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Comissão técnica
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier (presidente)
Antonio Carlos Caruso Ronca, Ataíde Alves, Carmen Lúcia Bueno Valle,
Célio da Cunha, Jane Cristina da Silva, José Carlos Wanderley Dias de Freitas,
Justina Iva de Araújo Silva, Lúcia Lodi, Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero
Revisão de conteúdo
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier, Célio da Cunha, Jáder de Medeiros Britto,
José Eustachio Romão, Larissa Vieira dos Santos, Suely Melo e Walter Garcia
Secretaria executiva
Ana Elizabete Negreiros Barroso
Conceição Silva
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ORTEGA Y
Juan Escámez Sánchez
Tradução e organização
José Gabriel Perissé
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ISBN 978-85-7019-547-0
© 2010 Coleção Educadores
MEC | Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana
Esta publicação tem a cooperação da UNESCO no âmbito
do Acordo de Cooperação Técnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo a
contribuição para a formulação e implementação de políticas integradas de melhoria
da equidade e qualidade da educação em todos os níveis de ensino formal e não
formal. Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos
neste livro, bem como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as
da UNESCO, nem comprometem a Organização.
As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo desta publicação
não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO
a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região
ou de suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites.
A reprodução deste volume, em qualquer meio, sem autorização prévia,
estará sujeita às penalidades da Lei nº 9.610 de 19/02/98.
Editora Massangana
Avenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540
www.fundaj.gov.br
Coleção Educadores
Edição-geral
Sidney Rocha
Coordenação editorial
Selma Corrêa
Assessoria editorial
Antonio Laurentino
Patrícia Lima
Revisão
Sygma Comunicação
Revisão técnica
Célio da Cunha, Jeanne Marie Claire Sawaya
e Luciano Milhomem Seixas
Ilustrações
Miguel Falcão
Foi feito depósito legal
Impresso no Brasil
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Fundação Joaquim Nabuco. Biblioteca)
Escámez Sánchez, Juan.
Ortega y Gasset / Juan Escámez Sánchez; tradução: José Gabriel Perissé
Madureira. – Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.
150 p.: il. – (Coleção Educadores)
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7019-547-0
1. Ortega y Gasset, José, 1883-1955. 2. Educação – Pensadores – História. I. Título.
CDU 37
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SUMÁRIO
Apresentação por Fernando Haddad, 7
Ensaio, por Juan Escámez Sánchez, 11
O problema da Espanha é um problema educacional, 11
Ortega e suas circunstâncias, 13
A pedagogia idealista, 18
A pedagogia vitalista, 24
Pedadogia da maturidade, 28
Ortega atual, 34
Textos selecionados, 39
A reforma universitária, 39
A missão da universidade, 40
Universidade e liderança, 43
A universidade e ensino da cultura, 44
Universidade e autenticidade, 45
A gênese do ensino, 46
O princípio da economia do ensino, 49
O estudante médio e o que se pode aprender
de verdade, 50
Distinção entre profissão e ciência, 50
Ser profissional, 52
Vida humana e cultura, 53
Viver à altura do seu tempo, 55
Especialização e cultura integral, 57
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6
ORTEGA Y GASSET
A universidade como princípio promotor, 61
Estudo e curiosidade, 62
Ciência e necessidade, 63
Saber, gosto e necessidade, 65
A falsidade do estudar, 67
Reformar o estudo e o estudante, 69
Apontamentos para uma educação para o futuro, 70
Vida nobre e vida vulgar, ou esforço e inércia, 83
Por que as massas intervêm em tudo e por que
só intervêm violentamente, 88
A época do “senhorzinho satisfeito”, 95
A barbárie da “especialização”, 102
Chega-se à verdadeira questão, 108
Eu sou eu e minha circunstância, 111
O que é filosofia, 119
Adão no Paraíso, 125
Meditação da técnica, 138
Cronologia, 145
Bibliografia, 147
Obras de José Ortega y Gasset, 149
Obras sobre José Ortega y Gasset, 150
Obras de José Ortega y Gasset em português, 150
Obras sobre José Ortega y Gasset em português, 151
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7
COLEÇÃO EDUCADORES
O propósito de organizar uma coleção de livros sobre educa-
dores e pensadores da educação surgiu da necessidade de se colo-
car à disposição dos professores e dirigentes da educação de todo
o país obras de qualidade para mostrar o que pensaram e fizeram
alguns dos principais expoentes da história educacional, nos pla-
nos nacional e internacional. A disseminação de conhecimentos
nessa área, seguida de debates públicos, constitui passo importante
para o amadurecimento de ideias e de alternativas com vistas ao
objetivo republicano de melhorar a qualidade das escolas e da
prática pedagógica em nosso país.
Para concretizar esse propósito, o Ministério da Educação insti-
tuiu Comissão Técnica em 2006, composta por representantes do
MEC, de instituições educacionais, de universidades e da Unesco
que, após longas reuniões, chegou a uma lista de trinta brasileiros e
trinta estrangeiros, cuja escolha teve por critérios o reconhecimento
histórico e o alcance de suas reflexões e contribuições para o avanço
da educação. No plano internacional, optou-se por aproveitar a co-
leção Penseurs de l´éducation, organizada pelo International Bureau of
Education (IBE) da Unesco em Genebra, que reúne alguns dos mai-
ores pensadores da educação de todos os tempos e culturas.
Para garantir o êxito e a qualidade deste ambicioso projeto
editorial, o MEC recorreu aos pesquisadores do Instituto Paulo
Freire e de diversas universidades, em condições de cumprir os
objetivos previstos pelo projeto.
APRESENTAÇÃO
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8
ORTEGA Y GASSET
Ao se iniciar a publicação da Coleção Educadores
*
, o MEC,
em parceria com a Unesco e a Fundação Joaquim Nabuco, favo-
rece o aprofundamento das políticas educacionais no Brasil, como
também contribui para a união indissociável entre a teoria e a prá-
tica, que é o de que mais necessitamos nestes tempos de transição
para cenários mais promissores.
É importante sublinhar que o lançamento desta Coleção coinci-
de com o 80º aniversário de criação do Ministério da Educação e
sugere reflexões oportunas. Ao tempo em que ele foi criado, em
novembro de 1930, a educação brasileira vivia um clima de espe-
ranças e expectativas alentadoras em decorrência das mudanças que
se operavam nos campos político, econômico e cultural. A divulga-
ção do Manifesto dos pioneiros em 1932, a fundação, em 1934, da Uni-
versidade de São Paulo e da Universidade do Distrito Federal, em
1935, são alguns dos exemplos anunciadores de novos tempos tão
bem sintetizados por Fernando de Azevedo no Manifesto dos pioneiros.
Todavia, a imposição ao país da Constituição de 1937 e do
Estado Novo, haveria de interromper por vários anos a luta auspiciosa
do movimento educacional dos anos 1920 e 1930 do século passa-
do, que só seria retomada com a redemocratização do país, em
1945. Os anos que se seguiram, em clima de maior liberdade, possi-
bilitaram alguns avanços definitivos como as várias campanhas edu-
cacionais nos anos 1950, a criação da Capes e do CNPq e a aprova-
ção, após muitos embates, da primeira Lei de Diretrizes e Bases no
começo da década de 1960. No entanto, as grandes esperanças e
aspirações retrabalhadas e reavivadas nessa fase e tão bem sintetiza-
das pelo Manifesto dos Educadores de 1959, também redigido por
Fernando de Azevedo, haveriam de ser novamente interrompidas
em 1964 por uma nova ditadura de quase dois decênios.
*
A relação completa dos educadores que integram a coleção encontra-se no início deste
volume.
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9
COLEÇÃO EDUCADORES
Assim, pode-se dizer que, em certo sentido, o atual estágio da
educação brasileira representa uma retomada dos ideais dos mani-
festos de 1932 e de 1959, devidamente contextualizados com o
tempo presente. Estou certo de que o lançamento, em 2007, do
Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), como mecanis-
mo de estado para a implementação do Plano Nacional da Edu-
cação começou a resgatar muitos dos objetivos da política educa-
cional presentes em ambos os manifestos. Acredito que não será
demais afirmar que o grande argumento do Manifesto de 1932, cuja
reedição consta da presente Coleção, juntamente com o Manifesto
de 1959, é de impressionante atualidade: “Na hierarquia dos pro-
blemas de uma nação, nenhum sobreleva em importância, ao da
educação”. Esse lema inspira e dá forças ao movimento de ideias
e de ações a que hoje assistimos em todo o país para fazer da
educação uma prioridade de estado.
Fernando Haddad
Ministro de Estado da Educação
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ORTEGA Y GASSET
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11
COLEÇÃO EDUCADORES
JOSÉ ORTEGA Y GASSET
(1883-1955)
1
1
Este perfil foi publicado em Perspectives: revue trimestrielle d’éducation comparée.
Paris, Unesco: Escritório Internacional de Educação, v. 24, n. 1-2, pp. 267-285, 1994.
2
Juan Escámez Sánchez (Espanha) é doutor em filosofia e, atualmente, professor na
Universidade de Valencia e diretor do Departamento de Teoria da Educação. Foi professor
agregado na Universidade de Murcia. Decano da Faculdade de Filosofia, Psicologia e
Ciências da Educação da Universidade de Murcia. Orientou doze projetos de graduação
e 24 teses de doutorado. Publicou doze livros como autor ou coautor e cerca de setenta
artigos em revistas ou capítulos de livro. Nos últimos anos, seus trabalhos têm versado
sobre as atitudes, os valores e a educação moral.
3
J. Ortega y Gasset, Obras completas, Madri, Alianza Editorial, Revista de Occidente, 1983
(12 v.). Os escritos de Ortega y Gasset citados aqui seguem essa edição. Nas notas de
referência, mencionam-se o título da obra citada, o tomo e as páginas correspondentes.
O problema da Espanha é um problema educacional
Se alguma característica especial de Ortega y Gasset atrai a aten-
ção do leitor é sua notável curiosidade. Qualquer tema ou aconteci-
mento do seu tempo, por menor que fosse, despertava-lhe o inte-
resse e a atenção, como fica evidente em sua abundante produção
escrita
3
. Nosso autor apresenta certos traços que o diferenciam do
estereótipo que, em geral, temos do filósofo. Seu pensamento não
parece oferecer a estrutura de um sistema. Com frequência, ele ex-
põe seu pensamento em artigos de jornal, e seus trabalhos mais
importantes foram publicados na forma de ensaios. Por fim, a be-
leza literária dos seus textos é tão sugestiva e cativante que o leitor, se
sentindo fortemente envolvido, encontra dificuldades para realizar
uma análise rigorosa das ideias ali apresentadas.
Estudiosos competentes de diversos campos do saber já se
pronunciaram a respeito da coerência da filosofia de Ortega, sua
Juan Escámez Sánchez
2
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12
ORTEGA Y GASSET
diversidade temática e suas qualidades literárias. Nesse perfil, pre-
tendemos nos limitar à abordagem daquelas questões que nos con-
duzam à compreensão de um aspecto do pensamento de Ortega,
a meu ver importante, mas pouco tratado. Refiro-me à dimensão
de Ortega como pedagogo. Embora ele considerasse como sua
vocação o cultivo do pensamento, que para ele não poderia ser
senão filosófico
4
, a grande paixão de Ortega foi a educação do
povo espanhol. Como Cerezo
5
demonstrou, o motor do pensa-
mento de Ortega é a contínua e intensa meditação sobre o proble-
ma da Espanha. Sua trajetória intelectual não pode desligar-se de
tal preocupação. Por esse ângulo, convém interpretar suas ativida-
des políticas, culturais e filosóficas, as quais compreendem proje-
tos de reforma sociopolítica do país, focalizando diferentes níveis
e âmbitos da realidade social. Ortega era, sobretudo, um pedagogo
que, no nível nacional, buscava a reforma e a transformação da
Espanha. Para atingir esse objetivo, todos os meios podiam e de-
viam ser empregados: jornais, revistas, livros, aulas, política etc.
A transformação do país é concebida pelo jovem Ortega como
o processo de integração da Espanha à cultura europeia. Define-se,
assim, sua vocação pública como intelectual, seu destino como edu-
cador, quase reformador social: empenhar-se em elevar a Espanha
ao nível da cultura da Europa. A diversidade de visões que Ortega
desenvolve sobre a cultura em conexão com o problema da Espanha
nos servirá de orientação para interpretarmos a evolução do seu
pensamento, tanto filosófico quanto pedagógico. E como desem-
penhou Ortega a função de educador? Conforme ele mesmo repe-
tia sempre: “Levando em conta as circunstâncias”.
4
A una Edición de sus Obras, v.6, p.351.
5
P. Cerezo, La Voluntad de Aventura, Barcelona, Ariel, 1984, pp. 15-87.
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COLEÇÃO EDUCADORES
Ortega e suas circunstâncias
Compreender uma pessoa requer o estudo de sua biografia,
da evolução de sua vida nos diferentes contextos em que se desen-
rolou. Essa exigência reveste-se de especial significação no caso de
Ortega, pois foi um dos temas centrais do seu pensamento. Em
palestra pronunciada por ocasião dos quatrocentos anos da morte
de Juan Luis Vives, em 1940, apresenta-nos sua visão sobre como
escrever uma rigorosa biografia
6
. Para realizar essa tarefa, dizia-
nos, procuramos reconstruir intelectualmente a realidade de um
bios”, de uma vida humana; e viver é, para o homem, ter de lidar
com o mundo ao seu redor; mundo geográfico e mundo social.
Se quisermos elaborar uma biografia séria, o elemento decisivo é
o mundo social no qual nascemos e vivemos.
Esse mundo social formado de pessoas, mas também dos
usos, gostos, costumes e todo o sistema de crenças, ideias, prefe-
rências e normas que integram o que se convencionou chamar, de
maneira um tanto vaga, de vida coletiva, correntes da época, espí-
rito do tempo. Tudo isso é inculcado à pessoa desde a infância, na
família, na escola, no convívio social, nos livros e nas leis. Boa
porção desse mundo social passa a fazer parte do “eu” autêntico
que é o nosso; mas surgem em nós também crenças, opiniões,
projetos e gostos que, mais ou menos, discordam do vigente, da-
quilo que se faz ou se diz. Nisso consiste o combate que é a vida,
sobretudo de uma vida fora do comum.
Com quais contextos e circunstâncias Ortega teve de lidar e
como reagiu a eles? Os limites de um artigo desse tipo nos obri-
gam a considerar tão somente aquelas circunstâncias interessan-
tes para a compreensão da dimensão pedagógica do nosso
6
Juan Vives y su Mundo, v, 9, p.509-515.
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ORTEGA Y GASSET
“personagem”
7
, abrindo mão, entre outras coisas, da análise das
influências recebidas na elaboração do seu pensamento filosófico,
objeto de investigação em excelentes trabalhos
8
.
José Ortega y Gasset nasceu em Madri, em 9 de maio de 1883.
Filho de José Ortega Munilla e de Dolores Gasset, pertencia, pelos
dois ramos familiares, a círculos bastante representativos da cultu-
ra e da política espanholas da época. Seu pai, escritor reconhecido,
era, desde 1902, membro da Real Academia Espanhola, e traba-
lhava como jornalista na seção literária do diário El Imparcial, a
mais prestigiosa publicação da época, fundado por seu avô ma-
terno, Eduardo Gasset, monarquista liberal. José Ortega y Gasset
cresceu no meio jornalístico, membro de uma família na qual a
vida pública – letras e política – possuía ressonância imediata. Com
19 anos, publica seu primeiro artigo. Essas circunstâncias familia-
res pesaram de modo decisivo em suas preocupações com os
problemas sociais e culturais da Espanha, que o conduziram algu-
mas vezes à prática política e a considerar-se como a serviço de
seu país. Seu gosto pelo jornalismo e sua preferência pela imprensa
como meio de exposição de suas ideias, bem como sua preocu-
pação com a elegância literária, tiveram sua origem, a meu ver, no
contexto familiar.
Em 1891, aos 8 anos de idade, ingressa como aluno interno no
colégio dos jesuítas em Miraflores del Palo (Málaga), onde perma-
nece até 1897. Inicia seus estudos universitários em direito e filosofia
na Universidad de Deusto (1897), também dirigida pelos jesuítas,
7
Para uma informação ampla e detalhada, são de grande interesse duas obras do seu
conhecido discípulo, Julián Marías: Ortega: circunstancias y vocación (Madri: Revista de
Occidente, 1973); e Ortega: las trayectorias, (Madri: Alianza Universidad, 1984). Outra
fonte inestimável é o testemunho de sua filha, María Ortega, Ortega y Gasset, mi Padre
(Barcelona, Planeta).
8
Uma visão geral dessas influências encontra-se em S. Rábade, Ortega y Gasset,
Filósofo. Hombre, Conocimiento y Razón (Madri, Humanitas, 1983, p. 37-49). A obra de
Pedro Cerezo, já citada, oferece um estudo mais detalhado, sendo de especial interesse
os capítulos IV e VI.
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COLEÇÃO EDUCADORES
prosseguindo depois na Universidade Central de Madri, onde se
forma em filosofia (1902) e obtém o doutorado (1904) com a tese
“Los terrores del año mil: crítica de una leyenda”. Faz críticas ao estilo e
conteúdo negativistas da educação jesuítica, à intolerância desses re-
ligiosos e, sobretudo, aos seus limitados conhecimentos e incompe-
tência intelectual
9
. Também foram decepcionantes as experiências
universitárias de Ortega em Madri. Qualifica como medíocre o en-
sino que recebeu ali
10
. Com ou sem fundamento, Ortega descreve
de modo negativo o panorama da educação que obteve.
Para compreender a função educadora de Ortega, convém
considerar, além das circunstâncias familiares e escolares, a atmos-
fera psicológica da sociedade espanhola naquele momento, pois
ele se sente como participante de uma geração “que despertou
intelectualmente no terrível ano e 1898, e que, desde então, não
presenciou sequer uma hora de satisfação, nem um dia de glória
ou plenitude”
11
. De fato, 1898 é uma data-chave. Pelo tratado de
paz de Paris, a Espanha renuncia a seus direitos de soberania sobre
Cuba que, mais tarde, tornar-se-á Estado livre, e cede Porto Rico,
as Filipinas e a ilha de Guam aos Estados Unidos. A perda das
colônias enche os espanhóis de tristeza, angústia e pessimismo. A
atividade intelectual hispânica centra-se no chamado “problema
da Espanha”, que engloba, na verdade, uma série de problemas.
Esses problemas são analisados e os valores históricos submetidos
à mais severa crítica. Cada autor, seja qual for seu campo de ativi-
dade, procura, segundo suas características e seu temperamento, a
explicação do “caso Espanha” e as causas da decadência.
É nesse período crítico que se desenvolve um movimento cien-
tífico, artístico e filosófico que valerá à Espanha uma notoriedade
9
Al Margen del Libro “A.M.D.G.”, v.1, pp. 532-534.
10
Una Fiesta de Paz, v.1, p.125.
11
Vieja y Nueva Política, v.1, p.268.
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ORTEGA Y GASSET
mundial que ela não experimentava desde o século XVI
12
. Seria
impossível enumerar aqui tantos nomes proeminentes, mas pode-
mos afirmar que a Espanha de hoje começa com a geração de
1898, inovadora em todos os aspectos, especialmente no que tan-
ge uma nova maneira de apreender a realidade nacional e as ques-
tões intelectuais. Ortega partilha com essa geração a dor e a amar-
gura relacionadas ao que ele considera a prostração espanhola. Ao
lado dessa geração, procura fazer um diagnóstico, quer ver com
clareza as causas do que ocorre na cultura, na educação, na política
e na ciência espanholas. Contudo, se essa geração canta liricamente
seu pesar e volta o olhar para a grandeza do passado, Ortega a
ultrapassa, na medida em que afirma a esperança, a ação, o com-
promisso de transformar a dolorosa realidade espanhola. Seus olhos
não se voltam para o passado, mas para o futuro, tal como esse
futuro é vislumbrado na Europa. Eis, ao que parece, a raiz do seu
amor-ódio pelo mais típico representante da geração de 1898,
Miguel de Unamuno. Ortega também se distancia dessa geração
em razão de sua atividade, mais teórica do que literária. E onde
Ortega forjou seu arsenal teórico? Essa pergunta nos leva ao quar-
to e último aspecto de sua biografia.
“Fugindo à mediocridade da minha pátria”
13
, conforme suas
próprias palavras, Ortega decide, em 1905, procurar as universida-
des alemãs, começando pela Universidade de Leipzig, onde estuda
Kant: “Ali, tive a primeira e desesperada luta corpo a corpo com a
crítica da razão pura, que tantas dificuldades oferece a uma cabeça
latina”
14
; no ano seguinte, visita Nuremberg e estuda durante seis
meses em Berlim, onde conhece Georg Simmel, professor que exerce
certa influência sobre ele. Sua experiência mais importante, porém,
12
Ch. Cascalés, L’humanisme d’Ortega y Gasset, Paris: Presses Universitaires de France,
1957, p.3.
13
Una Primera Vista sobre Baroja, v. 2, p.118.
14
Prólogo para Alemanes, v. 8, p.26.
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COLEÇÃO EDUCADORES
deu-se na terceira etapa de sua estada na Alemanha, em Marburg.
Foi lá, pela primeira vez, que teve dois importantes mestres, Hermann
Cohen e Paul Natorp, conhecidos representantes do neokantismo.
Marburg marcaria Ortega profundamente, não só do ponto de vis-
ta intelectual, não só com relação à sua formação filosófica e peda-
gógica, mas também como ser humano.
Para o tema que nos ocupa – Ortega como educador –, é
especialmente significativa a influência de Natorp. Durante sua
permanência em vários países europeus, Ortega obtém excelente
formação filosófica, entusiasma-se com o desenvolvimento cien-
tífico e técnico em curso e admira a tenacidade e a disciplina, par-
ticularmente dos alemães. Seu europeísmo nasce de uma atitude
interessada e crítica para incorporar o que possa ser incorporado,
sem renunciar às características hispânicas. Regressando de Marburg,
em 1908, é nomeado professor de lógica, psicologia e ética na
Escola Superior de Magistério e, em 1910, ganha, em concurso, a
cátedra de Metafísica na Universidade Central de Madri.
Os contextos descritos são, a meu ver, as principais circunstân-
cias nas quais Ortega teve de viver e com as quais precisou lidar. É
disso que se constituem sua vida, sua biografia verdadeira e con-
creta, em outras palavras, suas convicções quando escreveu sua
primeira obra pedagógica, em 1910. Contudo, o pensamento de
Ortega continuará evoluindo no contexto das circunstâncias que
terá de viver, segundo ele mesmo nos lembrará, em 1932, aludin-
do ao que escrevera nas Meditações do Quixote (1914):
Eu sou eu e minha circunstância. Essa frase, que surge em meu
primeiro livro e que, em última instância, condensa meu pensamen-
to filosófico, não significa apenas a doutrina que minha obra expõe e
propõe; minha própria obra ilustra essa doutrina. Minha obra é, por
essência e presença, circunstancial
15
.
15
A una Edición de Sus Obras, v. 6, p. 347.
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ORTEGA Y GASSET
A interpretação que Ortega faz de sua própria filosofia impe-
de que a consideremos um sistema, menos ainda um sistema fe-
chado. O pensamento de Ortega, focado no problema da Espanha,
possui o dinamismo de uma busca incessante de soluções, tanto
no nível da reflexão teórica como no das estratégias de ação, o que
exigiu dos especialistas notáveis esforços para estabelecer as dife-
rentes etapas dessa evolução
16
. O desenvolvimento de seu pensa-
mento manifesta-se nos escritos pedagógicos. Mais ainda, consi-
dero que três deles são uma representação genuína de cada uma
das fases do seu percurso intelectual. Sobre esses escritos concen-
traremos agora nossa atenção.
A pedagogia idealista
Em Marburg, Alemanha, Ortega entrou em contato com o
neokantismo, uma filosofia da cultura, da ordem objetiva e dos va-
lores; um racionalismo crítico-transcendental que analisava os pro-
dutos da cultura moderna, a ciência, a arte, o direito, a ética, a polí-
tica, para descobrir seus princípios de fundamentação e os critérios
de sua validade. Além disso, o neokantismo representava uma
pedagogia vigorosa, capaz de orientar o homem, de transformá-
-lo segundo um ideal que não era outro senão o ideal kantiano
de uma humanidade cosmopolita.
Segundo a concepção neokantiana do homem como realidade
cultural, o verdadeiro crescimento pessoal está na adaptação do
homem aos ideais; no ajuste dos comportamentos às normas, ao
que deve ser feito; normas que, por sua vez, têm validade universal.
O biológico, o instintivo devem submeter-se ao superior, ao ideal.
16
José Ferrater Mora distingue três etapas: objetivismo (1902-1914); perspectivismo (1914-
1923); raciovitalismo (1924-1955). José Gaos, seu principal discípulo antes da Guerra Civil
Espanhola, determina quatro períodos: juventude (1902-1914); primera etapa da plenitude
(1914-1923); segunda etapa da plenitude (1924-1936); e desterro (1936-1955). Classifica-
ções similares foram propostas por Morón Arroyo e Pedro Cerezo, entre outros.
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COLEÇÃO EDUCADORES
A liberdade não é espontaneidade, não é apetite, não é capricho,
mas reflexão e educação, isto é, respeito ativo aos valores universais.
Essa filosofia da cultura e da educação, que promove a busca
do objetivo, do universal, do genérico, parece ao jovem Ortega o
sistema de pensamento capaz de orientar a solução do problema
da Espanha. Em contraste com a cultura alemã, na Espanha pre-
dominam o espontâneo, o subjetivo, os particularismos e sectaris-
mos que levaram ao desperdício de energias em confrontos inter-
nos, em gestos solitários e na destruição por uns do que outros
fizeram; daí a lamentável situação espanhola. Desse contato com a
Europa, em particular com o neokantismo alemão, Ortega adqui-
re a convicção de que a salvação da Espanha, sua recuperação
histórica, reside em sua reforma cultural.
Pertence a essa fase do seu pensamento a primeira formula-
ção estruturada sobre a educação. Trata-se de uma conferência
realizada em Bilbao em 12 de março de 1910 – La Pedagogía
Social como Programa Político
17
. A conferência inicia-se com a
explanação das profundas deficiências da situação espanhola que
já se arrastava havia três séculos e cuja evidência maior era o fato
de a Espanha não constituir uma verdadeira nação. Para o neo-
kantiano Ortega daquela época, a Espanha não é uma nação por-
que não existe como comunidade regulada por leis objetivas, fun-
damentadas na racionalidade, aceitas por todos, expressão dos
deveres coletivos. A Espanha não é uma nação porque seus cida-
dãos não aspiram à realização dos ideais objetivos da ciência, da
arte, da moral, nos quais uma comunidade humana encontra a
plenitude de seu desenvolvimento.
Ao contrário, a Espanha é o país do individualismo, do
subjetivismo, onde, de maneira peculiar, cada um faz o que quer,
sem se submeter a norma alguma que não seja o livre-arbítrio.
17
La Pedagogía Social como Programa Político, v. 1, pp. 503-521.
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Reconhecer a ausência de cultura como realização coletiva de for-
mas ideais, na vida espanhola, é o primeiro passo para solucionar
o problema da Espanha. Esse reconhecimento, pensa nosso autor,
não é pessimismo, mas um diagnóstico verdadeiro que mostra a
diferença entre o que é e o que deve ser. Assumir conscientemente
a realidade da situação espanhola é certamente doloroso, mas nos
incita a pensar também em como as coisas deveriam ser e nos
insta a atingir essa realidade.
A argumentação de Ortega é apaixonada, mas rigorosa: há
uma realidade problemática – a Espanha – deficitária com relação
ao que se entende por cultura, na Europa, ao que deve ser, à sua
culturalização tal como se dá na Europa e segundo a formulação
neokantiana. Desde isso, a própria conscientização dessa situação
problemática, o aprofundamento desse diagnóstico, permitirão
vislumbrar igualmente a meta ideal que é necessário atingir e o
processo para que seja atingida. A meta é a transformação da rea-
lidade espanhola no sentido de alcançar as formas de cultura exis-
tentes na Europa.
No processo para atingir essa transformação cultural, Ortega
vê a importância da educação. Observa que o que os latinos cha-
mavam eductio ou educatio era a ação de extrair uma coisa de outra,
ou a ação de converter uma coisa menos boa em outra melhor.
Embora não se detenha em precisões terminológicas, propõe um
conceito de educação que parece ter suas raízes na educatio e que,
em nossos dias, é aceito em sua essência; entende por educação o
conjunto de ações humanas que tendem a fazer evoluir a realidade
existente para um ideal.
Estabelecido o conceito de educação, Ortega procura deter-
minar as funções da pedagogia como ciência da educação, atribu-
indo-lhe claramente duas: a determinação científica do ideal, da
finalidade da educação, e uma segunda função, essencial, de en-
contrar os meios intelectuais, morais e estéticos, mediante os quais
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se consiga polarizar o educando na direção daquele ideal. Uma
vez que, pela educação, transformaremos o homem real, o que
“é”, no sentido do ideal, no que “deve ser”, a primeira tarefa con-
siste em responder à seguinte pergunta: “qual o ideal de homem
que constitui o objetivo da educação, a exigir o emprego de deter-
minados meios?”. Essa é a indagação central de sua conferência.
O homem, responde Ortega, não é mero organismo biológi-
co; o biológico é somente um pretexto para o homem existir. O
homem é humano enquanto produtor de fatos segundo formas
ideais; enquanto produtor da matemática, da arte, da moral, do
direito; o homem é humano enquanto produtor de cultura. Em
sua busca do objetivo da educação, do ideal-homem, Ortega afir-
ma que o verdadeiro homem não é o ser individual, isolado dos
outros. Distingue em cada homem um “eu” empírico, com seus
caprichos, amores, ódios e apetites próprios, singulares; e um “eu”
que pensa a verdade comum a todos, a bondade geral, a universal
beleza, isto é, distingue um “eu” empírico de um “eu” criador de
cultura que é um “eu” genérico. A ciência, a moral, a arte etc. são
os fatos especificamente humanos e, portanto, uma pessoa é ver-
dadeiramente humana na medida em que participa da ciência, da
moral e da arte de uma comunidade. O ideal de homem, meta da
educação, é o homem produtor de cultura, e produtor de cultura
com os outros.
Se esse é o ideal de homem, a educação tem de dirigir-se não
ao “eu” empírico, em que radica o singular, mas ao “eu” genérico
que sente, pensa e quer, segundo aquelas formas ideais. Como
consequência desse raciocínio, a educação deve ser o processo pelo
qual o biológico ou natural do homem se ajusta ao reino das for-
mas ideais e, assim, atua de acordo com as normas delas deriva-
das. Nessa primeira etapa, diante do binômio cultura-vida, o pen-
samento educativo de Ortega, influenciado por seus professores
neo-kantianos, inclina-se claramente para o lado da cultura. No
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entanto, nosso pensador tem uma forte personalidade intelectual e
interesses sociopolíticos que, dificilmente, compatibilizam-se com
o formalismo de seus mestres de Marburg. Na minha opinião,
vale a pena fazer, nesse texto, algumas considerações sobre certas
particularidades de Ortega.
Em primeiro lugar, ao mesmo tempo em que ele concebe o
homem como ser social, ele lhe confere uma visão histórica. Ao
ressaltar que, da natureza social do homem, o pedagogo, na rela-
ção educacional, encontra-se diante de um tecido social, não dian-
te de um indivíduo, Ortega afirma:
No presente, o passado se condensa, íntegro; nada do que foi se
perdeu; se as veias dos que morreram estão vazias, é porque seu
sangue veio fluir no leito jovem de nossas veias
18
.
Essa imagem literária denota uma visão do homem segundo a
qual a experiência singular de uns e de outros se faz presente na
configuração concreta de algumas pessoas, que não são a humani-
dade em geral. A evolução ulterior do pensamento antropológico
de Ortega y Gasset será marcada pela intensificação da concepção
do homem como um ser que vai se fazendo de modo concreto,
em seu devir biográfico.
A segunda particularidade presente na obra que comentamos
aqui reside na importância conferida por Ortega à produção de
fatos culturais. No meu entender, pode-se afirmar que há, em sua
argumentação, uma obsessão pela práxis. Ortega está especialmen-
te interessado no processo de construção da cultura como real e
concreta produção de objetos. Para ele, a cultura é trabalho, pro-
dução de coisas humanas, tarefa a realizar.
Quando falamos de maior ou menor cultura, queremos dizer maior
ou menor capacidade de produzir coisas, de trabalho. As coisas, os
produtos são a medida e o sintoma da cultura
19
.
18
Ib., p.514.
19
Ib.., p.516.
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Daí sua proposta de uma educação para o trabalho e pelo tra-
balho; e não um trabalho individual, mas em comum. Essa concep-
ção, de acordo com sua visão teórica, permite também superar os
individualismos, as lutas fratricidas e a falta de cooperação entre os
espanhóis. Para um autor argentino,
20
sua ideia de educação para o
trabalho e pelo trabalho situa Ortega entre os promotores da edu-
cação ativa. Na nossa perspectiva de análise, acredito que a preocu-
pação fundamental de Ortega, para quem o problema da Espanha
é primordial, é garantir a transformação cultural de sua sociedade e
penso que ele concebe a pedagogia como a ciência dessa reconstru-
ção social e cultural. E se lhe disserem que isso é política, Ortega
responde: “A política tornou-se para nós pedagogia social, e o pro-
blema espanhol, um problema pedagógico”
21
.
Os pressupostos que analisamos aqui constituem uma filoso-
fia da educação centrada na realização cultural do homem enquan-
to membro do todo social. A ação política reduz-se, em última
instância, a uma ação cultural, a uma pedagogia social, porque, na
vida social, na cooperação e na comunicação, o homem se realiza
em sua condição cultural. Nesse primeiro momento, Ortega con-
sidera que a solução do problema da Espanha está em sua refor-
ma cultural mediante a educação.
Partindo desse posicionamento, do compromisso intelectual que
assume com relação à transformação da sociedade espanhola, Ortega
chegará, numa outra etapa, à convicção de que só haverá salvação
para a Espanha se for possível contar com suas energias e possibili-
dades, com suas idiossincrasias e sua situação histórica. O Ortega
neo-kantiano preconizava um homem produtor de cultura, realiza-
dor de formas ideais; um indivíduo humano empenhado na cons-
trução de uma cultura válida para toda a humanidade. Ortega vai
20
MANTOVANI, 1962, p.61.
21
La Pedagogía Social como Programa Político, op. cit. p.515.
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descobrindo que um indivíduo assim é uma abstração e que o
racionalismo – uma forma de idealismo – esquece o homem real e
concreto que vive numa situação real e concreta. É necessário voltar
os olhos para esse homem, a fim de que ele se mostre em sua radical
realidade. É necessário superar a estreita visão do racionalismo. É
necessário um novo modo de abordar o conhecimento do homem;
o encontro de Ortega com a fenomenologia o ajudará em seu novo
itinerário intelectual. A partir de 1911, cresce sua insatisfação com a
concepção do homem como ser cultural e esse distanciamento sur-
ge, claramente, nas páginas escritas em 1914.
A pedagogia vitalista
Voltar os olhos para o homem mesmo, para seu ser real e
concreto, mostra a Ortega que o ser do homem consiste em viver.
A vida é a realidade radical da qual é preciso partir e com a qual se
deve contar. Essa convicção, que lhe impede de considerar a cultu-
ra como esfera autônoma e independente, torna-se pouco a pou-
co uma das chaves do seu pensamento filosófico, como nos re-
cordará em sua maturidade:
A primeira coisa que a filosofia deve fazer é definir esse dado, definir
o que é minha vida, nossa vida, a vida de cada um. Viver é o modo de
ser radical: qualquer outra coisa e modo de ser está em minha vida,
dentro dela, como pormenor dela e a ela referida
22
.
Na tensão vida-cultura, esta última perde a primazia que havia
adquirido durante a fase idealista de Ortega e é, de agora em diante,
considerada como manifestação da vida. A cultura consistirá em
viver a vida em sua plenitude.
Se a cultura consiste em viver plenamente, então a vida, conce-
bida como elementar, deve ser considerada como o princípio da
cultura. O aprofundamento de sua reflexão levará Ortega à inter-
pretação da vida como criatividade. A mudança de rumo, na filo-
22
¿Qué es Filosofía?, v. 7, p.405.
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sofia orteguiana, do idealismo para o vitalismo, obviamente não é
alheio às influências de suas leituras filosóficas, que não cabe anali-
sar nesse momento. Mas tal mudança deve-se, fundamentalmente,
à sua reflexão sobre a situação espanhola.
Ortega, que postulara para a reforma sociopolítica da Espanha
sua culturalização, de acordo com o modelo europeu, percebe
que, para salvar a Espanha, precisa contar com as energias que nela
existem; ao voltar os olhos para a realidade do seu país, depara
com o fato de que suas características e peculiaridades estão na
afirmação vigorosa da vida imediata e elementar. Nessa fase da
evolução do seu pensamento, Ortega escreve o ensaio Biología y
pedagogía
23
, no qual expõe suas ideias sobre a educação a propósito
da polêmica suscitada por uma lei que prescrevia a leitura de Dom
Quixote na escola primária. Ortega assume uma premissa funda-
mental: é preciso educar para a vida e, como não se pode ensinar
tudo, é necessário delimitar aquilo a que a educação deve circuns-
crever-se prioritariamente.
Sua concepção teleológica da ação, que aparece em sua etapa
idealista e que ele nunca abandonará, leva-o a interrogar-se sobre a
natureza da finalidade da educação. Se partimos do princípio de
que é necessário educar para a vida, qual é a vida essencial com a
qual a educação deve preocupar-se? O êxito da educação depen-
derá da resposta, certa ou errada, a essa pergunta. Ortega conside-
ra que a vida, em seu sentido mais radical, é a vida elementar,
espontânea, que ele chama a natura naturans e não a natura naturata.
Ela é a vida como força criadora, como substrato biológico do
qual procedem todos os impulsos e energias que fazem o homem
agir. É a essa vida que deve prestar atenção, prioritariamente, a
educação primária; depois, nos níveis superiores, será a hora de
educar tendo em vista a civilização e a cultura, especializando a
alma do adulto.
23
Ensayos Filosóficos. Biología y pedagogía, v. 2, pp. 271-305.
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Nosso autor lança mão de diversos argumentos para defender
sua tese. O primeiro é que nos organismos biológicos há funções
mais vitais do que outras. As mais radicalmente vitais são as não
especializadas, as não mecânicas e, por isso, as que representam a vida
genuinamente; por sua falta de especialização, podem dar respostas a
situações plurais, diversas e cambiantes; podem resolver não só uma
tipologia de situações, mas situações das mais variadas tipologias.
O segundo argumento é que essa vida original, radical, é real-
mente a criadora de cultura. “A cultura e a civilização, de que tanto
nos envaidecemos, são uma criação do homem selvagem e não
do homem culto e civilizado”
24
. Todas as grandes épocas de cria-
ção foram precedidas de uma explosão de selvageria. Se quere-
mos ter uma cultura dinâmica, que reflita realmente a plenitude
humana, é preciso centrar-nos no estudo, na análise e potenciação
dessa vitalidade primária que, pela explosão de si mesma, há de
gerar novas formas de cultura.
E, aqui, a pedagogia desempenha seu papel, uma vez que a
proposta de Ortega, como ele próprio admite, está muito longe
do naturalismo de Rousseau. A pedagogia deve procurar os mei-
os de intensificar essa vida, e a educação consiste em aplicá-los.
Não é preciso deixar a criança desenvolver-se totalmente livre, a
exemplo dos processos da natureza. As ações educativas são in-
tencionais, reflexivas e perseguem uma meta: cooperar tecnica-
mente para a maximização do potencial vital mais profundo das
crianças. É preciso orientar a educação, não para a aquisição de
formas culturais, mas para que a própria vida seja apropriada,
para que o próprio poder vital cresça.
Quais funções espontâneas convêm reforçar? Ortega atreve-
se a enumerá-las: “a coragem e a curiosidade, o amor e o ódio, a
agilidade intelectual, o desejo de ser feliz e vencer, a confiança em
24
Ib., p.280.
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27
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si mesmo e no mundo, a imaginação, a memória”.
25
Tais funções
são como as secreções internas que aumentam a atividade do or-
ganismo como um todo; quando alguma delas falha, o organismo
não funciona. São para a psique o que os hormônios são para o
corpo: substâncias fundamentais, estimulantes.
Ortega defende que a educação fundamental garanta a saúde
vital, pressuposto de qualquer outra forma de saúde: “O ensino
elementar deve governar-se pelo objetivo final de produzir o mai-
or número de homens vitalmente perfeitos”;
26
homens que sintam
sua atuação espiritual brotar de uma torrente plena de uma energia
alheia aos seus limites, aparentemente autossuficiente; homens cujas
ações são como o transbordamento de sua abundância interna.
Embora Ortega pareça defender um primitivismo naturalista,
não é o que faz, como o demonstram suas críticas a Rousseau.
Tampouco é favorável a algum tipo de irracionalismo anticulturalista.
Simplesmente revisou a importância que conferira antes à cultura
como o princípio e o sentido da vida humana. Agora, ao contrá-
rio, faz da cultura uma encarnação da vida, porquanto o sentido
da cultura está precisamente em ser uma função da vida. A vida
não está a serviço da cultura, mas a cultura está a serviço da vida.
O equilíbrio vida-cultura rompe-se em favor da vida. É a vida que
confere valor à cultura. Trata-se agora de autenticar e vivificar a
cultura, sendo a vida o critério dessa autenticação.
Além de realizar sugestiva exposição de duas funções básicas
dessa vida primigênia, o desejo e os sentimentos, Ortega procura
também indicar os procedimentos para a educação dessa vida es-
sencial. Para intensificar seu impulso vital, a criança deve ser envolvi-
da numa atmosfera de sentimentos audazes e magnânimos, ambici-
osos e estimulantes. Um meio pedagógico relevante consiste em
apresentar-lhe, mais do que os fatos, os mitos. Segundo Ortega, os
25
Ibid., p.278.
26
Ibid., p.292.
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28
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mitos suscitam em nós as correntezas induzidas dos sentimentos que
alimentam o impulso vital, mantêm à tona nosso desejo de viver e
aumentam a tensão dos nossos mais profundos recursos biológicos.
Outro procedimento recomendado por Ortega é o de educar
as crianças, não como adultos, mas como crianças. Não se trata de
partir de um ideal exemplar de homem, mas de um modelo de
infância. Critica o modo como avaliamos as crianças segundo nos-
sos critérios de adultos, pressupondo que elas se encontrem inseridas
no mesmo meio vital em que estamos. A criança tem seu próprio
ambiente vital de interesses, não utilitários, a serem desenvolvidos.
Aliás, é precisamente desse desenvolvimento que, com frequência,
nascem as mais ricas orientações vitais do futuro adulto. Assim,
o canto do poeta e a palavra do sábio, a ambição do político e os
feitos do guerreiro são sempre ecos de um incorrigível menino preso
dentro do adulto.
27
Os objetos que, para a criança, existem de modo vital, ocupam-
na e preocupam-na, prendem sua atenção, desencadeiam seus dese-
jos, suas paixões e seus movimentos, não são objetos materiais quais-
quer, mas objetos que, reais ou não, são desejáveis em si mesmos.
Por isso a criança se interessa tanto por histórias e fábulas. Nelas,
purifica os aspectos da realidade para converter essa realidade numa
paisagem que reflita seus desejos.
A postura definitiva e madura de Ortega não é essa, que aca-
bamos de expor, mas a que ele adota a partir de 1930, quando
busca um equilíbrio entre vida e cultura. Uma espontaneidade vi-
tal, exterior às instituições, degenera em primitivismo irresponsá-
vel, e instituições sem vitalidade degeneram em rotina e inércia.
Pedagogia da maturidade
Em seu artigo Un Rasgo de la Vida Alemana,
28
Ortega nos diz
que o indivíduo dispõe de possibilidades ilimitadas para ser uma
27
Ibid., p.300.
28
Un Rasgo de la Vida Alemana, vol.5, pp. 199-203.
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personalidade ou outra. Contudo, quando observamos mais de
perto o homem concreto, notamos que suas verdadeiras possibili-
dades são limitadas, são aquelas que provêm do contexto em que
vive, um contexto cultural e social concreto, depositário do que
outros realizaram antes dele. A cultura e os objetos culturais surgi-
ram sempre como ações individuais, porém, convertendo-se em
objetos, perdem essa condição de realidades individuais e adqui-
rem vida própria. As possibilidades reais de um indivíduo são,
portanto, as que lhe ofereceram as instituições externas e que se lhe
impõem, constrangendo-o e limitando-o, mas que, por outro lado,
tornam possível a existência de novos indivíduos.
A vida, como liberdade, encontra-se constantemente ameaçada
por aquilo mesmo que a torna possível: a cultura. Por isso, deve
voltar-se contra a cultura, desconfiar dela, mesmo se ela constituir
precisamente o fundamento de sua segurança.
Deve criticá-la e transcendê-la ininterruptamente, não no senti-
do da natureza, mas de novas configurações culturais.
Por isso, em suas aulas inaugurais na universidade, Ortega insistia
com os alunos que deviam partir da cultura com a qual tinham con-
tato, atuando como criadores de cultura, esforçando-se em realizar
uma análise crítica dos elementos culturais, a fim de verificar se eram
satisfatórios ou se, pelo contrário, sentiam eles a necessidade vital de
modificá-los. Nisso consiste viver verdadeiramente, viver na cultura
do seu próprio tempo.
29
Só podemos afirmar que deparamos com
uma verdade, quando encontramos um pensamento que satisfaz
uma necessidade sentida por nós. Se o estudante sente unicamente a
necessidade de aprender o que os outros descobriram, não sentirá
nem prazer nem paixão, pois seu ponto de partida é uma necessida-
de imposta, artificial, diferente da necessidade dos seres humanos
que criaram um novo conhecimento em nome de uma necessidade
vital. Daí o interessante conceito de ensino de Ortega:
29
Sobre las Carreras, vol.5, p.179.
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30
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Ensinar é, primária e fundamentalmente, mostrar a necessidade de
uma ciência, e não ensinar a ciência cuja necessidade seja impossível
fazer com que o estudante sinta.
30
É necessário, portanto, promover instituições educacionais di-
namizadas pela inquietação de encontrar as respostas a problemas
vitais experimentados pelos alunos, nas quais a liberdade, a demo-
cracia e a modernidade sejam as orientações básicas. Essas institui-
ções são propostas num dos seus escritos mais conhecidos, Mis-
são da universidade,
31
no qual faz, em primeiro lugar, um diagnós-
tico da universidade espanhola. O que é a universidade atualmen-
te? Sua resposta é: um centro de ensino superior onde os filhos das
famílias com boa posição financeira, não as dos operários, são
preparados para exercer as profissões intelectuais. Um centro, pros-
segue Ortega, cujos professores estão obcecados pela pesquisa ci-
entífica e pela formação de futuros pesquisadores.
Ortega critica essa universidade elitista, que não recebe todos
os que poderiam e deveriam chegar ao ensino superior. Critica o
seu limitado critério de pesquisa, uma vez que confunde o ensino e
a aprendizagem da ciência com a descoberta da verdade ou a
demonstração do erro. Critica, sobretudo, o modo como essa
universidade abandonou o ensino da cultura, deixando de trans-
mitir ideias claras e precisas sobre o universo, convicções positivas
sobre o que são as coisas e o que é o mundo. Em outras palavras,
critica uma instituição que não ensina a viver de acordo com as
ideias mais avançadas do seu tempo.
Mas qual a missão da universidade do nosso tempo? Ortega
responde: transmitir a cultura, ensinar as profissões, realizar a pes-
quisa científica e formar novos pesquisadores. Assim formulada, a
missão da universidade segundo Ortega parece trazer pouca novi-
dade. No entanto, quando se pergunta sobre o critério de priori-
30
Sobre el Estudiar y el Estudiante, vol.4, p.554.
31
Misión de la Universidad, vol.4, pp. 311-353.
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dade que deve existir entre aquelas funções, a atualidade e o rigor
de sua resposta chamam, ainda hoje, nossa atenção. De fato, está
em jogo aqui a finalidade da universidade. Diz Ortega:
Em vez de ensinar o que, segundo um desejo utópico, deveria ensi-
nar-se, é preciso ensinar apenas o que se pode ensinar, ou seja, o que
se pode aprender.
32
A inovação pedagógica de Rousseau, Pestalozzi e Fröbel reside
em que a prioridade não está no saber ou no mestre; a prioridade
deve estar no aluno, e no “aluno médio”.
Ortega afirma que o princípio regulador do ensino universitá-
rio deve ser o “princípio da economia”. Se a pedagogia e as ativi-
dades docentes tornaram-se uma profissão indispensável a partir
do século XVIII, foi graças ao grande desenvolvimento da ciência,
da tecnologia e da cultura. Atualmente, para viver com segurança e
conforto, o homem precisa aprender uma quantidade imensa de
coisas e, ao mesmo tempo, possui capacidade individual extrema-
mente limitada para aprender. A pedagogia e o ensino têm como
razão de ser a necessidade de selecionar o que é fundamental na
aprendizagem e facilitá-la.
O ponto de partida deve ser o estudante, sua capacidade de
aprender e suas necessidades para viver. E é preciso partir do estu-
dante médio, transmitindo-lhe exclusivamente os conhecimentos in-
dispensáveis. Em outros termos, convém ensinar o que se requer
para viver à altura do seu tempo, e o que ele possa aprender com
facilidade e plenitude. Nessa linha de raciocínio, Ortega estabelece as
seguintes diretrizes:
A universidade consiste, antes de mais nada, no ensino que o ho-
mem médio deve receber; é preciso fazer do homem médio um
homem culto, situando-o à altura do seu tempo...; fazer do homem
médio bom profissional...; não há nenhuma razão suficiente para
que o homem médio deva ser um cientista.
33
32
Ibid., p.327.
33
Ibid., p.335.
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32
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O ponto no qual Ortega insiste é que a universidade deve ensi-
nar cultura, entendendo por cultura o sistema de ideias vivas que
cada época possui:
Essas, que chamo de ideias vivas ou de que se vive, são, nem mais
nem menos, o repertório de nossas efetivas convicções sobre o que é
o mundo e o que são nossos semelhantes, sobre a hierarquia dos
valores que as coisas e as ações têm: ora mais valiosas, ora menos.
34
O ser humano não pode viver sem reagir ao seu ambiente ou
ao mundo a sua volta, criando uma interpretação intelectual deste
último e de sua possível conduta no mundo. Essa interpretação cons-
titui o repertório de convicções ou ideias sobre o universo e sobre si
mesmo, que a universidade deve ensinar.
É certo que, em nossa época, o conteúdo da cultura, na sua
maior parte, provém da ciência; a cultura extrai da ciência o vital-
mente necessário para interpretar nossa existência, mas há parcelas
inteiras da ciência que não são cultura, mas pura técnica científica.
O ser humano precisa viver, e a cultura é a interpretação dessa
vida; e a vida, que é o homem, não pode aguardar que as ciências
expliquem tudo cientificamente. O homem, para viver sua vida,
que é urgência, necessita da cultura como um sistema completo,
integral e claramente estruturado do universo. E tal cultura deve
ser a do seu tempo. Ensinar essa cultura na universidade requer
professores com grande capacidade de síntese e de sistematização.
Em suma, e lançando mão das próprias palavras de Ortega,
assim está delimitada a missão fundamental da universidade:
Primeiro, entender-se-á por universidade, stricto sensu, a instituição
onde se ensina ao estudante médio a ser um homem culto e bom
profissional; segundo, a universidade não admitirá qualquer impos-
tura em seus usos, isto é, só pretenderá que o estudante aprende
aquilo que lhe pode ser exigido; terceiro, evitar-se-á, por conseguinte,
que o estudante médio perca parte de seu tempo fingindo que vai ser
cientista. Para esse fim, será eliminado do centro da estrutura univer-
34
Ibid., p.341.
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33
COLEÇÃO EDUCADORES
sitária a pesquisa científica propriamente dita; quarto, as disciplinas
de cultura e os estudos profissionalizantes serão oferecidos pedago-
gicamente racionalizados – de uma maneira sintética, sistemática e
completa –, não da forma que a ciência abandonada a si mesma
preferiria: problemas especiais, “fragmentos” de ciência, ensaios de
pesquisa; quinto, o lugar que o candidato ocupa, na condição de
pesquisador, não influirá na eleição do professorado, mas sim seu
talento sintético e suas qualidades como professor; sexto, a universi-
dade será inexorável em suas exigências para com o estudante, se o
rendimento de sua aprendizagem for reduzido ao minimum em
quantidade e qualidade.
35
Ortega tinha consciência (e deixava isso claro) de que suas opi-
niões sobre a pesquisa científica e a formação de cientistas seriam
julgadas de modo negativo. O que ele denuncia é o mito da pesquisa
científica e seu ensino no quadro dos estudos regulares. Para que não
tivéssemos dúvidas quanto à sua posição, escreveu: “A universidade
é diferente, porém inseparável da ciência. Eu diria: a universidade é,
aliás, ciência”.
36
A ciência é o pressuposto radical para a existência da
universidade. É dela que a universidade deve viver, pois a ciência é a
alma da universidade. Se deve estar relacionada à ciência, a univer-
sidade precisa também manter contato com a vida pública, com a
realidade histórica, com o presente. A universidade deve estar aberta
a toda a atualidade e participar dela enquanto tal, tratando os gran-
des temas do cotidiano do seu próprio ponto de vista cultural,
profissional ou científico. Então, conclui Ortega, a universidade
voltará a ser o que foi em seus melhores momentos: um dos prin-
cípios motores da história europeia.
A partir de 1936, o problema da Espanha, que tanto preocupou
Ortega, converte-se na tragédia da Guerra Civil Espanhola. Tem iní-
cio o exílio voluntário de Ortega na América e na Europa. Os próxi-
mos dezenove anos, até sua morte, são interpretados por alguns como
35
Ibid., p.349.
36
Ibid., p.351.
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ORTEGA Y GASSET
uma etapa diferente do restante de sua vida. Seja isso verdadeiro ou
não, o certo é que seu radical compromisso político parece enfraque-
cer-se perante as novas circunstâncias. Seu talento filosófico, contudo,
produz excelentes obras como Ideas y creencias (1940), La razón históri-
ca. 1ª parte (1940), La razón histórica. 2ª parte (1944), La idea de principio en
Leibniz (1947), El hombre y la gente (1949) etc. Ao longo desses anos,
produz apenas um texto pedagógico, Apuntes sobre una educación para el
futuro (1953), que escreveu para uma possível participação sua na reu-
nião organizada em Londres pelo Fundo para o Progresso da Edu-
cação. Na minha opinião, as contribuições desse texto para seu pen-
samento pedagógico são de escassa relevância.
Embora os escritos pedagógicos de Ortega sejam, a meu ver,
manifestação significativa do seu pensamento filosófico, não en-
contramos neles uma exposição sistemática; ser sistemático não
era mesmo característica do nosso autor. Seus textos dedicados à
educação são mais numerosos do que os mencionados nesse per-
fil. Acredito ter analisado os três mais importantes.
Ortega atual*
A análise do pensamento pedagógico de Ortega destaca duas
motivações básicas. A primeira, que condiciona e confere sentido
à sua obra como um todo, é a transformação da realidade socio-
cultural espanhola. A chamada “questão espanhola” atrairá cons-
tantemente sua atenção e o fará tomar iniciativas de todo tipo:
criação da Liga de Educación Política, da Agrupación al Servicio
de la República, constantes contribuições nos assuntos públicos
mediante conferências e artigos na imprensa, atividade parlamentar
como deputado etc. A segunda motivação, relacionada à anterior,
é a convicção de Ortega de ter por vocação reformar e modelar a
nova sociedade e o novo homem espanhol. Como se considera,
um filósofo, realiza sua vocação fundamentalmente na medida em
* No original o tópico se chama Dimensões de Ortega como educador. (Nota do editor)
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COLEÇÃO EDUCADORES
que oferece ideias propulsoras para tal transformação. A influên-
cia de Ortega como educador é múltipla.
37
No âmbito acadêmico,
é a personalidade mais influente da filosofia espanhola do seu tem-
po. Ao seu redor, sob o influxo de sua filosofia e personalidade,
constitui-se a chamada “Escuela de Madrid”. Manoel Bomfim,
García Morente, Xavier Zubiri e José Gaos são, com Ortega, os
titulares das cátedras de filosofia da universidade madrilena. Todo
estudioso da cultura hispânica conhece a importância desses no-
mes. Se a eles acrescentarmos os de Luis Recaséns, María Zambrano,
Joaquín Xirau e Julián Marías, todos de algum modo vinculados a
essa escola, podemos admitir que o pensamento de Ortega, consi-
derado por todos como mestre indiscutível, ocupa lugar privilegi-
ado na filosofia espanhola do século XX.
A influência orteguiana não se limitou aos professores e alu-
nos, que o tinham como mestre do tempo de esplendor da filoso-
fia incorporada pela “Escuela de Madrid”. Estendeu-se a outras
personalidades da filosofia e da cultura espanholas do pós-guerra,
como José Luis Aranguren e Pedro Laín Entralgo, entre outros, o
que nos permite dizer que sua filosofia pertence à tradição cultural
da Espanha.
No âmbito pedagógico, sua influência mais visível foi sobre
Lorenzo Luzuriaga, ligado a Ortega desde 1908, quando este ocu-
pava a cátedra da Escola Superior de Magistério de Madri. Pelos
dados disponíveis,
38
parece que os estudos pedagógicos da Uni-
versidade Central de Madri foram criados por iniciativa de Ortega
em 1932. Com relação aos programas de reforma educativa para
desenvolver a pedagogia como disciplina científica, lembremos
outro discípulo de Ortega, a quem já mencionamos, Joaquín Xirau,
que trabalhou na Catalunha. Uma discípula, María de Maeztu, se-
37
J. L. Abellán, Historia Crítica del Pensamiento Español, Madri, Espasa Calpe, 1991, v.
V (III), pp. 212-81.
38
Zuloaga, La Pedagogía Universitaria según Ortega y Gasset, in Homenaje a José Ortega
y Gasset (1883-1983), Madri, 1986, pp. 23-42.
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ORTEGA Y GASSET
gue os passos do mestre em Marburg e estuda pedagogia social
com Natorp. Ela viajou por toda a Europa para conhecer as “es-
colas novas”, o que mais tarde lhe serviria para criar na Espanha
um projeto de reforma dos métodos de ensino.
No contexto extrauniversitário, Ortega realiza o que Luzuriaga
chama de múltiplas “fundações”,
39
buscando claramente influenci-
ar a sociedade espanhola com novas ideias. Entre tais fundações
destaca-se a Revista de Occidente, que pode ser considerada o ponto
culminante de um processo durante o qual as tentativas e os fra-
cassos foram uma constante. Suas experiências anteriores, nas ati-
vidades culturais e políticas, fizeram-no conceber a Revista de Occidente
como plataforma de lançamento para a transformação cultural da
Espanha. Parece ter fundado essa revista e editora do mesmo nome
com o intuito de formar leitores que tivessem a perspectiva cultu-
ral que ele tinha e, em última análise, para criar uma atmosfera
cultural em que ele mesmo pudesse ser lido e discutido.
Enfim, é importante enfatizar a influência educacional que
Ortega exerceu nos países do Cone Sul (Argentina, Chile e Uru-
guai), onde ele encontra uma comunidade que compartilha de seus
mesmos valores e modos de sentir e onde seu prestígio se desen-
volveria graças à instalação, nessa região, de vários membros da
“Escuela de Madrid”, exilados por ocasião da Guerra Civil Espa-
nhola. Contudo, é em Porto Rico que sua influência parece maior:
a universidade colocou em prática alguns princípios expostos na
obra que comentamos, Missão da universidade. Muitos escritos de
Ortega foram ali utilizados como textos de estudo.
39
Luzuriaga, Las Fundaciones de Ortega y Gasset, in Homenaje a Jose Ortega y Gasset,
Madri, 1958, pp. 33-50.
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A reforma universitária (pp. 16-18)
A reforma universitária não pode reduzir-se nem fundamen-
tar-se, em primeiro lugar, na correção de abusos. Reformar é sem-
pre criar novos usos. Os abusos têm pouca importância, porque,
ou são abusos no sentido mais natural da palavra, casos isolados e
pouco frequentes de transgressão de boas práticas, ou são tão fre-
quentes, habituais, constantes e tolerados que nem sequer podem
ser chamados de abusos. No primeiro caso, serão corrigidos auto-
maticamente. No segundo, seria inútil tentar corrigi-los, uma vez
que sua frequência e sua espontaneidade indicam que não são anô-
malos, mas o resultado inevitável de maus usos, contra os quais,
sim, devemos lutar, e não contra os abusos.
Todo movimento de reforma limitada à correção dos abusos
grosseiros cometidos em nossa universidade desembocará certa-
mente numa reforma por igual grosseira.
O que importa são os usos. Mais ainda, um sinal claro de que
as práticas de uma instituição são corretas está em que possa su-
portar, sem sofrer grandes abalos, boa dose de abusos, tal como
o homem saudável que é capaz de suportar determinados exces-
sos que destruiriam uma pessoa doente. Por outro lado, porém,
40
Textos retirados do livro Misión de la Universidad y Otros Ensayos Afines, de 1930, em
sua quarta edição, de 1965, pela Revista de Occidente, Madri. Os trechos selecionados
foram traduzidos por Gabriel Perissé.
TEXTOS SELECIONADOS
40
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ORTEGA Y GASSET
uma instituição não pode fundamentar-se em bons usos se não
estiver devidamente orientada por sua missão.
Uma instituição é uma máquina. Sua estrutura e seu funciona-
mento devem estar predeterminados em vista do serviço que ela
prestará. Em outros termos, a base da reforma universitária con-
siste em ser plenamente fiel à sua missão. Toda mudança, aperfei-
çoamento ou retoque que se façam nessa casa, sem que se tenha
pensado com clareza enérgica, com determinação e veracidade no
problema de sua missão, serão trabalhos de amor perdidos.
Se assim não se fizer, todas as tentativas de melhoria, mesmo
aquelas que já se realizaram com a melhor das intenções, incluindo
os projetos elaborados pelo próprio Conselho Universitário ao
longo dos últimos anos, foram e serão sempre ineficazes e inúteis.
Não conseguirão atinar com o único elemento que, de modo su-
ficiente e imprescindível, faz com que um ser – individual ou cole-
tivo – exista em plenitude. Para que um ser atinga tal plenitude,
precisamos posicioná-lo em sua verdade, precisamos conceder-
lhe sua autenticidade, sem querer transformá-lo naquilo que ele
não é, falsificando arbitrariamente o seu destino inelutável.
Dentre as tentativas feitas nos últimos quinze anos, as melhores
– deixemos de lado as piores –, em lugar de abordar diretamente,
sem subterfúgios, a questão “para que existe a universidade, para
que está aí e por que deve estar?”, optaram pela atitude mais cô-
moda e estéril: olhar de esguelha para o que estava sendo feito nas
universidades de países que consideramos nossos modelos.
Não critico o fato de procurarmos informações nesses países.
Ao contrário, considero que devemos fazê-lo, mas sem que isso
nos exima de discernir e procurar originalmente nosso próprio
destino (...).
A missão da universidade (pp. 22-26)
Qual é a missão da universidade? Para investigar essa questão,
pensemos detidamente no que, de fato, a universidade significa
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COLEÇÃO EDUCADORES
hoje, dentro e fora da Espanha. Apesar das diferenças que haja
entre elas, todas as universidades europeias exibem, de modo ge-
ral, uma fisionomia homogênea.
Numa primeira aproximação, percebemos em vários países
que a universidade é a instituição na qual se encontram quase
todos aqueles que cursam o ensino superior. O “quase” refere-se
às escolas especiais, cuja existência, paralela à da universidade,
ensejaria um problema também paralelo. Feita essa ressalva, po-
demos descartar o “quase” e reconhecer que na universidade se
concentra a oferta de cursos de nível superior. Contudo, desco-
brimos agora uma limitação mais importante do que a das escolas
especiais. Os que estão no ensino superior não são todos aqueles
que poderiam e deveriam estar. Quem frequenta a universidade
são os jovens das classes abastadas. A universidade é um privilégio
dificil de justificar e defender.
A presença dos operários na universidade, por exemplo, é um
tema que permanece intacto. Por duas razões. Em primeiro lugar,
se é legítimo acreditar, como acredito, que devemos levar ao ope-
rário o saber universitário, é porque esse saber é valioso e desejá-
vel. O problema de universalizar a universidade supõe, portanto,
determinar previamente em que consistem o saber e o ensino uni-
versitários. Segunda razão: a tarefa de tornar a universidade acessí-
vel ao operário não é tanto um problema da universidade, mas é
quase totalmente uma questão de Estado. Apenas uma grande re-
forma do próprio Estado efetivará a reforma universitária. Daí o
fracasso de todas as tentativas realizadas até agora, como a “exten-
são universitária”.
O importante agora é enfatizar que todos os que estão no ensi-
no superior estão na universidade. Se no futuro esse número crescer,
mais forte ainda serão os argumentos que apresento a seguir.
Em que consiste esse ensino superior oferecido na universi-
dade para uma legião imensa de jovens? Em duas coisas: a) no
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ensino das profissões intelectuais; b) na pesquisa científica e na
formação de futuros pesquisadores.
A universidade forma o médico, o farmacêutico, o advogado,
o juiz, o tabelião, o economista, o administrador público, o pro-
fessor de ciências e letras para o ensino médio etc.
Além disso, a universidade cultiva a ciência, pesquisando e en-
sinando a pesquisar. Na Espanha, essa função criadora de ciência e
formadora de cientistas ainda está reduzida ao mínimo, mas não
por falha da universidade como tal ou por ela não acreditar que
seja essa sua missão, mas porque nós, espanhóis, estamos estigma-
tizados por uma notória falta de vocação científica e de qualidades
para a pesquisa. Se na Espanha a ciência fosse praticada em abun-
dância, essa prática se realizaria preferencialmente na universidade,
como costuma ocorrer em todos os países. Esse ponto serve de
exemplo para não repetirmos o tempo todo que o persistente atra-
so da Espanha em todas as atividades intelectuais faz com que ainda
estejam em estado embrionário ou na condição de mera tendência
realidades que, em outros lugares, alcançaram pleno desenvolvimento.
Para abordarmos de modo radical o problema universitário, tal
como estou começando a fazer agora, essas disparidades entre
universidades são irrelevantes. Basta-me o fato de que todas as
reformas dos últimos anos caracterizaram-se deliberadamente pelo
propósito de ampliar em nossas universidades a pesquisa científica
e a formação de cientistas, orientando a instituição inteira nesse
sentido. Não darei atenção às objeções corriqueiras ou às de má-
-fé. É notório que nossos melhores professores, os que mais influ-
enciam no processo das reformas universitárias, pensam que nossa
instituição deve equiparar-se nesse ponto ao que se vem realizando
em outros países. É o suficiente para mim.
O ensino superior consiste, portanto, em profissionalização e
pesquisa. Sem enfrentar, agora, o tema, observemos de passagem
a nossa surpresa ao ver juntas e fundidas duas atividades tão
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COLEÇÃO EDUCADORES
díspares. Porque, sem dúvida, ser advogado, juiz, médico, farma-
cêutico, professor de latim ou de história num colégio de ensino
médio são coisas bem diferentes do que ser jurista, fisiologista,
bioquímico, filólogo etc. Aqueles correspondem a profissões prá-
ticas, e estes a atividades puramente científicas. Por outro lado, a
sociedade precisa de muitos médicos, farmacêuticos, pedagogos,
mas apenas de um pequeno número de cientistas. Se precisasse
realmente de muitos cientistas seria catastrófico, porque a vocação
para a ciência é especialíssima e rara. Surpreende, por isso, a junção
entre o ensino profissional, que é para todos, e a pesquisa científi-
ca, que é para muito poucos. Mas adiemos ainda essa questão por
mais algum tempo.
Não haverá no ensino superior algo além da profissionalização
e da pesquisa? À primeira vista não descobrimos uma terceira pos-
sibilidade. No entanto, analisando minuciosamente os currículos dos
cursos ministrados, percebemos que quase sempre se exige do alu-
no que, além da aprendizagem profissional ou do trabalho de pes-
quisa, estude disciplinas de caráter geral como filosofia e história.
Universidade e liderança (pp. 31-32)
A sociedade precisa de bons profissionais – juízes, médicos,
engenheiros –, e por isso temos o ensino profissional na universi-
dade. Mas antes disso, e mais do que isso, precisa garantir a
capacitação em outro tipo de profissão: a de mandar. Em toda
sociedade há aqueles que mandam, seja um grupo ou classe, sejam
poucos ou muitos. Mais do que o exercício jurídico de uma auto-
ridade, eu entendo por “mandar” a pressão e a influência que, de
modo difuso, o corpo social recebe. Hoje em dia, o mando é
exercido nas sociedades europeias pelas classes burguesas, cujos
integrantes, em sua maior parte, são profissionais. As classes bur-
guesas preocupam-se, portanto, em que esses profissionais, além
de possuírem um conhecimento específico relativo à sua profis-
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são, sejam capazes de viver e influenciar vitalmente segundo a exi-
gência dos tempos. Por isso, é inevitável criar, de novo, na univer-
sidade, o ensino da cultura ou do sistema das ideias vivas do nosso
tempo. Essa é a tarefa universitária fundamental. Nisso a universi-
dade deve consistir, antes de qualquer outra coisa.
A universidade e ensino da cultura (pp. 34-36)
Não há outra solução: para orientar-se corretamente no meio
da selva da vida, é preciso ser culto, é preciso conhecer a topo-
grafia, os caminhos ou “métodos”. Ou seja, é preciso ter uma
ideia do espaço e do tempo em que se vive, ter uma cultura atual.
Ora, essa cultura ou é recebida ou é inventada. Quem tiver a
fibra necessária para comprometer-se a, sozinho, inventar essa
cultura, fazendo por sua própria conta o que a humanidade fez
ao longo de trinta séculos, será a única pessoa com direito a
negar que a universidade se encarregue, como prioridade, do
ensino da cultura. Infelizmente, esse único ser que poderia opor-
-se à minha tese com fundamento seria... Um louco.
Foi necessário aguardar o início do século XX para assistirmos
a um espetáculo incrível, o espetáculo de peculiar brutalidade e
agressiva estupidez com que se comporta um homem que sabe
muito de uma determinária área do conhecimento e ignora intei-
ramente todas as outras. A profissionalização e o especialismo, não
devidamente contrabalançados, despedaçaram o homem europeu
que, por isso mesmo, se encontra ausente de todos os lugares onde
pretende e precisaria estar. No engenheiro está a engenharia, que é
apenas uma parte e uma dimensão do homem europeu. Este, con-
tudo, que é um integrum, não está em seu fragmento “engenheiro”.
E o mesmo ocorre em todos os outros casos. Quando as pessoas
dizem que “a Europa está despedaçada”, acreditando empregar
uma expressão rebuscada e exagerada, estão dizendo uma verda-
de maior do que podem imaginar. Com efeito, o hoje visível des-
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moronamento da nossa Europa é resultado da invisível fragmen-
tação que o homem europeu tem sofrido progressivamente.
A grande tarefa que devemos realizar, quanto antes, se asse-
melha a montar um quebra-cabeça. É necessário reunir as partes
dispersas – disjecta membra –, reconstruindo a unidade vital do
homem europeu, conseguir que cada indivíduo ou – evitemos
utopismos – que ao menos um bom número de indivíduos tor-
ne-se, cada um por si, esse homem íntegro. Quem mais poderia
realizar essa tarefa senão a universidade? A única solução é acres-
centar às tarefas que a universidade já se dispõe a desempenhar,
esta outra, imprescindível e de suma importância.
Por isso, fora da Espanha, difunde-se com grande empenho um
movimento para cujo sucesso o ensino superior deve tornar-se ensino
da cultura ou transmissão à nova geração do sistema de ideias sobre o
mundo e o homem que alcançou a maturidade na geração anterior.
Em última análise, o ensino universitário surge-nos integrado
por estas três funções:
1ª) Transmissão da cultura.
2ª) Ensino das profissões.
3ª) Pesquisa científica e formação de novos cientistas.
Universidade e autenticidade (pp. 37-38)
(...) O pecado original consiste em não ser autenticamente o
que se é. Podemos desejar ser o que quisermos, mas não é lícito
fingir que somos o que não somos, consentir no autoengano,
habituarmo-nos à mentira substancial.
Quando o modo de agir de uma pessoa ou de uma instituição
é falso, dele brota uma desmoralização ilimitada, da qual mais tar-
de decorre o aviltamento. É impossível aceitar a falsificação de si
mesmo sem perder o autorrespeito.
Por isso já dizia Leonardo da Vinci: “Chi non può quel che vuol,
quel che può voglia” (“Quem não pode o que quer deve querer o que
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pode”). Esse imperativo leonardesco deve ser assumido por aqueles
que irão dirigir radicalmente a implantação de toda e qualquer re-
forma universitária. Somente uma vontade apaixonada de ser o
que estritamente se é pode criar alguma coisa. Não só no âmbito
universitário. Toda vida nova tem de ser feita com uma matéria
cujo nome é autenticidade – prestem atenção nisso, caros jovens,
caso contrário ficarão perdidos, como já começam a ficar.
Uma instituição em que se finge dar e exigir o que não pode
nem exigir nem dar é uma instituição falsa e desmoralizada. No
entanto, esse princípio do fingimento inspira todos os planos e a
estrutura da universidade atual.
Por isso, acredito que é inevitável virar a universidade do aves-
so ou, em outras palavras, reformá-la radicalmente, partindo do
princípio oposto. Em vez de ensinar segundo um desejo utópico,
deveria ensinar-se, é necessário que se ensine apenas o que se pode
ensinar, ou seja, o que se pode aprender.
A gênese do ensino (pp. 40-44)
(...) Por que a espécie humana realiza atos econômicos, de pro-
dução, administração, câmbio, poupança, negociação etc.? Por uma
única e espantosa razão: porque muito do que desejamos e preci-
samos ter não existe em absoluta abundância. Se tudo aquilo de
que temos necessidade estivesse fartamente disponível, não teria
passado pela cabeça do ser humano fazer tantos esforços econô-
micos. O ar, por exemplo, não costuma gerar ocupações que pos-
samos chamar de econômicas. Contudo, basta que o ar se torne
escasso de algum modo, e imediatamente surgem atividades vin-
culadas à economia. Pensemos num grupo de crianças dentro de
uma sala de aula. Se a sala é pequena, o ar não é suficiente para os
que lá estão, o que provoca um problema econômico, obrigando a
que se construam escolas maiores e, por consequência, mais caras.
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Embora haja no planeta ar de sobra, nem todo ar possui a
mesma qualidade. O “ar puro” só existe em determinados lugares
da terra, a certa altura acima do nível do mar, sob determinado
clima. Ou seja, o “ar puro” é escasso. Esse simples fato provoca
uma intensa atividade econômica entre os suíços – hotéis, sanató-
rios –, que, lançando mão da “escassa” matéria-prima de seu ar
puro, fabricam saúde diariamente.
A coisa, repito, é de uma simplicidade espantosa, mas inegá-
vel. A escassez é o princípio da atividade econômica, e por isso,
faz alguns anos, o economista sueco Gustav Cassel renovou a ci-
ência econômica com a lei da escassez. “Se existisse o movimento
contínuo não haveria necessidade da física”, disse Einstein muitas
vezes. Onde não há atividades econômicas também não existe a
ciência da economia.
Ora, com o ensino ocorre algo semelhante. Por que existem
atividades docentes? Por que o ser humano se ocupa e se preocupa
com a pedagogia? Os românticos davam a essas perguntas as res-
postas mais claras, comoventes e transcendentes, fundindo nelas tudo
o que é humano e boa porção do divino. Para eles, as coisas eram
sempre tratadas verborragicamente como algo extraordinário,
exorbitante, melodramático. Nós, porém – certo, meus jovens? –,
preferimos com simplicidade que as coisas sejam tão somente e à
primeira vista o que são, e nada mais. Gostamos das coisas em sua
nudez. Não tememos o frio e as intempéries. Sabemos que a vida é
e certamente será difícil. Aceitamos sua crueza. Não tentamos
sofisticar o destino. A vida dura nem por isso deixa de ser magní-
fica. Pelo contrário, se é dura, é sólida, enxuta: tendão e nervo. A
vida é, sobretudo, despojada. Queremos despojamento e limpeza
em nosso relacionamento com as coisas. E é por esse motivo que as
desnudamos e, nuas, são banhadas pelo nosso olhar. Queremos ver
o que elas são in puris naturalibus.
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O ser humano se ocupa e se preocupa com o ensino por uma
razão tão simples quanto severa e tão severa quanto lamentável.
Para viver com firmeza, desenvoltura e honestidade é preciso sa-
ber enorme quantidade de coisas. E o fato é que a criança e o
jovem têm uma capacidade limitadíssima de aprender. Se a infân-
cia e a juventude durassem cada uma cem anos, ou se a criança e o
jovem possuíssem memória, inteligência e atenção em dose prati-
camente ilimitada, não haveria atividade docente. Todas aquelas
razões comoventes e transcendentais jamais teriam obrigado o
homem a dar consistência a um tipo de existência humana que se
chama “professor”.
A escassez, a limitação da capacidade de aprender, é o princípio
da instrução. Precisamos nos preocupar com o ensino na medida
exata da dificuldade para aprender. Teria sido por acaso que a ativi-
dade pedagógica só entrou em erupção em meados do século XVIII
e desde então não deixou de crescer? Por que isso não aconteceu
antes? A explicação é simples: foi nessa época que se deu a primeira
grande colheita da cultura moderna. Em pouco tempo, o tesouro
de efetivo saber humano aumentou gigantescamente. A vida, en-
trando em cheio no novo capitalismo, graças às recentes invenções,
adquiriu grande complexidade e exigiu um crescente conjunto de
técnicas. Porque se tornava imprescindível saber muitas coisas, num
volume que ultrapassava a capacidade de aprender, intensificou-se e
ampliou-se também a atividade pedagógica, o ensino.
Ao contrário, quase não há ensino nas épocas primitivas. Para
que, se pouco há para ensinar, se a faculdade de aprender supera
em muito a matéria assimilável? Há capacidade de sobra. São poucos
os saberes: algumas fórmulas mágicas e ritualísticas para fabricar
utensílios trabalhosos – por exemplo, a canoa –, ou para curar
doenças e esconjurar os demônios. É isto o que há para ensinar.
Mas precisamente por ser tão pouco, qualquer um, sem grandes
esforços, poderia aprender. E por isso verificamos um fenômeno
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COLEÇÃO EDUCADORES
surpreendente, que acaba por confirmar minha tese do modo mais
inesperado. De fato, nos povos primitivos, o ensino aparece de
modo invertido. A função de ensinar – quem diria? – consistirá
em ocultar. Aquelas fórmulas serão guardadas como um segredo
de poucas pessoas, transmitido como algo misterioso. É que to-
dos poderiam aprender de modo imediato. Daí o fato universal
dos ritos técnicos secretos.
O princípio da economia do ensino (pp. 44-45)
(...) Hoje, mais do que nunca, o excesso de riqueza cultural e técnica
ameaça transformar-se numa catástrofe para a humanidade. A cada
nova geração torna-se mais difícil ou impossível absorvê-la. É urgente,
portanto, instaurar a ciência do ensinar, seus métodos, suas instituições,
partindo de um princípio humilde e despojado: a criança ou o jovem é
um discípulo, um aprendiz. E isso significa que não pode aprender tudo
o que se deveria ensinar a ele. Eis o princípio da economia do ensino.
Essa consideração, como não poderia deixar de ser, sempre
esteve presente na ação pedagógica, mas somente pela força das
coisas e de modo secundário. Jamais se fez dela um princípio,
talvez por não possuir tom melodramático, não falar de coisas
complicadas e transcendentes.
A universidade, tal como a vemos fora da Espanha, mais do que na
Espanha, é um bosque tropical de ensinamentos. Se a eles acrescenta-
mos o que, conforme dizia antes, parece imprescindível – o ensino da
cultura –, o bosque cresce até cobrir o horizonte da juventude, horizon-
te esse que deve estar iluminado, aberto, deixando visíveis os incêndios
que provocam comportamentos radicais. A única forma de remediar
essa situação é investir contra essa imensidão, usando o princípio da
economia como um machado. Em primeiro lugar, portanto, podar
sem contemplações.
O princípio da economia não sugere apenas que seja preciso
economizar, ensinar menos, mas implica também que a organiza-
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ção do ensino superior, a construção da universidade, partam do
estudante, e não do saber ou do professor. A universidade tem de
ser a projeção institucional do estudante, cujas dimensões essen-
ciais são: o que ele é, com diminuta capacidade para adquirir saber,
e o que ele precisa saber para viver.
O estudante médio e o que se pode aprender
de verdade (pp. 46-47)
É preciso partir do estudante médio e considerar como nú-
cleo da instituição universitária, como seu tronco ou figura primei-
ra, tão somente aquele corpo de ensinamentos que rigorosamente
pode ser exigido, ou, em outras palavras, aquele saber que um
bom estudante médio pode realmente aprender.
Repito que essa é a universidade em seu sentido primeiro e
estrito. Veremos mais tarde como a universidade deve ter outras
dimensões não menos importantes. Agora, o importante é não
fazer confusões, distinguindo com energia os diferentes órgãos e
funções da grande instituição universitária.
E como determinar o conjunto de ensinamentos que deve cons-
tituir o tronco ou o minimum de universidade? A resposta é que deve-
mos submeter essa incrível multidão dos saberes a uma dupla seleção:
1) Preservando somente aqueles saberes estritamente necessá-
rios para a vida do homem que hoje é estudante. A vida efeti-
va e suas inevitáveis urgências é o ponto de vista que deve
dirigir a podada inicial.
2) O que foi definido como o estritamente necessário ainda
tem de ser reduzido ao que de fato o estudante pode apren-
der com tranquilidade e plenitude.
Distinção entre profissão e ciência (pp. 49-52)
Devemos, antes de tudo, distinguir profissão de ciência. Ciên-
cia não é uma coisa qualquer. Não é ciência adquirir um microscó-
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COLEÇÃO EDUCADORES
pio ou varrer o chão de um laboratório, mas também não é expli-
car ou aprender o conteúdo de uma ciência. Em sentido próprio
e autêntico, ciência é tão somente pesquisa: levantar problemas,
trabalhar para resolvê-los e formular uma solução. Alcançada essa
solução, tudo o que se venha a fazer com ela não é mais ciência.
Por isso, não é ciência aprender uma ciência e ensiná-la, bem como
não é ciência utilizá-la ou aplicá-la. Talvez seja conveniente – mas
com reservas – que o homem encarregado de ensinar ciência seja
ele próprio um cientista. Mas, sendo rigorosos, não é necessário e,
de fato, existiram e existem professores de ciências formidáveis
que não são pesquisadores, que não atuam como cientistas. Basta
que saibam sua ciência. Mas saber não é pesquisar. Pesquisar é des-
cobrir uma verdade ou seu contrário, demonstrando um erro. Sa-
ber é simplesmente inteirar-se bem dessa verdade, possuí-la uma
vez que tenha sido produzida, obtida (...).
Dentre as coisas que o ser humano faz e produz, a ciência é
uma das mais elevadas. E é, diga-se claramente, algo mais elevado
do que a universidade, encarada como instituição docente. Porque
a ciência é criação, ao passo que a ação pedagógica se propõe
unicamente a ensinar essa criação, transmiti-la, injetá-la e digeri-la.
É tão elevada a ciência, que é delicadíssima e – queiramos ou não
– exclui o homem médio. Implica uma vocação peculiaríssima e
rara na espécie humana. O cientista é o monge moderno.
Pretender que o estudante normal seja um cientista é uma pre-
tensão ridícula que acabou por contrair (as pretensões se contraem
como as gripes e outras infecções) o vício do utopismo, tão carac-
terístico das gerações passadas. Não é algo que se deva desejar,
nem mesmo idealmente. A ciência é uma das coisas mais altas, mas
não a única. Há outras realidades ao seu lado tão dignas quanto ela,
e não há motivo para que descarte essas outras e queira ocupar
todos os espaços. Além disso, a ciência pertence ao mais elevado;
a ciência, mas não o cientista. O homem de ciência é um modo de
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existência humana tão limitado como outro qualquer, e até mes-
mo mais do que outros modos imagináveis e possíveis. (...) O
valioso e maravilhoso é o que esse homem limitadíssimo segrega:
a pérola. A pérola, e não a ostra que a produz. Não faz sentido
“idealizar” nem apresentar como ideal que todos os homens se
dediquem à ciência. Precisamos compreender todas as condições
– prodigiosas, umas, outras perversas – que normalmente tornam
possível o surgimento do cientista.
Ser profissional (pp. 53-55)
Quem tiver vocação para ser médico, não queira flertar com a
ciência: fará ciência sem substância. É mais do que suficiente ser
bom médico. A mesma coisa com relação ao professor de Histó-
ria no ensino médio. Não é uma falha obrigar esse futuro profes-
sor, na universidade, a acreditar que se tornará um historiador? O
que se ganha com isso? É apenas perda de tempo fazer que ele
estude as técnicas necessárias para a ciência da História, uma vez
que ele será professor de História, e deveria dedicar-se a ter uma
ideia clara, estruturada e simples do panorama geral da história
humana que será sua missão ensinar.
Tem sido desastrosa a tendência de tornar a “pesquisa” algo
predominante na universidade. Essa tendência provocou a elimi-
nação do principal, a cultura, e impediu que se cultivasse intensa-
mente o propósito de formar profissionais ad hoc. Nas faculdades
de medicina, deseja-se que se ensine fisiologia de altíssimo nível ou
primorosa química... Mas talvez, em nenhuma faculdade do mun-
do, alguém se ocupe seriamente em pensar em que consiste ser,
atualmente, um bom médico, qual deve ser o médico do nosso
tempo. A profissão, que depois da cultura é o mais urgente, deixa-
se ao deus-dará. Mas o prejuízo provocado por essa confusão é
recíproco. Também a ciência sofre quando se aproxima utopica-
mente das profissões.
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COLEÇÃO EDUCADORES
O pedantismo e a ausência de reflexão fomentaram esse vício
de “cientificismo” de que a universidade padece. Na Espanha, es-
sas duas atitudes deploráveis começam a se tornar obstáculos
gravíssimos. Qualquer pé-rapado que estagiou por seis meses num
laboratório ou numa sala de aula na Alemanha ou nos Estados
Unidos, qualquer pobre-diabo que fez uma descobertazinha cien-
tífica, volta à sua terra natal convertido em “novo-rico” da ciência,
num parvenu da pesquisa. Sem ter refletido quinze minutos sobre a
missão da universidade, propõe as reformas mais ridículas e pe-
dantes. E ao mesmo tempo é incapaz de ensinar sua disciplina,
pois não a conhece como deveria conhecer.
É preciso, portanto, sacudir a árvore das profissões para que
dela caia o excesso de ciência, ficando apenas o necessário, e as
profissões possam então ser ensinadas, algo que hoje está comple-
tamente abandonado. Nesse ponto, tudo por ser feito. Uma enge-
nhosa racionalização pedagógica permitiria ensinar as profissões
de modo muito mais eficaz e completo, em menos tempo e com
muito menos esforço.
Vida humana e cultura (pp. 56-60)
Nos últimos cinquenta anos, a medicina deixou-se atropelar
pela ciência, e, infiel à sua missão, não soube afirmar devidamente
seu ponto de vista profissional. Cometeu o pecado de toda essa
época: não aceitar seu destino, desviar o olhar, querer ser o outro,
no caso da medicina, querer ser ciência pura.
Não confundamos, portanto. A ciência, ao entrar na profis-
são, tem de desarticular-se como ciência, para organizar-se de acor-
do com outro centro e outro princípio, como técnica profissional.
E se isso é verdadeiro para a ciência, também o é para o ensino
das profissões.
Algo semelhante ocorre nas relações entre cultura e ciência.
Suas diferenças me parecem bem nítidas. Mas eu gostaria não só
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de tornar o conceito de cultura totalmente claro para a mente dos
meus leitores. Quero mostrar seu fundamento radical. Isso pressu-
põe que o leitor leia minhas palavras com detença e rumine as
breves considerações que se seguem.
Cultura é o sistema de ideias vivas que cada epóca possui.
Melhor ainda: uma época vive segundo seu sistema de ideias. Não
há alternativa: o ser humano vive de acordo com determinadas
ideias, chão em que apoia sua existência. As “ideias vivas ou das
quais se vive” são o repertório de nossas convicções efetivas sobre
o que é o mundo e o que são nossos semelhantes, sobre a hierar-
quia dos valores que torna coisas e ações estimáveis ou não.
Não está sob nosso poder possuir ou não tal repertório de
convicções. Trata-se de uma necessidade inevitável, constitutiva de
todo e qualquer ser humano. A realidade que costuma nomear
“vida humana”, nossa vida, a vida de cada um de nós, não tem a
ver com a biologia, a ciência dos corpos orgânicos. A biologia,
como outra ciência qualquer, é simplesmente uma ocupação a que
alguns homens dedicam sua “vida”. O sentido primário e mais
verdadeiro desta palavra “vida”, na linguagem corrente, não é bi-
ológico, mas biográfico. Significa o conjunto do que fazemos e
somos, esta terrível tarefa – que cada ser humano tem de cumprir
por sua própria conta – de manter-se firme no universo, de con-
duzir-se por entre as coisas e os seres do mundo. Viver é, certa-
mente, relacionar-se com o mundo, dirigir-se a ele, atuar nele, dele
ocupar-se. Se esses atos e ocupações em que consiste nosso viver
se produzissem em nós automaticamente, a vida humana não seria
um viver. O autômato não vive.
O que confere gravidade a esse tema é que a vida não nos é
dada feita. Queiramos ou não, temos de decidir, momento a mo-
mento, que vida é essa. A cada minuto precisamos tomar decisões
sobre o que devemos fazer, e isso significa que a vida constitui um
problema perene para cada ser humano. Para decidir agora o que
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deve fazer e ser no momento seguinte, o ser humano, queira ou
não, precisa estabelecer um plano, por mais simples ou pueril que
seja. Não é que deva planejar, mas o fato é que não há vida possí-
vel, sublime ou reles, cheia de discernimento ou estúpida, que, em
essência, não precise de um plano segundo o qual a pessoa norteie
seus passos. Mesmo abandonar nossa vida à deriva na hora do
desespero é adotar determinado plano. Toda a vida, forçosamen-
te, “planeja-se” a si mesma. Ou seja, ao decidir cada ato nosso,
decidimos algo que, em vista de determinadas circunstâncias, pa-
rece fazer o melhor dos sentidos. Toda vida precisa – queira ou
não – justificar-se perante seus próprios olhos. A justificativa pe-
rante si mesma é um ingrediente consusbtancial à nossa vida. Tanto
faz dizer que viver é comportar-se segundo determinado plano
ou afirmar que a vida é um incessante justificar-se perante si mesma.
Esse plano e essa justificativa, contudo, implicam que possuímos
uma “ideia” do que é o mundo e do que são as coisas (...).
A quase totalidade dessas convicções ou “ideias” não é criada
pelo indivíduo com a autonomia de um Robinson Crusoé, mas
são recebidas do seu meio histórico, do seu tempo. Naturalmente,
há sistemas de convicções simultâneos em cada época. Alguns de-
les sobreviveram, enferrujados e enfraquecidos, provenientes de
outros tempos. Mas há sempre um sistema de ideias vivas que
representa o nível superior da época, um sistema plenamente atual.
Esse sistema é a cultura.
Viver à altura do seu tempo (pp. 61-63)
O regime interior da atividade científica não é vital. O da cul-
tura é. Por isso, a ciência não está preocupada com nossas urgênci-
as, e tem em vista apenas suas próprias necessidades. Por isso, a
ciência se especializa e se diversifica indefinidamente. Por isso, não
tem um término. Já a cultura é regida pela vida como tal, e tem de
ser a todo instante um sistema completo, integral, e claramente
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estruturado. É ela o plano da vida, o mapa que mostra os cami-
nhos da selva da existência.
Essa metáfora das ideias como caminhos (= méthodos) é tão an-
tiga como a própria cultura. E é fácil compreender sua origem.
Quando nos encontramos numa situação difícil, confusa, parece que
diante de nós há uma selva, fechada, emaranhada, tenebrosa, dentro
da qual não podemos caminhar, sob pena de nos perdermos.
Mas então aparece alguém que nos explica a situação com uma
ideia feliz, e sentimos em nós uma súbita iluminação. É a luz da
evidência. O que era emaranhado parece-nos agora organizado,
com linhas claras, estruturadas, semelhantes a caminhos abertos.
Daí que estejam no mesmo campo semântico palavras como
método e iluminação, ilustração, Aufklärung. O que hoje chama-
mos “homem culto” há menos de um século era o “homem ilus-
trado”, homem que via à plena luz os caminhos da vida.
É necessário acabar de uma vez por todas com aquela ima-
gem negligente da ilustração e da cultura como acréscimos orna-
mentais que alguns homens ociosos carregam em sua vida. Não há
nada mais enganoso. A cultura é uma atividade imprescindível para
toda a vida humana, uma dimensão constitutiva da nossa existên-
cia, como as mãos são atributos do homem.
Por vezes um homem não possui as mãos. Não é um homem,
plenamente falando, mas um homem maneta. A mesma coisa po-
demos dizer, de modo muito mais radical, com relação à vida.
Uma vida sem cultura é uma vida maneta, fracassada e falsificada.
O homem que não vive à altura do seu tempo vive abaixo do que
seria sua vida autêntica. Ele falsifica ou rouba sua própria vida.
Mata sua própria vida.
Atravessamos hoje – não obstante certas presunções e aparên-
cias – uma época de terrível incultura. Jamais, talvez, o homem
médio esteve tão abaixo de seu próprio tempo, do que esse lhe
pede. Do mesmo modo, nunca houve tantas existências falsificadas,
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fraudulentas. Quase ninguém está em seu estado normal, enlaçado
ao seu autêntico destino. O homem comum vive de subterfúgios,
mentindo para si mesmo, fingindo viver num mundo muito sim-
ples e arbitrário, embora sua consciência vital diga-lhe aos gritos
que seu verdadeiro mundo, que corresponde à plena atualidade, é
enormemente complexo, certo e exigente. Mas sente medo – o
homem médio é hoje muito frágil, a despeito de sua gesticulação
agressiva –, tem medo de abrir-se para esse mundo verdadeiro, que
exigiria muito dele; prefere falsificar sua vida, tornando-a hermética
no capulho desprezível de seu mundo irreal e tão elementar.
Daí a importância histórica em restituir à universidade sua tarefa
central de “ilustração” do homem, de ensinar-lhe a plena cultura do
tempo, desvendar-lhe com clareza e precisão o gigantesco mundo
presente, no qual deve ajustar sua vida para que ela seja autêntica.
Especialização e cultura integral (pp. 67-70 e 73-76)
É preciso humanizar o cientista que, em meados do último sé-
culo, revoltou-se, contaminando-se vergonhosamente com o evan-
gelho da rebelião, a grande vulgaridade, a grande falsidade do tem-
po. É preciso que o homem de ciência deixe de ser aquilo em que
hoje, com deplorável frequência, se tornou: um bárbaro que sabe
muito a respeito de uma coisa só. Felizmente, as principais figuras da
atual geração de cientistas viram-se forçadas, por necessidades inter-
nas de sua própria ciência, a complementar seu especialismo com a
cultura integral. Os outros inevitavelmente seguirão seu exemplo
como um rebanho que sempre segue a ovelha que vai à frente.
Há forte pressão para que se faça nova integração do saber,
que hoje se encontra despedaçado pelo mundo afora. Mas essa
grandiosa tarefa não se realizará enquanto não houver uma
metodologia do ensino superior, ao menos equivalente à existente
nos outros níveis do ensino. Parece mentira, mas não dispomos
hoje de uma pedagogia universitária.
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Tornou-se questão urgentíssima e imprescindível para a huma-
nidade inventar uma técnica para abordar adequadamente o acúmulo
atual de saber. Se não descobrirmos modos mais fáceis de dominar
essa vegetação exuberante, seremos sufocados por ela. Sobre a selva
primeira da vida viria justapor-se essa selva secundária da ciência,
cuja intenção era simplificar aquela. Se a ciência organizou a vida,
agora será preciso organizar a própria ciência – organizá-la, uma vez
que é impossível regulamentá-la –, tornando possível sua perma-
nência de modo saudável. Para isso é preciso dar-lhe vida, no senti-
do de dotá-la de uma forma compatível com a vida humana que a
criou, e a criou para si. Caso isso não aconteça – e de nada vale
apoiar-se em vagos otimismos –, a ciência se desmanchará no ar, e o
ser humano perderá por ela todo o interesse.
Como podemos ver, ao meditarmos sobre a missão da univer-
sidade, descobrindo o caráter peculiar – sintético e sistemático – de
suas disciplinas culturais, desembocamos em vastas perspectivas, que
ultrapassam o âmbito pedagógico e nos faz ver a instituição univer-
sitária como um órgão de salvação da própria ciência.
A necessidade de criar sínteses e sistematizações do saber mais
vigorosas, para ensiná-las na “faculdade” de cultura, fomentará
um tipo de talento científico que até agora tem surgido por acaso:
o talento integrador. A rigor, esse talento, como ocorre fatalmente
em todo esforço criador – é uma especialização, mas aqui o ho-
mem se especializa precisamente na construção de uma totalidade.
E o movimento que leva a pesquisa a dispersar-se indefinidamente
em problemas particulares, pulverizando-se, exige uma regulação
compensadora – como acontece em todo organismo saudável –
mediante um movimento em direção contrária, que se oponha e
impeça num rigoroso sistema a ciência centrífuga.
Homens dotados desse genuíno talento estão mais inclina-
dos a ser bons professores do que os que vivem mergulhados na
pesquisa. Porque um dos males causados pela confusão entre
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ciência e universidade foi entregar as cátedras, segundo a mania
da época, aos pesquisadores, quase sempre péssimos professores,
que encaram as aulas como horas roubadas ao trabalho do labo-
ratório ou dos arquivos. Foi o que vi durante meus anos de estu-
do na Alemanha: convivi com muitos dos maiores cientistas da
época, mas não encontrei um só bom professor. Digo para que
ninguém venha me dizer que a universidade alemã é um modelo
de instituição.
(...) Sem ciência, inviabiliza-se o destino do homem europeu.
Esse homem é aquele ser que, no gigantesco panorama da história,
decidiu viver intelectualmente, e a ciência é o intelecto em forma.
Seria uma casualidade que somente a Europa – entre tantos outros
povos – tenha criado universidades? A universidade é o intelecto e,
portanto, ciência instituída. Que o intelecto tenha se tornado uma
instituição foi a vontade especifica da Europa em contraste com
outras raças, terras e tempos. Essa foi a decisão misteriosa do ho-
mem europeu: viver de sua inteligência e a partir dela. Outros teriam
preferido viver de outras capacidades e potências (lembremo-nos
das maravilhosas concretizações com que Hegel resume a história
universal, tal como o alquimista transforma toneladas de carvão em
alguns diamantes. Pérsia, ou a luz! – a religião mágica. A Grécia, ou
a graça! A Índia, ou o sonho! Roma, ou o mando!).
A Europa é a inteligência. Maravilhosa capacidade. Sim, mara-
vilhosa, porque é a única a perceber suas próprias limitações, pro-
vando, desse modo, até que ponto a inteligência é de fato inteligen-
te. Essa potência, que é ao mesmo tempo seu próprio freio, reali-
za-se na ciência.
Se a cultura e as profissões ficassem isoladas dentro da univer-
sidade, sem contato com a incessante fermentação da ciência, da
pesquisa, rapidamente ficariam atrofiadas num escolasticismo de-
bilitado. É preciso que, ao redor da universidade mínima, as ciên-
cias instalem seus acampamentos – laboratórios, salas de pesquisa,
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centros de debates. Esse será o humus no qual o ensino superior
mergulhará suas raízes vorazes.
A universidade deve estar, portanto, aberta aos laboratórios
de todo o tipo, e ao mesmo tempo capacitada para atuar sobre
eles. Todos os estudantes, os melhores e os medianos, estarão sempre
em movimento, saindo dos acampamentos para a universidade e
saindo da universidade para os acampamentos. Haverá cursos ex-
clusivamente científicos sobre o humano e o divino. Dentre os
professores, os mais capacitados serão, ao mesmo tempo, pesqui-
sadores. Os que forem apenas “mestres” estarão sempre estimula-
dos e vigiados pela ciência, sempre em estado de fermentação.
No entanto, será inadmissível confundir o centro da universidade
com essa região circundante das pesquisas. Tanto a universidade
como o laboratório são órgãos diferentes e correlatos numa fisio-
logia integral. O caráter institucional pertence somente à universi-
dade. A ciência é uma atividade demasiado sublime e refinada
para que dela se faça uma instituição. A ciência é incoercível e está
acima de qualquer regulamentação. Por isso, o ensino superior e a
pesquisa se prejudicam mutuamente, quando se pretende fundi-
los, em vez de deixar que, um ao lado da outra, se influenciem
intensamente, mas ambos em liberdade. Uma troca de influências
constante, mas espontânea.
Em suma, a universidade é diferente, mas inseparável da ciência.
Mas eu diria, além disso, que, por outro lado, a universidade é ciência.
Não se trata de um “por outro lado” qualquer, mero acrésci-
mo e justaposição externa. Significa que agora podemos afirmar,
sem medo de gerar confusões, que a universidade, antes de ser
universidade, deve ser ciência. Uma atmosfera carregada de entu-
siasmo e empenho científicos é o pressuposto radical para a exis-
tência da universidade. Precisamente por não ser ciência – criação
ilimitada do saber rigoroso –, a universidade tem de viver dela.
Sem esse pressuposto, tudo o que escrevi nesse ensaio ficaria sem
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sentido. A ciência é a dignidade da universidade. Mais ainda – por-
que, afinal de contas, pode-se viver sem dignidade –, a ciência é a
alma da universidade, o próprio princípio que lhe dá vida e impe-
de que se torne apenas um vil mecanismo. Tudo isso está implícito
na afirmação de que a universidade é, por outro lado, ciência.
Mas é ainda outra coisa. Não só precisa estar em contato per-
manente com a ciência, sob pena de atrofiar-se, mas necessita tam-
bém estar em contato com a existência pública, com a realidade
histórica, com o presente, que é sempre um integrum, algo a ser
tomado em sua totalidade, sem amputações ad usum delphinis. A
universidade tem de estar aberta também para a plena atualidade.
Mais ainda, tem de estar no meio da atualidade, nela mergulhada.
E não digo isso somente porque é um benefício para a univer-
sidade a excitação provocada pelos ventos da história, mas por-
que a recíproca é verdadeira, a vida pública necessita urgentemente
das intervenções da universidade como tal.
A universidade como princípio promotor (pp. 77-78)
A vida real é, de certo, pura atualidade. Mas a visão jornalística
deforma essa verdade, reduzindo o atual ao instantâneo e o instan-
tâneo à difusão. Por isso, o mundo hoje em dia aparece sob uma
imagem rigorosamente invertida na consciência pública. Quanto mais
uma coisa ou pessoa tenha importância real e duradoura, menos os
jornais falarão dela. Em contrapartida, haverá destaque em suas pá-
ginas tudo aquilo que esvazia sua essência, tornando pessoa ou coisa
apenas um “acontecimento”, e dando lugar a uma notícia.
O correto seria que os interesses, muitas vezes inconfessáveis,
das empresas não interferissem nos jornais. O dinheiro deveria estar
castamente afastado para não influenciar na doutrina dos jornais.
Basta à imprensa abandonar sua missão para começar a pintar o
mundo de cabeça para baixo. Muito das deformações grotescas
que atingem as coisas hoje – a Europa caminha há certo tempo com
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a cabeça no lugar dos pés e os pés dando piruetas no alto – é causa-
do pelo império indiviso da imprensa, único “poder espiritual”.
É uma questão de vida ou morte, para a Europa, acabar com
essa situação ridícula. Para isso, a universidade como tal tem de in-
tervir na atualidade, abordando os grandes temas em pauta, segundo
seu ponto de vista próprio – cultural, profissional ou científico. Des-
sa forma, não será uma instituição unicamente para estudantes, um
lugar ad usum delphinis, mas algo que, no meio da vida, de suas urgên-
cias, de suas paixões, vai impor-se como um “poder espiritual” supe-
rior ao da imprensa, representando a serenidade perante o frenesi, a
agudeza da análise perante a frivolidade e a estupidez.
Assim a universidade voltará a ser o que foi em seus melhores
momentos: um princípio promotor da história europeia.
Estudo e curiosidade (p.547)
41
São Francisco de Assis costumava dizer: “Eu preciso de pou-
co, e deste pouco eu preciso muito pouco”. Na primeira parte da
frase, São Francisco refere-se às necessidades exteriores ou mediatas;
na segunda, às íntimas e imediatas. Necessitava alimentar-se, como
todo ser vivo, mas, nele, esta necessidade externa era pequena –,
isto é, precisava comer pouco para viver. Mas, além disso, sua
atitude íntima era a de não sentir grande necessidade de viver, sen-
tia-se pouco apegado à vida, e, em consequência, sentia pouca
necessidade íntima da necessidade externa de alimentar-se.
Ora, quando o homem se vê obrigado a aceitar uma necessi-
dade externa, mediata, encontra-se numa situação equívoca,
bivalente; ele é convidado a assumir como própria – a aceitar –
uma necessidade que não é sua. Precisa, queira ou não, comportar-
41
Os textos da antologia daqui em diante foram extraídos da palestra de Ortega y Gasset
denominada “Sobre estudar e ser estudante”, em: Obras Completas. 2 ed. tomo IV, Madri:
Alianza Editorial, 1993. (Artigo publicado originalmente em La Nación, de Buenos Aires, 23
de abril de 1933.) Tradução de Gabriel Perissé.
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se como se essa necessidade fosse sua. É convidado, portanto, a
assumir uma ficção, uma falsidade. E embora o homem faça de
tudo para senti-la como própria, não é certo que o consiga. Não é
sequer provável que o consiga.
Feito esse esclarecimento, observemos a situação normal do
homem que se põe a estudar, se empregamos essa palavra no
sentido que tem como estudo do estudante, ou, em outras pala-
vras, perguntemo-nos o que é o estudante como tal.
Ciência e necessidade (pp. 548-549)
O estudante que temos diante de nós é um ser humano, mas-
culino ou feminino, a quem a vida impõe a necessidade de estudar
as ciências, das quais não sente necessidade imediata e autêntica.
Abstraindo dos casos extraordinários, devemos reconhecer que,
na melhor das hipóteses, o estudante sente uma necessidade since-
ra, mas vaga, de estudar “alguma coisa”, algo in genere, de “saber”,
de instruir-se. Mas a imprecisão desse desejo declara sua escassa
autenticidade. É evidente que um estado de espírito como esse
jamais levou ninguém a criar saber.
O saber é sempre concreto, é saber precisamente algo específi-
co. Segundo a lei que esboçava há pouco, da funcionalidade entre
buscar e encontrar, entre necessidade e satisfação, aqueles que cria-
ram um saber sentiram, não o desejo vago de saber uma coisa qual-
quer, mas o desejo concretíssimo de averiguar determinada coisa.
Isso revela que, mesmo no melhor dos casos – ressalvadas,
insisto, as exceções –, o desejo de saber que um bom estudante
possa experimentar é completamente heterogêneo, talvez mesmo
antagônico ao estado de espírito que levou à criação do saber ele
mesmo. Porque, com efeito, a situação do estudante perante a ci-
ência é oposta à situação daquele que a criou. O criador não depa-
rou com a ciência e depois sentiu necessidade de possuí-la. Em
primeiro lugar, sentiu uma necessidade vital e não científica, e foi
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tal necessidade que o levou a procurar sua satisfação. Ao encontrá-
la, as ideias que o conduziram até aí eram a ciência.
Pelo contrário, o estudante desde o primeiro momento en-
contra-se com a ciência já feita, como uma cordilheira que se ergue
ante seus olhos como obstáculo ao seu caminho vital. No melhor
dos casos, repito, a cordilheira da ciência atrai sua atenção, parece-
lhe bela, promete-lhe sucesso na vida. Mas nada disso tem a ver
com a necessidade autêntica que conduz à criação da ciência.
A prova do que estou afirmando reside no fato de que esse
desejo geral de saber é incapaz de concretizar-se por si mesmo no
desejo estrito de um saber determinado. Repito que o que leva
alguém ao saber não é um desejo, mas uma necessidade. O desejo
não existe se previamente não existir a coisa desejada, seja na reali-
dade, seja, ao menos, na imaginação.
O que ainda não existe não pode provocar o desejo. Nossos
desejos são acionados ao contato do que já está aí. Em contrapartida,
a necessidade autêntica existe sem que exista antes, sequer na imagi-
nação, aquilo que poderia satisfazê-la. Necessitamos daquilo que não
possuímos, daquilo que nos falta, daquilo que não existe. A necessi-
dade e a carência são tanto mais elas próprias quanto menos exista
aquilo de que se necessita ou de que se tem carência.
Para constatarmos com mais clareza o que estou afirmando,
não precisamos sair do nosso tema. Basta compararmos o modo
como alguém se aproxima da ciência já feita, com o intuito de
estudá-la, e o modo como outro alguém sente necessidade autên-
tica e sincera de ciência. Aquele tenderá a não questionar o conteú-
do da ciência, a não criticá-lo. Ao contrário, sua tendência é sentir-
se reconfortado, pensando que esse conteúdo da ciência já feita
tem um valor definitivo, é a pura verdade. Seu objetivo é simples-
mente assimilá-lo tal como se apresenta.
Já aquele que tem carência de uma ciência, aquele que sente a
profunda necessidade da verdade, aproximar-se-á cauteloso do
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COLEÇÃO EDUCADORES
saber já feito. Abordará, desconfiado, esse saber, submetendo-o à
crítica, suspeitando de que não é verdade o que diz o livro. Enfim,
justamente porque necessita de um saber com uma angústia radi-
cal, pensará que esse saber não existe e procurará desfazer o que se
apresenta como algo já feito. Homens assim são os que constante-
mente corrigem, renovam, recriam a ciência.
Mas não é esse o significado normal do estudar. Se a ciência
não esteve já aí, o bom estudante não sentiria necessidade de pos-
suí-la, ou seja, não seria estudante. Portanto, trata-se de uma neces-
sidade externa que lhe é imposta. Quando pomos o homem na
situação de estudante, obrigamo-lo a fazer algo falso, a fingir que
sente uma necessidade que não sente.
Saber, gosto e necessidade (pp. 549-550)
Dir-se-á que existem estudantes que sentem profundamente a
necessidade de solucionar certos problemas constitutivos desta ou
daquela ciência. Certamente, mas é insincero chamá-los de estu-
dantes. Insincero e injusto. Porque são casos fora da normalidade,
são pessoas que, se não houvesse estudos ou ciência, mesmo as-
sim, por si mesmas, inventariam, com resultados melhores ou pi-
ores, uma ciência à qual se dedicariam. Por uma inexorável voca-
ção, teriam algo no qual empregar seus esforços de pesquisa.
Mas... E os outros? E a imensa e normal maioria? São esses, e
não aqueles poucos afortunados, os que realizam o verdadeiro
sentido – não o sentido utópico – das palavras “estudar” e “estu-
dante”. A injustiça consiste justamente em não reconhecer a esses
como os verdadeiros estudantes! É com esses que se comete injus-
tiça quando não abordamos o que é estudar como forma e tipo
de um fazer humano! É um imperativo do nosso tempo (...) pen-
sarmos as coisas em sua nudez, efetividade e dramaticidade. Essa
é a única maneira de nos encontrarmos verdadeiramente com elas.
Seria maravilhoso se ser estudante significasse sentir uma urgência
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ORTEGA Y GASSET
vivaz por esse ou por aquele saber. Mas a verdade é exatamente o
contrário: ser estudante é ver-se uma pessoa obrigada a interessar-
se diretamente por assuntos que não lhe interessam, ou, na melhor
das hipóteses, que lhe interessam apenas de modo vago, genérico,
ou de modo indireto.
Outra objeção possível à minha argumentação seria fazer-me
lembrar o fato de que os rapazes e as moças sentem sincera curio-
sidade por determinados assuntos e têm gostos peculiares. O estu-
dante não se interessa por tudo. Estuda ciência ou letras, e isso
supõe certa inclinação de seu espírito, um desejo menos vago e
não imposto de fora para dentro. No século XIX, deu-se demasi-
ada importância à curiosidade e aos gostos. O intento era fundar
sobre essas entidades não muito sérias coisas muito importante,
demasiado importantes. Esta palavra “curiosidade”, como tantas
outras, possui duplo sentido – um deles elementar e substancial, e
outro pejorativo e abusivo. O mesmo podemos pensar com rela-
ção à palavra “gosto”, que significa afeiçoar-se por alguma coisa,
mas também indica amadorismo.
O sentido próprio do vocábulo “curiosidade” brota de sua
raiz, uma palavra latina sobre a qual Heidegger nos chamou a aten-
ção recentemente: cura, os cuidados, as coisas, que eu chamo de
“preocupação”. De cura provém curiosidade. Daí que um ho-
mem curioso seja um homem cuidadoso, isto é, alguém que faz as
coisas com atenção, esmeradamente, caprichando no que tem de
fazer, um homem que não se despreocupa com o que o ocupa.
Ou, para dizer de outro modo, é um homem preocupado com o
que está ocupado. A antiga palavra espanhola “cuidar” designava
o ato de preocupar-se. Esse sentido originário de cura ou cuida-
dos sobrevive em palavras que utilizamos no nosso dia a dia como
“curador”, “procurador”, “procurar”, “curar” (...).
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COLEÇÃO EDUCADORES
A falsidade do estudar (pp. 551-553)
(...) Não vivamos com idealizações com respeito à árdua rea-
lidade. Não adotemos beatices que nos levem a enfraquecer, obs-
curecer e adocicar os problemas, tirando-lhes o que têm de peri-
gosos. O fato é que o estudante típico é um homem que não sente
necessidade direta da ciência, não tem preocupação por ela. E, no
entanto, é um homem que se vê forçado a ocupar-se dela. Já aí
reside a falsidade geral do estudar. Mas em seguida vem a
concretização quase perversa (perversa porque minuciosa) dessa
falsidade. É que não obrigamos o estudante a estudar em geral,
mas a ele apresentamos o estudo decomposto em cursos especi-
ais, e o curso constituído por disciplinas singulares, por esta ou por
aquela ciência. Como esperar que o jovem sinta efetiva necessida-
de, num certo momento de sua vida, por tal ciência que foi inven-
tada por homens do passado?
Assim, o que um dia foi necessidade autêntica e viva de ho-
mens que se dedicaram por inteiro para criarem ciência tornou-se
agora realidade morta e um falso fazer. Não nos iludamos. Nesse
estado de espírito não se pode chegar a saber o saber humano.
Estudar, portanto, é algo constitutivamente contraditório e falso.
O estudante é uma falsificação do homem. Pois o homem só é
propriamente homem em nome de uma necessidade íntima e
inexorável. Ser homem não é ser, ou, para utilizarmos outros ter-
mos, não consiste em fazer uma coisa qualquer, mas em ser o que
é, irremediavelmente.
Há vários modos diferentes de ser homem, e todos eles igual-
mente autênticos. O homem pode ser homem de ciência e homem
de negócios, ou homem político, ou homem religioso, porque todas
essas são necessidades constitutivas e imediatas da condição huma-
na. Mas o homem, por si mesmo, não seria jamais estudante como
o homem por si mesmo não seria nunca contribuinte do imposto
de renda. O homem tem de pagar impostos, tem de estudar, não é
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nem contribuinte, nem estudante. Ser estudante, como ser contribu-
inte, é algo “artificial” que o homem se vê obrigado a ser.
O que pode, a princípio, parecer tão surpreendente é a pró-
pria tragédia da pedagogia, e é desse paradoxo tão duro que, a
meu ver, deve partir a reforma da educação.
É que a atividade regulada pela pedagogia, que chamado “estu-
dar”, é em si mesma algo humanamente falso. Digamos com clare-
za algo que não se costuma enfatizar tanto quanto se deveria: não há
nada tão constante e habitualmente tolerado em sua falsidade do
que o ensino. Bem sei que há também uma falsa Justiça. Sei que são
cometidos abusos nos julgamentos e audiências. Mas cada um de
nós, avaliando a experiência que tem, chegará à conclusão de que até
seria bom se no âmbito do ensino tivéssemos apenas as insuficiênci-
as, as falsidades e os abusos que sofremos no plano jurídico. O que
na Justiça é considerado abuso intolerável – “que a justiça não seja
feita” – é analogamente quase o normal no plano do ensino, a saber:
que o estudante não estude, e que, estudando, ainda que se dedique
ao máximo, não aprenda. É claro que se o estudante não aprende,
seja qual for o motivo, o professor não poderá afirmar que ensina.
Poderá dizer, no máximo, que tenta, mas não consegue ensinar.
E cada vez cresce de modo gigantesco, geração após geração,
a quantidade pavorosa dos saberes humanos que o estudante tem
de assimilar, tem de estudar. E à medida que o saber aumenta, e se
enriquece, e se especializa, mais dificilmente o estudante sentirá por
esse saber uma necessidade imediata e autêntica. Ou seja, cada vez
haverá menos congruência entre o triste fazer humano que é estu-
dar e o admirável fazer humano que é o verdadeiro saber. E essa
situação tornará mais terrível ainda a dissociação, que se iniciou há
um século pelo menos, entre a cultura viva, entre o saber autêntico,
e o homem médio. Ora, como a cultura ou o saber são reais ape-
nas enquanto respondem e satisfazem, numa ou noutra medida, as
necessidades efetivamente sentidas, e o modo de transmitir a cul-
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COLEÇÃO EDUCADORES
tura é o estudar, e esse não é sentir essas necessidades, ocorrerá que
a cultura ou o saber estarão no ar, desprovidos das raízes da since-
ridade no homem médio, que é obrigado a engolir esse saber.
Introduz-se, assim, na mente humana, um corpo estranho, um
repertório de ideias mortas, inassimiláveis, inertes. Essa cultura
desenraizada no homem, que não nasce nele espontaneamente,
carece de autoctoneidade, não é algo nativo, mas imposto,
extrínseco, estranho, ininteligível. Em suma, algo irreal. Por baixo
da cultura recebida, mas não autenticamente assimilada, ficará o
homem, intocado, isto é, inculto e bárbaro.
Quando o saber era mais resumido, mais elementar e mais
orgânico, era mais fácil e verdadeiramente sentido pelo homem
médio, que o assimilava, que o recriava e revitalizava dentro de si.
Assim podemos entender o colossal paradoxo destas últimas dé-
cadas: um gigantesco progresso da cultura produziu um tipo de
homem como o de hoje, indiscutivelmente mais bárbaro que o de
cem anos atrás (...).
Reformar o estudo e o estudante (pp. 553-554)
É preciso, portanto, estudar. Trata-se de uma necessidade do
homem, mas uma necessidade externa, mediata, como mediata e
externa é seguir à direita, no trânsito, se o guarda indica que devo
fazê-lo. Mas existe entre essas duas necessidades externas – estudar e
virar à direita – uma diferença essencial, que converte o estudo num
problema de primeira ordem. Para que os carros circulem melhor
nas ruas, não é preciso que eu sinta intimamente a necessidade de
seguir à direita, basta-me entrar à direita, basta que aceite a indicação
do guarda, basta fingir que sinto intimamente essa necessidade.
Contudo, no caso do estudo não ocorre desse modo. Para
que eu entenda de verdade uma ciência não basta que eu finja em
mim que tenho necessidade dela ou, em outros termos, não basta
que eu tenha vontade de aceitá-la. Enfim, não basta estudar. É
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preciso, além disso, que eu sinta autenticamente sua necessidade,
que as questões a ser estudadas me preocupem espontânea e ver-
dadeiramente. Somente assim compreenderei as soluções que ela
oferece ou pretende oferecer para essas questões. Muito dificil-
mente uma pessoa entenderá uma resposta se não tiver sentido a
pergunta correspondente.
Estudar é, pois, diferente da questão sobre seguir à direita no
trânsito. Nesse caso do trânsito, é suficiente que me exercite para
atingir o efeito desejado. No caso do estudo, não. Não basta ser
bom estudante para que consiga assimilar a ciência. Temos, por-
tanto, no estudo um fazer do homem que se nega a si mesmo: é ao
mesmo tempo necessário e inútil. Necessitamos estudar para atin-
gir determinada finalidade, mas de fato o estudo é inútil.
A necessidade e a inutilidade do estudo são verdadeiras, e por isso
estudar é um problema. Um problema é sempre uma contradição
que a inteligência encontra diante de si, e que a puxa em duas dire-
ções opostas, e ameaça destroçá-la.
A solução para problema tão cruento nasce de tudo o que disse
até agora: não consiste em decretar que não se abandone o estudo,
mas em reformar profundamente esse fazer humano que é estudar
e, por consequência, reformar o estudante. Para isso, é preciso virar
o ensino pelo avesso e dizer: ensinar, primária e fundamentalmente,
é ensinar a necessidade de uma ciência e não ensinar a ciência cuja
necessidade seja impossível fazer o estudante sentir.
Apontamentos para uma educação para o futuro
42
I. A junta do Fundo para o Avanço da Educação
43
comunica-
nos sua convicção de que “o problema principal no progresso da
42
Extraído de http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/cadernos/futuro/
educ%20para%20o%20futuro.pdf: ORTEGA Y GASSET, J. Apuntes sobre una educación
para el futuro. In Mission de la Universidad. Madri: Alianza Editorial, S. A, 1982, pp. 225-
238). (Trabalho original publicado em 1961.)
43
Fund for the Advancement of Education, em inglês no original. (Nota do tradutor.)
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COLEÇÃO EDUCADORES
educação é o esclarecimento da filosofia da educação, mas que esse
é, por sua vez, impossível de atingir sem um esclarecimento filosó-
fico geral tão amplo e profundo como a esfera inteira das ideias
fundamentais”. A esse raciocínio da junta não parece poder opor-se
qualquer objeção. A ideia de educação leva inevitavelmente à ideia
de uma teoria da educação e esta, por sua vez, reclama com lógica
inegável, uma teoria das coisas humanas, “um esclarecimento filosó-
fico geral” no qual a teoria da educação possa apoiar seus sólidos
fundamentos. Até aqui, seguimos um impecável movimento teórico
que nos faz avançar de uma ideia a outra.
Mas quando a junta quer dar um passo além no seu raciocínio,
adverte que não o pode fazer, porque, ao buscar essa clarificação
filosófica geral
44
, chega à conclusão de que, em vez de uma, exis-
tem hoje várias, diferentes [umas das outras], contrapostas e que
chocam entre si, tornando impossível uma doutrina orgânica e
sólida sobre a educação. Essa advertência não é já um mero passo
no raciocínio puramente teórico, mas apenas o tropeçar numa re-
alidade brutal, na realidade histórica em que estamos submergi-
dos, aquilo a que a junta chama “a diversidade histórica do nosso
tempo”. Isso leva-a, não a retificar, mas sim a suspender seu raci-
ocínio anterior, convencida de que é iniludível a clarificação dessa
questão, as suas causas e consequências para a educação, antes de
prosseguir a trajetória que começou por desenhar. Por tudo isso,
nos propõe que nos ocupemos dela.
Se nos recordarmos agora qual foi o ponto de partida, desco-
brimos que chegamos a uma situação paradoxal e que, teorica-
mente, pareceria uma contradição. Começamos por dizer que o
“problema primário no progresso da educação era o esclareci-
mento da filosofia da educação”, mas constatamos que, antes des-
se problema primário, existe outro, ao qual não chegamos pela via
da razão, mas que nos chegou sob a forma de fato bruto: “a diver-
44
General philosophical clariphication, em inglês no original. (Nota do tradutor.)
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sidade filosófica do nosso tempo”. Seria um erro chamar àquele o
problema primário para quem quer trabalhar no progresso da
educação? Creio que não; assim estaria bem denominado porque,
em boa ordem teórica, era o primeiro. No entanto, antes de toda a
teoria, o homem depara-se sempre com um problema realmente
anterior a todos os demais, problema a que chamaremos “prévio”.
Com efeito, o homem encontra-se sempre com um problema pré-
vio que é seu tempo, o tempo em que lhe ocorre viver, cujas carac-
terísticas são sempre diferentes das de todos os outros tempos. O
caráter histórico da realidade humana faz inexoravelmente do ho-
mem um servo da gleba que é “nosso tempo”. Há momentos em
que esse problema prévio é apenas apercebido, é mero pormenor,
mas há outros em que “nosso tempo” se interpõe angustiosamente
entre nós e tudo o que queremos fazer ou ser. Encontramo-nos hoje
numa etapa dessa última classe e, por isso, a junta, ao querer começar
a andar, teve de tropeçar com “nosso tempo” no aspecto daquilo a
que chama a “diversidade filosófica” do presente.
Somos convidados a estudar essa “diversidade filosófica”, cada
um segundo a perspectiva que lhe pareça mais importante. O que
acabo de dizer indica qual a perspectiva que vou considerar nas
conversas desses dias e que pode formular-se do seguinte modo:
muitas vezes na História tem havido “diversidade filosófica” mas,
mesmo tendo sido sempre um estorvo para a educação, nunca
como hoje ameaçou constituir-se como uma dificuldade tão gra-
ve. No presente, a “diversidade filosófica” mostra pois sinais de
uma gravidade insólita, talvez única. Graves sinais que se originam
na insólita situação global em que o homem se encontra hoje, situ-
ação que só se pode clarificar se se tiverem em conta todos os
outros traços particulares do nosso tempo.
Com isso, surge antecipado meu juízo sobre a nova instituição
que a junta projeta. Esta deverá ser, na minha opinião, completa-
mente distinta de todas as que existem, pois não parece haver ur-
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gência de criar mais um outro organismo, que continue a cultivar
as disciplinas tradicionais, enquanto um problema enorme, urgen-
te e angustioso espera ser estudado a fundo, por uma equipe de
pessoas capacitadas. Esse problema prévio é o problema do “nosso
tempo”. Tentarei sugerir, numa das próximas sessões, como se
poderá realizar isso concretamente. A forma de uma instituição
intelectual, se é autêntica, justificada e original, vem dada pela pe-
culiaridade do próprio problema do qual se encarrega.
II. Começo por supor que a junta entende por filosofia, se-
gundo o uso que a palavra tem na língua comum da América,
toda a ideia ou interpretação geral do mundo e do homem. Nesse
sentido, uma religião é uma filosofia, apesar de existirem filosofias
que não são religiões, mas sim corpos doutrinais que são, ou pre-
tendem ser, científicos. “Diversidade filosófica” significaria que,
numa coletividade, numa sociedade, num povo, numa nação ou
como se lhe queira chamar, existe uma pluralidade de tais interpre-
tações do mundo e do homem. Nesse sentido, a “diversidade
filosófica” existiu quase sempre, pois, em todas as partes, ao longo
da história, houve alguns indivíduos que pensavam de forma dis-
tinta dos demais sobre o homem e o mundo. Mas, entendida as-
sim, a “diversidade filosófica”, não interessa ao nosso propósito.
Só começa a interessar-nos quando cada uma dessas filosofias foi
adotada e é apoiada por uma porção ampla do grupo social. En-
tão, a “diversidade filosófica” representa um indicador do estado
de dissociação, de insuficiente coesão no grupo social. Isto é já
mais grave que uma simples divergência nas maneiras de pensar.
Vista assim, no seu contexto histórico, a “diversidade históri-
ca”, se nos apresenta com duas dimensões: uma, a extensão de
cada uma das filosofias no grupo social; outra, o grau de diver-
gência e, portanto, de incompatibilidade entre elas. Essas duas di-
mensões permitem-nos equacionar a importância que a “diversi-
dade filosófica” teve em cada momento da história.
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ORTEGA Y GASSET
Na Europa, até a Reforma, essas duas dimensões, a saber: a
incompatibilidade e a extensão das diversas filosofias não tiveram
verdadeira importância. O caso mais agudo, apesar de breve no
tempo e reduzido territorialmente, foi a heresia albigense.
Mas a Reforma dividiu em duas facções várias nações da Eu-
ropa. Dizendo isso respeito a duas filosofias que tinham base comum
– o Cristianismo. Não obstante, a cisão dos grupos sociais foi tão
profunda que originou a época denominada “guerras de religião”.
O cansaço da luta fez com que, pela primeira vez, surgisse na
Europa o princípio da tolerância ao qual o filósofo Locke deu
expressão teórica.
No entanto, a tolerância, por sua vez, tornou possível que se
expandisse, por todo o Ocidente, uma nova filosofia, que não era
religiosa: o racionalismo do século XVIII. Essa filosofia transpor-
tava em si um imperativo que, até então, não tinha tomado parte na
história: o imperativo de reformar. Sempre se tinham feito refor-
mas num determinado ponto da legislação e, por vezes, a reforma
tinha sido de grandes proporções, mas nunca se tinha sido “refor-
mista”, isto é, nunca se tinha reformado por princípio e com von-
tade formal de reformar. Mais, as maiores reformas não tinham
sido premeditadas tendo antes sido resultados. A maior mudança na
história antiga – a transformação da República Romana em Im-
pério Romano – não foi realizada segundo uma ideia preconce-
bida. A verdade é que ninguém, nem mesmo César e menos ainda
Augusto, quis antecipadamente a estranha forma de Estado que
foi o Império Romano. Isto é a tal ponto verdade que hoje, retros-
pectivamente e com todos os fatos à vista, não nos é possível
defini-lo como instituição jurídica. Foi um feito gigantesco que
não foi nunca um “direito”.
O racionalismo do século XVIII propunha-se reformar radi-
calmente o Estado. Esse propósito era em si mesmo revolucioná-
rio, pois equivalia a romper na ordem política toda a continuidade
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com o passado. Tal desejo tinha de resultar, por força, no terrível
acontecimento que foi a Revolução Francesa e nos outros, meno-
res em aparência trágica, mas com o mesmo sentido, que se pro-
duziram em todas as nações do continente europeu. Esse
racionalismo reformista era menos compatível com as religiões
tradicionais que estas entre si. Por isso, a revolução deixou o corpo
social mais profundamente fracionado em cada nação do que as
guerras de religião. Divisão que se perpetuou até aos dias de hoje.
De qualquer forma, por muito divergente que tivesse sido o
racionalismo reformista das filosofias religiosas antes reinantes, a in-
compatibilidade não era extrema. Sob suas profundas diferenças
jazia, todavia, um subsolo de crenças comuns ao qual, na luta, se
podia recorrer. Essas crenças comuns podem resumir-se em três. A
primeira, todos acreditavam na cultura, nas ciências, nas letras, nas
artes e na técnica; ainda que com algumas reservas, as religiões man-
tinham-se solidárias com isso a que acabo de chamar cultura. A
segunda crença consistia na aceitação das normas morais que se ha-
viam estabelecido nos séculos precedentes. A terceira crença era a
ideia de pátria. Essa base comum, depois da turbulência revolucio-
nária, permaneceu destacada e como que em primeiro plano, com-
pensando a divisão efetiva que continuava a existir em cada povo.
Assim foram possíveis as etapas de calma interior que as nações
gozaram durante o século XIX.
O panorama até aqui traçado não tem outra intenção que não
seja tornar possível, por contraste, caracterizar, em pouquíssimas
palavras, a “diversidade filosófica” atual.
III. Que traços saltam mais à vista quando se querem hoje
buscar as bases para uma filosofia da educação?
O racionalismo reformista era radical na execução do seu pro-
grama, mas o programa das suas ideias, quer dizer, sua filosofia,
não era radical pois, como foi dito, conservava uma base que era
comum com as outras filosofias. A dissociação do corpo coletivo
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foi mais profundo. Por assim dizer, os dois segmentos da nação
permaneciam separados até ao solo, mas continuavam unidos no
subsolo: na fé, na cultura, na adesão a uma moral comum, na
fidelidade à pátria.
Mas, no começo do século XX, a expansão do socialismo
inicia uma situação nova. O socialismo – e refiro-me à filosofia
socialista – não reconhece os valores da cultura. Não aceita a ciên-
cia, a não ser na medida em que se coloque ao serviço da classe
proletária e adota uma atitude análoga frente às letras e às artes.
Também não se inclina perante a ideia de pátria. Pelo contrário,
pede aos trabalhadores que se dissociem totalmente do resto da
sua nação e se unam aos trabalhadores dos outros países. Com a
agudização do socialismo, na forma do comunismo, dá-se o último
passo nesse fracionamento. O comunismo ataca inteiramente a
moral estabelecida, substituindo-a por outra que é contrária da-
quela. Por exemplo, o filho tem a obrigação de denunciar seu pai.
Com tudo isso, desapareceu por completo aquele subsolo
comum sobre o qual as nações do Ocidente – e refiro-me espe-
cialmente ao continente – podiam viver com um resíduo de uni-
dade interior. Agora, a incompatibilidade das filosofias tornou-
-se extrema.
Percebemos agora o primeiro traço característico da “diversi-
dade filosófica” no nosso tempo, a saber: o extremismo. Porque,
inevitavelmente, o extremismo comunista levou as outras filosofi-
as a tornarem-se extremistas. A negação extrema da ideia de pátria
suscitou as filosofias nacionalistas, não menos extremistas e,
inclusivamente, as religiões tradicionais começam a adotar atitudes
extremistas, onde quer que o poder público lhes seja favorável.
Não é, contudo, o extremismo a que acabo de referir-me o
aspecto que me parece mais grave, apesar de ser muito grave, na
atual “diversidade filosófica”. Há outro lado desse ingente fenô-
meno que nos deve preocupar mais.
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Até o começo deste século, o sistema de valores e de normas
a que chamamos “cultura ocidental”, havia atuado como um tra-
vão que impedia as atitudes extremas. A cultura representava um
repertório de instâncias últimas a que era possível recorrer com a
confiança de que essas instâncias impunham sua autoridade sobre
as almas. Por exemplo: o homem ocidental tinha fé na razão, o que
fazia desta uma instância suprema, à qual devia submeter as con-
tendas e as discrepâncias.
Mas o predomínio que os extremismos adquiriram em amplas
proporções no mundo ocidental demonstra que o travão da cultura
se debilitou. O que não poderia ter ocorrido se a cultura ocidental,
ela mesma, não se encontrasse num estado anormal. Por isso, pare-
ce-me difícil estudar adequadamente a atual “diversidade filosófica”
se não se desloca nossa atenção para a contemplação desse estado
anormal da nossa cultura porque, em todas as suas dimensões, sur-
gem fenômenos inquietantes desde há trinta ou quarenta anos.
Basta recordar o que é hoje a pintura, a música ou a literatura.
Não está em causa a apreciação pessoal que essas produções me-
reçam, mas, sim, o caráter inquestionavelmente estranho que os-
tentam, caráter em que se manifesta uma vontade de ruptura com
a continuidade cultural, não só do Ocidente, mas talvez de toda a
cultura conhecida. A questão é grave porque a arte, mercê de um
elemento muito tênue, costuma ser a produção humana que mais
rapidamente acusa as tendências profundas que germinam na hu-
manidade, tal como o fumo das chaminés anuncia a mudança dos
ventos. O menos que se pode dizer é que a arte do nosso tempo é
toda ela problemática e que nela se manifesta também a condição
de extremista; como se a arte houvesse chegado ao seu extremo.
O mesmo ocorre com a técnica. Seu prodigioso avanço deu
lugar a inventos nos quais o homem, pela primeira vez, fica aterrado
com sua própria criação. Em nada como aqui aparece clara a situa-
ção atual do homem: é como se tivesse chegado à fronteira de si
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mesmo. A técnica que foi criando e cultivando para resolver os pro-
blemas – sobretudo materiais – da sua vida, converteu-se, ela mes-
ma, prontamente, num angustioso problema para o homem.
Por fim, se dirigirmos nosso olhar para as fundações mais
íntimas das ciências fundamentais – física, matemática e lógica –
que são como barras de ouro que garantiam o crédito da nossa
cultura, descobriremos sintomas de alguma maneira parecidos aos
mais visíveis e grandiosos que acabo de recordar. Nesse caso – e é
mais uma prova do caráter exemplar dessas ciências –, esses sinto-
mas estranhos não procedem de uma decadência das disciplinas
citadas ou de que sejam cultivadas defeituosamente, antes pelo
contrário. Foi precisamente o glorioso progresso que essas ciências
produziram nos últimos tempos que produziram o fenômeno que,
talvez inadequadamente, se costuma chamar por “crise dos princí-
pios” na física, matemática e lógica.
O que pretendi, de forma mais sublinhada, é aquilo que, nesse
caso, se manifesta com perfeita claridade. A saber, que a situação
difícil a que uma atividade humana chega, não significa, forçosa-
mente, defeito ou degeneração, mas que, pelo contrário, pode ter-
se originado do próprio progresso dessa atividade. Pela minha
parte, generalizo essa advertência, extendendo-a a tudo o que disse
antes. O inventário de caracteres problemáticos que fiz, aludindo a
fenômenos sobejamente conhecidos por todos, não implica uma
visão pessimista do nosso tempo, mas leva, isso sim, à intenção de
fazer notar o seguinte: na atual “diversidade filosófica”, a dificul-
dade extrema em elaborar uma sólida filosofia da educação que
oriente um importante progresso da educação não parece poder
ser tratada de forma fértil e firme, se não se fizer antes um estudo
profundo da situação humana, no nosso tempo. De tal modo, esta
nova problemática, que não pode ser interpretada e entendida se a
olharmos do passado, com os conceitos já estabelecidos e mais ou
menos tradicionais, antes exige ser considerada como um ingente
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problema de novo estilo. E o que surpreende é que, embora exis-
tam tantos homens que têm clara consciência do problema do
nosso tempo, homens que se sentem, na sua vida prática, desorien-
tados e, com frequência, gravemente angustiados, não se tenha
tentado nunca estudar energicamente e em ampla colaboração que
é o nosso tempo e por que é assim.
Não creio que haja questão mais importante nem mais digna
para ocupar a atenção de um organismo dedicado a tentar resol-
ver o progresso da educação.
IV. O comitê da junta manifesta sua convicção de que seria
necessário criar uma nova instituição, com a finalidade de estudar a
fundo todas as questões que é necessário esclarecer se se quer cons-
tituir uma sólida filosofia da educação. Tanto no relatório do co-
mitê como em outras comunicações aparece, em muitas das for-
mulações empregadas, uma consciência muito viva de que nos
encontramos numa situação de ideias que impede, sem mais, pro-
ceder à elaboração de uma filosofia da educação. Mas, por outro
lado, o comitê parece orientar seu projeto segundo a figura da
Royal Society, o que, a meu ver, modifica por completo o sentido
daquelas formulações. A criação da Royal Society não resultou de
estar perante uma situação confusa de ideias e atitudes mas, muito
pelo contrário, teve por base uma fé precisa e clara na conveni-
ência de fomentar o cultivo de certas disciplinas científicas que,
durante o século anterior, se tinham iniciado, e que, com efeito,
viriam a ser, num magnífico desenvolvimento, o tesouro mais ca-
racterístico da cultura ocidental na época moderna. Nem na uni-
versidade, tal como era então, nem fora da universidade existiam
organismos encarregados da investigação no sentido das novas
ciências. Motivo semelhante levou à instauração do Collège de
France que se propunha estudar as novas disciplinas humanistas
em face da Sorbonne, que perpetuava as tradições intelectuais da
Idade Média.
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Esse caminho levaria a que a instituição projetada fosse ape-
nas mais uma entre os muitos organismos, hoje existentes, que se
ocupam das ciências para nós já tradicionais e das suas crescentes
especializações.
Sem dúvida que é uma obra estimável, adicionar às já existen-
tes, uma outra instituição desse tipo. Mas não parece que sua cria-
ção e seu funcionamento modificasse, em medida apreciável, a
configuração do nosso estado cultural.
Reconheçamos – pois o fato é sobejamente patente – que vive-
mos numa conjuntura cultural aproximadamente inversa à que ins-
pirou aquelas ilustres instituições. Hoje não é urgente criar novo or-
ganismo para estimular, suportar e dar apoio à investigação científi-
ca, pois há muitos que servem esta função. Pelo contrário, é sim
urgente, como diz o relatório, “um esclarecimento das ideias e dos
conceitos básicos da cultura ocidental”. Esse tema, devidamente espe-
cificado, é sim uma matéria de grande magnitude histórica que nunca
foi estudada cooperativamente e cuja clarificação seria uma das mais
férteis e das mais profundas consequências para o futuro próximo.
Ter tido a consciência da sua importância e ter sentido a vontade de
empreender essa tarefa, bastaria para enaltecer o espírito na junta.
No entanto, é preciso não confundir esse magnífico tema
com o que habitualmente consiste no progresso das ciências. Esse
progresso é bem sustentado e o que, por outro lado, se mostra
cada dia mais necessário e urgente, é um progresso na clarificação
da situação presente do homem ocidental.
Devíamos surpreender-nos mais que não se tenha feito qual-
quer tentativa para reunir uns quantos homens de mentalidade
adequada para trabalharem coletiva e continuadamente sobre essa
questão. Como se explica esta falta de tal vontade? Talvez haja
várias causas, mas há uma que me interessa sublinhar.
Nas ciências e nos homens que se interessam pelo seu pro-
gresso, existe a tendência para não reconhecer como problemas
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que podem e devem ser cientificamente estudados senão aqueles
que surgem dentro do desenvolvimento interior de cada ciência.
Um problema humano que sentimos atuar gravemente sobre nossa
vida, mas que não se apresenta com um perfil que permita atribuí-
-lo a uma ciência determinada, fica fora de todo o tratamento inte-
lectual rigoroso.
Mas o caso é que as ciências modernas – e algo semelhante
caberia dizer das iniciadas na Grécia – nasceram da resolução que
alguns homens tomaram de refletir sobre problemas que não go-
zavam de prévia consagração teórica, mas que eram problemas da
prática humana. Recorde-se Galileu, jovem, ocupando-se das gru-
as, cabrestantes e roldanas do porto. Ali surgiu a física. A biologia
que até muito tarde no século XVIII consistia quase exclusivamen-
te na anatomia e na sistemática, pôs-se em movimento para ser
uma ciência completa graças ao esforço dos médicos – não dos
teóricos de zoologia ou botânica – que, para curarem seus doen-
tes, decidiram avançar hipóteses e investigações, das quais nasceu a
Fisiologia e, com ela, o enorme desenvolvimento das disciplinas
que estudam os corpos orgânicos.
Adiro completamente ao relatório do comitê quando diz que
o esclarecimento do pensamento educativo depende de um esclareci-
mento tão amplo e profundo como é a esfera de todas as ideias
fundamentais.
No entanto, esse empreendimento é tão extenso que ameaça o
perigo de que a nova instituição se perca no seu vasto horizonte.
É, pois, preciso proceder passo a passo e representar o trabalho
que naquela se há de fazer, dividido em etapas sucessivas.
Por isso, penso que o método prático para chegar a uma filo-
sofia da educação não é começar por obter esse “esclarecimento
filosófico”, cujo perfil de questões é difícil precisar de antemão. O
primeiro passo, a meu ver, é alcançar uma visão clara da figura
concreta que tem hoje a vida do homem ocidental.
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Não convém perder de vista a intenção original que é a educa-
ção. Trata-se de constituir um sistema educativo para as próximas
gerações. Não é indispensável sentirmo-nos na posse de uma ideia
clara sobre qual vai ser, nas suas linhas gerais, a estrutura da vida
dentro da qual vão viver essas gerações? Se acreditarmos que no
presente predominam os traços tradicionais do que foi a existência
do homem ocidental, talvez pudéssemos não nos preocuparmos
com fazer prognósticos para o futuro próximo. Mas a realidade é
que o próprio presente é problemático para nós. Isso obriga a
estudá-lo o mais profundamente possível, porque o futuro fer-
menta já no presente, de tal forma que, se se faz um sério diagnós-
tico da hora em que vivemos, há grandes probabilidades de que
possamos formar um prognóstico acertado.
Não bastam as instituições fragmentárias propostas por esse
ou aquele pensador individual, nem podemos contentar-nos com
a fisionomia superficial do nosso tempo que os fatos à vista ofere-
cem. Há que proceder com rigor e amplitude ao seu estudo.
Ao não seguir esse método, tornou-se quase constitutivo da
pedagogia moderna um tenaz anacronismo (que, caso tenha oca-
sião, referirei nas nossas conversas) que, em última análise, radica
no fato de as ideias educativas estarem quase sempre atrasadas em
respeito às formas de vida imperantes. Esquece-se que a educação
consiste em preparar, no presente, vidas futuras.
Pensando assim, representaria dessa maneira a nova instituição:
1º) Começar-se-ia por reunir um grupo de umas quantas pes-
soas de capacidade superior, cuja primeira ocupação seria che-
gar, aproximadamente, a um acordo sobre quais são as carac-
terísticas do nosso tempo mais inquietantes e problemáticas.
2º) Uma vez conseguido isso, o grupo inicial, juntamente com
o comitê da junta, encarregaria equipes de homens adequados
para estudar a fundo cada uma dessas características.
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COLEÇÃO EDUCADORES
Vida nobre e vida vulgar, ou esforço e inércia (pp. 79-84)
Em princípio, somos aquilo que nosso mundo nos convida a
ser, e as partes fundamentais de nossa alma são imprimidas nela de
acordo com o perfil de seu contorno, como se fosse um molde.
Naturalmente: viver não é mais do que lidar com o mundo. As
características gerais que ele nos apresentar serão as características
gerais de nossa vida.
Por isso, insisto tanto em ressaltar que o mundo onde as mas-
sas atuais nasceram mostrava uma fisionomia radicalmente nova
na história. Enquanto no passado viver significava para o homem
médio encontrar em seu redor dificuldades, perigos, escassez, li-
mitações de destino e dependência, o mundo novo aparece como
um âmbito de possibilidades praticamente ilimitadas, seguro, em
que não se depende de ninguém.
Em volta dessa impressão primária e permanente, vai-se for-
mar cada alma contemporânea, como em torno da oposta se for-
maram as antigas. Porque essa impressão fundamental se converte
em voz interior que murmura sem cessar, como palavras, no mais
profundo da pessoa, e insinua tenazmente uma definição de vida
que é, ao mesmo tempo, um imperativo. E se a impressão tradici-
onal dizia: “Viver é sentir-se limitado e, por isso mesmo, ter de
considerar o que nos limita”, a voz novíssima grita: “Viver é não
ter limite algum; portanto, é abandonar-se tranquilamente a si mes-
mo. Praticamente nada é impossível, nada é perigoso e, em princí-
pio, ninguém é superior a ninguém”.
Essa experiência básica modifica completamente a estrutura
tradicional, perene do homem-massa. Porque este sempre se sen-
tiu constitutivamente ligado a limitações materiais e a poderes so-
ciais superiores. A seus olhos, isso era a vida. Se conseguia melho-
rar sua situação, se ascendia socialmente, atribuía tudo isso à sorte,
que lhe era nominativamente favorável. E, quando não a isso, a
enorme esforço que ele sabia muito bem o quanto lhe tinha custa-
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do. Em qualquer dos casos, tratava-se de uma exceção que, como
tal, era devida a alguma causa muito especial.
Mas a nova massa encontra a plena franquia como estado natu-
ral e estabelecido, sem causa especial alguma. Nada de fora a leva a
reconhecer limites e, portanto, a contar com outras instâncias a todo
momento, especialmente com instâncias superiores. O camponês da
China acreditava, até a bem pouco tempo, que o bem-estar de sua
vida dependia das virtudes particulares que o imperador houvesse
por bem possuir. Portanto, sua vida estava constantemente ligada a
essa instância suprema de que dependia. Mas o homem que estamos
analisando está habituado a não apelar por si mesmo a nenhuma
instância fora dele. Está satisfeito do jeito que é. Ingenuamente, sem
ser arrogante, como a coisa mais natural do mundo, tenderá a afir-
mar e a qualificar como bom tudo o que tem em si: opiniões, ape-
tites, preferências ou gostos. Por que não, se (...) nada nem ninguém
o força a tomar consciência de que é um homem de segunda classe,
limitadíssimo, incapaz de criar ou conservar a própria organização
que dá à sua vida essa amplitude e esse contentamento, nos quais se
apoia tal afirmação de si próprio?
O homem-massa jamais teria apelado para qualquer coisa fora
dele se a circunstância não o tivesse forçado violentamente a isso.
Como as circunstâncias atuais não o obrigam, o eterno homem-
massa, de acordo com sua índole, deixa de apelar e se sente senhor
de sua vida. Já o homem especial ou excelente está constituído por
uma íntima necessidade de apelar por si mesmo para uma norma
além dele, superior a ele, a cujo serviço se coloca espontaneamen-
te. Lembramos que, no começo, distinguíamos o homem excelen-
te do homem vulgar dizendo: que aquele é o que exige muito de si
mesmo, e este é o que não exige nada, mas está satisfeito com o
que é, está encantado consigo.
Ao contrário do que se costuma pensar, é a criatura de seleção,
e não a massa, que vive em servidão essencial. Sua vida não tem
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sabor se não está a serviço de algo transcendente. Por isso, não vê
a necessidade de servir como uma opressão. Quando esta, por
acaso, lhe falta, sente-se inquieto e inventa novas normas mais difí-
ceis, mais exigentes, que o oprimam. Isso é a vida como disciplina
– a vida nobre.
A nobreza define-se pela exigência, pelas obrigações, não pe-
los direitos. Noblesse oblige. “Viver à vontade é de plebeu: o nobre
aspira à ordem e à lei.” (Goethe) Os privilégios da nobreza não
são originariamente concessões ou favores, mas, ao contrário, são
conquistas. E, em princípio, sua manutenção supõe que o privilegi-
ado seria capaz de reconquistá-las a qualquer instante, se fosse ne-
cessário e alguém o questionasse. Os direitos privados ou privilé-
gios não são, portanto, a posse passiva e o simples gozo, mas re-
presentam o perfil de até aonde vai o esforço da pessoa. Já os
direitos comuns, como são os “do homem e do cidadão”, são
propriedade passiva, puro usufruto e benefício, dom generoso do
destino que todo homem tem e que não corresponde a nenhum
esforço que não seja respirar e evitar a demência. Portanto, eu diria
que o direito impessoal se tem e o pessoal se mantém.
É irritante a degeneração sofrida por uma palavra tão inspira-
dora como “nobreza”, no vocabulário usual. Porque o fato de
significar para muitos “nobreza de sangue”, hereditária, a transfor-
ma em algo parecido com os direitos comuns, em qualidade está-
tica e passiva, que se recebe e transmite como uma coisa inerte.
Mas o sentido próprio, o etymo do vocábulo “nobreza” é essenci-
almente dinâmico. Nobre significa o “conhecido”, entenda-se o
conhecido por todo mundo, o famoso, que se fez conhecer por
sobressair da massa anônima. Implica um esforço insólito que
motivou a fama.
Nobre, portanto, equivale a corajoso ou excelente. A nobreza
ou fama do filho já é simples benefício. O filho é conhecido por-
que seu pai conseguiu ser famoso. É conhecido por reflexo, e, de
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fato, a nobreza hereditária tem um caráter indireto, é luz refletida,
é nobreza lunar como se fosse feita com mortos. Dela só resta de
vivo, autêntico, dinâmico, a incitação que produz no descendente
de manter o nível de esforço atingido pelo antepassado. Mesmo
nesse sentido desvirtuado, noblesse oblige sempre.
O nobre originário se obriga a si mesmo, e o nobre hereditá-
rio é obrigado pela herança. Há, de qualquer modo, certa contra-
dição na transferência da nobreza, do nobre inicial para seus suces-
sores. Os chineses, mais lógicos, invertem a ordem da transmissão,
e não é o pai quem enobrece o filho, mas é o filho que, ao conse-
guir a nobreza, a transmite para seus antepassados, fazendo so-
bressair sua estirpe humilde através de seu esforço (...).
A nobreza não aparece como termo formal até o Império
romano, e exatamente para se contrapor à nobreza hereditária, já
em decadência.
Nobreza, para mim, é sinônimo de vida dedicada, sempre dis-
posta a superar a si mesma, a transcender do que já é para o que se
propõe como dever e exigência. Dessa forma, a vida nobre se con-
trapõe à vida vulgar e inerte, que, estaticamente, se restringe a si mes-
ma, condenada à imanência perpétua, a não ser que algum fator ex-
terno a obrigue a reagir. Por isso, chamamos massa a esse modo de
ser homem – não tanto por ser multitudinário, mas por ser inerte.
Conforme se avança pela vida, vai-se notando de forma
indubitável que a maior parte dos homens – e das mulheres – é
incapaz de qualquer outro esforço que não seja o estritamente im-
posto como reação a uma necessidade externa. Por isso mesmo,
ficam isolados, como monumentos em nossa existência, os
pouquíssimos seres que conhecemos capazes de um esforço es-
pontâneo e magnificante. São os homens especiais, os nobres, os
únicos ativos e não apenas reativos, para os quais viver é uma
tensão permanente, um treinamento constante. Treinamento =
áskesis. São os ascetas.
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Esta aparente digressão não deve surpreender. Para definir o
homem-massa atual, que é tão massa como o de sempre, mas
quer suplantar os excelentes, é necessário contrapô-los às duas for-
mas puras que se mesclam nele: a massa normal e o autêntico
nobre ou o esforçado.
Agora já podemos avançar mais depressa, porque já conhece-
mos o que, na minha opinião, é a chave ou equação psicológica do
tipo humano hoje dominante. O que se segue é consequência ou
corolário dessa estrutura radical que poderia ser resumida assim: o
mundo organizado pelo século XIX, ao produzir automaticamen-
te um homem novo, deu-lhe apetites formidáveis, meios podero-
sos de toda ordem para satisfazê-los – econômicos, corporais (hi-
giene, saúde média superior à de todos os tempos), civis e técnicos
(entenda-se por estes a enormidade de conhecimentos parciais e
de eficiência prática que tem hoje o homem médio e de que sem-
pre careceu no passado).
Depois de lhe ter dado essas potências todas, o século XIX o
abandonou a si próprio, e então, seguindo sua índole natural, o
homem médio se fechou dentro de si. Desse modo, nos encontra-
mos com uma massa mais forte do que a de nenhuma outra época,
mas diferente da tradicional, fechada em si mesma, que não atende
a nada e a ninguém, acreditando que se basta a si própria – em
suma: indócil.
Se as coisas continuarem como até agora, cada dia se notará
mais em toda a Europa – e por sua influência em todo o mundo
– que as massas são incapazes de se deixarem conduzir sob qual-
quer aspecto. Nas horas difíceis que estão chegando para nosso
continente, é possível que, subitamente angustiadas, tenham um
momento de boa vontade e aceitem a direção de minorias superi-
ores, em certos assuntos de especial premência.
Mas, mesmo assim, essa boa vontade fracassará. Porque a tex-
tura básica de sua alma é feita de hermetismo e indocilidade, por-
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que lhes falta, por nascimento, a função de atender ao que está
além delas, sejam fatos ou pessoas. Quererão seguir alguém, e não
poderão. Quererão ouvir, e descobrirão que são surdas.
Por outro lado, é uma ilusão pensar que o homem médio vi-
gente, por mais que tenha subido seu nível vital em comparação
com o de outros tempos, irá poder dirigir, por si mesmo, o pro-
cesso da civilização. Já não digo o progresso, mas o simples pro-
cesso. O simples processo de manter a civilização atual é extrema-
mente complexo e requer sutilezas incalculáveis. Mal pode governá-
lo esse homem médio que aprendeu a usar muitos aparelhos da
civilização, mas que se caracteriza por ignorar a origem dos pró-
prios princípios da civilização.
Por que as massas intervêm em tudo e por que só intervêm
violentamente (pp. 85-92)
Dissemos que havia acontecido algo extremamente parado-
xal, mas que na verdade era muito natural: pelo fato de o mundo
e a vida se mostrarem abertos ao homem medíocre, sua alma se
fechou. Pois bem: sustento que nessa obliteração das almas medí-
ocres consiste a rebeldia das massas que, por sua vez, se constitui
no gigantesco problema de hoje para a humanidade.
(...) A pessoa tem um grupo de ideias dentro de si. Resolve
contentar-se com elas e se considera intelectualmente completa.
Por não sentir falta de nada que esteja fora dela, instala-se em defi-
nitivo naquele repertório. Eis o mecanismo da obliteração.
O homem-massa sente-se perfeito. Um homem excepcional,
para sentir-se perfeito, precisa ser em especial vaidoso, e a crença na
sua perfeição não está consubstancialmente unida a ele, não é ingê-
nua, mas nasce de sua vaidade, e mesmo para ele próprio tem um
caráter fictício, imaginário e problemático. Por isso, o vaidoso preci-
sa dos outros, procura neles a confirmação da ideia que quer ter de
si mesmo. De sorte que nem dessa forma patológica, nem “cego”
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pela vaidade, o homem nobre consegue se sentir verdadeiramente
completo. Já o homem medíocre dos nossos dias, o novo Adão,
nem pensa em duvidar de sua própria plenitude. Sua confiança em
si é como a de Adão, paradisíaca. O hermetismo nato de sua alma
impede o que seria a condição prévia para descobrir sua insuficiên-
cia: comparar-se com os outros seres. Comparar-se seria sair um
pouco de si mesmo e transferir-se para o próximo. Mas a alma
medíocre é incapaz de transmigrações de grande porte.
Assim, nos encontramos com a mesma diferença que existe
eternamente entre o tolo e o perspicaz. Este sempre surpreende
a si mesmo a um passo de ser tolo; por isso, se esforça para
escapar da iminente tolice, e nesse esforço consiste a inteligência.
O tolo, em troca, não desconfia de si: acha-se muito plausível, e
vem daí a invejável tranquilidade com que o néscio se planta em
sua própria estupidez. Como esses insetos que não há como se
tirar do buraco onde habitam, não há modo de se desalojar de
sua cegueira e obrigá-lo a comparar sua pobre visão habitual
com outros modos de ver mais sutis. O tolo é vitalício e sem
poros. Por isso, Anatole France dizia que um néscio é muito mais
funesto que um malvado. Porque o malvado descansa de vez em
quando: o néscio, jamais.
Não é que o homem-massa seja idiota. Ao contrário, o atual é
mais rápido, tem mais capacidade intelectiva que o de qualquer
outra época. Mas essa capacidade não lhe serve para nada; a rigor,
a vaga sensação de possuí-la só serve para ele fechar-se ainda mais
em si, e não para usá-la. Consagra em definitivo a coleção de tópi-
cos, preconceitos, pedaços de ideias ou, simplesmente, palavras
vazias que ao acaso foi amontoando em seu interior, e, com uma
audácia que só se explica pela ignorância, quer impô-los em qual-
quer lugar (...): não é que o vulgo pense que é excepcional e não
vulgar, mas sim que o vulgar proclama e impõe o direito da vulga-
ridade, ou a vulgaridade como um direito.
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O domínio que a vulgaridade intelectual exerce sobre a vida
pública de hoje é, talvez, o mais novo componente da situação atual,
o menos assimilável a qualquer coisa do passado. Pelo menos na
história europeia até hoje, o vulgo nunca havia achado que tinha
“ideias” sobre as coisas. Tinha crenças, tradições, experiências, pro-
vérbios, hábitos mentais, mas não se acredita possuidor de opiniões
teóricas sobre o que as coisas são ou devem ser – por exemplo,
sobre política ou sobre literatura. Achava bom ou mau o que o
político projetava e fazia; dava ou retirava sua adesão, mas sua atitu-
de resumia-se a repercutir, positiva ou negativamente, a ação criado-
ra dos outros. Nunca lhe ocorreu opor às “ideias” do político ou-
tras suas; nem sequer julgar as “ideias” do político através do tribu-
nal de outras “ideias” que acreditava ter. A mesma coisa se dava na
arte e nos demais setores da vida pública. Uma consciência inata de
sua limitação, de não estar qualificado para teorizar, impedia-o por
completo. A consequência automática disso era que o vulgo não
pensava, nem de longe, decidir em quase nenhuma das atividades
públicas, que em sua maior parte são de índole teórica.
Hoje, ao contrário, o homem médio tem as “ideias” mais taxativas
sobre tudo quanto acontece e deve acontecer no universo. Por isso,
perdeu a audição. Para que ouvir, se já tem tudo que precisa dentro
de si? Já não é tempo de escutar, mas, ao contrário, de julgar, de
sentenciar, de decidir. Não há questão da vida pública em que não
intervenha, cego e surdo como é, impondo suas “opiniões”.
Mas não seria isso uma vantagem? Não representa enorme pro-
gresso que as massas tenham “ideias”, isto é, que sejam cultas? De
modo algum. As “ideias” desse homem médio não são autentica-
mente ideias, nem sua posse é cultura. A ideia é um xeque à verdade.
Quem quiser ter ideias precisa antes se dispor a querer a verdade e a
aceitar as regras do jogo que ela imponha. Não se pode falar de
ideias ou opiniões quando não se admite uma instância que as regule,
uma série de normas que devem ser observadas na discussão.
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Essas normas são os princípios da cultura. Não importa quais
sejam. O que digo é que não há cultura onde não há normas a que
nossos próximos possam recorrer. Não há cultura onde não há
princípios de legalidade civil a que apelar. Não há cultura onde não
há respeito a certas posições intelectuais últimas a que se referir na
disputa. Não há cultura quando as relações econômicas não são
dirigidas por um regime comercial no qual se possa amparar. Não
há cultura onde as polêmicas estéticas não reconheçam a necessi-
dade de justificar a obra de arte.
Quando faltam todas essas coisas, não há cultura; há, no senti-
do mais estrito da palavra, barbárie. E isso é, queiramos ou não
admitir, o que começa a ocorrer na Europa sob a progressiva
rebelião das massas. O viajante que chega a um país bárbaro sabe
que naquele território não há princípios vigentes a que possa recor-
rer. Não há normas bárbaras propriamente. A barbárie é a ausên-
cia de normas e da possibilidade de apelação.
O grau de cultura é medido pela maior ou menor precisão
das normas. Onde há pouca, estas regulam a vida só grosso modo;
onde há muita, penetram até nos detalhes do exercício de todas as
atividades. A escassez da cultura intelectual espanhola, isto é, do
cultivo ou exercício disciplinado do intelecto, manifesta-se, não
pelo fato de se saber mais ou menos, mas pela habitual falta de
cautela e cuidados para se ajustar à verdade que costumam de-
monstrar os que falam ou escrevem. Não se manifesta, pois, no
fato de se acertar ou não – visto que a verdade não está em nossas
mãos –, mas na falta de escrúpulo em não se atender aos requisitos
elementares para se acertar. Continuamos sendo o eterno cura de
aldeia que rebate triunfante o maniqueu, sem antes ter-se preocu-
pado em averiguar o que ele pensa.
Qualquer um pode perceber que de alguns anos para cá co-
meçaram a ocorrer “coisas raras” na Europa. Para dar algum exem-
plo dessas coisas raras, mencionarei certos movimentos políticos,
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como o sindicalismo e o fascismo. Não se pense que parecem
raros simplesmente porque são novos. O entusiasmo pela inova-
ção é ingênito de tal modo no europeu, que o levou a produzir a
história mais inquieta de quantas se conhece. Portanto, não se deve
atribuir o que esses fatos têm de raro ao que têm de novo, mas sim
à estranha bitola dessas novidades.
Entre as espécies de sindicalismo e fascismo aparece pela pri-
meira vez na Europa um tipo de homem que não quer dar razões
nem quer ter razão, mas que, simplesmente, se mostra decidido a
impor suas opiniões. Aqui está o novo: o direito a não ter razão, a
razão da sem razão. Vejo nisso a manifestação mais inequívoca do
novo modo de ser das massas, por ter se decidido a dirigir a socie-
dade sem ter capacidade para isso. Na sua conduta política, a estru-
tura da alma nova revela-se da maneira mais crua e contundente, mas
a chave está no hermetismo intelectual. O homem médio tem “ideias”
dentro de si, mas carece da função de idear. Nem sequer suspeita de
qual é o elemento sutilíssimo em que vivem as ideias. Quer opinar,
mas não quer aceitar as condições e os pressupostos de todo ato de
opinar. Esse é o motivo de suas “ideias” serem efetivamente apenas
desejos com palavras, como os romances musicais.
Ter uma ideia é crer que se possui as razões dela e é, portanto,
crer que existe uma razão, um mundo de verdades inteligíveis. Idear,
opinar, é uma mesma coisa que apelar para essa instância, submeter-
se a ela, aceitar seu código e sua sentença, crer, portanto, que a for-
ma superior de convivência é o diálogo em que se discutem as ra-
zões de nossas ideias. Mas o homem-massa sentir-se-ia perdido se
aceitasse a discussão, e instintivamente rejeita a obrigação de acatar
essa instância suprema que se acha fora dele. Por isso, o “novo” na
Europa é “acabar com as discussões”, e se detesta qualquer forma
de convivência que por si mesma implique o acatamento de normas
objetivas, desde a conversação até o Parlamento, passando pela ci-
ência. Isso significa que se renuncia à convivência de cultura, que é
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uma convivência regida por normas, e se retrocede a uma convi-
vência bárbara. Suprimem-se todos os trâmites normais e vai-se
diretamente à imposição do que se quer. O hermetismo da alma,
que (...) empurra a massa para que intervenha em toda a vida pú-
blica, também a leva, inexoravelmente, a um procedimento único: a
ação direta.
Quando se reconstruir a gênese de nosso tempo, se observará
que as primeiras notas de sua peculiar melodia soaram naqueles
grupos sindicalistas e realistas franceses por volta de 1900, inven-
tores da maneira e palavra “ação direta”.
O homem sempre recorreu à violência: algumas vezes esse
recurso era simplesmente um crime, e não nos interessa. Outras
vezes a violência era o meio a que se recorria depois de se terem
esgotado todos os outros para defender a razão e a justiça que se
acreditava ter. É extremamente lamentável que a condição huma-
na leve algumas vezes a essa forma de violência, mas é inegável
que ela significa a maior homenagem à razão e à justiça. Uma vez
que tal violência não é outra coisa senão a razão exasperada. A
força era, de fato, a ultima ratio. De forma pouco inteligente, essa
expressão tem sido entendida com certa ironia, deformando-se
seu sentido original que declara muito bem o prévio rendimento
da força às normas racionais.
A civilização não é outra coisa senão a tentativa de reduzir a
força à ultima ratio. Agora começamos a enxergar isso com extre-
ma clareza, porque a “ação direta” consiste em inverter a ordem e
proclamar a violência como prima ratio; a rigor, como única razão.
Ela é a norma que propõe a anulação de toda norma, que supri-
me todo interregno entre nosso propósito e sua imposição. É a
Charta Magna da barbárie.
Convém recordar que, em todas as épocas, quando a massa,
independentemente do motivo, atuou na vida pública, o fez na for-
ma de “ação direta”. Portanto, este sempre foi o modo de operar
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natural das massas. E corrobora enfaticamente a tese desse ensaio o
fato patente de que agora, quando a intervenção direta das massas
na vida pública passou de casual e ocasional a normal, apareça como
norma oficialmente reconhecida a “ação direta”.
Toda convivência humana vai entrando nesse novo regime em
que são suprimidas as instâncias indiretas. No trato social elimina-
se a “boa educação”. A literatura, como “ação direta”, se constitui
no insulto. As relações sexuais reduzem seus trâmites preliminares.
Trâmites, normas, cortesias, usos intermediários, justiça, ra-
zão! Para que serve inventar tudo isso, criar tanta complicação?
Tudo isso se resume na palavra “civilização”, que, através da ideia
de civis, o cidadão, mostra sua própria origem. Com tudo isso se
procura tornar possível a cidade, a comunidade, a convivência.
Por isso, se examinarmos por dentro todos esses instrumentos da
civilização que acabamos de enumerar, acharemos o mesmo con-
teúdo. Todos eles supõem, de fato, o desejo radical e progressivo
de cada pessoa poder, e dever, contar com as demais. Civilização
é, antes de tudo, vontade de convivência. Somos incivis e bárbaros
na medida em que não contamos com os demais. A barbárie é
tendência à dissociação. E, assim, todas as épocas bárbaras foram
tempos de desagregamento humano, em que pulularam os peque-
nos grupos separados e hostis.
A forma política que representa a maior vontade de convivên-
cia é a democracia liberal. Ela leva ao extremo a decisão de levar em
conta o próximo e é o protótipo da “ação indireta”. O liberalismo
é o princípio de direito político segundo o qual o Poder público,
mesmo sendo onipotente, se limita a si mesmo, e procura, mesmo à
eventual custa de sua existência, lugar no Estado em que ele impera
para que possam viver os que nem pensam nem sentem como ele,
isto é, da mesma forma que os mais fortes e a maioria. O liberalis-
mo – é conveniente que se recorde – é a suprema generosidade: é o
direito que a maioria outorga à minoria e é, portanto, o grito mais
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nobre que já soou no planeta. Proclama a decisão de conviver com
o inimigo; mais ainda, com o inimigo fraco. Era inverossímil que a
espécie humana tivesse chegado a uma coisa tão bela, tão paradoxal,
tão elegante, tão acrobática, tão antinatural. Por isso, não é de surpre-
ender que prontamente essa mesma espécie pareça resolvida a
abandoná-la. É um exercício demasiadamente difícil e complicado
para que se consolide na terra.
Conviver com o inimigo! Governar com a oposição! Já não
começa a ser incompreensível semelhante ternura? Nada demons-
tra com maior clareza a fisionomia do presente como o fato de
que já vão sendo poucos os países onde existe oposição. A massa
– quem diria ao ver seu aspecto compacto e multitudinário? – não
deseja a convivência com o que não é ela. Odeia mortalmente o
que não é ela.
A época do “senhorzinho satisfeito” (pp. 111-119)
(...) O novo fato social aqui analisado é o seguinte: pela primeira
vez a história europeia parece estar subordinada à decisão do homem
vulgar como tal. Ou, dito em voz ativa: o homem vulgar, dirigido
anteriormente, resolveu governar o mundo. Essa resolução de passar
para o primeiro plano social produziu-se automaticamente nele, as-
sim que amadureceu o novo tipo de homem que ele representa.
Estudando-se a estrutura psicológica desse novo tipo de ho-
mem, com base em seus efeitos na vida pública, encontra-se o
seguinte: 1º) uma impressão inata e radical de que a vida é fácil,
superabundante, sem limitações trágicas; portanto, cada indivíduo
médio tem em si uma sensação de domínio e triunfo que, 2º) leva-
-o a se autoafirmar tal como é, a considerar seu haver moral e
intelectual bom e completo. Esse contentamento consigo o induz
a se fechar para qualquer instância exterior, a não escutar, a não
submeter suas opiniões a julgamento algum e a não contar com a
existência dos outros. Sua íntima sensação de domínio faz com
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que exerça constantemente o predomínio. Portanto, agirá como se
só ele e seus congêneres existissem no mundo; e, assim, 3º) inter-
virá em tudo impondo sua opinião vulgar, sem considerações,
contemplações, trâmites ou reservas – isto é, segundo um método
de “ação direta”.
Esse conjunto de facetas nos fez pensar em certos modos defi-
cientes de ser homem, como a “criança mimada” e o primitivo
rebelde; isto é, o bárbaro (O primitivo normal, ao contrário, é o
homem mais suscetível a instâncias superiores que jamais existiu –
religião, tabus, tradição social, costumes). Não é de se estranhar que
eu dirija tantos insultos a essa figura de ser humano. O presente
ensaio não é mais que um primeiro ensaio de ataque a esse homem
triunfante, e a advertência de que alguns europeus irão voltar-se ener-
gicamente contra sua pretensão de tirania. Por ora, trata-se apenas
de um ensaio de ataque: o ataque verdadeiro virá depois, talvez muito
em breve, de forma muito diferente da que reveste esse ensaio. O
ataque a fundo tem de ser feito de forma que o homem-massa não
se possa precaver contra ele, que o veja diante de si e não suspeite
que aquele, precisamente aquele, é o ataque a fundo.
Esse personagem, que agora anda por todas as partes e impõe
sua barbárie íntima em todos os lugares, é, de fato, o menino mimado
da história humana. O menino mimado é o herdeiro que se comporta
exclusivamente como herdeiro. Agora a herança é a civilização – as
comodidades, a segurança; em suma, as vantagens da civilização. Como
já vimos, só dentro da folga vital que esta produziu no mundo pode
surgir um homem constituído por aquele conjunto de facetas, inspira-
do por tal caráter. É uma das muitas deformações que o luxo produz
na matéria humana. Ilusoriamente, tenderíamos a acreditar que uma
vida nascida em um mundo com meios de sobra seria melhor, mais
vida e de qualidade superior à daquela que, justamente, consiste em
lutar contra a escassez. Mas não é isso que ocorre – por razões muito
rigorosas e ultrafundamentais que agora não é o caso de se enunciar.
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Agora, em vez dessas razões, basta que se recorde o fato tão
conhecido que constitui a tragédia de toda aristocracia hereditária.
O aristocrata herda, isto é, já encontra atribuídas à sua pessoa cer-
tas condições de vida que não foram criadas por ele, portanto, que
não estão organicamente unidas à sua vida pessoal e própria. Ao
nascer já se encontra imediatamente instalado, e sem saber como,
no meio de suas riquezas e prerrogativas. Intimamente ele nada
tem a ver com elas, porque não são originárias dele. São o arcabouço
gigantesco de outra pessoa, de outro ser vivo, seu antepassado. E
tem de viver como herdeiro, isto é, tem de usar o arcabouço de
outra vida. E aí, o que ocorre? Que vida vai viver o “aristocrata”
por herança, a sua ou a do prócer inicial?
Nem uma nem outra. Está condenado a representar o outro,
portanto, a não ser nem o outro nem ele mesmo. Sua vida perde a
autenticidade, inexoravelmente, e converte-se em mera represen-
tação ou ficção de outra vida. O excesso de meios que é obrigado
a manipular não o deixa viver seu destino próprio e pessoal, atrofia
sua vida. Toda vida é luta, é o esforço para ser ela mesma. As
dificuldades que encontro para realizar minha vida são, precisa-
mente, o que desperta e mobiliza minhas atividades, minhas capa-
cidades. Se meu corpo não me pesasse eu não poderia andar. Se a
atmosfera não me oprimisse, sentiria meu corpo como uma coisa
vaga, fofa, fantasmagórica. Assim, no “aristocrata” herdeiro toda
a sua pessoa vai-se esmaecendo por falta de uso e esforço vital. O
resultado é essa bobagem específica das velhas nobrezas, que não
se parece com nada e que, a rigor, ninguém descreveu ainda em
seu mecanismo interno e trágico – que conduz toda a aristocracia
hereditária a uma degeneração irremediável.
Isso tem apenas o intuito de contestar nossa ingênua tendência
a acreditar que ter meios de sobra favorece a vida. É exatamente o
contrário. Um mundo com possibilidades de sobra produz, de
forma automática, graves deformações e tipos viciados de exis-
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tência humana – que podem ser resumidos na classificação geral
de “homem-herdeiro”, da qual o “aristocrata” não é senão um
caso particular, e o menino mimado outro, e o homem-massa de
nosso tempo outro muito mais amplo e radical (Por outro lado,
deveríamos aproveitar mais detalhadamente a alusão anterior ao
“aristocrata” para mostrar como muitas de suas atitudes, caracte-
rísticas em todos os povos e tempos, encontram-se, no homem-
massa, em estado latente. Por exemplo: a propensão a ter como
ocupação central de sua vida os jogos e os esportes; o culto do
corpo – conservação da saúde e preocupação com a beleza dos
trajes; falta de romantismo na relação com a mulher; participar de
diversões com o intelectual mas, no fundo, não o estimar e man-
dar que os lacaios ou os policiais o agridem; preferir a vida sob a
autoridade absoluta a um sistema de discussão etc. etc.).
Insisto, portanto, com sincero pesar, em fazer ver que esse ho-
mem cheio de tendências incivis, que esse novo bárbaro é um produ-
to automático da civilização moderna, especialmente da forma que
essa civilização adotou no século XIX. Não veio de fora do mundo
civilizado como os “grandes bárbaros brancos” do século V; tampouco
nasceu dentro dele por geração espontânea, como os girinos nos tan-
ques de água – segundo Aristóteles –, mas é seu fruto natural.
Cabe aqui enunciar esta lei que a paleontologia e a biogeografia
confirmam: a vida humana só surgiu e progrediu quando houve
um equilíbrio entre os meios disponíveis e os problemas a serem
enfrentados. Isso é verdade tanto para o campo físico como para
o espiritual. Assim, para me referir a uma dimensão bem concreta
da vida corporal, lembrarei que a espécie humana brotou em zo-
nas do planeta onde a estação quente era compensada por uma
estação de frio intenso. Nos trópicos, o animal-homem degenera,
e vice-versa. As raças inferiores – os pigmeus, por exemplo –
foram empurradas para os trópicos por raças nascidas depois delas
e superiores na escala da evolução.
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Pois bem, a civilização do século XIX é de tal índole que
permite ao homem médio instalar-se em um mundo de excesso,
do qual percebe a superabundância de meios, mas não as angús-
tias. Encontra-se cercado de instrumentos prodigiosos, de remé-
dios benéficos, de Estados previdentes, de direitos cômodos.
Em troca, ignora a dificuldade para se inventarem esses remé-
dios e instrumentos e assegurar sua produção para o futuro; não
percebe que a organização do Estado é instável, e quase não
sente obrigações dentro de si. Esse desequilíbrio deforma, vicia
sua raiz de ser vivo, fazendo com que perca o contato com a
própria substância da vida, que é perigo absoluto, radicalmente
problemática. A forma mais contraditória da vida humana que
pode surgir na vida humana é o “senhorzinho satisfeito”. Por
isso, quando se torna figura predominante, é preciso fazer soar o
alarme e avisar que a vida se acha ameaçada de degeneração; isto
é, de morte relativa. Segundo isso, o nível vital que a Europa de
hoje representa é superior a todo o passado humano; mas quando
se olha para o futuro, teme-se que não conserve sua altura nem
produza outro nível mais elevado, mas, ao contrário, que retro-
ceda e desça a altitudes inferiores.
Acredito que isso mostre com suficiente clareza a superlativa
anormalidade que representa o “senhorzinho satisfeito”. Porque é
um homem que nasceu para fazer o que lhe dá vontade. De fato,
esta é a mesma forma com que o “filho de família” se ilude. E já
sabemos por quê: no âmbito familiar, no fim, tudo fica impune, até
os maiores delitos. O âmbito familiar é relativamente artificial e tole-
ra dentro dele muitos atos que na sociedade, nas ruas, trariam auto-
maticamente consequências desastrosas e indubitáveis para seu au-
tor. Mas o “senhorzinho” pensa que pode se comportar em qual-
quer lugar como em sua casa, pensa que nada é fatal, irremediável e
irrevogável. Por isso, acha que pode fazer tudo o que tem vontade.
Grande equívoco! (...) O destino não consiste naquilo que temos
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vontade de fazer; mas é reconhecido e mostra seu perfil claro e
rigoroso na coincidência de se ter de fazer o que não se tem vontade.
Pois bem: o “senhorzinho satisfeito” caracteriza-se por “sa-
ber” que certas coisas não podem ser e, apesar disso, e por isso
mesmo, finge uma convicção contrária a seus atos e palavras. O
fascista se mobilizará contra a liberdade política, justamente por-
que sabe que, no fim e a sério, esta nunca faltará, mas existe, irre-
mediavelmente, na própria substância da vida europeia, e que nela
se recairá sempre que faltar a verdade, na hora da seriedade. Por-
que esta é a tônica da existência do homem-massa: a falta de seri-
edade, a “brincadeira”. O que fazem não tem caráter irrevogável,
como as travessuras do “filho de família”. Todo esse afã em ado-
tar atitudes aparentemente trágicas, últimas, taxativas, em todos os
campos, é só aparência. Brincam com a tragédia porque acham
que a tragédia efetiva não é verossímil no mundo civilizado.
Bom seria que fôssemos forçados a aceitar como autêntico
ser de uma pessoa o que ela pretendesse nos mostrar como tal.
Mas ocorre que, se alguém se obstina em afirmar que dois mais
dois é igual a cinco, e não há motivo para supor que esse alguém
seja demente, devemos ter certeza de que ele não crê no que diz,
por mais que grite e mesmo que morra por sustentá-lo.
Uma ventania de farsa geral e completa assola o torrão euro-
peu. Quase todas as posições tomadas e ostentadas são internamen-
te falsas. Os únicos esforços que se fazem são para se fugir do pró-
prio destino, para se ficar insensível à sua evidência e a seu profundo
chamado, para se evitar encarar aquilo que tem de ser. Vive-se hu-
moristicamente e tanto mais quanto mais caricata seja a máscara ado-
tada. Há humorismo onde quer que se viva de atitudes revogáveis
em que a pessoa não se compromete inteiramente e sem reservas. O
homem-massa não tem os pés plantados na firmeza irredutível de
sua sina; em vez disso, vegeta ficticiamente suspenso no espaço. Eis
por que, como nunca, essas vidas sem peso e sem raiz – déracinées de
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seu destino – deixem-se arrastar agora pela mais leve correnteza.
Estamos numa época de “correntes” e de “se deixar levar”. Quase
ninguém apresenta resistência aos redemoinhos superficiais que se
formam na arte ou nas ideias, na política ou nos usos sociais. Por
isso, a retórica impera mais que nunca. O surrealista acha que supe-
rou toda a história literária quando escreveu (aqui vem uma palavra
que não é preciso ser escrita) onde outros escreveram “jasmins, cis-
nes e faunesas”. Mas é claro que com isso não fez mais que extrair
outra retórica que até então jazia nas latrinas.
Compreende-se melhor a situação atual quando se atenta para
a singularidade de sua fisionomia, para o aspecto que, não obstante,
tem em comum com outras épocas do passado. Assim, no apo-
geu da civilização mediterrânea – por volta do século III antes de
Cristo –, surge o cínico. Diógenes passeia com suas sandálias chei-
as de barro sobre os tapetes de Arístipo. O cínico tornou-se um
personagem pululante, que se achava em qualquer lugar e a qual-
quer hora. Pois bem, o cínico não fazia outra coisa senão sabotar a
civilização, aquela civilização. Era o niilista do helenismo. Jamais
criou ou fez qualquer coisa. Seu papel era desfazer – ou, melhor
dito, tentar desfazer, porque também não conseguiu seu propósi-
to. O cínico, parasita da civilização, vive de negá-la, por ter certeza
de que ela não faltará. Que faria um cínico no meio de um povo
selvagem onde todos, naturalmente e a sério, fazem o que ele con-
sidera, falsamente, como seu papel pessoal? O que faz um fascista
se não fala mal da liberdade e um surrealista se não perjura da arte?
Não poderia comportar-se de outra maneira esse tipo de ho-
mem nascido num mundo demasiadamente bem organizado, do qual
só percebe as vantagens e não os perigos. O ambiente o mima, por-
que é “civilização” – isto é, uma casa –, e o “filho de família” não vê
nada que o faça mudar seu temperamento caprichoso, que o incite a
ouvir instâncias externas superiores a ele e, muito menos, que o obri-
gue a tomar contato com o fundo inexorável de seu próprio destino.
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A barbárie da “especialização” (pp. 121-126)
A tese era que a civilização do século XIX produziu automati-
camente o homem-massa. Não convém encerrar essa exposição
sem analisar, em particular, a mecânica dessa produção. Desse modo,
a tese ganhará em força persuasiva quando concluída.
Essa civilização do século XIX, como já disse, pode ser resu-
mida em duas grandes dimensões: democracia liberal e técnica.
Tomemos agora apenas a última. A técnica contemporânea nasce
da cópula entre o capitalismo e a ciência experimental. Nem toda
técnica é científica. Quem fabricou os machados de sílex, no perí-
odo cheleano, carecia de ciência, e, no entanto, criou uma técnica.
A China atingiu alto grau de tecnicismo sem ter a menor suspeita
da existência da física. Só a técnica moderna da Europa tem uma
origem científica, e dessa origem vem seu caráter específico, a pos-
sibilidade de um progresso ilimitado. As demais técnicas –
mesopotâmica, egípcia, grega, romana, oriental – chegam a um
ponto de desenvolvimento que não podem ultrapassar e, mal o
atingem, começam a retroceder numa involução lamentável.
Essa maravilhosa técnica ocidental tornou possível a maravilhosa
proliferação da casta europeia. Recorde-se o dado de que partiu esse
ensaio (...). Do século V até 1800, a Europa não consegue ter uma
população maior que 180 milhões. De 1800 a 1914, ascende a mais de
450 milhões. Esse salto é único na história humana. Não há como
duvidar de que a técnica – com a democracia liberal – engendrou o
homem-massa no sentido quantitativo da expressão. Mas essas pági-
nas têm tentado mostrar que ele também é responsável pela existência
do homem-massa no sentido qualitativo e pejorativo do termo.
Por “massa” (...) não se entende especialmente o operário; não
se designa aqui uma classe social, mas uma classe ou um modo de
ser homem que ocorre hoje em todas as classes sociais, que por
isso mesmo representa nosso tempo, no qual predomina e impe-
ra. Agora vamos ver isso com toda a clareza.
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Quem exerce o poder social hoje? Quem impõe a estrutura de
seu espírito na época? Sem dúvida, a burguesia. Quem, dentro dessa
burguesia, é considerado como o grupo superior, como a aristocra-
cia do presente? Sem dúvida, o técnico: engenheiro, médico, econo-
mista, professor etc. etc. Quem, dentro do grupo técnico, o repre-
senta com maior relevância e pureza? Sem dúvida, o homem de
ciência. Se um personagem astral visitasse a Europa, e com a inten-
ção de julgá-la lhe perguntasse por que tipo de homem, entre os que
a habitam, preferia ser julgada, não há dúvida de que a Europa
indicaria, com satisfação e certa de uma sentença favorável, seus
homens de ciência. Claro que o personagem astral não perguntaria
por indivíduos excepcionais, mas procuraria a regra, o tipo genérico
“homem de ciência”, cume da humanidade europeia.
Pois bem: ocorre que o homem de ciência atual é o protótipo
do homem-massa. E não por casualidade, nem por defeito unilate-
ral de cada homem de ciência, mas porque a própria ciência – raiz
da civilização – converte-o automaticamente em homem-massa; isto
é, faz dele um primitivo, um bárbaro moderno.
(...) A ciência experimental inicia-se no fim do século XVI (Galileu),
consegue se constituir no fim do século XVII (Newton) e começa a se
desenvolver no meio do século XVIII. O desenvolvimento de algu-
ma coisa é distinto de sua constituição e está submetido a condições
diferentes. Assim, a constituição da física, nome coletivo da ciência
experimental, obrigou a um esforço de unificação. Tal foi a obra de
Newton e dos demais homens de seu tempo. Mas o desenvolvimen-
to da física iniciou uma tarefa de caráter oposto ao da unificação. Para
progredir, a ciência necessitava de que os homens de ciência se especi-
alizassem. Os homens de ciência, não ela própria. A ciência não é
especialista. Ipso facto deixaria de ser verdadeira. Nem sequer a ciência
empírica, tomada na sua integridade, é verdadeira quando separada
da matemática, da lógica, da filosofia. Mas o trabalho dentro dela,
sim, tem – obrigatoriamente – de ser especializado.
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Seria de grande interesse, e de maior utilidade que parece à pri-
meira vista, escrever a história das ciências físicas e biológicas, mos-
trando-se o processo de crescente especialização no trabalho dos
pesquisadores. Isso mostraria como, geração após geração, o ho-
mem de ciência foi-se adstringindo, se recuando num campo de
atuação intelectual cada vez mais estreito. Mas isso não seria o mais
importante que essa história nos mostraria, mas exatamente o in-
verso: como em cada geração o científico, por ter de reduzir sua
órbita de trabalho, foi progressivamente perdendo o contato com
as outras partes da ciência, com uma interpretação integral do uni-
verso, que é o único merecedor dos nomes de ciência, cultura,
civilização europeia.
A especialização começa exatamente numa época que chama
de homem civilizado ao homem “enciclopédico”. O século XIX
inicia seus destinos sob a direção de criaturas que vivem
enciclopedicamente, embora sua produção já tenha um caráter de
especialização. Na geração seguinte, a equação deslocou-se e a es-
pecialidade começa a desalojar de dentro de cada homem de ciên-
cia a cultura integral. Quando, em 1890, uma terceira geração toma
a direção intelectual da Europa, encontramo-nos com um tipo de
científico sem exemplo na história. É um homem que, de tudo o
que se deve saber para ser um personagem discreto, conhece ape-
nas determinada ciência, e mesmo dessa ciência só conhece bem a
pequena parte de que ele é um ativo pesquisador. Chega a procla-
mar como virtude o fato de não se inteirar de nada que esteja fora
da estreita paisagem que cultiva especialmente, e chama de
diletantismo a curiosidade pelo conjunto do saber.
O fato é que, restringido à escassez de seu campo visual, con-
segue realmente descobrir novos fatos e fazer avançar sua ciência,
que ele quase não conhece, e com ela a enciclopédia do pensamen-
to, que desconhece conscienciosamente. Como tem sido e conti-
nua sendo possível coisa semelhante? Porque convém insistir na
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extravagância desse fato inegável: a ciência experimental progrediu
em boa parte, devido ao trabalho de homens incrivelmente medí-
ocres, e até menos que isso. Significa que a ciência moderna, raiz e
símbolo da civilização atual, acolhe dentro de si ao homem inte-
lectualmente médio e lhe permite operar com êxito.
A razão disso está naquilo que é, ao mesmo tempo, a maior
vantagem e o máximo do perigo da ciência nova e de toda civili-
zação que esta dirige e representa: a mecanização. Boa parte das
coisas que precisam ser feitas em física e em biologia é tarefa me-
cânica de pensamento que pode ser executada por qualquer um,
ou quase. Para a realização de inúmeras pesquisas é possível divi-
dir-se a ciência em pequenos segmentos, encerrar-se num deles e
esquecer os demais. A firmeza e exatidão dos métodos permitem
essa transitória e prática desarticulação do saber. Trabalha-se com
um desses métodos como com uma máquina, e nem sequer é
forçoso, para se obterem resultados abundantes, possuir ideias ri-
gorosas sobre o sentido e fundamento deles. Assim, a maior parte
dos científicos impulsiona o progresso geral da ciência encerrados
nas celas de seus laboratórios, assim como a abelha no seu opérculo
ou como o cabo do espeto na sua caixa.
Mas isso cria uma casta de homens muito estranhos. O pesqui-
sador que descobre um novo fato da Natureza tem, forçosamen-
te, uma impressão de domínio e segurança em sua pessoa. Apa-
rentemente com certa justiça, considera-se como “um homem que
sabe”. E, de fato, nele se encontra um pedaço de algo que, com
outros pedaços não existentes nele, constitui verdadeiramente o
saber. Esta é a situação íntima do especialista, que nos primeiros
anos deste século chegou ao seu exagero mais frenético. O especi-
alista “sabe” muito bem seu mínimo rincão de universo; mas ig-
nora radicalmente todo o resto.
Temos aqui um precioso exemplar desse estranho homem
novo que tentei definir por vários lados e facetas. Disse que era
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uma configuração humana sem par em toda a história. O especia-
lista serve-nos para reduzir a espécie e sua essência e nos fazer ver
todo o radicalismo de sua novidade. Porque antes os homens po-
diam se dividir, simplesmente, em sábios e ignorantes, em mais ou
menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não
pode ser incluído em nenhuma dessas duas categorias. Não é um
sábio, porque ignora formalmente tudo quanto não faz parte de
sua especialidade; mas tampouco é um ignorante, porque é “um
homem de ciência” e conhece muito bem sua porciúncula de uni-
verso. Temos de dizer que é um sábio-ignorante, coisa extrema-
mente grave, pois significa que é um senhor que se comportará em
todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com
toda a arrogância de quem em seu campo especial é um sábio.
E, de fato, esse é o comportamento do especialista. Em política,
em arte, nos usos sociais, em outras ciências, tomará posições de
primitivo, de ignorantíssimo; mas as tomará com energia e suficiên-
cia, sem admitir – e aí está o paradoxo – especialistas nessas coisas.
Ao especializá-lo, a civilização tornou-o hermético e satisfeito den-
tro de sua limitação; mas essa mesma sensação íntima de domínio e
valor o levará a querer predominar fora de sua especialidade. E o
resultado disso é que, mesmo nesse caso, que representa um máxi-
mo de homem qualificado – especializado – e, portanto, o mais
oposto ao homem-massa, ele se comportará sem qualificação e como
homem-massa em quase todas as esferas da vida.
Essa advertência não é vaga. Quem quiser poderá observar a
estupidez com que pensam, julgam e atuam hoje na política, na
arte, na religião e nos problemas gerais da vida e do mundo os
“homens de ciência”, e é claro que, além deles, médicos, engenhei-
ros, economistas, professores etc. Essa condição de “não escu-
tar”, de não se submeter a instâncias superiores que tenho apresen-
tado reiteradamente como características do homem-massa, che-
ga ao máximo precisamente nesses homens parcialmente qualifi-
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cados. Eles simbolizam, e constituem em grande parte, o atual
império das massas, e sua barbárie é a causa mais imediata da
desmoralização europeia.
Por outro lado, significam o exemplo mais claro e preciso de
como a civilização do último século, abandonada à sua própria
inclinação, produziu esse rebento de primitivismo e barbárie.
O resultado mais imediato dessa especialização não compensada
é que hoje, quando há maior número de “homens de ciência” que
nunca, há muito menos homens “cultos” do que, por exemplo,
em 1750. E o pior é que, com esses cabos do espeto científico,
nem sequer está assegurado o progresso íntimo da ciência; porque
esta necessita, de tempos em tempos, como uma regulação orgâ-
nica de seu próprio crescimento, de um trabalho de reconstituição,
e (...) isso requer um esforço de unificação cada vez mais difícil,
que cada vez envolve regiões mais vastas do saber total. Newton
pôde criar seu sistema físico sem saber muita filosofia, mas Einstein
precisou saturar-se de Kant e Mach para poder chegar à sua aguda
síntese. Kant e Mach – com esses dois nomes apenas simboliza-se
a enorme massa de pensamentos filosóficos e psicológicos que
influíram em Einstein – serviram para liberar a mente deste e abrir-
lhe o caminho para sua inovação. Mas Einstein não é suficiente. A
física entra na crise mais profunda de sua história, e só poderá
salvá-la uma nova enciclopédia mais sistemática que a primeira.
Portanto, a especialização que tornou possível o progresso da
ciência experimental durante um século aproxima-se de uma etapa
em que não poderá avançar por si mesma se não se encarregar
uma geração melhor de lhe construir um espeto mais poderoso.
Mas, se o especialista desconhece a fisiologia interna da ciência
que cultiva, muito mais radicalmente ignora as condições históricas
de sua longa duração, isto é, como devem estar organizados a
sociedade e o coração do homem para que possa continuar exis-
tindo pesquisadores. A diminuição de vocação científica obser-
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vada nesses anos (...) é um sintoma preocupante para todo aquele
que tem uma ideia clara do que é civilização, a ideia que costuma
faltar ao típico “homem de ciência”, cume de nossa atual civili-
zação. Também ele pensa que a civilização está aí, simplesmente,
como a crosta terrestre e a selva primigênia.
Chega-se à verdadeira questão (pp. 191-193)
A questão é esta: a Europa ficou sem moral. Não é que o ho-
mem-massa menospreze uma antiquada em favor de outra emer-
gente, mas é que o centro do seu regime vital consiste precisamente
na aspiração de viver sem se submeter a qualquer moral. Não se
deve acreditar numa única palavra quando os jovens falam da “nova
moral”. Nego redondamente que exista hoje, em qualquer parte do
continente, qualquer grupo que se oriente por novo ethos que se pa-
reça com uma moral. Quando se fala da “nova” só se faz cometer
mais uma imoralidade e procurar um meio mais cômodo para vi-
ver clandestinamente.
Por essa razão, seria uma ingenuidade acusar o homem de hoje
por sua falta de moral. Essa imputação não só não o deixaria
preocupado como até mesmo lhe agradaria. O imoralismo che-
gou a uma vulgaridade extrema e qualquer um se vangloria de
exercitá-lo.
Se deixarmos de lado (...) todos os grupos que representam
sobrevivências do passado – os cristãos, os “idealistas”, os velhos
liberais etc. –, não se achará entre os representantes da época atual
uma única pessoa cuja atitude diante da vida não se reduza a crer
que tem todos os direitos e nenhuma obrigação. É indiferente que
use máscara de reacionário ou de revolucionário: por ação ou por
omissão, no fim das contas, seu estado de ânimo consistirá, decisi-
vamente, em ignorar toda obrigação e em se sentir, sem que ele
mesmo suspeite por que, com direitos ilimitados.
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Qualquer substância que penetre numa alma assim dará o mes-
mo resultado, e se converterá em pretexto para não se sujeitar a
nada concreto. Quando se apresenta como reacionário ou antiliberal,
é para poder afirmar que a salvação da pátria, do Estado, dá o
direito de passar por cima de todas as outras normas e de massa-
crar o próximo, principalmente se o próximo tem uma personali-
dade valiosa. Mas se dá a mesma coisa se ele decide ser revolucio-
nário: seu aparente entusiasmo pelo operário manual, o miserável
e a justiça social serve-lhe de disfarce para poder desvencilhar-se
de qualquer obrigação – como a cortesia, a veracidade, e, acima
de qualquer outra coisa, o respeito ou a admiração pelos indivíduos
superiores. Sei de vários que ingressaram em qualquer partido tra-
balhista apenas para conquistar dentro de si mesmos o direito de
desprezar a inteligência e não precisar reverenciá-la. Quanto às
outras ditaduras, já vimos muito bem o quanto agradam ao ho-
mem-massa, esmagando tudo que pareça excepcional.
Essa fuga de toda obrigação explica, em parte, o fenômeno,
entre ridículo e escandaloso, de que se tenha feito em nossos dias
uma plataforma da “juventude” como tal. Talvez o aspecto mais
grotesco de nosso tempo. É cômico ver como as pessoas se de-
claram “jovens” porque ouviram que o jovem tem mais direitos
que obrigações, já que o cumprimento destas pode ficar para as
calendas gregas da maturidade. O jovem, como tal, sempre se
considerou exímio em fazer ou já ter feito mil façanhas. Sempre
viveu de crédito. Isso já está na natureza do homem. Era como
um falso direito, entre irônico e terno, que os não-jovens concedi-
am aos moços. Mas é de pasmar que agora estes o tomem como
um direito efetivo, justamente para se atribuírem todos os demais
que pertencem apenas àqueles que já fizeram alguma coisa.
Ainda que pareça mentira, chegou-se a ponto de se fazer da
juventude uma chantagem. Na verdade, vivemos um tempo de
chantagem universal que toma as formas de gesto complementar:
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existe a chantagem da violência e a chantagem do humorismo.
Com qualquer delas aspira-se sempre à mesma coisa: que o inferior,
que o homem vulgar possa sentir-se eximido de qualquer sujeição.
Por isso, não é o caso de se enobrecer a crise atual apresentan-
do-a como o conflito entre duas morais ou civilizações, uma na
caducidade e a outra no alvorecer. O homem-massa carece sim-
plesmente de moral, que é sempre, por essência, um sentimento
de submissão a algo, consciência de serviço e obrigação. Mas tal-
vez seja um erro dizer “simplesmente”. Porque não se trata apenas
de que esse tipo de criatura se desinteresse pela moral. Não; não é
tão fácil assim. Da moral, não é possível desligar-se sem explica-
ções. Aquilo que, com um vocábulo falho até de gramática, se
chama de amoralidade não existe. Quem não quer se submeter a
nenhuma norma tem, velis nolis, de se submeter à norma de negar
toda moral, e isso não é amoral, mas imoral. Uma moral negativa
que conserva da outra a forma vazia.
Como se pôde acreditar na amoralidade da vida? Sem dúvi-
da, porque toda a cultura e a civilização moderna levam a essa
convicção. A Europa colhe agora as penosas consequências de sua
conduta espiritual. Precipitou-se sem reservas pela encosta de uma
cultura magnífica, mas sem raízes.
Nesse ensaio pretendeu-se delinear certo tipo de europeu, ana-
lisando-se principalmente seu comportamento diante da própria
civilização onde nasceu. Tinha que ser dessa forma porque esse
personagem não representa outra civilização que lute com a antiga,
mas mera negação, negação que oculta um efetivo parasitismo. O
homem-massa ainda está vivendo justamente do que nega e do
que outros constrram ou acumularam. Por isso, não convinha
misturar seu psicograma com a grande questão: quais são as insu-
ficiências radicais sofridas pela cultura europeia moderna? Porque
é evidente que, em última instância, é delas que se origina essa for-
ma humana hoje dominante.
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Eu sou eu e minha circunstância (pp. 957-965)
(...) Entre as várias atividades do amor só existe uma que eu
pretenderia transmitir aos outros: o desejo de compreender. (...)
As coisas não nos interessam porque não encontram em nós su-
perfícies favoráveis nas quais possam se refletir, e é mister que
multipliquemos as faces do nosso espírito para que temas inume-
ráveis possam atingi-lo.
Esse desejo de compreender é chamado num diálogo platô-
nico “loucura de amor”. Mas ainda que não fosse a forma origi-
nária, a gênese e o cume de todo o amor, esse ímpeto de compre-
ender as coisas, acredito que é um sinal forçoso seu. Desconfio do
amor de um homem por seu amigo ou pela bandeira de seu país
se não o vejo esforçar-se por compreender o inimigo ou a ban-
deira do país hostil. Eu tenho observado que, ao menos entre nós,
espanhóis, é mais fácil nos inflamarmos por um dogma moral do
que abrir nosso peito às exigências da veracidade. De melhor gra-
do, entregamos definitivamente nosso livre-arbítrio a uma atitude
moral rígida do que mantemos sempre aberto nosso juízo, dis-
posto a todo momento à reforma e à correção devidas.
Podemos dizer que abraçamos o imperativo moral como uma
arma, simplificando a vida e aniquilando porções imensas do
mundo. Com agudeza, Nietzsche já havia descoberto em certas
atitudes morais formas e produtos do rancor. Nada que dele pro-
venha pode atrair nossa simpatia. O rancor é uma emanação da
consciência de inferioridade. É a supressão imaginária de quem
não podemos realmente, com nossas próprias forças, suprimir.
Aquele por quem sentimos ódio adquire em nossa fantasia o as-
pecto lívido de um cadáver. E fomos nós que o matamos com
nossa intenção. Mas ao encontrá-lo na realidade, firme e tranquilo,
parece-nos um morto indócil, mais forte do que nossos poderes,
cuja existência significa a burla personificada, o desdém vivo con-
tra nossa condição debilitada.
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Uma forma mais sábia dessa morte antecipada que o ranco-
roso deseja ao seu inimigo consiste em deixar-se penetrar por um
dogma moral, com o qual, embriagados por certa ficção de
heroísmo, cheguemos a acreditar que o inimigo não tem um pingo
de razão ou de direitos. Conhecido e simbólico é o caso daquela
batalha contra os marcomanos, na qual Marco Aurélio lançou à
frente de seus soldados, os leões. Os inimigos retrocederam, as-
sustados. Mas seu líder gritou: “Não tenham medo! São cães ro-
manos!”. Tranquilizados, os antes temerosos lançaram-se em vito-
riosa investida. O amor combate também, não vegeta na paz obs-
cura das conivências, mas luta contra os leões como leões e só
chama de cães os que realmente são cães.
Essa luta contra um inimigo a quem se compreende é a verda-
deira tolerância, a atitude própria de toda alma enérgica. Por que em
nossa raça essa atitude é tão pouco frequente? José de Campos,
aquele pensador do século XVIII cujo livro mais interessante foi
descoberto por Azorín, escrevia: “As virtudes da condescendência
são escassas nos povos pobres”. Ele se referia aos povos fracos.
Espero que, ao ler isso, ninguém conclua que sou indiferente
ao ideal moral. Não desprezo a moralidade a favor de um frívo-
lo jogar com as ideias. As doutrinas mais imoralistas que até ago-
ra chegaram ao meu conhecimento carecem de senso comum.
E, para dizer a verdade, não dedico meus esforços a outra coisa
senão a ver se eu próprio consigo ter um pouco de senso comum.
Mas, em reverência ao ideal moral, é preciso que combatamos
seus maiores inimigos, que são as moralidades perversas. E, no
meu entender – e não só no meu –, são perversas todas as morais
utilitárias. E não será tornando suas prescrições mais rígidas que
essa moral do vício utilitário será mais limpa. Convém que nos
mantenhamos em guarda contra a rigidez, libré tradicional das hi-
pocrisias. É falso, é desumano, é imoral atribuir a rigidez como
algo natural dos traços fisionômicos da bondade. Em suma, não
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deixa de ser utilitária uma moral pelo fato de ela não o ser, mas o
indivíduo que a adota de modo utilitário, buscando tornar sua
existência mais cômoda e fácil.
Toda uma linhagem dos mais soberanos espíritos vem lutan-
do séculos a fio para purificar nosso ideal ético, tornando-o cada
vez mais delicado e complexo, mais cristalino e íntimo. Graças a
isso, já conseguimos não confundir o bem com o cumprimento
material de normas legais, uma vez para sempre adotadas, mas só
nos parecendo moral um ânimo que antes de cada nova ação pro-
cura renovar o contato imediato com o valor ético ele mesmo.
Decidindo nossos atos em virtude de receitas dogmáticas inter-
mediárias, não posso fazer que desça até ele o caráter de bondade,
delicadeza e volatilidade do mais quinta-essencial aroma. Este ape-
nas poderá verter-se neles diretamente da intuição viva e sempre
como algo que se renova. Portanto, será imoral toda moral que não
tenha entre seus deveres fundamentais o dever primário de que este-
jamos dispostos constantemente à reforma, à correção e ao aumen-
to do ideal ético. Toda ética que pregue a reclusão perpétua de nossa
livre vontade dentro de um sistema fechado de valorações é ipso facto
perversa. Como nas constituições civis que se chamam “abertas”,
deve existir nela um princípio que promova a ampliação e o enri-
quecimento da experiência moral. Porque o bem, como a natureza,
é uma paisagem imensa em que o homem avança numa secular
exploração. Com elevada consciência desse fato, Flaubert escrevia
certa vez: “O ideal só é fecundo” – moralmente fecundo – “quan-
do tudo entra nele. É um trabalho de amor e não de exclusão”.
Não há oposição em minha alma entre compreensão e moral.
A moral integral se opõe à perversa, na medida em que é a com-
preensão um dever claro e primário. É por causa dele que cresce
indefinidamente nosso raio de cordialidade e, em consequência,
nossas possibilidades de ser justos. Há no afã de compreender
toda uma atitude religiosa. E preciso confessar que, toda manhã,
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quando me levanto, recito uma brevíssima oração, muitíssimo an-
tiga, um versinho do Rig-Veda que contém estas poucas palavras,
tão leves: “Senhor, desperta-nos alegres e nos dê o conhecimento!”.
É assim que me preparo para viver a fundo as horas luminosas ou
dolorosas de um novo dia.
Esse imperativo da compreensão será talvez muito oneroso?
Não seria, por acaso, o mínimo que poderíamos fazer: compreen-
der algo? E haverá alguém que, sendo sincero consigo mesmo,
estará certo de que pode fazer o máximo sem antes ter passado
por esse mínimo?
Nesse sentido, considero que a filosofia é a ciência geral do amor:
representa o maior ímpeto para uma conexão total. Tanto que nela
se torna patente uma pequena diferença entre o compreender e o
mero saber. Sabemos tantas coisas que não compreendemos! Toda
a sabedoria dos fatos é, a rigor, incompreensiva, e só pode justificar-
-se a serviço de uma teoria.
A filosofia é idealmente o contrário da informação, da eru-
dição. Longe de mim desprezá-la. Foi, sem dúvida, o saber da
informação um modo da ciência. Teve seu momento. (...) Não
havia outro remédio senão solicitar que a memória do indivíduo
acumulasse o maior número possível de dados. Esses dados rece-
biam uma unidade externa (...), esperava-se que uns e outros se
associassem de modo espontâneo, e dessa associação sairia alguma
luz. Essa unidade dos fatos, não em si mesmos, mas na cabeça de
um sujeito, é a erudição. Regressar a essa situação em nosso tempo
equivaleria ao retorno da filologia, como se a química voltasse a
ser alquimia ou a medicina, magia. Pouco a pouco os simples eru-
ditos vão-se tornando raridades, e em breve assistiremos ao desa-
parecimento dos últimos mandarins.
A erudição ocupa a periferia da ciência, pois se limita a acumular
fatos, enquanto a filosofia constitui sua aspiração cêntrica, porque
é a pura síntese. No acúmulo, os dados são apenas coletados, e
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formando um conjunto amorfo, afirma-se a independência, a falta
de conexão. Na síntese de fatos, ao contrário, desaparecem estes
como um alimento bem assimilado e o que fica é tão somente seu
vigor essencial.
Seria a ambição final da filosofia alcançar uma única proposi-
ção na qual dissesse toda a verdade. Assim, as 1 200 páginas da
Lógica de Hegel preparam, para que se escreva com toda a plenitu-
de de significado, esta frase: “A ideia e o absoluto”. Tal frase, apa-
rentemente tão pobre, na realidade possui um sentido literaria-
mente infinito. E se a pensamos devidamente, todo esse tesouro
permite-nos de um só golpe ver esclarecida a enorme perspectiva
do mundo. A essa iluminação máxima eu associo a noção de com-
preender. Poderá determinada fórmula estar equivocada, pode-
rão ser equivocadas outras tantas que se formularam, mas de suas
ruínas renasce a filosofia, indelével, como aspiração, como afã.
O prazer sexual parece consistir numa súbita descarga de ener-
gia nervosa. A fruição estética é uma súbita descarga de emoções
alusivas. Analogamente, a filosofia é uma súbita descarga da intelecção.
(...) Em minha intenção essas ideias têm missão menos grave do
que a ciência: não há necessidade de que outros as adotem, mas desejo
que despertem nas almas irmãs outros pensamentos irmãos, mesmo
quando forem irmãos inimigos. Pretexto e chamamento a ampla co-
laboração ideológica sobre os temas nacionais, nada mais do que isso.
(...) O homem rende ao máximo suas capacidades quando
adquire a plena consciência de suas circunstâncias. Por elas, comu-
nica-se com o universo.
A circunstância! Circum-stantia! As coisas mudas que estão ao
nosso redor, bem próximas! (...) Caminhamos entre elas, cegos
para elas, o olhar fixo em coisas remotas, projetados para a con-
quista de cidades longínquas. Poucas leituras me impressionaram
tanto como essas histórias em que o herói avança com determina-
ção, como um dardo, para uma meta gloriosa, sem perceber que
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ao seu lado há um rosto humilde e suplicante da donzela que o
ama secretamente, carregando em seu corpo um coração ardente
(...). Gostaríamos de acenar para o herói para que ele inclinasse por
um segundo seu olhar para aquela flor acesa de paixão que se
encontra aos seus pés. Todos, em diferente medida, somos heróis
e suscitamos ao nosso redor humildes amores.
Eu fui um lutador.
E isto significa que fui um homem. (Goethe)
Somos heróis, combatemos sempre por algo distante e pisa-
mos belas flores pelo caminho.
(...) Creio muito seriamente que uma das mudanças mais pro-
fundas do século atual com relação ao XIX consistirá na mutação
de nossa sensibilidade para com as circunstâncias. Não sei que
inquietude era aquela, que pressa reinava na centúria passada – so-
bretudo na segunda metade –, que impelia os ânimos a não pres-
tar atenção ao imediato e ao momentâneo da vida. À medida que
ganhamos distância com relação ao último século, temos dele uma
imagem mais sintética, e melhor se manifesta aos nossos olhos seu
caráter essencialmente político. Nele, a humanidade ocidental fez
sua aprendizagem da política, gênero de vida reduzido até então
aos ministros e conselhos palacianos. A preocupação política, isto
é, a consciência e a atividade relacionadas ao social, derrama-se
sobre as multidões graças à democracia. (...) Já a vida individual foi
relegada como se uma questão pouco séria e intrascendente. É
muito significativo que a única poderosa afirmação do individual
no século XX – o “individualismo” fosse uma doutrina política,
ou seja, social, e que toda a sua afirmação consistisse em pedir que
não se aniquilasse o indivíduo (...).
Todas as nossas potências de seriedade foram empregadas na
administração da sociedade, no fortalecimento do Estado, na cultu-
ra social, nas lutas sociais, na ciência enquanto técnica que enriquece a
vida coletiva. Talvez teria parecido frívolo dedicarmos uma parte
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de nossas melhores energias – e não apenas os resíduos – a organi-
zar ao nosso redor a amizade, a construir um amor perfeito, a ver
no gozo das coisas uma dimensão que merece ser cultivada com os
procedimentos superiores? Essa multidão de necessidades privadas
ocultou, envergonhada, seu rosto nos recantos do ânimo porque
não recebeu cidadania no sentido cultural da expressão.
Na minha opinião, toda necessidade potenciada converte-se
em novo âmbito de cultura. Teria sido bom que o homem se
encontrasse para sempre reduzido aos valores descobertos até aqui:
ciência e justiça, arte e religião. A seu tempo, nascerá um Newton
do prazer e um Kant das ambições.
A cultura nos proporciona objetos já purificados, que em algum
momento foram vida espontânea e imediata, e hoje, graças a um
trabalho de reflexão, parecem livres do espaço e do tempo. Da
corrupção e do capricho. Foram uma espécie de zona de vida ideal
e abstrata, flutuando sobre nossas existências pessoais, sempre liga-
das ao acaso e problemáticas. Vida individual, o imediato, a circuns-
tância são diversos nomes para uma mesma coisa: aquelas porções
da vida de que não se extraiu ainda o espírito que encerram, seu logos.
E como espírito, logos não é senão “sentido”, conexão, unida-
de; tudo o que é individual, imediato e circunstante parece casual e
sem significação.
Deveríamos levar em conta que a vida social ou as demais
formas da cultura nos são dadas sob a espécie de vida individual,
do imediato. As coisas que hoje recebemos já ornadas com su-
blimes auréolas tiveram que, há muito tempo, estreitar-se e enco-
lher-se para passar pelo coração de um homem. O que hoje é
reconhecido como verdade, como beleza exemplar, como alta-
mente valioso, nasceu um dia nas entranhas espirituais de um
indivíduo, confundido com seus caprichos e humores. É preciso
não divinizar a cultura adquirida, preocupando-nos mais em repetí-
-la do que em aumentá-la. O ato especificamente cultural é cria-
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dor, é o ato com o qual extraímos o logos de algo que ainda era
insignificante (i-lógico). A cultura adquirida só tem valor como
instrumento e arma de nossas conquistas. Por isso, em compa-
ração com o imediato, com nossa vida espontânea, tudo o que
aprendemos parece abstrato, genérico, esquemático. Não apenas
parecem, são realmente assim. O martelo é a abstração de cada
uma das suas marteladas.
Tudo o que é geral, aprendido, tudo o que é atingido na cultu-
ra é apenas o caminho tático de volta que devemos tomar para
converter-nos ao imediato. Quem vive ao lado de uma cachoeira
não percebe o barulho que ela produz: é necessário que estabele-
çamos certa distância entre o que nos rodeia imediatamente e nós,
a fim de que aos nossos olhos adquira sentido.
(...) Quando nos abriremos para a convicção de que o ser de-
finitivo do mundo não é matéria nem alma, não é coisa alguma
determinada – mas uma perspectiva? Deus é a perspectiva e a
hierarquia: o pecado de Satanás foi um erro de perspectiva.
Ora, a perspectiva aperfeiçoa pela multiplicação dos seus ter-
mos e a exatidão com que reajamos perante cada um dos seus
níveis. A intuição dos valores superiores fecunda nosso contato
com os valores mínimos, e o amor para com o próximo e o
pequeno confere realidade e eficácia ao sublime. Para quem o pe-
queno não é nada o grande também não é grande.
Devemos procurar nossa circunstância, tal e como ela é, preci-
samente no que tem de limitação, de peculiaridade, o lugar acerta-
do na imensa perspectiva do mundo. Não nos detenhamos per-
petuamente em êxtase diante dos valores hieráticos, mas conquis-
temos nossa vida individual (...). Em suma: a reabsorção da cir-
cunstância é o destino concreto do homem.
Minha saída natural em direção ao universo se abre pelos por-
tos do Guadarrama ou o campo de Ontígola. Esse setor de reali-
dade circunstante forma a outra metade de minha pessoa: só atra-
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vés dele posso integrar-me e ser plenamente eu mesmo. A ciência
biológica mais recente estuda o organismo vivo como uma unida-
de composta do corpo e seu meio particular, de modo que o
processo vital não consiste apenas numa adaptação do corpo ao
seu meio, mas também na adaptação do meio ao seu corpo. A
mão procura amoldar-se ao objeto material a fim de segurá-lo
bem, mas ao mesmo tempo cada objeto material oculta uma pré-
via afinidade com determinada mão.
Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo também não
poderei me salvar.
O que é filosofia (pp. 89-94)
A filosofia não é (...) senão uma atividade de conhecimento
teorético, uma teoria do Universo. E mesmo quando a palavra
Universo, ao abrir-se como uma janela panorâmica, parece alegrar
um pouco o severo vocábulo “teoria”, não esqueçamos que o que
faremos não é o Universo, fingindo-nos deuses de ocasião, mas
somente sua teoria.
A filosofia não é, pois, o Universo. Não é sequer o trato imediato
com o Universo que chamamos “viver”. Não vamos viver as coisas,
mas simplesmente teorizá-las, contemplá-las. E contemplar uma coisa
implica manter-se fora dela, estar disposto a conservar entre elas e nós
a castidade de uma distância. Visamos uma teoria, ou o que é o mes-
mo, um sistema de conceitos sobre o Universo. Nada menos, mas
também nada mais. Achar aqueles conceitos que colocados numa cer-
ta ordem nos permitem dizer quanto nos parece que há no Universo.
Não se trata, pois, de nada tremendo. Não obstante os problemas
filosóficos, por seu radicalismo, serem patéticos, a filosofia não o é.
Parece-se mais a um exercício agradável, a uma ocupação diletante.
Trata-se, simplesmente, de que encaixem uns nos outros, como peças
de um quebra-cabeça, nossos conceitos. Prefiro dizer isso a recomen-
dar a filosofia com qualificações solenes. Como todas as grandes ati-
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vidades humanas, a filosofia tem uma dimensão esportiva e do es-
porte conserva o límpido humor e o rigoroso cuidado.
Outra coisa direi que talvez possa causar espécie, mas que longa
experiência me ensinou, e vale não só para a filosofia como para todas
as ciências, para todo o teórico em estrito sentido. É isto: quando
alguém que jamais cultivou a ciência se aproxima dela, a maneira me-
lhor de facilitar seu ingresso e esclarecer-lhe o que se deve fazer ao
fazer ciência, seria dizer-lhe: “Não busque que o que vai escutar e se lhe
propõe ir pensando o ‘convença’; não o tome a sério, mas como um
jogo em que se o convida para que cumpra as regras”. O estado de
ânimo que essa atividade tão pouco solene produz é a melhor dispo-
sição para iniciar o estudo científico. A razão é bem simples: o pré-
cientista entende por “convencer-se” e por “tomar a sério” um es-
tado de ânimo tão firme, tão sólido, tão penetrado de si mesmo que
só se pode sentir diante do que nos é mais habitual e inveterado.
Quero dizer que o gênero de convicção com que acreditamos
que o sol se põe no horizonte ou que os corpos que vemos estão,
com efeito, fora de nós, é tão cega, tão arraigada nos hábitos sobre
que vivemos e formam parte de nós, que a convicção oposta da
astronomia ou da filosofia idealista não poderá nunca comparar-se-
lhe em força bruta psicológica. A convicção científica, precisamente
porque se funda em verdades, em razões, não passa, nem tem para
que passar, da pele de nossa alma e possui um caráter espectral.
É, com efeito, uma convicção que consiste em puro assenti-
mento intelectual que se vê forçado por determinadas razões; não é
como a fé e outras crenças vitais que brotam do âmago recôndito
de nossa pessoa. A convicção científica, quando o é verdadeiramen-
te, vem de fora – thypathen, como dizia Aristóteles –, por assim
dizer, das coisas para prender-se na periferia de nosso eu. Ali, nessa
periferia, está a inteligência. A inteligência não é o fundo de nosso
ser. É exatamente o contrário. É como uma pele sensível, tentacular
que cobre o resto de nosso volume íntimo, o qual por si é sensu stricto
ininteligente, irracional. Pertinentemente o dizia Barrès: “L’intelligence,
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quelle petite chose à la surface de nous”. Aí está, estendida como um con-
torno sobre nosso ser mais interior, encarando as coisas, o ser –
porque seu papel não é senão pensar as coisas, o ser – seu papel não
é ser o ser, mas refleti-lo, espalhá-lo. Tanto não somos ela nós, que a
inteligência é uma só em todos, mesmo que uns tenham dela maior
porção que outros. Mas a que tenham é igual em todos, dois e dois
são para todos quatro. Por isso, Aristóteles e o averroísmo acredita-
ram que havia um único nous ou intelecto no Universo, que todos
éramos, enquanto inteligentes, uma só inteligência. O que nos indivi-
dualiza está por trás dela. Mas agora não vamos pinçar tão difícil
questão. Baste o dito para sugerir que em vão pretenderá a inteligên-
cia lutar num match de convicção com as crenças irracionais, habi-
tuais. Quando um cientista sustenta suas ideias com uma fé seme-
lhante à fé vital, duvidem de sua ciência. Numa obra de Baroja, um
personagem diz ao outro: “Este homem acredita na anarquia como
na Virgem del Pilar”, ao que comenta um terceiro: “Em tudo o que
se acredita se acredita de modo igual”.
De modo idêntico, sempre a fome e a sede de comer e beber
serão psicologicamente mais fortes, terão mais energia bruta psí-
quica que a fome e sede de justiça. Quando mais elevada é uma
atividade num organismo, é menos vigorosa, menos estável e efi-
ciente. As funções vegetativas falham menos que as sensitivas, e
estas, menos que as voluntárias e reflexivas. Como dizem os biólo-
gos, as funções ultimamente adquiridas, que são as mais comple-
xas e superiores, são as que primeiro e mais facilmente são perdi-
das por uma espécie. Em outros termos: o que vale mais é o que
está sempre em maior perigo. Num caso de conflito, de depres-
são, de apaixonamento, sempre estamos prontos a deixar de ser
inteligentes. Dir-se-ia que levamos a inteligência presa com um al-
finete. Ou em outras palavras: o mais inteligente o é (...) por instan-
tes. E o mesmo poderíamos dizer do sentido moral e do gosto
estético. Sempre no homem, por sua própria essência, o superior é
menos eficaz que o inferior, menos firme, menos impositivo.
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Com essa ideia teria de entrar na compreensão da histórica. O
superior, para realizar-se na história, tem de esperar a que o inferi-
or lhe ofereça espaço e ocasião. Isto é, que o inferior é o encarre-
gado de realizar o superior – empresta-lhe sua força cega, mas
incomparável. Por isso, a razão não deve ser orgulhosa e deve
atender, cuidar as potências irracionais. A ideia não pode lutar frente
a frente com o instinto; tem, pouco a pouco, insinuando-se, de
domesticá-lo, conquistá-lo, encantá-lo, não como Hércules, com
os punhos – que não tem –, mas com irreal música, como Orfeu
seduzia as feras. A ideia é... Feminina e usa a tática imortal da
feminidade, que não busca impor-se por imposição, como o ho-
mem, mas passiva e atmosfericamente. A mulher atua com um
doce e aparente não atuar, suportando, cedendo; como Hebbel
dizia: “Nela o fazer é padecer” (...). Assim, a ideia (...).
Eis aqui por que, túrgida de razões, agora vagamente só apon-
tadas, eu prefiro que se aproxime o curioso à filosofia sem tomá-
la muito a sério, ou melhor, com o ânimo de espírito que leva ao
exercitar um esporte e ocupar-se num jogo. Diante do fundamen-
tal viver, a teoria é jogo, não é coisa terrível, grave, formal.
O que eu quero dizer é o seguinte: que o homem é como um
brinquedo na mão de Deus, e que isso, poder ser jogo, é precisa-
mente e em verdade o melhor nele. Portanto, toda a gente, homem
ou mulher, deve aspirar a esse fim e fazer dos mais belos jogos o
verdadeiro conteúdo de sua vida – contrariamente à opinião que
agora domina. Jogo, brincadeira, cultura, afirmamos, são o mais
sério para nós, os homens.
Eis aqui, senhores, mais uma frivolidade que eu atiro ao vento.
O grave é que se eu agora a pronunciei, não sou eu quem a pensou
e a dissera e escrevera. As palavras que li e que começam: “O que
eu quero dizer é o seguinte: que o homem é um brinquedo na mão
de Deus...” são nada menos que de Platão. E não são escritas à toa
e como de passagem, mas poucos parágrafos depois de ter dito
que o tema sobre que vai falar é daqueles que exigem máxima
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atenção quando vai tratá-los de um homem que, como ele, che-
gou à velhice. É um dos poucos lugares em que Platão, oculto
quase sempre por trás de seu próprio texto, entreabre as linhas
luminosas de seu escrito, como uma cortina de fios iridescentes, e
nos deixa ver sua nobre figura privada. Essas palavras são do livro
VII de As leis – a derradeira e inacabada obra de Platão, debruça-
do sobre a qual o surpreendeu a amiga morte, levando-o para
sempre em sua mão imortal.
E mais ainda: diz Platão tal coisa anunciando antes, com rara
insistência, que vai determinar qual é o estado de ânimo, a disposi-
ção, o tom sentimental, diríamos hoje, em que há de fundar-se
cada vida enquanto culta. Ainda que os gregos ignoraram quase
tudo, e logo veremos por que, o que chamamos “psicologia”,
entrevê aqui Platão, genialmente, uma das mais recentes verifica-
ções psicológicas, consoante a qual toda nossa vida íntima brota,
como de uma semente, de uma tonalidade emotiva fundamental
que em cada sujeito é diversa e constitui a base do caráter. Cada
uma de nossas reações concretas é determinada por esse fundo
sentimental – que em uns é melancolia, em outros exultação, em
uns depressão, em outros segurança.
Ora, o homem para fazer-se culto tem de proporcionar-se
um ânimo emotivo adequado – que será para sua vida, com ribei-
rinha comparação, o que é a quilha que para a nave começa por
colocar o carpinteiro de ribeira. Ele, Platão, ao escrever esse livro
se vê a si mesmo – diz-nos – como esse carpinteiro de ribeira,
como esse naupegós. A quilha da cultura, o estado de ânimo que a
leva e equilibra é essa séria brincadeira, essa brincadeira formal que
se parece ao jogo violento, ao esporte, entendendo por tal, como
é sabido que eu entendo, um esforço, mas um esforço que, em
oposição ao trabalho não nos é imposto, nem é utilitário nem é
remunerado, mas um esforço espontâneo, luxuoso, que fazemos
por gosto de fazê-lo, que se satisfaz a si mesmo (...)
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A cultura brota e vive, floresce e frutifica em ânimo espiritual
bem-humorado – na jovialidade. A seriedade virá depois, quando
tenhamos atingido a cultura ou a forma dela a que nos referimos –
assim, agora, a filosofia. Mas, de qualquer forma, jovialidade. De-
pois de tudo, não é estado de ânimo que possa parecer
menosprezável; lembram os senhores que a jovialidade não é senão
o estado de ânimo em que costuma estar Jove – Júpiter. Ao educar
em nós a jovialidade, o fazemos em imitação de Jove olímpico.
E assim Platão em suas últimas obras, às vezes se compraz em
jogar do vocábulo com as duas palavras que em grego soam qua-
se o mesmo, paideia – cultura – e paidiá – criancice, jogo, brincadei-
ra, jovialidade. É a ironia de seu mestre, Sócrates, que refloresce na
senectude de Platão. E essa ironia, esse equívoco eficacíssimo pro-
duziu os mais irônicos efeitos, e assim, ocorre que nos códices
aonde chegaram a nós esses livros derradeiros de Platão se vê que
o copista não sabia quando escrever paideia, “cultura”, e quando
devia escrever paidiá, “brincadeira”. Convida-se, pois, tão apenas
para um jogo rigoroso, porquanto o homem é no jogo onde é
mais rigoroso. Esse jovial rigor intelectual é a teoria, e, como disse
eu, a filosofia, que é uma pobrezinha coisa, não é senão teoria.
Mas já o sabemos também por Fausto:
Cinza, caro amigo, é toda teoria,
E verde a árvore áurea da vida.
O cinza é o ascetismo da cor. Tal é seu valor simbólico na
linguagem usual, e a esse símbolo alude Goethe. Ser cinza é o
máximo que a cor pode fazer quando quer renunciar a ser cor;
por outro lado, a vida é uma árvore verde – o que é uma extrava-
gância – e ainda essa árvore verde da vida ocorre ser dourada, o
que é uma extravagância ainda maior. Essa elegante vontade de
apegar-se o cinza diante da maravilhosa e contraditória extrava-
gância cromática da vida nos leva a teorizar. Na teoria, permuta-
mos a realidade por seu espectro, que são os conceitos. Em vez de
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vivê-la, a pensamos. Quem sabe, contudo, se sob esse aparente
ascetismo e distanciamento da vida, que é o estrito pensar, não se
oculta uma máxima forma de vitalidade, seu luxo supremo! Quem
sabe se pensar na vida não é acrescentar ao engenho de vivê-la, um
magnífico afã de sobrevivê-la!
Adão no Paraíso (pp. 21-55)
O que diria meu grande amigo Alcántara se me visse rouban-
do um fruto da sua horta? A verdade é que quando começamos a
falar do que não entendemos, sentimos essa inquietação que belis-
ca quem penetra sem permissão terras proibidas: a lei da proprie-
dade que pisamos queima a sola dos pés e nossos olhos buscam,
atrás da cerca, o segurança encarregado de expulsar-nos. Alcántara
ama tanto a pintura que fica contente até quando se fala vulgar-
mente de seus misteres e se lhe falta o respeito. A falta de respeito
é, no fim das contas, um modo de cortesia.
De qualquer forma, não creio que seja errado que uma pessoa
faça uma tentativa honrada para se orientar naquilo que não co-
nhece. O que tento é esclarecer para mim mesmo a origem daque-
las emoções que se desprenderam dos quadros de Zuloaga quan-
do os vi pela primeira vez: nada mais. Em outra ocasião, os pinto-
res dirão o que acertei nessas reflexões, porque, na verdade, só eles
conhecem a pintura. O profano se coloca diante de uma obra de
arte sem preconceitos, mas essa também é a postura de um oran-
gotango. Sem preconceitos não se pode formar juízos. Nos pre-
conceitos, e somente neles, encontramos os elementos para julgar.
Lógica, ética e estética são literalmente três preconceitos, graças
aos quais o homem se mantém flutuando sobre a superfície da
zoologia, e libertando-se no lacustre artifício, vai lavrando a cultura
liberrimamente, racionalmente, sem intervenção de substâncias
místicas nem outras revelações que a revelação positiva, sugerida
ao homem de hoje pelo que foi feito pelo homem de ontem. Os
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preconceitos iniciais dos pais servem como uma purificação de
juízos que produzem os preconceitos para a geração dos filhos, e
assim em denso crescimento, em estreita solidariedade no decor-
rer da história. Sem essa condensação tradicional dos preconceitos
não há cultura.
Os pintores são herdeiros da tradição plástica: reservemo-lhes
o direito de julgar a pintura enquanto procuramos orientação para
a aquisição de um preconceito que organize nossa sensibilidade da
luz, da cor e da forma. Querer, diante de San Mauricio, de El Greco,
voltar à visão primitiva das coisas seria como ensaiar loucamente
uma indigna postura de cinocéfalo.
Uma das características dos quadros de Zuloaga é que, tão
logo começamos a dialogar sobre eles, acabamos envolvidos nes-
sa questão: a Espanha é ou não é assim? Já não se fala mais de uma
pintura: não se discute se as mãos ou as faces de seus personagens
correspondem às da realidade fora do quadro. Essa questão de
realismo plástico é deixada de lado como um saco, de cujo interi-
or saem onças ruivas. Não pode haver comprovação mais exata
de que Zuloaga não termina onde sua pintura acaba; não esgota
sua personalidade em seu ofício. Mais além do métier, Zuloaga con-
tinua tentando algo que transcende linhas e cores, algo que se dis-
puta com a realidade. Note-se bem: primeiro nos encontramos
com um plano de pinceladas em que se transcrevem as coisas do
mundo exterior; esse plano do quadro não é uma criação, é uma
cópia. Através dele vislumbramos uma vida estritamente interior
do quadro: sobre essas pinceladas flutua como um mundo de
unidades ideais que se apoia nelas e nelas se infunde; essa energia
interna do quadro não está impregnada de nada, nasce no quadro,
só vive no quadro, é o quadro.
Há, pois, pintores que pintam coisas, e pintores que, servindo-
se de coisas pintadas, criam quadros. O que constitui esse mundo
de segundo plano, ao qual chamamos quadro, é algo puramente
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virtual: um quadro se compõe de coisas; o que há nele, ademais,
não é uma coisa, é uma unidade, elemento indiscutivelmente irreal,
ao qual não se pode buscar nada congruente na natureza. Podería-
mos, por bem ou por mal, retirar os fragmentos de pintura da
dita realidade, copiando-a, mas e essa unidade, de onde vem? É
uma cor ou uma linha? A cor e a linha são coisas; a unidade, não.
Mas o que é uma coisa? Um pedaço do Universo; não há
nada escoteiro, nada existe solitário ou estanque. Cada coisa é uma
relação entre várias. Pintar bem uma coisa não é, pois, segundo
supúnhamos anteriormente, trabalho tão simples como copiá-la; é
preciso averiguar de antemão a fórmula de sua relação com as
demais, ou seja, seu significado, seu valor.
A prova de que as coisas são apenas valores é óbvia; pegue-se
uma coisa qualquer, transmita-lhe diferente sistema de valoração, e
se terá outras tantas coisas diferentes em lugar de apenas uma.
Compare-se o que é a terra para um lavrador e para um astrôno-
mo: para o lavrador é suficiente pisar a rubra pele do planeta e
arranhá-la com o arado; sua terra é um caminho, uns sulcos e umas
messes. O astrônomo necessita determinar exatamente o lugar que
o globo ocupa em cada instante dentro da enorme suposição do
espaço sideral: o ponto de vista da exatidão o obriga a convertê-la
em uma abstração matemática, em um caso da gravitação univer-
sal. O exemplo poderia continuar indefinidamente.
Não existe, portanto, essa suposta realidade imutável e única
com a qual se pode comparar os conteúdos das obras artísticas;
há tantas realidades quanto pontos de vista. O ponto de vista cria
o panorama. Há uma realidade de todos os dias formada por
um sistema de laxas relações, aproximativas, vagas o suficiente
para os usos da vida cotidiana. Há uma realidade científica forja-
da em um sistema de relações exatas, impostas pela necessidade
de exatidão. Ver e tocar as coisas não são, no fim das contas,
senão maneiras de pensá-las.
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Imagine um pintor que veja as coisas do ponto de vista cotidi-
ano: pintará amostras. Ou do ponto de vista científico: pintará
esquemas para os livros de física. Ou do ponto de vista histórico:
pintará lâminas para um manual (...).
Não sei nada disso: eu tenho agora simplesmente que me ori-
entar em direção ao que se deve chamar pintor, artista pictórico.
E, segundo meu ponto de vista, o problema está em determi-
nar – uma vez que as coisas não são senão relações – qual gênero
de relações serão as essencialmente pictóricas. Suponhamos, inici-
almente, que é uma glória para Zuloaga o fato de nos encontrar
diante de seus quadros discutindo se a Espanha é ou não é como
ele a pinta. Agora, a glória parece equívoca. Espanha é uma ideia
geral, um conceito histórico. O literato costuma simpatizar com os
quadros que lhe incitam a mover o rebanho de seus pensamentos;
o literato sempre agradece quando se lhe facilita um artigo. Zuloaga
pinta ideias gerais? Esse mundo interior de seus quadros, que o
eleva sobre os meros copistas, terá sido construído mediante um
sistema de relações sociológicas? Dúvida difícil; um quadro que se
traduz diretamente em formas literárias ou ideológicas não é um
quadro, é uma alegoria. A alegoria não é uma arte independente e
sensata, mas sim um jogo, no qual nos satisfazemos dizendo de
uma forma indireta o que poderia ser dito muito bem, e ainda
melhor, de outras diversas maneiras.
Não, na arte não há jogo: não existe o pegá-la ou deixá-la.
Cada arte é necessária; consiste em expressar por ela o que a hu-
manidade não pode nem poderia jamais expressar de outra for-
ma. A crítica literária sempre desorientou os pintores, principal-
mente desde que Diderot criou o gênero híbrido literato-crítico
de arte, como se a facilidade para transladar o conteúdo de uma
obra estética para outro tipo de formas expressivas não fosse a
acusação mais grave contra ela.
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Entre a arte de copiar que possui Zuloaga e sua capacidade
sociológica, sobrará espaço para o pintor? Servir-nos-á como
exemplo de artista plástico?
Sabemos que a unidade transcendente organizada pelo quadro
não deve ser filosófica, matemática, mística nem histórica, mas sim
pura e simplesmente pictórica. Quando nos queixamos da falta de
transcendência que aflige os pintores, é claro que não pedimos a suas
telas que se convertam em luminosos tratados de metafísica.
II
*
Com vago propósito de buscar uma fórmula que defina o
ideal da pintura, escrevi o primeiro artigo, intitulado “Adão no
Paraíso”. Eu não sei bem por que o denominei assim; no fim do
artigo me encontrava perdido nessa selva escura da arte, onde só
os cegos como Homero podem ver a claridade. Em minha con-
fusão, me refugiei na lembrança de uma antiga amizade: o doutor
Vulpius, alemão, professor de filosofia. Muitas vezes – pensei –
este homem, sutil e metafísico, me falou da arte; costumávamos
passear todas as tardes pelo jardim zoológico de Leipzig, úmido,
coberto de grama verde-escura com altas árvores escuras. De vez
em quando, as águias davam grande grito legionário e imperial; o
“Wapiti”, o cervo do Canadá, mugia lembrando as longas campi-
nas frias, e não tardava que um casal de patos se perseguisse nas
águas com lasciva algaravia, criando escândalo para o honesto grupo
dos animais maiores e mais recatados.
Eram profundas e morosas horas: o doutor Vulpius falava so-
mente de estética, e me anunciava sua viagem à Espanha. Segundo
ele, a estética definitiva devia sair de nosso país. A ciência moderna é
de origem ítalo-francesa; os alemães criaram a ética, justificaram-se
pela graça moral e teológica, uma vez que lhes falta à outra; os in-
gleses, pela política. Assim me dizia depois de muitos parágrafos,
* A numeração que se segue refere-se à capitulação da obra original.
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enquanto com lentidão desesperante um empregado do jardim
zoológico lixava o calo da testa do elefante. O elefante é pensador.
Solicitei a meu amigo que escrevesse algo que fosse capaz de
justificar o título do meu primeiro artigo. O que me enviou é algo
longo e extremamente “técnico”, ou quando falamos sobre uma
coisa que não nos interessa nem mesmo a superfície: demasiado
profundo. Não obstante, eu convido o leitor preocupado com as
questões artísticas que leia o que se segue e medite alguns minutos.
III
Os apaixonados pela arte costumam sentir certa repulsa pela
estética. Esse é um fenômeno que tem fácil explicação. A estética
procura domesticar o lombo rotundo e inquieto de Pégaso; pre-
tende encaixar nos quadradinhos dos conceitos a pletora inesgotá-
vel da substância artística. A estética é a quadratura do círculo; por
conseguinte, uma operação bastante melancólica.
Não há forma de aprisionar em um conceito a emoção do
belo que foge pelas juntas, flui, liberta-se como os espíritos inferi-
ores a quem o cultivador da magia negra tentava em vão caçar
para prendê-lo no interior das redomas. Em estética, sempre al-
guém esquece alguma coisa depois de fechar penosamente o baú,
e é mister voltar a abrir e voltar a fechá-lo e, ao fim, começar de
novo. Com uma peculiaridade: isso que havíamos esquecido é sem-
pre o mais importante.
Daí que diante da obra de arte não satisfaça nunca a observa-
ção estética. Esta se apresenta tímida, torpe, servil, como se per-
tencesse a um mundo inferior onde tudo é mais trivial e sórdido.
Convém levar em conta isso sempre que se pensa sobre arte. A
arte é o reino do sentimento, e dentro da constituição desse reino,
o pensamento só pode frequentar o plebeu e o vulgar, só pode
representar a vulgaridade. Em ciência e em moral, o conceito é
soberano: ele é a lei, ele constrói as coisas. Na arte, seu papel é
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meramente de guia, de orientador, como essas setas ridículas que a
prefeitura pinta à entrada dos povoados espanhóis, e sob as quais
se lê: “Siga em frente: Posto fiscal”.
Assim se explica o desdém que os apaixonados pela arte sen-
tem pela estética; para eles, ela parece filisteia, formalista, anódina,
sem sumo e sem fecundidade; queriam que ela fosse mais bela que
o quadro ou a poesia. Mas, para quem tem consciência do que
significa uma orientação exata nesses assuntos, a estética vale tanto
quanto a obra de arte.
IV
Para se orientar em relação ao sentido de uma arte, deve-se
decidir seu tema ideal. Toda arte nasce pela diferenciação da neces-
sidade radical de expressão que existe no homem, que é o homem.
Do mesmo modo, os sentidos do animal são canais particulares que
foram abrindo, através da matéria homogênea, uma sensibilidade
radical: o tato. E não foi o nervo ocular e os bastõezinhos terminais
do aparelho visual que produziram a primeira visão: foi a necessida-
de de ver, a própria visão, quem criou um instrumento. Um mundo
de possíveis luminosidades estava como um cravo dentro do ani-
mal primitivo, e nesse mundo excessivo, que não podia ser aprecia-
do de um golpe só, abriu-se um caminho, uma senda pelos tecidos
carnosos, um canal de liberação para fora, em direção ao espaço,
onde conseguiu distribuir-se amplamente.
Dito de outro modo: a função cria o órgão. E a função quem
a cria? A necessidade. E a necessidade? O problema.
O homem carrega dentro de si um problema heroico, trágico:
tudo que faz, todas as suas atividades, não são outra coisa que fun-
ções desse problema, passos que dá para resolver esse problema.
Esse problema é de tal magnitude que não há maneira de enfrentar
em batalha campal: seguindo a máxima divide et impera, o homem
seciona e resolve por partes e estágios. A ciência é a solução do
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primeiro estágio do problema; a moral é a solução do segundo. A
arte é o ensaio para resolver a última parte do problema.
Temos, portanto, para nosso assunto, de indicar em que con-
siste o problema humano, do qual, como de um foco virtual,
derivam-se todos os atos do homem, e logo, mostrando o que
ainda resta desse problema para ser solucionado pela ciência e
pela moral, obteremos o problema puro e genuíno da arte.
As artes são nobres sensores, por intermédio dos quais o
homem expressa a si mesmo o que não consegue fazer com
outras fórmulas. Como veremos, é característica do problema
próprio à arte ser insolúvel. Uma vez insolúvel, o homem tenta
abarcá-lo separando seus diversos aspectos, e cada arte particu-
lar é a expressão de um aspecto genuíno do problema geral.
Cada arte, pois, responde a um aspecto radical do mais ínti-
mo e irredutível que o homem encerra em si. E esse aspecto não
será, por conseguinte, senão o tema ideal de cada um.
A história de uma arte é a série de ensaios para expressar esse
tema ideal que justifica sua diferenciação das outras artes: é a
trajetória que percorre como uma flecha alada, para lá, no fim
dos tempos, cravar sua meta. E esse ponto no infinito aponta a
direção, o sentido, o ser de cada arte.
V
Perceber uma coisa não é conhecê-la, mas simplesmente dar-
se conta de que diante de nós se apresenta algo. Uma mancha
escura, longe, no horizonte. O que será? Será um homem? Uma
árvore? A torre de uma igreja? Não sabemos: a mancha escura
aguarda, aspira que determinemos: diante de nós temos não uma
coisa, mas um problema. Digerimos e não sabemos o que é a
digestão; amamos e não sabemos o que é o amor.
As pedras, os animais vivem: são vidas. O animal se move,
pelo que parece, por impulso próprio; sente dor, desenvolve seus
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membros: ele é esta vida. A pedra jaz sumida em um eterno torpor,
em um denso sonho que pesa sobre a terra: sua inércia é sua vida,
é ela. Mas nem a pedra nem o animal percebem do que vivem.
Um dia entre os dias, como dizem os contos árabes, lá, no
Jardim do Éden (...), disse Deus: “Façamos o homem à nossa
imagem”.
O sucesso foi de enorme transcendência: o homem nasceu e
subitamente soaram sons e imensos ruídos na amplidão do Uni-
verso, os âmbitos iluminaram luzes, o mundo se encheu de odores
e sabores, de alegrias e sofrimentos. Em uma palavra, quando o
homem nasceu, quando começou a viver, começou também a
vida universal.
Deus, com efeito, não é senão o nome que damos à capaci-
dade de se encarregar o fazer-se às coisas. Portanto, se Deus criou
o homem à sua semelhança, quer dizer que criou nele a primeira
capacidade para se dar conta de que, fora de Deus, existirá. Mas o
venerável texto diz só “à sua imagem”: logo, a capacidade que foi
doada ao homem não coincidia exatamente com a original divina, era
uma aproximação à clarividência de Deus, uma sabedoria degradada
e sem peso, uma “espécie de assim como”. Entre a capacidade de
Deus e a do homem mediava a mesma distância que há entre se dar
conta de uma coisa e de um problema, entre perceber e saber.
Quando Adão apareceu no Paraíso, como uma árvore nova,
começou a existir isso que chamamos vida. Adão foi o primeiro
ser que, vivendo, sentiu a si mesmo viver. Para Adão, a vida existe
como um problema.
O que é Adão, então, com o verdor do Paraíso à sua volta,
circundado de animais; lá, distante, os rios com seus inquietos pei-
xes, e mais além das montanhas de ventres petrefactos, e depois os
mares e outras terras, a Terra e os mundos?
Adão no Paraíso é a vida simples e pura, é o débil suporte do
problema infinito da vida.
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A gravitação universal, a dor universal, a matéria inorgânica,
as séries orgânicas, toda a história humana, suas ânsias, suas
exultações, Nínive e Atenas, Platão e Kant, Cleópatra e Don Juan,
o corporal e o espiritual, o momentâneo e o eterno e o que
perdura... Tudo gravitando sobre o vermelho fruto, subitamente
maduro no coração de Adão. Compreende-se tudo o que signi-
fica sístole e diástole daquela pequenez, todas essas coisas inesgo-
táveis, tudo isso que expressamos com uma palavra de contor-
nos infinitos, VIDA, concretada, condensada em cada uma de
suas pulsações? O coração de Adão, centro do Universo, ou seja,
o Universo íntegro no coração de Adão, como um licor fervendo
em uma taça.
Isto é o homem: o problema da vida.
VI
O homem é o problema da vida.
Todas as coisas vivem. Como – dirão – vocês vão restaurar as
místicas visões da filosofia da Natureza? Fechner pretendia que os
planetas fossem uns seres vivos dotados de instintos e de podero-
sa sentimentalidade, como enormes rinocerontes astronômicos que
rodavam em suas órbitas comovidos por formidáveis paixões
siderais. Fourier, o charlatão Fourier, concedia aos corpos celestes
uma vida peculiar, que ele chamava aromal, e a atração universal
era, segundo ele, não mais que a expressão matemática das rela-
ções amorosas ocorridas perpetuamente entre os astros, que vi-
vem trocando de aromas como namorados cósmicos. Isso é pa-
recido com o que quero falar ao dizer que todas as coisas vivem?
Vamos nos afeiçoar de novo pelo misticismo?
Nada menos místico que o que desejo dizer: todas as coisas
vivem.
A ciência parece reduzir o significado da palavra vida a uma
disciplina particular: a biologia. Assim, a matemática, a física, a
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química, não estudam a vida, e existem seres vivos – os animais –
e seres que não vivem – as pedras.
Por outro lado, os fisiólogos, ao definir a vida mediante atri-
butos puramente biológicos, perdem-se sempre, e ainda não che-
garam a uma definição que se mantenha em pé.
Diante de tudo isso, oponho um conceito de vida mais geral,
porém mais metódico.
A vida de uma coisa é seu ser. E o que é o ser de uma coisa?
Um exemplo nos deixará claro. O sistema planetário não é um
sistema de coisas, nesse caso de planetas. É um sistema de movi-
mentos; portanto, de relações: o ser de cada planeta é determina-
do, dentro desse conjunto de relações, como determinamos um
ponto em uma quadrícula. Sem os demais planetas, pois, não é
possível o planeta Terra, e vice-versa; cada elemento do sistema
necessita de todos os outros: é a relação mútua entre as coisas.
Assim, a essência de cada coisa se resolve em puras relações.
Não é outro o sentido mais profundo da evolução no pensa-
mento humano desde o Renascimento até aqui: dissolução da ca-
tegoria de substância na categoria de relação. E como relação não
é uma res, mas uma ideia, chama-se Idealismo a filosofia moderna
e a medieval, que começa em Aristóteles, realismo. A raça ariana
pura segrega Idealismo: assim é Platão, assim aquele hindu que
escreve em sua purana: “quando o homem põe no solo a planta
dos pés, pisa sempre cem senderos”. Cada coisa, uma encruzilha-
da: sua vida, seu ser é o conjunto de relações, de mútuas influências
em que se encontram todas as outras. Uma pedra no meio do
caminho é necessária para existir o resto do Universo!
A ciência se esforça para descobrir esse ser inesgotável que cons-
titui a vitalidade de cada coisa. Mas o método que emprega cobra
uma exatidão à custa de não conseguir nunca todo o empenho. A
ciência só nos oferece leis, ou seja, afirmações sobre o que as coisas
são em geral, sobre o que têm em comum umas com outras, sobre
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aquelas relações entre elas que são idênticas para todas ou quase
todas. A lei da queda dos graves expressa o que é o corpo, a relação
geral segundo a qual se move todo corpo. Mas, e esse corpo con-
creto o que é? O que é a venerável pedra do Guadarrama? Para a
ciência, essa pedra é um caso particular de uma lei geral. A ciência
converte cada coisa em um caso, ou seja, naquilo que é comum em
uma coisa com as outras. Isso é o que se chama abstração: a vida
descoberta pela ciência é uma vida abstrata, enquanto, por definição,
o vital é o concreto, o incomparável, o único. A vida é o individual.
As coisas são casos para a ciência: assim fica resolvido o pri-
meiro estágio do problema da vida. Agora, é mister que as coisas
sejam algo mais que coisas. Napoleão não é apenas um homem,
um caso particular da espécie humana: é este homem único, este
indivíduo. E a pedra do Guadarrama é diferente de outra pedra
quimicamente idêntica que existe sobre os Alpes.
VII
A ciência divide o problema da vida em dois grandes territó-
rios, que não se comunicam entre si: a natureza e o espírito. Assim
se formaram as duas linhagens de ciências: as naturais e as morais,
que investigam as formas da vida material e da vida psíquica.
No espírito, se observa mais claramente que, na matéria como
o ser, a vida não é senão um conjunto de relações. No espírito, não
há coisas, mas estados. Um estado de espírito não é senão a relação
entre um estado anterior e outro posterior. Não há, por exemplo,
uma tristeza absoluta, uma coisa “tristeza”. Se antes eu sentia imensa
alegria, e agora os motivos de alegria, embora grandes, sejam me-
nores, me sentirei triste. A tristeza e a alegria florescem uma na outra,
são estados diversos de uma mesma coisa fisiológica, a qual, por sua
vez, é um estado da matéria ou uma forma de energia.
As ciências morais, contudo, também estão submetidas ao
método da abstração: descrevem a tristeza em geral. Porém, a
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tristeza geral não é triste. O triste, o horrivelmente triste, é esta
tristeza que eu sinto nesse instante. A tristeza conquanto vida, e não
conquanto ideia geral, é também algo concreto, único, individual.
VIII
Cada coisa concreta é constituída por uma soma infinita de
relações. As ciências procedem discursivamente, buscam uma a
uma essas relações e, portanto, necessitarão de um tempo infinito
para fixar todas. Esta é a tragédia original da ciência: trabalhar para
um resultado que nunca logrará plenamente.
Da tragédia da ciência nasce a arte. Quando os métodos cien-
tíficos nos abandonam, começam os métodos artísticos. Assim
chamamos ao método científico de abstração e generalização e
chamaremos ao método da arte de individualização e concretização.
Não se deve dizer, pois, que a arte copia a natureza. Onde
está essa natureza exemplar fora dos livros de física? O natural é
o que se sucede conforme as leis físicas, que são generalizações, e
o problema da arte é o vital, o concreto, o único enquanto único,
concreto e vital.
A Natureza é o reino do estável, do permanente; a vida, pelo
contrário, é o absolutamente passageiro. Daí que o mundo natural,
produto da ciência, seja elaborado mediante generalizações, enquan-
to esse novo mundo da pura vitalidade, para construir aquele em
que nasceu a arte, tenha de criá-lo mediante a individualização.
A Natureza, entendida por nós como natureza conhecida, não
nos apresenta nada individual: o indivíduo é apenas um problema
insolúvel para os meios naturalistas, e as tentativas que os biólogos
fazem para defini-lo têm vãos resultados. Não sabemos quem é
Napoleão, como indivíduo, enquanto algum estudioso biógrafo
não reconstrua sua individualidade. Pois bem, a biografia é um
gênero poético. As pedras de Guadarrama não adquirem sua pe-
culiaridade, seu nome e ser próprio na mineralogia, onde só apa-
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recem formando com outras pedras uma classe idêntica, mas sim
nos quadros de Velázquez.
IX
Observamos que um indivíduo, seja coisa, seja pessoa, é o resul-
tado do esforço total do mundo: é a totalidade das relações. No
nascimento de uma folha de grama colabora todo o Universo.
A arte percebe a imensidão da tarefa que ela toma para si?
Como colocar em evidência a totalidade das relações que constitui
a vida mais simples, desta árvore, desta pedra, deste homem?
Isso é impossível de um modo real; é precisamente por isso
que a arte é antes de qualquer coisa artifício: tem de criar um mun-
do virtual (...)
Por conseguinte, o que todo artista deve propor a si mesmo é
a ficção da totalidade (...)
X
(...) A arte, ao buscar a forma da totalidade, tem de fundir
novamente essas duas facetas do vital [natureza e espírito]. Não há
nada que seja só material: a própria matéria é uma ideia; não há
nada que seja somente espírito, o sentimento mais delicado é uma
vibração nervosa (...).
O esforço para poupar esforço é esforço
— o problema do esforço poupado — a vida inventada (p. 27-33)
*
Meu livro A rebelião das massas está inspirado, entre outras coi-
sas, pela espantosa suspeita que sinceramente sentia então — ali
por 1927 e 1928; notem-no os senhores, as datas da prosperity
**
*
Este texto pertence ao livro Meditação da técnica, publicado na Espanha em 1939. A
edição brasileira da qual se extraiu esta passagem é de 1963, com tradução de Luís
Washington Vita, pela Livro Ibero-Americano Limitada (Rio de Janeiro).
**
Em inglês no original (N.T.).
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de que a magnífica, a fabulosa técnica atual corria perigo e per-
feitamente podia ocorre que se nos escorresse por entre os dedos
e desaparecesse em muito menos tempo de quanto se pode ima-
ginar. Hoje, cinco anos depois, minha suspeita não fez senão au-
mentar pavorosamente. Vejam, pois, os engenheiros como para
ser engenheiro não basta com ser engenheiro. Enquanto se estão
ocupando em sua faina particular, a história lhes retira o solo de-
baixo dos pés.
É preciso estar alerta e sair do próprio ofício: explorar bem a
paisagem da vida, que é sempre total. A faculdade suprema para
viver não a dá nenhum ofício, nem nenhuma ciência: é a sinopse de
todos os ofícios e todas as ciências e, de resto, muitas outras coisas.
É a integral cautela. A vida humana e tudo nela é um constante e
absoluto risco. Todo o quociente se vai pelo ponto menos previsí-
vel: uma cultura se esvazia inteira pelo mais imperceptível ralo.
Mas deixando de lado estas, que são, ainda que iminentes, meras
possibilidades, recapacite o técnico simplesmente comparando sua
situação de ontem com a que faz presumir o amanhã.
Uma coisa é, pelo menos, claríssima: que as condições de toda
ordem, sociais, econômicas, políticas, em que trabalhará amanhã
são sumamente distintas daquelas em que trabalhou até hoje.
Não se fale, pois, da técnica como da única coisa positiva, da
única realidade incomovível do homem. Isso é uma estupidez, e
quanto mais cegos estejam por ela os técnicos, mais provável é que
a técnica atual acabe por ruir e periclitar.
Basta com que mude um pouco substancialmente o perfil do
bem-estar que se esboça diante do homem, que sofra uma muta-
ção de algum vulto a ideia da vida, da qual, a partir da qual e para
a qual faz o homem tudo o que faz, para que a técnica tradicional
se abale, se desconjunte e tome outros rumos.
Há quem acredite que a técnica atual está mais firme na his-
tória que outras porque ela mesma, como tal técnica, possui ingre-
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dientes que a diferenciam de todas as outras, por exemplo, seu
embasamento nas ciências. Esta presumida segurança é ilusória. A
indiscutível superioridade da técnica presente, como tal técnica, é,
por outro lado, seu fator de maior fraqueza. Se se baseia na exati-
dão da ciência, quer dizer-se que se apoia em mais supostos e
condições que as outras, ao fim e ao cabo mais independentes e
espontâneas.
Todas estas seguranças são as que precisamente estão fazendo
perigar a cultura europeia. O progressismo, ao acreditar que já se
havia chegado a um nível histórico em que não cabia substantivo
retrocesso, senão que mecanicamente se avançaria até ao infinito,
afrouxou as cavilhas da cautela humana e deu lugar a que irrompa
de novo a barbárie no mundo.
[...] Resumamos [...] quanto eu disse até agora:
1º) Não há homem sem técnica.
2º) Essa técnica varia em máximo grau e é sobremaneira inestável,
dependendo qual e quanta seja em cada momento da ideia de bem-
estar que o homem tenha então. Ao tempo de Platão, a técnica dos
chineses, em não poucos setores, era incomparavelmente superior à
dos gregos. Existem certas obras da técnica egípcia que são superio-
res a quanto hoje faz o europeu; por exemplo, o lago Meris, de que
fala Heródoto, que um tempo se acreditou fabuloso e cujo resíduo
foi depois descoberto. Nesta gigantesca obra hidráulica se armaze-
navam 3.430.000.000 de metros cúbicos, e graças a isso a região do
Delta, que hoje é um deserto, era superlativamente fértil. O mesmo
acontece com os foggara do deserto saárico.
3º) Outra questão é se não há em todas as técnicas passadas um
torso comum em que foi acumulando seus descobrimentos, mes-
mo através de não poucos desaparecimentos, retrocessos e perdas.
Em tal caso, poder-se-ia falar de um absoluto progresso da técnica.
Mas sempre se correrá o risco de definir este absoluto progresso do
ponto de vista técnico peculiar àquele que fala, e esse ponto de vista
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não é o absoluto, evidentemente. Enquanto ele o está afirmando
com fé louca, a humanidade começa a abandoná-lo.
Logo mais falaremos um pouco dos diversos tipos de técnica,
de suas vicissitudes, de suas vantagens e suas limitações; mas agora
nos convém não perder de vista a ideia fundamental do que é a
técnica, porque ela encerra os maiores segredos.
Atos técnicos — dizíamos — não são aqueles em que fazemos
esforços para satisfazer diretamente nossas necessidades, sejam estas
elementares ou francamente supérfluas, mas aqueles em que dedi-
camos o esforço, primeiro, para inventar e, depois, para executar
um plano de atividade que nos permita:
1º) Assegurar a satisfação das necessidades, evidentemente, ele-
mentares.
2º) Conseguir essa satisfação com o mínimo esforço.
3º) Criar-nos possibilidades completamente novas produzin-
do objetos que não existem na natureza do homem. Assim, o
navegar, o voar, o falar com o antípoda mediante o telégrafo ou a
radiocomunicação.
Deixando por ora o terceiro ponto, notemos os dois traços
salientes de toda técnica: que diminui, às vezes quase elimina, o
esforço imposto pela circunstância e que o consegue reformando
esta, reagindo contra ela e obrigando-a a adotar formas novas que
favorecem ao homem.
Na poupança de esforço que a técnica proporciona podemos
incluir, como um de seus componentes, a segurança. A precaução,
a angústia, o terror que a insegurança provoca são formas do es-
forço, da imposição por parte da natureza sobre o homem.
Temos, pois, que a técnica é, assim, o esforço para poupar
esforço ou, em outras palavras, é o que fazemos para evitar por
completo, ou em parte, as canseiras que a circunstância primaria-
mente nos impõe. Nisto se acha toda gente de acordo; mas é
curioso que somente se entende por uma de suas faces, a menos
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interessante, o anverso, e não se percebe o enigma que seu reverso
representa.
Não se cai na conta do surpreendente que é que o homem se
esforce precisamente em poupar-se esforço? Dir-se-á que a técni-
ca é um esforço menor com que evitamos um esforço muito maior
e, portanto, uma coisa perfeitamente clara e razoável. Certo; mas
isso não é o enigmático, senão este outro: Onde parará esse es-
forço poupado e que fica disponível? A coisa ressalta mais se em-
pregamos outros vocábulos e dizemos: se com o fazer técnico o
homem fica isento das canseiras impostas pela natureza, que é o
que fará, que canseiras ocuparão sua vida? Porque não fazer nada é
esvaziar a vida, é não viver; é incompatível com o homem. A
questão, longe de ser fantástica, tem hoje já um começo de realida-
de. Até uma pessoa aguda, certamente, mas que é somente econo-
mista — Keynes — se formulava esta questão: dentro de pouco
— se não houver retrocesso, entende-se — a técnica permitirá que
o homem não tenha que trabalhar mais que uma ou duas horas
por dia. Pois bem: que fará o resto das vinte e quatro? De fato, em
que não escassa medida, essa situação é já a de hoje: o operário
trabalha hoje oito horas e, em alguns países, somente cinco dias —
e, ao que parece, este será o porvir imediato geral: trabalhar so-
mente quatro dias semanais; que faz esse operário do resto enor-
me de seu tempo, do âmbito oco que fica em sua vida?
Mas o fato de a técnica atual apresentar tão às claras esta ques-
tão não quer dizer que não preexista desde sempre em toda técni-
ca, posto que toda ela leva a uma poupança de canseira e não
acidentalmente ou como resultado que sobrevém ao ato técnico,
senão que esse afã do poupar esforço é o que inspira a técnica. A
questão, pois, não é adjacente, senão que pertence à própria essên-
cia da técnica, e esta não se entende se não nos perguntamos em
que se emprega o esforço disponível.
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E eis aqui como a meditação sobre a técnica nos faz topar
dentro dela, como com o caroço num fruto, com o raro mistério
do ser do homem. Porque é este um ente forçado, se quer existir,
a existir na natureza, submerso nela; é um animal. Zoologicamente,
vida significa tudo o que é preciso fazer para sustentar-se na natu-
reza. Mas o homem ordena-as para reduzir ao mínimo essa vida,
para não ter que fazer o que tem que fazer o animal. No vão que
a superação de sua vida animal deixa, dedica-se o homem a uma
série de tarefas não biológicas, que não lhe são impostas pela natu-
reza, que ele se inventa para si mesmo. E precisamente a essa vida
inventada, inventada como se inventa um romance ou um peça de
teatro, é ao que o homem chama vida humana, bem-estar. A vida
humana, pois, transcende da realidade natural, não lhe é dada como
lhe é dado à pedra cair e ao animal o repertório rígido de seus atos
orgânicos — comer, fugir, nidificar, etc. — Senão que o homem a
faz, e este fazer a própria vida começa por ser a invenção dela.
Como? A vida humana seria então em sua dimensão específica...
uma obra de imaginação? Seria o homem uma espécie de roman-
cista de si mesmo que forja a figura fantástica de um personagem
com seu tipo irreal de ocupações e que para conseguir realizá-lo
faz tudo o que faz, ou seja, é técnico?
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COLEÇÃO EDUCADORES
1883 - 9 de maio: José Ortega y Gasset nasce em Madri, filho de José Ortega
Munilla e Dolores Gasset.
1891 - Começa a estudar em um colégio dirigido por jesuítas em Miraflores del
Palo (Málaga), onde permanecerá até 1897.
1897 - Estuda direito, letras e filosofia na Universidad de Deusto, em Bilbao,
também dirigida pelos jesuítas.
1901 - Abandona a carreira de direito.
1902 - Com 19 anos de idade, publica seu primeiro artigo, “Glosas”, na revista
Vida Nueva, em que já se notam algumas preocupações que o acompanha-
rão ao longo de sua trajetória intelectual. Obtém licenciatura em filosofia
e letras.
1904 - Obtém o doutorado em filosofia e letras na Universidad Central de
Madri. Inicia sua colaboração no jornal El Imparcial.
1905 - Na Alemanha, frequenta as universidades de Leipzig, Berlim e Marburg,
onde conhece importantes pensadores neokantianos.
1908 - Regressa a Madri. Participa da fundação da revista Far o . Atua como
professor de psicologia, lógica e ética na Escola Superior de Magistério de
Madri.
1910 - Torna-se professor de metafísica na Universidade de Madri. Casa-se com
Rosa Spottorno y Topete.
1914 - Publica o primeiro livro, Meditações do Quixote, em que expõe seu pensa-
mento, sob a influência da filosofia de Kant, e faz considerações sobre a
arte. Funda a Liga de Educación Política.
1915 - Funda a revista España, com um grupo de escritores, entre os quais o
poeta Antonio Machado.
1917 - Passa a escrever no jornal El Sol, fundado por ele e Nicolás de Urgoiti.
1921 - Publica Espanha invertebrada, onde analisa a situação sociopolítica do país.
CRONOLOGIA
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ORTEGA Y GASSET
1923 - Publica O tema do nosso tempo. Funda a Revista de Occidente, da qual será o
diretor até 1936. Promove a tradução e a divulgação de significativos
nomes da filosofia e da ciência naquela época: Oswald Spengler, Johan
Huizinga, Edmund Husserl, Bertrand Russell e Georg Simmel.
1925 - Publica A Desumanização da Arte.
1929 - Publica Kant: Reflexões em torno de um centenário. Suas discordâncias
com a ditadura de Primo de Rivera fazem-no renunciar à sua cátedra
na Universidade de Madri, dando continuidade às suas aulas em outros
espaços, como o Teatro Beatriz.
1930 - Publica Missão da universidade. Vem à luz seu livro mais conhecido, A
rebelião das massas.
1931 - Com Gregorio Marañón e Pérez de Ayala, funda a Agrupación al Servicio
de la República. Proclamada a República, é eleito deputado pela provín-
cia de León. Essa sua participação política, no entanto, durará apenas um
ano.
1932 - Retoma suas atividades acadêmicas.
1933 - Publica Em torno de Galileu.
1936 - Início da Guerra Civil Espanhola. Refugia-se inicialmente em Paris,
depois na Holanda e na Argentina.
1939 - Publica Meditação da técnica e estudos sobre o amor.
1940 - Publica Ideas y creencias e La razón histórica.
1941 - Publica História como sistema.
1942 - Passa a morar em Portugal.
1945 - Fim da Segunda Guerra. Retorna definitivamente para a Espanha. A
ditadura de Franco tolera sua permanência no país, mas lhe concede
pouco espaço.
1948 - Encontrando dificuldades para lecionar na universidade pública, funda o
Instituto de Humanidades, onde ministra aulas e palestras para um públi-
co heterogêneo.
1950 - Realiza sua última viagem à Alemanha, onde recebe o título de Doctor
Honoris Causa pelas universidades de Marburg e Glasgow. Publica Papéis
sobre Velázquez e Goya.
1955 - Retorna a Madri. Falece no dia 18 de outubro.
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COLEÇÃO EDUCADORES
Obras de José Ortega y Gasset
ORTEGA Y GASSET, J. Biología y pedagogía. El Sol, Madrid, v. 3, p. 131-133,
16 mar. 1923.
_____. Editorial. Revista de Occidente, v. 1, p. 53-57, 1983.
_____. Elogio de las virtudes de la mocedad. [Madrid: s.n.], 1925.
_____. En el centenario de una universidad [Conferência na Universidade de
Granada por ocasião do centenario da universidade]. Revista de Occidente, Madrid,
v. 5, p. 463-473, 1931.
_____. La hora del maestro. [Madrid: s.n.], 1913.
_____. Misión de la universidad. [Texto de uma conferência na Universidade
Central de Madrid]. Revista de Occidente, Madrid, v. 4, p. 315-353, 1930.
_____. Obras completas. Madrid: Alianza, 1906.
_____. Para los niños españole. [Madrid: s.n.], 1928.
_____. La pedagogía de la contaminación. [Madrid: s.n.], 1917.
_____. La pedagogía del paisaje. El Imparcial, Madrid, 17 sep. 1906.
_____. La "Pedagogía General” derivada del fin de la educación de J. F. Herbart.
Revista de Occidente, Madrid, v. 6, p. 265-291, 1914.
_____. La pedagogía social como programa político. Exposé prononcé devant la
Sociedad "El Sitio”, Bilbao, v. 1, p. 503-521, 12 mar. 1910.
_____. Pedagogía y anacronismo. Revista de Pedagogía, Madrid, v. 3, p. 131-133,
jan. 1923.
_____. Sobre el estudiar y el estudiante. La Nación, Buenos Aires, v. 4, p. 545-
55423, abr. 1933.
_____. Sobre las carreras. La Nación, Buenos Aires, v. 5, p. 167-183, sep./oct.
1934.
BIBLIOGRAFIA
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_____. Apuntes para una educación del futuro. [Intervenção à reunião do Fondo
para el Progreso de la Educación]. Revista de Occidente, Madrid, v. 9, p. 665-675,
mai. 1952.
Obras sobre José Ortega y Gasset
BARCENA, F. La dimensión educativa del problema de la verdad en el
pensamiento de José Ortega y Gasset. Revista Española de Pedagogía, Madrid, n°
160, p. 311-324, 1983.
BARRENA-SÁNCHEZ, J. Los fines de la educación en José Ortega y Gasset.
Revista Española de Pedagogía, Madrid, n° 116, p. 393-414, 1971.
ESCOLANDO, A. Los temas educativos en la obra de J. Ortega y Gasset. Revista
Española de Pedagogía, Madrid, n° 113, p. 211-230, 1968.
GARCÍA MORENTE, M. La pedagogía de Ortega y Gasset. Revista de Pedagogía,
Madrid, n° 2/3, p. 41-47; 95-101, 1922.
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Aires: El Ateneo, 1962. p. 55-74.
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cas, Madrid, n° 51, p. 501-510, 1983.
ZARAGÜETA, J. El pensamiento pedagógico de José Ortega y Gasset. Revista de
Educación, Madrid, n° 38, p. 65-70, [1955].
Obras de José Ortega y Gasset em português
ORTEGA Y GASSET. A desumanização da arte. São Paulo: Cortez, 1999.
______. A ideia do teatro. São Paulo: Perspectiva, 1991.
______. A rebelião das massas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
______. Adão no Paraíso e outros ensaios de estética. São Paulo: Cortez, 2002.
______. Em torno de Galileu. Petrópolis: Vozes, 1989.
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COLEÇÃO EDUCADORES
______. Estudos sobre o amor. Lisboa: Relógio d’Água. 2000.
______. História como sistema: Mirabeau ou o político. Brasília: UnB, 1982.
______. Meditação da técnica. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963.
______. Meditações do Quixote. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1967.
______. Missão da universidade. Rio de Janeiro: UERJ, 1999.
______. O homem e a gente. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1973.
______. O que é o conhecimento? Lisboa: Fim de Século, 2002.
______. Origem e epílogo da filosofia. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1973.
______. Que é filosofia. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1971.
______. Sobre a caça e os touros. Lisboa: Cotovia, 1995.
Obras sobre José Ortega y Gasset em português
AMOEDO, M. I. A. José Ortega y Gasset: a aventura filosófica da educação.
Lisboa: Imprensa Nacional, 2002.
CALDAS, S. A teoria da história em Ortega y Gasset. Porto Alegre: EDIPUCRS,
1994.
CARVALHO, J. M. de. Introdução à filosofia da razão vital de Ortega y Gasset. Londri-
na: Cefil, 2002.
DROGUETT, J. G. Ortega y Gasset. Petrópolis: Vozes, 2002.
GONZÁLEZ, L. J. F. A gratuidade na ética de Ortega y Gasset. São Paulo:
Annablume, 2001.
KUJAWSKI, G. de M. Ortega y Gasset: a aventura da razão. São Paulo: Moderna,
1994.
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Este volume faz parte da Coleção Educadores,
do Ministério da Educação do Brasil, e foi composto nas fontes
Garamond e BellGothic, pela Sygma Comunicação,
para a Editora Massangana da Fundação Joaquim Nabuco
e impresso no Brasil em 2010.
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