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FREYRE
GILBERTO
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Ministério da Educação | Fundação Joaquim Nabuco
Coordenação executiva
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier e Isabela Cribari
Comissão técnica
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier (presidente)
Antonio Carlos Caruso Ronca, Ataíde Alves, Carmen Lúcia Bueno Valle,
Célio da Cunha, Jane Cristina da Silva, José Carlos Wanderley Dias de Freitas,
Justina Iva de Araújo Silva, Lúcia Lodi, Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero
Revisão de conteúdo
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier, Célio da Cunha, Jáder de Medeiros Britto,
José Eustachio Romão, Larissa Vieira dos Santos, Suely Melo e Walter Garcia
Secretaria executiva
Ana Elizabete Negreiros Barroso
Conceição Silva
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Mário Hélio Gomes de Lima
FREYRE
GILBERTO
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Fundação Joaquim Nabuco. Biblioteca)
Lima, Mário Hélio Gomes de.
Gilberto Freyre / Mário Hélio Gomes de Lima. – Recife:
Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.
160 p.: il. – (Coleção Educadores)
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7019-523-4
2. Freyre, Gilberto, 1900-1987. 2. Educação – Brasil– História. I. Título.
CDU 37(81)
ISBN 978-85-7019-523-4
© 2010 Coleção Educadores
MEC | Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana
Esta publicação tem a cooperação da UNESCO no âmbito
do Acordo de Cooperação Técnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo a
contribuição para a formulação e implementação de políticas integradas de
melhoria da equidade e qualidade da educação em todos os níveis de ensino formal
e não formal. Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos
contidos neste livro, bem como pelas opiniões nele expressas, que não são
necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organização.
As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo desta publicação
não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO
a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região
ou de suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites.
A reprodução deste volume, em qualquer meio, sem autorização prévia,
estará sujeita às penalidades da Lei nº 9.610 de 19/02/98.
Editora Massangana
Avenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540
www.fundaj.gov.br
Coleção Educadores
Edição-geral
Sidney Rocha
Coordenação editorial
Selma Corrêa
Assessoria editorial
Antonio Laurentino
Patrícia Lima
Revisão
Sygma Comunicação
Ilustrações
Miguel Falcão
Foi feito depósito legal
Impresso no Brasil
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SUMÁRIO
Apresentação, por Fernando Haddad, 7
Ensaio, por Mário Hélio Gomes de Lima, 11
Primeira parte: o aprendiz, 11
Espelhos e mosaicos, 11
Manchas e contornos, 15
Caricaturas e traços, 18
Bosquejos e linhas, 22
Siluetas e perfis, 26
Segunda parte: o mestre, 30
Pontos e texturas, 30
Anáglifos e simulacros, 33
Escorço e camafeu, 37
Relevos e dioramas, 40
Arabescos e filigranas, 44
Terceira parte: o mestre-aprendiz, 48
Vinhetas e figuras, 48
Emblemas e panoramas, 51
Pautas e colagens, 55
Estilo e retrato, 62
Textos selecionados, 65
Palavras às professoras rurais do Nordeste, 65
Nacionalismo e internacionalismo
nas histórias em quadrinhos, 79
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Paz, guerra e brinquedo, 90
Em torno de alguns aspectos do que precise de ser
educação de jovens e de não jovens para uma época
de tempo mais livre, 93
Antropologia e reforma do ensino, 104
Unidade, pluralidade e educação: o caso do Brasil, 110
Anísio Teixeira, renovador da educação
e reformador social, 124
Em torno da situação do professor no Brasil, 132
Ainda a propósito do centenário de Dewey, 146
Cronologia, 149
Bibliografia, 153
Obras de Gilberto Freyre, 153
Obras sobre Gilberto Freyre, 156
Outras referências bibliográficas, 157
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APRESENTAÇÃO
O propósito de organizar uma coleção de livros sobre educa-
dores e pensadores da educação surgiu da necessidade de se colo-
car à disposição dos professores e dirigentes da educação de todo
o país obras de qualidade para mostrar o que pensaram e fizeram
alguns dos principais expoentes da história educacional, nos pla-
nos nacional e internacional. A disseminação de conhecimentos
nessa área, seguida de debates públicos, constitui passo importante
para o amadurecimento de ideias e de alternativas com vistas ao
objetivo republicano de melhorar a qualidade das escolas e da
prática pedagógica em nosso país.
Para concretizar esse propósito, o Ministério da Educação insti-
tuiu Comissão Técnica em 2006, composta por representantes do
MEC, de instituições educacionais, de universidades e da Unesco
que, após longas reuniões, chegou a uma lista de trinta brasileiros e
trinta estrangeiros, cuja escolha teve por critérios o reconhecimento
histórico e o alcance de suas reflexões e contribuições para o avanço
da educação. No plano internacional, optou-se por aproveitar a co-
leção Penseurs de l´éducation, organizada pelo International Bureau of
Education (IBE) da Unesco em Genebra, que reúne alguns dos mai-
ores pensadores da educação de todos os tempos e culturas.
Para garantir o êxito e a qualidade deste ambicioso projeto
editorial, o MEC recorreu aos pesquisadores do Instituto Paulo
Freire e de diversas universidades, em condições de cumprir os
objetivos previstos pelo projeto.
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ANTONIO GRAMSCI
Ao se iniciar a publicação da Coleção Educadores
*
, o MEC,
em parceria com a Unesco e a Fundação Joaquim Nabuco, favo-
rece o aprofundamento das políticas educacionais no Brasil, como
também contribui para a união indissociável entre a teoria e a prá-
tica, que é o de que mais necessitamos nestes tempos de transição
para cenários mais promissores.
É importante sublinhar que o lançamento desta Coleção coinci-
de com o 80º aniversário de criação do Ministério da Educação e
sugere reflexões oportunas. Ao tempo em que ele foi criado, em
novembro de 1930, a educação brasileira vivia um clima de espe-
ranças e expectativas alentadoras em decorrência das mudanças que
se operavam nos campos político, econômico e cultural. A divulga-
ção do Manifesto dos pioneiros em 1932, a fundação, em 1934, da Uni-
versidade de São Paulo e da Universidade do Distrito Federal, em
1935, são alguns dos exemplos anunciadores de novos tempos tão
bem sintetizados por Fernando de Azevedo no Manifesto dos pioneiros.
Todavia, a imposição ao país da Constituição de 1937 e do
Estado Novo, haveria de interromper por vários anos a luta auspiciosa
do movimento educacional dos anos 1920 e 1930 do século passa-
do, que só seria retomada com a redemocratização do país, em
1945. Os anos que se seguiram, em clima de maior liberdade, possi-
bilitaram alguns avanços definitivos como as várias campanhas edu-
cacionais nos anos 1950, a criação da Capes e do CNPq e a aprova-
ção, após muitos embates, da primeira Lei de Diretrizes e Bases no
começo da década de 1960. No entanto, as grandes esperanças e
aspirações retrabalhadas e reavivadas nessa fase e tão bem sintetiza-
das pelo Manifesto dos Educadores de 1959, também redigido por
Fernando de Azevedo, haveriam de ser novamente interrompidas
em 1964 por uma nova ditadura de quase dois decênios.
*
A relação completa dos educadores que integram a coleção encontra-se no início deste
volume.
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COLEÇÃO EDUCADORES
Assim, pode-se dizer que, em certo sentido, o atual estágio da
educação brasileira representa uma retomada dos ideais dos mani-
festos de 1932 e de 1959, devidamente contextualizados com o
tempo presente. Estou certo de que o lançamento, em 2007, do
Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), como mecanis-
mo de estado para a implementação do Plano Nacional da Edu-
cação começou a resgatar muitos dos objetivos da política educa-
cional presentes em ambos os manifestos. Acredito que não será
demais afirmar que o grande argumento do Manifesto de 1932, cuja
reedição consta da presente Coleção, juntamente com o Manifesto
de 1959, é de impressionante atualidade: “Na hierarquia dos pro-
blemas de uma nação, nenhum sobreleva em importância, ao da
educação”. Esse lema inspira e dá forças ao movimento de ideias
e de ações a que hoje assistimos em todo o país para fazer da
educação uma prioridade de estado.
Fernando Haddad
Ministro de Estado da Educação
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GILBERTO FREYRE
(1900-1987)
Mário Hélio Gomes de Lima
Primeira parte: o aprendiz
Espelhos e mosaicos
Gilberto Freyre construiu uma obra que foi uma tentativa de
unir conhecimento e realidade. A partir de uma abordagem original,
sem curvar-se a teorias alheias ou a modismos. Não só tratou de
encontrar um enfoque novo, ambicionou uma ‘ciência’ brasileira,
tropical, com métodos, temas e pontos de vista próprios.
Os textos que escreveu levando à prática tudo isso estão mar-
cados por um estilo em que a vivacidade da linguagem se destaca.
No entanto, não foi a partir do improviso que logrou compor os
seus livros, e sim de uma sólida educação, desenvolvida principal-
mente nos Estados Unidos.
Se o espírito que o animava nutria-se da curiosidade inata em
cientistas, ele cuidou de materializá-la de forma artística e literária.
Nunca se sentiu atraído pelo que em ciência veste as mais severas
indumentárias acadêmicas e em literatura as ‘túnicas’ das retóricas
convencionais. Talvez por isso haja se definido, com certa ironia,
como “escritor ordinário e professor extraordinário”.
A malícia da frase tem a vantagem adicional para os que não
reconhecem uma possível contribuição do sociólogo à educação
brasileira. Nele a educação não se separa da ação cultural. O edu-
cador não se desliga intelectual. O intelectual não se divorcia do
político. O político não se olvida o quanto de anárquico haverá
num escritor que analisava com o mesmo à vontade o país e os
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ANTONIO GRAMSCI
pais, os avós e o mundo à volta, os outros e a si. Todo livro é um
espelho, se tem razão Lichtenberg.
Nos exercícios de síntese em que se notabilizou há tanto de
projeção do inserto Eu no Outro – como é frequente em antro-
pólogos – quanto de incerto Outro no Eu – rotina dos escritores.
Ou vice-versa. Nisso reside muito da empatia que era um dos
aspectos mais importantes da sua forma de conceber o trabalho
científico. Uma empatia assim se converte num espelho duplo em
que a ciência seduz com arte. A arte, como a pensava Tolstoi, ação
consciente de tentar, por meio de signos exteriores, contagiar os
outros com os sentimentos pensados, imaginados ou vividos pelo
artista. Experiência e experimentação são transmitidas e transmis-
síveis como certas enfermidades.
História e antropologia, sociologia e arte, ciência e filosofia
coexistem como irmãs xifópagas e quando escritas são todas in-
venções menos ou mais literárias dependendo do talento do seu
demiurgo. Subjaz em cada uma delas o projeto, o desejo e o ato
de educar. Investigar é aprender, ensinar é uma contínua investi-
gação, onde teoria e prática são faces da mesma moeda.
Pensamento-ação: assim se pode resumir o trabalho daquele
que a partir de Casa-grande & senzala – sua obra germinal – deu
início por assim dizer a uma vocação de “reeducador” do Brasil.
Tanto em seus livros e conferências quanto com seus discursos e
suas aulas. A sua metodologia e suas intervenções culturais fazem
as vezes de manifestos, cartilhas, didáticas.
Ao estudar a formação do Brasil, ele ajudou a formar outro
Brasil. No processo de reconhecimento e invenção. Que entusi-
asmou escritores como Guilherme de Figueiredo: “Seu opulento
escrínio de condecorações guarda o mais alto título que um brasi-
leiro pode almejar: foi um professor (...) de brasilidade. Talvez o
país que irrompa das suas páginas seja mais generoso e tolerante
do que o existente na realidade. Uma obra como a sua, no entanto,
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COLEÇÃO EDUCADORES
trata menos de confirmar hipóteses que sugerir caminhos, detectar
tendências e sintomas, tudo convergindo para o que um dos seus
intérpretes, Edilberto Coutinho, chamou de “a imaginação do real”.
Ninguém negará que na sua disposição para a fraternidade haja
um projeto muito mais livre e libertário do que o das elites do
tempo da sua meninice.
Nascido em 1900, ele escolheu justamente 1900 para título do
livro que terminou por se chamar Ordem e progresso, que é como um
‘baú’ cheio de retratos de um país – e um século – em transição.
Há ali observações úteis para a história da educação no Brasil,
com interesse especial as pequenas “autobiografias” circunstancia-
das de homens e mulheres de diversas classes sociais, que foram
‘provocadas’ a partir de um questionário em que se investiga:
Escola ou colégio que frequentou (métodos, professores, co-
legas, castigos, brinquedos, jogos, trotes, livros escolares, estudo
de gramática, de caligrafia, de matemática, festas cívicas etc.).
Brinquedos, camaradagens, jogos e leituras de menino fora
da escola.
Onde fez os estudos profissionais? – professores, escolas e
leituras desse período?
Qual sua atitude de menino, de jovem, de homem feito, para
com: (...) o ensino no Brasil (primário, profissional etc.)?
Centenas dessas respostas (as perguntas se destinavam a mais
de mil pessoas) compõem um mosaico a respeito da educação
na virada do século XIX para o XX no Brasil. Mas florescendo
plenamente na chamada Primeira República, quando também o
autor do livro realizou a sua própria formação, vivenciando, como
os seus entrevistados, algumas das situações descritas e comen-
tadas em Ordem e progresso.
No período pré e pós-republicano teria havido no Brasil o que
ele denomina ‘messianismo’ da pedagogia. Nisto destacando-se os
nomes de Rui Barbosa, João Alfredo e Benjamin Constant.
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ANTONIO GRAMSCI
A consciência das novidades, mudanças, transformações e
sobrevivências compõem o corpus de Ordem e progresso também
no que diz respeito à educação. Nesse campo, os melhores entre
os 183 depoimentos escritos são os de Antônio José da Costa
Ribeiro, que traz um quadro dos hábitos das ‘repúblicas’ (casas
de estudantes da época); de José Ferreira de Novais, que comenta
a rotina das escolas (as aulas de caligrafia, a sabatina, as brinca-
deiras e os castigos, entre eles, a temida palmatória); de Erasto
Gaertner, que fala da aculturação e de Antônia Lins Vieira de
Melo que discorre a respeito das escolas para meninas. Tanto na
“Tentativa de síntese”, quanto na “Nota metodológica”, o autor
faz largos comentários sobre esse período de transição nas escolas,
nos colégios, nos cursos, nessa fase da vida social no Brasil nos
começos do século XX.
Para Ordem e progresso o autor recolheu, por quase duas déca-
das, depoimentos – orais e escritos – e agregou documentos, para
recompor da forma mais próxima do real possível um tempo
ainda não totalmente morto, e parte da sociedade que o constituiu.
Ele utilizou nesse esforço de reconstituição temporal, espacial e
vivencial noções como a de sujeito plural de Julián Marías.
Na explanação teórica dos métodos e objetivos, reconhece
que teve um antecedente no uso do inquérito para fins históricos:
Vicente Licínio Cardoso, que o empregou no livro À margem da
história da República. Mas o critério os distingue: enquanto Cardoso
considerava analisar o presente para compreender o passado e
projetar o futuro, em Ordem e progresso analisa-se o passado para
melhor compreender o presente e o futuro, com suas interpe-
netrações, processos, formas e constâncias. No livro aparece testa-
da de forma bem explícita a sua noção de tempo tríbio, inclusive
aplicando-a a educação brasileira, que vivia nos limiares e frontei-
ras do passado, presente e futuro. Em pelo menos um dos atos
desse drama o autor foi ator e espectador.
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COLEÇÃO EDUCADORES
Manchas e contornos
Completa inaptidão para matemática, desinteresse pela escrita
e leitura, paixão pelo desenho e apego aos brinquedos infantis com-
põem um quadro breve do que foram os seus primeiros anos
escolares. Ele, porém, tratou de compensar a falta de ‘precocida-
de’ infantil assumindo o mais rápido que pode o status de ‘prodí-
gio’ e de ‘gênio’ juvenil. É isto o que se deduz da leitura de Tempo
morto e outros tempos, em que, no espírito de Carlyle (autor tão de sua
admiração), elege alguns heróis como seus modelos; mais que isto:
cuida de construir um herói de si mesmo, sobrepujando possíveis
crises e dúvidas do seu Eu e do Outro Eu, tensões e impulsos
típicos da infância e juventude.
Em Tempo morto o herói-de-si é alguém que aos oito anos só
fazia garatujas e desenhos e, aos 11, ainda brincava como criança,
mas aos 15 já está a traduzir textos em inglês, francês, grego e latim.
Com tão rápida e notável evolução, ele concorda que a palavra ‘prodí-
gio’ lhe cabe muito bem. Gesta então precocemente um porque-me-
ufano-de-mim-mesmo ainda mais vibrante do que o famoso livro
do conde Afonso Celso. Os primeiros lampejos da vaidade prover-
bial já se notam e se anotam na adolescência (fase da vida em que isso
não é decerto um exclusivismo seu, mas vulgarismo universal).
Termos como gênio, genialidade, engenho, engenhosidade são
parâmetros empregados frequentemente. O senso comum até mais
do que a ciência abusa deles como fator de reconhecimento da
criatividade ou do desempenho acima dos padrões em crianças e
jovens. Sendo mais do que uma categoria cultural, ‘Gênio’ pode
também ser considerado um conceito existencial e psicológico. Aos
15 anos de idade, um jovem estudante de um colégio batista no
Recife, editor de um jornalzinho batizado de O Lábaro, já ostentava
estrelado na imaginação o tal “borbulhar do gênio” a que se refere o
poeta romântico Castro Alves. Entranhava-se nisso. Psicológica e
existencialmente.
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ANTONIO GRAMSCI
Quinze anos é idade adequada para que qualquer ingênuo se con-
funda com gênio, às vezes por simples câmbio de letras (isto fica
menos evidente no português que no espanhol ingenuo, ingenio). A evo-
lução de algumas palavras revela às vezes curiosidades quase tão inte-
ressantes quanto as que permeiam a formação e o desenvolvimento
da personalidade nas pessoas. No caso de ‘gênio’ e de ‘ingênuo’, ao
longo do tempo, a identidade etimológica conquanto não haja nunca
sido totalmente suplantada, foi vencida pela semântica, pois, se de
início, ambos os vocábulos significavam o inato relacionado a habili-
dades naturais (não aprendidas), ingenuidade se associava também ao
inato frescor da liberdade. As alterações semânticas tornaram antagô-
nicas duas palavras que antes eram praticamente sinônimas.
Ora, no caso dos anos de aprendizagem do jovem pernambu-
cano, genialidade e ingenuidade parecem coexistir sem litígio, em-
bora um pouco turbadas pela tensão dos estudos. Se há uma an-
gústia da influência, deve haver uma decerto muito mais generali-
zada angústia de estudar (mesmo quando em muitos casos se mescla
ao gosto e à satisfação).
No tempo de que se ocupa este capítulo – os anos de sofrimen-
to do jovem – entusiasmo e angústia se confundem com os seus
primeiros estudos. Sofrimento e prazer são univitelinos na visão en-
genhosa ou ingênua dessas coisas. Nem é ele mais o ser livre que a
etimologia e a semântica prometem aos ingênuos, nem o seu conhe-
cimento tão inato a ponto de ser considerado genial, prescindindo
do esforço. É pelo estudo sereno e severo que alcança os seus resul-
tados de aprendiz de latinista e helenista mirim. O ‘prodígio’ não se
exime do empenho e até do sofrimento que implica o processo de
aprender. Ama o inconcluso, o incompleto, o imperfeito, mas o
quanto nisso haverá de superação e desafio pode exprimir-se por
simples verbos: exceder, superar, transbordar.
A motivação para que continue a ministrar suas aulas de latim
ele a colhe de forma indireta, no exemplo. França Pereira, seu pro-
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COLEÇÃO EDUCADORES
fessor de literatura francesa, ao lhe contar da precocidade de Auguste
Comte, que ainda menino ensinou matemática na Escola Politécnica
de Paris, incentiva-o. Rapidamente o ‘menino-homem’ recifense se
diverte em se comparar com o mestre do positivismo. A compa-
ração, aliás, é algo que fará repetidas vezes na juventude: dos seus
méritos ou do seu talento confrontados com os equivalentes em
contemporâneos. No espelho em que se olha o menino não vê a si,
mas Auguste Comte, Joaquim Nabuco...
O improvisado latinista, hábil também em grego, desenvolvia
com voluptuosidade o seu logos, mas lhe faltava algo: a comunhão
da carne. Já havia lido todos os livros ao seu alcance, mas não sabia
ainda se a carne era mesmo triste ou alegre. Precisava mergulhar em
outro abismo. Ir além da pele das palavras. A autoeducação sexual
não bastava. Carecia de conhecer não Kant, mas a uma mulher (na-
quele sentido bíblico e whitmaniano tão do seu agrado).
O jovem escritor narra a sua primeira experiência sexual de modo
tão enfático que parece referir-se a um grande rito de passagem:
“ato criador de outro eu dentro do meu. Já não sou o mesmo”.
Passado o alumbramento inicial, as intimidades se repetem em espa-
ços fechados e de família, mas também nos âmbitos quase boêmios
– nas casas de estudantes daquele tempo, chamadas de repúblicas.
Essas repúblicas desempenhavam um papel de certo modo
‘educativo’ no que permitia ou proporcionava quanto à troca de
experiências livrescas e existenciais. Numa delas, a de Mário Seve-
ro (onde o autor mais lido era Eça de Queirós) por vezes os temas
literários e sexuais se encontram. Um autor escandaloso para os
padrões da época era um contemporâneo próximo: o paraibano
Carlos Dias Fernandes, do livro A renegada. Mas não foram os
trechos ditos “mais crespos” do livro que impactaram o futuro
sociólogo nada pudico, e sim uma simples frase de um clássico –
Shakespeare – em que brilhava a palavra ‘puta!’ A palavra ‘puta’
cravou-se espinhosa no seu espírito.
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ANTONIO GRAMSCI
Se encontrou num clássico uma palavra vulgar, de fácil vida e
significado, outra vez leu numa revista vulgar a mesma palavra
escrita, em tônus elegante, mas sem lhe perceber o sentido. E não
se animou a perguntar aos adultos. O mesmo bloqueio se repetia
quando nas leituras de livros acima dos recomendados para sua
idade havia passagens sexuais que não compreendia. A dificuldade
de obter as respostas diretas ele a sentiu cedo na infância.
A falta da clareza dos adultos o inibiu de fazer novas perguntas
a respeito de sexo na adolescência, que é ainda mais do que a infân-
cia a idade das mais tensas indagações e das mais densas inquieta-
ções. Era ainda criança quando viu a palavra ‘meretriz’ em letras
garrafais na revista humorística O Malho. Mas “o que quer dizer me-
retriz?”, perguntou ao tio e ao pai. Não ouviu explicações, mas as
gargalhadas estrepitosas dos dois, e se sentiu muito encabulado.
Não tardaria a encontrar as próprias respostas e a escrever a
respeito do sexo com desassombro. Sobretudo em Casa-grande &
senzala. Desse livro os mais conservadores diziam que não se trata-
va de história social, mas de história sexual, tal a franqueza com
que as situações sexuais são abordadas. Em Tempo morto e outros
tempos a sensualidade também, mas, por seu caráter explicitamente
autobiográfico (também existente em Casa-grande, mas de modo
indireto), o editor achou por bem censurar as passagens que con-
siderava inadequadas.
Caricaturas e traços
Não seria exagero classificar Tempo morto e outros tempos como um
curioso livro de memórias de um pretérito mais que futuro. Há aí
bons rascunhos de pensamentos e ideias, e até já diversos trechos
em que já se faz a apologia ilustrada de grandes temas que seriam
caros ao autor, como o regionalismo. É como um diário-ideário.
No seu conjunto, porém, tem algo em comum tanto com o Idearium
e o Diário íntimo (dos seus admirados Ganivet e Unamuno) quanto
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COLEÇÃO EDUCADORES
com o Diário de um gênio de outro espanhol, o pintor Salvador Dalì
(uma apologia ilustrada do cabotinismo levado à máxima potência,
mas temperado com muito bom humor).
Tempo morto e outros tempos sugere um tipo muito particular
autorromance de formação. Mas nem por isso seria uma ‘Edu-
cação sentimental’ ou um ‘Retrato do artista quando jovem’ em
fragmentos. São registros (mesmo que agregue reflexão a posteriori)
do aprendizado espiritual de um autor obcecado por aprender
(-se) e conhecer (-se), mais do que por ensinar, e em muitas de
suas páginas o anotador faz questão de explicitar um assumido
sentido de ‘missão’ na vida.
Lendo-o se vê que as autoexigências e os rigores intelectuais do
autor são diretamente proporcionais à sua capacidade de trabalho e
à multiplicação da vaidade. Esse intenso e precoce mergulho no
mundo dos livros e essa capacidade de misturar-se na realidade e no
convívio humano foram mais que atitudes demagógicas. Ele acredi-
tou, de fato, e desde muito cedo, numa gaia ciência, e tratou de
provar com o máximo de autenticidade possível – sobretudo na
juventude – a máxima de que nada humano lhe fosse estranho.
Pode-se dizer que nessa etapa inicial da formação predomina-
vam no seu espírito a filosofia e a literatura. A aceitar-se o seu
posterior conceito de ‘tempo tríbio’ (em que passado, presente e
futuro coexistem entrelaçados), Tempo morto e outros tempos pode ser
uma das materializações mais pessoais disso. Tratando-se de um
diário, estaria escrito, obviamente, no passado, e, sem que se de-
senrole como um presente contínuo, parece haver sido reescrito
no futuro provável em que a velhice reencontrou a juventude e
resolveu melhorá-la, reescrevê-la ou, no mínimo, reconstruir uma
imagem de como gostaria de ser visto ou lido. Só assim, pelo
trabalho deliberado de ‘edição’, se explicam algumas de suas in-
congruências e contradições. Apesar de sua quase inautenticidade
de confissão in loco o diário oferece uma visão em perspectiva ou,
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ANTONIO GRAMSCI
no mínimo, retrospectiva de um autor que apreciava como poucos
as autobiografias, confissões, memórias.
Tão envolvido estava com as questões de formação que sendo
instado a estrear como conferencista, aos 16 anos de idade, escolheu
como tema “Spencer e o problema da educação no Brasil”. A con-
ferência foi lida num teatro, na capital da Paraíba.
Obviamente, uma conferência ou anotações sobre leituras e
opiniões a respeito de temas educacionais não fazem de um ado-
lescente de 16 anos educador em potencial. Revelam, no entanto, já
nesses anos de aprendizagem, o esboço de um pensamento que
logo se cristalizará e onde o processo da formação do conhecimen-
to desempenha um papel fundamental. Com essa preocupação no
espírito o estudante segue até à formatura, no Colégio Americano
Gilreath, aos 17 anos (é o orador da turma).
Uma das marcas dessa fase da sua vida é a ligação com o pro-
testantismo ou, num sentido mais amplo, a atração que sente pelo
trabalho missionário. Que tipo de missionário seria alguém a quem
repugnava a eloquência? Aquele para quem a oratória será vencida
pela oralidade. Mas a vontade de ser um novo Livingstone foi uma
dessas paixonites de adolescente que às vezes não duram um ano.
Concluídos os primeiros estudos, sabia que no Recife, provín-
cia acanhada, não teria como alcançar a formação superior que
desejava. Num meio em que autores como Pereira da Costa e
Tobias Barreto, talvez por falta de opção, caíram no “conto de
fadas dos autodidatas”, que ele rechaçava com ênfase, não havia
como obter alta formação. Na verdade, não havia no Brasil uma
fonte onde saciar a fome de conhecimento. Na época, inexistia
universidade no país e os cursos que atraíam as famílias de classe
média cumpriam o círculo vicioso de direito, medicina, engenharia.
A sua pretensão era estudar na Europa. Mas não será as sonhadas
Heidelberg, Paris ou Oxford que cursará, e sim uma universidade
provinciana – Baylor, no Texas.
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COLEÇÃO EDUCADORES
Segue então para lá, em 1918. Não se tratava propriamente de
uma escolha, mas de pragmatismo familiar. O seu irmão Ulysses
estudava lá, e, além do mais, o Colégio Americano, onde acabara
de se formar, poderia facilitar o seu ingresso por liames que tinha
com aquela universidade norte-americana.
Barbosa Lima Sobrinho disse certa vez que a iniciativa do co-
légio de encaminhá-lo aos Estados Unidos impediu que uma inte-
ligência acima da média fosse estragada pela rotina de sistema uni-
versitário que, no Brasil, era quase uma formalidade, pois visava
mais à diplomação que à aquisição de conhecimento. O que movia
o futuro sociólogo era justamente o contrário. Tão ampla e
abrangente era a sua ambição que desejava alcançar nesses estudos
a especialização, mas também a generalização.
Por isso é que, além das leituras obrigatórias, vai desenvolver
uma espécie de programa paralelo desfrutando de autores de sua
predileção ou descobrindo outros pelo caminho. Atribui a essa
possibilidade dupla da vida acadêmica à flexibilidade do sistema
de ensino superior nos Estados Unidos.
Na Universidade de Baylor quem mais o impressionou foi o
seu professor de literatura, um especialista na poesia de Robert
Browning. Chamava-se Andrew Joseph Armstrong. Em repeti-
das passagens das notas em que rememora esse outro tempo co-
menta o entusiasmo do mestre pela sua (reconhecida e autoprocla-
mada) genialidade. Autocentrado e em busca de reconhecimento,
ele parece obcecado com a ideia. E tem dificuldades com possí-
veis ‘concorrentes’ à sua mesma condição de gênio. Anota o mo-
mento em que foi apresentado por alguns colegas a um menino
tido como gênio aferido nos testes de QI, e faz uma caricatura
verbal e impiedosa do colega, que “se afasta gingando, arrastando
além do peso do gênio o da gordura das nádegas que, nele, talvez
seja o maior. Afinal, esses tests são coisas muito mecânicas”. A ou-
tros, também definidos como gênios, ele classifica de “perfeitos
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ANTONIO GRAMSCI
bestalhões”. Acha curioso que os três que lhe foram apresentados
sejam sempre gordos, e não magros, como ele.
Interessante notar que no estereótipo da obesidade x geniali-
dade que, no seu caso, se expressava também na caricatura que era
um de seus hobbies na juventude. Nelas se representa sempre ma-
gro e o seu parceiro quase sempre é um gordo. Não custa lembrar
que na literatura o exemplo universal de uma dupla de magros e
gordos é Dom Quixote e Sancho Pança. Proviria do livro de
Cervantes a ideia de que a genialidade pode ser representada num
desenho esquemático de um louco (ou gênio) magro, enquanto que
o seu parceiro oposto é um racional, convencional (o gordo Sancho)?
Sendo ou não consciente a origem do ‘esquema’ mental, o fato é
que a contenção ‘magra’ – mesmo que temperada de ‘loucura’ ven-
ce a eloquência ‘gorda’, mesmo que suportada pela razão convenci-
onal. Na obra Oliveira Lima: Dom Quixote gordo, há a inversão do
estereótipo externado na juventude: não é mais um magro que sinte-
tiza a inteligência, mas um gordo, no caso, o diplomata brasileiro.
Seja como for, um grande desafio do jovem estudante brasi-
leiro no Texas foi resolver as inquietações quanto ao seu verdadei-
ro potencial. E o dos outros. Alguém que na infância chegou a ser
considerado quase retardado por uma avó passa a ser visto por
professores exigentes quase como um gênio. O gênio, porém, não
descansa: lê cada vez com maior afinco.
Bosquejos e linhas
Do Texas a Nova Iorque. Do provincianismo de Baylor ao
cosmopolitismo de Columbia. Do bacharelado numa ao mestrado
e doutorado na outra. Em ambas o mesmo estudante com idên-
tica atitude diante da educação: há algo bem mais importante que
os ritos acadêmicos: estudar e aprender. Ora, se não há porque
nem como estar em desacordo com isso, qual a razão da ênfase?
A explicação do aprendiz é simples: dar o exemplo, pois o Brasil
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COLEÇÃO EDUCADORES
vivia excesso de valorização dos graus acadêmicos que impera-
vam a tal ponto de um estadunidense seu colega ironizar: no Brasil
quem é não analfabeto pode ser considerado doutor.
Porventura haveria no desdém quanto às formalidades nesse
tempo um misto de independência (de modo a singularizar-se)?
Ou um esnobismo às avessas, que estava presente desde a infân-
cia? Na falta de pressa em aprender a ler e escrever, para valorizar
a prática do desenho livre e o lúdico, e muito rapidamente se su-
perar o que a outros parecia retardo. Com jeito de fingimento ou
hipocrisia de ator.
Mas há que considerar-se também um tanto de melancolia,
reserva, acanhamento, pudor, mais que timidez, quando se ausenta
ou se isola. Quem busca compreender nem sempre será compre-
endido. “Dias de blues” é a expressão que usa para certas crises
que o teriam assaltado nos tempos do Texas, e que reincidem na
mais imponente Columbia. “Mood Hamlet” é outra que emprega
para sintetizar determinadas indecisões e tibiezas.
Pouco tempo após haver ingressado na Universidade de
Columbia, conseguiu uma deferência especial facilitada pelo pro-
fessor William Robert Shepherd – a liberdade de seguir qualquer
curso ou aula da universidade, além daquelas disciplinas em que
está registrado. A boa notícia disso não era a ‘promoção’ a ‘scholar’.
Tinha algo mais que simbólico: poupava as taxas universitárias, em
Columbia mais altas que em Baylor e que exigiam esforços da
família para mantê-lo.
Quanto mais se desenvolve, quanto mais aprende, quanto mais
erudito fica, quanto mais reconhecimento obtém tanto mais aumen-
tam as suas dúvidas a respeito dos caminhos a seguir. Nem de longe
podia cantar o tal canto das certezas de um poema de Whitman.
O aprendiz chegava por assim dizer a uma terceira etapa da
vida, cada uma delas tendo um mestre a orientá-lo. Na primeira, o
pai, Alfredo; na segunda, Armstrong e Oliveira Lima; agora, se so-
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ANTONIO GRAMSCI
mava o antropólogo Franz Boas. O diplomata e historiador brasi-
leiro foi aconselhador e até orientador direto, por isto em Oliveira
Lima dom Quixote gordo o autor reconhece que o seu depoimento
sobre o amigo é “de quase discípulo sobre mestre inconfundível”.
No caso do antropólogo, as influências teóricas foram mais
duradoras, pelo menos em algumas ideias-chave no campo das ci-
ências sociais; no entanto, mais quanto a certas concepções e pos-
turas intelectuais que quanto à metodologia – o trabalho de campo,
por exemplo, essencial na sua visão do trabalho antropológico não é
uma das práticas frequentes do escritor brasileiro. No entanto, o
estilo didático informal e sem afetação erudita deve ter influenciado
o seu discípulo brasileiro no seu jeito de ensinar.
Quanto a Oliveira Lima, para além de aconselhá-lo e compar-
tilhar opiniões, facilitava-lhe o acesso a sua imensa biblioteca, dis-
cutia leituras e também dava conselhos quanto ao futuro profissi-
onal: nada de voltar ao Recife, cidade invejosa e acanhada; melhor
mudar-se para São Paulo; ou até fixar-se no exterior, como pro-
fessor numa grande universidade ou ingressando na carreira di-
plomática. O aprendiz, no entanto, tinha dúvidas a esse respeito.
Do que estava convencido era do desinteresse por seguir a carreira
de direito: jamais seria magistrado e muito menos advogado, a
despeito de a sua faculdade ser a de ciências políticas, completadas
pelas jurídicas e sociais.
Ambienta-se tão bem que se sente um tanto nova-iorquino. Já
tinha uma boa formação em antropologia física, mas sentia que
precisava muito de antropologia social e cultural. Daí acentua
humanismo e interdisciplinaridade, pois entende que arte e ciência
não se opõem. Também considera que a compreensão das coisas
não deve ser somente filosófica, mas também poética. Vê de modo
favorável o intuicionismo de Bergson e o pragmatismo de William
James. Preza, no entanto, alguns degraus acima, George Santayana
(cuja leitura o reconcilia com o catolicismo), porque neste filósofo
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COLEÇÃO EDUCADORES
as verdades filosóficas e poéticas estão em harmonia, e nisto en-
tende que ele teria sido influenciado por Walter Pater.
Livros como Confessions of a young man, de George Moore e The
Private Papers of Henry Ryecroft, de George Gissing, o impressionam
muito, por esse tempo em que apaixonavam-no os escritos de Angel
Ganivet e Joris-Karl Huysmans. É grande a lista de autores que reve-
la ter descoberto, orgulhoso, “sem sugestão de mestre ou de pessoa
mais velha”. Entre eles estava também William Blake, que ele, com-
parando, sempre pôs acima de Samuel Butler, porque o poeta-pin-
tor, no modo fantástico de ver o mundo, penetrava as verdades
menos aparentes. Pelo mesmo critério que elegia os seus escritores
favoritos, também listava, opondo, os filósofos: Santo Agostinho
superior a São Tomás, como Pascal a Descartes, Nietzsche a Kant e
Bergson a Mill. O menino que não se encantava com as matemáticas
chegara à idade adulta sem seduzir-se pela explicação delas para a
vida e os homens. Valorizava acima da exatidão o mistério.
Em Nova Iorque o seu contato intelectual é obviamente mais
produtivo que no Texas. Inicia-se na leitura de muitos autores nes-
se tempo, como Pío Baroja, Georges Sorel, Max Weber, Georg
Simmel e George Gissing. Na preferência por este último (“já não
encontro graça em nenhum outro escritor em língua inglesa”) há
toda uma atitude muito sua, de que alguns autores secundários são
em alguns aspectos superiores aos principais.
O que fará com tanta leitura, com tanto conhecimento? Ser
um escritor em língua portuguesa. Ao revelar ao poeta Vachel
Lindsay essa decisão, teria ouvido dele a frase: “V. é heroico”. O
diálogo – real ou não – tem a utilidade instrumental da ênfase: seja
do ‘heroísmo’ – que é uma das obsessões do autor – seja da cora-
gem de um ‘Ulisses’ – que não abandona a sua Ítaca (no caso, o
Brasil, e particularmente, o Recife). Um Ulisses com algo de Anteu.
Foi o gosto pela aventura e pelo conhecimento que o levou a
viajar. O amor à província o levaria de volta para casa. Mas, mesmo
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antes do retorno, a terra natal não saía do seu espírito. Tanto que ao
escolher o tema para a sua tese de mestrado a vida social do seu país
é que acabou por triunfar, não algo que o fizesse ‘um novo Conrad’.
O conhecido, o familiar, o íntimo vestiam de conforto o provincia-
no, enquanto o misterioso, o exótico e o inédito excitavam o cos-
mopolita que nele também havia. Nisto contava com a vantagem de
dominar duas línguas, e pretendia fazer uso disto na edição que al-
mejava fazer do seu trabalho acadêmico: Social aspects in Brasil (nos
Estados Unidos), O Brasil dos nossos avós (no Brasil).
Cumpridas as exigências acadêmicas e defendida a tese sobre
a vida social no Brasil nos meados do século XIX, ele segue à
Europa, onde tardará quase um ano. Esta viagem (sonhada há
muito) completaria a sua formação humana e intelectual. Serviria
uma espécie pós-mestrado informal o que faz na França, Inglater-
ra e Alemanha, assistindo a conferências, visitando museus.
Siluetas e perfis
Ao retornar ao Brasil, em 1923, não adotou São Paulo ou o Rio
de Janeiro para viver e trabalhar, apesar de haver pensado nisso e
recebido cartas de apresentação de Oliveira Lima para amigos influen-
tes. Preferiu o regaço da família no Recife, buscando mais do que
uma readaptação intelectual, uma “recuperação sentimental”. A se-
gunda foi mais fácil. Sentiu-se logo um estrangeiro na cidade onde
nascera, mas de onde ficara ausente quase cinco anos.
Apesar do mestrado nos Estados Unidos, não encontrou boas
chances profissionais. Em 1924, um ano depois de haver voltado,
ganhava parcamente. Remuneração que provinha dos artigos que
publicava no Diario de Pernambuco e das revisões de textos burocrá-
ticos do diretor das Docas do Recife. O sentimento que expressa
ao escrever sobre essas limitações é de humilhação. Considera-se
um gênio desgarrado no Recife e um inadaptado (mas sempre
com alguma volúpia).
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COLEÇÃO EDUCADORES
Tal volúpia combinava o convívio com mulheres e o interes-
se ativo pelos costumes populares e as pesquisas de campo so-
bre a cultura local. A vida mundana (profana) equilibrava a soli-
dão (sagrada) das leituras. Era preciso enriquecer na ‘taverna’ o
tempo que ganhara na ‘mesquita’. Preferia, no entanto, fazer pa-
recer aos outros que não estudava – “Deve haver o pudor do
estudo como há o do sexo”. Detestava os estudiosos e trabalha-
dores exibicionistas. Curiosamente, no evangelho de Mateus há a
condenação do exibicionismo dos que oram “para serem vistos
pelos homens”. Atente-se que a idêntica reivindicação da discri-
ção e ocultação motiva-se de modo simétrico: enquanto a Bíblia
critica a ‘hipocrisia’ dos que exibem ao público a sua oração, o
sociólogo brasileiro exalta ‘hipocrisia’ de outro tipo – dos que
fingem estudar para não externarem com despudor o seu esforço.
Algo disso também se encontra numa das quadras do Rubayat
do poeta persa Omar Khayyam: “se tiveres vontade de sorrir,
esconde-te” (trad. de Manuel Bandeira).
Há, porém, outra coincidência nisso, além do Evangelho e do
Islamismo sufi do poeta persa. Muito mais próximo, quase con-
temporâneo, é o conselho que dá em soneto “A um poeta”, Olavo
Bilac – justo o autor que o sociólogo, em texto futuro, incluirá no
grupo daqueles que olham o mundo de pincenê, certamente do
alto de uma torre de marfim:
Longe do estéril turbilhão da rua,/ Beneditino escreve! No aconche-
go/ Do claustro, na paciência e no sossego,/ Trabalha e teima, e lima,
e sofre, e sua!/ Mas que na forma se disfarce o emprego/ Do esforço:
e trama viva se construa/ De tal modo, que a imagem fique nua/ Rica
mas sóbria, como um templo grego/ Não se mostre na fábrica o
suplício/ Do mestre. E natural, o efeito agrade/ Sem lembrar os
andaimes do edifício:/ Porque a beleza, gêmea da verdade/ arte pura,
inimiga do artifício,/ É a força e a graça na simplicidade.
Mais profundamente ainda, há mesmo de beneditino na prá-
tica intelectual do sociólogo brasileiro. Beneditino, decerto, à sua
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maneira. Mas, como se vê, ia além do lema “ora e trabalha”. A sua
Liturgia das Horas incluía também o envolvimento sensual na rea-
lidade. Como se construísse dentro do seu espírito uma abadia de
Thelema; no entanto, evitasse converter-se naquele monge sábio
referido pelo mesmo Rabelais, em Gargantua:
Conheceis o irmão Cláudio dos altos Barroys? Oh, que bom compa-
nheiro! Mas que mosca o haverá picado? Não faz mais que estudar desde
nem sei quando. Quanto a mim, nunca estudo. Em nossa abadia nunca
estudamos, porque temos medo dos zumbidos nos ouvidos. Nosso
fiel abade diz que é coisa monstruosa ver a um monge sábio.
Deve-se, no entanto, deixar clara uma diferença fundamental
entre a visão vitalizante que provém de uma entrega à natureza e
outra do imbricar-se em tudo o que é humano. Esta última opção,
de sentido cultural, é muito mais adequada para associar-se ao
autor de Casa-grande & senzala. Combina-se nele a sobriedade uma
dedicação voraz aos estudos e uma visão de quão vivaz deve ser o
trabalho intelectual. O logos inseparável da carne. Eloquente é outra
passagem também de Tempo morto e outros tempos em que comenta a
reação do desenhista e escritor Luis Jardim a essas suas incursões
pela vida real: não era possível que ele fosse um “assombro” de
intelectual sendo tão “boêmio”.
É uma verdade esse meu desejo de impregnar-me de vida brasileira
como ela é mais intensamente vivida, que é pela gente do povo, pela
pequena gente média, pela negralhada: essa negralhada de que os ‘re-
quintados’ (como eu estou sempre a chamar os intelectuais distantes
do cotidiano e da plebe) falam como se pertencessem a outro mundo.
Do seu convívio intelectual mais próximo participavam José
Lins do Rego (a quem confiou, em segredo, o projeto de escrever
um livro sobre a infância), Aníbal Fernandes (seu admirador desde
a adolescência, que o levou a colaborar no Diario) e Ulysses Per-
nambucano, que ele considera “uma das raras pessoas realmente
inteligentes que encontro no Recife, embora falte a ele gosto lite-
rário e apuro estético”. Falta-lhe também outra coisa importante:
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preparo sistemático superior: “Fazem falta, e falta imensa, aos bra-
sileiros, uma tradição, um sistema, uma disciplina universitária. Uma
sucessão apostólica de saber humanístico.”
Ao comparar Ulysses Pernambucano a Oliveira Lima e Alfredo
de Carvalho (“scholar com alguma coisa de universitário em seu
modo de ser intelectual”) a superioridade recai sobre estes dois
últimos por um motivo simples: a formação nos Estados Unidos
e na Europa, que não a pode obter também outro pernambucano
de formação incompleta: o historiador Pereira da Costa.
Embora tenha concluído o bacharelado e mestrado, pode-se
dizer que o seu processo de aprendizagem prossegue para além
dos livros e dos bancos universitários, sobretudo naquilo que a um
antropólogo é tão essencial quanto o domínio pleno da teoria: o
trabalho de campo. No Recife, toma notas em mocambos, nos
seus passeios de bicicleta, para um livro que projeta escrever – um
vasto panorama histórico: do início da colonização á década de
1920: a história da vida de menino no Brasil.
Não é, porém, esse livro individual, o primeiro que conclui no
seu retorno de nativo ao Brasil, e sim outro, coletivo, que projeta e
organiza O Livro do Nordeste, para comemorar o centenário do Diario
de Pernambuco. Nos diversificados e ambiciosos tópicos do plano
original consta uma “história da educação e ensino” (especialmente
em relação ao Nordeste).
Outra ação coletiva em que se envolve de modo intenso é o
Congresso Brasileiro de Regionalismo, realizado no Recife, em fe-
vereiro de 1926 – quatro anos exatamente após a Semana de Arte
Moderna, de São Paulo. Os que se envolvem na organização desse
evento são “homens de saber interessados em dar sentido regional
ao ensino, à organização universitária e à cultura intelectual entre nós”.
Na atividade jornalística é de que principalmente se ocupa nos
primeiros tempos do “exílio intelectual no trópico”. Trata-se de
uma vida profissional de ganhos materiais acanhados. Isso só me-
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lhora em 1927. “Ganhando bastante”, ele passa a adquirir grande
quantidade de livros. Como um intelectual de província conseguia
livros nesse tempo? No seu caso, provêm de Londres (da Hugh
Rees Bocksellers), de Paris (com a ajuda do diplomata Belfort
Ramos, ministro na embaixada do Brasil em Praga) e da Alema-
nha (com a ajuda do antropólogo Karl Von den Steinen).
Segunda parte: o mestre
Pontos e texturas
O ano de 1928 é marcado, no Recife, por uma proposta de
reforma educacional de grande impacto promovida por Antônio
Carneiro Leão (1887-1966). Esse educador e escritor pernambucano,
um especialista dos mais prolíficos, tendo publicado no campo de
sua especialidade os livros:
Educação (1909), O Brasil e a educação popular (1917), Problemas de
educação (1919), O ensino na capital do Brasil (1926), A organização da
educação em Pernambuco (1929), O ensino das línguas vivas (1935), Tendên-
cias e diretrizes da escola secundária (1936), Introdução à administração escolar
(1939), A sociedade rural, seus problemas e sua educação (1940), Planejar e
agir (1943) e Adolescência, seus problemas e sua educação (1950).
Carneiro Leão fora diretor geral de instrução no Rio de Janeiro,
de 1922 a 1926, e, de volta a sua terra natal, assumiu a Secretaria de
Interior, Justiça e Educação (1928-1930). Desencadeou a tal refor-
ma que teve apoios e críticas em extremos inflamados. Em Tempo
morto e outros tempos há uma opinião equilibrada a respeito disso, com-
parando a reforma à Semana de Arte Moderna de 1922, e reagindo
ao que havia de modernismo nela. Faz também restrições aos seus
métodos, inclusive a escolha de dois pedagogos paulistas para levá-
-la à prática.
Um dos elementos dessa reforma foi a criação de uma cátedra
de sociologia da educação na Escola Normal. Antônio Carneiro
Leão escolheu para dirigi-la o sociólogo que era naquele momento
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oficial de gabinete do governador. “E ele foi realmente o primeiro
catedrático de sociologia em Pernambuco, embora concordando
em apenas fundar a cátedra”. Por que o sociólogo quis “apenas
fundar a cátedra”? A explicação está num trecho da conferência que
o mesmo sociólogo pronunciará sete anos depois, na Faculdade de
Direito do Recife. Na cerimônia de abertura de um curso de socio-
logia (conforme anotada em notícia do Diario de Pernambuco) ele teria
negado a existência de sociologias particularizadas, entre elas a da
educação. Mas numa anotação em Tempo morto e outros tempos,
escrita ou não no calor da hora do convite para a Escola Normal, as
motivações são mais transparentes:
O que farei será tentar fundar uma cátedra de sociologia (eu preferiria
que fosse antropologia social, que é mais do que sociologia, minha
especialidade ou predileção, de antigo aluno de Boas) com orientação
científica, base antropológica e acompanhada de pesquisa de campo.
Como não há nem houve ainda – que eu saiba – no Brasil. Mas
tendo cuidado com o cientificismo, a que venho me referindo em
vários artigos como um mal a ser evitado em nossa cultura.
Os resultados da cátedra pioneira não tardaram. Em 1929, o
jornal A Província (dirigido então pelo sociólogo, responsável pela
criação da cátedra e oficial de gabinete do governador) noticiava
que a Prefeitura do Recife iria criar vários play-grounds para crian-
ças. A decisão se respaldava em pesquisa da Escola Normal. Em
Tempo morto e outros tempos o comentário é entusiasmado:
Talvez seja a primeira vez que, no Brasil, ou em qualquer país, uma
pesquisa sociológica obtém êxito tão imediato. (...) O que apurou-se na
pesquisa sociológica realizada pelas normalistas? Que grande parte das
crianças do Recife não tem onde brincar. Os sítios estão desaparecendo.
Os próprios quintais estão se tornando raros. Que resta, então, à maioria
dos meninos da cidade? Isto: brincarem nas ruas. Um perigo porque o
número de automóveis está aumentando. Só há uma solução: o play-
ground. O Recife vai ser a primeira cidade brasileira a ter play-grounds.
A avaliação que ele viria a fazer muitos anos depois dessa reforma
do ensino empreendida por Antônio Carneiro Leão é entusiasmada:
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Talvez a mais avançada, a mais completa, a mais complexa de quantas
reformas de ensino, com implicações culturais e sociais, dentre as quais
se verificaram na América Latina na primeira metade do século XX.
Mais completa que a de Vasconcelos no México. Mais avançada que a de
Fernando de Azevedo no Rio de Janeiro. Incluindo a educação sexual
de modo, para a época, escandaloso. Juntando trabalhos manuais aos
intelectuais. Dando ênfase ao ensino técnico ao lado do humanístico.
Valorizando a música no ensino normal como nunca se fizera a
então no Brasil. Criando, no ensino normal, a primeira cadeira de
sociologia moderna acompanhada de pesquisa de campo no nosso
país. Salientando, no mesmo ensino, o valor estético, ao lado do útil,
da culinária, da doçaria e da confeitaria regionais e tradicionais.
Tanto essas experiências de sociologia ou antropologia aplicada
à educação quanto a dinamização do jornal A Província seriam abrup-
tamente interrompidas. Como consequência da Revolução de 30, o
governador Estácio Coimbra foi deposto, e seguiu para o exílio, em
Lisboa, na companhia solidária do seu jovem oficial de gabinete,
que logo poderia dizer como o seu amigo Manuel Bandeira: estava
maduro para o sofrimento e para a poesia o futuro mestre de
Apipucos.
“Mestre de Apipucos” é uma designação que se popularizou,
em parte graças ao filme homônimo de Joaquim Pedro de Andrade.
Em reação a esse singelo documentário (1959), o “morador” de
Apipucos (bairro da zona norte do Recife), em artigo publicado
na revista O Cruzeiro (1959) explica porque se recusa ser assim cha-
mado. Não era a primeira vez que fazia isso quem tendo obtido
um título de mestre nos Estados Unidos, preferia, no entanto, ser
chamado de doutor, não na acepção acadêmica, mas na popular,
que é frequente em quase todos os rincões do Brasil.
Num texto em sua homenagem, publicado na obra coletiva
que discute a sua “ciência, sua filosofia, sua arte”, o então estudante
Luís Roberto Salinas Fortes começa por se referir a um episódio
em entrevista à imprensa quando o sociólogo-escritor se sentiu
incomodado ao lhe ser atribuído por um jornalista o título de
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professor. No seu comentário, mostra como a aventura intelectual
do escritor se opõe à rotina acadêmica desse “verdadeiro mestre,
que não aceita o título de professor”, atribuindo ao qualificativo
mestre (com certa equivalência a sábio) um valor semântico algo
distinto de professor.
O magistério era um velho conhecido da família. O seu pai,
Alfredo Freyre, fora professor. O futuro sociólogo – ainda mui-
to jovem – até o ajudou na preparação do texto com que con-
correu a uma cátedra na Faculdade de Direito do Recife. Não
quis, porém, seguir o mesmo caminho paterno. Tampouco acei-
tou fazer carreira nas “antigas fileiras da burocracia civil” (como
diz Sergio Miceli), as mais disponíveis no seu tempo. O magis-
tério, a diplomacia e o judiciário eram os rumos profissionais
comumente seguidos então – com poucas exceções – pelos inte-
lectuais no Brasil. A verdade é que no magistério superior atuou
realmente com frequência esporádica. Cada um desses exercícios
não pode ser separado do seu trabalho como autor, seja porque
das aulas resultaram livros, seja porque os livros inspiravam e davam
sustentação às aulas.
Anáglifos e simulacros
Até o início da década de 1930 a sua experiência no magistério
se resumia a: uma ‘estreia’ docente na adolescência, com aulas de
latim e história aos colegas; aos 19, como universitário em Baylor,
quando ensinou francês a jovens oficiais estadunidenses para aju-
dar a pagar os próprios estudos, e, já 1928, como funcionário do
governo Estácio Coimbra, no apoio à Reforma Carneiro Leão. Já
nesse tempo resiste à rotina das cátedras.
Por que então manifestando tão precocemente habilidades para
o ensino preferiu não adotar a carreira de professor? Convites
para isto nunca lhe faltaram. Como o seu amigo Julio Bello certa
vez afirmou, ingressar no magistério seria viver ainda que tranquila
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apagadamente uma vida provinciana. Preferia, portanto, a rotina
meio aventurosa da pesquisa e da literatura.
Aos 31 anos de idade, em Portugal, por breve período, boemia-
mente, deu aulas de inglês a exilados brasileiros como ele. Disso
restou só um registro pitoresco: respondeu “não sei” logo à pri-
meira pergunta dos seus alunos: “como é cabide em inglês?” ficou
sem resposta: “Eu não sabia. Creio que nunca soube. Parece até
que nunca vi um cabide em país de língua inglesa”.
Foi, no entanto, ainda durante a chamada “aventura do exílio”
(começada pela Bahia, continuada por Lisboa) que recebeu e acei-
tou (em fevereiro de 1931) o melhor dos convites para ser profes-
sor extraordinário. Veio da Universidade de Stanford, por iniciativa
de Percy Alvin Martin, um dos pioneiros dos estudos latino-ameri-
canos. Conheceram-se ainda nos tempos de Columbia (o começo
da década 1920). Por carta, ficou sabendo do exílio do amigo em
Lisboa. Não tardou em influir para que fosse convidado a dar um
curso de história social e econômica na Faculdade de Ciências So-
ciais da Universidade de Stanford, na Califórnia. Antes ali ministra-
ram cursos Joaquim Nabuco, Oliveira Lima e Afrânio do Amaral.
O convite foi motivado muito mais devido do reconhecimento
das suas qualidades intelectuais que de atividades acadêmicas ante-
riores no magistério superior. No currículo que registrou em Stanford,
a atividade docente se limita a “professor de sociologia e história
social na Escola Normal de Pernambuco”; em compensação, triun-
fa a pesquisa em bibliotecas: Oliveira Lima e do Congresso, em
Washington, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio
de Janeiro, e da Nacional de Lisboa.
As conferências, seminários e cursos que ministrou em Stanford
foram acompanhados por 50 inscritos – história – e seis, no seminá-
rio avançado sobre relações diplomáticas brasileiras. Tem interesse
para um provável perfil psicológico uma anotação nos “notebooks”
de Stanford em que se compara aos compatriotas Nabuco e Olivei-
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ra Lima, que foram conferencistas com algum destaque nos Esta-
dos Unidos. É um registro raro de humildade. Considera o seu
trabalho intelectual impresso meras monografias ainda verdes, com
pequena tiragem (não chegavam a mais de cem exemplares), e reco-
nhece que o muito amor que dedica a esses estudos não é suficiente
para que se considere com a autoridade de mestre.
Guillermo Giucci e Enrique Larreta dizem que desses cadernos
de Stanford se depreende a intenção de situar o Brasil como uma
civilização orientada para o futuro. E observam corretamente que
mais importante que a bibliografia utilizada nesses cursos ou a pos-
sível intervenção na carreira acadêmica dos alunos (não foi orientador
ao que consta de nenhum deles) é que nessas aulas em Stanford
estão já os temas que serão os característicos de sua obra. E a pri-
meira delas, que já começara em Lisboa a palpitar no seu espírito,
amadurece nos Estados Unidos e ganhará forma ao regressar ao
Brasil. Esse livro aprofundará a dissertação de mestrado defendida
anteriormente: Vida social no Brasil nos meados do século XIX. O crítico
Henry L. Mencken sugeriu: “Por que não expande isso num livro”?
Foi o que o jovem mestre tratou de fazer, mas muito tempo depois.
Para escrevê-lo tinha reunido, por mais de dez anos, um material
abundante. Premido por necessidades materiais e incentivado por
amigos – principalmente Rodrigo M. F. de Andrade – ele cuidou
de escrever o livro que há muito se prometia e que seria “diferente
de todos os livros”. Não seria mais O Brasil dos nossos avós nem Em
busca do menino perdido. Em 15 de novembro 1932, se chamava ain-
da muito academicamente Vida sexual e de família no Brasil escravocrata,
mas em 20 de janeiro de 1933, assumiu o título definitivo: Casa-
grande & senzala. Saiu no fim desse mesmo ano pela editora do
poeta modernista Augusto Frederico Schmidt. Dois meses antes
do lançamento, Rodrigo M. F. de Andrade publicava um artigo
antecipando o livro – porque já o conhecia, capítulo a capítulo, e o
próprio andamento do trabalho que lhe era informado por cartas
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do autor. Considerava que estava escrito com tal acuidade e inteli-
gência que tinha o alcance de “obra de utilidade pública”.
Casa-grande & senzala se escreveu num dos momentos de maio-
res dificuldades financeiras do autor. Como revelou em carta a José
Lins do Rego, datada do Rio de Janeiro, 19 de janeiro de 1932:
O livro de que lhe falaram é um estudo que ainda me custará várias
pesquisas, não poderei completar separado dos meus livros e notas.
Resulta de motivos econômicos: sendo má minha situação, esgota-
do tudo que ganhara como professor em Stanford, tive de aceitar
essa história – contrato com Schmidt editor, em termos bons e pelos
quais se interessaram o Rodrigo e o Bandeira. Com estes, o Pruden-
te, o Sérgio, o Cícero Dias estou sempre. Já não estou em casa de
Chateaubriand – que foi tão gentil comigo – mas num quarto de
pensão barata, sozinho. Lugar ignorado.
Escrevendo-o na casa do irmão Ulysses, vendia frutas e galinhas
e fazia leilões de livros para se sustentar. Numa das cartas a Rodrigo
M. F. de Andrade, ao pedir um favor para o pai, menciona um
curso que pretende ministrar na Faculdade de Direito do Recife:
Se lhe for possível e fácil, telefone a alguém do gabinete do ministro
da Educação para dar andamento a remessa – simples remessa – do
título de professor de meu pai. O do ministro do trabalho, cujo
concurso foi depois, cuja nomeação foi também depois, já veio. Mas
o do velho Freyre, nada. É um relaxamento danado nessas reparti-
ções brasileiras, quando não se trata de um político de cima ou de um
protegido. Os estudantes de direito insistem no curso; o Conselho
Técnico (de professores) aprovou unanimemente. Quero ver quan-
to pagam para ver se vale a pena.
Esse curso a que ele se refere tardaria ainda bastante tempo
para se efetivar. Mas ele tinha uma razão pragmática para aceitar o
convite dos estudantes:
Quanto ao curso da Faculdade, não me afastaria do livro e teria tido
a vantagem de me dar dinheiro para livros. Dos quatro contos rece-
bidos da editora, dois foram-se em livros que mandei buscar na
Inglaterra, França e U. S. A. – livros essenciais. E preciso de outros.
Sem eles, seria ridículo estar a fazer volumes inatuais.
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Escorço e camafeu
Na sua aparente desordem rabelaisiana percebida por Afonso
Arinos, Casa-grande & senzala tem uma ordem que talvez agradasse a
mentalidade de arquiteto na linha de um Gaudì. Além das inumerá-
veis ideias novas, com tantas criativas associações e poder sugestivo,
o autor conservou os andaimes das notas e das fontes em profusão,
buscando combinar ainda labor científico e qualidade estética da
escrita. Nascia, no entanto, o livro, como deliberada work in progress.
Entre as diversas teses que ali aparecem – algumas que conservaram
o viço e a polêmica – destaca-se a da miscigenação.
Faz a exaltação do brasileiro miscigenado – e isto se considera
um dos ovos de Colombo do livro (uma vez que os intelectuais
do Brasil no começo do século XX defendiam o contrário – o
branqueamento progressivo). Mas o elogio da mescla como posi-
tiva não se fez do dia para a noite no seu espírito. Foi uma conquis-
ta difícil, considerando-se que não era de modo algum aceitável
num tempo em que os intelectuais – e não só eles – defendiam
diversos tipos de eugenia e praticavam uma variedade ainda maior
de preconceitos. Uma década antes de escrever Casa-grande & sen-
zala o autor não se sentia ainda tão à vontade para defender o que
não estava estabelecido. A vontade de ser aceito e admirado e
certo trauma que gostava de contar de uma vez ter sido qualificado
por um tio como ‘o feio da família’ (tão chocante a ponto de haver
fugido de casa). Isso acentuou no menino de seis anos como no
jovem de 22 a insegurança e o narcisismo, a vaidade e, talvez, a
valoração da eugenia.
O exemplo extremo é um episódio de sua estada em Oxford.
O crítico literário Antônio Torres – que era nesse tempo vice-cônsul
do Brasil em Londres – quer visitá-lo e ele se inquieta por uma
dupla razão: o amigo, além de negro, era feio. O que diria à dona da
pensão, uma inglesa conservadora como tantos do seu meio? A
única saída seria convencê-la de que a feiura estava compensada com
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a genialidade (ideias que retomará mais tarde nos seus comentários
sobre a síndrome do ‘amarelinho’, os que, apesar feios, frágeis e até
doentes são exemplos de heroísmo e genialidade): – ‘a genius, Mrs.
Coxhill; but very dark and terribly ugly’.
Nem foi preciso ensaiar muito as explicações da feiura com-
pensada pelo gênio porque o vice-cônsul desistiu de visitá-lo. Quan-
do narrou o episódio ao escritor Antônio Callado, o sociólogo
observou talvez com malícia, comentando a carta que escreveu a
Torres respondendo ao seu desejo de visitá-lo: “– Não sei que terá
ele lido nas entrelinhas da resposta que lhe mandei.”
Em 1933, estava muito mais confiante, e a miscigenação já era
uma ideia bem cristalizada no seu espírito. Antes, como se pode
concluir lendo o que publicou na década de 1920, sofria influência
das teorias de fundo biológico, que talvez nunca tenha abando-
nado de todo. A manifesta valorização da eugenia talvez provenha
tanto disso quanto de idealizações e esteticismos. O exílio voluntário,
porém, acentuou outros valores.
Longe de casa, consegue enxergar melhor a si e ao seu país.
Indaga. Confronta. Harmoniza. No percurso de retorno ao Brasil
uma parte da viagem se fez da Califórnia a Nova Iorque, toman-
do a rota pelo Novo México, Arizona e Texas. A paisagem que
muito lembrou a do Nordeste, “em que a vegetação parece uns
enormes cacos de garrafa, de um verde duro, às vezes sinistro,
espetado na areia seca”.
Viagem de volta com o seu quê etnográfico. O escorço é com-
parativo, não tanto pelas coincidências entre a paisagem sua tão co-
nhecida no Nordeste, mas da sociedade brasileira e a norte-ameri-
cana, no que dizia respeito ao regime patriarcal. Numa parte do
percurso se fez acompanhar de Ruediger Bilden e Francis Butler
Simkins, que haviam sido seus colegas na Universidade de Columbia.
Deve ter pensado em Franz Boas enquanto fazia essa via-
gem. “A figura de mestre que me ficou até hoje maior impres-
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são” é o que diz quando o rememora no prefácio de Casa-grande
& senzala. No tempo de estudante em Nova Iorque aprendera
com ele a diferenciar de modo preciso raça e cultura; esta noção
básica da antropologia guiou o seu trabalho para o livro germinal
e revolucionário. Escrito numa linguagem desabusada, cheio de
ilustrações.
Casa-grande & Senzala, obra didática? É esta pergunta que o autor
e o médico alagoano Gilberto de Macedo tentam responder com
esse livro publicado em 1979. Escrito a quatro mãos, tem como
subtítulo: “Sugestões para sua utilização em estudos universitários
interdisciplinares no Brasil e talvez noutros países”.
O mote é o caráter interdisciplinar da obra, desdobrando-se
em cada um dos campos: antropologia, sociologia, psicologia, his-
tória, geografia, arquitetura, biologia, saúde, literariedade, linguística.
Qual a razão para se cogitar do uso didático de Casa-grande & senzala
como texto fundamental para estudos universitários e interdisci-
plinares dos países latino-americanos e do Brasil, em particular?
O autor responde que tal aplicação depende da “capacidade
interdisciplinar do professor”. Somente por intermédio de uma
visão global e crítica, que transcenda o mero especialismo:
A especialização depois da generalização. Isto, evidentemente, dá a
esse especialista, a capacidade para compreender o que, na área perti-
nente, ocorre nas zonas fronteiriças do seu setor de estudo. Esse é o
tipo de docente capaz de fazer uso magistral de um livro da natureza
de Casa-grande & senzala.
Em seguida, trata de situar Casa-grande & senzala entre os livros
que possuem qualidades específicas de um livro-texto: correção,
linguagem concisa, estilo claro, atualização, adequação, nivelação,
adaptação e flexibilidade. Com essas virtudes, ele entende que o
livro pode ser usado de modo específico para estudar de modo
interpretativo e crítico, e de modo específico o Nordeste do Bra-
sil, e considera o livro adequado principalmente para os estudos
universitários e em pequenos grupos de alunos.
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Os comentários do autor de Casa-grande & senzala tomam a
segunda e menor parte do livro e são talvez a mais detalhada rese-
nha dos seus fundamentos bem como a repercussão e influência
de suas teorias. Interdisciplinaridade e polivalência estão ali como
palavras-chaves. Esclarece: “Não creio que se deva compreender
o conjunto de sugestões do professor Gilberto de Macedo quan-
to às possibilidades de utilização didática de conceitos e métodos
de Casa-grande & senzala, em termos esquemáticos; e sim de modo
indireto. Informal. Oblíquo.
Lembra o autor que esse seu livro, que ele considera uma
“autobiografia coletiva do Brasil” já era estudado em cursos de
pós-graduação na França (Sorbonne). Estabelece então uma es-
pécie de roteiro do que vale a pena destacar nos estudos
porventura didáticos da obra.
Pluralismo metodológico. No livro não é utilizado somente um
método, ou não o faz do modo convencional comum nas ciências,
prefere usar vários métodos entrelaçados; Nova filosofia da história
humana; Destaque para o afronegro no Brasil, visto no seu livro não
como um colonizado, mas como um colonizador; Novas perspec-
tivas quanto à ecologia tropical e o processo interpenetrativo de
sangues e culturas; Linguagem literária empregada em obra de con-
teúdo científico, na forma de um ensaio antiloquente, em que pre-
domina o uso um tanto oral e até coloquial da língua portuguesa; A
antecipação de um necessário reconhecimento, em interpretações
do comportamento humano, da importância do sexo, da infância e
da alimentação na formação da família brasileira.
Relevos e dioramas
O livro Casa-grande & senzala foi lançado em dezembro de
1933. Quase um ano depois, de 11 a 16 de novembro de 1934, o
autor organizou no Recife o I Congresso Afro-Brasileiro. Esse
evento pode ser considerado um desdobramento público e su-
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pra-acadêmico daquele seu ensaio que defendeu, pioneiramente, a
contribuição africana ao Brasil.
Da comissão organizadora do Congresso participava o seu
primo Ulysses Pernambucano, um pioneiro da etnopsiquiatria no
Recife. Ele, que atuara na reforma do ensino secundário em
Pernambuco, era também um pesquisador das religiões afro-bra-
sileiras. Certamente isso contribuiu para que a ideia inicial fosse a
realização de um congresso de seitas e religiões que, afinal, se tor-
nou inviável devido à rígida ortodoxia de alguns dos seus chefes;
um deles, pai Adão, se recusou inclusive a participar do congresso,
pois, tendo feito sua formação na África, não queria se ‘misturar’
aos que avaliava menos qualificados do que ele.
A escolha do Teatro de Santa Isabel como sede dos eventos prin-
cipais tinha certo simbolismo. Naquele palco, Joaquim Nabuco disse-
ra “ganhamos aqui a causa da Abolição”. Quase meio século depois
de abolida a escravatura, brancos, negros e mestiços se reuniam para
exaltar a África. Para poder fazer isso, tiveram de negociar com a
Polícia, que fiscalizava e reprimia cultos afro-brasileiros no Recife.
O mesmo à vontade da linguagem de Casa-grande & senzala
se repete no encontro afro-brasileiro, tanto que o autor o definiu
como “o menos solene dos congressos. Nele não brilhou um
colarinho duro, não apareceu um fraque.” Outros, como René
Ribeiro, qualificariam, no futuro, esse congresso com três bês:
uma boutade, boêmia e blasé.
Mesmo que assim tenha sido o clima do evento, as atas publicadas
um ano depois mostram algo bem mais sólido, com artigos de
bom nível. No prefácio que escreveu para esse livro, intitulado Estu-
dos afro-brasileiros, Roquette-Pinto lembra que foi “a educação pura-
mente clássica” um dos fatores mais importantes para retardar “o
estudo dos elementos africanos incorporados à nacionalidade”.
Além das próprias comunicações, promoveram-se reuniões
em terreiros e exposições de arte religiosa. Sem falar que entre os
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palestrantes não estiveram somente intelectuais, mas ialorixás,
babalorixás, cozinheiras, rainhas de maracatu e trabalhadores de
engenho.
Ao mesmo tempo em que causou verdadeiro escândalo nos
meios mais conservadores, contou com o apoio de Mário de
Andrade, Álvaro Osório, Nóbrega da Cunha (diretor de ensino
do Ministério da Educação), Ulysses Pernambucano, José Lins do
Rego, Olivio Montenegro, Aderbal Jurema; e dos pintores que
cederam quadros para uma exposição temática: Cícero Dias, Di
Cavalcanti, Miguel Bastos, Lasar Segall, Santa Rosa, Lula Cardoso
Ayres, Manoel Bandeira, Hélio Feijó e Noêmia Mourão.
Para Hermann Matthias Görgen, a repercussão favorável do I
Congresso Afro-Brasileiro, e reações entusiasmadas de nomes como
Roquette-Pinto, marcaram o início da “marcha triunfal” do soció-
logo pernambucano pelas universidades do Brasil, da Europa, da
América Latina e dos Estados Unidos.
Tal “marcha triunfal”, no Brasil, ficou, a princípio, travada pela
burocracia do Ministério da Educação. Tardou tanto tempo em
autorizar um curso do sociólogo na Faculdade de Direito do Re-
cife que quase seria abortada a ideia que partira dos estudantes.
As ideias do jovem mestre – contava nesse tempo 35 anos de
idade – eram muito bem recebidas pelos estudantes, em contraste
com os mestres mais conservadores que viam nelas traços de radi-
calismo e esquerdismo, incluindo-se aí o tal curso de sociologia tão
aguardado e adiado.
Algo de rebelde e iconoclasta ainda vibrava no seu espírito
com muito viço. Era como se cessando há tempos a decisão de
ser missionário cristão não houvesse extinguido a flama que o movia
nesse sentido. O fulgor religioso fora substituído pela paixão polí-
tica, iniciada precocemente logo no seu retorno do ‘exílio’ delibe-
rado dos estudos superiores e, depois, no exílio verdadeiro,
involuntário e forçado pela Revolução de 30. De exílio em exílio
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ia construindo a sua obra, já bastante diversificada e expressa não
apenas em livros, mas no que se convencionou chamar de ação
cultural. Desde a segunda saída do país, já publicara: Casa-grande &
senzala (livro de história em que empregava métodos de antropo-
logia e sociologia), Guia prático, histórico e sentimental da cidade do Recife
(um guia de viagem escrito em linguagem literária e carregado de
subjetividade) e em 1935 havia reunido uma pequena parte de sua
colaboração na imprensa e dado à luz Artigos de jornal. Mas, em
tempos de interventores não se pode esquecer as “Intervenções”
culturais, como o I Congresso Afro-Brasileiro (1934), que era a
expressão étnica do que fora o Congresso Regionalista (1926).
O contingente de leitores nesse tempo era formado não só
por alguns dos melhores escritores e intelectuais, mas pelos jovens
inconformistas que ansiava por liberdade política e transforma-
ções sociais. Se havia sido sepultada uma República, de velha, a
outra, que tomara o seu lugar, tampouco agradava, e os ideais
desses jovens não podiam prescindir de ampla liberdade de ação.
Diversas transformações já haviam se processado no país, des-
de que em outubro de 1930 eclodira a Revolução de 30. E a mais
importante delas era a implantação de universidades. Primeiro a de
São Paulo (1934) e logo em seguida (1935) a do Distrito Federal (o
Rio de Janeiro). Alguns dos melhores acadêmicos brasileiros e es-
trangeiros trabalharam nessa ‘construção’ dos novos rumos para a
educação nacional. O jovem sociólogo pernambucano estava entre
eles. Recebera de Anísio Teixeira convite entusiasmado para fundar
uma cátedra de sociologia na Universidade do Distrito Federal, e
aceitara. Mas antes tinha de cumprir compromisso antes assumido
com os estudantes da Faculdade de Direito do Recife.
O curso foi “Introdução ao estudo da sociologia regional”. A
demora do ministério em autorizá-lo contribuiu para que, previsto
inicialmente para durar três meses, se resumisse a um. Tinha que assu-
mir com urgência a cátedra na Universidade do Distrito Federal.
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Na Faculdade de Direito do Recife a conferência inaugural se
deu na noite de 8 de agosto de 1935. Na bibliografia, em várias
línguas, constava com destaque o livro Princípios de sociologia, de
Fernando de Azevedo, a referência principal. O método utilizado
no curso foi idêntico ao que empregara em Stanford. Terminava
por uma espécie de glossário. Chama atenção o que diz a respeito
da ecologia, obviamente um tema incipiente naquele tempo, e que
seria o eixo dominante do livro que publicará em 1937: Nordeste.
Esse livro contém críticas sérias às usinas, e os usineiros que tanto
se opunham ao sociólogo talvez pudessem aprender algo no cur-
so, especialmente no que dizia a respeito do meio ambiente:
Ecologia não é coisa feia. É simplesmente a ciência que procura deter-
minar e explicar o complexo de relações entre plantas e animais que
crescem juntos e o respectivo meio. A ecologia humana procura estu-
dar o homem pelo mesmo critério, isto é em relação com grupos
regionais de animais e plantas e com o respectivo meio. mas toman-
do em consideração a extraordinária mobilidade do homem no es-
paço e no tempo – fugindo assim ao determinismo geográfico.
Arabescos e filigranas
O manual de Fernando de Azevedo também seria utilizado
no trabalho seguinte, na Universidade do Distrito Federal. cursos
de antropologia social e cultural. Teixeira convidou-o a ser o dire-
tor do departamento de antropologia e sociologia geral. “O seu
trabalho será grande, devo dizê-lo porque V. será o responsável
maior pelo preparo do professor secundário de sociologia”.
Como antes em Stanford, o convite acadêmico provinha de um
amigo que o admirava desde que se conheceram. Havia uma série de
coincidências e convergências entre eles. Nascidos no mesmo ano
(1900), no final da década de 1920 estavam ambos a serviço dos seus
governos estaduais. Se eles coincidiram no ímpeto religioso na juven-
tude, foram bem distintas as orientações que pretenderam seguir:
missionário protestante no pernambucano, sacerdote católico no
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baiano. Outra coincidência: ambos estudaram na Universidade de
Columbia. Como assinalam Guillermo Giucci e Enrique Larreta:
Freyre reconhece ter afinidade com Teixeira por ambos considerarem a
política mais como um meio do que como um fim em si mesmo. (...)
Aproximou-os também o impulso modernizador e o empenho em
incorporar novas técnicas de conhecimento à vida social. Isso motivou o
convite de Anisio Teixeira para que Freyre dirigisse o Departamento de
Sociologia e Antropologia da Universidade do Distrito Federal. Teixeira
vinha realizando experimentos educacionais no contexto das mudanças
políticas de 1930. Assumiu em 1931 a diretoria de Instrução Pública do
Distrito Federal, a convite do prefeito Pedro Ernesto Batista. Fez parte
de um movimento de reconstrução educacional, com outros jovens
educadores influentes no ensino público brasileiro, como Lourenço Fi-
lho e Fernando de Azevedo. Foi no contexto desse movimento de
modernização das estruturas de ensino superior que se fundaram a
Universidade de São Paulo, em 1934, e a Universidade do Distrito Fede-
ral, em 1935. Tratava-se de desenvolver universidades dotadas de capaci-
dade de pesquisa articulada com o movimento científico internacional,
mediante a contratação de professores estrangeiros, com a integração da
universidade ao desenvolvimento do estado nacional.
No dia 12 de setembro de 1935 (logo um dia depois ao início
do curso), o professor dá notícias ao amigo Olívio Montenegro:
Os cursos são estritamente limitados aos estudantes e por uma exce-
ção toda especial só foi admitida como ouvinte a Lúcia Miguel Pereira,
com um cartão do diretor-geral do ensino.
Como antes fizera quando atuou na Escola Normal, no go-
verno Estácio Coimbra, em que os seus alunos fizeram no Recife
trabalho de campo, o Rio de Janeiro também foi assim usado, em
aulas práticas, em que aspectos econômicos, ecológicos e sociais
da cidade foram estudados pelo olhar antropológico. Os morros
tiveram destaque nesse trabalho de campo. De que maneira o morro
se refletia na fala carioca e no samba, por exemplo, era algo a ser
investigado pelos estudantes.
As aulas duraram cinco meses. O curso resultou em grande
êxito – inclusive na imprensa – e, de certa maneira, o convite que
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lhe fizeram os estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo
para ali proferir uma conferência é desdobramento dessa boa re-
percussão da sua atuação acadêmica, já testada no Recife, no Rio e
na Califórnia. As aulas primavam pela clareza e coloquialismo, um
pouco talvez no estilo que notabilizara o seu mestre Franz Boas.
Sociologia – introdução ao estudo dos seus princípios é livro que resul-
tou diretamente desses dois cursos – no Recife no Rio de Janeiro.
O estudo está dedicado à memória de Roquette-Pinto tem algo
de simbólico: foi ele e Anísio Teixeira (que prefacia o livro) quem
melhor receberam ou entenderam o sociólogo quando ele retornou
ao Brasil, em 1923, depois de quase um lustro ausente.
Decerto que com esse tratado – que se projetou para 5 volumes
– a ambição era superar o manual de Fernando de Azevedo, que lhe
fora tão útil.
Só um autor, simultaneamente pensador, escritor e sábio, poderia
escrever essa Introdução à sociologia, sem incorrer no vício fundamen-
tal do suposto livro didático, que o de não conseguir ser útil, por assim
dizer, senão aos que já conheçam satisfatoriamente o assunto. Chama-
-se com efeito de livro didático um tratado em que se apresentam as
noções, os princípios e as leis de qualquer ciência, expostos sistemática
e tecnicamente, como um corpo ordenado de conhecimentos.
A conferência, realizada no dia 26 de outubro de 1935, versou
sobre o tema “Menos doutrina e mais análise”, e foi muito con-
corrida, tendo na plateia nomes que logo se fariam ilustres, como
Roberto Simonsen, Caio Prado Júnior (que o conferencista inclui
entre a “gente mais avançada”), Claude Lévi-Strauss e Fernando
de Azevedo. Em outra carta a Olívio Montenegro, datada de 29
de outubro de 1935 dá notícias de sua repercussão favorável, e
diz: “Sinto afinidade com o meio de São Paulo que não sinto com
o Rio, e não digo isso agora, V. sabe: sempre as senti”. E antes
tendo o cuidado de esclarecer a respeito do seu tema:
A conferência que fiz – aliás, tratando no fim, de um ponto que
considero importantíssimo, e para o qual chamo sua atenção – a
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insuficiência do método histórico no caso da formação brasileira, sua
inadaptação – em querer se aplicar ao nosso caso, em que a existência
histórica é insignificante em contraste com a não histórica, fórmulas
baseadas em experiência puramente histórica, como o materialismo
histórico-marxista – foi concorridíssima.
Concluído o curso no Rio, segue em viagens de pesquisa pela
Europa – incluindo a Inglaterra e a Espanha, onde não pode se
demorar muito, entre outras coisas devido à guerra civil – volta aos
Estados Unidos. Quinze anos depois de obter o mestrado na Uni-
versidade de Columbia, volta lá para dar um curso de história e
sociologia da escravidão. Reencontra velhos mestres como Seligmann
e Boas (com quem almoça). Ao amigo Sylvio Rabello diz, em carta,
que, apesar dos convites recebidos para conferências em diversas
universidades, resolveu antecipar o regresso, por problemas de saú-
de. A razão verdadeira foi outra – problemas econômicos – como
revelou, em outra carta, ao pai, datada de 7 de outubro de 1938:
Encontramos aqui a vida cara – para quem pensa em termos de mil-
réis e também em termos de dólares. Assim resolvi deixar para o ano
as conferências que devia fazer em várias universidades – Harvard,
Chicago e outras – o que me prenderia mais um mês aqui, no míni-
mo, sendo os convites até agora de 5 a 50 dólares cada conferência,
isto é, 250 dólares, que seriam absorvidos pelo próprio mês que teria
de permanecer aqui. Nenhuma vantagem, por conseguinte. Voltan-
do imediatamente após o curso em Colúmbia, levo para aí alguns
dólares – que era o que eu desejava desta viagem.
De fato estará de volta aos Estados Unidos no ano seguinte,
mas não para acudir a diversas conferências, mas para realizar uma
atividade acadêmica da mesma natureza que a desenvolvida em
Columbia: a de curso extraordinário, desta vez em Michigan. Ape-
sar de no começo da década de 1940 – recém casado – preferir a
rotina em sua casa, aceita um convite do Ministério da Educação e
Saúde para, em 1942, realizar uma missão técnica no Uruguai, Paraguai
e na Argentina. O objetivo dessas viagens era oferecer ao ministério
sugestões para intensificar as relações culturais com todos os países
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ANTONIO GRAMSCI
da América Latina. Ficou pela metade devido a motivações pessoais
e políticas. E na política é cada vez mais forte a sua atuação.
Terceira parte: o mestre-aprendiz
Vinhetas e figuras
Eu creio que o centro mais sério de produção de estudos sociais no
país foi a Universidade do Distrito Federal, fechada pelo Estado
Novo. Inclusive pelo que propus ali para a moderna indústria brasi-
leira. Como antropólogo, cheguei a propor a industriais ligados ao
vestuário pesquisas para sabermos as configurações físicas mais típi-
cas dos brasileiros de cada região. (...) Como vocês veem, procuráva-
mos ligar nossa ciência ao surto industrial que estava em curso, coisa
que ainda está por se fazer. A partir de certa altura, o maior centro de
estudos sociais do Brasil passou a ser São Paulo, que também vivia
uma feliz experiência universitária sob o patrocínio de Armando
Sales de Oliveira e de outros. Tanto lá como no Rio houve a acertada
orientação de importar professores estrangeiros competentes, pois,
por mais patriotismo que se tivesse, não era possível inventar soció-
logos, antropólogos e mesmo economistas por aqui. O estudo da
economia era então muito precário, tendo Roberto Simonsen como
expoente. Foi preciso esperar pelo aparecimento de Caio Prado Júnior
para termos um economista idôneo.
Nesse trecho de entrevista à revista Ciência Hoje (1985) está
um resumo do clima intelectual e acadêmico típico das décadas
de 1930 e 1940. A experiência da Universidade do Distrito Fe-
deral foi interrompida em 1937 com a entronização do Estado
Novo. Em Pernambuco, a inimizade com o interventor Aga-
menon Magalhães não inviabilizou o bom relacionamento do so-
ciólogo com membros do governo federal. A começar do minis-
tro da Educação, Gustavo Capanema. Este, ao ver inviabilizada a
aceitação de um novo convite para retomar a cátedra de sociolo-
gia, propôs uma missão de vários meses no exterior, e isto foi
aceito: pesquisas no Uruguai, Paraguai e Argentina (onde estava a
ser traduzido Casa-grande & senzala), e, no fim do percurso, uma
estadia nos Estados Unidos.
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COLEÇÃO EDUCADORES
À parte as desavenças locais no Recife, o Estado Novo não o
molestou. Em 1937, por exemplo, passou a ser consultor técnico
do Patrimônio Nacional (permaneceria nisto por cerca de vinte anos).
Se o exílio voluntário lhe proporcionou o clima ideal para as
pesquisas, a concentração e redação de um grande livro, o novo
regime instaurado no Brasil lhe dava oportunidades únicas para
acentuar o ‘marketing’ pessoal que a publicação do seu livro em
1933 impulsionara. Essa promoção do seu nome se fazia em duas
frentes: na militância oposicionista e com viagens de estudos e en-
sino, como à Europa, em 1938 (conferências e cursos nas univer-
sidades de Londres, Coimbra, Porto e Lisboa).
No Brasil, na política, já há muito não era simples auxiliar do
ex-governador Estácio Coimbra. Tinha projeção e brilho própri-
os. O ingresso na política congrega tanto a vocação de reformador
social quanto a capacidade de autopromoção. Nos seus inflama-
dos artigos e discursos não estão ausentes nem a retórica nem a
eloquência que ele chegou a rechaçar na juventude, mas de que
afastou com muito menor ênfase do que proclamava. Quem apre-
ciava autores como Walt Whitman e Augusto dos Anjos, por exem-
plo, não estava infenso a um tipo muito peculiar de grandiloquência
ou de efeito verbal vizinho distante daquela dicção dos profetas
bíblicos. Os pronunciamentos políticos do sociólogo, com ter
objetivos de persuasão, muitas vezes acentuam os floreios verbais
e o tom chega, em alguns momentos, à virulência dos panfletos.
Se a imaginação de menino tanto alimentara os escritos e a
quase militância missionária da primeira juventude (na República
Velha), agora era o ímpeto juvenil que o movia. Não foi o gosto
pelo bacharelesco (que nunca teve) o que o levou a aceitar convite
para ministrar curso na Faculdade de Direito do Recife (e confe-
rência na de São Paulo), e sim a sintonia com os estudantes. Um
destes seria o mártir da luta oposicionista contra Vargas: Demócrito
de Souza Filho. O episódio de sua morte, quando participava de
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ANTONIO GRAMSCI
comício, junto com o sociólogo na sacada do Diario de Pernambuco,
é bem conhecido.
Os estudantes mais uma vez estimulavam o que porventura
existisse de espírito abolicionista na linha espiritual de Nabuco ou
de um condoreirismo gauche, sem a poesia inflamada de Castro
Alves. Nessa atmosfera inflamada, em que houve inclusive a depo-
sição do presidente Getúlio Vargas, em outubro de 1945, é que se
engajou em campanha política para deputado federal constituinte.
Graças ao capital simbólico dos segmentos identificados com
a redemocratização e o capital financeiro de Odilon Ribeiro
Coutinho (usineiro paraibano com dotes de intelectual) conseguiu
eleger-se. Não era mais uma cadeira universitária que assumia, mas
da Câmara: em fevereiro de 1946.
Com relativa rapidez se promulgou a nova constituição (se-
tembro de 1946) e ele passou então a exercer o mandato comum,
integrando a Comissão de Educação e Cultura. Entre as discus-
sões em que se envolveu mais diretamente estavam o barateamen-
to do livro didático e a federalização das universidades. No caso
desta última questão, o seu parecer recomendava que só se
federalizassem as universidades “de importância regional ou de
amplitude transnacional”.
A despeito da importância de temas como o livro, as universi-
dades, o preconceito racial e a situação dos estrangeiros, não fo-
ram esses em que deixou a sua marca mais pessoal no único man-
dato que teve. E sim a criação de institutos de pesquisa – “dois ou
três institutos de pesquisa social, para o estudo científico do ho-
mem brasileiro, e não um só” – como defendia, na época. Os três
institutos sonhados seriam para o Norte/Nordeste, o Brasil Meri-
dional e o Brasil Central.
Era um desejo antigo seu. Vinha de uma década, pelo menos.
Em carta a Olívio Montenegro, datada de 24 de dezembro de 1935
se refere a outra carta, de Sobral Pinto, que comenta a “nota que
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COLEÇÃO EDUCADORES
escrevi sobre o Instituto de Pesquisas daí, do qual cuidarei com todo
o interesse, quando voltar para o Recife em abril ou maio, com ou
sem o auxílio prometido mas não firmemente. Com outros recur-
sos e sobre outra base”. Cinco anos depois, em nova carta, também
ao amigo Olívio, reconhecia que “o Instituto de Pesquisas e Estudos
aí pode demorar”. E demorou. Mais oito anos para sair da cabeça
ao papel e mais algum tempo até ser inaugurado.
Obviamente, os ‘outros recursos’ e a ‘outra base’ não vingaram
de imediato. Dez anos depois, as condições eram não só mais favo-
ráveis, mas oportunas. A democracia. O mandato de deputado fe-
deral. O centenário de Joaquim Nabuco, que se avizinhava. Desse
modo, conseguiu aprovar o projeto de criação não de três institutos,
mas de um – o do Norte/Nordeste. Não se chamaria Ulysses
Pernambuco (o nome pensado mais remotamente, quando pela
primeira vez falou da ideia ainda no Recife), mas Joaquim Nabuco,
tendo como pretexto a celebração dos seus anos do seu nascimento.
Concentrando, de início, a sua missão nas pesquisas para melhoria
de condições de vida do trabalhador rural. Um aspecto era funda-
mental para o seu funcionamento adequado na visão do sociólogo-
deputado: a independência de qualquer universidade. Para evitar o
burocratismo, ele justificava. Definia-o assim:
Ao Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais não tocam res-
ponsabilidades especificamente didáticas. Não é um centro de ensino
mas de pesquisa. Como, entretanto, a pesquisa não se aprende sem
estudo e sem ensino sistemáticos, o Instituto se vê obrigado a minis-
trar cursos de iniciação à pesquisa em ciências sociais...
Emblemas e panoramas
O Instituto Joaquim Nabuco (depois chamado de Instituto
Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais e, no último ano da década
de 1970, transformado em Fundação Joaquim Nabuco) nasceu
como um prolongamento das ideias e dos livros do sociólogo-
deputado. Ele mesmo chegou a reconhecer que a instituição era
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ANTONIO GRAMSCI
filha ou neta do Movimento Regionalista que liderara na década
de 20. O jornalista Nilo Pereira costumava dizer que o IJN “foi a
complementação de Casa-grande & senzala. Casa-grande & senzala
foi a teoria, o IJN a prática.”
Ao avaliar esse Instituto, décadas após a inauguração, e já
transformado em Fundação Joaquim Nabuco, o historiador Paul
Freston o definiu como uma “ilustração bem sucedida da traje-
tória de uma elite numa região decadente” e “instituição buro-
cratizada, calcada no regionalismo, dependente do familismo e
do clientelismo”.
Independente das avaliações, críticas ou interpretações que haja
sofrido ao longo do tempo, o Instituto/Fundação resultou do
idealismo do sociólogo. Tudo em busca de encontrar meios aca-
dêmicos (ou supra-acadêmicos) próprios para investigar o passa-
do-presente-futuro das pessoas e da região onde nasceu e decidiu
imperar como homem de ideias e ação.
Fundado o instituto, cumprido o sonho já alimentado há tanto
tempo, as aventuras do escritor-professor ordinário-extraordiná-
rio são retomadas com fôlego: em 1951, por exemplo, ele escre-
veu por encomenda da Universidade Londres, um estudo em in-
glês sobre a situação do professor no Brasil (ensaio publicado no
Year Book of Education).
Chegara ao mezzo del camino da vida. As duas primeiras décadas
do século XX tinham sido para ele os anos de aprendizagem e de
ação intensa no jornalismo e no serviço público. Na de 1930 veio
a consagração como pesquisador, professor e autor. A de 1940
define sua atuação política mais explícita. A de 1950 será aquela
em que por assim dizer amadurecerá as suas principais ideias e
concluirá tudo o que de mais importante pode realizar como au-
tor. Ordem e progresso sai em 1959 e fecha um ciclo iniciado em 1922
com a sua dissertação de mestrado Vida social no Brasil nos meados do
século XIX).
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COLEÇÃO EDUCADORES
Não conseguindo reeleger-se deputado, voltou-se mais uma
vez para as viagens. A primeira incursão/excursão, tão importante
quanto polêmica, foi a Portugal e seus velhos domínios: de agosto
de 1951 a fevereiro de 1952. Logo no ano seguinte, publica dois
livros que dão conta desse trabalho: Um brasileiro em terras portugue-
sas – introdução a uma possível lusotropicologia, acompanhada de confe-
rências e discursos proferidos em Portugal e em terras lusitanas e
ex-lusitanas da Ásia, da África e do Atlântico. Continuação de Aven-
tura e rotina (que saiu também em 1953). Este foi o segundo traba-
lho intelectual que escrevia em forma de diário (diário de viagem
ou de campo, como preferem os antropólogos). Se o primeiro
diário, íntimo, rascunhado entre 1915 e 1930 (mas de publicação
muito posterior) eram registros “à procura do menino perdido”,
este novo texto também abrange uma busca, não de um homem,
mas de toda uma civilização: “À procura das constantes portu-
guesas de caráter e ação”.
Na prática, tanto essas viagens quanto o livro Aventura e rotina
podem ser considerados desdobramentos de uma conferência
pronunciada em 1941, no Gabinete Português de Leitura do Reci-
fe e depois publicada em livro: Uma cultura ameaçada – a luso-brasi-
leira, verdadeiro manifesto a favor dos valores do antigo coloniza-
dor: assimilados, temperados e recriados pelos países que viveram
aquela colonização.
Nota-se que tanto o regionalismo de 1926 quanto o tropica-
lismo de 1951 (ou 1941) obedecem ao mesmo princípio: as
características físicas, geográficas espelham a da cultura e do
conhecimento local, ‘do homem situado’, como o antropólogo
preferia falar. Mas diferentemente do regionalismo que não teve
consequências políticas palpáveis (exceto uma mais ou menos
pueril comparação com a Semana de Arte Moderna de São
Paulo), o tropicalismo enfrentou desde o início resistência nos
círculos mais críticos, entre outras coisas, a simpatia de primei-
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ANTONIO GRAMSCI
ra hora com que foi recebida pelo ditador português Antonio
de Oliveira Salazar.
A tropicologia foi provavelmente a tese mais ambiciosa do
antropólogo, que a definiu como ciência. Embora sem estabelecer
as bases e os sistemas em que se desenvolveria. Não faltaram, po-
rém, ricas sugestões e indicações, tantos as abrangentes quanto as
mais específicas. Mais ou menos do que uma só ciência, a
tropicologia pode ser vista como um projeto cultural e educacio-
nal em que a abordagem interdisciplinar se propõe a congregar
dentro do âmbito mais geral os especialistas.
O hibridismo que o antropólogo via nas gentes dos trópicos
talvez tenha assumido a forma de simbiose naquela ciência nova e
exótica, no seu modo peculiar. Sendo ciência teria o seu tanto de
arte e, sendo arte, não desdenhava a filosofia. E em cada um des-
ses casos tem-se um dialético jogo de ser e de não ser, que bem
caracteriza toda a ação do antropólogo-escritor pernambucano.
Tropicologia e tropicalismo tão atacados por uns, foram aca-
tados por outros, como o diretor da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal de Pernambuco, no começo da década de
1960. Ali se situou o Instituto de Antropologia Tropical vinculado
a essa universidade que, embora criada em 1946 (Universidade do
Recife), a partir de 1961 é que assumiria o nome pela qual é na
atualidade conhecida. O sociólogo-antropólogo, fundador da
tropicologia participou das duas fases.
Em 1965, por exemplo, no momento em que se discutiam
os aspectos jurídicos e didáticos do funcionamento da universi-
dade, ele, como participante do simpósio, fez conferência em
que propôs adaptar os seminários interdisciplinares do historia-
dor Frank Tannenbaum (1893-1969), professor de história da
América Latina na Universidade de Columbia de 1935 a 1962.
Dessa proposição nasceu o Seminário de Tropicologia. O pri-
meiro deles aconteceu em 29 de março de 1966. Em 1980, foi
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COLEÇÃO EDUCADORES
transferido para a Fundação Joaquim Nabuco e, em 2003, para
a Fundação Gilberto Freyre.
A tese da tropicologia não teve grande fortuna. Nem os seus
derivados lusotropicalismo e hispanotropicalismo. Poucos, além do
seu autor, acreditaram nela. Com Espanha e Portugal integrados à
União Europeia vê-los como gente tropical quem sabe fosse um
espejismo que agradasse a Quijote. Mas no fundo, como queria o an-
tropólogo talvez continuem a ser europeus magnificamente impu-
ros. Quanto à tropicologia, sendo ciência ou sendo mais um daque-
les mitos líricos cultivados por escritores, o fato é que nenhum outro
brasileiro conseguiu com tanto vigor pela força da palavra aproxi-
mar Áfricas, Orientes e Brasis. Mais de cinquenta anos depois da
publicação de Aventura e rotina o salazarismo está morto, mas o
tropicalismo vive, e tem muitas cores, muitos corpos, muitas faces.
Mesmo com todo o enriquecimento e diversificação dos estudos a
respeito da África e da Ásia, muitas das sugestões e opiniões do
sociólogo brasileiro continuam vivas, algumas delas intactas e à es-
pera ainda de que estudiosos as revisitem e enriqueçam. Como em
outras de suas propostas peculiares, como “tempo tríbio”, “ho-
mem situado”, a tropicologia é mais uma das tentativas de criar um
pensamento brasileiro autêntico. E embora já se tenha dito mais de
uma vez que o sociólogo é produto do sistema universitário norte-
americano, todo o seu empenho foi menos imitar que adaptar da-
quele sistema o que houvesse de válido (o seminário Tannembaum é
um exemplo) para a consecução de uma ciência “brasileirinha da
silva”. No seu jeito um tanto lúdico, o seminário com a forma que
tomou nos trópicos tem sido uma prova eficaz de que há vida inte-
ligente para além do academicismo burocrático e asfixiante.
Pautas e colagens
Para o bem e para o mal, lusotropicalismo e salazarismo rima-
vam. Sem que o ex-deputado-sociólogo brasileiro e o ex-profes-
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sor-ditador português precisassem harmonizar em demasia o que
tinham de contrário. A apologia aos lusos não se iniciou naquelas
viagens de 1951 a convite. Nem quando o sociólogo alertou para a
cultura luso-brasileira ameaçada (1941). Dez anos antes disso, nos
meses de desassossego e esplendor que passou em Lisboa, fez os
primeiros esboços de Casa-grande & senzala. É esse o primeiro dos
seus livros que contém de modo substantivo o elogio explícito da
civilização portuguesa. O gérmen do luso-tropicalismo (ideologia e
ciência ao mesmo tempo).
Roger Bastide considerava-o mais do que uma simples apolo-
gia a Portugal, “embora esta apologia seja um dos seus elementos
constitutivos”. A ciência-ideologia aparece discutida no livro An-
tropologia aplicada, particularmente o ensaio “Defesa e ilustração do
marginalismo” (de que o estudo sobre o luso-tropicalismo é um
dos tópicos).
Numa interpretação da interpretação, ou seja, uma releitura do
estudo de Bastide (complementada com leituras de Marvin Harris) o
sociólogo Souza Barros, no artigo “Sobre estatística e estatísticos”,
ataca o luso-tropicalismo. A despeito desses e de vários outros textos
analíticos, a ‘ciência’ proposta pelo sociólogo ainda está longe de es-
gotar-se como fonte de crítica – o que comprova a sua vitalidade.
Se o sociólogo brasileiro não fez a apologia da ditadura por-
tuguesa em 1951, foi um dos primeiros a defender a ditadura
brasileira em 1964. Vinte anos antes desse golpe, ele estava em
campanha a favor da redemocratização, agora dizia “não” à de-
mocracia. Em ambos os casos, a sua mobilização política trouxe
consequências diretas para a recepção de sua obra.
O apoio à ditadura militar não foi o bastante para que se ani-
masse a aceitar o convite para ser ministro da Educação “Cheia de
polidez foi a recusa”, disse Luiz Viana Filho, biógrafo do general
Castelo Branco, o primeiro dos ditadores do ciclo militar iniciado
em 1964 e só concluído em 1985.
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COLEÇÃO EDUCADORES
Estudantes e professores que antes tanto se sentiam atraídos
pelo “mestre de Apipucos”, mudam de atitude em reação à sua
guinada política, mesclando desdém e rechaço. A começar dos
sociólogos de São Paulo. Porém, três anos antes do golpe, Florestan
Fernandes, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso ainda in-
tegravam o cordão azul dos louvadores do sociólogo
pernambucano. Basta ler suas cartas cheias de protesto de estima e
consideração. Veio 1º de abril de 1964, e restou só o protesto.
Ainda estou sob a impressão extremamente agradável e fascinante
que me deixou o nosso encontro em Recife. Não tenho palavras para
agradecer a generosa hospitalidade que me dispensou e a grata opor-
tunidade de um entendimento franco, em profundidade, consigo e
com seu grupo.
Esse trecho de carta de Florestan Fernandes é só um exem-
plo mínimo da admiração proclamada em outras cartas respei-
tosas e reverentes à sua autoridade intelectual. Há na correspon-
dência mais do que amabilidades: os sociólogos paulistas pro-
põem a colaboração do sociólogo pernambucano. É importan-
te lembrar que o combate de certos meios acadêmicos ao autor
de Nordeste não começou em São Paulo, mas entre os próprios
nordestinos da Faculdade de Direito do Recife, tendo à frente
nessa campanha o professor Gláucio Veiga, ainda na década de
1950. Ele explica a razão do ataque à obra do sociólogo: “tinha
por objetivo neutralizar a influência do gilbertismo, cada vez mais
ampla nos setores universitários”.
1964 foi um palíndromo trágico de 1946. O constitucionalismo
do sociólogo-deputado que admitia voto de comunista se con-
verteu, inconstitucionalissimamente, no oposto. A vibração políti-
ca volta, nos discursos inflamados. Não mais contra o Estado Novo;
a favor da ditadura. O ex-deputado definia como “corruptores
da cultura universitária” e “traidores do Brasil” os que se opu-
nham aos militares, e se mostrava favorável à aposentadoria com-
pulsória de professores universitários.
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A partir da década de 60 se acentua a distância entre o sociólogo
pernambucano e os sociólogos paulistas. Diferentes não só devido à
ideologia. A própria postura diante do Brasil era distinta. O que co-
meçou em política logo contaminou a ciência. Ou terá sido o contrá-
rio? Havia nisso certa ironia histórica. Décadas antes, o regionalismo
pernambucano se distinguira do modernismo paulista justo porque se
voltava mais para o científico e o de São Paulo para o artístico. Agora
os do sudeste se autodenominavam cientistas e davam a nordestinos
como o mestre de Apipucos a pecha de artistas e ideólogos.
Como no caso do modernismo x regionalismo, havia entre
essas duas ‘escolas’ de sociologia muito mais complementaridade
que simples oposição. Mas, enquanto não se redemocratizasse o
Brasil – e as mentes, nos meios acadêmicos – obras como Casa-
grande & senzala e Sobrados e mucambos integravam um invisível índex.
Das que não valia a pena ler, das que “não li e não gostei”, das que
seriam no máximo referências para mitos e ideologias.
O que é ciência? O que é científico? Desde a sua consolidação, as
chamadas ciências sociais tentam responder a essas perguntas. Os mais
argutos sabem que tal cientificidade – como também a literariedade –
nunca será pura. Do mesmo jeito, perguntar o que é o Brasil e quem
são os brasileiros preocupou toda uma geração para quem temas
como ‘identidade’ e ‘caráter nacional’ tiveram as maiores das impor-
tâncias. À medida que o tempo avançou e as explicações envelhece-
ram, restou a arte, com que essas obras foram escritas – e, neste caso,
a do morador de Apipucos levou inegável vantagem sobre a dos seus
colegas paulistas, mas a guerra sociológica não teve vencidos. Tal luta,
no entanto, não se iniciou em 1964. Vem, pelo menos, desde 1943, a
partir de uma resposta do sociólogo-crítico literário Antonio Candido
a um inquérito de O Estado de S.Paulo.
O apoio do autor de Açúcar ao golpe militar foi a exacerbação
de um posicionamento político que nunca excluiu o conservadorismo.
Tudo isso contribuiu para que sua obra sofresse longo ostracismo
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nas universidades brasileiras. O reconhecimento acadêmico desde
então proveio grandemente do exterior, com Honoris Causa de uni-
versidades como a de Paris, Columbia, Coimbra, Sussex, Münster.
Ainda quando aprendiz, o sociólogo-antropólogo opinava que
os grandes pensadores são os nada convencionais, porque enten-
dia que as convenções são muitas vezes inimigas do “verdadeiro
gênio criador”. Se havia nele um projeto de ‘gênio’ ou de ‘herói’
não seria outro o caminho a eleger senão o converter-se num cri-
ador de caminhos. Supradidáticos e supra-acadêmicos. Outra qua-
lidade, que deveria ter esse pensador acima do comum era eleger
autores por conta própria ou tidos como secundários e as suas
fontes as menos esperadas. Independência é a palavra que resume
toda essa ânsia de não seguir trilhas já abertas por outros.
O que dizer de um mestre-aprendiz tão admirado pelo edu-
cador Anísio Teixeira a ponto de afirmar que os seus livros tão
pessoais, humanos, quentes e imaginativos valiam por toda uma
escola? Sua maior qualidade como mestre não pode ser transmiti-
da ou ensinada: a imaginação científica. O gosto pelo inacabado
surgiu na juventude. “Se depender de mim, nunca ficarei plena-
mente maduro, nem nas ideias nem no estudo, mas sempre verde,
incompleto, experimental”.
Na trajetória de Gilberto Freyre “educador” cabe menção es-
pecial a sua amizade com Anísio Teixeira. Vários anos depois de
este haver conseguido vencer a resistência do sociólogo-antropó-
logo para demorar-se como professor de universidade, fez com
que aceitasse dirigir a representação Nordeste do Centro Regional
de Pesquisas Educacionais. Os centros regionais eram desdobra-
mentos do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais que Teixeira,
como diretor do Inep (MEC), criara em 28 de dezembro de 1955
(decreto federal nº 38.460).
Anísio Teixeira nomeou Gilberto Freyre para dirigir o CRPE
em 1º de outubro de 1957, por intermédio da portaria 374. A sole-
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nidade de posse se deu no Instituto Joaquim Nabuco, que também
cedeu parte de suas instalações para o funcionamento do Centro.
Também em 1957 saiu a segunda edição de Sociologia, de Freyre,
com prefácio de Anísio Teixeira. O livro é a reunião sistemática das
aulas ministradas pelo sociólogo na antiga Universidade do Distrito
Federal, também a convite de Teixeira, como antes referido. Tal pre-
fácio, sob a forma de artigo (“Gilberto Freyre, mestre e criador de
sociologia”), reapareceria cinco anos depois, na obra coletiva Gilber-
to Freyre – sua ciência, sua filosofia, sua arte, até hoje a coletânea de maior
fôlego a respeito do seu trabalho intelectual: 578 páginas escritas por
64 autores. Muitos anos depois (2000) esse texto mesmo será repro-
duzido na Revista brasileira de comunicação, arte e educação.
Maria Graziela Peregrino, que trabalhou com Freyre no CRPE,
o homenageia no artigo “Gilberto Freyre, orientador e diretor do
CRPE do Recife” (publicado na revista Ciência & trópico, em jul/
dez de 1987) relembrando detalhes do funcionamento do Centro
e da postura do diretor:
A altivez de intelectual de Gilberto Freyre, perante o Inep, marcou,
profundamente, os primórdios do Centro, e quem trabalhou com
ele, naquela fase de implantação do CRPE presenciou, diversas ve-
zes, atitudes de críticas e até de rebeldia em face de exigências minis-
teriais. Também o incomodava a constante falta de verbas para dar
início aos trabalhos específicos da entidade. Todavia, no início de
1960, com a proposta de Anísio Teixeira, de dotar o CRPE de uma
moderna Escola Experimental (para o nível primário), que fosse, ao
mesmo tempo, laboratório de pesquisas socioeducacionais e local de
estágio para treinamento de professores, tanto de Pernambuco, como
de bolsistas de outros estados, foi um alento novo na administração
do Centro. As verbas, também, seriam concedidas, com menos res-
trições, pelo MEC, para os objetivos da construção.
Das atividades desenvolvidas pelo CRPE do Recife podem
ser destacadas, além da Escola Experimental, a realização do II
Colóquio de Estudos Teuto-Brasileiros (1968) e a publicação dos
Cadernos região e educação (o periódico semestral teve 27 edições).
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O mesmo caráter interdisciplinar que empregava nos seus li-
vros, nas suas aulas e no Instituto Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre
adotou no Centro, dirigindo-o com a mesma aversão aos exces-
sos da burocracia, bem como exercitando um trato fácil e colo-
quial com os alunos e funcionários, além do cuidado com os deta-
lhes: foi com grande interesse que acompanhou a construção da
Escola Experimental (verdadeiro laboratório de pesquisas educa-
cionais), do seu auditório e sua biblioteca (exigindo que o projeto
arquitetônico estivesse atento ao conforto e à ergonomia).
Ao contrário do que muitas vezes se afirmou, as atividades do
Centro Regional de Pesquisas Educacionais não cessaram com o
golpe militar de 1964. No caso do Nordeste, até foram fortalecidas,
tendo em vista não somente as relações estreitas do Centro com o
Instituto Joaquim Nabuco, mas também as de Gilberto Freyre, com
a ditadura instalada no país, caracterizando-se aí não pela “altivez
intelectual”, mas pelo apoio de primeira hora, o que afinal resultou
muito útil a ele e ao Instituto que tratou de fundar quando deputado
federal décadas antes. Ao ser extinto em 1975, o CRPE do Nordes-
te foi incorporado pelo Instituto, como se comprova no decreto nº.
75.754, de 23 de maio de 1975, assinado pelo ministro da Educa-
ção, Ney Braga, e o presidente da República, Ernesto Geisel. O
decreto pode ser lido na íntegra nesta direção de internet: http://
www2.camara.gov.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-75754-
23-maio-1975-424741-publicacao-1-pe.html
No percurso institucional de Freyre no campo da educação há
uma verdadeira ciranda de entrelaçamentos. O IJN foi útil ao
CRPE, na sua fase de implantação, mas depois a ordem se inver-
teu: do cadáver do CRPE floresceu com mais vigor o IJN, que
teve o seu apogeu na década de 1970, graças ao prestígio de Freyre
junto ao regime militar, que não só aplaudira na prática, mas na
teoria, em artigos como “Forças Armadas e outras forças”). Como
se sabe, também recebera convite para ser ministro da Educação,
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ANTONIO GRAMSCI
cargo que teria trocado com prazer pelo de governador de
Pernambuco por aclamação (ou biônico, na designação popular
da época), como chegou a confessar em mais de uma entrevista.
Estilo e retrato
Quem foi Gilberto Freyre? A melhor resposta não se encontra
em nenhum dos seus intérpretes e biógrafos, e sim nos seus própri-
os textos, cheios sempre de autoglorificação. Alguns são especial-
mente elucidativos, como o artigo que publicou na Folha de S.Paulo
(15-7-1978) respondendo a comentários de Fernando Henrique
Cardoso a seu respeito (numa entrevista publicada em revista na
época). Reagindo ao que diz seu colega sociólogo (“insinua do que
tenho escrito sobre o Brasil vir sendo, principalmente, obras, para
ele, válidas como literatura”) ele discute as possíveis divergências na
definição e valorização da ciência, história e filosofia social; e indaga:
Até que ponto é lícito, nesse setor, ultrapassar-se o cientificismo ou o
racionalismo ou o logicismo, indo-se à reconstrução de realidades
em parte fora de convenções dessa espécie: cientificistas, logicistas,
racionistas?” O próprio título do artigo é também uma pergunta:
“Haverá mitos transreais?
Ao rótulo de conservador ou reacionário, ele prefere o de
anarquista construtivo. Construtiva também é sua aceitação do mito,
mito rechaçado pelos racionalistas e cientificistas. ‘Mágicos contra
lógicos’ é expressão que usa noutro texto para mostrar que a sua
visão de ciência não excluía o mistério, a estética, a irracionalidade,
para explicar o humano demasiado humano. Daí ser um autor
cheio de ambiguidades, contradições e até paradoxos. Vale a pena
atentar no uso frequente de sinais de união como a conjunção e (ou
&, no caso de Casa-grande & senzala) e do sinal gráfico hífen, crian-
do palavras compostas e palavras-valises. Prezava a pluralidade.
Em que medida um escritor e um poeta são educadores? A res-
posta quanto a um autor moderno deverá ser distinta da que oferece
o famoso ensaio “Homero educador da Grécia” (na Paideia de Werner
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COLEÇÃO EDUCADORES
Jaeger). No caso específico de Gilberto Freyre, deve-se levar em con-
ta que defendia a poesia como veículo de conhecimento. No início do
século XXI, lições assim ainda são válidas a quem ambiciona atingir as
“camadas mais profundas” do espírito e serve também como ponto
de equilíbrio para excesso de esquematismos e especialismos.
Um sociólogo-antropólogo-escritor assim é muito estimulan-
te para educadores. Seja pelos estudos teóricos e práticos. Seja de-
vido a sua própria personalidade.
Quem busca o convencional, o estabelecido, o regular, o roti-
neiro não encontrará muito prazer em lê-lo. Mas quem acredita na
educação como um processo dinâmico e criativo terá muito a
ganhar descobrindo-o.
Sua atitude diante da educação e dos seus temas nada tem de
convencional, como está claro, desde o começo deste pequeno
ensaio. Tardou a alfabetizar-se, e logo se convenceu que era um
fruto menos da escola que do seu gênio. Mas nem por isto exalta-
va o autodidatismo. Ao contrário, reprova-o. Embora acredite na
educação formal, também entende que o estudante deve ir além
do ensinado em sala de aula, e investir na aventura de descobrir
por conta própria autores e métodos.
Sobre a educação há uma extensa lista de conferências e arti-
gos seus que vale a pena revisitar, como: “O estudo das ciências
sociais nas universidades americanas” (1934); “Em torno da situa-
ção do professor no Brasil” (1956); “Importância para o Brasil
dos institutos de pesquisa científica” (1957); “Palavras às professo-
ras rurais do Nordeste” (1957); “Em torno do atual Ph-deísmo –
algumas reflexões talvez oportunas” (1980) e vários outros.
A sua obra é uma demonstração inteligente da valorização do
conhecimento brasileiro, tanto o universal quanto o regional, local.
Além da riqueza temática, de pontos de vista e de metodologias,
também se orgulhava de diversas antecipações e pioneirismos,
como a história da vida privada e a ecologia.
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ANTONIO GRAMSCI
Leitor voraz, desde a juventude (sua biblioteca que está na fun-
dação que tem o nome reúne cerca de 40 mil livros), não exaltava
aquele que quer ser visto como aluno ou leitor modelo isolando-se
do mundo, ou o exibicionismo dos que “se matam de estudar”.
Para ele o conhecimento e todo o esforço para consegui-lo eram
exercícios de prazer. Gostava de misturar-se ao cotidiano.
Nunca aceitou ser chamado de mestre. Sentia-se um perma-
nente aprendiz. Mestre-aprendiz seria talvez a designação mais
justa para quem nunca cessou de indagar(-se) e manteve a curio-
sidade científica até o fim.
Mário Hélio Gomes de Lima é escritor, jornalista, professor e editor, com mestrado em
história pela Universidade Federal de Pernambuco, tendo como tema “Gilberto Freyre
historiador” e doutorado em antropologia pela Universidade de Salamanca (Espanha). Foi
professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Pernambuco e da Universidade
Federal de Pernambuco. Coordenador-geral da Editora Massangana da Fundação Joaquim
Nabuco/Ministério da Educação, presidente da Sociedade Ibero-americana de Antropologia
Aplicada, presidente do Conselho Editorial da Companhia Editora de Pernambuco e
membro do PEN Clube do Brasil. Publicou os livros Livrório/opus zero, O Recife melhor do
que Paris, Perfil parlamentar de Pereira da Costa, O Brasil de Gilberto Freyre e Cícero Dias:
uma vida pela pintura.
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COLEÇÃO EDUCADORES
TEXTOS SELECIONADOS
Palavras às professoras rurais do Nordeste
Minha palestra de hoje será um pouco o que em sociologia
científica se denomina, com algum desdém, “sermão sociológico”.
Isto porque, a considerações sobre “o que é” – sobre a realidade
sociológica como ela é - acrescentarei algumas sugestões em torno
do que “deve ser”, isto é, de modificações, a meu ver desejáveis - a
começar por modificações de atitude - dentro da atual situação so-
cial brasileira, ou em face dessa situação. Modificações a que nos
autoriza, ou parece nos autorizar, a própria sociologia científica.
A sociologia estritamente científica, porém, é uma sociologia
que procura analisar, descrever, explicar, interpretar situações; quan-
do muito diagnosticar e prever desenvolvimentos nessas situações;
indicar prováveis consequências deste ou daquele rumo que se tome
no modo de considerar-se uma situação ou um problema. Quan-
do o sociólogo vai além desses limites e esboça sugestões de re-
forma social, é claro que não arbitrárias, mas orientadas pelo seu
conhecimento científico de situações, de problemas, de condições
sociais – sugestões tendentes a modificar tais situações ou a corri-
gir desajustamentos, – sua sociologia deixa de ser puramente cien-
tífica para tornar-se aplicada; para adquirir alguma coisa de arte,
como a arte médica do clínico, em relação com a ciência – ou as
ciências – em que se baseia a técnica ou a arte dos médicos, dos
clínicos, dos cirurgiões; para tornar-se o que alguns denominam
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ANTONIO GRAMSCI
engenharia social, tal como a sociologia praticada por homens como
o Padre Lebret, e que é, em grande parte, uma sociologia menos
do que é do que do que deve ser; e deve ser, é claro, que depen-
dendo da atitude filosófica do engenheiro social em face dos pro-
blemas humanos de convivência.
A parte sociológica do urbanismo é engenharia social como é
engenharia social a planificação regional, hoje tão empregada no
Ocidente, e quase sempre em correspondência com uma filosofia
social – o dirigismo, o intervencionismo do estado – que é o oposto
do laissez-faire da democracia liberal nos seus extremos. Aliás, não
se compreende atualmente urbanismo aparte dessa planificação
regional; nem planificação regional em que não se considerem pro-
blemas de relações inter-regionais – isto é, de dentro da região – e
inter-regionais, isto é, de relações de uma região com as outras.
Não se pode separar o homem das condições sociais e de
cultura nem da sua época nem da sua região. O homem não é
abstratamente homem mas sua condição humana toma aspectos
concretos conforme a região onde ele viva, a cultura em que esteja
situado e o tempo em que decorra sua existência: a sua época. Este
conjunto de situações é mais poderoso em sua influência sobre a
formação social de um indivíduo biológico ou na definição desse
indivíduo em pessoa social que sua condição étnica – sua raça – e
que sua própria constituição biopsíquica. Raça e temperamento
tendem a variar de diversos modos da normalidade estabelecida,
sob a pressão de diferentes influências sociais e de cultura.
Isto é certo do homem cujo espaço de residência e de ativida-
de principal, inclusive a profissional, seja o urbano ou do homem
cujo espaço de residência ou de atividade mais característica seja o
rural. Se neste espaço – o rural – o contacto do homem com a
natureza é maior – maior seu contacto com o sol, a lua, as estrelas,
a terra, as águas, as árvores, as plantas, os animais – nem por isto
deixa de ser um contacto influenciado por agências sociais e por
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COLEÇÃO EDUCADORES
instituições culturais em vigor no mesmo espaço e na época em
que vivia o mesmo homem: pela religião, que lhe dê, desde que
nasça, ou desde que nasceu, noções culturais e não espontanea-
mente naturais sobre astros, águas, terra, árvores, animais; pelo
folclore, que representa uma sabedoria oral, tradicional, porém
igualmente cultural, vinda da inteligência e da sensibilidade dos
homens, e não brotada da natureza; pela escola, que lhe dê explica-
ções racionais a respeito da natureza – inclusive da natureza huma-
na; e hoje, pelo cinema, pelo rádio, pela música chamada em con-
serva, isto é, em disco. Agentes, todos esses, culturais que vêm
afetar as atitudes do rústico e não apenas do ruralista com relação
à natureza – inclusive, repita-se, a natureza humana. A natureza do
próprio homem situado no meio natural: sua natureza sob a forma
de ser cultural, histórico, modificador do meio natural.
De modo que nem mesmo o rústico dentre os ruralistas esca-
pa de todo, – nem mesmo em redutos ou ilhas sociológicas, de
pequenos grupos humanos quase isolados das maiorias culturais
que os rodeiam e dos conjuntos culturais que fluem no tempo,
afetando nas comunidades, embora desigualmente, tanto os gru-
pos urbanos como os rurais; nem o rústico – dizia eu – escapa à
cultura, ao tempo, à época em que vive. Ou de que vive em maior
ou menor dependência.
Estamos hoje, por exemplo, muito no Ocidente e, em grande
parte, no Oriente, num tempo ou numa época que se caracteriza,
como salientam os sociólogos modernos, pelo domínio da técni-
ca: técnica baseada em ciência experimental. Os processos indus-
triais é do que dependem: de técnicas desenvolvidas de ciência
assim experimentais. A moderna arquitetura não pode ser separa-
da da técnica e da ciência, para resolver em casas de residência e
edifícios públicos problemas de saneamento, ventilação, aeração,
luz, refrigeração, calefação. O ensino moderno é em grande parte
científico. O vestuário vem sendo alterado pela ciência. O móvel,
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ANTONIO GRAMSCI
também. Também a horticultura, a floricultura, a lavoura, o cuida-
do com os animais. Os próprios sistemas de recreação de crianças
e adultos. E é interessante notarmos, a este propósito, que várias
das simplificações de móvel, vestuário, alimentação consagradas
pela ciência são no Brasil valores ou estilos de origem rural. A
camisa por fora das calças, a sandália, a rede, as comidas de milho,
as de mandioca, a coalhada.
Sabemos todos que a química, ainda mais que a eletricidade,
vai hoje até às donas de casas, para ensinar-lhes novas técnicas de
cozinha e de conservar alimentos, como se as cozinhas fossem um
pouco laboratórios; e chegam até ao lavrador rústico. Mesmo ao
analfabeto ou ao quase analfabeto, vai a química moderna sob a
forma de conhecimentos de solo que lhe são transmitidos oral ou
experimentalmente; sob a forma de inseticidades; sob a forma de
substância de combate a pragas; sob a forma de adubos comerci-
ais. Temos aí o engenho industrial urbano, a ciência acadêmica das
cidades, a serviço das gentes rurais e das suas lavouras e criações.
De um sociólogo norte-americano, que foi um dos primeiros
a se especializarem no estudo da vida rural, o professor Gillette, é
o reparo de que vivemos numa época de especialização. Vivemos
numa época não só de técnica e de ciência – como salientam to-
dos – mas numa época de especialização. Especialização intensa
nos meios urbanos, ela já se estende aos meios rurais, embora o
ruralista continue, neste particular, um ser enciclopédico em com-
paração com o urbanita típico, que, fora da sua especialidade, está
quase perdido no labirinto urbano. Enquanto o ruralista é ainda
obrigado por sua própria situação em meio menos especializado
em funções, a juntar à atividade agrária, por exemplo, outras fun-
ções – a função de médico, por exemplo; a de veterinário; a de
mecânico; às vezes a de mestre-escola; em alguns até a de substi-
tuto de padre que ouça os rústicos senão em confissão, em desa-
bafos ou queixas confidenciais.
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COLEÇÃO EDUCADORES
Daí a educação do ruralista dever atender a dois pontos: o fato
de que nele a instrução técnica e científica deve começar a aplicar-se
a assuntos especificamente rurais e ao fato de que todo o sentido
dessa instrução – todo o sentido dessa educação – deve corresponder
a exigências de conhecimentos gerais maiores que os exigidos por
meio urbano. Donde não só o agrônomo ou o zootécnico, como o
professor ou a professora rural, o padre rural, o médico rural, o
farmacêutico rural, deverem juntar à sua especialidade conhecimen-
tos gerais, quase inúteis num especialista urbano, mas necessários e
até essenciais a um técnico ou especialista cuja atividade tiver de exercer-
se em meio rural. Daí, também, a necessidade de todos esses espe-
cialistas que se destinem a espaços rurais serem iniciados no conheci-
mento de uma sociologia da vida rural que desperte neles a atenção
para problemas especificamente rurais de relações entre pessoas umas
com as outras e entre grupos uns com os outros; inclusive para o
que nesses problemas é psicológico ao mesmo tempo que social.
Este conhecimento é particularmente necessário ao professor ou à
professora rural. Tanto quanto o padre eles tem de lidar com almas.
Lembre-se sempre o agrônomo ou o zootécnico ou o profes-
sor ou o padre ou o médico ou o advogado ou o farmacêutico ou
o dentista que vai exercer ainda jovem suas atividades em meios
rurais, que vai lidar com seres humanos diferentes em várias das suas
atitudes e dos seus modos de ver, de pensar, de sentir, dos urbanitas
desdenhosos, até, de certos estilos urbanos de vida e de cultura. De
modo que qualquer desses especialistas jovens que, depois de instru-
ído durante anos em instituição urbana, vá para meio rural animado
do propósito de aplicar novas técnicas ou novos processos científi-
cos à agricultura ou à pecuária ou a veterinária ou à medicina ou ao
ensino, deve lembrar-se de que, em qualquer dessas atividades, não
vai lidar apenas com terras, solos, plantas, animais, doenças, escola-
res, mas com seres humanos condicionados pela sua situação rural.
Deles deve o adventício aproximar-se lembrando-se de que são
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seres humanos regionalmente condicionados: condicionados por
tradições, crenças, superstições, mitos, que devem ser considerados
com o máximo de atenção psicológica.
Pois não nos esqueçamos de que em aparentes superstições da
gente rural podem estar refugiados conhecimentos de valor para o
cientista, o técnico, o homem culto, sobre plantas, animais, valores
regionais. Si há superstições evidentes que devem ser habilmente
combatidas em gente rústica e habilmente substituídas por conheci-
mentos científicos, outras crenças rústicas devem ser consideradas
expressões de sabedoria popular ou folclórica, às vezes valiosas como
sugestões para o próprio cientista que siga o conselho de Camões: o
de não desdenhar-se a sabedoria dos velhos. E os velhos rurais guar-
dando, como guardam, muita superstição desprezível, guardam tam-
bém muita sabedoria aproveitável. Os velhos, as mulheres, os anal-
fabetos rurais, todos guardam conhecimentos folclóricos sobre as-
pectos regionais, de natureza e de vida, que, quando gerais, antigos e
persistentes, nunca devem ser sistematicamente desprezados mas
cuidadosamente examinados por agrônomos, zootécnicos, veteri-
nários, médicos, professores rurais, farmacêuticos, sacerdotes que
cheguem a um meio rural, com a sua ciência em flor adquirida em
academias ou escolas apenas urbanas.
Como líderes em potencial de comunidades rurais, professo-
res, padres, agrônomos, veterinários, médicos, farmacêuticos ru-
rais e até certo ponto, magistrados e advogados – em geral, tran-
seuntes nos meios rurais, ainda mais que as professoras e os padres
– em vez de se comportarem nessas comunidades como exilados
de olhos voltados nostalgicamente para meios urbanos, devem
integrar-se o mais possível nelas. Dada a atual disparidade entre
meios urbanos e meios rurais no Brasil, tais atividades guardam
ainda, quando exercidas em meios rústicos, alguma coisa de ação
ou esforço missionário. E a atividade desses missionários deve ser
a de profunda identificação e simpatia com os meios rurais, com
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sua gente, seus problemas, suas angústias, com as artes domésticas,
populares, folclóricas peculiares a esses meios, como a da renda
em Caruaru, por exemplo, a da cerâmica em Taquaritinga, a de
trabalhos de palha em Águas Belas, a de bonecas de pano em
vários povoados do Nordeste, e também de identificação uns com
os outros – agrônomos com padres, veterinários com professo-
res, médicos com zootécnicos, farmacêuticos com advogados –
pois nenhum desses trabalhos em meio rural alcançará êxito, senão
sob a forma de esforços que de técnicos se alarguem em campa-
nhas sociais: esforços de cooperação sociologicamente orientados
e para os quais deve concorrer toda a gente mais culta.
Erra o agrônomo empenhado na introdução de técnicas cientí-
ficas num meio rural delas necessitado que não buscar a cooperação
psicológica e social do padre, da professora, do boticário, dos ve-
lhos, das mulheres, e até a do trovador ou cantador popular que
houver na região. Nada de tecnicismo hirto e fechado: como o agrô-
nomo ou o veterinário em meio rural, o professor ou a professora
deve ser um líder de reconstrução social; e não apenas um técnico.
Deve ser um animador de valores, possibilidades, aspirações locais
e não um simples técnico isolado do meio e cheio da preocupação
de ser promovido para atividade urbana. Deve ser um intermediá-
rio ou mediador entre valores urbanos e valores rurais e não um
sectário só dos valores urbanos ou apenas dos valores rurais. Deve
juntar sua voz à do professor, à do padre, à do médico, no esforço
da justa valorização do que é rural na civilização brasileira e na mere-
cida exaltação daqueles indivíduos que têm dedicado o melhor da
sua vida e da sua inteligência à agricultura, à pedagogia, e à medicina
rurais; e à pecuária, à agronomia, à veterinária.
Como já tem observado mais de um sociólogo, se o ruralista
nasce e cresce cercado de sugestões, livros, revistas em que só são
glorificados os valores urbanos e injustamente desprezados os ru-
rais, como esperar-se que, sendo inteligente, ele queira continuar a
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ser ruralista em vez de vir para as cidades tornar-se industrial, ad-
vogado, professor de faculdade, comerciante? Acertou a Univer-
sidade Rural de Pernambuco quando conferiu pela primeira vez
sua láurea máxima a um homem que vem dedicando a vida, o
saber e o talento à valorização de terras pernambucanas: o agrô-
nomo Moacyr de Brito. E acertada andaria também, a meu ver, se
decidisse publicar, em cooperação com a Secretaria de Educação
do Estado, numa série de folhetos, escritos em linguagem simples,
acessível até a crianças, e com ilustrações adequadas, as biografias
de grandes ruralistas da região: homens como o Manuel Cavalcanti
da “cana Cavalcanti”, como Carlos Lyra, de Serra Grande, como
Paulo Salgado, do Cabo, como Inácio de Barros Barreto, como
Costa Azevedo, como o felizmente ainda vivo Antônio Alves Ara-
újo, que, pernambucano já de mais de 80 anos, continua a orientar
a Sociedade de Agricultura de Pernambuco. Não ha ruralista adul-
to ou criança que não se deixe influir no seu ânimo pela valoriza-
ção justa que se fizer de homens que outra coisa não têm querido
ser na vida senão ruralistas; e que, como ruralistas, têm prestado ao
Brasil serviços ainda mais valiosos que os de alguns dos mais glo-
rificados urbanistas. Os ruralistas precisam de encontrar o seu
Caxias; e de fazer dele um herói nacional igual ao grande Duque.
Sabe-se que no Estado de Iowa, nos Estados Unidos, fez-se
há anos interessante experimento em escola rural, antes e depois
do ensino nas mesmas escolas, de agricultura e de economia do-
méstica rural, cujo fim era precisamente o de concorrer o ensino
para a integração das crianças e adolescentes no seu meio – o rural
– e para a valorização dos elementos desse meio. Antes desse en-
sino, dos 164 alunos de várias escolas, 157 responderam à pergun-
ta “O que deseja fazer na vida?” que desejavam abandonar o cam-
po, a lavoura, a vida rural; das 174 meninas, alunas das mesmas
escolas, 163 responderam no mesmo sentido. Depois de três anos
de ensino daquelas matérias com sentido ecológico, isto é, ligan-
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do-se a imaginação, a sensibilidade, a inteligência de meninos e
meninas ao meio nativo, rural, 162 de 174 meninos e 161 de 178
meninas responderam à pergunta, dizendo-se desejosos não de
abandonar os meios rurais, mas de permanecer neles.
Cabe à professora, ao médico, ao magistrado e ao padre ru-
rais juntarem seu esforço ao do agrônomo no sentido da valoriza-
ção do que, sendo rural na vida, no passado, na cultura brasileira,
vem concorrendo para dar estabilidade, prestígio, originalidade ao
Brasil como país jovem que começa a afirmar-se com país criador
e não apenas imitador de cultura; como terra de vegetais úteis à
medicina e à indústria que podem tornar-se valores caracteristica-
mente brasileiros. Como terra em que já se têm feito experimentos
em agricultura e pecuária, em horticultura e jardinagem, de impor-
tância para outros países tropicais.
Que se propague a origem rural do maior inventor brasileiro –
Santos Dumont; a origem rural de grandes homens de estado como
Prudente de Morais que chegou a ser apelidado de “biriba” pela
malícia carioca; a meninice rural dos Joaquim Nabuco, dos Sílvio
Romero, dos João Alfredo, dos Frei Vital, dos Epitácio Pessoa, dos
Manuel Borba; a inspiração rural ou agreste de grande parte da música
de Villa-Lobos. E que, valorizando-se o que é rural na cultura brasi-
leira, não por ser este elemento superior aos demais mas por vir
sendo esquecido ou desprezado sob a excessiva glorificação dos
elementos urbanos de importação, valorize-se ao mesmo tempo o
que nesta mesma cultura é elemento ético e de possibilidades intelec-
tuais e estéticas, em geral melhor conservado pela gente rural do que
pela gente urbana. Elementos que vêm sendo entre nós desprezados
de maneira alarmante pela crescente exaltação que da imprensa e
dos rádios urbanos vêm-se comunicando às populações rurais do
que é apenas, por contágio dos meios urbanos com o que há de
mais superficialmente “civilizado” nos meios cosmopolitas, sucesso
físico, desportivo, material no pior sentido de “materialismo”. A tal
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ponto que se tornou escandaloso aos olhos de observadores euro-
peus o fato de, quando do seu primeiro regresso dos Estados Uni-
dos, onde fora consagrado grande cientista físico por mestres auto-
rizados, o brasileiro César Lattes ter sido recebido no aeroporto
não por uma multidão igual às que recebem jogadores de futebol
vindos mais ou menos vitoriosos de jogos internacionais, artistas de
rádio, artistas de cinema, atletas – nem ninguém ousava esperar tan-
to – mas por pouquíssimos brasileiros, ao lado de representantes
diplomáticos de várias nações estrangeiras. Comentando este fato
melancolicamente significativo, diz, em livro recente um sociólogo
mineiro, o professor Sigefredo M. Soares, que dessa recepção a um
jovem brasileiro consagrado no estrangeiro e por gente idônea, ci-
entista de fato, “achavam-se ausentes... os representantes dos Pode-
res Públicos Nacionais, das instituições científicas do país e até mes-
mo os representantes das agremiações estudantis”, que outrora re-
cebiam com tantas homenagens em São Paulo, no Rio, na Bahia, no
Recife, os Nabuco, os Rui, os Rio Branco, os Oswaldo Cruz, quando
de regresso triunfantes e consagrados, de terras estrangeiras.
É também melancólico para o Brasil atual ter falecido há pou-
cos anos quase na obscuridade um homem, um sábio, um cientista
com Vital Brasil que desenvolveu técnicas mercê das quais muitas
vidas têm sido salvas não só no Brasil rural como em áreas rurais da
América Latina inteira; e que deveria ser glorificado pelos brasileiros
conscientes do que as populações e o trabalho rurais representam
para sua civilização, como um dos seus benfeitores máximos. É
certo também que um homem de gênio da grandeza de Villa-Lo-
bos, – em cuja música o que há de rural, de telúrico, de autentica-
mente brasileiro, tornou-se valor de repercussão internacional – che-
ga hoje a qualquer cidade brasileira muito menos despercebido e
muito menos homenageado, que qualquer cantor de rádio ou que
qualquer campeão de futebol, de estação ou clube urbano ou me-
tropolitano do Rio ou de São Paulo. Ou mesmo do Recife.
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COLEÇÃO EDUCADORES
O esforço de valorização de tais homens autenticamente gran-
des e de suas criações, autenticamente brasileiras em seus motivos,
em suas raízes, em seus efeitos mais profundos, terá que ser um
esforço ligado ao que é mais genuinamente brasileiro na cultura bra-
sileira; ao que é mais raiz nessa cultura. Esse elemento raiz é, em
grande parte, telúrico, rural, ligado à terra, alimentado pelas constân-
cias rurais da nossa vida; elemento constante e não transitório, que
devemos fortalecer ou avigorar sob formas urbanas; elemento de
valor permanente e não reflexo de modas ou caprichos metropoli-
tanos em metrópoles em que, como nas brasileiras de hoje, o desen-
volvimento das instituições de cultura intelectual, artística, ética não
vem correspondendo ao desenvolvimento simplesmente material
ou técnico que lhes dá aparências de altas civilizações.
Para sermos nós mesmos, os brasileiros, como cultura, como
civilização, como conjunto de valores em que os elementos inte-
lectuais, artísticos, éticos não se tornem insignificâncias ao lado dos
técnicos, materiais, mecânicos – vários deles simplesmente impor-
tados do estrangeiro – temos que procurar valorizar o que é entre
nós esforço vindo da terra, da gente telúrica, do trabalho cotidia-
no em circunstâncias peculiares ao Brasil – trabalho, em grande
parte, rural – das grandes inteligências e das grandes sensibilidades
que têm sabido interpretar essa terra e essa gente ou procuram
resolver problemas peculiares ao Brasil dentro das condições bra-
sileiras de espírito e de ambiente; dentro da diversidade regional
brasileira; e não arbitrariamente; ou favorecendo-se uma região
contra as demais; protegendo-se uma atividade – no momento a
indústria urbana – contra as outras.
Referi-me no início desta palestra a relações intrarregionais e
inter-regionais. As intrarregionais refere-se principalmente à me-
lhor articulação dentro de uma região ou área total de sub-regiões
agrárias com sub-regiões industriais, de sub-regiões urbanas com
sub-regiões industriais. As inter-regionais referem-se à melhor arti-
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culação de regiões uma com as outras como dentro do continente
americano, que é um conjunto ou complexo suprarregional ou
uma área total – como é também, para o Brasil, a área que venho
denominando lusotropical – regiões de uns países com as regiões
de outros. Pois as relações inter-regionais podem importar em re-
lações internacionais.
Nós, do Nordeste do Brasil, região ou sub-região em grande
parte rural – rural e pobre – somos há dezenas de anos uma sub-
região desvalorizada no conjunto nacional brasileiro e prejudicada,
por essa nossa situação de desprestígio dentro do conjunto nacional,
em possibilidades de relações inter-regionais, que trouxessem às sub-
regiões nordestinas atividades industriais financiadas por capital e
orientadas por técnica angloamericanas, em particular, ou estrangei-
ros, em geral, que poderiam ser grandemente úteis à economia e à
vida rurais do mesmo Nordeste. Dou um exemplo concreto: tives-
se o Nordeste sabido agir com mais lucidez, mais eficiência e me-
lhor conjugação de esforços estaduais, e estaríamos hoje na região,
com o custo de energia elétrica da Paulo Afonso reduzido de 50%
para todos os consumidores ligados ao sistema da mesma Paulo
Afonso e, além disso, desoprimida a cidade do Recife da enorme
sobrecarga de população pobre, miserável e improdutiva vinda de
diferentes áreas rurais do Nordeste. Como? Se aqui tivesse se insta-
lado, como pretendeu instalar-se, um consumidor de grande porte
como a bem reputada companhia angloamericana Reynolds, que
quis estabelecer-se nesta parte do Brasil com indústria de alumínio,
com a produção anual de cerca de 90.000 toneladas.
Segundo a palavra autorizada do general Carlos Berenhauser
Junior, um dos dirigentes da Cia. Hidroelétrica do São Francisco,
não solicitou a Reynolds nenhum favor do governo brasileiro:
apenas pleiteou tratamento equitativo. E a instalação da indústria
integrada de alumínio em espaço rural brasileiro, hoje desprestigiado
econômica e socialmente, importaria, segundo o mesmo técnico
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brasileiro, em grande e imediato benefício para o Nordeste. Por
que não se realizou tal instalação? Porque organizou-se em São
Paulo um grupo brasileiro que se considera capaz – talvez com
excesso de otimismo – do mesmo empreendimento, num São
Paulo já cheio, aliás, de indústrias e onde é notória a escassez de
energia elétrica para novas indústrias.
Prevaleceu o critério de que as sub-regiões pobres de um país
deviam estar sempre a mercê de planos e projetos que tenham por
sede uma das sub-regiões ricas, – no caso do Brasil, a paulista –
embora plano de difícil e lenta realização por grupo econômico
nacional, com certeza bem intencionado mas sem recursos nem
experiência para o empreendimento. Deve-se, aliás, salientar o fato
de que, de ordinário, de tais grupos fazem parte não apenas paulistas
de fortuna, mas brasileiros empreendedores e ricos de outros es-
tados: inclusive do próprio Nordeste brasileiro. Homens dos quais
seus compatriotas do Nordeste têm o direito de esperar que con-
corram de modo mais efetivo, com sua inteligência e seus capitais,
para a valorização de trecho tão abandonado do Brasil como é o
nosso; ou lembrado apenas pelo governo da União para às vezes
despropositados a usineiros relapsos.
O que a alguns de nós parece antinacional é manter-se esse tipo
arbitrário de relações entre as sub-regiões brasileiras, em vez de pre-
valecer, para atender o governo da União a situações excepcionais
(como é o caso do Nordeste do Brasil, retardadíssimo em sua eco-
nomia com relação ao Sul industrial), o critério ou o sentido da
conveniência de bem equilibradas relações inter-regionais. O benefí-
cio feito a uma sub-região pobre de país, desigualmente desenvol-
vido, é claro que resulta favorável ao conjunto nacional. Não se trata
de caridade mas de recuperação de proveito para o país inteiro.
Fatos como o das dificuldades ao estabelecimento, em zona
rural do Nordeste, da indústria de alumínio, com matéria prima
em grande parte nordestina e com trabalhadores nordestinos,
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embora com técnica e capital anglo-americano dos melhores, pa-
rece indicar o perigo, para um país de desenvolvimento econômi-
co violentamente desigual, como é o Brasil – desigual de sub-
região para sub-região – de um imperialismo interno, de grupos
internos, cujos excessos só seriam contidos, no interesse de todo
brasileiro, se esses interesses fossem considerados dentro de vasto
plano inter-regional de economia.
É problema que deixo, juntamente com outros, para ser me-
ditado pelas professoras rurais de Pernambuco que hoje concluem
um curso proveitoso e necessário – feliz iniciativa do secretário
Aderbal Jurema – e pelos demais brasileiros, interessados no estu-
do e na solução de problemas rurais que acabam de me honrar
com sua inteligente atenção. Atenção que muito agradeço. E en-
cantado com a simpatia que aqui encontrei, no ambiente de uma
escola bem dirigida e da parte não só de quantos hoje terminam
um curso ainda pioneiro, como dos seus professores e orientadores
– um deles o agrônomo sempre entusiasta da sua ciência, que é o
professor Jair Meireles – que concluo esta simples palestra.
Agradecido às generosas referências da oradora do grupo de
concluintes do II Curso de Treinamento Rural, não devo deixar de
aludir ao fato de que o nome do patrono desta Escola, desapareci-
do ainda tão jovem, me traz à lembrança um dos alunos mais bri-
lhantes de antropologia social e de sociologia que tive de 1935 a
1937 na então Universidade do Distrito Federal: a que seria poucos
anos depois absorvida pela atual Universidade do Brasil e não a que
hoje ostenta aquele nome, Murilo Braga foi na verdade uma das
inteligências mais cheias de possibilidades que conheci naquela épo-
ca, hoje histórica, pois marca a tentativa mais séria que já houve no
Brasil no sentido de criar-se no nosso país um autêntico e avançado
sistema universitário: iniciativa do professor Anísio Teixeira. Aquelas
possibilidades vinham se realizando quando a morte cortou, em
começo, uma carreira, desde o início triunfal, de renovador do en-
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sino no Brasil: a carreira de Murilo Braga. Que o exemplo da sua
atividade não seja esquecido.
[Fonte: Recife: Secretaria de Educação e Cultura do Estado, 1957. Opúsculo de
17 pp.]
Nacionalismo e internacionalismo nas histórias em quadrinhos
Há quem deseje emendar a Constituição para aí estabelecer a
censura prévia à literatura destinada a crianças e adolescentes. Ale-
gam que é uma literatura toda especial. Sustentam que essa censura
não põe em perigo a “verdadeira literatura”.
Engano. Quem diz literatura para crianças e adolescentes, não
deixa de dizer literatura. Repito aqui o que já disse na Câmara
quando ali apareceu a estranha ideia: as fronteiras entre gêneros
literários são vagas. Vagas seja qual for o critério que se estabeleça
para fixá-las. Inclusive o critério de públicos e público a que se
destine cada gênero – menino ou gente grande, mulher ou ho-
mem, moço ou velho.
Rigorosamente, a literatura é uma só. Sua divisão em subgrupos
é arbitrária ou convencional. Sujeito à censura um gênero, a amea-
ça recai sobre o todo. Quando se atinge a literatura para crianças e
adolescentes é a literatura inteira que se ameaça. Mesmo porque
são numerosos os livros para crianças e adolescentes que são tam-
bém livros para gente grande.
Há anos, quando entre nós exagerou-se tanto o perigo chama-
do vermelho, isto é, comunista, que à sombra desse exagero cresceu
o extremo oposto, houve quem começasse a enxergar “comunis-
mo” em obras-primas da literatura brasileira e da universal. Inclu-
sive em livros que são lidos com igual encanto por crianças, adoles-
centes e pessoas grandes. Por pessoas que leem soletrando e por
doutores que sabem latim. Pois livros como as Viagens de Gulliver, o
Dom Quixote, o Robinson Crusoé, os romances de aventuras de Robert
Louis Stevenson, os de Cooper sobre índios, os de Walter Scott
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sobre castelos antigos, as próprias Fábulas de La Fontaine, ninguém
sabe se são para crianças ou para gente grande.
E lembro-me, a este propósito, de fato que fez, há anos, muito
estrangeiro rir-se a custa do Brasil: o de ter certa autoridade
estadofortista, das que se julgaram com o direito de intervir na vida
intelectual do país, condenado como perigosas à mocidade brasi-
leira páginas imortais de Mark Twain. Note-se que essa autoridade
era pessoa douta: professor do Pedro II, até.
Repito aqui o que já disse na Câmara, tentando alertar os depu-
tados contra um perigo que se aproxima de nós com pés de lã,
disfarçando em “proteção à moral” ou “resguardo do bom gos-
to”: consagrada pela Constituição a censura prévia à literatura cha-
mada infanto-juvenil são os Mark Twain, os Robert Louis Stevenson,
os Cervantes, os Defoe, os Swift, os La Fontaine, os Andersen, os
Walter Scott, os Cooper, os Monteiro Lobato, as Lúcia Miguel Pe-
reira, os José Lins do Rego, os Luís Jardim, que podem vir a ser
condenados amanhã como “comunistas”, “corruptores da juventu-
de”, “daninhos” ou “perniciosos” à formação da mocidade. O
conceito do que é “pernicioso” em literatura ou em arte é vário e
elástico. O conceito do que é decente ou decoroso, também. Na
época Vitoriana, entre os ingleses mais rígidos no seu moralismo,
não se dizia perna de mesa ou perna de cadeira na presença de
senhoras, para não sugerir a imagem de perna de mulher. Também
varia o conceito da literatura que convém, segundo os preconceitos
do país, ao desenvolvimento da personalidade dos filhos. No meu
tempo de menino, muito pai brasileiro condenava com aspereza os
romances de detetive do tipo das Aventuras de Sherlock Holmes, consi-
derando-os não apenas inconvenientes à formação moral dos fi-
lhos, como “vulgares”, “perniciosos”, “daninhos”. Quando algum
meninote era apanhado por um pai mais rigoroso com um fascícu-
lo de Conan Doyle nas mãos, era como se estivesse praticando feio
pecado. Era como se estivesse lendo as histórias mães ou avós das
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histórias de quadrinhos. Entretanto, Sherlock Holmes é considerado
uma das criações mais interessantes da literatura inglesa dos fins do
século XIX e dos começos do atual; e, do ponto de vista ético e
educativo, tido por leitura saudável e boa.
Dos grandes poetas brasileiros de hoje há um que às vezes
escreve poemas para crianças. É Manuel Bandeira. Mas o poeta
Manuel Bandeira num dos seus poemas refere-se a certo cachorri-
nho que fazia pipi no jardim. Temo que por essas e outras liberda-
des de palavra, sua poesia pudesse vir a ser condenada como “in-
decente”, “vulgar”, “perniciosa” para a mocidade se, amanhã,
estabelecida na Constituição a censura prévia à literatura infanto-
juvenil, essa fosse exercida por pedagogos ou policiais estreitos ou
arcaicos em suas ideias de moralidade ou vulgaridade.
A verdade é esta: todos podemos estar de acordo quanto ao
que seja baixa vulgaridade ou pura obscenidade na literatura ou na
arte. Mas há um ponto em que a vulgaridade é aparente: o que há
é realismo. Há zonas de confusão fácil entre os dois. E na discrimi-
nação o censor simplista poderá imaginar-se na defesa ou resguar-
do do que o bom gosto tem de essencial, quando está apenas
defendendo convenções já arcaicas e até estreitos preconceitos de
grupo, política, literária ou economicamente dominante.
De modo que, estabelecida num país como princípio consti-
tucional, a censura prévia à palavra, em qualquer de suas expres-
sões literárias, a censura prévia ou pensamento, em qualquer de
suas formas de criação ou de crítica, a ameaça se estende sobre o
sistema inteiro de liberdade de consciência, de pensamento, de ideia,
de criação artística, sobre o qual repouse a organização democrá-
tica do mesmo país.
E desgraçada da sociedade com aspirações a democrática que,
para viver decentemente, para conservar-se moralizada, para desen-
volver sua cultura, para manter sua religião, não disponha de outros
meios de conservação e desenvolvimento desses valores morais,
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intelectuais, estéticos, religiosos, senão o braço forte do gendarme e
o lápis vermelho do censor. Recursos para os dias excepcionais ou
de calamidade: nunca para os normais e comuns. Nos dias normais
quem deve guardar a mocidade, educá-la, aperfeiçoá-la, é menos o
estado, através dos seus policiais e dos seus censores, que a comuni-
dade inteira por meio de suas instituições de cultura articuladas umas
com as outras para fins socialmente construtivos.
Da campanha que se vem fazendo, entre nós, contra as histórias
de quadrinhos – e não apenas contra os excessos ou os abusos que
se cometem neste gênero de literatura destinada a meninos e a ado-
lescentes, mas saboreado também por numerosos adultos – é pos-
sível que resulte um bem: o de despertar nos principais responsáveis
pela publicação dessas histórias, deveres que vinham sendo esque-
cidos por eles. Deveres de vigilância contra aqueles excessos e contra
aqueles abusos.
Mas todos os que não compreendem que se mate um homem
com um remédio heroico – contanto que se feche de repente a
ferida que vinha avermelhando o rosto ou apostemando o pé do
pobre homem – desejam que esse resultado seja atingido sem alte-
rar-se a Constituição para aí introduzir-se este perigo mortal para
uma democracia: a censura prévia à literatura. Porque quem diz
censura a qualquer gênero de literatura, diz literatura dirigida, diz
fascismo, diz totalitarismo numa de suas piores expressões. E não
é justo que se chegue a tanto só para se acabar com os excessos ou
os abusos das histórias de quadrinhos.
A verdade é que, em si mesmas, as histórias de quadrinhos são
uma forma nova de expressão contra a qual seria tão quixotesco
nos levantarmos, como contra o rádio, o cinema falado ou a televi-
são. Como o rádio, o cinema falado e a televisão, as histórias de
quadrinhos concorrem para o desprestígio da leitura dos longos
textos para favorecer as suas dramatizações sintéticas, breves, incisi-
vas. Mas o que se deve ver aí é uma tendência da época: uma época
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caracterizada pela ascensão social de massas sôfregas, antes de síntese
e de resumos dramáticos de fatos da atualidade e do passado, que de
demorados contatos com o livro, com a revista, com o jornal, com o
teatro, com o cinema ou com o próprio rádio.
A essa tendência da época a história de quadrinhos corresponde
admiravelmente. E um meio atualíssimo de expressão cuja substân-
cia deve ser, quanto possível, purificada de excessos, vulgaridade ou
abusos – até aí têm razão os jornalistas, educadores e parlamentares
empenhados em combater as histórias de quadrinhos – mas cuja
forma ou cuja técnica, em vez de repelida, deve ser utilizada em
escala cada dia maior pelo escritor, pelo artista, pelo educador dese-
joso de influência sobre o massa.
O missionário jesuíta deixou-nos, dos seus grandes dias de es-
forço heroico de cristianização de gentes pagãs ou bárbaras, esta
lição digna de ser seguida pelos que hoje se dedicam, em países
como o Brasil, a obras de recreação e, ao mesmo tempo, de educa-
ção do grande público: a lição de que os meios de contato do edu-
cador ou do artista com as massas devem basear-se nos hábitos, na
capacidade e no grau de desenvolvimento intelectual da gente a que
se dirige. Por isto o Jesuíta inteligentemente recorreu, no Brasil do
século XVI, aos cantos, à música, e às danças dos indígenas. Recor-
reu às trombetas, aos ruídos, às cores vivas, aos estandartes vistosos.
O que os admiráveis padres queriam era ganhar a atenção, o
interesse e a curiosidade da massa indígena. Sabiam que não al-
cançariam nunca este fim com a simples leitura, em voz alta, das
Escrituras, com sermões, com discursos ou mesmo com a re-
presentação de comédias ou autos. De modo que se serviram de
técnicas de persuasão, educação e recreação da massa à altura do
desenvolvimento intelectual dos caboclos. Anteciparam-se neste
ponto aos industriais norte-americanos, mestres da propaganda
comercial, e aos fascistas e nazistas europeus, exímios na arte de
persuasão política de massas.
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Fossem hoje os jesuítas a mesma força espantosamente ativa
que foram no século XVI e eles é que estariam se utilizando, em
países como o Brasil, da técnica da história de quadrinhos para a
educação e recreação da massa brasileira de meninos e adolescen-
tes, dentro dos ideais cristãos de vida e de cultura. É o que devem
fazer hoje os bons educadores, artistas, intelectuais e jornalistas:
dominar a nova técnica de educação e recreação do menino e do
adolescente que é a história de quadrinhos.
Em vez de se deixarem envolver pelo horror furioso à histó-
ria de quadrinho, devem servir-se dessa técnica, melhorando-lhe a
substância e purificando-lhe o conteúdo de excessos de sensacio-
nalismo, de vulgaridade e de mau gosto. Nada de polícia nem de
censura prévia à literatura para a solução de um problema que não
se resolve nem com a polícia nem com a censura. Resolve-se é
com esforço, com inteligência e com bom-senso e havendo coo-
peração dos diretores de jornais e revistas com os pais, com os
mestres, com a Igreja, com os diretores de escotismo.
* * *
Dizem-me que um jornal do Rio está fazendo, com quadri-
nhos, histórias não de bandidos nem de rufiões mas de grandes
homens e até de santos. E alcançando sucesso.
Foi o ponto de vista que defendi em parecer na Câmara dos
Deputados em 1948. Se não consegui que, por estímulo do go-
verno, se fizesse uma história em quadrinhos da Constituição de
1946 – como lembrei na Comissão de Educação e Cultura – ao
menos esbocei, entre homens de responsabilidade nacional, uma
reabilitação daquele gênero novo de histórias para meninos e mes-
mo para gente grande.
E estou certo de que essa reabilitação começa já a fazer-se; de que
os homens de bom-senso e de alguma imaginação principiam a ver
na história de quadrinhos uma arma moderna – moderna, mas nada
secreta: ao contrário – que tanto pode ser posta ao serviço de Deus
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quanto do Diabo. Que tanto pode servir para interessar o menino, o
adolescente, o adulto em aventuras de “gangsters” como nas aventuras
de Santos Dumont ou nas do General Cândido Rondon. Ou nas de
Santo Inácio de Loyola ou nas de São Jorge. Santos em luta contra
dragões. Inventores às voltas com o mais pesado que o ar. Desbrava-
dores de regiões do Brasil povoadas apenas por selvagens.
Assuntos fascinantes para histórias de quadrinhos são também
vidas como a de José Bonifácio, a de Mauá, a de Osvaldo Cruz, a
de Vital Brasil. Campanhas como a da Abolição. Documentos
aparentemente prosaicos, mas, na verdade, cheios de sugestões
poéticas como a Constituição de 1946.
O que é preciso é que não se deixe só ao serviço do vício, da
canalhice, do comercialismo o que pode ser posto também ao
serviço da virtude, da boa educação do menino e do adolescente,
da sã recreação do público. Mas para isso é preciso, antes de tudo,
que certos mediocrões enfáticos se desprendam da idade de que a
Igreja, o Governo, a Escola, o Partido Político, o Jornal, para se-
rem respeitáveis, devem ser cinzentamente convencionais. Inimi-
gos de toda espécie de pitoresco ou de novidade.
O exemplo que devem seguir é o dos Jesuítas do século XVI
que, no serviço de Deus, se utilizaram das armas mais escandalo-
samente novas de publicidade. Novas e pitorescas.
Quando membro da Comissão de Educação e Cultura da Câ-
mara dos Deputados – e nas comissões do Parlamento Nacional há
quem trabalhe, embora em torno desse trabalho não se faça o me-
nor ruído, mas, ao contrário, se mantenha um frio silêncio britânico,
que da parte dos jornais chega a ser sistemático – fui dos que se
colocaram contra o projeto de lei, traçado aliás com a melhor das
intenções e o melhor dos brasileirismos, com que ilustres represen-
tantes da nação pretenderam dar solução imediata ao problema das
más histórias em quadrinhos. Solução violenta: acabando com o mal
pela raiz. Tornando-o assunto policial.
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Meu ponto de vista foi então o de que, nesse particular, o mal,
poderia ser superado extra-policialmente pelo bem. A história em
quadrinhos em si não era nem boa nem má: dependia do uso que
se fizesse dela. E ela bem que poderia ser empregada em sentido
favorável e não contrário à formação moderna do adolescente,
do menino ou simplesmente do brasileiro ávido de leitura rápida
em torno de heróis e aventuras ajustadas à sua idade mental.
Agora, uma revista do Rio, especializada em publicações para
rapazes, moças e crianças que, em vez de desdenhar, dá a melhor
das suas atenções às histórias em quadrinhos, divulga o seguinte: que
jornais britânicos do porte de The Times e The Manchester Guardian
acabam de publicar palavras de ingleses eminentes que, tendo resol-
vido estudar o assunto, chegaram à mesma conclusão a que chega-
mos alguns de nós, brasileiros, na Comissão de Educação e Cultura
da Câmara, quando enfrentamos o mesmo problema em 1949.
Primeiro, que as histórias em quadrinhos “constituem elementos de
ajuda na alfabetização”. Segundo, “contribuem para o ajuste da per-
sonalidade às lutas da agitada época por que passa o mundo”.
Um desses ingleses é o Reverendo Morris. Para ele – já era o
nosso critério, no Brasil, em 1949 – as histórias em quadrinhos
“preenchem a necessidade que tem a mente infantil de histórias de
ação e de aventuras, concentradas em torno da figura de um he-
rói”. Além do que constituem o que alguns chamam “ponte para
a leitura”.
Mas não ficam aí os argumentos do educador inglês, divulga-
dos pela revista brasileira. Vão além. E como coincidem em vários
pontos com as evidências por alguns de nós reunidos em 1949 a
favor das então combatidíssimas histórias em quadrinhos, voltarei
ao assunto para fixar tais coincidências.
Ainda as histórias em quadrinhos. Também na Inglaterra hou-
ve quem se levantasse contra elas considerando-as ianquismo ou
americanismo da pior espécie. Engano. É apenas um modernis-
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mo que corresponde à época que atravessamos. E que tanto pode
ser utilizado no bom como no mau sentido.
O Reverendo Morris — segundo a revista brasileira que aca-
ba de divulgar suas opiniões publicadas em The Manchester Guardian
— é o que inteligentemente acentua: “Os pais deveriam deixar
de insistir numa censura negativa; ao invés disso, deveriam de-
monstrar um interesse positivo pelo que leem seus filhos. Deve-
riam escolher histórias em quadrinhos, nas quais os temas das
narrativas são elevados, além disso, onde nem todos os vilões
são estrangeiros...”.
Exatamente o critério que defendi há três ou quatro anos na
Comissão de Educação e Cultura da Câmara e neste meu recanto
de O Cruzeiro. Recebi, então, cartas terríveis. Uma delas insinuava
que eu estaria a serviço de alguma empresa ianque de histórias em
quadrinhos. Serviço encapuçado, mas serviço.
Outra coincidência da opinião do Rev. Morris com as ideias que
esbocei em 1949: “A violência e a aventura existem na Bíblia, em
Shakespeare, em Sir Walter Scott e em Stevenson, em não menor grau
do que nas histórias em quadrinhos americanas e nas histórias Vitorianas
de demônios e vampiros”. O que é fácil, facílimo de verificar.
Também a revista brasileira, que, divulga as palavras sensata-
mente britânicas do Reverendo Morris, reproduz sobre o assunto
a opinião de uma professora de psiquiatria de universidade norte-
americana: a Dra. Bender. “Do ponto de vista psicológico” – diz
ela – “as histórias em quadrinhos constituem uma grande experi-
ência de atividade. Seus heróis vencem o espaço e o tempo, o que
dá às crianças senso de libertação, ao contrário de angústia e de
medo”. E ainda: “o uso de símbolos utilizados nas histórias em
quadrinhos ajuda até mesmo os adultos a ajustar sua personalidade
às duras provas do mundo contemporâneo”.
O que é preciso é que não se abandone um modernismo das
possibilidades da história em quadrinhos aos maus exploradores
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desse e de outros modernismos. E no Brasil, felizmente, começa a
haver uma boa, não sei se diga, literatura, desse gênero.
Deste mesmo recanto modesto de página 10 de O Cruzeiro
tive ocasião de referir-me à chamada “história de quadrinhos”
como forma moderna de literatura ou de arte: uma literatura ou
arte cujo mal – o de conteúdo ou substância – não deve ser con-
fundido levianamente com a forma.
A forma tanto pode se prestar a fins educativos como
deseducativos. Correspondendo a um gosto moderno de síntese,
tanto da parte do público infantil como do adulto, deve ser apro-
veitada pelos educadores e moralistas e não apenas abandonada
aos exploradores da vulgaridade ou da sensação.
Em vez de assim procederem, que fazem alguns educadores e
moralistas? Investem contra a história de quadrinhos como os ca-
turras de outrora investiram contra os primeiros jornais, os pri-
meiros cinemas, os primeiros rádios. Até que ficou evidente que
jornal, cinema, rádio, tanto se podiam prestar a fins educativos
como deseducativos. Que os próprios padres ou sacerdotes podi-
am utilizar-se do jornal, do cinema, do rádio para a propaganda
da fé e da moral cristã. Que jornal ou imprensa não queria neces-
sariamente dizer perigo para a ordem estabelecida ou a ortodoxia
dominante, mas, ao contrário, podia ser posta a seu serviço. Que
cinema não queria necessariamente dizer moça quase nua fazendo
pecar os adolescentes, homem beijando escandalosamente mu-
lher, ladrão arrombando cofre, mas, ao contrário, podia ser posto
ao serviço da ciência, da história clássica e da própria religião. Que
o rádio não queria necessariamente dizer maior divulgação de sam-
ba, de anedota picante, de canção obscena, mas também de música
clássica e da própria música de igreja.
A “história de quadrinhos” está na mesma situação. Também
ela pode tornar-se instrumento de divulgação de vidas de heróis,
de santos, de sábios, de façanhas de vaqueiros do Nordeste e de
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gaúchos do Rio Grande do Sul; e não apenas de aventuras de
gangsters e de cowboys.
Também ela pode tornar-se, para os brasileiros, força de con-
servação de tradições nacionais, em vez de superação dessas tradi-
ções por mitos de povos imperiais sem que, entretanto, o justo zelo
nacionalista degenere em “nossismo” intolerante. “Nossismo” do-
entio que não admita história com Papai Noel, mas só com Vo
índio; nem biografia que exalte Marconi, mas só que glorifique San-
tos Dumont; nem canto onde apareça lobo ou olmo, mas só onde
brilhe a ramagem do cajueiro ou arreganhe a dentuça a suçuarana.
Compreende-se a campanha de nacionalização da história de
quadrinhos iniciada vigorosamente pelo jornalista Homero Homem.
Mas seria uma lástima que a mística de nacionalização nos levasse
àqueles exageros. E nos fechasse, nas nossas revistas e jornais, às
histórias de quadrinhos que não falassem em índio, cajueiro, vaqueiro
do Nordeste, suçuarana, pitanga, Caxias, Santos Dumont.
Atualmente, o extremo que domina nas histórias de quadrinhos
publicadas nos nossos jornais é o de quase exclusiva americanidade
de motivos, símbolos e personagens. Devemos reagir contra essa
exclusividade lamentável. Mas não ao ponto de nos fecharmos
dentro de motivos, símbolos e personagens exclusivamente brasi-
leiros. Apenas escolhendo para publicação, histórias, tanto brasilei-
ras como estrangeiras, mais capazes de deleitar o público, sem
corromper-lhe o gosto. Pois não nos esqueçamos de que vivemos
num mundo que é, cada dia mais, um mundo só, dentro do qual o
Brasil deve ser o Brasil sem deixar de ser fraternalmente humano e
cordialmente americano.
[Entre 1948 e 1951, Gilberto Freyre publicou na revista O Cru-
zeiro (Rio de Janeiro) seis artigos a propósito de histórias em quadri-
nhos, cujos aspectos sociológicos e psicológicos ele foi o primeiro a
destacar. Eis os títulos e suas respectivas datas: “Histórias para meni-
nos” (13-11-1948); “Outra vez as histórias em quadrinhos” (5-2-
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1949); “Histórias em quadrinhos” (24-6-1950); “A propósito de his-
tórias em quadrinhos” (31-6-1950); “Ainda as histórias em quadri-
nhos” (8-7-1950); e “Histórias em quadrinhos, nacionalismo e
internacionalismo” (9-6-1951). Os três artigos de 1950 foram re-
produzidos na antologia “Reino encantado das histórias em qua-
drinhos” (Rio de Janeiro, Ed. Brasil-América, s. d., pp. 5-7)].
(Do livro Pessoas, coisas e animais, pp.210-216, MPM Propaganda, São Paulo,
1979)
Paz, guerra e brinquedo
Há um problema que lamento não ter levado à discussão na
Conferência de Ciências Sociais reunida em Paris no verão do ano
passado. É o problema do brinquedo: o brinquedo de menino.
Também ele tem que ver com a guerra ou a paz entre as nações.
Pois se ao livro escolar de história e de geografia e à biografia
de herói devemos atribuir considerável importância na formação
da criança, no seu desenvolvimento em adulto, no pendor para a
guerra ou para a paz que venha a lhe caracterizar a personalidade
de homem feito em consequência de suas orientações e experiên-
cias de menino, igual importância deve ser atribuída ao brinquedo.
O brinquedo pode ser posto ao serviço do pacifismo tanto quan-
to do militarismo; do internacionalismo compreensivo tanto quanto
do nacionalismo agressivo.
Não é possível que o menino a quem se dê constantemente para
brincar pistola ou revólver pequeno imitado de pistola ou revólver
de gente grande, canhão ou soldado de chumbo, espingarda ou
tanque de madeira ou de lata, espada ou facão de folha de zinco,
cresça impregnado de outro espírito senão o de guerra entre as
nações, o de luta entre os homens, o de agressão violenta ao estra-
nho. Através do brinquedo, do mesmo modo que através do livro
de geografia ou de história exageradamente patriótico, da biografia
de herói estreitamente nacionalista ou virulentamente militarista, cri-
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am-se no menino ou no adolescente predisposições quase sádicas
para a guerra. Predisposições que dificilmente são anuladas ou se-
quer atenuadas nele pelos sermões pacifistas que ouve nas igrejas,
pelas lições de internacionalismo que lhe dão nos ginásios ou nas
universidades, pelas viagens de cordialidade ou boa vizinhança ao
estrangeiro que empreende na mocidade ou depois de homem fei-
to. O mal já está feito. O espírito da criança é eterno. Sendo a criança
“o pai do homem”, o homem feito não consegue, senão a custa de
raro heroísmo, libertar-se das impressões mais cruas daqueles brin-
quedos que despertaram na sua personalidade ainda em formação
o gosto exagerado pela guerra, pelas batalhas, pelas armas de fogo.
De modo que os brinquedos belicosos estão concorrendo tanto
quanto aqueles livros escolares em que a Conferência de Paris re-
conheceu obstáculos sérios à boa compreensão entre os povos
para tornar difícil o internacionalismo ou a conveniência internaci-
onal. Pois o nacionalismo agressivo se serve de espingardinhas de
pau do mesmo modo que das verdadeiras, de brinquedos de chum-
bo da mesma maneira que de livros escolares para se perpetuar
entre os homens. Enquanto não procurarmos dominá-lo nas suas
raízes, ele zombará dos nossos esforços para reprimi-lo nas extre-
midades. Cortando-se simplesmente os galhos mais incômodos,
não se vence este duro e profundo inimigo.
Encontrei há pouco numa revista inglesa a informação de que
os progressos feitos ultimamente na química, na engenharia e na
psicologia estão exercendo poderosa influência sobre a arte ou a
indústria britânica de brinquedos para meninos. Só a matéria plás-
tica representa um mundo novo para o fabricante de brinquedos.
Permite que se fabriquem brinquedos mais higiênicos que os anti-
gos. Que se fabriquem brinquedos coloridos cujas cores resistem
ao próprio sol dos trópicos. Que se faça do brinquedo um instru-
mento mais dócil e, ao mesmo tempo, mais vivo da educação da
criança no sentido de desenvolver nela o sentido de cor, o de
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forma, o de tato. E é possível – acrescento eu – que se desenvolva
um tipo de brinquedo móvel, à maneira das esculturas de Calder.
Tudo isso soa muito agradavelmente aos ouvidos daqueles que
têm filhos pequenos a educar, olhos e mãos de meninos a encher
com brinquedos ao mesmo tempo recreativos e educativos. O
que, porém, muitos pais brasileiros desejam é encontrar nas lojas
de brinquedos menor número ou menor variedade de espingar-
dinhas, canhõezinhos, soldadinhos, batalhõezinhos, cruzadore-
zinhos, bombardeirozinhos, tanquezinhos, revolverezinhos e mai-
or número ou maior variedade de brinquedos dos chamados cons-
trutivos: trenzinhos, automoveizinhos, chalezinhos, bonecos à pai-
sana, pequenas pás e enxadas, pequenos regadores e ciscadores. E,
sobretudo, blocos de cor para a construção de casas, igrejas, pon-
tes, cidades. Massas de cor para a criação de figuras de pessoas,
animais, árvores, flores, frutas.
Os brinquedos que estão ganhando os melhores entusiasmos
dos meninos ingleses – inclusive das meninas – me informam que
são hoje os chamados arquiteturais. E sua difusão entre a gente bri-
tânica é uma das evidências de que o socialismo na Grã-Bretanha é
antes construtivo e arquitetural do que belicoso e militarista. Belico-
so e militarista ele continua, segundo parece, na Rússia Soviética.
Seria, entretanto, interessantíssimo, saber-se exatamente com
que tipos de brinquedos as crianças do Império soviético estão
hoje brincando. É possível que ao culto do “Marechal de Aço” se
junte o brinquedo de guerra ficando para uso externo as eloquentes
proclamações de Paz.
Nos Estados Unidos não há dúvida: o brinquedo de guerra
está, infelizmente, na moda. Talvez esteja também na moda na
Argentina. Não sei se esse aspecto de belicosidade foi fixado peio
meu inteligente amigo Arnon de Melo na sua recente viagem de
observação à República do Sul.
[Fonte: livro Pessoas, coisas e animais, pp.217-218, MPM Propaganda, 1979]
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COLEÇÃO EDUCADORES
Em torno de alguns aspectos do que precise de ser educação
de jovens e de não jovens para uma época de tempo mais livre
Do que já pode e talvez deva cuidar toda universidade brasi-
leira que se preocupe não só com seu tempo presente como com
esse tempo estritamente presente projetado em futuro próximo,
dentro do ritmo acelerado com que, nos nossos dias, esses dois
tempos se interpenetram, é de facilitar aos seus estudantes de di-
versas especialidades a iniciação, em estudos, quer cívicos, quer
sociológicos, que os habilitem, como futuros especialistas ou téc-
nicos, a estimar, em democracias, os valores de que essas demo-
cracias vivem. Valores que se apliquem ao cotidiano político-social
ou econômico-social de modo menos simplista ou arbitrário que
os valores totalitários. Essa aplicação, através não só de atividades
que se definem como trabalho, como daquelas que se verifiquem
nas mais diferentes artes recreativas, lúdicas, religiosas – solidaristas,
umas, individualistas, outras.
É preciso que o técnico em direito ou em medicina ou em en-
genharia seja iniciado, durante a sua formação universitária, num
conhecimento de artes várias – pintura, escultura, música, marcena-
ria, cerâmica, carpintaria, construção, culinária – que o habilite a es-
colher uma de sua preferência, em que se inicie – e que assim adqui-
rida venha a ser companheira sua, no tempo-lazer, habilitando-o até,
em alguns casos, a ganhar algum surplus com sua arte lúdica. Nou-
tros casos, será uma arte que desempenhará, para o indivíduo que a
adquira para sua companheira durante o crescente tempo-lazer que
vai caracterizar a civilização pós-moderna já quase diante de nós, o
papel saudavelmente psicocultural de uma laborterapia. Um res-
guardo, portanto, desse indivíduo e da sociedade particular a que ele
pertence, do perigo – de que já hoje há evidências de existir em
sociedades como a sueca, célebre tanto pela sua quase perfeição
econômico-social ou tecnológico-social como pelo número de sui-
cídios entre sua gente – da insipidez, da monotonia, de tédio de vida
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sempre que o homem, não sabendo matar o tempo cujo excesso o
enoja ou esmaga, mata-se a si mesmo.
Também é de esperar-se que, com o aumento do tempo-ócio,
se acentue nas universidades, em cursos quer de artes, quer de ciên-
cias, a presença de indivíduos já idosos, dos dois sexos. Há muito de
convencional na ideia de ser a universidade apenas para jovens; e de
o aprendizado de artes, assim como o de ciências, constituírem um
privilégio de adolescentes e de moços. Não constitui.
Cada ano a maior extensão de média de vida humana, que é
um dos fenômenos mais significativos da nossa época, começa a
dar a numerosos indivíduos um período de quase completo ócio
entre as idades de 65 e 80 anos, que vários deles em alguns países
vêm aproveitando para o aprendizado de ciências e, principal-
mente, de artes, em cursos universitários, quer regulares, quer de
extensão. Sabe-se de Winston Churchill ter, já homem de idade
provecta, começado a dedicar-se à pintura. Vários são os indiví-
duos idosos que, aposentados ou jubilados nas suas profissões,
vêm adquirindo, em cursos universitários ou por correspondência,
conhecimentos de jardinagem e horticultura e, à base desses co-
nhecimentos, constituindo-se em rivais de especialistas no cultivo,
em suas chácaras ou quintais, de orquídeas, de rosas, de hortênsias.
Ocupações de um acentuado caráter artístico, lúdico, recreativo. O
ex-governador Carlos Lacerda, sem ser já homem de idade
provecta, já se constituiu num cultor sistemático, durante os seus
ócios, de rosas que sabe fazer desabrochar dos seus jardins de
modo verdadeiramente artístico. E não nos esqueçamos desses
quase artistas que dedicam o seu tempo ocioso a colecionar obras
de arte: obras de arte que, a certa altura, são incorporadas a mu-
seus com grande vantagem para o grande público. Foi o que suce-
deu com as preciosidades que Guerra Junqueiro passou todos os
seus ócios a colecionar, viajando, montado biblicamente num
burrico, por velhas estradas rústicas de Portugal e da Espanha.
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Estão hoje, essas obras de arte, num museu do Porto, dirigido por
uma filha do poeta-colecionador.
Vários dos chamados “hobbies” têm o seu quê de atividade
artística a encher tempo ocioso: antigo professor de economia polí-
tica da Faculdade de Direito do Recife, há pouco falecido, dedicava
seus ócios a duas pequenas porém difíceis artes muito diferentes da
ciência da sua especialidade: a arte de consertar relógios e a arte de
verter para o português trechos de clássicos latinos. Enquanto do
outro mestre da mesma escola se sabe que vem consagrando os
seus lazeres à arte da poesia.
Que artes tendem principalmente a encher o tempo-ócio de um
homem moderno? Que artistas são por ele mais estimados ou dese-
jados? Depende, por um lado, das tradições psico e socioculturais
da sociedade a que pertença esse homem moderno e, por outro, das
próprias predisposições desse mesmo homem como indivíduo que,
moderno, pode guardar dentro de si arcaísmo artisticamente signifi-
cativo. Tudo indica, com relação ao brasil, que a tradições psico e
socioculturais da sociedade brasileira se juntam predominâncias de
predisposições individuais no sentido de um gosto pela arte da música
– tão dos africanos e dos indígenas e tão da Igreja Católica, civilizadora
principal dessa mesma sociedade. Gosto, entre nós, maior que o
gosto por outras artes. entretanto, há tradições outras, de arte, que,
dentro de um maior tempo-ócio para um maior número de brasi-
leiros, poderão se exprimir em atividades artísticas consideráveis.
entre essas tradições, a da cerâmica, a da escultura em madeira, a da
renda, a da marcenaria, a da culinária.
Aqui tocamos num ponto merecedor de atenção especial. É
este: com o aumento de tempo-ócio para um maior número de
brasileiros, apresenta-se, sob novo aspecto, o problema de ativi-
dades artísticas social e culturalmente condicionadas pelo sexo de
cada um: pelo sexo puro e pelo meio-sexo ou pelo sexo vário,
com solicitações de expressão artística diferentes das comuns. Tra-
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ta-se de um possível afastamento de convenções que vêm aba-
fando vocações em grande número de indivíduos: vocações de
homens para bordar, por exemplo; ou para cozinhar; ou para
costurar. Ou de mulher para a marcenaria ou a carpintaria.
O aumento de tempo-ócio, numa civilização em que homens e
mulheres se encontrem livres para dispor da maior parte do seu tem-
po, segundo suas predisposições mais íntimas, pode resultar em forte
modificação nas convenções de rígido condicionamento de ativida-
des artísticas pela suposta expressão sociocultural do sexo do indiví-
duo apenas em determinado sentido. Poderão indivíduos do sexo
masculino, donos desse maior tempo-ócio, sentir-se livres para utilizá-
lo na satisfação fora de quadros rigidamente profissionais e rigida-
mente sexuais de atividade, de desejos neles reprimidos pelo império
das convenções dominantes; e entregar-se com todo o gosto e até
todo o afã à arte de bordar ou de fazer renda; ou de cozinhar; ou de
inventar novas combinações de doces; ou de costurar. O mesmo
poderá acontecer, em sentido contrário, à mulher, que poderá dedi-
car-se, dentro de um maior tempo-ócio, a artes a que se sinta inclina-
da, em desacordo com as convenções dominantes com relação ao
que seja atividade profissionalmente masculina ou atividade profissio-
nalmente feminina. A desprofissionalização dessas atividades criará
provavelmente condições favoráveis a uma maior liberdade na satis-
fação, por indivíduos dos dois sexos, e de meio-sexo, de desejos de
caráter artístico, neles abafados – repita-se – por convenções mais ou
menos tirânicas, ainda fortes em sociedades modernas.
Lembremo-nos sempre de que ócio é o positivo, de que negó-
cio é o negativo. O positivo é o tempo livre de trabalho, de comér-
cio, de preocupação com assuntos apenas úteis. O negativo é o
tempo ocupado exclusiva ou quase exclusivamente por essas preo-
cupações de trabalho e de comércio com os ágapes rotarianos
como uma expressão da predominância do senso de negócio sobre
o espírito do ócio.
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Quanto ao sinônimo de ócio, lazer, deriva-se de palavra grega
que significa escola: isto é, estudo livre daquelas mesmas preocupa-
ções utilitárias, comerciais. Ambas as palavras parecem ter desde as
suas raízes implicado numa caracterização de uso não só desinteres-
sado de proveitos econômicos, como recreativo, de tempo. O que
sugere suas afinidades com o sentido, também, em grande parte,
recreativo, da palavra arte, como significando aquela expressão de
personalidade ou de grupo humano que importa em afirmação de
criatividade pessoal ou coletiva.
Atentemos também no seguinte: a palavra recreação não sig-
nifica, em sua raiz, passatempo frívolo, porém contínua criação.
Criação repetida: recriação. Compreende-se assim que a arte seja,
principalmente, uso recreativo de tempo que implique em criações
singulares, ou repetidas, capazes de transmitir sentido de beleza ou
visão mais profunda que a comum, de realidades atingidas pionei-
ramente por artistas, a espectadores, ouvintes, leitores, seus con-
temporâneos e, em vários casos, também seus pósteros.
Vivemos hoje num ritmo de desenvolvimento tecnologia que
não é bastante, nem ao homem de ação nem ao de estudo, que
considerem problemas das suas ciências ou das suas indústrias,
da sua política ou da sua engenharia, fixando sua tensão apenas
no que esses problemas apresentam de atual, de imediato, de estri-
tamente moderno. O prestígio desta palavra – moderno é um
prestígio em crise.
Em crise porque é um moderno a que faltam atualmente tem-
po e condições sociais para prolongar-se como moderno o bastan-
te para se impor como um fenômeno tecnológica e sociologica-
mente ou filosoficamente significativo. É assim que com a valori-
zação excessiva que se fez de semelhante modernismo está prestes a
dissolver-se a glorificação exclusiva do trabalho e do trabalhismo,
como filosofia básica de civilização industrial; enquanto a arte pare-
ce pronta, associada com outros empenhos a religião, o esporte, o
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jogo, a meditação, o lazer –, a tomar, sob vários aspectos, o tempo
psicossocialmente vazio, do trabalho, que esteve, até há pouco, as-
sim, glorificado. Foi uma filosofia – a da glorificação do trabalho –
vinda do que se convencionou denominar de início de uma época
moderna no desenvolvimento humano: a marcada pela emergência
do capitalismo urbano-industrial. Arcaica, portanto. O neocapitalismo
dos nossos dias vem assimilando do próprio socialismo e até, para
uso oportuno – uso pós-moderno – do anarquismo – emprego a
palavra no seu sentido real e não no caricatural – valores que, apa-
rentemente contradizendo-o, completam-se, em face de um fenô-
meno cada dia mais revolucionário: o da repercussão da automação
sobre as relações do homem com o tempo. Fenômeno a que se
juntam outros, de projeções já nítidas sobre o presente e sobre o
futuro do homem. Já vimos como o do aumento da média de vida,
por exemplo, tende a dar às relações entre as gerações do homem
extremamente sênior com o extremamente júnior e, com o tempo,
com a vida, com a comunidade, novos sentidos e novos rumos. É
fenômeno intimamente ligado à transição de formas modernas para
pós-modernas de vida.
Outras convenções mais ou menos tirânicas se mostram ainda
fortes em sociedades modernas, reguladas por um culto ético, e não
apenas técnico, do trabalho, além da que determina as atividades que
devam ser consideradas masculinas e as que devam ser consideradas
femininas. Ou além do que deva ser considerado trabalho só de
jovem e do que deva ser considerado atividade só de sênior, com a
idade do começo da idade sênior fixada, por vezes, arbitrariamente.
Sem nos esquecermos de que – repita-se – estudos agora conside-
rados só de jovens tendem a se tornar também estudos seguidos
por indivíduos de idade provecta.
O crescente tempo-lazer tende a desmanchar as barreiras em
termos de tipos humanos até agora rigidamente associados a tipos
de trabalho. Tende a quebrar o monopólio dos cursos universitários
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como privilégio de indivíduos jovens, permitindo – repita-se – uma
mais livre afirmação de vocações e de gostos, independentemente
de sexo e de idade, de tradições de cultura e de convenções éticas.
Será esse um dos aspectos mais revolucionários das relações entre
gerações e entre sexos que o crescente tempo-lazer tenderá a acen-
tuar nas sociedades modernas em transição para pós-modernas.
O repúdio aos mestres jubilados pelas escolas a que pertenceram
durante anos representa uma das convenções menos inteligentes em
vigor nos meios universitários brasileiros. Meios que vêm se fazendo
notar por um monopólio das suas atividades didáticas por parte de
homens entre os trinta e tantos e os sessenta e tantos ou setenta anos: –
altos e absorventes burgueses no tempo social como outros em espa-
ços também sociais. Espécie de burguesia – repita-se – no tempo
social, como a outra, no espaço também social, excessivamente ciosa
de exclusividade de mando, de poder, de dominação, quer sobre os
jovens, quer sobre os possíveis competidores do tipo sênior. Na Eu-
ropa e mesmo nos Estados Unidos, nem sempre se faz sentir de
modo rígido essa espécie de monopólio, explicando-se assim ter o
antropólogo Boas, na Universidade de Colúmbia, ultrapassado os 80
anos, como orientador de estudos pós-graduados na sua especiali-
dade; e de Hans Freyer ter sido conservado em atividade na Univer-
sidade de Münster, em idade igualmente provecta, onde o autor co-
nheceu há alguns anos, tão lúcido e jovem de espírito como o seu
companheiro de geração, Arnold Toynbee, que visitou o Brasil recen-
temente; e que no Recife aceitou o convite que lhe foi feito para voltar
ao nosso país a fim de participar de um seminário universitário.
Na civilização pós-moderna, já quase diante de nós, as novas
atividades que se abram ao homem sênior podem desempenhar o
papel saudavelmente psicocultural de uma laborterapia mista de
ludoterapia. Um resguardo, portanto, desse indivíduo e da socieda-
de particular a que ele pertença, do perigo – de que já hoje há evi-
dências de existir em sociedades como a sueca, a despeito de sua
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quase perfeição econômico-social ou tecnológico-social – da insipi-
dez, da monotonia, do tédio de vida. Um tempo – esse tempo-
tédio dos suecos – de todo diferente do ócio hispânico que se pro-
longa à revelia dos relógios sem que o ocioso se sinta vítima de
tédio; ou se apresse; ou se preocupe exageradamente com as rela-
ções entre tempo e dinheiro. Daí os Casals, os Segovia e até bem
pouco os Menéndez Pidal e Picasso em plena atividade depois dos
oitenta. O hispano tem tido, entre os europeus, a sabedoria de nem
matar o tempo, apressando-se nos afazeres e nos lazeres, nem ma-
tar-se a si próprio. Países como o Brasil devem preparar suas novas
gerações para tempos pós-modernos seguindo antes inspirações his-
pânicas de sentido e de uso de tempo que exemplos suecos.
O inglês da época vitoriana que, descarregando contra a Espanha
o melhor humour da sua gente, disse desejar que sua morte lhe fosse
mandada da Espanha, pois assim tardaria a lhe chegar, poderia talvez
desejar hoje, principalmente se, em vez de inglês, fosse sueco, que sua
vida se assemelhasse menos à dos bem ordenados, bem regulados e
bem cronometrados norte-europeus e mais à desleixada e até um
tanto boêmia e um pouco anárquica dos hispanos. Ou mesmo à dos
nordestinos do Brasil: à dos baianos, em particular. Porque assim,
embora vítima dos desleixos tão característicos da vida baiana quanto
da sevilhana, ou mesmo da madrileña, não correria o risco de, vítima da
monotonia da perfeita ordem e da absoluta segurança de uma civili-
zação cronometrada tanto no tempo físico como no social, vir a sui-
cidar-se de pura acedia, como tantos suecos e não poucos ianques. O
que aqui se diz sem nenhum desapreço pela alta civilização sueca, de
cujas Academias, aliás, uns poucos intelectuais e cientistas do mundo
inteiro tanto vêm dependendo há anos para o conforto das suas velhi-
ces à sombra dos magníficos prêmios glorificadores, distribuídos pe-
los sábios de Estocolmo. Prêmios glorificadores desses indivíduos de
gênios em termos, senão de “time is Money”, de a própria glória,
muito anti-hispanicamente, ser, principalmente, dinheiro.
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Hispanos, com relação à Europa, e baianos, com relação ao
Brasil, fazem tão má figura nas estatísticas que os economistas cha-
mam de “renda per capita” que são, por essa sua inferioridade, des-
denhados pela maioria dos economistas e até por alguns sociólogos
mais aparentados dos economistas nas suas tabelas de valores. Os
quais, entretanto, se esquecem, uns como economistas, outros – es-
quecimento mais grave – como sociólogos, de não ser nada má a
figura que hispanos, em geral, baianos, em particular, fazem nas es-
tatísticas relativas a suicídios, a alcoolismo e às doenças mentais. Não
está o autor disposto, de modo algum, a elogiar hispanos ou baianos,
por aquela inferioridade econômica que não deixa de ser social: sua
baixa renda per capita. É lastimável e chega a ser vergonhosa para a
moderna civilização hispânica posta em confronto com a sueca, com
as anglo-saxônicas, com a alemã, com a suíça, com a francesa, com
a própria soviética. É desprimorosa para os baianos em confronto
com os paulistas. Mas o autor não resiste à tentação, um tanto à
maneira dos “advogados do Diabo”, de considerar, no confronto
de tais estatísticas, a deficiência hispânica compensação da deficiên-
cia norte-europeia, numa evidente demonstração do dinheiro não
significar sozinho, ou como aliado cronométrico do tempo, aquela
felicidade no viver que, independente de dinheiro e independente de
tempo, faz tanto mendigo espanhol morrer alegremente de velho; e
tanto negro-velho baiano viver alegremente até o fim dos seus dias
sua pobreza de devoto de Nosso Senhor do Bonfim ou de Nossa
Senhora da Conceição da Praia. Ou de Iemanjá.
É um assunto, esse – o das novas relações do homem com o
tempo – que o autor vem procurando versar ultimamente, em
ensaios e em conferências universitárias, estas, principalmente, na
Europa e nos Estados Unidos, também em universidades brasi-
leiras. O seu mais recente trabalho sobre tema tão sedutor é o
que acaba de aparecer, em várias línguas, publicado pela revista
de filosofia e de ciências do homem, Diogène, que se edita em
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Paris. Aí destaca aspectos do problema de substituição de uma
ética de trabalho por uma ética de lazer que talvez não tivessem
sido ainda considerados tão especificamente por outros analistas
do assunto. A verdade, porém, é que é assunto imenso; e que a
afirmativa feita pelo autor, há quinze anos, e considerada então
escandalosa, de que trabalhismo, laborismo, marxismo apenas
laborista – note-se do gênio de Marx que previu a superação
sociológica do trabalho pelo lazer –, organização do trabalho,
sindicalismo, representariam aspectos de uma realidade socioló-
gica moribunda; e que a organização do lazer começaria sem
demora a apresentar-se como problema muito mais importante
do que o da organização do trabalho. A figura do operário tendia
já a tornar-se rapidamente figura quase de museu tanto quanto a
do burguês ortodoxamente capitalista. É o que está sucedendo;
e sucedendo rapidamente. Pelo que a educação das novas gerações
precisa de tomar novos rumos.
A época de menos trabalho e mais lazer para a qual caminha-
mos apresenta-se a quantos pretendem antecipar-se em traçar-lhe,
animados por uma espécie de imaginação compreensiva, o pro-
vável perfil sociológico, como época, ao mesmo tempo de maior
unificação e de maior diversificação entre os componentes de uma
comunidade. O que corresponde ao ideal democrático de reorga-
nização social, senão dos demagogos mais simplistas, de poetas-
sociólogos como Walt Whitman e de sociólogos com alguma coi-
sa de poetas, sem prejuízo de sua ciência, como Simmel. Pois o
maior lazer parece que vai permitir aos homens maior liberdade
de expressão: em fazer o que sempre desejaram fazer dentro de
uma maior diversificação de atividades por escolha individual dos
membros espontaneamente ativos de uma comunidade. Ao mes-
mo tempo vai favorecer – ao que parece – maior unificação do
que, nesses esforços de indivíduos não só biologicamente diversos
pelas suas predisposições como sociologicamente diferentes pelas
inclinações psicossociais e psicoculturais, seja, além de agradável,
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COLEÇÃO EDUCADORES
saudável, higiênico, para eles, indivíduos socializados em pessoas:
atividades capazes de concorrer para o bem-estar geral e para de-
senvolvimento harmonicamente inter-relacionado de uma mesma
comunidade. Suas necessidades rigorosamente técnicas e apenas
econômicas tendem a ser, com a crescente automação, reduzidas.
A época social em que, ainda em grande parte, vivemos vinha
sendo caracterizada não só por um máximo de valorização do traba-
lho como – repita-se – por convenções de caráter psicossocial associ-
adas de modo rígido a determinados trabalhos – uns considerados
próprios só do sexo masculino, outros, só do sexo feminino, uns só
de indivíduos jovens, outros só de indivíduos idosos, uns só de indiví-
duos aparentemente fortes, outros só de indivíduos aparentemente
débeis. Todo um conjunto de convenções que a maior automação
tende a desprestigiar e que o maior lazer tende a tornar arcaicas. De
onde a urgência de novos rumos na formação de novas gerações.
Havendo maior automação, menor será a força da convenção
que hoje associa as atividades válidas, sérias, enérgicas, apenas a
indivíduos jovens ou de meia-idade. Os de idade mais avançada
poderão exercer, pelo gosto de praticá-las, várias dessas ativida-
des, valendo-se de dois fatores de crescente importância neste par-
ticular: o de virem a exigir várias daquelas atividades dos seus pra-
ticantes menor vigor físico, e o de a ciência médica vir aperfeiço-
ando nos indivíduos de idade mais avançada as condições de saú-
de propícias ao prolongamento, neles, de aptidões para atividades,
além de higiênicas para os mesmos indivíduos, criadoras e, por
conseguinte, capazes de concorrer para o enriquecimento cultural
da comunidade. Daí poder, talvez, dizer-se que caminhamos, se-
gundo as probabilidades que se apresentam a uma sociologia com-
preensiva projetada sobre o futuro, uma época ao mesmo tempo
de maior unificação e de maior diversificação entre os homens,
membros de uma comunidade.
(Do livro Além do apenas moderno, pp. 122-131, Livraria José Olympio Editora,
Rio de Janeiro, 1973)
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ANTONIO GRAMSCI
Antropologia e reforma do ensino
Acabo de receber de um jovem de Campina Grande, cuja
inteligência nada vulgar se volta para os estudos regionais de socio-
logia, uma carta de que transbordam inquietações e dúvidas. Prin-
cipalmente esta: a de que o Brasil esteja desenvolvendo, ou venha a
desenvolver, uma cultura original. O jovem e arguto estudioso de
problemas brasileiros parece ser dos que pensam que cedo ou
tarde acabaremos europeizados de todo: diretamente, pela Euro-
pa, ou indiretamente, pelo industrialismo norte-americano nascido
na Europa: na Europa burguesa e, como diria Patrick Geddes,
paleotécnica, de que os Estados Unidos se tornaram depois da
vitória do Norte sobre o Sul, na Guerra Civil, o aumento grandio-
samente patológico. De modo que nosso esforço para nos desen-
volvermos em cultura nova e, sob vários aspectos, extra-europeia,
resultará inteiramente vão; e certa a teoria dos supostos ortodoxos
da sociologia que proclamam: fora da Europa não há salvação.
Nem salvação étnica nem salvação natural.
Os que desejamos que o desenvolvimento da cultura brasileira
tome livremente aspectos extra-europeus numa afirmação corajo-
sa do que já denominei de vigor híbrido sociológico, não quere-
mos de modo nenhum – fique este ponto bem claro – o sacrifício
de tudo quanto é valor europeu incorporado à nossa vida a subs-
titutos extra-europeus. A cultura nova e, tanto quanto possível,
original que desejamos ver desenvolvida no Brasil seria principal-
mente nova e original pela combinação e harmonização de valo-
res de origens várias – ameríndia, europeia, africana, asiática – dentro
das necessidades e das condições do meio brasileiro e por obra e
graça de cruzamento de sangues e de interpenetração de culturas
diversas, considerada a luso-cristã a decisiva, embora de modo
nenhum a exclusiva. Não sendo nem o cristianismo nem a cultura
ibérica criações ou expressões caracteristicamente europeias mas,
em muita coisa essencial, extra-europeias, daí resultaria o primeiro
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ponto de apoio firme às pretensões extra-europeias das culturas
hispano-americanas, em geral, e da brasileira, em particular.
Aí fica o problema nos seus termos gerais. Resta saber: será pos-
sível aquele desenvolvimento de sobrevivências úteis e de valores ati-
vos de culturas de origens várias, em combinações e harmonizações
novas que correspondam a condições e necessidades brasileiras de
meio físico, de meio bioquímico e de meio social? É pergunta que só
terá resposta menos astrológica e mais cientificamente sociológica depois
de sabido ao certo o resultado da guerra em que atualmente se decide,
entre outras questões formidáveis, a do exclusivo primado europeu
de economia, em particular, e de cultura, em geral. Primado europeu
que até hoje tem significado o primado da Europa ocidental, já com-
prometido, aliás, dentro do próprio continente europeu, pelo surto
surpreendente da força russa: da sua técnica ao lado de sua mística. E
a essa mística repugna o imperialismo econômico que por largos sé-
culos tornou a hegemonia da cultura da Europa – enriquecida política
e tecnicamente pelos Estados Unidos – uma espécie de dogma de
infalibilidade cultural: a infalibilidade não de Roma católica – que como
tal é supracontinental – mas da Europa ocidental.
O jovem pesquisador de Campina Grande que atualmente se
dedica a um estudo interessantíssimo – uma história sociológica das
secas – destaca os reflexos, em nosso meio, da mística, hoje em crise,
de progresso sobre base ortodoxamente capitalista a que por tanto
tempo me parece ter estado associada a outra: a mística da Europa
como única fonte de cultura capaz de alimentar e enobrecer povos da
América. Tanto que estes deveriam obstruir todas as outras fontes de
cultura, estancando quanto fosse sobrevivência ameríndia ou africana
em sua vida, em seu sangue e em sua própria paisagem.
Contra esse ideal de exclusividade europeia em nossa vida, em
nossa cultura, em nosso sangue e em nossa paisagem vamos reagin-
do hoje, homens das gerações mais novas, nos vários países ameri-
canos tanto quanto na índia, na China e nas terras coloniais e
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semicoloniais da Ásia e da África menos diminuídas no seu vigor
intelectual e moral, político e econômico, pela mística de superiori-
dade absoluta da Europa. Os estudos antropológicos e sociológi-
cos realizados nos últimos trinta ou quarenta anos – estudos, desta-
que-se o paradoxo, desenvolvidos em grande parte à sombra dos
próprios poderes imperialistas – vêm dando aos povos
extraeuropeus novo sentido de dignidade – baseado na ciência – de
sua condição biológica, social e de cultura. Condição desprestigiada
por sociólogos e antropólogos de duvidosa idoneidade científica,
em escritos que fizeram época nos meios intelectuais e políticos da
América Latina. Os escritos de Gustave Le Bon, por exemplo. De-
pois de lê-los, muito bacharel sul-americano se contraiu em pessi-
mista inconsolável a respeito do futuro dos povos mestiços. Esse
destino era o fracasso certo. Não podia haver dúvida: estava escrito,
concluía muçulmanamente a ingenuidade latino-americana diante das
profecias dos Le Bon.
* * *
O meu correspondente de Campina Grande parece ser tam-
bém dos que não veem grandes possibilidades do Brasil afirmar-
se em cultura em vários aspectos extraeuropeia, semelhante à me-
xicana. Tantas seriam as evidências de que nossas ainda ralas mani-
festações de americanidade criadora vão sucumbindo sob o do-
mínio forte e sólido de organizações empenhadas em conservar
nosso status de colônia cultural da Europa que os vagos começos
de cultura brasileira estariam condenados a desaparecer de todo.
Para o jovem paraibano preocupado com os problemas brasi-
leiros de cultura e de antropologia, o caso de Ibiapina – pretexto, a
seu ver, de recente manifestação de ódio não apenas político e teo-
lógico mas cultural contra os brasileiros desejosos de um Brasil me-
nos colonial – se apresenta cheio de significados sociais. Ibiapina
conseguira unir a energia brasileira, a pertinácia nordestina, o élan
bandeirante à causa da expansão cristã no Brasil, esboçando uma
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formidável organização de atividade Católica nos sertões do Nor-
deste, semelhante à de Dom Bosco e à dos Maristas. Atividade que
seria desenvolvida principalmente por gente nativa, por caboclos da
terra da marca do próprio Ibiapina, por brasileiríssimas senhoras
que em vez de “madres”, “irmãs-superioras” ou “cônegas” se tor-
nassem todas conhecidas por “mães-sinhás”.
No fracasso da iniciativa heroica do padre cearense o jovem
de Campina Grande parece ver refletir-se a precariedade cultural
do Brasil mestiço em face de uma Europa branca ainda imperia-
lista nos seus desígnios e métodos: ansiosa de conservar-se senho-
ra todo-poderosa do sistema brasileiro de educação, isto é, do que
se pode denominar o sistema brasileiro de educação. De modo
que estaríamos nós – os brasileiros integral ou apenas sociologica-
mente cristãos – sem meios de comunicar às gerações novas a
consciência e o gosto dos valores, ou das combinações de valores,
que nos são peculiares, e o zelo pela identificação do Catolicismo
com as necessidades regionais do Brasil, com o folclore, com as
tradições populares, com as condições tropicais do nosso país,
sempre que essa identificação for possível sem sacrifício para a
ortodoxia católica, isto é, para o que a ortodoxia católica precisa
guardar como conjunto de valores essenciais à Igreja. Essenciais à
Igreja mas superiores a interesses e pretensões europeias – nacio-
nais, dinásticas ou continentais – de primado absoluto ou de ex-
clusividade de domínio de cultura no mundo moderno. Inclusive
a exclusividade na conservação ortodoxa da velha fé de origem
hebreia uma vez entregue aos santos; e não aos europeus.
É claro, que a cultura brasileira, como as demais culturas ame-
ricanas, tem nos valores recebidos da Europa riqueza magnífica a
ser desenvolvida de acordo com as necessidades e os interesses de
cada província dentro das perspectivas cada dia mais largas que se
abrem ao contacto das energias provincianas ou regionais de cul-
tura com as ecumênicas. Mas sem que o contacto com a tradição
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europeia signifique o sacrifício, de espontaneidades regionais de
desenvolvimento de cultura e de expressão de vida à exclusividade
dos estilos e dos valores europeus.
Dos problemas brasileiros de antropologia, das questões ame-
ricanas que pedem a orientação e o auxílio da antropologia aplica-
da para a sua solução ou tentativa de solução, seria erro grosso
separarmos o problema da reforma do ensino. Não a reforma
do ensino como a compreendem os pedagogos convencionais,
fechados na sua pedagogia de gabinete e, quando muito, de labo-
ratório. Mas de reforma de ensino que se deixasse esclarecer pelos
estudos de antropologia física, social e cultural das populações
brasileiras, das áreas americanas.
Os homens de responsabilidade intelectual e científica não de-
sejam que às guerras de hoje se sucedam novos Versalhes: um
arremedo de paz, em vez de uma paz verdadeira. Uma falsa paz,
estreitamente política, quando os desajustamentos sociais e de cul-
tura pediam um esforço profundo de reorganização da Europa, a
solução do problema das matérias-primas e das colônias, uma
reforma do ensino sob novo sentido de relações inter-humanas e
inter-regionais, o esboço de federações antes de cultura que de
raça e de democracias antes sociais que políticas que na Europa,
pelo menos, substituíssem as estratificações de classe, de raça e de
nação. Versalhes, porém, primou em ser uma paz de políticos
estreitíssimos. Nem ao menos os economistas da visão científica
de Keynes foram ouvidos. E quanto à antropologia – quem ima-
gina um Clemenceau ou um Lloyd George, cada qual mais orgu-
lhoso de sua sabedoria política, da sua experiência de demagogo,
do seu realismo de homem de estado, capaz de tomar lições de
antropólogos, de sociólogos, de folcloristas, de educadores?
Só o pequeno reino da Dinamarca, sentindo que dentro dele e
pela Europa inteira, continuava a haver alguma coisa de podre
depois de Versalhes, intensificou desde então a obra de reorgani-
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zação de sua vida, de sua economia, de sua cultura pelo esforço
conjunto de seus homens políticos com seus homens de ciência:
inclusive os antropólogos, os folcloristas, os educadores. Daí o
sistema novo de economia e, até certo ponto, de organização so-
cial, ao lado da reforma de ensino avançadíssima e sobre base
científica com que se vinha democratizando e socializando o povo
da Dinamarca quando as necessidades de guerra da Alemanha
nazista a atingiram brutalmente. Ora, a reforma de ensino da Di-
namarca é obra-prima de ciência social, de que se destacam as
escolas para os camponeses com um programa em que se junta ao
ensino da Agricultura e da criação de vacas e de aves o da história,
da Poesia, da Religião. O que mostra que a antropologia verdadei-
ramente científica não é inimiga nem da Poesia nem da história;
nem da Religião na educação da gente rural.
Na Universidade de Michigan reuniu-se há anos um grupo me-
nos de pedagogos convencionais que de intelectuais e cientistas sen-
síveis aos problemas de reorganização social e de cultura do nosso
tempo, entre os quais o problema de reforma de ensino é um dos
mais difíceis e complexos. Das discussões participaram um inglês,
professor de Cambridge, um economista australiano, um alemão,
um austríaco, e vários norte-americanos, entre os quais o professor
Kilpatrick, da Universidade de Columbia. É significativo o fato de
que nesse conclave de intelectuais e cientistas nada muçulmanos mas
dispostos a tudo fazer para evitar a repetição de erros como o de
Versalhes – uma paz de políticos em vez de uma reorganização
social e de cultura – a voz de um alemão, atingido pela Segunda
Grande Guerra em geral, e pelo Nazismo, em particular, tenha sido
a que mais se destacou em apontar para o exemplo dinamarquês
como digno da consideração da Europa inteira no esforço de reor-
ganização social e de cultura que se sucederá à Guerra atual.
O exemplo dinamarquês se impõe também ao Brasil e aos
demais países americanos, cujo sistema de ensino precisa de ser
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reformado não por pedagogos só de gabinete, mas sobre o co-
nhecimento vivo e tanto quanto possível exato da nossa situação
antropológica – física, social e de cultura – e com o máximo de
aproveitamento dos nossos valores tradicionais e populares. Inclu-
sive a poesia do povo, sua música, sua arte, seu folclore. Realizado
esse esforço, teremos dado ponto de apoio firme às pretensões
de nos desenvolvermos em cultura sob vários aspectos extra-
europeia; e não passivamente subeuropeia.
[Fonte: Problemas brasileiros de antropologia, 4. ed., pp. 133-140, Livraria José
Olympio Editora/MEC, 1973]
Unidade, pluralidade e educação: o caso do Brasil
A insistência do professor Anísio Teixeira, incessante no seu es-
forço de renovação do ensino no Brasil, para que fosse um velho
recifense, seu amigo de mocidade, quem organizasse e primeiro di-
rigisse, no Recife, um Centro Regional de Pesquisas Educacionais,
em ligação com o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, tal-
vez se explique pelo fato de vir o indivíduo designado para tarefa
um tanto fora de suas preocupações, animando um já antigo movi-
mento de opinião, segundo o qual as organizações nacionais no Bra-
sil serão tanto mais válidas e autênticas quanto maior for seu caráter
de organizações inter-regionais. Movimento que só agora vai atin-
gindo a plenitude de sua ação renovadora.
Trata-se de um regionalismo, como o chamou de início José
Lins do Rego – por ele influenciado profundamente na sua visão
e no seu modo de ser escritor – “orgânico”. Regionalismo novo
no Brasil e novo, talvez, em qualquer país, quando aqui surgiu e se
esboçou há trinta e poucos anos. Pois nada tem que ver nem com
caipirismos nem com separatismos nem com apologias exagera-
das de valores regionais à parte dos gerais; e sim com a melhor
articulação desses valores regionais uns com os outros de modo a
se constituírem em sistema que de regional possa chegar a
transnacional. Por conseguinte um regionalismo que não se opõe
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mas, ao contrário, concorre para aquela unidade não só nacional
como humana que se concilia com a diversidade das culturas.
Somos, no Brasil, um conjunto de regiões – um conjunto de
Brasis – que tendem a completar-se com suas diferenças de caráter
sociológico e de ordem cultural. Cabe ao educador, em colabora-
ção com o cientista social, atender, na educação do brasileiro, a essas
diferenças regionais de natureza e de cultura, aproveitando-as no
sentido de, através delas, definir-se melhor, quer a cultura nacional
no seu todo, quer a própria personalidade de cada brasileiro, em
particular. Digo a personalidade de cada brasileiro em particular,
porque a sua educação, interregionalmente orientada, pode adverti-
lo do fato de que, por temperamento, ele se ajustará, no país, a uma
região diferente daquela onde nasceu, melhor do que à sua própria
ou materna. Isto em casos excepcionais.
Normalmente a educação do brasileiro interregionalmente ori-
entada tende a desenvolver nele a consciência de pertencer a um
todo nacional que necessita de todas as suas regiões: das hoje eco-
nomicamente pobres tanto quanto das ricas; das hoje mais agres-
tes tanto quanto das urbanizadas. Semelhante educação concorrerá
para dar ao desenvolvimento brasileiro o caráter de um desenvol-
vimento quanto possível harmônico acima de rivalidades ou de
sentimentos de superioridade ou de inferioridade favorecidos por
um desorientado estadualismo estreitamente político-econômico.
Que não se trata de um critério ultrapassado de considerar-se a
realidade brasileira vista do ponto de vista cultural, em geral, e edu-
cacional, em particular, ficou evidente do chamado Documento
Klineberg: espécie de parecer sobre a situação do sistema educacio-
nal do Brasil por uma das maiores autoridades do nosso tempo em
assuntos de psicologia social, o Prof. Otto Klineberg, que parece ter
concorrido fortemente, senão para a criação, para a consolidação
em sistema, dos atuais Centros de Pesquisas Educacionais ao mes-
mo tempo que sociais, do Ministério da Educação e Cultura. Desse
parecer, que é recente, consta que “a educação brasileira deve adap-
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tar-se diretamente e de fato às necessidades e exigências do povo
brasileiro, nos vários níveis sociais, econômicos e educacionais e nas
várias regiões geográficas”. Mais: o material sobre o Brasil, reunido
por pesquisadores científicos do seu passado e do seu presente so-
ciais, deveria ser organizado de modo “a poder ser utilizado pelos
professores que poderiam assim obter sem dificuldade informa-
ções relativas à zona em que servem”. E ainda: desse procedimento
resultaria “melhor conhecimento” por parte dos professores “da
cultura do Brasil, em geral, assim como de suas regiões específicas”.
Note-se bem: de suas regiões específicas.
Em parte devido a essa orientação trazida ao Brasil por um
moderno cientista social, como é Mestre Klineberg, de renome
mundial e atualíssimo no seu saber – orientação que vinha harmo-
nizar-se com os pendores de eminentes brasileiros voltados com
critério sociológico para o estudo dos complexos problemas bra-
sileiros de educação: um deles o próprio Anísio Teixeira – é que
em 1955, foram instituídos o Centro Brasileiro e os Centros de
Pesquisas Regionais, estes “ligados ao Centro Nacional do Rio de
Janeiro, e, se possível, aos próprios departamentos de educação
das escolas de filosofia das universidades brasileiras”.
Em seus trabalhos, os Centros, segundo seu plano de organiza-
ção, devem proceder “a análise do processo de desenvolvimento
que vem afetando a sociedade brasileira como um todo, embora
com intensidade variável nas diferentes regiões do país”, encarada a
educação como um dos fatores que devem ser utilizados, até onde
for possível, no “processo de aceleração, correção ou equilíbrio do
desenvolvimento da sociedade brasileira”. Daí, em cada Centro, à
Divisão de Estudos e Pesquisas Educacionais juntar-se outra, de
Estudos e Pesquisas Sociais, esta tendo a seu cargo “a realização de
estudos e pesquisas que conduzam ao desenvolvimento da cultura e
da sociedade brasileiras e do seu desenvolvimento em conjunto e
em cada região do país, a fim de permitir a compreensão mais
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ampla e profunda que for possível dos fatos educacionais em suas
relações com a vida social”, aquela, especializando-se “no levanta-
mento do estado atual da educação brasileira em todos os seus níveis
e ramos, bem como em todas as regiões do país”.
Vê-se, assim, que são Centros, os de Pesquisas Educacionais
hoje em atividade no Brasil, regionais no sentido que os Regionalistas
do Recife há anos procuram destacar como necessário à melhor
articulação da vida ou da cultura brasileira; e também como essen-
cial ao desenvolvimento dos estudos ou das ciências sociais como
estudos ou ciências que, antes de se tornarem abstratas em suas
generalizações, considerem o que já os velhos Nominalistas, sob
certo aspecto, avós remotos dos Regionalistas de hoje, chamavam
“os particulares”. São ideias que constam do Manifesto Regionalista
de 1926; e no qual, aos regionalismos fechados se opunha já o
conceito de um regionalismo dinamicamente aberto, que, no Bra-
sil, ou noutro país semelhantemente vasto, se realizasse sob a for-
ma de articulações inter-regionais; e em qualquer país se apoiasse
de início em articulações intrarregionais.
Essas articulações intrarregionais, considero-as de importância
decisiva num Brasil, como o dos nossos dias, em que o desenvolvi-
mento urbano se vem processando, dentro de algumas regiões, à
parte do desenvolvimento, ou antes, do estacionamento rural. Se-
melhante disparidade impõe-se à atenção dos pesquisadores dos
Centros Regionais do tipo do que hoje se funda no Recife, em que
as pesquisas educacionais se baseiam em pesquisas sociais nas quais a
consideração do todo nacional não importe em diferença pelas situ-
ações regionais. Nem a preocupação de unidade – unidade essencial
– signifique o desprezo pela pluralidade: pluralidade existencial.
Se há no Brasil situações regionais como a do Rio Grande do
Sul e Santa Catarina, em que o desenvolvimento urbano-industrial
vem saudavelmente se processando em harmonia intrarregional
com o desenvolvimento agrário ou pastorial-rural, noutras regiões
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esses desenvolvimentos vêm se verificando em desarmonia, às vezes
violenta, com tais atividades. Daí o critério regional só me parecer
plenamente satisfatório do ponto de vista dos estudos sociais apli-
cados à educação ou à administração, quando compreendido como
critério a um tempo intrarregional e inter-regional.
Pensam alguns que o regionalismo brasileiro se deriva de ideias
do Prof. Lewis Mumford, cujo livro The Condition of Man não nos
esqueçamos que é de 1944. Engano. O que se verificou foi a influên-
cia sobre os regionalistas brasileiros, cuja presença na vida nacional
se faz sentir ainda hoje, tendo aqui madrugado em 1924, de suges-
tões não só de Frederico Mistral, como de William Morris e Patrick
Geddes este, sociólogo escocês desdobrado em urbanista, cuja marca
na formação de Mumford, por algum tempo professor na Univer-
sidade de Stanford, não esconde ter sido decisiva. Geddes lembra
Mumford que prezava a Região, não como fonte de vida local ape-
nas, mas de Vida, em geral: era o homem que, a seu ver, era enrique-
cido pelo regional. O homem, a humanidade, o mundo. É esse
enriquecimento que, para alguns de nós, só pode verificar-se quan-
do, dentro das regiões, há uma constante, dinâmica e criadora
interpenetração inter-regional de aparentes antagonismos: e entre as
regiões, dentro e fora dos conjuntos nacionais, uma igualmente cons-
tante, dinâmica e criadora interpenetração de aparentes antagonis-
mos que se completem inter-regionalmente. Nessas interpenetrações
há quem pense dever aproveitar-se a própria contribuição dos ele-
mentos de cultura primitiva sobreviventes entre populações rurais
ou entre moradores de sub-regiões rústicas. Já Geddes aplicava ao
homem moderno e ao seu drama o velho princípio chinês de que,
nesse drama, devia alternar o ativo com o passivo, o externo com o
interno; e por conseguinte, também, o primitivo com o civilizado.
Há regiões brasileiras das quais o educador pode extrair, com
a colaboração de cientista social, sobrevivências de culturas primi-
tivas capazes de, através da educação da criança e do próprio adulto,
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enriquecer a cultura brasileira daquela vitalidade ou espontaneida-
de como que virgem, daquela sabedoria toda ou quase toda oral,
daquela poesia irracionalmente folclórica, que as gentes primitivas
e rurais às vezes guardam como se fossem reservas para suprir de
matéria assim agreste não só os Villa-Lobos, os Josés Lins do
Rego, os Guimarães Rosa, os Lula Cardoso Ayres, os Cíceros Dias,
os Cândidos Portinari, os Ariano Suassuna, como toda criança,
todo menino, todo adolescente, que, num país como o Brasil, tiver
a felicidade de receber em sua sensibilidade ou em sua imaginação
a influência de bons educadores. Por bons educadores compreen-
dem-se aqui – interpretação sociológica – aqueles cuja atividade
não se limite a repetir, de pedagogos europeus e anglo-americanos,
europeísmos e ianquismos nem sempre adaptáveis em sua pureza
a não europeus e a não ianques.
Temos a fortuna de ser, os brasileiros, um povo plural em
suas culturas e etnias. Dessas culturas e etnias está demonstrado,
hoje, por estudos sociológicos e antropológicos, que vêm se com-
binando, se conciliando e se interpenetrando, sem deixarem suas
substâncias básicas de sobreviver em tradições e especializações
regionalmente diversas, que ainda vão do máximo de civilização
europeia ao máximo de primitividade agreste. Desenvolvendo um
sistema de educação que se oriente no sentido da unidade nacional
sem desprezo pela diversidade de situações regionais do homem
brasileiro, podemos tirar partido dessa diversidade, em vez de ser
por ela prejudicados. Podemos tirar partido dessa pluralidade de
tradições e de reservas culturais, construindo uma arte e até uma
ciência que, mais do que as de qualquer outra civilização moderna,
interpretem um homem que vem atingindo civilidade igual à
europeia sem repudiar sistematicamente a primitividade que o liga
aos trópicos ainda agrestes; que lhe dá a capacidade de compreen-
der e de se fazer compreender por indo-americanos, asiáticos e
africanos do mesmo modo que por europeus e anglo-americanos.
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Que outro povo está em melhor situação que o brasileiro para se
fazer compreender por esses extremos, dos quais sua formação
participa de modo tão raro?
Parece que nenhum. Daí a responsabilidade especialíssima que
parece tocar ao brasileiro de hoje de mediador verdadeiramente
plástico entre contrários que se chocam: civilizações europeias com
culturas não europeias. No desempenho dessa missão teremos que
ser orientados pela arte dos políticos; mas também pela ciência
dos educadores completada pela dos antropólogos, dos soció-
logos, dos economistas, dos historiadores.
Não foi ao escritor que me prezo principalmente de ser, mas
ao antropólogo-sociólogo que também sou por formação siste-
maticamente universitária, que o Prof. Anísio Teixeira investiu da
responsabilidade de organizar no Recife um Centro Regional de
Pesquisas ao mesmo tempo educacionais e sociais: centro cuja ação
se estende ao Nordeste inteiro. Aceitei tal responsabilidade como
um encargo; e para cumprir um duro dever.
Não se estranhe que indivíduo conhecido pelo seu feitio nada
pedagógico e quase nada acadêmico, e pelo seu modo pouco dou-
toral e pouco professoral de ser homem de estudo – tanto que, a
despeito de seus graus universitários, passa em certos meios brasilei-
ros, por “não ser formado” – tenha concordado em assumir a
direção de um Centro que, sendo de pesquisas sociais, é também de
estudos chamados educacionais. No caso, os dois tipos de estudos
se completam; e se completam à base de um critério há muito da
predileção de seu organizador: o critério regional ou ecológico de
pesquisas ou de estudo mais de campo que de gabinete.
O que eu próprio estranho é ter cedido a solicitações insisten-
tes que, embora honrosas, me vêm agora afastar todas as tardes
das minhas tarefas e preocupações essenciais de escritor. Sinto que,
em qualquer interrupção mais séria, com que concorde, a essa mi-
nha condição básica de vida e de trabalho, há qualquer coisa de
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desleal a uma vocação ou a um destino por mim sempre desejado
acima de qualquer outro; e afinal alcançado; e que me vem permi-
tindo ser independente como ninguém o é mais em nosso país,
dentro das letras ou das ciências.
Daí os vários cargos, alguns honrosíssimos, que venho há anos
recusando, uns no Rio de Janeiro e no Recife e oferecidos por
mais de um presidente da República ou por mais de um ministro
de Estado; outros no estrangeiro: em Paris, em Washington, na
capital do México, em Harvard, em Yale, e, agora mesmo, uma
das cátedras de ciências sociais na Universidade de Berlim.
Mas há solicitações que, mesmo importando em sacrifício para
o indivíduo, têm que ser atendidas por ele pelo que há nelas de
responsabilidade social para com sua época e sua gente. Especial-
mente quando essa gente é a brasileira do Nordeste, há anos sofre-
dora e desvalida, como nenhuma outra do Brasil; mártir de um
conjunto de circunstâncias que lhe vem sendo particularmente des-
favoráveis. Foi este o ponto em que me senti mais tocado pela insis-
tência de Anísio Teixeira e de Péricles Madureira de Pinho – com o
apoio, que muito me desvanece, do Sr. ministro da Educação e
Cultura – para que concordasse em orientar e dirigir, durante algum
tempo, o Centro Regional de Pesquisas que há pouco se inaugurou
no Recife; e colaborar assim com eles num esforço realmente alici-
ante pelo superior sentido brasileiro, cultural e humano, que o anima.
A obra de Anísio Teixeira – um generoso mestre no mais alto
sentido da expressão – obriga uma geração inteira a cooperar com
o mais vibrante de seus líderes. Um líder com alguma coisa de
sereia no modo de atrair entusiasmos.
Já uma vez, sendo ainda moço, interrompi no Recife minha ativi-
dade de escritor, então, como hoje, desejoso de ser só e intensamente
escritor, para cooperar com Anísio Teixeira, no Rio de Janeiro, numa
de suas iniciativas mais arrojadas: aquela que visava dotar o Brasil de
um verdadeiro sistema universitário. Concordei então em fundar, nes-
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sa nova universidade organizada por Anísio Teixeira com uma ampli-
tude de visão nunca igualada noutras iniciativas brasileiras do mesmo
gênero, as cátedras de sociologia, de antropologia social e cultural e de
pesquisa social; as duas últimas sugeridas por mim, como antigo discí-
pulo de Franz Boas; e creio que as primeiras cátedras de antropologia
social e cultural e de pesquisa social que jamais funcionaram em Uni-
versidade da América do Sul. Só depois dessas cátedras pioneiras
terem desvirginado matérias então exóticas para o Brasil é que o an-
tropólogo inglês Radcliffe Brown professou em S. Paulo a antropo-
logia social à maneira franco-britânica, em curso aliás memorável.
Atendi em 1935 àquele apelo de Anísio e não me arrependo
hoje de o ter feito: sua universidade não morreu virgem.
Outra vez foi a voz da mocidade universitária de minha terra que
me obrigou a deixar o retiro de Apipucos para ser Constituinte na-
cional em 1946 e depois, por quatro anos, deputado por Pernambuco
e vice-presidente e por algum tempo presidente da Comissão de
Educação e Cultura da Câmara Federal. Outra interrupção de que
não me arrependo de todo, na minha vida de escritor.
Agora foi de novo a voz sempre moça de Anísio Teixeira que
me chegou aos ouvidos e à consciência. Voz ao mesmo tempo de
solicitação e comando. Obedecendo-a, obedeci ao brasileiro de
minha geração cuja palavra tornou-se para todos nós, seus com-
patriotas, a própria voz do Brasil necessitado de uma educação
que o torne capaz de ser, num mundo novo em começo, o mais
civilizado dos povos tropicais, sem que “civilização” signifique o
esforço de apenas copiar o brasileiro modelos europeus ou anglo-
americanos. Para desenvolver novo tipo de civilização ao sol do
trópico é preciso que o brasileiro intensifique o esforço de anali-
sar-se, de conhecer-se, de interpretar-se: tarefa sobretudo do cien-
tista social, embora também do pensador e do artista.
Em recente trabalho, em que se reafirma seu exato conheci-
mento da situação brasileira do ponto de vista do educador esclare-
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cido pela informação sociológica, salienta Mestre Anísio Teixeira a
importância, na verdade imensa, do alargamento do saber racional
em empírico, através da confirmação do conhecimento do empírico
pela experiência. E eu próprio, em notas também há pouco reuni-
das para servirem de introdução a um curso, na Universidade do
Recife, todo ele experimental, no sentido de pioneiro, de sociologia
da arte aplicada a situações luso-tropicais, sugeri a importância do
desenvolvimento do desenho, com italianos como Miguel Ângelo e
com alemães como Dürer, para a valorização das artes manuais até
o ponto de serem essas artes, sob a forma de obras de desenho e de
pintura, situadas no plano das chamadas artes liberais. É um méto-
do, o de desenhar o observador o que vê, que pode ser considerado
simbólico de toda uma atitude ou ânimo ou empenho de alarga-
mento do saber, de racional em empírico, sabido como é que che-
gou, com os Impressionistas, em Pintura, a concepções novas da
própria duração do tempo como luz capaz de esclarecer em figuras
e paisagens, característicos ignorados ou apenas pressentidos pelo
observador distante. Concepções em certos pontos coincidentes com
as concepções, também novas, e também baseadas em experiências
vividas ou observadas, de Bergson, em filosofia, de Proust, em lite-
ratura, de Boas e dos ingleses, em antropologia, de Freud, Jung e
Terman, em psicologia, de Thomas, em sociologia. Ora, da pesqui-
sa científica em torno do homem social, não há exagero em dizer-se
que se assemelha ao desenho no seu modo de ligar o racional ao
empírico através de uma sistemática de observação que se serve de
símbolos e diagramas, para surpreender o homem social vivo, em
flagrante, em movimento: hoje até em inflexões de voz ou em ca-
dências de andar – o andar do empregado, o do desempregado, o
do vagabundo: todos susceptíveis de interpretações simbólicas –
que correspondem a situações psicossociais diversas; e que são
registradas por técnicas agilmente modernas, a serviço do obser-
vador antropológico ou do pesquisador sociológico.
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ANTONIO GRAMSCI
Aquele “encontro do conhecimento racional com o mundo das
oficinas”, a que se refere o Prof. Anísio Teixeira, se prolonga, nos
modernos estudos sociais e nas modernas pesquisas educacionais,
em insistente convívio do homem de estudo com a realidade viva
que não sai das oficinas, das fábricas, dos bairros operários, das
populações agrárias e pastoris, para tornar-se verdade abstrata nos
gabinetes dos sábios racionais. É preciso que o homem de estudo,
especializado nessas indagações e nessas pesquisas, vá surpreender
tal realidade, buscá-la e observá-la nas suas vivências mais cruas. O
antropólogo ou o sociólogo de hoje, sabe, tanto quanto o pintor
impressionista do fim do século passado, que a realidade varia com
a luz, com o tempo, com a circunstância, daí resultando a necessida-
de de ser o homem, a vida ou a paisagem social surpreendida não
num lugar só, mas em vários; não de um só ponto de vista, mas de
diversos; não como se fosse uma realidade parada e definitiva, mas
como a realidade viva e sempre em transição que em grande parte é.
Há quem não compreenda por que nos modernos estudos sociais
se faz tanta pesquisa chamada de campo ou se gasta tanto esforço e
até tanto dinheiro – supõem os críticos – com as chamadas pesqui-
sas de campo. A verdade é que tais pesquisas são essenciais. Uma só,
raramente basta para esclarecer um assunto. Ê preciso que a confir-
mem outras, realizadas sob pontos de vista diferentes; ou em lugares
diferentes da primeira; em tempos diferentes.
Com a inauguração, há pouco, no Recife, do Centro Regional
de Pesquisas Educacionais do Ministério da Educação e Cultura,
viveu a velha cidade um dia verdadeiramente grande. Pois talvez
tenha assinalado esse dia uma espécie de recuperação da respon-
sabilidade, que cabe ao Recife, de metrópole intelectual de uma
região inteira: o Nordeste. Do ponto de vista intelectual, o Recife
pertence tanto aos paraibanos, aos alagoanos, aos rio-grandenses do
norte, aos cearenses, aos piauienses, aos maranhenses como aos
pernambucanos. Não é a capital de um estado mas de uma região.
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É uma cidade a serviço de toda uma região: serviço intelec-
tual, serviço cultural e serviço científico. É também uma cidade
aberta aos talentos e às vocações do Brasil inteiro, mas especial-
mente aos do Nordeste: nunca restrita a um simples e só estado
da região. Ao Recife ou a Pernambuco, por mais turvo que seja
o seu presente, nem o seu passado nem o seu futuro permitem
uma orientação mesquinhamente estadualista no seu modo de
ser capital do Nordeste – da cultura do Nordeste; ou província
líder dessa cultura regional. Ao seu espírito superiormente brasi-
leiro sempre têm repugnado mesquinharias de qualquer espécie.
Pernambuco tem tido como governadores homens do Piauí e
do Rio Grande do Sul a quem o Recife e Pernambuco deram o
melhor de sua cidadania, enriquecendo-se, por sua vez, com esses
novos e esplêndidos cidadãos. As escolas superiores, os institutos,
os hospitais, os teatros, as igrejas, os colégios, os laboratórios, os
próprios postos de administração e de governo, de Recife e de
Pernambuco, têm sido dirigidos por tantos brasileiros do Nor-
deste e de outras regiões do Brasil, que não existe para o recifense
ou para q pernambucano, diferença, senão superficial, entre esses
brasileiros e os nascidos dentro dos muros do Recife ou das
fronteiras de Pernambuco.
Esse espírito do recifense parece explicar-nos por que o Recife
continua a ser de fato – embora fato hoje nem sempre reconhecido
ou proclamado – metrópole intelectual do Nordeste: região pela
qual tem sabido esta cidade até sacrificar-se. Parece também expli-
car a posição da sua universidade no conjunto das universidades
mais altamente responsáveis pelos destinos da cultura brasileira. E
explica com certeza a necessidade, sentida por tantos intelectuais vin-
dos dos recantos mais distantes da região nordestina, de nascerem
de novo no Recife; e acrescentarem a condição de recifense às suas
outras condições mais ou menos telúricas de paraibanos como José
Lins do Rego, de sergipanos como Gilberto Amado, de alagoanos
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como Pontes de Miranda, de piauienses, como Otávio de Freitas, de
maranhenses, como Graça Aranha, de cearenses, como Clóvis
Bevilaqua, de rio-grandenses do norte, como Augusto Severo, de
paraenses como Inglês de Souza. A nenhum deles o Recife subtraiu
valor algum, à maneira de imposto que tivessem de pagar pela cida-
dania recifense na qual também se integraram magnificamente Tobias
Barreto e Franklin Távora, Sílvio Romero e Augusto dos Anjos.
Eles é que quase sempre se sentiram obrigados a proclamar-se
recifenses pela formação de sua inteligência e pelo refinamento da
sua sensibilidade em ambiente enobrecido, como talvez nenhum outro
do Brasil – excetuado talvez a capital da Bahia e outrora da América
Portuguesa – por seu passado, ainda hoje vivo, de responsabilidade
intelectual em que ao gosto pela literatura, pela arte, pela própria
eloquência, se tem associado sempre o da análise científica e objetiva
de grandes problemas nacionais e humanos. Donde a constância, no
Recife, de uma tradição de pesquisa, de análise, de objetividade que
parece explicar a eloquência de Joaquim Nabuco em oposição, não
direi à de Rui, mas à de Mont’Alverne; o Positivismo crítico de Martins
Júnior em contraste com o dos ortodoxos do Rio Grande do Sul; o
afã quase germânico pela pesquisa histórica revelado por José Higino
e continuada por Alfredo de Carvalho, Artur Orlando e, sobretudo,
por Oliveira Lima; a orientação científica de João Vieira em seus
estudos jurídicos e a de Andrade Bezerra nos seus trabalhos de pio-
neiro, no Brasil, do direito social; o senso de organização industrial
revelado pelo engenheiro Menezes e, de forma ainda mais arrojada,
por Delmiro Gouveia; o método quase científico seguido na admi-
nistração de obras públicas pelos dois Mamedes; o ânimo socioló-
gico associado por Ulysses Pernambucano às suas atividades de psi-
quiatra e de educador; a tendência, vinda de velhos dias, para o
recifense recorrer ao saber mais objetivamente inglês ou francês,
alemão ou anglo-americano, em assuntos técnicos ou do ensino; e
procurar adaptar as lições aprendidas com mestres estrangeiros –
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Vauthier, Dombre, Loudon Lombard, Spieler, Branner, Agache –
às necessidades e circunstâncias regionais. Tendência porventura vin-
da dos próprios dias recifenses de Maurício de Nassau; e restabelecida
por Francisco do Rego Barros; reavivada por Lucena; retomada
por Barbosa Lima; e continuada por Estácio Coimbra, de quem foi
também a corajosa iniciativa de Reforma Carneiro Leão: tão com-
batida antes de 30; tão copiada ou arremedada depois de 30.
Não falta ao recifense de hoje a consciência dos deveres da
sua cidade, como orientadora e, em certo sentido, provedora de
uma região inteira. O que se vinha verificando, porém, é que entre
esses deveres e os recursos de cidade se estava acentuando uma
disparidade dramática.
Daí ter o Recife chegado a fazer as vezes de mãe para milhares
de brasileiros pobres e doentes de cinco ou seis estados, que para ela
afluíam em busca de socorro médico, de ensino secundário e supe-
rior, de emprego, de assistência, de amparo, tudo isto lhes sendo
dado pelo esforço heroico de uma gente, como a recifense, com
alguma coisa de mártir em sua vocação materna; cidade-mãe de
muitos desvalidos, abandonados à heroica e generosa proteção
recifense, por um Governo Federal que tanto custou a compene-
trar-se da responsabilidade de pai para com as populações sofredo-
ras do Nordeste. Se há cidade brasileira que com seus próprios
recursos e os de Pernambuco tenha feito durante anos o quase mila-
gre de desempenhar funções semelhantes às do Governo Federal, é
esta. Sua contribuição para a unidade nacional tem sido, por isto
mesmo, imensa. Ela pode ter sido o seu tanto separatista em 1824.
Mas só por exceção. Sua constante vem sendo outra. Sua constante
vem sendo no sentido de unir ao Brasil um Nordeste às vezes crua-
mente desprezado pelo Rio de Janeiro e até perseguido por interes-
ses industriais, a seu modo imperiais – porque há dentro do Brasil
um imperialismo às vezes mais pernicioso nas suas projeções sobre
o Nordeste que o chamado “imperialismo colonizador” de origem
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exótica – concentrados em S. Paulo embora seus animadores nem
sempre sejam paulistas ou sequer sulistas.
“Os problemas nordestinos, são problemas, realidades, posi-
ções brasileiras”, destacou certa vez o senador Lourival Fontes que
também se referiu em páginas incisivamente críticas, a um Brasil
“dividido entre metrópoles e colônias, tributários e potestades”.
Os problemas sociais do Nordeste ligados aos de educação
devem ser considerados problemas ao mesmo tempo regionais e
nacionais. São atividades que se completam, as dos vários centros
de pesquisas, educacionais e sociais, dentro daquela visão de Anísio
Teixeira, das “artes fundadas em várias ciências”, isto é, educa-
dores e cientistas sociais tendo por método geral de ação o mesmo
método: o científico completado pelo humanístico. Tais centros
procuram pôr a serviço dos homens de governo, dos legisladores,
dos líderes da indústria e da lavoura, a inteligência, o saber especia-
lizado, o esforço, a técnica de homens de estudo, numa época em
que está mais do que demonstrado o valor tanto da arte dos edu-
cadores quanto da ciência dos antropólogos, dos sociólogos, dos
economistas, dos psicólogos, para o governo dos povos e para a
administração dos estados.
[Fonte: livro Brasis, Brasil e Brasília, pp. 125-139, Gráfica Record Editora, Rio
de Janeiro, 1968]
Anísio Teixeira, renovador da educação e reformador social
Conheci Anísio Teixeira em ano remoto, ele e eu uma espécie
especialíssima de “oficiais de gabinete” de governadores: dos dois
últimos fidalgos autenticamente brasileiros que foram, no Brasil,
governadores de estado. Esses brasileiros se chamavam Francisco
Góes Calmon, na Bahia, e Estácio de Albuquerque Coimbra, em
Pernambuco. Dois homens públicos que se completavam; que sin-
ceramente se estimavam; que se orientavam pelo mesmo sentido
de administração e seguiam o mesmo estilo da política.
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Góes Calmon descobriu Anísio Teixeira na Bahia e pretendeu
fazer dele seu discípulo em política e encaminhá-lo na vida públi-
ca. O mesmo desejo animou Estácio Coimbra com relação ao
pobre de mim: pretendeu ser – e o foi até certo ponto – meu
mestre de arte política; e quis atrair-me às vantagens e às responsa-
bilidades da vida pública, tal como era então praticada no nosso
país. Quis – e, neste particular, fracassou – iniciar-me nas convenções
que caracterizavam então aquela vida pública: a dos últimos anos
da República de 89.
Não me parece que Anísio Teixeira tenha se deixado iniciar, a
não ser superficialmente, naquelas convenções; nem seduzir por
aquelas vantagens. Daí, em grande parte, as afinidades que desde o
nosso primeiro encontro, uma tarde, na própria casa, brasileira
acolhedora, de Góes Calmon, em Salvador, nos aproximaram,
criando entre nós uma amizade que nunca se interrompeu até hoje.
Que jovem brasileiro, recém-formado nisto ou naquilo, des-
prezaria então as vantagens que nos foram tão liberalmente ofere-
cidas, a mim e a Anísio, permitindo-nos em plena mocidade este
desejado triunfo: a deputação federal? Pois Anísio não se deixou
fascinar por tal facilidade. Creio termos desapontado, ele, e eu,
nossos patronos com a nossa indiferença pela espécie de triunfo
por eles considerada suprema. O que não significa que nos faltasse
espírito público. Nem que fôssemos dois ascetas cheios de des-
prezo pelo mundo, embora marcados os dois por crises religiosas
de adolescência que nos deixaram um tanto diferentes dos outros
brasileiros da nossa idade: menos sôfregos que a maioria deles
pelo triunfo político ou pelo sucesso econômico.
Góes Calmon encontrou num Anísio ainda de vinte e poucos
anos um orientador de um novo feitio do seu governo. Seguiu-o
com relação a vários problemas de ordem cultural. Estácio, para
assombro dos políticos idosos e dos bacharéis convencionais que
o cercavam, ouviu-me mais de uma vez sobre assuntos de admi-
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nistração como se quisesse prestigiar em mim uma mocidade, uma
independência e uma cultura para além da jurídica, por outros
homens brasileiros de governo deliberadamente desprezadas.
Ouviu-me e seguiu-me.
Tivemos, assim, Anísio e eu, aos vinte e poucos anos, um
começo de atuação na vida pública do nosso país, de todo des-
proporcionado à aparente modéstia dos nossos cargos. Isto por
termos sido adotados por dois eminentes mestres de arte polí-
tica da época, à revelia dos seus partidos, como os aprendizes da
sua predileção; aqueles que cada um deles escolheu para ser seu
elemento de ligação com o futuro.
Na mocidade inquieta de Anísio Teixeira a argúcia política de
Góes Calmon claramente enxergou esta virtude: a de representar
para o seu governo o contato com um futuro para o qual ele sabia
que o Brasil de então devia acelerar o seu ritmo de marcha. Não se
enganava: Anísio Teixeira era, com efeito, um antecipado aos ho-
mens de sua própria geração no modo de procurar resolver os
problemas brasileiros por uma renovação de métodos mais
apolíticos que políticos de ação que importasse para o Brasil em
verdadeira modernização social. Modernização, principalmente, da
sua cultura, num sentido mais amplo e mais profundo que o entre-
visto pelos “modernistas” do Rio e de São Paulo.
Não pertencíamos, então, nem ele nem eu, nem ao movimen-
to denominado “modernista” nem ao número dos chamados “re-
volucionários”, que, desde a nossa meninice vinham se rebelando,
em levantes mais militares que civis, contra os presidentes da Re-
pública: Hermes, Epitácio, Bernardes. Mas éramos, talvez mais do
que esses bravos, embora desorientados agitadores, revolucionári-
os pelos propósitos de profunda reforma social do Brasil que nos
animavam e pelo desencanto, que nos entristecia, com relação aos
métodos ou às convenções nacionais de governo e de política.
Nesses métodos se manifestava, aos nossos olhos nas vésperas de
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1933, a incapacidade dos líderes então mais influentes da Repúbli-
ca de 89 para resolver os problemas nacionais mais complexos.
Pois nem todos esses líderes eram homens do senso ou da sensibi-
lidade política de um Góes Calmon ou de um Estácio Coimbra,
de um Antônio Carlos ou de um Otávio Mangabeira.
Anísio Teixeira entrou numa fase nova da vida brasileira sem
compromissos de ordem partidária ou sequer de caráter político
com o regime destruído em 1930. Mas distante, por outro lado,
dos novos líderes. Sem cortejá-los. À proporção, entretanto, que
se foram definindo, em alguns dos triunfadores responsáveis pelo
novo regime, ideias de reforma nacional através de novas técni-
cas de ensino, foi se esclarecendo, entre eles, a necessidade de
solicitarem de apolíticos notáveis pela competência e pelo espíri-
to público a orientação, para aquela reforma, que não lhes podia
vir de simples mas ingênuos idealistas, ligados à vitória de 30.
Compreende-se, assim, que poucos anos depois de 30, Anísio
Teixeira tenha surgido diante do “novo Brasil”, investido de uma
responsabilidade – na verdade, de uma missão – que exigia o
máximo do seu espírito público, exigindo também o máximo
do seu saber já magnificamente especializado em assuntos de
educação: a responsabilidade de diretor-geral do ensino no Dis-
trito Federal, com o poder de dar toda uma organização nova
ao sistema de educação da capital da República. Uma organiza-
ção nova que devia oferecer exemplos de reforma pedagógica e
de renovação de administração escolar ao país inteiro. Foi quan-
do se empenhou na criação de uma universidade, arrojadamente
experimental, embora não lhe faltasse recorte clássico; e que per-
manece, a meu ver, o exemplo mais alto e mais puro de organi-
zação universitária que já se realizou em nosso país. A mais com-
preensiva, honesta e plenamente universitária. A que procurou
conciliar mais inteligentemente os valores clássicos, essenciais a
uma universidade, com os flexivelmente modernos e os audacio-
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samente experimentais que a adaptassem à situação brasileira,
preparando-a para uma ampla renovação social.
Fui dos brasileiros apolíticos procurados por Anísio até nas
províncias para colaborarem nesse empreendimento difícil e com-
plexo, tão acusado, anos depois, de ter sido puro pretexto a pro-
paganda de caráter sectariamente ideológico entre a gente moça e
desprevenida da capital brasileira, na qual estaria empenhado o
próprio Anísio Teixeira. Meu depoimento só pode ser em sentido
contrário. Foi-me confiada a chefia de todo um importante de-
partamento da faculdade chamada de economia e direito – o de
antropologia, sociologia e psicologia social – sem que nunca me
tivesse sido feita a mais remota sugestão no sentido de ser dado
aos programas dessas cátedras outro colorido que não fosse o
humanístico, o científico, o universitário. Foi de minha iniciativa a
ligação das ideias gerais desses programas a situações concreta-
mente brasileiras. Mas com o objetivo – que de início comuniquei
a Anísio Teixeira que seria o meu principal objetivo como orientador
daquelas três cátedras, encontrando nele plena simpatia com esse
meu propósito – de procurarmos, os pesquisadores e estudantes,
no Brasil, de assuntos antropológicos e psicossociais, nos inteirar,
através do estudo quanto possível objetivo e da pesquisa quando
possível de campo, de peculiaridades brasileiras de formação so-
cial e de situação psicossocial, antes de nos precipitarmos na apli-
cação, a tais situações aparentemente messiânicas importadas do
estrangeiro. Versou sobre esse tema minha conferência inicial, so-
bre antropologia, na nova universidade; e precisamente nessa épo-
ca, convidado pelos estudantes da Faculdade de Direito de São
Paulo a proferir, no seu tradicional Onze de Agosto, uma confe-
rência, o assunto que escolhi para tal preleção foi “Menos doutrina
e mais análise”. Contra o que eu principalmente procurava adver-
tir os estudantes de São Paulo, tanto quanto os do Rio, era contra
os “ismos” importados do estrangeiro por uns tantos ideólogos –
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alguns eloquentes – que, sem estudos nem ecológicos nem histó-
ricos da situação brasileira, pretendiam orientar a mocidade brasi-
leira de então no sentido de soluções por eles apresentadas como
definitivas e “científicas”.
A essa espécie de cienticismo, do mesmo modo que ao antigo
academicismo de todo livresco ligado ao nome a sociologia, aquelas
cátedras opuseram um espírito de análise e um gosto pela pesquisa
de campo que creio poder dizer-se hoje terem dado novo sabor,
nova profundidade e novo sentido aos estudos antropológicos e
sociais no nosso país. A começar pelo fato de haver a nova univer-
sidade, por sugestão minha aceita imediatamente por Anísio Teixeira,
dado de início aos estudos de sociologia e de psicologia social –
então muito procurados – base antropológica. Foi considerada es-
sencial aos mesmos estudos a iniciação do estudante tanto em antro-
pologia social e cultura como em antropologia física e em
seroantropologia. Com essa orientação, a Universidade do Distrito
Federal iniciou no Brasil e talvez na América do Sul tanto o ensino
de antropologia social e cultura como de Seroantropologia – inicia-
tivas que marcam o seu pioneirismo e caracterizam o alto espírito
científico com que a dirigiu, nos dias heroicos da instituição, o pro-
fessor Anísio Teixeira. Posteriormente, outra cátedra pioneira foi
estabelecida na Universidade do Distrito Federal: a de pesquisa soci-
al. Vê-se, assim, que foi uma universidade – graças a Anísio Teixeira
– intimamente ligada ao desenvolvimento dos estudos sociais no
Brasil; à sua modernização; e também ao seu desenvolvimento sob
o aspecto de estudos ligados à vida brasileira e às condições de
existência e de convivência peculiares ao brasileiro, embora para tanto
nunca se chegasse a qualquer deformação da sociologia quanto pos-
sível científica em sociologia carnavalesca “nacionalista”.
Tanto quanto a Universidade de São Paulo, a do Distrito Fe-
deral, nos dias de Anísio Teixeira, – que foram também os da
minha associação mais íntima com a nova instituição – deu ao
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Brasil o bom exemplo de importar para várias das suas cátedras
mestres estrangeiros conhecidos pelo seu saber ou respeitados pela
sua competência; e vindos de alguns dos melhores centros univer-
sitários da Europa. Quase todos da França.
O que esses mestres franceses trouxeram da Europa para a re-
novação da cultura brasileira, através daquela universidade fecunda-
mente experimental, importa noutro corajoso serviço prestado por
Anísio Teixeira ao nosso país. Pois sem tradição universitária, não era
possível que se improvisasse entre nós universidade valendo-se os
organizadores do sistema universitário brasileiro apenas de bons
professores dos chamados de humanidades, vindos do ensino se-
cundário para o universitário; ou de simples especialistas nisto ou
naquilo, recrutados de escolas superiores apenas profissionais para
cátedras que devessem ser verdadeiramente universitárias.
Anísio Teixeira, seguindo, aliás, neste particular, os paulistas, não
só importou mestres estrangeiros cuja formação ou experiência uni-
versitária se comunicasse vantajosamente ao Brasil, como incorpo-
rou à nova universidade de amplitude nacional quanto brasileiro idô-
neo tivesse essa formação ou experiência, adquirida no estrangeiro.
Daí o relevo que teve, na organização da Universidade do Distrito
Federal, o professor Delgado de Carvalho. Com o seu saber espe-
cializado e com a sua formação europeia, o professor Delgado de
Carvalho foi um dos principais colaboradores de Anísio Teixeira no
esforço pioneiro de estabelecer-se na capital do Brasil, não um arre-
medo cenográfico mas um bom e honesto começo de universidade.
A capacidade, o gosto, a alegria, até, de cercar-se de colabora-
dores de primeira ordem tem sido um dos mais fortes caracterís-
ticos de Anísio Teixeira em todas as atividades de organizador da
cultura em que se tem empenhado lúcida e fervorosamente no
Brasil. Nunca lhe faltou tal capacidade como nunca lhe faltou a
capacidade de admiração: é um entusiasta tanto do saber já
tranquilamente fecundo dos mestres como do talento ainda em
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ascensão dos jovens. Inclusive do talento extremamente jovem que
deva ser prestigiado nos seus começos de expressão.
Ainda agora, o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos e o
sistema de centros regionais de pesquisas educacionais, por ele orga-
nizados, se unem algumas das mais altas competências brasileiras em
assuntos de educação e de cultura: mestres de renome internacional
como Fernando de Azevedo e Abgar Renault, por exemplo; inteli-
gências de pesquisadores ainda jovens, por ele prestigiadas ao máxi-
mo, como, dentre outros, o etnólogo Darcy Ribeiro, para quem –
como para o próprio Anísio Teixeira – entre os problemas pré-
nacionais de etnologia e os plenamente nacionais e vivamente atuais
de educação e de cultura, há correlações íntimas.
Aliás, na sensibilidade a essas e a outras correlações, das quais
raro se apercebem os pedagogos convencionais, está outro dos for-
tes característicos daquele poder genial de compreensão de proble-
mas complexos e de utilização de competências diversas sem esfor-
ços inteligentemente unificados – barroquismo essa unificação até
de contrários, do melhor, diga-se de passagem – que distinguem
Anísio Teixeira. É ele uma das mais completas personalidades de
renovador da educação correlacionada com a cultura em geral –
cultura no largo sentido sociológico – que a América já conheceu. O
desenvolvimento da cultura brasileira está, há um quarto de século –
mais do que isto: há trinta anos – de tal modo impregnado do que
em Anísio Teixeira é espírito amplamente compreensivo, tanto dos
vários problemas de cultura como das diferentes personalidades
representativas de cultura com que tem sabido lidar, que erra, ao
meu ver, quem pretender classificá-lo como puro educador ou sim-
ples pedagogo. Não que não seja imensa a missão do educador;
nem complexa a responsabilidade do pedagogo. É.
Mesmo assim, vem sendo ultrapassada por um Anísio Teixeira
para quem os problemas do homem, das sociedades, da cultura
existem como profundos complexos universais ao mesmo tempo
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que regionais, dentro dos quais – e não à parte deles – devem ser
consideradas e, quanto possível, resolvidas as questões de ensino.
Essa a sua orientação de grande renovador da cultura brasileira,
incessante em seu esforço de condutor de orquestras de especialis-
tas harmonizados para difíceis tarefas de colaboração de artistas
com cientistas e de cientistas com pensadores e que vem executan-
do sinfonias mais profundamente brasileiras que a do próprio O
Guarani. Orquestra em que tocou o grande Villa-Lobos, não como
músico, mas como renovador do ensaio da música e do canto nas
escolas brasileiras.
[Sob o título “Anísio Teixeira: um depoimento”, este ensaio foi publicado na
obra coletiva Anísio Teixeira: pensamento e ação, por um grupo de professores e
educadores brasileiros. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1960, p. 118-125].
Em torno da situação do professor no Brasil
(Este ensaio foi originalmente publicado em inglês, no anuário Year Book of
Education, em 1953. No Brasil, o texto foi publicado pela Secretaria de Educação
do Estado de Pernambuco, e pela Universidade de Brasília, inserido em Palavras
repatriadas. Nessa versão há notas e um prefácio do autor, excluídos nesta pre-
sente reedição. A tradução é de Laurênio Lima)
Aos jovens brasileiros que têm ido aos Estados Unidos como
estudantes, uma das surpresas oferecidas pela vida anglo-americana
tem sido o fato de homens de negócios serem os mais importantes
líderes de certas comunidades tipicamente anglo-americanas, com
os catedráticos de universidade e professores de liceus ou ginásios –
hoje chamados no Brasil colégios – como elementos secundários,
ou mesmo socialmente insignificantes, das mesmas comunidades. A
surpresa origina-se do fato de que, na escala ou hierarquia tradicio-
nalmente brasileira de valores sociais, os professores de universida-
de ou de colégio, ou ainda os chamados mestres de latim, terem
sido quase sempre considerados, numa comunidade típica, do Bra-
sil Império e mesmo do da República de 89, valores mais altos do
que os grandes, prósperos ou dinâmicos homens de negócios; co-
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merciantes ou industriais. É certamente este, ainda hoje, o quadro
tradicional de valores sociais brasileiros, embora, nos últimos decê-
nios, o prestígio intelectual ou acadêmico venha sofrendo depressão
considerável e o dos homens pura ou principalmente de negócios
industriais, comerciantes, banqueiros etc. esteja crescendo um tanto
à maneira anglo-americana ou anglo-saxônia.
Por que aquela situação, durante longo tempo no Brasil e a
os primeiros decênios deste século tão definida ou nítida que se
tinha a impressão de ser a vasta comunidade de língua portuguesa
da América uma espécie de Índia Oriental americana, com uma
casta de brâmanes, reverentemente cortejados sob a forma de
padres-mestres, doutores e professores que fossem os valores so-
ciais mais altos de qualquer comunidade típica do país com exce-
ção das mais rigidamente agrárias? Por que tal situação e o despre-
zo ou desdém do brasileiro médio de então pelos negócios, pelo
comércio, pela indústria como carreiras para jovens de boa famí-
lia? Por que este culto ou esta talvez exagerada valorização brasilei-
ra do professor, do doutor, do letrado?
Numerosas explicações podem ser sugeridas. Até o contacto
íntimo de Portugal com a Índia Oriental e com a China – de onde
durante anos se importavam becas de seda, trajos quase de
mandarins para bacharéis e doutores brasileiros pode ser invoca-
do como causa remota. Outra explicação talvez possa ser encon-
trada, na influência dos judeus sefardins na cultura e na sociedade
portuguesas: influência que teria contribuído para a idealização da
figura do mestre, do intelectual, do doutor, do professor, do le-
trado, do clérigo entre muitos dos portugueses, colonizadores do
Brasil, não devendo ser esquecido o fato de que um dos mais
remotos desses colonizadores foi certo letrado ou “bacharel”,
conhecido como o “bacharel da Cananeia”. O Brasil recebeu de
Portugal numerosos valores semieuropeus, semiorientais, e entre
os portugueses da época decisiva de colonização da América era
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grande a importância atribuída – como aliás entre os povos orien-
tais mais cultos – aos letrados, mestres ou professores.
Parece que o próprio uso de rubis, esmeraldas, safiras etc., por
graduados de escolas superiores do Brasil que por esse meio se
fazem anunciar como doutores ou bacharéis, é brasileirismo em
que se reflete influência oriental.
Ao fim do século XVIII e durante a primeira metade do sécu-
lo XIX, uma carreira ou profissão acadêmica, no Brasil, represen-
tava um dos meios pelos quais o jovem mestiço ou o filho de
modesta família urbana, branca, ou recém-chegada da Europa,
podia elevar-se socialmente de maneira a competir com os filhos
da aristocracia rural e em atividades não só intelectuais como po-
líticas. Como bacharéis, advogados, doutores em medicina, jovens
de origem menos aristocrata e até plebeia tiveram então a oportu-
nidade de formar nova aristocracia: uma aristocracia de beca co-
roada por outra de borla e capelo. E nessa nova aristocracia, era
natural que os professores das Faculdades de Direito e de Medici-
na se tornassem importantíssimos príncipes acadêmicos: eles não
somente eram formados em escolas superiores, mas professores
ou mestres das mesmas escolas. Nenhum advogado importante
tinha completo o seu prestígio se não era professor de Faculdade
de Direito. Nenhum médico era considerado entendido profun-
do em medicina se não fosse professor de Escola Médica. Deve
ser lembrado que o George Washington brasileiro – o maior líder
do movimento da independência do Brasil: José Bonifácio – foi
um acadêmico, um sábio e por algum tempo um mestre, até, da
sua ciência, em centros europeus de cultura.
Tal chegou a ser a idealização da profissão do ensino embora
a maioria dos advogados e doutores que ensinavam em escolas
superiores apenas fizeram nas suas escolas algumas conferências
brilhantes ou discursos eloquentes e em alguns casos até bombás-
ticos, sem se darem intensa ou sistematicamente às atividades pe-
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dagógicas – que do homem que por meio século foi imperador
do Brasil – Dom Pedro II – se diz ter sonhado toda a sua vida ser
professor de colégio ou mestre-escola. Dom Pedro teria alegre-
mente trocado sua coroa e o manto real – ele que era um Bourbon,
um Hapsburg e um Bragança – pela borla e o capelo. Por uma
beca quase de mandarim vinda do Oriente. Homem letrado,
humanista que conhecia algum hebreu e um pouco de grego, além
do latim, e um tanto de astronomia além da história antiga e da
literatura francesa – sentia especial prazer em assistir aos exames
finais nas escolas, em comparecer às reuniões acadêmicas, em de-
sempenhar o papel de professor ou de mestre-escola, tanto quan-
to lhe permitiam os seus deveres de Imperador Constitucional.
Assim fazendo contribuiu, notavelmente, para o aumento do pres-
tígio dos professores e dos mestres no Brasil. Contribuiu para o
alto conceito social dos professores de escolas superiores e mes-
mo dos professores secundários e primários no Brasil. Dom Pedro
II sentia-se feliz quando os membros do seu gabinete ou os líderes
políticos do Parlamento Nacional eram professores ou mestres de
escolas superiores como João Alfredo ou Zacarias de Goes. Era
mesmo particularmente tolerante para com republicanos que, como
Benjamin Constant Botelho de Magalhães – oficial do Exército
brasileiro – ensinavam matemática aos jovens na Escola Militar do
Rio de Janeiro e eram conhecidos por seu talento de professores.
Tendo a profissão de professor no Brasil tais antecedentes é fácil
compreender por que, ainda hoje, os homens de negócios buscam
tanto as honras acadêmicas: Roberto Simonsen, que faleceu há pou-
cos anos, líder da Federação das Indústrias Brasileiras, achava especial
deleite em pronunciar conferências como professor de economia; e
sentiu-se imensamente feliz quando o seu nome foi escolhido para
uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras. Alguns dos mais
importantes líderes políticos do Brasil republicano tornaram-se co-
nhecidos como professores de escolas superiores ou secundárias. Assim
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também grande número de membros do Congresso Nacional. Só
recentemente puros homens de negócios vêm se orgulhando do fato
de serem “homens práticos” e nada terem a ver com instituições ou
atividades acadêmicas. este fenômeno é americanismo ou anglo-
saxonismo recentíssimo na vida brasileira e vem se desenvolvendo
sob a pressão de crescente e até exagerada industrialização, às vezes
fictícia, de algumas das principais áreas do país, outrora quase tão
pré-capitalistas quanto as hoje consideradas arcaicas.
Com o grande aumento no número das escolas primárias no
Brasil, durante os últimos trinta ou quarenta anos, os professores
primários – outrora raros e quase majestosos não possuem hoje o
mesmo prestígio dos velhos tempos. Nem mesmo os professores
secundários ou universitários pertencem agora a uma quase casta
asiática, como aconteceu até o princípio deste século, embora sua
posição social permaneça de considerável prestígio intelectual e
social e muitos ainda sintam particularíssimo prazer em ostentar
títulos de “professor” ou de “Doutor”, mesmo em atividades
extra-acadêmicas.
No que se refere à situação econômica dos professores uni-
versitários e secundários, devemos lembrar que não são eles em
sua quase totalidade, professores com tempo integral – são raros
no Brasil, os professores de tempo integral, mas têm a liberdade
de dedicar-se a outras atividades, tais como a prática da medicina,
da Advocacia, da Engenharia, do Jornalismo, da Política. A maio-
ria dos advogados, dos médicos ou engenheiros que são profes-
sores acha neste fato indiscutível vantagem econômica. E o prestí-
gio social decorrente do título ou da condição de professor conti-
nua a significar para grande número deles vantagem econômica,
além de satisfação de natureza psicológica. Deve ser também des-
tacado que a maioria de tais professores foi no Império e na Pri-
meira República constituída de homens e não de mulheres e ainda
assim permanece, embora o número de mulheres que ensinam nas
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escolas secundárias, normais e mesmo superiores, – e não apenas
nas primárias – venha aumentando nos últimos decênios.
Significativo é também o fato de serem as Escolas Normais, atual-
mente, no Brasil, escolas onde estudam, principalmente moças; e não
rapazes. A maioria dos professores das escolas primárias no Brasil é
na época atual constituída de mulheres e não de homens: tendência
que aumentou durante o último quartel deste século. Houve tempo
em que os próprios professores primários eram todos homens.
Até o fim do século XIX raras foram as mulheres neste como
em outros ramos do magistério. Agora ao contrário, raro é encon-
trar um homem que seja professor regular de escola primária nas
regiões mais avançadas ou progressistas do Brasil. Homens como
professores de primeiras letras podem ser encontrados, em número
considerável, apenas em escolas primárias de áreas atrasadas ou ar-
caicas; ou como inspetores de escolas primárias – muito raramente
como professores – em áreas progressistas ou semiprogressistas.
Em sua preparação, um professor de escola primária no Brasil
tem que estudar cinco anos no curso primário, quatro no curso se-
cundário e três no chamado curso pedagógico. O rapaz ou a moça
deve ter onze anos – o mínimo – para entrar no curso secundário.
O rapaz ou a moça termina comumente o curso pedagógico aos
dezoito anos, quando lhe é permitido entrar imediatamente no ma-
gistério como professor primário.
Deve ser dito que foi somente com a fundação das Escolas
ou Faculdades de Filosofia, em São Paulo e no Rio, que se tornou,
realmente, sistemática a preparação de professores e professoras
para as escolas secundárias. Até então (1934) essa preparação era
uma espécie de aventura individual: não havia, a rigor, oportunida-
de para o candidato a esse tipo de professorado preparar-se me-
tódica ou sistematicamente.
Os professores secundários eram escolhidos entre advogados,
médicos, padres, engenheiros, com pouco ou nenhum treino es-
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pecífico na atividade do magistério em que ingressava de improvi-
so. A essa falta de preparação sistemática é fácil associar a ausência
de qualidade realmente pedagógica na maior parte dos professo-
res de ensino secundário no Brasil durante o Império (1822-1889)
e na chamada “Primeira República” (1889-1930), embora não se
deva esquecer que, no meio de professores secundários desse ve-
lho tipo, houve no Brasil considerável número de homens notá-
veis, não somente pelas suas qualidades de letrados como pelas
suas virtudes pedagógicas. Alguns deles destacaram-se como au-
tores de livros didáticos que permanecem exemplos admiráveis
de tais virtudes e expressões de espírito ou cultura parauniversitária.
Compêndios para o estudo do latim, do português, de história, da
geografia, da literatura, das matemáticas escritos ou organizados
de modo verdadeiramente magistral.
Todavia, é verdade que numerosos professores secundários
daquele tempo foram extremamente retóricos no seu ensino. Não
faziam outra coisa senão discursar para adolescentes que se deixa-
vam influenciar de maneira lamentável por esse culto da oratória ou
da eloquência em que se extremavam seus mestres. Mesmo estudan-
tes de química e de física ou de história Natural deixaram-se conta-
giar pelo vírus oratório dos lentes verbosos. Os museus ou labora-
tórios, raros e deficientes, quase não corrigiam os excessos de ensino
abstrato. E a tendência dominante tornou-se, de certa altura em di-
ante, imitar o Brasil a França, burocratizando-se e centralizando-se
nas capitais o ensino superior e não apenas o dos liceus ou ginásios:
tendência de que parecem ter escapado entre nós apenas seminários
católicos como o de Olinda, sucessor, aliás, do velho Colégio dos
Jesuítas – e uma ou outra escola como a de Minas de Ouro Preto.
Destaque-se, a propósito, que sob a direção do Bispo Azevedo
Coutinho – figura ilustre de educador brasileiro dos fins do século
XVIII e princípios do XIX – o Seminário de Olinda tornou-se um
centro de novos métodos de ensino secundário e parauniversitário.
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As modernas Escolas de Filosofia no Brasil vêm desenvolven-
do métodos objetivos, e em alguns casos até experimentais, na
preparação de jovens – rapazes e moças – para professores se-
cundários. A Escola ou Faculdade de Filosofia de São Paulo, assim
como as Faculdades de Filosofia, Economia e Direito e Ciências
da Universidade do Rio de Janeiro (Distrito Federal), ao tempo
em que essa universidade foi orientada ou dirigida por homens
como os professores Anísio Teixeira – seu fundador –, Miguel
Osório de Almeida, Afonso Pena Júnior e Afrânio Peixoto, reali-
zaram corajoso trabalho de reorganização dos métodos de ensino
para os cursos secundário e universitário no Brasil. Não somente
atraíram para os seus corpos docentes brasileiros com tirocínio
universitário sistemático na Europa ou nos Estados Unidos, mas
tiveram a coragem de fazer vir de centros europeus para a funda-
ção de cátedras consideradas básicas, professores estrangeiros de
rigorosa formação universitária e cientistas de alto conceito em
seus países. Esses professores de alta formação universitária e es-
ses cientistas de categoria, e não apenas esnobemente europeus –
homens como Tapié, Lévi-Strauss, Deffontines, Radcliffe-Brown,
os dois Bastide, em São Paulo e, no Rio, Brehier, Leduc, Garric,
para só mencionar alguns foram instrumentos de verdadeira revo-
lução na metodologia do ensino superior no Brasil e sua perma-
nência, entre nós, altamente benéfica para o início sério e honesto
de um moderno sistema universitário em nosso país. Foi decerto
grande fortuna para o Brasil ter tido na Universidade do Rio de
Janeiro um centro de experimentação avançada de métodos. Ao
professor Aníbal Teixeira – seu organizador – foi dada pelo go-
verno de então plena liberdade de fazer o que quisesse. Inclusive –
repetia-se – procurar os melhores talentos brasileiros e contratar
alguns dos melhores cientistas e professores do país e do estran-
geiro para servirem por algum tempo, como professores ou fun-
dadores de cátedras na jovem universidade.
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Infelizmente, tão bons exemplos – os oferecidos pelos organiza-
dores da Universidade de São Paulo, da Escola de Sociologia e
Política, também de São Paulo – que tem tido, entre seus profes-
sores bons especialistas no ensino de ciências sociais como o Dr.
Donald Pierson, e da Universidade do Rio de Janeiro (Distrito
Federal) – não foram seguidos por outras universidades ou facul-
dades de filosofia no Brasil. Algumas delas se vêm organizando
com uns poucos professores brasileiros competentes e grande
número de imaturos ou mesmo – sejamos francos – incompeten-
tes. À política – ou antes, à politicagem – permitiu-se que interfe-
risse com indicações que deveriam ser feitas sob critério apolítico
e não ao sabor de conveniências de poderosos do dia. Aos
organizadores das novas escolas de filosofia – são elas agora tão
numerosas que alguns críticos as consideram verdadeira praga –
vem faltando quase sempre a coragem de fazer vir do estrangeiro,
por dois ou três anos, para certas cadeiras fundamentais, compe-
tentes professores europeus e norte-americanos dos quais os jo-
vens assistentes brasileiros seriam, findo aquele prazo, os naturais
sucessores e donos das cátedras assim estabelecidas. Como
consequência desse fato há, no Brasil de hoje, “faculdades de filo-
sofia” e “universidades” que os críticos mais severos consideram
simples e feias caricaturas de autênticas faculdades de Filosofia e
de verdadeiras universidades. As consequências de tal política de
nacionalismo pedagógico se fazem sentir no rebaixamento dos
padrões de cultura universitária no Brasil estabelecidos pelo pro-
fessor Anísio Teixeira, no Rio – e seja dito de passagem que a esse
ilustre renovador do ensino no Brasil se deve o início de moderno
ensino universitário de sociologia no Brasil, acompanhado de pes-
quisa, e o estabelecimento entre nós da primeira cátedra regular de
antropologia social e cultura e em São Paulo pelo governador Sales
de Oliveira, com o concurso do professor Fernando de Azevedo
e de outros pedagogos notáveis, e também no relaxamento dos
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padrões do ensino secundário nos liceus ou ginásios brasileiros,
agora chamados “colégios”. O que deve ser lamentado. Porque se
o exemplo da Universidade do Rio de Janeiro (Distrito Federal) e
da de São Paulo tivesse sido seguido, o ensino universitário e se-
cundário no Brasil estaria hoje em pleno desenvolvimento, com as
cátedras dos professores universitários ocupadas em regra e não
por exceção – por homens – ou mulheres – realmente bem pre-
parados. Sistematicamente bem preparados e não improvisados.
Da maneira como as coisas se vêm desenvolvendo, há neces-
sidade, no Brasil de hoje, de forte reação contra o mau “naciona-
lismo” pedagógico, dominante entre nós – se “nacionalismo” é a
palavra exata para designar o fenômeno de certos brasileiros sen-
tirem que não há no seu e nosso país necessidade de auxílio técnico
europeu ou estadunidense na preparação de catedráticos universi-
tários ou de professores para os cursos secundários. Necessidade
que tão claramente se manifesta em relação com algumas das ciên-
cias modernas e da própria filosofia, ensinadas na maioria dos
colégios e universidades do Brasil de modo deficiente ou arcaico
por professores imaturos, quase sempre nomeados segundo peri-
goso critério de seleção após triunfos nos chamados concursos,
em que quase sempre são consagrados não os mais senhores da
matéria e mais capazes de ensiná-la, porém os mais brilhantes na
improvisação, na polêmica, na ostentação de um saber maior que
o possuído e nas artes ou manhas da advocacia ciceroniamente
acadêmica, servida pela memória chamada de “anjo”. Mesmo as-
sim, tais concursos talvez devam ser preferidos em alguns casos às
nomeações graciosas de professores de universidades e colégios,
com que homens de governo, segundo denúncias de críticos bem
informados, vêm pagando suas dívidas de gratidão a semi-intelec-
tuais ou a simples bons – ou mesmo maus – moços, por présti-
mos ou serviços claros ou dissimulados e nem sempre de natureza
intelectual, aos mesmos homens de governo. Ou pagando tais dí-
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vidas ou atalhando possíveis oposições ou agressões às suas obras
de supostos benfeitores da cultura nacional. Tais nomeações graci-
osas vêm sendo feitas a despeito da Constituição do Brasil de
1946 enfaticamente proibi-las, consagrando – a nosso ver, errada-
mente – o concurso, como único meio de acesso às cátedras uni-
versitárias. Quando membro do Parlamento Nacional e vice-pre-
sidente e por vezes presidente, na Câmara dos Deputados, da
Comissão de Educação e Cultura, colocamo-nos quase sozinho
contra “a mística do concurso”, consagrada pela maioria parla-
mentar como princípio constitucional. E ao fazê-lo mais de uma
vez nos recordamos de ter Savigny, o insigne mestre de direito
romano e criador da jurisprudência histórica e um dos primeiros
professores do mundo, se destacado como adversário, no seu tem-
po, do sistema de concursos, chegando a dizer – recordou-o há
dezenas de anos em nossa língua Ramalho Ortigão, crítico inteli-
gente do lamentável sistema – que “o concurso oral é a porta
aberta às mediocridades”. O sistema de concursos foi recente-
mente criticado em Portugal como arcaísmo que deve ser substi-
tuído, por homens do saber e da autoridade do professor Celestino
da Costa. Também pelo eminente crítico e estudioso de assuntos
pedagógicos, Antônio Sérgio, que vê na apologia do concurso por
pedagogos atuais e no fato de ser ainda preciso combater tal sistema
entre portugueses, evidência de “retrocesso intelectual”.
Outro, interessante aspecto da situação dos professores no Bra-
sil é o econômico: o salário dos catedráticos das universidades e dos
professores de colégios e escolas primárias. Em todas as escolas de
nível universitário o salário de um professor é sempre de 8.400 cru-
zeiros mensais. Ao professor é permitido por lei ensinar matérias
correlatas em duas instituições. Também pode o professor dedicar-
se a investigações remuneradas (sobre assunto relacionado com a
sua cadeira) em alguma instituição de pesquisas. É esta uma sábia lei,
em contraste com o decreto posto em vigor, com forma de lei,
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pelo governo nacional, em 1937, quando o Brasil tornou-se “estado
forte”, assim permanecendo até 1945. Decreto que proibindo ao
professor ter mais de uma cadeira ou empregar-se em atividades de
pesquisas em instituições como o Instituto Biológico de Manguinhos,
esteve longe de ser benefício à cultura brasileira. Prejudicando-a con-
sideravelmente. Foi um dos erros do governo Getúlio Vargas neste
particular mal aconselhado por um professor ilustre porém desori-
entado: o professor Francisco Campos.
Em relação aos salários dos professores de escolas secundárias
do estado ou oficiais, no Brasil, não há uniformidade nacional a
respeito. Em algumas áreas, como o estado de São Paulo e o
Distrito Federal, um professor secundário recebe quase tanto quanto
um professor universitário: 8 mil cruzeiros mensais. Nos estados
menos adiantados, o professor secundário é quase sempre mal
pago: há casos de um professor secundário receber apenas 900
cruzeiros mensais. Isto aplica-se às escolas secundárias mantidas
pelos diferentes estados da União brasileira: uma União federal
semelhante à dos Estados Unidos da América.
Nas escolas secundárias particulares, a situação do professor é
algumas vezes crítica, porque, em alguns estados, ou regiões, é ele
miseravelmente pago, embora possa ensinar em duas, três e mes-
mo mais escolas. O professor é pago por preleção ou aula; e este
pagamento varia de vinte a quarenta cruzeiros por aula, de acordo
com o que paga previamente o estudante a cada escola particular.
Assim, um professor secundário, em algumas áreas, tem de dar
tanto quanto dez aulas ou preleções diariamente, para fazer um
salário de 8.000 cruzeiros mensais.
De acordo com alguns críticos desse sistema, trata-se de ar-
ranjo lamentavelmente antipedagógico. Tem o pobre do profes-
sor de deslocar-se de uma a outra escola e juntar considerável
mobilidade física ao esforço intelectual de repetir oito ou dez aulas
por dia. Este tipo de professor secundário é vividamente carac-
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terizado pelo professor Aderbal Jurema, da Universidade do Re-
cife, como “professor Táxi”.
As férias dos professores bem como dos estudantes-universi-
tários, secundários e primários no Brasil são duas por ano: do
princípio ao meio de dezembro até o fim de fevereiro ou fins de
março, e no meio do ano, cerca de um mês, durante as chamadas
festas de São João, ou logo depois delas. São ainda numerosos os
feriados e dias santos.
Os professores primários e secundários têm o direito à prote-
ção social que oferece o Instituto de Aposentadoria e Previdência
dos Comerciários. Espera-se que seja organizado em breve um
instituto ou departamento, especial para a assistência ou seguro
social dos professores no Brasil.
Quando inválido ou quando atinge a idade limite, o professor
primário ou secundário, no Brasil, que é membro, do Instituto dos
Comerciários, tem direito a receber dois terços de 2.000 cruzeiros:
os dois mil cruzeiros que ele tem de pagar gradualmente ao mes-
mo instituto. No caso de morte sua esposa receberá 1.200 cruzei-
ros. Quanto ao professor universitário de universidade federal, está
habilitado à mesma assistência a que têm direito os outros empre-
gados federais da mesma categoria. Isto é, se atinge a idade limite
(70 anos) ou se torna inválido por acidente profissional e se tem
mais de trinta anos de serviço como professor recebe o salário
integral. Se tiver menos de trinta anos de serviço, recebe mensali-
dade proporcional a seu período de atividade. Deve-se ainda no-
tar que a Constituição Brasileira de 1946 isenta os professores,
assim como escritores e jornalistas, de impostos que atingem ou-
tros cidadãos, consagrando assim a situação especial dos chama-
dos “intelectuais” no Brasil.
Continua o título de professor de nível universitário ou mes-
mo colegial, a ser, no Brasil, marca de prestígio. Não tanto po-
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rém como outrora. Por outro lado, repita-se, é crescente o pres-
tígio dos indivíduos dedicados à indústria e ao comércio. Recen-
te lista ou rol de honra de “pioneiros do progresso” nacional é o
que põe em evidência: o crescente prestígio dos líderes dessas
atividades, alguns dos quais já desdenham a ostentação de qual-
quer título acadêmico. É uma lista em que não aparecem entre
“pioneiros de progresso” nomes como, os de Manuel Bandeira,
H. Villa-Lobos, Cícero Dias, Carlos Drummond de Andrade,
José Lins do Rêgo, Raquel de Queiroz A. Silva Melo, Gastão
Cruls, Gilberto Amado, Lúcia Miguel Pereira, Otávio Tarquínio,
Lúcio Costa, Raul Fernandes, Tristão de Athayde, Álvaro Lins, –
aos quais se devem, como a vários outros, arrojos de renovação
da cultura, do pensamento, e da paisagem brasileira. Evidente-
mente são esses renovadores considerados pelos organizadores
da lista de “pioneiros do progresso nacional” segundo novo crí-
tico, produtores de simples artigos de sobremesa cultural ao lado,
dos outros – técnicos, industriais etc. – que seriam exclusivamen-
te os criadores de valores essenciais ao Brasil. Atitude sociologi-
camente muito significativa e um tanto em desacordo com a dos
Constituintes de 1946, ainda entusiastas dos valores intelectuais.
Diga se de passagem que na mesma Constituinte manifestou-se
da parte de alguns dos seus membros lamentável espírito de
nativismo, contra os brasileiros naturalizados, espírito que, se ti-
vesse prevalecido, teria tornado quase impossível o exercício de
profissões intelectuais inclusive o magistério – pelos mesmos
naturalizados. Membro da Constituinte de 46, insurgimo-nos, em
discurso, ali proferido, contra semelhante nativismo; e julgamos
ter com esse discurso, contribuído para dar à atual Constituição
brasileira sabor mais liberal e mais democrático, no que se refere
aos direitos dos naturalizados com relação a atividades intelectuais.
Fonte: Freyre, Gilberto. Em torno da situação do professor no Brasil. Recife:
Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Pernambuco, 1956.
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Ainda a propósito do centenário de Dewey
No seu trabalho sobre Dewey, lido no Centro Regional de Pes-
quisas Educacionais do Recife, em reunião comemorativa do cente-
nário do nascimento do grande mestre da Universidade de Colúmbia,
o professor Sucupira reafirmou suas qualidades de crítico de ideias
que ao saber sério junta a capacidade de analisar sistemas e de inter-
pretar tendências de caráter filosófico, de modo penetrante e de
forma atraente. Trata-se de um ensaio digno, certamente, de apare-
cer entre os poucos, porém, sugestivos trabalhos, menos apologéticos
do que críticos, no melhor sentido da palavra – a crítica conciliada
com a admiração – que melhor vêm assinalando, em várias línguas e
em vários países, a passagem do 1° centenário do nascimento do
grande mestre da Universidade de Colúmbia.
Foi na Universidade de Colúmbia que conheci, nos meus dias
de estudante, o já velho glorioso que era, então, John Dewey. Ouvi
dele lições inesquecíveis, embora possa confirmar o que a respeito
de Dewey como didata propriamente dito escreveu o professor
Harold A. Larrabee: “By all the ordinary criteria... a poor teacher”.
Mas esse era também o caso daquele outro velho, igualmente
glorioso, que foi o maior dos meus mestres na mesma Universi-
dade – Franz Boas – em contraste com professores da mesma
época, da mesma Colúmbia, admiráveis pela nitidez de palavra e
pela elegância da expressão: o sociólogo Giddings, o jurista John
Barrett Moore, o economista Seligman, o historiador Hayes.
Havia, porém, em Dewey alguma coisa de imperecivelmente
jovem que resistia à velhice e resistia sobretudo à glória. Mais de
uma vez conversei com ele, esquecido de que era com um velho e,
principalmente, com um dos homens mais notáveis da época, que
eu, simples sul-americano, conversava.
Já recordei que muito desejou Dewey visitar o Brasil e conhe-
cer a gente brasileira, do mesmo modo que conhecera a chinesa.
Era o Brasil, da América do Sul, o país que mais lhe atraía a curio-
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sidade. Talvez – quem sabe? – porque fosse brasileiro um dos seus
melhores discípulos estrangeiros: Anísio Teixeira.
Empenhei-me junto a amigos influentes, então no governo
brasileiro, para que John Dewey fosse convidado a visitar o nosso
país. Fracassei. Fracassei com relação a Dewey como fracassei com
relação a Thomas Mann, a Fernando de los Ríos, a Américo Cas-
tro, a Joaquim de Carvalho, a Carl Sauer. Neste particular, como
noutros, poderia até apresentar-me como um colecionador nada
insignificante de fracassos.
Daí a especial alegria com que acrescento estas palavras de
velho admirador de John Dewey – um admirador que não teve
forças para atendê-lo no desejo de visitar o Brasil – ao excelente
trabalho do brasileiro Newton Sucupira sobre o insigne filósofo
de Colúmbia. É como se me associasse a um trabalho sobre Dewey
morto que em parte redimisse o Brasil da mesquinharia que pra-
ticou para com Dewey vivo. Isto, admitindo que haja um Dewey
morto ao lado de um Dewey vivo.
Porque não nos iludamos: o fato de haver atualmente da parte
de numerosos educadores, por um lado, e de alguns críticos de
ideias, por outro, uma atitude de quase violenta repulsa à pedagogia
e à filosofia de John Dewey, não significa a morte intelectual nem
do filósofo, nem do educador revolucionário que ele foi. Há indí-
cios de que uma reabilitação de Dewey se seguirá à sua atual degra-
dação em alguns meios não só pedagógicos como filosóficos.
Esse, aliás, tem sido o destino de outros revolucionários intelectu-
ais, antes de se estabilizarem pacificamente em clássicos integrais. Dewey
dificilmente poderia ter escapado a esse processo que, envolvendo
por vezes injustiças imensas contra um filósofo e incompreensões pro-
fundas da sua obra, não deixa de representar um esforço de depu-
ração que sirva de base a uma sólida consagração tanto do pensador
como da sua filosofia.
Fonte: Freyre, Gilberto. “Ainda a propósito do centenário de Dewey”. O Cruzei-
ro. Rio de Janeiro, 1º. out. 1960.
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CRONOLOGIA
1900 - Nasce no Recife, a 15 de março.
1907 - Faz os primeiros desenhos e caricaturas.
1908 - Lições de desenho e pintura com Teles Júnior. Começa a estudar no
colégio Americano Gilreath.
1910 - Recita poemas nas festas colegiais, e passa temporada no engenho São
Severino dos Ramos.
1911 - Escreve o seu primeiro poema, o soneto Jangada t-riste, durante veraneio
em Boa Viagem. 1914. Dá aulas de latim no colégio onde estuda, inclu-
sive de latim. Torna-se editor-chefe chefe do jornalzinho estudantil O
Lábaro.
1916 - Primeira conferência, na Paraíba, no Cine-Teatro Pathé, “Spencer e o
problema da educação no Brasil”. Converte-se em evangélico protestante.
Realiza pregações, interessado que estava no socialismo Cristão.
1917 - Conclui curso de bacharel em ciências e letras no Americano Gilreath. Foi
o orador da turma.
1918 - Muda-se para os EUA, onde vai estudar na Universidade de Baylor. Inicia
a colaboração com o Diario de Pernambuco, publicando artigos numerados
sob o título geral “Da outra América”.
1919 - Publica artigos num jornal de Waco, Texas, e dá aulas particulares de
francês. Estreia como caricaturista.
1920 - Conhece o poeta irlandês William Butler Yeats. Estudos de sociologia
põem-no em contato com a população marginal de negros e mexicanos do
Texas.
1922 - Defende dissertação para o grau de Magister Artium, na Universidade de
Columbia, com Social Life in Brazil in the Middle of the 19th Century. Viaja
à Europa.
1923 - Mantém contatos em Lisboa e Coimbra com intelectuais portugueses.
Volta ao Recife e retoma a colaboração com o Diario de Pernambuco.
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ANTONIO GRAMSCI
1924 - Tem início a amizade com o escritor José Lins do Rego. Faz nova confe-
rência na Paraíba: “Apologia pro generatione sua”.
1925 - Organiza o livro comemorativo do primeiro centenário do Diario de
Pernambuco, que se intitula Livro do Nordeste, publicado em novembro.
1926 - Organiza o 1º Congresso Brasileiro de Regionalismo, no Recife. Faz as
primeiras viagens à Bahia e ao Rio de Janeiro. Mantém contato com escri-
tores modernistas, entre eles, Manuel Bandeira, de quem se torna amigo.
Vai aos Estados Unidos como representante do Diario de Pernambuco no
Congresso Pan-Americano de Jornalismo. Torna-se Oficial de Gabinete do
governador de Pernambuco Estácio de Albuquerque Coimbra.
1928 - Assume a direção do jornal A Província. É nomeado para a cátedra de
sociologia da Escola Normal do Estado de Pernambuco.
1930 - Com a eclosão da Revolução de 30, foge, com o ex-governador Estácio
Coimbra para a Bahia, onde passa um mês e, depois, exila-se em Lisboa.
Conhece Dacar e parte do interior do Senegal. Começa a fazer pesquisas
que resultarão em Casa-grande & senzala.
1931 - Viaja aos Estados Unidos, para rápida temporada como professor visi-
tante da Universidade de Stanford. Volta à Europa, e, em seguida, retorna
ao Brasil.
1932 - Por estímulo de Rodrigo M. F. de Andrade, começa a escrever Casa-grande
& senzala, no Recife, em grande parte na casa do seu irmão, Ulysses.
1933 - Publica em dezembro Casa-grande & senzala, pela Editora Maia & Schmidt.
1934 - Organiza o 1º Congresso de Estudos Afro-Brasileiros. Recebe prêmio da
Sociedade Felipe de Oliveira, pelo livro Casa-grande & senzala.
1935 - Inicia, na Faculdade de Direito do Recife, curso de sociologia. Ensina
também antropologia social e sociologia na Escola de Direito na Univer-
sidade do Distrito Federal.
1936 - Publica Sobrados e mucambos. Viaja à Europa.
1937 - Pronuncia várias conferências na Europa e no Recife, uma delas, no
teatro Santa Isabel em apoio à candidatura do escritor José Américo de
Almeida à Presidência da República. Publica Nordeste. Inicia colaboração
no jornal carioca Correio da Manhã.
1938 - Recebe nomeação do ditador Oliveira Salazar para a Academia Portuguesa
de História. Dá seminários de sociologia e história da escravidão, na Uni-
versidade de Columbia.
1939 - Viaja aos Estados Unidos, aceitando o convite para ser professor visi-
tante da Universidade de Michigan.
1940 - Faz, no Gabinete Português de Leitura, no Recife, a conferência “Uma
cultura ameaçada: a luso-brasileira”.
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COLEÇÃO EDUCADORES
1941 - Viaja ao Uruguai, Argentina e Paraguai. Inicia a colaboração no jornal La
Nación, de Buenos Aires, e A Manhã, do Rio de Janeiro.
1942 - É preso, no Recife, por artigo em que menciona a existência de atividades
nazifascistas no clero e entre escoteiros. Primeira edição argentina de
Casa-grande & senzala.
1943 - Recebe convite para ensinar sociologia, na Universidade do Brasil, mas
recusa. Edição espanhola (Madri e Buenos Aires) de Nordeste. Publica
Problemas brasileiros de antropologia.
1945 - Participa da campanha pela redemocratização do Brasil. Publica Sociologia.
1946 - É eleito deputado federal, pela UDN.
1948 - Publica Brazil: An Interpretation e Ingleses no Brasil. Como deputado fede-
ral, elabora projeto de criação do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas
Sociais, com o objetivo de estudar e propor melhorias nas condições de
vida do trabalho do campo no Nordeste.
1949 - Representa o Brasil na Assembleia Geral das Nações Unidas, por indica-
ção do governo brasileiro. Lei nº. 770 de 21 de julho de 1949 cria o
Instituto Joaquim Nabuco.
1950 - Conclui o mandato de deputado federal.
1951 - Viaja, de agosto de 1951 a fevereiro de 1952, convite do governo
português, a Portugal e a suas colônias e ex-colônias na África e Ásia.
1953 - Publica Aventura e rotina, resultado das viagens de conhecimento pelas
possessões portuguesas na África e Extremo Oriente.
1954 - Recebe o título de doutor Honoris Causa da Universidade de Columbia.
1957 - É nomeado diretor do Centro Regional de Pesquisas Educacionais do
Nordeste, por Anísio Teixeira (que dirigia o Inep, no Ministério da Edu-
cação). Recebe, nos Estados Unidos, o prêmio Anisfield, por The Masters
and Slaves (tradução em inglês de Casa-grande & senzala).
1962 - Recebe homenagem da Escola de Samba Mangueira, no Rio de Janeiro,
que desfila no Carnaval desse ano com samba-enredo baseado em Casa-
grande & senzala. Recebe prêmio Machado de Assis, da Academia Brasi-
leira de Letras, pelo conjunto da sua obra publicada.
1964 - Apoia o regime militar que se instala no Brasil, mas recusa convite do
governo para ser ministro da Educação. Publica a seminovela Dona Sinhá
e o seu filho padre.
1966 - Faz conferência sobre futurologia, na Universidade de Brasília.
1967 - Recebe o prêmio Aspen, nos Estados Unidos.
1969 - Recebe, na Itália, o prêmio La Madonnina.
1970 - Casa-grande & senzala recebe uma adaptação para o teatro, por José Carlos
Cavalcanti Borges, no Rio de Janeiro.
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ANTONIO GRAMSCI
1971 - Recebe, da rainha Elizabeth II, o título de Cavaleiro Comandante do
Império Britânico. É titulado doutor Honoris Causa pela Universidade do
Rio de Janeiro.
1975 - Publica Tempo morto e outros tempos, o seu diário de adolescência e mocidade.
1976 - Viaja à Europa para realizar conferências em Madri e Londres.
1977 - Recebe do governo francês a insígnia de Comendador de Artes e Letras.
1980 - Diversas comemorações são realizadas em torno dos 80 anos de nasci-
mento. A Editora José Olympio publica Gilberto Freyre: sua filosofia, sua
ciência, sua arte. Faz em Portugal conferência sobre os 400 anos de
nascimento de Camões.
1986 - Elege-se por aclamação membro da Academia Pernambucana de Letras.
Recebe a Grã-Cruz da Légion d’Honneur, da França.
1987 - É criada a Fundação Gilberto Freyre. Falece, no Recife, a 18 de julho, no
Hospital Português, de isquemia cerebral.
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153
COLEÇÃO EDUCADORES
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José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1957.
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COLEÇÃO EDUCADORES
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Este volume faz parte da Coleção Educadores,
do Ministério da Educação do Brasil,
e foi composto nas fontes Garamond e BellGothic,
pela Sygma Comunicação, para a Editora Massangana
da Fundação Joaquim Nabuco e impresso no Brasil em 2010.
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