apresenta largura variável: em geral avantaja-se
mais de Pernambuco para o Pará, e no Rio Grande do Sul; no restante
sua expansão subordina-se aos caprichos da serra do Mar: temos aqui as
chamadas costas concordantes.
Ao norte liga-se com a baixada do Amazonas, muito ampla à saída,
relativamente estreita entre Xingu e Nhamundá, amplíssima a oeste do
Madeira e do Negro até o sopé dos Andes. As cachoeiras mais seten-
trionais do Tocantins, do Xingu, do Tapajós e do Madeira balizam a
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baixada pela banda do sul. Pela banda do norte, a este do Negro, logo a
algumas dezenas de quilômetros da foz, começa o trecho encachoeirado
nos rios que descem da Guiana. De este a oeste apresenta declive insen-
sível: mais desce o S. Francisco na cachoeira de Paulo Afonso do que o
Amazonas nos três mil quilômetros que vão de Tabatinga ao mar.
A baixada marítima liga-se ainda ao sul com a do Paraguai que
começa no estuário do Prata e prossegue até Mato Grosso, Cuiabá, na
gema do continente, pouco mais de duzentos metros terá de altitude. As
margens do rio principal, bastante altas no curso inferior, vão se abaix-
ando à medida que se marcha para o norte, até uma região anualmente
alagada por espaço de muitas léguas, o chamado lago Xarais dos primei-
ros exploradores. Abundam aliás os lagos marginais, conhecidos pela de-
nominação de baías; por uma série de baías passa a linha lindeira com a
Bolívia.
As baixadas amazônica e paraguaia, contínuas com a do oceano,
aproximam-se muito a oeste: entre o Aguapeí, afluente do Jauru,
tributário do Paraguai, e o Alegre, afluente do Guaporé, um dos for-
madores do Madeira, inserem-se apenas pouco quilômetros de distância.
O governo português pensou em cortar este varadouro por um canal
que levaria do Prata ao Amazonas, e deste, aproveitando o Caciquiare,
ao Orinoco, à ilha de Trinidad, ao mar das Antilhas.
A obra começada parou logo e parece inexeqüível, porque uma lín-
gua de terras bastante altas aparece e se estende até Chiquitos, na
Bolívia, produzindo um desnivelamento pouco favorável.
As bacias do Amazonas e do Paraguai com os rios que as cortam,
as ilhas numerosas, os lagos consideráveis e os canais sem conta com-
pensam até certo ponto a pobreza do desenvolvimento marítimo, e são
os verdadeiros mediterrâneos brasileiros. A depressão do Paraguai re-
unida à do alto Amazonas separa dos Andes as terras altas do Brasil, que
a baixada amazônica ao norte aparta do planalto da Guiana, e a baixada
marítima precede pelos outros lados. A partir do Jauru, o Paraguai não
recebe afluentes consideráveis em território brasileiro, à direita.
Desde o rio Uruguai o planalto brasileiro é limitado pela serra do
Mar, áspera e coberta de matas na falda voltada para o oceano, mais
suave na parte interior, de largura entre vinte e oitenta quilômetros, com
picos que raramente passam de dois mil metros. Serve de divisora das
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águas entre os rios que procuram diretamente o Atlântico -- em geral de
pequeno curso, pois apenas dois, o Iguape e o Paraíba, rompem a serra,
e os outros são rios transversais ou de meia-água -- e os rios que se desti-
nam ao Prata, de muito maior extensão e cabedal: o Uruguai pertencente
no Brasil pelos dois lados até Peperiguaçu, limite com a Argentina, e
pelo lado esquerdo até Quaraim, limite com o Uruguai; o Iguaçu, com
saltos de maravilhosa beleza, no trecho em que a esquerda pertence à
Argentina e a direita ao Brasil; o Ivaí, próximo ao salto de Guairá; o
Paranapanema, o Tietê, de tamanha significação histórica, e outros aflu-
entes orientais do Paraná.
Da serra do Mar desprende-se a da Mantiqueira, que mais pelo in-
terior vai desde o Estado do Paraná até Minas Gerais. Nela fica o pico
mais alto do Brasil, o do Itatiaia, com cerca de três mil metros de alti-
tude. Vem depois a serra do Espinhaço, que acompanha o rio S. Fran-
cisco pelo lado direito até ser cortada na grande curva traçada a nordeste
por ele antes de se lançar no oceano. Ambas representam papel
somenos como divisoras das águas: a da Mantiqueira entre o Paraíba do
Sul e o alto Paraná, a do Espinhaço entre o S. Francisco, de que estreita
a bacia ao oriente, logo depois de formado o rio das Velhas, e os rios de
meia-água que se dirigem ao mar: Doce, Jequitinhonha, Pardo, Contas,
Paraguaçu.
Das alturas de Barbacena arranca uma lombada transversal no
rumo aproximado este-oeste, que, com várias denominações, a trechos
rigorosamente montanhosa, alhures meramente denudada, é o maior di-
visor das águas dentro do planalto. Chamou-a serra das Vertentes o
benemérito Eschwege, denominação excelente se, deixada de parte a
estrutura, se atender somente ao papel representado na América do Sul.
A um lado as águas vertem para o Paraná e para o Paraguai, ambos nas-
cidos nesta zona, e, como o Uruguai, terminando o curso em território
estrangeiro; ao outro lado da vertente, correm os tributários do Madeira,
objeto de longas disputas desde que Manuel Félix de Lima, em 1742, foi
pela primeira vez das minas de Mato Grosso até a sua foz; o Tapajós,
antigo caminho dos cuiabanos para a compra do guaraná entre os
maués; o Xingu, cujas más condições de navegabilidade desviaram as ex-
plorações por muito tempo e deixaram viver até poucos anos numerosas
tribos indígenas em pura idade de pedra, cujo estudo impulsionou
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poderosamente a etnografia sul-americana; o Araguaia-Tocantins, o Par-
naíba, o S. Francisco.
O S. Francisco, de grande importância histórica, é formado pelo
rio que com este nome desce da serra da Canastra e pelo rio das Velhas.
No trecho superior, os afluentes mais consideráveis correm entre estas
duas cabeceiras até sua confluência; transposto já o salto de Pirapora, a
divisora das águas com o Tocantins afasta-se e deixa que se desen-
volvam o Paracatu, o Urucuia, o Carinhanha, o Corrente, o Grande, ao
passo que a serra do Espinhaço se aproxima. Desde a barra do rio
Grande para o mar, nem de uma, nem de outra margem concorre aflu-
ente algum considerável; os embaraços encontrados pela navegação acu-
mulam-se, e tolheram as comunicações até ser transposto por uma via
férrea o trecho encachoeirado.
O S. Francisco é, por assim dizer, a imagem de quase todos os rios
do Brasil: no planalto, apenas o volume de água o permite, uma exten-
são, de centenas de léguas às vezes, perenemente navegável por embar-
cações de maior ou menor capacidade; em seguida, a descida do planalto
com saltos e corredeiras, como os do Madeira, o Augusto no Tapajós, o
Itaboca no Tocantins, o Paulo Afonso no S. Francisco, e tantos outros;
finalmente, as águas se acalmam e aprofundam, e os embaraços de todo
desaparecem quando lhes sobra força suficiente para impedir a for-
mação de baixios na barra.
Deste tipo se apartam o Amazonas, cuja região tormentosa é ven-
cida logo nas cabeceiras, muito antes de entrar no Brasil e seus afluentes
situados a oeste do Madeira e do Negro, no chamado Solimões, nasci-
dos todos em regiões pouco elevadas e logo difundidos por grandes
baixadas, quase niveladas. Em menores dimensões reproduz-se o fato
com o rio Paraguai e alguns de seus afluentes. O Parnaíba e os rios do
Maranhão, descendo suavemente por um declive graduado ao longo do
seu curso, apresentam uma forma de transição entre o tipo dos rios das
baixadas e dos chapadões.
As montanhas preparam e os rios esculpem no planalto brasileiro
quatro divisões bem distintas: o chapadão amazônico desde o Guaporé
ao Tocantins; o do Parnaíba, inserido entre o primeiro e o do S. Fran-
cisco, mais vasto, que alcança sua maior expansão à margem esquerda
desta bacia; finalmente o do Paraná-Uruguai, entre a serra do Mar e as
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montanhas de Guaiás. As relações existentes entre estes chapadões atu-
aram sobre o povoamento do território.
O planalto das Guianas apresenta outro chapadão elevado, com al-
guns picos graníticos, poucos de mais de mil metros.
A oeste alguns afluentes amazônicos nascidos fora do Brasil, o Içá,
Japurá, Negro, em seu trecho inferior correm por algum espaço paralela-
mente ao rio principal. Pouco extensas, pouco navegáveis correntes de
meia-água desembocam a este do Negro, descendo da borda meridional
do chapadão das Guianas.
O rio das Amazonas vaza uma bacia de sete milhões de
quilômetros quadrados, a maior do globo, tamanha, quase, como o
Brasil inteiro. Sangram para ela grandes partes dos planaltos brasileiro,
guianês e andino; como a quadra das chuvas não cai em todos eles ao
mesmo tempo, sucede que quando começam a baixar os afluentes de
um enchem os do outro lado, e a vazante nunca se dá completa. Às
vezes tanto se avoluma o rio-mar que represa os tributários e por seus
furos manda-lhes água a muitos quilômetros da foz. Os lagos margi-
nais, as ilhas numerosas, os furos, os paranamirins permitiram
navegar desde o oceano até os confins do país sem nunca penetrar
na madre. Suas inundações alcançam quase vinte metros acima do
nível ordinário; por cima das florestas podem então passar embarcações,
das quais algumas semanas antes mal se avistava o topo do arvoredo. O
Amazonas corre de oeste para este, acompanhando a equinocial, e seu
clima pode dizer-se proximamente o mesmo em toda esta extensão: genui-
namente tropical, pouco variável, sem diferenças sensíveis de temperatura, de
atmosfera úmida, abundantemente chuvosa, máxime junto do mar e perto dos
Andes. A maior ou menor freqüência relativa de chuvas se designa pelos
nomes de verão e inverno; de inverno só pode dar idéia aproximada, pelo
lado da temperatura, o ligeiro refrigério sentido à noite.
Ao sul do Amazonas, entre os rios Parnaíba e São Francisco, estende-
se uma zona periodicamente flagelada por secas. Quando as estações cor-
rem regularmente há leves chuveiros, chamados de caju, à passagem do
sol para o sul; chuvas maiores caem antes ou depois do equinócio de
março; São João é já fins d’água. No caso contrário secam os rios, ex-
ceto em alguns poços e depressões, murcham os pastos, permanecem
nuas as árvores, sucumbe o gado à sede ou à inanição, e a gente morre à
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fome quando só dispõe dos recursos locais. A necessidade de lutar con-
tra a calamidade inspirou a construção de açudes, a cultura das vazantes,
a retirada do gado, a distribuição de ramas para alimentá-lo, as grandes
levas de retirantes.
À beira-mar entre o Oiapoque e o Parnaíba, e do S. Francisco para
o sul domina igualmente o clima tropical até Santa Catarina: em alguns
trechos quase todos os meses do ano chove, em outros intervêm es-
tiadas maiores, em geral subordinadas à marcha solar.
A distância do Equador avulta as diferenças termométricas, aliás
contidas em extremos pouco apartados. Com o solstício de junho,
pouco antes ou pouco depois, coincidem o maior abaixamento ter-
mométrico e a diminuição nos precipitados atmosféricos.
No Rio Grande do Sul as estações fria e quente já aparecem mel-
hor delimitadas, as variações de temperaturas tornam-se mais notáveis, e
a estação das águas tende a emparelhar-se com a do frio.
Isto se refere ao litoral. No interior do país, reina também o clima
tropical, modificado mais ou menos por fatores locais e revestindo certa
feição continental. Geralmente chove no sertão menos que à beira-mar;
as estações seca e úmida andam mais nitidamente discriminadas; o ar do
planalto, facilmente aquecível durante o dia em conseqüência de sua
pouca densidade, rapidamente esfria à noite pelo mesmo motivo, pro-
duzindo às vezes variações bruscas no decurso de vinte e quatro horas.
Também aqui as chuvas compassam-se pelo sol: em vários pontos
há uma estação úmida menor e anterior, outra maior e posterior ao sol-
stício de dezembro.
Na depressão amazônica associam-se o calor e a umidade, a vege-
tação atinge o máximo desenvolvimento, alardeia-se a grande mata ter-
real.
A luta pelo ar e pela luz arremessa as plantas para cima, repelem-se
nas alturas as copas do arvoredo, árvores possantes viram trepadeiras,
cruzam-se lianas em todos os sentidos. Plantas sociais como a imbaúba
e a munguba constituem exceção; em regra numa superfície dada cresce
o maior número possível de espécies diferentes.
Pouco influi sobre a fisionomia do conjunto a distância do oceano;
muito mais atua o apartamento do rio; no caaigapó, sujeito à inundação
ânua, avultam palmeiras, muitas delas espinhosas, reduz-se o porte das
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árvores; no caaetê, sobranceiro a ela, culminam gigantes vegetais, triun-
fam dicotiledôneas e epífitos; mais adiante começam os xerófitos.
A região flagelada pela seca possui também matas, porém solteiras,
nas serras capazes de condensarem vapores atmosféricos, nas margens
dos rios em lugares favorecidos pela umidade do subsolo. De dimensões
restritas, sustentam a outros respeitos o confronto com as das regiões
mais felizes; não representam, entretanto, fielmente a feição dominante.
Desde a Bahia começa a mata virgem contínua, e com os mesmos
caracteres orla a borda oriental da serra do Mar: troncos eretos, ramifi-
cação muito acima do solo, folhagem sempre verdejante, variedade de
espécies dentro de pequenas áreas, abundância de epífitos. Os acidentes
topográficos introduzem aqui na paisagem uma variedade golpeante,
desconhecida na monotonia intérmina da Amazônia.
Além da serra do Mar abrem-se os campos, vastas extensões ocu-
padas por gramíneas e ervas mais ou menos rasteiras.
Onde a altitude o permite surgem araucárias; em certos pontos
adensam-se capões, cujo nome indígena está indicando a forma circular.
Os campos do Sul explicam alguns pela baixa da temperatura durante o
período germinativo. Ao norte existem igualmente campos, cuja expli-
cação parece outra: o solo, muito quente e pouco úmido, requeimando
as sementes das árvores, rouba-lhes a vitalidade.
Caatinga, carrasco, cerrado, agreste designam todos várias formas
de vegetação xerófila, caracterizada pelas raízes às vezes muito profun-
das, munidas muitas de bulbo que prende a água, pelo tronco áspero,
gretado, exíguo, esgalhado, como se procurasse para os lados o desen-
volvimento que lhe foge na vertical, pelas folhas mais ou menos miúdas,
que caem numa parte do ano para melhor resistir à seca, limitando a
evaporação.
Na região das secas esta forma de vegetação chega quase à beira-
mar; em quase todos os estados existe, mais ou menos, testemunho e
efeito do clima continental. O povo brasileiro, começando pelo oriente a
ocupação do território, concentrou-se principalmente na zona da mata,
que lhe fornecia pau-brasil, madeira de construção, terrenos próprios
para cana, para fumo e, afinal, para café. A mata amazônica forneceu
também o cravo, o cacau, a salsaparrilha, a castanha e, mais importante
que todos os outros produtos florestais, a borracha. Os campos do Sul
20 J. Capistrano de Abreu
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produzem mate. Nos do Norte, em geral, e nas zonas de vegetação
xerófila, plantam-se cereais ou algodão e pasta o gado. A obra do
homem chama-se capoeira: terreno privado da vegetação primitiva, ocu-
pado depois por vegetais adventícios cuja fisionomia ainda não assumiu
feição bem caracterizada. Os capoeirões podem dar a ilusão de verdadeiras
matas.
A fauna do Brasil é muito rica em insetos, répteis, aves, peixes e
pequenos quadrúpedes. São formas características as emas, os papagaios, os
beija-flores, os desdentados, os marsúpios, os macacos platirrínios.
Na baixada litorânea, muitas formas de moluscos, peixes e aves há
comuns ao Atlântico do Sul; o colorido de alguns por tal modo se asse-
melha à areia que custa descobri-los em repouso.
A fauna da mata apresenta, ao contrário, o colorido mais vistoso,
principalmente nas borboletas, que às vezes atingem tamanho enorme, e nas
aves. A maior parte das espécies adaptou-se à vida arbórea e algumas, como
a arcaica preguiça, vão desaparecendo com as derrubadas.
"Mais pálida em colorido e fraca em força numérica é a fauna do
sertão", lembra Goeldi. "Suntuoso uniforme de gala nos descampados não
seria desejável nem proveitoso. Para os animais sertanejos é de mais van-
tagem sua roupa branco-amarelada e monótona que no meio do capim se
conserva neutra entre a cor do solo e o colorido da macega torrada pelo sol.
"Se por um lado, no litoral, é aparelho útil a asa comprida, apropriada
ao vôo persistente, e, por outro lado, o pé trepador, para o morador da
mata, torna-se precioso dote para formas animais que vivem correndo pelo
solo uma perna comprida e capaz de corresponder a fortes exigências. Aí
estão para atestá-lo a seriema de alto coturno e a gigantesca ema. O próprio
lobo brasileiro muniu-se, além de umas orelhas grandes, a modo de chacal
do deserto, de longas pernas a feitio de galgo."
Entre estes animais nem um pareceu próprio ao indígena para co-
laborar na evolução social, dando leite, fornecendo vestimenta ou aux-
iliando o transporte; apenas domesticou um ou outro, os mimbabas da
língua geral -- em maioria aves, principalmente papagaios, só para
recreio. De caça e principalmente de pesca era composta sua alimentação
animal. Possuía agricultura incipiente, de mandioca, de milho, de várias fru-
tas. Como eram-lhe desconhecidos os metais, o fogo, produzido pelo
atrito, fazia quase todos os ofícios do ferro. A plantação e colheita, a
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cozinha, a louça, as bebidas fermentadas competiam às mulheres; encar-
regavam-se os homens das derrubadas, das pescarias, das caçadas e da
guerra.
As guerras ferviam contínuas; a cunhã prisioneira agregava-se à
tribo vitoriosa, pois vigorava a idéia da nulidade da fêmea na procriação,
exatamente como a da terra no processo vegetativo; os homens eram
comidos em muitas tribos no meio de festas rituais. A antropofagia não
despertava repugnância e parece ter sido muito vulgarizada: algumas tri-
bos comiam os inimigos, outras os parentes e amigos, eis a diferença.
Viviam em pequenas comunidades. Pouco trabalho dava fincar uns
paus e estender folhas por cima, carregar algumas cabaças e panelas; por
isso andavam em contínuas mudanças, já necessitadas pela escassez dos
animais próprios à alimentação.
De rixas minúsculas surgiam separações definitivas; grassava uma
fissiparidade constante. Tradição muito vulgarizada explicava grandes
migrações por disputas a propósito de um papagaio.
O chefe apenas possuía autoridade nominal. Maior força cabia ao poder
espiritual. Acreditavam em seres luminosos, bons e inertes, que não exigiam
culto, e poderes tenebrosos, maus, vingativos, que cumpria propiciar para
apartar sua cólera e angariar-lhes o favor contra os perigos: eram as almas dos
avós. Entre eles contava-se o curador, pajé ou caraíba, senhor da vida e da morte,
que ressuscitara depois de finado e não podia mais tornar a morrer.
Tinham os sentidos mais apurados, e intensidade de observação da
natureza inconcebível para o homem civilizado. Não lhes faltava talento
artístico, revelado em produtos cerâmicos, trançados, pinturas de cuia, más-
caras, adornos, danças e músicas.
Das suas lendas, que às vezes os conservavam noites inteiras acordados
e atentos, muito pouco sabemos: um dos primeiros cuidados dos missionários
consistia e consiste ainda em apagá-las e substituí-las.
Falavam línguas diversas, quanto ao léxico, mas obedecendo ao mesmo
tipo: o nome substantivo tinha passado e futuro como o verbo; o verbo in-
transitivo fazia de verdadeiro substantivo; o verbo transitivo pedia dois pro-
nomes, um agente e outro paciente: a primeira pessoa do plural apresentava às
vezes uma flexão inclusiva e outra exclusiva; no falar comum a parataxe
dominava. A abundância e flexibilidade dos supinos facilitaram a
tradução de certas idéias européias.
22 J. Capistrano de Abreu
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Fundada no exame lingüístico a etnografia moderna conseguiu agregar
em grupos certas tribos mais ou menos estreitamente conexas entre si. No
primeiro entram os que falavam a língua geral, assim chamada por sua área
de distribuição. Predominavam próximo de beira-mar, vindos do sertão, e
formavam três migrações diversas: a dos carijós ou guaranis, desde Cananéia
e Paranapanema para o sul e oeste; os tupiniquins, no Tietê, no Jequitin-
honha, na costa e sertão da Bahia, na serra da Ibiapaba; os tupinambás no
Rio de Janeiro, a um e outro lado do baixo S. Francisco até o Rio Grande
do Norte, e do Maranhão até o Pará. O centro de irradiação das três mi-
grações deve procurar-se entre o rio Paraná e o Paraguai.
Nos outros grupos falavam-se as línguas travadas: os jês, repre-
sentados pelos aimorés ou botocudos próximo do mar, e ainda hoje nu-
merosos no interior; os cariris disseminados do Paraguaçu até o
Itapicuru e talvez Mearim, em geral pelo sertão, conquanto os tremem-
bés habitassem as praias do Ceará; os caraíbas, cujos representantes mais
orientais são os pimenteiras, no Piauí, ainda hoje encontrados no cha-
padão e na bacia do Amazonas; os maipures ou nu-aruaques, que desde a
Guiana penetraram até o rio Paraguai e ainda aparecem nas cercanias de sua
antiga pátria, e até no alto Purus; os panos, os guaicurus, etc.,
Se abstrairmos do Amazonas, onde havia muitos maipures e não pou-
cos caraíbas, só os tupis e os cariris foram incorporados em grande pro-
porção à atual população do Brasil.
Os cariris, pelo menos na Bahia e na antiga capitania de Pernambuco,
já ocupavam a beira-mar quando chegaram os portadores da língua geral.
Repelidos por estes para o interior, resistiram bravamente à invasão dos
colonos europeus, mas os missionários conseguiram aldear muitos e a
criação de gado ajudou a conciliar outros. Talvez provenha dos cariris a ca-
beça chata, comum nos sertanejos de certas zonas.
Se agora examinarmos a influência do meio sobre esses povos naturais,
não se afigura a indolência o seu principal característico. Indolente o
indígena era sem dúvida, mas também capaz de grandes esforços, podia dar
e deu muito de si. O principal efeito dos fatores antropogeográficos foi dis-
pensar a cooperação.
Que medidas conjuntas e preventivas se podem tomar contra o
calor? Qual o incentivo para condensar as associações? Como progredir
com a comunidade reduzida a meia dúzia de famílias?
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A mesma ausência de cooperação, a mesma incapacidade de ação
incorporada e inteligente, limitada apenas pela divisão do trabalho e suas
conseqüências, parece terem os indígenas legado aos seus sucessores.
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II
Fatores exóticos
Ao começar o século XVI, Portugal labutava na tran-
sição da Idade Média para a era moderna. Coexistiam em seu seio duas
sociedades completas, com sua hierarquia, sua legislação e seus tribunais;
mas a sociedade não civil não professava mais a superioridade transcen-
dente nem se sujeitava à dependência absoluta da Igreja, despida agora
de muitas de suas históricas prerrogativas, obrigada a reduzir muitas de
suas pretensões.
O Estado reconhecia e acatava as leis da Igreja, executava as sen-
tenças de seus tribunais, declarava-se incompetente em quaisquer litígios
debatidos entre clérigos, só punia um eclesiástico se, depois de de-
gradado, era-lhe entregue por seus superiores ordinários, respeitava o di-
reito de asilo nos templos e mosteiros para os criminosos cujas penas
eram de sangue, abstinha-se de cobrar impostos do clero.
A Igreja dominava soberana pelo batismo, tão necessário à vida
civil como à salvação da alma; pelo casamento, que podia permitir, sus-
tar ou anular com impedimentos dirimentes; pelos sacramentos, dis-
tribuídos através da existência inteira; pela excomunhão, que incapaci-
tava para todos eles; pelo interdito, que separava comunidades inteiras da
comunicação dos santos; pela morte, permitindo ou negando sufrágios,
sumário
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deixando que o cadáver descansasse em lugar sagrado junto aos irmãos
ou apodrecesse nos monturos em companhia dos bichos; dominava
pelo ensino, limitando e definindo as crenças, extremando o que se po-
dia do que não era lícito aprender ou ensinar.
Contra ela, na esfera estreita ainda em que firmara sua competên-
cia, depois de lutas com o papado e com o clero indígena, o Estado em-
pregava o placet para os documentos emanados do sólio pontifício, os
juízes da coroa para resguardar certos órgãos essenciais ao exercício nor-
mal da soberania plena, as leis de amortização para limitar aquisições
prediais, as temporalidades para abolir certas resistências. Em compen-
sação, repartia sua jurisdição com o outro poder em casos por isso
chamados mixti fori, prestava o braço secular para executar, até com
morte violenta, os condenados pelo juízo eclesiástico, duramente casti-
gava certos atos só porque a Igreja os considerava pecaminosos; em
suma, o mesmo que hoje os interesses econômicos ou fiscais, pesavam
então inspirações religiosas e considerações eclesiásticas.
Apesar de tudo ocorriam freqüentes atritos entre a Igreja e o
Estado, aquela disposta a abrir o menos possível mão de suas
atribuições antigas, este conquistando ou assumindo sempre novas
faculdades, para arcar com os problemas crescentes, legados onerosos
do regime medieval, exigências inadiáveis de uma situação transformada
pelo comércio fortalecido pelas comunicações amiudadas, pela indústria
renascente, pela renovação intelectual, pela circulação metálica em luta
contra a economia naturalista, rasgando horizontes mundiais.
Como o papa, cabeça da sociedade religiosa, o rei tornara-se o su-
jeito jurídico da sociedade civil: na qualidade de senhor absoluto, seus
poderes não admitiam fronteiras definíveis, invocados como um
princípio de eqüidade superior, como remédio a casos excepcionais,
graves e imprevistos. De outros poderes suscetíveis de definição, podia
fazer uso mais ou menos completo, e aliená-los em parte.
Era direito real bater moeda, criar capitães na terra e no mar, fazer
oficiais de justiça, do ínfimo ao pino da carreira, declarar guerra,
chamando o povo às armas com os mantimentos necessários. Para seu
serviço el-rei tomava carros, bestas e navios dos súditos; pertenciam-lhe
as estradas e as vias públicas, os rios navegáveis, os direitos de passagens
26 J. Capistrano de Abreu
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de rios, os portos de mar com as portagens neles pagas, as ilhas adjacen-
tes ao Reino, as rendas das pescarias, das marinhas, do sal, as minas de
ouro, prata e quaisquer outros metais, os bens sem dono, os dos malfei-
tores de certos crimes. Nele se concentrava toda a faculdade legislativa:
os votos das Cortes só valiam com seu assenso e enquanto lhe aprazia,
pois as disposições mais precisas podia dispensar, especificando-as;
juízes e tribunais eram delegações do trono.
Abaixo do rei estava a nobreza, numerosa em famílias como nas
distinções que separavam umas de outras, compreendendo desde os
senhores donatários, com honras, coutos e jurisdição, e os grãos-mestres
das ordens militares, cujo mestrado o rei houve por bem afinal assumir,
até simples cavaleiros e escudeiros. Seu poderio fora grande; agora con-
centrava-se com o monopólio dos cargos públicos, com o papel saliente
nos tempos de guerra ou conselhos da coroa, com a situação privile-
giada nas questões penais, em que o título de nobre defendia os tormen-
tos ou acarretava diminuição de pena. A nobreza não era uma casta ex-
clusiva: davam para ela várias portas, entre as quais a das letras.
Abaixo da nobreza acampava o povo, a grande massa da nação,
sem direitos pessoais, apenas defendidos seus filhos por pessoas morais
a que se acostavam, lavradores, mecânicos, mercadores; os de mor quali-
dade chamavam-se homens bons, e reuniam-se em câmaras municipais,
órgãos de administração local, cuja importância, então e sempre
somenos, nunca pesou decisivamente em lances momentosos, nem no
Reino, nem aqui, apesar dos esforços de escritores nossos contemporâneos,
iludidos pelas aparências fugazes ou cegados por idéias preconcebidas.
Abundavam pessoas morais a que o povo se podia filiar -- corporações limi-
tadas como as de moedeiros e bombardeiros, coletividades maiores como os ci-
dadãos do Porto. Os privilégios inerentes a estes foram outorgados a várias ci-
dades do Brasil, Maranhão, Bahia, Rio e São Paulo, pelo menos; pelo que encer-
ram, dão bem a idéia de direitos regateados a quem tinha apenas para socorrer-se
a mera qualidade de ser humano.
A estes felizes cidadãos do Porto concedeu Dom João II: que não fossem
metidos a tormentos por nenhuns malefícios que tivessem feito, cometido e
cometessem e fizessem daí por diante, salvo nos feitos e daquelas qualidades e
nos modos em que o devem ser e são os fidalgos do reino e senhores;
Capítulos de História Colonial 27
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que não pudessem ser presos por nenhum crime, somente sobre
suas menagens e assim como são e devem ser os fidalgos;
que pudessem trazer e trouxessem por todos os seus reinos e sen-
horios quais e quantas armas lhes aprouvesse de noite e de dia, assim
ofensivas como defensivas;
que não pousassem com eles nem lhes tomassem suas casas de
moradas, adegas, nem cavalarias, nem suas bestas de sela, nem outra
nenhuma coisa de seu contra suas vontades e lhes catassem e guardas-
sem muito inteiramente suas casas, e houvessem com elas e fora delas
todas as liberdades que antigamente haviam os infanções e ricos
homens;
que os serviçais agrícolas só fossem à guerra com os patrões.
Abaixo do terceiro estado havia ainda os servos, escravos, etc., etc.,
cujo direito único cifrava-se em poderem, dadas circunstâncias fa-
voráveis, passar à classe imediatamente superior, pois, conquanto rentes
as separações, as classes nunca se transformaram em castas.
Os três traços do clero, da nobreza e do povo, convocados em
ocasiões solenes e a intervalos arbitrários, constituíram as Cortes. Mera-
mente consultivas, ou por igual deliberativas? Liquidem entre si este
ponto os eruditos de além-mar; fora de dúvida só valeram enquanto os
reis consideraram reinar como um ofício e precisaram de recursos pe-
cuniários para os quais não eram suficientes os copiosos direitos reais.
A prosperidade e o povoamento do Brasil provaram fatais a esta venerável
instituição. Por uma coincidência nada fortuita, reuniram-se as últimas Cortes em
1697, quando o ouro das Gerais começava a deslumbrar o mundo, e só reviveram
com a revolução francesa, as guerras napoleônicas e a independência real do Brasil,
depois de trasladada para aqui a sede da monarquia portuguesa.
Em 1527 a soma total dos fogos em todo o Reino andava por duzen-
tos e oitenta mil quinhentos e vinte e oito; dando a cada um destes um
número de quatro indivíduos, a população do Reino seria naquele ano de
um milhão cento e vinte e dois mil cento e doze almas. Com este pessoal
exíguo, que não bastava para enchê-lo, ia Portugal povoar o mundo. Como
consegui-lo sem atirar-se à mestiçagem?
A agricultura estava atrasada no Reino; Damião [de] Góis, explicando
em 1541 à opinião letrada da Europa a razão dos seus atrasos em Portu-
gal e Espanha, afirma ser a fertilidade espontânea do solo tamanha
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que a maior parte do ano os escravos e os homens pobres se podem
sustentar lautamente de frutos silvestres, mel e ervas, o que os faz
pouco propensos ao trabalho agrícola.
Alguns traços tomados ao livro de Costa Lobo mostrarão o caráter
dominante do povo ao começar a era dos descobrimentos:
O português do século XV era fragueiro, abstêmio, de imaginação
ardente, propenso ao misticismo, caráter independente, não con-
strangido pela disciplina ou contrafeito pela convenção; o seu falar era
livre, não conhecia rebuços nem eufemismos de linguagem.
A têmpera era rija, o coração duro. As cominações penais não con-
heciam piedade. A morte expiava crimes tais como o furto do valor de
um marco de prata. Ao falsificar de moeda infligia-se a morte pelo fogo
e o confisco de todos os bens.
Com a rudeza de costumes que assinala aqueles tempos, a segurança
da própria pessoa, família e haveres, dependia em grande parte da força e
energia individual; daí freqüente homízios, agressões, feridos e mortes que
habituavam à contemplação da violência e da dor, infligida ou recebida. O
espetáculo de penar não repugnava, porque ninguém tinha em muita conta
o padecimento físico. Cruezas que hoje denotariam a vileza de um caráter
perverso não tinham nesses tempos semelhante significação. O mal que elas
causavam não se reputava demasia, todos estavam sujeitos a padecê-lo. Mas
se a dor física ou moral alcançava molificar a rijeza da índole inacostumada à
paciência e à reflexão ou se a paixão a inflamava, então o sentimento irrom-
pia em clamores, prantos e contorsões, semelhando os meneios da demên-
cia furiosa.
À dureza da têmpera correspondia extensamente um aspecto agreste, a
força muscular era tida em grande apreço. Cercear com um revés de mon-
tante uma perna de boi por meia coxa ou decepar-lhe quase todo o pescoço
eram feitos dignos de recordação histórica.
Ao português estranho ao continente cumpre juntar o negro, igual-
mente alienígena. A importação começou desde o estabelecimento das capi-
tanias e avultou nos séculos seguintes, primeiro por causa da cultura da cana,
mais tarde por causa do fumo, das minas, do algodão e do café. Depois da
supressão do tráfico em 1850, o café provocou deslocamentos con-
sideráveis na distribuição interna; o mesmo efeito produziu a Abolição.
Capítulos de História Colonial 29
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Os primeiros negros vieram da costa ocidental, e pertencem geral-
mente ao grupo banto; mais tarde vieram de Moçambique. Sua organi-
zação robusta, sua resistência ao trabalho indicaram-nos para as rudes
labutas que o indígena não tolerava. Destinados para a lavoura,
penetraram na vida doméstica dos senhores pela ama-de-leite e pela mu-
cama e tornaram-se indispensáveis pela sua índole carinhosa. A mes-
tiçagem com o elemento africano, ao contrário da mestiçagem com o
americano, era vista com certa aversão, e inabilitava para certos postos.
Os mulatos não podiam receber as ordens sacras, por exemplo: daí o
desejo comum de ter um padre na família, para provar limpeza de
sangue. Com o tempo os mulatos souberam melhorar de posição e por
fim impor-se à sociedade. Quando reuniam a audácia ao talento e à for-
tuna alcançaram altas posições.
O negro trouxe uma nota alegre ao lado do português taciturno e
do índio sorumbático. As suas danças lascivas, toleradas a princípio, tor-
naram-se instituição nacional; suas feitiçarias e crenças propagaram-se
fora das senzalas. As mulatas encontraram apreciadores de seus desgar-
res e foram verdadeiras rainhas. O Brasil é inferno dos negros, pur-
gatório dos brancos, paraíso dos mulatos, resumiu em 1711 o
benemérito Antonil.
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III
Os descobridores
A posição geográfica de Portugal destinava-o à vida
marítima, e data da dominação romana o conhecimento de ilhas
alongadas ao Ocidente. Tradições árabes memoram os Mogharriun,
partidos de Lisboa à cata de aventuras. A restauração cristã produziu
uma marinha nacional, que alentou e tornou próspera a escolha da
barra do Tejo para escala da carreira de Flandres e a vinda de
catalães e italianos chamados a ensinar a náutica e a técnica. A ex-
pedição contra Ceuta em 1415 reuniu já centenas de embarcações e mil-
hares de marinheiros.
Depois de tomada esta cidade à mourisma infiel, atiraram-se os
conquistadores para terras africanas. Navios mandados do Algarve per-
longaram o litoral marroquino, conjuraram os terrores do cabo Não, ilu-
minaram o Saara nos bulcões do mar Tenebroso, descobriram rios
caudalosos, tratos povoados e as ilhas de Cabo Verde, verdes dentro na
zona tórrida, inabitável pelo calor como o seu nome apregoava, in-
abitável por sentença unânime dos filósofos antigos, apanhados agora
pela primeira vez em falsidade flagrante. Culmina nesta fase heróica o in-
fante D. Henrique, filho de D. João I, e grão-mestre da Ordem de Cristo.
Dominava-o de um lado o desejo de alargar as fronteiras do mundo con-
hecido, de outro a esperança de alcançar um ponto onde fenecesse o
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poderio do Crescente. Talvez aí reinasse Preste João, o lendário impera-
dor-sacerdote; de mãos dadas realizariam a cruzada suprema contra os
inimigos hereditários da Cristandade, já expulsos de quase toda a
Espanha, mais poderosos que nunca nas terras e mares orientais.
O decurso dos descobrimentos precisou as aspirações confusas do
princípio. Nos últimos anos do Infante desenhou-se o problema da
Índia, vaga expressão geográfica aplicada a todos os países distribuídos
da saída do mar Vermelho ao reino de Catai e à ilha do Cipango. Os rios
possantes do continente agora conhecido, como a franquearem vias de
penetração indefinida, a direção meridional da costa, como a encurtar as
distâncias, os numerosos dizeres de prestigiosas cartas geográficas como
a balizarem percurso a fazer-se, sugeriram a possibilidade de lá chegar
por novo caminho; e novo caminho era urgente, pois se na Europa ger-
mano-latina continuava forte a procura de especiarias, estofos, pérolas
finas, pedras preciosas, madeiras raras, de produtos indianos, em uma
palavra, as potências muçulmanas, assentes nas estradas históricas que
vinham dar no Mediterrâneo, cada dia aumentavam as exigências e re-
quintavam de insolência, espoliando os intermediários do comércio do
Levante, e atormentando os consumidores ocidentais.
A idéia de chegar à Índia atravessando a África, depois de ligeiras
tentativas, foi abandonada. Pensou-se lograr o mesmo resultado circu-
navegando o continente negro. Contra este plano insurgia-se o veto de
Ptolomeu, afirmando a ligação da Ásia e África do Sul, como no istmo
de Suez ao norte, fechando por aquela parte o mar das Índias e transfor-
mando-o em mediterrâneo. Mas ainda em dias de D. Henrique um
cartógrafo italiano protestou contra as afirmações categóricas do as-
trônomo alexandrino, e o descobrimento de Cabo Verde, o contato di-
reto com a zona tórrida tinham começado a emancipar os espíritos, pat-
enteando que o simples fato de proceder da Antiguidade não consagra
inviolável e intangível qualquer proposição.
Enquanto se concatenavam estas noções incertas formulou-se outra
solução do problema, já mencionada em escritores gregos e latinos, e
apoiada em autoridades sagradas e pagãs. É idêntico, postulavam, o oceano
ocidental da Europa e o oceano oriental da Ásia; segundo as escrituras o
espaço ocupado pelos mares representa apenas uma fração mínima
comparado à terra firme, e como o nosso planeta é esférico, o caminho
32 J. Capistrano de Abreu
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lógico e mais breve para a Índia consiste em lançar-se impavidamente ao
oceano, amarrar-se tanto para o poente até chegar ao nascente. Tal
viagem além de mais breve, seria mais cômoda, pois ilhas esparsas pon-
toavam a derrota, algumas delas tamanhas como a Antilha, representada
nos portulanos mais fidedignos.
Cristóvão Colombo apresentou tal plano como novo aos portugue-
ses, que não o aceitaram; menos experientes, os espanhóis acolheram o
nauta genovês e deram-lhe os meios de executá-lo.
Partindo em 1492, descobriu algumas ilhas e anos mais tarde o
continente cobiçado, o reino do grão Cã, segundo supunha.
Entre a morte de D. Henrique e o reinado de D. Afonso V (1460-
1481) se não arrefeceu o movimento descobridor, prosseguiu com
muito menos brilho: a elevação de D. João II ao trono deu-lhe vida e
calor. Terminava a terra conhecida no cabo de Santa Catarina, 2º S; com
poucos anos avançou-se vitoriosamente para o trópico; em 1487 Bar-
tolomeu Dias tornou com a notícia de ter alcançado o fim do continente
africano. Já de volta, no extremo sul, quase perdera-se junto a um cabo e
por isso chamou-o das Tormentas. Das Tormentas, não! protestou o rei
de Portugal; da Boa Esperança.
Mas que esperança, sentia certeza agora de gozar breve do resul-
tado de tantos esforços. E tanta confiança nutria D. João II de estar afi-
nal achado o caminho da Índia que não procedeu a novas verificações.
Preparou-se com toda a calma, construindo navios aptos para os mares
agitados do Oriente; fundiu artilharia capaz de lutar contra os poten-
tados indianos e os navios árabes; emissários seus visitaram o mar Ver-
melho, o golfo Pérsico, a costa oriental da África, a costa de Malabar, in-
quirindo, observando, reunindo notícias frescas e fidedignas sobre o
comércio, a navegação. Um deles, Pero de Covilhã, esteve no reino de
Preste João, originariamente procurado na Ásia central, encarnado agora
no dinasta da Abissínia.
D. João II nada confiou do acaso. A volta triunfal de Colombo em
1493 pouco influiu sobre os planos do rei. Se protestou contra a divisão
do mundo promulgada por Alexandre VI, julgando postergados seus di-
reitos; se mandou alguma expedição clandestina ao Ocidente, como
parece verificado, bastaram o aspecto dos naturais e sua barbárie visível,
os produtos recolhidos e os países descobertos, tão diferentes de tudo o
Capítulos de História Colonial 33
sumário
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que os seus emissários vinham de apurar, para não lhe deixarem dúvidas
de que a Índia procurada pelos portugueses não se confundia com a
Índia achada pelos espanhóis. Ao falecer em 1495, o Príncipe Perfeito
deixou ao seu sucessor, D. Manuel, o simples trabalho de saborear fruto
sazonado. Do mesmo modo Vasco da Gama apenas continuou a senda
dez anos antes aberta por Bartolomeu Dias (1497-1499).
A chegada de Vasco da Gama com as embarcações carregadas de
lídimos produtos indianos mostrou a sabedoria e a previdência de D.
João II, preferindo a qualquer outro o caminho indicado pelo cabo da
Boa Esperança; sobre os espanhóis não parece ter exercido igual im-
pressão, pois continuaram no mesmo empenho primitivo de chegar ao
Oriente navegando sempre para o Ocidente.
Temos, pois, duas correntes históricas bem definidas, originárias
ambas da península ibérica: uma ocidental, outra meridional. Desembo-
caram ambas no Brasil. Seguindo a corrente ocidental, apenas procuraram
baixas latitudes os espanhóis cortaram a linha, e alcançaram o hemisfério do
Sul com Vicente Yañez Pinzón. Seguindo a corrente do Sul, os portugueses,
induzidos a amarar-se à procura de ventos mais francos para dobrar o cabo,
encontraram a zona dos alísios e vieram dar no hemisfério ocidental com
Pedro Álvares Cabral. Ambos os casos ocorreram no mesmo ano.
Interessa-nos apenas Pedr’Álvares.
Comandando uma armada de treze navios partiu de Belém
segunda-feira, 9 de março de 1500. O domingo passara-se em festas
populares. O rei tivera a seu lado na tribuna o capitão-mor, pusera-lhe
na cabeça um barrete bento mandado pelo papa, entregara-lhe uma ban-
deira com as armas reais e a cruz da Ordem de Cristo, a ordem de D.
Henrique, o descobridor. Sentia-se bem a importância desta frota, a
maior saída até então para terras alongadas.
Mil e quinhentos soldados, negociantes aventurosos, aventureiros,
mercadorias variadas, dinheiro amoedado, revelavam o duplo caráter da
expedição: pacífica, se na Índia preferissem a lisura e o comércio hon-
esto, belicosa, se quisessem recorrer às armas. Alguns franciscanos,
tendo por guardião frei Henrique de Coimbra, comunicavam ao con-
junto a sagração religiosa.
A 14 foram avistadas as Canárias, a 22 as ilhas de Cabo Verde. Um
mês mais tarde, a 21 de abril, boiaram ervas marinhas muito compridas,
34 J. Capistrano de Abreu
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sinais de proximidade de terra, no dia seguinte confirmados por aves, e
realizados à tarde: "Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de
terra: primeiramente dum grande monte mui alto e redondo e doutras
terras mais baixas do sul delle, e de terra chã com grandes arvoredos, ao
qual monte alto o capitão poz nome monte Paschoal", escreve Pero Vaz
de Caminha, testemunha de vista, escrivão da feitoria a fundar em Cali-
cute. Ao sol-posto surgiram em 23 braças, ancoragem limpa. O monte
Pascoal, no Estado da Bahia, é visível a mais de sessenta milhas do mar.
Na quinta-feira continuou a derrota lenta e cuidadosamente, indo
os navios menores adiante, sondando.
À distância de meia légua, em direito à boca de um rio, fundearam.
Nicolau Coelho, companheiro de Vasco da Gama, desembarcou e pôde
observar alguns naturais, atraídos pela curiosidade, dar e receber presentes.
Um sudoeste acompanhado de chuvaceiros mostrou a con-
veniência de procurar situação mais abrigada. Sexta-feira velejaram
para o norte, os navios maiores mais afastados, os navios menores
mais chegados à terra; ao pôr-do-sol, em distância de dez léguas, en-
contraram um recife, abrigando um porto de larga entrada. "Ao
sábado pela manhã mandou o capitão fazer vela, e fomos demandar
a entrada, a qual era muito larga e alta, de 6 a 7 braças, a qual an-
coragem dentro é tão grande e tão fremosa e tão segura que podem
jazer dentro mais de duzentos navios e naus." O nome de Porto
Seguro, dado pelo capitão-mor, resume bem suas impressões: ainda o
conserva uma localidade vizinha.
Em um ilhéu da baía, construído um altar, cantou-se missa dom-
ingo da Pascoela, 26. Frei Henrique pregou sobre o evangelho do dia. A
ressurreição do Salvador, as aparições misteriosas aos discípulos, a in-
credulidade de Tomé, o apóstolo das Índias, diziam bem com a situação
estranha. No fim da pregação o frade "tratou da nossa vinda, e do
achamento desta terra, conformando-se com o sinal da cruz, sob cuja
obediência viemos". A bandeira de Cristo com que o capitão-mor saiu
de Belém esteve sempre alta à parte do Evangelho.
Reuniram-se a bordo da capitânia os comandantes dos outros nav-
ios, e o capitão-mor perguntou se conviria mandar a el-rei a nova do
achamento da terra pelo navio de mantimentos, para S.A. a mandar
descobrir. Concordaram que sim. Os dias seguintes passaram-se na bal-
Capítulos de História Colonial 35
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deação dos gêneros e na lavrança de uma cruz para assinalar a posse
tomada em nome da coroa de Portugal.
A cruz foi chantada a 1º de maio; a 2, partiram o navio mandado
ao Reino e a poderosa rota para a Índia, deixando lacrimosos dois de-
gradados incumbidos de inquirirem da terra e irem aprendendo a língua;
alguns marujos desertaram, segundo parece.
As seguintes palavras de Caminha representam as reflexões de um
espírito superior ante esses dias e espetáculos extraordinários:
"N’ella [terra] até agora não podemos saber que haja ouro, nem
prata, nem nenhuma cousa de metal, nem de ferro lho vimos; pero a
terra em si é de muitos boos ares assi frios e temperados como os d’an-
tre Doiro e Minho, porque n’este tempo de agora assi os achavamos
como os de lá; águas são muitas infindas e em tal maneira é graciosa que
querendo a aproveitar dar-se-á n’ella tudo por bem das águas que tem; pero
o melhor fruito que n’ella se pode fazer me parece que será salvar esta gente;
e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ella deve lançar, e
qui hi non houvesse mais ca ter aqui esta pousada pera esta navegação de
Calecut abastaria, quanto mais disposição para se n’ella cumprir e fazer o
que Vossa Alteza tanto deseja, s. o acrescentamento de nossa santa fé."
A vantagem da situação geográfica da nova terra para as navegações da
Índia, o modo de aproveitá-la trazendo sementes do Reino, o problema
do indígena, sua incorporação pelo cristianismo, aí ficam definidos com
toda a precisão.
A armada do capitão-mor fez-se rumo do cabo de Boa Esperança,
acompanhando a costa da terra nova por largo espaço, duas mil milhas,
calculou um companheiro de expedição.
O navio de mantimento seguiu para o nordeste, naturalmente sem
perder de vista a terra e talvez realizando desembarques.
É possível mesmo haja encontrado Diego de Lepe ou algum outro
viajante espanhol. O descobrimento dos portugueses já figura no mapa
de Juan de la Cosa, terminado em outubro de 1500.
Em meados do ano seguinte, partiu de Portugal uma armada de
três navios a explorar a nova ilha da Cruz ou Vera Cruz e encontrou-
se em Besiguiche com Pedr’Álvares Cabral, já de volta da Índia. Se o
descobridor e os futuros exploradores permutaram impressões, de-
viam ter reconhecido a existência não de ilha, mas de continente.
36 J. Capistrano de Abreu
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Diferente dos outros? As respostas não podiam sair claras, pois o
oceano Pacífico estava por descobrir. Duarte Pacheco, o herói de
Cambalão, companheiro de Cabral, alguns anos mais tarde ainda
guardava a imagem tradicional do mundo: vastas massas de terras, in-
terrompidas por mediterrâneos, abertos em rumos diversos, semelhando
lagoas enormes.
A expedição exploradora depois de travessia tormentosa aportou
ao litoral do Rio Grande do Norte e procurou regiões mais temperadas,
dando nomes aos lugares descobertos, tirados uns do calendário -- S. Roque,
S. Jerônimo, S. Francisco, baía de Todos os Santos, cabo de S. Tomé,
Angra dos Reis; tirados outros de impressões e acidentes de viagem --
rio Real, cabo Frio, baía Formosa, etc. Os exploradores, segundo parece,
nunca perderam de vista a serra do Mar. Durante muitos anos figurou
nos mapas como último ponto conhecido Cananor, que bem pode ser a
atual Cananéia, em São Paulo; calculou-se a extensão percorrida em duas
mil e quinhentas milhas. Esta exploração mais demorada confirmou em
quase tudo as palavras de Caminha. Apenas os naturais apareceram à
nova luz, selvagens, rancorosos, sanguinários e antropófagos, material
mais próprio para escravatura do que para a conversão.
Depois de voltar esta armada a Coroa resolveu arrendar a terra por
um triênio; os arrendatários comprometeram-se a mandar anualmente
seis navios a descobrir trezentas léguas e a fazer sustentar uma fortaleza.
Fundavam seus cálculos no lucro produzido por escravos, por animais
curiosos e pelo pau-brasil, de que os primeiros exploradores levariam al-
gum carregamento, e também na vaga esperança de poderem chegar à
Índia por este caminho.
Em 1503 veio de fato uma frota de seis embarcações, reduzidas
logo à metade pelo naufrágio da capitânia, junto à ilha depois chamada
Fernão de Noronha, e pela defecção de Vespucci, de quem o continente
deveria tomar o nome. Talvez algum dos navios restantes iniciasse a ex-
ploração do cabo de S. Roque à procura do Equador. De certo nada se
sabe; no mencionado trecho da costa escaparam ao esquecimento ap-
enas alguns nomes, como o de João de Lisboa, João Coelho e Corso, de-
sacompanhados de qualquer informação. A falta de portos, a dificuldade de
navegação devida ao regime dos ventos, e a impressão de esterilidade col-
hida de bordo não provocavam a amiudar visitas naquela direção; os
Capítulos de História Colonial 37
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dizeres dos mapas contemporâneos ou rareiam ou apenas indicam pas-
sagens de largo.
Em 1506 a terra do Brasil, arrendada a Fernão de Noronha e ou-
tros cristãos-novos, produzia vinte mil quintais de madeira vermelha,
vendida a 2 1/3 e 3 ducados o quintal; cada quintal custava 1/2 ducado
posto em Lisboa. Os arrendatários pagavam quatro mil ducados à Coroa.
Anos mais tarde, pensou-se em dar liberdade aos que quisessem vir
tentar fortuna, pagando apenas um quinto dos gêneros levados. A este
regime já obedeceu, talvez, a nau Bretoa, armada por Bartolomeu Mar-
chioni, Benedito Morelli, Fernão de Noronha e Francisco Martins, man-
dada a Cabo Frio em começo de 1511. Sobre ela existem documentos.
Tinha a nau capitão, escrivão, mestre e piloto, responsáveis soli-
dariamente pela execução do regimento; treze marinheiros, quatorze
grumetes, quatro pajens, um dispenseiro. Nem à ida nem à volta podia
tocar em qualquer porto intermediário, salvo caso de falta de vitualhas,
temporais ou desarranjo. Era permitido à companha resgatar com facas,
tesouras e outras ferramentas depois de estar completa a carga dos ar-
madores da nau. Podia resgatar papagaios, gatos, e, com licença dos
armadores, também escravos; vedado era o comércio de armas de
guerra.
À chegada em terra a carga ficava entregue ao feitor; qualquer res-
gate dependia da autorização deste. Recomendava-se o maior cuidado
em não fazerem mal ou danos aos indígenas; não levarem mais naturais
livres para o Reino, porque falecendo em viagem cuidavam os parentes
terem sido comidos, como era seu costume; não deixarem que da gente
da nau alguém se lançasse na terra ou nela ficasse, como alguns já fize-
ram, coisa muito odiosa ao trato e serviços reais.
A nau Bretoa partiu do Tejo a 22 de fevereiro; fundeou de 17 de
abril a 12 de maio na baía de Todos os Santos; em 26 de maio chegou a
Cabo Frio, donde a 28 de julho partiu para Portugal. Levou cinco mil
toros de pau-brasil; vinte e dois tuins, dezasseis sagüis, dezasseis gatos,
quinze papagaios, três macacos, tudo avaliado em 24$220 réis; quarenta
peças de escravos, na maioria mulheres, avaliados ao preço médio de 4
sobre todos estes semoventes arbitrou-se o quinto, ainda no Brasil.
O nome do Brasil já era bem conhecido e figurava em portulanos
anteriores às descobertas dos portugueses; havia um nome à procura de
38 J. Capistrano de Abreu
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aplicação, exatamente como o de Antilha, e isto explicaria a rapidez com
que se introduziu e vulgarizou, suplantando outras denominações, como
terra dos Papagaios, de Vera Cruz ou Santa Cruz, se a abundância de
uma apreciada madeira de tinturaria até então recebida por via do Le-
vante, e o comércio sobre ela fundado desde o começo, não colaboras-
sem na propaganda, e talvez com maior eficácia.
O pau-brasil reconheceu-se logo no litoral de Paraíba e Pernam-
buco, nas cercanias do rio Real, do Cabo Frio ao Rio de Janeiro; natural-
mente seriam logo estes os trechos mais freqüentes destes primeiros
portugueses; em outros lugares só mais tarde se descobriu.
Para facilitar os carregamentos, estabeleceram-se feitorias, de
preferência em ilhas; deviam ser caiçaras ou cercas, próprias apenas para
guardarem os gêneros de resgates; algumas sementes de além-mar po-
diam ser plantadas à roda, e soltos alguns animais domésticos de fácil re-
produção. Uma feitoria conservou-se no Rio durante alguns anos até ser
destruída pelos naturais, indignados com o proceder do feitor e com-
panheiros; entre as plantações abandonadas entraria a cana-de-açúcar,
encontrada por Fernão de Magalhães em 1519.
No ano de 1513 uma armada de dois navios estendeu muito o
horizonte geográfico pela zona temperada. Devassou, segundo um con-
temporâneo, seiscentas a setecentas léguas de terras novas; encontrou na
boca de um caudaloso rio diversos objetos metálicos; teve notícia de ser-
ras nevadas ao Ocidente; julgou ter achado um estreito e o extremo
meridional do continente. O capitão, talvez João de Lisboa, levou para o
reino um machado de prata, e este nome, apegado ao soberbo rio, ainda
hoje proclama a primazia dos portugueses ao sul, como o das Amazonas
perpetua a passagem dos espanhóis ao norte.
Com a viagem destes navios, armados por D. Nuno Manuel e
Cristóbal de Haro, coincidiu o descobrimento do mar do Sul ou
Pacífico, por Vasco Nunes de Balboa.
Os espanhóis apanharam a importância destes sucessos, mandaram
em 1515 procurar o estreito anunciado pelos portugueses, e incumbiram
João Dias de Solis de ir pelo novo caminho às espaldas das terras de
Castela de Ouro. Solis foi morto, apenas desembarcou no rio da Prata;
seus companheiros voltaram sem detença para o Reino. Em 1520
Fernão de Magalhães explorou o grande estuário meridional à procura
Capítulos de História Colonial 39
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do estreito cobiçado afinal descoberto mais para o sul, e navegou pelo
oceano Pacífico até alcançar as famosas Molucas, as ilhas das especiarias
por excelência.
Assim se cumpriu o plano de Colombo: chegar ao Levante
navegando sempre para o Ocidente. Acompanharam Magalhães em
sua expedição incomparável João Lopes de Carvalho, piloto da nau
Bretoa, e um mamaluco, filho seu, havido de uma índia do Rio de Ja-
neiro.
Pau-brasil, papagaios, escravos, mestiços, condensam a obra das
primeiras décadas.
Da parte das índias a mestiçagem se explica pela ambição de
terem filhos pertencentes à raça superior, pois segundo as idéias en-
tre elas ocorrentes só valia o parentesco pelo lado paterno. Além
disso pouca resistência deviam encontrar os milionários que pos-
suíam preciosidades fabulosas como anzóis, pentes, facas, tesouras,
espelhos. Da parte dos alienígenas devia influir sobretudo a escassez,
se não ausência de mulheres de seu sangue. É fato observado em todas
as migrações marítimas e sobrevive ainda depois do vapor, da rapidez e da
segurança das travessias.
Estes primeiros colonos que ficaram no Brasil, degradados, deser-
tores, náufragos, subordinam-se a dois tipos extremos: uns sucumbiram
ao meio, ao ponto de furar lábios e orelhas, matar os prisioneiros
segundo os ritos, e cevar-se em sua carne; outros insurgiram-se contra
ele e impuseram sua vontade, como o bacharel de Cananéia, que se
obrigou a fornecer quatrocentos escravos a Diogo Garcia, companheiro
de Solis, um dos descobridores do Prata.
Tipo intermédio apresenta-nos Diogo Álvares, o Caramuru, que
habitou na Bahia de 1510 a 1557, data de seu falecimento.
40 J. Capistrano de Abreu
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IV
Primeiros conflitos
Com a chegada dos portugueses coincidiu, quase, a dos
franceses, que começaram logo o mesmo comércio de resgate. Na
vastidão do litoral podiam ter passado anos sem se encontrar, mas o en-
contro era fatal, e não havia de ser amigável.
Portugal considerava a nova terra propriedade direta e exclusiva da
Coroa, pelas concessões papais, pelo tratado de limites concluído com a
Espanha e pela prioridade do descobrimento. O rei tirava porcentagem
dos gêneros levados para além-mar; os armadores queriam auferir lucros
de seus esforços e capitais.
A presença dos intrusos prejudicava-os a todos os respeitos: nos
mercados europeus, oferecendo os gêneros a preços mais vantajosos,
pois não tinham quintos a deduzir, e levando-os diretamente aos
mercados consumidores, pois não eram obrigados a parar em Lis-
boa; nas terras brasílicas, conciliando as simpatias dos naturais, que
os agasalhariam com maior carinho, poupar-lhes-iam traições e
aleives, dariam preferência nos carregamentos e se habituariam às mer-
cadorias francesas. Ainda por cima havia a questão de princípio: Portu-
gal não admitia que os filhos de outra nação pusessem o pé em terras
suas no além-mar.
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Desde a Paraíba ao norte até S. Vicente ao sul, o litoral estava ocu-
pado por povos falando a mesma língua, procedentes da mesma origem,
tendo os mesmos costumes, porém profundamente divididos por ódios
inconciliáveis em dois grupos; a si próprio um chamava tupiniquim, e
outro tupinambá. A migração dos tupiniquins fora a mais antiga; em di-
versos pontos os tupinambás já os tinham repelido para o sertão,
como o Rio de Janeiro, na baía de Todos os Santos, ao norte de Per-
nambuco; em parte de S. Paulo, em Porto Seguro e Ilhéus, nas proximi-
dades de Olinda; na serra de Ibiapaba havia, entretanto, tupiniquins
habitadores do litoral.
Por que os tupinambás aliaram-se constantemente aos franceses e
os portugueses tiveram a seu favor os tupiniquins, não consta da
História, mas o fato é incontestável e foi importante; durante anos ficou
indeciso se o Brasil ficaria pertencendo aos peró (portugueses) ou aos
maïr (franceses).
Ainda nos últimos tempos de D. Manuel, começaram os protestos
contra a presença dos maïr; com a ascensão de D. João III a situação
agravou-se. Reconhecida a inutilidade de embaixadas à corte de França,
e de promessas compradas a peso de ouro e jamais cumpridas, o rei de
Portugal resolveu desforçar-se. Uma armada de guarda-costa veio em
1527 ao Brasil comandada por Cristóvão Jaques, que já estivera antes na
terra e deixara uma feitoria junto a Itamaracá, de volta de uma expedição
ao Prata. Desde Pernambuco até a Bahia e talvez Rio de Janeiro,
Cristóvão Jaques deu caça aos entrelopos; segundo testemunhos interes-
sados, não conhecia limites sua selvageria, não lhe bastava a morte sim-
ples, precisava de torturas e entregava os prisioneiros aos antropófagos
para os devorarem. Mesmo assim ainda levou trezentos prisioneiros
para o Reino. Devia ter causado um mal enorme aos franceses.
As armadas de guarda-costa eram simples paliativos; só povoando
a terra, cortar-se-ia o mal pela raiz. Cristóvão Jaques ofereceu-se a trazer
mil povoadores; oferecimento semelhante fez João de Melo da Câmara,
irmão do capitão-mor da ilha de S. Miguel. Indignava-se este vendo que
até então a gente que vinha ao Brasil limitava-se a comer os alimentos da
terra e tomar as índias por mancebas, e propôs trazer numerosas
famílias, bois, cavalos, sementes, etc.
42 J. Capistrano de Abreu
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Preferiu-se a estas propostas práticas e razoáveis aparelhar nova e
mais poderosa armada às ordens de Martim Afonso de Sousa, meio-
termo entre armada de guarda-costa e expedição povoadora. Apenas al-
cançou a costa de Pernambuco em janeiro de 31, começou a faina de
guarda-costa; em poucos dias foram tomadas três naus francesas.
Diogo Leite com duas caravelas foi mandado de Pernambuco para a
costa de este-oeste, mais desconhecida então que trinta anos antes, quando
por elas passara Vicente Yañes Pinzón. Com os outros navios, o capitão-
mor seguiu para o sul. Demorou na baía de Todos os Santos, na de Guan-
abara, em Cananéia; continuava para o rio da Prata, e devia entrar em seus
planos acompanhar-lhe o curso, pois desde a Europa trazia desarmados ber-
gantins próprios para a exploração, quando a perda da capitânia fê-lo ar-
repiar caminho para o porto de S. Vicente. Aqui esperou o irmão, Pero
Lopes, que em seu lugar mandara às águas platinas.
Desde 1514 chegaram à Europa, levados pela armada de D. Nuno
Manuel, os primeiros espécimes de metais preciosos, encontrados nas
águas do grande rio. Alguns companheiros de Solis, escapos à sanha dos
índios, e depois tolerados, confirmaram estes indícios vagos. Na costa
dos Patos alguns deles falavam com entusiasmo em tais riquezas.
Tais notícias nos Patos ou no próprio rio, colheu-as Cristóvão
Jaques cerca de 1522, e levou-as ao Reino. Na feitoria de Itamaracá en-
tão fundada, cursavam com tamanha insistência que, em 1526, Sebastião
Cabot, ouvindo-as ao aportar em Pernambuco, decidiu logo navegar
para Santa Catarina a ir tomar os náufragos de Solis e realizar o desco-
brimento dos metais anunciados com tanta certeza e insistência. Viera
mandado para as Molucas, mas sabia que se triunfasse ninguém lhe
lançaria em rosto o desvio, e tanto se capacitou da realidade das minas
que não hesitou em transgredir as instruções mais restritas.
Apesar do insucesso final de Cabot, persistiu inabalável a crença
nos tesouros platinos; por isso quando, em Cananéia, Francisco de
Chaves, grande língua do gentio, pediu gente para fazer uma entrada e
prometeu voltar no fim de dez meses com quatrocentos escravos carre-
gados de prata, Martim Afonso não conheceu hesitações.
A idéia parecia prática, pois dispensava de acompanhar o litoral até
a foz do Prata e subir por este além da fortaleza fundada por Cabot para
procurar o Ocidente, onde tais tesouros existiam. O capitão-mor deu
Capítulos de História Colonial 43
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quarenta besteiros, e quarenta espingardeiros, que sob as ordens de Pero
Lobo partiram a 1º de setembro de 1531. Morreram às mãos dos índios,
sabe-se vagamente. Pelo mesmo tempo, navegando o oceano Pacífico,
Francisco Pizarro alcançou por caminho mais direto as terras dos incas,
procuradas até então pelo lado cisandino.
Depois da perda da capitânia passou Martim Afonso a tratar da
segunda parte da sua missão: o povoamento da terra. Em S. Vicente
fundou a primeira vila, à beira-mar; algumas léguas para o interior, de-
pois de transposta a serra do Mar, fundou segunda vila, na borda do
campo de Piratininga, à margem de um rio cujas águas fluíam para o oci-
dente. "Repartiu a gente nestas duas vilas", escreveu Pero Lopes, "fez
nelas oficiais, e pôs tudo em boa obra de justiça de que a gente toda to-
mou muita consolação, com verem povoar vilas e ter leis e sacrifícios e
celebrar matrimônios e viverem em comunicação das artes, e ser cada
um senhor do seu e vestir as injúrias particulares, e ter todos os outros
bens da vida segura e conversável."
A situação geográfica destas vilas explica-se pela proximidade das
famosas riquezas cobiçadas, pela facilidade de fazer as entradas, dez meses
apenas para ir e voltar, garantia Francisco de Chaves. Deslumbrado por tais
vantagens, Martim Afonso esqueceu-se dos franceses ou julgou arredados
os motivos para temê-los depois da campanha energicamente conduzida
por Cristóvão Jaques e por ele continuada com tanto êxito e vigor.
Diogo de Gouveia, português residente em França, seguia desde
muito o movimento dos negócios naquele Reino e pensava de modo di-
verso. Em cartas a el-rei dava notícias pouco tranqüilizadoras, e instava
por uma solução real. A solução era não uma vila afastada da zona
freqüentada, mas diversos povoados na região apetecida do pau-brasil.
"Quando lá houver sete ou oito povoações, concluía, estas serão bastan-
tes para defenderem aos da terra que não vendam o brasil a ninguém e
não o vendendo as naus não hão de querer lá ir para vir de vazio."
Dir-se-ia que os franceses leram estas palavras previdentes. Até en-
tão contentavam-se com o simples resgate, quando muito alguma feito-
ria. Trataram agora de fundar uma fortaleza, artilhada e com guarnição
numerosa. Só assim considerou a corte lusitana "com quanto trabalho se
lançaria fora a gente que a povoasse, depois de estar assentado na terra e ter
nela feitas algumas forças, como já em Pernambuco começava a fazer".
44 J. Capistrano de Abreu
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Estes fatos foram conhecidos no Reino graças à nau La Pèlerine, de
Marselha, que, procedendo, de Pernambuco aonde deixara gente e artilharia,
arribou a Málaga. Achava-se no porto uma armada de Portugal, de 10 nav-
ios, destinados a Roma; D. Martinho, embaixador, informado da falta de
mantimentos que obrigava a arribada, forneceu trinta quintais de biscoitos
aos franceses, e convidou-os a navegarem de conserva até Marselha. A cinco
milhas de Málaga sobreveio calmaria; a pretexto de concertar a derrota a
seguir foram convidados o capitão e o piloto de La Pèlerine para vir a bordo da
capitânia portuguesa, e, logo, presos, tomado o navio e remetido para Lisboa.
Não foi mais feliz a fortaleza galo-pernambucana. Pero Lopes, ter-
minada a exploração do Prata, e já de viagem para a Europa, bom-
bardeou-a durante dezoito dias, e obrigou-a a render-se. Da guarnição
parte foi enforcada; outra, transferida ao Reino, passou longos meses de
cativeiro nos calabouços do Algarve.
Capítulos de História Colonial 45
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V
Capitanias hereditárias
A tomada de La Pèlerine, a feitoria francesa fundada em
Pernambuco, notícias de preparativos para fundarem-se outras, espancaram
finalmente a inércia real. Escrevendo a Martim Afonso de Sousa a 28 de
setembro de 32, anuncia-lhe el-rei a resolução de demarcar a costa, de Per-
nambuco ao rio da Prata, e doá-la em capitanias de cinqüenta léguas: a de
Martim teria cem; seu irmão Pero Lopes seria um dos donatários.
A chegada do jovem guerreiro vitorioso em Pernambuco mostrou
mais uma vez a iminência do perigo. Talvez a isto se devam certas medi-
das desde logo tomadas ou pelo menos discutidas: liberdade ampla de
emigrar para o Brasil, preparo de uma armada de três caravelas, cada
uma com dez a doze condenados à morte, "per farli desmontair in terra, azio
babiano a domestigar quel paese, rispetto per nom metter boni bomini dabene a
peri colo", assegurava, a 16 de julho de 33, o veneziano Pietro Caroldo, a
quem devemos esta notícia.
Tal armada veio efetivamente?
Sua vinda explicaria uma porção de pontos obscuros.
Os documentos mais antigos da doação das capitanias datam de 1534.
A demora entre o projeto e a execução pode explicar-se pela von-
tade régia de esperar a volta de Martim Afonso, ou pela dificuldade de
redigir as complicadas cartas de doações e os forais que as acompan-
ham, ou, finalmente, pela falta de pretendentes à posse de terras in-
cultas, impróprias para o comércio desde o começo. Admira, até,
sumário
próxima
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como houve doze homens capazes de empresa tão aleatória. A nenhum
dos membros da alta fidalguia tentou a perspectiva de semear povos.
Os donatários saíram em geral da pequena nobreza, dentre pessoas
práticas da Índia, afeitas ao viver largo da conquista, porventura
coactas nas malhas acochadas da pragmática metropolitana. Muitos
nunca vieram ao Brasil, ou desanimaram com o primeiro revés. El-
rei cedeu às pessoas a quem doou capitanias alguns dos direitos
reais, levado pelo desejo de dar vigor ao regime agora organizado;
muitas concessões fez também como administrador e grão-mestre da
Ordem de Cristo.
Em tudo agiu "considerando quanto serviço de Deus e meu e
proveito dos meus reinos e senhorios, e dos naturais e súditos deles é
ser a minha terra e costa do Brasil mais povoada do que até agora foi,
assim para se nela haver de celebrar o culto e ofícios divinos, e se exaltar
a nossa santa fé católica, com trazer e provocar a ela os naturais da dita
terra infiéis e idólatras, como por o muito proveito que se seguirá a
meus reinos e senhorios, e aos naturais e súditos deles de se a dita terra
povoar e aproveitar".
Os donatários seriam de juro e herdade senhores de suas terras; te-
riam jurisdição civil e criminal, com alçada até cem mil-réis na primeira,
com alçada no crime até morte natural para escravos, índios, peões e
homens livres, para pessoas de mor qualidade até dez anos de degredo
ou cem cruzados de pena; na heresia (se o herege fosse entregue pelo
eclesiástico), traição, sodomia, a alçada iria até a morte natural, qualquer
que fosse a qualidade do réu, dando-se apelação ou agravo somente se a
pena não fosse capital.
Os donatários poderiam fundar vilas, com termo, jurisdição, insíg-
nias, ao longo das costas e rios navegáveis; seriam senhores das ilhas ad-
jacentes até distância de dez léguas da costa; os ouvidores, os tabeliões
do público e judicial seriam nomeados pelos respectivos donatários,
que poderiam livremente dar terras de sesmarias, exceto à própria mul-
her ou ao filho herdeiro.
Para os donatários poderem sustentar seu estado e a lei de nobreza,
eram-lhes concedidas dez léguas de terra ao longo da costa, de um a ou-
tro extremo da capitania, livres e isentas de qualquer direito ou tributo
exceto o dízimo, distribuídas em quatro ou cinco lotes, de modo a inter-
48 J. Capistrano de Abreu
sumário
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sair
calar-se entre um e outro pelo menos a distância de duas léguas; a redíz-
ima (1 10 da dízima) das rendas pertencentes à coroa e ao mestrado; a
vintena do pau-brasil (declarado monopólio real, como as especiarias),
depois de forro de todas as despesas; a dízima do quinto pago à Coroa por
qualquer sorte de pedraria, pérolas, aljôfares, ouro, prata, coral, cobre,
estanho, chumbo ou outra qualquer espécie de metal; todas as moendas
d’água, marinhas de sal e quaisquer outros engenhos de qualquer qualidade,
que na capitania e governança se viessem a fazer; as pensões pagas pelos
tabeliães; o preço das passagens dos barcos nos rios que os pedissem;
certo número de escravos, que poderiam ser vendidos no reino, livres
de todos os direitos; a redízima dos direitos pagos pelos gêneros expor-
tados, etc.
Os forais asseguravam aos solarengos: sesmarias com a imposição
única do dízimo pago ao mestrado de Cristo; a permissão de explorar as
minas, salvo o quinto real; aproveitamento do pau-brasil dentro do
próprio país; liberdade de exportação para o reino, exceto de escravos,
limitados a número certo, e certas drogas defesas (pau-brasil, especiarias,
etc.); direitos diferenciais que os protegeriam da concorrência es-
trangeira; entrada livre de mantimentos, armas, artilharia, pólvora, salitre,
enxofre, chumbo e quaisquer coisas de munições de guerra; liberdade de
comunicação entre uma e outras capitanias do Brasil.
Representantes do poder real só havia feitores, almoxarifes e
escrivães, incumbidos de arrecadar as rendas da Coroa. Para várias capi-
tanias existem nomeações de um vigário e vários capelães: sempre el-rei
ao lado do grão-mestre de Cristo.
Nas terras dos donatários não poderiam entrar em tempo algum
corregedor, alçada ou outras algumas justiças reais para exercer juris-
dição, nem haveria direitos de siza, nem imposições, nem saboarias, nem
imposto de sal.
Em suma, convicto da necessidade desta organização feudal, D.
João III tratou menos de acautelar sua própria autoridade que de armar
os donatários com poderes bastantes para arrostarem usurpações
possíveis dos solarengos vindouros, análogas às ocorridas na história
portuguesa da média idade. Ao ouvidor da capitania, com ação nova a
dez léguas de sua assistência e agravo e apelação em toda ela caberia o
mesmo papel histórico dos juízes de fora no além-mar.
Capítulos de História Colonial 49
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Para evitar lutas como as que grassaram entre a coroa ainda en-
fraquecida e os vassalos prepotentes, proibiu-se de modo absoluto "par-
tir [a capitania e governança], nem escambiar, espedaçar, nem em outro
modo alhear, nem em casamento a filho ou filha, nem a outra pessoa
dar, nem pera tirar pai ou filho ou outra alguma pessoa de cativo, nem
per outra cousa ainda que seja mais piedosa porque minha tenção e von-
tade é que a dita capitania e governança e cousas ao dito capitão e gov-
ernador nesta doação dadas hão de ser sempre juntas e se não partam
nem alienem em tempo algum". As dez ou mais léguas de terras dadas
aos donatários, espaçadas entre si e alienáveis em fatiotas, correspon-
deriam aos reguengos lusitanos.
As capitanias foram doze, embora divididas em maior número de
lotes. Começavam todas à beira-mar e prosseguiam com a mesma lar-
gura inicial para o ocidente, até a linha divisória das possessões por-
tuguesas e espanholas acordada em Tordesilhas, linha não demarcada
então, nem demarcável com os conhecimentos do tempo. Tacitamente
fixou-se o limite na costa de Santa Catarina ao sul, e na costa do Maran-
hão ao norte. A testada litorânea agora dividida estendia-se assim por
735 léguas.
No plano primitivo a demarcação devia ir de Pernambuco ao rio da
Prata, meta de que afinal ficou cerca de 12 graus afastada; nele não en-
trava a costa de este-oeste que, entretanto, foi demarcada. Para a última
decisão é possível influíssem as notícias de Diogo Leite, incumbido de
explorar aquela zona. Só por considerações internacionais se poderia ex-
plicar a fixação tácita dos limites do Brasil em 28°1/3. O rio da Prata
fora descoberta portuguesa; mas os espanhóis já aí tinham estado bas-
tante tempo, derramado sangue e arriscado empresas: a eles competia
por todos os direitos, a começar pelo tratado de Tordesilhas.
A divisão das donatárias ainda não foi descrita tão concisa e
geograficamente como nos seguintes termos de D’Avezac, o único
que conseguiu dar certa forma a esta matéria essencialmente re-
fratária:
"O limite extremo da mais meridional destas capitanias, concedida
a Pero Lopes de Sousa, é determinado nas próprias cartas de doação por
uma latitude expressa de 28°1/3; confrontava, um pouco ao norte de
Paranaguá, com a de S. Vicente, reservada a Martim Afonso de Sousa, e
50 J. Capistrano de Abreu
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que se estendia do lado oposto até Macaé, ao norte de Cabo Frio, desen-
volvendo assim mais de cem léguas de costa, mas em duas partes que
encravavam, desde São Vicente até a embocadura do Juquiriquerê, a de
Santo Amaro, de dez léguas, adjudicada a Pero Lopes, o irmão de Mar-
tim Afonso.
"Ao norte dos domínios deste estava a capitania de S. Tomé, cujas
trinta léguas iam expirar junto de Itapemirim; era o lote de Pero de Góis,
irmão do célebre historiador Damião de Góis.
"Em seguida vinha a capitania do Espírito Santo, outorgada a
Vasco Fernandes Coutinho, cujo linde ulterior era marcado pelo Mucuri,
que a separava da capitania de Porto Seguro, atribuída a Pero do Campo
Tourinho; esta prosseguia pelo espaço de cinqüenta léguas até a dos Il-
héus, obtida por Jorge de Figueiredo Correia, igualmente de cinqüenta
léguas, cujo termo chegava rente à Bahia.
"A capitania da Bahia, doada a Francisco Pereira Coutinho, se
estendia até o grande rio de S. Francisco; além estava a de Pernambuco,
adjudicada a Duarte Coelho e que contava sessenta léguas até o rio
Igaraçu, junto ao qual Pero Lopes possuía terceiro lote de trinta léguas,
formando sua capitania de Itamaracá até a baía da Traição.
"Neste lugar começava, para se estender sobre um litoral de cem
léguas até angra dos Negros, a capitania do Rio Grande, dada em
comum ao grande historiador João de Barros e a seu associado Aires da
Cunha; da angra dos Negros ao rio da Cruz quarenta léguas de costas
constituíam o lote concedido a Antônio Cardoso de Barros: do rio da
Cruz ao cabo de Todos os Santos, vizinho do Maranhão, eram adjudi-
cadas setenta e cinco léguas ao redor da fazenda Fernand’Álvares de An-
drade: além vinha enfim a capitania do Maranhão, formando segundo
lote para a associação de João de Barros e Aires da Cunha, com cin-
qüenta léguas de extensão sobre o litoral, até a obra de Diogo Leite, isto
é, até cerca da embocadura do Turiaçu."
Das setecentas e trinta e cinco léguas de litoral demarcado para as
capitanias podemos desde já apartar as duzentas e sessenta e cinco
doadas a João de Barros, Fernand’Álvares, Aires da Cunha e Antônio
Cardoso de Barros. Os esforços para ocupá-las mangraram; o povoamento
fez-se mais tarde, com gente nascida ou estabelecida em outros pontos do
Brasil: representam uma formação secundária na história pátria. Convém
Capítulos de História Colonial 51
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também apartar as duzentas e trinta e cinco léguas demarcadas entre o
extremo da capitania dos Ilhéus na baía de Todos os Santos e o rio Cu-
rupacé, e mais quarenta léguas de Cananéia para a terra de Santana. Aqui
houve logo tentativas de povoamento: ainda hoje existem vilas fundadas
na quarta década do século XVI, mas os colonos tiveram pela frente a
mata virgem, os rios encachoeirados, as serranias ínvias, não
souberam vencê-los e só impulsionaram a história do Brasil quando
os venceram. A primeira vitória decisiva foi ganha no Rio de Janeiro,
já no século XVIII, com o auxílio dos paulistas; desde então o Rio
figura como fator cada vez mais importante. Outros pontos, como
Vitória, Porto Seguro, Ilhéus, esperaram ou estão esperando as vias férreas.
Restam as cento e quarenta léguas estendidas da baía da Traição à
de Todos os Santos, as cinqüenta e cinco léguas inseridas entre o Curu-
pacé e Cananéia, em outros termos: a capitania de Duarte Coelho, parte
da de Martim Afonso de Sousa, os troços da capitania de Pero Lopes de
Sousa, que acompanharam a de Duarte Coelho ou a de Martim Afonso,
e a capitania da Bahia depois da morte do primitivo donatário.
A história do Brasil no século XVI elaborou-se em trechos exíguos
de Itamaracá, Pernambuco, Bahia, Santo Amaro e S. Vicente, situados
nestas cento e noventa e cinco léguas de litoral.
Martim Afonso conservara-se na vila de S. Vicente à espera da
gente mandada às minas, que, segundo a tradição, trucidaram os carijós
do Iguaçu, quando tornava da sua arriscada expedição. Uma carta régia
trazida por João de Sousa informou-o dos novos planos de colonizar,
deixando-lhe ao arbítrio permanecer ou tornar para o Reino. Em
começo de 33 partiu para Portugal. Desde então seus feitos pertenceram
a outras partes do mundo.
Em seu lugar ficou governando no civil, concedendo sesmarias,
provendo ofícios, o padre Gonçalo Monteiro, também vigário. O gov-
erno das armas exerceram-no Pero de Góis e Rui Pinto. O primeiro quis
expulsar do Iguape alguns espanhóis que ali se refugiaram, vindos do
Paraguai. Surtiu-lhe mal o lance. Os espanhóis derrotaram a força,
aprisionaram o comandante, invadiram e saquearam S. Vicente. Ou
achasse meio de fugir, ou aos inimigos bastasse o escarmento, já estava
no Velho Mundo em 1536, como se conclui do foral de sua capitania
datado de 26 de fevereiro.
52 J. Capistrano de Abreu
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Desde Bertioga até o Cabo Frio continuavam implacáveis os tupi-
nambás, combatendo e atacando por terra e por mar contra os perós, e
a favor dos maïr. Num dos combates sucumbiu Rui Pinto. Cunham-
bebe, truculento maioral tamoio, guardava entre os outros troféus o
hábito e a cruz de Cristo deste cavaleiro.
Aparece-nos entre os primeiros povoadores Brás Cubas, jovem
criado de Martim Afonso, que aportou a S. Vicente em 1540, governou
mais de uma vez a terra, guerreou contra os tamoios, fortificou Bertioga, en-
trada preferida por estes inimigos, e fundou a vila de Santos, que possuía
melhor porto e facilmente superou a primogênita de Martim Afonso. Mais
tarde empenhou-se na cata de minas, e consta haver achado algum ouro.
À roda destas vilas fundaram engenhos, além dos portugueses, os
flamengos Schetz ou Esquertes, como o pronunciava o povo, e os Dorias,
genoveses. Diz-se até, porém não deve ser exato, que desta procedem as ca-
nas plantadas em outras capitanias. Tais engenhos, com as distâncias e a rari-
dade de comunicações, deviam ter desenvolvimento medíocre.
Da vila fundada em Piratininga conhecemos a mera existência ou
pouco mais. A situação no descampado dificultava surpresas inimigas. O
trânsito do Paraguai dava-lhe algum movimento. As cabanas de João
Ramalho e dos mamelucos seus filhos e parentes, no outro lado da serra
donde as águas já corriam para o Prata, apregoavam a vitória alcançada
sobre a mata virgem do litoral, vitória obtida aqui mais cedo que em
qualquer outra parte do Brasil, porque os colonos apenas continuaram a
obra dos indígenas, já achando aberto por cima de Paranapiacaba e
aproveitando a trilha dos tupiniquins.
Na capitania de Pernambuco, depois de estabelecido Igaraçu,
Duarte Coelho passou algumas léguas mais ao sul e assentou a capital de
seus domínios em Olinda. O porto de somenos capacidade bastava às
pequenas embarcações. A vizinhança dos tabajaras (tupiniquins) com-
pensava as investidas constantes dos petiguares (tupinambás). A energia
do donatário continha a turbulência dos colonos. Nas várzeas surgiam
canaviais e engenhos; a lavoura de mantimentos aproveitou os altos:
pau-brasil existia no litoral e no sertão; e estando esta capitania, de todas
as mais oriental, a menor distância do Reino, aqui mais que alhures
freqüentavam os navios de além-mar, e prosperava o comércio. Os mares
piscosos traziam a fartura e alentavam a costeagem; caravelões espantavam
Capítulos de História Colonial 53
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os franceses, que desde então começaram a evitar aquelas paragens. O
nome de Nova Lusitânia dado pelo donatário à sua colônia, se por um
lado figura esperanças de futuro, simbolizava por outro o orgulho da
própria obra. Nas armas concedidas por D. João III em 6 de junho [de]
1545 cinco castelos representavam os cinco centros de povoações
criadas por Duarte Coelho. Infelizmente conhecemos só Igaraçu, Olinda
e, quiçá, Paratibe.
Da capitania de Itamaracá foram recursos para a de Pernambuco,
quando os petiguares puseram cerco em Igaraçu e levaram-no aos últi-
mos apuros. Mais tarde as relações estremeceram. Queixa-se Duarte
Coelho de desrespeitos constantes à sua autoridade; de Itamaracá teve
de retirar-se um capitão, por Duarte Coelho haver mandado dar-lhe
uma cutilada: a pequena distância gerou dissensões. Contudo, os
colonos de Pero Lopes tiveram a habilidade de conciliar os tupinambás
da serra, e como não avançaram pelo litoral para as terras do Paraíba,
centro dos petiguares amigos dos franceses, seu desenvolvimento correu
pacífico e contínuo por algum tempo.
Largos recursos naturais facilitavam a obra de Francisco Pereira
Coutinho: baía vasta como um mediterrâneo, esteiros numerosos fran-
queando entrada a cada passo, correntes numerosas para moverem engen-
hos, matas virgens ao lado de terrenos mal vestidos, onde o gado podia me-
drar à lei da natureza, situação vantajosa no centro das outras capitanias.
Faltava pau-brasil na vizinhança, mas o afastamento dos franceses,
daí resultante, compensava bem a pobreza, e, não instigados pelos
franceses, os tupinambás mostrariam disposições menos malévolas. Por
que não foi avante, com tudo isso, Francisco Pereira Coutinho?
Não soube dominar os elementos que importou, nem se impôs à
indiada das adjacências. Tais apuros sofreu que pereceria sem os socor-
ros mandados dos Ilhéus.
Mais tarde recolheu-se a Porto Seguro, cansado e velho, pouco dis-
posto a continuar; mas os ânimos serenaram na Bahia, e tornava esper-
ançado, quando foi morto ao desembarcar. Nas lutas com os índios
mandara matar um dos cabecilhas: prisioneiro agora, foi ritualmente sac-
rificado por um irmão do finado, de cinco anos, tão pequeno que foi
preciso segurarem-lhe a maça do sacrifício, segundo tradição conservada
num escrito jesuítico.
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VI
Capitanias da Coroa
A morte de Francisco Pereira, que apenas se divulgou
no Reino, devia convidar os políticos a meditar sobre o sistema de colo-
nização vigente.
Sem dúvida satisfazia a alguns dos primitivos intuitos que o inspi-
raram. As fortalezas espalhadas pelo litoral estorvavam, se não
suprimiam de todo, o trato entre os indígenas e os entrelopos. Os
franceses, expulsos de Pernambuco, procuravam outros pontos, e deles
seria possível excluí-los com o tempo. Iam nascendo filhos de portugue-
ses, a população crescia com a mestiçagem, regularizavam-se a produção e o
comércio.
Mas um vício constitucional minava o organismo. Os donatários en-
travam para a empresa com recursos próprios ou emprestados: se os primei-
ros tempos corriam bem, a remuneração natural permitia-lhes continuarem
com mais eficácia; no caso contrário perdia-se todo o esforço, como sucedera
a Pero de Góis, a Francisco Pereira, a Antônio Cardoso, a João de Barros, a
Aires da Cunha, a Fernand’Álvares; ou as capitanias vegetavam mofinas, como
as dos Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, Santo Amaro e São Vicente.
Acrescia que, sendo iguais os poderes dos donatários, estando as
capitanias na condição de estados estrangeiros umas relativamente às
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outras, impossibilitava-se qualquer ação coletiva: os crimes proliferavam
na impunidade, a pirataria surgia como função normal. As cartas de
Duarte Coelho ilustram de modo pungente esta anarquia lastimosa. E a
anarquia intercapitanial conjugava-se com a anarquia intestina. Autori-
dades e mais autoridades, leis claras, prescrições restritivas havia: qual o
meio de pô-las em atividade e dar-lhes força? Como imobilizariam os
donatários em funções de governo recursos que não sobejavam para
misteres econômicos?
O remédio preferido por D. João III consistiu em tomar posse da
capitania deixada devoluta pela morte de Coutinho, com os recursos da
Coroa estabelecer uma organização mais vigorosa, criar um governo-
geral, forte bastante para garantir a ordem interna e estabelecer a
concórdia entre os diversos centros de população.
Rasgaram-se assim doações e forais, onde só estavam previstos
conflitos entre solarengos e senhores hereditários, e só se fitava
equiparar a situação destes à dos reis contra os poderosos vassalos
medievais. Os poucos protestos dos interessados passaram de-
satendidos, e em 1549, sem abolir de todo o sistema feudal, instituiu-
se novo regime.
Constava de um capitão-mor, incumbido da administração civil e
militar, de um provedor-mor, encarregado dos negócios da fazenda, de
um ouvidor-mor, chefe da justiça. Exerciam a autoridade primariamente
na Bahia; nas outras capitanias tinham delegados; quando iam a qualquer
delas, competia-lhes conhecer de ação nova; na ausência agiam só por
meio de recursos. Numerosos, excessivos oficiais distribuíam-se por
estes três ministérios ou desfrutavam magras sinecuras.
Acompanhado por quatrocentos soldados, seiscentos degradados,
muitos mecânicos pagos pelo erário, partiu de Lisboa em fevereiro o
primeiro governador, Tomé de Sousa, com Pero Borges, ouvidor-geral,
Antônio Cardoso de Barros, procurador-mor da Fazenda, e aportou à
baía de Todos os Santos em fins de março de 1549.
Saltando em terra tratou logo de escolher local apropriado para a
cidade que vinha fundar, de fortalecê-la contra os ataques da gente de
terra e construir os edifícios mais urgentes.
A gente ia desembarcando à medida que se preparavam as acomo-
dações. Caravelões mandados a diversos pontos da costa, em constante
56 J. Capistrano de Abreu
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escambo com os naturais, traziam algum mantimento. O peixe abun-
dante variava os gêneros conservados ou, mais provavelmente,
avariados, procedentes de Portugal. De Cabo Verde veio algum gado,
para cuja propagação o terreno provou admiravelmente. Os pagamentos
faziam-se em gêneros, principalmente ferramentas e avelórios, que de-
pois os interessados permutavam entre si ou com os indígenas.
Com estes elementos o governador impediu a desordem na capital.
O provedor-mor e o ouvidor-geral em viagens continuadas pelas capi-
tanias reprimiram muitos abusos.
Em companhia do capitão-mor vieram seis jesuítas, os primeiros
mandados a este continente, sobre cujos destinos tanto deveriam mais
tarde pesar. Completaram harmonicamente a administração, pois tanto
como Tomé de Sousa ou Pero Borges, o padre Manuel da Nóbrega obe-
decia ao sentimento coletivo, trabalhava pela unidade da colônia, e no
ardor de seus trinta e dois anos achava ainda pequeno o cenário em que
se iniciava uma obra sem exemplo na História.
Seus esforços perdiam-se na indiferença ou hostilidade dos outros
eclesiásticos. Por isto, com insistência e franqueza apostólicas lembrava a el-
rei a conveniência de mandar um bispo, único meio de trazer ao aprisco as
ovelhas e conter os lobos. Criou-se um bispado; em junho de 52 chegou à
diocese D. Pedro Fernandes Sardinha, primeiro bispo do Salvador.
Com o segundo governador, D. Duarte da Costa (1553-1557),
esteve em luta constante o velho prelado, das lutas comuns em mais
vasto, e inevitáveis em tão acanhado teatro, dadas as relações vigentes
entre o poder civil e o poder eclesiástico. A sociedade de Salvador cin-
diu-se ao meio, acirravam paixões e cavavam ódios as pessoas de maior
responsabilidade, e a multidão ignara atirou-se na refega, como se meras
questiúnculas de poderio representassem interesses vitais. Variando ap-
enas de forma, tais conflitos repetiram-se durante os séculos seguintes.
Só perderam importância depois que as constituições modernas elimi-
naram os resíduos da concepção medieval das duas sociedades perfeitas.
Os jesuítas, superiores e alheios a este debate, concentraram seus
esforços na capitania de São Vicente.
Transpondo a serra do Mar, estabeleceram na ribeira do Tietê uma
primeira missão que tomou o nome do apóstolo das gentes (25 de ja-
neiro de 54).
Capítulos de História Colonial 57
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Levaram-nos a este passo a maior abundância de alimentos no pla-
nalto, a presença de tribos próprias à conversão por sua índole mansa e,
além do afastamento dos portugueses, certas idéias vagas de penetração
entre os índios de Paraná e Paraguai. O nome de São Paulo, agora ou-
vido pela primeira vez, devia ecoar poderosamente no futuro.
Os franceses repelidos de Pernambuco por Duarte Coelho, conti-
dos ao centro pela cidade do Salvador e mais vilas de baixo, afastaram-se
dos lugares até ali mais freqüentados e passaram à capitania de Pero de
Góis e terras vizinhas pertencentes a Martim Afonso, onde por mui-
tas léguas dominavam os fiéis tamoios, e existia pau-brasil em
abundância.
Navios avulsos, aventureiros conhecedores da língua geral, identifi-
cados com os índios a ponto de lhes não repugnar a iguaria da carne hu-
mana, estabeleceram relações que, se não impediram o progresso dos
portugueses, criaram-lhes sérios embaraços, e durante alguns [anos]
trouxeram indecisa a vitória, e talvez a decidissem contra Portugal se
mais persistentes fossem seus adversários.
Cumpria coordenar estes elementos. Lembraram-se os franceses de
um regime híbrido, com parte dos capitais adiantada por particulares,
parte fornecida pelo rei, que, entretanto, não se responsabilizaria pela
empresa e só a perfilharia em caso de bom êxito.
À frente da expedição colocou-se Nicolas Durand de Villegaignon,
notável pela valentia e pelo saber. Partindo de Brest, chegou em novem-
bro de 55 ao Rio de Janeiro, seu destino. Estabeleceu-se numa ilha da
baía, posição esplêndida contra os índios com cuja amizade contava, im-
própria pela falta de água a resistir aos portugueses, cujos ataques
poderiam tardar, mas não faltariam; com duas fortalezas formidáveis ar-
mou-a; fez amado e querido dos indígenas circunvizinhos o nome de
Pay Colas; por mais de uma vez recebeu imigrantes da Europa.
Da assistência na ilha, pequena, rochosa, sem água nativa, surgiram
inconvenientes graves para o sustento da guarnição, sujeita assim aos ca-
prichos dos tamoios. A severidade puritana do chefe descontentou a
soldadesca. Os imigrantes trouxeram questões religiosas para a comuni-
dade. O chefe teve de mostrar-se severo, talvez cruel. Chegaram más
notícias e sérias queixas ao Velho Mundo, tolhendo as correntes sim-
páticas. Afinal, desiludido do futuro imediato da colônia, ou convencido
58 J. Capistrano de Abreu
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de que sua presença excitaria a tibieza e despertaria a confiança dos ar-
madores da metrópole, ou desejoso de entrar nos conflitos muito mais
brilhantes e gloriosos que se feriam além-mar, Villegaignon retirou-se
em 59 da França Antártica.
Sucedeu-lhe seu sobrinho Bois le Comte, que manteve a situação
sem melhorá-la. Como poderia fazê-lo? Para serem bem sucedidos, os
franceses deviam ter vindo uns vinte anos antes, quando os portugueses
não tinham ainda criado raízes. Era tarde agora. Mem de Sá, à frente de
uma armada, penetrando na baía, precisou apenas de três dias de fogo
nutrido para desvanecer todos os castelos, em março de 60.
A vitória portuguesa foi realçada por dois sucessos logo ocorridos
nas capitanias de Martim Afonso e Pero Lopes.
Mem de Sá mudou a antiga vila de Santo André, reunindo-a à
missão jesuítica de Piratininga. Por este ou outro motivo, os tupiniquins
se insurgiram e puseram em cerco o povoado. Os catecúmenos dos je-
suítas declararam-se contra seus próprios parentes, que foram repelidos
e não tornaram mais. A favor dos portugueses, bateu-se heroicamente
Martim Afonso Tibiriçá (julho de 62).
No ano seguinte, Nóbrega pôde realizar o plano longamente
amadurecido de entabular pazes com os tamoios que, navegando pela
Bertioga, traziam em contínuo sobressalto os moradores de Santo
Amaro e de São Vicente. Em companhia de José de Anchieta, jovem je-
suíta vindo com D. Duarte da Costa, e já muito conhecedor da língua
geral, embarcou para Iperoig, nas cercanias da hodierna Ubatuba e depois
de alguns meses de assistência dramática, em que mais de uma vez a vida de
ambos correu perigo, lograram o almejado escopo (setembro de 63).
Desafrontado o sertão, desoprimida a marinha do Norte, o povo da
capitania pôde auxiliar Estácio de Sá, mandado em 64 à conquista do Rio,
dominado ainda pelos inimigos de aquém e além-mar, sem embargo da vitória
recente.
Com os navios e gente levados da Bahia, com índios tomados no
Espírito Santo, canoas e auxiliares colhidos em São Vicente, Estácio começou
a fundar a cidade de São Sebastião em 1º de março de 65.
Ao contrário de Villegaignon, estabeleceu-se em terra firme, logo à
entrada da barra, com a frente para o levante. Juntamente com a cerca
artilhada, começaram as plantações sem se fiar nos mantimentos que
Capítulos de História Colonial 59
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poderiam vir das capitanias. Mesmo assim curtiu bravas fomes. Mul-
tiplicaram ciladas e surpresas os índios do recôncavo; duas vezes o
atacaram naus francesas reunidas aos tamoios de Cabo Frio. O jovem
herói resistiu durante dois anos; se não consumou avanços con-
sideráveis, enfraqueceu bastante as forças dos aliados, de modo que à
chegada do seu tio Mem de Sá, com fortes socorros, dois combates, um
em Ibiraguaçu-Mirim (morro da Glória?), outro na ilha de Paranapicu,
mais tarde chamada do Governador, bastaram para tornar definitivo o
domínio dos portugueses.
Tendo Estácio de Sá sucumbido às conseqüências e ferimentos re-
cebidos em combate, o governador seu tio demorou mais de um ano na
cidade, transferiu-a mais para dentro da baía, para o morro agora
chamado do Castelo, que muniu de fossos, cercou de muros, enriqueceu
de edifícios, como cumpria a uma cidade real (1567-1568). Ficou esta
sendo a segunda capitania da Coroa, conquanto pelos termos da carta de
doação devesse pertencer a Martim Afonso.
Outras guerras houve por este tempo no Espírito Santo, em Porto
Seguro, nos Ilhéus, na Bahia, cujos índios ficaram sujeitos desde
Camamu até Itapicuru, distância de quarenta léguas.
Com a derrota dos naturais de Paraguaçu e Ilhéus, destruiu-se o
que poderíamos chamar uma marca da língua geral, e irromperam os ta-
puias, até então sopeados. Ninguém lucrou com a substituição: "Os ai-
morés, homens robustos e feros, andam sempre pelo mato, no qual bas-
tam quatro para destruir um grande exército", geme um contemporâneo.
Só no século seguinte se remediou o mal.
Estes feitos bélicos não constituem todo o governo de Mem de Sá,
homem da toga, desembargador da casa da Suplicação. Entre todos seus
serviços, sobreleva o auxílio prestado a Nóbrega para realizar a obra das
missões.
Esgotaria todos os préstimos dos brasis fornecerem matéria-prima
para a mestiçagem e para os trabalhos servis, meras máquinas de prazer bas-
tardo e de labuta incomportável? Se não com palavras, isto afirmavam os
colonos de modo menos ambíguo por atos repetidos em pertinácia in-
variável. Ora, os jesuítas representavam outra concepção da natureza
humana. Racional como os outros homens, o indígena aparecia-lhes
educável. Na tábua rasa das inteligências infantis podia-se imprimir
60 J. Capistrano de Abreu
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todo o bem; aos adultos e velhos seria difícil acepilhar, poderiam,
porém, aparar-se arestas, afastando as bebedeiras, causa de tantas desor-
dens, proibindo-lhes comerem carne humana, de significação ritual re-
pugnante aos ocidentais, impondo quanto possível a monoginia,
começo de família menos lábil. Para tanto, cumpria amparar a pobre
gente das violências dos colonos, acenar-lhes com compensações reais
pela cerceadura de maus hábitos inveterados, fazer-se respeitar e obede-
cer, tratar da alimentação, do vestuário, da saúde, do corpo enfim, para
dar tempo a formar-se um ponto de cristalização no amorfo da alma sel-
vagem. Tal a idéia de Nóbrega, representada essencialmente pela Com-
panhia de Jesus nos séculos de sua fecunda e tormentosa existência no
Brasil. Já o tentara em Piratininga; podia agir com mais eficácia agora,
escudado pelo governador-geral.
As primeiras missões estabelecidas à roda da baía de Todos os San-
tos ficavam em ponto cuidadosamente escolhido, perto do mar para os
índios se poderem manter com suas pescarias, e perto das matas para
poderem fazer seus mantimentos; reuniam-se em várias aldeias, sujeitas
a um só chefe ou meirinho, reconhecido pelos padres como o mais ca-
paz de colaborar nesta obra de depuramento, e nela residiam um padre e
um irmão, que a tudo superintendiam. A vida nas missões resume-a as-
sim um jesuíta contemporâneo: "Ensinam-lhes os padres todos os dias
pela manhã a doutrina, esta geral, e lhes dizem missa, para os que a quis-
erem ouvir antes de irem para suas roças; depois disso ficam os meninos
na escola, onde aprendem a ler e escrever, contar e outros bons cos-
tumes, pertencentes à polícia cristã; à tarde tem outra doutrina particular
a gente que toma o Santíssimo Sacramento. Cada dia vão os padres visi-
tar os enfermos com alguns índios deputados para isso; e se têm algu-
mas necessidades particulares, lhes acodem a elas; sempre lhes minis-
tram os sacramentos necessários... O castigo que os índios têm é dado
por seus meirinhos feitos pelos governadores e não há mais que quando
fazem alguns delitos, o meirinho os manda meter em um tronco um dia
ou dois como ele quer; não tem correntes nem outros ferros da justiça...
Os padres incitam sempre aos índios que façam sempre suas roças e
mais mantimentos, para que, se for necessário, ajudem com eles aos
portugueses por seu resgate, como é verdade que muitos portugueses
Capítulos de História Colonial 61
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comem das aldeias, por onde se pode dizer que os padres da Companhia
são pais dos índios, assim das almas como dos corpos."
Começada em 58, a obra das missões tomou um desenvolvimento
rápido nos anos seguintes, principalmente no provincialato de Luís da
Grã. Com a mesma rapidez decaiu, sobretudo em conseqüência do fato,
misterioso e até agora inexplicável, que condena ao desaparecimento os
povos naturais postos em contato com os povos civilizados. Nem por
isso foi abandonada a empresa que com vários sucessos aturou até
meados do século XVIII.
Em Pernambuco acelerava-se por esse tempo o movimento para a
fronteira meridional no rio São Francisco. Durante a menoridade de
Duarte de Albuquerque Coelho (1554-1560), seu tio Jerônimo de Albu-
querque franqueou a vargem do Capibaribe. O jovem donatário e Jorge,
seu irmão, vindo de Portugal para o Brasil, conquistaram as terras do
cabo de Santo Agostinho e as de Serinhaém. Nas do cabo fundou oito
engenhos João Pais Barreto, tronco de família numerosa ainda existente.
Seguiram-se guerras pelo interior a pretexto de minas, mas realmente in-
spiradas pelo desejo de cativar escravos. Nelas figurou Antônio de Gou-
veia, clérigo epilético, sujeito a visões, que pretendia conversar familiar-
mente com o Diabo, em nenhum lugar podia estar sossegado, a ponto
de fugir até das prisões do Santo Ofício, e era tido e tinha-se por ni-
gromático. Dava-se por entendido em minas esta sinistra ave de ar-
ribação, lembrada na imaginação popular com o nome de Padre de Ouro.
Por sua causa diz-se que Duarte de Albuquerque Coelho foi preso para
o Reino. Antônio Salema veio a Pernambuco abrir devassa com alçada
sobre este e outros negócios.
Com a morte de Mem de Sá, em março de 72, pareceu conveniente
dividir o Brasil em dois governos, sujeitos às cidades reais do Salvador e de
São Sebastião.
Luís de Brito de Almeida pretendeu passar além do rio Real e incorpo-
rar Sergipe. Já os jesuítas tinham preparado o terreno para a penetração
pacífica por meio de missões, mas a cobiça dos colonos e as manhas de al-
guns mamelucos tudo arruinaram.
No Rio, Antônio Salema, auxiliado pelo capitão-mor de São Vicente,
deu guerra aos índios de Cabo Frio e pacificou o território entre a cidade de
São Sebastião e Macaé, distância de trinta léguas na estima do
62 J. Capistrano de Abreu
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tempo. Foram mortos muitos dos tamoios, escravizados não poucos, e
alguns incorporados aos aldeamentos jesuíticos. Quem pôde emigrou
para o sertão. Os franceses desta feita receberam um golpe de que não
puderam mais recobrar-se inteiramente.
Aparecem várias tentativas de procurar pedras preciosas, principal-
mente da Bahia ao Espírito Santo. Sebastião Tourinho e outro varam a
serra do Espinhaço, em busca de esmeraldas. Em São Vicente ocupa-se
Brás Cubas na pesquisa de minas. Nada produziram de sólido tais es-
forços. Mais importante que eles é o desaparecimento dos índios,
trazendo como conseqüência o aumento da importação africana.
"A gente que de vinte anos a esta parte [1583] é gastada nesta Ba-
hia, parece cousa que se não pode crer; porque nunca ninguém cuidou
que tanta gente se gastasse nunca, quanto mais em tão pouco tempo",
escreve um jesuíta. "Porque nas quatorze aldeias que os padres tiveram,
se juntaram 40.000 almas, estas por conta e ainda passaram delas, com a
gente com que depois se forneceram, das quais se agora as três igrejas
que há tiveram 3.500 almas será muita.
"Há seis anos que um homem honrado desta cidade e de boa con-
sciência e oficial da câmara que então era, disse que eram descidos do
sertão de Arabó, naqueles dois anos atrás 20.000 almas por conta, estes
todos vieram para a fazenda dos portugueses. Estas 20.000 com as
40.000 das igrejas fazem 60.000. De seis anos a esta parte sempre os
portugueses desceram gente para suas fazendas, quem trazia 2.000 al-
mas, quem 3.000, outros mais, outros menos. Veja-se de dois anos a esta
parte o que isto podia somar, se chegam ou passam de 80.000 almas.
"Vão ver agora os engenhos e fazendas da Bahia, achá-los-ão
cheios de negros de Guiné e mui poucos da terra, e se perguntarem por
tanta gente dirão que morreu. Donde bem se mostra o grande castigo de
Deus dado por tantos insultos como são feitos e se fazem a estes índios,
porque os portugueses vão ao sertão e enganam a esta gente dizendo-
lhes que se venham com eles para o mar e que estarão em suas aldeias
como lá estão em sua terra e que seriam seus vizinhos. Os índios crendo
que é verdade vêm-se com eles e os portugueses por se os índios não ar-
rependerem lhes desmancham logo todas as suas roças e assim os
trazem, e chegando ao mar os repartem entre si, uns levam as mulheres,
outros os maridos, outros os filhos e os vendem."
Capítulos de História Colonial 63
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Por que insistiam os colonos em apossar-se de uma fazenda, cuja
pouca valia a cada passo se devia patentear de modo menos inequívoco?
Já sofriam de um achaque ainda hoje observado a todos momentos
entre seus descendentes: a incapacidade de formar convicção firme so-
bre um assunto e por ela pautar seus atos. Acresce que os escravos
indígenas, com todos esses percalços, auxiliavam extraordinariamente
aos que começaram a vida nestas terras... E a primeira cousa que preten-
dem adquirir são escravos, para neles lhes fazerem suas fazendas, in-
forma Gandavo; e se uma pessoa chega na terra a alcançar dois pares,
ou meia dúzia deles (ainda que outra cousa não tenha de seu) logo tem
remédio para poder honradamente sustentar sua família: porque um lhe
pesca, e outro lhe caça, os outros lhe cultivam e granjeiam suas roças e
desta maneira não fazem os homens despesa em mantimentos nem com
eles, nem com suas pessoas.
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VII
Franceses e espanhóis
Em 1580 extinguiu-se a dinastia de Avis. Filipe II da
Espanha, neto de D. Manuel, apoiando suas pretensões pelas armas,
sucedeu a D. Henrique, e incorporou à casa de Habsburgo o trono por-
tuguês. Com Portugal caíram todas suas possessões sob o domínio
espanhol.
Para o Brasil as primeiras conseqüências deste estado de cousas
foram favoráveis. Os limites naturais da colônia indicaram-nos o Ama-
zonas e o Prata. De ambos separavam o povoado distâncias sempre
enormes. Agora, se as distâncias persistiam as mesmas, podia-se em
compensação concentrar os esforços num só sentido, em vez de dissipá-
los por ambos. Esperaria o Prata, já ocupado em parte; urgia senhorear
o Amazonas, inda não investido, mas já cobiçado por diversas nações.
Assim, caminho do Prata o trabalho reduziu-se a mera consolidação, ao
estreitamento de malhas; para o Amazonas a expansão colonizadora
moveu-se acelerada. Por isso, preferindo a ordem cronológica para a ex-
pansão amazônica, seguremos a ordem geográfica no outro extremo.
Vindo do Sul, encontrava-se a Cananéia habitada por gente ida da
capitania de São Vicente, que também procurava o recôncavo da Angra
dos Reis, e já se comunicava com a cidade de São Sebastião, pela
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baixada de Santa Cruz, onde os jesuítas começavam uma fazenda
famosa. Nas terras do Cabo Frio os franceses continuavam a freqüentar,
naturalmente menos a miúdo e com menor proveito.
Por fim, Constantino Menelau, depois de vencê-los, obstruiu o porto,
e Estêvão Gomés estabeleceu uma pequena fortaleza. Flagelados pelas bexi-
gas, os guaitacás aproximaram-se dos brancos que os poderiam socorrer.
Para a conciliação muito contribuiu o jesuíta Domingos Rodrigues.
Este mesmo Domingos Rodrigues, mais tarde egresso da Compan-
hia de Jesus, em Ilhéus, e Álvaro Rodrigues Adorno, na Cachoeira, le-
varam a bom termo a pacificação dos aimorés. Por este modo desde o
Rio até a cidade do Salvador cessaram temporariamente suas devasta-
ções os tão temidos tapuias do litoral, que só reaparecem pelos meados
do século.
Ao norte da Bahia apresenta-se como mais notável o fato da con-
quista de Sergipe. Desde os últimos tempos de Mem de Sá a empresa
afigurava-se fácil, pois não cessavam mensagens pedindo aos padres da
Companhia que fossem até lá levar a boa nova. Com os dois jesuítas
mandados a este fim partiram soldados e mamelucos, ávidos de escra-
vos, que plantaram a sizania entre os tupinambás e alienaram sua confi-
ança. Todas as desconfianças confirmou o Governador Luís de Brito de
Almeida no ano 74, fazendo guerra implacável aos índios, aprisionando
uns, afugentado outros, devastando aquelas comarcas, por simples des-
fastio destruidor, poderia crer-se; pois durante cerca de dois decênios
quedou estacionária a obra colonizadora.
Em fins de 89, Cristóvão de Barros, governador interino por morte
de Manuel Teles Barreto, repetiu de novo a tentativa, com melhor êxito.
Parte da força seguiu por mar, parte por terra, e reunidos deram em
várias cercas dos naturais, que foram derrotados.
Acossando estes, penetraram alguns aventureiros até o rio São
Francisco. No território devoluto Cristóvão de Barros separou uma
enorme sesmaria para o filho; esta serviu de craveira para outras, e den-
tro em pouco não havia mais o que distribuir. Com esta campanha os
franceses perderam as antigas ligações no rio Real.
Na capitania de Duarte Coelho continuou o movimento para o rio
São Francisco. Fazendas de gado ou canaviais avançaram pelo território
66 J. Capistrano de Abreu
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das Alagoas. Entre os povoadores desta região avulta o alemão Lins, que
deixou larga descendência, e João Pais, de quem já se falou. Também
daqui os franceses tiveram de retirar-se.
Nos primeiros anos do século XVII, podia-se viajar e viajava-se
efetivamente por terra, da Bahia até Pernambuco, sem encontrar re-
sistência séria por parte dos naturais, vencidos ou afugentados da ma-
rinha. O único obstáculo ao livre trânsito apresentava a passagem dos
rios maiores, direito real, como já vimos. Os rios menores eram passa-
dos nos vaus, e assim continuaram nos séculos seguintes; pelos vaus
pode-se traçar a borda da primitiva ocupação litorânea.
Vejamos agora a marcha para o Amazonas.
Longo tempo estacionara o povoamento na ilha de Itamaracá e no
continente fronteiro. Os petiguares da serra entretinham boas relações
com os colonos, que visitavam pacificamente as aldeias; os da praia,
sempre amigos dos franceses, faziam com estes bons negócios na
Paraíba, onde não os perturbavam os portugueses, contentes com
breves excursões à procura de âmbar, abundante por aquelas plagas até
o Ceará, e com o pau-brasil trazido do interior pelos próprios índios.
Em 74, por causa de uma cunhã do sertão, desaveio-se a gente
deste com a da Goiana, e começam as hostilidades. Foram assaltados e
queimados dois engenhos, e com esta fácil vitória mais se assanharam as
paixões dos assaltantes. A guerra levianamente provocada havia de durar
vinte e cinco anos.
A mandado de Luís de Brito, o ouvidor-geral, Fernão da Silva, par-
tiu para a Paraíba, afugentou a indiada com a simples presença, lavrou
autos que ficaram só no papel. Frutuoso Barbosa, homem de fortuna,
ofereceu-se à metrópole para ultimar a conquista se lhe concedessem
certas mercês. Com elas chegou em 80 a Pernambuco, mas nada logrou
fazer, porque um temporal atirou-o para as Antilhas e de lá à Europa.
Da segunda vez, não se animou a tentar estabelecimento algum; limitou-
se a queimar navios franceses.
Em 83 aportou à Bahia Diogo Flores Valdez, vindo de uma viagem
malograda ao estreito de Magalhães. Ao governador insinuou-se como
capaz desta conquista, e na monção seguinte partiu com uma armada
espanhola e algumas embarcações portuguesas para Pernambuco. Or-
ganizou-se ao Recife uma expedição marítima e outra terrestre. Por mar,
Capítulos de História Colonial 67
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Diogo Flores chegou sem embaraço a seu destino, queimou alguns nav-
ios franceses carregados de pau-brasil, fundou um forte, nele deixou
uma guarnição de compatriotas seus; a gente ida por terra saiu vitoriosa de
vários recontros e fundou um povoado, a cidade Filipéia, como a chamou
Frutuoso Barbosa, em honra do dinasta reinante. O castelhano Castejón fi-
cou por alcaide do forte, e Frutuoso Barbosa tomou conta da cidade.
Amassaram-se mal o chefe civil e o chefe militar; a discórdia lavrou
entre castelhanos e portugueses. Os petiguares, aterrados pelos primei-
ros embates, voltaram logo em chusmas densas e mais arrogantes.
Guiavam-nos franceses dos diversos navios queimados, sedentos de vin-
gança, cônscios da importância capital desta partida, em que se dispu-
tavam terrenos de seu domínio exclusivo durante tantos anos.
Castejón portou-se com bravura; socorros de Pernambuco expedi-
dos por Martim Leitão, ouvidor-geral, nunca lhe faltaram. O próprio ou-
vidor-geral lá foi, em março de 86, com quinhentos homens brancos e
muitos índios em sua companhia. Mas os índios e os franceses con-
tinuavam cada vez mais afoitos e mais ardentes. Desanimado, Frutuoso
Barbosa desistiu de seus direitos e retirou-se para Olinda. Castejón resis-
tiu até junho; ao retirar-se, tocou fogo no forte, quebrou o sino, meteu a
pique um navio, lançou a artilharia ao mar. Ficava aniquilado todo o
trabalho.
Anos antes, aventureiros pernambucanos, guerreando no rio São
Francisco, houveram-se tão aleivosamente com os tabajaras, os antigos e
fiéis aliados desde o tempo de Duarte Coelho, que estes os mataram a
todos, fugiram dos lugares nefastos, e por uma das gargantas da Bor-
borema procuraram a terra da Paraíba para combater os brancos,
aliando-se embora aos petiguares, seus inimigos hereditários e irrecon-
ciliáveis da língua geral. Martim Leitão, quando saiu de Olinda em
auxílio de Castejón, reconheceu-os e entabulou negociações, esperando
trazê-los à antiga amizade. Os tabajaras não se deixaram requestar e
prepararam-se para o combate: traiu-os a sorte, apesar da valentia de
Braço de Peixe e Assento de Pássaro, os dois chefes tupiniquins.
Esta derrota despertou o ódio avito dos tupinambás, que se tor-
naram contra os novos aliados, malsinando-os de covardes, tratando-os de
traidores, obrigando-os a tornarem às terras donde vieram. Soube-o Mar-
tim Leitão e mandou emissários a Piragibá, prometeu o esquecimento
68 J. Capistrano de Abreu
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das injúrias recentes, anunciou auxílios prontos, instou por sua per-
manência, renovando as antigas pazes. Cedeu o Braço de Peixe; com a
intervenção de João Tavares, escrivão de órfãos de Olinda, passaram os
tabajaras a combater ao lado dos portugueses.
Em agosto, 5, dia de Nossa Senhora das Neves, João Tavares re-
começou a obra aniquilada pela defecção de Castejón, auxiliada agora
pela gente de Braço de Peixe e Assento de Pássaro, mas perturbada
sempre pelos petiguares e pelos franceses. Mais duas vezes tornou Mar-
tim Leitão à Paraíba. Sua ação sempre fecunda e prestigiosa pode resu-
mir-se em poucas palavras: queimou navios, queimou pau-brasil já cor-
tado, queimou aldeia, arrancou plantações, inutilizou mantimentos na
baía da Traição, na serra de Capaoba, no Tijucopapo.
Em maio de 87, Martim Leitão considerou terminada sua missão e
voltou para Pernambuco, depois de lançar os alicerces para um engenho
real. Enganava-se, porém; prosseguiram constantes as guerras durante
mais dez anos, no sertão, no litoral com as naus francesas, que chegaram
a cercar a fortaleza do Cabedelo, com os petiguares, a quem a presença dos
franceses, privados de ir para sua terra pela queima das naus que os deviam
conduzir, comunicaram uma audácia e uma persistência bem alheias à índole
indígena. Destes incidentes ignoramos a história; crônica apenas guarda os
nomes de Pedro Lopes, Feliciano Coelho, Pero Coelho, talvez Ambrósio
Fernandes Brandão, o autor possível dos Diálogos das Grandezas do
Brasil. Do lado dos franceses a tradição lembra Rifault, cujos feitos
não podem aliás ser precisados à falta de documentos.
Tantos anos agitados e tão desesperada resistência patentearam a
urgência de ocupar o rio Grande, onde os inimigos perenemente se re-
faziam. De lá saíram uma vez treze navios para tomar Cabedelo, e o
combate durara de uma sexta a uma segunda-feira. Em suas águas
chegaram a se reunir vinte navios procedentes de França. Muitos
franceses mestiçaram com as mulheres indígenas, muitos filhos de
cunhãs se encontravam já de cabelo louro: ainda hoje resta um
vestígio da ascendência e da persistência dos antigos rivais dos por-
tugueses na cabeleira de gente encontrada naquela e nos vizinhos
sertões de Paraíba e Ceará.
A expedição ao rio Grande, concebida no governo de D. Francisco
de Sousa, aparelhada de recursos abundantes, dirigida desde Pernam-
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sair
buco por Manuel de Mascaranhas Homem, lugar-tenente do donatário,
e Alexandre de Moura, que devia suceder no mando, repartiu-se por
terra e por mar. A divisão marítima, comandada por Manuel de Mas-
caranhas, a quem se agregou Jerônimo de Albuquerque, chegou fe-
lizmente a seu destino em janeiro de 98. Parte da divisão terrestre, enca-
beçada por Feliciano Coelho, capitão-mor da Paraíba, venceu a resistên-
cia dos inimigos, mas dissolveu-se ante uma epidemia de bexigas. A
praga passou também ao inimigo, e serviu para dar folgas a Manuel de
Mascaranhas, aliás acometido mais de uma vez no forte que começara.
Em março, Feliciano Coelho outra vez marchou para o rio Grande,
depois de reunir as suas forças, reduzidas agora à metade pela doença e
pela retirada do contingente de Pernambuco. Com este reforço, Manuel
de Mascaranhas concluiu o forte dos Reis Magos e entregou-o a
Jerônimo de Albuquerque, nomeado para comandá-lo. À sua sombra
medrou o que é hoje a cidade de Natal. Na volta, Mascarenhas e Coelho
afastaram-se da costa e fizeram novas devastações entre a indiada do sertão.
Nas veias de Jerônimo de Albuquerque circulava sangue potiguar
de sua mãe, Maria do Arco Verde, e disto não se envergonhava, antes o
vemos em mais de uma conjuntura proclamando a sua extração. Assim
devia sorrir-lhe a idéia de conciliar os parentes, reduzidos aos últimos
apuros por tantos trabalhos e tão continuada perseguição, e agora
forçosamente abandonados pelos franceses. A um índio aprisionado, prin-
cipal e feiticeiro, incumbiu esta missão, depois de bem instruí-lo no que de-
via dizer. O pensamento humanitário foi coroado do melhor êxito, graças
sobretudo às mulheres que, informa um contemporâneo, enfadadas de an-
darem com o fato continuamente às costas, fugindo pelos matos sem poder
gozar de suas casas, nem dos legumes que plantavam, traziam os maridos
ameaçados que se haviam de ir para os brancos, porque antes queriam ser
suas cativas que viver em tantos receios de contínuas guerras e rebates. Por
ordem de D. Francisco de Sousa as pazes foram juradas solenemente na
Paraíba, a 15 de junho de 99. Serviu de intérprete frei Bernardino das
Neves, filho de João Tavares, escrivão de órfãos de Olinda, já nosso con-
hecido. Deste ato resultou nascer e criar-se na amizade dos portugueses
Antônio Camarão, um dos heróis da luta contra a Holanda.
A conquista do rio Grande tinha logrado afastar os franceses e de-
senganar os índios numa grande extensão de terreno; mas significava,
70 J. Capistrano de Abreu
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mais que isto, o encurtamento da distância ao Maranhão e Amazonas.
Desde os primeiros tempos do Governador Diogo Botelho surge com
forças a idéia de consumar a obra e trata-se de chegar às regiões onde a
mão da natureza assentara os limites do país.
Obrigou-se a incorporar o Maranhão Pedro Coelho de Sousa, cun-
hado de Frutuoso Barbosa, que com séquito numeroso partiu da
Paraíba e chegou ao Jaguaribe em 1603. Os índios daquela ribeira, a
princípio esquivos, deixaram-se enlear pelas promessas dos intérpretes, e
todo o sáfio litoral cearense foi percorrido em paz. Só na serra de Ibia-
paba, aliás seminário dos amigos tabajaras, apareceu resistência, pro-
movida por franceses. Venceu-a Pedro Coelho e desceu a serra em
busca do rio Punaré ou Parnaíba, como é chamado hoje. Como sua
gente não quisesse ir mais adiante teve que retroceder.
Tudo correra bem até aí, tudo começou logo a se danar. Pedro
Coelho, na volta para o povoado, capturou os índios que pôde, indifer-
entemente, tabajaras, velhos amigos, e petiguares, aliados recentes.
Quando, depois de os ter distribuído pela Paraíba e Pernambuco, no-
vamente tornou ao Ceará, achou a situação insustentável e foi obrigado
a retirar-se. Sua retirada lastimável balizaram cadáveres, vítimas dos
areais candentes, da fome e da sede.
No provinciado de Fernão Cardim, governando D. Diogo de Me-
neses, dois jesuítas, Francisco Pinto e Luís Figueira, foram incumbidos
de chegar ao Maranhão. Levaram em sua companhia para restituí-los à
liberdade alguns dos índios capturados por Pedro Coelho e sua gente;
com algum esforço venceram as desconfianças do gentio, atravessaram a
serra de Uruburetama e chegaram a Ibiapaba, bem acolhidos, apesar de
tudo. Preparavam-se para prosseguir, quando uns tapuias assaltaram a
aldeia em que assistiam e mataram Francisco Pinto. Luís Figueira es-
capou e tornou para Pernambuco, onde anos mais tarde escreveu esta
trágica odisséia em carta felizmente hoje salva da voragem do tempo.
Nem a expedição numerosa, aparelhada para a guerra, de Pedro
Coelho, nem a missão pacífica dos jesuítas adiantara um passo à questão
de avanço para a costa leste-oeste, destinada talvez a adiamento inde-
finido, se não interviesse Martim Soares Moreno. Chegara de Portugal
em 1602, e Diogo de Campos, seu tio, sargento-mor de estado, o incor-
porou à primeira expedição de Pedro Coelho, para aprender a língua da
Capítulos de História Colonial 71
sumário
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terra e familiarizar-se com os costumes. Contava apenas dezoito anos.
Realizou os desejos do tio de modo superior, e tão bem se houve entre
os indígenas que Jacaúna, chefe petiguar, distinguiu-o da turba malfei-
tora e votou-lhe amor de pai. Nomeado tenente da fortaleza dos Reis
Magos, cultivou estas relações, mais de uma vez visitou o fiel amigo,
sempre esperançado de dissipar as prevenções e rancores. Afinal, o
índio permitiu-lhe levar um filho à Bahia, apresentá-lo ao Governador,
D. Diogo de Meneses, e consentiu-lhe viesse estabelecer-se com dois
soldados. Pôde assim lançar, junto ao minúsculo rio Ceará, os funda-
mentos de um forte, onde resistiu aos ataques da gente não sujeita a Ja-
caúna; com o auxílio deste tomou duas naus estrangeiras, nu e pintado
de jenipapo, à maneira de seus auxiliares. Aquele ponto, até ali con-
hecida como excelente aguada dos franceses, passou desde então a ser
evitado.
No governo de Gaspar de Sousa projetou-se avançar mais para o
Norte. Por sua ordem Jerônimo de Albuquerque partiu de Pernambuco
com quatro barcos, em meados de 1613, nomeado capitão-mor da con-
quista do Maranhão, comandando cem homens brancos e muitos
índios. Na passagem pelo Ceará levou consigo Martim Soares Moreno,
como lhe fora permitido, e navegou até o Camocim, onde pretendeu
fundar um forte. Por parecer pouco próprio este lugar, preferiu a en-
seada das Tartarugas, em Jererecuacara, onde deixou quarenta soldados
num presídio; com o restante voltou por terra; os barcos mandou que
costeassem como melhor pudessem e tornassem a Pernambuco.
Do Camocim expediu Martim Soares com vinte soldados ao Maranhão,
a colher notícias que pudessem guiar no prosseguimento da conquista. Graças
ao pequeno calado da lancha, Martim navegou muito pegado à terra, pôde entrar
pela boca do Preá e alcançou por águas interiores a baía hoje chamada de São
José.
O nome e a amizade de Jacaúna serviram-lhe neste lance arriscado. Os tupi-
nambás receberam-no com aparente afabilidade, mas preparavam-se para traí-lo,
quando um deles descobriu-lhe a verdadeira situação. Havia um ano estavam aí
franceses, com uma fortaleza artilhada de vinte peças, soldados, gente trazida em em-
barcações, sob o comando de Daniel de Latouche, senhor de La Ravardière. Ao
mesmo tempo eram os franceses informados da presença do explorador português e
começavam a dar-lhe caça. Martim Soares escapou incólume com os seus e o
72 J. Capistrano de Abreu
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índio amigo; o tempo, menos propício, atirou-o às costas da Venezuela,
donde, por São Domingos, chegou a Sevilha em abril do ano seguinte e
tratou logo de mandar notícias para Pernambuco. Na mesma ocasião
enviou com igual destino o piloto Sebastião Martins, mestre da lancha,
que o acompanhara na peregrinação. Chegou no momento oportuno;
Gaspar de Sousa tratava justamente de segunda e mais poderosa ex-
pedição para a nova conquista, e suas informações puderam ainda ser
aproveitadas.
Ainda esta vez Jerônimo de Albuquerque serviu de capitão-mor.
Diogo de Campos, sargento-mor, ia por colateral. Recomendou-lhes o
Governador as maiores cautelas, lembrava a fortificação de algum ponto
além do fortim deixado no ano anterior, a plantação de legumes de
rápido crescimento e indicou a conveniência de, desde Tutóia, ir parte
da força por terra, parte por mar.
Depois de receber alguns reforços na fortaleza do Ceará, os ex-
pedicionários prosseguiram viagem a 29 de setembro de 614, para o
forte do Rosário, que meses antes provara forças com a gente de uma
nau francesa destinada ao Maranhão. Feito o alarde da gente, apuraram-
se 220 soldados portugueses, 60 marítimos e 300 índios frecheiros. De-
veriam acampar em Tutóia? Confessaram-se os pilotos ignorantes
daquele trecho da costa: Bastião Martins só conhecia a barra do Preá;
para lá se encaminharam a 12 de outubro, e na noite de 13 se
abalançaram por ela na maior confusão: "houve navios que iam tocando
e dando grandes pancadas nos bancos ao entrar da barra, e, por não
atemorizarem os que vinham de trás, calavam e paravam sem se ou-
vir uma palavra de rumor."
Iam a bordo moços impacientes e pouco disciplinados, ansiosos de
medir-se com os franceses. Conseguiram do capitão-mor se
prosseguisse levianamente pelo Preá adentro, até avistar o inimigo. Era
o melhor plano a executar, provou-o o resultado. Antes da viagem de
Martim Soares Moreno, aquela entrada era desconhecida dos franceses;
depois dela assentaram um forte ligeiro em Itapari; todo o esforço de La
Ravardière aplicara-se, porém, à defesa da baía de São Marcos; nas suas
fortificações depositava-se a maior confiança. Claude d’Abbeville, mis-
sionário capuchinho, escrevia orgulhosamente: "C’est donc niaizerie de penser que
l’on puisse desloger les François de ce lieu, lors qu’ils y seront bien establis: & le vouloir faire
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croire, outre que c’est trop ravaller leur courage faire trop peu d’estime de leur valeur
& generosité. Si ce n’est une pure malice n’este-ce pas temerité? & que l’on en parle
comme les aveugles de couleurs? Ceux qui ont veu la situation de cette Isle & qui
connoissent par experience les difficultez de ses advenuës, n’advoüeront iamais telle
proposition, laquelle ne provient que d’un esprit timide." O ataque pela baía de S.
José, devido mais à casual fraqueza da lancha de Martim Soares, deitava
por terra todos estes arreganhos.
A 26 de outubro chegaram os expedicionários ao porto, depois
chamado de Guaxenduba; a 28, começaram no continente o forte de
Santa Maria. Na ilha fronteira, logo muitos fogos pareceram indicar a
transmissão de notícias. Vieram à fala alguns índios, esquivos apesar de
todas as atenções e carinhos de Jerônimo de Albuquerque; negavam em
geral a assistência dos franceses; um, porém, natural de Pernambuco, de-
nunciou ataque próximo. De fato, a 12 de novembro, no quarto da lua,
deu o inimigo nas embarcações e tomou três.
A este seguiu-se outro de maior monta a 19. Os franceses desem-
barcaram duzentos infantes, mais de dois mil índios; como reserva ficou
La Ravardière a bordo, acompanhado de cem soldados. Transportaram
esta força cinqüenta e sete embarcações, das quais as três tomadas al-
guns dias antes, e cinqüenta canoas. Trataram de se entrincheirar e, para
ganhar tempo, La Ravardière dirigiu uma carta ameaçadora a Jerônimo
de Albuquerque. Sem dar-lhe resposta, começaram os portugueses uma
ofensiva desesperada, indo pela praia Diogo de Campos, Antônio de Al-
buquerque, filho do capitão-mor, e Jerônimo Fragoso; pelo monte
Jerônimo de Albuquerque, Francisco de Frias e Manuel de Sousa de Sá.
Dos franceses, escreve este, morreram a espada e a arcabuzaços
noventa e tantos, que logo ali ficaram, além dos que se afogaram
fugindo para as embarcações, ao todo cento e sessenta; foram captura-
dos nove; queimaram-se-lhes quarenta e seis canoas; tomaram-se ao
todo duzentas armas de fogo, mosquetes e arcabuzes; dos selvagens
averiguou-se depois que faltavam quatrocentos, a maior parte mortos
afogados. De parte dos portugueses, as perdas foram insignificantes.
A derrota quebrantou o ânimo de La Ravardière. Em vez de procurar
desforrar-se logo, entabulou a 21 uma correspondência com Jerônimo de
Alburquerque, concebida em termos duros, que foi abrandando gradual-
mente. Os portugueses achavam-se em situação difícil: o inimigo
74 J. Capistrano de Abreu
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dominava as entradas com sua frota; socorros só poderiam vir pelo Preá,
e o Preá só admitia vasos de pequeno calado. Apesar de tudo, sua confi-
ança mantinha-se inalterável: "Somos homens que um punhado de
farinha e um pedaço de cobra quando o há nos sustenta", escrevia
Jerônimo de Albuquerque; "somos gente que não podemos nadar tanto
mar quanto há daqui à Espanha; pelo que ainda que hoje tendes a barra,
nós temos a terra que pisamos, a qual sempre será de nossos corpos até
que Sua Majestade d’el-rei da Espanha, nosso senhor, cujo tudo é, outra
coisa ordene", segundava mais difuso Diogo de Campos.
Da correspondência e das práticas nasceu a idéia de tréguas. As
duas metrópoles estavam amigas e aliadas no Velho Mundo, por que se
digladiariam neste? A 27, convencionou-se a suspensão das hostilidades
até fim de dezembro de 615; nem os franceses iriam ao continente, nem
os portugueses à ilha, e evitariam ambos entrar em contato com os
índios de uma e outra jurisdição; seriam permutados sem resgate os
prisioneiros; ficaria o mar franco aos portugueses; socorro de gente
de guerra não suspenderia o armistício; a nação obrigada a retirar-se
teria três meses para os aprestos; dois representantes de cada beliger-
ante iriam à corte de Madri e à de Paris saber de Suas Majestades
Católica e Cristianíssima suas vontades sobre quem deveria ficar no
Maranhão.
Depois disso o capitão-mor da conquista mandou Manuel de
Sousa de Sá, num caravelão, a Pernambuco levar a notícia do sucedido
ao governador-geral. A nau Regente, que já se batera com a guarnição do
Rosário, em Jererecuacara, partiu a 16 de dezembro, levando os
emissários Du Prat e Gregório Fragoso para França. A 4 de janeiro de
1615 saiu para Portugal Diogo de Campos com Mathieu Maillart, numa
caravela comprada a este por 500 cruzados; a 3 de março apresentava-se
ao vice-rei D. Aleixo de Meneses. O sargento-mor aproveitou a travessia
para escrever a Jornada de Maranhão.
Na corte foi acolhido com frieza o resultado da expedição, e a má
vontade aumentou quando inesperadamente chegou Manuel de Sousa
de Sá, enviado a Pernambuco mas levado pelos ventos e correntes às
Índias Ocidentais, donde lhe deram condução para a Europa. Conhecida
a versão de Manuel de Sousa, diferente em pontos essenciais da de Diogo
de Campos, aprestou-se para o Maranhão um patacho com munições,
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pólvora e mais coisas necessárias, que em começos de junho passou
pelo Ceará. Nele parece ter voltado Martim Soares, com o posto de sar-
gento-mor, na ausência do tio. Falou-se em castigar este, mas prevaleceu
o alvitre de mandá-lo com Sousa de Sá a Gaspar de Sousa, a quem com
maior empenho se ordenou a ultimação da empresa.
Não se descuidara o governador. Em junho mandara Francisco
Caldeira de Castelo Branco, antigo capitão-mor do Rio Grande, coman-
dando uma armada composta de um patacho, duas caravelas e um
caravelão grande, que chegou a Santa Maria de Guaxenduba em 1º de
julho, fazendo a viagem por fora do Preá. La Ravardière foi, apesar da
trégua, intimado a abandonar a terra, e, depois de relutar, cedeu em
promessa; mas, porque rebentassem discórdias entre os dois chefes por-
tugueses, foi-se deixando ficar, Jerônimo de Albuquerque transferiu-se
para a ilha, onde fundou uma cerca e um forte, chamado de São José.
Provavelmente vem daí o nome atual desta baía.
Manuel de Sousa encontrou o governador-geral em Pernambuco, e
deu-lhe cartas e ordens. Sem demora, Gaspar de Sousa aprestou nove
navios, cinco dos quais grandes, com mais de novecentos homens,
muito armamento e dinheiro, plantas e gado para povoarem a terra.
Conferiu o comando a Alexandre de Moura, que, partindo a 5 de
outubro do Recife, a 17 chegava ao Preá, onde breve se convenceu de
não serem para aquele canal as suas embarcações. Cumpria navegar por
fora, fazer sondagens, arrostar a baía de São Marcos, as terríveis fortifi-
cações, inexpugnáveis no sentir de Abbeville. E não havia tempo a per-
der, pois a fortaleza de São José se incendiara, e Jerônimo de Albuquer-
que, capitão-mor antes de nome que de fato, porque os portugueses
achavam-se divididos em dois partidos dominados por ódios violentos,
estava reduzido a pouca pólvora e às armas salvas do incêndio.
A 1º de novembro decidiu-se a investir a entrada de São Marcos;
um patacho menor foi adiante, mostrando o caminho, e a armada surgiu
fora do alcance da artilharia inimiga. Jerônimo de Albuquerque marchou
por terra com forças; um posto foi guarnecido com oito peças de artilharia,
cento e cinqüenta soldados, duzentos frecheiros; cem homens com seis
peças guardariam a entrada da barra. A 3 foi intimado La Ravadière e en-
tregar a colônia e a fortaleza, com toda a artilharia e munições existen-
tes dentro e fora dela, com todos os navios grandes e pequenos,
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sem por tudo receber indenização alguma. Obrigava-se Alexandre de
Moura a dar condução para a França; os franceses se obrigariam a partir
apenas recebessem os navios e deixassem reféns. E este favor se lhe faz,
concluía, pelas alianças que hoje há entre os senhores reis Católico e
Cristianíssimo.
A fortaleza foi entregue; em duas naus sem artilharia, mandadas
separadamente, partiram os franceses para a pátria; La Ravardière teve
de acompanhar o vencedor a Pernambuco. Anos mais tarde andava em
Lisboa, requerendo mercês e alegando serviços, por haver largado o Ma-
ranhão com a sua fortaleza e artilharia. Assim, o mesmo ano de 1615 as-
sistiu à derrocada final dos franceses depois de quase um século de re-
sistência: em Cabo Frio, por mão de Constantino Menelau, no Maran-
hão, pelo antigo capitão-mor de Pernambuco.
Trazia Alexandre de Moura instruções para expulsar os franceses
do Pará e ir até o Amazonas. Como no Pará não existisse esta-
belecimento francês e o Amazonas estivesse desocupado, mandou em
seu lugar Francisco Caldeira de Castelo Branco com cento e cinqüenta
homens, dez peças de artilharia e três embarcações. Além de colher
outras vantagens, afastava do Maranhão um elemento perturbador. Em
companhia de Castelo Branco, seguiu um piloto francês, e o famoso
Charles Desvaux "de quem ele, dito capitão-mor, deve fazer muita
conta, com a cautela devida". Antônio Vicente Cochado foi como piloto.
Partiram no dia de Natal, correndo a costa fazendo sondagem, dando
fundo todas as noites, tomando as conhecenças da terra, numa extensão de
cento e cinqüenta léguas. Entraram na barra pela ponta de Saparará e segui-
ram por entre ilhas, bem acolhidos pelo gentio disposto em seu favor, graças
à derrota dos franceses; muitos dos naturais usavam cabelo comprido e de
longe pareciam mulheres; encontraram notícias imprecisas de flamengos e in-
gleses que freqüentavam aquelas regiões.
A 35 léguas do mar, na margem direita do Pará, Francisco Caldeira de
Castelo Branco fundou a fortaleza, e chamou-a Presepe.
Estava dado o primeiro passo para a ocupação do Amazonas.
Agora um rápido lancear do país, aí pelos anos de 1618, quando
escrevia o autor do Diálogo das Grandezas do Brasil, e Fr. Vicente do Salva-
dor preparava-se para redigir sua história.
Capítulos de História Colonial 77
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Os estabelecimentos fundados por portugueses começavam no
Pará quase sob o Equador e terminavam em Cananéia além do trópico.
Entre uma e outra capitania havia longos espaços desertos, de dezenas
de léguas de extensão. A população de língua européia cabia folgada-
mente em cinco algarismos.
A camada íntima da população era formada por escravos, filhos da
terra, africanos ou seus descendentes. Aqueles aparecem menos nu-
merosos pela pouca densidade originária da população indígena, pelos
grandes êxodos que os afastaram da costa, pelas constantes epidemias
que os dizimaram, pelos embaraços, nem sempre inúteis, opostos ao seu
escravizamento.
Acima deste rebanho sem terra e sem liberdade, seguiram-se os
portugueses de nascimento ou de origem, sem terra, porém livres: fei-
tores, mestres-de-açúcar, oficiais mecânicos, vivendo dos seus salários
ou do feitio de obras encomendadas; em geral o mecânico sabia vários
ofícios, pois um só não garantia a subsistência, e ia trabalhar pelas fazen-
das quando a simplicidade das ferramentas o permitia ou os pro-
prietários possuíam a ferramenta em casa.
Entre os proprietários rurais ocupavam lugar modesto os lavra-
dores de mantimento e os criadores de gado: a criação avultava somente
a uma e outra margem do baixo São Francisco: seu grande desen-
volvimento se operou mais tarde, quando se separou da lavoura e in-
vadiu os campos e as caatingas do interior.
Coroava esta hierarquia o senhor-de-engenho. Havia engenhos
movidos por água e por bois; servidos por carros ou por barcos; si-
tuados à beira-mar ou mais apartados, não muito, porque as dificuldades
de comunicações apenas permitiam arcos de limitados raios. O engenho
real devia possuir grandes canaviais, lenha abundante, boiada capaz ou
barcos e barqueiros suficientes, escravatura, aparelhos diversos, moen-
das, cobres, fôrmas, casas de purgar, pessoal adestrado para o preparo
do açúcar, pois a matéria-prima passava por diversos processos antes de
ser entregue ao consumo: alguns possuíam igreja, capelão melhor remu-
nerado que os vigários, e às vezes incumbido de ensinar rudimentos de
leitura à meninada. O senhor-de-engenho opulento remetia a safra dire-
tamente para o Reino, e recebia o pagamento do além-mar em fazendas
finas, vinhos, farinha de trigo, em suma, coisas de gozo ou de luxo.
78 J. Capistrano de Abreu
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A casa da gente rica representava uma economia autônoma: o nec
est quod putes illum quidquam emere, omnia domi nascuntur, de Petrônio, não
podia ser praticado ao pé da letra, mas correspondia até certo ponto à
realidade. Para os escravos, fiava-se e tecia-se a roupa; a roupa da família
era feita no meio dela; da alimentação, fornecida por peixe de água doce
ou salgada, mariscos apanhados nos mangues ou caça, estavam encarre-
gados os escravos; a criação miúda de voláteis, ovelhas, cabritos e por-
cos evitava as surpresas de hóspedes da última hora; não havia açougues
ou mercados: "As casas dos ricos (ainda que seja à custa alheia, pois
muitos devem o que têm) andam providas de todo o necessário, pois
têm escravos pescadores e caçadores, que lhes trazem a carne e o peixe,
pipas de vinho e azeite que compram por junto, nas vilas muitas vezes
se não acha isto de venda."
A mercatura representava-se por embarcadiços vindos do Reino
com carregamentos que tratavam de liquidar, de modo a voltar no mesmo
navio, ou de mascates que iam pelos lugares mais afastados, a vender miud-
ezas. Nas transações dominava a permuta ou empréstimo de gêneros; tran-
sações a dinheiro não se conheciam ou eram raríssimas, e como ninguém
sabia aproximadamente de suas posses, o endividamento era geral.
Na economia naturista, já foi observado, por um economista re-
cente, nunca se produzem demais os gêneros consumidos em casa; se há
superabundância de algum, guarda-se, dá-se ou deixa-se estragar; daí, a
hospitalidade, as festas pantagruélicas e também o jogo. Talvez nas
paradas achasse seu melhor emprego o pouco dinheiro girante; o resto
ia em festas eclesiásticas ou profanas.
"A ausência de capitais restringia muito as satisfações da vida
coletiva: não havia fontes, nem pontes, nem estradas; se por alguma
circunstância favorável construía-se alguma, à falta de conservação
estragava-se ou ficava de todo arruinada. Como não havia dinheiro,
os impostos eram levados à praça, e o contratador pagava-se em
gêneros. Só as casas de misericórdia eram até certo ponto devidas à
ação incorporada. As sedes das capitanias, mesmo as mais prósperas,
reduziam-se a meros lugarejos; a gente abastada possuía prédios nas
vilas, mas só os ocupava no tempo das festas; a população permanente
constava de funcionários, mecânicos, regulares ou gente de vida pouco
edificante.
Capítulos de História Colonial 79
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"Ajunte-se a isto a natural desafeição pela terra, fácil de compreen-
der se nos transportarmos às condições dos primeiros colonos, abafados
pela mata virgem, picados por insetos, envenenados por ofídios, expos-
tos às feras, ameaçados pelos índios, indefesos contra os piratas, que
começaram a surgir apenas souberam de alguma coisa digna de roubar.
Mesmo se sobejassem meios, não havia pendor a meter mãos a obras
destinadas aos vindouros; tratava-se de ganhar fortuna o mais depressa
possível para ir desfrutá-la no além-mar. Informa-nos Gandavo que os
velhos acostumados ao país não queriam sair mais. Seriam estes seus
primeiros entusiastas.
"Desafeição igual à sentida pela terra nutriam entre si os diversos
componentes da população.
"Examinando superficialmente o povo, discriminaram-se logo três
raças irredutíveis, oriunda cada qual de continente diverso, cuja aproxi-
mação nada favorecia. Tão pouco próprios a despertar simpatia e
benevolência, antolhavam-se os mestiços, mesclados em proporção in-
stável quanto à receita da pele e dosagem do sangue, medidas naqueles
tempos, quando o fenômeno estranho e novo, em toda a energia do
estado nascente, tendia a observação ao requinte e superexcitava os sen-
tidos, medidas e pesadas com uma precisão de que não podemos mais
formar idéia remota, nós afeitos ao fato consumado desde o berço, in-
diferentes às peles de qualquer aviação e às dinamizações do sangue em
qualquer ordinal."
A desafeição entre as três raças e respectivos mestiços lavrava den-
tro de cada raça. O negro ladino e crioulo olhava com desprezo o par-
ceiro boçal, alheio à língua dos senhores. O índio catequizado, re-
duzido e vestido, e o índio selvagem ainda e livre e nu, mesmo
quando pertencentes à mesma tribo, deviam sentir-se profunda-
mente separados. O português vindo da terra, o reinol, julgava-se
muito superior ao português nascido nestas paragens alongadas e
bárbaras; o português nascido no Brasil, o mazombo, sentia e recon-
hecia sua inferioridade.
Em suma, dominavam forças dissolventes, centrífugas, no organ-
ismo social; apenas se percebiam as diferenças; não havia consciência de
unidade, mas de multiplicidade. Só muito devagar foi cedendo esta dis-
persão geral, pelos meados do século XVII. Reinóis e mazombos, ne-
80 J. Capistrano de Abreu
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gros boçais e negros ladinos, mamelucos, mulatos, caboclos, caribocas,
todas as denominações, enfim, sentiram-se mais próximos uns de ou-
tros, apesar de todas as diferenças flagrantes e irredutíveis, do que do in-
vasor holandês: daí uma guerra começada em 1624 e levada ao fim, sem
desfalecimentos, durante trinta anos. Em São Vicente, no Rio, na Bahia,
e em outros lugares, por meios diferentes, chegou-se ao mesmo resultado.
Sobre o modo de administração de toda esta gente informa-nos a
folha-geral do estado, organizada em 1617.
Subiam todas as despesas públicas a cinqüenta e quatro contos,
cento e trinta e oito mil, duzentos e noventa e oito réis, repartidos pelas
quatro rubricas de Igreja, Justiça, Milícia e Fazenda.
Constituía todo o país uma só diocese; o bispo assistia na Bahia
com o cabido; dois administradores, um para as capitanias do Norte e
estabelecido na Paraíba, outro para as capitanias do Sul e residindo no
Espírito Santo, seguiam-se em jerarquia; cada capitania formava uma
freguesia, com seu vigário e coadjutor, exceto a de S. Vicente, que con-
tava as vigararias de Itanhaém, São Vicente, Santos e São Paulo; a de
Espírito Santo, com as de Vitória e E. Santo; a da Bahia com as de
Vila Velha, Santo Amaro, S. Iago, Peruaçu, Paripe, Matoim, N. S. do
Socorro, Sergipe do Conde, Taparica, Paçé, Pirajá, Cotegipe, Tamari e
Sergipe del Rei; a de Pernambuco com as de Olinda, São Pedro, Recife,
S. Lourenço, Igaraçu, S. Antônio, Várzea, Muribeca, S. Amaro, Pojuca,
Serinhaém e Porto Calvo; a de Itamaracá, com a da Ilha e a da Goiana.
A todo este pessoal o governo pagava ordenado e ordinária para a cele-
bração do culto; para isso o rei arrecadava o dízimo, como grão-mestre
da Ordem de Cristo.
Havia colégio de jesuítas, conventos capuchos, carmelitas ou
beneditinos na Bahia, Rio, Espírito Santo, Pernambuco, e todos rece-
biam auxílios sob diversas formas, em gêneros ou dinheiro. Quase todas
as capitanias sustentavam casas de misericórdia, que o governo socorria.
À frente da Justiça estava a Relação instalada na Bahia com um nu-
meroso pessoal e desembargadores, ouvidor-geral, etc.; nas capitanias
reais parece que a jurisdição de primeira instância cabia aos juízes or-
dinários, renovados anualmente; as dos donatários possuíam ouvidores
que muitas vezes eram os próprios capitães-mores: pouco informa a este
respeito a folha-geral.
Capítulos de História Colonial 81
sumário
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Encabeçava o corpo da fazenda o provedor-mor, estabelecido na
capital, a quem estavam subordinados em cada capitania o provedor e
escrivão da fazenda, o almoxarife e o porteiro das alfândegas.
Ao lado das capitanias de donatários, São Vicente, S. Amaro,
Espírito Santo, Porto Seguro, Ilhéus, Pernambuco e Itamaracá, havia as
capitanias reais do Rio, Bahia, Sergipe, Paraíba, Rio Grande, Ceará, Ma-
ranhão, Pará.
Chefe da milícia e em geral da administração era o governador-
geral com assento na Bahia. A milícia era representada pela tropa paga, e
pelas ordenanças, espécie de guarda nacional.
E agora vistas as vantagens do domínio espanhol na eliminação
completa dos franceses e na rapidez da marcha para o Amazonas, ve-
jamos o reverso da medalha, nas guerras flamengas dele originadas.
82 J. Capistrano de Abreu
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VIII
Guerras flamengas
As relações entre Portugal e Flandres, iniciadas desde
a Idade Média, continuaram ainda depois de descoberto o caminho
marítimo das Índias e achado e colonizado o Brasil. Iam os flamengos a
Lisboa adquirir as drogas e gêneros exóticos, apenas desembarcados, e
retalhavam-nos pela vasta clientela do Norte e Ocidente da Europa,
poupando canseiras e garantindo lucros imediatos aos portugueses;
estes, além do dinheiro de contado, proviam-se, graças aos seus fiéis
fregueses, de cereais, peixe salgado, objetos de metal, aparelhos náuticos,
fazendas finas.
Modificou-se esta situação vantajosa para ambas as partes quando
a monarquia espanhola abarcou a península inteira e os inimigos de Cas-
tela passaram a ser os de Portugal. Em 85, Filipe II mandou confiscar os
navios flamengos ancorados em seus portos, aprisionando-lhes as tripu-
lações. O mesmo se fez em 90, 95, 99.
Dificilmente se conceberia mais terrível golpe contra um povo que
do comércio marítimo auferia o melhor de suas riquezas, base de uma
independência comprada a poder de sangue. Depois de tanto heroísmo
teria de sujeitar-se ao domínio do Meio-Dia? Para escapar a estes apuros
brotaram os mais desencontrados alvitres: procurar pelo norte da Ásia
outro caminho marítimo para a China e Índia; transferir a atividade
sumário
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comercial para o Mediterrâneo; apossar-se do estreito de Magalhães.
Tudo isto se tentou, de tudo se tirou resultado negativo. Por que não se
afrontaria o cabo da Boa Esperança, a buscar os gêneros do Oriente nos
próprios lugares de sua procedência?
Em 95, mercadores de Amsterdã arriscaram a primeira viagem ao
oceano Índico, viagem demorada, de pouco proveito imediato, mas
fecundíssima em conseqüências, pois logrou a certeza da fragilidade do
domínio peninsular naquelas regiões alongadas. Da mesma cidade parti-
ram outros navios em maio de 98, terceira expedição em abril, quarta em
dezembro de 99. Em várias províncias surgem negociantes arrojados,
improvisam-se companhias opulentas, ávidas de despojos e aventuras
no amplo teatro que agora se abria. A emulação salutar ameaçava degen-
erar em rivalidade perniciosa. Homens sagazes anteviram o perigo; inter-
vieram os Estados Gerais, e por meio de concessões e privilégios con-
ciliaram as pretensões divergentes, fundando a Companhia das Índias
Orientais no começo de 1602.
A trégua de doze anos, assentada em 1609 entre os Países-Baixos e
a Espanha, em nada interrompeu a carreira aventurosa da Companhia,
que com poucos anos de existência se impôs aos príncipes indígenas, re-
peliu os ingleses, derrocou a aparatosa fábrica luso-hispânica, monopo-
lizou o trato das especiarias, distribuiu dividendos enormes, prestou
serviços inestimáveis ao governo das Províncias Unidas.
Na constância do armistício sazonou a idéia de uma companhia das
Índias ocidentais, análoga à outra nos intuitos e na organização, que ob-
teve foral a 3 de junho de 1621. Seu capital seria de sete milhões, cento e
tantos mil florins; o privilégio duraria vinte e quatro anos; constaria de
cinco câmaras, representando os acionistas de Amsterdã, Zelândia, ci-
dades do Maas, o distrito do Norte e a Frísia; os diretores, em número
de dezenove, funcionariam alternadamente em Amsterdã e Middelburg.
A esfera privilegiada seria, na África, do trópico de Câncer ao cabo da
Boa Esperança; ao Ocidente, desde Terra-Nova, no Atlântico, até o es-
treito de Aniã no Pacífico.
Os Estados Gerais concederam-lhe faculdade de construir fortes
na região outorgada, contrair tratados com os príncipes e novos
indígenas, nomear autoridades e funcionários; obrigaram-se a subven-
cioná-la, para ficar com direito a certa parte dos dividendos; forneceriam
84 J. Capistrano de Abreu
sumário
próxima
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soldados e naus de guerra em condições especificadas. Em suma, deix-
ando de parte diferenças patentes, a Companhia das Índias Ocidentais
filiou-se aos sistema dos donatários iniciado por D. João III.
A companhia deixou sinais de sua passagem no território africano,
nas costas dos Estados Unidos, nas Antilhas, no Brasil, no Chile. A nós
só importam os feitos ocorridos em nossa terra.
Sua criação foi acolhida com frieza na Holanda; ainda em 622 não
estava subscrito um quinto sequer do capital que só ficou integralizado
depois de obtidas vantagens suplementares, entre outras, o monopólio
de exportação do sal brasileiro, em 1624.
Desde 623 começou a preparar uma expedição contra a Bahia.
Vinte e três navios e três iates com quinhentas bocas de fogo, tripulados
por mil e seiscentos marinheiros, foram aos poucos se reunindo em S.
Vicente do Cabo Verde nos fins deste e no começo do seguinte ano. A
26 de março partiram rumo de SW, a 4 de maio descobriram costa do
Brasil, a 8 surgiram diante da baía de Todos os Santos e foram vistos de
terra.
Governava a cidade do Salvador e o Brasil em geral Diogo de Men-
donça Furtado. Tinham-lhe chegado notícias do perigo iminente e pro-
curara prevenir-se.
Sobejavam-lhe coragem e boa vontade, faltava-lhe tudo o mais: as
fortalezas já arruinadas umas, outras por acabar, a barra larga e franca,
acessível sem prático às maiores embarcações a qualquer hora do dia e
da noite, a guarnição reduzida e imbele, a população trépida, prestes a
fugir mal avistava qualquer vela suspeita, não encerravam elementos de
resistência eficaz. Acresciam dissensões entre o governador e o bispo, e,
como de costume, entre uma e outra metade do povo sempre ávido de
questões entre os potentados.
A 9 de maio a armada enfiou a barra e dirigiu o ataque por terra e
por mar. Na ponta de S. Antônio, à entrada, desembarcaram mil e
duzentos soldados e duzentos marinheiros: e à sua aproximação a força
dos colonos postada retirou-se às carreiras, semeando o pânico. Dos
fortes houve alguns disparos, alguns navios pareceram dispostos a resis-
tir; quando o inimigo se aproximou, recorreu-se ao incêndio para evitar
fossem cair-lhe às mãos os ricos carregamentos de açúcar, pau-brasil,
fumo e peles. Mesmo assim, muitos foram salvos.
Capítulos de História Colonial 85
sumário
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À noite, bispo, eclesiásticos, os moradores que puderam abandon-
aram a cidade. Ao amanhecer, além de escravos e gente baixa sem nada
a perder, encontravam-se apenas o governador e alguns fiéis na cidade
deserta. Com facilidade os invasores prenderam-nos e mais tarde man-
daram-nos para a Holanda. Os fugitivos acomodaram-se como puderam
em engenhos próximos, aldeias de índios, debaixo de árvores, ao céu ab-
erto. Quantas privações passaram e como foi difícil sustentar e conter
esta multidão, pode-se bem imaginar. Ainda depois de reunidos em ar-
raial e estabelecida certa ordem, a empresa nada tinha de fácil.
As vias de sucessão, então abertas, nomeavam para substituto do
governador a Matias de Albuquerque Coelho. Estava em Pernambuco,
capitania hereditária de seu irmão, em cujo nome governava, a mais de
cem léguas de distância. Antes que recebesse a notícia e tomasse
qualquer providência, perder-se-ia tempo, um tempo precioso. Elegeu-
se, pois, capitão-mor interino o desembargador Antão de Mesquita; den-
tro em pouco, por motivos pouco conhecidos ainda, ficou sendo gover-
nador de fato o bispo, Dom Marcos Teixeira.
Uma só coisa havia a fazer com os recursos da terra: cercar o
invasor dentro da cidade, impedindo que penetrasse pelas cercanias para
renovar provisões, impossibilitando as adesões das classes baixas, indif-
erentes à mudança do senhor, pois o cativeiro prosseguia invariável. A
falta de armamentos apropriados, a escassez e por fim a carência com-
pleta de pólvora limitaram as operações à arma branca, à flecha, ao com-
bate singular, à tocaia; as companhias de emboscada, em número de
trinta, composta cada uma de poucas dezenas de combatentes, pelo
subitâneo da aparição nos lugares mais diversos, mantiveram o in-
imigo sobressaltado; a multiplicidade dos assaltos, quase sempre coroados
de êxito, alimentava a coragem e fortaleceu o espírito patriótico.
Entretanto chegava a Pernambuco a notícia de ser tomada a cidade. Ma-
tias de Albuquerque, informa um contemporâneo, nem de dia, nem de noite,
se poupava ao trabalho. Não quis nunca andar em rede, como no Brasil se
costuma, senão a cavalo ou em barcos, e quando nestes entrava não se assen-
tava, mas em pé ia ele próprio governando. Tinha grande memória e con-
hecimento dos homens, ainda que uma só vez os visse, e ainda dos navios que
uma vez vinham àquele porto. Esta atividade fervorosa, unida a uma energia
indomável, ver-se-á melhor no decurso da narrativa.
86 J. Capistrano de Abreu
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Por sua ordem partiu logo Francisco Nunes Marinho em dois carav-
elões, com pólvora, munições de fogo e de boca e trinta soldados. Trataram-
no mal as tormentas; de vergas e mastros quebrados, arribou a Sergipe; mas
já em começos de setembro juntava-se à gente do arraial. Sob o seu governo
as guerrilhas avançaram para o interior da Bahia até Itapagipe, para o lado da
barra até a ponta de Santo Antônio; novas e mais fortes trincheiras foram le-
vantadas. Dois barcos, um no Itapuã, e outro no morro de S. Paulo,
vigiavam o mar, avisando os navios portugueses que evitassem o porto,
para não serem aprisionados como já o haviam sido outros.
Pequenos socorros do Reino iam chegando a Pernambuco e Ma-
tias de Albuquerque reforçava-os, e encaminhava-os sem perda de
tempo. Graças a ele, D. Francisco de Moura, vindo com o título de
capitão-mor do recôncavo, conduzindo três caravelas, partiu de Recife
depois de demora de oito dias, levando seis caravelões, oitenta mil
cruzados de provimentos novos. A 3 de dezembro troava a artilharia
no acampamento, e os holandeses, curiosos da novidade só então
souberam como ao bispo, poucos dias antes de falecer, sucedera Fran-
cisco Nunes Marinho, rendido agora no mando por D. Francisco de
Moura, antigo governador do Cabo Verde.
Na cidade conquistada as coisas corriam mal para o inimigo. Johannes
van Dorth, governador pela Companhia, foi morto numa emboscada. Al-
bert Schout, seu sucessor, tratou das fortificações, mas em festas e ban-
quetes apanhou uma enfermidade, que em poucos dias o levou. Willem
Schout, seu irmão, mostrou-se alheio às responsabilidades do cargo.
Contudo a situação poderia manter-se indefinidamente, máxime
dominando o oceano a armada da Companhia; tratava-se de saber quem
receberia primeiros socorros de além-mar. Por uma felicidade nunca
mais repetida foram os nossos. A corte espanhola, geralmente desatenta
e inerte, desta vez sentiu a gravidade do golpe; o rei, ou antes Olivares,
seu ministro onipotente, percebeu a ameaça implícita contra o México e
o Peru; cartas-régias do próprio punho, procissões, novenas, excitaram o
espírito público; a nobreza da Espanha e a de Portugal alistaram-se com
entusiasmo na cruzada contra o herege rebelde; fidalgos e prelados fize-
ram largos donativos, fretaram navios, custearam companhias; as arma-
das de Portugal, do Oceano, do Estreito, de Biscaia, das Quatro-Vilas,
de Nápoles, somaram cinqüenta e dois navios de guerra; mais de doze
Capítulos de História Colonial 87
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mil homens d’armas embarcaram para o Novo Mundo. Comandante-
geral de todas as forças era D. Fradique de Toledo.
A armada chegou à Bahia sábado de aleluia, 29 de março de 1625,
no mesmo dia que aí aportara Tomé de Sousa, o fundador da cidade,
setenta e seis anos antes. Formou em meia-lua, da ponta de Santo An-
tônio à de Itapagipe, fechando a saída aos navios holandeses ancorados.
A tropa desembarcou em Santo Antônio e tomou logo posição em
São Bento, Palmeiras, Carmo e outros morros. A 2 de abril travou-se o
primeiro combate, seguido de outros. O cerco apertou-se por terra e por
mar. Os sitiados foram obrigados a render-se. A 30 de abril assinava-se a
capitulação. A 1º de maio abriram-se as portas e entrou o exército
vencedor. A 26 apareceu na barra o socorro holandês, trinta e quatro
naus, comandadas por Boudewyn Hendrikszoon. Ambas as armadas
evitaram porém travar novos combates e os holandeses foram piratear
em outras regiões mais indefesas.
Nos anos seguintes a Companhia mandou diversos navios que es-
tiveram no Brasil e em outras partes da África e da América, devastando e
saqueando. Seu triunfo mais completo foi a tomada da frota espanhola,
junto à costa de Cuba, por Pieter Heyn, em setembro de 1628. De uma só
vez entraram-lhe para os cofres mais de quatorze milhões, o duplo do capital
inicial; os dividendos subiram a 50%. Com as finanças restauradas, preparou
nova expedição ao Brasil; agora preferiu Pernambuco para ponto de inves-
tida.
A 26 de dezembro de 629 zarpou de S. Vicente uma armada de
cinqüenta e dois navios e iates, e treze chalupas, poderosamente artil-
hados, com três mil setecentos e oitenta marinheiros, três mil e quinhen-
tos soldados; a 3 de fevereiro de 630 avistou o Brasil; a 13 chegou em
frente a Olinda; no dia seguinte abriu o ataque.
Comandava a capitania Matias de Albuquerque, neto do velho
Duarte Coelho, irmão do quarto donatário. Com as notícias da próxima in-
vasão, partira de Lisboa a 12 de agosto de 629, trazendo vinte e sete
soldados e alguma munição em uma caravela. Chegou ao Recife a 18 e ou-
tubro, e entregou-se com todo o devotamento à obra desesperada.
As fortalezas estavam arruinadas como na Bahia. Se a barra do
Recife não oferecia as comodidades da baía de Todos os Santos e não
custaria cegá-la, em compensação dava fácil desembarque desde Pau-
88 J. Capistrano de Abreu
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Amarelo ao norte, até Candelária ao sul, na extensão de sete léguas.
Poder-se-ia ao menos contar com o sangue-frio da população?
O inimigo dividiu a ofensiva por três pontos. O grosso da armada,
comandada pelo almirante Loncq, investiu a barra, e estacou por achá-la
obstruída. Outro troço dirigiu-se diretamente para Olinda. Com três mil
homens o coronel Diedrich van Weerdenburgh aproou primeiro para o
rio Tapado, depois para o Pau-Amarelo, mais ao norte, onde desembar-
cou na tarde de 15 de fevereiro. Na manhã seguinte, formado em três
colunas, marchou para o sul, as pequenas resistências esporádicas da
nossa gente cederam à tropa numerosa e às embarcações de que saltara,
que navegavam a pequena distância, apoiando-lhe os movimentos.
À entrada da vila alguns militares sacrificaram-se nobremente. O troço
da armada mandado de véspera contra ela apossou-se das trincheiras da
praia. Quando anoiteceu, o pavilhão batavo flutuava sobre a antiga Marim.
A população abandonou a vila e procurou abrigo nos matos e nos
engenhos. A soldadesca invasora entregou-se ao saque e à embriaguez.
Matias de Albuquerque mandou tocar fogo nos navios e nos armazéns
para ao menos arrancar das garras da Companhia o fruto o trabalho
amargamente suado. A povoação de Recife, iluminada pelos clarões de
incêndio, converteu-se num montão de ruínas. Defendiam-na ainda dois
fortes: um no istmo que vai para Olinda, outro no próprio Recife. Re-
forçou-se o general com gente e munições, e mais de um ataque foi re-
pelido com vantagem; mas a 2 de março o de S. Jorge, velho, capaz só
de resistir a ataques de índios, capitulou, e o de São Francisco da Barra
seguiu-lhe o exemplo. Só então a armada holandesa entrou no porto.
Durante este tempo Matias de Albuquerque trazia sempre inquieto
o inimigo. Entregue aos próprios recursos não lograria desalojá-lo, mas
tirava-lhe sossego, diminuía-lhe a confiança, reduzia-lhe o número, im-
pedia-lhe as comunicações com a gente da terra e nesta substituía o
soçobro do primeiro momento pelo desejo de lutar e desprezo de mor-
rer: a dominação holandesa era um fato; não era, nunca seria um fato
consumado.
A 4 de março o general escolheu uma eminência quase a uma légua
do Recife e de Olinda, próximo do rio Capibaribe e ainda mais do
riacho Parnamirim, ponto de boa água e lenha. Com vinte pessoas começou
a fortificação, plantando quatro peças. Deu à obra o nome de arraial
Capítulos de História Colonial 89
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do Bom Jesus. Pouco a pouco foram chegando aderentes: aventureiros,
senhores-de-engenho sós ou seguidos de escravos, índios aldeados. En-
tre eles entra logo a aparecer com um brilho que irá sempre crescendo
Antônio Camarão, chefe petiguar de vinte e oito anos de idade, o mais
fiel e precioso dos auxiliares. Dez dias mais tarde o arraial já repelia com
grandes perdas um assalto do inimigo. Será esta a sua história perene du-
rante os cinco anos seguintes.
Como contar os sucessos desta guerra sem precedentes? Os confli-
tos feriam-se diários, houve dias de mais de um. Holandeses que pro-
curavam faxina ou frutos, destacamentos que pelo istmo saíam de um
para outro ponto, caíam em emboscadas que surdiam a cada passo.
Trincheiras tomadas a peito descoberto, socorros mandados por terra
aos pontos mais afastados, em concorrência com os navios e não raro
vencendo-os na rapidez; passagens de rios no momento da maré, para
atacar o cento das fortificações inimigas; fome, nudez, falta de pólvora,
de médicos e botica, tudo isso de tão comum, passava despercebido.
Estando, havia quase dois anos, assente na vila de Olinda e povoação do
Recife, ainda o invasor não podia, nem o deixava nosso general por si e
seus capitães, colher uma só vaca, informa Duarte de Albuquerque. E
acrescenta: "Solamente comian de lo que les embiava Olanda, con que bien lici-
tamente se puede decir que sobre estar de tanto tiempo em tierra, aun navegavan, pues
no tenian otros bastimentos mas de los salados".
As notícias transmitidas à península não provocaram o alvoroço da
tomada da Bahia. Vieram socorros em pequena quantidade, a grandes
intervalos e nem sempre aproveitáveis, porque a Companhia dominava
no mar, e ora se apossava das caravelas mandadas para Pernambuco, ora as
obrigava a vararem em terra, perdendo os carregamentos os deixando-os a
grande distância dos lugares onde faziam falta. Encapava-se esta desídia na
corte sob um profundo maquiavelismo: a melhor guerra contra a Companhia
das Índias Ocidentais, alegavam esses calculistas insondáveis, consistia em
obrigá-la a despesas que com o tempo arrastariam seu descalabro econômico!
Só em 631 partiu de Lisboa o famoso D. Antônio de Oquendo
com uma armada de vinte navios, a 5 de maio. Trazia socorros para
Paraíba, Pernambuco e Bahia, e na volta deveria comboiar as embar-
cações carregadas de açúcar para o Reino. Procurou primeiramente a Bahia,
como se quisesse dar tempo de prepararem-se aos holandeses. Estes,
90 J. Capistrano de Abreu
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apenas souberam da sua vinda, despediram com o mesmo destino uma
armada mandada por Adrian Pater.
Deu-se o encontro nas alturas dos Ilhéus, quando Oquendo de-
mandava já Pernambuco, a 12 de setembro, atos de heroísmo houve de
parte a parte, o almirante batavo sepultou-se nas ondas com a capitânia;
o resultado ficou indeciso, isto é, a Companhia das Índias continuou
dominando no mar. Com Oquendo vieram e continuaram no Brasil
Duarte de Albuquerque, donatário de Pernambuco, admirável histo-
riador desta guerra, desde o desembarque do Pau-Amarelo até o assalto
da Bahia por Nassau (1630-1638), e João Vicente de San Filipe, conde
de Bagnoli, que já aqui estivera com D. Fradique de Toledo. Depois do
combate aos Ilhéus, o inimigo incendiou Olinda, desesperado de forti-
ficá-la eficazmente, e concentrou-se no Recife.
Até aqui saíram frustrados todos os esforços da Companhia para
romper o círculo de ferro em que a envolvera Matias de Albuquerque,
apenas fundara na ilha de Itamaracá o forte de Orange. Começa agora a
sorrir-lhe a sorte. A 20 de abril de 32 passou para seu lado Domingos
Fernandes Calabar, mulato natural de Porto Calvo, aonde tinha mãe e
alguns parentes. Segundo se pode concluir das poucas e suspeitas
notícias encontradas a seu respeito nos escritos contemporâneos, Cala-
bar exercia a profissão de contrabandista, nem de outro modo se podem
explicar os roubos feitos à Fazenda Real de que o acusam os nossos,
pois não deviam ter andado dinheiros públicos por suas mãos; para pro-
fessar o contrabando assinalavam-no a audácia, a presença de espírito, a
fertilidade de invenções, o profundo conhecimento das localidades. Era
o único homem capaz de se medir com Matias de Albuquerque, e como
tinha sobre este a vantagem de dispor do mar, desfechou-lhe os golpes
mais certeiros. Qual móvel o levou a abandonar os compatriotas, nunca
se saberá; talvez a ambição, ou a esperança de fazer mais rápida carreira
entre estranhos, tornando-se pela singularidade de seus talentos indis-
pensável aos novos patrões ou, talvez, o desânimo, a convicção da
vitória certa e fácil do invasor.
Entre os feitos mais notáveis inspirados por Calabar contam-se o
ataque ao Igaraçu, várias incursões ao Rio Formoso, a ocupação de
Afogados, séria ameaça ao arraial de Bom Jesus, entradas por Alagoas, a
tomada de Itamaracá e Rio Grande. Estes últimos sucessos deixavam bem
Capítulos de História Colonial 91
sumário
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sair
iniciada a conquista da Paraíba, agora mera questão de tempo. Em fins
de fevereiro de 34, uma armada para lá se dirigiu, e durante dois dias não
cessaram combates; tratava-se, porém, de simples diversão: a verdadeira
mira era, como se verificou logo no começo de março, o cabo de Santo
Agostinho. Neste porto desembarcavam os socorros vindos da Bahia; ali
embarcavam os frutos da terra destinados ao comércio; apossar-se dele
era se não impossibilitar de todo, pelo menos paralisar qualquer resistên-
cia ulterior.
O inimigo dividiu o ataque em três armadas, uma de treze, outra de onze
navios, outra composta de lanchas com mil homens encabeçados por Calabar.
Graças a seu conhecimento da localidade, os holandeses entraram
no porto e fortificaram-se no pontal. Um ataque violento dirigido contra
eles, e começado sob os melhores auspícios, fracassou devido ao pânico.
Uma fortaleza nossa colocada no monte provou de pouca eficácia. Ma-
tias de Albuquerque conseguiu apenas transportar, para aqui as compan-
hias de emboscada, os ataques permanentes, o cerco insuperável. O ar-
raial passava agora ao segundo plano: heroísmo sobraria sempre ali; o
cabo de Santo Agostinho reclamava a efervescência do general.
Com os auxílios recebidos de fresco, o inimigo dirigiu-se depois
para a Paraíba, sob o comando de Sigismundo von Schkoppe. Gover-
nava a praça Antônio de Albuquerque, filho do conquistador do Maran-
hão, que bem mostrou não desmerecera o sangue paterno. Foi-lhe,
porém, impossível impedir o desembarque do inimigo a 4 de dezembro.
Os socorros, idos por terra, de Pernambuco, chegaram tarde. Os fortes
foram capitulando; véspera de Natal a cidade estava em poder da Com-
panhia. Antônio de Albuquerque ainda tentou fundar um arraial à se-
melhança do de Bom Jesus; não encontrou companheiros; os que não se
quiseram sujeitar ao domínio estrangeiro emigraram com ele para Per-
nambuco, e foram batalhar com Matias.
No fim de cinco anos o invasor mandava desde o Rio Grande até
o Recife; agora resistiam-lhe apenas o arraial e o forte de Nazaré, no
cabo de Santo Agostinho. Arciszewski desde Paraíba marchou por terra
a apertar o cerco do arraial; Sigismundo von Schkoppe seguiu do Recife
para Guararapes a apertar o cerco de Nazaré. Matias de Albuquerque,
deixando-o entregue a soldados de confiança, transferiu-se a Serinhaém,
para de lá organizar e mandar os socorros. Por terra, por mar, em
92 J. Capistrano de Abreu
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caravelas, em jangadas, pelos caminhos mais defesos socorreu os com-
panheiros enquanto pôde; mas a resistência tem limites. "Afinal faltou o
que tudo rende, que é o sustento, e não já de rocins, que isto seria re-
galo, mas de couro, cachorros e gatos e ratos", escreve Duarte de Albu-
querque. "E quando disto houvesse o necessário, já não havia pólvora
nem outra munição. Não é de admirar, pois, que se perdesse, não por
certo; o admirável é que em tal estado o sustentasse o governador André
Marin com seus capitais três meses e três dias." À rendição do arraial em 3
de junho seguia-se a do forte de Nazaré a 2 de julho de 635. "Al salir nuestra
gente cayeron algunos soldados muertos de que parece los sustentava vivos el no moverse."
Bagnoli tinha-se retirado antes para Alagoas, e Matias de Albuquer-
que foi reunir-se a ele com duzentos soldados de linha, menos de cem
de emboscada e alguns índios. A 3 abalou de Serinhaém este êxodo dos
que não desesperavam.
"Iam sessenta índios com seus capitães Antônio Cardoso e João de
Almeida, ambos bem valentes, descobrindo adiante os caminhos e
bosques, por serem nisto tão práticos, como quem havia nascido neles.
Seguiam-nos os capitães D. Fernando de la Riba Agüero, Afonso de Al-
buquerque, D. Pedro Taveira Souto Maior, Francisco Rabelo, Luís de
Magalhães, Leonardo de Albuquerque.
"Logo sucediam os moradores que se iam retirando, e levavam
duzentos carros. Atrás destes os capitães Martim Ferreira, João de Ma-
galhães, D. Pedro Marinho, Manuel de Sousa e Abreu, Rodrigo Fernan-
des, D. Gaspar de Valcáçar e Paulo Vernola. Era retaguarda o capitão-
mor dos índios Antônio Filipe Camarão, com oitenta dos seus, armados
de mosquetes e arcabuzes." Confiavam-se a índios os postos de maior
perigo! Precisam de outra justificativa os esforços de Nóbrega?
O caminho mais praticável passava em Porto Calvo, ocupado pelo
inimigo. Matias de Albuquerque, para facilitar a passagem, teria de atacá-
lo; sua resolução tornou-se inflexível quando soube da chegada de Cala-
bar com um reforço de duzentos soldados. Mandou adiante a gente im-
bele. O combate começou a 12 de julho e continuou nos dias seguintes.
A 19 o inimigo propôs capitular. Os sitiantes, sem os índios, eram ap-
enas cento e quarenta; o inimigo, além de Picard, chefe holandês, e nu-
merosos oficiais, contava trezentos e sessenta homens. Foram desar-
mados e logo mandados aos pequenos troços para Alagoas, a fim de não
Capítulos de História Colonial 93
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sair
conhecerem a insignificância da força atacante e romperem o pacto à
última hora. De todos Matias de Albuquerque reservou para a justiça
real o Domingos Fernandes Calabar. No dia 22 "strangulatusque, jugulo defec-
tionem expiavit, et dissectos artus infidelitatis ac miseriae suae testes ad spectaculum re-
liquit".
Desde muito anunciava-se a chegada de nova e mais forte frota
espanhola com socorros. Matias de Albuquerque deixava em diversos
pontos do litoral pessoas fiéis incumbidas de darem notícias da terra aos
navegantes e fornecerem-lhes indicações sobre o ponto mais conven-
iente para o desembarque. Devia partir em março, depois em maio, só
partiu em 7 de setembro. Reunidos em Cabo Verde os navios espanhóis
e portugueses, comandados aqueles por D. Lopes de Hoces y Córdoba,
estes por D. Rodrigo Lobo, decidiram aproar em Pernambuco.
A 26 de novembro avistaram Olinda, e logo em frente ao Recife
surtas nove naus do inimigo, carregadas de açúcar, pau-brasil, tabaco, al-
godão e gengibre, de partida para a Holanda cada uma com cinco ou
seis homens apenas a bordo. Resolveu atacá-las mas o almirante espan-
hol, a pretexto de suas naus serem de maior calado, deu contra-ordem. Nem
ao menos se deteve um pouco à espera de algum mensageiro de terra.
Sigismundo ante o aparelho bélico julgou-se perdido, mas a viração so-
prava de nordeste, as águas corriam para o sul, e era agradável entregar-se às
seduções da corrente. No cabo de Santo Agostinho um jangadeiro des-
fraldando a vela pôde comunicar o recado: deitassem a gente no rio Serinhaém,
mandassem um navio buscar Matias de Albuquerque! As duas armadas entre-
garam a solução ao vento e às águas; ao anoitecer de 28 ancoravam em Alagoas.
Vinham a bordo Pedro da Silva, nomeado sucessor de Diogo
Luís de Oliveira no governo-geral do Brasil, Luís de Rojas y Borja,
sucessor de Matias de Albuquerque. Devia este recolher-se ao Reino;
Duarte de Albuquerque continuaria no governo político da sua capi-
tania; a Diogo Luís de Oliveira cometia-se a reconquista de Curaçau,
antes de voltar para o Reino.
Matias informou largamente a Rojas y Borja do estado de coisas. Em suma, a
situação não era desesperada; urgia desandar o caminho percorrido, voltar para o norte, in-
quietar, expulsar o inimigo. Calaram estes conselhos: D. Luís pôs-se a caminho de Pernam-
buco e apossou-se de Porto Calvo, ocupado pelo inimigo apenas os nossos prosseguiram
para o sul, depois da execução de Calabar. Teria forças para continuar as
94 J. Capistrano de Abreu
sumário
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sair
tradições e estaria à altura do seu heróico antecessor? Na batalha de
Mata Redonda (18 de janeiro), um mosquetaço na perna derrubou-o do
cavalo, outro no peito levou-lhe a vida, aos cinqüenta anos de idade.
Pelas vias de sucessão assumiu o comando supremo o conde de Bagnoli,
velho militar muito difícil de se julgar com justiça. Nossos escritores
tratam-no sempre com menosprezo, cobrem-no de apodos, negam-lhe
até a virtude elementar da coragem individual. Constitui uma exceção
apenas Duarte de Albuquerque, sempre discreto e circunspecto, mas
sente-se que não expõe todo o seu pensamento. De Bagnoli, se alguma
linha já foi publicada relativa ao período holandês, anda perdida em al-
guma coleção escura: não sabemos como se defenderia dos acusadores.
Em todo caso uma honra lhe cabe: nunca desesperou.
Bagnoli assinalou seu comando pelo emprego de companhistas,
aventureiros destemidos, que iam até as barbas do inimigo,
aprisionando, degolando gente, jarreteando gado, se não podiam con-
duzi-lo, queimando os canaviais, os açúcares, o pau-brasil, os engenhos.
Alguns avançaram até as fronteiras da Paraíba. Era sempre o pen-
samento de Matias de Albuquerque: a conquista nunca seria fato consu-
mado. Algum tempo Bagnoli pensou em mover-se para o norte e fortifi-
cou ligeiramente o passo do rio Una, seis léguas ao sul de Serinhaém.
Talvez contribuísse a animá-lo nesta iniciativa tão estranha à sua maneira
habitual a presença de Duarte de Aluquerque. Com este avanço os ho-
landeses abandonaram Paripuera e Barra Grande.
Tomado o arraial de Bom Jesus, ocupada a fortaleza de Nazaré, a
Companhia das Índias Ocidentais achou a ocasião própria para nomear
um governador-geral, como lhe permitia seu regimento.
Escolheu João Maurício, conde de Nassau-Siegen, membro da
família de Orange, e confiou-lhe interinamente o cargo por cinco anos.
A 27 de janeiro de 637 aportou Nassau a Pernambuco, onde deveria
permanecer um octênio. Em sua companhia ou logo depois vieram con-
sideráveis reforços. Tratou sem demora de retomar Porto Calvo. Do Re-
cife partiram ao mesmo tempo trinta navios com dois mil infantes man-
dados por Arciszewski, que a 12 de fevereiro fundearam em Barra
Grande, e o próprio Nassau com Sigismundo, levando três mil soldados
e quinhentos índios, que incólumes passaram o rio Una, já des-
guarnecido por Bagnoli.
Capítulos de História Colonial 95
sumário
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Reunidos apresentaram-se a 17 diante do povoado; a 18 travaram
um combate de que a nossa gente não saiu com o melhor partido: a 20
subiram lanchas pelo rio das Pedras, conduzindo artilharia e material;
com o canhoneio, respondido sempre galhardamente, baquearam os
parapeitos do forte de Porto Calvo, misturando terra nos mantimentos;
a 5 de março a falta de víveres obrigou Miguel Giberton, comandante da
praça, a render-se.
Na noite de 18 de fevereiro, depois de mandar Alonso Ximénez
com parte da força pelo caminho da praia, escoltando a gente que se
queria retirar para Alagoas, Bagnoli tomou o mesmo destino pelo inte-
rior. A 25 chegava à vila de Madalena, onde não julgou prudente de-
morar. A 10 de março continuou a marcha e a 17 chegava à vila de São
Francisco, recentemente erigida pelo donatário na margem esquerda do
rio, a meia distância entre a barra e a região encachoeirada. Duarte de
Albuquerque, aconselhou-lhe fortificar-se no rio Piagui, para resistir ao
inimigo, caso avançasse por terra; tão pouca atenção prestou a este
como antes ao conselho de fortificar eficazmente o passo do Una. Em
ambos os casos o inimigo não deparou tropeços.
A 18 Bagnoli fez os terços napolitano e castelhano atravessarem o
rio para a capitania de Sergipe; a 19 passou parte do terço de Portugal, a
26 passou o resto; a 27 chegaram os holandeses à vila e acharam-na
vazia. Com a confusão, muitos dos retirantes ficaram prisioneiros, sal-
varam-se outros perdendo todos os haveres. No local abandonado por
Bagnoli resolveu Nassau construir um forte chamado Maurício: lá existe
hoje a cidade de Penedo. Sigismundo foi incumbido da construção e do
comando. Nassau voltou para Pernambuco.
A 31 de março Bagnoli chegou a São Cristóvão. Por sua ordem, di-
versos companhistas avançaram para Alagoas, ora acima, ora abaixo do
forte, fazendo suas costumadas façanhas. Trouxeram também a notícia de
uma invasão planejada no forte Maurício contra Sergipe, no intento de arre-
banhar as numerosas manadas de gado, e vingar-se dos audazes que não
deixaram os holandeses sossegados em suas novas conquistas. De fato, a 17
de novembro Sigismundo chegou a São Cristóvão, já deserta a 25 de
dezembro, queimou a cidade e retirou-se para o outro lado do rio.
A 14 de novembro, sabendo da entrada do inimigo pelo território
sergipano, Bagnoli prosseguiu para a Bahia, com grande pesar e indig-
96 J. Capistrano de Abreu
sumário
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sair
nação dos emigrados de Paraíba e Pernambuco, que haviam começado
suas roças; a 24 alcançou a Torre de Garcia d’Ávila, onde recebeu or-
dem do governador-geral para se deter. Com alguns companheiros en-
caminhou-se a 15 de dezembro para a cidade do Salvador a avistar-se
com Pedro da Silva, governador-geral do estado. Receoso de próximo
ataque dos holandeses contra a capital do Brasil, vinha lembrar a con-
veniência de estabelecer-se com sua gente na antiga povoação de
Pereira, onde poderia com suas forças auxiliar a resistência.
Nem Pedro da Silva, nem o povo acreditaram na iminência de tal
perigo, ninguém queria a soldadesca na vizinhança. Concordou-se que
permaneceriam na Torre e, contrariado embora, Bagnoli submeteu-se.
Em breve, porém, seus companhistas trouxeram notícia que Nassau
preparava uma expedição destinada a tomar a Bahia e, apesar de pac-
tuado, marchou para Vila Velha a 14 de março de 38.
Prisioneiros feitos por Sebastião do Souto, chegados ao acam-
pamento em 8 de abril, dissiparam as últimas dúvidas. A 16 numa forte
armada Nassau entrava de fato pela baía de Todos os Santos, com três
mil e quatrocentos soldados europeus e mil índios, e desembarcou em
Itapagipe.
Nos dias seguintes apossou-se se alguns fortes, construiu trinchei-
ras e baluartes, despejou artilharia contra partes da cidade. A con-
tinuação correspondeu mal a tão brilhante estréia: as tropas de Bagnoli e
a guarnição, deixadas de parte rivalidades mesquinhas, bateram-se com
entusiasmo; a população, a princípio tumultuária e desconfiada, acredi-
tou por fim na bravura e capacidade dos defensores; embarcações velei-
ras traziam sem cessar farinha de Camamu; entrou abundante gado de
Itapicuru e do Real; emboscadas repetidas faziam prisioneiros pelos
quais se ficava a par de todos os passos do inimigo; realizaram-se surti-
das felizes. Na noite de 25 para 26 de maio, Maurício de Nassau encer-
rou as seis semanas de carnificina, embarcando furtivamente para o Re-
cife, não com tanta festa como se prometia, nem com tanto conten-
tamento como desejava.
A vitória foi conhecida na península quando se preparava uma
forte armada restauradora, composta de trinta e três navios, coman-
dada por D. Fernando Mascarenhas, conde da Torre. Partiu de Lis-
boa a 7 de setembro; depois de danosa demora no pestilencial clima
Capítulos de História Colonial 97
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sair
do Cabo Verde, passou à vista de Recife em 23 de janeiro de 39, sem,
tampouco como as duas que a precederam, ousar atacá-lo, e seguiu para
a Bahia. Nassau aproveitou o aviso, e no prazo de quase um ano pelo
almirante português proporcionado, melhorou as fortificações, organi-
zou um serviço de informações rápidas e aparelhou uma esquadra.
Só a 19 de novembro a armada restauradora partiu da Bahia em de-
manda do norte, já então elevada a oitenta e seis embarcações com onze
a doze mil homens. A situação de Nassau era aproximadamente a de
Matias de Albuquerque dez anos antes, com a grande vantagem de pos-
suir a força naval que faltava àquele.
O conde da Torre poderia desembarcar nas proximidades de Santo
Agostinho ou Serinhaém; preferiu abordar o Pau-Amarelo. Não lho per-
mitiu a vigilância do inimigo. Apareceu depois a armada holandesa; en-
tre a ponta de Pedras, o ponto mais oriental do continente americano, e
Canhaú, na costa do Rio Grande, renhiram-se combates a 12, 13, 14 e
17 de janeiro de 40. Apenas cerca de mil soldados nossos lograram
tomar terra na ponta do Touro, donde Luís Barbalho, por entre in-
imigos e pelo sertão, novo Xenofonte, levou-os heroicamente à Bahia.
Já o precedera por via marítima com os destroços que pôde salvar o
conde da Torre, acompanhado do velho Bagnoli, que não tardou a fale-
cer.
O resto da esquadra dispersara-se em várias direções.
Os flamengos sofreram grandes perdas; alguns de seus oficiais por-
taram-se covardemente e foram executados; mas a vitória coube às suas
armas e sua posição consolidou-a mais do que nunca.
Podemos deixar em silêncio vários feitos navais dos holandeses e nu-
merosas incursões dos companhistas ocorridos em seguida; outro sucesso re-
clama de preferência a atenção. A 1º de dezembro de 640, Portugal declarou-
se independente da Espanha, aclamou rei o duque de Bragança, tratou pactos
de amizade com os adversários da monarquia espanhola. A 12 de junho de 41
concluiu com a Holanda um tratado de aliança ofensiva e defensiva na
Europa, e nas colônias uma trégua de dez anos, que devia vigorar para os
domínios da Companhia das Índias Orientais um ano depois da ratificação do
tratado, e nos da Companhia das Índias Ocidentais apenas a notícia de haver sido
ratificado fosse transmitida oficialmente. Esta cláusula pouco lisa deve ter sido lem-
brada pelos portugueses, na esperança de melhorarem a situação durante o in-
98 J. Capistrano de Abreu
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terstício; de outro modo não se explica terem demorado a ratificação até
18 de novembro. Em fevereiro de 42 os Estados Gerais ordenaram às
duas companhias cumprissem fielmente o pactuado.
Governava na Bahia, como primeiro vice-rei do Brasil, D. Jorge de
Mascarenhas, marquês de Montalvão, quando chegou a notícia dos
sucessos de Portugal. Suas medidas previdentes inutilizaram a pequena
guarnição espanhola; todos os magnatas aderiram à independência de
Portugal e à aclamação do Bragança, e o resto do país acompanhou-os,
mesmo a capitania de S. Vicente, onde havia muitas famílias de estirpe
castelhana.
O vice-rei comunicou a novidade a Maurício de Nassau, que a re-
cebeu contente e celebrou-a com festas. O inimigo tradicional era o
espanhol; tudo de contrário a este resultava em proveito das Províncias
Unidas. As relações melhoraram ainda com a notícia do tratado de 12 de
junho; como, porém, a ratificação se demorasse, Maurício ampliou os
domínios da Companhia no Maranhão e na África.
Os últimos anos do seu governo cabem em poucas palavras. Da obra
do administrador nada sobrevive; seus palácios e jardins consumiram-se na
voragem de fogo e sangue dos anos seguintes; suas coleções artísticas enri-
queceram vários estabelecimentos da Europa e estão estudando-as os ameri-
canistas; os livros de Barleus, Piso, Marcgraf, devido a seu mecenato, atingi-
ram uma altura a que nenhuma obra portuguesa ou brasileira se pode com-
parar, nos tempos coloniais; parece mesmo terem sido pouco lidos no
Brasil, apesar de escritos em latim, a língua universal da época, tão insig-
nificantes vestígios encontramos deles.
A cidade Mauricéia não guardou seu nome, mas prosperou e conserva
sua memória. Com o título de desforra, legado, vingança ou coisa semel-
hante, de Maurício de Nassau, poderia um amante de fantasias históricas in-
terpretar a guerra dos Mascates adiante narrada, e não precisaria de esforço
maior do que o empregado para transformar Domingos Fernandes Calabar
em patriota e vidente. A origem principesca de Maurício lisonjeou os
colonos e tornou-lhes mais repugnantes os outros governadores, simples
burgueses, meros dependentes da Companhia. Ele próprio preveniu disto
os sucessores, ao entregar-lhes o mando.
Frei Manuel Calado, que o conheceu e freqüentou, apresenta-o
como fidalgo de raça, capaz de sentir uma injustiça e repará-la, amante
Capítulos de História Colonial 99
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de festas e esplendores, inclinado a farsa nem sempre do gosto mais
delicado, admirador das belezas tropicais, isento da preocupação de vol-
tar a terras mais civilizadas. Em limpeza de mãos ficou infinitamente
abaixo de Matias de Albuquerque: está provado o seu conluio em con-
trabando com Gaspar Dias Ferreira, que, como era natural, logrou-o no
ajuste das contas, feito em Holanda quando o príncipe já não governava.
À partida de Maurício de Nassau, em maio de 644, seguem-se dez
anos profundamente agitados.
Dos emigrados com Matias de Albuquerque alguns tinham voltado
para as antigas propriedades e procuravam reconstituir sua antiga abas-
tança. O regime holandês era duro, as extorsões contínuas; mesmo se
Nassau fosse o justiceiro, em que pretendem transfigurá-lo, não tinha
braço bastante longo e bastante forte para amparar todas as vítimas.
Os invasores desarmaram a população rural, preferindo deixá-la
entregue às devastações inclementes de companhistas a ter de se preocu-
par algum dia com qualquer tentativa de insurreição.
Como poderia reagir?
O foco do irredentismo, entretanto, lavrava na Bahia.
Norteiros emigrados e reduzidos à miséria, baianos, cujos engen-
hos devastaram tantas vezes as expedições marítimas dos flamengos, ali-
mentavam profundo rancor contra os seus malfeitores; padres e frades
espoliados e expulsos irritavam a consciência religiosa. O sucessor de
Montalvão, Antônio Teles da Silva, tão abrasado católico que quis fun-
dar e dotar à sua custa um Santo Ofício para o Brasil, a exemplo de Goa
onde estivera, não podia suportar herege na vizinhança.
Ainda no tempo de Nassau a religião católica gozava de tolerância,
embora limitada e instável. Com sua partida, protestantes e judeus ultra-
javam a toda hora as crenças da população indígena. Por isso o primeiro
título assumido pelos chefes dos insurgentes foi o de governadores da
liberdade divina: em linguagem moderna tanto valeria dizer da liberdade
de consciência.
Da Bahia devia partir a iniciativa contra o flamengo, pois só de lá
podiam sair o armamento, os oficiais, a gente de guerra, em torno da
qual se adensassem os pernambucanos bisonhos; precisava-se, entre-
tanto, de um chefe em Pernambuco, para o esforço não ficar perdido
nos primórdios.
100 J. Capistrano de Abreu
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Um só homem havia ali capaz de assumir esta responsabilidade, se
quisesse: João Fernandes Vieira. Natural da ilha da Madeira, passara aos
onze anos para aquela capitania, batera-se ao lado de Matias de Albu-
querque, e foi um dos prisioneiros do arraial de Bom Jesus, em junho de
635. Preferiu ficar com os holandeses, depois da rendição, e a sorte pro-
tegeu-o. Adquiriu a maior fortuna da terra. Os compatriotas respei-
tavam-no, e ele os ajudava e protegia liberal e generosamente. Conciliou
igualmente as graças dos invasores. Por que artes explica-o no seu testa-
mento: "Também me são devedores [os flamengos] de mais de cem mil
cruzados, que no decurso de oito ou nove anos lhes dei por remir minha
vexação e por segurar a vida de suas tiranias, de peitas e dádivas a todos
os governadores e seus ministros e com grandiosos banquetes que ordi-
nariamente lhes dava pelos trazer contentes."
À primeira vista ninguém menos próprio para o papel de herói e
libertador. Entretanto, Vidal de Negreiros, paraibano que começou a se
distinguir com Matias de Albuquerque, e oficial da guarnição da Bahia,
sondou o espírito de Vieira e achou-o disposto à empresa. Notou,
porém, a falta de munições, de armamento, de gente entendida em
guerra para o levante não degenerar em manifestação estéril; para suprir
todas estas faltas precisava-se de tempo e de socorros estranhos. De
fato, foi-se fazendo tudo com as maiores precauções possíveis. Apesar
de todas as cautelas, os holandeses tiveram notícias vagas dos preparativos,
admira, até, que as tivessem tão tarde, quando o segredo andava por tantas
bocas, e mandaram duas embaixadas a Antônio Teles, queixando-se dos
baianos que fomentavam a revolução nas possessões dos recém-aliados.
Um dos embaixadores, D. von Hoogstraten, comprometeu-se a trair os
patrões, entregando o forte de Nazaré de seu comando quando lhe fosse
exigido.
Por ocasião da segunda embaixada, Camarão e seus índios, Henrique
Dias e seus negros, de acordo com o governador da Bahia, a convite de Vieira,
tinha passado para o lado de Pernambuco. Peguem-nos e castiguem-nos
como merecem, intimava Antônio Teles aos agentes da Companhia das
Índias Ocidentais, desde que não pôde mais negar a sua ausência. E
quando a gente de Vieira começou a agitar, mandou embarcados dois
terços da força paga sob o mando do velho Martim Soares Moreno e
do ardente Vidal de Negreiros, a pretexto de conterem os re-
Capítulos de História Colonial 101
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sair
beldes. Os dois mestres-de-campo, a 28 de julho de 45, desembar-
caram próximo de Serinhaém; logo a 4 de agosto rendeu-se-lhe o forte
holandês ali situado; a 3 de setembro Hoogstraten entregou-lhes o forte
de Pontal, como tratara.
Para se ajuizar da importância deste ponto basta lembrar que Ma-
tias de Albuquerque nunca mais assistiu no arraial de Bom Jesus depois
de tomado o Pontal. Assim a restauração começava por onde findara a
conquista. O êxito dos terços baianos seria maior se o flamengo não de-
struísse a esquadrilha de Serrão de Paiva em que tinha vindo até Serin-
haém e se Salvador Correia colaborasse com sua armada, como lhe foi
mandado, para fechar o ataque do Recife por terra e por mar.
Desde junho, antes de chegado o reforço da Bahia, a insurreição
rebentara em Pernambuco. Com pouca gente, sem armamento, sem mu-
nição, Vieira devia empenhar-se, sobretudo, em não se encontrar com o
inimigo. Isto conseguiu graças às medidas cautelosas anteriores tomadas,
ao requintado serviço de espionagem, apoiado no conhecimento das lo-
calidades. Só a 3 de agosto houve o primeiro combate no Monte das
Tabocas, e a vitória ficou de nosso lado. Aos que censuram as hesi-
tações de Vieira, suas delongas à espera de Camarão e Henrique Dias,
sua insistência por socorro da Bahia, basta lembrar um fato: na batalha
das Tabocas muita gente combateu ainda de pau tostado e foice por
falta de espingarda.
Uma das vantagens da vitória foi proporcionar armas de fogo e
munições tiradas aos inimigos mortos. A tomada da Casa-Forte em 16
de agosto propagou o incêndio. Com a rendição de Serinhaém e do Pontal a
Martim Soares e André Vidal, insurgiu-se o Sul até o rio de S. Francisco e a
situação voltou ao que era em começos de 35. As forças baianas, mandadas
a pretexto de pacificá-los, reuniam-se sem rebuços aos insurgentes.
Formou-se logo um arraial à margem direita do Capibaribe,
e deram-lhe o nome de arraial Novo do Bom Jesus. Daqui parti-
ram ataques incessantes contra a gente do Recife. Uma fortaleza
no continente, a força do Asseca, sobretudo, causava-lhe gran-
des estragos. Lembrou-se Sigismundo de repetir a tática pela
qual isolara o antigo arraial do forte de Nazaré e obrigara os
dois a se renderem. Desta vez o plano mangrou: a batalha dos
Guararapes (19 de abril de 48) terminou em derrota completa
102 J. Capistrano de Abreu
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dos invasores, que deixaram o campo juncado de mortos e de-
spojos. Uma compensação tiveram valiosa: a devastadora força de
Asseca passou para seu poder e em seu poder persistiu até o fim da
guerra.
Poucos dias antes da batalha dos Guararapes assumira o comando su-
premo dos pernambucanos o general Francisco Barreto de Meneses, man-
dado do Reino a este fim. O estado em que achou as coisas descreve assim
um historiador destes feitos, arauto enfático de Vieira: "Sem armas e
soldados venceu [Vieira] o inimigo que o buscava com soldados e armas na
batalha das Tabocas. Depois unido com o mestre-de-campo André Vidal de
Negreiros ganharam a vitória ao flamengo no engenho de D. Ana Pais, e nove
fortalezas, com outros redutos e casas-fortes; perto de oitenta peças de artil-
haria de diversos calibres, a maior parte de bronze; armas, munições e petre-
chos de guerra em tanta quantidade quanta bastou para sustentar a guerra viva
em cinco anos contínuos."
À primeira seguiu-se a segunda batalha dos Guararapes, em 19 de fev-
ereiro de 49, com o mesmo resultado contrário aos flamengos. Depois dela
não houve mais combates notáveis por terra nem por mar. A Companhia
estava exausta, apesar dos largos subsídios dados pelos Estados Gerais. Den-
tro em pouco estes não puderam mais auxiliá-la, envolvidos em guerra contra
a Inglaterra. Em compensação Portugal organizara uma companhia do
comércio que apareceu na costa pernambucana por dezembro de 53. Os pa-
triotas puseram-se de acordo com ela, como outrora a gente da Bahia com a
armada de D. Fradique de Toledo; o almirante português desembarcou no rio
Tapado, o primeiro ponto em que Weerdenburgh tentara o desembarque, e
em Olinda combinou com os chefes pernambucanos a marcha a seguir.
Um a um foram caindo os fortes holandeses; a 26 de janeiro de 54 assi-
nava-se a capitulação da Taborda, e terminava esta guerra, levada quase sem
interrupções durante trinta anos.
O desfecho fora previsto e publicado anos antes por Pierre Moreau, natu-
ral de Charolais, na Borgonha, que passara algum tempo entre os holandeses, em
Pernambuco. Suas palavras patenteiam algumas das mais profundas causas do
insucesso final da Companhia das Índias Ocidentais.
"Não há aparência", publicava em 1651, "de que os holandeses
possam nunca se restabelecer e restaurar no Brasil como eram antes,
mesmo se sua frota derrotasse a dos portugueses; mesmo se lhes envias-
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sair
sem outro socorro semelhante ao último, apenas perderiam homens e
esgotariam seus tesouros, sem nada adiantar; porque o território que
lhes resta desde o Ceará até a cidade de Olinda está inteiramente per-
dido e, sem habitantes, as casas, povoados, aldeias ou vilas, as próprias
fruteiras queimadas e arruinadas, porquanto seu estado inútil e sem
proveito; e embora sejam senhores das fortalezas do Rio Grande e
Paraíba, as únicas que resistem com o Recife, para pouco prestam e de-
las não podem tirar socorro; os que se animam a reconstruir tijupás para
cultivar a terra ou se aventuram a alguma distância são surpreendidos e
mortos quando menos pensam pelos corsos ordinários dos portugueses,
dos tapuias e dos brasis bravos (desunis) que não têm dó de ninguém.
"Os portugueses têm bloqueado o Recife, por terra, de todos os
lados, por meio da cidade de Olinda, do cabo de S. Agostinho, das for-
talezas construídas em redor; são absolutos por toda a campanha fértil e
abundante, e de todas as praças-fortes, portos, abras e passagens desde
o Recife até a outra extremidade do Brasil além do Rio de Janeiro. Todo
o país que possuem é muito bem povoado, com gente de guerra numerosa,
sabem subsistir e vivem do que a terra produz com abundância, dispensam
facilmente as produções da Europa, coisa impossível aos holandeses, que
aliás têm apenas soldados arrebanhados de diversas nações, comprados an-
tes que escolhidos, de cuja fidelidade não podem estar seguros, impróprios
aos costumes e ao ar estranho do país, ignorantes dos desvios e das embos-
cadas dos lugares. Ao passo que os portugueses em sua maioria ali nasceram,
dele são originários, desde a quarta geração, são robustos, um mesmo povo,
dos mesmos costumes e complexões, que se sustentam entre si, não deixam
de valorizar e tirar proveito da terra, sabem-lhe até os mínimos recantos, e
basta-lhes esperarem os inimigos nas passagens para derrotá-los."
Em outros termos, Holanda e Olinda representavam o mercantilismo
e o nacionalismo. Venceu o espírito nacional. Reinóis como Francisco Bar-
reto, ilhéus como Vieira, mazombos como André Vidal, índios como
Camarão, negros como Henrique Dias, mamelucos, mulatos, caribocas,
mestiços de todos os matizes combateram unânimes pela liberdade divina.
Sob a pressão externa operou-se uma solda, superficial, imperfeita,
mas um princípio de solda, entre os diversos elementos étnicos.
Vencedores dos flamengos, que tinham vencido os espanhóis, al-
gum tempo senhores de Portugal, os combatentes de Pernambuco sen-
104 J. Capistrano de Abreu
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tiam-se um povo, e um povo de heróis. Nesta convicção os confirma-
ram os testemunhos do reconhecimento oficial, os encarecimentos dos
historiadores, como Manuel Calado e Rafael de Jesus, cujas obras foram
logo publicadas, Diogo Lopes de Santiago, inédito até nossos dias, os
sobreviventes das lutas, os herdeiros das tradições ligeiramente alteradas
com o tempo. Um documento de 1703 resume tais sentimentos nos
seguintes termos:
"Entre todas as nações do orbe são os portugueses os que se têm
empenhado nas empresas mais árduas e conseguido os maiores triunfos,
tendo pelo mais heróico brasão a fidelidade e íntimo afeto com que não
só veneram mas adoram aos seus Princípes naturais: e sendo isto assim
parece que em Pernambuco se souberam sinalar com maior vantagem,
pois quando mais oprimidos, mais sujeitos e mais desamparados, sem
favor e sem humana ajuda, desprezando aquele trato que a continuação
de tantos anos pudera por familiar ter facilitado, e mais, sabendo gran-
jear os ânimos com liberal mão, os holandeses, desprezando tudo com
soberano impulso, intentaram e conseguiram a mais ilustre ação e digna
de imortal fama, não só porque com invicto sofrimento suportaram o
duro peso de toda a guerra, até se extinguir de todo a hostilidade, mas
ostentando-se ainda mais generosos, nem um privilégio procuraram im-
petrar por serviço tão relevante, havendo despendido por consegui-lo
todos os seus bens e ficando pobres; e assim sem mais prêmio que o in-
teresse do glorioso nome de leais vassalos, fidelíssimos ao seu rei e
amantíssimos de sua pátria, recuperada e isenta de alheio domínio lha
restituíram como usurpada, sendo uma tão nobre parte de sua real
coroa, a custa do caro preço de tantas vidas e de tanto sangue vertido,
recuperando, o que é o mais, o culto ao sagrado que tão profundamente
viram da heresia infestado tantos anos."
Passado o primeiro momento de entusiasmo, os reinóis quiseram
reassumir a sua atitude de superioridade e proteção. Data daí a ir-
reparável e irreprimível separação entre pernambucanos e portugueses.
Capítulos de História Colonial 105
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IX
O sertão
A invasão flamenga constitui mero episódio da ocu-
pação da costa. Deixa-a na sombra a todos os respeitos o povoamento
do sertão, iniciado em épocas diversas, de pontos apartados, até formar-
se uma corrente interior, mais volumosa e mais fertilizante que o tênue fio
litorâneo.
*
Podemos começar pela capitania de São Vicente. O esta-
belecimento de Piratininga, desde a era de 530, na borda do campo, sig-
nifica uma vitória ganha sem combate sobre a mata, que reclamou al-
hures o esforço de várias gerações. Deste avanço procede o desen-
volvimento peculiar de São Paulo. O Tietê corria perto; bastava seguir-lhe o
curso para alcançar a bacia do Prata. Transpunha-se uma garganta fácil e en-
contrava-se o Paraíba, encaixado entre a serra do Mar e a da Mantiqueira,
apontando o caminho do norte. Para o sul estendiam-se vastos descam-
pados, interrompidos por capões e até manchas de florestas, consideráveis,
às vezes, mas incapazes de sustarem o movimento expansivo por sua
descontinuidade. A este apenas uma vereda quase intransitável levava à
beira-mar, vereda fácil de obstruir, obstruída mais de uma vez, tornando a
população sertaneja independente das autoridades da marinha, pois um
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punhado de homens bastava para arrostar um exército, e abrir novas pi-
cadas, domando as asperezas da serra, rompendo as massas de vege-
tação, arrostando hostilidade dos habitantes, pediria esforços quase so-
bre-humanos.
Sob aquela latitude, naquela altitude, fora possível uma lavoura
semi-européia, de alguns, senão todos os cereais e frutos da península.
Ao contrário, o meio agiu como evaporador; os paulistas lançaram-se a
bandeirantes.
Bandeiras eram partidas de homens empregados em prender e
escravizar o gentio indígena. O nome provém talvez do costume
tupiniquim, referido por Anchieta, de levantar-se uma bandeira em sinal
de guerra. Dirigia a expedição um chefe supremo, com os mais amplos
poderes, senhor da vida e morte de seus subordinados. Abaixo dele,
com certa graduação, marchavam pessoas que concorriam para as
despesas ou davam gente.
Figura obrigada era o capelão. "Meu capelão saiu para fora estando
eu para sair para a campanha", escrevia Domingos Jorge Velho, em
novembro de 692, "mandei-o buscar; não quis vir; de necessidade
busquei o inimigo; sem ele morreram-me três homens brancos sem
confissão, cousa que mais tenho sentido nesta vida; peço-lhe pelo
amor de Deus me mande um clérigo em falta de um frade, pois se
não pode andar na campanha e sendo com tanto risco de vida sem
capelão." Montoya fala nestes "lobos vestidos de pieles de ovejas, unos
hipocritones, los cuales tienen por oficio mientras los demás andam robando y de-
spojando las iglesias y atando indios, matando y despedazando niños, ellos,
mostrando largos rosarios que traen al cuello, lléganse à los padres [jesuítas espan-
hóis] pidenles confesion... y mientras están hablando de estas cosas van pasando las
cuentas del Rosario muy aprisa."
Escravos serviam de carregadores. Compunha-se a carga de
pólvora, bala, machados e outras ferramentas, cordas para amarrar os
cativos, às vezes sementes, às vezes sal e mantimentos. Poucos manti-
mentos. Costumavam partir de madrugada, pousavam antes de entarde-
cer, o resto do dia passavam caçando, pescando, procurando mel silves-
tre, extraindo palmito, colhendo frutos; as pobres roças dos índios for-
neciam-lhes os suplementos necessários, e destruí-las era um dos meios
mais próprios para sujeitar os donos.
108 J. Capistrano de Abreu
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Se encontravam algum rio e prestava para a navegação, improvis-
avam canoas ligeiras, fáceis de varar nos saltos, aliviar nos baixios ou
conduzir à sirga. Por terra aproveitavam as trilhas dos índios; em falta
delas seguiam córregos e riachos, passando de uma para outra banda
conforme lhes convinha, e ainda hoje lembram as denominações de
Passa-Dois, Passa-Dez, Passa-Vinte, Passa-Trinta; balizavam-se pelas al-
turas, em busca de gargantas, evitavam naturalmente as matas, e de
preferência caminhavam pelos espigões. Alguns ficaram tanto tempo no
sertão que "volviendo a sus casas hallaron hijos nuevos, de los que teniendolos ya a ellos
por muertos, se habian casado con sus mujeres, llevando tambien ellos los hijos que
habian engendrado en los montes", informa-nos Montoya. Os jesuítas
chamam à gente de São Paulo mamalucos, isto é, filhos de cunhãs
índias, denominação evidentemente exata, pois mulheres brancas não
chegavam para aquelas brenhas.
Faltam documentos para escrever a história das bandeiras, aliás
sempre a mesma: homens munidos de armas de fogo atacam selvagens
que se defendem com arco e flecha; à primeira investida morrem mui-
tos dos assaltados e logo desmaia-lhes a coragem; os restantes, amarra-
dos, são conduzidos ao povoado e distribuídos segundo as condições
em que se organizou a bandeira. Nesta monotonia trágica os caiapós in-
troduziram mais tarde uma novidade: "a de nos cercar de fogo quando
nos acham nos campos, a fim de que impedida a fuga nos abrasemos:
este risco evitam já alguns lançando-lhe contrafogo, ou arrancando o capim
para que não se lhe comuniquem as suas chamas; outros se untam com mel
de pau, embrulhados em folhas ou cobertos de carvão, por troncos verdes ou
paus queimados".
À parte geográfica das expedições corresponde mais ou menos o
seguinte esquema: Os bandeirantes deixando o Tietê alcançaram o Paraíba do
Sul pela garganta de São Miguel, desceram-no até Guapacaré, atual Lorena, e dali
passaram a Mantiqueira, aproximadamente por onde hoje a transpõe a E. F. Rio
e Minas. Viajando em rumo de Jundiaí e Mogi, deixaram à esquerda o salto do
Urubupungá, chegaram pelo Paranaíba a Goiás. De Sorocaba partia a linha de
penetração que levava ao trecho superior dos afluentes orientais do Paraná e do
Uruguai. Pelos rios que desembocam entre os saltos do Urubupungá e Guaiará,
transferiram-se da bacia do Paraná para a do Paraguai, chegaram a Cuiabá e a
Mato Grosso. Com o tempo a linha do Paraíba ligou o planalto do Paraná
Capítulos de História Colonial 109
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ao do S. Francisco e do Parnaíba, as de Goiás e Mato Grosso ligaram o
planalto amazônico ao rio-mar pelo Madeira, pelo Tapajós e pelo To-
cantins.
As bandeiras no século XVI devastaram sobretudo o Tietê, cujos
numerosos tupiniquins depressa desapareceram, e o alto Paraíba,
chamado rio dos Surubis em Piratininga, segundo informa Glimmer;
com o tempo foram-se alongando os raios do despovoamento e depre-
dação, característica essencial e inseparável das bandeiras.
O movimento paulista para o sertão ocidental chocou-se com o
movimento paraguaio à procura do mar: Ciudad Real, no Piqueri,
próximo do salto das Sete Quedas, Vila Rica, no Ivaí, datam da segunda
metade do século XVI, antes do Brasil cair sob o domínio da Espanha.
Com estes colonos a gente de São Paulo cultivou a princípio boas re-
lações; nas caçadas humanas foram às vezes sócios e aliados. Além disso
a viagem por terra do Paraguai para a costa fazia-se mais facilmente pro-
curando Piratininga, do que repetindo a incômoda travessia de Cabeza
de Vaca. A harmonia entrava assim no interesse de ambas as partes. Só
mais tarde houve conflitos e as duas povoações desapareceram.
Por 1610, jesuítas castelhanos partidos de Asunción começaram a
missionar na margem oriental do Paraná. Fundaram Loreto e San Igna-
cio, no Paranapanema, e em compasso acelerado mais onze reduções no
Tibagi, no Ivaí, no Corumbataí, no Iguaçu. Transposto o Uruguai, as-
sentaram outras dez entre o Ijuí e o Ibicuí, outras seis nas terras dos
Tape, em diversos tributários da lagoa dos Patos. De San Cristóbal e
Jesús María, no rio Pardo, poucas léguas os separavam agora do mar.
Esta catequese grandiosa não consistia simplesmente em verter as
orações da cartilha para a língua geral, fazê-las repetir pela multidão ig-
nara, submetendo-a à observância maquinal do culto externo. "Reduções",
escreve um dos jesuítas contemporâneos que mais concorreram para
avultarem, "chamamos aos povoados dos índios, que vivendo à sua an-
tiga usança, em matos, serras e vales, em escondidos arroios, em três,
quatro ou seis casas apenas, separados, uma, duas, três e mais léguas uns
de outros, os reduziu a diligência dos padres a povoações grandes e a
vida política e humana, a beneficiar algodão com que se vistam, por-
que comumente viviam em nudez, ainda sem cobrir o que a natureza
ocultava."
110 J. Capistrano de Abreu
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Não se imagina presa mais tentadora para caçadores de escravos.
Por que aventurar-se a terras desvairadas, entre gente boçal e rara,
falando línguas travadas e incompreensíveis, se perto demoravam al-
deamentos numerosos, iniciados na arte da paz, afeitos ao jugo da auto-
ridade, doutrinados no abanheem?
Houve alguns salteios contra as reduções desde o seu começo, mas
a energia e o sangue-frio dos jesuítas contiveram os arreganhos dos
mamalucos, que se retiraram proferindo ameaças. Para pô-las em prática
precisavam, porém, da conivência da gente de Asunción. Isto consegui-
ram em fins de 628, e muito concorreu para assegurá-la Luís Céspedes
Xeria, governador do Paraguai, casado em família fluminense, senhor de
engenho no Rio. Fez por terra a viagem para seu governo; esteve em
Loreto do Pirapó e Santo Ignacio de Ipãumbuçu, admirou as igrejas,
"hermosísimas iglesias, que no las he visto mejores en las Indias que he corrido del
Perú y Chile", e fez sinal aos bandeirantes para avançarem.
A primeira das reduções invadidas, a de S. Antônio, demorava na
margem direita do Ivaí; invadiram depois San Miguel, Jesús María, San
Pablo, San Francisco Xavier, no Tibagi; as outras, ainda mais depressa
do que as agremiara uma inspiração ideal, foram sucessivamente de-
struídas pela fúria devastadora. Restavam apenas as de Loreto e San Ig-
nacio, no Paranapanema; os jesuítas resolveram transplantá-las para
baixo do salto das Sete Quedas, entre o Paraná e o Uruguai; doloroso
êxodo cuja narrativa ainda hoje penaliza. Depois de devastadas as
missões de Guairá, os mamalucos passaram às do Uruguai e dos Tape.
A entrada em Jesús María, no rio Pardo, já em águas da lagoa dos
Patos, qual a descreve Montoya, dará idéia resumida dos processos em-
pregados nestas expedições.
No dia de São Francisco Xavier (3 de dezembro de 637), estando
celebrando a festa com missa e sermão, cento e quarenta paulistas com
cento e cinqüenta tupis, todos muito bem armados de escopetas, vesti-
dos de escupis, que são ao modo de dalmáticas estofadas de algodão,
com que vestido o soldado de pés à cabeça peleja seguro das setas, a
som de caixa, bandeira tendida e ordem militar, entraram pelo povoado,
e sem aguardar razões, acometendo a igreja, disparando seus mosquetes.
Pelejaram seis horas, desde as oito da manhã até as duas da tarde.
Capítulos de História Colonial 111
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Visto pelo inimigo o valor dos cercados e que os mortos seus eram
muitos determinou queimar a igreja, aonde se acolhera a gente. Por três
vezes tocaram-lhe fogo que foi apagado, mas à quarta começou a palha
a arder e os refugiados viram-se obrigados a sair. Abriram um postigo e
saindo por ele a modo de rebanho de ovelhas que sai do curral para o
pasto, com espadas, machetes e alfanjes lhes derribavam cabeças, trun-
cavam braços, desjarretavam pernas, atravessavam corpos. Provavam os
aços de seus alfanjes em rachar os meninos em duas partes, abrir-lhes as
cabeças e despedaçar-lhes os membros.
Compensará tais horrores a consideração de que por favor dos
bandeirantes pertencem agora ao Brasil as terras devastadas?
Apenas vagamente se conhece o caminho seguido nas bandeiras
contra Guairá, Uruguai e Tape. Certamente Sorocaba, último povoado,
representava papel importante. Em canoas ou balsas feitas no planalto
desciam os rios, e uma ou outra que garrava servia de aviso do
perigo iminente às reduções; eram, pois, viagens mistas. À volta, as
jornadas deviam ser inteiramente por terra; de outro modo não
poderiam trazer as chusmas de prisioneiros de coleira, amarrados
uns aos outros.
Que destino davam a esta gente? Diz-nos Montoya que eram em-
pregados em transportar nas costas para a marinha carne de vaca e
porco; naturalmente carregariam sal na volta; outros passavam para o
Rio, onde havia interessados nestas piratarias; outros finalmente jun-
tavam-se nas fazendas dos administradores. Em campanha "las mujeres
que en este, y otros pueblos (que destruyeron) de buen parecer, casadas, solteras o gen-
tiles, el dueño las encerraba consigo en un aposento, con quien pasaba las noches al
modo que un cabron en un curral de cabras".
O número considerável dos escravizados nas reduções jesuítas ma-
nifesta-se na freqüência de carijós, posteriormente encontrados nos lug-
ares mais distantes de sua primitiva assistência: carijós chamavam em
São Paulo aos guaranis. Esses índios, devidamente amestrados, serviam
também para as conquistas de outros; eram o grosso das forças dos ban-
deirantes, cujo papel se limitava ao de oficiais.
Os sucessos dos Tape provaram mais uma vez não haver remédio
em Asunción, Rio ou Bahia. Os missionários esperavam ser mais felizes
no além-mar e embarcaram Antonio Ruiz de Montoya para Madri, Fran-
112 J. Capistrano de Abreu
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cisco Dias Taño para Roma. Conseguiu este bulas e censuras fulminan-
tes, trouxe aquele as ordens mais precisas e encarecidas para as autori-
dades coloniais. Tudo perdido. Conhecidas as letras pontifícias no Rio,
alborotou-se a população, e a bula ficou suspensa. A irritação propagou-
se pela marinha e intensificou-se em serra acima. Defendidos por seu
caminho inexpugnável, os paulistas expulsaram os jesuítas que só vol-
taram anos depois, à força de negociações e concessões. Implantou-se,
portanto, o sistema seguido nas terras espanholas de encomendas ou ad-
ministração dos índios; algumas encomendas por testamento couberam
finalmente à Companhia de Jesus. Imagina-se mal neste figurino opor-
tunista a consciência heróica de Manuel da Nóbrega.
Montoya conseguiu licença para aparelhar os índios com armas de
fogo e adestrá-los na arte militar. Em breve os bandeirantes perderam a
superioridade: derrotados, procuraram conquistas mais fáceis, na serra
de Maracaju, no alto Paraguai, entre os chiquitos, e por fim entre o gen-
tio de corso, de língua travada. Esta caçada não rendia tanto, as bandei-
ras foram perdendo parte dos primeiros atrativos e decaíram. Das re-
duções destruídas nunca mais se restabeleceram as de Guairá e dos
Tape; no Uruguai foram novamente fundados sete povos, mais tarde in-
corporados ao Brasil, como veremos.
Melhores serviços prestaram os paulistas na Bahia e ao norte do rio
São Francisco. Em torno do Paraguaçu reuniram-se tribos ousadas e va-
lentes, aparentadas aos aimorés convertidos no princípio do século, que
invadiram o distrito de Capanema, trucidaram os moradores e vaqueiros
do Aporá, e avançaram até Itapororocas. Pouco fizeram expedições
baianas mandadas contra eles, e houve a idéia de chamar gente de São
Paulo. Acudindo ao convite Domingos Barbosa Calheiros embarcou em
Santos; na Bahia se dirigiu para Jacobinas, mas deixou-se iludir por
paiaiás domesticados, e nada fez de útil. Acompanhando-o na jornada
mais de duzentos homens brancos, raros tornaram do sertão.
Com este malogro não admira se repetissem as incursões de ta-
puias, a ponto de a 4 de março de 1669 ser-lhes declarada guerra e outra
vez convidados paulistas para fazê-la. Em agosto de 71 chegou a gente
embarcada, com cuja condução a câmara do Salvador despendeu mais
de dez contos de réis. Eram dois os chefes principais, Brás Rodrigues de
Arzão e Estêvão Ribeiro Bairão Parente. Fizeram de Cachoeira base das
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operações que duraram anos. Brás Rodrigues retirou-se depois de tomar
na margem esquerda do Paraguaçu, a aldeia do Camisão. Estêvão
Ribeiro guerreou sobretudo na margem direita, onde conquistou a aldeia
de Maçacará. Em paga dos serviços foi-lhe dado o senhorio de uma vila
chamada de João Amaro, nome de seu filho. A vila, depois de vendida
com as suas terras a um ricaço da Bahia, extinguiu-se; o epônimo ainda é
lembrado nos catingais baianos.
A estas expedições marítimas sucederam outras por via terrestre.
Talvez a mais antiga fosse a de Domingos de Freitas de Azevedo, de
quem apenas consta haver sido derrotado no rio São Francisco. Facili-
taram estas entradas a abundância de matas no trecho superior do rio, as
suas condições de navegabilidade dentro do planalto, o emprego de
canoas. Paulistas houve que fizeram canoas e desceram para vendê-las
próximo do trecho encachoeirado, onde a escassez da vegetação tornava
preciosa a mercadoria. Das expedições feitas pelo interior conhecemos
as de Domingos Jorge Velho, Matias Cardoso de Almeida, Morais
Navarro, todos empregados em combater os paiacus, janduís, icós, nas
ribeiras do Açu e do Jaguaribe. Domingos Jorge auxiliou a debelação
dos Palmares, mocambo de negros localizado nos sertões de Pernam-
buco e Alagoas, que já existia antes da invasão flamenga e zombara de
numerosas e repetidas tropas contra ele mandadas. Ficou assim livre
todo o território entre as matas do cabo de Santo Agostinho e Porto Calvo.
Muitos dos paulistas empregados nas guerras do Norte não tornaram
mais a São Paulo, e preferiram a vida de grandes proprietários nas terras
adquiridas por suas armas: de bandeirantes, isto é despovoadores, passaram
a conquistadores, formando estabelecimentos fixos. Ainda antes do desco-
brimento das minas sabemos que nas ribeiras do rio das Velhas e do São
Francisco havia mais de cem famílias paulistas, entregues à criação de gado.
Conhecemos mal, para ajuizar dela, a vida levada em São Paulo
pelos bandeirantes recolhidos aos lares, pela gente rica e poderosa. O
seguinte trecho de Pedro Taques só em parte supre a lacuna, pois refere-
se à época posterior às minas, o que altera em muito a situação:
"Na casa de Guilherme Pompeu de Almeida, celebrava-se anual-
mente a festa a 8 de dezembro com um oitavário de festa de missas can-
tadas, sacramento exposto e sermão a vários santos de sua especial de-
voção e se concluía o oitavário com um aniversário pelas almas do Pur-
114 J. Capistrano de Abreu
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gatório, com ofício de nove lições, missa cantada e sermão para excitar a
devoção dos fiéis ouvintes. De São Paulo concorria a maior parte da no-
breza com os religiosos de maior autoridade das quatro comunidades,
Companhia de Jesus, Carmo, São Bento e São Francisco, e os
clérigos de maior graduação. Era a casa do Dr. Guilherme Pompeu
naqueles dias uma populosa vila ou corte pela assistência e concurso
dos hóspedes. Para a grandeza do tratamento da casa deste herói
paulista, basta saber-se que fazia paramentar cem camas, cada uma com
cortinado próprio, lençóis finos de bretanha, guarnecidos de rendas, e
com uma bacia de prata debaixo de cada uma das ditas cem camas,
sem pedir-se nada emprestado. Tinha, na entrada de sua fazenda da
Araçariguama, um pórtico, do qual até as casas mediava um plano de
500 passos, todo murado, cujo terreno servia de pátio à igreja ou
capela da Conceição.
"Neste portão ficavam todos os criados dos hóspedes, que ali se
apeavam, largando esporas e outros trastes com que vinham de cavalo, e
tudo ficava entregue a criados, escravos, que para este político ministério
os tinha bem disciplinados.
"Entrava o hóspede, ou fosse um, ou muitos em número, e nunca
mais nos dias que se demoravam, ainda que fossem de uma semana ou
de um mês, não tinha nenhum dos hóspedes notícia alguma dos seus
escravos, cavalos e trastes. Quando porém qualquer dos hóspedes se
despedia, ou fosse um, quinze ou muitos ao mesmo tempo, chegando
ao portão cada um achava o seu cavalo com os mesmos jaezes, em
que tinha vindo montado, as mesmas esporas, e os seus trastes to-
dos, sem que a multidão de gente produzisse a menor confusão na
advertência daqueles criados, que para isto estavam destinados. Os
cavalos recolhiam-se às cavalariças, onde tinham todo o bom penso de
erva e milho, que é o que se dá diariamente no Brasil aos cavalos, prin-
cipalmente na capitania de São Paulo... Esta advertência era uma das
ações de que os hóspedes se aturdiam, por observarem que nunca
jamais, entre multidão de várias pessoas que diariamente concorriam a
visitar e obsequiar dias e dias ao Dr. Guilherme Pompeu de Almeida,
se experimentava a menor falta, nem ainda uma só troca de trastes a
trastes. Foi tão profusa a mesa do Dr. Guilherme Pompeu, que nela as
iguarias de várias viandas se praticava com tal advertência, que se acabada
Capítulos de História Colonial 115
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a mesa, passadas algumas horas, chegassem hóspedes não houvesse
para banqueteá-los a menor falta.
"Por esta razão estava a ucharia sempre pronta. A abundância de
trigo nesta casa foi tanta que todos os dias se fazia pão, de sorte que
para o seguinte já não servia o que tinha sobrado do antecedente; o
vinho era primoroso e uma grande vinha que com acerto se cultivava
e suposto o consumo era sem miséria, sempre o vinho sobrava de
ano a ano."
A vida do povo comum dizia mal com estes esplendores: a can-
jica, alimento da maioria da população, dispensava sal, porque este in-
grediente não chegava para todos.
Os paulistas não se limitaram a passar de bandeirantes a conquis-
tadores. Houve sempre alguma mineração em Iguape e Paranaguá: em
maior número ainda, entregaram-se a pesquisas minerais a partir da era
de 670, depois que o monarca português apelou para seus brios. Antes
da grande dispersão provocada pelos descobertos auríferos, a popu-
lação grupava-se nas margens do Tietê e nas do Paraíba. Na ribeira do
Tietê, Mogi das Cruzes, Parnaíba, Itu, Sorocaba; na do Paraíba, Jacareí,
Taubaté, Guaratinguetá precedem os descobertos. A maior densidade provav-
elmente notava-se no Paraíba, cujo vale estreitado à direita pela serra do Mar, à
esquerda pela da Mantiqueira, produzia o efeito de condensador. Entretanto, a
abundância de vilas não importa forçosamente população considerável. Em
terras de donatários deviam facilitar as fundações o orgulho de poder juntar ao
próprio nome o título de senhor de tais e tais vilas e o interesse de nomear ta-
beliões, etc.
*
Segundo Azevedo Marques as vilas do sertão de São Paulo foram criadas nas seguin-
tes datas, que entretanto precisam de revisão (79):
Mogi das Cruzes..................................................... 3 de setembro de 1611
Parnaíba................................................................... 14 de novembro de 1625
Taubaté.................................................................... 5 de dezembro de 1650
Jacareí....................................................................... 1653
Jundiaí ...................................................................... 14 de dezembro de 1655
Guaratinguetá......................................................... 13 de feevereiro de 1657
Itu ............................................................................. 18 de abril de 1657
Sorocaba.................................................................. 3 de março de 1661
116 J. Capistrano de Abreu
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Já neste tempo, Piratininga não se impunha como entrada única do
planalto: formaram-se grupos conjugados do sertão e da marinha: Parati
e Taubaté; S. Vicente, Santos, São Paulo, Mogi e quiçá Jacareí, que, pelo
menos mais tarde, possuiu ligação direta com o litoral; Iguape,
Paranaguá, São Francisco e Curitiba: esta última, aparentemente desti-
nada a situação preponderante, atraiu pouca população, e medrou pre-
cariamente enquanto não lhe deu vida o comércio de trânsito, principal-
mente de muares, procedentes do Sul.
Um escritor anônimo dizia a respeito dos paulistas pouco depois
de 1690: "Sua Majestade podia se valer dos homens de São Paulo,
fazendo-lhes honras e mercês, que as honras e os interesses facilitam
os homens a todo o perigo, porque são homens capazes para
penetrar todos os sertões, por onde andam continuamente sem mais
sustento que caças do mato, bichos, cobras, lagartos, frutas bravas e
raízes de vários paus, e não lhes é molesto andarem pelos sertões
anos e anos, pelo hábito que têm feito daquela vida. E suposto que
estes paulistas, por alguns casos sucedidos e uns para com outros,
sejam tidos por insolentes, ninguém lhes pode negar que o sertão
todo que temos povoado neste Brasil eles o conquistaram do gentio
bravo que tinha destruído e assolado as vilas de Cairu, Boipeba,
Camamu, Jaguaribe, Maragogipe e Peruaçu no tempo do governador
Afonso Furtado de Mendonça, o que não puderam fazer os mais gover-
nadores antecedentes por mais diligências que fizeram para isso.
"Também se lhes não pode negar que foram os conquistadores dos
Palmares de Pernambuco, e também se podem desenganar que sem os
paulistas com o seu gentio nunca se há de conquistar o gentio bravo que
se tem levantado no Ceará, no Rio Grande e no sertão da Paraíba e Per-
nambuco, porque o gentio bravo por serras, por penhas, por matos, por
catinga só com o gentio manso se há de conquistar e não com algum
outro poder, e dos paulistas se deve valer Sua Majestade para a con-
quista de suas terras."
*
Alexandre de Moura deixou Jerônimo de Albuquerque por capitão-
mor do Maranhão; da capitania subordinada de Cumá encarregou Mar-
tim Soares Moreno; a do Pará, confiada a Francisco Caldeira de Castelo
Capítulos de História Colonial 117
sumário
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Branco, ficaria independente, para evitar novos atritos entre os recentes
rivais. Capitão de entradas elegeu Bento Maciel Parente, reinol criado
em Pernambuco, que estivera nas guerras da Paraíba e Rio Grande, an-
dara na jornada de salitre na Bahia, acompanhara D. Francisco de Sousa
a São Vicente, e lá assistira um triênio empenhado em minas e bandei-
ras, outro de sargento-mor em cinco vilas do Sul.
Faltavam a Jerônimo de Albuquerque alguns requisitos para gover-
nar bem, na opinião insuspeita de Gaspar de Sousa; acusações lhe fize-
ram, bem graves se forem verdadeiras; algumas das recomendações de
Alexandre de Moura parece ter descurado; mostrou-se mais próprio aos
rompantes da guerra que às artes da paz. Faleceu em fevereiro de 618 le-
gando o cargo a seu filho Antônio Albuquerque, assessorado por Bento
Maciel e Diogo da Costa Machado. O jovem de vinte e dois anos
desprezou os limites postos pelo pai à sua autoridade; quando, havendo
preso aquele, o governador-geral impôs-lhe a assistência do segundo,
preferiu retirar-se para o Reino. Substituiu-o no mando desde abril de
619 Diogo Machado; de suas mãos recebeu-o Antônio Muniz Barreiros
em maio de 622, e ocupou-o até agosto de 626.
Durante esta primeira década, Bento Maciel fez diversas entradas
aos rios Mearim e Pindaré, seguindo os exemplos e processos dos ban-
deirantes e construiu um forte no Itapicuru, bastante acima da barra.
Outras entradas fez Francisco de Azevedo, o primeiro a penetrar nos
sertões de Turi e Gurupi. O gentio de Cumá insurgiu-se apenas Martim
Soares saiu para o Reino, urgido por antigas enfermidades. Sob seu
sucessor Matias, irmão de Antônio de Albuquerque, a guarnição por-
tuguesa foi quase toda trucidada, e o levante estendeu-se quase à ponta
de Saparará. A devastação nos índios foi enorme; os jesuítas Manuel
Gomes e Diogo Nunes, convictos da inutilidade de seus esforços em fa-
vor dos indígenas, procuraram as Índias Ocidentais; Fr. Cristóvão de
Lisboa, chefe dos capuchos, viu desrespeitadas as leis mais explícitas e
até as censuras.
No governo de Diogo da Costa Machado chegaram a São Luís al-
gumas centenas de açorianos, engajados para povoadores. Nada encon-
traram feito para recebê-los, e padeceram as maiores privações e
118 J. Capistrano de Abreu
sumário
próxima
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misérias. A imigração, iniciada sob fagueiras esperanças, não recobrou o
alento originário com o livro de propaganda de Simão Estaço da Silveira.
No empenho de criar engenhos, o governo-geral contratou a con-
strução de dois ou três com Antônio Barreiros; a nomeação do filho
para capitão-mor do Maranhão visava facilitar a execução do trato. Um
engenho construiu Bento Maciel. A terra prestava-se bem à cultura da
cana; braços podiam fornecer os índios sujeitos às administrações
usadas nas colônias espanholas e transplantadas por Bento Maciel; a di-
ficuldade grande pendia dos transportes. Ficava próximo Pernambuco, o
maior mercado do país, mas só se navegava para lá durante certa parte
do ano, nas monções; a viagem terrestre pela costa, feita na estação das
águas, para escapar aos tormentos sofridos por Pedro Coelho quando
tentou colonizar o Ceará, apenas poderia servir à passagem de escravos.
Parece ter servido efetivamente: fala um contemporâneo na "grande
quantidade de patacões que os moradores do Maranhão houveram pelo
comércio com os de Pernambuco, enviando-lhes de quando em quando
escravos".
Além da cana plantava-se algodão e fumo; o fio e o pano de al-
godão correram como moeda. Os navios partiam para o Reino em
agosto ou setembro.
As dificuldades de comunicações marítimas entre o Maranhão e o re-
sto do Brasil sugeriram a idéia de criar ali um estado independente. Isto se or-
denou em 621. Começava no Ceará, próximo do cabo de São Roque, e ia à
fronteira setentrional, ainda indefinida, do Pará. Francisco Coelho de Carvalho,
primeiro governador, aportou a Pernambuco ao tempo da invasão holandesa na
Bahia. Deteve-o ali Matias de Albuquerque; depois, sob vários pretextos, foi se
deixando ficar; só em agosto de 26 chegou a seu destino, levando Manuel de
Sousa de Sá, capitão-mor do Pará, declarado agora dependente do Estado do
Maranhão.
Na capitania do Pará, Francisco Caldeira de Castelo Branco, recebido ami-
gavelmente pelo gentio, apanhara o primeiro pretexto para guerreá-lo. A imensi-
dade das águas inspirou-lhe a adaptação de um suplício medieval, que devia parecer
novo e terrível aos rudes filhos da natureza: amarrava o condenado a diversas canoas,
mandava remar em sentidos opostos, até os membros despregarem do tronco. Seu
gênio rixento, já revelado em presença dos franceses, malquistou-o com os compatri-
otas, cansados de aturá-lo, depuseram-no, meteram-no a ferros, e substituíram-
Capítulos de História Colonial 119
sumário
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no por Baltasar Rodrigues em novembro de 618. Nem assim arrefeceu a
sanha dos índios; o movimento de Cumá soldou-se ao do Pará. Teve-se
de reclamar auxílio de Pernambuco; vieram socorros sob as ordenas de
Jerônimo Fragoso, nomeado capitão-mor por D. Luís de Sousa, gover-
nador-geral, com ordem, logo cumprida, de mandar presos Castelo
Branco, Rodrigues e outros cabecilhas. Castelo Branco morreu na prisão
do Limoeiro, em Lisboa.
Bento Maciel, que fora a Pernambuco depois das questões com
Antônio de Albuquerque, voltou com gente nova recrutada nas duas
capitanias vizinhas, e repetiu com maior fúria suas costumadas façanhas.
De Tapuitapera até dentro do Amazonas tamanhas foram suas devas-
tações que Jerônimo Fragoso intimou-lhe cessasse as hostilidades; ele,
porém, desrespeitou a intimação porque, sendo o comandante da guerra
por investidura do governador-geral, não estava subordinado ao capitão-
mor do Pará. Fragoso faleceu logo; houve diversos pretendentes à
sucessão; por fim saiu nomeado Bento Maciel, que abriu um caminho
terrestre para o Maranhão, ligando talvez o rio Capim ao Pindaré, como
se tentou mais tarde, e governou quatro anos, até chegar Manuel de
Sousa de Sá, em 1627.
Francisco Caldeira fora logo à chegada informado de viagens e
fortalezas de ingleses e flamengos nas plagas amazônicas. No próprio
ano da fundação de Belém, Pedro Teixeira aprisionou uma nau holan-
desa, cuja artilharia serviu a reforçar a do Presepe. Os ingleses preferiam
a foz do rio e seu estabelecimento mais ocidental assentava no Cajari; os
flamengos avançaram até o Xingu. Diversas expedições, em que se dist-
inguiram Pedro Teixeira, Pedro da Costa Favela, Feliciano Coelho,
Jácome Raimundo de Noronha tomaram navios, fizeram muitos
prisioneiros e arrasaram um a um todos os fortes. No assalto ao forte
inglês de Filipe, gaba-se Noronha de haver tomado quatro peças de artil-
haria grossa e roqueiras e muitas armas, com a morte de oitenta e três
estrangeiros, o aprisionamento de treze, a destruição de todos os gentios
confederados, "com que ficaram tão aterrorizados que nunca mais
tiveram pazes com os estrangeiros."
A falta de índios amigos, fornecedores de fumo, algodão, urucu
(anoto, em língua cariba) e outras drogas, bastaria a dissuadir os entre-
lopos de novos cometimentos. Veio ainda mais dificultá-los a fortaleza
120 J. Capistrano de Abreu
sumário
próxima
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de Gurupá, estabelecida no local de um antigo forte holandês, no começo
do delta amazônico, excelente posto de observação para todos os movimen-
tos da margem esquerda, obra avançada e complemento precioso do forte
de Presepe na margem direita. O último estabelecimento holandês de que
temos notícia tomou-o Sebastião de Lucena em 1646, no Maiacaré, junto ao
cabo do Norte; os ingleses já havia anos não apareciam. Ficou assim firmada
a soberania de Portugal desde o cabo do Norte até a ponta de Saparará, e
desassombrado de inimigos todo o baixo Amazonas.
No tempo de Francisco Coelho, foi dividido o Estado do Maran-
hão em várias capitanias hereditárias: as de Tapuitapera e Cametá
couberam a um irmão e ao filho do governador, a de Caeté ou Gurupi a
Álvaro de Sousa, filho de Gaspar de Sousa, que tantos serviços prestara
à conquista; para si a metrópole reservou no Maranhão o território entre
o Parnaíba e o Pindaré, no Pará as terras de Maracanã ao Tocantins.
Mais tarde Bento Maciel obteve a capitania do Cabo do Norte limitada
pelos rios Vicente Pinzón ou Oiapoque, Amazonas e Paru, e Antônio de
Sousa de Macedo e da ilha Marajó.
A penetração no Amazonas prosseguia lentamente: pela margem
setentrional tratara-se apenas de eliminar os entrelopos; ao Sul a aldeia
Maturu, na margem direita do Xingu, também chamado Parnaíba, du-
rante algum tempo permaneceu o posto mais ocidental; ante as flechas
envenenadas do gentio do Tapajós estacaram as entradas. A marcha pre-
cipitou-se a partir de 1637 com a chegada de dois leigos franciscanos
vindos do pé dos Andes. Jácome de Noronha, que com certo atropelo
de formas sucedera no governo por falecimento de Francisco Coelho de
Carvalho, resolveu abrir relações com as dependências cisandinas de
Castela. Pedro Teixeira, incumbido desta missão, partiu a 17 de outubro
águas a riba do rio-mar, em 15 de agosto de 38 alcançou o Paiamino,
afluente do Napo, e seguiu para Quito. Depois de receber as ordens do
vice-rei do Peru, regressou e chegou ao Pará em 12 de dezembro do ano
seguinte. Já de volta, a 16 de março de 39, na barra do Aguarico, tomou
posse em nome da coroa de Portugal das terras que para o Oriente se
estendiam até beira-mar. Bento Maciel, então governador do estado, re-
compensou estes e outros serviços durante mais de quatro lustros pre-
stados por seu companheiro de armas, concedendo-lhe por três vidas a
encomendação de trezentos casais de índios.
Capítulos de História Colonial 121
sumário
próxima
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Mal suspeitava então o velho capitão de entradas os perigos que se
avizinhavam. Desde 1637, Gedeon Morris, flamengo preso em combate
no Amazonas e lá conservado prisioneiro durante oito anos, lograra re-
patriar-se e chamava a atenção da câmara de Zelândia para a conquista
do Maranhão. Tal conquista, alegava, traria a aquisição de mais de qua-
trocentas léguas de costa, ocupadas apenas por mil e quatrocentos a mil
e quinhentos portugueses, e quarenta mil índios; os índios estavam sujei-
tos mais por medo que por afeição, os portugueses com as forças dis-
seminadas, os soldados descontentes e rebeldes pelo desgoverno e falta
de pagamento, os fortes pouco defensáveis; os índios considerariam os
flamengos como libertadores. A Companhia das Índias Ocidentais se
apossaria de belos açúcares, fumos, algodão, laranjas, anil, tintas, óleos e
bálsamos, gengibres, gomas e várias sortes de excelentes madeiras.
Poderia vender escravos para Pernambuco "como os portugueses faz-
iam outrora, antes de começar a guerra naquela capitania, e este era o
seu maior negócio".
Quando Morris expunha estas idéias em Middelburg, ocorria na
colônia um fato próprio a facilitar-lhes a execução. Atendendo a repeti-
dos chamados do gentio cearense, a Companhia mandou uma expedição
que desembarcou no Mucuripe, e após brava mas inútil resistência da
guarnição apossou-se do forte fundado por Martim Soares Moreno.
Havia agora um ponto de apoio para as operações apregoadas como tão
proveitosas: Gedeon Morris foi nomeado comandante do Ceará, onde
descobriu as salinas do Ipanema, como que a preparar a avançada.
A notícia da viagem de Pedro Teixeira, apenas divulgada, ainda
mais confirmou-o em suas traças e aspirações. A todas as vantagens
apresentadas, a conquista do Maranhão juntava ainda a da contigüidade
com as terras do Peru, e seria portanto o mais terrível golpe contra as
possessões espanholas, insistia novamente Gedeon. Não foi com-
preendido. Nassau e as autoridades superiores preocupavam-se antes
com a conquista de Buenos Aires e do Chile, procurando longe o que
lhes acenava de tão perto. Só mais tarde atenderam a suas incitações; em
novembro de 641 apresentou-se uma esquadra holandesa na baía de São
Marcos.
Vigorava o estado esquisito criado pela política hesitante de D.
João IV. Não havia guerra, pois fora decidida na Europa uma aliança
122 J. Capistrano de Abreu
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ofensiva e defensiva entre Portugal e Holanda; não havia paz nas
colônias, porque faltava a ratificação do tratado. Iludido ou decrépito ou
aterrado, Bento Maciel entregou-se sem combater e a Companhia das
Índias mais uma vez alargou seus domínios. Morris, que tomou parte na
operação, ficou descontente com o modo de proceder de Nassau. Por
que depois de tomada a ilha não passavam logo ao Pará? Por que não
expulsavam os portugueses ricos deixando apenas os mais pobres como
feitores? Onde se viu em todo o Brasil um português, quatro meses ap-
enas depois de tomada a terra, embarcar por sua conta cem caixas de
açúcar, como fez o provedor-mor Inácio do Rego, que se passou para as
Índias? Que valia a posse do Maranhão sem a incorporação do Amazonas?
Enquanto dominaram, os flamengos houveram-se com a cobiça e a
venalidade já correntes em Pernambuco. Entretanto, a população ca-
lava-se e parecia mesmo disposta a não reagir, se não fossem Antônio
Muniz Barreiros, o antigo capitão-mor, e os jesuítas Benedito Amadeu e
Lopo do Couto, este chegado em companhia de um coadjutor desde
1624. Impeliram a estes chefes insurgentes sobretudo considerações re-
ligiosas: o holandês era o herege e a fé católica perigava. O movimento
começou no Itapicuru, libertado em poucos dias, e passou à ilha. Aqui a
resistência foi maior: vieram socorros de Pernambuco para o flamengo,
também os nossos receberam-nos do Pará, mas a falta de armas e mu-
nições obrigou-os a passarem para a capitania de Tapuitapera, no conti-
nente. Mais tarde, chegados recursos da Bahia, acometeram novamente
a obra libertadora. A Teixeira de Melo, sucessor de Barreiros, morto em
conseqüência de ferimentos, coube a glória de restaurar S. Luís em 1643.
O exemplo do Maranhão propagou-se ao Ceará, onde os índios truci-
daram os holandeses, que entretanto voltaram mais tarde e se man-
tiveram até 1654. Também produziu impressão em Pernambuco, e alentou
os anelos patrióticos ainda desconexos, apontando um exemplo a seguir.
Nos anos seguintes o fato mais notável foi a introdução dos je-
suítas. A Alexandre de Moura acompanharam dois, mas retiraram-se, re-
conhecendo a inutilidade de seus esforços na defesa dos índios. Luís
Figueira, vindo com Antônio Barreiros, logrou apagar as prevenções dos
colonos, limitando e encobrindo a sua ação, e depois de algum tempo
recolheu-se à Europa. Lopo do Couto, além de isolado e portanto impo-
tente, soube conquistar as simpatias no ardor da reconquista, de que foi
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a alma. Figueira, que desde 638 preparava uma missão no além-mar, afi-
nal com muitos sócios partiu do Reino mais Pedro de Albuquerque,
nomeado sucessor de Bento Maciel. Por estarem ainda os holandeses
senhores de S. Luís, passaram ao Pará; junto à baía do Sol, Figueira e a
maior parte dos companheiros afogaram-se ou foram mortos pelos
índios, em junho de 643. Os sobreviventes pouco puderam fazer no
Maranhão para onde se transportaram apenas as condições o permiti-
ram; logo trucidaram-nos selvagens de Itapicuru. Em 1649 não havia
mais um só padre da Companhia de Jesus em todo o estado.
Entretanto, na Europa movia-se o padre Antônio Vieira, grande
valido de Dom João IV e um dos maiores escritores da língua. Pupilo de
Fernão Cardim, colhera dos lábios deste amigo de Anchieta a história
das primeiras missões, e a carreira de missionário formara uma das
primeiras aspirações de sua alma ambiciosa. Mandado para o Reino
quando se divulgou na Bahia a notícia da independência de Portugal,
passara dez anos em terras européias por vontade da Companhia ou in-
sistência do rei, triunfando na tribuna sagrada, ajudando as mais espin-
hosas negociações diplomáticas, engenhando combinações financeiras
como a da Companhia do Comércio, tão útil na guerra pela libertação de
Pernambuco, influindo nos conselhos da Coroa, dando idéias e defen-
dendo as próprias ou alheias, estas principalmente com uma abundância
de expressões, uma sutileza de raciocínios, um bizantinismo de argu-
mentos, uma fertilidade de distinções verdadeiramente admiráveis. Um
dia apareceu-lhe o vácuo de todas estas pompas, invadiu-o a saudade da
primeira infância e da segunda pátria e aspirou missionar no Maranhão.
Em setembro de 652 partiram adiante nove missionários, trazendo
por superior o padre Francisco Veloso: dois destes continuaram a
viagem para o Pará, onde fundaram casa. Em seguida à primeira leva
embarcou no Tejo o padre Vieira acompanhado de outros três jesuítas,
que a 16 de janeiro de 53, véspera de S. Antão, fundearam diante da
capital do estado. Afinal chegavam defensores aos índios. Para que narrar
esta história? Com os índios só havia duas políticas racionais: ou deixá-los
aprisionar à vontade como então se fazia, ou proibir expressamente toda e
qualquer escravidão. Nenhuma das duas observaram quer o governo, quer
os próprios jesuítas. Daí lutas contra os colonos cobiçosos, contra os
governadores venais, contra padres e frades simoníacos, contra os legis-
124 J. Capistrano de Abreu
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ladores incoerentes e a legislação instável, viagens pelo sertão e rios,
travessias do oceano, sermões cáusticos, papéis sediciosos, expulsões
e exprobações, em suma uma série de tumultos trágicos ou burle-
scos. Mais interessa que tais historietas apresentar o organismo do
estado cerca de 1662, tal qual o disseca o valente escritor em uma
página memorável, ainda palpitante no pálido resumo aqui feito.
"Os alicerces assentaram sobre sangue, com sangue se foi amas-
sando e ligando o edifício e as pedras se desfazem, separam e arruínam.
As terras se esterilizam; as plantações de mandioca não bastam para gar-
antir o sustento; tem-se de buscar longe as madeiras e as terras de
tabaco; minguaram a caça e a pesca; as povoações são muito distantes
umas das outras e o trabalho de remar consome as forças da indiada.
Não há açougue, nem ribeira, nem horta, nem tenda para vender as
cousas usuais para o comer ordinário, nem ainda uma arrátel de açúcar,
com se fazer na terra. No Pará, onde todos os caminhos são por água,
não há uma canoa de aluguel. Para um homem ter o pão da terra há de
ter roça, e para comer carne há de ter caçador, e para comer peixe, pes-
cador, e para vestir roupa lavada, lavadeira, e para ir à missa ou a
qualquer parte, canoas e remeiros: os moradores de mais cabedal têm a
mais de tudo isto costureiras, fiandeiras, rendeiras, teares e outros instru-
mentos e ofícios de mais fábrica, com que cada família vem a ser uma
república.
"Os povoadores primeiros foram gente pobre: soldados idos de
Pernambuco, mal pagos a ponto de raros poderem calçar sapatos e
meias; ilhéus nobres, mas gente necessitada, impelida à emigração pela
procura de meios não existentes no arquipélago; soldados rotos e
despedidos tomados na guerra e abandonados nas costas pelos holandeses;
finalmente degradados.
"Não guarda proporção com a população o número de frades: o Pará,
com oitenta moradores, tem quatro conventos e sai dos moradores a paga
de missas, ofícios e enterros, servem grande número de confrarias com
grandes e involuntários gastos nas suas festas, porque, sem serem per-
guntados, se ouvem apregoar dos púlpitos e não basta o que granjeiam
num ano para satisfazer os empenhos desta forçada devoção. Apenas a
Companhia de Jesus não pesa sobre a gente, porque a renda concedida
pela fazenda real a põe a coberto das necessidades.
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"As drogas do estado baixaram de preço, e mal bastam para pa-
gar os fretes; em compensação os gêneros vindos da Europa ven-
dem-se por preços excessivos. Dominam a ociosidade, a preguiça e o
luxo; grassa o alcoolismo; só na cidade do Pará gastam anualmente
quinze mil cruzados em aguardente da terra, sem falar na que vai do
Reino. Os governadores e oficiais de fazenda pagam-se em primeiro
lugar, pouco deixando para os vigários e soldados; confiam os mel-
hores ofícios aos criados; prendem, processam, recrutam, atravessam
os gêneros.
"Finalmente os índios, por sua natural fraqueza e pelo ócio, des-
canso e liberdade em que se criam, não são capazes de aturar por muito
tempo o trabalho em que os portugueses os fazem servir, principal-
mente das canas, engenhos e tabacos, sendo muitos os que por esta
causa continuamente estão morrendo; e como nas suas vidas consiste
toda a riqueza e remédio dos moradores, é mui ordinário virem a cair
em pouco tempo em grande pobreza os que se tinham por mais ricos e
afazendados, porque a fazenda não consiste nas terras que são comuns
senão nos frutos da indústria com que cada um os fabrica e de que são
os únicos instrumentos os braços dos índios." -- Até aqui Antônio
Vieira, com esta vívida descrição da economia naturista.
Excetuando a de Bartolomeu Barreiros de Ataíde ao rio de Ouro,
isto é, às terras de que Pedro Teixeira tomara posse em nome da coroa
de Portugal, e a de João Betencourt Muniz contra os anibás do Jari, as
expedições tinham de preferência procurado a margem direita do Ama-
zonas. Em 1663 Antônio Arnau Vilela dirigiu-se à outra margem e foi
pouco feliz numa entrada do rio Urubu; a vingá-lo saiu Pedro da Costa
Favela, que matou setecentos, aprisionou quatrocentos índios dos
guaneenas e caboquenas, queimou trezentas aldeias. Atrás destes vieram
outros, atraídos pela densidade da indiada. Logo em seguida começou a
ser freqüentado o rio Negro e finalmente o Branco. A fortaleza da barra
do rio Negro, nas proximidades da atual cidade de Manaus, ponto de
partida para este movimento de penetração, foi fundada logo depois.
No ano de 1693 foram determinados os territórios em que cada
uma das ordens poderia estabelecer missões: aos jesuítas concedeu-se a
margem meridional do Amazonas; aos franciscanos as terras de cabo do
Norte até o rio Urubu; aos carmelitas coube o rio Negro.
126 J. Capistrano de Abreu
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Entrementes os jesuítas espanhóis no seu ardor de catequizar
foram descendo o Solimões, como os do Paraguai procuraram o Parana-
panema, Ivaí, Iguaçu e Uruguai. Samuel Fritz, natural da Boêmia, atraiu
ao grêmio da igreja diversas tribos de línguas travadas, e os cambebas ou
omagoas da língua geral, missionando até o Juruá ou talvez mais a este.
Motivos de saúde levaram-no ao Pará em setembro de 1689, onde sob
vários pretextos o detiveram cerca de dois anos. Na volta, apesar de suas
escusas, deram-lhe uma escolta para acompanhá-lo às reduções e, lá
chegado, o oficial comandante protestou pertencerem a Portugal as ter-
ras que se estendiam até o rio Napo. Enquanto o apóstolo dos mainas
se dirigia a Lima, no intuito de avisar da próxima usurpação ao vice-rei
do Peru, que não quis tomar providências, desde 1695 se discutia no
Pará e em Lisboa a idéia de aumentar o domínio português por aqueles
lados. Forneceu ensejo próprio o caso da sucessão da Espanha.
Inácio Correia de Oliveira expulsou os jesuítas castelhanos do
Solimões. Assim a guerra entre as duas coroas produziu ao norte os
mesmos efeitos que de sua união resultaram em Guairá, Uruguai e Tape.
A estas invasões e às seguintes uniram-se os frades do Carmo, dignos
confrades dos capuchos das bandeiras meridionais. Nestas missões
aprenderam os invasores o emprego do caucho.
As entradas pelos afluentes da margem direita iam também con-
tinuando: em 1669 Gonçalo Pires e Manuel Brandão descobrem cravo,
canela e castanha no Tocantins; em 1716 João de Barros Guerra derrota
os torás no Madeira; em 1720 marcha uma expedição contra os juínas
do Juruá; em 1724 Francisco de Melo Palheta sobe o Madeira até as al-
deias espanholas. Com o descobrimento das minas, procura-se chegar a
elas pelos afluentes meridionais. Mais de uma das tentativas foi bem
sucedida e o Maranhão reclamou como pertencentes a seu distrito as
minas de S. Félix e da Natividade, ribeirinhas do Tocantins. Desde a ter-
ceira década do século XVIII descem ao Amazonas mineiros de Goiás e
Mato Grosso. Destas descidas a mais fértil em conseqüências foi a de
Manuel Félix de Lima, que em 1742 navegou o Sararé, Guaporé,
Mamoré, Madeira e alcançou o Maranhão. Quando o governador de
Mato Grosso assentou a capital na margem do Guaporé apenas tirou a
conseqüência do achamento deste caminho, que com o tempo se tornou
o mais freqüentado.
Capítulos de História Colonial 127
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Lentamente a população ia crescendo, embora epidemias freqüen-
tes inutilizassem em poucos meses o progresso de anos. Como sinais
evidentes de melhores condições, basta citar a fundação de um pesqueiro
real em 1692 na ilha de Marajó, por Antônio de Albuquerque Coelho, e o
desenvolvimento assumido pela criação de gado na mesma ilha, a partir dos
primeiros anos do século seguinte. Na Páscoa de 1726 começou a funcionar
um açougue em Belém. Quando La Condamine passou por Belém em 743
a única moeda corrente eram grãos de cacau; desde maio de 1749 prin-
cipiou a correr dinheiro amoedado de ouro, prata e cobre.
Em 1751, o Pará, a que agora estava subordinado o Maranhão,
contava nove freguesias e seis ermidas paroquiais, sete fortalezas, vinte e
quatro engenhos de açúcar, quarenta e duas engenhocas de aguardente,
sessenta e três aldeias de índios missionados. Muitas medidas concertou
o governo para desenvolver a agricultura, mas só o conseguiu nas cer-
canias de Belém. O café, levado de Caiena por Francisco de Melo Pal-
heta, pareceu despertar o torpor da população. Pouco tempo durou a
experiência; preferiu-se a apanha de produtos florestais, cravo, canela,
cacau, salsa, mais rendosos e criados à lei da natureza.
Os anos seguintes à partida de Antônio Vieira para a Europa em
1661 assinalam-se pela legislação caótica a respeito de aldeias, jurisdição
espiritual e temporal, descimentos, salários e escravidão dos índios. Em
1680 uma lei proibiu que os índios fossem escravizados, única solução
lógica e justa, se houvesse gente bastante honesta e bastante enérgica
para fazê-la respeitada.
Para mitigar as queixas dos colonos criou-se uma companhia de
comércio com o privilégio de vender certos gêneros de primeira ne-
cessidade, que compraria toda a produção do estado e forneceria
escravos africanos, mais fortes e mais próprios para a pesada labuta
agrícola.
Pouca repugnância provocou no Pará, cujos interesses, em parte
divergentes, a distância resguardava; no Maranhão produziu grande al-
boroto. Foram expulsos os jesuítas, deposto e preso o capitão-mor,
mandados procuradores à Corte para apresentar as queixas do povo e
impetrar o perdão régio. Manuel Bequimão, reinol de origem teutônica,
primeira figura da assuada, pôs-se à frente da governança. O movimento
iniciado com tamanha valentia ficou estacionário; nem a fronteira capi-
128 J. Capistrano de Abreu
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tania de Tapuitapera aderiu; dos aderentes da primeira hora, muitos
foram-se esgueirando.
Nota-se agora o caso repetido tantas vezes em nossa História: de-
pois do triunfo, obtido antes por desídia ou pusilanimidade do atacado
que por habilidade ou fortaleza do atacante, e só depois do triunfo com-
prado tão barato, compreende-se que o fato importa conseqüências, e
começa-se a indagação de quais poderão ser. Desta mandrice intelectual
ou miopia política não se eximiu Bequimão. Quando apareceu na barra
Gomes Freire de Andrada, nomeado governador do Estado e acompan-
hado de força armada para se fazer obedecido, veio-lhe a veleidade de
opor-se ao desembarque. Nada previra, nada preparara, agora era tarde.
O governador empossou-se do poder sem oposição.
Restava a esperança de ter trazido o perdão régio; mesmo este não
veio. Prestes instaurou-se o processo, e saíram condenados à morte
Manuel Bequimão, Jorge de Sampaio e Deiró. Este padeceu o suplício
em efígie; os outros subiram ao patíbulo. Com os figurantes o gover-
nador mostrou benevolência: de bondoso e benévolo deixou tradição entre
os governadores. Por seu conselho aboliram-se a companhia e o estanco; a
questão índia prosseguiu com os avanços, recuos e sobressaltos do costume.
Durante seu governo preocupou-o a questão máxima do estado:
achar comunicações com o Brasil, independente do capricho das
monções, sobranceira à linha dos vaus à beira-mar.
Poucos anos antes Vital Maciel Parente, filho do velho prisioneiro
dos flamengos, depois de derrotar os tremembés, desafrontando o
caminho da praia para o Ceará, navegara muitas léguas pelo Parnaíba e
reconhecera a direção meridional de seu curso. Deve manar daí a idéia
da proximidade senão identidade entre o Parnaíba ou Paraguaçu e o São
Francisco. Assim a questão apresentava-se com certa nitidez: a Bahia
representava o objetivo e o Parnaíba o rumo a seguir.
João Velho do Vale incumbido de resolver o problema levou-o a bom
termo; escreveu mesmo a narrativa do descobrimento, entregue mais tarde a
Gomes Freire, no Reino, livro hoje extraviado ou perdido, e muito impor-
tante para a etnografia e história pátria, a julgar pelas indicações ligeiras, for-
necidas por Fr. Domingos Teixeira, biógrafo do governador:
"Depois de dar em larga relação notícia exata dos sertões que pene-
trou, rios, e nações várias que os habitam, sinalando pelos graus as al-
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turas do pólo, mais gasto do trabalho, que dos anos, veio a acabar [João
Velho do Vale] em benefício da pátria, com serviços maiores que a gra-
tidão. Descansam suas cinzas em jazigo humilde na cidade de São Salva-
dor, onde veio consumar com último termo seus trabalhos com mais
honra que interesse."
Vale fez duas viagens. Na primeira chegou à serra de Ibiapaba,
onde deixou três estradas; da segunda alcançou a Bahia, naturalmente
partindo da mesma serra, o que indica traçado bastante oriental, talvez
pelas ribeiras do Poti e contravertentes do rio São Francisco, Cabrobó,
Ibó e Jeromoabo.
É impossível decidir-se se a esta ou a outra estrada se refere uma carta
de Antônio Albuquerque, sucessor de Gomes Freire, escrita em julho de
1694 e entregue na Bahia a D. João de Lencastro, governador-geral, em 19
de abril do ano seguinte. Dois dias depois chegava à mesma cidade o sar-
gento-mor Francisco dos Santos com quatro soldados e vinte índios, que
tinham acabado de descobrir o caminho, trazendo uma carta de Antônio de
Albuquerque datada de 15 de dezembro. Para retribuir a fineza e ver se po-
dia encurtar o caminho, o governador-geral mandou o capitão André Lopes
ao Maranhão, com carta para Antônio de Albuquerque datada de 21 de
maio. André Lopes alcançou a capital do estado em novembro mas teve de
esperar pela volta de Antônio de Albuquerque, ido ao Pará. Com resposta
de 15 de março de 1696 estava na Bahia em 22 de setembro.
O trecho mais difícil a vencer ficava no Maranhão propriamente
dito: nos rios Piauí e Canindé, nas ribeiras do Ceará, a uma e outra
margem do São Francisco já abundavam fazendas de gado e deviam ex-
istir numerosas vias de comunicação. Com o gado desta procedência po-
voaram-se os sertões de Pastos Bons, cujas transações durante algum
tempo se fizeram só com a Bahia, exatamente como as de Pernambuco
a montante de Paulo Afonso.
Mais tarde o Padre Malagrida levou a categuese até o rio Codó; seu
sucessor João Ferreira fundou as Aldeias Altas, hoje Caxias. Conhecida a
pequena distância neste trecho entre o Itapicuru e o Parnaíba começou a ser
preferida esta passagem. Já em 1747 dela se servia D. Manuel da Cruz,
trasladado do sólio do Maranhão para o de Mariana.
Maranhão começou a decair desde ou antes do governo de Gomes
Freire, e explica-se o fato pelo abandono da agricultura, devido a pro-
130 J. Capistrano de Abreu
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dutos florestais semelhantes aos do Pará. Ao cravo, à canela, à castanha
sucumbiram os engenhos.
"Erigiram cerca de cinqüenta engenhos", escrevia um contem-
porâneo em 1703, "que fabricaram enquanto se não descobriu o cravo e
cacau, total ruína daqueles homens, como causa de ócio com que todos
deixaram perder a fábrica de tabaco e açúcar em que se iam aumen-
tando... Terrível é a dificuldade que têm os senhores-de-engenho em
acomodar a conveniência de seus lavradores, em quem também é im-
praticável o querer lavrar canas; uns e outros confessam esta pela mel-
hor conveniência, clamando que por falta dela estão miseráveis e que
quando dela usavam viviam prósperos; porém, não há remédio ajus-
tarem-se; os lavradores com justa causa queixosos e teimosos com
notável sem-razão; os senhores-de-engenho tiranos de suas próprias
consciências: esta desunião é capaz de impedir a fábrica dos engenhos e
não o é menos outro erro a que aqueles homens estão amarrados, quer-
endo fabricar tudo o que gastam, como são lenhas, cinzas, azeites, farin-
has, tabuados e canoas, em cuja fábrica divertindo a gente dos engenhos
lhes não fica lugar de fabricar açúcar."
Informando este papel, acrescentava Antônio de Albuquerque:
como estejam só com o sentido no sertão, feitos hidrópicos do gentio
que só apetecem e procuram por único remédio, não tratam de se dis-
porem a outro algum meneio.
Em 1751 a capitania contava oito freguesias, cinco engenhos de
açúcar, duzentas e três fazendas a criar gado, das quais quarenta e quatro
em Pastos Bons e trinta e cinco em Aldeias Altas.
As questões de limites com a Espanha, não menos que a importân-
cia crescente do Pará, foram causa da metrópole declarar-lhe subordi-
nado o Maranhão e transferir para a bacia do Amazonas a capital do
estado. Breve, porém, graças à cultura do algodão e do arroz, à intro-
dução de escravos africanos e à intervenção de nova companhia de
comércio, abriu-se uma era de prosperidade relativa, muito inferior en-
tretanto a seus imensos recursos naturais.
*
Os engenhos de açúcar, as roças de fumo e mantimentos cabiam
dentro de uma área traçada pelo custo de transporte dos produtos. Além
Capítulos de História Colonial 131
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de certo raio vegetava-se indefinidamente, a prosperidade real nunca bafe-
jaria o proprietário. Com a economia naturista, o equívoco podia prolongar-
se por muito tempo, mas por fim patenteava-se que só próximo do mar ou
no pequeno trecho dos rios navegáveis graças à ausência de corredeiras e
saltos, a labuta agrícola encontrava remuneração satisfatória. Queixam-se os
primeiros cronistas de andarem os contemporâneos arranhando a areia das
costas como caranguejos, em vez de atirarem-se ao interior. Fazê-lo seria
fácil em São Paulo, onde a caçada humana e desumana atraía e ocupava
a atividade geral, na Amazônia toda cortada de rios caudalosos e desim-
pedidos, com preciosos produtos vegetais, extraídos sem cultura. Nas
outras zonas interiores o problema pedia solução diversa.
A solução foi o gado vacum.
O gado vacum dispensava a proximidade da praia, pois como as
vítimas dos bandeirantes a si próprio transportava das maiores distân-
cias, e ainda com mais comodidade; dava-se bem nas regiões impróprias
ao cultivo da cana, quer pela ingratidão do solo, quer pela pobreza das
matas sem as quais as fornalhas não podiam laborar; pedia pessoal dimi-
nuto, sem traquejamento especial, consideração de alta valia num país de
população rala; quase abolia capitais, capital fixo e circulante a um
tempo, multiplicando-se sem interstício; fornecia alimentação constante,
superior aos mariscos, aos peixes e outros bichos de terra e água, usados
na marinha. De tudo pagava-se apenas em sal; forneciam suficiente sal
os numerosos barreiros dos sertões.
A criação de gado primeiro se desenvolveu nas cercanias da cidade
do Salvador; a conquista de Sergipe estendeu-se à margem direita do São
Francisco. Na outra margem veio dar menos forte e menos acelerado
movimento idêntico partido de Pernambuco. Ao romper a guerra holan-
desa estavam inçadas de gado as duas bandas do rio em seu curso infe-
rior. Nem por outro motivo as incorporou Maurício de Nassau ao ter-
ritório da Companhia das Índias Ocidentais, e os patriotas da liberdade
divina com tanto afinco as defenderam.
Foi o gado acompanhando o curso do São Francisco. O povoado
maior, a Bahia, atraiu todo o da margem meridional, que para lá ia por
um caminho paralelo à praia, limitado pela linha dos vaus.
Mais tarde, à medida que a criação se afastou do litoral, outros
caminhos se tornaram necessários. Um dos mais antigos passava por
132 J. Capistrano de Abreu
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Pombal no Itapicuru, Jeremoabo no Vasabarris, e atingindo o São Fran-
cisco acima da região encachoeirada, chamou o gado da outra margem.
Esta, pertencente a Pernambuco por todos os títulos, ficou de fato
baiana, foi povoada por baianos, e como o chapadão do São Francisco
se estreita depois da grande volta, onde ao contrário atinge sua maior
expansão o do Parnaíba, consumou-se aqui a passagem de um para o
outro, e encontraram-se os baianos com a gente vinda do Maranhão. O
riacho do Terra Nova e o do Brígida facilitaram a marcha para o Ceará.
Pelo do Pontal e pela serra dos Dois Irmãos passaram os caminhos do
Piauí. Nem o Parnaíba teve poder para conter a onda invasora: Pastos
Bons foi povoado por baianos, e até meados do século XVIII teve
comunicações exclusivamente com a Bahia.
Na margem pernambucana do rio S. Francisco possuía duzentas e
sessenta léguas de testada a Casa da Torre, fundada por Garcia d’Ávila,
protegido de Tomé de Sousa, a qual entre o São Francisco e Parnaíba
senhoreava mais oitenta léguas. Para adquirir estas propriedades imen-
sas, gastou apenas papel e tinta em requerimentos de sesmarias. Como
seus gados não davam para encher tamanhas extensões, arrendava sítios,
geralmente de uma légua, à razão de 10$ por ano, no princípio do século
XVIII. Um de tais rendeiros, Domingos Afonso, por alcunha o Sertão,
partindo de um dos muitos sobrados existentes no São Francisco,
aos quais se dá este nome por causa de vagamente semelharem um
edifício, fundou numerosas e importantes fazendas nos rios Piauí e
Canindé, legadas por sua morte à Companhia de Jesus, a quem a
Coroa as confiscou em proveito próprio, por ocasião de suprimir a
Ordem.
Por esta margem do São Francisco existiam numerosas tribos
indígenas, a maior pertencente ao tronco cariri, algumas caribas como os
pimenteiras, e até tupis como os amoipiras. Com elas houve guerras, ou
por não quererem ceder pacificamente as suas terras, ou por preten-
derem desfrutar os gados contra a vontade dos donos. Estes conflitos
foram menos sanguinolentos que os antigos: a criação de gado não precis-
ava de tantos braços como a lavoura, nem reclamava o mesmo esforço, nem
provocava a mesma repugnância; além disso abundavam terras devolutas
para onde os índios podiam emigrar. Entretanto, muitos foram escravi-
zados, refugiaram-se outros em aldeias dirigidas por missionários,
Capítulos de História Colonial 133
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acostaram-se outros à sombra de homens poderosos, cujas lutas
esposaram e cujos ódios serviram.
Resistiram bastante os índios do Pajeú, mas em tempo de D. João
de Lencastro e por sua ordem Manuel de Araújo de Carvalho atacou-os.
Simultaneamente penetrava da Paraíba Teodósio de Oliveira Ledo.
Graças aos esforços dos dois, ficaram pacificados os sertões de Pajeú,
Piancó e Piranhas. Parte deles abriu comunicações com Pernambuco,
para onde mandava seus gados. Pajeú, apesar da proximidade, só fez isto
em começos do século XIX; até então gravitava para a Bahia.
Ao compasso do afastamento do gado, novas passagens e novos
caminhos iam sendo trilhados. Basta citar o de Jacobinas e a passagem
do Juazeiro, pelo qual pautou-se uma estrada de ferro. Com o cre-
scimento de Cachoeira e o impulso do plantio de fumo, abriu-se um
ramal importante em busca do baixo Paraguaçu.
A margem baiana do São Francisco criou em não menor quanti-
dade, embora no terreno cortado de serras e nas matas litorâneas ou
ribeirinhas se conservasse numerosa população indígena, sempre dis-
posta a salteios. As bandeiras de Arzão e Estêvão Parente e outras en-
fraqueceram, mas não extinguiram a resistência do gentio, e anos depois
guerreava-se ainda nas cabeceiras do rio de Contas, Pardo, etc. O grande
proprietário desta banda chamava-se Antônio Guedes de Brito, com
cento e sessenta léguas, contadas do morro do Chapéu até águas do rio
das Velhas. Merecem também ser mencionados João Peixoto Viegas,
que incorporou as terras do alto do Paraguaçu; Matias Cardoso e
Figueira, conquistadores paulistas, estabelecidos em situações muito
próprias a favorecerem o tráfego com São Paulo. Os caminhos destes
lados entroncaram primeiramente nos que pela margem esquerda do rio
São Francisco demandavam o chapadão do Parnaíba; só mais tarde o
Paraguaçu foi procurado desde o curso superior e seguido até
Cachoeira, perto da barra.
Os primeiros ocupadores do sertão passaram vida bem apertada;
não eram os donos das sesmarias, mas escravos ou prepostos. Carne e
leite havia em abundância, mas isto apenas. A farinha, único alimento
em que o povo tem confiança, faltou-lhes a princípio por julgarem im-
própria a terra à plantação da mandioca, não por defeito do solo, pela
falta de chuva durante a maior parte do ano. O milho, a não ser verde,
134 J. Capistrano de Abreu
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afugentava pelo penoso do preparo naqueles distritos estranhos ao uso
do monjolo. As frutas mais silvestres, as qualidades de mel menos
saborosas eram devoradas com avidez. Pode-se apanhar muitos fatos da
vida daqueles sertanejos dizendo que atravessaram a época do couro. De
couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e mais
tarde a cama para os partos; de couro todas as cordas, a borracha para
carregar água, o mocó ou alforje para levar comida, a maca para guardar
roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagem, as
bainhas de faca, as bruacas e surrões, a roupa de entrar no mato, os
bangüês para curtume ou para apurar sal; para os açudes, o material de
aterro era levado em couros puxados por juntas de bois que calcavam a
terra com seu peso; em couro pisava-se tabaco para o nariz.
Adquirida a terra para uma fazenda, o trabalho primeiro era acostu-
mar o gado ao novo pasto, o que exigia algum tempo e bastante gente;
depois ficava tudo entregue ao vaqueiro. A este cabia amansar e ferrar
os bezerros, curá-los das bicheiras, queimar os campos alternadamente
na estação apropriada, extinguir onças, cobras e morcegos, conhecer as
malhadas escolhidas pelo gado para ruminar gregariamente, abrir cacim-
bas e bebedouros. Para cumprir bem com seu ofício vaqueiral, escreve um
observador, deixa poucas noites de dormir nos campos, ou ao menos as
madrugadas não o acham em casa, especialmente de inverno, sem atender
às maiores chuvas e trovoadas, porque nesta ocasião costuma nascer a
maior parte dos bezerros e pode nas malhadas observar o gado antes de
espalhar-se ao romper do dia, como costumam, marcar as vacas que estão
próximas a ser mães e trazê-las quase como à vista, para que parindo não
escondam os filhos de forma que fiquem bravos ou morram de varejeiras.
Depois de quatro ou cinco anos de serviço, começava o vaqueiro a
ser pago; de quatro crias cabia-lhe uma; podia assim fundar fazenda por
sua conta. Desde começos do século XVIII, as sesmarias tinham sido
limitadas ao máximo de três léguas separadas por uma devoluta. A gente
dos sertões da Bahia, Pernambuco, Ceará, informa o autor anônimo do
admirável Roteiro do Maranhão a Goiás, tem pelo exercício nas fazendas de
gado tal inclinação que procura com empenhos ser nela ocupada, con-
sistindo toda a sua maior felicidade em merecer algum dia o nome de
vaqueiro. Vaqueiro, criador ou homem da fazenda, são títulos honorífi-
cos entre eles.
Capítulos de História Colonial 135
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As boiadas procuravam os maiores centros de população, isto é, as
capitais da Bahia e Pernambuco.
Sobre as que iam para a Bahia escreve o seguinte André João An-
tonil, anagrama do benemérito jesuíta João Antônio Andreoni:
"Constam as boiadas que ordinariamente vêm para a Bahia, de
cem, cento e cinqüenta, duzentas e trezentas cabeças de gado; e destas
quase cada semana chegam algumas a Capoame, lugar distante da cidade
oito léguas, aonde tem pasto e aonde os marchantes as compram: e em
alguns tempos do ano há semanas em que cada dia chegam boiadas. Os
que as trazem são brancos, mulatos e pretos, e também índios que com
este trabalho procuram ter algum lucro. Guiam-se indo uns adiante can-
tando, para serem desta sorte seguidos do gado; e outros vêm atrás das
reses tangendo-as e tendo cuidado que não saiam do caminho e se
amontem. As jornadas são de quatro, cinco e seis léguas, conforme a co-
modidade dos pastos aonde hão de parar. Porém, aonde há falta de
água, seguem o caminho de quinze, e vinte léguas, marchando de dia e
de noite, com pouco descanso, até que achem paragem aonde possam
parar. Nas passagens de alguns rios, um dos que guiam a boiada, pondo
uma armação de boi na cabeça e nadando, mostra às reses ou vau por
onde hão de passar."
Por maior cuidado na condução das boiadas, transviavam-se algu-
mas reses, outras por fracas ficavam incapazes de continuar a marcha.
Contando com isso, alguns moradores se estabeleceram nos caminhos e
por pouco preço compravam este gado depreciado que mais tarde
cediam em boas condições. Além disso, faziam uma pequena lavoura,
cujas sobras vendiam aos transeuntes; alguns, graças aos conhecimentos
locais, melhoraram e encurtaram as estradas; fizeram açudes, plantaram
canas, proporcionavam ao sertanejo uma de suas alegrias, a rapadura.
No rio São Francisco, desde a barra do Salitre até São Romão, descobri-
ram-se jazidas de sal na extensão de três graus geográficos, que
preparado com algum trabalho provou excelente. Graças a estas circun-
stâncias, formou-se no trajeto do gado uma população relativamente
densa, tão densa como só houve igual depois de descobertas as minas,
nas cercanias do Rio.
Perdeu assim os terrores a viagem do sertão, e cerca de 1690 havia
antes motivos a aconselhá-la. Um contemporâneo muito bem infor-
136 J. Capistrano de Abreu
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mado fala no preço altíssimo dos gêneros estrangeiros, na depreciação
dos frutos da terra, na menor feracidade do solo em conseqüência do
cansaço, nas limitações impostas à cultura do tabaco, "gênero fabricado
por pretos, por brancos, por forros, por cativos, por ricos, por pobres,
de que todos em sua qualidade se alimentavam e vestiam", nos excessos
do contrato do sal, na prepotência da magistratura, na dificuldade de co-
brar dívidas, no desenvolvimento anormal da mão-morta. "Das fazen-
das, terras, lavouras e propriedades possuídas das religiões nem Sua Ma-
jestade tem tributos, nem subsídio, nem ainda dízimos, nem as mis-
ericórdias, nem os hospitais, nem as sés, matrizes e mais igrejas, nem as
confrarias e irmandades, nem as pobres órfãs e viúvas têm esmola al-
guma; só são úteis às religiões que as possuem e não a outra pessoa al-
guma... Anualmente vão indo às religiões muitas propriedades, terras e
fazendas, ou por compra, ou por deixa, ou por herança, ou por de-
manda de pretensões de sessenta, setenta, oitenta, noventa e cem anos,
as quais em poder dos vassalos seculares eram sujeitas a dízimos, tribu-
tos e mais pensões e incorporadas em religiões logo ficam isentas, e o
pior é que aquele tanto ou quanto que pagavam de fintas, tributos, sub-
sídios e outros impostos, tornam a cair sobre os miseráveis seculares."
Desvanecidos os terrores da viagem ao sertão, alguns homens mais
resolutos levaram família para as fazendas, temporária ou definiti-
vamente e as condições de vida melhoraram; casas sólidas, espaçosas, de
alpendre hospitaleiro, currais de mourões por cima dos quais se podia
passear, bolandeiras para o preparo da farinha, teares modestos para o
fabrico de redes ou pano grosseiro, açudes, engenhocas para preparar a
rapadura, capelas e até capelães, cavalos de estimação, negros africanos,
não como fator econômico, mas como elemento de magnificência e
fausto, apresentaram-se gradualmente como sinais de abastança.
Se a Bahia ocupava os sertões de dentro, escoavam-se para Per-
nambuco os sertões de fora, começando de Borborema e alcançando o
Ceará, onde confluíam as correntes baiana e pernambucana. A estrada
que partia da ribeira do Acaracu atravessava a do Jaguaribe, procurava o
alto Piranhas e por Pombal, Patos, Campina Grande, bifurcava-se o
Paraíba e Capibaribe, avantajava-se a toda região. Também no alto Pira-
nhas confluíram o movimento baiano e o movimento pernambucano,
como já fica indicado.
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Sobre a extensão de terras ocupadas pelo gado vacum oferece-nos
dados positivos o maravilhoso Antonil-Andreoni: "Estende-se o sertão
da Bahia até a barra do rio São Francisco, oitenta léguas por costa; e
indo para o rio acima até a barra que chamam de Água Grande, fica dis-
tante a Bahia da dita barra cento e quinze léguas; de Santunse, cento e
trinta léguas; de Rodelas, por dentro, oitenta léguas; das Jacobinas,
noventa, e do Tucano cinqüenta... Os currais da parte da Bahia estão
postos na borda do rio de São Francisco, na do rio das Velhas, na do rio
das Rãs, na do rio Verde, na do rio Paramirim, na do rio Jacuípe, na do
rio Ipojuca, na do rio Inhambupe, na do rio Itapicuru, na do rio Real, na
do rio Vasabarris, na do rio Sergipe e de outros rios, em os quais, por in-
formação tomada de vários, que correram este sertão, estão atualmente
mais de quinhentos currais...
"E posto que sejam muitos os currais da parte da Bahia chegam a
muito maior número os de Pernambuco, cujo sertão se estende pela
costa, desde a cidade de Olinda até o rio de São Francisco, oitenta
léguas; e continuando da barra do rio de São Francisco até a barra do rio
Iguaçu, contam-se duzentas léguas. De Olinda para oeste até o Piagui,
freguesia de Nossa Senhora da Vitória, cento e sessenta léguas, e pela
parte do norte estende-se de Olinda até o Ceará-Mirim, oitenta léguas, e
daí até o Açu trinta e cinco, e até o Ceará Grande, oitenta; e por todas
vêm a estender-se desde Olinda até esta parte, quase duzentas léguas...
"Os currais desta parte hão de passar de oitocentos; e de todos
estes vão boiadas para o Recife e Olinda e suas vilas para o for-
necimento das fábricas dos engenhos desde o rio de São Francisco até o
rio Grande: tirando os que acima estão nomeados desde o Piagui, até a
barra de Iguaçu e de Paranaguá e rio Preto: porque as boiadas destes
rios vão quase todas para a Bahia, por lhes ficar melhor caminho pelas
Jacobinas, por onde passam e descansam...
"As [cabeças de gado] da parte da Bahia se tem por certo que pas-
sam de meio milhão, e mais de oitocentas mil hão de ser as da parte de
Pernambuco, ainda que destas se aproveitam mais os da Bahia, para
onde vão muitas boiadas, que os pernambucanos."
Muito tempo viveu esta gente entregue a si mesma, sem figura de or-
dem nem de organização. Como eram católicos e a Igreja obriga à freqüên-
cia dos sacramentos, naturalmente qualquer vigário ou algum mais
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animoso, mais zeloso ou mais cúpido saía de tempos em tempos a deso-
brigar as ovelhas remotas. Depois da instalação do arcebispado da Ba-
hia, criaram-se freguesias no sertão, enormes, de oitenta, cem léguas e
mais. Ali era cobrado o imposto meio civil meio eclesiástico do dízimo.
Os dizimeiros que o arrematavam, depois de ter feito a experiência,
preferiam deixar a outros o trabalho da arrecadação: um dos fazendeiros
ou qualquer pessoa capaz do interior em seu nome ia pelos vizinhos
recolher os bezerros dizimados, pois a paga realizava-se em gênero; de-
pois de alguns anos, três ou quatro conforme a convenção, prestava contas:
cabia-lhe pelo trabalho um quarto do gado, exatamente como aos vaqueiros.
A carta régia de 20 de janeiro de 1699, primeiro esforço para intro-
duzir alguma ordem naquela massa amorfa, mandou criar nas freguesias
do sertão juízes à semelhança dos de vintena, que saíam dos mais
poderosos da terra, e em cada freguesia um capitão-mor e cabos de
milícia obrigados a socorrer e ajudar os juízes. A resistência contra estes
se equiparava à resistência contra os juízes de fora, e ficariam seqüestra-
dos os bens do réu até sentença final; as penas pecuniárias deveriam ser
preferidas por não se poder facilmente executar as corporais. Ouvidores,
corregedores eram obrigados a uma visita trienal. Se tais ordens foram
cumpridas e nos arquivos de além-mar existirem relatórios das correções,
nem um documento poderá nos ajudar tanto no estudo e conhecimento
da vida sertaneja.
Os capitães-mores deixaram fama de violentos, arbitrários e cruéis;
não eram, porém, incontrastáveis e maior ou menor sempre encon-
traram oposição. Reinava respeito natural pela propriedade; ladrão era e
ainda é hoje o mais afrontoso dos epítetos; a vida humana não inspirava
o mesmo acatamento. Questões de terra, melindres de família, uma des-
cortesia mesmo involuntária, coisas às vezes de insignificância inapre-
ciável desfechavam em sangue. Por desgraça não se dava o encontro em
campo aberto: por trás de um pau, por uma porta ou janela aberta des-
cuidosamente, na passagem de algum lugar ermo ou sombrio lascava o
tiro assassino, às vezes marcando o começo de longa série de assassina-
tos e vendetas. Com a economia naturista dominante, custava pouco
ajuntar valentões e facinorosos, desafiando as autoridades e as leis. Para
apossar-se destes régulos só havia dois recursos: a astúcia ou o auxílio de
vizinhos.
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Além do sentimento de orgulho inspirado pela riqueza, pelo afas-
tamento de autoridades eficazes, pela impunidade, a criação de gado
teve um efeito, que repercutiu longamente. Graças a ela foi possível
descobrir minas. Desde 1618 o autor dos Diálogos das Grandezas do Brasil
dizia que o problema da mineração não consistia em encontrar metais, --
estes existiam não restava dúvida, pois o Oriente é mais nobre que o
Ocidente e portanto o Brasil mais opulento que o Peru; o problema ver-
dadeiro consistia na dificuldade de alimentar os mineiros. E expunha um
plano: "O primeiro que se devia fazer antes de bulir nelas, depois de
estarem certos que eram de proveito, houvera de plantarem-se muitos
mantimentos ao redor do sítio onde elas estão e como os houvesse em
abundância tratar-se-ia da lavoura das minas; mas isto se faz pelo con-
trário, porque sem terem mantimento entenderam em tirar o ouro e
como as minas estão muito pelo sertão os que vão levam de carreto o
mantimento necessário e como se lhe acaba tornam-se e deixam a la-
voura que tinham começado. E esta cuido que é a verdadeira causa de
darem as ditas minas pouco de si."
O plano decorria da natureza das coisas e Fernão Dias Pais, sem
nunca ter lido os Diálogos das Grandezas do Brasil, conservados inéditos até
muito poucos anos, obedeceu-lhe na famosa jornada das esmeraldas; se-
ria suficiente enquanto os mineiros se limitassem a bandos mais ou
menos numerosos, e a alimentação vegetal pudesse ser suprida com a
caça e a pesca; depois do alboroto provocado pelos descobertos era in-
dispensável recurso menos aleatório, e impunha-se a necessidade de
gado vacum e de muito gado.
Não podia ir de São Paulo: em março de 1700 o capitão-mor Pedro
Taques de Almeida confessava a D. João de Lencastro, governador-
geral: "destas vilas não é possível fazer-se [a remessa das boiadas], por-
que sendo vinte já parecem os povos, nem se vende peso de carne, e va-
lendo uma rês dois mil-réis prometem os mineiros oito, pelo que inter-
essam nas minas, porque o preço geral até o presente foi cinqüenta oi-
tavas e em alguma necessidade cem."
O recurso só podia partir da bacia do rio São Francisco. "Pelo dito
rio ou pelo seu caminho", expõe um documento pouco posterior a
1705, "lhe entram os gados de que se sustenta o grande povo que está nas
minas, de tal sorte que de nem uma outra parte lhe vão nem lhe podem ir os
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ditos gados, porque não os há nos sertões de São Paulo nem nos do Rio
de Janeiro. Da mesma sorte se provêm pelo dito caminho de cavalos
para suas viagens, de sal feito de terra no rio São Francisco, de farinhas e
outras cousas, todas precisas para o trato e sustento da vida."
"O rio São Francisco", acrescenta, "desde a sua barra que faz no
mar junto à vila de Penedo, em igual distância de oitenta léguas da Bahia
e Pernambuco, de uma e outra parte, assim do que pertence à jurisdição de
Pernambuco como à Bahia (para os quais serve de divisão do dito rio) tem
às suas beiras várias povoações, umas mais chegadas, outras mais distantes
do dito rio; e na mesma forma se vão continuando por ele acima, por
espaço de seiscentas léguas, até se ajuntarem na barra que nele faz o rio das
Velhas, em cuja altura se acham hoje as últimas fazendas de gados de uma e
outra banda do dito rio São Francisco, sem ter da dita barra até esta altura
parte despovoada nem deserta em a qual seja necessário dormir ou alver-
garem no campo os viandantes, querendo recolher-se na casa dos
vaqueiros, como ordinariamente fazem, pelo bom acolhimento que
nelas acham."
Assim, como o alto Paraíba do Sul, mas em proporções muito mais
grandiosas, também o rio de São Francisco serviu de condensador da
população.
À vista disto poder-se-ia esperar muitas vilas nestas regiões tão po-
voadas. Puro engano: só foram criadas no século XVIII, mais uma
prova da diferença entre as capitanias del-rei e as de donatários na apre-
ciação das municipalidades.
As câmaras do sertão não divergiam das do litoral, isto é, possuíam di-
reito de petição, podiam taxar os gêneros de produção local, davam os juízes
ordinários, mas eram antes de tudo corporações meramente administrativas.
Dos assentos da câmara do Icó no Ceará, instalada em 1738, con-
stam posturas relativas ao plantio de mandioca para farinha e de carra-
pateira para o fabrico de azeite, à proibição de exportar farinha por
causa da carestia, aos salários que deviam cobrar alfaiates, sapateiros e
outros oficiais, à morte de periquitos, etc.
Nada confirma a onipotência das câmaras municipais descoberta
por João Francisco Lisboa, e repetida à porfia por quem não se deu ao
trabalho de recorrer às fontes.
Capítulos de História Colonial 141
sumário
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*
À preocupação de minas cederam já Cristóvão Jaques e Martim
Afonso. Nas suas capitanias esperavam encontrá-las João de Barros e
sócios. Duarte Coelho contava descobri-las no rio de São Francisco, e
só deixou de ir pesquisá-las pessoalmente por circunstâncias alheias à
sua vontade. Em Porto Seguro correram notícias de ouro uns quarenta
anos depois da viagem de Pedr’Álvares. Luís de Melo da Silva embar-
cou-se à sua procura para as terras do Amazonas.
Tomé de Sousa dispôs uma expedição que transpôs a serra do
Espinhaço. Sob seus sucessores volveram outros com pedras preciosas,
especialmente esmeraldas. Pareceram por fim tais e tantos os vestígios
de haveres a uma inteligência perspícua como a de Gabriel Soares, que
abandonou o próspero engenho de Jeriquiriçá e perdeu anos com re-
querimentos junto às cortes de Lisboa e de Madri para prestar à pátria o
serviço de revelar-lhe as riquezas ocultas.
"Dos metais de que o mundo faz mais conta, que é o ouro e prata
-- escreve no último capítulo de seu monumental Tratado, -- fazemos aqui tão
pouca que os guardamos para o remate e fim desta história, havendo-se de
dizer deles primeiro, pois esta terra da Bahia tem dele tanto quanto se pode
imaginar; do que pode vir a Espanha cada ano maiores carregações do que
nunca vieram das Índias Ocidentais, se Sua Majestade for disso servido."
A tentativa em que se meteu não provou a verdade destes assertos,
mas perpetuou-lhe o nome. A ele prende-se a tradição de grandes
viagens ao interior e de inexauríveis minas de prata. Melchior Dias, seu
parente, ofereceu mostrar o metal branco em quantidade igual à do ferro
em Biscaia; após muitas negaças, intimado a cumprir a promessa, levou
o governador-geral do Brasil com alguns mineiros às serras de Itabaiana.
As experiências feitas com azougue deram nada, com fogo deram fumo,
informa testemunha de vista. Apesar de tudo continuou inabalável a
crença nos tesouros ocultos de Melchior e na riqueza argentífera. Ainda
no último quartel do século XVII procurava-se, esperava-se prata.
Partilhando das crenças de Gabriel Soares, D. Francisco de Sousa
mandou do Espírito Santo às esmeraldas e de São Vicente e Sabarabuçu.
Quando veio-lhe substituto dirigiu-se para Madri, onde conseguiu a
separação do estado em dois governos, em 1608; coube-lhe o do sul
com a superintendência exclusiva das minas em toda a colônia. Nestes
142 J. Capistrano de Abreu
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trabalhos perdeu a vida em São Paulo; a esperança conservou sempre e
soube comunicá-la a outros.
A incumbência dada a D. Francisco passou por sua morte a Salva-
dor Correia e a alguns de seus descendentes, que durante quatro gerações
pesquisaram ouro, prata, esmeraldas nos pontos mais diversos. Salvador
Neto adquiriu por fim certo cepticismo a propósito de metais; antes de
qualquer outro convenceu-se da não existência de prata: "em sua
consciência o declara que de Itabaiana para o sul, quarenta léguas do
mar, não há minas de prata, porquanto nestas partes andou ele conselheiro e
fez todas as experiências para a descobrir, e é diferente terreno do de Po-
tosi", concluía no Conselho Ultramarino em 3 de maio de 1677. De Potosi
podia falar com pertinência, pois fora até os Andes.
Por que se generalizou e persistiu esta crença com tanta pertinácia?
Porque se acreditava na identidade estrutural do Ocidente e do Oriente
da América; porque tomaram a malacacheta por prata, como Salvador
afirma de Melchior Dias; porque nas idéias do tempo o Oriente era mais
nobre que o Ocidente, e não podia faltar aqui o que abundava lá: "por
boa razão de filosofia esta região deve ter mais e melhores minas que a
do Peru", lê-se em documento escrito cerca de 1610, "por ficar mais ori-
ental que ela e mais disposta para a criação de metais". Talvez influíssem
também o nome do rio da Prata legado pelos primeiros navegadores e
os informes confusos dos indígenas.
O ouro, não procurado ou procurado com menor afinco, aparecia
entretanto às pequenas quantidades na capitania de São Vicente. Desde
o tempo de Mem de Sá encontraram alguns grãos Brás Cubas, provedor
da fazenda, e Luís Martins, mineiro ido de Portugal.
Foram igualmente felizes outros. A crer na tradição houve
descobertos riquíssimos; Afonso Sardinha, dizia-se, deixara oitenta mil
cruzados de ouro em pó. Há de entrar exagero nesta conta, ou pelo
menos muito ogó haveria no monte. Se tanto abundasse o metal, a
população teria afluído aos bandos e os paulistas não levariam tanto
tempo vida de bandeirantes.
Antonil-Andreoni parece mais próximo da verdade, quando diz a
respeito destas primitivas lavras "que de um outeiro alto distante três
léguas da vila de São Paulo, a que chamam Jaraguá, se tirou quantidade
de ouro que passava de oitavas a libras. Em Parnaíba, também junto da
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mesma vila no serro Ibituruna, se achou ouro e tirou-se por oitavas.
Muito mais e por muitos anos se continuou a tirar em Parnaguá e Curi-
tiba, primeiro por oitavas, depois por libras, que chegaram a alguma ar-
roba posto que com muito trabalho para o ajuntar, sendo o rendimento
no catar limitado".
Mais que as libras e oitavas, importam porém o gosto pelas pes-
quisas auríferas assim mantido e a prática do ouro de lavagem. Esta fa-
miliaridade influiu de maneira benéfica sobre o desenvolvimento ulterior
da mineração.
D. Pedro II, depois de ver frustradas ou mal correspondidas todas
as esperanças concentradas nas minas, resolveu dar um grande passo:
dirigiu as mais lisonjeiras cartas à gente principal de São Paulo, confi-
ando-lhe por assim dizer a questão.
Este apelo aos brios paulistas provocou o maior entusiasmo: um
rei ainda se reputava então semideus, e uma carta régia honra quase so-
bre-humana. De chofre aparelharam-se a partiram nos rumos mais
opostos numerosas bandeiras, e desde logo se evidenciou que, se o
Brasil contivesse haveres minerais, não poderia conservá-los encobertos
por mais tempo.
O mais famoso destes bandeirantes, transformado agora em
mineiro pelo pedido do rei, chamava-se Fernão Dias Pais. Administrava
algumas aldeias de índios guanaãs, desfrutava a casa-grande característica
da economia naturista e transmontara já o pino da vida. Alistou-se na
cruzada do metal, apesar de tudo isto. Dez anos consumiu na porfia, e
ao falecer nas matas do rio Doce levou a certeza de haver descoberto as
célebres esmeraldas, secularmente esquivas.
Sua morte precedeu de pouco o despontar dos descobertos feno-
menais. Garcia Rodrigues Pais era seu filho, uma filha sua esposara
Manuel da Borba Gato, ambos astros de primeira grandeza nestes
cometimentos.
De Minas Gerais o nome indica a fartura, a onipresença dos haveres.
Quem os descobriu primitivamente é impossível apurar, tanto se con-
tradizem as versões; o fato ocorreu pouco depois de 1690. Segundo An-
tonil-Andreoni, um mulato de Curitiba encontrou no riacho chamado
Tripuí uns granitos cor de aço, que vendeu em Taubaté a Miguel de
144 J. Capistrano de Abreu
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Sousa por meia pataca a oitava; levados ao Rio reconheceu-se neles ouro
finíssimo. Foi este o primeiro descoberto.
Seguiram-se o de Antônio Dias, a meia légua de Ouro Preto, o de
João de Faria, o de Bueno e Bento Rodrigues pouco mais distantes, os
do ribeirão do Carmo e do Ibupiranga, todos nas cercanias de Ouro
Preto e Mariana; parte da bacia do alto rio Doce foi escavada, justifi-
cando o nome de Minas Gerais primeiramente aplicado a este distrito.
Outros centros foram o rio das Mortes nas proximidades de São
João e São José de El-Rei, caminho de São Paulo; o rio das Velhas, reve-
lado por Manuel da Borba Gato, caminho da Bahia, Caeté e, ainda e
sempre no alto rio Doce e na cordilheira do Espinhaço, o Serro do Frio.
Novas minas foram descobertas em Pitangui, Paracatu e alhures; já per-
tencem à segunda corrente e dispensam enumeração especial.
Dos caminhos primitivos um partia de São Paulo, acompanhava o
Paraíba, transpunha a Mantiqueira, cortava as águas do rio Grande e
além bifurcava para o rio das Velhas ou o Doce, conforme o destino;
outro ou saía de Cachoeira na Bahia e subia o rio Paraguaçu, ou to-
mando outras direções, passava a divisória do São Francisco, margeava-
o a maior ou menor distância até o rio das Velhas que perlongava; o
caminho do rio seguia por terra ou por mar até Parati, pela antiga picada
dos guaianás galgava a serra do Facão nas cercanias da atual cidade do
Cunha e em Taubaté entroncava na estrada geral de São Paulo. Mais
tarde o entroncamento fez-se em Pindamonhangaba.
Artur de Sá, primeira autoridade que visitou os descobertos, tratou
com Garcia Rodrigues Pais a abertura de uma linha mais direta de
comunicações com a cidade de São Sebastião, a verdadeira capital do
Sul. O filho de Fernão Dias deu conta cabal da incumbência. Nas proxi-
midades da hodierna Barbacena reuniam-se os caminhos do rio das
Mortes, o do rio das Velhas e o do rio Doce; começou daí, venceu a
Mantiqueira, procurou o Paraibuna, seguiu-o até sua barra no Paraíba e
pela serra dos Órgãos chegou à baía do Rio, passando em Cabaru, Mar-
cos da Costa, Couto e Pilar. O trecho entre o Paraíba e a baía já estava
ligado em 1725 por outro caminho, devido a Bernardo Soares de
Proença, correspondendo em parte ao traçado da E. F. de Petrópolis a
Entre-Rios, em parte acompanhando o rio Inhomirim.
Capítulos de História Colonial 145
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Ainda uma década depois dos primeiros descobertos, custava um
boi cem oitavas, a mão de sessenta espigas de milho trinta oitavas, um
alqueire de farinha de mandioca quarenta oitavas, uma galinha três ou
quatro oitavas, um barrilote de aguardente, carga de um escravo, cem oi-
tavas, um barrilote de vinho, carga de um escravo, duzentas oitavas, um
barrilote de azeite duas libras (libra = 128 oitavas).
"Não se pode crer o que padeceram ao princípio os mineiros por
falta de mantimentos, achando-se não poucos mortos com uma espiga
de milho na mão sem terem outro sustento", informa Antonil-Andreoni.
"Porém tanto que se viu a abundância do ouro que se tirava e a largueza
com que se pagava tudo o que lá ia, logo se fizeram estalagens e logo
começaram os mercadores a mandar às minas o melhor que chega nos
navios do Reino e de outras partes, assim de mantimentos como de re-
galo e de pomposo para se vestirem, além de mil bugiarias de França,
que lá também foram dar... E não havendo nas minas outra moeda mais que
ouro em pó, o menos que se pedia e dava por qualquer coisa eram oitavas."
"Com vender coisas comestíveis, aguardente e garapas muito em
breve tempo acumularam quantidade considerável de ouro -- continua o
mesmo autor. -- Porque como os negros e os índios escondem bastantes
oitavas quando catam nos ribeiros e nos dias-santos e nas últimas horas
do dia tiram ouro para si, a maior parte deste ouro se gasta em comer e
beber, e insensivelmente dá aos vendedores grande lucro, como cos-
tuma dar a chuva miúda aos campos, a qual continuando a regá-los sem
estrondo, os faz muito férteis. E por isso até os homens de maior cabe-
dal não deixaram de se aproveitar por este caminho dessa mina à flor da
terra, tendo negras cozinheiras, mulatas doceiras e crioulos taverneiros
ocupados nesta rendosíssima lavra, e mandando vir dos portos de mar
tudo o que a gula costuma apetecer e buscar."
Sem serem procuradas apareceram as minas de Cuiabá. Pascoal
Moreira Cabral e seus companheiros andavam à cata de índios quando
encontraram os primeiros grãos de ouro em 1719, em tamanha
abundância que extraía-se com as mãos e paus pontudos; tirava-se ouro
da terra como nata de leite, na expressão pitoresca de Eschwege. Os
bandeirantes viraram mineiros sem pensar e sem querer. A experiência
das desordens das Minas Gerais foi aproveitada, e não houve aqui as ter-
ríveis desordens que fizeram tristemente célebre o rio das Mortes.
146 J. Capistrano de Abreu
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As notícias desta facilidade única de minerar, levadas ao povoado,
agitaram a população, e levianamente se lançou à terrível jornada que
começava no Tietê próximo do Itu, prosseguia pelo Paraná até junto das
Sete Quedas, varava para as águas do Mboteteú até sua barra no Para-
guai e subindo por este procurava o São Lourenço e o Cuiabá. Muitos
naufragaram; morreram outros de inanição ou devorados pelas feras;
dos escapos à morte muitos perderam nos saltos e corredeiras as fazen-
das com que pretendiam negociar; as fazendas salvas chegavam podres a
seu destino, porque não toldavam as canoas. E depois de tantos perigos
encontravam a mais negra miséria em Cuiabá.
Alguns fatos narrados por Barbosa de Sá, testemunha e cronista
desse período, mostram o horror da situação.
Só em 1721 chegou a primeira ferramenta para a mineração. Não
havia pescadores e um dourado colhido acaso vendia-se por sete e oito
oitavas. Muitos andavam opilados e hidrópicos, todos em geral com per-
nas e barrigas inchadas, com cores de defuntos; apetecia-se comer terra
e muitos o faziam. Em 1723 apareceram os primeiros porcos e galinhas.
Em 1725 chegou-se a dar por um frasco de sal meia libra de ouro (256$,
a câmbio de 27). O milho, antes de brotado, era comido pelos ratos; de-
pois de nascido caíam-lhe em cima os gafanhotos; se espigava, o sabugo
saía sem grãos; o que granava tinha de ser colhido verde para os pás-
saros o não comerem. As ratazanas eram tantas que um casal de gatos
foi vendido por uma libra de ouro, e os filhotes a vinte e trinta oitavas.
Em 1729, por falta de fazendas, venderam-se camisas de alguns lençóis
que se desfaziam a doze oitavas de ouro; a vara de algodão da terra a
três e a quatro oitavas; sal não havia nem para batizado.
A situação melhorou muito lentamente. Em 1725 começou a
navegação pelo Pardo, Coxim e Taquari, o que facilitava bastante a
viagem, principalmente depois de se fazerem roças, criação de gado e até
carros para transportar canoas no varadouro de Camapuã, entre o Para-
guai e o Paraná.
Em 1728 plantou-se cana: "logo começaram a moer nas moendin-
has que chamamos escaroçador e a estilar em alambiques que formavam
de tachos, apareceram logo águas ardentes de cana que vendiam a cinco
e seis oitavas de ouro e as frasqueiras a quarenta oitavas. Com isto foi
que se começou a lograr saúde, a cessarem as enfermidades e terem os
Capítulos de História Colonial 147
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homens boas cores que até então tinham-nas de defuntos, foram a
menos as hidropisias e inflamações de barrigas e pernas e a mortan-
dade de escravos que té aí se experimentava enterrando-se cada dia
aos montões."
Até então a gente se concentrava nas cercanias de Cuiabá. Em
1734 transpuseram a serra e na região dos Parecis afloraram novas mi-
nas. Grandes florestas encontradas ali são a origem do nome de Mato
Grosso. Em 1736 descobriu-se caminho por terra de Cuiabá ao Para-
guai, e pelas águas do Guaporé a mineração foi se estendendo. Aquele
ponto mais remoto ainda do que Cuiabá sofreu iguais misérias; desper-
tou, porém, risonhas esperanças conhecer-se a existência de aldeias de
jesuítas espanhóis a distâncias relativamente pequenas. Os primeiros que
foram às reduções encontraram bom acolhimento e obtiveram algum
gado. Brotou a idéia de entabular comércio e logo outros aventureiros
realizaram mais de uma expedição sem o fruto apetecido, porque ordens
restritas vedaram quaisquer transações com os portugueses. Nas reduções
encontram notícia de estarem na bacia do Madeira.
Poucos anos antes Francisco de Melo Palheta chegara às aldeias do
Mamoré, partindo do Pará. Animado por este exemplo, Manuel Félix de
Lima em 1742 atirou-se ao rio Guaporé e foi sair em Belém. Mais tarde
João de Sousa de Azevedo embarcou no Arinos, foi dar no Tapajós e
voltou pelo Madeira. Apesar das dificuldades de navegação ainda hoje
não vencidas, a viagem de um e outro rio foi repetida e aqueles sertões
de Noroeste ficaram ligados à baixada do Amazonas.
Outra ligação se estabelecera antes com São Paulo por via terrestre
para evitar os índios brabos. Desde a barra do São Lourenço
começaram os paiaguás e guaicurus a perseguir as pessoas que iam para
Cuiabá ou de lá tornavam. Apareciam de súbito em inúmeras canoas, e
conhecendo os mínimos acidentes dos pantanais escolhiam os pontos
de ataque e sabiam furtar-se aos que os perseguiam. Diz-se que obravam
incitados pelos castelhanos de Asunción e é muito possível, porque
mineiros e bandeirantes não eram vizinhos para se desejar. Em todo
caso o ouro que tomavam encontrava saída no Paraguai e tanto bastava
para estimulá-los em seus salteios.
O primeiro destes sucessos ocorreu em 1725. Diogo de Sousa com
muita gente entrava no Xané, no delta do São Lourenço, quando apare-
148 J. Capistrano de Abreu
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ceu o gentio. Foram mortas seiscentas pessoas: salvaram-se apenas um
branco e um preto: como troféu e despojo, os paiaguás levaram vinte
canoas. Repetiram-se os ataques nos anos seguintes, ora mais perto, ora
mais longe do Taquari, ponto obrigado depois das plantações do
Camapuã e da navegação do Pardo. No meio de expedições para tomar
vingança dos bárbaros, surgia a idéia de abrir caminho para Goiás e o
povo concorreu com três mil oitavas para a obra. Realizou-a Antônio
Pinto de Azevedo, que já estava de volta a Cuiabá em setembro de 1737,
com cavalarias e gados, os primeiros ali introduzidos.
Os descobertos de Cuiabá lembraram a Bartolomeu Bueno da Silva
que, uns quarenta anos antes, percorrendo os sertões em companhia de
seu pai, o primeiro Anhangüera, vira entre os índios guaiás pepitas de
ouro servindo-lhes de ornatos. Deviam ser muito auríferas aquelas
regiões, pois o metal chegara a atrair a atenção do aborígine. Sentiu-se
capaz de achá-las outra vez, ofereceu-se a tentá-lo e seu oferecimento
aceito, partiu de São Paulo em janeiro de 1722.
Fiara demais de sua retentiva; durante mais de três anos andou a
esmo em todos os sentidos, até as cabeceiras do Araguaia; parte de sua
gente desceu o Tocantins e chegou ao Pará; parte caiu em encontro com
os índios, parte morreu de fome; depois de comidos os cachorros e al-
guns cavalos, "fiz trinta e cinco sermões sem mudar de tema", conta um
companheiro do segundo Anhangüera, "animando a todos que não es-
morecessem, certificando-lhes para diante rios de muitos peixes, campos
de muitos veados, matos de muita caça, mel e guarirobas. Perguntavam
os miseráveis: quando? Respondia-lhes: nestes dias, e nestes permitia
Deus que chegássemos e tudo se achava certo. Com isto cessaram as
mortes e não morreu mais ninguém, e mal de muitos se não fora o pre-
gador".
Afinal, em 21 de outubro de 725, Bartolomeu Bueno chegou triun-
fante a São Paulo, assegurando iguais grandezas às de Cuiabá, com a
vantagem dos ares não serem tão contagiosos. Os rios, cujas passagens
lhe foram concedidas e a seu sócio Bartolomeu Pais de Abreu, pai do
benemérito historiador paulista Pedro Taques, dão idéia aproximada do
seu itinerário, a trechos seguido no traçado da E. F. Mogiana: Atibaia,
Jaguari, Mogi, Sapucaí, Pardo Grande, Velhas, Paranaíba, Corumbá,
Meia-Ponte e Pasmados.
Capítulos de História Colonial 149
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A primeira mineração condensou-se no rio Vermelho, afluente do
Araguaia; mas também aqui apareceram minas generalizadas e os minei-
ros se dispersaram.
Em 733 Domingos Rodrigues do Prado descobriu as minas de
Crixás, Manuel Dias da Silva as de Santa Cruz e Calhamare as de Antas;
no mesmo ano Manuel Rodrigues Tomar descobriu as de Água Quente
e nos seguintes as de São José e Traíras; em 734 Carlos Marinho desco-
briu as de São Félix, em 736 descobriu as de Cachoeira, Santa Rita e
Moquém; em 737 Francisco de Albuquerque Cavalcanti descobriu as
que guardam seu nome; datam de 739 o descoberto de Amaro Leite, de
740 o da Arraias, devido a Francisco Lopes, de 740 o de Pilar, devido a
João de Godói Pinto da Silveira, de 746 o de Santa Luzia, devido a An-
tônio Bueno de Azevedo. Estas datas são aproximadas e variam com os
cronistas.
A situação geográfica de Goiás permitia-lhe facilmente comunicar-
se com a baixada amazônica e com os chapadões de Parnaíba, de São
Francisco e do Paraná; sua aparição tardia na história e relativa proximi-
dade do povoado pouparam-lhe muitas das privações sofridas por Mi-
nas Gerais e Mato Grosso. O primitivo caminho de São Paulo pouco
tempo conservou-se único; apesar das proibições repetidas e arbitrárias
abriram-se mais outras picadas, e gados e aventureiros afluíram de Minas
Gerais, Bahia, Pernambuco, Piauí e Maranhão. Já se viu que poucos
anos depois daqui partiram recursos para os cuiabanos.
Várias expedições se organizaram à procura de jazidas particular-
mente abundantes, sibilinamente anunciadas em roteiros misteriosos: --
Martírios, assim chamados da semelhança entre as formas das rochas
vizinhas e os instrumentos da Paixão, Araez, rio Rico, etc. Nos roteiros,
observa Eschwege, que ainda alcançou alguns, guardados ciosamente
nas famílias, três irmãos ou três irmãs podem ser três serras ou três rios;
juntamente com a trindade, anda em geral a alavanca encostada à game-
leira, ou a corrente pregada ao cedro, ou o prato de estanho largado
numa loca, designados como conhecenças inequívocas do tesouro e
nunca vistos. Os Martírios, se de fato existem, aguardam ainda descobridor.
A estas três capitanias auríferas cumpre agregar a da Bahia, não
menos rica. Jacobina e rio de Contas, este sobretudo, justificaram todas
as esperanças do velho Gabriel Soares; mas a metrópole julgou estes
150 J. Capistrano de Abreu
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descobertos demasiado próximos do litoral, expostos portanto a assaltos
de piratas, e proibiu fossem minerados. O veto respeitou-se o menos
possível, embora se guardassem as aparências; daí certo ar de clan-
destinidade associado à mineração baiana e a impossibilidade de especi-
ficá-la. Mais tarde a proibição foi levantada; contudo Bahia continuou
antes agrícola e pastoril que mineira, e Goiás afogou-a com o seu es-
plendor.
As Ordenações do Reino enumeravam as minas entre os direitos
reais. Como a experiência de quase um século patenteasse a dificuldade
de desfrutá-las, triunfou a idéia, sugerida talvez por D. Francisco de
Sousa e incorporada no regimento de 1603, de permitir a lavrança, com
a ressalva do quinto para a Coroa. Enquanto o ouro andou por oitavas e
libras, a porcentagem foi por assim dizer deixada aos escrúpulos de cada
mineiro, mera afirmação de um princípio teórico; com os descobertos
gerais de Cataguases transformou-se em propulsor de todo o mecan-
ismo colonial.
No caos inicial a única autoridade, o guarda-mor, demarcava os
lotes e apartava para o rei uma data, adjudicada em licitação a quem mais
desse. O quinto cobravam provedores ad hoc ou arrecadavam registros
colocados em pontos de passagem forçada: Taubaté, para quem pro-
curava São Paulo, ou Parati, no caminho do Rio. Nas ribeiras do São
Francisco a coleta ficava mais difícil, porque a partir do arraial de Matias
Cardoso, perto da atual Januária, abriram-se muitos caminhos para o
norte e nascente; pelo rio desciam canoas e muitos preferiam este
veículo, mais seguro e mais econômico. A dificuldade de arrecadação
ainda avultou quando Garcia Pais estabeleceu comunicação direta com a
baía do Rio de Janeiro. Mesmo assim o rendimento foi considerável.
Nova era começa em 1711, com a chegada de Antônio de Albuquerque, a
criação de vilas e a instalação das municipalidades. Albuquerque reuniu as câma-
ras e pessoas mais notáveis, para assentarem o melhor meio de garantir os inter-
esses da Coroa. Parecia racional uma capitação paga por cada batéia empregada
na lavra; as câmaras preferiram impostos de entrada sobre fazendas secas, mol-
hados e escravos. A invasão de Duguay-Trouin chamou o governador ao Rio; o
ponto ficou suspenso; continuaram os registros e o sistema antigo.
Brás Baltasar da Silveira, novo governador, aceitou o oferecimento
feito pelas câmaras de Vila Rica, Sabará e Carmo, de darem anualmente,
Capítulos de História Colonial 151
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em paga do quinto, trinta arrobas de ouro (1 arroba = 16:834$000, ao
câmbio de 27); para auxílio da cobrança, concedeu-lhes D. Brás uma
quota no direito das entradas. Durou esta avença um qüinqüênio, sem
que o governo da metrópole jamais parecesse satisfeito.
De 1718 a 722, as câmaras abriram mão da quota de importação e
obrigaram-se a pagar anualmente vinte e cinco arrobas. A corte encheu-
se, porém, de escrúpulos com a injustiça da capitação até ali vigente;
preferiu casas de fundição, a que seria recolhido todo o ouro em pó, re-
duzido a barras e desde logo quintado. Avessas a este sistema, as mu-
nicipalidades propuseram pagar trinta e sete arrobas e assim se fez até
1725.
De então até 1750 vigorou, ora o sistema de capitação, ora o de
casas de fundição. Estas foram definitivamente estabelecidas desde o
começo do reinado de José I; afiançaram as câmaras o rendimento anual
de cem arrobas; havendo sobra, poderia servir para cobrir o déficit do
ano seguinte; se este apresentasse também sobra, a do ano anterior fi-
cava pertencendo definitivamente à Coroa; se houvesse déficit e não pu-
desse ser suprido pelo modo indicado, proceder-se-ia à derrama, isto é,
cada municipalidade concorreria proporcionalmente, de modo a completar-
se a centena de arrobas. A câmara mais opulenta, a de Vila Rica, tinha, como
recursos exclusivos, os aferimentos de pesos e medidas, os foros das casas, a
renda dos açougues e a da cadeia; somado tudo não chegava a cinco contos
ânuos. Quer isto dizer que a escrupulosa metrópole passava adiante a re-
sponsabilidade na odiada capitação.
Levariam longe os pormenores do regime fiscal, imposto a Minas
Gerais e, até onde o permitiam as distâncias e a população esparsa, à Bahia,
Goiás e Mato Grosso; a proibição de abrir novas picadas, a proibição de
fundar novos engenhos, a proibição de andar com ouro em pó, a proibição
de andar com ouro amoedado, a proibição de exercer o ofício de ourives, os
impostos múltiplos, os donativos implorados por prazo certo e curto e depois
exigidos imperiosamente por prazo muito maior, estranhando-se a ousadia de
suspendê-los nos termos do acordo inicial, mostrariam até onde pode chegar
uma administração sem melindres e sem inteligência e uma gente sem ener-
gia, se não fosse o distrito adiamantino.
Apenas uma amostra. Divulgada em 1730 a existência de diamantes
no Tijuco, logo D. Lourenço de Almeida, governador de Minas Gerais,
152 J. Capistrano de Abreu
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estabeleceu a capitação de 5$ por cada escravo empregado nas lavras; no
ano seguinte mandou despejar as minas, expulsar da comarca do Serro ne-
gros, mulatas e mulatos forros, limitar a mineração a certa zona, pagando-se
pelos menos 60$ anualmente, afinal por muito favor reduzidos a 20$,
proibiu vendas fora do povoado e só as permitiu na povoação com o sol de
fora; em 1734 a capitação foi elevada a 40$, e logo em seguida vedada a min-
eração e mandado que nem um dos habitantes do distrito pudesse ter batéia,
almocrafe, alavanca ou qualquer outro instrumento de minerar. Com o
tempo foi-se tornando mais tirânico o regime, de modo a permitir que a
coroa portuguesa ficasse senhora do mercado de diamantes do mundo in-
teiro.
O ouro produzido no Brasil escapa a qualquer avaliação exata. Le-
vando em conta uma porção de dados, Calógeras calcula que Goiás e
Mato Grosso, desde o começo da mineração até 1770, deram uma pro-
dução total de nove mil arrobas; daquela data a 1822 mais umas duas mil
e quinhentas; ao todo cento e noventa mil quilogramas. Entre São
Paulo, Bahia e Ceará haveria mais setenta e cinco a oitenta mil. Chega-se
assim ao total de duzentos e setenta mil quilos para a produção destas
partes do Brasil, durante o período colonial até 1822.
Para Minas Gerais avalia-a em sete mil e quinhentas arrobas do
princípio até 1725; em seis mil e quinhentas arrobas a produção dos onze
anos seguintes; em doze mil arrobas de 1736 a 1751; em dezoito mil arrobas
de 1752 a 1787; em três mil e quinhentas a quatro mil arrobas de 1788 a
1801; em três mil e quinhentas arrobas de 1801 a 1820. Até 1820 a extração total
em Minas devia andar por 51.500 arrobas, digamos 772.500 quilogramas.
Os quintos representavam apenas uma parte do regime fiscal; havia mais os
dízimos, os direitos das entradas, as passagens dos rios.
Os dízimos, estabelecidos em 1704, rendiam no tempo de Teixeira Coelho mais
de sessenta contos anuais; para os seis anos e cinco meses decorrentes do primeiro de
agosto de 1777 ao último de dezembro de 1783 o contrato foi arrematado por 388
contos.
Os direitos de entrada cobravam-se nos registros do caminho novo,
na Mantiqueira, do Itajubá, do Jaguara, do Ouro Fino, do Jacuí, de Sete
Lagoas, do Jequitibá, do Zabelé, do Ribeirão da Areia, de Nazaré, de Ol-
hos d’Água, de S. Luís, de Santo Antônio, de Santa Isabel, do Pé do
Morro, do Rebelo, do Inhacica, do Caeté-Mirim, do Galheiro, de
Capítulos de História Colonial 153
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Bom Jardim, de Simão Vieira, de Jequitinhonha, de Itacambira, do Rio
Pardo. Pagavam entrada os escravos introduzidos para primeira vez, ca-
beças de gado vacum, muar ou cavalar, e as cargas de fazenda seca ou
molhada. Por molhados entendiam-se os comestíveis, ferro, aço,
pólvora e tudo o mais impróprio para se vestir. O rendimento das en-
tradas em 1776 foi de mais de cento e quarenta e sete contos.
Pagava-se passagem nos rios Sapucaí, Verde, Mortes, Grande,
Paraupeba, Velhas, Urucuia, Baependi, Pará, São Francisco, Jequitin-
honha. Ofícios da Justiça e Fazenda pagavam também donativos, terças
e novos direitos.
Na constância da derrama surgiram os primeiros fenômenos da
decadência da mineração. Explicaram-na pelos extravios cada vez mais
numerosos, graças à multiplicidade de vias de comunicação. Teixeira
Coelho, que passou onze anos em Minas Gerais, ocupando altos empre-
gos, e deixou escrito precioso sobre a capitania, indica outras causas: a
pobreza dos mineiros; falta de negros, monopólios deles e direitos ex-
cessivos que pagavam; abusos nas concessões dos guardas-mores; de-
manda sobre terras e águas minerais; mau método de minerar; demanda
sobre os privilégios dos mineiros a que chamam de trintada, divisão das
fábricas por heranças, etc.
Todos estes males influem sensivelmente na decadência das minas, ob-
serva Eschwege, mas todos eles procedem de duas únicas causas, e são
terem se franqueado ao povo as minas sem limitação e sem inspeção sobre
seus trabalhos e a falta de leis montanísticas adequadas a este país... Os
mineiros do país aproveitam só o que podem separar mecanicamente e de
uma maneira muito imperfeita. Assim, contando todas as perdas que sof-
rem, causadas pela sua ignorância, desde que tiram o ouro do seu leito natu-
ral até que sai fundido da casa de fundição e da moeda, não será por certo
exagerado quem avaliar estas perdas em a metade do mesmo ouro...
Desenganada de ouro, a população procurou outros meios de sub-
sistência: a criação de gado, a agricultura de cereais, a plantação de cana,
de fumo, de algodão; com o tempo avultou a produção ao ponto de
criar-se uma indústria especial de transportes, confiada aos históricos e
honrados tropeiros.
Diversas tentativas se fizeram para atravessar a mata e comunicar
diretamente com o mar. A mais feliz consistiu na passagem do alto rio
154 J. Capistrano de Abreu
sumário
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Doce para o Pomba, iniciada por 1766. A presença de poaia facilitou o
comércio com os índios daquelas regiões. Coroados, coropotos, extra-
tores da erva medicinal, cujo emprego, segundo uma tradição encon-
trada por Martius, lhes ensinou a irara: "asseguraram-nos", escreve ele,
"que estes filhos da natureza aprenderam o uso da raiz hemética com a
irara, espécie de marta, que costuma, quando bebeu demais água impura
ou salgada de muitos riachos e tanques, mastigar a raiz e a erva para pro-
vocar vômito. Contudo isto pode muito bem ser uma das muitas
histórias infundadas que sem exame os portugueses receberam dos índios."
Assim, a penetração, ou melhor, a exteriorização fez-se rápida por
meio da zona da ipecacuanha. Já na era de 780 Miguel Henriques, o Mão
de Luva, chegava por este caminho às minas de Cantagalo. Mais tarde
plantou-se café naquela comarca, que desceu o Paraíba ou procurou o
ponto de Magé (por Aparecida, Serra do Capim, Paquequer, estrada
construída pelo Barão de Aiuruoca), enquanto não pôde servir-se da Es-
trada de Ferro de Pedro II e da Estrada de Ferro da Leopoldina.
*
Os triunfos colhidos em guerras contra os estrangeiros, as proezas
dos bandeirantes dentro e fora do país, a abundância de gados ani-
mando a imensidade dos sertões, as copiosas somas remetidas para o
governo da metrópole, as numerosas fortunas, o acréscimo da popu-
lação, influíram consideravelmente sobre a psicologia dos colonos. Os
descobertos auríferos vieram completar a obra. Não queriam, não po-
diam mais se reputar inferiores aos nascidos no além-mar, os humildes e
envergonhados mazombos do começo do século XVII. Por seus
serviços, por suas riquezas, pelas magnificências da terra natal, con-
tavam-se entre os maiores beneméritos da Coroa portuguesa.
Tal transfiguração não se deram pressa em reconhecer os filhos do
além-mar. Daí atritos freqüentes. Gregório de Matos, baiano que se for-
mara em Coimbra e aliás não revela simpatia particular pelos patrícios, já
na segunda metade do século XVII manejava o látego da sátira contra o rei-
nol: vem degradado por crimes ou fugido ao pai, ou por não ter o que
comer, salta no cais descalço, despido, roto, trazendo por cabedal único
piolhos e assobios, curte vida de misérias, amiúda roubos, ajunta dinheiro,
Capítulos de História Colonial 155
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casa rico e ocupa os cargos da república! De outra parte não faltariam
respostas mordazes e remoques equivalentes.
Destes atritos e malquerenças a primeira manifestação pública ex-
plodiu nas terras do ouro com a chamada guerra dos Emboabas, uma
das designações dos reinóis na língua geral. Para o caso de que vamos
agora tratar, a designação era pouco rigorosa. Naquelas brenhas tão
alongadas do litoral devia haver poucos portugueses; é provável, quase
certo, estivessem em minoria nos combates: mas a alcunha, além de
afrontosa, resolvia uma questão difícil: como chamar os adversários, em
sua maioria gente da ribeira do São Francisco, se muitos vieram de São
Paulo ou procediam de paulistas, e eram baianos os de uma, pernambu-
canos os de outra margem? Chamavam emboabas a todos os que não
saíram de sua região, explica Rocha Pita.
Os paulistas afetavam profundo desprezo pelo emboaba, tratavam-
no por vós, como se fora escravo, informa o cronista destes sucessos.
Durante o prazo de sua prepotência entre a serra da Mantiqueira e a do
Espinhaço, nas primeiras décadas da anarquia incompreensível, entre-
garam-se aos maiores excessos e só a força deu leis. Um dia, ante a
violência praticada à sua vista contra um pobre-diabo, protestou Manuel
Nunes Viana, emboaba poderoso, afazendado nas margens do Carin-
hanha, prático em guerras contra o gentio do São Francisco, nas quais
conquistara o posto de mestre-de-campo. Tanto bastou para pro-
moverem-no a chefe dos oprimidos. Os paulistas por sua vez sentiam-se
espoliados com a presença de tantos forasteiros. Conservam ódio aos reinóis,
lembrava Antônio Rodrigues da Costa, no Conselho Ultramarino de que era
membro, porque os reputam por usurpadores daquelas riquíssimas minas, que
eles entendiam firmemente serem patrimônio seu, que lhes havia dado ou a sua
fortuna ou a sua indústria. Entre espoliados e oprimidos o conflito era fatal.
A morte da gente miúda não se levava em conta, mas um dia os
forasteiros mataram José Pardo, paulista poderoso, e seus patrícios
começaram a se armar, para em janeiro do seguinte ano de 1709 dar cabo
dos emboabas. Estes, fogosos agora com o prestígio do chefe eleito, an-
teciparam a ameaça e saíram à procura do inimigo para dar-lhe combate. A
força de São Paulo, que descuidosa acampava junto ao rio das Mortes,
recolheu-se a um capão quando chegou a multidão arrebanhada no rio
156 J. Capistrano de Abreu
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das Velhas e alto rio Doce. De cima das árvores os paulistas disparam ti-
ros certeiros, mas sua resistência não podia durar muito, por estar cer-
cado o mato de modo a não permitir saída e além disso falecerem
víveres. Espalhou-se que os emboabas se contentariam com desarmar
os contrários, e estes, fiados na promessa vaga, pediram bom quartel,
prometendo entregar as armas. Concedeu-lho Bento do Amaral Gurgel,
cabo da força atacante, fluminense de instintos sanguinários; apenas,
porém, os viu indefesos "fez um tal estrago naqueles miseráveis que,
deixando o campo coberto de mortos e feridos, foi causa de que ainda
hoje se conserve a memória de tanta tirania, impondo àquele lugar o in-
fame título de Capão da Traição".
Ensoberbecidas com esta vitória, os emboabas proclamaram
Manuel Nunes Vieira governador daquelas minas. O aclamado, alheio às
malfeitorias e crueldades de Bento do Amaral, praticadas longe de suas
vistas e sem seu assentimento, mostrou-se capaz do cargo; elevou-se de
chefe de partido a cabeça de governo, criou juízes, distribuiu postos,
ofícios e patentes, regularizou a concessão das minas, cobrou os quin-
tos devidos ao régio erário, arrecadou direitos sobre os gados e
fazendas importadas, sopeou a anarquia reinante. Excessos praticou
necessariamente, nem com facilidade poderia evitá-lo, mas sua obra
foi benéfica e depois dela percebe-se o arrefecimento da barbárie
universal. Era aliás um espírito de certa cultura; gostava de ler a Ci-
dade de Deus e obras congêneres; a suas expensas se imprimiu o Pere-
grino da América, de Nuno Marques Pereira, um dos mais apreciados
livros para nossos avós do século XVIII, como provam suas nu-
merosas edições.
A notícia dos sucessos do rio das Mortes atraiu às minas Fernando
de Lencastro, governador do Rio. Os espíritos estavam ainda muito ex-
citados para reconhecer-lhe a autoridade, mesmo se admitissem sua im-
parcialidade e desta com razão ou sem ela duvidavam. Em Congonhas,
próximo de Ouro Preto, Nunes Viana saiu-lhe ao encontro rodeado de
cavalaria e infantaria, e o governador intimidado fez-se de volta para sua
capital. Diz-se que secretamente procurou-o o chefe dos emboabas,
assegurando-lhe sua lealdade, prometendo sujeitar-se à ordem legal ap-
enas serenasse a efervescência de sua gente. Parece exata a história, pois
quando mais tarde acudiu Antônio de Albuquerque, sucessor de D. Fer-
Capítulos de História Colonial 157
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nando, acompanhado apenas de dois capitães, dois ajudantes e dez
soldados, Nunes Viana entregou-lhe voluntariamente o mando e recol-
heu-se a suas fazendas na margem pernambucana do São Francisco.
Donde menos se esperava anunciou-se nova procela. Os paulistas,
sobreviventes ao morticínio do Capão da Traição, foram recebidos em
sua terra com desprezo até das próprias mulheres, que "blasonando de
Pantasiléias, Semíramis e Zenóbias, os injuriavam por se haverem ausen-
tado das minas fugitivos, e sem tomarem vingança dos seus agravos, es-
timulando-os a voltar na satisfação deles com o estrago dos forasteiros."
Estas palavras ardentes encontraram eco; Piratininga tornou-se praça de
guerra; numerosos voluntários, sedentos de vingança, gruparam-se à
roda de Amador Bueno da Veiga e se encaminharam para além da Man-
tiqueira. Sua marcha foi bastante vagarosa. Saiu-lhes ao encontro An-
tônio de Albuquerque, esperançado em ser tão bem sucedido com eles
como fora com os emboabas. Enganou-se, porém; a marcha vagarosa
dos paulistas não provinha de hesitações ou receios e por tal modo rece-
beram o governador que dali mesmo seguiu para o Rio pelo velho
caminho de Parati, receoso de ser preso por aqueles súditos turbulentos.
Da cidade pelo caminho novo de Garcia Pais, mandou avisar os em-
boabas do perigo que os ameaçava.
Assim tiveram tempo de se aparelhar e fortalecer até chegar
Amador Bueno com seus mil e trezentos soldados. Feriu-se logo o com-
bate e durou vários dias; alguns paulistas, desanimados com a resistên-
cia, falam em levantar o cerco; alguns emboabas, à vista da mortandade
nas próprias fileiras, pensaram em se render. O ódio era demasiado forte
de parte a parte para prevalecer qualquer solução mais humana. Afinal,
quando os emboabas já não podiam se manter e dispunham uma surtida
desesperada, misteriosamente retiraram-se os paulistas, talvez com o
boato de marcharem do rio das Velhas e de Ouro Preto forças con-
sideráveis. Não deram com isso a partida por perdida e trataram de
preparar ou fingiram preparar outra expedição mais forte para recomeçar
a luta; interveio, porém, D. João V, com o prestígio semidivino da realeza
naquelas inteligências rudimentares: "Entendendo o soberano que ânimos
generosos se deixam vencer com qualquer afago, lhes enviou pelo novo
governador um retrato seu... para que entendessem que, visitando-os
daquele modo, já que pessoalmente o não podia fazer, tomava aos paulistas
158 J. Capistrano de Abreu
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debaixo de sua real proteção." Com este singular presente se satisfize-
ram, e esquecidos dos agravos passados, depuseram as armas.
Depois da guerra dos Emboabas, houve ainda desordens em Minas
Gerais, uma delas, em 1720, sufocada energicamente; não mais inspirou-
as o espírito de nativismo, isto é, a queixa de espoliação, e sua importân-
cia é meramente provinciana.
Mal estavam pacificadas as terras do ouro e já rebentava mani-
festação análoga na capitania de Pernambuco.
Depois da expulsão dos flamengos, o governador fixou residência
em Olinda, e nela o primeiro bispo estabeleceu a sede da diocese em
1688. A nobreza antiga reedificou a casaria destruída, que ocupava só
por ocasião das festas, pois a maior parte do ano passava nos engenhos.
O Recife, graças à superioridade do porto, continuou a prosperar e
adquiriu população numerosa e permanente; preferiam-no para morada
os negociantes, gente que em geral procurava enriquecer depressa, para
ir desfrutar a fortuna no além-mar. Os olindenses olhavam para eles
com toda a soberania de sua prosápia e de seus postos, desden-
hosamente chamavam-nos mascates e andavam sempre em rusgas por
causa de contas, queixando-se uns de usura e extorsão, outros de mau pa-
gamento e má-fé.
Depois de enriquecer, alguns recifenses procuravam ter também parte
no governo, obter hábitos e ganhar postos de milícia. Conseguiram-no com
grande indignação da nobreza, acostumada ao privilégio destas honrarias. Em
1703 fizeram não só eleitores como um vereador. Com isto, tanto mais se ex-
acerbaram as paixões. Olinda aproveitou sua dupla superioridade de capital civil
e eclesiástica para a todo propósito amesquinhar a rival. Desde então empen-
haram-se os mascates em obter para o Recife o título de vila, condição de
autonomia dos negócios municipais. Enquanto reinou D. Pedro II, lembrado
ainda da guerra dos vinte e quatro anos, valeu a oposição da nobreza; D. João V
cedeu à influência contrária poucos anos depois de haver subido ao trono.
A solução ofendeu os brios olindenses, mas talvez não provocasse
violências se a outro coubesse executar a ordem régia. Governava a capi-
tania Sebastião de Castro Caldas, ex-governador do Rio e da Paraíba, por-
tuguês leviano, sarcástico, desdenhoso dos subordinados, adito dos re-
inóis. A 15 de fevereiro de 1710 levantou o pelourinho da vila nova, em
honra sua chamada de São Sebastião; a 3 de março levantou outro
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com maior solenidade, por não ser bastante o primeiro. A delimitação
do termo de Recife, a jurisdição dos juízes ordinários, a serventia dos di-
versos ofícios malquistaram o ouvidor, o juiz de fora e o juiz ordinário
com o governador. Correu que se pretendia depô-lo, como em 1666 se
fizera a Jerônimo de Mendonça Furtado. Sob este pretexto, verdadeiro
ou falso, começou ele a prender pessoas importantes, e ameaçava ainda
outras quando a 17 de outubro desfecharam-lhe um tiro às 4 horas da
tarde, no meio da rua. Já tardava este desfecho: "Em Pernambuco se
acha que mais gente se tem morto a espingarda depois de sua re-
stauração do que matara a mesma guerra", escrevera-se alguns anos an-
tes.
Não foram pegados os três mandatários nem se descobriu man-
dante. Caldas, ligeiramente ferido, proibiu que a dez léguas do Recife an-
dasse alguém armado e mandou prender mais gente. O fato de superin-
tender a tudo sem se recolher ao leito deu azo aos agitadores para espal-
harem ser fingido o ferimento e o tiro mandado dar por ele próprio; a
proibição de andar-se armado apontaram como prova de estar disposto
a entregar terra aos franceses, que acabavam de atacar o Rio. Com isto
cresceu a fermentação; perdendo a calma, o governador expediu vários des-
tacamentos às freguesias da mata, a efetuar novas prisões. Levantou-se o
povo; parte da tropa foi cercada, parte capitulou, parte fraternizou e levas nu-
merosas de populares puseram-se em marcha para o Recife.
A 5 de novembro chegou à praça a notícia do levante; a 6, Caldas tentou
negociar com os levantados, que a nada quiseram atender; a 7 da madrugada
embarcou numa sumaca para a Bahia, levando consigo alguns dos mais
odiados de seus partidários.
Dos populares, recrutados pela maior parte em Santo Antão, S.
Lourenço, Jaboatão, Varge, Muribeca, alguns eram movidos sobretudo pela
pretensa traição do governador; a outros instigava ódio aos mascates, e for-
mava artigo de seu programa o saque do Recife. Tê-los dissuadido deste pro-
jeto deveu-se principalmente aos religiosos regulares e seculares. Na entrada da
nova vila houve algumas violências, mas de pequeno vulto e a tempestade des-
fez-se sem os estragos temidos. O pelourinho foi derribado, anulada a eleição,
inutilizados os pelouros, privados de insígnias os oficiais mascates; um ou ou-
tro devedor menos consciencioso liquidou as contas sumariamente; con-
tudo houve mais farsas e desfeitas que violências e desforços.
160 J. Capistrano de Abreu
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Com a retirada de Sebastião de Castro vagara o lugar de gover-
nador; abertas as vias de sucessão para saber o nome do substituto, saiu
o do bispo da diocese. Alguns insurgentes opuseram-se à posse. Ber-
nardo Vieira de Melo, sargento-mor, um dos cabos na guerra dos Pal-
mares, propôs se proclamasse uma república à moda de Veneza ou se
procurasse a proteção de alguma potência cristã. Hoje é festa estadual
em Pernambuco o dia 10 de novembro, em honra deste gesto peregrino.
Que idéia formava de república e da adaptabilidade a terras tão
atrasadas, a povo tão alheio às práticas políticas e administrativas, de or-
ganismo completo e delicado qual a constituição veneziana, provavel-
mente se ignorará até a consumação dos séculos. Ouvira, talvez, falar no
seu caráter aristocrático e ingenuamente equiparava a nobreza de Olinda
aos cultos patrícios das lagunas. Do protetorado de qualquer nação
cristã que se poderia seguir? Esperava-o fim idêntico ao da invasão fla-
menga -- bem o provava o atual movimento, triunfante graças principal-
mente à crença que se divulgou da conivência do governador expulso
com os franceses. De resto podem ser falsas estas alegações, transmiti-
das só por adversários rancorosos, empenhados em agravar as culpas
dos vencidos. Acabou-se reconhecendo legítimo o sucessor indicado
pelas vias de sucessão, Sua Ilustríssima o Senhor D. Manuel.
D. Manuel Álvares da Costa, chegado de Portugal no começo do
ano, mantivera com o representante do poder civil as relações antes frias
que cordiais de praxe entre os cabeças das duas sociedades perfeitas. Ao
ser informado do tiro, foi visitar o ferido de quem na mesma ocasião se
despediu por ter de partir para a Paraíba. Em caminho agregou-se à co-
mitiva, como dias antes convencionara, José Inácio Arouche, o ex-ouvi-
dor malquistado com o governador a propósito da divisão do termo do
Recife, e objeto de ódio muito particular seu e dos mascates, apesar de
português. Sebastião de Castro implicou-o entre os mandantes do crime
e fautores da conspiração, deu ordem de capturá-lo e, não sendo achado
em casa, mandou segui-lo até onde fosse encontrado: era fácil a diligên-
cia, pois Arouche não andara com mistérios.
A 20 de outubro, amanheceu cercada a igreja de Tapirema, onde
pernoitara o bispo, por uma tropa de soldados encarregada de realizar a
prisão. D. Manuel escreveu a Sebastião de Castro protestando contra a
desatenção à sua pessoa e decomposição imerecida e obrigando-se a dar
Capítulos de História Colonial 161
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conta do perseguido. A resposta foi remessa de força mais numerosa,
acusações odiosas contra o ex-ouvidor, ordem de trazê-lo vivo ou
morto: "Se o dito doutor está inocente, tenho bens com que satisfazer-
lhe a injúria e cabeça com que pague quando por este respeito mereça
castigo... Este doutor ficou em Pernambuco ou por pecado da terra ou
pelos meus, pois não só embaraçou o meu governo, mas pôs a V. Sª em
ódio com as suas ovelhas, como é público e notório, pois todos recon-
hecem as letras e virtudes de V. Sª e atribuem aos seus conselhos a vin-
gança tudo quanto se tem visto e experimentado." Arouche escapou à
prisão porque sacerdotes do lugar deram-lhe escapula e por caminhos
desviados levaram-no à Paraíba.
D. Manuel voltou para Olinda no dia 10 de novembro, a 15 to-
mou posse do governo, e logo, para aquietar os povos sublevados
desde São Francisco até Paraíba, perdoou-lhes a revolução e o tiro,
"confiado na grandeza de el-rei nosso senhor que Deus guarde, o haja
de confirmar".
Seguem-se alguns meses de calma aparente. A nobreza desfrutava
ruidosamente a vitória, dando tudo por terminado; apenas em junho do
ano seguinte falou-se de tirar proveito das fortalezas para impedir o de-
sembarque do novo governador, se não trouxesse o perdão esperado,
ou permiti-lo somente sob certas condições.
Entretanto a inércia dos mascates encobria um trabalho de mina
muito ativo. Com habilidade foram separadas da causa de Olinda as
freguesias situadas entre o cabo de Santo Agostinho e o rio São Fran-
cisco, obtida a cooperação do capitão-mor da Paraíba, do mestre-de-
campo dos henriques, do governador dos índios, do comandante da for-
taleza de Tamandaré; aos poucos, para não despertar atenção, reunidos
víveres em quantidade suficiente para resistir a um cerco; aliciado o
terço do Recife com seus oficiais, fiéis a Sebastião de Castro até a última
hora. Esta pelo menos é a versão olindense. Como nada transpirou até o
momento decisivo dificilmente se compreende; não se sabe o que mais
admirar, se a manha da gente mascatal, se a cegueira da nobreza, e ganha
foros de verossímil a história depois contada pelos mascates de que
nada se previra, nada se preparara, tudo surgira de momento. Até hoje
só têm triunfado no Brasil movimentos improvisados, que dispensam
longas combinações e prodigalidades cerebrais.
162 J. Capistrano de Abreu
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Soldados do terço do Recife e os de Bernardo Vieira de Melo en-
traram em rusga por causa de mulheres à-toa; o sargento-mor tomou o
partido dos seus e exigiu o castigo dos outros; estes imploraram-lhe
perdão, mas, encontrando-o maldisposto e implacável, saíram para a rua
disparando tiros, dando vivas ao rei e morras aos traidores, prenderam o
cabo dos Palmares e levaram-no para a cadeia. O bispo e Valenzuela
Ortiz, antigo juiz de fora que interinamente substituía a Arouche na ou-
vidoria, assistiram à prisão e aprovaram-na. Como por encanto ocupou
as fortalezas a gente recifense; tudo isto a 18 de junho de 1711. No ou-
tro dia o bispo assinou comunicações às freguesias rurais aquietando-as.
Se houvera de fato plano, a execução correu magistral: de um só golpe
ficavam guarnecidas as fortalezas com pessoal amigo, imobilizado o
mais resoluto cabecilha do grupo adverso e a legalidade de tudo atestada
pela presença e aprovação explícita do chefe religioso e civil da capitania
e de seu primeiro magistrado. Depois de três dias o bispo e o ouvidor
saíram de Recife para Olinda, onde o inesperado dos sucessos provo-
cara a maior agitação.
D. Manuel era varão virtuoso e letrado, mas facilmente suges-
tionável, timorato e violento a um tempo, impelido numa direção pelos
ditames da consciência e logo atirado em sentido oposto pelas intrigas
dos conselheiros. Sem grande custo convenceu-se na cidade de que os
mascates quiseram prendê-lo, que a guarnição das fortalezas embuçava
os mais negregados horrores, e não podia nem devia permitir desre-
speito à majestade real depositada em suas mãos. Mandou diversas inti-
mações aos do Recife para abandonarem as fortalezas, desvanecerem as
fortificações feitas para terra, reconhecerem a fidelidade dos olindenses.
Depois da quarta, tão inútil como as outras, a 27 de junho demitiu de si
parte do poder temporal em favor de Valenzuela Ortiz, do mestre de
campo Cristóvão de Mendonça Arrais, e oficiais do senado, "contanto
que não haja efusão de sangue e assim o protesto uma e mil vezes, como
já protestado tenho, e que para esta restauração e negócio, e tudo o mais
que dele se pode seguir, não concorre direta nem indiretamente, porque
só quero a paz e sossego nos vassalos de Sua Majestade que Deus
guarde".
Se quisesse tornar inevitável a efusão de sangue, o pobre prelado não
teria achado melhor caminho. Escudada em sua cumplicidade, a nobreza
Capítulos de História Colonial 163
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cercou o Recife e as hostilidades abriram-se com violência de parte a
parte. Bombardeios, surtidas, recriminações, folhas avulsas mostrando a
sem-razão dos adversários compõem este pouco interessante episódio.
Comandava os mascates João da Mota, natural de Alagoas, elevado a
capitão mandante por ser o oficial mais antigo. Era-lhe fácil manter a re-
sistência, pois os sitiados sabiam que desta vez, se se rendessem, seria
fatal o saque da vila. Dispunha a mais de sangue-frio, bravura, entusiasmo,
bom humor e presença de espírito. A exemplo do bispo, constituiu uma
espécie de governo eclesiástico de frades, principalmente recoletos e car-
melitas, letrados e canonistas, para contrabalançar as censuras e excomun-
hões episcopais. Nunca os mensageiros do prelado puderam fazer as inti-
mações necessárias, e portanto ninguém se considerou nunca excomungado.
A terrível arma mentiu fogo.
Na campanha houve dois combates; no primeiro venceram os
mascates, no segundo os cidadãos. Apesar de seu furor partidário, o
cronista olindense reconhece um quê de providencial no resultado dos
dois encontros: "Mistérios foram ambas estas ocasiões da Divina
Providência, que não permitiu o conseguir-se de outra sorte, livrando-
nos sempre do maior mal, que por cegos o não víamos; pois é certo que
se os nossos na primeira vez vencessem, como desejava, escandalizados
do seu atrevimento e sem o seu amparo os do Recife, entrariam de
fora os moradores a abrasar quantos dentro nele achassem. E se
nesta segunda batalha nos vencessem, vinham do mesmo modo so-
bre nós a acabar-nos."
A notícia dos primeiros sucessos chegou a Lisboa em fevereiro de
711. Com eles ocupou-se o Conselho Ultramarino na consulta de 26. A
impressão produzida foi veemente: "Este caso não só é gravíssimo, mas
o maior que até agora aconteceu na nação portuguesa", e a variedade
nos alvitres, a virulência nas propostas, chegando um membro a fixar o
mínimo dos que deveriam ser condenados à pena última, patentearam o
soçobro dos conselheiros. Quase tanta indignação como o tiro e o le-
vante suscitou a fuga de Sebastião de Castro, largando um governo de
que prestara menagem nas mãos do soberano; o perigo da vida, mesmo
se houvesse, não era o motivo para desculpá-lo.
Chegaram depois notícias mais tranqüilizadoras: a posse do bispo,
o perdão concedido aos revoltosos, a paz e a obediência sucedendo ao
164 J. Capistrano de Abreu
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motim. A consulta de 8 de abril já revela mais calma. Só a 1 de junho,
porém, o governo metropolitano resolveu confirmar o perdão, prender
Sebastião de Castro por abandono do cargo, enviar novo governador,
acompanhado de ouvidor, juiz de fora e alguma tropa.
Félix José Machado, nomeado governador, apareceu ao longe so-
bre Pau Amarelo em 6 de outubro, e logo os dois partidos mandaram a
bordo, expondo a seu modo o estado das cousas. Só então devia ter
sabido do cerco do Recife e mais sucessos dele decorrentes. Exigiu que
João da Mota entregasse as fortalezas, fez levantar o cerco e restituir
toda a autoridade política a D. Manuel, de cujas mãos unicamente as re-
ceberia.
Estes atos revelaram espírito bem orientado, disposto a colocar-se
sobranceiro às facções que se digladiavam. É bem possível mantivesse
esta atitude até o fim se houvesse maneira de chegar a qualquer con-
ciliação entre os combatentes, ou de arredar a questão fundamental:
quem eram os verdadeiros criminosos? os de Olinda que atentaram con-
tra a vida de Sebastião de Castro, derribaram o pelourinho, queimaram
as pautas eleitorais? os do Recife que negaram obediência ao bispo-gov-
ernador, guarneceram as fortalezas por autoridade própria, abocaram a
artilharia contra a terra? Os cidadãos haviam sido anistiados pelo rei; o
governador-geral desde a Bahia anistiara os mascates, mas estes, desva-
necidos e orgulhosos, diziam não precisar de perdão, antes reclamavam
recompensas e agradecimentos.
A resposta seria fácil havendo terceiro levante, e logo um partido
denunciou o outro de o estar tramando. A acusação era absurda, como
o ato inexeqüível. Os de Olinda não tinham encontrado apoio ao norte
de Itamaracá ou ao sul de Santo Agostinho; menos o encontrariam ag-
ora, com tropas vindas de Portugal e navios de guerra fundeados no
porto. A gente mascatal obtivera a restauração da vila, o reerguimento
do pelourinho, novas eleições: que mais poderia aspirar?
Entretanto, convenceu-se o governador de que os olindenses con-
spiravam, e logo começaram prisões, perseguições e processos. Ouvi-
dores e desembargadores chamados a devassar o caso mostraram não só
parcialidade odienta a favor dos reinóis, como às vezes ordenaram
prisões pelo simples desenfado de desfeitear o adversário e de se divertir
com a gente de sua roda. O bispo teve ordem de sair de Olinda para o
Capítulos de História Colonial 165
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São Francisco e como, por ser tempo das águas, viajasse devagar, inti-
mou-lhe um desembargador que andasse mais depressa. Se a primeira
dignidade eclesiástica não escapava destas afrontas, pode-se imaginar o
que passariam pessoas sem imunidades. Foram anos bem calamitosos os
de 712 e 713.
No fim deste, Antônio de Albuquerque, depois de ter governado
Maranhão, Rio, São Paulo e Minas, aportando a Pernambuco de pas-
sagem para a Europa, pôde observar o estado de miséria e atribulação
daquela pobre gente, e na corte expôs a verdadeira situação.
Os serviços prestados durante anos em cargos tão importantes davam
peso a suas palavras e a ele se atribui a disposição mais benévola desde logo
mostrada. Cartas régias datadas de 7 de abril de 714 lembraram que
estavam perdoados tanto o levante de 710 como o de 711; não havia
mais devassar e prender por causa deles; só constituía crime o de 713.
Por implicados neste foram conservados presos Bernardo Vieira de
Melo e um filho, Leonardo Bezerra e dois filhos, e Leão Falcão, o estou-
vado e leviano que, ainda depois da chegada de Félix José Machado,
teve a veleidade de tentar resistir e insurgir-se, nos limites de Goiana,
poderoso centro mascatal.
Leonardo Bezerra, depois de desterrado para a Índia, conseguiu
fugir para a Bahia, onde terminou a vida. Segundo a tradição, escrevia
aos amigos: "Não corteis um só quiri das matas; tratai de poupá-los para
em tempo oportuno quebrarem-se nas costas dos marinheiros." Marin-
heiro era uma das designações dos portugueses na capitania de Pernam-
buco, quiri o nome de madeira tão rija como ferro. Se as palavras são
autênticas, devia possuir otimismo incurável o velho insurgente que
fiava a república ou a independência de sua pátria de costas e cacetes
quebrados.
Entre estas agitações publicou-se na metrópole um livro intitulado
Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, obra de André João An-
tonil, lê-se na primeira página da edição impressa com as licenças ne-
cessárias pela oficina real Deslanderina em 1711. Hoje sabemos que se
tratava de anagrama e deve-se ler João Ant. Andreoni L. (luquense).
Filho de Luca em Toscana, Andreoni veio ao Brasil em 1689 como visi-
tador da Companhia de Jesus e terminada a comissão ficara na provín-
cia. Ocupava o cargo de reitor da Bahia quando expirou Antônio Vieira,
166 J. Capistrano de Abreu
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em 1697. Era provincial ao rebentar a guerra dos Mascates; há queixas,
provavelmente fidedignas, de haver manifestado simpatias a favor da
nobreza de Olinda.
A obra de Andreoni, dividida em cinco partes, trata de engenhos e
açúcar, de fumo, minas e gado. Sem amplificações, em forma tersa e severa,
adunava algarismos e mostrava o Brasil tal qual se apresentava à visão de um
espírito investigador e penetrante. Ficava-se agora sabendo da existência de
cento e quarenta e seis engenhos, moentes e correntes na Bahia com a pro-
dução ânua de quatorze mil e quinhentas caixas de açúcar, de duzentos e
quarenta e seis engenhos em Pernambuco, produzindo doze mil e trezentas
caixas; de cento e trinta e seis engenhos no Rio, produzindo dez mil, duzen-
tas e vinte. Somava tudo trinta e sete mil e vinte caixas, de trinta e cinco ar-
robas cada uma, apurando 2.535:142$800.
A Bahia produzia vinte e cinco mil rolos de fumo, Pernambuco e
Alagoas dois mil e quinhentos, rendendo anualmente 334:650$000.
No decênio anterior, a extração de ouro importaria mil arrobas;
oficialmente andava agora por cem cada ano, mas na realidade impor-
taria trezentas, uma por dia, descontados domingos e dias-santos.
Para avaliar o gado, bastava lembrar que os milhares de rolos de
fumo iam encourados para bordo; além disso, a Bahia exportava anual-
mente cinqüenta mil meios de sola, Pernambuco quarenta mil e Rio,
com os que iam da colônia do Sacramento, vinte mil -- ao todo cento e
dez mil meios de sola, na importância de 201:800$000.
E não são tudo estes 3.743:992$800 da opulência do Brasil em fa-
vor de Portugal.
Cumpre acrescentar "o que rende o contrato das baleias que por
seis anos se arrematou ultimamente na Bahia por 110 mil cruzados, e no
Rio de Janeiro por três anos por 45.000 cruzados; o contrato anual dos
dízimos reais, que na Bahia, nestes últimos anos, fora as propinas, che-
gou a perto de 200.000 cruzados; no Rio de Janeiro, por três anos, por
190.000 cruzados; em Pernambuco, por outros três anos, por 97.000
cruzados; em São Paulo, por 60.000 cruzados, fora os das outras capi-
tanias menores, que em todas notavelmente cresceram; o contrato dos
vinhos, que na Bahia se arrematou por seis anos em 195.000 cruzados,
em Pernambuco por três anos em 46.000 cruzados, e no Rio de Janeiro
por quatro anos por mais de 50.000 cruzados; o contrato de sal na Bahia
Capítulos de História Colonial 167
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arrematado por doze anos a 28.000 cruzados, cada ano; o contrato das
águas ardentes da terra e de fora, avaliado por junto em trinta mil
cruzados; o rendimento da Casa da Moeda do Rio de Janeiro, que,
fazendo em dois anos três milhões de moedas de ouro, deu de lucro a
el-Rei, que o compra a doze tostões a oitava, mais de seiscentos mil
cruzados; além das arrobas dos quintos que cada ano lhe vão; os direitos
que se pagam nas alfândegas dos negros que vêm cada ano de Angola,
São Tomé e Mina em tão grande número aos portos da Bahia, Recife e
Rio de Janeiro, a 3.500 réis por cabeça; e os dez por cento das fazendas
no Rio de Janeiro, que importam um ano por outro oitenta mil
cruzados".
A conclusão tirada destes algarismos escrupulosamente dispostos
não podia ser mais modesta. Devem ser multiplicadas as igrejas, pois
tanto cresce a população, admoestava o sagaz jesuíta; devem ser pro-
postas pessoas idôneas nos concursos e provimentos das igrejas vacan-
tes, pois tanto avultam os dízimos; deve-se pagar com pontualidade a
soldadesca das praças e fortalezas marítimas e adiantá-la nos postos em
igualdade de serviços; deve-se deferir as petições dos moradores e acei-
tar os meios que para seu alívio e conveniência as câmaras tão humilde-
mente propõem. "Se os senhores-de-engenhos e os lavradores do açúcar
e do tabaco são os que mais promovem um lucro tão estimável, parece que
merecem mais que os outros preferir no favor e achar em todos os tribunais
aquela pronta expedição que atalha as dilações dos requerimentos, e o en-
fado e os gastos de prolongadas demandas."
O governo metropolitano deu ao livro uma resposta fulminante: confis-
cou-o, e com tamanho rigor que ainda hoje raríssimos exemplares se encon-
tram da edição princeps. Pretextou para esta violência, estar divulgado nele o
segredo do Brasil aos estrangeiros. Não se vê bem como podia fazê-lo; culti-
vava-se cana e fabricava-se açúcar em colônias de outras nações; plantava-se
também fumo, criava-se gado, trafegavam-se minas. Que lhes poderia ensinar
de novo a Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas? A verdade é outra: o
livro ensinava o segredo do Brasil aos brasileiros, mostrando toda a sua pos-
sança, justificando todas as suas pretensões, esclarecendo toda a sua grandeza.
Sob a arquitetônica severa dos algarismos colhidos pelo benemérito je-
suíta, conservou-se inviolado o segredo do Brasil aos brasileiros; transpi-
rou, porém, sob outras formas, em adumbrações significativas.
168 J. Capistrano de Abreu
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Surdiu em ditirambos, exaltando a riqueza sem par do país. Apare-
ceu em vastas compilações dedicadas à nobiliarquia, como a de Borges
da Fonseca para Pernambuco, a de Jaboatão para Bahia, e sobretudo a
de Pedro Taques para São Paulo, entroncando as famílias do Brasil na
primeira nobreza de Espanha, Itália e Flandres. Como falecia-lhe senso
histórico, Loreto Couto apanhou centenas de nomes para mostrar Per-
nambuco ilustrado com virtudes, com as letras, pelas armas, pelo sexo
feminino.
No mesmo Loreto Couto, beneditino pernambucano que escrevia
por 1757, encontramos manifestação ainda mais característica: o ex-
alçamento, a glorificação do indígena, em confronto com a antiga gente
de Portugal e até com povos mais adiantados do Velho Mundo.
Para provar suas virtudes morais, cita o nome de índios notáveis
pelo valor e pela fidelidade, um Tabira, os Camarões e tantos outros
auxiliares nas guerras flamengas e na conquista do país. Entre as mani-
festações de suas virtudes intelectuais aponta os conselhos em que os
velhos da tribo discutiam as questões pendentes, o conhecimento das
enfermidades e mezinhas, os ardis de caça e pesca.
Ignoravam a verdadeira religião? Não adoravam como os gentios
antigos moradores da Beira e marinha de Setúbal uma baleia arrojada à
praia, nem lhe ofereciam em sacrifício anualmente uma donzela e um
moço. "Se os erros mui repugnantes aos princípios naturais provam bar-
baridade, é preciso declarar por bárbaros aos ingleses, dinamarqueses,
suecos e muitos alemães, pois em todas estas nações está muito domi-
nante o erro de que não pecamos por eleição, senão por necessidade,
que Deus nos obriga a pecar e nos é impossível evitar o pecado."
Se tivessem cultura, desenvolveriam a inteligência. "No nosso reino
de Portugal entre Celorico e Trancoso habitavam povos tão brutos e silves-
tres como animais indômitos, tão rudos que uma família não entendia a lín-
gua de outra com menos de duas léguas de distância, pelo que eram julgados
pelos povos confinantes como bestas mais feras que as mesmas feras."
Entregavam-se à antropofagia? "Nem nos deve admirar a barbari-
dade destes povos, quando sabemos que dos descendentes de Tubal e
de outras nações políticas com que se povoou Portugal se reduziram
muitos dos seus descendentes a tanta brutalidade que matavam e comiam
aos que dos povos vizinhos apanhavam ou em guerra ou em ciladas."
Capítulos de História Colonial 169
sumário
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Servindo-se dos mesmos raciocínios, trata da língua geral cujas ex-
celências celebra, da cor dos primitivos habitantes, etc. Suas idéias, dis-
cursivamente expostas e fundamentadas, aparecem sob forma sintética
nos poetas contemporâneos, de modo ainda mais intuitivo revelam-nas
os apelidos tomados na época da independência: Araripe, Braúna, Can-
guçu, Guaicuru, Jucá, Montezuma, Mororó, Sucupira, Tupinambá e
muitos outros. Por toda parte transparece o segredo do brasileiro: a dif-
erenciação paulatina do reinol, inconsciente e tímida ao princípio, con-
sciente, resoluta e irresistível mais tarde, pela integração com a natureza,
com suas árvores, seus bichos e o próprio indígena.
Com ar triunfante, o escritor beneditino agita o decreto real de 4 de
abril de 1755, declarando "que os meus vassalos deste reino e da
América que casarem com as índias dela não ficam com infâmia alguma,
antes se farão dignos de minha real atenção e que nas terras em que se
estabelecerem serão preferidos para aqueles lugares e ocupações, que
couberem na graduação de suas pessoas, e que seus filhos e descend-
entes serão hábeis e capazes de qualquer emprego, honra ou dignidade,
sem que necessitem de dispensa alguma", etc.
Este decreto constitui episódio de longa história que se pode resu-
mir em poucas palavras.
Apenas aportou à Bahia em 1549, Manuel da Nóbrega interessou-
se pelos indígenas, por seu bem-estar físico, por sua formação espiritual
e incorporação ao catolicismo. A experiência convenceu-o da necessi-
dade, para colher resultado útil e duradouro, de isolar o indígena do
colono, para afeiçoá-lo ao trabalho moderado, resguardar-lhe a segu-
rança pessoal e garantir-lhe economia independente. Que fosse permi-
tido escravizar índios, nunca contestou ele nem qualquer de seus suces-
sores: exigiram apenas o preenchimento de certas condições para a escravidão
ser lícita. Cometeram um erro capital, mas inevitável: como poderiam negar o
direito de cativar brasis, se os contemporâneos e as gerações seguintes durante
mais de dois séculos reconheceram a escravatura africana?
Apesar de todos os embaraços criados pelas hesitações da metrópole e
pelas paixões da colônia, a obra de Nóbrega prosseguiu e, na região
amazônica, sobretudo, prosperou. Aos missionários foi entregue a admin-
istração temporal das aldeias, cuja abastança e fartura excediam às das
vilas dos brancos. Não se falava senão das riquezas dos jesuítas, e de
170 J. Capistrano de Abreu
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sair
fato sua parcimônia, gerência metódica e desapego pessoal figuravam
uma magnificência de que levaram o segredo, como depois se verificou.
Com o tempo as aldeias tornaram-se não só um estado no Estado
como uma igreja na Igreja. O primeiro bispo do Pará quis chamar à sua
jurisdição os missionários, mas estes, escudados em numerosos
privilégios pontifícios e mercês régias, recusaram submeter-se. Suas
razões deviam pesar alguma coisa, pois a decisão final exigiu largos anos.
Aos 24 de setembro de 1751 tomou posse do cargo em Belém
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, nomeado governador-geral do
estado. Recomendavam-lhe suas instruções velasse pela liberdade dos
índios e coibisse os excessos dos missionários. Uma excursão começada
em fevereiro do ano seguinte permitiu-lhe visitar as aldeias distribuídas
entre a ilha de Marajó e o estreito de Pauxis. Em Caiá, ouvindo o dis-
curso de um cacique, satisfeito com os melhores tempos que se anun-
ciavam, exclamou: "E estes são os homens de quem se diz que não têm
juízo nem são capazes de nada! Deles se pode fazer uma nação como
qualquer outra de que se pode tirar grande interesse."
Sua correspondência oficial neste e nos anos imediatos insiste na
liberdade dos indígenas, nos abusos dos missionários, nos bens de raiz
possuídos contra lei expressa, etc. Em fevereiro de 54, escrevendo a
Diogo de Mendonça Corte-Real, mostra-se convencido da impossibili-
dade de civilizar os índios com o auxílio dos regulares. Suas palavras
eram genéricas, sem referência alguma especial à Companhia de Jesus.
De suas reclamações resultaram duas leis, datadas de 6 e 7 de junho do
ano seguinte, uma abolindo a administração temporal dos missionários
nas aldeias, proclamando a outra mais uma vez a liberdade absoluta dos
indígenas. Deixou-se ao arbítrio do governador-geral o modo e a
ocasião de publicá-las.
Incumbido de dirigir a demarcação das fronteiras do Norte, Men-
donça Furtado reclamou das aldeias as centenas de remeiros necessários
ao progresso da comissão, os milhares de alqueires de farinha e outros
gêneros necessários à manutenção de toda esta gente durante anos. O
Pará moderno, servido por navios a vapor, comerciando com os dois
mundos, estaria à altura de tamanhas exigências; não estava a Amazônia
antiga, ocupada na extração do cravo, da salsaparrilha, do cacau, susten-
Capítulos de História Colonial 171
sumário
próxima
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sair
tada quase exclusivamente pela pesca, muito feliz quando a pequena
produção agrícola bastava para o consumo ordinário.
Mendonça parece não ter tido idéia clara desta situação, e todos os
embaraços fatais, decorrentes da natureza das coisas, atribuiu às intrigas,
à malevolência e perfídia dos jesuítas, criminosos obstinados e relap-
sos de uma monstruosidade sem nome: não terem domesticado as
leis demográficas e econômicas às impaciências do irmão de Pombal.
Para castigar tão nefando crime, reuniram-se as duas sociedades perfeitas; só
uma expiação bastaria: extinguir a igreja na Igreja, o estado no Estado, que
realmente era e não podia deixar de ser o regime dos aldeamentos.
Em 5 de fevereiro de 57, Mendonça publicou a lei retirando aos
missionários a administação temporal das aldeias, que deviam ter daí por
diante uma organização puramente civil. Os missionários continuariam
como párocos sujeitos à jurisdição do prelado. Todos sujeitaram-se a isto
exceto os jesuítas por não lho permitirem suas constituições. Ofereceram-se
para coadjutores, mas isto não aceitaram o governador nem o bispo.
Mendonça formulou um diretório em cerca de noventa e cinco ar-
tigos, datado de 3 de maio, para reger provisoriamente. Neste código da
nova ordem de coisas, o missionário era substituído pelo diretor. A 14
do mesmo mês explicava esta criação do seguinte modo: "E não sendo
possível que passassem [os índios] de um extremo a outro sem se buscar
algum meio por que se pudesse chegar àquele importante fim, me não
ocorreu outro mais proporcionado do que pôr em cada povoação um
homem com o título de diretor, ao qual, sem ter jurisdição alguma coa-
tiva, lhe pertencesse só a diretiva para lhes ir ensinando não a forma de
se governarem civilmente, mas a comerciarem e a cultivarem as suas ter-
ras, e tirarem destes frutuosos e interessantíssimos trabalhos os lucros
que eles sem dúvida alguma hão de dar de si e fazerem-se estes até agora
desgraçados homens por esta forma cristãos, civis e ricos, que é o que
sem dúvida alguma lhe há de suceder, se os diretores fizerem a sua obri-
gação."
Em seguida passou a elevar as aldeias maiores a vilas e as menores
a lugares. Um contemporâneo, suspeito por ser jesuíta e não ter presen-
ciado os sucessos, dá interessante descrição destas novidades; também
sua cronologia não parece rigorosamente exata.
172 J. Capistrano de Abreu
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próxima
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"Veio-lhe pois ao pensamento dar o nome e os privilégios de vilas
à semelhança das que há em Portugal a muitas aldeias que os índios
habitavam, não obstante constarem todas de pobres e rústicas chou-
panas, à exceção da igreja e casas dos párocos. Para isto mandando le-
vantar um grande pau no meio de um terreiro, dava a este sítio o nome
de pelourinho; depois escolhendo entre todos aqueles selvagens alguns,
que lhe pareceram ou pela fisionomia do rosto ou pela mole do corpo,
mais hábeis para os empregos, a que os queria elevar, os constituiu
como vereadores ou juízes dos mais, dizendo-lhes que eles eram tão
bons, como os portugueses: que se governassem a si, sem dependência,
ou sujeição alguma dos missionários. Além disto mandou vestir e calçar
estas suas novas criaturas, assentá-las à sua mesa, fazendo-lhes nela mui-
tos brindes, e ensinando-lhes inter pocula, por meio de uma língua ou in-
térprete, o modo como se haviam de portar dali em diante, adminis-
trando a todos Justiça, etc., etc. Os índios porém, acabada a comida, e a
companhia desfeita, esquecendo-se de quanto lhes tinha dito o senhor
Mendonça, apenas saíram da sua presença tiraram os sapatos e vestidos
e se emborracharam com os seus vinhos a que chamam mocòroròs, e em
sinal de alegria e contentamento pelos cargos, a que tinham sido ele-
vados, gritavam todos dizendo: Vinha del-Rei, vinha del-Rei, querendo
dizer Viva el-rei, viva el-rei. Mas passada a bebedice e tornando em si, se fiz-
eram insolentes não só com os missionários, perdendo-lhes o respeito e
desobedecendo-lhes ainda nas coisas espirituais, senão também com os ou-
tros índios; e isto com tal excesso, que saindo os jesuítas e os mais religiosos,
que até ali foram párocos nas aldeias, além dos clérigos, que os substituíram,
se viu o senhor Mendonça obrigado a mandar alguns portugueses com o
título de diretores para os governar, e meter em sujeição: e ainda muitos destes
portugueses repugnaram a ir para as novas vilas sem terem sempre consigo
alguns soldados, que os defendessem dos insultos daqueles bárbaros."
Mendonça tratou em seguida da lei relativa à liberdade dos índios.
Havia uma bula de Benedito XIV, passada em 20 de dezembro de 1741 a
instâncias de D. João V, cominando excomunhão latae sententiae a quem
por qualquer motivo cativasse indígenas do Brasil. No panfleto pom-
balino intitulado Relação abreviada das repúblicas, etc., lê-se que o bispo
do Pará D. Miguel de Bulhões ao tratar de executar a mesma bula se
concitou contra ele uma sublevação que impediu por então aquela
Capítulos de História Colonial 173
sumário
próxima
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providência apostólica. A alegação é absolutamente caluniosa. Em data
de 11 de junho de 1757 escrevia Mendonça Furtado: "cuja bula foi dada
a este prelado por ordem de S. Majestade para publicar e fazer observar
na sua diocese, o que pretendo executar quando veio para esta cidade foi
embaraçada pelos mesmos fundamentos com que eu suspendi a publi-
cação da liberdade", etc. Os fundamentos para a suspensão da lei da
liberdade foram meras considerações de oportunidade, como se verifica
em toda a correspondência do governador-geral; nunca houve suble-
vação. E tanta consciência tinha o escriba de estar caluniando, que
acrescenta: "ao mesmo prelado não pareceu participar à corte uma tão
estranha desordem, em tempo no qual a notícia de um tão escandaloso
fato, temeu que alterasse a tranqüilidade do ânimo do dito monarca, que
já se achava com a grave enfermidade de que veio falecer em 31 de julho
de 1750". Assim se escreve a leitura.
A 25 de maio foi publicada a bula de Benedito XIV pelo bispo. A
28 Mendonça publicou a lei da liberdade dos índios. Não despertaram
protestos, e diga-se a verdade, não foram respeitadas apesar das aparências.
O diretório, aprovado pelo rei, vigorou de 1757 a 1798. As misérias
provocadas por ele, direta ou indiretamente, são nefandas. Por fim D.
Francisco de Sousa Coutinho teve compaixão dos índios e conseguiu a
revogação. Chegava tarde a medida salvadora: o mal estava feito. Em
1850 o Pará e o Amazonas eram menos povoados e menos prósperos
que um século antes; as devastações da cabanagem, os sofrimentos pas-
sados por aquelas comarcas remotas de 1820 a 1836 contam entre as
raízes a malfadada criação de Francisco Xavier de Mendonça Furtado.
As leis retirando aos missionários a administração das aldeias e
libertando os índios, ditadas só para o Estado do Maranhão, foram fei-
tas extensivas ao resto do Brasil por alvará de 8 de maio de 1758. Tam-
bém aqui miraculosamente pulularam as vilas, todas com legítimos nomes
portugueses. Nestas partes a questão do indígena já perdera a importância, e
as violências não foram tamanhas. Um escritor pernambucano das primeiras
décadas do século passado mostra a situação antes ridícula que tétrica:
"Os índios têm vilas e câmeras; e são nelas juízes, sem saberem
nem ler, nem escrever, nem discorrer! tudo supre o escrivão; o qual, não
passando muitas vezes de um mulato sapateiro, ou alfaiate, dirige a seu
arbítrio aquelas câmeras de irracionais quase, pelo formulário seguinte:
174 J. Capistrano de Abreu
sumário
próxima
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"Na véspera do dia, em que há de haver na aldeia vereação, parte o
escrivão da sua moradia, se é longe; e neste caso sempre a cavalo; e vem
dormir, nessa noite, em casa do senhor juiz, o qual imediatamente se en-
carrega do cavalo do senhor escrivão, leva-o a beber água; e por fim vai
peá-lo aonde possa comodamente pastar.
"Fica entretanto o escrivão descansando, senhor aliás da casa, mul-
her, e filhas do oficioso juiz, que na volta lhe cede o melhor lugar da
choupana, para dormir e passar a noite. Logo em amanhecendo começa
o juiz a ornar-se com os velhos e emprestados arreios da sua dignidade,
e a horas competentes marcha para um pardieiro, com alcunha de casa
da câmera, aonde lidas as petições, que o escrivão fez na véspera, são
despachados pelo mesmo escrivão em nome do senhor juiz ordinário; e
pouco depois se desfaz o venerando senado, e aparecem os senadores
de camisa e ceroulas, e de caminho para as suas tarefas."
A declaração da liberdade e o diretório dos índios foram seguidos
de outras medidas em que igualmente colaboraram a Igreja e o Estado.
A Santa Sé nomeou visitador e reformador-geral apostólico da Compan-
hia de Jesus o cardeal F. de Saldanha, que contra os jesuítas vibrou um
tremendo mandamento, subscrito a 15 de maio de 1758. A 7 de junho o
patriarca de Lisboa suspendeu-os do exercício de confessarem e pre-
garem na sua diocese. Aproveitando uns tiros dados no rei, Pombal fez
assinar pelo régio manequim uma lei declarando-os rebeldes, traidores, e
havendo-os por desnaturalizados e proscritos.
No correr do ano seguinte foram embarcados para o Reino as cen-
tenas de sucessores de Nóbrega encontrados no Brasil. Durou
duzentos e dez anos a sua atividade em nossa terra, e sua influência
deve ter sido considerável. Deve ter sido, porque no atual estado de
nossos conhecimentos é impossível determiná-la com precisão. No
tempo de sua prosperidade publicaram apenas a redundante, defi-
ciente e nem sempre fidedigna crônica de Simão de Vasconcelos, que
vai só de 1549 a 1570. O que se encontra nas crônicas-gerais, ânuas e
outras publicações reduz-se às poucas páginas reunidas por A. H.
Leal na Rev. Trim. do Inst. Hist. Biografias como as de Anchieta, Al-
meida, Vieira, Correia, pouco adiantam. Uma história dos jesuítas é
obra urgente; enquanto não a possuirmos será presunçoso quem quiser
escrever a do Brasil.
Capítulos de História Colonial 175
sumário
próxima
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sair
Nas suas diferentes casas devem ter ficado numerosos e importantes
documentos, que o desleixo ou o propósito aniquilou; salvaram-se apenas os
títulos de suas propriedades. A julgar por algumas publicações e documentos
fornecidos a Eduardo Prado e a Studart os arquivos europeus devem ser ri-
cos.
Enquanto não se fizer a luz sobre tão obscuros assuntos, um juízo
definitivo a respeito da famosa ordem pecará pela base. Em todo caso
pouca, muito pouca inteligência revelam os ataques dirigidos contra ela.
Instintivamente a simpatia volta-se para os discípulos e companheiros
de Nóbrega, Anchieta, Cardim, Vieira, Andreoni, os educadores da mo-
cidade, os fundadores da lingüística americana.
O mapa anexo [ver pág. seg.] foi extraído da Recopilação de notícias soteropolitanas
e brasílicas, escritas em quatro volumes, acompanhados de dois de cartas geográficas,
por Luís dos Santos Vilhena, professor de grego na capital da Bahia em começos do
século passado. O precioso códice pertencente outrora à biblioteca dos condes de Lin-
hares, é hoje propriedade de José Carlos Rodrigues, que gentilmente permitiu a divul-
gação do interessante inédito.
Seria conveniente organizar trabalho semelhante para as outras capitanias do
Brasil. Enquanto isso não se faz, pode prestar algum serviço a lista seguinte das aldeias
existentes antes da revolução pombalina.
A lista do Pará e Amazonas refere-se a 1751; compô-la João Antônio da Cruz
Diniz Pinheiro, e publicou-a J. Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas no Grão-Pará, Lisboa,
1901. Há nela mais de um equívoco.
Os jesuítas administravam no Pará as aldeias de Caeté, Maracanã, Cabu, Vigia, Mor-
tigura, Sumaúma, Araticu, Aricuru, Aricará, no Amazonas; Itacuruçá, Pirauiri, Aricará no
Xingu; Tapajós, Borari, Cumaru, Santo Inácio e S. José, no Tapajós; Abacaxis e Trocano,
no Madeira.
Os capuchos de S. Antônio administravam as de Caviana na ilha do mesmo nome,
Menino Jesus, Socacas ou Joanes, S. José, Anaiatuba, Bocas, Urubucuara, Acarapi e Paru.
Os capuchos da Conceição ou S. Boaventura administravam Magabiras, Caiá, Con-
ceição, Iraí, Tuari, Uramucu.
Os capuchos de S. José ou da Piedade administravam Gurupá, Arapijó, Caviana, Ma-
turu, Jamundá, Pauxis, Curuá, Manema, Surubiú e Gurupatuba.
Os carmelitas administravam no Solimões Coari, Tefé, Maneruá, Paraguari, Turucu-
atuba, S. Paulo e S. Pedro, e no rio Negro, Jaú, Caragaí, Aracari, Comaru, Mariuá, S.
Caetano, Cabuquena, Bararuá, Dari.
Pela soma de Diniz Pinheiro são sessenta e três as aldeias: dezenove regidas por je-
suítas, doze por capuchos de Santo Antônio, seis por capuchos da Conceição, nove por
capuchos da Piedade, dezessete por carmelitas e uma pelos mercenários no rio Urubu.
Os nomes dados a aldeias quando se retirou a administração temporal dos missionários
encontram-se mais ou menos no ensaio corográfico de Baena. Precisa-se, porém, de uma
revisão crítica, a que felizmente está procedendo Manuel Barata, grande conhecedor da
história amazônica. Um documento próprio a resolver todas as dúvidas seria o Mapa geral
do bispado do Pará repartido nas suas freguesias, existente na Biblioteca Nacional, construído
pelo engenheiro
176 J. Capistrano de Abreu
sumário
próxima
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Mapa curiooso que contém não vulgares notícias de muitas aldeiaas de índios que, por ordem régia, são hoje vilas
Números das
aldeias
Nomes que
tinham no tempo
que eram aldeias
Villas de que eram
termo
Freguezias
a que
pertenciam
Missões
que as
doutrinavam
Novas vilas que
hoje são
Oragos das suas
paroquias
Dioceses a que
pertenciam
Cap itanias a que
pertenciam
Comarcas em que
se acham
Extensão de terras
q ue se lhes deu
Casais com que
ficaram
Nação dos
gentios que as
habitavam
Léguas de
distância da Bahia
1 JURU Lagarto N. S. dos
Campos do
Rio Real
Jesuítas Távora N. S. do Socorro Bahia Sergipe
d’El-Rei
Sergipe
d’El-Rei
60 Kiriris 50
2 SACO DOS
MORCEGOS
Itapicuru Santana dos
Tucanos
Jesuítas Mirandela Ascensão de Cristo Bahia Bahia Bahia Bastante 100 Kiriris 65
3 CANA BRAVA Itapicuru S. João de
Geremoabo
Jesuítas Pombal Santa Teresa Bahia Bahia Bahia Poucas 110 Kiriris 60
4 NATUBA Itapicuru N. S. de Nazaré
de Itapicuru
Jesuítas Soure N. S. da Conceição Bahia Bahia Bahia Muito poucas 110 Kiriris 50
5 IPITANGA Bahia Santo Amaro Jesuítas Abrantes Espírito Santo Bahia Bahia Bahia Seis léguas
quadradas
140 Tupis ou
Tupinambás em
mistura Goianás etc.
7
6 SERINHAEM Camamu Assunção do
Camamu
Jesuítas Santarém S. Miguel e S. André Bahia Ilhéus Ilhéus Bastante 160 Paiaiá 30
7 ESCALA DOS
ILHÉUS
S. Jorge dos Ilhéus Santa Cruz
dos Ilhéus
Jesuítas Olivença N. S. da Escada Bahia Ilhéus Ilhéus 130 Tabajaras
ou Tupinaquis
50
8 MARAÚ Camamu S. Sebastião
do Camamu
Jesuítas Barcelos N. S. das Candeias Bahia Ilhéus Ilhéus 86 Tupinaquis 30
9 GRENSS. Jorge dos Ilhéus Santa Cruz da
Vila de S.
Jorge
Jesuítas Almada N. S. da Conceição Bahia Ilhéus Ilhéus Muitas 95 Grens 60
10 S. JOÃO DOS
TOPES
Santa Cruz N. S. da Pena Jesuítas Trancoso S. João Rio de
Janeiro
Porto
Seguro
Porto Seguro 120 Tupinaquis
Tupinambás
70
11 PATATIBA Santa Cruz N. S. da Pena Jesuítas Vila Verde Espírito Santo Rio de
Janeiro
Porto Seguro Porto
Seguro
80 Tupinaquis
Jontutus
80
12 RERITIBA Buruparim N. S. da
Conceição
Jesuítas Benevente N. S. da Assunção Rio de
Janeiro
Esp. Santo Esp. Santo 12 léguas de
costa
250 Tupinambás 150
13 REIS MAGOS Vila da Vitória Serra Jesuítas Almeida Santos Reis Magos Rio de
Janeiro
Esp. Santo Esp. Santo Muitas 300 Tupinambás 120
sumário
próxima
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Mapa curiooso que contém não vulgares notícias de muitas aldeiaas de índios que, por ordem régia, são hoje vilas
Números das
aldeias
Nomes que
tinham no tempo
que eram aldeias
Villas de que eram
termo
Freguesias
a que
pertenciam
Missões
que as
doutrinavam
Novas vilas que
hoje são
Oragos das suas
parochias
Dioceses a que
pertenciam
Cap itanias a que
pertenciam
Comarcas em que
se acham
Extensão de terras
q ue se lhes deu
Casais com que
ficaram
Nação dos
gentios que as
habitavamm
Léguas de
distância da Bahia
14 POXINO S. Jorge dos Ilhéus S. Boaventura
de Poxino
Clérigo Nunca foi vila S. Boaventura de
Poxino
Bahia Ilhéus Ilhéus
15 ARAMARIS S. João da Água Fria Espírito
Santo do
Inhambuque
Clérigo Nunca foi vila S. Boaventura de
Poxino
Bahia Bahia Bahia Muito poucas 51 Kiriris 40
16 MANGUINHOS S. João da Água Fria Espírito
Santo
Clérigo Nunca foi vila S. Boaventura de
Poxino
Bahia Bahia Bahia Muito poucas 120 Caramuru 35
17 CONQUISTA
DA PEDRA
BRANCA
Maragogipe Oiteiro
Redondo de
N. S. do
Desterro
Clérigo Nunca foi vila S. Boaventura de
Poxino
Bahia Bahia Bahia Muito poucas 20 Kiriris 30
18 OUTRA NO
MESMO SÍTIO
Maragogipe Oiteiro
Redondo de
N. S. do
Desterro
Clérigo Nunca foi vila S. Boaventura de
Poxino
Bahia Bahia Bahia Muito poucas Tapuias 30
19 RODELAS Pambu Santo
Antônio do
Pambu
Capucho
italiano
Nunca foi vila S. João Batista Bahia Sergipe Jacobina uma légua Almas 200 Periás 170
20 PORTO DA
FOLHA
Vila Nova Real d’El-
Rei
S. Antonio do
Urubu de
Baixo
Capucho
italiano
Nunca foi vila S. Pedro Bahia Sergipe Sergipe uma légua Almas 250 Urumas 124
21 PACATUBA Vila Nova Real d’El-
Rei
S. Antônio
de Vila Nova
Real
Capucho
italiano
Nunca foi vila S. Félix Bahia Sergipe Sergipe meia légua Almas 466 Caxago 106
22 UNA DO CAIRU Vila Cairu N. S. do
Rosário
Italiano Nunca foi vila S. Félix Bahia Bahia Ilhéus uma légua Almas 160 Tupinambás 16
23 ITAPICURU DE
CIMA
Itapicuru N. S. de
Nazaré
Franciscano Nunca foi vila S. Antônio e N. S.
da Saúde
Bahia Bahia Bahia Menos de
uma légua
Casais
80
Tupinambás 45
24 MAÇACARÁ Itapicuru S. João de
Geremoabo
Franciscano Nunca foi vila Santíssima Trindade Bahia Bahia Bahia uma légua Casais
200
Kiriris e catrimbis 60
sumário
próxima
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sair
Mapa curiooso que contém não vulgares notícias de muitas aldeiaas de índios que, por ordem régia, são hoje vilas
Números
das aldeias
Nomes que
tinham no tempo
que eram
aldeias
Villas de que eram
termo
Freguezias
a que
pertenciam
Missões
que as
doutrinavam
Novas vilas que
hoje são
Oragos das suas
paroquias
Dioceses a qu e
pertenciam
Cap itanias a que
pertenciam
Comarcas em que
se acham
Extensão de terras
q ue se lhes deu
Casais com que
ficaram
Nação dos
gentios que as
habitavam
Léguas de
distância da Bahia
25 BOM JESUS DE
JACOBINA
Vila Santo Antônio
de Jacobina
Santo
Antonio
Franciscano Nunca foi vila Bom Jesus Bahia Bahia Jacobina Muito poucas Casais
100
80
26 SAÍ Jacobina Santo
Antônio de
Jacobina
Franciscano Nunca foi vila N. S. das Neves Bahia Bahia Jacobina uma légua Casais
150
80
27 JUAZEIRO Jacobina Santo
Antônio
Franciscano Nunca foi vila N. S. das Brotas Bahia Bahia Jacobina Casais
100
100
28 CURRAL DOS
BOIS
Vila Nova da
Rainha ou Penedo
Pambu Franciscano Nunca foi vila S. Francisco Bahia Bahia Jacobina Casais
80
Kiriris 100
29 ALDEIA DO
RIO REAL
Vila da Abadia N. S. da
Abadia
Carmelita
calçado
Nunca foi vila Jesus, Maria e José Bahia Sergipe Bahia Muito poucas Casais
80
Kiriris 52
30 JAPARATUBA Abadia Jesus Maria e
José
S. Gonçalo
Carmelita
calçado
Nunca foi vila N. S. do Carmo Bahia Sergipe Bahia Muito poucas Casais
120
Boimé 65
31 ÁGUA AZEDA Cidade de Sergipe N. S. da
Vitória
Carmelita
calçado
Nunca foi vila N. S. do Carmo Bahia Sergipe
d’El-Rei
Sergipe
d’El-Rei
Boimé 65
32 MAÇARAN-
DUPIÓ
Santa Luzia do Rio
Real
Santo
Amaro da
Ipitanga
Carmelita
descalço
Nunca foi vila Santo Antônio de
Arguim
Bahia Bahia Bahia 6 léguas Casais
50
Almas
240
Tupis ou
Tupinambás
18
33 SANTO
ANTÔNIO DA
ALDEIA
Maragogipe S. Bartolomeu Clérigo Nunca foi vila Santo Antônio Bahia Bahia Bahia Tupis ou
Tupinambás
18
34 JIQUIRIÇÁ Jaguaripe S. Antônio Clérigo Nunca foi vila N. S. dos Prazeres Bahia Bahia Bahia Tupis ou
Tupinambás
18
35 JAGUARIPE
DO RIO
D’ALDEIA
Jaguaripe Nazaré Clérigo Nunca foi vila N. S. de Nazareth Bahia Bahia Bahia Tupis ou
Tupinambás
18
36 ALDEIA DO
SALITRE
S. Antônio do
Urubu de Cima
S. Antonio Clérigo Nunca foi vila N. S. Madre de
Deus
Bahia Bahia Jacobina Tupis ou
Tupinambás
134
sumário
próxima
anterior
sair
Henrique Antônio Galuzi em 1759, se ao lado das modernas trouxesse as desig-
nações antigas.
A C. R. de 19 de março de 1693 confiou aos jesuítas os índios da margem
meridional do Amazonas, sem limitações do sertão; aos frades de Santo Antônio o
sertão do cabo do Norte e a margem setentrional do grande rio, compreendendo os
rios Jari, Paru e a aldeia de Urubucuara, fundada pela Companhia de Jesus; aos da
Piedade do distrito do Gurupá com as aldeias vizinhas, as da margem setentrional do
Amazonas desde o rio Trombetas até o rio Negro, e também o rio Xingu.
No Maranhão e capitanias dependentes existiam, segundo Diniz Pinheiro,
dezessete aldeias: aruazes e paracatis, no Piauí; duas de araiós e araperus, junto ao Par-
naíba; mais uma de tarabambés, uma de gamelas, outra de tapijaras, chamada S. José,
no Maranhão; S. João, Maracu e Pinaré, administradas por jesuítas, uma administrada
por carmelitas e outra por mercenários, na capitania de Cumá.
Um mss. do Instituto Histórico, Évora, 8, redigido cerca de 1751, dá como al-
deados no Itapicuru os gueguês, barbados, caicases, aranhés e tupinambás; no Pindaré
os guajajaras marava e guaiajara-açu.
A carta de Gonçalo Pereira Lobato e Sousa, governador do Maranhão, escrita a
Diogo de Mendonça Corte-Real em 21 de fevereiro de 1759, trata da criação de diver-
sas vilas. Há cópia deste documento no Instituto Histórico.
As aldeias existentes em Pernambuco, desde as divisas com Minas Gerais pelo
interior até as fronteiras do Piauí na marinha, constam da Informação geral de Pernambuco,
organizada em 1749, mss. que a Biblioteca Nacional tem no prelo.
Na capitania de Pernambuco existiam cinqüenta e quatro aldeias, dezessete de
língua geral, seis misturadas, as outras de língua travadas administradas por jesuítas,
franciscanos, teresianos, carmelitas, beneditinos, capuchinhos, italianos ou não, oratori-
anos e sacerdotes do hábito de S. Pedro. No seguinte, l.g. = língua geral, J = jesuíta, F
= franciscano, Cm. = Carmelita, Cp. = Capuchinhos, Ci = Capuchinhos italianos, B =
beneditinos, O = oratoriano, H = hábito de S. Pedro, Th = teresianos, Sm. = sem mis-
sionário.
Segue-se a ordem adotada pela Informação geral de Pernambuco.
Na vila de Recife havia a aldeia de N. Sª da Escada, l. g., O; na de Igaraçu a do Li-
moeiro, l. g., O; na de Goiana, Aratagui, l. g. Siri, l. g., Cm.
Paraíba: Na cidade de Paraíba, Jacoca, l. g., B; Utinga, l. g., B; em Mamanguape, S.
Miguel da baía da Traição, l. g., Cm; Preguiça, l. g., Cm.; Boavista, Canindés e Sucurus,
Th.; Taipu, Cariris, Cp; Cariri, Campina Grande, Cavalcantes, H, e Brejo, Fagundes,
Cp; no rio Piancó, Panati, Tapuios, Th.; Curema, Tapuios, Cp.; no rio Piranhas: Pega,
Tapuias, Sm.; no rio do Peixe, Icó Pequeno, Tapuios, Sm.
Rio Grande do Norte: Guajaru, l. g. e Paiacus, j.; Apodi, Paiacus, Th.; Mipibu, l. g.,
Cp.; Gurairás, l. g., j.; Gramació, l. g., Cm.
Ceará: Ibiapaba, l. g., Araracus, Irariú e Anacés, J.; Tramambés, Tramambés, H.;
Caucaia., l. g., J.; Parangaba, l. g.; Anacés, J.; Paupina, l. g., J.; Paiacus, J.; Palma, Can-
indés e Jenipapos, H, Telha, Quivelôs, Quixeré, Jucá, Condadu e Cariú, H.; Miranda,
Quixeré, Cariú, Cariúané, Calabaça e Icozinho, Cp.
Serinhaém: Una. l. g. Cm.
Vila de Alagoas: Santo Amaro, l. g., F.; Gameleira, Cariris e Uruás, H.; Urucu, l. g.,
Sm.
Vila de Penedo: São Brás, Cariris, Progés, J.; Alagoa Comprida, Carapotiós, Sm.;
Pão de Açúcar, l. g.; Chocós, H.; Serra do Comonati, l. g.; Carnijós, H.
Freguesia de Ararobá: Ararobá, Chururus, O.; Carnijós do rio Panema, Tapuias, H.;
Macaco, Paraquiós, Sm.
180 J. Capistrano de Abreu
sumário
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Freguesia de Rodelas: São Francisco do Brejo, Tapuios, F.; N. Sª do O da ilha de
Sorobabé, Porcás e Brancararus, F.; N. Sª de Belém da ilha de Acará, Porcás e Bran-
cararus, Ci.; Beato Serafim, Porcás e Brancararus, Ci.; N. Sª da Conceição do Pambu,
Cariris, Ci.; S. Francisco de Aracapá, Cariris, Ci.; S. Félix da ilha do Cavalo, Cariris, Ci.;
S. Antônio de Irapuá, Cariris, Ci.; N. Sª da Piedade na ilha do Inhamum, Cariris, F.; N.
Sª do Pilar, na ilha de Coripós, Coripós, F.; N. Sª dos Remédios na ilha do Pontal,
Tamaquiús, F.; S. Cristo de Araripé, Ichus, Ci.
Rio Grande do Sul (antigo nome do afluente ocidental do S. Francisco): Aricobés,
l. g., F.
A sinonímia é facilitada pela Idéia da população de Pernambuco, manuscrito da Bib-
lioteca Nacional, organizado no governo de José César de Meneses. As aldeias do
Ceará elevadas a vilas já foram estudadas pelo indefeso erudito barão de Studart.
Segundo Joaquim Norberto, Rev. Trim. do Inst. Hist., 17, 109 e seguintes, existiram
no Rio as Aldeias de S. Lourenço, S. Barnabés, S. Francisco Xavier, N. Sª da Guia, S.
Pedro, Ipuca e Guarulhos. Na interessante monografia acham-se reunidos os docu-
mentos elucidadores do assunto. Pode-se também consultar com proveito Regimento
das Câmaras Municipais de Cortines Laxe, Rio, 1868; há segunda edição revista e acres-
centada por A. J. Macedo Soares.
Machado de Oliveira, Rev. Trim. 8, 200, enumera para S. Paulo as seguintes al-
deias: Pinheiros ou Carapicuíba, Barueri, Ururari, N. Sª da Escada, Conceição dos
Guarulhos, S. João de Peruíbe, S. José, Nossa Senhora da Ajuda do Itaquequecetuba.
Emboú, ou Mboé, Itapecerica e Conceição de Itanhaém. Ao mesmo autor parece que
existiram no Paranapanema as aldeias de São Xavier, S. Inácio e Encarnação.
Não precisam de especificação as aldeias de Santa Catarina, Rio Grande do Sul,
Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.
Capítulos de História Colonial 181
sumário
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. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
X
Formação dos limites
Os papas Nicolau V, Calixto III, Xisto IV concederam à
coroa portuguesa as terras e ilhas novamente descobertas sob o influxo
do infante D. Henrique e dos seus sucessores imediatos. Com surpresa
de Portugal obtiveram os reis católicos uma concessão do mesmo
gênero depois de Cristóvão Colombo tornar de sua primeira viagem: em
maio de 1493 atribuiu-lhes Alexandre VI todas as terras e ilhas
descobertas e por descobrir, situadas cem léguas a oeste de qualquer das
ilhas dos Açores e do Cabo Verde.
Protestou contra o ato pontifício D. João II, julgando-o lesivo de
seus direitos; depois do protesto entabulou negociações com os monar-
cas vizinhos; afinal concluíram um acordo em Tordesilhas. O convênio,
aí assinado em 7 de junho de 1494, manteve o princípio enunciado pelo
papa: a divisão do mundo em dois hemisférios, pertencentes um a Por-
tugal, outro à Espanha; modificou, porém, o número de léguas, ele-
vando-as de cem a trezentas e setenta, e o ponto de partida para a con-
tagem, que seria uma ilha, não especificada então nem depois, do ar-
quipélago do Cabo Verde. O arreglo foi meramente formal e teórico:
ninguém sabia o que dava ou recebia, e se ganhava ou perderia com ele
no ajuste das contas.
sumário
próxima
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O descobrimento do Brasil, realizado alguns anos depois por
Pedr’Álvares Cabral, foi precedido pela expedição de Vicente Yañez
Pinzón; mas os espanhóis não alegaram prioridade nem duvidaram
coubesse a Terra dos Papagaios dentro na raia portuguesa. Seus interes-
ses estavam ao norte, não ao sul da equinocial, que só começou a ter
valor com a expedição de D. Nuno Manuel.
As primeiras dúvidas sobre a linha divisória surgiram no mediter-
râneo austral-asiático. Segundo o parecer de Fernão de Magalhães com-
preendiam-se nos domínios da Espanha as Molucas, tão cobiçadas por
suas especiarias. Para prová-lo empreendeu a viagem em que descobriu
o estreito ainda hoje conhecido por seu nome, atravessou o oceano
Pacífico, chegou pelo Poente ao Levante como nebulosamente conce-
bera e nunca realizou Colombo. Depois de sua morte Sebastian d’El-
cano concluiu o périplo incomparável e na volta à pátria, em setembro
de 1522, manifestou a mesma crença nos direitos de sua nação e a ur-
gência de reivindicá-los. A corte espanhola deixou-se convencer. Entre
ela e a de Portugal estabeleceu-se uma discussão enfadonha, alegando-se
ora a prioridade do descobrimento, ora a legitimidade do domínio no ar-
quipélago prestigioso. Do debate resultou a capitulação de Saragoça, em
abril de 1529. Admitindo que as Molucas pertenciam legitimamente à coroa
espanhola, João III comprou os direitos de Carlos V, por trezentos e cin-
qüenta mil ducados; se mais tarde verificassem a não existência de tais direi-
tos, o imperador restituiria a soma recebida; a linha divisória passaria naquele
hemisfério duzentas e noventa e sete e meia léguas ao oriente das Molucas; e
a légua seria das de dezessete e meia o grau no equador.
O machado de metal levado em 1514, as expedições de Solis,
Cristóvão Jaques, Cabot e Garcia deram importância às terras platinas e
levantaram a questão de limites no continente americano. Surgiram e arras-
taram-se os debates a propósito da expedição de Martim Afonso de Sousa
(1530-1533), sempre sob a dupla face de prioridade proclamada por Portu-
gal e legitimidade de domínio, alegada por Castela. Em setembro de 32, ex-
primia D. João III a idéia de distribuir em capitanias hereditárias o território
situado entre Pernambuco e rio da Prata; nas doações feitas mais tarde,
avançou apenas até 28º 1/3, à vista das reclamações espanholas, ou,
segundo parece, de observações astronômicas de Martim Afonso, as-
sim reconhecendo que seus domínios não iam mais longe. Os
184 J. Capistrano de Abreu
sumário
próxima
anterior
sair
espanhóis estendiam, porém, suas pretensões mais para o norte. Em
534, Rui Mosquera estabeleceu-se no Iguape, repeliu com vantagem um
ataque de Pero de Góis e saqueou São Vicente; diversos documentos
oficiais contemporâneos traçam a linha divisória desde Cananéia e até de
São Vicente para o sul.
Com a união das duas coroas decresceu a importância dos limites
meridionais e a atenção concentrou-se na Amazônia. Ante as incursões
de flamengos e ingleses, conhecidas apenas no Pará se estabeleceu Cas-
telo Branco, pareceu acertado confiar as novas conquistas à guarda dos
portugueses mais próximos e melhor preparados para defendê-las; a
criação do governo separado do Maranhão representou um primeiro
passo neste sentido. Ainda mais decisiva foi a criação de duas capitanias
hereditárias, sujeitas ambas à coroa portuguesa, em terreno indiscutivel-
mente espanhol pelo espírito e pela letra de Tordesilhas: a de Cametá,
concedida a Feliciano Coelho de Carvalho, limitada a oeste pelo Xingu
na margem direita, a do cabo do Norte na margem esquerda do Ama-
zonas, concedida a Bento Maciel Parente, limitada a oeste pelo Peru.
Em 1639, Pedro Teixeira, voltando de Quito, tomou posse em nome
del-rei de Portugal das terras situadas entre o rio Aguarico, afluente do
Napo, e o mar; faltava-lhe autoridade para tanto; mas este ato foi mais
tarde e muitas vezes invocado e aceito como título de posse.
No Sul, o movimento de ocupação se operou com muita lentidão
por parte de Portugal, acompanhando o litoral do Paraná e Santa Ca-
tarina, e continuou do mesmo modo ainda depois de 1640. Por sua
parte os espanhóis não curaram de ocupar a margem esquerda do Prata,
descuido verdadeiramente inexplicável, se não duvidavam de seus direi-
tos, a menos que se não explique pela certeza de sua intangibilidade.
Se persistissem as reduções dos tapes e de Guairá, avançariam
naturalmente para o Oriente, chegariam à marinha. Se outros elementos
os reforçassem, o conflito poderia ser evitado ou talvez a vitória lhes
coubesse. Mas os jesuítas só reergueram as missões do Uruguai, e as
rela-ções destas gravitavam para Buenos Aires e Asunción, com estas
capitais para os Andes e o Pacífico.
Autores portugueses discutiam entretanto o meridiano de Tordesil-
has, traçando-o uns pela foz do Prata, outros pelo golfo de São Matias,
na Patagônia. Tais idéias tornaram-se correntes. Depois de assinada a
Capítulos de História Colonial 185
sumário
próxima
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sair
paz que reconheceu sua independência, o monarca de Portugal outor-
gou uma capitania a um dos netos de Salvador Correia, balizando-a pelo
estuário platino. Em 1680 mandou afundar na margem setentrional do
Prata, a dez léguas de Buenos Aires, a colônia do Sacramento.
Apenas certificou-se de sua existência, o governador espanhol ata-
cou-a e tomou-a. A notícia transmitida à Europa quase desencadeou
nova guerra. Procurou-se ainda uma vez, e agora com mais veras, apurar
o verdadeiro alcance da linha de Tordesilhas. Não se conseguiu. A
Espanha condescendeu em reconstruir a fortaleza e restituir provisional-
mente o território, para afastar qualquer motivo de irritação do debate,
que deveria continuar no terreno científico.
Ao rebentar a guerra da sucessão da Espanha, el-rei de Portugal
esposou a causa do duque de Anjou, que por isso lhe cedeu o território
disputado no Prata. Mais tarde mudou de partido e aliou-se à Inglaterra
a favor do pretendente austríaco. Daí resultou novo ataque e nova
tomada da colônia do Sacramento, que permaneceu em mãos do in-
imigo de 1706 a 1715. Levara até então vida bem singular. "A nova
colônia do Sacramento por mercê de Deus se conserva", escrevia al-
guém pouco depois de 1690, "por meterem nela um presídio fechado
sem mulherio que é o que conserva os homens, porque se não tem visto
em parte alguma do mundo fazerem-se novas povoações sem casais."
Este ninho, antes de contrabandistas que de soldados, foi talvez o berço
de uma prole sinistra, os gaúchos, os gaudérios, originários da margem
esquerda do Prata, famosos durante largas décadas e ainda não assimi-
lados de todo à civilização. A quantidade de meios de sola exportados
do Rio no começo do século XVIII não se explica pela simples pro-
dução indígena nem por contrabando de Buenos Aires: implica o proc-
esso sumário dos gaúchos da matança das reses, resultante da abundân-
cia e depreciação do gado vacum, do pululamento da cavalhada e do
espaço indefinido e livre para as correrias.
O Tratado de Utrecht mandou restituir a colônia a Portugal e foi
restituída com seu território. Qual era seu território? Toda a margem
esquerda do Prata, pretenderam os portugueses; o espaço alcançado por
um canhão da fortaleza, entendiam os espanhóis. Triunfaram estes.
Aqueles tentaram estabelecer-se em Montevidéu, mas seus esforços
foram perdidos. Também os espanhóis em 1735 tentaram apossar-se da
186 J. Capistrano de Abreu
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colônia e sujeitaram-na a um assédio aspérrimo de vinte e dois meses.
Antônio Pedro de Vasconcelos, comandante da praça, resistiu heroi-
camente e obrigou o inimigo a retirar-se.
A fundação da colônia do Sacramento devia servir de ponto de
partida para um povoamento que, partindo do Prata, iria ter à beira-mar.
Este plano falhara; restava o plano contrário: estabelecer-se na marinha,
estender-se pelo interior até chegar às águas platinas, em outros termos,
povoar o rio de São Pedro, mais tarde chamado Rio Grande do Sul.
Em fevereiro de 1737 entrou José da Silva Pais pelo canal que san-
gra a lagoa dos Patos e a Mirim. No local que lhe pareceu mais apro-
priado desembarcou, fortificou-se. À sombra da fortaleza foi-se aden-
sando a população. Dos Açores vieram várias famílias e agregaram-se a
este núcleo primitivo; as capitanias do Norte por força ou por vontade
forneceram não poucos colonos.
A rápida expansão do Brasil pelo Amazonas até o Javari, no Mato
Grosso até o Guaporé e agora no Sul, urgiu a necessidade de atacar de
frente a questão de limites entre possessões portuguesas e espanholas, no
Velho e no Novo Mundo, sempre adiada, sempre renascente, interpre-
tando autenticamente o convênio de 1494. Com este fim, os dois mon-
arcas da península assinaram um tratado em Madri a 13 de janeiro de
1750.
Ambas as partes contratantes reconheceram neste documento ter vio-
lado a linha de Tordesilhas, uma na Ásia, outra na América. Começaram,
portanto, abolindo "a demarcação acordada em Tordesilhas, assim porque
se não declarou de qual das ilhas do Cabo Verde se havia de começar a
conta das trezentas e setenta léguas, como pela dificuldade de assinalar nas
costas da América meridional os dois pontos ao sul e ao norte donde havia
de principiar a linha, como também pela impossibilidade moral de estabelecer
com certeza pelo meio da mesma América uma linha meridiana". Na mesma
ocasião aboliram quaisquer outras convenções referentes a limites, que exclusi-
vamente seriam regidos pelo tratado agora assinado.
A linha meridiana, até então vigente pelo menos nos instrumentos públi-
cos, seria substituída por limites naturais, tomando por balizas as passagens
mais conhecidas para que em tempo nenhum se confundam, nem dêem
ocasiões a disputas, como são a origem e curso dos rios e os montes mais
notáveis. Salvo mútuas concessões, inspiradas por conveniências
Capítulos de História Colonial 187
sumário
próxima
anterior
sair
comuns para os confins ficarem menos sujeitos a controvérsia, ficaria
cada parte com o que atualmente possuísse.
Maior importância que às terras prestou-se ao aproveitamento dos
rios. Estabeleceu-se que a navegação seria comum quando cada um dos
reinos tivesse estabelecimentos ribeirinhos; se pertencessem à mesma
nação ambas as margens, só ela poderia navegar pelo canal. Para ficar
com a navegação exclusiva do Prata, a Espanha trocou a colônia do Sac-
ramento pelas missões do Uruguai. Encarregadas de assentar os limites
iriam duas tropas de comissários, uma pelo Amazonas, outra pelo Prata.
Da comissão do Amazonas foi plenipotenciário e principal
comissário português Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do
marquês de Pombal. Como vimos, já exercia o cargo de governador do
Pará, quando foi nomeado para o trabalho das demarcações. A 2 de ou-
tubro de 1754 saiu para o rio Negro, levando em sua companhia sete-
centas e noventa e seis pessoas, distribuídas em vinte e cinco barcos.
Escolheu para residência a aldeia de Mariuá, chamada mais tarde Bar-
celos, e nela mandou construir aposentos para acomodar a partida
espanhola. À frente desta, de estado-maior ainda mais numeroso, partiu
de Cádiz D. José de Iturriaga, a 13 de janeiro do mesmo ano, e chegou
ao Orinoco aos fins de julho. Em 1756 fundou São Fernando de At-
abapo, para escala de grande peregrinação e caixa de víveres. Daí por di-
ante, arcando com o áspero sertão despovoado, tais embaraços encon-
trou, apesar das ordens mais expressas e das facilidades extraordinárias
proporcionadas por seu governo, que gastou anos no caminho.
A partida de Mendonça tinha de se ocupar de três questões princi-
pais: a do rio Negro, a do Japurá e a do Madeira e Javari; a cada uma
caberia uma tropa. Tomou as providências necessárias para organizá-las
e como Iturriaga continuasse ausente, voltou em 756 para Belém com os
engenheiros da demarcação, onde absorveram-no outras preocupações
mais instantes.
Em janeiro de 758, recebendo aviso da próxima chegada dos
comissários espanhóis, dirigiu-se novamente para Barcelos. Com efeito,
no ano seguinte ali se apresentaram D. José de Iturriaga e seu grandioso
séquito de comissários, matemáticos, engenheiros, desenhistas. Quase ao
mesmo tempo chegou a notícia da substituição de Mendonça na capitania
do Pará e do trabalho dos limites, que daí em diante seria dirigido da
188 J. Capistrano de Abreu
sumário
próxima
anterior
sair
parte de Portugal por Antônio Rolim de Moura, governador de Mato
Grosso, mais tarde vice-rei do Brasil e conde de Azambuja. No mesmo
dia e hora da partida de Mendonça Furtado para a capital os comissários
espanhóis volveram ao Orinoco. Tal é pelo menos a versão referida por
Baena. Os escritores venezuelanos e colombianos contestam o encontro
dos dois comissários e, parece, com melhores fundamentos.
Depois de tantos anos e de tantas canseiras nem um passo se dera
para realizar o ideal afagado pelo Tratado de Madri. Para os interesses de
Portugal a solução não foi desvantajosa: estribado no uti possidetis,
dando-lhe uma extensão inconciliável com o Tratado de Madri, pôde ag-
ora satisfazer a sua avidez de terras.
No tempo de Mendonça instalou-se a capitania de São José de
Javari. Mandara-lhe a Coroa assentar a capital no Solimões próximo dos
limites ocidentais; ele achou mais conveniente situá-la no rio Negro,
donde os espanhóis estavam muito afastados, como o provara a lenta
marcha de Iturriaga. Aí, portanto, a expansão se faria sem tropeços.
Além disso, a proximidade relativa de Belém e de Portugal, garantia uma
superioridade esmagadora. Em seu tempo foram fundados o forte de
Marabitanas no rio Negro, o de São Joaquim na confluência do Urarico-
era e Tacatu, cabeceiras do Branco.
Pelas instruções, a tropa de comissários destinados à demarcação
do Sul devia subdividir-se em três troços: um reconheceria o terreno
desde Castilhos Grandes até a barra do Ibicuí, no Uruguai; outras o
Uruguai desde o Ibicuí até o Pepiriguaçu e, passada sua contravertente,
desceria o Iguaçu até marcar a barra do Iguareí, aquele afluente oriental,
este ocidental do Paraná; a terceira deveria demarcar o Iguareí em todo
o curso, por seu concabeçante descer para o Paraguai e subir por este
até a barra do Jauru.
As duas últimas tropas deram conta de sua comissão pacifi-
camente; a primeira andou com menos fortuna. Em troca da colônia do
Sacramento e navegação exclusiva do Prata, a Espanha cedera a Portugal
a navegação do Uruguai com os sete povos das missões jesuíticas: São
Nicolau, São Miguel, São Luís Gonzaga, São Borja, São Lourenço, São
João e Santo Ângelo, fundados entre 1687 e 1707, alguns com os restos
de reduções que escaparam à sanha dos mamalucos. Ceder terras com
habitantes é amputação dolorosa, ainda hoje praticada; entregar as ter-
Capítulos de História Colonial 189
sumário
próxima
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sair
ras, deixando os bens de raiz, levando os moradores apenas os móveis e
semoventes reporta à crueza dos assírios. Entretanto as duas cortes jul-
garam consumar facilmente este ultraje à humanidade se os jesuítas as
ajudassem, pesando sobre o espírito dos índios. Os jesuítas acreditaram-
se poderosos para tanto e bem caro pagaram este acesso de fraqueza ou
de vaidade; quando os índios se levantaram, desmentindo ou antes en-
grandecendo seus padres, mostrando que a catequese não fora mera do-
mesticação e a vida interior vibrava-lhes na consciência, aos jesuítas foi
atribuída a responsabilidade exclusiva em um movimento natural, hu-
mano e, por isso mesmo, irresistível.
Os chefes da missão demarcadora do Sul, Gomes Freire de An-
drade por parte de Portugal, o marquês de Valdelirios pela da Espanha,
encontraram-se na fronteira marítima do Rio Grande do Sul em começo
de setembro de 1752, e no mês seguinte iniciaram os trabalhos. Em ja-
neiro, assentado o terceiro marco, Gomes Freire ausentou-se para a
colônia do Sacramento e o marquês para Montevidéu. A primeira par-
tida luso-espanhola continuou na tarefa, que deveria se estender até a
barra do Ibicuí; mas, ao chegar a Santa Tecla, dependência do povo de São
Miguel, situado um pouco ao norte da atual cidade de Bagé, defrontou
índios armados que se opuseram a seu avanço. Fora prevista a hipótese e
havia ordem dos dois governos para domar a resistência pelas armas, pois os
jesuítas já se haviam felizmente convencido de sua impotência.
Reunidos Gomes Freire e Valdelirios, na ilha de Martim Garcia, re-
solveram mandar emissários às missões a ver se ainda era possível conciliar
os índios. Se eles continuassem teimosos, marchariam Andonaegui, gover-
nador de Buenos Aires, pelo Uruguai até São Borja, e Gomes Freire, pelo
rio Pardo, até Santo Ângelo. Depois de tomadas estas duas reduções,
prosseguiriam até se encontrar. Em março de 54 Andonaegui pôs-se em
movimento, mas o mau estado da cavalhada e outras causas não menos
fortes obrigaram-no a recuar até Daiman, junto à presente cidade do Salto.
Aí os índios atacaram os espanhóis e perderam trezentos homens, dos quais
duzentos e trinta mortos, canhões, armas brancas e cavalhada. Menos feliz
foi Gomes Freire, obrigado a assinar um armistício com os levantados a 18 de
novembro.
Viu-se que melhor andariam unidos os dois exércitos. Partiu Gomes
Freire do rio Pardo e em Sarandi, no rio Negro, juntou-se às forças de
190 J. Capistrano de Abreu
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Andonaegui. A 21 de janeiro de 56 marcharam para as missões. Quase
só encontraram os obstáculos criados pela natureza. Os índios, embora
numerosos, mal armados, mal ou antes não dirigidos, pouca resistência
podiam oferecer; de todos os recontros saíram derrotados. A 17 de maio
entregou-se São Miguel sem resistência, e os outros povos foram
seguindo-lhe o exemplo. Podia-se agora operar a permuta, Gomes
Freire empossar-se das sete missões e entregar a colônia do Sacramento.
Não se fez isto; dir-se-ia que, como os primitivos, estes mamalucos pós-
tumos tinham por móvel único a destruição. Em janeiro de 59 Gomes
Freire embarcou para o Rio, donde não mais voltou.
Entretanto, falecia Fernando VI, subia ao trono Carlos III, inimigo
do tratado de 1750 desde o tempo de seu reinado em Nápoles. Um dos
primeiros cuidados do novo rei foi anulá-lo pelo pacto firmado no
Pardo, a 12 de fevereiro de 1761. Ficaram outra vez de pé todos os atos
reguladores de limites, a principiar pelo de Tordesilhas, tantas vezes des-
respeitado por ambas as partes, como de público haviam reconhecido
poucos anos antes. O Tratado de Madri, exatamente porque resolvia
uma questão secular, fora atacado com violência em ambas as cortes e a
cordialidade dos dois monarcas que o assinaram não teve eco nos respec-
tivos povos. Agora com razão condenavam-no os representantes dos dois
governos à vista de seus resultados, fáceis de evitar, a não ser a cláusula bár-
bara relativa aos sete povos do Uruguai: "estipulado substancial e positi-
vamente para estabelecer uma perfeita harmonia entre as duas Coroas e uma
inalterável união entre os vassalos delas, se viu pelo contrário que desde o
ano de 1752 tem dado e daria no futuro muitos e muitos freqüentes motivos
de controvérsias e contestações opostas a tão louváveis fins".
A insistência de Portugal em não aderir ao famoso pacto de família,
dirigido pelos Bourbons contra a Inglaterra, desencadeou as hostilidades
na península e nos domínios da América do Sul. Pedro Cevallos, suces-
sor de Andonaegui no governo de Buenos Aires, pôs cerco à colônia do
Sacramento em outubro de 62 e tomou-a sem grande esforço. Dirigiu-se
depois às plagas rio-grandenses, num passeio militar apossou-se do forte
de Santa Teresa próximo ao Xuí, da vila capital, da margem setentrional
da lagoa dos Patos. Um convênio assinado no povo de São Pedro em 6
de agosto de 1763 declarou o porto privativo do domínio da
Espanha, fechado, portanto, ao comércio de qualquer outra nação.
Capítulos de História Colonial 191
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O tratado concluído em Paris a 10 de fevereiro de 763 mandou
voltarem as coisas ao estado anterior à guerra. Cevallos restituiu a
colônia do Sacramento guardou o Rio Grande, deixando os portugueses
reduzidos à fortaleza do rio Pardo e às cercanias de Viamão. Mesmo
estas nesgas procurou retirar-lhes Vertiz y Salcedo, novo governador de
Buenos Aires, atacando o rio Pardo em 773, não com tanta felicidade
como esperava.
Portugal fingiu aceitar a situação criada por Cevallos, mas foi se
preparando manhosamente para modificá-la em seu proveito.
Readquiriu, sem combate, São João do Norte à entrada da barra; a
pouco e pouco mandou forças por terra; uma esquadra entrou pelo ca-
nal apesar das fortalezas inimigas; em março de 76, combinadas as
forças de terra e mar atacaram e tomaram as fortificações dos castel-
hanos; em abril a vila de São Pedro foi evacuada. O domínio espanhol
durara treze anos: data dele a fortuna do porto dos Casais, hoje Porto
Alegre.
Muitos dos colonos portugueses transplantados para além do Xuí
não tornaram mais para as antigas estâncias.
Apenas chegou ao Velho Mundo a notícia de reconquista do rio de
São Pedro, preparou-se em Espanha uma forte armada para tirar a des-
forra. Comandava-a Cevallos, nomeado para assumir o vice-reinado do
Prata, então criado. Deveria tomar Santa Catarina, Rio Grande e Sacra-
mento. Santa Catarina entregou-se logo sem resistência; na colônia
propuseram a entrega apenas se apresentou o inimigo. O Rio Grande fi-
cou livre de ser acometido por via marítima graças aos ventos con-
trários; quando ia ser atacado por via terrestre, chegou ordem de sus-
pender as hostilidades. Cevallos, como se votasse ódio pessoal à Colônia
do Sacramento, secular ponto de discórdia entre os dois povos, não quis
deixar pedra sobre pedra. A 8 de junho de 77 começou a demolição pela
fortaleza; foram depois destruídas as casas, o porto obstruído; as
famílias que não quiseram recolher-se ao Brasil, transportadas para Bue-
nos Aires, distribuíram-se pelo caminho do Peru.
Expirava a este tempo José I, extinguia-se o poderio do truculento
Pombal, pela primeira vez uma rainha ascendia ao trono português; to-
dos estes motivos devem ter influído certa brandura no tratado de limites
firmado em Santo Ildefonso a 1 de outubro de 1777, em quase tudo
192 J. Capistrano de Abreu
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semelhante ao de Madri, e mais humano e generoso que este, pois não
impunha êxodos cruentos.
O uti possidetis, reconhecido em 1750, anulado em 761, veio outra
vez a prevalecer. Se não se explicasse pela superioridade relativa das
posições portuguesas nas zonas litigiosas, seria uma das ironias da
História averiguar que do mero apego à posse das Filipinas procederam
todas as concessões por parte da Espanha.
As modificações mais notáveis apanharam a fronteira meridional.
Espanha não concordou mais que Portugal tivesse direito a navegar no
Uruguai e por isso impôs uma fronteira tal que as possessões portugue-
sas só abeirassem o rio ao oriente do Pepiriguaçu. Desenvolvendo um
princípio já formulado no Tratado de Madri, cujo artigo 22 não permitia
fortificações nem povoações nos cumes das raias, a partir das lagoas
Mirim e da Mangueira, o Tratado de Santo Ildefonso estabeleceu no ar-
tigo 5 "um espaço suficiente entre os limites de ambas as nações, ainda
que não seja de igual largura à das referidas lagoas, no qual não possam
edificar-se povoações, por nenhuma das duas partes, nem construir-se
fortalezas, guardas ou postos de tropas, de modo que os tais espaços se-
jam neutros, pondo-se marcos e sinais seguros, que façam constar aos
vassalos de cada nação o sítio, de que não deverão passar; a cujo fim se
buscarão os lagos e rios, que possam servir de limite fixo e inalterável, e
em sua falta o cume dos montes mais sinalados, ficando estes e as suas
faldas por termo natural e divisório, em que se não possa entrar, povoar,
edificar nem fortificar por alguma das duas nações".
Para o trabalho de demarcar a fronteira foram criadas quatro di-
visões: operaria a primeira do Xuí ao Iguaçu; a segunda do Igureí ao
Jauru; a terceira do Jauru ao Japurá; a quarta daí ao rio Negro. Pela
parte de Portugal ficaram dependentes do vice-rei no Rio, dos gover-
nadores de São Paulo, Mato Grosso e Pará. O trabalho efetuado
limitou-se à fronteira do Xuí ao Iguaçu, e do Javari ao Japurá, isto durante
anos de argúcias, dilações, inação, de que cada nação lançava à outra a culpa
exclusiva. As divisões confiadas aos governadores de São Paulo e Mato
Grosso nunca se encontraram com as divisões espanholas. Poder-se-ia dizer
que com isso ganhou a geografia das respectivas regiões, pois os cientistas ex-
ploraram rios, descreveram plantas e animais, enviaram curiosos espécimes
dos três reinos para os estabelecimentos de além-mar... poder-se-ia
Capítulos de História Colonial 193
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dizê-lo, se tais trabalhos, ciosamente guardados, fossem dados então à
publicidade.
Dois episódios mostrarão como as coisas passaram.
O Tratado de Madri nos artigos 5º e 6º, repetidos pelo de Santo
Ildefonso nos artigos 8º e 9º, dispunha que a fronteira desde a barra
do Iguaçu prosseguiria pelo álveo do Paraná acima, até onde pela
parte ocidental se lhe ajuntasse o Igureí, acompanharia este até descer
o concabeçante mais próximo, afluente do Paraguai, chamado talvez Corri-
entes.
Próximo do Iguaçu não desemboca pela margem oriental do
Paraná rio chamado Igureí, próprio a servir de fronteiras, alegou Sá e
Faria, português passado agora para o serviço de Castela; rio Corrientes
tão pouco se conhece no Paraguai. Convencionou-se, pois, que a fron-
teira partiria do Iguatemi, primeiro afluente oriental do Paraná, acima
das Sete Quedas. Mais tarde, o vice-rei do Brasil escreveu ao do Prata
que a convenção fora condicional, para a hipótese de não existir o Ig-
ureí; ora, Igureí existia abaixo das Sete Quedas. Cândido Xavier o desco-
briu e o seu correspondente no Paraguai é o Jejuí. Pelo Igureí e pelo Je-
juí devia passar portanto a linha divisória.
Tem razão o vice-rei do Brasil, respondia Félix de Azara,
comissário espanhol; a convenção foi condicional e desaparece apurada
a existência do Igureí; mas o Igureí existe: é o Iaguareí, Monici ou Ivin-
heima, e corresponde-lhe pelo Paraguai outro rio caudaloso, que desem-
boca aos 22º. Isto, acrescentava, nos dará as únicas terras não inundadas
daquelas regiões; teremos ervais, barreiros, salinas, pastos, aguadas,
madeiras; as frotas de Cuiabá e Mato Grosso cairão em nossas mãos na
boca do Taquari, ou mais acima; podemos na paz chupar suas riquezas
por um comércio que há de ser-nos vantajoso sem prejuízo; os famosos
estabelecimentos de Mato Grosso, Cuiabá e serra do Paraguai serão
precários a seus ilegítimos donos e alfim cairão em nossas mãos com o
tempo. "No es posible que no tengamos las minas de Cuyabá y Mato-Grosso,
cuando las podemos atacar con fuerzas competentes, llevadas por el mejor rio del
mundo, sin que los portugueses puedan sustenerlas ni llegar a ellas, sino por el em-
budo obstruido del rio Tacuari, en canoas y con los trabajos que nadie ignora."
Seriam melhores os portugueses? O caso Chermont-Requena, nar-
rado brevemente, responderá de modo satisfatório.
194 J. Capistrano de Abreu
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Tinham os comissários de demarcar a fronteira do Javari à boca
mais ocidental do Japurá e seguir por este acima até um rio que resguar-
dasse os estabelecimentos portugueses do rio Negro. A boca mais oci-
dental do Japurá originou graves discussões, por um chamar boca ao
que o outro considerava furo, isto é, um canal que levava as águas do
Solimões ao Japurá em vez de trazê-las. O rio que devia resguardar as
possessões portuguesas do rio Negro seria o Apaporis, o Comiari ou
dos Enganos, ou qualquer outro? Nunca se decidiu, à vista dos múlti-
plos varadouros, imaginários ou verdadeiros, alegados por parte de Por-
tugal. Em todo caso, Tabatinga demorava a oeste da mais ocidental das
bocas do Japurá, demorava mesmo a oeste do Içá, não compreendido
nas pretensões portuguesas mais exageradas; quando, porém, Requena
reclamou a posse da Tabatinga, Chermont negou-se a assumir re-
sponsabilidade tão grave e declinou da sua para a competência de João
Pereira Caldas, chefe daquela divisão. Este declarou-se prestes a fazer a
entrega de Tabatinga se os espanhóis lhe entregassem São Carlos, forte
do alto rio Negro, fundado na expedição de D. José de Iturriaga, malo-
grado comissário da primeira demarcação.
Nestes dares e tomares consumiu Requena um decênio. Afinal con-
seguiu de seu rei licença de voltar para a Europa, e o de Portugal permitiu-
lhe que descesse até o Pará. "De ordem do governador do Rio Negro o
acompanhou o tenente-coronel engenheiro José Simões de Carvalho com a
recomendação secreta de dirigir a viagem de maneira que ele não visse po-
voação alguma, nem pudesse tomar nota topográfica de qualquer ponto do
Amazonas. Destina-lhe o governador [do Pará] para sua morada a fazenda
de Val de Cães. Ali o teve como em custódia até prosseguir a viagem, per-
mitindo-lhe vir à cidade [de Belém] só de noite, e acompanhado de um ofi-
cial de tropa regular quando intentava fazer-lhe visitação, na qual também
era recebido pelos cidadãos mais qualificados que segundo a disposição do
governador o esperavam em grande cerimônia."
Em suma, valiam-se bem os comissários das duas altas partes con-
tratantes. Teria razão ou talvez não tenha quem afirmasse sua má-fé; en-
tretanto, uma ou outra opinião seria superficial. Os termos dos tratados
prestavam-se às vezes a mais de uma interpretação; os mapas trazidos
do Reino aplicavam-se mal aos terrenos; nem destes nem daqueles resul-
tava uma hermenêutica forçada; cada funcionário procurava ostentar
Capítulos de História Colonial 195
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zelo, isto é, adiantar sua carreira. E em nome destes seres heterônomos
ainda hoje nossos vizinhos propagam e herdam o ódio ao Brasil desde
os bancos escolares! Felizmente no Brasil já não somos prisioneiros
destas paixões inferiores de colonos fossilizados.
Portugal saiu mais favorecido da sorte por ter criado a capitania in-
dependente de Mato Grosso logo depois do tratado de 1750 e a capi-
tania subordinada do Rio Negro em seguida. De Vila Bela via-se bem
claro que o problema decompunha-se em duas partes: absorver a
navegação do Madeira, paralisando as hostilidades das vizinhas aldeias
dos moxos e dos chiquitos, -- e isto fez principalmente o conde de
Azambuja; passar além dos xarais, até onde o Paraguai não transborda
do leito, limitando assim as possibilidades dos ataques surpresas, garan-
tindo ao mesmo tempo a navegação de São Paulo, -- isto fizeram Luís de
Albuquerque, com a fundação de Corumbá e Coimbra, e Caetano Pinto
com a de Miranda. Na capitania subalterna Mendonça Furtado sentiu a im-
portância capital do rio Negro e do rio Branco; escolhendo Barcelos para
capital, assinalou nitidamente o rumo a seguir pelos sucessores. Tanto em
Mato Grosso como no Rio Negro houve pequenos conflitos sem importân-
cia, de que os espanhóis não tiraram o melhor partido e os portugueses pu-
deram continuar na sua maneira original de entender e aplicar o uti possidetis.
Os debates inanes das demarcações ainda continuavam em 1801 ao re-
bentar a guerra entre Portugal e Espanha. Ipso facto, caducaram os tratados.
José Borges do Canto, desertor do regimento dos dragões, e Manuel dos
Santos Pedroso, sem ordem de ninguém, congregaram um troço de aven-
tureiros, e atiraram-se contra os sete povos do Uruguai. Foram, viram,
venceram; voltou novamente a ser lindeiro o rio Ibicuí.
Depois disto não houve mais questões sobre limites americanos entre
as duas metrópoles peninsulares.
O histórico dos limites com a França e Holanda, desde o rio Branco a
oeste até o cabo de Orange a este, conta-se em poucas palavras.
A capitania do cabo do Norte, doada a Bento Maciel Parente, foi limi-
tada a beira-mar pelo rio Vicente Pinzón, cuja nominação indígena é Oiapo-
que. Apenas se fixaram em Caiena, os franceses lançaram olhos cobiçosos
sobre o Amazonas, e reclamaram-no como limite.
Para firmar seus direitos, em 1697 tomaram os fortes portugueses
de Araguari, Toeré e Macapá, logo retomados. Um tratado provisional
196 J. Capistrano de Abreu
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assinado em 1701 neutralizou o território, mas o de Utrecht restituiu-o
aos portugueses. Pelo inequívoco artigo 8, Sua Majestade Cristianíssima
desistiu "pelos termos mais fortes e mais autênticos e com todas as
cláusulas que se requerem, assim em seu nome como de seus descend-
entes, sucessores e herdeiros de todo e qualquer direito e pretensão que
pode ou poderá ter sobre a propriedade de terras chamadas do cabo
Norte, e situadas sobre o rio das Amazonas e o de Japoc ou de Vicente
Pinsão, sem reservar ou reter porção alguma das ditas terras, para que
elas sejam possuídas daqui em diante por Sua Majestade Portuguesa",
etc.
A disposição por sua clareza não permitia dúvidas; os franceses
acharam meio de perpetuá-las, descobrindo mais de um Vicente Pinzón
e mais de um Oiapoque, de modo a aproximarem-se o mais possível do
Amazonas, seu verdadeiro e constante objetivo. Isto lograram durante a
revolução francesa e o império. O Tratado de Paris, de 23 Termidor V,
traçou o limite pelo Calçoene até as cabeceiras e destas por uma reta até
o rio Branco. O de Badajoz de 6 de junho de 1801 transportou-o para o
Araguari, desde a foz mais apertada do cabo do Norte até a cabeceira e
daí até o rio Branco. O de Madri de 29 de setembro do mesmo ano
fixou-o no Carapanatuba desde a foz até as cabeceiras, donde acompan-
haria as inflexões da serrania divisória das águas té o ponto mais
próximo do rio Branco, cerca de 2º 1/3N. O de Amiens de 27 de março
de 1802 trouxe-o novamente para o Araguari. Todos estes tratados
caducaram com o de Fontainebleau, que desmembrou Portugal e pro-
duziu a trasladação da corte portuguesa para o Brasil.
Depois de na era de 1750 terem passado do rio Branco para o Ru-
pununi, os portugueses aproximaram-se das possessões holandesas.
Nunca entretiveram, porém, contacto, ou travaram conflito com elas,
nem convenção alguma interveio entre as duas metrópoles.
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XI
Três séculos depois
Três séculos depois do Descobrimento os habitantes do Brasil
exprimiam-se por sete algarismos. Repartidos na superfície reclamada
como sua pela metrópole, tocavam dois ou três quilômetros quadrados a
cada indivíduo.
A população ocupava a marinha desde Marajó até o Xuí, e uma e outra
margem do Amazonas desde a foz a Tabatinga e ao Javari. Nos tributários
desta bacia os povoados, de preferência estabelecidos nos caudais de água
preta, paravam a pouca distância da barra, exceto no rio Negro, onde pre-
ocupações de limites tinham requintado a expansão natural, no Madeira, Ta-
pajós e Tocantins, ligados a Mato Grosso e Goiás. Desde Piauí à linha
singela do litoral correspondiam uma ou mais linhas interiores de po-
voamento nas beiras dos rios e os chapadões do Parnaíba, do São Francisco,
do Paraná e regiões intermédias. Estas linhas, interrompidas a cada instante,
melhor se diriam pontos indicando um traçado a realizar.
Observando a distribuição geográfica dos povoadores notavam-se
duas correntes fáceis de distinguir. A corrente espontânea do po-
voamento tendia à continuidade e procurava a periferia a oeste, ao norte
e ao sul. A corrente voluntária, determinada por ação governativa, ambição
de territórios ou vantagens estratégicas, aparecia salteada e desconexa, e
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começando da periferia procurava rumos opostos. Nas terras auríferas a
ocorrência irregular dos minérios trouxe primitivamente a desconexão
dos núcleos, mais tarde corrigida onde foi possível.
A maioria constava de mestiços; a mestiçagem variava de com-
posição conforme as localidades. Na Amazônia prevalecia o elemento
indígena, abundavam mamalucos, rareavam os mulatos. Na zona pasto-
ril existiam poucos negros e foram assimilados muitos índios. À beira-
mar e nas comarcas dos metais sobressaía o negro, com todos os deri-
vados deste radical. Ao sul dos trópicos elevava-se a porcentagem dos
brancos. Das três raças irredutíveis, oriunda cada qual de um continente
e compelidas à convivência forçada, eram os africanos a que maior
número de representantes puros possuía, em conseqüência das levas
anualmente fornecidas pelo tráfico dos negreiros.
Na baixada amazônica o predomínio da água e o da mata re-
stringiam as ocupações agrícola e pastoril. Lavoura existia apenas nas
proximidades dos povoados maiores, limitada à cana, ao café, a poucos
cereais e à mandioca: esta desfazia-se em farinha-d’água, mais resistente
à umidade; o tucupi ou manipuera dava um molho apreciado; cru servia
também para apanhar aves. O gado vacum criado na ilha do Marajó,
perto do Paru, em Óbidos, no Tapajós, nos campos do rio Branco, não
chegava para o consumo interno. De gado cavalar ainda menos se
curava: as embarcações, desde a montaria, verdadeira sucedânea do
cavalo, como o nome está indicando, até as grandes canoas, arqueando
centenas de arrobas, e durante parte do ano impelidas rio arriba pelos
ventos gerais, eram o quase exclusivo meio de transporte.
O povo alimentava-se de peixe, fresco, pegado diariamente pelos
múltiplos e engenhosos processos recebidos dos indígenas, ou salgado,
como pirarucu, a tainha e o peixe-boi; de tartaruga, mais abundante à
medida que se caminhava para oeste, ou porque assim estivesse distribuída
originariamente, ou por se não ter adiantado tanto por aquelas bandas a
obra de devastação. Verdadeira vaca amazônica, gado do rio como a
chamavam podia-se guardar às centenas em currais, e fornecia manteiga; a
gema do ovo de uma espécie tomava-se com café, como leite. Sua manteiga,
além de condimento usual, fornecia iluminação; o casco, sem brilho e por isso
imprestável para obras delicadas, empregava-se como vasilha.
200 J. Capistrano de Abreu
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A extração de produtos florestais, cacau, salsa, piaçaba, cravo, ocu-
pava a maioria da população masculina em certas quadras do ano, mar-
cadas pelas enchentes e vazantes do rio-mar, durante as quais as aldeias
ficam reduzidas a velhos, meninos e mulheres. Estas fabricavam louça,
pintavam coités, não raro reveladoras de talento artístico, fiavam e
teciam. A seringueira, já conhecida e utilizada, entrava apenas no fabrico
de objetos caseiros, como o que lhe deu o nome, ou no tornar imper-
meáveis botas e tecidos. Nem de longe se poderia ainda prever a im-
portância que lhe adveio depois de descobertos os modernos processos
de manipulação.
"Nenhuns cuidados parecem ter comumente no estado", escrevia
Fr. João de São José em tempo de Pombal, e continuava a ser verdade:
"havendo rede, farinha e cachimbo, está em termos. A frugalidade da
mesa pode passar se fosse coerente a de beber; e quanto ao mais é ex-
pressão vulgar a da seguinte endecha ou trova:
Vida do Pará,
Vida de descanso.
Comer de arremesso,
Dormir de balanço."
Da bacia amazônica passando à zona pastoril, notava-se logo a
falta de mata e a escassez de água. A mata aparece apenas às margens
das correntes mais caudalosas, em algumas baixadas úmidas, em serras
elevadas de mil metros mais ou menos de altitude. A água, excetuando
alguns rios permanentes, limitava-se a ipueiras, olhos-d’água, poços
naturais, mais ou menos grandes e constantes; fora destes casos tem-se
de procurá-la no seio da terra, operação fácil nos álveos secos, em ou-
tros casos empresa árdua e até frustrânea. Em geral não prima quanto
ao gosto, em conseqüência da salinidade dos terrenos que a filtram. O
caráter salino do solo, a abundância de pastos suculentos, os campos mi-
mosos e agrestes, determinaram a multiplicação do gado vacum. Vivia
solto o maior do tempo. Na época da parição, as vacas eram recolhidas
ao curral, por causa dos cuidados exigidos pelo bezerro, e também do
leite, e mais tarde do queijo e do requeijão; pouco valia a manteiga, se
merece este nome o esquisito produto guardado em botijas, que se
aquecia para extrair o conteúdo.
Capítulos de História Colonial 201
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O gado não se prendia ao descampado; internava-se pelas caatingas
e amontoava. O vaqueiro corria-lhe ao encalço, e com uma vara de fer-
rão em alguns pontos, em outros pela simples apreensão do rabo, dei-
tava a rês em terra e subjugava-a. "Quando o vaqueiro se aproxima o
boi foge para o mato mais próximo", informa Koster; "segue-o o
homem tão de perto quanto possível a fim de aproveitar a aberta que o
animal faz apartando os galhos, os quais se aproximam logo depois e re-
tomam sua posição antiga. Algumas vezes o boi passa sob o grosso e
baixo galho de uma árvore grande; o cavaleiro passa igualmente por
baixo do galho; para consegui-lo inclina-se tanto à direita que pode agar-
rar a cilha com a mão esquerda; ao mesmo tempo prende-se com o cal-
canhar esquerdo à aba da sela; nesta posição, roçando quase em terra, de
aguilhada em punho segue sem diminuir a andadura, endireitando-se no-
vamente no assento desde que transpôs o obstáculo. Se pode alcançar o
boi, mete-lhe o aguilhão na anca e, fazendo-o com jeito, derriba-o.
Apeia então, liga as pernas do animal, ou passa-lhe uma das mãos por
cima dos chifres, o que o segura do modo mais eficaz. Estes homens re-
cebem muitas vezes ferimentos, mas raro é que ocasionem mortes." A
tradição popular celebrou alguns dos barbatões mais famosos, como o
boi Espaço (espaço, isto é, de chifres espaçados, não espácio, como José
de Alencar escreveu e outros têm repetido), o Surubim, o Rabicho da Geralda.
Na boca deste uma poesia publicada por Sílvio Romero põe as
seguintes quadras:
Foi uma carreira feita
Para a serra da Chapada,
Quando eu cuidei era tarde,
Tinha o cabra na rabada.
Tinha adiante um pau caído
Na descida de um riacho,
O cabra passou por riba,
O ruço passou por baixo.
Apertei mais a carreira
Fui passar no boqueirão,
O ruço rolou no fundo,
O cabra pulou no chão.
202 J. Capistrano de Abreu
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O gado cavalar dava bem no sertão, mas nunca se multiplicou
tanto como o outro, por falta de forragem apropriada. Talvez isto, mais
que a falta de cruzamento, explique a diminuição da estatura; em todo
caso sua resistência ao trabalho é incomparável, a exigüidade do porte
apropriava-o às corridas pelo catingal. As viagens eram sempre inter-
rompidas nas horas de maior calor; não se ferravam os cavalos, cujo
casco rijo resistia às pederneiras sem estropeio. O gado muar quase,
senão de todo, se desconhecia no começo. Havia poucas ovelhas e
cabras: o desenvolvimento destas, data dos últimos trinta anos, depois
de reconhecida a superioridade de sua pele.
Na alimentação entrava naturalmente a carne, mas em quantidade
menor do que se poderia supor. Uma rês tinha grande valor relativo,
porque ficavam próximos consideráveis centros de consumo, como Ba-
hia e Pernambuco. Além disso dos sertões do Parnaíba e São Francisco
e das ribeiras concabeçantes partiu o gado que abasteceu e inçou Minas
Gerais, Goiás e indiretamente Mato Grosso; tal abastecimento encare-
ceu ainda mais a mercadoria, desfalcando-a. Cumpre não esquecer a ca-
lamidade das secas. Assim consumia-se principalmente carne seca ao sol,
ou a do gado miúdo, de preferência a de ovelha.
No começo nada se plantava, julgando o terreno estéril; mais tarde
introduziu-se o feijão, o milho, a mandioca e até a cana. São ainda hoje
três épocas alegres do ano sertanejo: a do milho verde, a da farinha e a
da moagem. Do milho seco, quase exclusivamente reservado para os
cavalos, só se utilizava torrado ou feito pipoca, transformado no raro
cuscuz ou no insípido aluá. O milho verde, cozido ou assado, feito
pamonha ou canjica (no sentido do Norte, muito diverso do Sul), o
milho verde durante semanas tirava o gosto das outras comidas. A farin-
hada com a farinha mole, os beijus de coco ou de folha, as tapiocas, os
grudes, etc., as cenas joviais da rapagem de mandioca, representavam
dias de convivência e cordialidade. A moagem era a cana assada, a garapa, o
alfenim, a rapadura, o mel de engenho.
Estas festas, exceto a do milho, provavelmente herdada dos indígenas,
pressupunham a casa-grande, isto é, proprietários abastados que residiam em
suas terras e escravos que as cultivavam. Nas proximidades moravam agre-
gados, livres e dedicados. Muitas vezes por motivos fúteis entre
os donos de duas casas-grandes irrompiam questões que podiam
Capítulos de História Colonial 203
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pôr em armas populações inteiras. São características as lutas de Montes
e Feitosas no Ceará. Os inventos mecânicos, que no século dezoito revolu-
cionaram a indústria dos tecidos, aumentando o consumo do algodão, le-
varam o plantio aos terrenos mais afastados, por onde difundiram o bem-
estar.
O dono da casa-grande, como toda a população masculina, exceto
quando viajava, andava de ceroula e camisa, geralmente com rosários,
relíquias, orações cuidadosamente cosidas e escapulários ao pescoço.
Nas ocasiões solenes, recebendo visitas, revestia-se de quimão, timão ou
chambre. "Quando um brasileiro põe-se a usar um desses hábitos talares
começa a se considerar personagem importante (gentleman) e com título
portanto a muita consideração", informa Koster. A roupa caseira das
mulheres constava de camisa e saia; o casebeque só apareceu mais tarde.
As moças solteiras dormiam juntas num gineceu chamado camarinha.
Não apareciam aos estranhos. Era comum verem-se os noivos pela
primeira vez no dia do casamento. Entre as jóias prezava-se sobretudo o
colar: o número de varas de cordão possuído pela mulher indicava até
certo ponto sua hierarquia. Até as alongadas brenhas penetravam os bu-
farinheiros levando ouro, fazendas, utensílios domésticos. Quando os
objetos se permutavam em gado, alugavam gente para arrebanhá-lo, e
podiam voltar com grande número de cabeças. O mesmo sucedia aos
dizimeiros, e até a eclesiásticos ambulantes. Um fenômeno daquelas
regiões, ainda hoje existente, eram as feiras de gado ou de outros
gêneros. Algumas feiras deram origem a povoados.
A zona criadeira começava um pouco acima da foz do São Francisco,
acompanhava-lhe as margens a entestar com a fronteira de Minas Gerais,
transpunha as vertentes do Tocantins e do Parnaíba, alcançava já enfraquecida
o alto Itapicuru, compreendia as ribeiras de todos os rios de meia-água meti-
dos entre a baía de Todos os Santos e a de Tutóia. A trechos se aproximava
muito da beira-mar, de que em Ilhéus e Porto Seguro separavam-na a serra do
Espinhaço e suas matas litorâneas. Em Pernambuco ocorria fato semelhante,
porque como as ligações beiravam o rio de São Francisco, a maior ou menor
distância, grande número de sertanejos achavam mais fácil e mais vantajoso
comunicar-se com a Bahia deixando deserta uma região intermédia, variável
em comprimento e largura; o caminho entre Pajeú e Capibaribe, que
regulou esta anomalia, data dos primeiros anos do século XIX.
204 J. Capistrano de Abreu
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Como vimos, pode-se chamar pernambucanos os sertões de fora,
desde Paraíba até o Acaracu no Ceará; baianos os sertões de dentro,
desde o rio São Francisco até o sudoeste do Maranhão. Entre os ser-
tanejos de um e outro grupo deve ter havido diferenças mais ou menos
sensíveis. Talvez se venha a determiná-las um dia, quando forem divul-
gadas as relações dos missionários, corregedores, etc.; em todo caso as
semelhanças entre os moradores de ambos os sertões avultam mais en-
tre quaisquer outros habitantes do Brasil.
Nas margens do rio São Francisco encontram-se baianos e per-
nambucanos com os paulistas. Ao sul e ao ocidente pode-se determinar até
certo ponto os limites das duas correntes opostas, marcando os lugares em
que os altos deixam de ser preferidos para a habitação, mesmo quando não
há perigo de ser inundado o terreno, e entram a funcionar os monjolos.
Predileção pelas baixas para as casas de vivenda, freqüência de
monjolo para pilar o milho seco, milho como alimentação habitual, sob
as formas de canjica (no sentido do Sul), fubá e farinha fermentada an-
tes da torrefação definitiva, carne de porco preferida à de boi indicam a
presença de paulistas ou de seus descendentes. Como raiz de todas estas
vergônteas aparece a falta de sal, que impedia o desenvolvimento rápido
do gado vacum e ainda hoje não tempera o angu nem a canjica. O
porco, apesar do enorme consumo interno, tornou-se mais tarde gênero
de exportação, em toucinho e em pé.
Para o terreno acidentado provavam melhor os muares, mais
sóbrios, mais resistentes, de passo mais seguro, importados de além
Uruguai. A viagem, não partida como ao norte, arrastava-se va-
garosamente quase de sol a sol. As cavalgaduras eram ferradas; nos
caminhos mais freqüentados, junto às vendas que forneciam milho,
havia ferradores, e seus serviços reclamavam a cada instante os terríveis
caldeirões.
O ouro, passado o alboroto primitivo, quase só ocupava fais-
cadores. A mineração de ferro, aprendida de africanos, segundo informa
Eschwege pouco deu de si pelo atraso dos processos e sobretudo pela
ausência de lenha, desvastada cruelmente. A agricultura, além de
cereais comuns, encontrou aplicação rendosa no algodão: o de Minas
Novas procurava-se muito pela excelente qualidade. A cultura do café
começou relativamente tarde, depois de verificada a superioridade
Capítulos de História Colonial 205
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das regiões serranas sobre as de beira-mar, nas proximidades do Rio, e
desde o começo revestiu os caracteres que conservou até o fim.
Perguntou Augusto de Saint-Hilaire a um seu compatriota, conhe-
cedor da localidade, em que os fazendeiros gastavam o dinheiro: "Como
vê", respondeu-lhe, "não é em construir belas casas nem em mobiliá-las.
Comem arroz e feijão; muito pouco lhes custa também o vestuário,
tampouco dispendem na educação de seus filhos, que se rebolcam na
ignorância; são de todo estranhos aos prazeres da sociedade; mas é o
café que lhes dá dinheiro, não se pode apanhar café senão com negros; é
pois em comprar negros que gastam todos os seus rendimentos, e o
aumento de sua fortuna serve muito mais para satisfazer-lhes a vaidade
que para aumentar-lhes os gozos. Não têm luxos de habitação, nada
apregoa sua riqueza. Mas é impossível que se ignore nas cercanias que
têm tantos escravos, tantos pés de café; empertigam-se, comprazem-se
consigo mesmos e vivem satisfeitos, não se distinguindo realmente dos
pobres senão por uma vã nomeada que se estende a alguns tiros de
espingarda de sua casa."
Esta instalação sumária e pobre apareceria nos lugares recente-
mente desbravados; nos de ocupação mais antiga notava-se espetáculo
bem diferente. "Às fazendas apartadas falece todo o auxílio da grande
sociedade, escreve Martius, entre Vila Rica e a demarcação diamantina;
cada fazendeiro rico é por isso obrigado a preparar os escravos para to-
das as necessidades da sua casa. Assim comumente acham-se numa casa
todos os oficiais e a aviação para eles, como sapateiros, alfaiates, tecelões,
serralheiros, ferreiros, pedreiros, oleiros, caçadores, mineiros, agricul-
tores... À frente dos negócios está um feitor, mulato ou negro de confi-
ança, e determina-se a ordem do dia como num convento. O dono faz
ao mesmo tempo de regedor, juiz e médico em sua propriedade. Muitas
vezes é um eclesiástico ou vem um clérigo da vizinhança celebrar em sua
capela particular."
Como alguns frades figuraram nas primeiras desordens, a
metrópole proibiu severamente a fundação de conventos nas três capi-
tanias auríferas, e, caso raro, nunca variou a tal respeito. Em tanto
maior número apareceram os clérigos do hábito de São Pedro, a princípio
importados, ordenados mais tarde no ribeirão do Carmo, depois de criada a
diocese de Mariana sob D. João V, por Benedito XIV. "Desde a
206 J. Capistrano de Abreu
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nomeação do bispo de Mariana, D. Joaquim Borges de Figueiroa (1782),
se tem conferido ordem a um sem-número de sujeitos, sem necessidade
e sem escolha. Tem-se visto alguns que, tendo aprendido ofícios
mecânicos e servido de soldados pedestres, se acham hoje feitos sacer-
dotes. Tendo o doutor Francisco Xavier da Rua, governador que foi do
bispado com procuração do dito bispo, ordenado os sacerdotes que
eram precisos, não foi bastante para que o Dr. José Justino de
Oliveira Gondim, que lhe sucedeu, deixasse de ordenar em menos de
três anos cento e um pretendentes, dispensando sem necessidade em
mulatismos e ilegitimidades. O Dr. Inácio Correia de Sá, que sucedeu
a este José Justino no governo do bispado, ordenou oitenta e quatro
pretendentes em menos de sete meses e entre eles um que era deve-
dor à fazenda real." Estas facilidades só começaram a desaparecer no
correr do século XIX.
Junte-se a tal fartura de sacerdotes a abundância de irmandades, o
gosto geral pela música, a proximidade dos povoados nos distritos em
que primeiro se extraiu o metal amarelo, os numerosos vadios susten-
tados pela hospitalidade e indiferença indígenas, a falta de divertimentos
públicos e se compreenderá a freqüência das festas religiosas. Sobres-
saíam principalmente as procissões pelo grande luxo, pelo número de
figuras simbólicas, por um certo aparato teatral e jogralesco. No ex-
tremo Goiás, em Traíras, Pohl assistiu a uma festa de Santa Ifigênia, pa-
droeira dos negros, feita com todas estas visualidades: imperador, im-
peratriz, tiros de roqueira, dutos aos imperantes, cavalhadas, lanças,
leilão, etc.
O mineiro e o paulista diferiam bastante de aspecto. "O mineiro
em geral é esbelto e magro, de peito estreito, pescoço comprido, rosto um
tanto alongado, olhos negros, e vivos, cabelo preto na cabeça e no peito; tem
por natureza um nobre orgulho e no exterior um modo brando, afável e inteli-
gente, é sóbrio e parece gostar de uma vida cavalheiresca, assegura Martius.
Em todas estas feições assemelha-se mais ao árdego pernambucano que ao
paulista pesadão... Seu vestuário nacional difere do paulista. Em geral usa jaqueta
curta, de algodão ou de manchéster preto, colete branco de botões de ouro, calça
de veludo ou de manchéster, longas botas de couro branco, presas acima do joelho
por fivelas; um chapéu de feltro de abas largas abriga-o do sol; a espada e não raro
a espingarda são com o guarda-chuva seus companheiros inseparáveis,
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desde que sai de casa. As viagens, mesmo as mais breves, são feitas em
mulas. Os estribos e as rédeas de prata e do mesmo metal o cabo do
facão que enfia na bota abaixo do joelho. Nestas jornadas as mulheres
são carregadas em liteiras por negros ou bestas, ou sentam-se, vestidas
de longa montaria azul com chapéu redondo, em uma cadeirinha presa à
mula."
A pequena estatura do paulista, o cabelo corrido, a face pálida, os
olhinhos penetrantes revelavam a procedência americana, no entender
de Eschwege, que acrescenta em desacordo com Martius: "Sua coragem,
sua impavidez no perigo, sua agilidade e espírito de iniciativa, sua re-
pugnância a canseiras, sua sede de vingança, patenteiam a procedência
selvagem pelo lado materno, assim como sua finura e a vivacidade de
seu espírito denunciam a ascedência portuguesa pelo lado paterno."
De resto, chamando pesadão ao paulista, Martius parece referir-se
ao aspecto físico, pois antes escrevera: "O paulista goza em todo o
Brasil da fama de grande franqueza, impavidez e amor romanesco às
aventuras e perigos. Associa a isto um temperamento apaixonado, que o
leva à cólera e à vingança, e seu orgulho e inflexibilidade são temidos
pelos vizinhos... Muitos paulistas se conservaram sem mescla com os
índios; os mamelucos, conforme os graus da mescla, têm a pele quase
cor de café, amarela ou quase branca. Traem a mistura indiana antes de
tudo a cara larga, com maçãs salientes, os olhos pretos e não grandes e
certa incerteza de olhar. A estatura elevada e ao mesmo tempo larga,
feições fortes, sentimento de liberdade e desassombro, olhos brunos, ou
raramente azuis, cheios de fogo e afoiteza, cabelo cheio, preto e liso,
musculatura reforçada, decisão e rapidez nos movimentos, são, aliás, os
principais característicos na fisionomia dos paulistas. Em geral pode-se
atribuir-lhes um caráter melancólico, misturado com alguma coisa de
colérico... Em parte alguma do Brasil há tantos coléricos e histéricos
como aqui."
Escreve ainda o mesmo viajante:
"Em São Paulo, homens e mulheres viajam sempre a cavalo ou em
mulas; muitas vezes o homem leva uma mulher na garupa. Os cavaleiros
usam de um chapéu de feltro pardo de abas largas, um poncho azul,
comprido e muito largo, em cujo meio há uma abertura para a ca-
beça; jaqueta e calças de algodão escuro, botas compridas por tingir,
208 J. Capistrano de Abreu
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apertadas no joelho por uma correia e um fivelão; uma longa faca de
cabo de prata, metida na bota ou presa à cinta, serve para a comida e ou-
tros misteres. As mulheres usam longos sobretudos e chapéus redondos.
Segundo um provérbio corrente eram dignos de apreço na Bahia eles
não elas, em Pernambuco elas não eles, em São Paulo elas e elas. Não
raro ouve-se dizer nesta província: se não fôssemos os primeiros que
descobriram as minas de ouro, seríamos ainda beneméritos da pátria
graças à canjica e à rede, que primeiro imitamos dos índios."
A canjica paulista, preparada pelo monjolo, preguiça ou negro
velho, dominava nos lugares de águas correntes, que dispensavam os
pilões; nos sertões do Norte, onde tal abundância de água não era
comum, o munguzá que lhe corresponde só se usava nas casas-grandes,
com escravos para a pilação.
Aos paulistas atribui Martius a descoberta das propriedades
medicinais das plantas indígenas, que não podiam ter aprendido com os
índios. Desde Pindamonhangaba notavam-se papudos, e em geral os
paulistas levaram o papo aos lugares onde foram. "Muitas vezes o
pescoço é todo ocupado pela grande intumescência; entretanto, pare-
cem considerar esta disformidade como beleza particular, pois não raro
vêem-se mulheres com enorme papeira à mostra, ornada de ouros e
pratas, sentadas em frente a suas casas, de cachimbo no queixo ou fiando
algodão."
No princípio do século, começavam a despertar da hibernação
devida às minas e aos grandes êxodos por elas provocados em São
Paulo. A agricultura aos poucos se reanimava; existiam numerosos engen-
hos de açúcar e de aguardente; duvidava-se ainda que o clima permitisse a
grande cultura do algodão e do café. A mais importante fonte de receita con-
sistia no comércio de trânsito, de Mato Grosso, de Goiás, de parte de Minas e
dos sertões do Sul. Já funcionava a famosa feira anual de Sorocaba.
Um paulista sem vivacidade poderia se chamar o goiano, ainda notável
pela aversão à vida de casado.
Segundo uma estatística de 1804, extratada na obra de Pohl, existiam
7.273 brancos, 15.585 mulatos, 7.992 pretos, 19.285 escravos, ao todo 50.135
habitantes. Descontando das 24.371 pessoas do sexo feminino 7.868
escravas, sobre as quais não apresenta informações, havia casadas
809 brancas, 1.668 mulatas, 575 pretas, ao todo 3.052, e solteiras
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2.663 brancas, 6.639 mulatas, 4.179 pretas, ao todo 13.481. Por esta si-
nopse vê-se também como o elemento africano era numeroso.
A gente de Cuiabá tinha certa semelhança com os mineiros no as-
pecto; dormitava, porém, nela um gênio sanguinário, talvez aprendido
com os guaicurus, que se revelou estrepitosamente na era regencial, e
com mais freqüência se tem manifestado depois de proclamada a
república. A gente do Paraguai e Guaporé era fraca e doentia.
Nos campos gerais do Paraná viviam bastante criadores, mas a ver-
dadeira zona pastoril do Sul ostentava-se nas terras rio-grandenses.
Exceto as faldas da serra geral ainda desertas, capões salteados e al-
guns trechos ribeirinhos, o território era ocupado por pastagens suculen-
tas, tão propícias à propagação de bois como de cavalos, que dispen-
savam rações de sal. Abundava a água perene; nunca passavam anos
sem chuva; não havia as enredadas catingas de outras regiões menos fa-
vorecidas. A proporção entre o gado cavalar e vacum era muito maior
do que ao Norte: basta dizer que havia lotes de baguais, cavalos bravios
e sem dono; os donos só conheciam os cavalos pela marca, e matavam
éguas para extrair o couro. Para viagens mais longas não chegava uma
calvagadura; era preciso levar uma cavalhada.
Como difere isto dos sertões nortistas, com poucos cavalos, todos
bem conhecidos e estudados, e o cavalo de sela, ensinado no passo, na
estrada, na baralha, no esquipado, e várias outras marchas de que há
mestres habilitados, promovidos quase a parente da família!
Quando começou o povoamento já pululava esta criação, proce-
dente das destruídas missões jesuíticas; apossava-se cada um do que lhe
convinha, e o uso da bola e do laço, conhecido dos charruas, dispensava
as corridas violentas pelo mato do sertão baiano-pernambucano. O
valor do gado era até certo ponto negativo; sobejava para a popu-
lação e não havia para onde exportá-lo; consumi-lo sem parcimônia
parecia ato de prudência, pois mais facilmente se amansava e os pas-
tos não se esgotariam; os trabalhos de rodeio, únicos reclamados
quando a situação se regularizou, eram antes um divertimento que
uma canseira.
"Toda a guerra era contra as vitelas", informa Aires de Casal, "e de
ordinário uma não chegava para o jantar de dois camaradas, porque
acontecendo quererem ambos a língua, tinham por mais acertado matar
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segunda do que repartir a da primeira. Havia homem que matava uma
rês pela manhã pra lhe comer o rim assado; e para não ter o incômodo
de carregar uma posta de carne para jantar, onde quer que ousava fazia o
mesmo àquela que melhor lhe enchia o olho. Não havia banquete em
que não aparecesse um prato de vitelinha recém-nascida."
Aos poucos, a gente se desacostumou do sal, da farinha (comer do
arremesso no Pará) e de qualquer conduto. A escassez de lenha obrigava
a comer a carne quase crua, apenas sapecada no lume, produzido por
dejeções animais ou gravetos, e comida quase sempre sem mastigar. Ao
mate, beberagem primeiro descoberta nos sertões de Guairá e depois
propagada pelos jesuítas, atribui-se a atenuação dos males que deviam
resultar desta dieta.
A superfície ligeiramente ondulada, o descampado quase onipre-
sente, a facilidade de alimentação, a abundância de cavalgaduras convi-
davam à locomoção. Viajava-se principalmente no verão, quando raras
vezes chovia, os rios levavam pouca água e aumentava o número de
vaus; a importância destes em capitania onde não havia pontes manifestava-
se nos passos sem conta que a cada instante se encontram designando locali-
dades. Serviam-se às vezes de pelotas, canoas frágeis feitas de pele. De pas-
sagem fique notado que também aqui houve uma época do couro.
Dormia-se ao relento: os aperos do animal serviam de leito. Esten-
diam por terra a grande peça chamada carona, o lombilho substituía o
travesseiro, sobre a carona punham o pelego e por cima de tudo dei-
tavam-se embrulhados no poncho e de cabeça descoberta.
Avigorou-se a tendência ao nomadismo com a circunstância de
passar por ali a fronteira, uma fronteira disputadíssima, que qualquer dos
confinantes ambicionava estender, e de entre ambos meteram-se os
campos neutrais, em que nenhum tinha direito de penetrar, por isso
mesmo violados a cada instante, máxime da parte do Rio Grande. Os
combates regulares não subiram a muitos, mas as surpresas, as arreatas,
os encontros singulares, as incursões de contrabandistas constituíam
fato quotidiano. Forçosamente os rio-grandenses tornaram-se aventurei-
ros e soldados; só por militares tinham atenção; a Saint-Hilaire deram o
título de coronel. A quem não montava bem ou não sabia laçar de
cavalo xingavam de baiano ou maturango.
Capítulos de História Colonial 211
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Este desbarato semibárbaro modificou-se graças ao aumento da
população em parte, em parte graças às secas do Norte. O Ceará não
pôde mais fornecer a carne a que acostumara parte da gente do li-
toral, e experimentou-se o charque do Rio Grande; diz-se que
cearenses concorreram para a fundação de S. Francisco de Paula,
mais tarde Pelotas. Abriu-se assim uma fonte de riqueza, o gado
cresceu de valor e as estâncias, também aqui estabelecidas geral-
mente nas eminências, começaram a ter alguma organização. Com as
charqueadas foram introduzidos os negros, que chegaram a muitas
dezenas de mil. Algumas estâncias rendiam milhares de cruzados, esban-
jados no jogo e nas apostas.
Na Bahia, por 1803, cerca de quarenta navios, de duzentas e cin-
qüenta toneladas cada um empregavam-se no comércio do charque do
Rio Grande, que mal completavam a viagem dentro de dois anos. Le-
vavam da Bahia aguardente, açúcar, louça, mercadorias européias, prin-
cipalmente inglesas e alemães, que passavam por prata de contrabando
em Maldonado e Montevidéu. Durante este tempo as tripulações empre-
gavam-se em carregar couro e carne-seca. Os navios chegando à Bahia
vendiam o charque a retalho, a dois vinténs a libra. Dispondo da carga
por este modo em vez de desembarcá-la, detinham-se no porto cinco
meses e até mais, de modo que, observa Lindley, no tempo consumido
por uma só viagem podiam ser feitas três.
A agricultura nunca ficou de todo descurada. A produção do trigo
atingiu milhares de alqueires; cultivaram outros cereais, a própria
mandioca. Aos inconvenientes da proximidade do gado solto obviava-se
abrindo valados, fazendo sebes vivas de sabugueiro e cactos, levantando
cercas de cabeças com chifres. Entretanto, a faixa agrícola ocupava uma
área insignificante, que só se dilatou depois da chegada de imigrantes
alemães. A decadência na lavoura do trigo, atribuída a certas medidas
antieconômicas tomadas pelo governo central e à deterioração das se-
mentes em conseqüência da ferrugem, deve ter causas mais profundas,
pois não foi ainda possível reerguê-la.
Saint-Hilaire, que percorreu a região, pinta-nos o rio-grandense da
campanha como vivo, corado, em geral de cor branca, de estatura avan-
tajada, sem curiosidade intelectual, de maneiras agrestes, incrivelmente
voraz e pouco sensível, senão cruel... Falando de alvoroço todas as vezes
212 J. Capistrano de Abreu
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que se carneava alguma rês, repara: "A idéia de em pouco poder se fartar
de carne é um dos motivos do prazer, mas não é o único; o maior é
matar a vaca e espedaçá-la, independente de toda a esperança de poder
satisfazer logo a sua gula. Entretanto, cumpre confessá-lo, esta paixão é
uma das que dominam os habitantes da capitania do Rio Grande."
Ao mesmo autor deve-se uma observação que explica uma porção de
fatos decorridos desde a Regência. Os mineiros, afirma, não se apegam ao
seu país. Com efeito, nem um hábito particular ali os retém, e não lhes custa
acharem outro melhor. Acresce que a inteligência, que lhes é natural, gar-
ante-lhes por toda a parte meios fáceis de subsistirem. Os habitantes desta
capitania, ao contrário, nunca saem de sua terra, porque sabem que alhures
seriam obrigados a renunciar a andarem sempre a cavalo e em parte al-
guma achariam carne em tamanha abundância.
Na formação do rio-grandense entraram sobretudo açorianos, nor-
tistas, principalmente de São Paulo, e não poucos espanhóis migrados ou
incorporados. Sobretudo na fronteira meridional deu-se a penetração das
duas línguas. Havia poucos mulatos. Notava-se a certos respeitos um quê de
mocidade fogosa ausente das outras capitanias. O combate contra seres ani-
mados difere muito nos efeitos da luta travada contra as massas da vege-
tação ou contra as inclementes forças cósmicas, como ao norte.
À beira-mar pobres pescadores arrastavam existência miserável; as
armações de baleias davam trabalho durante uma estação apenas e ap-
enas em poucos pontos; a pescaria feita em maior escala, como em
Porto Seguro e alhures, não dispensava a importação do peixe seco; o
bacalhau contava-se entre as espécies de maior consumo. O contra-
bando universalizado zombava de todas as medidas de repressão.
Os proprietários rurais, possuindo melhores aviamentos, casas
mais espaçosas e mobílias menos sumárias, prosseguiam na lavoura
aleatória de drogas de luxo para o estrangeiro, esbanjando as riquezas
naturais, indiferentes às culturas dos gêneros de primeira necessidade e à
formação de mercados internos. Vítima desta latronicultura, a
escravidão africana condenava-a por sua vez à imobilidade e ao recuo. As
crises agrícolas repetiam-se; as valorizações disfarçavam sem extinguir o
vício congênito.
Os antigos povoados, assentes, como Igaraçu e Porto Calvo, nos
limites da cabotagem fluvial, definharam à medida que as embarcações
Capítulos de História Colonial 213
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cresceram de calado. A prosperidade mercantil pedia o contacto do
oceano. Os centros de maior movimento eram São Luís do Maranhão, Re-
cife, Bahia e Rio.
Nas cidades costeiras o pobre índio sumia-se ante o europeu e o
negro com seus descendentes puros ou mesclados. O preconceito de
cor agonizava no exclusivismo dos corpos armados, como o dos Henri-
ques, composto só de pretos, as confrarias, de que algumas só admitiam
pretos, pardos ou brancos, na especialização de certos padroeiros, como
a Senhora do Rosário, São Benedito, São Gonçalo Garcia. A impedir ou
sequer minorar a mestiçagem não chegava seu alento; era antes uma
tradição meio delida do que uma força viva.
O serviço doméstico tocava aos escravos, sempre em número ex-
cessivo, pois vivia-se com pouco, e graças à criação miúda, aos mariscos
abundantes, ao peixe barato, aos engenhosos e múltiplos quitutes, gras-
savam a prodigalidade e a imprevidência da economia naturista. Alguns
deles empregavam-se na faina dos transportes por terra e por água; alguns
aprendiam ofícios; outros, pagando jornais convencionados com os
donos, procuravam ocupações a seu gosto. Conversavam às vezes em lín-
gua africana, constituíam grêmios secretos e praticavam feitiçarias. Sua alegria
nativa, seu otimism o persistente, sua sensualidade animal sofriam bem o ca-
tiveiro.
Nunca ameaçaram a ordem de modo sério, e os carregadores davam
certa animação às ruas. "São mandados com cestos vazios e longas varas a
procurar emprego em benefícios de seus senhores", escreve John Luccock. "Mer-
cadorias pesadas transportam-se ao ombro entre dois parceiros por meio destas
varas, às quais se passam umas alças, que levantam o fardo um pouco acima do
solo. Se a carga for muito grande para uma parelha, forma-se um bando de quatro,
de seis e até mais de que um; em geral, o mais inteligente é escolhido para dirigir o
trabalho. Este, encarregado de promover a regularidade dos esforços, e especial-
mente uniformizar o passo, entoa sempre um canto africano, de música breve e
simples; no fim respondem todos em coro estridente. O coro continua en-
quanto dura o trabalho, e parece aliviar o peso e alegrar o coração."
Os mulatos, gente indócil e rixenta, podiam ser contidos a intervalos
por atos de prepotência, mas reassumiam logo a rebeldia originária. Suas fes-
tas, menos cordiais que as dos negros, não raro terminavam em desaguisa -
dos; dentre eles saíam os assassinos e os capangas profissionais. Crescendo
214 J. Capistrano de Abreu
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em número, desconheceram e, afinal, extinguiram as distinções de raça, e
foram bastante fortes para romper com as formas do convencionalismo
vigente e viver como lhes pedia a índole irrequieta. Para o nivelamento
concorreu sobretudo a parte feminina, com seus dengues e requebros
lascivos. Spix e Martius ouviram cantar na Bahia:
Uma mulata bonita
Não carece de rezar,
Abasta o mimo que tem
Para sua alma se salvar.
O convencionalismo oprimia a gente branca: funcionários preten-
siosos vindos da metrópole e abrangendo no mesmo desdém soberano
a terra e os moradores, negociantes grosseiros e pouco lisos nas tran-
sações, meros consignatários de seus patrícios, que por sua vez não pas-
savam de consignatários de ingleses, capitalistas desconfiados, descendentes
empobrecidos de pais ricos e perdulários, irmãos das almas, os próprios
mulatos, quando a multiplicidade dos cruzamentos disfarça-lhes a casta,
em público moviam-se sorumbaticamente, como autômatos.
Toda a população parecia de língua atada, informa ainda Luccock;
não havia brinquedo de meninada, vivacidade de rapazes, gritaria rui-
dosa de gente mais entrada em anos. "O primeiro grito geral que ouvi
no Rio foi no aniversário da rainha em 1810. Seguiu-se a um fogo quei-
mado nesta ocasião e foi um viva abafado, não frio, porém tímido; pare-
cia perguntar se podia ser repetido."
De sua residência, no cruzamento da Rua do Ouvidor com a da
Quitanda, assistia a uma cena, que descreve do seguinte modo: "Pre-
cisamente neste lugar, todos os dias não santificados pela manhã, re-
uniam-se os solicitadores com os meirinhos para tratar de negócios. A
generalidade deles usava de velhos casacos pretos surrados, alguns com
bastante remendos, e tão mal adaptados à altura e à forma dos donos,
que excitavam a suspeita de não terem sido estes os primeiros que os
possuíram; os coletes eram de cores mais alegres com longos peitos bor-
dados, grandes golas e profundas algibeiras; os calções eram pretos e tão
curtos que mal chegavam aos lombos ou aos joelhos, onde se prendiam
com fivelas quadradas de diamantes falsos, as meias de algodão fiado em
casa e enormes as fivelas dos sapatos. As cabeças eram cobertas de cabelei-
ras empoadas e punham por cima chapéus de bico, grandes e sebosos, em
Capítulos de História Colonial 215
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que usualmente colocavam um tope preto. À esquerda traziam um es-
padagão muito velho e estragado. Era divertido observar com que
cerimônias minuciosas estes cavalheiros e seus subalternos dirigiam-se
uns a outros; com que ordem exata se curvavam e tiravam os sujos
chapéus; com que formas perversas e fria deliberação combinavam-se
para esvaziar o bolso de seus clientes."
A educação reduzia-se a expungir a vivacidade e a espontaneidade
dos pupilos. Meninos e meninas andavam nus em casa até a idade de
cinco anos; nos cinco anos seguintes usavam apenas camisas. Se porém
iam à igreja ou a alguma visita, vestiam com todo o rigor da gente
grande, com a diferença apenas das dimensões. Poucos aprendiam a ler.
Com a raridade dos livros exercitava-se a leitura em manuscritos, o que
explica a perda de tantos documentos preciosos.
Só os frades, a exemplo da gente de cor, obedeciam aos ditames do
temperamento, sem medo de escândalo e até procurando-o. "Um dos
motivos da relaxação é haver muitos conventos e poucos religiosos",
escrevia Fr. Caetano, bispo do Pará; "a causa para não poderem satis-
fazer a todas as observâncias brevemente degenera em pretexto frívolo
para se eximirem até das mais fáceis e ei-los aí ociosos, inúteis absolu-
tamente à Igreja e ao Estado." A tanto subiu sua desenvoltura que difi-
cilmente encontravam noviços nos últimos tempos. Das freiras e recol-
hidas não se contavam iguais excessos.
Gozavam de prestígio os padres, os genuínos representantes da
mentalidade até o começo do Segundo Império, quando os substituíram
no cenário bacharéis formados pelas academias de S. Paulo e Olinda. As
virtudes de sua vocação raros possuíam, mas o caso de tão comum não
causava estranheza. Alguns, rompendo com o exclusivismo do latim,
aprenderam francês e até inglês, cultivavam as ciências naturais,
esposavam as idéias dos enciclopedistas, entusiasmaram-se pelas tragédias
da revolução francesa, conheciam as teorias de Adam Smith.
Entre eles contavam-se pedreiros-livres, que já existiam em pequeno
número, oficiais portugueses e brasileiros viajados no estrangeiro, e não se
reuniam ainda em lojas. A população, que, aliás, não podia conhecê-los, pois
ninguém se animava a apregoar-se como tal, votava-lhes um terror
louco; circulavam notícias pavorosas de suas abominações sacríle-
gas, entre elas a de se aprazerarem em apunhalar crucifixos. Apesar
216 J. Capistrano de Abreu
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de sua exigüidade ou por causa desta, dispunham de certa influência e
conseguiram dar escapula ao inglês Thomas Lindley, preso na Bahia por
contrabandista.
"Os principais divertimentos dos pracianos (citizens) são as festas
dos diferentes santos, profissões de freiras, funerais suntuosos, a semana
santa, etc., celebrados rotativamente, com grandes cerimônias, músicas e
procissões freqüentes", informa este viajante. "Mal passa um dia em que
não ocorra uma ou outra destas festas, e assim se apresenta um círculo
de oportunidades para unir a devoção e o prazer, que é vivamente
abraçado, em particular pela mulher.
"Em grandes ocasiões destas, depois de virem da igreja, visitam-se
uns a outros e saboreiam um jantar mais farto que de costume, durante
e passado o qual bebem quantidades desmedidas de vinho. Quando al-
cançam uma temperatura extraordinária, introduz-se o violino ou a gui-
tarra, começa o canto, logo seguido da excitante dança negra, mistura de
danças da África e dos fandangos de Espanha e Portugal, que consiste
em um indivíduo de cada sexo dançar ao toque monótono do instru-
mento sempre no mesmo compasso, quase sem mover as pernas, mas
com todos os movimentos licenciosos do corpo, juntando-se durante a
dança em contato estranhamente imodesto. Os espectadores, acompan-
hando a música e um coro improvisado e dando palmas, saboreiam a
cena com um gozo indescritível."
As mulheres poucas vezes saíam a público e iam às missas de
madrugada; algumas serviam-se de cadeirinhas, carregadas por negros de
bela estampa e rica libré; carruagens, pode-se dizer, não havia. A maior
parte do tempo levavam em seus aposentos, quase em mangas de
camisas, sem meias e até sem tamancos, ouvindo das mucamas histórias
de carochinha ou bisbilhotices frescas, penteando o cabelo, embevecidas
nos cafunés. Bordavam, faziam rendas ou doces, cantarolavam modin-
has sentimentais, comunicavam com as vizinhas pelos quintais; entretin-
ham-se com quitandeiras e beatas, ou abrigadas por uma rótula discreta
procuravam saber o que havia na rua. As moças solteiras engordavam,
quando se fazia esperar muito o dia do casamento, felizes as que encon-
travam "casa de Gonçalo, em que a galinha canta mais que o galo".
Das fluminenses, diz Luccock que seus ornatos produziam um
efeito agradável, e molduravam os encantos de uma face redonda, de
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feições regulares, olhos negros, vivos e curiosos, fronte lisa e aberta,
boca expressiva de simplicidade e bom gênio, ocupada por uma fieira de
dentes brancos e iguais, unidos a um rosto sofrivelmente bonito, um ar
risonho e um modo alegre, franco e sem malícias.
Tal, acrescenta, é a aparência comum de uma moça de cerca de
treze ou quatorze anos. Aos dezoito anos, a natureza atingiu a maturi-
dade completa na brasileira. Alguns anos mais tarde torna-se corpulenta
e até pesadona; adquire uma grande giba nas espáduas, e anda com um
passo desgracioso e cambaleante. Começa a decair, perde o bom humor
da fisionomia, e substitui-o por uma carranca; olhar e boca exprimem
ambos que se acostumou a exprimir paixões vingativas e violentas, as
faces ficam privadas de frescura e de cor, e aos vinte e cinco anos ou
trinta transforma-se numa velha perfeitamente enrugada.
Os homens jogavam, freqüentavam cafés, iam às casas de pasto,
palestravam sobre assuntos muito limitados, quase sempre vida alheia.
Os acontecimentos mais comezinhos deformavam-se em intermináveis
comentários maliciosos. Abundavam as alcunhas. Mesmo a morte se
desrespeitava. Se morria alguém com fama de santo, se aparecia algum
cadáver incorrupto, estabelecia-se um reboliço na população e a procura
de relíquias assumia as mais indiscretas formas. Se ao contrário corria
que a alma se perdera, corriam logo boatos prodigiosos, assombravam-
se as casas e sentia-se a proximidade das trevas exteriores onde há choro
e ranger de dentes. Ainda hoje se nota isto no interior.
No Rio, e o mesmo se deveria com pouca diferença notar nas
outras cidades marítimas, a maioria das casas era térrea. Na frente havia
uma sala assoalhada de bom tamanho; atrás ficavam as alcovas, a coz-
inha, o quintal. Embaixo dos poucos sobrados existiam geralmente ven-
das. A família se reunia na varanda no fundo, as mulheres sentadas em
esteiras, os homens encostados a qualquer coisa, ou andando de uma
parte para outra. Aí jantavam numa mesa velha estendida sobre dois
cavaletes, cercada de bancos de pau e às vezes uma ou duas cadeiras. A
principal refeição era ao meio-dia, e então o dono, a dona da casa, os fil-
hos sentavam-se todos à roda; mais comumente, porém, acocoravam-se
no chão. Os alimentos molhados vinham em terrinas ou cuias; os ali-
mentos secos em cestas; comia-se em pratinhos de Lisboa. Só os
homens serviam-se de faca; mulheres e meninos comiam com a mão.
218 J. Capistrano de Abreu
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Quando um cavalheiro fazia qualquer visita, se não era íntimo da
casa, ia de ponto em branco, chapéu armado, fivela nos sapatos e nos
joelhos, espada à cinta, segundo Luccock. Ao chegar, batia palmas para
chamar a atenção, e soltava uma espécie de som sibilante, emitido entre
os dentes e a ponta da língua. Acudia uma criada que de modo áspero e
tom fanhoso perguntava quem era e ia levar o recado ao patrão. Se o
visitante era algum amigo ou não reclamava cerimônias, aparecia logo o
dono da casa, levava-o para a sala, protestando alto o prazer com que o
recebia, fazendo-lhe discursos cheios de cumprimentos, acompanhado
de reverências, e antes de entrar em negócio, se disto se tratava, pedia-
lhe muitas desculpas pela sem-cerimônia da recepção. Se o visitante era
de cerimônia, uma criada levava-o para a sala, donde ao entrar via mui-
tas pessoas que lá estavam saírem por outra porta. Aqui esperava só
talvez meia hora, até o cavalheiro aparecer numa espécie de trajo de
meio rigor. Ambos se inclinam profundamente à distância; depois de
haver mostrado suficiente perícia nesta ciência, ganhando tempo para
apurar a posição e as pretensões do outro, aproximavam-se, com digni-
dade e respeito correspondente se desiguais; com familiaridade se supos-
tos proximamente iguais. Tratava-se e despachava-se o negócio sem de-
mora. Pede-se ao estranho que considere a casa como sua, nota Pohl; se
mostra agradar-se de qualquer coisa, exige o costume que lhe seja ofere-
cida, pedindo-se que leve aquela insignificância.
As ruas eram estreitas, sem calçamento, sem iluminação ou ilumi-
nadas a azeite de peixe. A água e os esgotos ficavam entregues à inicia-
tiva particular. Enterravam-se os cadáveres nas igrejas. Só a pouca popu-
lação explica a ausência de epidemias. Da higiene pública incumbiam-se
as águas da chuva, os raios do sol e os diligentes urubus. Constituíam
exceção notória o passeio público e o aqueduto do Rio.
Depois de brutalmente extintas as primeiras tentativas industriais,
ficaram nas cidades apenas mecânicos que trabalhavam por encomenda
e a quem se pagava só o feitio. "Quando um oficial ganhava algumas
patacas folgava até acabar de comê-las", observa Saint-Hilaire. "Apenas
possuía a ferramenta mais necessária, e quase nunca andava provido das
matérias que devia feitiar. Assim tinha-se de fornecer couro ao sapateiro,
linha ao alfaiate, madeira ao marceneiro; adiantava-se dinheiro para
comprarem tais objetos, mas quase sempre gastavam o dinheiro e a obra
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não se fazia só passado um tempo considerável. Quem tinha alguma
coisa a encomendar precisava de fazê-lo com larga antecedência. Supon-
hamos, por exemplo, que fosse uma obra de marcenaria, era necessário
primeiro empregar amigos para arranjarem no campo a madeira precisa;
tinha-se depois de mandar cem vezes à casa do oficial, ameaçá-lo, e às
vezes em definitivo nada conseguir. Perguntava a um homem honrado
de S. Paulo como fazia quando precisava de um par de sapatos. En-
comendo-o, disse-me, a vários sapateiros ao mesmo tempo e entre eles
acha-se ordinariamente um que, premido pela falta de dinheiro, se
resigna a fazê-lo."
Os oficiais do Rio tinham a pretensão de possuir grandes segredos,
mas ignoravam as coisas mais simples, narra Luccock. Tendo perdido
uma chave, foi à procura e afinal encontrou um operário que o tirasse
do aperto. "Deteve-me longo tempo, mas em compensação apareceu-
me de ponto em branco, chapéu armado, de fivelas nos sapatos e nos
joelhos e correspondentes parafernais. À saída remanchou ainda à es-
pera de algum negro que lhe carregasse o martelo, o escopro e outro in-
strumento pequeno. Sugeri-lhe que eram leves, e propus eu próprio car-
regar parte ou todos; mas isto teria sido solecismo prático tamanho
como usar ele das próprias mãos. O cavalheiro esperou pacientemente
até aparecer um negro, fez então seu trato e marchou com a devida so-
lenidade acompanhado de seu servo temporário. Despachou-se de-
pressa, arrombando a fechadura em vez de arrancá-la; então o figurão,
fazendo-me uma profunda mesura, partiu com seu acólito."
Os mecânicos nunca formaram grêmios profissionais à maneira da
Europa: eram para isso muito poucos, e se nas cidades podiam viver de
um só ofício, em lugares de população menos densa precisavam de sete
instrumentos para ganhar a subsistência. Mesmo nas cidades faziam-lhes
concorrência os oficiais escravos.
A falta de grêmios notava-se nas outras classes. Continuavam as
históricas pessoas morais, mas sua ação, já enfraquecida pela vastidão do
território, acabara de definhar desde que o absolutismo nivelador desaten-
deu a seus privilégios. Se excetuarmos algumas irmandades e associações de
beneficência como as casas de misericórdia, sempre beneméritas e sempre
vivazes, as manifestações coletivas eram sempre passageiras: mu-
tirão, pescarias, vaquejadas, feiras, novenas. Entre o estado e a família
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não se interpunham coordenadores de energia, formadores de tradição,
e não havia progresso definitivo. Um indivíduo podia tentar uma em-
presa e levá-la a bom êxito; com a sua ausência ou com a sua morte per-
dia-se todo o trabalho, até vir outro continuá-lo passados anos, para afi-
nal colher o mesmo resultado efêmero.
Vida social não existia, porque não havia sociedade; questões públi-
cas tampouco interessavam e mesmo não se conheciam: quando muito
sabem se há paz ou guerra, assegura Lindley. É mesmo duvidoso se sen-
tiam, não uma consciência nacional, mas ao menos capitanial, embora
usassem tratar-se de patrício e paisano. Um ou outro leitor de livro es-
trangeiro podia falar na possibilidade da independência futura, principal-
mente depois de fundada a república dos Estados Unidos da América
do Norte e divulgada a fraqueza lastimável de Portugal.
Não se inquiria, porém, o meio de conseguir tal independência va-
gamente conhecida, tão avessa a índole do povo a questões práticas e con-
cretas. Preferiam divagar sobre o que se faria depois de conquistá-la por um
modo qualquer, por uma série de sucessos imprevistos, como afinal
sucedeu. Sempre a mesma mandrice intelectual de Bequimão e dos Mas-
cates!
Cinco grupos etnográficos, ligados pela comunidade ativa da língua
e passiva da religião, moldados pelas condições ambientes de cinco
regiões diversas, tendo pelas riquezas naturais da terra um entusiasmo
estrepitoso, sentindo pelo português aversão ou desprezo, não se
prezando, porém, uns aos outros de modo particular -- eis em suma ao
que se reduziu a obra de três séculos.
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