Download PDF
ads:
47
Cristina Magaldi
No final do século XIX, a seção de atrações teatrais nos jornais do
Rio de Janeiro oferecia aos Cariocas um número grande de opções.
Em abril de 1888, por exemplo, residentes da capital podiam
escolher entre a “premiére” da zarzuela La Gran Via, de Chueca e
Valverde no teatro Lucinda; a paródia em versão de revista,
entitulada O Boulevard da Imprensa, por Oscar Pederneiras no
teatro Recreio Dramatico; a tradução da comédia Tricoche e
Cacolet, de Meihac e Halevy no teatro Santana; a revista Notas
Recolhidas, de A. Cardoso de Menezes no teatro Sant’anna; ou um
concerto de orchestra organizado por Arthur Napoleão, no
Cassino Fluminense. Em julho do mesmo ano, cariocas que
gostavam da música de concerto podiam ouvir Mendelssohn,
Haydn, Mozart, e Beethoven num concerto regido por Cavalier
Darbilly apresentado no teatro São Pedro de Alcântara. Em
agosto, uma companhia italiana abria a temporada de ópera no
teatro D. Pedro II apresentando várias óperas de Verdi e de outros
mestres do bel canto italiano
1
.
Chiquinha Gonzaga
e a música popular no Rio de Janeiro
do final do século XIX
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
48
de artistas e intelectuais,que começavam a olhar para a cultu-
ra afro-brasileira com uma curiosidade quase científica. Ao
aparecer no palcos cariocas e fazer furor com a população,
danças remexidas como fandangos, fados, batuques, e jon-
gos,eram na maioria das vezes apresentadas como intermezzos
ou no final de peças teatrais como elemento cômico. Desta
forma, contrastando com árias de ópera e canções líricas de
cunho Europeu, o elemento negro era caracterizado como
exótico e deviante da cultura européia civilizadora.
A música popular que emergiu no final do século XIX,
portanto, refletia a síntese das músicas apresentadas nos tea-
tros da capital,e era o resultado das aspirações artistícas, inte-
lectuais, e políticas da nova burguesia brasileira.
O início da carreira musical de Chiquinha Gonzaga
(1847-1935) serve como exemplo. Reconhecidamente uma
das personalidades mais importantes da música brasileira no
final do século XIX e começo do século XX, Chiquinha foi
aluna do imigrante português Arthur Napoleão,um pianista
virtuoso e prolífico compositor de peças de salão. Napoleão,
que fez do Rio de Janeiro a sua moradia desde 1868, atuou
também no comércio e publicação de música,e como organi-
zador de concertos de música clássica na capital brasileira. A
sua atuação nos meios musicais e artísticos cariocas era reco-
nhecida não somente nas altas rodas sociais, mas também
pelo imperador, que lhe concedeu a Ordem da Rosa.
Chiquinha iniciou sua carreira seguindo as pegadas de seu
professor; ela atuou como pianista em salões e escreveu um
grande número de composições para piano no estilo europeu
que eram tocadas em reuniões sociais e familiares das classes
média e alta Carioca. Napoleão se engarregou da publicação
e distribuição das primeiras composições de Chiquinha,
como as valsas para piano Plangente e Desalento, que apare-
ceram numa colecão de danças para piano, Alegria dos
Salões, ao lado de peças de Strauss, do Italiano Luigi Arditi, e
dos franceses Henri Hertz e Joseph Ascher.
Ao mesmo tempo que Chiquinha Gonzaga publicava
valsas, ela também se ocupava escrevendo peças para o tea-
tro,como tangos e habaneras no estilo das danças trazidas ao
Rio de Janeiro por companhia espanholas de zarzuela (e com
sucesso em Paris). Mesmo assim, seus tangos Seductor e
Sospiro, publicados por Arthur Napoleão na década de
1880, apareceram em coleções para piano ao lado de peças
sta proliferação de atrações teatrais e musicais tradu-
ziam o caráter nitidamente cosmopolita do Rio de
Janeiro nas últimas décadas do século. Gêneros e
estilos musicais de várias partes do mundo chegavam à cida-
de em grandes números,e especialmente aqueles em voga em
Paris. Os compositores brasileiros deste período que hoje são
caracterizados como populares” saíram dessa tradição urba-
na e eminentemente cosmopolita; suas obras refletem os gos-
tos de uma classe média emergente que procurava um meio-
termo entre a tradição operistica e de concerto européia, e as
músicas das ruas da capital, particularmente aquela derivada
da tradição afro-brasileira. No final do século, portanto, a
linha divisória entre a música popular, música tradicional e
música erudita ainda não estava totalmente delineada; a
música não erudita era aquela que circulava em grandes
números e por publicações baratas,arranjadas e simplificadas
para atender um número grande de consumidores. Mas esta
distinção não se aplicava claramente ao gênero ou estilo musi-
cal: um tango, uma valsa ou uma canção operistica em italia-
no agradavam igualmente ao público carioca.
As danças em voga nos palcos do Rio de Janeiro neste
período eram as mesmas danças de sucesso nos teatros pari-
sienses, como a polca,o tango, e a habanera – as duas últimas
chegavam à capital brasileira pelo circuito Espanha-Paris-
Rio
2
.Portanto,a popularidade do tango neste período não
refletia necessariamente uma tendêcia para a nacionalização
da música popular, mas refletia o gosto da burguesia carioca
que acatava amplamente as modas musicais provenientes de
Paris. Fora do teatro,estas danças entravam nas salas de visi-
tas da burguesisa através do piano,e lá subiam de status como
música digna de admiração e respeito.
Nos palcos do Rio de Janeiro a música e dança européias
confluiu com estilizações locais da música negra que permea-
va as ruas da cidade. É importante ressaltar que o elemento
negro dessa emergente música popular não era advindo das
autênticas rodas de batuques e de capoeira Afro-brasileiros,
mas de adaptações desta música para o palco,feitas para agra-
dar uma burguesia predominantemente branca, cujo gosto
musical era constantemente regido por ditames parisienses.
Na realidade, a inclusão de danças de origem Afro-brasileira
nos teatros cariocas refletia o momento político do pais, a
eminente abolição da escravatura, e um interesse particular
E
ads:
49
extraídas da ópera Carmem e de uma ver-
são estilizada da zamacueca chilena escri-
ta pelo violinista Cubano José White.
Em 1885, Chiquinha Gonzaga escre-
veu asica para a opereta A Corte na
Roça, com texto de Palhares Ribeiro. A
peça foi apresentada no teatro Príncipe
Imperial como “opereta em 1 ato de cos-
tumes brasileiros”. A ação da opereta se
passava na “fazenda das Cebolas, em
Queimados e tinha a participação de
“roceiras e roceiros. Para a opereta Chi-
quinha escreveu umas composições o
cunho caracteristico da música de estilo
brasileiro anunciava o critico do Jornal
do Commercio
3
.Mas o seu lundú e cateretê final,apimen-
tados como o descreveu o anúncio do jornal, servira para
caracterizar o roceiro – aquele que vivia fora da zona urba-
na – e não a música dos cariocas cosmopolitas. Para estes,
cantou-se no intervalo árias de ópera italiana e cançonetas
francesas, bem urbanas e cosmopolitas.
Um ano mais tarde Chiquinha Gonzaga atingiu o seu
maior sucesso quando compôs algumas peças para a revista
A Mulher-Homem, escrita por Valentim de Magalhães e
Filinto de Almeida e posto em cena “com todo luxo em janei-
ro de 1885 no teatro Sant’anna
4
.A revista baseava-se num
escândalo que se passou em 1885,quando um homem vesti-
do de mulher tentou conseguir emprego de doméstica. Em
volta deste evento principal, A Mulher-Homem também
comentava, parodiava, e satirizava eventos políticos recentes,
principalmente a lei dos sexagenários que emancipava escra-
vos com mais de sessenta anos. Mas apesar da revista ter
como fio condutor um texto totalmente localizado, os seus
32 números de música incluiam um coquetel de árias e aber-
tura de óperas,como a abertura da ópera La Gioconda de A.
Ponchielli e a marcha da opera Le Prophète de Meyerbeer
5
.
No final da peça aparecia o número cômico: um jongo escri-
to por Henrique de Magalhães entitulado “Jongo dos pretos
sexagenários”. Como era de costume, cariocas ouviam estes
números apimentados” como peça de fechamento, que ale-
gravam e divertiam uma platéia predominantemente burgue-
sa. O elemento afro-brasileiro era desta forma distanciado da
realidade, visto como interessante com
tanto que fosse exótico.
Dois meses depois da abertura d’A
Mulher Homem, um novo número final
foi adicionado à revista, entitulado “Um
maxixe na Cidade-Nova. Para este qua-
dro final, Chiquinha Gonzaga e
Henrique de Magalhães escreveram
música para caracterizar a zona pobre da
cidade, especificamente a parte chamada
cidade nova, onde um maxixe era um
evento dançante da classe baixa com a
participação de negros, mulatos, e imi-
grantes portugueses. Na revista,o maxixe
incluía danças como “fados e jongos de
negros. Um crítico local descreveu as novas peças como
“composições que têm um toque especial…que pode ser visto
nos seus requebros rítmicos. O crítico conclui ressaltando
que talvez haja um elemento lascivo nestas danças, mas não
se pode negar a graça e o encanto que vêm naturalmente do
nosso caráter e do nosso povo
6
.” Emb or a o maxixe tenha sido
apresentado ao público como cena final,com o objetivo espe-
cífico de fazer a população rir e se exaltar, talvez tenha sido
esta aceitação do crítico local um primeiro indicativo de que
o elemento afro-brasileiro, e não as árias e cançonetas euro-
péias, podia caracterizar uma suposta brasilidadena música
popular.
NOTAS
1
To d a s e s t a s atrações foram anunciadas no Jornal do Commercio, de
abril a agosto de 1888.
2
Paulo Roberto Peloso Augusto, “Os Tangos Urbanos no Rio de
Janeiro: 1870-1920, Uma Análise Histórica e Musical, Revista Música
8/1-2 (maio/nov, 1997): 106.
3
Jornal do Commercio, 23 de Janeiro de 1885.
4
Jornal do Commercio, 16 de fevereiro de 1886.
5
A denominação dos números de música aparece no Jornal do
Commercio, de 13 de janeiro de 1886.
6
Jornal do Commercio, 15 de fevereiro de 1886.
Cristina Magaldi é professora de história de música na Towson
University, Universidade Estadual de Maryland, EUA.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo