desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem
sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria
comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos
eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que
ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade,
saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de
acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o
camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido
declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os
dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...
Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze
inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca
mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a
morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da
nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para
aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito
de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com
flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da
balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre,
uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e
rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito
como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida,
sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação
espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível
imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.
Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para
assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não
tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às
cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel
social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do
camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso
de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da
implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da
felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento
do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças
que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais
de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja
voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de
resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa
que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça
protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça