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José Leon Machado
A MargemA Margem
A MargemA Margem
A Margem
Uma espécie de rUma espécie de r
Uma espécie de rUma espécie de r
Uma espécie de r
omanceomance
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omance
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Índice
Ficha Técnica ...................................................................... 1
Parte I .................................................................................. 3
Parte II ............................................................................... 35
Parte III .............................................................................. 74
Epílogo ............................................................................ 120
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Ficha Técnica
Título: A Margem
© Copyright José Leon Machado
1ª edição: OPSIS, 1997
2ª edição: Projecto Vercial (formato electrónico), 2001
3ª edição: Edições Vercial (formato electrónico), 2003
Todos os direitos reservados
Edições Vercial, Setembro de 2003
URL: www.ipn.pt/literatura
José Leon Machado
A MargemA Margem
A MargemA Margem
A Margem
Uma espécie de rUma espécie de r
Uma espécie de rUma espécie de r
Uma espécie de r
omanceomance
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omance
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PARTE I
I
A estrada era famosa pelas curvas e pela sombra das
árvores. O Rubro admirava a paisagem que se espraiava para
o fundo, enquanto o Rocha mudava de calças por detrás do
carro estacionado. Era a hora do equinócio e o calor ia alagando
as carnes de suor naquele começo de Agosto. Os dois rapazes
esperavam a passagem da camioneta que transportaria mais
três companheiros de Braga. Por terem atestado o carro com o
material de campismo, não couberam todos.
A camioneta passou e nem sinal dos outros. O melhor
seria adiantarem-se, que a fome apertava e a ânsia de chegar
ao local onde acampariam era grande. O Rocha arrancou e
chegaram à Caniçada a arder de sede e de calor.
O dono do café Mira-Rio, pai de um antigo colega de
escola, acolheu-os muito bem e pôs-se à disposição para tudo
o que necessitassem. Teriam a oportunidade de ver o filho ao
serão, pois naquele momento estava a trabalhar em Vieira do
Minho. Agradeceram a atenção e, não muito longe do café,
foram cumprimentar o padre Armindo a casa. Foi ele que lhes
arranjou o local para acampar. Colocou-se também à
disposição agradecendo a visita com um grande sorriso.
Abarrotados de ajudas bem intencionadas, meteram o
carro por um caminho abaixo em direcção ao Boco, o local
onde passariam uma semana. A cem metros acima do rio,
abandonaram a viatura e desceram a explorar o local
verdadeiramente paradisíaco mas de acessos dolorosamente
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espinhosos e acidentados. O Rocha praguejava cheio de
arranhões nas pernas. Que não tivesse tirado de calças, dizia-
lhe o Rubro. Quis ir de perna ao léu?
Acalmou-se quando embateu no rio enorme e azul e em
toda a verdura que os rodeava. Respirou fundo e até pensou
que os dias ali passados seriam bastante proveitosos.
Entre os fetos verdes e sob a imensa folhagem dos
carvalhos, decidiram descarregar a viatura. Iria depois o Rocha
buscar os outros três à paragem da camioneta. Perderam a
primeira carreira, viriam na próxima.
Descarregado o material, o Rocha arrancou de novo. O
Rubro lá ficou, sentado no chão junto ao rio, a pensar naquela
que lhe andava a desorientar a psique sem frutos palpáveis.
Estava ali para esquecer um pouco essa loucura e haveria de
consegui-lo. Mas era tão duro querer esquecer aquele
sentimento que o invadia e lhe deixava uma sensação de paz e
desassossego. Uns finos e isso passava.
Mais cinco quilómetros de curvas e o Rocha chegou à
paragem da camioneta. Sinal de ninguém. A bufar pela boca e
a roncar pelo estômago, entrou num snack-bar das
Cerdeirinhas e pediu uma mista e um sumo de lata. Acalmou
os ânimos a regalar os interiores com propositados requisitos.
Até que finalmente chegava a camioneta com os outros três.
Tinham perdido a primeira porque o Rubro informara-os mal
do horário. Eles bem a viram, mas, como dizia Chaves, não
lhes passou pela cabeça que seria essa. O Rocha estrebuchando
rosnou como de costume:
– Sois uns azelhas! Qualquer burro sabe que para ir a
Chaves se tem de passar por aqui. Ou nem sabeis que Chaves
fica para estas bandas?
Desculpando-se, entraram para o carro. Estavam mal-
humorados e tentavam deitar as culpas do lapso uns para
5
outros.
E foi neste estado de espírito que montaram as tendas
durante a tarde. Terminado o serviço, mergulharam a
experimentar a profundidade das águas, cada um a seu modo,
outros de modo nenhum, e fizeram-se as compras necessárias
na mercearia do Mira-Rio onde passaram o resto da tarde.
II
Já o sol se ocultava quando regressaram ao Boco. O
Rocha ofereceu-se para a cozinha e os outros ajudaram no
que poderia ser necessário. Arroz seco, chispalhada e ovos
seria a ementa para o jantar daquele dia.
Tendo ido o Louro e o Rubro buscar água à nascente ali
perto, eis que um sujeito desconhecido se lhes dirigiu.
Perguntou quem eram e, depois de verificar que eram bons
rapazes, deu autorização para, sempre que desejassem subir à
povoação, atravessarem os seus terrenos. Poupar-lhes-ia
esforços e seria um caminho seguro. Duas recomendações
apenas: não lhe calcarem a relva e fecharem a cancela sempre
que entrassem ou saíssem. Foi com entusiasmo que todos
receberam a boa-nova. Enfiarem-se pelo mato acima era
deveras uma aventura pouco atraente e obrigava-os a descer
ao Boco antes do anoitecer, não fossem tropeçar. Era um
autêntico suicídio descer aqueles terrenos sem luz. Com esta
autorização remediava-se o problema. Comemoraram
brindando o acontecimento com água da nascente fresca e
pura.
– O nosso vizinho caiu do céu e temos apenas de
conquistar-lhe a confiança – comentou o Louro.
– A confiança dele já a temos. Pensa que somos bons
rapazes. Dissemos-lhe que éramos ex-seminaristas e estudantes
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da Faculdade de Filosofia – acrescentou o Rubro.
– Se o Rocha trouxesse o carro cá para baixo, ficaríamos
na maior! – rematou o Cordeiro.
– Nem penses! Não vou enfiar o carro por aqui abaixo
para depois ele não conseguir subir. O caminho está cheio de
buracos e curvas cerradas.
– No fim de esquartejar este ovo quero ir até ao café –
atalhou o Lula com o queixo a pingar gordura da chispalhada.
– Vamos todos – recomendou o Rubro levantando-se
para encher a malga plástica de água que emborcou de um
sorvo.
A loiça não foi lavada. Ficou a vela de parafina a fumegar
fazendo companhia aos pratos sujos em cima da mesa
improvisada com duas tábuas que ali havia. O céu alastrava-
se em estrelas que raras vezes se poderiam ver da cidade, pois
as luzes da noite ofuscavam-nas. Ali não havia luzes da noite.
A terra era escura, existia apenas o reflexo da lua nas águas
profundas.
– Sandra, cinco finos para a malta – pediu o Rubro à
miúda de serviço.
– Cinco não, quatro. Eu prefiro leite – protestou o Rocha
sentando-se com os outros ao balcão.
Todos se riram e com eles a miúda de olhar penetrante.
O Rocha não gostava de adormecer sem tomar antes o seu
copinho de leite. E ainda para mais num dia tão minguado em
proteínas. Não, não poderia dispensar o leite, mesmo que
rissem da sua atitude.
– Uma mista para mim – pediu o Lula com a cerveja
entre as mãos.
– Já tens fome? – perguntou-lhe o Cordeiro.
– Eu não comi nada no acampamento. Estás a ver?...
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Os líquidos rapidamente tiveram sumiço dos copos.
Abandonando o Rocha à televisão, os quatro saíram para
desenferrujar os matraquilhos na esplanada do café.
– Então tu és a Sandra – considerou o Rocha com um
olho na televisão e outro na miúda que lavava os copos.
– Sou. O Rubro conhece-me há bastante tempo. E tu,
como te chamas?
Alberto Rocha, de Braga. Vinte e um anos,
descomprometido.
– Ah! – E riu acriançadamente mostrando uns dentes
fortes e brancos. – Tu és o do carro azul.
– Sim. Trabalhas aqui?
– Só nas férias. Os donos são meus tios. O Miguel é
meu primo.
E apontou para fora onde os outros jogavam. Tinha
acabado de chegar o Miguel, que cavaqueava com eles. Há
quanto tempo o Rocha não via aquele sujeito?
– Vou cumprimentá-lo. Volto já.
Levantou-se e atirou um último olhar desinteressado à
televisão e um outro penetrante à miúda.
III
Na primeira noite de todos os acampamentos raras vezes
se adormece e esta não foi excepção. O chão era duro, grande
problema para aqueles que se habituaram aos moles colchões.
E depois a sensação da noite passada numa floresta longe de
casa com os amigos ao lado ajudava a desarticular a língua. E
desarticularam-na como nunca antes o haviam feito.
– Chute! Quero dormir.
– Ó Rubro, imagina a Vânia aqui a teu lado.
– Olha, vai para o diabo!
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– O Rubro não lhe deu a coisa a tempo e ela mandou-o
passear.
– Estás a fazer-me tesão.
– A tua prima é boa como o milho.
– Não gosto do traseiro. Tem-no muito descaído.
– Deixai-vos de porcalhices.
– Vamos mas é dormir. Amanhã há muito para fazer e
convém que se vá à missa. Afinal de contas é domingo.
– À missa? Eu não vou.
– Nem eu.
Alguém tem de ir. O que é que o padre Armindo vai
pensar de nós?
– Então é o padre Armindo a celebrar?
– O da Caniçada está de férias.
– Mas ele anda por aí.
– Passa as férias em casa.
– Esse ao menos poupa.
– Mas quem é que vai?
– Onde?
– À missa, caneco!
– Pronto, vou eu – ofereceu-se o Louro, tão devoto, a
coçar as virilhas.
Enquanto ele estava na igreja a escutar desatento a
homilia do padre Armindo, no Boco aquecia-se o leite e
adaptavam-se à cozinha alguns quesitos indispensáveis para o
mínimo conforto culinário. A noite fora má, a manhã era bela.
A loiça jazia ainda coberta de gordura e com os restos da
véspera. Ninguém queria lavá-la. Porque um transportou a água
e não tinha obrigação, porque outro cortou a cebola, porque
aqueloutro acendeu o fogão de campanha. Seria o Louro a
lavá-la logo que chegasse da missa. Mas ele chegou e recusou-
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se a tão desprezível trabalho: que tinha aberto as latas da
chispalhada e não era a sua vez.
A discussão adensou-se a ponto de se insultarem
mutuamente. O Rubro então desceu de si e ofereceu-se. o Louro
por sua vez reconsiderou e acompanhou-o.
A manhã espraiava-se quente e, após as lavagens e a
definitiva organização do campo, desceram o pequeno declive
para mergulhar. Nenhum, porém, se decidia a meter-se na água.
Apetecia antes ficar deitado na erva com o sol a bater doce, o
olhar na paisagem verde, no límpido azul do rio. O Rubro
sentado dedilhava um solo na viola. Do solo passou a cantar e
os outros foram entrando a fazer coro. Ouvia-se longínquo o
eco da balada. Interrompeu-a um barco a motor com um tipo
atrás praticando esqui e outro nos comandos. Volteou frente à
malta para desaparecer numa curva do rio.
– Vou mergulhar – decidiu-se o Lula. Pôs-se de pé e
ganhou balanço para a queda.
– Espera por mim – gritou o Cordeiro.
E os dois furaram a água numa entrada perfeita.
– Também vou – disse o Louro. Mas, como a vista lhe
fugisse para o fundo, desencorajou-se. Meteu primeiro o pé
direito, depois o esquerdo. Molhou as mãos e aspergiu o corpo
arrepiado. Vagarosamente entrou medindo a água pelos
joelhos. Parou, então, com os braços cruzados a olhar o Lula e
o Cordeiro a divertirem-se lá para o meio. Num acesso de
coragem, atirou-se, bufou um arrepio e juntou-se aos dois
companheiros fluviais com cinco braçadas.
– Atravessamos? – desafiou o Lula.
– És doido! Não sou nenhum pato – respondeu-lhe o
Louro.
– Com esses músculos não me digas que não aguentas
até à outra margem!
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– Pouca treta e começa a nadar.
Nadaram, boiaram e chegaram à margem de lá. O Rubro
e o Rocha, vendo-se abandonados, mergulharam também. Não
gostavam muito de assistência às suas cabriolas aquáticas. Era
a falta de experiência de natação. O Rocha dava uns toques
em nado. Mas nos mergulhos era um desastre. Ao contrário, o
Rubro mergulhava lindamente, mas a nadar, coitado. Sozinhos
evitavam a risota dos outros.
IV
A ermida de São Bento, uma das maiores fontes de
receita da igreja bracarense, erguia-se majestosa por cima do
Cávado entre as serras pedregosas.
O Rocha estacionou a Renault diante do templo. Os
passageiros saíram e foram todos dar umas voltas pelo largo.
Eis quando se aproxima a Maria João numa careta de sorriso.
Beijinhos a todos, não se podia demorar, que tinha trabalho
no hotel. Passassem mais tarde, pois precisava de lhes falar.
– Nós agora vamos até ao parque. Depois passamos na
recepção.
– Estou na sala de artesanato, aquela mesmo em frente.
O parque era frondoso, carregado de silêncio
sacrossanto, onde os namorados se devoravam pausadamente
nos bancos de madeira e os labregos comiam os seus farnéis
de coxas de frango e arroz de forno. Dois caminhos: um para
cima, outro para a direita. O Rubro queria subir. Ninguém
concordou. Preferiam o horizontal. Mas, teimoso, subiu. Os
quatro, ao contrário, instalaram-se numa mesa de granito não
muito longe de três miúdas apetitosas. Desejaram cantar para
despertar a atenção. Como não estava o Rubro, pegou o Rocha
na viola que o Lula carregava e começou a esgalhar um malhão
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desenfreado. Qual quê? As miúdas nem se dignaram olhar. O
Rubro apareceu pouco depois muito aborrecido por os outros
não terem seguido a sua ideia.
– Pega na viola e toca.
– Não toco!
– É para as miúdas.
– Deixa cá ver. –Arrebatou o instrumento, tirou um
acorde sonoro, afinou o mi de baixo e introduziu o Let it be
dos Beatles.
As miúdas continuaram sem lhes dar qualquer atenção.
Talvez achassem burlesco os cinco tipos a guinchar música
no parque. Contudo, não se pode dizer que não tivessem
público entusiasta. Um rapazola aproximou-se e meteu
conversa. Como lhes parecia parvo, falaram-lhe em inglês:
– Do you speak english?
– Ié, ai spique. Mi, ai ame a musique. De rock.
– Love’s you the rock?
– Quê?... Ah! Ié, de rock és bom!
– We know, we know...
– Tocai aí um rockzinho.
– What? We aren’t understand you.
– Allons y – interrompeu o Louro já farto. – Il es fou.
You are right. Come on.
– Goodbye, foolish.
– Pró lixo? Essa não percebi – disse o desconhecido
coçando a cabeça.
Rodeando o lago escuro de lodo, dirigiram-se para o
hotel. O parvo lá ficou, a consumir o juízo das três miúdas,
mais contente por ter conhecido cinco ingleses que tocavam
rock.
Entraram então na sala de artesanato do hotel. Os artigos
expostos eram essencialmente têxteis que ninguém comprava:
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naperons, guardanapos, toalhas e lençóis de linho, bordados,
mantas de serapilheira. Duas moçoilas constituíam o pessoal
de atendimento. A João era uma delas. Bem apetrechada de
ancas, belo cabelo e uma enérgica língua, andava apaixonada
pelo Carlitos, coitada, e ele não correspondia muito ao seu
amor. Nem tudo podia dar certo na vida.
– Querias falar connosco?
– Deixa lá, é maluqueira minha. Olhai, esta é a Anabela,
que também trabalha aqui. O serviço é só nas férias.
– Muito prazer – disse o Cordeiro aproximando-se
lambão ao ver que a rapariga era bonitinha.
– O Cordeiro, o Lula, o Rocha, o Louro e o Rubro.
Houve troca de beijos e a João disse em seguida:
– O convívio com a juventude do Rio Caldo é mesmo
na quinta-feira?
A sardinhada, dizes tu. Nós marcámos para esse dia.
– O padre Matos, reitor do São Bento e nosso pároco,
convidou o grupo de jovens. Mas eu talvez não possa estar.
Tenho de ir a Braga.
– Sim, nós sabemos. É uma pena não poderes partilhar
a festa connosco.
– Se eu mudar de ideias ainda apareço.
– Sabes, parece que o Carlitos também vem.
– Ai vem?
– Não chegou a dar-nos a certeza. Como agora o vês
quase todos os dias em Braga, bem lhe podias perguntar.
– Precisamos de comprar pão – lembrou o Louro para
desviar a conversa.
– Pois precisamos – acrescentou o Lula já com fome.
– Vamos embora. Olha, João, se vires então o Carlitos,
diz-lhe que o esperamos para a sardinhada.
– Digo. Podes ficar descansado que eu digo – prometeu
a miúda ao Rubro, corando.
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V
O grupo de amigos era constituído por aqueles que
abandonaram o Seminário no ano anterior. Um deles era o
Carlitos. Perdeu a ideia de ser padre e, como os outros, entrou
para a Faculdade. A Maria João, sua colega de ano, apaixonou-
se e daí vieram muitas complicações para todos. O Carlitos
nunca simpatizou com ela. Achava-a feia e aborrecida. Mas a
João convenceu-se do contrário e deu-se de alma e corpo ao
rapaz. Este, como era peculiar do seu temperamento, quis tirar
algum proveito da situação. Como vivia no apartamento com
o Rubro e mais alguns colegas, ali a levava quando os outros
não estavam, e fechava-se no quarto com ela. Um dia o Rubro
entrou e descobriu. Comunicou aos outros e todos concordaram
que a situação era deveras embaraçante. Não por o Carlitos se
aproveitar da rapariga entre portas adentro; mas antes por ter
feito isso sem os avisar. Ele não lhes quis dar ouvidos, a coisa
embrulhou-se e resolveram dizer-lhe que, se assim continuava,
não poderia ficar mais no apartamento. Tocara as raias do
abuso: tinha um quarto só para si enquanto os outros dormiam
dois e três em cada quarto a pagarem o dobro. Entrava e nem
bom dia nem boa noite, aquilo era tudo dele. Não podendo
aguentar este desprezo e esta convencida superioridade, a única
solução para o caso era dizer-lhe «desculpa, mas não te
queremos cá mais». O Carlitos teve de arranjar nova casa e
ficou ofendido com os colegas. Ainda por cima não tiveram
vergonha de o convidar para o acampamento. É claro que ele
não aceitou.
A Maria João, depois do encontro com os rapazes do
acampamento, ficou ansiosíssima. A sua ida a Braga dependia
da boleia do pai e se o pai se lembrasse de não ir, lá ficava ela
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em Rio Caldo. E o pior é que não sabia se o Carlitos apareceria
na sardinhada. Andou a semana toda a telefonar, mas ninguém
atendeu. Que martírio, as férias. Dava tudo para que as aulas
começassem em breve. Sempre o poderia ver todos os dias.
Namorava oficialmente o Almerindo, um rapazinho da
terra que tinha acabado o curso de engenharia. Mas era tão
tosco, tão frio... O Carlitos tinha charme, um fogo que lhe
queimava os fusíveis, que a punha doida. O pai desejava que
ela casasse com o engenheiro e, se desconfiasse de que pela
sua parte isso nunca aconteceria, dava-lhe uma tareia, lá isso
dava.
Quando a João via algum dos colegas do Carlitos, o seu
coração dançava-lhe no peito em grandes guinadas. Era como
se estivesse a vê-lo a ele, sempre tão triste, como que a pedir
carinho, a pedir amor. E a João existia para o consolar, para
lhe dar tudo. As noites eram um doce pesadelo. Acordava de
olhos inchados e a cabeça dorida, mas valia a pena sonhar
com as suas mãos a percorrerem-lhe a face. Cada minuto do
seu dia era um beijo que recebia nos lábios. «Oh, Carlitos,
vem na quinta-feira!», pedia ela silenciosa a olhar a torre da
capela de São Bento à porta da sala de artesanato.
VI
– Vamos comer só a rosca e o fiambre? – protestou o
Lula enquanto desciam a estrada de Rio Caldo na carrinha.
– Quem quiser come, quem não quiser não come! –
exclamou o Rubro trincando um pedaço de rosca.
– Isto não é repasto que se apresente. Exijo jantar em
condições! – enervou-se o Louro.
– Quem se oferece para cozinhar quando chegarmos ao
Boco levante o braço – sugeriu o Rocha.
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Ninguém levantou.
Acho que o Rubro tem razão.: quem quiser comer,
come; quem não quiser, que deixe ficar. Dá cá um pedaço –
pediu o Rocha com a esquerda ao volante e a direita estendida.
– Estás a ser insuportável. Aqui ninguém manda. Todos
temos capacidade para decidir – protestou o Cordeiro.
– Então oferece-te para cozinhar.
– Se eu soubesse cozinhar, oferecia-me já. Como não
sei, deixo esse trabalho para os mais qualificados.
– Nem por isso quiseste lavar a loiça. Não cozinhas,
não lavas a loiça, és um autêntico burguês. Os outros que
trabalhem.
– Alto lá! Hoje fui eu quem limpou as tendas e acarretou
a água para a cozinha. Outros houve que fizeram muito menos.
– Não estejas para aí a aldrabar! A água foi acarretada
por mim – interferiu o Louro.
– E as tendas limpei-as eu! – acrescentou o Lula.
– E quem foi buscar o frango à mercearia?
– Grande trabalho! Cansaste-te.
– Não chateies, meu.
– Não chateies?! Tu é que estás para aí a lixar-me o
juízo.
– Caluda! – ordenou o Rubro. – Assim ainda vamos
acabar mal.
– Caluda não. Por acaso não sou livre de dizer o que
quiser?
E a discussão foi aumentando de volume até ao Boco.
Criaram-se dois grupos rivais: os preguiçosos-convencidos e
os convencidos-mandões. O primeiro grupo era constituído
pelo Cordeiro, o Louro e o Lula; o segundo era encarnado
pelo Rubro e pelo Rocha, os mais velhos.
16
Havia um bailarico numa capela entre as pontes a
caminho do Gerês. De comum desacordo, dirigiram-se para
lá. Avisara-os a Sandra da festa quando subiram ao Mira-Rio
a tomar o café do serão.
Um conjunto de música popular tocava e cantava. Por
entre espessa poeirada, os parzinhos batiam o pé em frenesim.
Os cinco companheiros estacaram olhando a balbúrdia.
Afastou-se o Lula a ver se arranjava par, deixando os outros
espapaçados sem saber o que fazer. Mas nada pescou. A noite
era má, escasseavam as mulheres disponíveis. Até se viam
homens a dançar com homens. Era melhor retroceder. Quando
se juntou ao grupo, viu que os companheiros falavam com
dois desconhecidos e estavam bem dispostos. Eram tipos
holandeses a trautearem inglês.
Mal avistaram o Rubro no meio da confusão, dirigiram-
se-lhe a perguntar se não era ele o que nesse dia de manhã
estava a tocar viola junto ao rio.
– We had loved your music.
– Really? You may come to hear tomorrow, if you will.
– Of course! We shall go, me and my friend. You are
English?
– No, we are Portuguese.
– But you speak english very well.
– Not at all. You will come?
– O.K., we are going.
– Bye.
– Bye.
– Tomorrow, we are waiting for you.
– That’s O.K. Bye.
Voltaram ao Boco bastante tarde, cobertos de pó e fartos
de música parola. Aí a discussão continuou entremeada de
insultos e palavrões. De garganta fatigada e fígado espumoso,
17
adormeceram. Só com o sono é que a tempestade amainara.
No dia seguinte chegariam o Barbosa e o Toninho. Mais
ajuizados, seriam o equilíbrio que faltava. E o Rubro, depois
de todos adormecerem, pensava que sim. A coisa estava mal,
ninguém se entendia. Adormeceu também numa recordação
aliciante da imagem da Vânia que reveria na próxima sexta-
feira, dia do seu aniversário, tão distante ainda.
VII
Amanheceu, fartou-se de amanhecer. O sono invadia as
tendas. De rins apertados, levantou-se o Lula, já o sol incidia
recto na mesa da cozinha improvisada. Pouco a pouco
soergueram-se todos friccionando a vista ferida pelo sol. O
pequeno-almoço resumiu-se aos restos do pão do dia anterior
com manteiga e leite do Mira-Rio. O Rubro pensou encetar a
garrafa do porto que lhes havia oferecido um amigo antes de
partirem de Braga. Mas não, os outros não concordaram, pois
não tinham culpa de o Rubro detestar o leite. Quando se
bebesse o porto, que bebessem todos.
– Lá anda o barco dos holandeses! – gritou excitado o
Lula.
– Vamos chamá-los – aconselhou o Cordeiro, começando
a descer a ladeira que levava à margem do rio.
– Esperem por mim! – pediu o Louro correndo atrás
engasgado com um naco de rosca cheia de manteiga.
Bem gritaram, bem fizeram gestos, mas os holandeses
não responderam. Que frustração para os três! E o Lula, que
gostaria tanto de dar uma voltinha no barco!
– Não vale a pena gritar mais. Desapareceram. Vamos
para cima – aconselhou o Louro desconsolado.
Acompanhou-o o Cordeiro. Ficou o Lula, descoroçoado,
18
a olhar a vastidão do rio deserto. Sonhara toda a noite com o
barco e uma longa viagem, só ele e o holandês ruivo, a fazer
esqui, deslizando na água enquanto o barco rodopiava à frente.
Agora nem barco, nem holandês, nem música. Queria cantar-
lhes algumas do Paul Simon e do Bruce Springsteen, para lhes
mostrar que os Portugueses não são toscos. E o Rubro tocaria
viola. Assim, quiseram armar-se em importantes, que fossem
para o diabo.
– É preciso telefonar ao Barbosa antes do meio-dia, para
saber a que horas ele e o Toninho chegam – avisou o Rubro a
mastigar um bocado de chouriça de colorau.
– Vou eu ao Mira-Rio e telefono – ofereceu-se o Louro.
– Ah! Ele quer ver a Sandra!... – exclamou o Cordeiro
irónico.
– Também é preciso saber se o Daniel consegue as
sardinhas para quarta-feira. Senão, temos de as arranjar aqui.
– Telefono também ao Daniel.
– E dá umas apalpadelas à Sandra por mim – acrescentou
o Cordeiro.
– Então vai-te embora. Quanto mais cedo, melhor, que
depois podes não apanhar o Barbosa em casa. E cuidado com
a Sandra: anda a deitar-te olhinhos.
– A mim não. Ao Rocha talvez. Cordeiro, vens comigo?
– Traz da mercearia uma dúzia de ovos e um frango –
pediu o Rocha saindo da tenda maior com um braçado de
cobertores.
– Vou pensar no caso. Pode ser que traga outra coisa.
– Traz o que eu te digo e cala-te.
– Eu trago o que me apetecer! Por acaso mandas na
cozinha?
E desapareceu com o Cordeiro por entre o arvoredo e a
frescura da manhã. Quando voltaram, depois de terem dado
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seca velha à Sandra, apresentaram o resultado dos telefonemas:
o Toninho e o Barbosa chegariam de tarde; as sardinhas tinham
de comprá-las eles, pois o Daniel esqueceu-se de as
encomendar.
Esta última notícia pôs o Rubro de mau humor. Onde é
que raio haveriam de arranjar duzentas sardinhas ali, no meio
da serra?
– Raios partam o Daniel e a mim, que confiei nele! –
dizia.
Após o almoço, renasceu o problema de sempre: quem
era o legítimo lavador da loiça. Não era ninguém. O Rocha
não lavava porque foi ele a cozinhar; o Louro foi com o
Cordeiro ao Mira-Rio; o Lula lavou a loiça do pequeno-
almoço; o Rubro descascou batatas e estava mal disposto. Mais
protestos, mais piropos, mais insultos, mais grunhidos que
faziam eco nas montanhas vizinhas. Que fossem todos para o
diabo! Já estava farto. Não lhe custava nada apanhar uma
camioneta e ir-se embora. E que não cantassem muito, que fá-
lo-ia mesmo! Não estava para os aturar.
Deixaram-no só e enfiaram-se no café até às quatro da
tarde. Também não estavam para o aturar, que se fosse embora
se quisesse.
VIII
O Rubro decepcionou-se com o acampamento. Andara
dois meses a prepará-lo, a contactar padres, os responsáveis
do local, os amigos, e tinha a dolorosa impressão de que tudo
foi debalde. No acampamento primava-se pelo egoísmo: cada
um fazia o menos possível. «Os outros que façam, esses é que
têm obrigação». E porquê o egoísmo, a resmunguice sempre
na ponta da língua? Todos haviam sido seminaristas, tinham
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frequentado um colégio interno onde a norma fundamental
de vida era «faz o que deves e está no que fazes». Tudo se
regia pela obrigação, pelo dever. Desde o levantar e ir à missa
até ao jantar e ao estudo à noite. Saíram e descobriram então
que na vida nem tudo são obrigações e deveres. Havia a
liberdade, e descobriram-na. E Agora, o que cheirasse a
opressão ou a dever lhes era altamente desprezível, como o
ter de lavar a loiça.
Junto à bica da água o Rubro passava o esfregão por um
prato e pensava. A água corria espumosa pelas pedras em
direcção ao rio. Era do detergente. Faltavam apenas os talheres
para completar a lavagem.
Também ele frequentara o Seminário e saíra um dia.
Não era nem melhor nem pior do que os companheiros. Era o
mais velho, tinha vinte e três anos e isso tornava-o mais
responsável. Mas mais responsável de quê? Desde o início
que o acampamento se tornara numa calamidade. Ele, que
pensara gastar uns dias na paz dos montes e das águas, viera
para um inferno. Andava-se às turras, ninguém dispensava uma
palavra de agradecimento, de conforto, de solidariedade.
Comia-se de cara torcida.
O testo de uma panela voou rente aos fetos.
«Oh! Vânia. Como eu gostaria que me ouvisses e
compreendesses! Imagina que até me apetece chorar como
quando era menino lá em Timor. A minha mãe vinha depois,
pegava-me ao colo e beijava-me de mansinho até eu parar de
chorar. Mas tu não vens e sei que não estás a pensar em mim.
Conhecemo-nos. Vai quase há um ano... Escreveste-me muitas
cartas e eu também. Fiquei louco por ti e aceitaste ser a minha
namorada quando te fiz a proposta. Eu era feliz, muito feliz.
Porém, um dia disseste-me que não era amor aquilo que sentias
por mim; que era apenas amizade. Então eu tornei-me numa
21
noite fria. E ficaste muito preocupada comigo, continuando-
me a escrever aquelas cartas de mel.
«Sexta-feira é o dia dos teus anos. Convidaste-nos a todos
para a festa e comprometemo-nos a ir. Vou com os outros,
animar, tocar viola. Porque no fundo, o que tu mais gostas é
da minha viola e dos meus shows. Não passo de um jogral
cuja função é animar a malta.
«Por que me deixas triste, Vânia? Pensei em ti para
clarear esta noite. Escureceu mais. Os meus amigos são uns
tipos porreiros. Hoje é que não os suporto, como à tua imagem.
Vá, rua! Fora da minha vida! Não tens o direito de permanecer
aqui dentro. Já te disse, fora! Fora!!».
IX
O Lula esquartejava o frango para o jantar enquanto o
Cordeiro, contra sua vontade, cortava cebola para a panela. O
Louro lia a Menina e Moça do Bernardim Ribeiro e o Rocha
esfregava cuidadosamente um par de cuecas amarelas.
Voltaram a meio da tarde do café, humildes como as canas ao
vento. Não disseram palavra ao Rubro; deixaram-no solitário
a dedilhar a viola na margem do rio.
Entretanto ouviu-se um ruído de um automóvel por cima
do Boco. Momentos passaram e o Lula distinguiu três sujeitos
a descerem em direcção às tendas. Eram o Barbosa e o Toninho
com o pai do Miguel, dono do Mira-Rio. Largaram tudo e
foram acolhê-los entre abraços e sorrisos. Até mesmo o Rubro
foi, atirando a viola e o mau humor para o canto, correndo
como bicho do mato.
Fizeram festa ao serão, já o pai do Miguel havia partido.
Rodeados à volta da mesa improvisada, uns no chão, outros
nas poucas cadeiras de lona, escutavam as últimas de Braga,
22
esperando pelo frango e pelas batatas que estufavam no fogão
de campanha. Dizia o Barbosa para a assembleia:
– Saímos de Braga às quinze na camioneta para Chaves.
Como não sabíamos onde ficavam as Cerdeirinhas, pedimos
ao condutor para nos informar no momento oportuno. Ora,
ele esqueceu-se e nós não saímos quando a camioneta passou
por ali.
– E lá fomos nós todos porreiros da vida a apreciar a
paisagem – continuou o Toninho –, até que numa das paragens
entra um fiscal. Pede-nos o bilhete e considera-os inválidos.
Deveríamos ter saído dez quilómetros atrás. Queria que nós
pagássemos multa. «Multa!?», perguntei-lhe. «A culpa não é
nossa. Pedimos ao condutor para nos avisar quando a
camioneta chegasse às Cerdeirinhas e ele não fez caso ou então
esqueceu-se». O fiscal pensou, repensou e aconselhou-nos a
sair na próxima paragem, que viria outra camioneta em
direcção contrária.
– Não pagámos a multa, mas tivemos que pagar novo
bilhete para as Cerdeirinhas – acrescentou o Barbosa. – Eram
seis horas quando lá chegámos. Táxis, nem sinal deles.
Mochilas às costas e pusemo-nos estrada abaixo, a caminho
da Caniçada, conforme informações de algumas pessoas que
íamos encontrando. Não sabíamos onde estávamos, sabíamos
apenas que teríamos de chegar ao café Mira-Rio. Mortinhos
de cede, entrámos no café e o pai do Miguel, mal nos viu,
prontificou-se logo a trazer-nos no carro.
– Toninho, vieste de Guimarães? – perguntou o Rubro.
– Não, vim de Ronfe. Os meus pais foram para a praia
da Póvoa passar o mês e eu dirigi-me para Braga onde o
Barbosa esperava por mim. Terei de voltar na sexta-feira para
me juntar a eles. Mas até lá vai acontecer ainda muito coisa.
– Olha, aqui ninguém se entende – começou a queixar-
se o Lula.
23
Mas não lhe deram ouvidos, pois o jantar estava pronto.
Comeu-se e as canções do Paul Simon e do Garfunkel ouviram-
se na penumbra do início da noite. O Rubro tocava a viola
com gosto enquanto seis vozes em desuníssono badalavam
melodias em inglês. Sentiam-se felizes por partilharem juntos
o serão e recordar os tempos do Seminário.
Eram sete. Apesar de a tenda ser grande, o Lula optou
por dormir sozinho na canadiana, onde se guardavam trastes e
sacos. Os restantes deitaram-se na maior. Havia, no entanto,
um problema: minguavam os cobertores e o Rocha não queria
ceder um dos seus, pois, dizia, tinha frio durante a noite.
Contudo, por insistência do Toninho, o único que o conseguia
vergar, acedeu largando para outro um dos que lhe sobejava.
Sempre se arranjaria com o lençol e um cobertor.
– Amanhã temos de ir falar ao Padre Matos, o reitor de
São Bento, para combinarmos a sardinhada – lembrou o Rubro,
despindo as calças surradas. – Eu escrevi-lhe antes de virmos,
a convidar os jovens de Rio Caldo para um convívio, e ele deu
aval positivo.
– E as sardinhas? Ainda não as temos – constatou o
Louco com um ataque de bom senso.
– Talvez o pai do Miguel as arranje. Ele tem mercearia
e costuma ir ao mercado da vila – atalhou o Rocha.
– Falamos com ele amanhã – decidiu o Rubro
embrulhando-se no cobertor adentro.
A conversa arrastou-se. Do programa para os dias
próximos passaram para o tema «mulheres» e só houve silêncio
quando os roncos incomodativos do Louro se começaram a
distinguir por entre a verborreia. O Louro adormecera de um
modo angelical, face voltada para a saída da tenda, traseiro
para os nictófilos desenfreados. O Lula dormia na tenda ao
lado, sonhando com a miúda que deixou na terra.
24
X
O dia seguinte foi harmonioso e sereno. Terminaram as
discussões entre os preguiçosos-convencidos e os convencidos-
mandões. O Barbosa e o Toninho lavaram a loiça sem qualquer
contestação acabando de vez com os dois grupos rivais.
– O último a chegar é lesma!
Corriam os sete com o Lula à frente em direcção ao rio.
As barrigas marcavam onze horas da manhã e gostariam de
refrescar-se antes do almoço. Mergulharam o Lula e o
Cordeiro. O Louro encafuou-se a seguir com muita calma
enquanto o Rubro preparava o famoso mergulho em diagonal.
Nisto, arrojou-se o Toninho como seta. O Rocha e o Barbosa
olharam-no, perderam-no de vista, começaram a preocupar-
se e viram-no sair dez metros à frente.
– Que raio de susto! Já pensava que o rapaz havia
tresmalhado nas águas – comentou o Barbosa.
– O rapaz nada bem – acrescentou o Rocha, preparando-
se também para mergulhar. – Agora vou eu.
E chafurdou espalhafatoso.
– Ei, Barbosa, a água está à tua espera! – chamou o
Toninho.
– Quê?... Eu não sei nadar.
Apertava o sol das quinze quando se afastaram do Boco.
Três no carro e os restantes a pé, dirigiram-se para o Mira-Rio
a matar o vício, encomendar as sardinhas e adestrar a língua
com a Sandra, empregada de balcão. As sardinhas tê-las-iam
no dia seguinte de manhã vindas da vila. A mãe do Miguel
prontificara-se a comprá-las.
– Quem vai a São Bento comigo? – perguntou o Rubro
25
entornando um fino consolado.
– Só podem ir cinco! – atalhou o Rocha, que não gostava
do carro a abarrotar.
Ofereceu-se o Toninho. Os outros ficaram no café
alternando a vista da televisão para a Sandra e da Sandra para
a televisão.
Ao chegarem a São Bento, deram logo de caras com a
João, a loucamente apaixonada pelo Carlitos. Afinal não pôde
ir a Braga, desculpou-se. O pai, com o calor que estava, preferiu
ir só dali a uns dias e como não tinha outra boleia...
– Viemos falar ao Padre Matos, o reitor.
– Neste momento deveis apanhá-lo na igreja. Mas ficai
mais um bocadinho. Queria tanto falar com vocês...
– Estou com uma sede desgraçada! – lastimou-se o
Rubro.
– Então vamos beber qualquer coisa. Eu também tenho
a garganta seca – sugeriu o Toninho.
E encaminharam-se para o café mais próximo onde
tiveram de ouvir a João a contar as virtudes do Carlinhos.
– Missa às onze celebrada na ermida pelo padre Mário e
convívio às treze – informou-os o Padre Matos na sacristia da
ermida de São Bento com as mãos nos bolsos da batina.
– Sr. padre, vinho não temos. Só arranjamos as sardinhas
– disse o Rubro.
– O Almerindo trata do vinho e do pão. Dois garrafões
devem ser suficientes, não achas, ó Almerindo? – perguntou o
padre ao namorado da João poisando-lhe a mão no ombro. –
O caldo verde é feito pelas meninas.
O Almerindo nas férias cumpria os deveres de sacristão.
– Sendo assim, nada mais há a combinar. Esperemos
que apareça muita juventude – acrescentou o Rubro.
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– Sabem, a juventude nesta época anda bastante ocupada.
Quase toda trabalha na OTL, aquele programa do governo para
Ocupação dos Tempos Livres, ou lá como lhe chamam. Mas
de certeza que as sardinhas se vão comer. Cheirando a tacho,
aparecem todos.
XI
Acenderam-se as luzes do campo de futebol. O jogo
estava prestes a começar e no meio do campo a bola já saltava
dos pés do Lula para a cabeça do Cordeiro. Vestiam à Porto.
As camisolas surripiou-as o Rubro no colégio onde trabalhava
como monitor. Havia uma para cada jogador. A equipa
adversária era composta pelo Miguel e pela malta da freguesia.
Quando entraram em campo, os de Braga tremeram. Os outros
eram uns cavalões. Perderiam concerteza. Mas como dizia o
ditado que os homens não se medem aos palmos, talvez os da
freguesia pudessem ser batidos.
O Rocha, sentado a um canto, olhava o jogo enfastiado.
Não lhe dizia nada andar a correr atrás de uma bola. Enfim,
uma perda de tempo. Mas como os outros gostavam, havia
que aguentar o desafio, mesmo sem jogar. E depois alguém
tinha de ficar de fora, pois era gente a mais. Veio a Sandra
fazer-lhe companhia.
– Não jogas?
– O número de jogadores está completo. Sobrámos dois:
eu e o Barbosa, que está a conversar a li com o padre Armindo.
– Deixa lá. Pelo menos apoias a tua equipa. A nossa tem
muita gente a apoiá-la. A vossa é que não.
– E tu, qual apoias?
– Eu?... Apoio a vossa!
Ah! Assim é que se fala.
27
– Eu gosto muito de futebol. Nas escola, lá na vila,
pertenço a uma equipa feminina.
– Deves ser boa jogadora. Com essas pernas...
– Que nada! Não fomos nós a ganhar o campeonato...
– Estudas em que ano?
– Passei para o décimo primeiro.
– Mas trabalhas no café.
– Só nas férias. Para ajudar os meus tios.
– Sei. Tens namorado?
– Não... Já tive. Zangámo-nos. Agora estou livre.
– Senta-te aqui a meu lado. Estás para aí de pé. Assim
cansas-te.
– Vou sentar-me, vou. Estive o dia todo de pé no bar.
Aquilo parece que não, mas é fatigante.
– O Louro anda a fazer-te olhinhos.
– Que ideia! Ele é uma pessoa porreira. Mas olhinhos,
não. Claro, eu simpatizo com todos vocês. Sabes, tu pareces-
me o mais fixe. Pensas, não ages como os outros. E tu, não
simpatizas comigo?
– Claro que simpatizo! Além de seres bem feitinha, sabes
conversar. Esse sorriso, cá para nós, Sandra, põe-me doido.
– A sério?
– Nem imaginas quanto.
A miúda ficou tão impressionada com as palavras do
Rocha, que naquela noite adormeceu numa nuvem de branca
e esponjosa esperança. «Mais dois dias e como-a», pensou ele
descendo com os outros no carro a estrada para o Boco.
A noite invadira tudo. Ganharam oito a sete e estavam
satisfeitos. Havia que dormir bem para no dia seguinte não
parecer mal na sardinhada. A presença das miúdas de Rio
Caldo era certa e a moral não poderia estar em baixo.
– Ó Rocha, estiveste durante todo o jogo a bater coiro à
28
rapariga do café – exclamou o Toninho chegando-se em voz
abafada ao Rocha quando se preparavam para dormir. – Não
me digas que estás interessado nela!
– Não. Estávamos só a conversar.
– Vá, não estragues a vida à rapariga.
– Toninho! Eu nunca estraguei a vida a ninguém. Estou
no meu canto e são elas que vêm ter comigo. Se a vida lhes sai
estragada, são elas que a estragam. Quando querem da coisa,
eu dou-lhes. Não tenho nada a perder.
– Sendo assim...
E deitaram-se os dois.
Como o Rocha havia mudado! Que ele gostava de
mulheres, isso já o Toninho sabia há muito. Mesmo em tempos
de Seminário. Mas respeitava-as, vendo nelas algo de diferente.
Agora perdera aquele sonho de que eram deusas para amar.
Degenerou quanto à opinião que tinha do sexo oposto. Ou
talvez não. Talvez estivesse certo.
XII
Foram colegas no Seminário durante cinco anos. Quando
o Rocha entrou, já o Toninho era seminarista desde os treze.
A vocação do Rocha nasceu tardia e morreu cedo. Lembrou-
se de ser padre naquela idade da maluqueira, os quinze anos.
O Toninho não. Entrou ainda miúdo e nunca pensara bem se
realmente queria ser padre. Adaptou-se ao sistema interno,
encarrilou. Depois descarrilou.
Recordava-se bem da primeira manhã em que acordou
num dos quartos do Seminário. Abriu a janela em guilhotina,
empenada pelo sol e pelas chuvas, e aí se postou a mergulhar
a vista no que o rodeava. O dia nascera cinzento e, mesmo
que ele não se deixasse impressionar muito pelo aspecto da
29
atmosfera, sentiu o peso de uma tristeza que, por segundos,
lhe rondou o cérebro. Uma aragem fria obrigou-o a afastar-se
e descer os vidros. Lavou a cara na bacia em ferro de tripé
com manchas de ferrugem e sarro entranhado de anos e vestiu-
se com certo vagar. Não dormira bem, estranhou o colchão e a
almofada, duros e deformados pelo número de indivíduos a
que foram sujeitos suportar. Mas não foi apenas uma questão
técnica que lhe tirou o sono. Foi a sua nova situação.
Encontrava-se, pela primeira vez, longe da família e das
pessoas conhecidas, num ambiente estranho e até certo ponto
misterioso. Desde a sua chegada no dia anterior até àquele
momento, já se tinha arrependido dezenas de vezes da sua
escolha. O que lhe ofereceram não era o que esperava. Tinha
em mente um lugar de ordem, de paz e reflexão. E que
encontrara? Uma balbúrdia numa casa enorme e escura com
odores de sujidade e mofo, onde era obrigado a conviver com
rapazes não muito diferentes daqueles que andavam na rua
livres de tanta renúncia.
Calçou as botas e saiu para o corredor. Outros passavam
por si sem lhe dizerem bom dia, indiferentes, os olhos
estremunhados de sono. Juntou-se-lhes silencioso e com eles
desceu os cinco lanços de escadas que os separavam da capela.
Fez o possível por se concentrar nas orações da manhã e
durante a missa. Achou interessante a recitação em conjunto
de alguns salmos a que chamavam laudes, como vira escrito
no topo da página do livro de capa castanha do colega ao lado.
Esforçou-se por cantar com os outros, mas desafinou sem
querer, pois desconhecia os cânticos. Até que o colega do lado
lhe mandou uma cotovelada de admoestação pela ilharga e
ele calou-se envergonhado.
Nada era igual à liturgia da velha igreja que frequentara
desde miúdo na aldeia. Aí parecia tudo mais natural, mais
30
familiar e menos pomposo. O padre Granjo, a precisar de
reforma, pigarreava a missa e o terço sem grandes
preocupações místicas, resumindo os rodeios e cortando a
prosápia espiritualeira. Falava do que sabia e todos o
entendiam. Ali os padres falavam de outro modo, com certo
requinte de frases e entoação solene. Eram doutores em
teologia, concerteza conheciam todos os subterfúgios da arte
de convencer na fé.
Sentia-se um pouco desorientado e forçava-se a redobrar
a atenção para não se ajoelhar no momento de sentar-se, ou o
contrário. No entanto, era de tal forma novo aquilo que o
rodeava, que facilmente se perdia em conjecturas visuais.
Extasiou-o o estilo da capela. Em tamanho conseguia ser três
vezes maior do que a igreja da sua terra. – Por que lhe
chamariam capela? – perguntou-se, enquanto o Dr. Meireles
erguia o cálice. Nas paredes laterais, em painéis pintados com
grande perfeição, estavam representados santos que ele não
conseguia identificar: um frade de cara muito rapada, um
barbudo grisalho de espada na bainha, um bispo mitrado de
trajos até aos pés. No altar mor, por detrás do sacrário dourado,
um enorme painel com o São Tomás de Aquino. Esse conhecia-
o ele, pois vira uma reprodução igual num livro de história.
Aparecia o São Tomás sentado, um gorro de lã na cabeça,
com um colar ao pescoço em forma de sol. Só mais tarde é
que viria a compreender a razão do painel com tal doutor da
Igreja no lugar mais nobre da capela.
Sentiu nova cotovelada do colega do lado e reparou que
era o momento da comunhão. O organista atacava já um
cântico a dar aos foles do harmónio. Ele juntou-se à fila que
se formou diante do altar, à frente do Dr. Meireles de píxide
na mão. Recebeu a hóstia na boca e sentou-se a olhar o tecto
de gesso branco decorado com motivos greco-latinos.
31
O dia anterior revia-o deveras caricato. Antes de sair de
casa, tivera uma birra com a mãe, que queria forçosamente
que ele vestisse o fato novo e pusesse gravata. Ele teimava em
ir de calças de ganga e casaca de cabedal. Ainda não se sentia
preparado para o fato escuro. «Mudar de vida, mas devagar
A discussão amainou e mãe e filho apanharam o autocarro
com duas malas pesadas de lençóis, toalhas, roupa interior e
exterior, algum calçado. Não que ele precisasse da sua
companhia com o receio das paredes da nova morada, mas
assim tornava-se mais fácil carregar a bagagem.
Na cidade, andaram um bom pedaço a pé até ao grande
edifício com as armas de um arcebispo gravadas em pedra na
fachada. Na rua em subida até ao portão principal quase
perderam o fôlego. «Se assim for a caminhada... muito difícil
será chegar», pensou. Recebeu-os na portaria o padre Antunes,
muito atencioso mas nem por isso simpático, e encaminhou-
os para aquele que seria o seu quarto durante um ano, no último
andar do edifício. Em breves palavras explicou as actividades
reservadas para o resto do dia e despediu-se para atender a
outros que chegavam.
A mãe olhou abismada a pobreza do quarto e, não fossem
as circunstâncias, armava logo ali um banzé. «Se isto é quarto
que se apresente a um seminarista! Nem para poleiro servia.
O porco lá em casa tem uma corte bem mais acolhedora. O
melhor é remediares-te com o tens. Foste tu que escolheste.»
Como era o quarto? Bastante fradesco, para não dizer
franciscano. Uma cama de ferro com um colchão desnudo de
folhelho às manchas escuras de vícios solitários de outros
inquilinos. Um armário para a roupa e os livros sem portas,
uma mesinha de cabeceira roída de bicho a cheirar a chulé,
uma secretária sem gavetas, uma cadeira em perigo de
desintegração, um lavatório que em muitas casas era relíquia,
32
e um candeeiro sem lâmpada preenchiam o largo vazio. A porta
não tinha fechadura e à vontade ninguém poderia estar. A ele
passaram-lhe ao lado todas estas coisas. Eram antes
considerações de mãe que desejava ver o filho bem instalado.
A ele coisas mais altas o preocupavam. Pensava no melhor
modo de conhecer os novos companheiros.
Acompanhou a mãe à portaria, ouviu-lhe as últimas
recomendações e despediu-se com um beijo rápido. Até que
enfim se via livre! Quinze anos sob a protecção das asas
maternas era demasiado tempo. Agora estaria entregue a si
próprio. Sentia-se liberto. Voltou a subir a escadaria e procurou
descobrir a forma de se apresentar aos colegas que encontrasse.
Havia nos corredores e nos quartos grande agitação, com mães,
pais e crianças numa azáfama de dia de festa. Não precisou
magicar muito no assunto. Ao entrar no quarto, dois rapazolas
dirigiram-lhe a palavra:
– Tu és um dos novos, não és?
– Sim... – respondeu ligeiramente receoso.
– Eu sou o Rubro e este é o Toninho.
– Prazer em conhecê-los. Alberto Rocha.
E cumprimentaram-se.
– Vieste da Escola Secundária...
– Sim, vim.
– Nós estamos cá desde miúdos. Crescemos no
Seminário.
– Ah!
– Vamos dar um passeio pela cidade, para fazer tempo
até à hora das orações da tarde. Não queres vir connosco?
Ele aceitou a companhia. Um passeio era um bom
começo para as relações com os futuros colegas.
Embora se desse bem com o Rubro, foi praticamente
com o Toninho que o Rocha construiu uma amizade que se
33
projectava para além das paredes grossas e frias do Seminário.
Os projectos, as paixões, as maluqueiras do Rocha sabia-as o
Toninho, sempre disposto a ouvir e a acolher com uma descarga
de conselhos e admoestações quando havia exagero. É que
ele, apesar de mais pequeno em estatura, era para o Rocha
uma espécie de irmão crescido, a voz da razão.
Mais reservado nos projectos e em certos ideais, o
Toninho via o Rocha como um prolongamento das suas
opiniões acerca da Igreja e dos homens. As suas conversas ou
versavam estes assuntos ou iam cair irremediavelmente em
mulheres, sem dúvida o tema preferido de ambos.
Estiveram os dois apaixonados no último ano em que
frequentaram o Seminário. O Toninho ficara de amores por
uma rapariguita inócua que era catequista na igreja onde ia
ensaiar. Muito discretamente, procurou abafar, evitando
complicações com os padres. Ao Rocha deu-lhe para engraçar
com uma menina de colégio. Dizia-lhe o companheiro para
não se entusiasmar demasiado, pois a miúda era muito nova e
ele podia sofrer uma desilusão. Foi o que aconteceu alguns
meses depois.
O Rocha ainda não se conformara com a ideia de a ter
perdido. Ou talvez se tenha conformado e por isso atacava
agora sempre que podia. Para ele, todas eram iguais. O Toninho
lamentava-o por um lado e por outro invejava-o. Após o seu
grande amor, um caso platónico revestido de flores e Paul
Simon, não conseguira refazer-se apaixonando-se novamente
ou andar com outra. Bem desejava, bem se esforçava, mas, ou
nada acontecia, ou resguardava-se, não fossem elas magoá-
lo.
A situação dos dois amigos era diversa. O amor do
Rocha, tão prometedor no início, desvaneceu-se quando a
rapariga o traiu. O do Toninho foi vivido interiormente e,
34
porque a rapariga estava longe, salvou-se de uma desilusão.
Para os amores do Rocha, em muito contribuiu o Toninho. E
era com um misto de qualquer coisa indefinida e real que o
primeiro recordava os acontecimentos que levaram ao seu
actual estado.
35
PARTE II
XIII
O colégio de Santa Rita ficava na mesma rua do
Seminário onde os dois companheiros gastavam a vida. Tinha
como finalidade a educação de raparigas órfãs ou com
problemas familiares, havendo também uma secção para
acolhimento de mães solteiras. Era dirigido por religiosas,
todas muito dedicadas à educação doméstica, social e religiosa
das suas protegidas. Estava marcada para um sábado a visita
do bispo, cujo objectivo principal era o baptismo de duas
crioulas e o crisma de meia dúzia de transmontanas, o
acontecimento mais importante ao longo do ano naquela casa,
pois haveria gente de fora, comia-se melhor e havia um
convívio muito especial com música e teatro preparado pelas
miúdas. Durante a semana todas se dedicaram à sua
preparação. O Toninho fora convidado por intermédio do reitor
para lhes ensaiar umas cantigas populares. Como necessitasse
de acompanhamento musical, pediu ao Rocha, uma vez que o
Rubro andava muito ocupado com o grupo de jovens de que a
Vânia fazia parte.
– Preciso de ti.
– Para quê?
– Para tocar viola.
– A quem o vieste pedir! Eu sei um ou dois acordes e
pouco mais.
– Para o que é serve.
– E onde é a festa?
36
A superiora do colégio de Santa Rita foi pedir ao reitor
um seminarista para ensaiar às miúdas umas canções
populares. O reitor veio falar comigo e eu aceitei, que remédio.
Mas preciso de alguém que toque.
– Se assim é, podes contar comigo. Quanto a afinações,
não te prometo nada.
– Então vens ao próximo ensaio, na quinta-feira à noite.
É para uma festa que vão fazer no sábado de tarde. Vai lá estar
o bispo D. Roberto a baptizar umas pequenas e depois há um
convívio com os familiares.
– Terei de comprar cordas novas para a viola.
Logo após o jantar de macarrão e sardinhas, o Toninho
e o Rocha deixaram o Seminário e partiram rua acima.
Acolheu-os ao portão alto pintado de verde uma freira de meia
idade. Toda simpatia, convidou-os a entrar. Levou-os a
contornar um jardim de rosas e introduziu-os no edifício, uma
casa enorme do princípio do século, doada talvez por alguma
alma devota arrependida dos pecados à hora da morte. Subiram
umas escadas largas em madeira chiante que raras vezes
sentiam passos de homem, para além dos do padre Antunes e
do padre Roriz, directores espirituais das meninas. No último
andar, o terceiro, ouviram um murmurar claro de vozes. A
irmã abriu-lhes a porta de uma sala e viram uma mão cheia de
miúdas muito animadas a conversar. Fez-se silêncio imediato
e os dois companheiros entraram, o Rocha com a viola, o
Toninho com um maço de fotocópias pintadas de linhas e
pontinhos negros. Deram as boas-noites e só uma outra irmã,
que lá se encontrava, respondeu, aflita, a recebê-los.
O ensaio iria começar, muito sóbrio e solene, com as
duas irmãs religiosas a assistirem sentadas ao lado dos dois
rapazes. Era a sala de costura, com máquinas de coser e retalhos
de pano ao canto. Para maior funcionalidade, dispuseram-se
37
cadeiras em anfiteatro onde as miúdas se sentavam, umas
envergonhadas de olhar no chão, outras de olhar atento e
matreiro. O Rocha reconheceu três: a Cláudia, a Guidinha e a
Sónia. Conhecera-as há um ano atrás, numa das suas andanças
pastorais. Quando elas o viram, sorriram-lhe sem as freiras
perceberem.
O Rocha desensacou a viola, sentou-se e pôs-se a afinar
as cordas. O Toninho, que com este era o terceiro ensaio que
fazia, distribuiu as fotocópias por cada uma das presentes e
anunciou a primeira canção: Meu amor fala baixinho. A freira
que os recebera carregou o sobrolho e pôs-se à escuta. A outra
olhava enternecida os dois jovens, futuros sacerdotes para a
Igreja de Cristo. O Toninho pediu o tom ao companheiro e
entoou o primeiro verso da cantiga numa voz suave que só ele
sabia fazer. Depois pediu para todas repetirem. Dentro das
suas limitações corais, as miúdas foram cantando, com o Rocha
a esgalhar viola abaixo. O Toninho era um maestro paciente e
repetia a música tantas quantas vezes fosse preciso até entrar
no ouvido mais duro. O Rocha apreciava o conjunto das vozes,
o efeito da viola e os rostos em particular. Havia cada coisa
mais linda!... Lá estava a Sónia a olhar para o soalho, tão
loirinha e com uns olhos tão bonitos. Nenhuma das que ali
estava tinha mais de dezoito anos. E aquela pequerrucha ao
canto direito tão engraçada a fazer biquinho nos lábios
enquanto cantava os versos Os amores dissimulados / Sempre
são os mais queridos? O Rocha perdera o andamento da música
e já metia um sol em vez de um ré. Uma cotovelada do Toninho
e a nota certa ia ao sítio.
Uma hora passou e resolveu-se fazer um pequeno
intervalo para respirar e acalmar as gargantas. O Toninho
aproveitou para apresentar o companheiro, um entendido
tocador de viola à disposição na festa de sábado. O Rocha
38
agradeceu o elogio e começou a pôr as miúdas à vontade com
uma anedota a propósito dos tocadores de violão. As freiras
tinham saído a dar uma ordem qualquer, criou-se um pequeno
diálogo. Já todas riam e havia algumas até que desejavam
contar também uma anedota. O Rocha assumiu o papel de
coordenador e ria a traços grossos fazendo olhinhos às três
conhecidas que cochichavam entre si enquanto cada uma ia
contando a sua anedota mais ou menos inocente. O Toninho
parecia absorto num dos papéis de música, sem prestar muita
atenção ao chinfrim criado. Entretanto, uma das irmãs voltou
e juntou-se ao riso contando também ela uma das suas sem
piada nenhuma. Foi quando o Rocha sentiu um olhar a
incomodá-lo do lado esquerdo da sala. De pé, encostada à
parede de estuque, uma miúda de cabelo encaracolado, muito
alta e doce, sorria. O Rocha perdeu a vontade de rir e ficou
perturbado. Quem seria? Porque não estava sentada com as
demais? Não a tinha visto quando entraram na sala. Teria
chegado depois? Não acabou o raciocínio: o Toninho
preparava-se para iniciar a segunda parte do ensaio.
Uma revisão geral a todas as canções, cerca de oito, e o
ensaio estava terminado. Encontravam-se medianamente
prontas para cantar na festa. Se saíssem menos bem não sairiam
totalmente mal e o Toninho fez o que pôde. Com três ensaios
e com aquelas vozes pouco habituadas a voltas de meio tom
era muito difícil.
Abandonaram a sala e no vestíbulo formou-se um
grupinho com a freira que ficara, as três conhecidas do Rocha,
algumas curiosas e os dois camaradas. Encetou-se uma breve
conversa acerca da festa primeiro e depois do Seminário. A
miudagem queria conhecer melhor os seminaristas, tão
simpáticos e tão giros. E, enquanto a freira bombardeava o
Toninho com observações sensatas e pertinentes, as meninas
39
rodeavam o Rocha contando ora uma isto, ora uma aquilo,
excitadas e alegres. Até que ele divisou perdida no grupo a
menina do cabelo aos caracóis. Dirigiu-se-lhe e perguntou:
– Como te chamas?
– Nancy.
– Tens um nome muito bonito.
– Obrigada.
– Nasceste na América?
– Nasci no Canadá.
– Bem me pareceu. Tens uma pronúncia acentuada. Falas
inglês?
– Um bocadinho.
– Ah! Que fizeste à tua mão?
– Não é nada. Foi ontem na cozinha.
O Rocha pegou-lhe na mão de dedos finos e longos e
analisava-a interessado. Que faísca lhe atravessou a espinha,
que seta lhe perfurou os sentidos? Largou-a com delicadeza.
Quando os dois saíram em direcção à velha morada sob
o céu de estrelas, após um lanche rápido de leite e biscoitos
caseiros oferecidos pelas caridosas irmãs, o Rocha tremia e
achava-se deveras estranho. O Toninho, que não era parvo
nenhum, calculara logo o que vinha no espírito do
companheiro. Conhecia-o demasiado. Não eram camaradas
há cinco anos?
– Rocha, não me digas que ficaste caidinho pela miúda!
– Quê?! De forma nenhuma. Mas, sabes, fiquei
embaraçado. Nunca me tinha acontecido.
– Ela é bonita.
– Como eu nunca vi.
– Rocha, tem cuidado. Muita prudência. És seminarista,
caramba! Futuro padre. E depois não passa de uma miúda de
colégio.
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– Ó Toninho! Mas eu disse alguma coisa? Ela é bonita e
pronto.
– Hmm!... Já não vais dormir hoje.
– Não vou dormir?! Essa é boa! E tu, que não tiravas os
olhos da Sónia?
– Que Sónia?
– Aquela loirinha, de olhos verdes.
– Espera aí! Estás a exagerar. A Sónia é engraçadinha,
sim senhor. Mas isso não significa que eu me tenha
impressionado. E além disso tu sabes muito bem que os meus
amores são outros.
– Pois, a Florbela, aquela de cabelos de ouro parecida
com a Vénus do Boticelli.
– Cala-te que alguém pode ouvir.
– Sim, eu sei, as paredes têm ouvidos. E a culpa é dessa
lei estúpida do celibato que nos impõem.
E com toda a fleuma começou o Rocha a dissertar sobre
essa lei da Igreja para os padres e religiosos enquanto desciam
a rua. Era uma lei aberrante, anti-natural, concomitantemente
inaceitável. A conversa espraiou-se pela noite, no quarto
desarrumado do Toninho. Discutiram, concordaram e, cépticos
frente ao términos de tal abominação, acabaram por ler alguns
poemas de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos em livro de
bolso. Eram três da manhã quando o Rocha deixou o
companheiro e foi para o seu cubículo sonhar com a menina
alta e doce.
XIV
No colégio de Santa Rita caía o silêncio do sono. As
irmãs, nos seus quartos individuais, sonhavam com o
sacratíssimo coração de Jesus; as miúdas com aventuras
41
amorosas ou num príncipe encantado montado numa moto
japonesa a aparecer na desembocadura do quintal onde as irmãs
plantavam couves. Havia, no entanto, alguém que não dormia.
Chorava rosto colado ao travesseiro para as duas companheiras
de quarto não acordarem. Era a Nancy, a menina dos caracóis.
Por que chorava?
Sentia-se tão feliz naquela noite que não podia conter
as lágrimas. Um rapaz meigo e carinhoso olhara para si, pegara-
lhe na mão, falara-lhe. Podia ter falado assim com as outras.
Mas foi só com ela. E sentiu uma alegria tão grande que teve
de perguntar à Guidinha, quando ele partira, muitas coisas a
seu respeito. A Guidinha conhecia-o. Era tão espontâneo, tão
divertido! Nem parecia um seminarista. O António, se bem
que mais bonito, já parecia um padre, sisudo e com aquele
olhar lento e desconfiado. Ele não. Punha toda a gente à
vontade, cativava as pessoas. Não sabia porque é que a irmã
Miquelina não gostava dele. Dizia que o comportamento do
Alberto não calhava bem a um seminarista. Seminarista! Ele
era um seminarista, meu Deus! Estaria a cometer um pecado
ao pensar nele daquela maneira? As pessoas nasceram para
amar e serem amadas, mas ela nunca recebeu um carinho de
ninguém. Só dele, ao pegar-lhe na mão ferida. Onde estava o
seu pai, a sua mãe? Não sabia, era filha adoptiva de uns pais
que não lhe pertenciam. Nunca gostaram dela, evitavam-na
sempre. Para se verem livres meteram-na naquela casa de
freiras. Não se importava com isso. Era preferível estar no lar
do que em casa a ouvir as suas imprecações. Viriam à festa no
sábado e talvez ela fosse passar uns dias à terra, agora que as
aulas acabaram. Que pena só agora ter conhecido o Alberto!
Vê-lo-ia mais uma vez e depois... As irmãs queriam que ela
fosse definitivamente viver para casa dos pais adoptivos. Tinha
catorze anos, já era uma mocinha. Mas ela preferia ficar no
42
colégio. Era aqui que tinha as amigas, principalmente a
Guidinha, a conselheira, a irmã que nunca lhe deram. Se fosse
para casa, perderia tudo e viriam novamente os problemas
com os pais. Se o Alberto pudesse ajudar...
O dia de sexta-feira começou luminoso e fresco. Um
odor agradável vinha do jardim coberto de rosas vermelhas e
os pardais rumorejavam nas nogueiras do quintal. Pelos
corredores e pelas escadas já se ouviam as vozes sonoras das
freiras irritadas com o adianto da hora e o atraso no preparo
do pequeno-almoço. Nancy levantara-se preguiçosa e sacudia
os anéis do cabelo. Dormira três horas, se tanto. E ninguém
podia ficar na cama para além das oito, a não ser que estivesse
doente. Naquele dia havia muitas coisas a preparar: uma dança,
algumas piadas, uma peça de teatro, o lanche para os
convidados, o enfeite da casa e a limpeza da capela, a higiene
pessoal. Nancy lavou a cara das lágrimas já secas e, depois do
bom dia às companheiras de quarto, dirigiu-se ao piano numa
sala contígua à entrada do edifício. Saíram algumas notas
atrofiadas e desistiu de tocar. Permaneceu sentada a olhar as
teclas pretas e brancas, braços pendidos. Que podia fazer, que
podia decidir acerca da sua vida se os outros decidiam sempre
por si?
A Guidinha apareceu à porta ainda em pijama.
– Nancy, que tens?
– Oh! Guidinha, és tu? Apeteceu-me tocar, mas perdi a
vontade.
– Estás novamente triste... Deixa lá, os teus pais vêm
ver-te amanhã.
– Não é por isso.
– O Alberto?...
– Fala-me dele mais um bocadinho. Diz-me tudo o que
43
sabes.
– Mas, Nancy, eu ontem já te disse tudo o que sabia.
Quem o conhece melhor do que eu é a Cláudia e a Sónia.
Aliás, não tenho muita confiança com ele. Falei-lhe uma ou
duas vezes.
– Guidinha, eu não vou andar a pedir informações à
mexeriqueira da Cláudia. Sabes muito bem que iria logo contar
às freiras.
– O Alberto impressionou-te assim tanto?
– É uma coisa que eu sinto... Não sei explicar.
– Pois olha que eu não vejo nada de especial nele. Tem
a mania que é engraçado, usa aqueles óculos horrorosos. Acho
o António mais atraente, mais homem. Muito pensativo,
metido em si. E aquele cabelo, aqueles olhos? Cativa logo
uma mulher.
– Não gosto do António. É antipático, pensa que é muito
importante, superior a nós. Trata-nos como crianças. O Alberto
é simples, alegre...
– Nancy, seja como for, eles são seminaristas. Vê lá o
que vais fazer. E depois não faltam rapazes lá fora muito
melhores do que eles. E decerto ele nem olhou para ti.
– Ah! Isso é que olhou. Pegou-me na mão, falou-me...
– Não te confundiste? Ele também pega na mão da
Cláudia e da Sónia, brinca com elas, e, no entanto...
– Talvez tenhas razão.
– Nancy, não penses mais nisso. Vai para baixo tomar o
pequeno-almoço que eu já desço. Tenho de me vestir ainda.
Os dois camaradas faltaram às orações da manhã. Estava-
se em época de exames, não havia aulas, o tempo era ocupado
a estudar ou a fazer turismo dentro e fora do Seminário. O
Rocha foi acordar o Toninho às dez para fazerem um cross.
44
Não, ficava para outro dia. Estava bastante fatigado, precisava
de dormir mais uma hora ou duas, quem sabe três.
Não sabendo em que gastar a manhã, o Rocha tomou
um duche e foi para uma das salas de aula tocar piano. Estudar
não valia a pena, só tinha exame para o meio da próxima
semana. Dois dias chegavam para passar revista às fotocópias
e tirar um doze. Tocou para não pensar em nada, mas os
pensamentos assaltavam-no da mesma forma. A inventio de
Bach não o distraía.
Há cinco anos que andava no Seminário. Onde o
entusiasmo do início, o desejo de cumprir um chamamento
que lhe parecera ouvir? Desilusões. Queda na rotina, o
aborrecimento dos estudos demasiado abstractos, nada
palpáveis. E depois a tomada de consciência da relatividade
de certos princípios que para a Igreja eram fundamentais: o
celibato, a obediência à hierarquia, algumas questões de fé e
de moral. A sua admiração pelo papa transformou-se em
contestação. Embora aquele fosse o papa da simpatia, sempre
com grandes multidões a fazer de claque onde quer que fosse,
não tirava que não o considerasse um retrógrado. Rezava
demais e pensava de menos. Só a palavra hierarquia já o punha
azedo. As questões de fé e certas posições da Igreja a nível
moral confundiam-no.
O Rocha punha em dúvida os dogmas, base, segundo os
mais conservadores, de toda a Igreja. A virgindade e a assunção
de Maria tinha-as como um verdadeiro disparate, a funcionar
mais como doces que se ofereciam ao povo ignaro e sempre
crente em qualquer coisa que saísse fora das leis naturais. Nesse
aspecto tinha um pensamento positivista, incutido pelos
próprios padres. A ressurreição de Cristo tinha-a como a
explicava Leonardo Boff: não fora um renascer da carne, mas
um renascer do espírito. Na realidade, o cadáver de Cristo
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apodrecera dentro do túmulo. O que permaneceu foi a ideia.
O crédito em relação aos textos bíblicos era negativo. E o
principal responsável fora o padre Antunes, que havia
leccionado à turma a disciplina de História do Povo Bíblico.
Durante as aulas pôs em total descrédito as ideias mais comuns
e tidas como certas acerca da Escritura.
Vivia uma crise e as luzes de um lado e do outro do
muro eram cruéis: ou Deus ou rua! Estava quase decidido a
aguentar mais um ano de cativeiro e depois outro, até chegar
à meta que ele divisava negra e contrária à sua personalidade.
Não podia abandonar aquilo em que tanta gente acreditava.
Estava tudo em jogo. Que diriam as pessoas conhecidas, os
pais, os padres, os colegas? Mas aqueles olhos, aqueles lábios,
todos os olhos e todos os lábios que via remexiam-no por
dentro. «Raios partam o celibato!» Não, aquilo era impossível
de sustentar. Cederia por qualquer lado. E vinha-lhe um medo
terrível de encarar a vida lá fora.
XV
Chegou o sábado e a tarde principiava plena de calor e
boa disposição. No jardim do colégio havia já algumas famílias
e as miúdas esmeravam-se nos quartos vestindo as melhores
roupas e fazendo ao cabelo o que nem à massa de rissóis se
faz. Daí a pouco chegaria o bispo com os padres para começar
a cerimónia do baptismo e do crisma. O Rocha e o Toninho
encontravam-se já na capela com mais quatro irmãs e outras
tantas meninas a ensaiarem os cânticos litúrgicos. O Toninho
estava ao harmónio, uma coisa velha e meia avariada mas que
dava para desenrascar, e as vozes ressoavam selvagens pelas
sacras paredes, o último grito em decoração de capelas
particulares. Custara à congregação os olhos da cara, mas
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Nosso Senhor merecia o melhor.
Com um pequeno atraso imprescindível – as pessoas
importantes chegam sempre atrasadas –, o bispo entrou portão
adentro com o séquito e as cerimónias começaram. Ah! Irmã
Miquelina, que beleza era ver as suas pequenas, aquelas a quem
você ensinara a rezar o pai nosso e a recitar os dez
mandamentos, a receberem a água purificadora do baptismo!
Que emoção! Haverá algo mais sublime? Tinha orgulho nelas.
E que bem que respondiam ao sr. bispo! Aquelas meninas
teriam um grande futuro. Pena não desejarem a vocação
suprema, a doação total. O colégio de Santa Rita precisava de
juventude. Era nestas meninas que punham as suas esperanças.
Quem sabe alguma não encontraria a vocação no tempo que
ainda lhe faltava para partir?
Estes e outros pensamentos embalavam o espírito da
irmã Miquelina, toda engomada no seu hábito preto até aos
tornozelos. Do baptismo passara-se ao crisma e o Rocha
distinguiu a aproximar-se do altar num grupo de miúdas a
Nancy, de rosto irresoluto e uma magnífica figura. Estacionara
numa das pontas voltada para o altar. Trajava um vestido
vermelho em matizes brancos e as mãos permaneciam cruzadas
sobre o peito. O Rocha alterou a respiração e deu uma
cotovelada ao Toninho atento à pauta da música. Era realmente
bela. Mesmo assim, o Toninho preferia a Sónia. Ia mais com
o seu tipo. «Espera, que aconteceu?», perguntou-se o Rocha.
A Nancy saía desenfiada da capela pela porta lateral. Então
não receberia o crisma? Aquilo era tudo muito estranho.
As cerimónias findaram e, ao saírem, houve um suspiro
de alívio. O bispo tinha um discurso indolente e pusera-se na
homilia a desfiar longas considerações acerca dos deveres de
uma boa rapariga, de uma boa irmã, de uma boa esposa. «Que
saberia ele do mundo?», perguntava-se o Rocha. «Já alguma
47
vez snifara? Existiam ali miúdas que experimentaram do bom
e do péssimo. Vinha agora o sr. bispo com lições de moralidade!
Que as dê às freiras, que precisam mais da sua santa
consolação, coitadinhas, tão sozinhas...»
Corriam crianças no jardim, as miúdas subiam e desciam
as escadas, os pais trocavam impressões entre si ou com as
irmãs sempre solícitas, a casa era uma balbúrdia. Começaria
dentro em pouco o convívio com teatro, música e lanche, e
pedia-se aos convidados para se dirigirem ao campo de futebol.
Era um campo de futebol de cinco, em cimento, onde nas horas
de recreio as meninas praticavam brutobol, um jogo, nas
palavras da Cláudia, essencialmente de canelas e gritinhos de
dor. O bispo e o seu séquito também para lá foram depois de
se desparamentarem. Os espectadores dispunham-se à volta
do campo sem traves e as meninas caracterizavam-se com
excitação para os diversos números numa sala de aulas ali
perto. As canções populares seriam o último número. Os dois
companheiros discorriam futilidades com a Cláudia e a Sónia.
Havia que ter cuidado nas conversas, não levantar suspeitas
infundadas, os padres e as freiras não lhes tiravam a vista de
cima.
O espectáculo começou com uma peça lenta e monótona
sobre a vida da fundadora da congregação. As miúdas tinham
sido mal ensaiadas e esqueciam frequentemente o papel. Nem
o ponto remediava as situações embaraçosas. O texto era de
uma vulgaridade atroz, cheio de exclamações e arrebatamentos
piegas. O bispo bocejava e o padre Roriz dormia de olhos
abertos. Por pouco não caía sobre a madre superiora mesmo
ali a seu lado. Nesse comenos, o Rocha largou o Toninho e as
duas amigas e dirigiu-se à Nancy, vestida agora de ilusionista,
à espera da sua vez na entrada da sala de aulas. O Rocha tinha
de lhe falar, vê-la de perto, saber o que se passava, se é que
48
alguma coisa se passava.
– Olá.
– Olá...
– Que papel vais representar?
– A história de um rapaz pobre e triste.
– Pobre?! Com essas roupas tão bonitas?
– Não havia piores e as irmãs preferiram assim.
– Estás nervosa...
– Sim, um bocadinho. Tenho receio de me enganar.
– Oh! Não te vais enganar. Descontrai os pés, respira
fundo, pensa numa pessoa que tu gostas muito e verás que
ficas óptima.
– Vou experimentar.
– Olha, a irmã Miquelina está a chamar-te. Parece que
agora és tu.
– Sou... Bem, até já. E não te rias da minha figura.
– Vou chorar. Boa sorte.
Uma voz aprazível, um pouco insegura mas sonante, fez
estremecer a assistência de comoção. Até o padre Roriz
acordara e o bispo se endireitou na cadeira de braços. A Nancy
parecia mesmo um rapazinho a lamentar as suas desgraças e a
crueldade do mundo. O Rocha ficara visivelmente afectado
pelos encantos da miúda.
– Alberto, fugiste-nos.
– Quê? Ah! Cláudia. Não, vi a Nancy um pouco nervosa
e vim descontraí-la. Coitadinha, parece que tem algum
problema. Anda bastante triste.
– A Nancy?! É mas é uma fingida. Olha, na segunda-
feira quebrou um vidro da janela do quarto e prometeu porrada
à irmã Miquelina. Sofre de certas perturbações... Pelo menos
é o que dizem por aí.
– Ah, sim? Ela quis bater na irmã Miquelina? Mas
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porquê? Isso das perturbações não é razão.
– Parece que a irmã quer que ela vá para casa e têm
havido alguns entraves a esse respeito. A Nancy não quer ir e
os pais preferem que continue no colégio. Sabes como é,
ninguém a quer aturar. Mas esquece. Anda, vamos ali para
junto da Sónia e do António.
O espectáculo foi seguindo, ora uma dança popular com
meninas vestidas de homem e bigode postiço, ora uma pequena
representação, tudo elaborado pelas cachopas e pensado pelas
irmãs. Houve uma altura em que ficou tudo de boca aberta:
nove miúdas entraram para o campo de mini-saia e meias de
nylon escuro dispondo-se três a três com um leque amarelo na
mão. Da aparelhagem sonora ribombou uma música moderna
muito agitada, as raparigas embalaram no ritmo e era um gosto
vê-las a mostrar a coxa com as mãos no ar. O padre Roriz
olhava desconfiado achando tudo aquilo uma vergonha – «as
meninas que eu confesso a mostrarem as partes!...» – e o bispo,
não querendo de momento incomodar-se com problemas de
moral e costumes – faria o seu juízo no dia seguinte – batia o
pé ao compasso da música muito discretamente. E a Nancy lá
estava também, esbelta, a fazer piruetas e torções do tronco à
esquerda e à direita com o leque em gestos harmoniosos.
O Rocha começava a perder o autocontrol. Que se estava
a passar consigo? Iria perder o tino por causa de uma
adolescente bonita?
Aproximava-se o último número. Toninho distribuía as
fotocópias das canções, o Rocha reafinava a viola, o coro
preparava-se. Deu-se início à primeira canção e a Nancy só
via o Rocha concentrado na viola e nas indicações do Toninho.
Alguém começou a bater palmas e até o padre Roriz
acompanhava agora o Meu amor fala baixinho com um sorriso
para a madre superiora. As meninas realmente cantavam bem.
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Quem seriam aqueles dois rapazes? Já os tinha visto nalgum
lado... Parece que acabou. Agora há um lanche. Mesmo a
calhar: a garganta está seca e o estômago vazio. Preencha-se o
colapso digestivo e console-se a madre – ruminava o padre
Roriz.
Em dois minutos o campo de futebol ficava deserto. Sob
as nogueiras do quintal encontravam-se mesas carregadas de
doçarias e refrescos para as miúdas e seus familiares. Vinho
só na mesa do clero, lá para dentro da casa. Os pais das meninas
que se aguentassem com sumo de laranja. Fazia bem aos rins
e não estragava o fígado. Além disso havia o exemplo, coisa
muito importante para os mais novos. A Cláudia e a Sónia
puxaram os dois amigos para debaixo das nogueiras. O Rocha
trincava um croquete de carne quando foi interrompido pela
irmã Miquelina. A freira chamava os dois, queria-os na mesa
do sr. bispo, lá dentro de casa. Sim, iriam já.
– Ó Toninho, que raio de seca! Prefiro comer aqui com
as miúdas.
– Eu também. Mas será melhor irmos. As irmãs podem
ficar ofendidas.
– As intimidades com o bispo não me agradam nada!
– Não percebo. Tu, que estás sempre a criticá-lo de que
ele não liga aos seminaristas, dizes isso. É uma oportunidade
única.
– Pronto, pronto. O teu sermão convenceu-me. Cláudia,
Sónia, nós vamos lá dentro. Vimos já.
– Não vos demoreis.
Saírem do quintal e entraram no jardim de rosas.
– Toninho, olha ali a Nancy. Não está a chorar?
– Parece.
– Vai indo tu. Vou ter com ela.
– Ó Rocha, deixa a miúda em paz!
51
– Não a vês a chorar? Consolai os tristes... Se as freiras
perguntarem por mim, diz-lhes que fui à retrete.
O Toninho subiu irritado as escadas e o Rocha
aproximou-se da menina de caracóis. Quando esta o viu,
limpou as lágrimas a um lenço desnudo e tentou disfarçar.
– Nancy, aconteceu alguma coisa?
– Não, não aconteceu nada.
– Estavas a chorar...
– Não... não te preocupes.
– Tens uma cara tão triste! Diz-me, que se passa? Posso
ajudar?
– Obrigada, Alberto, obrigada. Mas não, não podes
ajudar.
– Que pena! Olha, gostei imenso da tua representação
do rapaz pobre. Tens muito jeito.
– Estás a dizer isso só por dizer.
– A sério! E as outras pessoas também gostaram.
– Estás a ver aquele rapazinho loiro a correr?
– Sim...
– É meu irmão. Vem cá, espreita para o quintal. E vês
aquela senhora além de vestido amarelo?
– Sim...
– É minha mãe. O senhor ao lado é meu pai. A irmã
Miquelina quer que eu vá com eles para casa.
– E tu não queres?
– Eu prefiro ficar.
– Preferes?... Olha, Nancy, por que saíste da capela a
meio da cerimónia? Não querias receber o crisma como as
outras? O sr. bispo deve ter achado estranho.
– Desculpa, Alberto. Preciso de ir ali. Daqui a um
bocadinho falamos melhor, está bem?
O Rocha ficou no meio do jardim a vê-la desaparecer
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sob as nogueiras. Que miúda mais estranha! Dava-lhe volta à
cabeça. Seria agora conveniente ir à mesa do clero cumprir a
obrigação social e beber um cálice de porto. Subiu as escadas,
entrou e encontrou um silêncio quase sepulcral com padres e
freiras à volta da mesa a depenicarem os pratos de queijo
flamengo e pedacinhos de presunto. O Toninho, figura baixa
e tímida, escondia-se num canto com um copo de vinho branco
na mão. O Rocha, pedindo licença a que ninguém respondeu,
foi postar-se junto do companheiro. Ali permaneceriam até
que o bispo e o seu séquito se fartassem do queijo e do presunto
e partissem. Finalmente livres da hierarquia, volveriam ao
quintal para se juntarem à miudagem. Queriam mais música,
mas da boa, da estrangeira.
– Sabem cantar o Paul Simon? – perguntou a Guidinha
que se aproximara também do grupo.
– O António canta bem – respondeu o Rocha.
– Então vamos para o campo de futebol. Lá estaremos à
vontade sem as freiras a chatearem. Cláudia, Sónia, vocês
alinham?
– Pois sim – concordou a Cláudia. – Sónia, vai buscar a
viola do Alberto, se fazes o favor. Guardei-a na portaria.
– Está bem, encontrámo-nos no campo.
– Cláudia, chama a tua irmã, que eu chamo a Nancy –
pediu a Guidinha.
– A Nancy?! Mas essa...
– Não discutas. Ana Maria, Cristina, venham também.
Chega para todas.
Cinco minutos passados, o grupo encontrava-se instalado
no campo. Juntaram-se algumas cadeiras, o Rocha puxou dois
acordes sonoros e o Toninho entoou o primeiro verso do The
Boxer. As miúdas baloiçavam aéreas com os acordes e a voz
que se espalhavam à volta. No refrão repetiam em coro
53
taciturnas, moles. Uma freira mostrou a cabeça de uma janela
de casa e deixara-se a apreciar com os olhos distantes no sol
que se escondia medroso. Pensaria na juventude, no futuro,
em Deus todo poderoso e terrível? Não, Deus era bom como o
refluir duma tarde quente e suave.
XVI
Os pais da menina alta e doce, que não eram os pais
verdadeiros, tinham chegado ao colégio no princípio da tarde.
Percorreram quarenta quilómetros desde a terriola para os lados
de Ponte de Lima até à cidade com a finalidade de participarem
na festa e reverem a filha. A irmã Miquelina escrevera-lhes
uma carta que os embaraçou. Colocava em risco os seus planos
para os anos mais próximos. Pensavam voltar à América a
ganhar mais alguns patacos. Porém, se a Nancy voltasse para
casa, como era desejo da freira, isso exigiria terem de a levar,
o que não era muito conveniente, pois já tiveram problemas
bastantes com ela.
Nancy nasceu no Canadá. Sua mãe abandonara-a depois
do parto, tendo sido entregue pela polícia aos cuidados de um
orfanato com um dote de alguns milhares de dólares. O sr.
Bastos e a esposa, emigrantes portugueses acabados de casar,
adoptaram a criança e trataram-na como se fosse o seu primeiro
filho, filho este que não podiam ter, por haver um problema
de esterilidade num dos cônjuges. Quando voltaram a primeira
vez a Portugal a passar umas férias, já a criança era uma linda
menina de oito anos. Resolveram, no regresso ao Canadá, não
a levar consigo. Estava crescidinha, podia ingressar na escola
e aprender português. Além disso o trabalho e a vida de casa
seriam mais fáceis para os dois se ela não estivesse presente:
não haveria a preocupação contínua de zelar pelo seu bem-
54
estar. Deixaram-na então ao cuidado de um internato infantil
dirigido por religiosas e partiram. Vinham todos os anos passar
um mês de férias, tratar da conta no banco, rever os parentes e
a filha adoptiva. Quatro anos decorreram, a miúda, bastante
inteligente, aprendeu o português, fez exame final do ensino
básico e estava pronta para continuar os estudos. Foi nessa
altura que recebeu um grande choque.
Os pais voltaram do Canadá com um menino muito loiro,
seu filho verdadeiro, tendo em conta que, entretanto, o
problema da esterilidade fora resolvido, e decidiram instalar-
se definitivamente na terriola. Retiraram a filha do colégio e
acharam ser a altura de lhe dizer a verdade acerca da sua
origem. Nunca lhe tinham dito que não eram os pais autênticos
e, no momento da revelação, a miúda reagiu mal e sofreu uma
crise nervosa. Chorava horas seguidas, irritava-se com
facilidade, vinham-lhe acessos de cólera contra os pais e o
irmãozito. Levaram-na a um psiquiatra. O mal estava feito, só
o tempo o poderia curar. O médico aconselhou os pais a
deixarem a rapariga uns tempos afastada de casa a ver se
recuperava do choque e todo aquele ódio se dissolvia,
receitando-lhe, para acalmar, uma dúzia de drogas fulminantes.
O colégio de Santa Rita foi contactado, ajustou-se o preço da
estadia e uma semana depois a miúda entrava pelo portão verde
num estado total de apatia: era o aldol a actual. Acolheu-a a
irmã Miquelina e tomou-a como a primeira do seu novo grupo
para o ano lectivo que começaria em breve.
As aulas reiniciaram, a Nancy conheceu outras miúdas
da idade e paulatinamente foi recuperando da crise neurótica.
Revelara uma larga inteligência e era a melhor da turma. As
aulas, como em todos os colégios do género, eram frequentadas
em regime interno e não havia contacto com a juventude
exterior para além da tarde de domingo, única ocasião em que
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podiam sair à rua. Mas a Nancy nunca saía. Estudava, lia,
aprendia piano, queria estar só. Odiava os pais por lhe haverem
escondido a verdade durante tanto tempo. No colégio ganhara
uma grande amiga, a Guidinha. Era das poucas colegas com
quem podia conversar, abrir-se, chorar quando a angústia a
atormentava. Mas a Guidinha iria embora um dia, cada qual
tinha o seu caminho. E ela não tinha nenhum, porque fora
abandonada era ainda criança.
Fazia agora dois anos que viera para o colégio de Santa
Rita. Terminara com aproveitamento o ano escolar, podia
continuar os estudos lá fora. A irmã Miquelina queria que ela
voltasse para casa, pois far-lhe-ia bem o convívio com os pais,
o irmão e novas colegas numa escola diferente. Mas a família
receava-a. Os pais não acreditavam na recuperação, para além
de que lhes dificultaria a vida caso fossem novamente para a
América. E ela também não desejava abandonar o colégio.
Preferia viver ali do que junto daquela que nunca fora a sua
família. A sua família estava ali, os seus pais e os seus irmãos
eram as colegas e as freiras.
No dia da festa, quando chegaram, a irmã Miquelina
chamou à parte o sr. Bastos e a esposa para os convencer a
levar a filha. Pesaram os prós e os contras – seria mais
económico tê-la em casa – e resolveram levá-la com certas
reservas. Se não se desse bem, voltaria ao colégio de Santa
Rita. Firmaram o acordo: iria primeiro passar uma semana,
voltaria ao colégio para se despedir das amigas e depois iria
definitivamente.
Pouco antes da cerimónia religiosa, a irmã Miquelina
chamou-a ao pé de si e deu-lhe a notícia. Nancy ficou calada
e virou-lhe as costas. Não lhe agradava mesmo nada os outros
decidirem sobre a sua vida. Quando o bispo se preparava para
ministrar o crisma, acercaram-se-lhe dos olhos algumas
56
lágrimas e foi obrigada a sair. Meteu-se na casa-de-banho e
chorou até a Guidinha a ir lá descobrir no fim da cerimónia.
Não seria o Alberto e não teria coragem para entrar em cena
durante a festa. Tinha-a deixado já o sentimento de tristeza
quando a mãe, após as representações, a foi aborrecer com
insinuações de mau comportamento: porque ela fizera algumas
asneiras e as freiras queriam mandá-la embora; porque era
uma estouvada e passava a vida a arranjar complicações;
porque, porque. Nancy voltou a chorar, sabia que a mãe estava
a ser injusta. Mas para quê discutir? Iria morar com eles e a
sua vida seria um contínuo desassossego. Quando estava perto
de ser feliz num sítio, haveriam sempre de mandá-la para outro.
Onde estava a felicidade? Onde estava a alegria? Não tinha
direito a elas?
Após a conversa com o Rocha no jardim, foi preparar o
saco com alguma roupa. A Guidinha encontrou-a a dobrar
tristonha a camisa bege de que tanto gostava.
– Nancy, sempre vais?
– Sim. Mas para a próxima semana estarei cá de novo.
– Então não é definitivo. Ainda estaremos juntas mais
um ano.
– Guidinha, não quero falar nisso. Ficarei uns tempos lá
por casa e depois os meus pais decidirão. Eu já não sei o que
é melhor para mim. É ridículo, mas passei a tarde quase toda
a chorar.
– És uma chorona. Esquece e vem comigo. Os teus pais
saem a que horas?
– Disseram que partiriam às vinte.
– Ainda tens tempo. O António e o Alberto estão no
campo de futebol a cantar. Não queres ouvi-los? Havias de
ver o António a cantar as músicas do Paul Simon!
A sério?! Então espera. Tenho de entregar o saco à
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minha mãe. Em seguida damos lá um saltinho. Também
gostava de ouvir a voz do Alberto.
Ah! Esse não sabe cantar. Tem a voz muito grossa.
Até abala os ouvidos.
– Estás a provocar-me!
– Eu?! A provocar-te? Tu é que és cega. Olha gostar de
um parolo daqueles! Sempre podias ter mais bom gosto.
– Cala-te. Tu é que nunca viste homens à tua frente.
– Sim, senhor. Realmente somos duas entendidas de
gema! Anda, não percamos tempo. Eu vou para freira, por
isso...
E saíram desenfiadas escadas abaixo, o sorriso nos
lábios, a malícia inocente no olhar. Que fossem para o diabo
as freiras, os pais e os problemas! Hoje era dia de festa, não
valia a pena ficar triste. A tristeza nunca resolveu problema
nenhum.
– Juntem-se aos bons – exclamou o Rocha mal as viu
aproximar-se.
– Guardem uma canção para nós – pediu a Guidinha
toda gaiteira. – Queremos a mais bonita.
– Lá vem a delambida! – comentou a Cláudia para a
Cristina a respeito da Nancy, torcendo o beiço magro e pálido.
– Cantávamos o The Boxer do Simon e do Garfunkel.
Voltamos a cantá-la? – perguntou o Toninho.
– Não, vamos agora cantar o The Sounds of Silence
emendou o Rocha atirando-lhe um ré menor ao ouvido.
Hello, darkness, my old friend...
As meninas faziam coro quando calhava tropeçando no
inglês e as palavras saíam baixas, meigas da garganta do
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Toninho. O Rocha dedilhava as cordas, rugia quase mudo uma
segunda voz nas partes que melhor conhecia. Era, como as
miúdas, fraco no inglês. Mas bastava para criar um clima de
descontracção. A Nancy, com os últimos raios de sol a baterem-
lhe na testa em caracóis castanhos, não lhe tirava os olhos de
cima. A dada altura, levantou-se de mansinho, rodeou o grupo
e depositou-lhe dois beijos na cara. Depois abandonou o campo
e foi ter com os pais que a esperavam no jardim. A Guidinha
ficou de boca aberta. Que sorte as outras não terem percebido!
O Rocha não deu importância ao caso, estava entretido, mal
sentira. Mas quando a miúda voltou e, dirigindo-se a ele de
novo, lhe disse que tinha de partir, então caiu em si. Parou a
música, ficaram todos à escuta.
– Então, Nancy, já vais? É muito longe?
– Um pouco. Contudo, eu volto.
– Desejo-te boa viagem e uma agradável estadia em casa.
Se precisares de alguma coisa... Eu moro ali em baixo. É só
telefonar ou escrever.
– Obrigada, Alberto. Foi bom conhecer-te.
Assentou-lhe mais dois beijos, puxou a Guidinha e
saíram ambas do campo. Três minutos após partia no Ford
com os familiares a dizer adeus à irmã Miquelina e à amiga
postadas diante do portão verde.
No campo de futebol a música acabara, pois uma freira
descera as escadas e mandou recolher. As miúdas, enquanto
se afastavam, comentavam o estranho comportamento da
Nancy frente ao Alberto Rocha. Que haveria ali? Quatro beijos,
despedidas, telefonemas?...
Terminava o dia, terminava a folia. Os parentes partiam,
partiam os amigos. Ficavam as miúdas que não tinham família,
ou que tinham mas era como se não tivessem, pois ninguém
se importava com elas. Contrapondo-se a essa tristeza, era
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reconfortante a sensação de segurança daqueles muros. Ali
nada temiam, tudo estava controlado, determinado. Não seria
a Igreja Católica a instituição com mais experiência na
educação da juventude? De rédeas é do que a gente nova
precisa. Da liberdade só nasceu a libertinagem e o pecado.
Muitos acreditavam nisso e com esse espírito incentivavam
tais empreendimentos.
XVII
O Toninho, sentado à secretária, deslizava os olhos pelo
tecto de cal a saborear uma ideia, uma imagem qualquer. O
Rocha, ao lado, de joelhos sobre o tapete de serapilheira com
os cotovelos na secretária e a mão direita na fronte, fechava
os olhos para afastar algo que não queria ver. A noite crescia,
os outros colegas do Seminário, uns viam televisão no bar,
outros entregavam a alma casta aos prazeres dos lençóis. Estes
velavam, não tinham sono.
– Toninho, vou despedir-me do reitor.
– Vais quê?
– Vou-me embora! Não aguento mais isto. Eu não fui
feito para o Seminário. Preciso de respirar.
Os dois calaram-se. A decisão do Rocha não surpreendia
o companheiro. Um dia qualquer aconteceria. O Rocha andava
na corda bamba sem ser artista de circo. Até que enfim tomara
uma decisão. Quanto mais tarde pior. O Seminário fazia-lhe
mal, a vida repressiva, a renúncia contínua àquilo que era o
mais natural deste mundo desarticulava-o, prostrava-o vencido.
O Toninho já não sabia se o Seminário foi feito para os fortes
ou para os fracos. Ser fraco era gostar de mulheres e não ser
capaz de vencer uma tentação? Ser forte era conseguir passar
quatro horas seguidas diante do sacrário a dizer balelas ao
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Cristo? Ser forte não seria antes ter a capacidade de se
encontrar a si naquele matagal de preconceitos religiosos e
sociais? Não seria ver que tudo aquilo era uma grande mentira
e ter garra para renunciar a ela, mesmo que isso custasse o
futuro e uma situação económica estável e cómoda? O Toninho
olhava agora o Rocha e nascia-lhe uma grande admiração pelo
companheiro. «Ele fora capaz, eu tenho medo. Aí está a
diferença entre nós: ele é homem. Eu, o que sou?»
– Gostas dela?
– Como posso saber? Vi-a apenas duas vezes. Não
gostaria que ficasses a pensar que vou sair por causa de uma
menina de colégio. Não sou assim tão infantil. Tu sabes muito
bem porque é que eu saio.
– Claro, Alberto, eu sei. És um indivíduo razoável. Não
seria apenas por um motivo tão fortuito que largarias tudo.
– Largaria tudo? Enganas-te, Toninho. Agora é que eu
encontrei tudo. Deus não está nestas paredes grossas e caiadas
a ouro fino; não está em livros volumosos e plenos de sensatez
ou em mentes doutas. Deus está lá fora, à nossa espera e é aí
que eu pretendo montar a minha tenda, como Abraão na terra
desconhecida de Caná.
– Que vais fazer?
– Quero cortejar o sol, senti-lo na cara despreocupado,
sem padres a espiar, a condenar. Fartei-me das sombras e do
mistério. Que diz o Caeiro?
– «O único mistério é não haver mistério nenhum».
– E tu?
– Eu?... Olha-me para estes livros todos que tenho de
ler!
– Não, não. Pergunto-te pela Florbela.
– A Florbela...
O Toninho recostou-se na cadeira e suspirou. Não via a
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Florbela desde a última visita Pascal. E era muito provável
que não voltasse a vê-la.
XVIII
Era o terceiro ano que fazia a visita pascal em Cristelo,
uma aldeia a espalhar-se até à margem esquerda do rio Minho.
O padre Lopes deixou-o manhã cedo junto à igreja, onde
o esperava, não o sr. Moreno do costume, dente de ouro no
sorriso, mas o sr. Regueira, muito mais novo, acompanhado
de dois miúdos, um para a caldeia, outro para a campainha,
ambos seus filhos.
– Então, o sr. Moreno?...
– Deixou a pasta a outro. Dizia que já estava velho para
isto.
– E pegou-lhe você. Pois fez muito bem. Homens rijos e
tementes é que se querem.
– Começamos?...
– Está na hora.
O sr. Regueira pegou na cruz, deu-a a beijar aos do
compasso e partiram para as primeiras casas, o miúdo da
campainha à frente num repique alegre de boa nova.
Percorreram umas boas sessenta casas durante toda a
manhã. A primeira foi, como sempre, o café da aldeia, com o
corcunda a servir ao balcão. Eram oito e trinta e havia já uma
dúzia de fregueses no dejejum da bagaceira. Aos do compasso
puseram-lhes um copinho de porto e só o miúdo da água benta
o bebeu até ao fim. O Toninho molhou os lábios para não
parecer desfeita, cumprimentou um a um os fregueses que
veria dentro em pouco em suas casas com a família, e
recomendou que avançassem.
A parte norte da aldeia era bastante pobre. Casas mais
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antigas, gente encardida pelo trabalho dos campos, mãos de
madeira cobertas de calos. Mesmo assim, era nessa zona que
o Toninho recebia as melhores gorjetas. A meio da manhã, os
bolsos da batina – feitos largos e fundos pelo alfaiate, como
mandava a tradição – eram uma confusão de notas de cem e
de quinhentos para ali metidas à pressa e sem ordem.
A última casa da manhã era a do sr. Pereira, emigrante
regressado da França. Já nos anos anteriores terminava ali a
primeira jornada e era forçoso ficar para o almoço. O sr.
Regueira bem o queria levar para sua casa. Mas o emigrante
teimou que era tradição ser ele a oferecer o almoço ao
seminarista. Até já tinha a mesa posta e a panela no fogão. O
outro, pouco convencido e até certo ponto ofendido com o
emigrante, partiu. O Toninho não sabia o que fazer. Não queria
era que arengassem por causa de um almoço partilhado por
alguém que talvez não merecesse tanto desvelo.
Era a terceira vez que comia naquela sala de tecto alto
em carvalho lavrado. A casa fora solar e tinha até capela, agora
a servir de poleiro às galinhas. Mas o sr. Pereira confidenciou-
lhe à mesa que, depois do restauro total da casa, passaria à
capela. Asseverava mesmo que, quando o sr. Seminarista fosse
ordenado, estaria pronta para ele ali vir celebrar o casamento
às filhas.
O Toninho perguntou pelo poeta. Nos dois anos
anteriores costumava estar à mesa com eles. O sr. Pereira disse-
lhe que morrera no Inverno passado.
– E os versos? – inquiriu o Toninho.
– Tem-nos a família. Os filhos bem os queriam editar
em livro. Mas sai caro.
O almoço cheirava a saúde e a campo. Cordeiro assado,
cozido à portuguesa. Pena o arroz estar duro. O Toninho não
gostava de arroz de forno. A sobremesa, além da fruta, foi
63
contemplada com uma travessa enorme de creme de leite
torrado por cima.
À mesa era o sr. Pereira, que dera o lugar da cabeceira
ao seminarista, as duas filhas, uma já nos seus doze anos e a
deitar corpo de mulher, o sogro e um tio. A esposa e a sogra
andavam pela cozinha à volta do fogão e das travessas.
O sr. Regueira apareceu com os miúdos depois das duas
e recomeçaram a visita, que à tarde se fazia na parte sul da
aldeia. O tempo embrulhou-se e prometia chuva. O Toninho
sabia, que, apesar de ter de andar pouco, era aquela a parte
mais chata, pois havia comezaina em quase todas as casas e a
vizinhança armava procissão atrás da cruz. Era, por outro lado,
a parte mais alegre, com gente nova e raparigas a querem
meter-se com o sr. Seminarista. Numa das primeiras casas em
que entrou, reconheceu logo as três irmãs ruivas que nos anos
anteriores lhe chamaram a atenção pelo seu exotismo. A mais
velha casara e trazia uma criança ao colo. A do meio encostava-
se ao namorado, um marmanjo tosco e envergonhado de ali
estar. A mais nova, apesar da presença dos pais, fez-lhe as
honras da casa. Não largou o Toninho um segundo, encheu-
lhe o copinho de porto e obrigou-o a beber até ao fim.
– Como se chama? – perguntou o Toninho.
– Não se lembra? Ainda o ano passado lho disse.
– Não, para minha tristeza não me lembro.
– Chamo-me Florbela.
– Ah, Sim! Então você é a Florbela. Pensei que era
alguma das outras suas irmãs. Pois cresceu imenso, Florbela.
O Toninho achava estranho que as três irmãs fossem tão
idênticas. O cabelo comprido de todas, avermelhado em
ondulações revoltas, a cara sarapintada de sardas, os olhos
cinzentos. Mas em Florbela sobressaía o sorriso matreiro. Era,
de todas, a mais bonita, embora a beleza das outras não fosse
64
de desprezar. Dissessem-no os rapazes que as levavam.
Ao saírem, começou a chover. O sr. Regueira e os dois
miúdos, porque o adivinhassem, levaram de casa o guarda-
chuva. O Toninho era o único que não tinha. A Florbela
comprometeu-se a abrigá-lo.
Caminharam pela estrada, sob a chuva fora de propósito.
Ela falava, falava e, quando se voltava, uma madeixa roçava a
face do seminarista numa carícia. Os outros iam à frente. Atrás
apenas ele e ela, muito encostados debaixo do guarda-chuva.
Mesmo assim, o Toninho via-se de batina molhada. O guarda-
chuva era pequeno para abrigar um indivíduo do clero e sua
acompanhante.
Entravam numa casa, Florbela ficava à porta. Depois
seguiam. Até que a chuva parou e forçoso foi abandonar a
companhia, não fossem as pessoas pensarem mal dela, que se
atirava ao seminarista, e dele, que não podia ver um rabo de
saia e assim punha em risco a sua vocação.
O Toninho agradeceu-lhe com dois beijos que o
sobressaltaram. Pele lisa e mimosa, quente. Viu-a durante a
tarde mais algumas vezes, noutras casas, nos caminhos, nalgum
largo. Cumprimentavam-se com o olhar, um sorriso.
Na casa do mudo, os seus companheiros entraram e
saíram logo. Ficou ele a aturar-lhe a maluqueira. Mostrou-lhe
a casa toda em grunhidos pouco perceptíveis (uma miséria de
ponta a ponta), a mulher com quem vivia (desgrenhada e suja),
os patos, as galinhas, o porco. O Toninho, quando finalmente
foi autorizado a ir-se, pensou que, nos últimos anos, deve ter
sido ele a dar mais atenção ao mudo. De qualquer forma, a
maior gorjeta que recebera naquele dia fora das suas mãos
sujas e calosas. E sentiu-se envergonhado.
Depois da chuva, a aldeia animou-se e, nas casas que
entrava, já não sabia quem tinha cumprimentado, pois andavam
65
os vizinhos nas casas uns dos outros. Já os conhecia dos anos
anteriores e via-os como uma espécie de escanções a provarem
o vinho, o presunto e o pão-de-ló para depois comentarem em
que casa era melhor. O Magalhães andava bêbado. Numa curta
troca de palavras com ele, o Toninho ficou a saber que era
funcionário das Finanças. A Páscoa é dia de festa. Começava
a beber no sábado de aleluia e só parava na segunda-feira à
noite. Sobretudo uisque. O vinho pintava as tripas e fazia-lhe
azia. Álcool purinho é que sim. E recomendou-lhe,
cambaleante de copo na mão, para não abandalhar o sistema
digestivo; que bebesse só uisque doze anos.
Recolheram à igreja ao fim da tarde. Houve foguetes e,
do púlpito, o Toninho improvisou duas palavras de
agradecimento pela visita que correra ordeira e pelas pessoas
que, com fé e simpatia, abriram as suas portas à cruz de Cristo
Ressuscitado. Na primeira fila, a Florbela, a beber-lhe as
palavras como Maria, irmã de Marta a Cristo. Enquanto o sr.
Regueira dava pela última vez a cruz a beijar a todos os que
compareceram, o Toninho desceu do altar e, entre a confusão
dos que saíam e dos que se aproximavam, despediu-se de
Florbela.
– Então até para o ano – disse ela sorridente.
– Se Deus quiser, cá estarei.
– Eu também. Esperemos que chova.
– Porquê?
– Para o poder abrigar novamente.
– A menina gostou assim tanto de ter feito de criada?
– Deus recompensa.
– Se a Florbela quiser escrever-me para dar notícias...
– Não tenho a morada.
– António Gomes, Seminário de Braga.
– Não me esqueço. E pode contar com uma carta minha.
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Separou-os a onda de gente que saía e daí a pouco a
igreja ficava deserta. O Toninho dirigiu-se à sacristia, despiu
a sobrepeliz e a batina e despejou os bolsos sobre a cómoda
dos paramentos. O mesmo fizeram os seus acompanhantes.
As gorjetas não eram só para o sr. Seminarista. Demoraram
alguns minutos a fazer um molho de notas e a contá-las. Depois
o sr. Regueira lembrou o jantar e partiram os quatro.
O jantar foi em casa do sr. Regueira. Lampreia com arroz,
no aconchego de uma sala de casa nova. O padre Lopes
apareceu por volta das dez da noite. Despediram-se todos e o
Toninho partiu.
Dormiria mais uma noite na Estalagem Padre Cruz. E
que noite desassossegada aquela, apesar do cansaço que o
moía.
Florbela realmente escreveu. Quando o Toninho voltou
ao Seminário depois das férias, foi encontrar o sobrescrito na
mesa da correspondência. O floreado do envelope não impedia
que a forma da letra lhe desse uma aparência tosca. Quis abri-
la logo ali no corredor. Arriscava-se à observação dos colegas
e dos padres que passavam. Por isso guardou-a no bolso do
casaco e foi para o quarto não sem antes cumprimentar um
sem número de colegas e trocar impressões com eles acerca
da Páscoa e das férias, como mandava a praxe.
No quarto, apesar do ímpeto que o atraía para o envelope
no bolso, fez a cama de lavado, arrumou a pouca bagagem,
regou as plantas e só depois é que se encostou à janela sobre a
cidade para ler.
Fora escrita no dia logo a seguir à visita pascal e mostrava
a precipitação da Florbela. A letra e o estilo revelavam alguém
pouco letrado. Concerteza, a rapariga trocara o estudo pelo
trabalho. Seria uma empregadazita numa fabriqueta de
67
confecções? Esquecera-se de lhe perguntar. Mas pelo menos
não estudava.
A carta denunciava os seus sentimentos. A moça ficara
pelo beicinho. E agora que faria o Toninho? Responder-lhe e
entrar no jogo não lhe parecia honesto. Tanto mais que ele
não podia nem queria ter qualquer relação com uma rapariga.
Ainda por cima de tão longe...
Na última noite que passara em Valença, perseguiu-o
durante o sono a imagem da moça. Sonhou que se tinham
reencontrado uns dias depois e se abraçaram com paixão.
Beijaram-se, percorreram-se com carícias, ele enterrara a face
naquele cabelo revolto e macio da cor do fogo. Algumas das
noites de férias em casa dos pais sucedeu-lhe o mesmo sonho.
E pela manhã acordava com o lençol sujo.
Era o corpo a ceder à natureza naquela Primavera de
cheiros e de sol. A rapariga era bonita e simpática. Mexeu-lhe
com a líbido, descontrolou-lhe o mecanismo de resistência. E
Deus não ajudava nada. Parece que nestas ocasiões se punha
mais distante, os pobres mortais abandonados a si próprios.
Sim, escrever-lhe-ia. Ver-se-iam quando? Daí a um ano?
Talvez, se o Toninho a visse casada ou pendurada a um
marmanjo, perdesse o interesse por ela. Mas que era bonita,
lá isso... Que pena tinha de que ela fosse para um palerma
qualquer! Como as irmãs.
Prometeu a si próprio escrever-lhe na semana próxima.
Não sabia era o que lhe haveria de dizer. Para uma rapariga
assim qualquer palavra seria comprometedora.
O caso com a Florbela pô-lo a reflectir. Assim, sem mais
nem menos, vê-se atraído por uma rapariga de uma aldeia
perdida no Alto Minho, bonita, é verdade, mas falha de cultura
e de horizontes. Que idade teria? Dezasseis, dezassete?... O
problema não residia bem aí, mas nos sentimentos que vinham
68
ao de cima como o lixo num tanque de água. Todos os
seminaristas, ou quase, como homens que eram na flor da
idade, tinham uma atracção pelo sexo oposto.
O problema estava no seu afastamento da vida espiritual.
Tornavam-se fastidiosos os momentos de coração e não sabia
o que dizer a Deus. Confessar que o amava sobre todas as
coisas quando estava a pensar nos cabelos em fogo de Florbela
parecia-lhe uma heresia. Começava a pensar se realmente
queria ser padre, viver a sua vida sozinho numa casa paroquial
grande e fria, sem o sorriso e o calor de uma mulher, as correrias
e o encanto das crianças.
Passada a semana, arranjou um postal com a fotografia
do papa. Tentou ser lacónico no que escreveu nas costas do
postal, limitando-se a agradecer a carta e a trocar
cumprimentos. E fechou tudo num envelope branco. Duvidou
se haveria de pôr no sobrescrito o nome e a morada. Talvez os
familiares da Florbela desconfiassem mais se os não pusesse.
Ela voltou a responder-lhe e, dessa vez, incluiu um postal
com dois namorados de mãos dadas ao sol-pôr com uma frase
a falar de amor eterno. Era demasiado e o coração do Toninho
cedeu.
XIX
Alguns dias depois da festa do colégio de Santa Rita, o
Rocha, ao sair para a cidade, encontrou à entrada do Seminário
a Guidinha. Queria entregar-lhe um presente e uma carta da
Nancy. Ela tinha-a visitado e, antes de partir de novo com os
pais, pedira-lhe encarecidamente que entregasse aquilo em
mão. Ele ficou um pouco espantado, mas viu-se obrigado a
aceitar.
No quarto, abriu o embrulhinho do presente e descobriu
69
uma caixinha preta. Resguardava um isqueiro dourado sem
gás. Do paninho de veludo vermelho onde assentava evolava-
se um perfume doce e intenso. «Pensou que eu fumava.»
Rasgou o sobrescrito e, em vez de carta, encontrou um postal
com um pôr-do-sol e uma frase a propósito. Por detrás leu:
Meu querido Alberto:
Viver é triste, mas parar de sorrir nunca! O mundo está
cheio de coisas belas que podemos amar. Fiquei feliz por te
ter conhecido. Os amigos são o melhor que Deus nos dá. Tu
és um amigo que Deus me deu num dia sem sol, embora o sol
iluminasse lá fora. Agradeço-te imenso por me teres apoiado
num momento em que eu me sentia só e desesperada. Ofereço-
te este isqueiro como prova do carinho e amizade que sinto
por ti. Porque lhe queria muito é que to ofereço. Dizem que
era de meu pai. Espero que aceites isto com muito amor. Tem
esperança, talvez nos encontremos um dia. Um grande beijo
daquela que não te esquecerá nunca.
Nancy
E agora, que faria? Deixava as coisas assim? Escrevia-
lhe a agradecer o presente? Aspirou o perfume do veludo da
caixa do isqueiro e encostou-se à cadeira. Pela memória
percorreu aquele corpo de menina ainda tenra, mas já com
todas as formas bem delineadas. Só tinha catorze anos. E ele
tinha vinte. Não seria um disparate apressar uma relação nestas
condições? Deixasse-a amadurar mais uns anos e depois
contactava-a. Mas talvez fosse demasiado tarde. Quem sabe
ela na terra não engraçaria com um rapazito? Porque, pelo
pouco que viu, era uma rapariga sentimental, talvez em
70
demasia. E com aquele rostinho e aquela figura teria um
enxame à sua volta. Decidiu então escrever-lhe uma pequena
carta, primeiro a agradecer o presente que não merecia, e
depois a colocar-se à disposição como amigo.
E foi para casa passar uns dias antes do próximo exame.
Quando voltou, o reitor mandou imediatamente chamá-lo.
– Sim, sr. reitor – disse entrando no gabinete.
– Meu caro Rocha. Andou durante toda esta semana a
telefonar cá para o Seminário uma menina. Chegou a ligar
três vezes por dia. Perguntava por ti, mas, como não estavas,
insistia mais tarde. O telefonista, já farto, veio dizer-me e eu
atendi a última chamada. Perguntei-lhe o que desejava. Que
era só contigo que queria falar. Perguntei-lhe se tinha morrido
alguém ou tinha havido algum acidente. Disse-me que não.
Que era apenas uma amiga e se eu sabia como podia contactar-
te.
O Rocha pôs-se branco. Aquela Nancy era mesmo
levantada! Então telefonar para o Seminário e, ainda por cima,
falar com o reitor! Este continuou:
– Informei-a de que não sabia onde estavas e aconselhei-
a a não voltar a ligar. Agora gostaria de saber que história é
esta. Tanto pode ser uma coisa sem importância como pode
ser algo de grave. E eu não quero que o Seminário que dirijo
seja um posto de recadinhos de amor por telefone.
Calou-se e olhou o seminarista de um modo frontal,
como o jogador pronto a chutar a bola à baliza do guarda-
redes. O Rocha tartamudeou, não sabia o que dizer.
– Sr. reitor, eu... eu não sei de nada. A rapariga disse
como se chamava?
Ainda tinha uma esperança de se safar daquilo mostrando
ignorância do facto.
– Nancy de Bastos – respondeu o padre. – Tive o cuidado
71
de telefonar para dois colégios da cidade a perguntar se haveria
lá alguma rapariga com esse nome. Do colégio de Santa Rita
a madre superiora disse-me que tiveram até há pouco tempo
uma menina com esse nome, mas que, de momento, estava
em casa dos pais. Ora, o sr. Rocha e o sr. António foram há
cerca de quinze dias a uma festa a esse colégio. Com o meu
consentimento, é claro. O que eu gostaria de saber é que relação
existe entre si e essa tal Nancy de Bastos.
– Nenhuma – disse o Rocha. – Nenhuma, sr. reitor. Havia
lá muitas raparigas, conversei com algumas, mas não houve
mais nada do que isso. Agora se uma se lembra de andar a
incomodar o Seminário com telefonemas a perguntar por mim,
penso que a culpa não é minha.
– Caro Rocha, não se faça de ingénuo. Já lidei com
muitas situações semelhantes. Pode mesmo dizer-se que sou
calejado nestes casos de meninas de colégio que se relacionam
com seminaristas. Se ela telefona para aqui à sua procura é
porque a tal conversa não foi tão inocente como isso.
– Juro, sr. reitor...
– Olhe, caro Alberto Rocha, estive a conversar com a
madre superiora e depois com uma tal irmã Miquelina,
responsável pelo grupo das estudantes. Fiquei a saber que,
durante a festa, os dois seminaristas, que eu autorizei a ir ao
colégio em colaboração pastoral, se comportaram de uma
forma pouco exemplar. Até o bispo teria dado conta, o que é
de sobremaneira grave. Penitencio-me disso, já que fui eu a
autorizar a vossa ida. As irmãs disseram-me que vocês não
saíram de ao pé das raparigas e que até, já a festa tinha
terminado, insistiram em ficar até anoitecer a cantar e a tocar
canções que não seriam muito próprias dentro dos muros de
um colégio religioso. As irmãs decidiram não aceitar mais a
tal Nancy no colégio e tomarão medidas para evitar futuras
72
complicações. Por mim, disse-lhes que, perante este caso, não
poderia consentir em mais colaborações nas festas ou noutras
actividades que possam solicitar-me.
O Rocha ali estava, meio vencido, entre a culpa que
talvez não tinha e o medo do juiz que o censurava e em breve
ditaria a sentença. Num acto súbito de coragem, levantou a
cabeça e exclamou:
– Sr. reitor, tudo isso que me conta acho-o de péssimo
nível. Em primeiro lugar, não lhe dou autoridade para vir com
acusações.
– O quê?! Não estou a entender! – interrompeu-o
abismado.
– É muito fácil de entender. Você não é mais o meu
superior. Despeço-me. Use a autoridade com aqueles que não
têm coragem para dizer não. Para mim basta. Com licença.
Abriu a porta e saiu.
O Rocha teve de abandonar o Seminário. Perante o que
disse ao reitor, não podia ficar mais dentro daquelas paredes.
Fez as malas, apanhou a camioneta e voltou à terra, os livros
de teologia às costas. Levava-os porque lhe tinham custado
um dinheirão e talvez lhe servissem um dia para consulta e
satisfação da curiosidade sobre as coisas do espírito. Entrou
para uma universidade e esperava o sorriso do futuro.
Encontrou o sol na rua, viu um horizonte maior do que sonhara.
As sombras não existiriam se a luz brilhasse. A menina alta e
doce encontrou-a, mas perdeu-a em seguida porque não soube
jogar com os deuses.
Enquanto o Rocha se refugiava nos livros e se esforçava
por fazer o curso, a Nancy fazia sucesso entre os rapazes mais
velhos da escola para onde fora estudar depois da saída do
colégio. Um rapazola finalista caiu-lhe nas boas graças e, por
73
artes de Cupido, foi tão intenso o fragor da Primavera daquele
ano que a Nancy conseguiu engravidar e, cheia de vergonha,
deixou de escrever ao Rocha. Este, por volta de Junho, tendo
encontrado a Guidinha na rua, ficou a saber que a sua
apaixonada casaria em breve por ter engravidado de um colega
de escola.
Poucos dias depois de o Rocha se ter despedido do reitor,
o Toninho fazia o mesmo. O reitor ainda quis saber a razão,
mas ele limitou-se a encolher os ombros e a pedir licença para
se retirar. Entrou para uma universidade longe de Braga,
ficando cada vez mais longe da Florbela, a rapariga de cabelo
dourado que conhecera na visita pascal. Embora se mantivesse
inalterável o desejo de a rever e de a abraçar, nunca mais voltou
a abrigar-se no seu guarda-chuva.
74
PARTE III
XX
– Temos de estar em São Bento às onze horas – berrou o
Rubro para os que se espreguiçavam na manhã ensolarada. –
Cordeiro, fora da tenda!
– Só mais um bocadinho... – pediu ele bocejando
embrulhado num cobertor.
Mas lá se levantou. Ingerido o pequeno-almoço e a cara
lavada, abandonaram o Boco subindo ao Mira-Rio. Atrás ficou
o Rocha e o Toninho que foram à casa paroquial buscar vinte
garrafas de verde oferecidas pelo padre da Caniçada. Levaram-
nas ao Boco de carro, deixaram duas na mala e juntaram-se
aos outros no café.
– Vão quatro agora e depois vens apanhar os restantes
mais as sardinhas – explicou o Rubro ao Rocha.
– Certo. Entrem. E não me batam com as portas! – pediu
metendo a chave na ignição.
– Sandra, não queres vir? – perguntou o Louro à miúda
estacada na porta do café enquanto se enfiava entre os acentos
traseiros.
– Não posso. Tenho que trabalhar. Mas gostaria muito.
– Enquanto o Rocha não volta para nos apanhar,
fazemos-lhe companhia, Louro. Não te preocupes – gracejou
o Barbosa que ficava com o Rubro, o Lula e as sardinhas.
Sardinhas vindas da Póvoa nessa mesma manhã por intermédio
do pai do Miguel.
75
A esplanada envolvente da ermida de São Bento, airosa
de verde e de sol, burburinhava às dez da manhã. Era o período
das festas em honra do santo e todos os dias arrimavam turistas
curiosos e peregrinos devotos, uns ávidos de vista e frescura,
outros do chorudo milagre que os livrasse dos bicos de
papagaio.
Os nossos amigos, porém, nem foram à cata de milagres
(se o fizessem seria para curarem o coração) e muito menos
de frescura, que essa tinham-na no Boco em abundância.
Marcaram uma missa às onze na igreja convidando o padre
Mário, antigo director espiritual do Seminário e grande amigo,
a presidir. Ia de Braga para os visitar.
Mas eram já onze e meia e o padre Mário não chegava.
O padre Matos, reitor da ermida, na sacristia com o Rubro e o
padre Emílio (outro convidado para a sardinhada)
impacientava-se bufando de mãos atrás das costas.
– Deve ter-lhe acontecido alguma coisa – arriscou o
padre Emílio.
– Esperemos que não – acrescentou o Rubro. – As
estradas até cá não são as melhores e o padre Mário gosta de
carregar no acelerador. Disse-me que sairia de Braga às dez
indo apanhar o Carlitos.
– Vocês desculpem – interrompeu o reitor com grande e
visível preocupação. – Mas alguém terá de celebrar a missa.
A igreja está cheia e as pessoas fartas de esperar. Ora, não
convém nada que isso se arraste por muito mais tempo. Só
desacredita a imagem da Confraria e perturba a dinâmica do
culto. Pedia então encarecidamente ao padre Emílio que
celebrasse e, quando o padre Mário chegar, celebra ele a do
meio dia. Está bem?
– Está – concordou o outro.
– Não necessita de homilia. Corridinha é quanto basta.
76
Quanto a vocês, podiam cantar qualquer coisa para animar a
assembleia.
– Vou avisar o Toninho e o Rocha. Eles estão no órgão –
disse o Rubro saindo para o corpo da igreja.
A missa teve início com a malta a cantar e o Toninho a
fornecer os acordes ressonantes às melodias celestiais.
Ajudava-os o povo, vivo e cheio de cor naquela manhã
brilhante, com o padre Emílio à frente de cabelo loiro e olhar
azul.
O padre Mário chegara entretanto, são e salvo. A missa
havia terminado e era quase meio-dia. Na esplanada, com todos
a rodearem o carro, explicava que não podia ter aparecido
mais cedo porque perdera três quartos de hora no mercado à
espera das sardinhas da Póvoa. «Que estafa, meus filhos!»
– À espera das sardinhas da Póvoa?! Não nos diga que
também comprou sardinhas! – perguntou o Rubro
espalhafatoso.
– Pois comprei. O Daniel telefonou-me ontem a dizer
que vocês não tinham arranjado nada. Então resolvi ir ao
mercado. Comprei duzentas.
– Duzentas?! Valha-nos Deus! Mas nós também
comprámos duzentas, padre Mário.
– Vocês também compraram duzentas?! Santa Mãe! Que
se vai fazer agora a tanta sardinha?
– Pensamos nisso depois – interrompeu o Rocha. – Como
é, o padre Mário celebra missa para nós? É que o padre Emílio
acaba de celebrar uma.
– Bem, foram todos à missa?
– Todos.
– Então acho que não vale a pena maçar-vos com outra.
– Está decidido – cacarejou o Lula que faltara à missa
anterior para trocar umas impressões sobre a paisagem com
77
uma turista que conhecera à entrada da igreja.
– Só há um problema. O reitor quer que o padre Mário
celebre a do meio-dia.
– Que aborrecimento!
– Vou dizer-lhe que o padre Mário não pode celebrar –
exclamou o Rubro correndo à sacristia.
E desceram todos para o largo da igreja paroquial de
Rio Caldo deixando o reitor a celebrar contra vontade a missa
do meio-dia.
XXI
Num fogo a carvão saído do fogareiro de churrasco
emprestado pelo padre Armindo, benfeitor do acampamento,
tostavam as sardinhas trazidas pelo padre Mário. Em tronco
nu e a soar forte, rodeavam-nas o Toninho avivando o fogo
com uma placa de esferovite, o Louro de travessa na mão
pronto a receber o petisco e o Barbosa de espeto virando e
revirando a peixada.
Um pouco ao lado, na cozinha improvisada do salão
paroquial, cinco raparigas confeccionavam o caldo verde, umas
cortando couves, outras descascando batatas. Ouviam atentas
aqueles que exercitavam a garganta no canto sentados à porta
da igreja. Eram o Rubro, o padre Emílio, o Lula e o Rocha. O
Cordeiro andava com a câmara fotográfica de dentro para fora
e de fora para dentro. Quando o viam assim a vaguear, já
sabiam qual era o rato: meter conversa com a mulherada. E lá
estava ele, na cozinha, a provar o chouriço para o caldo verde
trauteando conversa com a Anabela toda corada a cortar
couves.
O Carlitos, isolado nas escadas de acesso ao salão,
dormia. Os colegas sentiram de imediato a sua indiferença.
78
Estava ali a fazer o frete ao padre Mário. Como não
cumprimentasse ninguém ao chegar a São Bento, também
ninguém lhe falou e ignoraram-no. A Maria João, que ajudava
as outras moças na feitura do caldo verde, mal o viu a sair do
carro, foi, de coração aos pulos e avental à volta da cintura
para não sujar o vestido decotado, dizer-lhe olá. Mas,
apercebendo-se da pouca vontade que ele tinha de lhe retribuir
a atenção, não quis insistir e afastou-se um pouco desiludida.
O Almerindo chegaria em breve com o padre Matos e ela tinha
de ser discreta. Mais valia um pássaro na mão que dois a voar.
O reitor de São Bento chegara, após a missa das doze.
Acompanhavam-no dois garrafões de vinho, o Almerindo e
três chouriços.
– Almerindo, pega em dois destes cantores e leva-os
contigo. Trazei as mesas do salão e cadeiras que cheguem para
todos cá para o largo. Vamos comer à sombra da igreja. A
Teresa e a Maria vêm comigo a casa buscar copos e pratos.
Garfos não é preciso. Come-se à unha. Traremos as colheres
para a sopa.
A primeira travessa de sardinhas, cheirosas e regadas
com molho de azeite, salsa e cebola picada, fora exposta pelo
Louro aos gulosos olhares dos jograis. O pão de milho partido
em bocados colocara-o a Anabela muito delicadamente junto
das sardinhas, despertando o apetite do Cordeiro, mais do que
aos outros, por tão provocante pitéu.
– Ei, pessoal! Vamos para a mesa – chamou o reitor já
de unhas besuntadas com a gordura de uma sardinha.
Foram-se sentando enquanto as travessas eram colocadas
sucessivamente à sua frente, uma pelas moças, outras pelos
encarregados do churrasco. Comia-se, falava-se e humedecia-
se a conversa com o vinho do Almerindo a esvair-se dos
garrafões em grandes tragos. Lembrou-se o Rocha, quando
79
todos riam das palermices do Lula, que deixara ficar no carro
duas garrafas oferecidas pelo padre da Caniçada na manhã
daquele dia. Pedindo licença à Catarina, sua vizinha da
esquerda, levantou-se e dirigiu-se à viatura. Lá estavam elas,
debaixo do acento traseiro. Ao voltar para a mesa, houve gritos
e vivas ao Rocha abraçado às duas botelhas.
– Deita aqui – exigiu o Rubro de olhar encarnado.
– Deixa o homem desarrolhar a garrafa primeiro –
censurou o padre Mário, que só bebia vinho de missa, fora
isso era água, acrescentando-lhe uma palmadinha forte nas
faces carmesins.
– Tem de chegar para todos – recomendou o Rocha
entregando-as ao padre Emílio com o saca-rolhas entre os
dedos.
– Nós não gostamos. Podem beber tudo – acrescentou a
Simone roendo de mansinho um pedaço de broa.
– Cala-te! – advertiu a mais velha – Não gostas tu, mas
gosto eu! Cada uma fala por si.
Quando já todos arrotavam e abarrotavam de sardinhas,
e ainda as travessas iam a meio no seu conteúdo, o padre Emílio
sugeriu que cada um se apresentasse ao grupo. E que
aconteceu? Cada apresentação era uma risota esgalhofada.
– Que vamos fazer durante o resto da tarde? – interrogou
o Cordeiro após as apresentações fazendo olhinhos à Anabela.
– Convidamos todo a gente a ir ao Boco ver o
acampamento e dar um mergulho – exclamou solenemente e
de pés flexíveis o Rubro.
E partiram, depois de arrumarem a loiça, as mesas, as
cadeiras e os restos. Assaram-se duzentas sardinhas, sobraram
cem. Caíram na pia dos cães e dos gatos num raio de trezentos
metros. E também eles fizeram um grande festim. As duzentas
que o pai do Miguel arranjara não se assaram. Ofereceram-
80
nas no dia seguinte à mercearia do Mira-Rio.
Quem não partiu? O reitor, que tinha de estar na ermida
para as confissões e tratar dos dinheiros das esmolas, e duas
moças, as mais velhas, a Teresa e a Maria, pois esperavam-
nas em casa outros afazeres. Não foram elas que distribuíram
a sardinhada restante pelos felinos e canídeos da zona?
XXII
Quando os nossos amigos abandonaram a ideia de se
entregarem totalmente à igreja, o padre Mário era o seu director
espiritual. Director da comunidade jesuíta da cidade, tinha,
além disso, um cargo importante dentro do paço
arquiepiscopal. Era vigário do bispo. Porém, o seu trabalho
nem por todos era visto com bons olhos. Por um lado, as vozes
da reacção, do tradicionalismo, sempre a puxarem para trás
acusando-o de demasiada intimidade e liberalidade para com
os estudantes; por outro, as vozes do progresso, com a acusação
de piegas e retrógrado.
E o padre Mário ia cumprindo o seu múnus numa santa
e recatada paz de consciência ignorando a arruaça de seus
émulos, mais invejosos do cargo do que realmente interessados
no bem da Igreja. Os seminaristas aceitavam-no, o bispo
também, era isso que importava. Nada mais o poderia
preocupar senão o zelo pelo seu rebanho, tarefa árdua nos
tempos que corriam.
Os nossos amigos optaram então por sair do Seminário
e concretizar uma nova vida. Nesse mesmo ano deixou também
o padre Mário o seu múnus apostólico ao serviço da juventude
sacerdotal. Não foi, porém, de sua livre vontade. Foi antes por
ordem do bispo. E que aconteceu para ser exonerado? Que
razões terão levado o prelado a agir assim?
81
Houve, naquela altura, decisões tomadas pelo reitor com
que o padre Mário não concordava. Criou-se entre ambos um
atrito que dia após dia se agravava. E a este atrito juntaram-se
umas tantas acusações feitas por dois alunos, pupilos espirituais
do jesuíta: que adulava os seminaristas com dinheiro,
recrutava-os para a Companhia e aconselhava até alguns a
abandonarem a santa casa. Ora, o reitor do Seminário, como
há muito quisesse livrar-se dele, comunicou ao bispo os
pretensos delitos exagerando os seus receios. Não demorou
muito a sentença: o padre Mário deixava de ser o director
espiritual dos alunos de Teologia.
Que aconteceu depois? Nomearam outro director
espiritual que passava as horas no ócio, pois a grande maioria
dos alunos continuava a aconselhar-se na candonga ao velho
amigo. E os ex-seminaristas também o faziam, ligando-os não
só uma antiga amizade, mas também um sentido solidário,
que é de certo modo contra a padralhada do Seminário. Ambos
saíram, ambos frequentaram as autoridades eclesiásticas na
coragem e na perseverança, porque acreditavam que a Igreja
haveria de mudar um dia e seria fonte de amor e não fonte de
discórdia.
XXIII
Três carros passavam a ponte sobre o Cávado e subiam
em direcção à Caniçada para depois descerem ao Boco. Eram
o Opel do padre Mário, o Toyota do padre Emílio e a Renault
do Rocha, todos a abarrotar de juventude.
Ensonados pelo calor estival e pela temperatura do vinho
verde misturado às sardinhas, espapaçaram-se na pequena praia
de erva junto às tendas a olhar o rio e a lançarem piropos uns
aos outros. O almoço fora pesadote, ninguém tinha coragem
82
para cortar a limpidez das águas que escondiam aldeias inteiras
sob os seus reflexos. Preferiam espalhar-se na relva sentindo
o sol abrasador perfurar a pele numa carícia e o cheiro feminino
a entrar-lhes suave com as falas meigas e os gritinhos agudos
a seu lado. Sim, O Boco era realmente o paraíso que
imaginaram para as férias.
O Carlitos, afastado do grupo, deitara-se sobre a erva e
parecia adormecido. Pensava no que viera ali fazer. Estava
tão bem em Braga... Dormiria até tarde, como o costume, um
almoço calmo e saboroso (detestava sardinhas), sem aquelas
caretas a olharem-no recriminatórias. Depois sairia para a
piscina a encontrar-se com uma miúda que conhecera dias
antes. Tinha umas ideias fixes e era bem feita de corpo. Quem
sabe onde aquilo iria parar? Vai o padre Mário acordá-lo às
oito da manhã para vir a esta mixórdia. Se ao menos as miúdas
fossem de jeito... Mas não havia uma sequer que lhe agradasse.
A João é o que se vê. Andava atrás dele como uma tolinha.
Claro, pôs-se a tentar e um homem não é de pau. Deu para
torto, pois o Rubro não gostou nada que ele a tivesse levado
para o apartamento. Mas que raio! Para onde haveria de a
levar? Ao menos consolou-se. O Rubro não gostou, pô-lo fora
do apartamento? Que fosse para o diabo, não precisava do
apartamento para nada. O problema é que teve de ir para a
casa do tio em Braga, um homem severo, aliás como seu pai,
presidente da Junta de Freguesia. Havia que ter cuidado, nada
de aventuras arriscadas, pois estava sujeito a ficar na rua de
um pé para a mão. E isso não lhe convinha nas férias. Arranjou
um trabalhinho lá por Braga, seria aborrecido ter de o
abandonar por falta de alojamento. «Lá está a João com aquele
tipo, o namorado. Pensa que me faz ciúmes. Como as mulheres
são ridículas! Agora segreda-lhe não sei o quê ao ouvido e
trinca-lhe a orelha. De vez em quando, a parva, olha para aqui
83
a ver a minha reacção. E eu nas tintas.»
– Padre Emílio, um mergulho, não vai? – perguntou o
Lula levantando-se da modorra e preparando-se para lançar-
se à água.
– Não, não. Mergulha tu.
– Venha daí – insistiu o outro.
– Esqueci-me de trazer os calções. Não vou de calças.
– Eu empresto-lhe uns. Tenho dois pares – ofereceu
solícito o Rubro.
– São capazes de não me servir...
– Está é com medo.
Riram-se todos, já refeitos da pançada do almoço. O
padre Emílio temia deveras as superfícies líquidas. E não lhe
agradava nada ficar envergonhado ali diante das miúdas. Se
dissesse que não sabia nadar ou que tinha medo, a sua imagem
decairia muito. Coisa séria, que diabo! Não podia dar parte de
fraco. Veio o padre Mário salvar o embaraço.
– Está na hora de partir. Ainda vou celebrar missa a
Braga. Carlitos, vamos embora. Lamento interromper o vosso
convívio, mas não podemos ficar mais tempo. Estive até agora
a conversar com o Louro, a saber o que se tem passado por
aqui. Portem-se melhor do que o têm feito.
– Então boa viagem – disse o padre Emílio muito cortês.
– Toma bem conta desta rapaziada e depois leva as
miúdas a casa quando voltares à paróquia. Fica-te em caminho
– aconselhou o jesuíta.
O Toninho e o Lula saltaram para a água já o Opel havia
arrancado em direcção a Braga. O Louro foi o terceiro a ganhar
coragem. Rugiu a água sob o seu ventre, uma barrigada
monumental que despertou os que ainda espreguiçavam na
margem. Restou o Barbosa em terra a olhar duas das miúdas a
chapinhar de pés molhados enquanto conversava de futebol
84
com o padre Emílio, o Rubro a tirar algumas fotografias no
intervalo das imersões, o Rocha a ressonar sobre a toalha e o
Cordeiro junto à Anabela a contar-lhe uma história da
carochinha. Faltava a João e o Almerindo, que desapareceram
sem ninguém dar conta entre as carvalheiras próximas.
A tarde finava-se pouco a pouco, as meninas de Rio
Caldo partiam com a promessa de um encontro no dia seguinte,
o padre Emílio cumprimentava enérgico um a um e entrava
sorridente no Toyota onde o Almerindo, de olhar ausente e
satisfeito, se tinha já instalado com a João.
– Amanhã às quinze, em frente da Casa do Povo –
lembrou a Simone ao Rubro.
– Lá estaremos.
O carro abalou.
XXIV
A João voltara a não dormir bem. O Almerindo, debaixo
dos carvalhos junto ao rio, tinha-lhe pedido a mão em
casamento e até lhe oferecera um anel de noivado. Teve de
aceitar o presente e metê-lo no dedo. Não estaria afinal
condenada a viver com um engenheirozito ignorante e
demasiado convencional? O Carlitos, durante o convívio, teve
a desfeita de lhe não ligar importância nenhuma, esquecido
das tardes de amor e das palavras bonitas que lhe assoprara ao
ouvido enquanto ela se entregava. Que faria da sua vida? Era
tão desesperante amar alguém que nos ignora!
Foi ao almoço do dia seguinte que os campistas
combinaram as actividades dos próximos dias. A Vânia
convidara-os a ir ao seu aniversário na praia de Apúlia, isto é,
teriam de andar cerca de cem quilómetros para cada lado
85
enlatados como sardinhas no automóvel do Rocha. As
condições eram reduzidas, o que entristecia os mais directos
interessados nessa empresa. Primeiro o Rubro, ansioso por
voltar a vê-la, mesmo depois do não que ela lhe dera; depois o
Louro e o Rocha, na mira de umas amigas da Vânia que lá
estariam na certa.
Todavia, estavam decididos a ir, fosse quais fossem as
contrariedades. Haviam combinado isso antes do
acampamento e seria aborrecido não aparecer. Afinal de contas
a Vânia esperava-os com mesa posta e garrafão encetado. Mas
fazerem uma viagem dessa envergadura uns em cima dos
outros não cativava ninguém. Resolveram tal empecilho
quando o padre da Caniçada, tomando café no Mira-Rio após
o almoço, se ofereceu para levar metade da malta no seu carro.
Necessitava de ir a Viana na sexta-feira, poderiam aproveitar
a boleia.
Louça lavada, tendas abertas de par em par, cobertores
estendidos no mato a insuflarem ar puro, desceram à pequena
praia e estenderam-se pensativos na erva. O Barbosa e o
Toninho teriam de partir impreterivelmente no dia seguinte.
Ao primeiro esperava-o a trabalheira de aturar meia dúzia de
rapazes num orfanato onde era monitor. O segundo tinha de
se juntar à família que veraneava na Póvoa de Varzim. Porém,
com a partida destes, temia-se que o acampamento voltasse
aos dois primeiros dias, todo cheio de quezílias, confusões.
O Rocha não desceu ao rio. Ficara entretido a ler, sentado
perto das tendas, as aventuras de Dom Quixote com o rádio a
vomitar música agitada que fazia com que suas as pernas
baloiçassem distraídas. Uma hora passou molenga e quente.
Fartos da inércia que inundava o lugar, o Lula e o Cordeiro
lançaram-se às águas com o Toninho e o Louro a seguirem-
nos. O Rubro mergulhou depois, desastrado, a correr logo para
86
a margem, não fosse a água traiçoeira engoli-lo. O Barbosa
continuou deitado a apreciar as brincadeiras aquáticas dos
companheiros.
– Ei, Barbosa, não queres experimentar? – interrogou o
Toninho como que a fazer um convite.
– Não, obrigado. De certeza que me afogaria.
– Não te afogas nada. Nós estamos aqui. Se acontecer
alguma coisa, tiramos-te para fora – rematou o Louro todo
forte.
– É melhor não.
Assim é que nunca aprenderás a nadar. Deixa o medo
e atira-te – insistiu o Toninho.
– Está bem. Mas preparai-vos para me apanhar depois.
Ergueu-se, coçou a barba negra, puxou os calções para
o umbigo e chegou-se à margem. Meteu, como quem não gosta,
um dedo do pé na água, olhou para o fundo sem fundo, respirou
em cheio e mergulhou num gesto deveras elegante.
– Muito bem – exclamaram.
O Barbosa penetrou nas profundezas fluviais de olhos
abertos e nunca sentira uma sensação tão agradável como
aquela. Desceu dois metros, voltou à tona da água e viu que a
sensação se modificara. Tornou-se dolorosa, invadindo-o um
desespero terrível. Não conseguia suster-se à tona, retomava
o fundo, voltava a cima, engolia água, aumentava o ritmo
cardíaco, o ar faltava-lhe. Os outros, preocupados, dirigiram-
se para ele em grandes braçadas e cada um tentou agarrá-lo
como podia. Era impossível segurarem-no. No seu desespero,
puxava-os para o fundo também. O Rocha acorreu aos gritos
dos outros e pôs-se muito estacado na margem a ver o que
sucedia sem uma ideia, um gesto que pudesse salvar a situação.
– Atira-me essa toalha, palerma! – gritou esganifado o
Toninho.
87
E o Rocha lançou-lhe a toalha ficando com uma das
pontas na mão, pronto a puxar. O Barbosa, já roxo, agarrou a
outra ponta que lhe ofereciam e, com a ajuda de uns e a força
do Rocha, encalhou na terra firme. Um grande alívio chegou
ao coração de cada um quando o Lula, especialista nestas
situações, pois escuteiro, lhe carregou na caixa toráxica,
fazendo-o expelir água espumosa em sucessivos gargalejos e
lhe restituiu a alma.
– Barbosa, que susto, ah? – murmurou o Lula dando-lhe
umas palmadinhas na barba encharcada.
– Estava a ver que íamos todos – comentava o Rubro
deitado na erva a bufar de cansaço e de pasmo.
– E o palerma do Rocha a olhar, como uma vaca para
um comboio! – regougou o Louro saindo da água com o
vermelhão excitado do rosto.
XXV
O relógio do Toninho marcava catorze e trinta quando,
dentro da Renault, partiu com o Rocha para o Rio Caldo. Os
restantes meteram-se no Mira-Rio, uns a conversar com o padre
da Caniçada, outros a gracejar com a Sandra, a simpática
menina do bar.
Estacionando junto à Casa do Povo de Rio Caldo,
esperaram aí a chegada das três miúdas, a Anabela, a Simone
e a Catarina, como haviam combinado no dia da sardinhada.
A demora prolongava-se e o Rocha perdia a paciência
arrefecida pelo paciente Toninho. Para minimizar o
desconforto da espera, este lembrou-se de treinar umas
manobras com o carro. Ia começar a tirar a carta e era bom
saber já umas coisinhas. Contrariado, pois não gostava que
ninguém lhe pegasse na viatura, o Rocha acedeu à ideia e
88
mudou para o assento do lado direito. Meia dúzia de
explicações e estava o Toninho a dar à chave e a enfiar a
primeira com um arranque suave pela berma.
– Trava-me essa porra! – ordenava o Rocha com receio
das possíveis consequências.
– Mas estava a ir bem...
– Estavas a ir bem contra aquela parede! Põe no ponto
de embraiagem e desliga o motor. Vou dar uma mija ali aos
arbustos.
– Vai lá, que eu espero aqui.
O outro foi e apareceram as miúdas na curva da estrada.
– Ei, Rocha, estão a chegar.
– Deixa-me dar a mija sossegado.
E continuou regando os arbustos a olhar o céu cinzento.
Choveria naquela noite e talvez na manhã seguinte. Haveria
que fazer um sulco à volta das tendas. Caso contrário, teriam
água nos cobertores. E o Rocha, que detestava sentir os pés
molhados.
– Esperaram muito? – perguntou a Simone aproximando-
se do carro com as outras.
– Não. Chegámos mesmo agora – respondeu o Toninho
saindo do carro. – Os outros não vieram, pois não cabiam todos.
Esperam na Caniçada.
Os beijos soaram entre as meninas e o Toninho enquanto
o Rocha se acercava apertando a braguilha sem qualquer pejo.
Beijou também as raparigas, limpando uma pinga de urina às
calças. Comentaram o tempo e entraram todos para a Casa do
Povo, pois a Catarina precisava de meter uns papéis relativos
à invalidez da avó na secretaria. Passado esse trâmite, que
durou quinze minutos e fez o Rocha revirar os jornais da
semana com o Toninho a coçar a barba que não tinha de
cotovelos fincados no balcão de atendimento, desceram para
89
o carro e arrancaram para a Caniçada.
Enorme algazarra abalou o café quando surgiram portas
adentro. Saltaram da cadeira o Lula e o Cordeiro aguados pelo
petisco que chegava tão fofo e formoso. A Sandra é que não
gostou nada das novas caras. Embatucou ciumenta vendo que
já não lhe davam atenção: «Preferem divertir-se a gargalhar
com aquelas peneirentas! Se soubessem quem elas são... E
agora põem-se a jogar as cartas! Até lhe lamberam a cara,
àquelas porcas. Um beijinho, para mim, um beijinho para ti!
E o Rocha mais o Louro no meio delas também, a sorrir como
se nunca tivessem visto mulheres. Os homens são todos iguais.
Mas tem-te, não caias. Eles hão-de fartar-se das pandorcas.
Vou ligar a televisão e metade deles foge já para aqui».
Assim o pensou, assim aconteceu. Porém, não tanto
como desejara. É verdade que cinco dos campistas se afastaram
da mesa das cartas e se acocoraram ao balcão de olhar fito na
TV. Porém, levaram com eles a Anabela. O regabofe foi maior
e os ciúmes da pobre Sandra aumentaram. Tinha de enfrentar,
rija, aquela basbaque, centro das atenções dos que tinha em
exclusivo por amigos seus.
Na mesa ao centro, jogavam à sueca animados o Rubro,
o Rocha, a Catarina e a Simone. Entre a batida das cartas e o
intervalo dos jogos ganhos sempre pelo par Rubro / Simone,
comentava-se o dia anterior e o que fariam nas jornadas
próximas.
– Amanhã à noite, quando voltarem da praia, podiam
passar na minha casa. É dia de cozer o pão, ofereço-vos uma
broa – disse a Simone deitando ás de paus na mesa que seria
cortado pela Catarina com um terno de trunfo.
– Fala-se com os outros. Amanhã estaremos só cinco. O
Toninho e o Barbosa vão-se embora. Assim caberemos todos
no carro e podemos aparecer na tua casa – considerou o Rubro,
90
que acabava de comer a bisca de ouros ao Rocha.
Os ponteiros do relógio do Toninho marcavam dezoito
horas e dez quando as miúdas, despedindo-se sob o olhar
rancoroso da Sandra à porta do café, partiram na Renault
escoltadas pelo Rocha e pelo Cordeiro.
A Sandra respirou fundo e a cor jovial e engraçada voltou
às suas faces morenas. Não lhe convinha nada perder a amizade
daqueles rapazes. Sabia-se lá, podia acontecer alguma coisa
bonita. O Rocha e o Louro não lhe tiravam os olhos de cima.
É porque estavam interessados. À noite haveria novamente
futebol, segundo combinaram com o Miguel. Uma boa altura
para docemente atacar. O Rocha ou o Louro? O que estivesse
mais a jeito.
XXVI
Enquanto o Rocha levava com o Cordeiro as visitantes
a Rio Caldo, os que ficaram meteram-se caminho abaixo em
direcção ao Boco. Convinha jantar cedo, pois o jogo de futebol
tinha sido marcado para as vinte e uma e trinta. E os da terra
queriam ganhar, para desforra da derrota anterior. Não
poderiam admitir que a melhor equipa da zona fosse
enxovalhada por meia dúzia de idiotas da cidade.
Os jogadores entraram no campo já a noite tinha invadido
a montanha. Do céu caía uma chuva forte, refrescante para
aqueles dias de calor abrasador e áspero. Não era motivo que
os fizesse desistir do encontro, perder a coragem de se
enfrentarem. Outras razões teriam influenciado essa atitude.
Desde a bola que não havia até ao campo que não estava
iluminado por entretanto ter falhado a energia. Mas tudo se
superou e a partida desenrolou-se bem.
O Rocha não jogava nem via o jogo. Abrigado num
91
recinto coberto ao lado do campo, brincava com dois cachopos
filhos de um jogador da equipa da Caniçada, uma menina de
três anos e um puto espevitado de quatro. Havia um suplente
da equipa. Não era o Louro, era o Toninho enregelado e de
braços cruzados no meio da chuva vendo o desenrolar do
desafio. E a Sandra, onde estava aquela energia inabalável?
Esvaecida na pedra de um abrigo, olhava, ora os mimos do
Rocha às crianças, ora os tiros certeiros do Louro nos passes
de grande perigo. A chuva caía sempre. Diabos levassem a
chuva, estragar assim os planos de uma pessoa! Se não
chovesse, que belo passeio poderia dar com o Rocha! Assim
nem coragem tinha para ir ter com ele. Mas que se lixe. Hoje
no café também fingiu que não a conhecia. Pôs-se todo falas
bonitas com aquelas lambisgóias de Rio Caldo. Que vá ter
com elas! De si não levava nada! Agora, o Louro tem sido
muito mais simpático. Ainda hoje a olhara várias vezes com
uma intensidade anormal, quando as remelentas estavam no
café. Ai os olhos dele! Tão azuis... E o cabelo amarelinho, tão
sedoso? Um bom par de pernas, bons músculos para chutar a
bola. Aquilo é que era um homem! Só tinha um defeito: não
sabia dizer aquelas palavras engraçadas do Rocha. O Rocha
incomodava-a no pensamento, dava-lhe a volta ao miolo. O
Louro punha-a doida noutras coisas. Era mais atrevidote nos
gestos, enquanto o outro era nas palavras. Um destes dias
enfiara-lhe a mão pelas pernas, o malandro.
Faltavam três dias para partirem. Se todos os santos
estivessem consigo, haveria ainda um romance. O Rocha? O
Louro? O Rocha era muito esquisito. Tanto estava bem como
estava mal. Hoje lembrou-se de não lhe ligar a ela, que tem
sido tão simpática para ele. Põe-se a brincar com a canalha. O
Louro não é tão meigo. Ora, os homens não precisam de ser
meigos. Basta o carinho das mulheres para completar.
92
Seis golos foram suficientes para arrasar a equipa da
casa, mesmo com a chuveirada nas orelhas e o lamaçal nos
pés. Mal soou o apito final, os jogadores meteram-se no
pequeno lago de cimento do padre Armindo e aí deixaram a
lama e o suor, um da vitória, outro da derrota, a segunda
consecutiva. Uma vergonha geral pairou na pouca assistência
que foi desconsolada para casa, como a Sandra dos seus
amores.
Satisfeitos, alegres, encharcados, os nossos amigos
deitaram-se como crianças fatigadas de brincar ao esconde-
esconde. Nessa noite todas as línguas repousaram cedo. Não
houve comentários, e de perturbações sonoras apenas o
ressonar do Louro forte e impiedoso.
XXVII
– Ei, cambada! Vamos a levantar.
Era o Rubro. Uma hora depois e já se encontravam
prontos para partir rumo ao mar, três na Renault e os restantes
no Peugeot do padre da Caniçada. O dia estava chuvoso,
nuvens cinzentas escondiam o céu, o que amedrontava o Rocha
na condução. Detestava conduzir em estrada escorregadia. As
suas apreensões acerca da possibilidade de a água entrar nas
tendas durante a noite não foram em vão. Choveu bem, não se
fizeram os sulcos e a água entrara. Nestes pensamentos rodou
vagaroso enquanto o padre lhe dava um avanço de dois
quilómetros.
Marcaram encontro na Rainha Fofa. Com certeza não
se perderiam um do outro. O Rubro pensava levar uma prenda
de aniversário para a Vânia. Comprariam um bolo aí. Talvez
o Daniel, aquele que lhes faltou com as sardinhas, lhes fizesse
um desconto razoável. Precisavam de chegar à praia antes do
93
meio-dia, o tempo suficiente de comer do que houvesse e
repartir a doçaria.
– O Rubro está mesmo apaixonado pela Vânia? –
perguntou o Toninho durante a viagem na Renault com o Rocha
e o Barbosa.
– Até chorou quando recebeu a carta dela a dizer-lhe
que só o queria para amigo – retorquiu-lhe o Barbosa que de
todos era o que estava mais dentro do caso.
– Mas o Rubro vai ansioso...
– Se gosta da miúda!... Também não é assim com duas
tretas que se esquece alguém a quem estivemos tão
intimamente ligados. E, que diabo, eles são amigos – explicou
o Rocha a meter a terceira numa curva.
– Fala a voz da experiência – exclamou o Toninho
sentado no banco da frente ao lado do Rocha.
A minha experiência é tanta como a tua. Também
passaste por coisas semelhantes.
– Já passámos todos – interveio o Barbosa.
– Mas o teu caso foi um capricho – acrescentou o Rocha
voltado para o Barbosa. – Eu sempre disse que não dava certo.
A miúda era uma quequezinha, só gostava de motinhas e
discoteca. Claro, tu não lhe deste nada disso, pirou-se.
– Então o Barbosa também andou a fazer das dele...
– Nada de grave. Mais grave é o caso do Rubro –
desculpou-se o Barbosa estendendo-se ao comprido no banco
de trás.
– Ó Toninho, é melhor pores o cinto de segurança. Não
vá aparecer a bófia – recomendou o condutor.
– Tens razão. Queres que te ajude a pôr o teu?
– Ora põe. Não consigo ver onde encaixa a anilha. Estas
curvas da estrada desequilibram-me. Estou aqui, estou com o
volante na mão e o carro contra um pinheiro.
94
– Deixa puxá-lo para o meu lado...
Com a confusão gerada por causa do cinto, o Rocha
distraiu-se e o carro resvalou na valeta, saiu da estrada e enfiou-
se pelo mato dentro, cortando tudo à passagem. Por que diabo
não travava o Rocha, antes acelerava ainda mais, era o que os
outros se perguntavam assustados com o que estava a suceder.
O Rocha descontrolou-se, perdeu a razão e já não sabia se
carregava no travão se no acelerador. Subitamente, dá uma
guinada à direcção e entra na estrada. Travão a fundo, uma
enorme chiadeira e o carro a fazer pirueta no meio da via,
mesmo em cima de uma curva. Sinistrados? Nenhum.
Amarelos como a lua cheia, saem da carrinha para avaliar os
estragos em si e no carro. Tudo bem, só um arranhão no pára-
choques da frente, algum mato e muitos fetos embrulhados
nas rodas.
– E se furou algum pneu?
– É cedo para ver. Mas daqui a bocado saberemos.
– Não se ouve nada – constatou o Barbosa aproximando
o ouvido das rodas.
– Pensei que tinha chegado a minha hora.
– Diabos levem os cintos e mais quem os inventou! Por
causa dessas nojentas correias, veríamos ainda hoje a face do
padre eterno.
– Estamos vivos, inteiros, o carro anda, isso é que é
importante.
– Sigamos. Os outros já devem ter chegado a Braga.
– Não percas a calma e conduz-me direito. Olhos na
estrada! Por hoje basta de emoções fortes.
– Tê-las-ás na praia ao veres aquelas beldades.
– A Vânia é boa?
– Come-se. Há melhor, mas tem um encanto interior
que cativa. Vais conhecê-la.
95
E o carro seguiu para o seu destino com os três a rirem
da pretensa desgraça que lhes acontecera. Que bom era estar
vivo!
O Peugeot do padre chegou a Braga numa grande
algazarra onde se distinguiam as palavras bola, golos,
ganhámos e fora de jogo. Deliravam contando ao padre o jogo
na noite anterior. Foi de quinze minutos a espera pelos
atrasados da pouca sorte diante da pastelaria Rainha Fofa.
XXVIII
A Vânia partira com o tio a buscar uns amigos à Póvoa
de Varzim. Eram colegas da escola de enfermagem no Porto e
convidara-os também para a festa do seu aniversário. Por isso,
quando os rapazes do Boco ancoraram na praia de Apúlia,
não a encontraram em casa. Daí a meia-hora comparecia ela
com o tio, um tipo desconhecido e um rancho de amigas.
Muitos abraços e muitos beijos se trocaram, a alegria invadira
os peitos. Quem não se conhecia apresentou-se e o padre da
Caniçada, sentindo-se a mais entre a juventude, resolveu partir
para Viana do Castelo. Não queria incomodar.
E que fez o Rubro perante a Vânia? Sonhara com ela
durante a noite, calculou pormenorizadamente o que faria e o
que lhe diria. Mas nada fez e pouco disse. Limitou-se ao que
os demais fizeram, isto é, um abraço, dois beijinhos e muitos
parabéns. No seu interior fervilhavam batalhas de sentimentos
e de emoções. A viola é que pagou com as favas. Tocou até
lhe romperem os dedos e rebentar o mi agudo. Depois havia
aquele idiota do Porto, sempre a atirar-se a ela, sem a deixar
um minuto sossegada. Que ciúmes o mordiscavam por dentro!
Que raiva de cachorro traído sentia no centro do peito pelado!
O parrana tivera a ousadia, a desvergonha de oferecer como
96
prenda de aniversário àquela que para ele era tudo umas
calcinhas e um sutiã de renda! Se era uma coisa que se
oferecesse à Vânia! Atitude mesmo baixa. Mas no Porto era
assim, não tinham um pingo de vergonha. Gajos oportunistas,
caçadores de indefesas donzelas... Se ela não estivesse tão
longe, nunca lhe teria fugido nem diria não ao seu amor.
O Rubro pensava. Pensava e até sorria ao cantarolar com
o Rocha e o Toninho as canções do Paul Simon. E o que
pensava a Vânia? Apenas se sentia feliz, nada mais. Uma
rapariga deveras original, sem qualquer ponto de referência
para possível comparação. Era diferente e foi isso que cativou
o Rubro. Dois inexperientes em assuntos de coração. Ele
ingénuo, ela ainda mais. O problema era que o pai da Vânia
não gostava do Rubro por ele ser preto. E o Rubro nem era
preto. Timorense de origem, um português como uns outros,
talvez um pouco mais escuro de pele. Mas preto não. E mesmo
que o fosse, não via que mal poderia estar nisso. Ora, a Vânia
não desejava entrar em conflito com o pai, desagradar-lhe.
Renunciou, disse ao Rubro que não gostava tanto dele como
pensara. E ele continuou só como antes, a aturar aqueles
amigos tresloucados e às vezes insuportáveis.
Como o sol despontasse pelas nuvens, sentaram-se todos
na areia da praia a olhar o mar, ora rindo, ora cantando o que
lhes viesse ao ouvido. A rapaziada do Boco lá se imiscuía
com a mulherada do grupo. Haviam almoçado na casa da
aniversariante. Os pais ficaram encantados com as visitas, os
irmãos e os tios também. «Gosto da rapaziada», dizia o pai da
Vânia ao Louro enquanto rilhava uma coxa de frango
churrasco, por lhe parecer ser o que tinha mais juízo. Afinal
de contas o Louro sabia dar-se a respeitar. Para os mais velhos
tinha a imagem de alguém que pensa na vida. E isso era
importante para o pai da Vânia, porque queria ver a filha bem
97
casada.
Mas ela, se bem que não gostasse de o desagradar, não
se regia inteiramente pelos desígnios do pai. Só pensava em
acabar o curso de enfermagem e ir para África. Queria dar-se
àqueles que precisavam. E achava justo darem-lhe liberdade
para o fazer. Contudo, ir para África era tão vago que lhe
deixava no espírito uma sensação de angústia. Para todos era
sorriso, doação, amizade. Coração grande, cabeça pequena.
A Vânia não era muito inteligente. Agia como lhe mandava o
coração e isso trazia-lhe confusões. Uma carta mal interpretada
e lá vinha um ror de problemas. A relação com o Rubro
também começou desse modo. Uma frase ambígua, duas
aquilo, três aqueloutro e lá estava ele caidinho já a pensar em
namoro.
Alguns foram cortar as ondas, os mais arrojados,
enquanto os indolentes descansavam na areia mole, a saborear
o calor tímido da tarde e o falar suave e terno das sereias ao
lado. Andava o Lula pela praia fora vestindo uns calções
vermelhos às pintas verdes da Vânia, pois esquecera-se dos
seus no acampamento. Ficavam-lhe a matar. Pelo menos assim
pensava a gordinha de olhos azuis que o acompanhava. «Pena
ser do Porto», reflectia ele puxando os calções para cima tão
macios.
XXIX
– Está na hora de partir – lembrou o Louro, revirando o
relógio no pulso a marcar dezanove horas.
– Fiquem mais um bocadinho! – insistiu a Vânia perante
todos à volta da mesa tomando o lanche na sala de jantar da
casa.
– Nós gostaríamos de ficar, mas daqui a pouco é noite e
98
a viagem torna-se arriscada na estrada para o Gerês. Além
disso, é preciso levar o Toninho à Póvoa. Os pais esperam-no
lá.
– Quanto ao Toninho, o meu tio, como vai levar as
minhas amigas à Póvoa, pode levá-lo também. Não leva tio?
– Levo – respondeu o de bigode a estilhaçar um bocado
de presunto com os dentes.
– Então está bem. Poupa-se tempo e gasolina.
– Como é? Vamos embora ou não? – interveio o Rubro
acordando não sabia bem de que sonho.
– Calma. Parece que tens pressa – advertiu o Louro.
– Tu é que estavas com pressa. Lembra-te que temos de
passar na casa da Simone para buscar o pão que ela prometeu.
– Então vamos já.
– Preparem-se para partir. Rocha, trata do carro. Agora
não temos o padre da Caniçada para nos levar de volta.
– Anda cá, Rubro, preciso de falar contigo – puxou-o a
Vânia.
– Que foi? Algum problema? – retrucou-lhe
aparentemente desinteressado do que ela pudesse dizer.
– O que tens tu? Pareces tão distante... Andas a evitar-
me?
– Que ideia! Tu é que fazes de conta que eu não existo.
Sempre com aquele idiota do Porto.
– Escusas de ser tão ciumento. Ele é só meu colega.
Estudamos juntos, nada mais. Convidei-o porque achei que
devia.
– Seja o que for. A mim também já não me afecta. A
vida é tua, faz dela o que te aprouver. Só desejo que sejas
muito feliz naquilo que escolheres. Mas isto já eu to dissera
na última carta.
– Pões-me triste, sabias? Hoje o dia foi tão bonito para
99
mim, com todos vocês a meu lado...
– Rubro, vamos embora – avisou o Louro interrompendo
a conversa. – O Rocha está a praguejar dentro do carro.
– Vou despedir-me dos outros também – disse a Vânia
seguindo o Louro com o Rubro atrás. – Não fiques assim,
Rubro, eu escrevo-te um dia destes.
Partiram deixando o mar e alguém de quem gostavam
muito. O Toninho, a Vânia, as outras amigas... Voltariam a
ver-se quando fosse possível e certas nuvens se tivessem
desvanecido.
A suspensão do carro chiou até Braga com seis
indivíduos metidos dentro. Respirou-se mais livremente e
sentiram-se menos atum enlatado após o Barbosa ter dito adeus
à malta parado num passeio da cidade de Braga. Não podia
ficar até ao fim do acampamento, tinha de trabalhar. Deste
modo voltaram aos fatais cinco elementos que nos primeiros
dias se não entenderam muito bem. Contudo, desde Braga à
casa da Simone em Rio Caldo cantaram e riram a bandeiras
despregadas. Até mesmo o Rubro, para quem o dia não fora
aquele com que tanto sonhara: ver a Vânia de novo, poder
contar-lhe do seu amor. Saíra de Apúlia decepcionado,
desforrava-se na viagem e na pinga que esperava beber em
casa da Simone, se fosse como estava a matutar.
XXX
Metendo-se por um caminho pedregoso, descobriram a
casa a quinhentos metros da estrada principal entre curvas e
montículos. Veio atendê-los uma senhora idosa, que depois
souberam ser a cozinheira. Logo lhes apareceu a Simone toda
pimpona com a Anabela, irmã mais nova, atrás:
– Estávamos à vossa espera. Disseram que chegavam às
100
nove, atrasaram-se meia hora. Isto é que é ser pontual?
– Desculpa lá, Simone. Como sabes, fomos até à praia.
Viemos agora. Mas se achas que é tarde, voltamos amanhã –
disse o Rubro à entrada da porta.
– Nada disso! Eu estava a brincar convosco. Entrem.
Levaram-nos para a cozinha enorme, com um forno de
lenha, uma lareira em pedra, a masseira, o ti Francisco e a ti
Ana cozinheira. Um casalinho que nada tinha de comum, pois
ele não passava de um criado velho e solteirão e ela de uma
viúva que morava ali perto e que, quando podia, ia tratar dos
tachos, principalmente quando era necessário cozer o pão. As
duas irmãs viviam ali nas férias com o avô, que àquela hora já
ressonava. Os pais encontravam-se no estrangeiro em férias,
deixando as filhas nesta aventura.
– Têm fome?
– Nem por isso. Comemos razoavelmente antes de
sairmos de Apúlia.
– De qualquer forma tenho aqui maçãs assadas que a ti
Ana preparou para vocês. Sentem-se, que vamos servi-los.
– Eu não digo que não – disse o Lula puxando uma
cadeira.
– Cá está um homem que não se recusa a nada –
comentou a Simone.
Todos se sentaram à mesa de carvalho enquanto a
Anabela, com o tabuleiro do forno nas mãos, ajudava a irmã a
deitar as maçãs bem cheirosas nos pratos.
– Ti Francisco, podia ir à adega buscar uma caneca de
vinho?
– Sim, sim, a pomada é que é importante – considerou o
Rubro debruçado sobre o pomo a fumegar.
– As maças estão boas – comentou o Louro baboso de
garfo em punho.
101
O velho foi e voltou com a fusa a espumar vermelho, o
elixir para um bom sono. De resto, todos estavam cansados.
– Cordeiro, tu não comes? – perguntou a Anabela de
sorrisinho no lábio.
– As maçãs têm um gosto esquisito.
– Esquisito? Pois eu acho-as deliciosas – acrescentou o
Lula censurando o companheiro. – E eu, que nem tenho grande
apetite.
– As minhas cheiram a... Olha, Anabela, importas-te de
me encher o copo? Vocês estão a gozar comigo.
– Mas ó Cordeiro, que estás para aí tu a dizer? Come e
cala-te – exclamaram os outros.
– Não, a mim é que não me impingem maçãs carregadas
de pimenta!
– Olha o maroto deu por ela! – gargalhou a Simone
divertida com a partida que lhe pregaram.
E os outros riram até se engasgarem com pedaços de
maçã e o verdasco espumoso. As miúdas apanharam de azagaia
o Cordeiro com maças cheias de pimenta. E o palerma a olhar
embasbacado sem saber o que fazer, se comer, se deixar ficar.
Enquanto comiam, o ti Francisco foi dissertando sobre
a vida do campo, o bom que era comer os produtos naturais
da terra e não aquelas porcarias que se vendiam na cidade
cheias de produtos químicos e feitas de plástico. O seu discurso
era entremeado com o esvaziar de um copo que enchia da
fusa de barro.
As maçãs ingeridas e emborcado o vinho, deixaram a
fusa solitária sobre a mesa de carvalho e foram para a sala de
visitas seguindo as duas irmãs. O ti Francisco, bêbado como
um cacho, enfiou-se na enxerga de sapatos e calças, depois de
a ti Ana ter ido para sua casa dormir também.
Na sala de visitas cada um instalou-se como pôde. Uns
102
nos sofás, outros no chão, travando aí longa conversa
alimentada com uisque, vinho do porto e biscoitos franceses
ao som do aparelho de música que vomitava muito baixo
música dos Century. Fartos da conversa fiada, o Cordeiro e a
Anabela saíram de mansinho e sorrateiramente entraram numa
divisão onde um órgão electrónico ocupava o espaço do lado
esquerdo da porta.
– Toca um bocadinho para mim – pediu o Cordeiro.
– Sei pouco. Não tenho tempo para praticar. Antes de
ter, queria um. Agora que tenho este, raras vezes lhe mexo.
– Que desperdício! Posso?...
– Claro. Mas baixinho, senão o meu avô ou o ti Francisco
podem acordar.
Sentaram-se os dois no banco e o Cordeiro desferiu as
primeiras notas de um coral de Bach que encantaram a miúda.
Ah! Tu tocas bem.
Por mais baixo que o volume estivesse, algumas ondas
sonoras sempre se escapavam do compartimento. E isso
aconteceu, indo uma ou outra alojar-se nos tímpanos do ti
Francisco, que, apesar da borracheira, acordou estremunhado
e a arrotar a verdasco. Lançou-se pelo corredor, abriu a porta
da saleta onde os pombinhos tocavam, estrebuchou e mandou
duas carvalhadas para o ar. Os outros, sobressaltados, saíram
para o corredor a ver o que se passava.
– Ti Francisco, o que foi desta vez? – perguntou a
Simone. – Não vê que acorda o avô?
– Vocês todos deveriam ir para os quintos dos infernos!
Já não se pode dormir nesta casa em sossego? Deixai estar
que o vosso pai há-de saber o que se passa. Meter drogados
dentro de casa!
– O ti Francisco está a ofender os meus amigos!
– A ofender o raio que os parta! Ide-vos embora,
103
malandros, deixai dormir a gente honrada!
De voz rouca, abriu a porta e saiu para o exterior,
descendo as escadas a trambolhar nos degraus.
– Vou regar o milho! – gritou.
– Anabela, Simone, que se passa aí? – resmungou o avô
de um quarto ao fundo do corredor.
– Nada, avô. Durma, fique descansado. É o ti Francisco
que está bêbado outra vez.
– Outra vez? Tenho de lhe fechar a adega. Ide-vos deitar,
que já é tarde.
– O melhor é a gente ir-se embora – aconselhou o Rubro
a meia voz –, para não piorar a situação.
– Quando se enfrasca é mesmo doido. Lembrou-se de ir
regar o milho a estas horas da noite.
– Porque é que não o põem na rua? – perguntou o Louro.
– Já faz parte da casa. É como se fosse da família. Viveu
sempre aqui, somos obrigados a aturá-lo.
Despediram-se. Era melhor não criar mais conflito com
o homem, deixá-lo a regar o milho e os feijões, se quisesse.
Com velhos borrachos não queriam problemas. Pegaram na
broa de pão que as duas irmãs lhes ofereciam e regressaram
ao Boco, marcando encontro para a tarde do dia seguinte na
Barca, «um sítio maravilhoso em Rio Caldo», esclareceu a
Simone ao dizer-lhes adeus.
XXXI
– O pão está azedo – constatou o Lula ao pequeno-
almoço quando provava um pedaço barrado com doce de
damasco.
– Deve ser do doce. Talvez esteja estragado. O calor foi
muito – esclareceu o Cordeiro.
104
– Não me parece. Acho que o defeito está mesmo no
pão. Ora prova, a ver.
– Eh, meu! Está mesmo contaminado.
– Contaminado? Contaminado por quê?
– Pelo micróbio. Ainda está em fermentação. Não foi
bem cozido ou então levedou mal. A ti Ana devia ter estado a
dormir quando tirou as broas do forno.
– Ei, cambada, o pão não se pode comer.
O Louro lavava meias, o Rocha punha toalhas a secar, o
Rubro esforçava-se por ver a cara no pequeno e único espelho
existente, analisando se a barba crescera muito durante a noite.
– Corta-me uma fatia – pediu o Louro aproximando-se
da mesa onde os outros dois preparavam o pequeno-almoço.
– Já disse que não se pode comer.
– Empresta-me a faca que corto eu.
Corta, cheira, mete à boca e, num gesto deslizante dos
maxilares, toma-lhe o gosto.
– Não, parece-me que está bom. Ora passa-me a
manteiga. Há quanto tempo não provava eu pão cozido em
casa de lavrador!... Está óptimo.
E afastou-se a trincar a fatia em grandes dentadas.
– Talvez seja por não estarmos habituados à broa –
arriscou o Lula.
– Eu cá não provo mais disso. Podeis comê-lo todo! –
Escusou-se o Cordeiro rebentando uma embalagem de bolacha
Maria para depois barrar com manteiga.
– Hoje e amanhã temos de gastar as batatas que ainda
restam – avisou o Rubro penteando a cabeleira negra. – Não
voltaremos para Braga carregados com elas.
– Dão, pelo menos, para três refeições – calculou o
Rocha.
– Então quer dizer que vamos comer só batatas hoje e
105
amanhã? Eu protesto! Prefiro arroz – espolinhou o Louro. –
Vim ao acampamento porque pensei que se comeria bem.
– E não tens comido?
– Que culpa temos nós de a tua barriga ser mais larga do
que a nossa e a tua língua ter um paladar selecto?
– Estás aqui, estás a sentir a força disto! – acrescentou o
Louro mostrando os punhos.
– Chiu! Não vamos recomeçar as discussões. Amanhã é
o último dia que estamos aqui. Seria bom partirmos de bom
humor e todos amigos – sermoneou o Rubro tirando um ponto
negro da testa. – Come-se batatas e pronto. O dinheiro que
deram para as despesas acabou. Quem achar que não está a
comer satisfatoriamente, pague do bolso.
A tarde desse dia passaram-na na Barca com a Simone,
a Catarina e a Anabela. Quem ficou contente foi o Cordeiro.
A Anabela ganhou um fraquinho por ele e ali estava toda a
sorrir-se como que a dizer, aqui estou, leva-me. Magrinha, um
bonito cabelo em caracóis, dentes pequeninos e direitos,
morena, voz branda e olhar meigo. O Cordeiro ganhou
confiança logo no dia da sardinhada. Mas foi quando elas
visitaram o acampamento que a intimidade cresceu. Estiveram
os dois a tarde toda, afora alguns minutos de banho, a
conversar, enquanto os outros, não muito distantes, recolhiam
estendidos no areal o sol jocoso e quente.
O Lula colocara-se à parte. Sentado numa pedra à beira-
rio, óculos escuros, admirava maravilhado um marmanjo inglês
– parecia – a manejar uma moto de água, último grito da técnica
japonesa. Era mesmo fixe. Lá ia ele a fazer uma curva perfeita.
Os saltinhos na água deveriam dar uma sensação porreira.
Tinha de ser uma Suzuki.
106
XXXII
A despedida na Barca foi para uns custosa, para outros
indiferente. Não havia nada a acrescentar, possivelmente nunca
mais voltariam a ver-se. Era o inconveniente das amizades de
férias. O Rocha não gostava de despedidas. Por isso não
esperou para beijar a Simone, a Catarina e a Anabela: meteu-
se no carro a fazer a inversão do sentido de marcha enquanto
os outros as beijocavam em grande alarido. Na verdade, era
ele o que se ressentia mais da separação das amigas fortuitas.
Claro que simpatizava com as raparigas. Mas era-lhe
intolerável naquele dia aguentar um adeus face a face. O
Cordeiro era diferente: gostava, mostrava-o nas despedidas
cheias de promessas, com muito abraços e beijinhos doces.
Os restantes eram um pouco mais discretos.
Estacionaram a Renault num snack-bar junto às pontes.
Havia uma esplanada com cadeiras de plástico branco a dar
para o rio. Aí se detiveram após a despedida das amigas,
pedindo ao empregado quatro finos, um Green-Sands para o
Cordeiro e cinco mistas. A fome assaltara-os na Barca e a
sede era pouco mais que insuportável. Ali corria uma brisa
ligeira: resquícios da chuva dos dias anteriores. Só tinham
receio de apanhar algum resfriado, uma vez que levavam sob
as calças os calções de banho molhados. Não houvera tempo
para os secar ao sol, pois o Louro e o Rubro quiseram partir
logo. Fartaram-se de estar de papo ao sol.
Estavam todos cansados das férias. Desejavam apenas
regressar, dormir na sua cama, comer da sua panela. Que se
lixassem os acampamentos. Eram bonitos, mas começavam a
aborrecer. Até das mulheres estavam enfastiados. Não podiam
de modo nenhum apresentar louros nesse aspecto.
107
O empregado levara-lhes mais quatro finos. As mistas
estavam demasiado esturricadas. Um fino mal chegava ao
fundo do esófago. Só três saciaram a sede descontrolada do
Rubro. Os outros contentaram-se com dois e o Cordeiro com
o Green-Sands (sempre tinha reacções secundárias menos
catastróficas do que a cerveja).
Tocados pelas asas de Baco, arrimaram ao Boco já o sol
descia preguiçoso. Umas batatas cozidas, o repolho que o
Louro comprara, uma lata de salsichas, as únicas duas cenouras
existentes completariam o espaço que restava das mistas e
dos finos no ventre de cada um. Comeram rapidamente,
lavaram a loiça – coisa de espantar –, porque havia filme de
vídeo no Mira-Rio. Pelo menos prometera-o o Miguel no
último jogo de futebol.
E lá está a fita, uma longa-metragem de Spielberg de
que todos ouviram falar: Os Salteadores da Arca Perdida. Mas
o Rubro não se deixou intimidar pelo título. Saiu para a
esplanada e pôs-se a ouvir um velhote a tocar cavaquinho.
Juntou-se-lhe depois o Rocha que também gostava dessas
coisas e até pedira ao tocador, num intervalo de rega-pra-
dentro, que o deixasse manejar o instrumento. O velho cedeu-
lho, mas a música não saía.
– Que tem isto, ó Rubro? Está desafinado.
– Palerma! Não vês que foi afinado noutra escala? Nem
as posições são iguais às da viola.
– Então toca tu.
– Eu toco nada. Dessa afinação percebo pouco.
– Ó sr. não sei quê, ensine-me o dó e o sol – pediu o
Rocha ao velhote.
– O dó e o sol? Eu não sei cá disso. O que eu sei é que é
assim. Ora olha para aqui: Ó Laurindinha, vem à janela. Estás
a ver?
108
– Sim, já percebi.
E esgalhou cantarolando o Meu Amor Fala Baixinho.
Os peregrinos da romaria a São Bento desciam em
grupos de três, de cinco, de dez a estrada rente ao Mira-Rio
onde os campistas do Boco faziam por se divertir. Cajado na
mão, ora conversavam, ora cantavam, ora mandavam piropos
às meninas do grupo, ora rezavam o terço. A principal festa
em honra do fundador dos beneditinos tinha a duração de uma
semana. Encerraria no domingo, com sermão e missa cantada.
Por isso o reitor andava tão ocupado. Trabalhava mais naquela
semana do que no resto do ano. Mal havia tempo para o repasto.
Mas depois também se desforrava no restaurante do hotel à
custa da confraria.
O Rocha abandonou o cavaquinho e pôs-se, sentado na
esplanada, a apreciar a passagem dos peregrinos. Era noite
mas sempre se patenteava uma ou outra perna boa sob as saias
das moçoilas que desciam para rezar ao santo ou, o que era
mais razoável, apanhar uns apalpões durante a noite no adro
da ermida de São Bento. Dentro do café via-se ainda o filme,
com gritinhos de algumas senhoras quando no ecrã apareciam
cobras a saírem de caveiras e homens a derreter como plástico
ao abrir-se a tampa da arca perdida. – O Spielberg é realmente
espectacular! – dizia o Lula, entusiasmadíssimo.
O Rocha é que não se deixava entusiasmar assim tanto
por uma fita de aventuras. Desvairava mais com um bom par
de membros inferiores do sexo oposto. Era como comer um
bife graúdo e tenro. Por detrás do balcão do café há muito
tempo já que a Sandra o mirava sem dar grande atenção ao
filme. Devagarinho, cautelosa, chegou-se a ele por detrás da
cadeira e tapou-lhe os olhos com as duas mãos carnudas. Ele
não se deixou intimidar: delicado e lânguido nos gestos,
109
deslizou os dedos, braço atrás da cadeira, pelas ancas rijas da
moça e viu que era mulher. Deveria ser a Sandra, pelos seus
cálculos. Por isso, dando inteira liberdade aos dedos, foi
subindo vagarosamente até ela reagir desimpedindo,
perturbada, o seu olhar:
– Sou eu!
– Ah, Sandra! Nunca imaginei. Pensava que era algum
dos meus companheiros. Tu desculpa-me, não era minha
intenção abusar a ponto de...
– A culpa foi minha. Não queres ver o filme?
– Já vi.
– Eu também. O meu primo trouxe-o a primeira vez há
pouco mais de um ano.
– A malta está entusiasmada lá dentro. Escuta a
algazarra.
– Pareces-me triste, abatido.
– Oh, não. Estava apenas para aqui a pensar.
– Em quê?
– Os peregrinos vão muito divertidos. Até dá a impressão
de que, em vez de penitência e oração, caminham para um
baile. Pensava em ti.
– Em mim?! E porquê?
– Amanhã partimos. Deixarei de te ver e tu a mim. Não
achas que é triste?
– Mas tu podes visitar-me quando quiseres. Tens o
número de telefone e, se desejares, dou-te a minha morada.
Também penso ir a Braga uma vez ou outra. Nunca nos
deixaremos de ver.
– Senta-te aí um pouco e faz-me companhia.
– Eu bem gostava. Até poderíamos dar um passeio pela
noite. Mas, sabes, tenho de voltar ao balcão para servir os
clientes. E hoje, que está a casa cheia!
110
– Que pena!
– Vou entrar. Talvez seja preciso lavar copos. Alguns
fregueses bebem como elefantes. Gostei muito de te ouvir dizer
que estavas a pensar em mim. Amanhã de manhã vai à missa.
Eu lá estarei e poderemos conversar no fim.
– Farei o possível. Se não me vires, é porque não fui.
– Que espertinho!
– Entra, entra, rapariga. O Rubro já deve estar com o
copo vazio.
– Não me chames rapariga que eu não gosto.
– Está bem, pombinha, vai lá.
Assim é melhor. Mais bonito.
E entrou deixando o Rocha ao ar da noite.
XXXIII
Ninguém estava disposto a ir à missa naquela manhã.
Apanharam a carraspana, queriam ficar a curá-la estendidos
no chão duro das tendas. Tinham ido para o acampamento
com cinco finos cada um, fora o Rubro, que levou sete, e
quando chegaram ainda abriram a garrafa do porto. Sobraram
ainda duas botelhas de tinto, restos da oferta do padre da
Caniçada. Dragá-las-iam ao almoço antes da partida.
Nessa noite o Rocha não bebeu leite. Quis, para não
contrariar, beber o mesmo que os outros. Era a última noite
que passavam juntos, haveria que ser solidário. No entanto,
foi ele o único a levantar-se. Embora o corpo recusasse, tinha
um forte motivo para o fazer: a Sandra, que esperava por ele
na igreja à hora da missa.
Aproximou-se em troco nu da margem do rio, toalha ao
ombro e estojo de higiene na mão. Olhou o céu azul, a verdura
dos montes à volta, o espelho do rio e respirou fundo depois
111
de se espreguiçar com alguma lentidão. Entre arrepios,
molhou-se, ensaboou-se e meteu-se na água, dando duas
braçadas silenciosas para se libertar do sabão. Metodicamente
enxugou-se começando pela cabeça, passando pelo pescoço e
pelos braços, o tronco e finalmente os pés. Desencantou uma
lâmina, espalhou o creme na cara e, diante do espelho de bolso
pendurado num arbusto, rapou os pêlos da barba numa mímica
facial de assustar meninos. Perfumou-se e voltou às tendas
para se vestir, vendo-se obrigado a passar por cima dos outros
para encontrar as calças e um par de meias mais ou menos
decentes.
Subiu até ao local onde costumava deixar o carro e
arrancou em direcção à igreja. O adro estava cheio de gente
que esperava a chegada do padre Armindo e o sinal do sino
para entrar. O Rocha estacionou junto ao cemitério, à frente
de um Mercedes de matrícula francesa e, ao deitar um pé de
fora, viu a Sandra que se aproximava.
– Bom dia. – saudou ela muito sorridente. – Então
sempre vieste.
– Eu sou um homem de palavra.
– E devoto também.
– Isso é que já é outra história. Mas tu estás muito bonita!
– Achas?
– Pois acho. Uma boa católica é aquela que se veste
bem para Deus.
– Ah! Mas eu não me arranjei para Deus.
– Então para quem foi?
O sino começou a tocar para a missa e estava na hora de
entrar.
– Sabes – disse ela –, não me apetece nada ir à missa. O
padre Armindo é muito aborrecido na homilia.
– Se quiseres podemos ficar aqui fora a conversar.
112
– Vamos dar um passeio por aí.
Ao lado do cemitério, descia um caminho de terra em
direcção ao rio. O Rocha encaminhou-se para aí e a Sandra
acompanhou-o. Ele não levou muito a sério ela ter-lhe metido
a mão no braço e o percurso foi ocupado com pequenos ditos
inócuos. Em cinco minutos chegaram à margem e sentaram-
se num tufo de erva que crescia entre os carvalhos e a água.
Foi então que ele lhe pegou na mão, a puxou para si e a beijou.
O beijo não foi grande coisa. A rapariga, ou não sabia
beijar, ou nunca tinha beijado nenhum rapaz. Apertava os
lábios com força num chilreio pouco natural. O Rocha largou-
a e pôs-se a olhar o rio com o sol a dar-lhe de oriente em tons
de prata. Ela ficou um pouco defraudada e perguntou:
– Por que me beijaste?
– Não sei. Talvez goste de ti.
– Não sabes se gostas de mim?
– E tu, gostas de mim?
Então ela deitou-lhe as mãos à cara, puxou-o para si e
beijou-o longa e profundamente. O Rocha nem queria acreditar
que a moça pudesse aprender tão rapidamente a arte da
sedução.
E ali estiveram todo o tempo que durou a missa.
Os outros tiveram um despertar pouco vulgar.
– Canalha nestes sítios? – questionou o Rubro ao ouvir
berros de crianças.
Novos vizinhos, era o que era. De certeza que tinha sido
obra do padre Armindo, o responsável da zona. Desde que
houvesse mulheres boas – pensava o Cordeiro – valeria a pena
ter vizinhos, nem que fosse só por uma manhã. Que revés terem
de deixar o Boco naquele dia!
Os potenciais novos vizinhos tinham ido sondar o local.
113
O marido e a esposa, um miúdo e uma garota, um par de
namorados, constituíam o grupo que descia pelo matagal a
cinquenta metros das tendas. Ignoraram a presença dos outros
campistas, deitaram uma olhada desconfiados às redondezas
e voltaram para trás.
– Tipos esquisitos. Será que vão acampar também? –
perguntou o Lula.
– Talvez. Está com eles uma gaja boa, mas parece que
já está servida – respondeu o Cordeiro.
– Que grande desconsolo!
O Rubro interrompeu-os dizendo:
– Há muito que fazer. Desmontar as tendas, enterrar o
lixo, enfardar as trouxas e preparar o almoço. Como um só
não pode fazer tudo, será melhor dividir o trabalho.
– Eu desmonto as tendas – ofereceu-se o Lula. – Fui eu
que as montei...
– É mentira! Tu nem sequer sabias onde encaixar os
ferros e como esticar as espias – contestou o Cordeiro.
– Estás para aí a peidar e nem por isso montaste a tenda
que trouxeste de casa. Foi preciso ser eu a fazê-lo. olha o
espertalhão. Vocês limitaram-se a ajudar.
– Acabai lá com o chinfrim. O Lula desmonta as tendas
e eu ajudo-o – interveio o Rubro.
– Eu queimo o lixo – prestou-se o Cordeiro pouco
conformado.
– Então cozinha o Louro – disse o Rubro.
– E quem lava a loiça que ficou de ontem à noite?
Silêncio sepulcral.
– Talvez o Rocha, quando chegar da missa – lembrou o
Lula.
– Sim, o Rocha. Afinal também tem de fazer alguma
coisa. Ir à missa não é serviço – aquiesceu o Louro.
114
– Pois então mãos ao trabalho. Lembrem-se de que
sairemos daqui após o almoço. O nosso serviço, além de
arrumar os trastes, é também carregá-los para cima.
– Porcaria de seca! A descer bem se trouxeram. Para
subir com tudo vai ser o caneco.
– Depois pensamos no problema. Agora toca a mexer.
Se acabarmos cedo, ainda damos um mergulho.
O labor começou e cada um fazia o que lhe estava
destinado na maior das algazarras. Só o Louro descascava as
batatas embeiçado. Considerava-se o mártir daquele
acampamento. Ao menos isso, já que não pôde sobressair
noutros quesitos.
Andavam eles em tais jornadas quando viram descer
novamente pelo carreiro os forasteiros que os acordaram.
Acompanhava-os o padre Armindo. Terminada a missa, foi
indicar aos novos vizinhos o local que poderiam utilizar para
montar as tendas. Feito isso, o padre Armindo despediu-se
dos forasteiros e juntou-se à rapaziada. Aí soube que partiriam
na tarde daquele dia e compreendeu a dificuldade de terem de
carregar as tralhas até ao caminho plano. Resolveu poupar-
lhes o esforço oferecendo-se para descer de jipe a carregar
tudo. Felicíssimos por tão agradável prova de estima, marcaram
para as catorze o carregamento.
– Cá estarei – confirmou o padre desaparecendo entre
as árvores.
Pouco depois chegava o Rocha de ar ausente, aceitando
lavar a loiça sem qualquer protesto, coisa que muito fez
espantar os companheiros.
115
XXXIV
– O Rubro e o Rocha demoram – comentava o Cordeiro
impaciente.
– Devem estar à trela com o padre da Caniçada.
– Assim nem à noite saímos daqui – rematou o Lula
sentado em cima das tendas enfardadas.
O jipe, às catorze horas, embrenhara-se no Boco e
transportou para cima todo o material de campismo,
depositando-o com os três rapazes no campo de futebol. E o
Rubro e o Rocha? Tinham ido na Renault despedir-se do padre
da Caniçada à casa paroquial, remetendo-lhe também as
garrafas vazias, oferta oportuníssima quando cheias para o bom
relacionamento e harmonia comunitários. Mas demoravam e
essa demora importunava os restantes, pois a ânsia de partir
era imensa. Que poderiam fazer?
Estacionada a carrinha, retiraram a caixa das garrafas
vazias, tocaram à campainha e o padre mandou-os subir.
Conversa daqui, conversa dali, eram quinze e pico quando
abalaram refugados com um uisque. Foram ter ao campo de
futebol dissipando o desespero dos outros três e despediram-
se do padre Armindo agradecendo os serviços prestados, quer
no arranjo do local para acampar, quer no transporte das
trouxas. Que não era nada, disse o padre, que podiam contar
sempre com ele. Para o ano, se quisessem, poderiam voltar.
Seriam bem vindos.
As despedidas mais aborrecidas eram no café. Havia o
Miguel, o pai, a mãe, a Sandra e possíveis individualidades da
aldeia a digerir o almoço melhorado do domingo alapados às
mesas em conversas triviais. Muitos cumprimentos, obrigado
116
por tudo, benza-os Deus, etc. e tal, e partiram quatro para as
Cerdeirinhas na Renault: o Lula, o Cordeiro, o Rubro e o
condutor. Ficou o Louro em terra. Como não cabiam todos no
carro com as trouxas, combinaram a viagem deste modo: o
Rocha levava os três às Cerdeirinhas e estes iam andando a pé
na estrada para Braga. Entretanto o carro voltava à Caniçada,
carregava com o material e o Louro e partia para a cidade. Aí
descarregaria e voltava, a procurar os outros e apanhando-os
onde estivessem.
O Rocha largou então os três nas Cerdeirinhas,
regressando à Caniçada. Coadjuvado pelo Louro, carregou a
viatura, abandonou o campo de futebol e estacionou no Mira-
Rio. Ainda nenhum dos dois se havia despedido da Sandra,
que dormitava atrás do balcão quando entraram.
– Sandra – chamou o Rocha –, viemos dizer-te adeus.
– Ah?
– Estavas a dormir? – acrescentou o Louro.
– Não, estava a pensar. Vocês vão, eu fico... Foi bom
ter-vos conhecido. Considero-vos os rapazes mais engraçados
e mais porreiros que até hoje conheci.
– Não vais ter saudades, ou vais? – ironizou o Louro.
– Ficamos sempre com saudades dos momentos bem
passados. E vocês vieram alegrar esta chateira, trazer um pouco
mais de animação.
– Mas, ó Sandra, todos os dias passam por aqui tantos
turistas...
– Turistas! Ninguém os entende. Que me interessa entrar
por aqui dentro dois alemães muito giros se eu não lhes sei
falar? Vocês são turistas raros. Há poucos turistas por esta zona
a falar português.
– E aqueles que hoje chegaram ao Boco? Podes travar
novos conhecimentos.
117
– Sim, mas eu com mulheres não me entendo. Os homens
que há são comprometidos... Porque é que vocês não ficam
mais uns dias?
– Eu, por mim, ficava – disse o Rocha. – Só que o Rubro
e o Louro não poderiam continuar cá. Têm trabalho em Braga.
– Pois temos, Sandra – confirmou o Louro já farto da
despedida. Simpatizava com a miúda, mais não era para estar
ali uma eternidade. Havia que despachar, pensar um bocado
nos outros que iam a pé em direcção a Braga com aquele calor.
– Ide, então – ordenou ela de voz arrastadamente
melancólica.
– Não fiques assim. Havemos de nos ver qualquer dia –
acarinhou o Rocha.
– Prometem escrever-me?
– Pois claro que prometemos – exclamou o Louro, que
já tinha decidido não pensar mais nela.
– Fico à espera.
Saíram do café com a Sandra a acompanhá-los. O Louro
entrou para a carrinha e o Rocha ainda ficou uns momentos
ao pé da rapariga, sem saber bem o que dizer.
– Prometes que me vens visitar? – perguntou ela.
– Logo que possa, passarei por cá para te dar um beijo.
– Só um beijo?
– Vá, todos os que tu quiseres.
Abraçou-a, deu-lhe um beijo na testa e dirigiu-se para o
carro. O Louro olhou-o espantado, mas não disse nada.
O carro arrancou e desapareceu na curva acima do café. Lá
ficou a Sandra a dizer adeus, reconfortada por aquele abraço. Do
beijo é que não gostou tanto. Agora cairia na costumada letargia
da Caniçada em tempo de férias. «Ah! Se as aulas começassem
amanhã!...» Ao menos haveria alguém com quem conversar. Ali,
só se fosse com as moscas, com os tios ou com os patuscos
fregueses que iam matar a sede ao fim da tarde.
118
XXXV
O Louro despiu a camisa. O calor no interior do carro
era de esturricar. Havia música a sair da radiola como refresco
apetecido. O Rocha, ora virando à esquerda, ora à direita
consoante as curvas, cantarolava distraído os rockes que o
locutor ia apresentando. Na parvalhice daquele andamento
chegariam à cidade por volta das dezassete horas. Sobejava
tempo ainda para inverter a marcha e apanhar os outros que, a
dois quilómetros atrás, caminhavam ensonados e sedentos sob
a aridez da paisagem e da tarde.
– Que diabo, podias ter avisado – exclamou o Louro.
Avisado de quê?
– Que andavas a comer a prima do Miguel.
– Que disparate! Não houve nada entre nós.
– Estás a querer fazer de mim cego?
– Nada, nada. Somos apenas amigos.
– E foi preciso abraçá-la?
– Ora, a moça estava tão triste...
– Pois, pois. Estava triste e tu, claro, quiseste reconfortá-la.
Entraram em Braga e o Louro vestiu a camisa. Não queria
dar escândalo no meio da Avenida, mesmo dentro da Renault.
Foram então descarregar o material ao Colégio de São Caetano,
instituição onde o Louro trabalhava e se hospedava em tempo
de aulas. Os apetrechos de cozinha e uma tenda emprestaram-
nos os superiores da casa. Lá ficou o Louro a transportar tudo
para a portaria do colégio, enquanto o Rocha, ganhando fôlego,
se atirava de novo à estrada para apanhar os três desgraçados.
Desgraçados? Aqueles três que, coitadinhos, se meteram
ao caminho numa tarde escaldante de Agosto? Era o que
faltava. Foi encontrá-los confortavelmente sentados na
119
esplanada de um café à face da estrada onde, segundo criam,
passaria a carrinha para os apanhar. Se tinham transporte
garantido, iriam eles esforçar-se com aquele calorão? Nada
como uma cervejinha gelada à sombra de um sobreiro. O
Rocha vem? Deixá-lo vir. Far-lhe-iam sinal quando o
avistassem na estrada.
E assim aconteceu. Só que o Rocha fingiu não os ver e
seguiu em frente. Os rapazes desesperaram: aflitos com a
desatenção do condutor, desataram a correr estrada fora
estacando de boca aberta no meio da faixa de rodagem.
– Merda! Eu bem vos disse para não irmos ao café –
disse o Lula.
– Tem calma. Ele, não nos vendo, volta para trás.
E o Rocha, apanhando o sítio a jeito, inverteu o sentido
de marcha e rodou pacato até à esplanada do café.
– Então, meus figurões? Em vez de irem andando
sentam-se a ver quem passa?
– Fartámo-nos de andar.
– Fartaram-se de andar dois quilómetros? São muito
fracos de pernas, não haja dúvida. Tenho muita pena de vocês.
– Já pensávamos que não nos tivesses visto.
– Por acaso vi. Mas foi pena. Porque doutro modo iriam
para Braga a pé que era um consolo. Entrem, ou querem que
os traga ao colo?
E seguiram na maior das algazarras até à cidade.
Que mais aconteceu naquele dia? Arrumaram
convenientemente o material, jantaram e, para colmatar dia
tão excitante, foram ao cinema ver um filme pornográfico.
Nada como o orgasmo sentido de fora para coroar esta
aventura. A Sandra é que não gostaria nada, se soubesse.
120
EPÍLOGO
A aventura no Boco terminou. Ficaram recordações e o
convívio mais ou menos positivo. Aqueles dias repercutiram-
se para além das férias, nos dias normais, naqueles momentos
em que os sete companheiros se reviam. A comunidade que
nunca conseguiram ser no Seminário, conseguiram-na cá fora,
no mundo, apesar de todos os limites e das diferenças de cada
um. Era realmente uma comunidade de indivíduos que se
estimavam, que gostavam de estar juntos, de partilhar a tristeza
e a boa disposição.
Aconteceu então que os sete voltaram à vida de todos
os dias, com os sobressaltos normais da idade. E as restantes
personagens desta crónica? Aquelas que foram mais ou menos
acidentes onde o grupo tropeçara, pretexto para, cenário
humano indispensável a uma história bem encadeada?
O romance da Maria João e do Carlitos acabou com a
primeira a casar com o Almerindo numa grande boda celebrada
pelo reitor de São Bento. O Carlitos, muito aborrecido com
isso, dedicava os seus tempos livres a uma morena divorciada
que fazia desfiles de moda e era proprietária de uma loja de
lingerie no centro da cidade.
Um romance que ocupou algumas páginas desta crónica
foi o do Rocha com a Nancy, a menina alta e doce. O Rocha
soube, depois das férias e por intermédio da Guidinha, que a
Nancy tinha abortado e que os pais adoptivos a meteram num
colégio de regime muito rigoroso donde sairia apenas quando
completasse dezoito anos. Mesmo sabendo disto, ele decidiu
ir visitá-la, mas a freira da portaria disse-lhe que não podia
ser: que voltasse daí a três anos. E ele nunca mais voltou.
121
A paixão do Rubro pela Vânia, a menina que estudava
no Porto para enfermeira, foi-se dissolvendo até à indiferença.
Acrescente-se apenas que se viram mais uma vez, como
amigos, e que ela se deixou levar por um fulano da Madeira,
ficando pouco depois descomprometida por se ter zangado
com ele. «É aluada, não sabe o que quer», ouviam o Rubro a
comentar, engolindo em seco.
As meninas de Rio Caldo, Simone, Catarina e Anabela,
tão queridas dos campistas do Boco, depressa foram
esquecidas. Eram das tais porreirinhas para dois dias de
conversa. Depois já não interessavam. Foi, no entanto, ponto
assente, que entre a Anabela e o Cordeiro houve mais qualquer
coisa. Mas a rapariga nem se dignara escrever quando ele
esteve quinze dias de cama com pneumonia. A ele também
não lhe interessava por aí além. Tinha uma mais bonita na
terra.
E para acabar em flores, seria forçoso falar da Sandra, a
servente do café Mira-Rio. Começou a trocar correspondência
com o Rocha e foi a Braga umas tantas vezes para o ver. Como
ele não estava interessado em namoro seguro, achou-se na
obrigação de lhe dizer que já tinha namorada, o que parece
que não era verdade. A rapariga, porém, não desertou e
continuou a escrever-lhe. Transcreve-se um extracto de uma
dessas cartas que vem muito a propósito para rematar o epílogo:
Querido Alberto:
Vou dizer-te o que achei de vocês. Todos foram
estupendos, mas principalmente tu, que foi com quem mais
simpatizei. Quando vos vi pela primeira vez, olhei para vocês
como olho para qualquer outra pessoa. Nunca pensei que por
detrás daquelas carinhas existisse tanta simpatia e meninos
122
com um espírito tão animado. Quando o meu primo Miguel
me disse quem eram, eu fiquei com uma vontade enorme de
vos conhecer melhor.
Naquele dia em que eu fui ver o futebol e tu eras o único
que não estava a jogar, apeteceu-me ir ter contigo para
conversar. Passados aqueles primeiros momentos, eu fiquei
com a ideia na cabeça de que poderias ser um verdadeiro
amigo e que merecias toda a minha confiança. Só não gostei
que me tratasses como uma criancinha. Em certas coisas ainda
sou mais adulta do que tu...
Durante aqueles dias, eu tomei conhecimento com os
outros e também os achei simpáticos. O Cordeiro era um
bocado parvo, exagerado nas ideias e não era tão aberto para
com as pessoas. O Lula, esse era o máximo: simpático e
brincalhão. O Louro foi o segundo de quem eu mais gostei.
Achei-o muito calmo e calado. O Rubro parece que andava
um bocado triste. Eu tentei saber porquê, mas ele não me quis
dizer. Deve ser coisa de amores. O Toninho e o Barbosa é que
não conheci lá muito bem, pois mal chegaram foram-se logo
embora. Mas pareceram-me afáveis.
Passaram-se assim quase oito dias e então, quando
chegou o dia de vocês partirem, foi tão triste... Mesmo triste.
E tu foste embora e esqueceste-te totalmente de mim. Só te
recordaste quando eu escrevi uma carta muito zangada.
Foi tão bom estar com vocês!... Podes acreditar. Só é
pena ter durado tão pouco. Cada vez que me lembro daqueles
momentos, tenho vontade de chorar.
Braga – Horta, 1987-1988
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