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Escola rural: um sonho a ser conquistado
Ana Maria de Oliveira Lopes(1)
Eudson de Castro Ferreira
É possível educação rural sem definição e aplicação de políticas agrária e agrícola que garantam
a sustentabilidade dos produtores rurais e do meio ambiente?
É intrigante o cenário da ocupação das terras brasileiras. O INCRA (Instituto de Colonização e
Reforma Agrária) estima em 400 milhões de hectares as terras agricultáveis e cadastradas no
país. Os estabelecimentos patronais, em número de 500 mil, ou 7,14% do total dos imóveis,
retêm 75% da área agrícola cadastrada, o equivalente a 300 milhões de hectares. O imóvel
familiar, 2,5 milhões de estabelecimentos, que correspondem a 21,42% dos imóveis, contam com
22,5% da área total, ou seja, 90 milhões de hectares. Em contrapartida, 4 milhões de imóveis
subfamiliares, que correspondem a 71,4% do total dos estabelecimentos, contam apenas com
2,5% da área cadastradas, ou 10 milhões de hectares(2).
Os dados revelam que todos os imóveis familiares no Brasil, ou seja, 93,4% dos cadastrados,
retêm apenas um quarto da área total, enquanto os imóveis patronais, que representam apenas
7,14% do total dos estabelecimentos, possuem três quartos da área total cadastrada. Evidencia-
se, desta forma, que a concentração da terra, que sempre foi altíssima no Brasil, continua sendo
um fenômeno histórico injusto e persistente.
Diante do cenário grosso modo esboçado, caberia perguntar: há políticas agrária e agrícola no
Brasil? E se existem, a quem beneficiam? É sabido que, se por um lado os 7,14% dos imóveis
rurais patronais são assistidos por linhas de crédito para a realização de seus empreendimentos
agropecuários, por outro lado os 93,4% dos imóveis familiares carecem de política adequada que
lhes garanta a permanência e o êxito de seus negócios no campo. E mais, embora exista política
de apoio financeiro aos empreendimentos patronais, contudo, não há, na prática, mecanismos de
acompanhamento e controle de aplicação dos recursos e, menos ainda, de avaliação dos custos
sócio-ambientais.
As conseqüências mais imediatas desse "descuido" têm sido o aprofundamento da dívida social,
da concentração de renda e riqueza, do crescente volume da dívida interna e externa, do
aumento assustador da pobreza da população. Estas são algumas das situações que têm
acentuado cada vez mais o distanciamento da maioria da população rural da conquista e
exercício da cidadania.
Nossa vivência e estudos realizados com a população rural fortalecem-nos a convicção de que o
campo continua desassistido de políticas governamentais e colocado a serviço do mundo urbano.
Em conversas com parceleiros do assentamento de Reforma Agrária, Confresa Roncador-MT, no
exercício de escutar, e aprendendo a ouvir, registramos o seguinte depoimento:
"Professor, aqui na terra já produzimos quase tudo para viver. Falta pouco, falta o querosene, o
sapato pros filhos, o pano pra roupa, a pilha do rádio. Como o senhor vê, falta quase nada. Isso
custa pouco. Dá pra adquirir com uns R$ 25,00 por mês. É o que falta. O resto a gente faz..."
(3)
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Este relato foi consenso no grupo de trabalhadores que participou do debate. Todos insistiram na
idéia de que no campo se vive com pouco. Mas, esse pouco que lhes garante a reprodução
familiar, lhes é negado. Certamente, para lhes assegurar o êxito em seus negócios rurais, caberia
acrescentar um pouco mais de crédito, de assistência técnica, de orientação para o manejo, uso e
conseqüências dos agrotóxicos, bem como o pouco de sementes, armazenagem,
comercialização e, fundamentalmente, de terra. Neste mesmo sentido do pouco que lhes falta
para permanecerem e produzirem na terra, persiste a ausência de política para a saúde,
saneamento básico, orientação e cuidado mínimo com a água, com o esgoto e lixo. Da mesma
forma, a educação, a assistência social, o lazer, o transporte, a comunicação e a energia elétrica,
entre outros bens e serviços, se existem, continuam desvinculados da realidade rural, vivendo os
produtores familiares um abismo entre seus sonhos e a dura realidade.
Diante do contexto até aqui minimamente pontuado, caberia indagar: é possível fazer a
ultrapassagem desta realidade? No trabalho de campo, temos constatado que a resposta, no
cotidiano da comunidade rural, não é animadora, continuando a gerar uma situação sem
perspectivas, como comprovam os depoimentos que abaixo registramos. De um professor de São
Félix do Araguaia, MT, ouvimos:
"Não temos o que fazer. O povo tá fugindo da terra. Agora não temo gente, não tem terra, não
tem que comer. A escola não funcionou. A terra não dá. O fogo acabou com a mata. Veio o pasto
que também foi embora; só ficou cupins. Então pergunto: o que vamo fazer? Pra onde vamo"(4)?
De um professor de Confresa, registramos:
"Aqui tem muito pobrema. Saída não tem não. Veja lá, quando a planta dá, não tem como vendê.
Veja o caso da banana: o cumpadre prantou 50 hectar de banana. Colheu um absurdo. O macaco
comeu quase tudo. Saiu pouco pra rua, quase nada. Só prejuízo. Mas minha dor maior é com a
escola e a água. A escola tá ruim. Água não tem não. Então, tem que dar um jeito na escola, mas
tem que resorver o pobrema da água".
A professora de Confresa, disse-nos o seguinte:
"Larguei tudo: meus pais, minha casinha, meus amigos pra acompanhar meu marido que veio no
sonho da terra. Aqui chegando, só o chão. Derrubamos, fizemos o rancho, jogamos a semente no
chão. Agora, professora, a banana, a abobra, o arroz e a criação do terreiro, já temos. O pobrema
é que tenho filhos. Quer escola. A que temos, oferece pouquinho, até a 4
a
. série só; eu sou a
professora e tenho pouco estudo. Agora pergunto: onde vou levar meu filho pra estudar?
Abandonar tudo outra vez?
Uma professora de Ribeirão Cascalheira, MT, relatou-nos:
"Preocupo-me muito com minhas crianças da escola. A distância que separa a casa deles da
escola varia de 10 até 15 Km. As crianças chegavam na escola cansadas, desanimadas, sem
condições de aprender. Os alunos do turno da manhã saiam muito cedo de casa, sem comida e
chegavam tarde na escola. Os da parte da tarde tinham que sair cedo da escola, para não
chegarem tarde em casa. O que fazer diante disto? Inventamos um jeito. Os pais trazem as
crianças no domingo. Elas ficam comigo segunda, terça, quarta e quinta feira. Os pais pegam os
filhos na quinta à tarde. Para as crianças melhorou. Para mim, o trabalhou dobrou. Além de cuidar
do estudo das crianças, cuido da alimentação, do pouso, ficando, ainda, com a responsabilidade
de cuidar das crianças o tempo todo. Do jeito que tá, também não é solução?"
Os depoimentos apresentados revelam problemas que nos deixam ora perplexos, ora desafiados.
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Perplexos, em razão dos discursos oficiais que se apresentam com "conteúdo sério e rigoroso",
ao propor políticas e soluções aos problemas da população rural. Desafiados, quando
constatamos, através de nossa vivência e dos depoimentos recolhidos, que as políticas propostas
não passam de discursos e promessas; quando aplicadas, são paliativas e descoladas da
realidade. Assim, o discurso oficial, que propõe solucionar problemas e ampliar os horizontes dos
produtores familiares, continua frustrando a população rural que continua sem solução para as
dificuldades enfrentadas, e cada vez mais distanciada da realização do sonho de viver e trabalhar
na terra.
Com toda certeza, a dimensão e complexidade dos problemas devem provocar nos atores sociais
a busca de soluções alternativas. No caso específico da educação rural, que vem ocorrendo de
forma desarticulada por falta de um projeto comprometido com a especificidade do homem e do
ambiente rural, o processo a ser construído, necessariamente, deve ser original e coletivo, tanto
em sua formulação, quanto na execução e avaliação. Comungamos com o ponto de vista dos
educadores Francisco Gutiérrez e Cruz Prado, quando afirmam: "Nenhuma educação e, menos
ainda, aquela orientada a trabalhar com os setores populares, pode desvincular-se do pedagógico
entendido como promoção da aprendizagem produtiva."(5)
Mas, o que significa promoção de aprendizagem produtiva? Respondem Gutiérrez e Prado:
"Facilitar, acompanhar, possibilitar, recuperar, dar espaço... inquietar, problematizar, relacionar,
envolver, comunicar, reconhecer, comprometer, entusiasmar, apaixonar, amar."(6)
O projeto "Educação Rural", que está sendo desenvolvido em Mato Grosso, vem assimilando, no
processo de sua execução, os componentes teóricos e metodológicos acima propostos. O
processo integra os prefeitos municipais, os secretários municipais de educação e sua equipe
técnica, os professores rurais, os alunos, a comunidade, a Secretaria Estadual de Educação e a
equipe de projetos do Escritório Regional da UNESCO de Mato Grosso.
O objetivo da proposta consiste na construção coletiva do projeto de escola rural. Projeto que se
afirma a partir da edificação da identidade da escola e da emancipação da comunidade. Projeto
que se faz através da universalização do acesso, da permanência e da continuidade dos alunos
nos sistema escolar. Faz-se, também, na busca de conquista permanente de valorização dos
profissionais da educação, na conquista de um currículo que incorpore em sua matriz os valores,
os conhecimentos e as habilidades que garantam a evolução dos alunos e da comunidade. Mas,
a construção deste projeto exige alternativas diferenciadas de organização escolar, de
investimento dos recursos financeiros e materiais e de compromisso dos profissionais da
educação.
Em São Félix do Araguaia esta proposta está sendo construída, com êxito, há um ano e meio. O
tempo ainda é curto para avaliar, com profundidade, até onde os atores envolvidos no projeto já
assimilaram a proposta em sua plenitude, para comprovar que os ganhos são significativos.
Contudo, os resultados preliminares comprovam conquistas relevantes neste curto tempo de vida.
A reflexão e o debate liderado pela escola nas comunidades rurais suscitou uma revisão do
projeto político de desenvolvimento do município: hoje se discute em São Félix do Araguaia um
plano estratégico de desenvolvimento colado com as necessidades vitais da população. Na
mesma ordem das conquistas iniciais, verifica-se uma mudança de postura pedagógica,
envolvendo os pais de alunos, os professores, os "co operadores" – aqueles que operam juntos -,
os técnicos e as autoridades. Em São Félix do Araguaia, o Projeto Rural alterou a organização
das escolas: o calendário escolar assumiu as demandas especificas das comunidades, o Ensino
Fundamental passou a atender os alunos a partir de seis anos de idade, passando de oito para
nove anos a duração do Ensino Fundamental. As classes escolares são organizadas por faixa
etária, e por ciclos de formação. Foi eliminada a reprovação do aluno, valendo-se de uma nova
filosofia de avaliação que valoriza cada aluno, observando seu ritmo de aprendizagem, suas
habilidades e seu potencial. Em São Félix, no Projeto Rural, denominado "Escola Tibicyrá, a
comunidade escolar já definiu os conhecimentos de passagem de cada ciclo, as habilidades e os
valores que deverão ser construídos ao longo do Ensino Fundamental. Tudo leva a crer que o
caminho do projeto alternativo para a Escola Rural está sendo construído com êxito. Sem
ufanismo, com humildade, admitimos que o caminho em construção merece ser palmilhado.
Podemos concluir, invocando Carlos Rodrigues Brandão quando escreve em Lutar com a
Palavra:
sagrado é o trabalho
do sonho do homem
o que faz o mundo e o homem
a quem chama por um nome
e faz portanto ser de novo
sagrado como o homem
o que um dia há de cruzar a ponte
e agarrar com as mãos
as pontas do horizonte.
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(01) - Ana Maria de Oliveira Lopes, pedagoga e técnica de projeto do Escritório Regional da
UNESCO/MT, coordenadora do projeto Educação Rural, convênio UNESCO/SEDUC/Municípios
de São Félix do Araguaia, Confresa e Ribeirão Cascalheira/Brasil/MT. Eudson de Castro Ferreira,
professor adjunto aposentado da UFMT, membro da UNESCO no referido convênio.
(02) - Dados trabalhados a partir do Documento FAO/INCRA – Diretrizes de Política Agrária de
Desenvolvimento Sustentável. Versão Resumida do Relatório Final do Projeto UTF/BRA/036 –
nov/94.
(03) - Trabalho de Campo – Pesquisa Impactos dos Assentamentos Rurais. GERA/Nov./98.
(04) - Os relatos apresentados são retirados do trabalho de campo do Projeto Educação.
UNESCO/SEDUC/PREFEITURAS MUNICIPAIS, Set/99.
(05) - Gutierrez, Francisco e Prado, Cruz. In: Ecopedagogia e Cidadania Planetária. São Paulo,
Cortez Editora, 1999, pag. 59.
(06) - Gutiérrez e Prado, op. cit. p. 60.
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