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O papel social da educação infantil (1)
Sonia Kramer (2)
"Filhos da sensatez, justiça e muito amor
Netos de boa herança, frutos da sã loucura
Fortes, sadios, lindos, pretos brancos ou índios
Os meninos do Brasil pedem para desfilar"
"Os meninos do Brasil, têm a cara do Brasil,
o jeitinho do Brasil" (Gonzaguinha)
No Brasil, creche e pré-escola são diferenciadas ora pela idade das crianças - (a creche atenderia
crianças de 0 a 3 anos e a pré-escola de 4 a 6); ora pelo modo de funcionamento (a creche teria
atuação em horário integral e a pré-escola meio período); ora pela instância administrativa a que
se vincula (a creche se subordinaria às instituições médicas ou assistenciais, a pré-escola à
educação). Hoje, no Brasil, diversas instituições se referem à creche ou pré-escola usando um ou
outro critério, de modo que esta é uma denominação ainda pouco uniforme para os que atuam na
área e para a população em geral. A partir de meados dos anos 80, os movimentos em defesa
das populações infantis com vistas à Constituinte e à nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, vêm usando a expressão "educação da criança de 0 a 6 anos" ou "educação infantil"
para designar o trabalho em creches e pré-escolas(3), expressões que se consolidaram em
documentos oficiais.(4)
Creches e pré-escolas são modalidades de educação infantil. O trabalho realizado no seu interior
tem caráter educativo e visa garantir assistência, alimentação, saúde e segurança com condições
materiais e humanas que tragam benefícios sociais e culturais para as crianças. Hoje, apesar da
ambigüidade dos nomes, entendemos como creche o espaço para crianças de 0 a 3 anos e pré-
escola para crianças de 4 a 6 anos, de meio período ou horário integral, cuja responsabilidade é
ou deveria ser assumida pela instância educacional pública. Creches e pré-escolas são
instituições de educação infantil a que todas as crianças de 0 a 6 anos têm direito.
importância da educação da criança de 0 a 6 anos - seu papel social
A
educação infantil tem papel social importante no desenvolvimento humano e social. A prioridade
é a escola fundamental, com acesso e permanência das crianças e aquisição dos conhecimentos,
mas a luta pela escola fundamental não contraria a importância da educação infantil – primeira
etapa da educação básica – para todos. Em trabalho recente, Campos (1997) sintetizou os
principais resultados de pesquisas feitas na Grã-Bretanha, Estados Unidos e América Latina, que
avaliaram os efeitos da freqüência a programas de educação infantil sobre o desenvolvimento e a
escolaridade posterior de crianças de diversas origens sociais, étnicas e culturais. Concluiu que a
freqüência à pré-escola favorece resultados de testes realizados no início da escolaridade formal;
as crianças mais pobres parecem se beneficiar mais dessa experiência, sendo a qualidade da
pré-escola e da escola essencial. Embora a posição dos países sobre a educação da criança
variem com a conjuntura política, para Campos a educação infantil se configura como uma das
áreas educacionais que mais retribui à sociedade os recursos nela investidos, contribuindo para o
desempenho posterior. Mas os argumentos mais fortes e contundentes sobre a importância da
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educação infantil se situam no plano dos direitos sociais da infância, de sua cidadania.
A Constituinte de 1988, as Constituições Estaduais, as Leis Orgânicas dos Municípios, o Estatuto
da Criança e do Adolescente e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional asseguram hoje
o direito de todas as crianças a creches e pré-escolas. Mas em termos quantitativos esse direito
legal está longe de ser realidade, embora haja consenso quanto à sua importância. De uma
população de 21 milhões de crianças de 0 a 6 anos (12 milhões de 0 a 3 anos e 9.539.656 de
crianças de 4 a 6 anos), apenas 25.07% freqüenta creche ou pré-escola: 47.80% das crianças de
4 a 6 anos, mas apenas 7.57% das crianças de 0 a 3. Esses 25,07% indicam que estamos longe
de uma situação democrática, mas avançamos muito, pois em 1975 apenas 3,51% de crianças de
0 a 6 anos recebiam atendimento, inclusive da rede privada.
Mas qualquer educação infantil contribui para o desenvolvimento humano e social? Também em
termos qualitativos o trabalho realizado em creches e pré-escolas não é ainda democrático:
muitas têm apenas caráter assistencial ou sanitário, que são importantes mas não substituem a
dimensão educativa, social e cultural, cruciais para favorecer o desenvolvimento das crianças e
seu direito de cidadania. A educação infantil como espaço de socialização e convivência, que
assegure cuidado e educação da criança pequena, não é ainda realidade das creches e pré-
escolas brasileiras.
infância e cultura - outros espaços de educação infantil
As crianças são seres sociais, têm uma história, pertencem a uma classe social, estabelecem
relações segundo seu contexto de origem, têm uma linguagem, ocupam um espaço geográfico e
são valorizadas de acordo com os padrões do seu contexto familiar e com a sua própria inserção
nesse contexto. Elas são pessoas, enraizadas num todo social que as envolve e que nelas
imprime padrões de autoridade, linguagem, costumes. Essa visão de quem são as crianças -
cidadãos de pouca idade, sujeitos sociais e históricos, criadores de cultura - é condição para que
se atue no sentido de favorecer seu crescimento e constituição, buscando alternativas para a
educação infantil que reconhecem o saber das crianças (adquirido no seu meio sócio-cultural de
origem) e oferecem atividades significativas, onde adultos e crianças têm experiências culturais
diversas, em diferentes espaços de socialização.
Muitos estudos criticam a dominação que ainda está presente na educação infantil; o
adultocentrismo marca as produções teóricas e as instituições. Reconhecer na infância sua
especificidade - sua capacidade de imaginar, fantasiar e criar - exige que muitas medidas sejam
tomadas. Entender que as crianças têm um olhar crítico que vira pelo avesso a ordem das coisas,
que subverte o sentido da história, requer que se conheça as crianças, o que fazem, de que
brincam, como inventam, de que falam.(5) Nesta concepção de infância, história e linguagem são
dimensões importantes de humanização: há uma história a ser contada porque há uma infância
do homem. Se compreendermos as crianças, compreenderemos melhor nossa época, nossa
cultura, a barbárie e as possibilidades de transformação. Para a educação infantil desempenhar
seu papel no desenvolvimento humano e social é preciso que a criança não seja vista como
filhote ou semente, mas como cidadã criadora de cultura, o que tem implicações profundas para o
trabalho em creches, pré-escolas e outros espaços, de caráter científico, artístico ou cultural, já
que "as crianças se sentem irresistivelmente atraídas pelos destroços que surgem da construção,
do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Nestes restos que
sobram elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e só para
elas. Nestes restos elas estão menos empenhadas em imitar as obras dos adultos do que em
estabelecer entre os mais diferentes materiais, através daquilo que criam em suas brincadeiras,
uma nova e incoerente relação. Com isso, as crianças formam seu próprio mundo das coisas,
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mundo pequeno inserido em um maior" (Benjamin, 1984, p. 77).
As crianças precisam criar, construir e desconstruir, precisam de espaços com areia, água, terra,
objetos variados, brinquedos, livros, jornais, revistas, discos, panos, cartazes, e também espaços
cujo objetivo é a experiência com a cultura, a arte e a ciência, de que com freqüência as crianças
pequenas são alijadas: mesmo nas grandes cidades, a maior parte dos locais está longe de
contemplar as necessidades das crianças de 0 a 6 anos. Falta nos nossos municípios valorização
de espaços de arte, história e cultura; faltam brinquedos e/em praças e parques; brinquedotecas e
locais para crianças pequenas em clubes, museus, bibliotecas, hospitais, postos de saúde,
bancos - instituições para onde as levam os adultos por longos períodos de tempo. Mesmo as
escolas, creches e pré-escolas precisam de espaços de brincar, garantindo o direito das crianças,
e prestando relevante serviço às famílias.
infância e educação: desafios e possibilidades hoje
Muitos são os desafios das políticas sociais para a infância. Questões relativas à situação política
e econômica e à pobreza das nossas populações, questões urbanas e sociais, problemas
educacionais específicos assumem proporções graves e exige respostas firmes e rápidas, nunca
fáceis. Muitas são também as possibilidades de enfrentar a questão. Hoje, vivemos o paradoxo de
ter um conhecimento teórico avançado sobre a infância, enquanto assistimos com horror a
incapacidade da nossa geração de lidar com as populações infantis e juvenis. De que modo as
pessoas percebem as crianças? Qual é o papel social da infância na sociedade moderna? Que
valor é atribuído à criança por pessoas de diferentes classes e grupos sociais? O que significa ser
criança em diferentes culturas? Como trabalhar com crianças pequenas, considerando seu
contexto de origem, seu desenvolvimento e os conhecimentos, direito social de todos? Como
assegurar que, diante da diversidade das populações infantis e das contradições da sociedade
contemporânea, a educação cumpra seu papel social? Este texto não responde a essas
questões, mas se sente comprometido com elas e com uma sociedade fundada no
reconhecimento do outro, nas diferenças (de cultura, etnia, religião, gênero, classe, idade) e na
superação da desigualdade.
A população brasileira, a partir da progressiva consciência de seus direitos e da participação em
movimentos sociais, teve papel central numa das maiores conquistas da educação infantil no
Brasil: o reconhecimento, na Constituição de 1988, do direito à educação de todas as crianças de
0 a 6 anos e do dever do Estado de oferecer creches e pré-escolas para tornar fato este direito.
Movimentos sociais e instâncias públicas (municipais e estaduais) vêm se esforçando no sentido
de expandir com qualidade a educação infantil e enfrentar os desafios que se colocam. Pela
primeira vez na história da educação brasileira, 1994, foi formulada uma política nacional de
educação infantil, com diretrizes para a formação dos profissionais.
Mas, a fim de que a educação infantil de qualidade seja de fato direito de todos coloca-se como
desafio urgente, a formação profissional de todos os professores: formação como direito à
educação, de todos (crianças, jovens, adultos e dentre eles os professores); formação nas áreas
básicas do conhecimento (língua, matemática, ciências naturais e ciências sociais); e formação
cultural, com oportunidade de se discutir valores, preconceitos, experiências e a própria história.
Formação entendida como qualificação, na melhoria da qualidade do trabalho pedagógico, e de
profissionalização, garantindo avanço na escolaridade, carreira e salário. Formação que implica
em constituir identidades, ponto crucial frente à crescente evasão de professores. Formação que
– seja continuada (com novas propostas pedagógicas), seja inicial (em escolas de formação de
magistério e na universidade) - garanta espaço para a pluralidade e para que professores narrem
suas experiências, reflitam sobre práticas e trajetórias vividas, compreendam a sua própria
história, redimensionem o passado e o presente, ampliem seu saber e seu saber fazer. Formação
permanente exercida com condições dignas de vida e de trabalho e concebida no interior de uma
política cultural sólida e consistente.
No entanto, hoje não há previsão orçamentária ou dotação de recursos financeiros específicos
para a educação infantil. E recursos são cruciais, de modo a que não tenhamos apenas uma
conquista formal. Se as crianças são cidadãs e a educação infantil é seu direito, não destinar
recursos é abrir mão de concretizá-lo; é negar esse direito às populações infantis. E o custo social
deste descaso será inestimável. A formação cultural das crianças e seus professores é direito de
todos pois todos - crianças e adultos - são sujeitos históricos e sociais, cidadãos produzidos na
cultura e criadores de cultura. Cidadãos que têm direitos sociais, entre eles o direito à educação.
Bibliografia
BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo, Summus, 1984.
CAMPOS, Maria Malta. A constituinte e a educação da criança de 0 a 6 anos. In:
Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 59, p. 57-65,
novembro 1986.
___. "Atendimento à infância na década de 80: as políticas federais de
financiamento" In: Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Carlos Chagas, n. 82, p. 5-
20, agosto 1992.
FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981.
FRIEDMANN, Adriana et alii. O direito de brincar: a brinquedoteca, São Paulo, Scritta/Abrinq,
1992, p. 21-59
JOBIM E SOUZA, Solange. Infância e linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. Campinas,
Papirus, 1994.
KRAMER, Sonia & JOBIM E SOUZA, Solange. Educação ou tutela?: a criança de 0 a 6 anos. São
Paulo: Loyola, 1988
KRAMER, Sonia. e LEITE, M. I. Infância: fios e desafios da pesquisa. Campinas, Papirus, 1996.
KRAMER, Sonia. e LEITE, M. I. Infância e Produção Cultural, Campinas, Papirus, 1998.
KRAMER, S, LEITE, M. I., GUIMARÃES, D. NUNES, M. F. Infância e educação infantil Campinas,
Papirus, 1999.
KRAMER, Sonia. Por entre as pedras: arma e sonho na escola, São Paulo, Ática, 1993.
MEC/SEF. Por uma política de formação profissional de educação infantil, Brasília, 1994.
MEC/SEF. Educação infantil no Brasil: situação atual. Brasília, 1994b.
___. Política nacional de educação infantil. Brasília, 1994c.
___. Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos
fundamentais das crianças. Brasília, 1995b.
___. Propostas pedagógicas e currículo em educação infantil. Brasília, 1996.
01 – Enviado a convite para a Revista Textos do Brasil, Brasília, Ministério das Relações
Exteriores, 1999.
02 – Professora do Departamento de Educação da PUC-Rio, onde coordena o Curso de
Especialização em Educação Infantil.
03 – A expressão "educação infantil" foi cunhada a partir das discussões em torno da Constituinte
de 1988 e da LDB. Ver entre outros, CAMPOS, Maria Malta. A Constituinte e a educação da
criança de 0 a 6 anos. In: Cadernos de Pesquisa, São Paulo, Fundação Carlos Chagas, no 59, p.
57-65, nov 1986; KRAMER, Sonia. Criança e legislação: a educação de 0 a 6 anos. Em Aberto,
Brasília, ano 7, no 38, p. 33-38, abril-junho 1988; KRAMER, Sonia. Políticas de Educação para
crianças de 0 a 6 anos no Brasil: o desafio de construção da cidadania. In: KRAMER, Sonia, A
política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce. São Paulo, Cortez Editora, 1992, 4
a
edição, p.
119-131.
04 – Entre nós, "educação da 1
a
infância" não é usada nem nos meios acadêmicos nem nos
documentos oficiais.
05 – Ver: JOBIM E SOUZA, 1994; KRAMER e LEITE, 1996; KRAMER, 1993.
* Coordenadora do Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas e
Conselheira do Conselho Estadual de Educação de São Paulo.
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