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CLAPARÈDE
ÉDOUARD
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Ministério da Educação | Fundação Joaquim Nabuco
Coordenação executiva
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier e Isabela Cribari
Comissão técnica
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier (presidente)
Antonio Carlos Caruso Ronca, Ataíde Alves, Carmen Lúcia Bueno Valle,
Célio da Cunha, Jane Cristina da Silva, José Carlos Wanderley Dias de Freitas,
Justina Iva de Araújo Silva, Lúcia Lodi, Maria de Lourdes de Albuquerque Fávero
Revisão de conteúdo
Carlos Alberto Ribeiro de Xavier, Célio da Cunha, Jáder de Medeiros Britto,
José Eustachio Romão, Larissa Vieira dos Santos, Suely Melo e Walter Garcia
Secretaria executiva
Ana Elizabete Negreiros Barroso
Conceição Silva
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Daniel Hameline
CLAPARÈDE
ÉDOUARD
Tradução e organização
Elaine Terezinha Dal Mas Dias
Izabel Petraglia
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ISBN 978-85-7019-561-6
© 2010 Coleção Educadores
MEC | Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana
Esta publicação tem a cooperação da UNESCO no âmbito
do Acordo de Cooperação Técnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo a
contribuição para a formulação e implementação de políticas integradas de
melhoria da equidade e qualidade da educação em todos os níveis de ensino formal
e não formal. Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos
contidos neste livro, bem como pelas opiniões nele expressas, que não são
necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organização.
As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo desta publicação
não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO
a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região
ou de suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites.
A reprodução deste volume, em qualquer meio, sem autorização prévia,
estará sujeita às penalidades da Lei nº 9.610 de 19/02/98.
Editora Massangana
Avenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540
www.fundaj.gov.br
Coleção Educadores
Edição-geral
Sidney Rocha
Coordenação editorial
Selma Corrêa
Assessoria editorial
Antonio Laurentino
Patrícia Lima
Revisão
Sygma Comunicação
Revisão técnica
Denise Gisele de Britto Damasco
Ilustrações
Miguel Falcão
Foi feito depósito legal
Impresso no Brasil
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Fundação Joaquim Nabuco. Biblioteca)
Hameline, Daniel.
Édouard Claparède / Daniel Hameline; Izabel Petraglia, Elaine T. Dalmas Dias
(orgs.). – Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.
148 p.: il. – (Coleção Educadores)
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-7019-561-6
1. Claparède, Édouard, 1873-1940. 2. Educação – Pensadores – História. I. Petraglia,
Izabel. II. Dias, Elaine T. Dalmas. III. Título.
CDU 37
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SUMÁRIO
Apresentação, por Fernando Haddad, 7
Ensaio, por Daniel Hameline, 11
Um movimento heterogêneo e controverso, 12
Cidadão de Genebra, 14
Psicólogo ou moralista?, 15
A obra e o trabalho, 16
A obsessão do “funcional”, 18
O interesse, noção pedagógica central, 22
O rígido e o brando, 24
Três questões fundamentais, 25
Claparède: funcionalista da Escola Nova, por Izabel Petraglia
e Elaine T. Dal Mas Dias, 31
Textos selecionados, 37
Cronologia, 133
Bibliografia, 137
Obras de Claparède, 137
Obras sobre Claparède, 144
Obras de Claparède em português, 145
Obras sobre Claparède em português, 146
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ANTONIO GRAMSCI
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7
COLEÇÃO EDUCADORES
O propósito de organizar uma coleção de livros sobre educa-
dores e pensadores da educação surgiu da necessidade de se colo-
car à disposição dos professores e dirigentes da educação de todo
o país obras de qualidade para mostrar o que pensaram e fizeram
alguns dos principais expoentes da história educacional, nos pla-
nos nacional e internacional. A disseminação de conhecimentos
nessa área, seguida de debates públicos, constitui passo importante
para o amadurecimento de ideias e de alternativas com vistas ao
objetivo republicano de melhorar a qualidade das escolas e da
prática pedagógica em nosso país.
Para concretizar esse propósito, o Ministério da Educação insti-
tuiu Comissão Técnica em 2006, composta por representantes do
MEC, de instituições educacionais, de universidades e da Unesco
que, após longas reuniões, chegou a uma lista de trinta brasileiros e
trinta estrangeiros, cuja escolha teve por critérios o reconhecimento
histórico e o alcance de suas reflexões e contribuições para o avanço
da educação. No plano internacional, optou-se por aproveitar a co-
leção Penseurs de l´éducation, organizada pelo International Bureau of
Education (IBE) da Unesco em Genebra, que reúne alguns dos mai-
ores pensadores da educação de todos os tempos e culturas.
Para garantir o êxito e a qualidade deste ambicioso projeto
editorial, o MEC recorreu aos pesquisadores do Instituto Paulo
Freire e de diversas universidades, em condições de cumprir os
objetivos previstos pelo projeto.
APRESENTAÇÃO
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8
ANTONIO GRAMSCI
Ao se iniciar a publicação da Coleção Educadores
*
, o MEC,
em parceria com a Unesco e a Fundação Joaquim Nabuco, favo-
rece o aprofundamento das políticas educacionais no Brasil, como
também contribui para a união indissociável entre a teoria e a prá-
tica, que é o de que mais necessitamos nestes tempos de transição
para cenários mais promissores.
É importante sublinhar que o lançamento desta Coleção coinci-
de com o 80º aniversário de criação do Ministério da Educação e
sugere reflexões oportunas. Ao tempo em que ele foi criado, em
novembro de 1930, a educação brasileira vivia um clima de espe-
ranças e expectativas alentadoras em decorrência das mudanças que
se operavam nos campos político, econômico e cultural. A divulga-
ção do Manifesto dos pioneiros em 1932, a fundação, em 1934, da Uni-
versidade de São Paulo e da Universidade do Distrito Federal, em
1935, são alguns dos exemplos anunciadores de novos tempos tão
bem sintetizados por Fernando de Azevedo no Manifesto dos pioneiros.
Todavia, a imposição ao país da Constituição de 1937 e do
Estado Novo, haveria de interromper por vários anos a luta auspiciosa
do movimento educacional dos anos 1920 e 1930 do século passa-
do, que só seria retomada com a redemocratização do país, em
1945. Os anos que se seguiram, em clima de maior liberdade, possi-
bilitaram alguns avanços definitivos como as várias campanhas edu-
cacionais nos anos 1950, a criação da Capes e do CNPq e a aprova-
ção, após muitos embates, da primeira Lei de Diretrizes e Bases no
começo da década de 1960. No entanto, as grandes esperanças e
aspirações retrabalhadas e reavivadas nessa fase e tão bem sintetiza-
das pelo Manifesto dos Educadores de 1959, também redigido por
Fernando de Azevedo, haveriam de ser novamente interrompidas
em 1964 por uma nova ditadura de quase dois decênios.
*
A relação completa dos educadores que integram a coleção encontra-se no início deste
volume.
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9
COLEÇÃO EDUCADORES
Assim, pode-se dizer que, em certo sentido, o atual estágio da
educação brasileira representa uma retomada dos ideais dos mani-
festos de 1932 e de 1959, devidamente contextualizados com o
tempo presente. Estou certo de que o lançamento, em 2007, do
Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), como mecanis-
mo de estado para a implementação do Plano Nacional da Edu-
cação começou a resgatar muitos dos objetivos da política educa-
cional presentes em ambos os manifestos. Acredito que não será
demais afirmar que o grande argumento do Manifesto de 1932, cuja
reedição consta da presente Coleção, juntamente com o Manifesto
de 1959, é de impressionante atualidade: “Na hierarquia dos pro-
blemas de uma nação, nenhum sobreleva em importância, ao da
educação”. Esse lema inspira e dá forças ao movimento de ideias
e de ações a que hoje assistimos em todo o país para fazer da
educação uma prioridade de estado.
Fernando Haddad
Ministro de Estado da Educação
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ANTONIO GRAMSCI
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11
COLEÇÃO EDUCADORES
ÉDOUARD CLAPARÈDE
(1873-1940)
1
Daniel Hameline
2
Para dar crédito à breve resenha que dedica a Edouard Claparède
o Thesaurus da nova edição da Enciclopaedia universalis (1985), a obra
do psicólogo e pedagogo genebrino está hoje “bastante esquecida”,
especialmente quando temos que reconhecer que sua influência pessoal
foi, em sua época, “bastante grande”. Confessemos que, embora o
elogio seja cortês, não se percebe nele um grande entusiasmo. Con-
tudo a publicação na Itália, entre 1981 e 1984, de sete volumes escri-
tos e comentados de textos inéditos de Claparède, em edição de
Carlo Trombetta e Sante Bucci; a elaboração de uma tese de gradu-
ação na França (Lyon, 1982); a celebração, em Roma (1983) e em
Genebra (1984), de dois simpósios sobre a atualidade desta obra,
não deveríam nos levar corrigir um pouco esta análise?
3
1
Este perfil foi publicado em Perspectives: revue trimestrielle d’éducation comparée.
Paris, Unesco: Escritório Internacional de Educação, v. 24, n. 3-4, p. 808-821, 1994 (91/
92).
2
Daniel Hameline (Suíça): Facudade de Psicologia e Ciências da Educação, da Univer-
sidade de Genebra.
3
Trombetta, C.. Inediti psicologici. Roma: Bulzoni Ed., 1981, 1982. 6 v. Trombetta, C.
Inediti pedagogici: saggio, introduzioni e note de Sante Bucci. Perugia: Universita degli
Studi, 1984. Rogowski, S. La fonction de l’éducation dans la pensée d’Edouard Claparède.
1982. Thèse (Doctorat) – Université de Lyon II. ACTES des Colloques de Rome (1983) et
de Genève (1984). Studi di Psicologia de l’Educazione, n. 3, número especial, 1984. Cabe
destacar também três manifestações menos recentes: Centenaire de la naissance d’Edouard
Claparède. Genève, Fpse, Bulletin Société Binet-Simon, Genève, Fpse, n. 73, p. 242-304,
1973; TROIS pionniers de l’Éducation nouvelle: E. Claparède, H. Wallon, H. Bouchet.
Lyon, Bulletin Société Binet-Simon, n. 73, p. 242-304, 1973. Comite Français pour
L’éducation Prescolaire. Edouard Claparède: journée nationale de l’omep. Paris: Comité
français pour l’Éducation préscolaire, 1976.
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ANTONIO GRAMSCI
Todavia, nós nos sentiríamos tentados a dizer que a glória pa-
radoxal de Claparède reside no fato de ter sido esquecido, na
medida que as ideias pelas quais ele lutou figuram hoje entre os
lugares comuns da cultura pedagógica, ao ponto de já não ser
necessário atribuí-las a um determinado autor. Mas este anonimato
se deve, na mesma medida, ao fato de que as ideias educativas de
Claparède, mais que a elaboração de um pensamento original,
constituíam o reflexo de uma época cujos equívocos se estendem
até a nossa. É necessário especificar o papel e a contribuição singu-
lar de Claparède no movimento que se convencionou designar
com o termo eminentemente vago de “educação nova”.
Um movimento heterogêneo e controverso
É, efetivamente, nesta aparente Babel pedagógica onde virão
a inscrever-se as iniciativas dos genebrinos e, em particular, a de
Edouard Claparède quando faz sua clamorosa entrada no movi-
mento com a publicação, em 1905, de seu livro, que ao longo das
reedições chegaría a converter-se em um imponente tratado,
Psychologie de l’enfant et pédagogie expérimentale. A partir desta obra, o
tom claparediano fica estabelecido: um militantismo crítico contra
as práticas escolares recebidas, um apelo à ciência e à sua objetivi-
dade para inaugurar novas práticas.
Mas os adversários, por sua vez, não deixam de ir ao seu en-
contro desde o início. Seu séquito, também heteróclito, acompa-
nhará fielmente as sucessivas gerações de entusiastas. Aliás, entre os
adeptos do movimento, constituido por uma Liga Internacional
na ocasião do célebre Congreso de Calais de 1921, serão muitos a
expressar críticas e reservas. E Claparède não será o último. Gran-
de parte de sua autoridade sobre o movimento se deverá à sua
polêmica animosidade contra a escola “tradicional”, à sua excepci-
onal capacidade para ordenar o entorno ideológico dos conceitos
e torná-los “funcionais”: seu célebre conceito, de 1923, da noção
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COLEÇÃO EDUCADORES
da “criança ativa”, retomado em 1931 em L’Éducation fonctionnelle,
constitui sem dúvida, o exemplo mais notável do que afirmamos.
Seria possível pensar, durante o grande salto dado pela
educação escolar depois da Segunda Guerra Mundial e, em parti-
cular, durante as grandes campanhas efetuadas pela Unesco nas
décadas de cinquenta e sessenta, que os temas educativos aprecia-
dos por Claparède haviam se tornado aquisições definitivas e insu-
peráveis da educação escolar moderna. Ora, é conveniente saber
que, durante a década de oitenta, assistimos a um questionamento
renovado, vigoroso, convergente e seguro das concepções das quais
Claparède foi um dos principais defensores. Analisam-se estas con-
cepções, não tanto como resultado de uma abordagem racional e
razoável do fenômeno educativo, mas sim como a persistência de
uma ideologia mistificadora a partir da qual o mais certo efeito é o
de conduzir as políticas escolares a impasses.
Obras como a de Neil Postman nos Estados Unidos ou a de
Jean-Claude Milner na França
4
expressam, cada uma a seu modo,
este questionamento radical. Questionamento este que assume ares
panfletários no texto de Carlos Lerena, quando evidencia as “con-
vergências” que se expressam através do discurso e iniciativas de
grandes organizações internacionais:
A produção do homem contemporâneo se realizou no interior de
um templo positivista e totalitário, em cujo púlpito os pregadores
mais eficazes têm sido os brandos e os rousseaunianos, e não os
rígidos e os comtianos. Melhor dizendo, o sermão mais eficaz tem
sido o dos teóricos da infância e da puerilidade, a pregação dos
evangelizadores do psicologismo e do culto da problemática das
relações interpessoais [...], o sermão do socratismo, da autoeducação
[...] e, no extremo oposto, o antissermão da bomba desativada da
desescolarização e assim sucessivamente, até a ladainha técnica da
educação permanente da Unesco. Tudo isso nos leva a crer que foi
Rousseau quem contribuiu para a construção deste templo positivista
e comtiano; Rousseau, cujo caminho sempre retorna a Kant.
4
Milner, J. C. De l’École. Paris: Editions du Seuil, 1983.
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ANTONIO GRAMSCI
Essa severa crítica não deixa de dar o que pensar, mesmo que
sua virulência diminua sua credibilidade num primeiro olhar. E o
rodeio contemporâneo de Claparède adquire, por si só, uma sin-
gular atualidade. Pois, em certo sentido, foi na prolongação de um
enfoque positivista que se impôs o princípio de uma construção
científica das coisas humanas. Porém, Rousseau é, efetivamente, a
quem se recorre, como modelo, na hora de fundar o Instituto das
Ciências da Educação que assegurará a reputação mundial de Ge-
nebra; Rousseau, a quem se considera precursor de sua própria
concepção funcional da infância
5
. Teórico efetivo da infância,
Claparède se encontra entre os paladinos de uma pedagogia da
puerilidade? Defensor do primado da psicologia, foi o pregador
fanático do evangelho “psicologista”? É representante da
“revolução copernicana” que faz da criança ativa o centro em tor-
no do qual se constrói o processo ensinar-aprender?
6
Cidadão de Genebra
Oriundo de uma linhagem de pastores languedocianos esta-
belecidos em Genebra depois da revogação do Edito de Nantes
(1685), Edouard Claparède é, definitivamente, o herdeiro da Ge-
nebra culta mais que da Genebra religiosa. Calvinista por tradição,
seu protestantismo está mais próximo das correntes liberais que
da ortodoxia eclesiástica ou o do ressurgimento místico. É pleno,
sobretudo, de espírito de iniciativa e de independência,
consubstanciado em um individualismo empreendedor, rico em
múltiplas solidariedades valiosas e cultivadas.
Graças à admiração que dedica a outro Édouard Claparède,
seu tio, zoólogo prestigiado e darwinista convicto, é à Genebra
5
Ver L’Éducation fonctionnelle. Neuchâtel: Delachaux; Paris: Niestlé, 1931. pp. 97-136.
6
Georges Snyders depois de mais de vinte anos, fez a crítica, da perspectiva marxista,
das correntes nascidas da Educação Nova. Veja a respeito: Snyders, G. Pédagogie
progressiste. Paris: Presses Universitaires de France, 1971; Snyders, G. Où vont les
pédagogies non directives? Paris: Presses Universitaires de France, 1973.
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COLEÇÃO EDUCADORES
culta que Claparède se vincula. Homens como Charles Bonnet, os
irmãos de Candolle, Carl Vogt e seu tio Claparède instauraram e
ancoraram nela uma tradição de investigação experimental, de rigor
intelectual, de confiança nas ciências da natureza e, acima de tudo,
na própria natureza, de franqueza de expressão e liberdade de
compromisso. Estes sábios são também cidadãos notáveis. Porém
seu status de homens da ciência lhes permite escapar dos entraves
mundanos de uma cidade que, apesar de sua vocação internacional
e seu cosmopolitismo, não deixa de ser, em muitos aspetos, uma
cidade provinciana que se retrai, em seguida, diante das fachadas
de seus convencionalismos.
Claparède não tem por essa Genebra grande estima. Seu pri-
meiro texto, em 1892, já foi uma crítica, demasiadamente mode-
rada, do ensino recebido no Collége de Genève. Embora estas
considerações juvenis sobre a educação, já anunciem o pedagogo,
são mais concernentes ao cidadão. Já se percebe aí a singularidade
do homem simpatizante das recém-chegadas ciências humanas. E,
em 1898, voltamos a encontrar o cidadão quando, a título de “tra-
balho de psicologia e de moral política”, redige um Essai sur l’opinion
publique dans ses rapports avec la raison et la morale. S. Bucci
7
comentou
amplamente este texto inédito de Claparède.
Psicólogo ou moralista?
Mas é através da psicologia (o ensaio de 1898 testemunha isso)
que Claparède pensa promover a reforma da opinião pública. Se
refere, entre outros, a Gustave Le Bon e a seu célebre Psychologie des
foules para criticar as incoerências dramáticas dos movimentos co-
letivos; não exita em transferir suas análises para as classes
favorecidas, às quais sua cultura deveria permitir escapar das inibi-
7
Trombetta, C. Inediti pedagogici: saggio, introduzioni e note de Sante Bucci. Perugia:
Universita degli Studi, 1984. pp. 5-15. Pareceres muito sagazes sobre “Édouard Claparède
et son temps” já haviam sido formulados por Alfred Berchtold, em Centenaire d’Édouard
Claparède, op. cit., pp. 78-96.
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ANTONIO GRAMSCI
ções, pressões sociais enganosas, a preocupação com o que os
outros dizem e a hipocrisia que as caraterizam e agravam sua res-
ponsabilidade perante à questão social.
A ciência é neutra, proclamará o psicólogo Claparède insisten-
temente. Porém, como vários “cientificistas” de seu tempo, está
persuadido de que a aplicação da ciência às questões humanas cons-
titui, no fim das contas, um progresso. E a melhora não se limita, a
seus olhos, apenas a um maior conhecimento dos homens. Cabe
escrever, com Carlo Trombetta
8
, que, em última análise, Claparède
dá o passo em direção a uma ética da conduta social, entendida
como a conduta do homem na sociedade. E cabe ressaltar, com
todos os críticos de Claparède, como seu testamento espiritual,
Morale et politique (1940), vem fechar o ciclo, o que significa que
após cinquenta anos persiste a mesma preocupação: a psicologia
pode e deve ajudar a conceber uma sociedade na qual não se abra
mão da integridade.
A obra e o trabalho
Homem de ciência e militante, Claparède nos deixou uma obra
escrita muito rica, que exerceu em sua época uma influência maior
do que leva a crer a resenha citada no começo. Mais de seiscentas
publicações entre 1892 e 1940, que surpreendem pela amplitude
das preocupações inteletuais, pelo enorme senso de compromis-
so, pela grandeza das exigências morais e a variedade dos públicos
a que se dirigia um pensador seguro de suas convicções.
Claparède tem, evidentemente, uma abundante produção ci-
entífica, nas revistas especializadas da época, destinada a seus pa-
res, porém sobre os assuntos mais diversos, ao ponto de se poder
considerar a curiosidade científica um tanto caprichosa. No entan-
to, nele, curiosidade e abordagem metódica caminham constante-
mente juntas. Sendo assim, na psicologia, se permite abordar tudo:
8
Trombetta, C. Inediti pedagogici, op. cit., v. 1, p. 45.
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COLEÇÃO EDUCADORES
sua arte é a de fazer perguntas, arte eminentemente socrática, no
final das contas; no que se revela o pedagogo, tal como o descre-
vem seus alunos do Institut Rousseau. Todavia, Claparède é, na
mesma linha, de uma vasta e constante fonte de popularização
educativa destinada ao “grande público” por meio de múltiplos
artigos ocasionais em semanários ou na imprensa diária
9
. Claparède,
enfim, está nos cursos, cujas notas preparatórias nos chegam atra-
vés dos textos inéditos publicados por Carlo Trombetta, testemu-
nho de uma profunda erudição e dessa aptidão altamente educativa
de clarificar uma questão complexa tanto quanto de tornar pro-
blemática uma questão aparentemente simples.
No entanto, o cientista é também um homem empreendedor.
À semelhança do americano John Dewey, a quem admira
10
, não
concebe o ensino da psicologia pedagógica sem as instituições
mínimas que permitam sua aplicação. Obviamente, ele não é o
único a conceber o Instituto de Ciências da Educação que criará
em 1912. Nem sequer é o primeiro
11
. Porém, seu constante afã
apoiará a adequação da pedagogia aos ideais que ali se propagam
e faz dele um verdadeiro “laboratório” no qual teoria e prática
possam operar essa problemática junção. Pierre Bovet, a quem
Claparède recorre para dirigir o estabelecimento, relatou a aventu-
ra dos vinte primeiros anos desta escola superior que “não queria
ser como as outras”
12
. Através do prisma da nostalgia, a aventura
se revela comovedora, a Ilíada ou Odisseia da nova pedagogia. Muitas
coisas ficam por serem escritas. Uma certeza permanece: a obsti-
9
Estes artigos aparecem reunidos nas três séries de Causeries psychologiques, Gene-
bra, Naville, 1933, 1935 e 1937.
10
Claparède, E. Préface. In: Dewey, J. L’École et l’enfant. 7. ed. Neuchâtel: Delachaux;
Paris: Niestlé, 1967.
11
Em 1911, Maurice Millioud apresentou à Faculdade de Letras de Lausanne um projeto no
qual se inspirarão os genebrinos.
12
Bovet, P. Vingt ans de vie, l’Institut Jean-Jacques Rousseau de 1912 à 1932. Neuchâtel:
Delachaux; Paris: Niestlé, 1932.
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ANTONIO GRAMSCI
nação de Claparède frente a múltiplos entraves e ásperas oposi-
ções permitiu que esta história começasse e seguisse adiante.
E é esta mesma obstinação que encontramos em Claparède que
é a base operária da Internacional dos psicólogos, redator assíduo
até sua morte dos informes e das atas de seus congressos, fundador
e diretor dos célebres Archives de psychologie. Tenta assim constituir a
fauna cosmopolita e individualista, ou, ao contrário, duvidosamente
nacionalista, dos pesquisadores europeus em uma sociedade erudita
internacional na qual a rivalidade se transforme em emulação, o con-
flito entre pessoas em confronto de ideias e a retenção cautelosa da
informação em intercâmbio aberto e cooperativo.
Proclamado como “cientificista” sensato pela autonomia e a
neutralidade moral da psicologia experimental que contribui para
fundar, Claparède considera sua missão a de chamar a atenção
dos pesquisadores sobre o caráter fundamentalmente ético da ativi-
dade dos homens de ciência que antes citamos. Expressa uma tripla
exigência: a probidade intelectual na pesquisa; a responsabilidade
do cientista na vida pública; o compromisso coletivo dos homens
de ciência contra a ameaça e o trágico retorno da barbárie, frente
a qual não é possivel, a seu ver, manter-se neutro. E se pode dizer,
sem intenção de dramatizar a história com alardes, que Claparède
morreu em 1940 ao ver seus ideais agonizando.
A obsessão do “funcional”
Estaríamos, então, dispostos a enunciar a contradição ao qual
o pensamento claparediano teve de afrontar para fundar uma ci-
ência positiva autônoma e ao mesmo tempo oferecê-la como base
de referência para uma prática do humano na qual suas mais valiosas
convicções se encontravam comprometidas? Ao assumir esta con-
tradição, o pensamento de Claparède sobre a educação experi-
menta, por sua vez, a solidez e a fragilidade dos alicerces.
A partir de 1911, Claparède assentou as bases de um pensa-
mento em torno da educação que, até o último momento, se
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COLEÇÃO EDUCADORES
apresentaria como a aplicação prática de uma antropologia biologista e
funcionalista: o humano, para Claparède, é, acima de tudo, uma rea-
lidade viva que funciona. E o único recurso da educação é, sem
dúvida alguma, o de coincidir com esse funcionamento, manter-se
em harmonia com o mesmo, para se tornar, em vez deste sobre-
carga artificial, pesado e ineficaz para milhares de crianças, a ex-
pressão natural de sua atividade e de seu desenvolvimento.
Este funcionalismo é o traço peculiar do pensamento
claparediano sobre a educação, a chave de sua antropologia. Re-
corda-se, Claparède, em sua Autobiographie, que P. Bovet incorpo-
rou à edição póstuma (1946) do Développement mental. Adotar uma
concepção funcional dos fenômenos psicológicos é considerá-los,
acima de tudo, “do ponto de vista de sua função na vida, do lugar
que ocupa no conjunto do comportamento em um dado mo-
mento. Isto equivale a colocar a questão da sua utilidade”. E
Claparède prossegue: “Depois de ter-me perguntado para que
serve o sono, indaguei-me para que serve a infância, para que serve
a inteligência, para que serve a vontade”.
“Para que serve?” Essa pergunta é, aparentemente, trivial.
Constatamos, para começar, que se assemelha à preocupação
utilitarista que domina os responsáveis pelas decisões políticas a
partir de 1880, quando têm que investir em educação fundos cada
vez mais consideráveis e se perguntam, consequentemente, pela
rentabilidade de tal investimento. “Rentabilidade”: Claparède não
teme essa palavra. E estamos aqui já bem distantes da “puerilidade”
e da terna idolatria da infância. O “rendimento” não é para ele um
conceito pedagógico pejorativo. No campo do estudo dos indivíduos,
enxerga nele um componente essencial de toda aptidão. Pois, esta
última só se manifesta se for demandada por uma situação exteri-
or que impõe ao sujeito humano suas pressões
13
. No âmbito da
13
Claparède, E. Comment diagnostiquer les aptitudes chez les écoliers. Paris: Flammarion,
1923. p. 29 e seg.
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ANTONIO GRAMSCI
crítica social, Claparéde recrimina esfecificamente a escola por não
saber obter das inteligências o melhor rendimento, desperdiçando
o capital intelectual das nações. Evidencia isto mostrando a diver-
gência que existe entre o êxito escolar e a medida da inteligência: as
melhores inteligências estagnam na escola, que está excessivamente
adaptada à maioria dos alunos, cuja inteligência é mediana. Claparède
não se preocupa por parecer elitista, ao mesmo tempo que se or-
gulha pelos resultados obtidos na recuperação dos alunos “menos
dotados”
14
.
Porém, esta acusação contra uma educação-desperdício é
consequência direta de sua própria concepção da vida psíquica. E
tocante a este ponto, as duas grandes metáforas claparedianas nos
instruem perfeitamente. Robert Dottrens, que foi o primeiro pro-
fessor nomeado pelo Institut Rousseau, cuja direção assumiría pos-
teriormente com Piaget, enxerga na “tomada de decisão” “prise de
position” que abre a primeira edição de Psychologie de l’enfant et pédagogie
expérimentale o princípio de que “todas as obras ulteriores serão, de
certo modo, modulações sucessivas”: “Que a pedagogia deve fun-
dar-se no conhecimento da criança como a horticultura no das plantas
parece ser uma verdade elementar. Entretanto, a mesma é ignorada
pela maior parte dos pedagogos e por quase todas as autoridades
escolares”
15
. E Carlo Trombetta, por época de um curso sobre a
Psychologie de l’intérêt, datado de 1904, destaca uma série de metáforas
de relojoeiro que ele relaciona à passagem da Association des idées (1903):
“Pegue um cronômetro, desmonte-o: encontrarás nele engranagens
por quase todas as partes. Quebre um só dente dessa engrenagem:
seu relógio deixará de funcionar e assim terá perdido todo seu valor.
Pode-se deduzir a partir disso que é a engrenagem que faz a máqui-
na andar? De modo algum: seu único e verdadeiro motor é a tensão
14
Dottrens, R. Succés scolaire et intelligence. Journal de Genève, 21 mar. 1935; Trombetta,
C. Causeries psychologiques., 3. ed. Genebra: Naville, 1937. pp. 10-15.
15
Claparède, E. Psychologie de l’enfant et pédagogie expérimentale. 6.ed. Genève:
Kundig; Paris: Fischbascher, 1916. p. 1.
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21
COLEÇÃO EDUCADORES
da mola. A engrenagem tem um valor mecânico; a mola possui um
valor dinâmico, vital, poderíamos dizer, assumindo o ponto de vista
de nosso próprio cronômetro”
16
.
E já temos o cronômetro assimilado, finalmente, pela estrutura,
dotado de um “valor” vital, sem dúvida alguma metafórico, a partir
do momento em que assumimos “o ponto de vista do próprio
cronômetro”. Façamos agora a transposição ao terreno da educação
e voltaremos a encontrar a “revolução copernicana” que preconiza
o célebre texto de 1919:A infância tem uma significação biológica
(...). Há que se estudar, portanto, as manifestações naturais da criança
e ajustar a elas a ação educativa. Os métodos e os programas
gravitando em torno da criança, e não a criança que gira ao redor de
um programa imposto, sem poder contar com ele, tal é a revolução
copernicana na qual o educador é convidadeo a adentrar.”
17
.
Entre duas metáforas e uma reviravolta, Claparède se encontra
assim no centro da contradição teórica que não tem mais solução.
Por um lado, o recurso à metáfora hortícola equivale, para ele, a
invocar a natureza e seu funcionamento que é de ordem vital. Mas, o
que é a vida? Um estudo científico dos fenômenos do ente vivo
deve prescindir do vitalismo, resposta puramente “verbal” que conduz
ao mistério de uma virtude oculta de um princípio que escapa à
observação. O vitalismo não responde de maneira satisfatória à única
pergunta que, segundo Claparède, pode interessar ao pedagogo, a
questão psicológica: “Por que funciona dessa maneira?”
Nós o vemos, então, remeter-se ao mecanismo e à descrição das
estruturas: “como funciona?” Todavia, esta descrição permite se
dar conta das funções? Não, responde Claparède, que insiste em
perguntar “para que serve?”, negando-se a ver nesta obstinada
pergunta a entrada na metafísica.
16
Citado por Trombetta, C. Inediti psicologici, v.1, p. 34.
17
Claparède, E. Les nouvelles conceptions éducatives et leur vérification par l’expérience.
Scientia, v. 35, pp. 3-5, 1919.
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22
ANTONIO GRAMSCI
Nem mecanismo – pois seria renunciar a surprender-se com
um fenômeno como o desdobramento da infância e a interpretar
sua utilidade –, nem vitalismo – pois seria romancear a interpretação,
“a vida é uma sucessão de ações diversas coordenadas que têm a
função de adaptar um organismo ao seu meio”: a fórmula é de
Herbert Spencer, citada por Bovet à propósito de William James
18
.
No entanto, como assinala Piaget, com sua contumaz sagaci-
dade, os lugares comuns sobre os quais Claparède institui a psico-
logia e a educação funcionais são, sem dúvida alguma, os de seu
tempo. A antropologia evolucionista de Spencer fornece a noção
central de utilidade adaptativa. O pragmatismo de James ou de Dewey
mostra a gênese da consciência como a história dos reajustes su-
cessivos da ação às solicitações do meio. Enfim, Claparède participa
do que se poderia chamar de “dinamogenismo”, que compartilha,
por exemplo, com Bergson: todo ser vivo e, especificamente a
criança, dispõe de uma capacidade motriz singular: “A psicologia do
século XX, comenta Piaget
19
, foi de sopetão e em todos as frentes
uma afirmação e uma análise da atividade (…). Por toda parte se
impõe a ideia de que a vida do espírito é uma realidade dinâmica,
a inteligência uma atividade real e construtiva, a vontade e a perso-
nalidade criações contínuas e irredutíveis”.
O interesse, noção pedagógica central
É, portanto, relativamente fácil compreender porque a noção
de interesse, reformulada na perspetiva desta antropologia funcionalista,
ocupa um lugar central na concepção psicopedagógica de Claparède.
Ele não é um ingênuo: compreendeu rapidamente o erro que havia
cometido ao apoiar, nas primeiras edições de Psychologie de l’enfant et
pédagogie expérimentale (1905), a educação “atraente”. A partir de 1911,
18
Bovet, P. William James psychologue, l’intérêt de son oeuvre pour les éducateurs.
Neuchâtel: Rossier et Grisel, 1910. p. 3.
19
Claparède, E. Psychologie et pédagogie. Paris: Gonthier, 1969. p. 213.
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23
COLEÇÃO EDUCADORES
corrige sua colocação: sucessivamente falará de educação
“funcional”
20
. Certamente, sua indignação perante o quadro dos alu-
nos vítimas de “tédio” e “desolação” em “um regime que vai contra
a natureza, que esmaga a vida”, mantém-se intacta. Mas, o interesse
não se limita ao “interessante”. Claparède o entenderia melhor através
da expressão coloquial “Interesse-se... senão...” quase em tom de
ameaça, ou pelo menos, em tom de alerta: se o organismo não reage
desta maneira, seu interesse será prejudicado.
Pois bem- encontra-se aqui o lugar comum que vincula
Claparède a Jean-Jacques Rousseau – a natureza conhece seu inte-
resse, “ela faz bem o que faz e é melhor bióloga que todos os
pedagogos do mundo”
21
. A natureza – consequentemente, a cri-
ança em seu estado natural – conhecem suas necessidades. Essas
são em primeiro lugar: agir, construir, desenvolver-se atuando e
construindo. O interesse da criança é, antes de tudo, brincar.
Claparède será o primeiro a dar pleno alcance à célebre teoria do
suíço Karl Groos sobre a brincadeira da criança. “Para que serve a
brincadeira?”, pergunta o prosaico homem de ciência que Claparède
pretende ser. A criança brinca porque encontra na brincadeira seu
interesse e, a partir de então, isso o interessa.
Em suma, o funcionalismo claparediano aplicado à educação
é uma espécie de “ciência econômica” em que se pode ver uma
antecipação do enfoque sistêmico contemporâneo. No ecossistema
de seu meio, o indivíduo, portador do dinamismo de seu próprio
crescimento, experimenta necessidades que o fazem voltar-se para o
ambiente externo e se convertem em interesse, transformado este,
por sua vez, em interesses evolutivos que os intercâmbios com o
meio tornam cada vez mais complexos.
As consequências dessa “ciência econômica” para a implemen-
tação da educação são, pelo menos em teoria, fáceis de deduzir. A
20
Claparède, E. La conception fonctionnelle de l’éducation. Bulletin de la société libre pour
l’étude psychologique de l’enfant. Paris, v. 11, p. 45 e seg. 1911.
21
Claparède, E. Psychologie de l’enfant et pédagogie expérimentale, op. cit., p. 487.
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24
ANTONIO GRAMSCI
educação é adaptação progressiva da qual o crescimento da criança
é seu motor. A infância, em si, é útil. Não se pode, portanto, queimar
suas etapas. Se o interesse é o motor da educação, esta não é, por
princípio, questão de castigo nem de recompensa, mas de adequação
entre o que se tem que fazer e o sujeito que o faz: a disciplina está
implícita. A escola deve ser ativa, laboratório e não auditório. O
trabalho não pode, em hipótese alguma, ser insuportável. A escola
constitui um meio social válido por si só e preparatório para as
realidades da vida adulta. Nela, o pedagogo é, acima de tudo, um
“estimulador do interesse”
22
.
Não é difícil encontrar nesta lista os princípios da escola ativa,
tal como Adolphe Ferriére ou Pierre Bovet os formularam ao
mesmo tempo que Claparède e tal como os encontraremos tam-
bém em Piaget. No entanto, o caráter peculiar da contribuição
de Claparède é o rigor, – que beira a rigidez –, de sua elaboração
dedutiva. Com Claparède assistimos, sem dúvida alguma, à cons-
trução teórica de uma antropologia biológica aplicada à edu-
cação, embora, nas aplicações práticas que extrai dela reconhe-
çamos perfeitamente a maioria dos “slogans” que pairam no am-
biente da época da Educação Nova.
O rígido e o brando
A contribuição de Claparède à ciência da educação seduz por
sua lógica. Porém, não seria apenas um simples tempero cientificista
da ideologia dominante em sua época e que sobrevive até a nossa?
Alberto Munari
23
se questionou sobre a concepção esta mais pró-
xima dos pressupostos nascidos no século XVIII do que dos pres-
supostos surgidos ao término do século XX.
22
Dottrens, R. Edouard Claparède. Bulletin Société Binet-Simon, v. 73, p. 259, 1973.
23
Munari, A. Edouard Claparède: quelles sciences de l’éducation? Studi di psicologia
dell’educazione. Rome, v. 3, p. 92-97, 1984.
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25
COLEÇÃO EDUCADORES
Naturalmente que, se voltamos às impertinentes questões expostas
no pasquim de C. Lerena, parece-me patente que, mesmo quando
Claparède ecoa as tendências psicopedagógicas modernistas em voga
entre as classes médias ocidentais durante a primeira metade do século,
temos que classificá-lo entre os “rígidos” em vez de entre os “bran-
dos”, caso se queira perpetuar esse dualismo metafórico.
Claparède é tudo menos um educador senil em êxtase perante a
criança-rei. É sua antropologia que o induz a reconhecer na infância
um período fundador e que o faz declarar que o rendimento não é
proveniente dela. Não confunde o interesse com a satisfação dos
caprichos. E para ele, fazer psicologia, está longe de limitar-se a uma
escuta benévola e sentimental; constitui um trabalho de investigação
científica que contraria os hábitos e inclinações rotineiras.
Três questões fundamentais
Face à psicopedagogia claparediana, tomaria, de minha parte,
três distâncias fundamentais que não me impedem de admirar o
exemplo desse homem e de sua obra.
Em primeiro lugar, o trabalho claparediano está longe de ter
dado todos os frutos com os quais contava. Claparède não conse-
guiu, particularmente, conciliar a teoria e a prática educativa. A
partir de 1905, se pronuncia contra os práticos na acusação mais
esmagadora que conheço. No espírito do mais puro taylorismo,
Claparède contribuiu para reforçar o poder dos especialistas,
desqualificando seu terreno em beneficio do laboratório, em que
o psicólogo, constituído em especialista, dispõe da justa aprecia-
ção do que se fabrica nos centros educativos.
O erro foi, no mínimo, estratégico. Esse erro colocará contra
ele, por um longo período, a massa de educadores escolares e
suscitará, sobretudo, a animosidade de seus formadores oficiais,
mesmo quando nos anos vinte se havia esboçado uma grande
corrente favorável à “escola ativa”. Esta aliança efêmera se
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26
ANTONIO GRAMSCI
desdobrará em debates bastante lamentáveis nos quais Claparède
nem sempre fez o melhor papel
24
.
Mas o erro foi, também, teórico. A evolução posterior da inves-
tigação em educação, por um lado, colocou em evidência o que
havia de ilusório no propósito de elucidar a ação educativa através
do exclusivo enfoque psicológico: levar em conta as “variáveis”
que estabelecem uma situação como educativa equivale a mobili-
zar os recursos interdisciplinares da sociologia, da psicossociologia
de grupos, da etnometodologia etc. Por outro lado, o modelo
tayloriano da supremacia do especialista exterior parece, por si
mesmo, ter batido em retirada, na organização racional do trabalho,
cedendo a movimentos do tipo “círculo de qualidade”, cujo
paradigma é precisamente a inversão do lema taylorista: os prá-
ticos são os mais capacitados, a partir do momento em que sejam
estimulados e reconhecidos como pesquisadores, para elaborar a
teoria de sua prática e melhorar seu rendimento. Paradoxalmente,
isso é redescobrir a escala da produtividade humana, os princípios
da escola ativa. Demasiadamente imbuído da superioridade do
especialista, Claparède não percebeu a contradição.
Em segundo lugar, não há alternativa senão reconhecer que a
psicopedagogia claparediana ficou no meio do caminho. Não se
deixou de destacar, já em sua época, o caráter demasiado geral,
teórico e abstrato das recomendações pedagógicas que se
depreendem de sua antropologia funcionalista. Por um lado, persistiu
o contrassenso que assimila o interesse tal qual o define Claparède,
como motor biológico, às facilidades manipuladoras e demagógi-
cas do aprendizado pelo entretenimento. E não é fácil identificar os
autores deste insistente contrassenso: seus implacáveis detratores fazem
coro com seus enfadonhos admiradores. A probidade, tão exaltada
24
Millet, L. L’instituteur vaudois en mal d’université, le débat sur la formation des maîtres
primaires vaudois entre 1920 et 1930. Genève: Fpse, 1983. Hameline, D. Edouard
Claparède, la force et la fragilité: préface à S. Bucci. In: Bucci, S. L’Éducation fonctionnelle.
Neuchâtel: Delachaux; Paris: Niestlé, 1931. p. ix-xx.
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27
COLEÇÃO EDUCADORES
pelo honrado Claparède, não compareceu ao encontro, fazendo,
isto sim, a confusão. E o que existe nele de assombroso? A
“permissividade”, como herança cultural do Ocidente nas relações
educativas, prevalecia claramente, na evolução dos modos de fazer,
pensar e dizer, sobre a funcionalidade, tentativa de interpretação ci-
entífica excessivamente limitada ao universo dos cientistas.
Por outro lado, as propostas concretas para melhorar a ativi-
dade pedagógica cotidiana das aulas não se compara, em Claparède,
com a veemência de sua indignação denunciadora. Para ele faltava,
efetivamente, a experiência do manejo de uma classe nas condições
comuns e pouco gloriosas da prática cotidiana. Seus antagonistas
não deixavam de lembrar-lhe disso, mesmo quando não o critica-
vam com má-fé. É o caso de Gabriel Compayré, eminente chefe
da Instrução Pública francesa que apoiou Claparède na fundação
do Institut Rousseau e, no entanto, escreveu: “O que nos perturba
são as dificuldades de aplicação. Quando se apresenta ao Sr.
Claparède a questão de saber como se pode tornar interessantes
determinados estudos difíceis, ele escapa, abstém-se de responder
e declara que isso diz respeito a arte do educador; quando seria tão
útil ter, justamente aí, informações sobre os meios a empregar
para despertar interesse pelos assuntos que, particularmente não
são interessantes”
25
.
É significativo que, entre os inéditos publicados por Carlo
Trombetta, figure um projeto de obra entitulado Éducation et intérêt,
datado de 1915, projeto este que consiste exatamente em respon-
der ao desafio lançado por Compayré. Mas o único capítulo escri-
to é uma vigorosa análise do desgosto e, neste caso, da náusea psico-
lógica provocada pelos programas escolares. Os capítulos seguin-
tes, que deveriam dar alguns exemplos bem sucedidos de substi-
tuição do desgosto pelo interesse, nunca foram escritos. Mas,
25
Citado por Trombetta, C. Inediti psicologici, op. cit., v. 1, pp. 106-107
CLAPARÈDE EDITADO.pmd 21/10/2010, 09:0927
28
ANTONIO GRAMSCI
poderiam apenas dizer, se é verdade, como expressa de modo
profundo Michel Soétard
26
, que a última mensagem de um
Pestalozzi é que “o sentido mesmo da educação e de sua realização
pedagógica, se baseia na necessidade de manter constante o vínculo,
mesmo que aberto o fosso entre a prática e a teoria?”
Minha última observação refere-se à coabitação do moralista
e do psicólogo na obra e no destino de Claparède. Esta nos deixou
o que podemos chamar de uma “psicomoral”. Ao fazer de sua
psicologia da criança um funcionalismo biológico, Claparède am-
plia a base sobre a qual se fundamenta a ação educativa. Pois essa
psicologia, em certo sentido, não é mais uma psicologia. Se se
dilata, é para transformar-se em uma antropologia naturalista. Seu
conceito chave é uma adaptação da que é preciso pregar por ser
infalível por direito (já que a natureza não pode enganar-se no que diz
respeito a seu interesse) e que se encontra, de fato, em um estado de
falência endêmica, uma vez que a civilização e, particularmente a escola,
a comprometem no seio da história.
Fustigador veemente dos costumes da cidade, falta a Claparède
uma verdadeira teoria da civilização. Testemunha desolada da as-
censão dos totalitarismos e do retorno da violência, falta-lhe uma
teoria da barbárie, dessa “barbárie essencial”, cuja função no centro
da cultura já definia Pestalozzi:A própria barbárie em que o
homem vive não é mais que uma consequência da aspiração da
natureza à cultura”
27
.
Recorrendo a Rousseau apenas para a construção de uma psi-
cologia, Claparède conduz sua empresa de saneamento das relações
26
Soëtard, M. Le problème de l’unité des sciences de l’éducation: approche historique et
philosophique. Éducation comparée. Paris, v. 31-32, p. 130,1983; Soëtard, M. Le problème
de l’unité des sciences de l’éducation: approche historique et Philosophique. Pedagogica
historica, Gent-Gand, v. 21, n. 2, p. 437, 1981; Soëtard, M. Le problème de l’unité des
sciences de l’éducation: approche historique et Philosophique. Paideia. Varsovie, v. 10, p.
117, 1983.
27
Soëtard, M. Éducation, (multi-)culturalisme et sauvagerie essentielle. In: Coloque
C.E.S.E., Würzburg, 1983. Actes... Bölhau Verlag: Köln-Wien, 1985. pp. 93-106.
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29
COLEÇÃO EDUCADORES
humanas em nome de uma natureza boa e razoável. Não imagina
que o humano pode definir-se como tal pelo artifício e a
desnaturalização “original”. Vamos aproximá-lo, por um instante,
como faz Mireille Cifali
28
, de Freud, seu contemporâneo. Claparède
propôs, de fato, tornar equivalente o que um chamava de “libido” e
o outro de “interesse”. Freud não aceitou a troca. Nada tinha de
estranho. Não podia subscrever a economia claparediana, obcecado
como estava pelo artifício fundador do processo de civilização dos
homens, assunção prioritária da violência e da morte e, de modo
algum, restauração de uma natureza boa no harmonioso funciona-
mento de sua autoevolução. A “necessidade” claparediana, vida ple-
na em busca de um desenvolvimento funcional da vida, não podia
confundir-se com o “desejo” freudiano, vida vazia em simples tré-
gua de morte. Pode uma antropologia ser outra coisa senão roman-
ce e drama ? É possível não compartilhar das convicções freudianas
e encontrar em outros a chave das relações entre a civilização e a
violência. Isso não é obstáculo para que ele considerasse como única
via de interpretação em que a vida pode conceber-se, aquela que a
comprende na morte.
Assim, preso no círculo tão facilmente sistêmico da adaptação,
poderia Claparède oferecer à educação uma teoria válida da vonta-
de? Samuel Roller, um dos discípulos mais fervorosos do pedagogo
genebrino, destacou admiravelmente os limites da contribução
claparediana sobre este tema educativo essencial. A boa vontade sai
da ordem do funcional. O momento da vontade, escreve Roller
29
,
não pode ser outra coisa senão um “momento heroico”. A alegria
que dele se depreende não pode reduzir-se à satisfação reguladora de
uma necessidade. A alegria, diante da morte é a alegria. E nada mais.
28
Claparède, E. Entre Genève et Paris: Vienne; éléments pour une histoire de la
psychanalyse. Le Bloc-notes de la Psychanalyse. Genève, v. 2, pp. 91-130, 1982.
29
Edouard Claparède et l’éducation de la volonté. In: Centenaire d’Edouard Claparède, op.
cit., pp. 38-45.
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30
ANTONIO GRAMSCI
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31
COLEÇÃO EDUCADORES
CLAPARÈDE: FUNCIONALISTA DA ESCOLA NOVA
Izabel Petraglia e
Elaine T. Dal Mas Dias
Neste trabalho, optou-se pela manutenção da linguagem própria
dos textos selecionados na antologia de Claparède, considerando
a perspectiva de possibilitar ao leitor o contato direto com as ideias
do autor, sem cortes, deturpações e ou interpretações. Vale também
destacar que a decisão das autoras levou em conta o difícil acesso
à obra original que, em grande parte, encontra-se atualmente esgo-
tada ou não foi traduzida para a língua portuguesa; portanto, dis-
tante do amplo circuito editorial nacional.
É inconteste, que Édouard Claparède (1873-1940) exerceu
influência relevante no cenário sócio-cultural de sua época e que as
suas ideias tiveram impactos nos desígnios da história da educação
mundial, como também no pensamento pedagógico brasileiro,
ainda que nos dias de hoje, seja lembrado como um cientista polê-
mico e um educador controvertido.
Desenvolveu estudos no campo da psicologia experimental
que tiveram repercussões em importantes teóricos como Sigmund
Freud (1856-1939) e Jean Piaget (1896-1980) que até hoje são re-
ferências fundamentais na psicologia e na educação. No entanto,
Claparède ficou relegado quase que ao descaso nas ciências huma-
nas e, nos dias atuais, a sua obra é pouco estudada nos cursos de
graduação. Poucos educadores e psicólogos conhecem as contri-
buições de seu trabalho ou reconhecem o seu legado.
Médico, psicólogo, educador e cientista suíço, Claparède foi
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ANTONIO GRAMSCI
detentor de vasta e expressiva obra, em torno de diferentes temas
e preocupações do universo psicológico infantil, a partir de um
enfoque interacionista. Expoente da psicologia funcionalista, que
compreende o humano, primordialmente, como uma realidade
viva e que funciona, foi marcado pela biologia e pelo evolucionismo
de Charles Darwin (1809-1882), que apregoava a necessidade de
preservação da vida em interação e adaptação contínua com o
ambiente, embasado pelos princípios de eficiência e utilidade.
Claparède compreendia a educação funcional como um pro-
cesso endógeno capaz de permitir à pessoa instruir-se e exercitar-se,
para se tornar um ser autônomo. Para ele, o pensamento era mera
atividade biológica a serviço do organismo que, é ativado quando o
comportamento reflexo é insuficiente à determinada situação.
Destacou-se também como importante ícone da pedagogia
moderna e um severo crítico da escola tradicional. Entendia que, a
função precípua da educação era estar de acordo e, em harmonia
com o funcionalismo da espécie.
A Educação Nova teve em Claparède um de seus principais
defensores. Colocava o aluno no centro do processo educativo e via
a criança como responsável por sua aprendizagem. Foi contempo-
râneo do educador norte-americano John Dewey (1859-1952), com
quem também compartilhava da ideia de uma escola ativa, em que a
aprendizagem ocorre por meio da resolução de problemas. Já nas
primeiras décadas do século XX, considerava o professor como
um estimulador de interesses e pensava que os métodos educativos
e os programas deveriam estar a serviço e em torno do educando e
não o contrário. Priorizava a educação, a despeito da instrução e não
atribuía ao saber, algum valor funcional. Claparède acreditava na
importância de se despertar o interesse pelo conhecimento na pes-
soa desde cedo e entendia também que a escola deveria ensinar a
sociedade a valorizar do mesmo modo as profissões liberais e as
manuais, minimizando assim divergências econômicas e sociais.
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33
COLEÇÃO EDUCADORES
Entendia também, como viria a concordar mais tarde o seu
conterrâneo suíço, o geneticista, Jean Piaget, que o interesse é o
tônus da ação educativa. Os jogos e as brincadeiras, para Claparède
colocavam-se como possibilidades reais e estratégicas para des-
pertarem o interesse pueril. E, ao professor caberia, então, o papel
de estimulador de interesses ao aluno, com vistas à aquisição de
conhecimentos. Assim, valorizava a atitude lúdica em detrimento
da memorização e, no adulto, esta atividade seria substituída, natu-
ralmente, pelo trabalho.
Queria uma escola mais parecida com um laboratório do que
com um auditório; uma escola ativa. Afirmava que era devida à
escola, a tarefa de respeitar as fases de desenvolvimento da crian-
ça, preservando o tempo físico e biológico destinado à infância.
Considerava a importância da melhoria da formação de profes-
sores e a necessidade de despertar-lhes o gosto pela investigação
científica. Dessa forma o professor seria capaz de fazer a criança
amar a escola e o trabalho que ali se realiza.
Tais ideias influenciaram positivamente no salto que daria a pe-
dagogia e a psicologia infantil, especialmente no que tange ao processo
de crença no sujeito, como autor de sua história. Não obstante isso,
Claparède é considerado até hoje, como um autor elitista, de moral
exigente e incapaz de colocar sua teoria em consonância com a prá-
tica educacional. É acusado de entrar para o ostracismo da história
da Educação, exata e paradoxalmente, porque suas ideias acolheram
um paradigma reducionista e as perspectivas de seu tempo, lugar e
cultura, inclusive os pensamentos mais controvertidos, ficando em
demasia à margem ou até, muitas vezes, distante das mudanças que
a comunidade prescindia e que dele se esperava.
Claparède além de debruçar-se, fundamentalmente, sobre o
que iria constituir-se num movimento de Escola Nova, também
se manifestou a favor de uma neutralidade científica e elaborou
uma ética da conduta social que tratava de cidadania. Ele ousou
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34
ANTONIO GRAMSCI
ditar modos de comportamento, que eram aqueles esperados ao
homem em sociedade.
As bases antropológicas de seu pensamento que têm no fun-
cionalismo, a sua principal expressão, eram elitistas e contraditó-
rias ao pautar-se na crença que existia um paradoxo entre a me-
dida de inteligência e o sucesso do educando. Criticava a escola
tradicional, entendendo-a voltada para estudantes medianos, en-
quanto as inteligências mais brilhantes eram deixadas de lado.
Achava que a escola deveria classificar e dar um tratamento dife-
renciado aos alunos melhores e aos mais aptos. Tratava-se, em
seu ponto de vista, de valorizar e aproveitar melhor as
potencialidades intelectuais de cada um. Propunha uma pedago-
gia pouco inclusiva embasada na separação classificatória, suge-
rindo o agrupamento em classes, de maneira homogênea e para-
lela: de um lado os mais inteligentes e, de outro os alunos com
mais dificuldade de aprendizagem.
Desenvolveu a ideia de uma escola sob medida, por entender
que o educador precisava estudar a infância em geral e cada crian-
ça em particular e atribuía ao desenvolvimento de todo o indiví-
duo as influências hereditárias, como também as do meio. Respal-
dado por uma visão bio-psicológica pouco dialógica e recursiva,
apontava para uma relação determinista entre crescimento e de-
senvolvimento mental, valorizando prioritária e hierarquicamente
os ensinamentos da natureza e do ambiente, colocava-os em subs-
tituição ao trabalho do educador.
Pensador contestável, Claparède foi também, em seu tempo,
um educador polêmico. Tinha ideia de uma escola, cuja função
social era utilitarista, à medida que, deveria formar bons profissionais
para servirem bem à sociedade, ou seja, era preciso habilitar o
sujeito tornando-o eficiente para disponibilizá-lo ao mercado de
trabalho. Entendia que cabia ao sujeito fazer jus aos investimentos
a ele destinados pelos governos e sociedades, por isso, a concep-
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35
COLEÇÃO EDUCADORES
ção da criança aproveitar bem a infância e ser feliz, se colocava em
detrimento da preocupação com o maior rendimento.
Era também contraditório. Ao mesmo tempo em que valori-
zava o trabalho docente também o desqualificava. Acirrava a
dicotomia teoria-prática, atribuindo ao psicólogo um papel de te-
órico e o destacando em detrimento do pedagogo, a quem deno-
minava, pejorativamente, prático. Colocava a teoria em lugar futu-
rista e de destaque, enquanto que o conhecimento empírico era
considerado de menor importância. Desvalorizava a pedagogia,
imputava-lhe a ausência de método e de base científica e acreditava
que os professores não conseguiam bons resultados com os alunos,
porque não tinham conhecimentos de psicologia e, por isso sua
prática poderia se confundir com a de um charlatão.
Tão inquestionável o espírito provocador de Édouard
Claparède, quanto a sua capacidade investigativa. Favoreceu o de-
bate, entre diferentes pensadores das ciências humanas, a partir de
sua obra tão vasta e densa. Apresentou ideias inovadoras, mas
muitas também passíveis de questionamentos e críticas. Entende-
mos que correntes e tendências surgem no universo educacional
para serem conhecidas, estudadas e contestadas.
É do pluralismo e das divergências que o próprio pensamen-
to se nutre. Influenciado pelas conjunturas e elaborado a partir de
concepções unas e múltiplas e, do debate saudável e ético que
podem despontar novos olhares e perspectivas capazes de darem
à luz a um novo pensamento pedagógico brasileiro. E, quiçá, nele
se fundam os pilares necessários para o estabelecimento de uma
política de civilização, mais justa e promotora de felicidade.
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ANTONIO GRAMSCI
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37
COLEÇÃO EDUCADORES
TEXTOS SELECIONADOS
Psicologia, biologia, educação
30
Mais de metade deste livro são artigos já publicados, cujas
tiragens à parte se esgotaram, ou que nunca apareceram separada-
mente. Pierre Bovet amavelmente me propôs reimprimi-los em
sua Collection d’actualités pédagogiques porque – ai de mim! – parece
que ainda são “atuais”, visto como o pensamento que os inspira
está longe de ter ganho de causa.
Esse pensamento é o da educação funcional. Ora, que é educação
funcional?
Foi ali por 1911, creio que utilizei essa expressão para designar
a educação que se propõe desenvolver os processos mentais con-
siderando-os não em si mesmos, e sim quanto à sua significação
biológica, ao seu papel, à sua utilidade para a ação presente ou
futura, para a vida. A educação funcional é a que toma a necessidade
da criança, o seu interesse em atingir um fim, como alavanca da
atividade que se deseja despertar nela
31
.
Não era nova, aliás, essa concepção. Acha-se presente, princi-
palmente, em toda a obra pedagógica de J. Dewey
32
. Eu mesmo a
30
Texto extraído do livro: Claparède, E. A educação funcional. Tradução. J. B. Damasco
Penna. 5. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958. (Biblioteca Pedagógica
Brasileira). Manteve-se a grafia do original.
31
Cf. minha palestra na Section Lyonnaise de la Société Psychologique de l’enfant, maio
de 1911: Claparède, E. La conception fonctionelle de l’éducation. Bull, de la Soc. libre pour
l étude psychol. de l’enfant, n. 75, p. 45, nov. 1911.
32
(2) Dewey, J. L’école et l’enfat. trad. Pidouz. Genêve et Neuchâtel.
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38
ANTONIO GRAMSCI
havia desenvolvido em época anterior a 1911, sob a denominação
de “educação atraente”, ligando-a a uma “concepção psicológica
do interesse”
33
. Ela tem, porém, origem muito mais antiga ainda:
folheai as obras dos grandes educadores e vereis que a maioria
está animada do desejo de entrar de novo em contato com a natu-
reza, desejo que inspira, precisamente, a educação funcional. São,
no século XVI, Rabelais e Montaigne, que protestam contra a ca-
misa de força escolástica, contra a coerção que deforma a criança
que se desejaria “formar” (não façamos almas estropiadas, dizia
Montaigne); no século XVII o tcheco Comênio, que defende o
método ativo, pedindo que sigamos a natureza da criança e o alemão
Ratich suplicando que lhe não façamos violência; ainda no século
XVII Fénelon, apóstolo da educação atraente e Roilin, que deseja,
também, “tornar o estudo agradável”
34
.
33
Claparède, E. Psychologie de l’enfant. 2. ed., Genêve : [s.n.], 1909. p. 117.
34
O estudo da obra e da influência desses autores clássicos (Rabelais, Montaigne etc.), de
grande interesse para a compreensão da gênese de muitas das ideias atuais, pode ser
feito, de maneira elementar, por meio dos compêndios e manuais de história da educação
e da pedagogia. Para aprofundar, é mister recorrer às obras originais, na íntegra ou em
extratos criteriosamente selecionados, como, para dar apenas dois exemplos, a excelente
edição do Émile, de Rousseau, publicada, na coleção Classiques Garníer’ (Garnier, Paris),
pelos professores François e Pierre Richard (edição que não se deve confundir com as
anteriores da mesma obra, na mesma coleção e que lhe são inferiores) e as Pages
pédagogiques de Rabelais, anotadas por Mlle. Périer, Hatier, col. “Les classiques pour
tous”, Paris, s/d. Lembraríamos, para orientação geral, os seguintes trabalhos: Collard, F.
Histoire de la pédagogie. Bruxelles: Boeek, 1920; Compayré, G. Histoire de la pédagogie.
21. ed. Paris: Delaplaqe, 1911; Cubberley, E. P. The history o education. Boston: Houghton
Mifflin, 1920; EBY, F.; Arrowood, C. F. The development of modern education. New York:
Prentice-Hall, 1941; Guex, E. Histoire de l’instruction et de l’éducation.2. ed. Paris: Alean;-
Lausanne: Payot,1913; Hubert, R. História da pedagogia, v. 66. Trad. port. de Luiz Damas-
co Penem e J. B. Damasco Penem; Messenger, J. F. An interpretative history of education.
New York: Crowell, 1931; Messer, A. Historia de la pedagogía. 2. ed, Trad. esp. de M. S.
Sarto, Labor. Barcelona, 1930; Monroe, P. A text-book in the history of education. New York:
Mac MilIan, 1905; Parker, S. C. Hístory of modern elementary education. Boston: Ginn,
1912; PEIXOTO, A. Noções de história da educação, v. 5 São Paulo: [s.n.], 1933; Wickert,
R. Historia de la pedagogía. trad. esp. dc L. Luzuriaga, Revista de pedagogia. Madrid:
[s.n.], 1930. Veja-se também a contribuição dos dicionários e enciclopédias de pedagogia,
por exemplo, o Dicionário de pedagogía publicado, sob a direção de Luís Sanches Sarto e
com a colaboração de numerosos especialistas, pela casa Editora Labor, Barcelona, 1936.
(Nota do tradutor).
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39
COLEÇÃO EDUCADORES
Como a história da pedagogia, cúmulo do tédio e da desolação
enquanto não passa de um conjunto de lições que os infelizes
alunos das escolas normais devem decorar para o exame, pode
tornar-se, ao contrário, epopeia palpitante, quando a consideramos
como o quadro das sucessivas revoltas desencadeadas, em obser-
vadores avisados, por um regime de educação contra a natureza,
esmagador da vida, contrário à própria finalidade da educação,
que é expandir a vida!
Se procuramos traduzir em linguagem mais psicológica o que
disseram esses antigos autores, chegaremos quase exatamente à
nossa concepção funcional. Parece que o gênio deles consistiu, sim-
plesmente, em ter visão clara das coisas, não perturbada por esse
véu da rotina e da tradição que nos oculta a realidade.
Diremos educação funcional e, não, educação atraente. Pois, se
toda educação funcional tem atrativo, por isso que está fundada
num desejo, nem tudo que é atraente tem, necessàriamente, valor
educativo. Verificamos, com efeito, que muitas coisas que atraem
nossa atenção, e chegam mesmo a prendê-la por alguns instantes,
não suscitam, em nós, desejo de saber algo mais a seu respeito.
Somos constituídos de maneira a ser momentâneamente atraídos
por tudo que é novo ou insólito
35
. Há, entretanto, uma seleção
entre o que, nessas coisas novas, corresponde a um interesse pro-
fundo, isto é, a uma necessidade de ação de nosso ser, e o que, ao
contrário, não se liga a nenhum de nossos sistemas de pensamento
ou de ação. Longe de serem assimilados, os estimulantes desta
segunda categoria apenas deslisam na superfície de nosso espírito,
sem fecundá-lo nem enriquecê-lo.
Em sugestivo artigo, Roger Cousinet
36
denunciara há tempo o
perigo das “lições de coisas”, que parecem interessar a criança e
35
Comp. Ribot, Psychologia da atenção, (J. O.).
36
Cousinet, R. Les idées e lei choses dans l’enseignement. Educ. moderne, p. 328, 1909.
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40
ANTONIO GRAMSCI
inculcar-lhe noções precisas quando não fazem mais do que dis-
traí-la por um instante, diverti-la superficialmente
37
.
Encontramos, no domínio da propaganda, um equivalente da
diferença entre a atração superficial e o despertar de um interesse
profundo, capaz de dirigir a conduta e ativar a vontade.
Há uns trinta anos já que os psicólogos se vêm interessando
pelo problema do reclamo, pelas qualidades psicológicas de um
bom “anúncio”. E, sem dúvida, a primeira dessas qualidades é a
de ser atraente, isto é, de chamar e prender a atenção. Sem ela, as
outras seriam supérfluas. Porém, não basta prender a atenção. É
mister, sobretudo, que o anúncio seja de natureza a despertar um
desejo, um interesse, a fazer do transeunte indiferente um cliente
possível ou, melhor, um cliente provável. Ora, só chegará a isso,
apelando para as tendências instintivas adormecidas na alma de
cada um, despertando-as, criando um desejo, uma necessidade. O
apelo à inteligência vem depois, em segundo lugar. Os raciocínios,
as demonstrações da utilidade do produto anunciado só figuram
para sustentar o desejo, se o desejo vier a enfraquecer-se, e para
dar as indicações próprias à sua pronta realização.
Essa concepção, cuja justeza a prática mostrou, é uma concepção
funcional do reclamo. Os pedagogistas nada de melhor podem
fazer do que buscar inspiração nela. Também eles devem, antes de
mais nada, apelar para as tendências inatas da criança, a fim de
nelas enxertar tudo quanto lhe querem ensinar. Também eles devem,
para contar com uma clientela de trabalhadores que empreguem
no trabalho todo o zelo e energia de que são capazes, criar neces-
sidades, despertar desejos.
37
Roger Cousinet, reformador da orientação didática do ensino público francês, a propósito
desse pedagogista: Amor, C. S. El método Cousinet. Revista de Pedagogía, La nueva
educación, Madrid, v. 12, 1929; Filho, L. Introdução aos estudos da Escola Nova. 4. ed. São
Paulo: Melhoramentos, [s.d.]. (Bibliotheca de Educação; 11). pp. 105-107; Dicionário de
pedagogia, Labor, 1936, cols. 739-41, especialmente. (Nota do tradutor).
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41
COLEÇÃO EDUCADORES
Desejaria aqui, como introdução à série de artigos que for-
mam este livro, esboçar, a grandes traços, os fundamentos da psi-
cologia sobre os quais deve assentar o edifício da educação. É
uma psicologia biológica; e oponho aqui essa psicologia, não só, é
claro, à chamada psicologia “racional”, toda impregnada de filo-
sofia, como à psicologia exclusivamente introspectiva, unicamente
descritiva, para a qual o espírito parece ter existência independente
e viver, de certo modo, para e por si mesmo, como também à
psicologia fisiológica e mesmo à psicologia experimental, no sen-
tido estreito de que muita vez se têm revestido essas palavras e as
coisas que designam.
A educação fundada na psicologia - J. Locke
A ideia de basear a educação na psicologia não é nova. Vemo-la
pela primeira vez, sistemàticamente aplicada, em Herbart. Rousseau,
no entanto, já havia claramente visto que a arte de educar pressupõe
“o conhecimento da criança”. Antes desses pensadores, J. Locke
tinha elaborado um sistema psicológico, que não deixou de influir
diretamente em seus pensamentos sobre a educação.
Locke foi um homem notável, que teve o imenso mérito de
propagar, mais que ninguém antes dele, a ideia da necessidade da
experiência
38
. Não foram, entretanto, preocupações de natureza bio-
lógica que o orientaram para a psicologia, embora fosse médico,
houvesse estudado o tratamento da varíola e escrito um tratado sobre
a respiração. O que o interessava, quando decidiu escrever seu famoso
Ensaio sobre o entendimento humano (1690), era um problema inteiramente
38
John Locke (1632-1704), filósofo inglês, segundo o qual todas as nossas ideias (isto é,
o espírito todo inteiro) proviriam da sensação e da reflexão; o que representa uma
compreensão empirista do conhecimento, oposta, por Locke, à teoria das ideias inatas”
de Descartes. V., entre outros: Penjon-Ouy. Précis d’histoire de la philosophie, 8. ed.
Paris: Mellottéé, [s.d.]. pp. 308-314; Palhories. Vies et doctrines des grands philosophes.
v. 2, Paris: Lanore, 1936. pp. 281-316; Janet; Seailles. Histoire de la Philosophie. 15 ed.
Paris: Delagrave, 1932. (Nota do tradutor).
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42
ANTONIO GRAMSCI
filosófico, o problema do conhecimento, “marcar os limites da cer-
teza de nossos conhecimentos e os fundamentos das opiniões que
vemos reinar entre os homens”. Enganou-se, porém, no método a
seguir para resolver essa questão, que estudou como psicólogo e não
como epistemólogo
39
. Não tinha percebido claramente a natureza
do problema crítico, que Kant
40
teve o mérito de ser o primeiro em
pôr em evidência. Sua psicologia é, de certo modo, uma teoria do
conhecimento que não tomou consciência de si mesma.
Como quer que seja, postulando a tábula rasa
41
, a ausência de
toda capacidade inata na criança, Locke não mostrava ao educa-
39
Epistemólogo, estudioso da epistemologia, parte da lógica que versa o conhecimento
científico do ponto de vista do valor desse conhecimento, isto é, do ponto de vista crítico. “É
essencialmente o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados das várias
ciências, com o fim de determinar-lhes a origem lógica (não psicológica), o valor e o alcance
objetivo” (Lalande. Vocabulaire technique et critique de la philosophie, v. 1. 4. Ed. Paris:
Alcan, 1938. p. 212. (Nota do tradutor).[Publicado no Brasil pela Martins Fontes (N.E).
40
Emanuel Kant (1724-1804), filósofo alemão, a cujo grande nome está ligado o criticismo,
doutrina segundo a qual o eixo de toda indagação filosófica está no problema do valor do
conhecimento. Aspirou também a constituir uma moral independente da metafísica e
baseada no imperativo categórico. Principais obras: Crítica da razão pura e Crítica da razão
prática. Mas, Kant se preocupou igualmente com pedagogia, além de outros variados
temas, campo sempre estreito para seu vasto e poderoso espírito; dele é um tratado
sobre a matéria, Traité de pédagogie, na trad. fr. de Jules Barni, com estudo crítico de R.
Thamin, Alcan, Bibli. de Philos. Contemp., Paris, 5. ed., 1931. V., a respeito desse
filósofo tão largamente estudado, entre muitos outros: Külpe, O. Kant. trad. esp. de
Domingo M. López, Labor. 2. ed. Barcelona: [s.n.], 1929; Ruysseb, T. Kant. Paris: Alcan,
1909; Cantecor, G. Kant. Paris: Mellotéc, [s.d.]; Messer, A. De Kant a Hegel. trad. esp.
de J. P. Bances. Revista de Occidente, Madrid, pp. 9-119, 1927, além dos manuais de
história da filosofia e de história da pedagogia. (Nota do tradutor).
41
Tábua rasa ou, como também se escreve, conservando a forma latina, tabula rasa,
expressão que significa inexistência de quaisquer impressões anteriores à experiência. Na
tábua de cera, plana e lisa, nada ainda se havia escrito: era uma tabula rasa. A expressão,
tradicional na história da filosofia e na da pedagogia, tem origem numa passagen de
Aristóteles, no seu livro de psicologia, De anima. Em Santo Tomás de Aquino: “A alma
humana não tem em si as espécies inteligíveis como um dado natural… mas as possui em
potência, tal como uma tábua rasa na qual nada foi escrito... (sicut tabula rasa, in qua nihil
est scriptum... – Quaestiones disputate de Anima, VIII). Em Locke: “Let us then, suppose
the mind to be, as we say, white paper, void of all characters, without any Ideas...” –
“Suponhamos que o espírito seja, como dizemos, um papel branco, sem nada escrito, sem
nenhuma ideia.“ (Essay concerning the understanding, II. I). Tábua rasa, papel branco; é
bem o sentido da expressão. Para Leibniz, racionalista opositor de Locke, a tabula rasa era
uma ficção impossível. – Cf. Laland. Vocabulaire, cit. (Nota do tradutor).
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43
COLEÇÃO EDUCADORES
dor a existência desses móveis interiores sem os quais a atividade é
impossível. O serviço que prestou foi ter insistido na necessidade
de pôr a criança em presença das coisas, por isso que é pelas coisas
e não pelas palavras que a criança adquire ideias. Mas, isso mesmo
não era nada novo. Comênio, especialmente, já o havia dito, uns
vinte anos antes. E essa prescrição tinha um reverso: o fazer crer
que bastava multiplicar as experiências de objetos, amontoar as
ocasiões de conhecimento, para desenvolver o espírito. Era dar
um apoio pretensamente científico e filosófico a esse grande erro
que viciou a pedagogia de todos os tempos e vicia ainda a peda-
gogia de nossos dias.
Não esqueçamos, entretanto, que Locke, a despeito de sua
hipótese da tábua rasa, não destituía o espírito de qualquer poder
próprio, porque, se o mundo exterior o provia de sensações, essas
sensações eram, por sua vez, objeto de “operações do espírito” e
estavam submetidas à reflexão. O espírito não era, pois, para Locke,
simples cera virgem, e, sim, órgão vivo, que reage às impressões.
Entre várias impressões, o espírito exerce suas “preferências”, e a
vontade “significa apenas um poder ou capacidade de preferir ou
de escolher” (Liv. II, cap. 21)
42
. Mas, que é que determina a vontade?
É, responde Locke, “alguma inquietação atual e, de ordinário, a
que é mais urgente”. “Essa inquietação, esse mal-estar, essa uneasiness
não é senão a necessidade, por isso que é “causada pela privação
de algum bem ausente”
43
. Vemos, pois, que, sem fazer caso dos
postulados rigorosos do Locke epistemólogo, o Locke médico,
observador da natureza humana, reintroduz em seu sistema uma
concepção biológica que a famosa doutrina da tábua rasa fez es-
quecer. E veremos adiante, a propósito da “lei do interesse
momentâneo”, que Locke já a formulara perfeitamente.
42
Comp. a teoria aperceptiva de Wundt. (J. G.).
43
A uneasiness, diz ainda Locke, é o principal, para não dizer o único aguilhão que excita
o engenho e a atividade dos homens (Liv. II, cap. 20).
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44
ANTONIO GRAMSCI
Se tomamos agora o admirável livro do pensador inglês sobre
a educação (1693)
44
, vemos que está mais fundamentado em exce-
lente observação das crianças do que no sistema filosófico-psico-
lógico do autor. Aqui, muito mais ainda do que no Ensaio sobre o
entendimento, Locke postula grande número de disposições ou po-
deres inatos, como a curiosidade, inclinações diversas, “paixões
dominantes” e um “temperamento”. As páginas consagradas à
curiosidade, à maneira de ligar a alguma tendência instintiva o que se
deseja ensinar, são notáveis (entretanto, nossos manuais correntes
de história da pedagogia deixam-nas de lado). Ora vejamos:
A curiosidade... excelente meio que a Natureza proporcionou para
dissipar a ignorância em que as crianças vêm ao mundo.
Por estranhas que sejam as perguntas que uma criança possa fazer não
devemos repelir nenhuma com desprezo, nem permitir zombarias.
Ao contrário, é mister responder a tudo quanto ela perguntar... Mas,
cuidado para lhe não perturbar o espírito com explicações ou ideias que
ultrapassem sua inteligência, ou com a apresentação de uma quantida-
de de coisas sem relação alguma com o que ela deseja saber na ocasião.
As palavras que sublinhei, nesta última frase, mostram que
Locke foi ao âmago da concepção funcional da educação. Mas,
continuemos: “Porque o conhecimento é tão agradável ao enten-
dimento como a luz aos olhos; e as crianças em particular se
comprazem extremamente em adquirir novos conhecimentos,
sobretudo se veem que se lhes ouvem as perguntas”.
Locke viu muito bem que a criança não é, de modo nenhum,
naturalmente preguiçosa. Instruir-se é o que ela quer. Mas, nós a
tornamos preguiçosa não a instruindo sobre o que a interessa e
forçando-a a ouvir o que não a interessa:
44
Some thouqhts concerning education, coleção, retocada, de cartas escritas por Locke
a seu amigo Clarke, em l684-1685. Já em 1695 o livro tinha sido traduzido para o francês,
com grande êxito. Excelente edição dessa obra notável é a publicada por Quick (na Pitt
Press Series, Cambridge University Press, 1880), com, preciosa introdução e numero-
sas notas interpretativas do maior interesse. (Nota do tradutor).
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45
COLEÇÃO EDUCADORES
E não duvido de que uma das grandes razões pelas quais a maioria
das crianças se entrega inteiramente a divertimentos inúteis e emprega
todo o seu tempo em futilidades é o fato de ver que se lhes despre-
zava a curiosidade e pouco caso se fazia de suas perguntas.
E aqui temos uma passagem capital, que se aplica à educação
em geral, embora Locke a considere apenas como “meio de cor-
rigir a criança de uma preguiça geral, que tem origem no tempera-
mento”. As “duas molas” das ações humanas, diz Locke, são o
desejo e a previsão. Que fazer, porém, se o temperamento de uma
criança não permite pôr essas molas em ação?
Trata-se de achar um meio de plantar e fazer crescer essas duas coisas
num terreno que lhes é naturalmente contrário. Desde que vos
convencestes de que vosso filho está nesse caso, deveis cuidadosa-
mente observar se ele tem prazer em alguma coisa e procurar saber de
que mais gosta. Se puderdes descobrir que ele tem alguma inclinação
particular, aumentai-a quanto vos fôr possível e utilizei-vos dela como de
um meio para pô-lo em ação e fazer nascer nele o desejo de dedicar-se a alguma
coisa.
Essas citações bastam para mostrar que, se não ficarmos pre-
sos ao rótulo sensualista que se cola na psicologia de Locke – com
razão, sem dúvida, quando considerada do ponto de vista da teo-
ria do conhecimento – e penetrarmos em suas minúcias, nela des-
cobriremos, assim como em sua pedagogia, um pensamento pro-
fundamente dinâmico e funcional.
É mister, entretanto, chegar a Rousseau para admirar o verda-
deiro desabrochar desse pensamento funcional. Não me detenho
aqui no autor do Emílio, porque um capítulo deste livro é consa-
grado à concepção da infância segundo Rousseau.
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46
ANTONIO GRAMSCI
Herbart
Depois de Rousseau, temos de esperar por Herbart
45
para
encontrar nova tentativa no sentido de basear a pedagogia na psi-
cologia. Essa tentativa é, agora, completamente consciente. A filo-
sofia moral, diz ele, indica à pedagogia o fim a atingir; mas é a
psicologia que lhe fornece os meios.
Muito bem. Mas, ai! que psicologia Herbart vai dar como fun-
damento à pedagogia?
As intenções de nosso filósofo são, aliás, excelentes: estabele-
cer a psicologia como ciência, repudiar as faculdades inatas, praticar
o método empírico, aplicar a matemática às coisas do espírito...
Que magnífico programa! Herbart, porém, não se atreve a ele.
Protestando embora fazer da psicologia uma ciência e construí-la
graças à experiência, começa por deduzi-la a priori da metafísica;
em seguida, nega que se possa praticar a experimentação no do-
mínio psicológico; finalmente, ignora o organismo e reduz a ativi-
dade mental a um jogo de representações que se entrechocam,
sem que se possa adivinhar qual o móvel profundo dessa agitação
de ideias. Herbart nos diz, é verdade, que a alma “tende a conser-
var-se”; mas, que sabe dela se declara explicitamente que a alma é
incognoscível?
Coisa curiosa: Herbart, cujo esfôrço metafísico parece ter tido
por móvel o desejo de constituir um sistema coerente e sem qual-
45
Johann Friedrich Herbart (1776-1841), filósofo alemão, dedicado à psicologia, à
metafísica, à pedagogia. Herbart foi dos primeiros em tratar com orientação experimental
a psicologia, em sua obra Da psicologia como ciência, baseada, pela primeira vez, na
experiência, na metafísica e nas matemáticas, 1924-1925. Deve-se-lhe a ideia de uma
psicologia quantitativa, desenvolvida, ao depois, pelo fisiologista Weber e pelo físico e
filósofo Fechner. Em pedagogia devem-se a Herbart as doutrinas da “instrução educativa”
e dos “passos formais”, com que dominou o pensamento pedagógico por largo tempo.
Ribot, V. La psychologie allemande contemporaine (École expérimentale). 7. ed. Paris:
Alcan, 1909. pp. 1-57; Pillsbury, W. B. The history of psychology. 2. ed., Michigan: Wahr,,
1929. p. 139-44; Klemm, O. Historia de la psicología. Trad. esp. de Santos Rubiano.
Madrid: Jorro, 1919; Fritzsch, T.; Herbart; J. F. Trad. esp. de J. R. Ermengol. Barcelona:
Labor, 1932; Dicionário de pedagogia. Labor, op. cit. (Nota do tradutor)
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COLEÇÃO EDUCADORES
quer contradição, vive a contradizer-se. Assim, declara que jamais
se poderá aplicar a análise à vida da alma e, não obstante, reduz o
espírito a um agregado de representações, que chega a considerar
dotadas de existência independente e permanente, a tal ponto que,
até quando essas representações já não são conscientes, continuam
a permanecer abaixo do limiar da consciência. Acabamos de dizer
– e é outra contradição – que, ao mesmo tempo que estabelece a
psicologia como ciência, tira-a da metafísica negando-lhe o direito
de experimentar. Outro ilogismo ainda: sua explicação da vontade.
A vontade, a Streben, é a tendência a reaparecer manifestada por
uma representação vítima de uma inibição (Hemmung), isto é,
mantida por outra representação no subsolo da consciência. Mas,
se a alma é simples – postulado fundamental de que Herbart pre-
tende tirar toda a sua psicologia – como pode formar, em seu
seio, duas representações bastante opostas e diversas para lutar
uma contra a outra? Só se pode compreender, aliás, que duas re-
presentações se oponham quando em virtude de razões afetivas,
se uma é agradável e outra, desagradável. Mas, então, cai por terra
toda a teoria que pretendia fazer da representação, da Vorstellung, o
elemento último e fundamental da psicologia! Ela já não é esse
elemento fundamental, por isso que está subordinada à afetividade!
46
.
Herbart teve, aliás, algumas ideias geniais que, se é certo que
ele próprio não soube explorar, foram como sementes fecundas
a germinar em outros espíritos. Principalmente a ideia de aplicar
a matemática à psicologia. Quando apareceram as obras psico-
46
Ver, a respeito de toda essa discussão sobre a vontade, Külpe. Die Lehre vom Willen in
der n ueren psychologie. Philos: Studien, V., 1889. Não enumero aqui outras contradições
do filósofo. Eis o que disse a propósito Alf. Weber, em sua Histoire de la philosophie
européenne, Paris, 1897, p. 582: A filosofia de Herbart, que toma como tarefa eliminar do
pensamento toda contradição está, ela própria, cheia dos mais chocantes contrastes…”.
(Segue-se a enumeração dessas contradições): “Sua Teodiceia, perfeitamente conserva-
dora, sua teologia, toda espiritualista, chocam-se com o seu paradoxo do absoluto
múltiplo que, logicamente leva ao politeísmo e com o seu mecanicismo, muito próximo
das teorias materialistas…” etc.
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48
ANTONIO GRAMSCI
lógicas de Herbart, Fechner
47
andava pelos vinte anos e estudava
medicina e física em Berlim. Pode ser que a tentativa tão nova de
Herbart tivesse feito desabrochar, pela primeira vez, em seu cé-
rebro, a ideia de medir os fenômenos psíquicos. Na verdade,
não é a Herbart, porém, que se liga a obra de Fechner, e sim às
pesquisas dos físicos e fisiologistas. Foi também Herbart quem
lançou a ideia do “limiar da consciência” e sugeriu a dos pen-
samentos recalcados, ativos embora subconscientes, noção fun-
damental da psicanálise de Freud.
Sua psicologia nem por isso deixa de ser um amontoado de
afirmações abstrusas e, na maior parte, sem qualquer base. W. James
chega mesmo ao ponto de tachar de “horrível” a “jeringonça
herbartiana”
48
. E pergunta-se, não sem certa estupefação como três
ou quatro gerações de professores viram nessa pretensa psicologia a
base ideal da “ciência pedagógica”, pois é verdadeiramente impos-
sível que o artificial mecanismo das representações descrito por
Herbart lhes tivesse podido dar uma visão satisfatória do pensa-
mento e da atividade humana, tão inadequado é ele para explicá-los,
tão flutuante parece nas nuvens, tantas as contradições internas que
encerra. Acaso terão descoberto, nisso tudo, belezas que não
soubemos perceber? Se descobriram, não parece; porque, quando
em seus livros resumem essa psicologia, a exposição não é, em nada,
mais clara que a do mestre. Eis, por exemplo, como um herbartiano
convicto, François Guex, antigo diretor da Escola Normal de
Lausanne, resume o mecanismo mental concebido por Herbart:
47
G. Fechner (1801-1887), criador da psicofísica, que pretendia, realizando o ideal de rigor
científico de Herbart, introduzir o cálculo e a medida em psicologia. A grande obra de
Fechner são seus Elementos de psicofísica (1860). Também trabalhou o pensador no
campo da estética, procurando filiá-la à. Psicofísica: é um dos criadores da chamada
estética experimental”. Ribot, op. cit., pp. 147-216; Pillsbury, op. cit., pp. 172-178;
Foucault, M. La psychophysique. Paris: Alcan, 1901; Biervliet, J-J. Van La Psychologie
quantitative. Paris: Alcan; Gand: Siffer-, 1907; BARBADO, M. O. P. Introduction à la
psychologie expérimentale. Trad. fr. de Ph. Mazoyer. Paris: Lethielleux, 1931. pp. 281-
285. (Nota do tradutor).
48
JAMES, W. Psychology, v. 1, p. 603.
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49
COLEÇÃO EDUCADORES
(Herbart) distingue, em psicologia, uma estática e uma mecânica das
ideias, tal como existem, em física, uma teoria do equilíbrio e do
movimento dos corpos. Considera os fenômenos psíquicos em re-
pouso e em posição de equilíbrio para apreender-lhes relações de
intensidade e formulá-las numericamente. Toda a vida psíquica deve
ser reduzida a leis determinadas. É nesse sentido que Herbart fala de
pressão, de reação, do estado latente das ideias, de oscilações, de
vibrações etc. A alma se lhe afigura uma espécie de cavidade com uma
zona conhecida e outra, desconhecida
49
.
A alma, uma espécie de cavidade... Eis a visão que deixou a
psicologia herbartiana no espírito de um de seus mais fiéis discípu-
los! E continuo a perguntar qual pode ser a razão da sedução que
essa psicologia exerceu nesses discípulos. Quando se consideram
os reproches feitos à psicologia contemporânea por certos
pedagogos de hoje (muito ligados à tradição herbartiana)
50
, quan-
do se vê que eles lhe negam o direito de servir de fundamento à
pedagogia, sob o pretexto de que ainda é uma ciência inacabada,
menos ainda se compreende a indulgência com que foi acolhida a
Vorstellung- mechanik
51
, e o fanatismo que despertou.
A sedução que exerceu esse sistema obscuro reside, talvez, em
parte, na própria obscuridade, que inspirava respeito. Como devia
ser profundo, pois que não se compreendia! Mas foi, sobretudo, o
edifício imponente que ele levantou para a pedagogia com grande
riqueza de minúcias práticas, que lhe fez a voga entre os educado-
res. Porque, antes dele, nunca a pedagogia fôra sistematizada em
um corpo de doutrina bem arranjadinho em todas as suas partes
52
.
Vários princípios por ele formulados, como o da “concentração”,
49
Guex, F. Histoire de l’instruction et de l’éducation. Lausanne, 1913. p. 396.
50
Ver por exemplo o artigo de: Chevallaz, G. La préparation des instituteurs. Suisse:
Annuaire Instruct. Publique en Suisse, 1929.
51
Mecânica das representações (J. G.).
52
Como o acentua justamente G. Compayré em seu opúsculo sobre Herbart (p. 117): “Se
Herbart se fez ouvir... é porque tem um sistema rico de fórmulas: e sabemos qual o
império, a fascinação que exerce sobre os espíritos o despotismo de uma doutrina
sistemática. A preguiça humana repousa de bom grado no leito macio de uma doutrina
acabada, que previu as coisas até as últimas minúcias.”
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50
ANTONIO GRAMSCI
e o da necessidade de tomar em consideração os períodos do
desenvolvimento e o da individualidade são excelentes. Mas não
foram, de modo algum deduzidos de sua concepção psicológica.
E quando nela procura enquadrar seus preceitos pedagógicos, fal-
seia-os completamente. Foi a desgraça que lhe aconteceu a propó-
sito do interesse. Herbart insistiu, muito justamente, na importância
do interesse para a educação e para a instrução. Desta vez – pen-
sar-se-á – muito bem: eis finalmente o princípio funcional como
núcleo da pedagogia. Mas, qual o que! O interesse herbartiano,
longe de ser essa necessidade de saber para agir que nos leva a
adquirir conhecimentos ou a propor problemas, não passa de
consequência da mecânica das representações, o resultado – e não
a causa – da apercepção. Com efeito, tendo Herbart decretado
que a alma é um ser simples sem “nenhuma espécie de predispo-
sições naturais” e que se limita a resistir às perturbações não poderia
admitir nela um interesse que a conduz para esses objetos fora dela,
objetos que são, precisamente, causas de perturbação. Foi, pois,
necessário – porque as crianças que observara como preceptor lhe
haviam mostrado a importância do interesse – para dar um lugar
a esse interesse em seu sistema psicológico, fazê-lo depender, de
qualquer jeito, da mecânica das ideias
53
.
Não se poderia, contudo, negar que existe, no fundo da concep-
ção herbartiana, um pensamento dinâmico: toda a vida mental não é
senão a consequência da resistência oposta pela alma aos agentes que
lhe ameaçam a qualidade essencial; ela tende, naturalmente, à conser-
vação de si mesma (Selbsterhaltung). Por outras palavras, o “eu” tende a
conservar-se. As representações são apenas manifestações dessa rea-
ção de defesa. É certo que essa concepção equivale à verificação dos
biologistas de que o equilíbrio orgânico tende a conservar-se.
53
Ver ainda, para a discussão da concepção herbartiana, meu artigo Réflexions d’un
psychologue, Annuaire de l’Instr. Publique au Suisse, Lausanne, 1925. (Reproduzido
neste volume – Nota da editora).
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51
COLEÇÃO EDUCADORES
Infelizmente, Herbart extraiu essa verdade profunda de apriorismos
metafísicos sobre a natureza simples da mônada
54
e, daí, torná-la
praticamente inoperante. A prova é que, salvo erro, nenhum dos
pedagogistas inspirados em Herbart defendeu o princípio de uma
concepção dinâmica e funcional da educação. A despeito, pois, des-
sa concordância, toda verbal, entre o postulado da Selbsterhaltunq e o
da biologia moderna, podemos considerar a pedagogia de Herbart
e a psicologia tida com o seu fundamento, completamente despro-
vidas de senso biológico. O indivíduo que elas pressupõem é apenas
um mecanismo que trabalha não se sabe como, porque não tem
nenhum impulso. Como, sob esse aspecto, Herbart está aquém de
Rousseau e mesmo de Locke!
A psicologia moderna
Se é certo que os trabalhos psicológicos de Herbart divulga-
ram a ideia de que a psicologia devia ser ciência, os discípulos de
Herbart, tal como seu mestre, também não contribuíram para a
edificação efetiva dessa ciência. Tudo fizeram, ao contrário, quan-
do Wundt fundava seu laboratório de Leipzig, para dificultar o
caminho aos novos métodos.
Nossa psicologia moderna tem outras origens. Ela se formou da
confluência de muitos riachos, alguns dos quais vêm de muito longe:
1. A arte de conhecer o caráter pela fisionomia, pela escrita,
pela forma do crânio (Porta no século XVI, De La Chambre
no século XVII; Camper, Lavater, depois Gall).
2. O estudo dos costumes e do comportamento dos animais
(Réaumur, Ch. Bonnet, Leroy, os Huber, Darwin).
54
Mônada (ou, mônade, como também se diz), do grego monás, unidade. Velho termo do
vocabulário filosófico, empregado por Platão e muitos outros depois dele e tornado
célebre, no século XVIII, pelo filósofo alemão Leibniz (1646-1716), para quem a mônada
seria uma “substância simples, isto é, sem partes, que entra nos compostos”: as mônadas
são, pois, “os verdadeiros Átomos da Natureza… os elementos das coisas”. Ver.
Halbwachs, M. Leibniz. Paris: Mellottée, [s.d.]. (Nota do tradutor).
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52
ANTONIO GRAMSCI
3. A descoberta do “magnetismo animal” (Mesmer); o estudo
do hipnotismo etc.; mais tarde, o estudo das manifestações
espíritas (desde 1847).
4. O estudo dos erros de observação entre os astrônomos
(Maskelyne, 1795; equação pessoal de Bessel, 1820; tempo de
reação dos astrônomos, Hirsch e Plantamour, 1864) e entre os
físicos (Bouguer, 1729, Masson, 1845).
5. O estudo do sistema nervoso e da sensibilidade pelos
fisiologistas e médicos (Bell, 1811; Magendie, 1816; Joh. Müller,
1833; E. H. Weber, 1831; Helmholtz; etc.)
6. O estudo das funções do cérebro pelos fisiologistas (Flourens
1824; Fritsch e Hitzig etc.) e pelos anátomo-patologistas (Bro-
ca etc.).
7. A psicofísica de Fechner, 1860, e o uso da experimentação
nos estudos dos fenômenos psíquicos (Wundt).
8. Os sistemas de psicologia geral de base empírica, como os
de Cabanis (1802), de Maine de Biran (1812), de Herbart
55
(1824), de James Mill (1829) e de seu filho Stuart, de Lotze
(1852), de Bain (1855), de Spencer (1870), de Taine (1870).
9. O estudo das moléstias mentais, sobretudo a partir dos tra-
balhos de Morel sobre a degenerescência (1857) e o estudo do
atraso mental (Itard, 1801, Seguin), da histeria, das alterações
da personalidade etc.
10. O estudo do criminoso (Lombroso, 1872).
11. Os estudos sobre a criança, ou o desenvolvimento da lin-
guagem (Tiedemann, 1787; Löbisch, 1851; Sigismund,
Kussmaul etc.).
12. O estudo do gênio (de Candolle, 1873; Galton), dos
caracteres individuais (Galton).
55
Se a escola de Herbart se opôs ao desenvolvimento da psicologia experimental, a
própria obra de Herbart, pelas razões que enunciamos, teve, contudo, influência sobre
esse desenvolvimento… quando mais não fosse, por haver estimulado o ardor combativo
de Wundt, como demonstra Titchener, em interessante nota histórica (Titchener. Experi-
mental psychology: a retrospect. Am. Journ. of Psychol., 1925).
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53
COLEÇÃO EDUCADORES
13. Os numerosos problemas, enfim, propostos, desde o sé-
culo XVIII, por uma série de disciplinas nascentes, a antropo-
logia e a etnografia (descobrimento de civilizações primitivas,
atuais ou pré-históricas), a história das religiões e a da arte, a
linguística, a sociologia, que deviam inevitàvelmente conduzir
ao estudo do espírito humano.
Eis aí as principais correntes (muitas das quais formaram entre
si anastomoses) que, penso, colocaram pouco a pouco a psicologia
no caminho da experimentação e da observação precisa. Ali por
1874 ou 1875, W. James abria, na Harvard University, um primei-
ro pequeno laboratório de psicologia. Quatro anos após criava-se
o de Wundt, em Leipzig: a psicologia tornara-se ciência armada
para a experimentação. E sobretudo na Alemanha é que foi culti-
vada em seu aspecto experimental.
Os fenômenos psíquicos objeto de experimentação! Compre-
ende-se a fascinação que exerceu, e com boas razões, essa ciência
nova, nos últimos vinte anos do século! Analisar, dissecar os fenô-
menos de reação, de associação, de cognição ou de percepção,
estabelecer as leis da memorização… Trabalho bastante a absor-
ver os espíritos, monopolizar o engenho dos investigadores.
Foi, como se sabe, na Alemanha, que essas primeiras pesqui-
sas, aplicadas aos diversos processos mentais, produziram uma
série de soberbos e minuciosos trabalhos, ilustrados pelos nomes
de Helmholtz e Hering, Wundt, Stumpf, Georg Elias Müller,
Ebbinghaus, Münsterberg, Kraepelin, Külpe, Marbe, Schumann,
Goldscheider, von Frey e muitos outros.
Pelo fim do século, esses trabalhos, a princípio puramente te-
óricos, puramente analíticos, orientaram-se no sentido prático.
Kraepelin estudava a curva do trabalho, Ebbinghaus media a fadi-
ga escolar; em Paris, Binet prosseguia suas pesquisas nas escolas e
lançava as bases da psicologia do testemunho, retomada na
Alemanha por Stern. Depois, vieram os testes mentais.
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54
ANTONIO GRAMSCI
No início do século, nota-se nova preocupação, simultâneamente
com Binet, em Paris, com Marbe, na Alemanha, depois com a cha-
mada escola “de Wurzburgo”: a de submeter a uma observação
precisa o próprio pensamento, o pensamento pensante, o pensa-
mento em seu movimento, que tinha sido, até então, muito descui-
dado. Volta inesperada e triunfante da introspecção, que as técnicas
experimentais dos laboratórios tinham relegado para o segundo plano.
Todo esse movimento, entretanto, tão rico, tão novo, tão cheio
de promessas, tinha um caráter dominante: parecia ter perdido de
vista, ou mesmo nunca ter tido em vista o indivíduo em seu con-
junto, o indivíduo agente, a conduta humana. Quer se tratasse de
analisar as sensações, quer de apreender os erros do testemunho,
de medir a fadiga ou a inteligência, ou ainda de esquadrinhar o
pensamento, os trabalhos visavam a dissecar a atividade psíquica e,
não, a explicar-lhe o movimento. Procuravam determinar estrutu-
ras e, não, um dinamismo. Eram uma espécie de anatomia fisioló-
gica do espírito e, não, uma biologia da atividade mental. E é muito
curioso que fosse na Alemanha, berço da nova psicologia – como
se as árvores tivessem impedido de ver a floresta – que menos
preocupação tivesse havido com as molas da vida do espírito.
Origens da psicologia funcional
Foi da América que nos veio, com William James, a psicologia
funcional. A psicologia funcional não é mais do que a aplicação à
psicologia, por um lado, do ponto de vista biológico, e por outro, do
ponto de vista pragmatista (segundo o qual antes de mais nada, é a
ação que importa: não vivemos para pensar, pensamos para viver)
56
.
56
O pragmatismo está bem consubstanciado na seguinte frase de Nietzsche “A falsidade
de um juízo não é uma objeção contra esse juízo. A questão é saber até que ponto é
favorável para a vida e a sua conservação, para a conservação e a educação da espécie”.
(J. G.).
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55
COLEÇÃO EDUCADORES
É bem singular que a psicologia de Herbert Spencer
57
, toda
impregnada de biologia, pois era evolucionista, quase não tivesse
sido funcional. Certo, a ideia capital da obra spenceriana foi mos-
trar que a evolução do espírito só foi possível por um progresso
constante no ajustamento, na “correspondência” entre o ser e o
meio. Mas, a preocupação dominante do autor era mais traçar um
quadro geral da evolução do espírito do que procurar explicar
por miúdo as atividades mentais.
Sentimos essa deficiência do ponto de vista funcional, ao ler a
obra, tão notável, aliás, por muitos aspectos, que Spencer escreveu
sobre a Educação (1861). O autor nos diz que “a educação deve
ajustar-se à marcha natural da evolução mental”, que é mister tornar
o estudo agradável e que “o gênero de atividade intelectual que agrada
a cada idade é justamente o que é salutar”. Mas parece, precisamen-
te, ter-se preocupado, antes de tudo, com essa ordem da evolução
mental: apresentar as coisas à criança do simples para o composto,
do concreto para o abstrato etc., e não ter compreendido bem que
é especialmente quando tem necessidade de um conhecimento que a
criança se sente atraída por ele
58
. Observa, entre tanto, que, quando
um espírito em via de desenvolvimento sente curiosidade por um
objeto, é que “esse objeto se tornou necessário a seu progresso”.
Chegamos, aqui, ao princípio funcional.
A psicologia spenceriana nenhuma influência exerceu na psi-
cologia alemã, pelo menos quanto ao ponto de vista funcional que
agora nos interessa.
57
Herbert Spencer (1820-1908), filósofo inglês, autor de copiosa obra filosófica, baseada
na ideia de evolução. Os principles of psychology apareceram em 1855. O livro sobre a
educação (Education: intellectual, moral and physical) foi publicado em 1861. Ver: Ribot.
La psychologie anglaise conttemporaine (Êcole expeimentale). 3. ed. Paris: Alcan, 1887.
pp. 161-247; Compayre, G. Herber Spencer et l’éducatión scientifique. Paris: Delaplane,
[s.d.]; Collard, F. Histoire de la pedagogie, op. cit., pp. 562-583. (Nota do tradutor).
58
Segundo sua Autobiographie (trad. fr., p. 211), o que, sobretudo, orientou Spencer para
a questão da educação foi a ideia de que o “desenvolvimento mental ocupa um lugar no
desenvolvimento em geral, servindo, ao mesmo tempo, para demonstrá-lo e para ser por
ele explicado”.
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56
ANTONIO GRAMSCI
Sem dúvida alguma, porém, influiu em James, em cuja opi-
nião a ideia spenceriana da correspondência, do ajustamento das
relações internas às relações externas, sendo embora o “cúmulo da
coisa vaga” (vagueness incarnate), é, entretanto, “por situar o espírito
no meio de suas relações concretas imensamente mais fecunda que
a psicologia racional tradicional, que considera a alma dotada de
uma existência à parte o como bastante a si mesma”
59
.
O pragmatismo, que já fermentava no espírito de James antes
mesmo que dele tivesse tomado consciência, contribuiu também
para que orientasse sua psicologia em sentido funcional. Não me
cabe investigar quais podem ser as origens do pragmatismo de
James. Flournoy tentou esboçá-las
60 61
. Em primeiro lugar, o pro-
testantismo, no seio do qual James foi educado, é completamente
impregnado da tendência pragmatista, a qual se opõe, pelo valor
que atribui à conduta, ao dogmatismo, ao pensamento escolástico,
intelectualista e dialético, por um lado, e ao misticismo, por outro.
Em segundo lugar, o estudo das ciências naturais com Agassiz,
que lhe fizera tomar horror pelo abstracionismo e apaixonar-se
pela maneira concreta de pensar
62
.
59
W. James, Principles of psychology, 1891, vol. 1, p. 6.
60
Flournoy, Th. La philosophie de William James, 1911, p. 24 e segs.
61
V., a propósito das origens do pragmatismo de James: Cuvillier, A. Manuel de philosophie,
v. 2. 3. ed., Paris: Colin, 1930. (Edition Philosophie)., p. 527. (Nota do tradutor).
62
Seja-me permitido citar, de passagem, a título de curiosidade, algumas linhas de
Calvino, que encontro em um artigo de Em. Doumergus (Bull. de la Soc. Calviniste de
France, fev. 1928): “Deus propõe uma doutrina de prática”. “A doutrina dada por Deus…
é para reformar a nossa vida e regulá-la”. “Quando uma doutrina não é proveitosa, nela
só há loucura.” “É mister juntar a prática à doutrina, porque, de outro modo, não poderí-
amos conhecer o que nos foi mostrado e ensinado” etc. Puro pragmatismo “avant la
lettre”.
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57
COLEÇÃO EDUCADORES
Como quer que seja, W. James fez que florescesse o “funcio-
nalismo” nos Estados Unidos
63
. É de notar que seu compatriota,
G. T. Ladd, exatamente da mesma idade que ele, defende, em seus
Elementos de psicologia fisiológica, publicados em 1877, uma concepção
biológica da psicologia: a função do espírito é a adaptação. Ao
passo que a obra de Stanley Hall, toda impregnada também do
pensamento biológico, é biológica, no entanto, em outro sentido:
Hall dá importância à lei biogenética, à revivescência, na vida mental
do homem, de vestígios de épocas anteriores “à incursão da raça
na vida individual”, conforme sua expressão.
Cabe observar, contudo, que W. James, em seus artigos ou
discursos sobre a educação, conquanto tivesse exercido grande in-
fluência sobre a juventude, pela elevação das ideias, pela sedução
pessoal, não expôs de maneira muito explícita os princípios da
educação funcional. Certo, em suas Palestras pedagógicas, por exemplo,
apresenta a criança como um “organismo que age”, agindo para
adaptar-se e a consciência como destinada a preparar a conduta.
Mostra que a psicologia atual “põe mais em evidência o lado prá-
tico da atividade humana, por longo tempo ignorado”. Mas, ao
cabo, não cuidou de explorar a fundo o rico filão de aplicações
práticas que sua psicologia descobrira. Foi antes John Dewey, 17
anos mais jovem, que realizou essa parte do programa.
63
William James (1842-1910), psicólogo notável e o maior dos filósofos norte-americanos.
Uma de suas obras, os Principles of psychology (1890), teve grande influência no desen-
volvimento da psicologia moderna; e ao compêndio extraído disse livro, o Text-book of
psychology, coube, nos Estados Unidos como noutros países, papel de grande importância
no ensino da psicologia, (entre nós, a obra de James se tornou conhecida através principal-
mente, da tradução francesa do Text-book: Précis de psychologie, traduzido por E. Baudin
e G. Bertier, Rivière, Paris, 8ª. ed. em 1929). V. o prefácio de Baudin ao Précis citado, pp.
I-XXXII; Pillsbury, op. cit., pp. 237-245; Boring, E. G. A history of experimental psychology.
New York: Appleton-Century, 1929. pp. 494-504; Boutroux, E.. William James. Paris: Colin,
1911. De James também são, além de várias obras própriamente filosóficas, os Talks to
reachers, traduzidos para o português por Theodoro de Moraes (Siqueira, São Paulo, 1917),
sob o nome de Palestras pedagógicas. – Stanley Hall (1844-1924), fundador do “American
journal of psychology” (1887), primeira publicação periódica em língua inglesa devotada à
psicologia. – George Trumbull Ladd (1842-1921), psicofisiologista. (Nota do tradutor).
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58
ANTONIO GRAMSCI
Não foi pela biologia, mas pela filosofia que s ingressou na
psicologia, abordando-a, a princípio, do ângulo da teoria do co-
nhecimento. O pensamento se lhe apresenta como destinado a
ajustar a ação; e descreve as teorias lógicas ou morais como “ins-
trumentos” forjados para nos permitir o descobrimento da me-
lhor forma de conduta. Essa doutrina é denominada instrumentalismo
e não passa de variedade do pragmatismo. Os primeiros trabalhos
de Dewey
64
datam de 1886; da mesma data é seu pequeno manual
de psicologia. Mas, só depois de nomeado, em 1894, professor de
pedagogia da Universidade de Chicago, é que Dewey aprofunda
sua psicologia no sentido funcional. Em 1895, em memorável ar-
tigo sobre o interesse e o esfôrço, lembra que “é psicologicamente
impossível provocar uma atividade sem algum interesse”
65
. Não
exporei aqui os princípios da psicologia pedagógica de Dewey,
visto já o haver feito alhures
66
.
Cita-se, em geral, seu famoso artigo sobre o arco reflexo, dado
a lume em 1896
67
, como marcando uma data no desenvolvimento
da functional psychology na América, porque Dewey aí mostra que o
que constitui, na conduta de um ser, a unidade primordial não é
nem a sensação nem a reação, e sim a “função”, a síntese dos dois,
isto é, o ato adaptado. A própria vida psíquica constitui uma uni-
dade, uma coordenação anterior a qualquer separação de elementos;
64
John Dewey (n. em 1859), filósofo norte-americano e um dos grandes nomes da
pedagogia contemporânea. Autor de numerosas obras, das quais a mais famosa Democracy
and education (Dewey, J. Democracia e educação. Trad. port. de Godofredo Rangel e
Anísio Teixeira, São Paulo: Melhoramentos, 1936. (Bibliotheca de Educação; 21).). Tam-
bém de Dewey: Dewey, J. Como pensamos. Trad. de Godofredo Rangel São Paulo:
Melhoramentos, 1933. (Bibliotheca de Educação; 2).; Dewey, J. Vida e educação. Trad.
port. de Anísio Teixeira. São Paulo: Melhoramentos, [s.d.]. (Bibliotheca de Educação;
12).. Sobre Dewey, além do magnifico estudo de Claparède, citado no texto, v. o “estudo
preliminar” de Anísio Teixeira ao último dos livros citados; FILHO, L. Introdução ao estudo
da Escola Nova, lição IV; De Hovre, Fr. Essai de philosophie pédagogique. Trad. fr. de G.
Siméons, Bruxelas: Dewit, 1927. p. 87. – (Nota do tradutor).
65
Dewey, J. L École et l’enfant. Paris: Neuchâtel, [s.d.]. p. 42.
66
Introdução a L’École et l’enfant, trad. fr. de Pidoux.
67
Dewey, J. The reflex are concept in psychology. Psychol. Rev., 1896.
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59
COLEÇÃO EDUCADORES
e é quando se fragmenta essa unidade que a sensação, o sentimento,
o esfôrço passam a ser objetos de consciência, e assim ficam até
que seja restabelecida a unidade primitiva. Temos aqui, como se
vê, uma concepção que lembra a da Gestaltpsychologie, a qual apare-
ceria quinze a vinte anos mais tarde
68
. Será completamente original
essa concepção? Pela maneira por que é desenvolvida, sim. Mas,
no fundo, reduz-se à ideia de que o ser (o organismo ou a alma)
tende a conservar-se intacto e, desde que algo vem romper esse
equilíbrio original, ele se esforça no sentido de restabelecê-lo. Não
estaremos em face, aqui, transposta para o plano biológico e des-
pojada de suas contradições, da tese de Herbart de que a alma é
uma substância simples que tende a conservar-se na integridade de
sua natureza?
69
.
E na Europa? Repercutiu a orientação funcional dada à psico-
logia por James e Dewey?
Na Alemanha, não. Certos autores, em verdade, tinham distin-
guido da psicologia dos conteúdos de consciência, puramente des-
critiva, a psicologia dos atos. Assim, Brentano (1874), em sua Psychologie
vom empirischen Standpunkt, considerava como fenômenos psíquicos
por excelência não as sensações, os sentimentos, as imagens, mas a
representação, o juízo e o ato de amar e de odiar. Mais tarde, em
1906, Spumpf, discípulo de Brentano, fez distinção entre fenôme-
nos psíquicos (como as sensações, as imagens) e relações, as “funções
psíquicas” (como perceber, desejar). Trata-se, porém, de crítica
68
Veja-se também a obra recente de um anatomofisiologista americano, Coghill, G. E.
Anatomy and the problem of behavior. Cambridge: Cambridge, 1929, que conclui, do
estudo do desenvolvimento nervoso do tritão, que os mecanismos correspondentes aos
diversos comportamentos (locomoção etc.) não resultam da adição de uma soma de
reflexos, mas que, ao contrário, desde o começo, o conjunto do mecanismo se esboça e
os reflexos especiais (patas dianteiras, traseiras etc.) se formam, em seguida, “como
qualidades que se destacam de um fundo préexistente”.
69
Encontra-se a mesma ideia, traduzida em termos orgânicos, em um neurologista,
Kueppers, E. Der Grundplan des Nervensystems, Zeitsch. f. ges. Neurol. u. Psychiatrie.
Bd., n. 75, 1922, quando fala da “unidade original do organismo” que este tende a
conservar. – V. também p. 55.
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60
ANTONIO GRAMSCI
puramente dialética e metodológica, bem distante de nossa psico-
logia funcional! Dá-se o mesmo com a tentativa de Dilthey (1894),
de substituir a psicologia explicativa corrente, calcada no molde
das ciências naturais, por uma psicologia compreensiva: “Explica-
mos, dizia, a natureza, mas compreendemos a vida mental”. O desen-
volvimento dessa maneira de ver se fez em plano puramente lógi-
co, introspectivo. O núcleo é a compreensão que o indivíduo tem
de seus próprios estados de consciência e, não, a utilidade da vida
mental para o indivíduo. E o ponto de vista de Dilthey era tão
pouco biológico que ele pensava, ao contrário, em apoiar-se em
sua distinção entre explicar e compreende para separar a psicologia das
ciências naturais
70
.
A ideia funcional tinha, entretanto, seus representantes na Ale-
manha; não, porém, entre os psicólogos. Foram pensadores, cien-
tistas, preocupados com a teoria do conhecimento, os criadores
de teorias que lembravam muito o pragmatismo americano, em-
bora tivessem nascido completamente independentes dele. Assim,
Ernst Mach, o físico, autor, em 1886, da famosa Analyse der
Empfindungen e, mais tarde, de Erkenntnis und Irrtum (1905). Mach,
como se sabe, considera o psiquismo um aparelho de adaptação.
A própria ciência saiu das necessidades da vida prática. E um meio
de economizar o pensamento e, pois, a energia humana.
Ao mesmo tempo em que Mach, e sem lhe conhecer os traba-
lhos, outro pensador, cinco anos mais moço, filósofo e cientista a
70
O problema da distinção, muito sutil e muito germânico, entre a psicologia “explicativa”
(Erklerende psychologie) e a psicologia “compreensiva” (Verstehende psychologie) está
longe de uma perfeita solução. A oposição entre uma psicologia que visa a explicar os
fatos psíquicos pelo seu encadeamento causal e outra que procura compreender as
estruturas psíquicas tem feito correr muita tinta, na expressão de D. Weinberg. Depois
de Guilherme Dilthey que levantou a questão e pretendia compreender vida do espírito
humano revivendo-a como uma experiência viva e não explicá-la casualmente no seu
desenvolvimento histórico, outros se preocuparam com ela – Simniell, Jaspers, Max
Koehler, Eduardo Spranger... Quem se interessar pelo assunto lerá com vantagem o
interessante trabalho de Kafka, G. Verstehende psychologie und psychologie des
verstehens (Psicologia compreensiva e psicologia da compreensão). Ardi. f. Ges. Psychol.,
v. 65, n. 1-2, pp. 7-40, 1928. (J. G.).
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61
COLEÇÃO EDUCADORES
um tempo (estudara fisiologia com Ludwig, em Leipzig), Richard
Avenarius, desenvolvia uma teoria do conhecimento fundada numa
psicologia de tendência inteiramente biológica (Kritik der reinen
Erfahrung, 188-90). Os escritos de Avenarius (que foi professor de
filosofia na Universidade de Zürich do 1877 a 1896 data de sua
morte) são de leitura extremamente difícil, por causa de sua lingua-
gem mais que rebarbativa. Quando escreve, as verdades biológicas
que lhe servem de ponto de partida tomam aspecto estranho: o
organismo, com seu aparelho cerebral, é o “Sistema C”; o mundo
exterior com seus excitantes é R; a nutrição, necessária ao sistema C,
é o S. O sistema C tende ao estado de repouso atingido desde que R
e S se equilibrem. Mas, se R se torna maior do que S tem-se, então,
uma Vitaldifferenz (rotura do equilíbrio) e se produz um movimento
de três tempos (“Vitalreihe”), a saber: 1.°) uma coisa que surpreende;
2.°) um desejo; 3.°) um sentimento de solução, de satisfação. Seria
desinteressante, aqui, levar mais longe essa descrição; notemos so-
mente que Avenarius coloca no centro de sua psicologia (e também
de sua lógica) essa tendência do indivíduo rio sentido de adaptar-se
ao meio, a fim de salvaguardar o equilíbrio orgânico
71
.
O pragmatismo alemão aparecia ainda, na mesma época, em
outro filósofo, Hans Vaihinger, cuja Philosophie des Als Ob é hoje, com
justiça, célebre. Só foi publicada, é verdade, em 1911, mas seu autor
já a tinha redigido na juventude, ali por 1876 (com 24 anos). O
alcance desta obra é inteiramente epistemológico. Mas a concepção
de Vaihinger, que foi chamada de ficcionalismo, envolve uma psicolo-
gia todas biológica e funcional
72
. Poder-se-ia mesmo dizer que ela
reduz a lógica à biologia. Nosso conhecimento, longe de ser “verda-
deiro”, no sentido absoluto da palavra, não é senão um meio bioló-
71
O Dr. Robert Tissot (Chaux-de-Fonds) desenvolveu, do ponto de vista fisiológico, o
“biomecânico”, a concepção da Vitalreihe de Avenariuz: Zur Physiologie der Vitalreihe.
Zeitsch, f. positivist. Philosophie, n. 1, 1913.
72
Ligada intimamente a essa concepção está a corrente da Individual psychologie de
Alfred Adler e sua escola. (J. G.).
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62
ANTONIO GRAMSCI
gico de vencer na luta pela existência. As “categorias” do entendi-
mento nada mais são do que meios cômodos de dominar a infinita
multiplicidade das nossas sensações
73
. Nossas concepções, científi-
cas, ou outras, são apenas ficções, ficções cheias de contradições
lógicas, mas que são boas na medida em que nos permitem agir
praticamente sobre a realidade. Vivemos como se – als ob – o mun-
do correspondesse a essas ficções, como se a realidade fosse o que
imaginamos que seja. Pouco importa a fantasia de nossas concep-
ções, desde que permitam que nos saiamos bem. Pouco importa
que as coisas existam realmente – a noção de “coisa” é também
uma ficção – basta que nos comportemos como se existissem, pois
essa maneira de nos comportarmos é praticamente vantajosa
74
.
Outro filósofo, Julius Schultz, em sua Psychologie der axiome (1899),
defendera, com muito espírito, ideias análogas os axiomas, os postu-
lados, as formas ditas a priori de nossa sensibilidade e de nosso pensa-
mento, graças às quais o homem extrai do caos de suas sensações um
mundo coerente, o espaço, a causalidade, o princípio de identidade
etc., não passam de hábitos inatos, desenvolvidos pouco a pouco no
decorrer de muitíssimos anos. São, afinal de contas, atividades do indi-
víduo, exigências de sua vontade, de sua vontade de viver. A coerção
que nos obriga a aceitar um axioma está em nós. “Se a verdade fosse
um alimento, os princípios apriorísticos deveriam ser comparados
não a juízos gastronômicos, mas somente à fome, que a criança já
sente muito antes de saber algo sobre o leite materno”.
73
Vaihinger, demonstrando a grande importância das ficções nas ciências particulares
(matemática, mecânica, química etc.) e o aspecto relativista do conhecimento, vem ao
encontro das ideias a que chegaram por caminho diverso outros pensadores, para os quais
o critério amplo de “comodidade” se substitui ao critério absoluto de “verdade”. Assim, para
citar no domínio da matemática, afirma Poincaré que não tem nenhum sentido perguntar se
é verdadeira a geometria euclidiana ou perguntar se são verdadeiras as coordenadas
cartesianas e falsas as coordenadas polares. “Uma geometria não pode ser mais verdadei-
ra que outra, ela só pode ser mais cômoda” (Sc. et Hypothèse, p. 67 e 91). (J. G.).
74
V., a propósito das ideias de Vaihinger, as interessantes páginas de Ribeiro, J. Notas de
um estudante. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., [s.d.]. pp. 29-36. (Nota do tradutor).
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63
COLEÇÃO EDUCADORES
Mencionemos ainda W. Jerusalem, filósofo austríaco que, em
Die Urteilsfunktion (1895), colocava também a lógica no plano da
biologia e da psicologia genética.
Todos esses trabalhos, no entanto de tendência biológica ou
pragmática, quase não tinham perturbado as ondas majestosas da
grande corrente da psicologia alemã. Nem por isso no deixou de vir
da Alemanha uma das mais fecundas concepções para as aplicações
educacionais da psicologia funcional. Refiro-me às obras de Karl
Groos sobre os jogos dos animais (1896) e dos homens (1899).
K. Groos, não preocupado, como os pensadores até aqui ci-
tados, com problemas lógicos ou epistemológicos, mas com os
da psicologia da arte, fôra levado a estudar o jogo, e com razão,
em esclarecer esse fenômeno examinando-o do ponto de vista da
psicologia comparada. O estudo do jogo dos animais levou-o
naturalmente a encarar a questão da significação biológica dessa
espécie de comportamento.
Como se sabe, o jogo, segundo Groos, não é um fenômeno
fisiológico acidental, resultante do emprego de um excesso de
energia. Tem uma utilidade funcional e desempenha um papel no
desenvolvimento do indivíduo. Notemos, contudo, que esse ponto
de vista funcional difere um tanto do que tratamos anteriormente.
Segundo esta teoria, a criança não joga porque no momento em
que o faz o jogo satisfaz a uma necessidade de seu ser e a uma
função presente; mas joga tendo em vista o futuro. O jogo seria
funcional não em relação à criança que joga hoje, mas em relação
ao adulto de amanhã.
O jogo é um “pré-exercício”. Segundo esta teoria, a criança sob
o aspecto longitudinal, isto é, com relação ao que virá a ser mais tarde.
Tentei mostrar, porém, que o jogo é também funcional sob o
aspecto transversal, isto é, com relação às necessidades da criança,
porque lhe dá uma satisfação atual e imediata e é “satisfazendo
necessidades presentes que o jogo prepara o futuro”
75
.
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64
ANTONIO GRAMSCI
A concepção de K. Groos, que tão nova pareceu quando pro-
posta, teve repercussão considerável. Não parece, entretanto, que
se tenham compreendido de início todas as consequências peda-
gógicas que encerrava, consequências que procurei deduzir
76
se o
jogo corresponde a uma necessidade constante da criança, que
auxiliar precioso não será para o educador que saiba servir-se dele!
Observa K. Groos, em sua autobiografia, que sua maneira
biológica de considerar os fenômenos psíquicos “se distingue do
método psicológico dominante na Alemanha. É hábito nesse país,
no estudo do psiquismo, analisar por distinctio rationis os “conteúdos”
elementares da consciência, as sensações, as imagens, os sentimen-
tos, as conotações
77
etc., e partir daí para construir a ciência. Essa
maneira de ver as coisas será sempre indispensável; mas tem o
inconveniente, acrescenta Groos, de estar longe demais da vida e
do desenvolvimento de ser vivo. É mais favorável considerar o
organismo vivo do ponto de vista de sua unidade teleológica, es-
tudar os diversos aspectos de seu comportamento”. Está aí, exa-
tamente, o ponto de vista funcional.
75
Psychologie de l’enfat, 1915, pp. 449-453.
76
Em sua autobiografia (Die deutsche philosophic der Gegenwart in Selstdarstellungen, n.
2, p. 105, 1921.), K.. Grous faz notar que, se ele próprio não desenvolveu suficientemen-
te o aspecto pedagógico de sua concepção do jogo, meus escritos, no entanto, mostra-
ram como essa concepção era capaz de influir profundamente nas práticas da educação.
77
Conação, do latim conatio-onis (esforço empenho), significa, aproximadamente, esfor-
ço, tendência. Conatus usou-o Spinoza (1632-1677) em sua Ética, III, proposições V e
VIII; e Charles Appuhn, que a pôs em francês, traduziu o termo por esforço (v. Appuhn,
C. Éthique. Paris: ed. Garnier, [s.d.].). Conação foi usada pelo filósofo escocês Halmilton
(1788-1856) para designar a classe dos fenômenos mentais que, segundo a classificação
tradicional desses fenômenos, se refere aos atos de vontade, de desejo. Em nossos dias
o termo conação tem sido empregado por Spearman, especialmente em sua obra sobre
as aptidões: Spearman. Les aptitudes de l’homme: Leur nature et leur mesure. Trad. fr. de
F. Brachet. Paris: Publications du “Travail humain”, Conserv. Nat. dos Arts st Métiers,
1936 (v. o index dessa edição francesa). Lalande, V. Vocabulaire..., op. cit., n. 1, p. 117.
(Nota do tradutor).
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65
COLEÇÃO EDUCADORES
Finalmente, não se pode esquecer o impulso dado por Freud
78
às concepções dinâmicas da vida mental. Conquanto Freud tenha
partido da anamnese clínica, e não da biologia, as primeiras no-
ções que propôs, a do recalcamento (a Abwehr, a Abreaktion e a
Katharsis etc.) representam reações de defesa do organismo mental
contra as impressões ou os pensamentos que o afetam desagrada-
velmente. Têm, pois, alto valor funcional.
Se a psicologia alemã, postos de lado Groos e Freud – cujos
trabalhos não tiveram, de início, a repercussão a que fariam jus –
permaneceu refratária ao pensamento funcional, tão pouco nos
outros países do continente, ele foi mais bem representado. Em
França, o que dominava era, por um lado, a tradição sensualista a
que o talento de Taine dera nova glória, por outro a preocupação
clínica, médica, patológica, resultante dos trabalhos de Charcot e
também das manifestações do hipnotismo e do espiritismo, que
deram matéria aos primeiros estudos de Pierre Janet. O próprio
Taine recorrera a casos psicopatológicos para explicar a atividade
normal do espírito. Tudo isso, porém, era estudado de um ponto
de vista puramente analítico, e continuava completamente fora do
quadro da psicologia funcional.
78
Sigmund Freud (1856-1939), psicólogo de visão penetrante, uma das maiores e mais
discutidas figuras da psicologia contemporânea. Criador da psicanálise. Principais obras:
Psicologia da vida cotidiana, Totem e tabu, Introdução à psicanálise, A ciência dos sonhos
etc., várias já traduzidas para o português. A respeito de Freud e de sua doutrina têm sido
escritas verdadeiras bibliotecas; v. entre outros; Blondel, Ch. La psychanalyse. Paris:
Alcan, 1924; Hesnard, A. La psychanalyse. Paris: Stock, 1928; as obras, extremamente
interessantes, do próprio Freud, especialmente, do ponto de vista histórico, Freud, S. Ma
vie et la psicanalyse. Trd.fr. de Marie Bonaparte. 15. ed. Paris: Gallimard, 1938. Por
ocasião do 80.º aniversário de Freud, escreveu Claparède no Journal de Genève uma
breve nota, sob o título de “Freud va avoir 80 ans”, que resume admiravelmente a
essência da teoria psicanalítica (ver: Claparède. Causeries psychologiques: troisième
série. Paris: Naville, 1937. pp. 59-64). (Nota do tradutor)
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66
ANTONIO GRAMSCI
Deve-se, no entanto, abrir uma exceção para Th. Ribot
79
. Se não
propôs a questão funcional com a nitidez dos pragmatistas, pelo
menos percebeu claramente que a vida mental mergulha as raízes na
vida orgânica e que todo estado de consciência tem sempre tendência
a exprimir-se por um movimento. As tendências, substrato de toda
a nossa atividade mental, são a expressão imediata das maneiras de
ser organismo. A acentuação desse “elemento motor” e de sua im-
portância em nossa vida constitui o leit-motiv da psicologia de Ribot.
O eminente psicólogo francês sofreu, sem dúvida alguma, de um
lado a influência de Spencer, que ele contribuiu para tornar conhecido
me França, de outro, a de Schopenhauer, sobre cuja filosofia tinha
escrito um pequeno volume em 1874
80
.
Eis, portanto, em que pé estava a psicologia funcional no início
deste século: preconizada por alguns autores isolados, mas havia
tomado consciência de si mesma. Em todo caso, não tinha, de
79
Theodule-Armand Ribot (1819-1916), eminente psicólogo francês, orientador, por longo
tempo, do estudo da psicologia na França. Lecionou na Sorbonne e o no Collège de
France; fundou a “Revue philosophique” (1876), importante publicação periódica, que
dirigiu até 1916. Escreveu numerosas obras, muitas das quais clássicas na história da
psicologia: Psychologie anglaise contemporaine (1870), Psychol. allemande contemporaine
(1879), Hérédité psychologique (1873, tese de doutorado). Évolution des idées générales
(1897), a série de estudos sobre a patologia da memória (1861), da vontade (1883), da
personalidade (1885). Psychologie des sentiments (1896) etc. etc. Compôs, para a obra
coletiva De la méthode dans les sciences (Paris: Alcan, 1909), o capítulo sobre os
métodos da psicologia (vol. I, pp. 229-257). Prefaciou (1914) o grande Traité de psychologie
de G. Dumas e colaboradores (Paris: Alcan, 1923-1924) (obra, aliás, dedicada à memória
de Ribot). No último do seus livros (La vie inconsciente lês mouvements, Paris: Alcan,
1914), voltou Ribot a estudar o papel do movimento na vida mental, assunto a que, em
1879, já dedicara, em sua “Reveu philospphique”, o artigo Le role et l’importance des
mouvements en psychologien. V., para estudo da obra do ilustro psicólogo: Georges
Dwelshauvers, La psychologie française contemporaine, Paris: Alcan, 1920, cap. IV, 2;
Daniel Essertier, La psychologie, vol. IV da coleção “Phiolosophes et savants français du
XXe. Siècle”, Paris: Alcan, 1929, 5-8. (Nota do tradutor).
80
Deixo de lado aqui outra particularidade da psicologia de Ribot – a aplicação do “método
patológico”. “O que fez a unidade de minha obra e me serviu de fio condutor em todas as
questões que estudei, foi que sempre, tanto quanto possível, examinei os fenômenos
psíquicos do ponto de vista de sua evolução e de sua dissolução”, declarou Ribot no
prefácio que escreveu para o livro de S. Krauss, Th. Ribots Psychologie (Iena, 1905).
Parece que essa preocupação metodológica o impediu de insistir suficientemente no
princípio funcional.
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67
COLEÇÃO EDUCADORES
modo nenhum, penetrado no ensino oficial da psicologia e, aparte
o movimento inaugurado por Dewey, nos Estados Unidos, tam-
bém pouco tinha influído na prática da educação.
Em Genebra, situação privilegiada. Graças ao luminoso ensino
de Flournoy, estávamos, mais do que em outros lugares, a par das
ideias de W. James, seu grande amigo. O próprio Flournoy, aliás,
independentemente do pensador americano, tinha desenvolvido
uma concepção muito pragmatista da ciência em seu trabalho
Métaphysique et psychologie (Genebra, 1890)
81
. Toda a sua maneira de
considerar a vida mental estava impregnada de funcionalismo: quer
se tratasse de fenômenos religiosos, quer de manifestações sub-
conscientes, por toda parte percebia as tendências, os esforços, as
aspirações, as revoltas, fraquezas ou consentimentos interiores de
que eram a expressão, sempre procurava dar-lhes “interpretação
biológica”. Na verdade, porém, nunca desdobrou sistemàticamente
uma concepção funcional da psicologia
82
.
O ponto de vista funcional
Desejaria expor aqui, com a maior brevidade possível, os prin-
cípios fundamentais gerais.
A psicologia funcional – que fique bem claro – não é uma psi-
cologia diferente das outras! Há, sem dúvida, muitos psicólogos,
81
Cf. meu artigo sobre Th. Flournoy, sa vie et son oeuvre, Arch. De Psychol., n. 18, pp.
3-87, 1921.
82
Filiam-se, a nosso ver, a uma compreensão funcional da psicologia, as ideias de M.
Bomfim, psicólogo e pedagogista patrício, em cujas Noções de psichologia se leem
passagens como estas: “A atividade psíquica tem por fim a adaptação ou acomodação
das exigências internas às condições externas; todos os fatos que a ela se relacionam
tendem para o resultado: conquista do meio ou das condições de realização da vida” (p.
14); “Os fatos psíquicos englobam as nossas relações e os nossos esforços de adapta-
ção pessoal no mundo em que vivemos...” (pp. 14-15); “... a vida psíquica abrange, na
sua sistematização geral, o conjunto de reações e de tateios mediante os quais se faz a
apurada e completa adaptação do ser humano à condições do mundo ambiente” (p. 122),
além de muitas outras, todas igualmente expressivas. As citações são feitas da 2. ed.,
Alves, Rio, 1917). V. também do mesmo autor: Pensar e dizer: estudo do símbolo no
pensamento e na linguagem, Rio de Janeiro: Casa Electros, 1923. (Nota do tradutor).
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68
ANTONIO GRAMSCI
cada qual com uma certa maneira de interpretar os fatos ou com
base em postulados diferentes. Há os “atomistas” e os “gestaltistas”,
os “introspeccionistas” e os “behavioristas”, os “paralelistas” e os
“interacionistas”, os “psicólogos reflexologistas” e os “personalistas”,
os “associacionistas” e os “compreensionistas”, os “hedonistas” e
os “hormicistas”, os “freudianos” e os “adlerianos” etc. Mas, se é
certo que há muitos psicólogos, não há senão uma psicologia, isto é, a
ciência da atividade mental, da conduta, que se desprenderá cada
vez mais das concepções individuais dos que a cultivam.
Essa multidão de “psicologias” parece impressionar certos
educadores; se há tantas psicologias, em qual delas basear a peda-
gogia?
83
. Esperemos que os psicólogos cheguem a um acordo
84
.
Ao lado, porém, dessas concepções gerais diferentes, estão os
fatos. Praticamente, um behaviorista e um introspeccionista podem
muito bem trabalhar de mão comum: os resultados de suas experi-
ências serão os mesmos tanto para um como para outro (do mesmo
modo que um botânico mecaniscista e um botânico vitalista pode-
rão estudar a mesma planta pelos mesmos métodos e chegar a resul-
tado idêntico). Só quando se tratar de interpretação é que o desacor-
do poderá surgir; e muita vez se reduzirá a uma questão de palavras.
Se assim não fosse, nenhuma prática deveria ter base científica,
porque não há ciência, mesmo entre as mais “exatas”, em que se
não vejam teorias opostas. Quantas opiniões diversas, em biolo-
gia, a respeito da evolução (lamarckistas, ortogenetistas, mutacio-
nistas etc.), a respeito da adaptação etc. Parou, acaso, a tintura quí-
mica dos tecidos pelo fato de terem estado os químicos divididos
em atomistas e energetistas? Os cirurgiões não estão de acordo a
respeito da natureza e da origem do câncer; isso impede, porventura,
o diagnóstico e o tratamento desse tumor? No domínio da física,
83
Ver Grabois, J. À margem da psychologia. Jorn. do Com., 1 fev. 1931. (J. G.).
84
Cf. o artigo de Chevallaz. Os próprios fundamentos da psicologia são instáveis, p. 9 e
seg.:
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69
COLEÇÃO EDUCADORES
de trinta anos para cá, principalmente depois da descoberta da
radioatividade, deu-se tal transformação nas ideias sobre a consti-
tuição e a conservação da matéria que, se Helmholtz ressuscitasse,
nada mais compreenderia da linguagem dos físicos de hoje: e isso
afetará o valor dos trabalhos de Helmholtz? As ideias atuais sobre
a natureza da luz modificam as leis da refração? Ainda mais! Cer-
tos cientistas eminentes defendem hoje uma interpretação
indeterminista da nova mecânica! O princípio do determinismo
atacado pelos físicos! Esperarão os industriais até que os físicos
entrem em acordo a respeito das causas últimas dos movimentos
dos corpúsculos intra-atômicos para utilizar a eletricidade e traba-
lhar os metais? Os “fundamentos” da mecânica se evidenciam tão
“instáveis” quanto os da psicologia!
A psicologia funcional, porém, não pretende ser, de modo
algum, uma teoria sobre a natureza última da atividade mental!
Limita a ambição a oferecer um método de acesso e formular
certo número de leis.
A atividade mental pode ser, com efeito, encarada de pontos
de vista diferentes, cada um dos quais corresponde a uma preocu-
pação diversa, a um problema diferente que o cientista se propôs
e que, longe de serem contraditórios entre si, convergem, ao con-
trário, para um fim único, que é o conhecimento da conduta e de
suas leis. Esses pontos de vista, parece-me, são em número de três:
1. O ponto de vista estrutural; é o ponto de vista analítico, anatômico
por assim dizer. Quais os elementos da vida mental? Qual a natu-
reza dos móveis da conduta? O estudo estrutural está para a
psicologia como a anatomia para a ciência da vida orgânica. Por
exemplo: de que é feito o substrato do pensamento (imagens
verbais, consciência das ralações etc.)? Quais são os sentimentos
elementares? Qual é a estrutura da emoção? etc.
2. O ponto de vista do mecanismo, da técnica: é ainda análise, mas
aplicada às operações mentais, à conduta em função. Como se
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ANTONIO GRAMSCI
engrenam entre si as peças conhecidas graças ao estudo estru-
tural? Esse estudo corresponde à fisiologia (no sentido restrito
da palavra) em matéria de vida orgânica. Exemplo: quando
resolvo um problema de aritmética, que é se passa? Como se
sucedem e se determinam as diversas partes da operação?
Como se estabelece a coerência entre elas? Ou, ainda: como
age o sentimento sobre as operações da inteligência?
3. O ponto de vista funcional: é o do papel que tal ou qual
processo desempenha na vida do individuo. Aqui, encaramos
os fenômenos sob um aspecto antes sintético, com relação ao
conjunto do organismo, com relação à sua significação para
este, com relação a seu valor para a adaptação ao meio físico ou social.
Qual é, por exemplo, a significação do jogo, da emoção, da
obstinação, da mania de grandeza? Isto é, a que necessidades
esses fenômenos correspondem? Em que medida são meios
de adaptação? É a investigação das molas da conduta. Para
continuar nosso paralelo com a ciência da vida orgânica, po-
deríamos dizer que esse é o ponto de vista da biologia (oposta
à anatomia e à fisiologia), pois o grande problema da biologia
é o da adaptação. Exemplo: Qual é a função do pensamento,
do sentimento, da vontade?
Esses três pontos de vista estão em estreita correlação entre si.
Dada uma função, o estudo de seu mecanismo nos mostrará como
essa função pode efetivar-se. E a análise desse mecanismo lhe des-
vendará a estrutura.
Corresponde cada um a uma indagação diferente. O ponto
de vista estrutural é o que? O ponto de vista do mecanismo, o como?
O ponto de vista funcional, o por que?
O ponto de vista funcional é dinâmico, por oposição aos outros
dois, que são antes estáticos
85
.
85
Em minha Psychologie de l’enfant (1915, pp. 119 e seg.) reuni para simplificar a
estrutura à técnica cujo objeto é praticamente o mesmo, sendo, muitas vezes, difícil
separá-las claramente, para opô-las à função.
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COLEÇÃO EDUCADORES
Legitimidade do ponto de vista funcional
Mas, é sabido que às vezes se contesta, ao biologista, ao médi-
co, ao psicólogo, o direito de colocar-se no ponto de vista funcio-
nal, o qual – diz-se – sendo “teleológico”, deve ser abandonado
ao cruzarem-se os portais da ciência! E necessário, portanto, justi-
ficar a legitimidade desse ponto de vista, antes, porém, duas pala-
vras sobre a utilidade dele.
Essa utilidade me parece muito grande. Quando abordamos
um fenômeno psíquico, é muito vantajoso, a meu ver, começar
por fazê-lo sob o aspecto funcional. É como quando nos propomos
estudar uma preparação microscópica: é bom, antes de examiná-
la com grande aumento, considerá-la com aumento mais fraco,
que permita percebê-la na totalidade e julgar, assim, que lugar ocu-
pa cada parte no conjunto da preparação. É então que o estudo
minucioso da estrutura será verdadeiramente proveitoso.
Tomemos um exemplo: seja a inteligência. Quando indagamos
qual é sua função, – ou, em outros termos, em que circunstâncias ela
intervém, a que necessidade de adaptação corresponde – não estamos
orientando desde o início, de maneira proveitosa, o estudo de sua
estrutura e de seu mecanismo? Uma vez determinado esse valor
funcional, caminharemos mais seguramente para a descoberta das
“técnicas” que lhe permitem a realização. A perspectiva funcional é
como um quadro que limita as investigações relativas à técnica e à
estrutura, concentrando-as em ponto praticamente importantes.
Outro exemplo: o sono. Encarando esse fenômeno sob as-
pecto funcional, inquirindo de sua utilidade para a vida, descobri-
mos que ele desempenha o papel de uma função de defesa, defesa
contra o esgotamento e que dormimos, não porque estejamos
intoxicados, mas para não ficarmos intoxicados. Pode-se negar
que seja fecunda essa descoberta? Não, porque orienta em sentido
completamente novo as pesquisas relativas ao mecanismo do sono
e suscita problemas que, de outro modo, nem mesmo se teria a
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ANTONIO GRAMSCI
ideia de propor; quais os estímulos do sono, qual a origem bioló-
gica desse processus etc.?
86
Mas a “questão funcional” não tem apenas utilidade indireta,
por orientar as investigações cujo objeto é a estrutura. É indispen-
sável, ainda, porque propõe o próprio problema funcional, evi-
dentemente o grande problema da biologia e da psicologia, que é,
como há pouco dissemos, o problema da adaptação ou (o que dá
na mesma) o problema da conduta. Eis aqui um processus útil para
a vida. Como se instalou esse processus? Como é que tal necessidade
suscita, precisamente, as reações próprias a satisfazê-la? Como che-
gou a formiga a possuir os instintos que lhe regem a vida social?
Em virtude de que série de acontecimentos a vista de um ovo
produz na galinha, em certos períodos, a incubação? Como se dá
que, quando tenho sede, surjam em meu espírito os meios de ar-
ranjar algo para beber?
É ainda útil, por uma terceira razão, o ponto de vista funcional:
pelas aplicações práticas. Não é inútil para o médico o considerar os
glóbulos brancos como agentes de proteção e defesa, presente no
sangue para absorver os micróbios que nele circulam. Essa visão
surgirá ao terapeuta a ideia de imitar a natureza (natura medicatrix),
quando se propõe o mesmo fim que ela tem em vida; e criará artifi-
cialmente “abscessos de fixação”. Tão pouco é inútil para o educa-
dor considerar o jogo como um fenômeno que serve para o desen-
volvimento do indivíduo. Porque, quando quiser colaborar nesse de-
senvolvimento, recorrerá ao meio empregado pela própria natureza.
Também não lhe é supérfluo saber em que circunstâncias o indivíduo
tem necessidade de pôr em ação a inteligência, porque quando quiser
que seu aluno execute um ao de inteligência, saberá em que circuns-
tância deve colocá-lo para mobilizar-lhe o pensamento.
86
Cf. meus trabalhos: Esquise d’une théorie biologique du sommeilI, Arch. de Psychol.,
n. 4, 1905; La fonction du sommeil, Scientiae, 1907; La question du sommeil, Année
psychol., n. 18, 1912; Opinions et travaux relatif à la thèorie biol. du sommeil, Arch. de
Psychol., n. 21, 1928.
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COLEÇÃO EDUCADORES
É evidente que toda ação prática, a educativa especialmente,
apresenta um fim a atingir; e esse fim leva à pesquisa de meios. Ora,
a psicologia funcional, precisamente, coordena os fenômenos sob
a perspectiva “meio-fim”. Determinado o valor funcional de cada
processus, a psicologia funcional oferece ao prático exatamente o de
que ele tem necessidade, satisfazendo-o.
Exemplo: o educador se propõe desenvolver ou fazer traba-
lhar a inteligência de seu aluno. Depara-se-lhe, então, a questão de
saber em que medida a aquisição de conhecimentos corresponde
a esse fim. A psicologia estrutural é muda a esse respeito. Pode
dizer-nos, por exemplo, que existe correlação assaz forte entre a
inteligência e o grau de instrução ou a bagagem de conhecimentos.
Não nos dirá, porém, sobretudo no estado atual de seu desenvol-
vimento, que relação interna existe ao entre a bagagem de conheci-
mentos e a capacidade intelectual.
Tudo se esclarece, ao contrário, se colocarmos o problema
em sua forma funcional: perguntemo-nos para que serve a inteli-
gência e para que servem os conhecimentos. Ora, como à inteli-
gência cabe ajustar a ação (em certa circunstância que pouco im-
porta precisar aqui)
87
, o saber aparece como meio indispensável
para a inteligência desempenhar seu programa
88
. E essa conclusão
não é, convém entender, uma simples opinião. É fundada na ob-
servação: é impossível decifrar um texto latino se não se conhe-
cem o sentido das palavras latinas nem as regras da gramática ou
da sintaxe do latim. É impossível a um engenheiro, a despeito de
toda inteligência, calcular a resistência de uma ponte se esqueceu a
fórmula do coeficiente de resistência dos materiais que deve em-
pregar ou se perdeu o livro em que vêm esses dados etc.
87
Ver adiante o capítulo sobre a psicologia da inteligência.
88
Ver Réflexions d’un psychologue, La pensée et la savoir... Ann. Instr. Publ. Suisse,
1926.
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ANTONIO GRAMSCI
A prova da utilidade do método funcional é dada pelos
resultados obtidos quando ele não foi empregado. Segundo Herbart,
por exemplo, o saber não é, de modo algum, um auxiliar da inteli-
gência: é o agente mesmo da inteligência, quanto mais considerável é
a “massa das representações” tanto maior a capacidade de a per-
cepção e, pois, a inteligência. A prática decorrente dessa premissa é
que a aquisição dos conhecimentos tem valor em si mesma e deve,
na escola, ser posta em primeiro plano. Mas, erramos se assim agi-
mos, porque a investigação funcional nos mostra, ao contrário, que
o saber é, sempre, apenas um meio e, portanto, apresentá-lo isolada-
mente, sem ligá-lo a um fim, que ele deve auxiliar a atingir, é desres-
peitar a natureza. A pedagogia baseada na psicologia funcional,
apresentando, sempre, o saber em função do pensamento – o saber
como subordinado ao pensamento – é, pois, muito mais eficaz,
porque se adapta à realidade natural dos fatos, porque não inverte as
relações funcionais naturais, porque não trabalha a contrapelo.
Dar maior importância à aquisição dos conhecimentos que ao
exercício da inteligência, à imaginação, à aquisição do certos métodos
de pensamento e de trabalho – eis o grande reproche que um pouco
por toda parte se faz à escola. Ora, se a escola faz assim, é porque
partiu de uma psicologia grosseira, que falseou as relações entre o
saber e a inteligência. De que o saber é útil ao pensamento para a
execução de seus fins, concluiu-se que o saber tinha um fim em si
mesmo. (Outras causas, talvez, além dessa de ter partido de uma
psicologia defeituosa, explicam essa prática absurda: assim, a economia
de esfôrço, pois é mais fácil para o mestre ditar mandar decorar do
que proporcionar ocasiões para refletir. O próprio aluno, se é de
espírito preguiçoso e, sobretudo, pouco dotado, também acha melhor
assim. E os pais veem naturalmente, no saber, um sinal da
superioridade do seu rebento. A erudição muita vez engana).
Em resumo: o método funcional é útil porque só ele nos per-
mite perceber os processos em função da conduta que devem
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75
COLEÇÃO EDUCADORES
determinar. E, na prática, somente ele nos mostra o valor de um
processo com relação ao fim a atingir. Ao passo que a psicologia
estrutural – útil a muitos outros respeitos – nada nos diz do que
toca à coordenação funcional dos fenômenos psicofisiológicos.
A vista de olhos que acabamos de dar sobre a utilidade do
método funcional nos servirá para apreciar-lhe a legitimidade.
Contesta-se, com efeito, essa legitimidade, sob o pretexto de
que o ponto de vista funcional envolve o finalismo, contrário ao
espírito da ciência, que postula o determinismo.
Não quero entrar aqui nas intermináveis discussões que, há mais
de meio século, vem suscitando esse debate! Limitar-me-ei a observar
que um método ou uma concepção, desde que sejam úteis, têm o
direito de ser aceitos pela ciência, sejam quais forem as dificuldades
teóricas que possam criar. A fecundidade, eis o critério único para o
homem de ciência que não quer fazer metafísica
89
. O fim da ciência
é organizar os fatos, descobrir as relações que apresentam entre si,
coordená-las em leis. Se a concepção funcional da conduta nos per-
mite atingir mais fàcilmente esse ideal, não vejo em nome de que
dogma recusarmo-nos a recorrer a ela, O espírito do cientista deve
ser absolutamente livre, despido de todo preconceito, de todo a
priori filosófico
90
(60). Não poderia, a meu ver, pôr de lado um
89
Não compreender a palavra fecundidade no sentido demasiadamente pragmático, que
ordinariamente não é levado em consideração na ciência pura que proclama: “Souche die
Warheit und frage nicht was sie wetze”. (J. G.).
90
O autor se refere certamente aos preconceitos de ordem extra-científica, por exemplo
os morais, religiosos ou sociais ou mesmo filosóficos, no sentido restrito e que sempre
concorreram para retardar o progresso científico. Não esquecer, porém, que as ciências
ou qualquer outra modalidade de conhecimento têm na sua base um certo número e
pressupostos que lhes servem de ponto de partida (J. G.).
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ANTONIO GRAMSCI
instrumento útil para seu trabalho, sob o pretexto de que a lógica ou
a epistemologia… ou a tradição científica lho proibe!
91
.
O cientista poderá sempre, aliás, para acalmar seus escrúpulos,
formular depois, sob forma causal, as coordenações de que o
método funcional lhe permita a descoberta. Em vez de dizer que
o jogo tem por função desenvolver a criança, poderá dizer que o
jogo tem como efeito desenvolver a criança. Em lugar de dizer que
os pulmões têm por função oxigenar o sangue, dirá que os pulmões
têm como efeito oxigenar. Em vez de dizer que os olhos têm por
função ver, dirá que a visão é um efeito da estrutura dos olhos... E
em lugar de dizer que o pensamento tem por função preparar ou
controlar a conduta, dirá que esse preparo e esse controle não são
mais que efeitos do pensamento.
Certo, no plano estrutural, como no do mecanismo, essa lin-
guagem é a única adequada. Como é que o jogo desenvolve a
criança, como produz esse efeito? Como é que os pulmões captam
o oxigênio para fazê-lo passar ao sangue, como obtêm esse efeito?
Como é que os olhos produzem a visão, como obtêm esse efeito?
Que faz o pensamento para controlar a ação, como consegue esse
efeito?... Estamos aqui no domínio do como, onde não se poderia,
por certo, falar senão de causas e efeitos.
Mesmo, porém, no plano da estrutura, falar somente de
“efeitos” não é fecundo, porque essa fórmula dissimula um pro-
blema capital, conquanto seja, também, problema estrutural. Esse
problema é o seguinte: como foi adquirida essa estrutura, graças à
qual os efeitos produzidos são úteis à vida do organismo que a possui?
91
Nestes últimos anos, numerosas discussões têm sido travadas, sobretudo na Alema-
nha, entre os partidários da verstehende psychologie e os da erklärende psychologie,
discussões que, entre outras, deram matéria a algumas sessões do Congresso Interna-
cional de Psicologia de Groninga, em 1926. Essas discussões teóricas, por mais interes-
santes que possam ser, são, a meu ver, estéreis. O meio único de justificar esta ou
aquela concepção é mostrar que, de fato, tem produzido resultados úteis (*), tem suge-
rido pesquisas fecundas. Andar é a melhor maneira de demonstrar movimento.
(*) Não tomar utilidade na acepção exclusivamente prática. (J. G.).
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COLEÇÃO EDUCADORES
Um organismo é uma máquina, isto é, uma reunião de peças que
concorrem para um fim único, a manutenção do próprio equilíbrio.
Muito bem: como se constituiu esse conjunto, como foi fabricada essa
máquina, em virtude de que série de acontecimentos, de determina-
ções se constituiu esse arranjo que produz efeitos tão úteis à própria
conservação?
Que expliquemos por acasos felizes, escolhidos e conservados
pela seleção natural ou que apelemos para “enteléquias”
92
– embora
seja um problema de estrutura, a linguagem estrutural não permite
percebê-lo. Com relação a ele, a atitude estrutural é cega; para
apreendê-lo, é necessário que ela recorra aos olhos ao ponto de
vista – da atitude funcional.
Aqui temos, pois, uma nova utilidade do método funcional:
propor os problemas de gênese. Esses problemas não existem
para quem não encara um organismo como unidade funcional.
Sem a visão dessa unidade, os fenômenos que ocorrem num or-
ganismo seriam simplesmente fenômenos que se sucedem, que se
transformam uns aos outros, que se seguem; mas já se não falaria
de gênese. Assim, não falamos de gênese do vapor quando um bloco
de gelo se derrete ao sol, pois a água assim produzida se evapora.
Não há problemas de gênese para os corpos inorgânicos, ainda
que passem por modificações; estas, porém, não parecem sujeitas
a um plano que lhes reja a natureza, a sucessão, a harmonia.
Essa atitude funcional se impõe, aliás, a tal ponto a quantos se
preocupam com o comportamento do organismo, que se lhes
revela na linguagem, ainda que, teoricamente, professem estrito
mecanismo. Basta fazer duas ou três citações.
92
Enteléquia, termo criado por Aristóteles. “… um daqueles magníficos termos de Aristóteles
em que se contém toda uma filosofia”. (Will Durant, História da filosofia, trad. port. de
Godofredo Rangel e Monteiro Lobato, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935, p.
98). É o estado do ser em ato, plenamente realizado. V. Charles Lalo, Aristote, Mellottiée,
Paris, s/d. O termo foi depois retomado por Leibniz e aplicado às mônadas criadas, que
têm em si certa perfeição. V. Lalande, Vocabulaire..., op. cit., e Goblot. Le Vocabulaire
philosophique. 4. ed. Paris: Colin, 1917. (Nota do tradutor).
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78
ANTONIO GRAMSCI
Encontraríamos na obra de Ribot, que professava, sem dúvida,
a filosofia mais positiva que se possa imaginar, numerosos exem-
plos dessa atitude funcional. Um apenas, ao acaso: “O raciocínio
de justificação é nitidamente teleológico… O raciocínio de conso-
lação visa sempre ao mesmo fim e consiste na valorização de
estados passados ou futuros próprios a compensar o presente”
93
.
E Sherrington, o eminente fisiologista inglês, fala do “objetivo
de um reflexo” (purpose of a reflex), e escreve: “Não podemos deixar
de reconhecer que não tiramos proveito algum do estudo de um
tipo particular de reflexo, até que possamos discutir-lhe o fim ime-
diato como ato adaptado (its immediate purpose as an adapted act)”
94
.
Henry Head, o grande neurologista londrino, considera a adap-
tação a um fim (purposive adaptation) não só como característica da
atividade mental, mas como fator que “se encontra essencialmente,
em graus diversos, em todas as reações, conscientes ou não, de
todas as partes do sistema nervoso central”
95
.
Acrescentamos que certos autores, mecanicistas convictos,
empregam frequentemente certos termos que só têm sentido do
ponto de vista funcional. Só um exemplo, o emprego da palavra
controlar. “O estímulo controla a reação”, lê-se a cada passo. Ou
então: “O cérebro controla a atividade da medula espinhal”
96
. Con-
trolar quer dizer vigiar, corrigir. Mas corrigir quê? Corrigir o mo-
vimento que se afaste do fim a atingir, da adaptação desejável.
Essas poucas citações bastam para mostrar que, de fato, o
ponto de vista funcional é praticamente útil ao cientista, pelo me-
nos a certos cientistas, que não podem trabalhar cômodamente
93
Ribot, Logique des sentiments, pp. 110-115.
94
Sherrington, Ch.. The integrative action of the nervous system. London: [s.n.], 1906. p.
238.
95
Head, H. The conception of nervous and mental energy. In: Internat. Congress of
Psychol, 7. Oxford, 1923. Proceedings.... Oxford: [s.n.], 1923. p. 175.
96
Cf., por exemplo, Lapieque, L. Os centros superiores, segundo o eixo vertical, contro-
lam a parte do sistema nervoso situada mais abaixo. Nouv. Traité de psychologie. Paris,
n. 1, p. 201, 1930.
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COLEÇÃO EDUCADORES
sem adotá-lo uma vez por outra. E o que basta para considerar
legítimo esse ponto de vista. Ainda uma vez: em ciência não deve
haver tabus desarrazoados; a fecundidade e a comodidade são os
únicos critérios da validade de um princípio ou de um método.
Está claro que a adoção do ponto de vista funcional não en-
volve absolutamente adesão ao finalismo como princípio de ex-
plicação última. Mesmo porque as explicações finalistas não são
explicações (se, por explicação, se entende a redução do processus a
um modelo mecânico): limitam-se a consignar nossa ignorância.
Como quer que seja, o ponto de vista funcional permite estabelecer
leis, que exprimem relações constantes existentes entre certas con-
dutas, e certas situações. Essas leis permitem deduções, aplicações:
são, pois, praticamente úteis.
As grandes leis da conduta
Findas essas discussões metodológicas, voltemos à psicologia
e procuremos formular as grandes leis que regem a conduta, con-
siderada do ponto de vista funcional.
A psicologia clássica, que se dedicou ao estudo introspectivo
do pensamento, dando importância à forma por que se desenro-
lam os fenômenos de consciência, quase não se preocupou com as
molas que moviam esse pensamento, graças às quais também se
“desenrolavam” esses fenômenos de consciência. Ignorava, de
modo geral, as molas da conduta. A vida mental era, pois, para
ela, algo que pairava nas nuvens e de que não se percebiam bem os
laços que a prendiam à vida terrestre, à vida do corpo, a qual, no
entanto, lhe dava a base.
Fazendo da vida mental um instrumento da vida do organismo,
a psicologia funcional obvia a essa falha.
Para compreender a significação da vida mental e de seus vários
processos, é mister, pois, começar por indagar que é a vida ou,
antes, que é um organismo vivo.
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ANTONIO GRAMSCI
Todo organismo vivo é um sistema que tende a conservar-se intacto. Desde que
se lhe rompa o equilíbrio interior (físico químico), desde que comece a desagregar-se,
efetua os atos necessários à própria reconstrução. É o que os biologistas cha-
mam de autorregulação. Se essa autorregulação não se pode realizar,
o organismo perece. Pode-se, pois, definir a vida como o perpétuo
reajustamento de um equilíbrio perpetuamente rompido. Toda rea-
ção, todo comportamento, tem sempre por função a manutenção, a
preservação ou a restauração da integridade do organismo
97
.
A ruptura do equilíbrio de um organismo é o que chamamos
uma “necessidade”. Se o organismo tem falta de água, dizemos que
tem necessidade de água. Mas essa necessidade tem a propriedade
de provocar as reações próprias a satisfazê-la. Assim, o organismo
que tem falta de água começará a mover-se, a procurar, até achar a
água necessária ao restabelecimento de seu equilíbrio vital.
Lei da necessidade
Podemos enunciar sob forma de lei essa coordenação funda-
mental entre a necessidade e as reações adaptadas à sua satisfação:
Toda necessidade tende a provocar as reações próprias a satisfazê-la. Seu
corolário é: A atividade é sempre suscitada por uma necessidade.
Digo “tende a provocar” e, não, “provoca” porque, em certos
casos, essas reações são impedidas por diversas circunstâncias (como,
por exemplo, a presença de outra necessidade interferente).
Essa lei da necessidade, é ocioso dizê-lo, já foi observada por
diversos autores. Assim, o fisiologista Pflüger escrevia em 1877:
97
Posta em evidência por Cl. Bernard (1878), essa autorregulação é ainda, quanto ao
mecanismo, um enigma. Houve quem quisesse considerá-la como caso particular da Lei
de Le Chatelier (1885), que rege certos sistemas físicos e químicos simples: “A modifi-
cação produzida em um sistema de corpos em estado de equilíbrio pela variação de um
dos fatores do equilíbrio é de natureza tal que tende a opor-se à variação que a determi-
na”. Nos sistemas biológicos, porém, as coisas parecem mais complexas, como o
demonstrou, entre outros, o fisiologista W. B. Cannon (Organization for physislogical
homeostasis, Physiol. Review, julho de 1929), que denomina homeostase o conjunto de
reações fisiológicas coordenadas a manter constante o estado interior de um organismo.
Cf. também Humphrey, G., Psycbol. Forschung, n. 12, p. 123 e 365, 1930.
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A causa de toda necessidade de um ser vivo é, ao mesmo tempo,
a causa da satisfação dessa necessidade”. E o biologista Nägeli: “A
necessidade age como excitante”.
A questão da necessidade tem sido muito descuidada pela psi-
cologia. A importância desse fenômeno foi obscurecida, ao que
parece, pela importância que se atribuiu ao excitante. É a excitação
que produz a reação: tal o dogma que dominou e ainda domina a
ciência da conduta. É mister, porém, pôr os pontos nos ii. Esse
dogma só corresponde a uma realidade quando damos precisão
às coisas. É o que vamos fazer, em duas palavras.
Partamos da observação. Que nos mostra ela? As três ordens
de fatos seguintes:
1.º) Atos expontâneos, que aparecem sem qualquer excitante, pelo
menos sem excitante externo, sem objeto exterior. Assim, um
animal deitado, que de repente se levanta para ir comer. Ou
um trabalhador que deixa o trabalho para ir “tomar ar” um
instante. Diz-se, então, que o ato foi produzido por uma ne-
cessidade. E o excitante externo é tão pouco presente na ocasião
do aparecimento da necessidade; que o indivíduo é obrigado
a ir procurá-lo. O cão procura uma fonte onde possa beber, o
trabalhador fatigado procura o ar e o movimento.
2.°) Atos que surgem, ao contrário, em virtude da presença de
um excitante externo e na ausência de qualquer necessidade apa-
rente. Assim, alguém que não tenha sede alguma beberá, en-
tretanto, o chá ou o vinho do Porto que se lhe ofereça. Ou o
ouvinte de uma conferência, que de modo algum pensava em
rir, terá um desejo louco de soltar uma gargalhada se vir de
repente um cão entrar na sala e postar-se em frente da tribuna.
Uma senhora que não pensava em comprar um chapéu, sente
de repente o maior desejo de fazê-lo ao ver as vitrinas de uma
casa de modas, e entra... Caberá dizer, então, que foi o excitante
externo que suscitou a reação? Sim e não.
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Para bem compreender a parte do excitante no determinismo
de atos desse gênero é necessário considerar os fatos do 3.° grupo:
3.°) Estímulos externos que não produzem reação alguma.
Recusareis o chá que vos oferecem se já houverdes tomado
várias xícaras. Os melhores alimentos vos deixarão indiferen-
tes se já estiverdes satisfeitos. A vitrina de chapéus não atrairá a
dama elegante, se ontem ela já comprou um chapéu mais bo-
nito do que aqueles que está vendo hoje.
Comparemos os casos dos grupos 2 e 3. Se a mesma causa
nem sempre tem os mesmos efeitos, se o mesmo excitante pro-
voca ou não provoca reações segundo as ocasiões, isso quer dizer
que o excitante, por si só, não basta para suscitar a reação. É-lhe
necessária, ainda, a cumplicidade (se assim me posso exprimir) do
próprio organismo: é preciso que este sinta de qualquer modo, a
necessidade de reagir a esse excitante.
É verdade que os fatos do grupo 2 parecem indicar seja o exci-
tante que determina por si só a reação. Os fatos do grupo 3 mos-
tram, porém, que não é assim e que, ao contrário, a necessidade é
indispensável para sensibilizar o organismo com relação a um exci-
tante. Para que haja excitação, para que haja receptividade ao estímulo,
é necessário, realmente, que exista, no momento, uma disposição a
ser perturbada por esse estímulo. Nem todo objeto externo é, pois,
um excitante: só passa à dignidade de excitante quando em relação
com as necessidades gerais ou momentâneas do indivíduo. Se um
objeto é completamente estranho a esse sistema de necessidades,
não excita, porque não é, então, um “excitante”.
É assim que, para a dama elegante, as vitrinas das livrarias científicas
não serão um excitante: não as verá. Num passeio, o botânico notará
plantas que passarão despercebidas ao geólogo etc. (O educador deve
considerar que um objeto pôsto sob os olhos do aluno não é
necessàriamente percebido por ele e que certas condições são neces-
sárias para que esse objeto se torne, para a criança, um “excitante”).
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COLEÇÃO EDUCADORES
Podemos chamar de “necessidade latente” esse fator x que
falta nos casos n.° 3 e que sensibiliza o organismo com relação a
certos objetos, como nos fatos n.° 2. Se o camundongo é um
excitante para o gato e não para o carneiro, é que existe no gato
uma necessidade latente relativa ao camundongo. Se uma boneca
mobiliza a atividade de uma menina, e não a de sua mãe, é que há
na menina uma necessidade latente relativa a esse objeto, necessi-
dade que já não existe na mãe da menina.
Embora pareça nos fatos do grupo 1, ser a necessidade que
dirige toda a situação e que, no grupo 2. ao contrário, seja o excitante
que o faça, vemos que, na realidade, o concurso de ambos é indispensá-
vel à realização do ato adaptado que satisfará o desejo. Não é senão
por intermédio de uma necessidade que o excitante provoca a reação.
Esta última verificação é útil para explicar outro fenômeno: a
ausência completa de paralelismo entre a intensidade do excitante
e a da reação. Todos sabemos que breves palavras de um telegrama
podem suscitar em nós reações múltiplas, uma conduta complica-
da, viagem etc. Está claro que não é a intensidade da excitação de
nossa retina pelos sinais do telegrama que explicará a intensidade
de nossa reação. Mas, então, se a energia necessária para executar o
ato não provém da energia da excitação, donde provém? Eviden-
temente, de nós mesmos, isto é, da necessidade de reagir. A neces-
sidade é que é o motor de nossa conduta.
Com efeito, toda necessidade ainda não satisfeita provoca em
nós uma espécie de tensão, tensão fisiológica que, muita vez tam-
bém, é sentida interiormente como tensão afetiva. Propusemo-nos,
por exemplo, um problema que não conseguimos resolver. Isso nos
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ANTONIO GRAMSCI
preocupa; e, ainda além dos momentos em que lhe consagramos o
pensamento, nos “inquieta”, produzindo em nós um mal-estar
98
.
Se considerarmos, entretanto, os diversos casos de reação ou
de conduta atrás referidos, em relação à manutenção do equilíbrio
interior do organismo, seremos levados a estabelecer entre eles
uma importante distinção.
Ora a conduta tem por função restabelecer o equilíbrio rompido
(é o caso do comer e do beber, das reações diversas em casos de
asfixia etc.); ora, ao contrário, a conduta visa a proteger o equilíbrio
orgânico, antes que se rompa (quando, por exemplo, fujo de um pe-
rigo, quando toco uma vespa antes que me dê uma picada etc.).
Como explicar este último caso, se, como já ficou dito, é a
ruptura de equilíbrio o móvel de toda a atividade?
Os mecanismos reguladores da conduta, sobretudo no homem
e nos animais superiores, são infinitamente complicados. Podemos,
contudo, perceber-lhes a economia geral.
O sistema das necessidades é, se assim podemos dizer, de grau
duplo.
A ruptura de equilíbrio é, sem dúvida, o móvel primitivo, Essa
ruptura de equilíbrio constitui, porém, tal perigo para o organismo
que este se cercou de mecanismos protetores destinados a preve-
ni-la. Esses mecanismos desempenham o papel de sinalizadores,
em estreita relação com o ambiente. Assim, o organismo reage
antes que seu equilíbrio fundamental seja realmente rompido. O
que se rompeu foi somente o equilíbrio do aparelho de sinalização
e proteção. Exatamente como um corpo de guarda alarmado in-
tervém e reage antes que o inimigo penetre na fortaleza. Exata-
mente como uma campainha ou um apito se põem a trabalhar
98
Esses estados de tensão psíquica vêm sendo, de alguns anos a esta parte, objeto de
estudo experimental do mais alto interesse, por Kurt Lewin e seus discípulos. Ver especi-
almente, desse autor, Untersuchungen z. Handlung und affekt-psychologie, Psychol.
Forschung, v. VII, 1926, e volumes seguintes. Um resumo dos primeiros trabalhos de
Lewin foi publicado por J. F. Brown, J. F. The methode of K. Lewin, in the psychology of
action and affection. Psychol. Review, p. 200, 1929.
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COLEÇÃO EDUCADORES
(equilíbrio rompido) antes que se dê a explosão da caldeira que
esses aparelhos devem proteger, antes que se tenha rompido o
equilíbrio da própria caldeira.
No decorrer das idades ou no decorrer da vida individual é que
se foram estabelecendo esses mecanismos protetores, graças às as-
sociações entre certos excitantes que ameaçavam a integridade do
organismo e as reações de defesa próprias para afastá-los, antes que
chegassem realmente a prejudicá-lo. Assim, a gazela fugirá do leão:
ver o leão será o sinal que provocará a reação da fuga, embora a
excitação da retina de uma gazela pela imagem óptica de um leão
nada tenha, em si, de perigoso. Do mesmo modo enxotamos uma
vespa antes que nos tenha picado. E o que se vem chamando, desde
os trabalhos de Pavlov, de “condicionamento” das reações.
Notemos que toda a atividade mental nada mais é do que um
desses mecanismos de proteção e, poder-se-ia dizer, o mecanis-
mo protetor por excelência, por isso que a atividade mental é,
antes de mais nada, uma atividade de previsão e a proteção envolve
previsão. Essa antecipação das reações ao perigo é de tal importância
na vida animal que a formularemos, adiante, como lei fundamental
da conduta
99
.
Ora, esses mecanismos protetores, a vida psíquica principal-
mente, têm seu equilíbrio próprio, que pode ser rompido sem que se
rompa o da própria vida orgânica. Esses sistemas protetores, com
suas necessidades próprias, têm, pois, vida relativamente indepen-
dente. A vida intelectual, com suas curiosidades, com suas con-
quistas científicas; a vida social, com suas competições e suas vai-
dades, não têm, o mais das vezes, relações imediatas com as
99
Reações condicionadas são produzidas não só pelos objetos capazes de ameaçar o
equilíbrio, como também por aqueles adequados a assegurar-lhe a manutenção. É previ-
são elevada à segunda potência! É assim que certos animais (inclusive o homem)
acumulam de antemão o alimento de que terão necessidade mais tarde; é assim que o
cientista constrói de antemão a ciência. A essa categoria pertencem todos os comporta-
mento relativos à conservação da espécie.
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ANTONIO GRAMSCI
necessidades atuais da vida vegetativa. Essa independência nunca
é, porém, completa; desde que a vida vegetativa corre perigo, todas
as necessidades intelectuais e sociais são subitamente bloqueadas:
quando irrompe de repente o fogo num cinema, cessa o interesse
pela sequência do filme repentinamente interrompido e acontece
que senhores, de ordinário bem educados, se esquecem de deixar
que as senhoras saiam primeiro... Ou, então, a inteligência é posta
imediatamente a serviço das necessidades do salvamento
100
.
Pode-se, portanto, concluir que a excitação está sempre, afinal
de contas, sob o controle da necessidade.
Este último fato se evidencia quando consideramos o indivíduo
no decorrer de seu desenvolvimento. Em cada idade, ele está “sen-
sibilizado” para objetos diferentes: é que suas necessidades, especi-
almente as mentais, vão mudando à proporção que ele vai progre-
dindo. Aí está o fundamento da evolução dos interesses no decorrer da
infância e da adolescência.
Não caberia considerar o crescimento como causa constante de
ruptura do equilíbrio orgânico e psíquico, como causa de necessida-
des especiais? A criança que cresce tem necessidade, além dos alimen-
tos destinados a refazê-la das perdas acarretadas pela atividade da
máquina humana, de uma “ração de crescimento”, isto é, de um su-
plemento de alimentação indispensável ao aumento de seu corpo. E
tem, também, necessidade de uma ração psicológica de crescimento: vemos
com efeito, que a criança, longe de contentar-se com o conhecimento
que seria suficiente à satisfação de suas necessidades do momento,
deseja, ao contrário, saber sempre mais, pergunta, experimenta, mani-
100
Há, entretanto, casos em que a vida psíquica se emancipou, completamente, das
necessidades vegetativas do organismo. Assim, no heroismo, o herói sacrifica a vida a um
ideal e, pois, a uma necessidade elaborada unicamente por esses mecanismos de “segun-
do grau”, necessidade contrária à de integridade orgânica, a qual é, geralmente, o fim último
a que o indivíduo visa. O mesmo se dá em certos casos de suicídio. Essas exceções, nas
quais parece que o indivíduo vai além de si mesmo, em busca de um fim mais elevado que
a manutenção da própria existência, propõem à psicologia biológica um árduo problema.
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COLEÇÃO EDUCADORES
pula, mexe em tudo, ultrapassando constantemente o limite das neces-
sidades imediatas, elevando-se, a cada passo, acima de si mesma...
101
.
Sente, como imperiosa necessidade, o desenvolvimento, a extensão
do seu eu. (Essa “necessidade de crescimento”, que se manifesta psico-
logicamente pelo desejo de saber e de experimentar – que precioso
auxiliar não é para o educador que não a desconhece!)
Quando uma necessidade é satisfeita, desaparece, deixa de ser
causa de atividade. Mas, então – e isso é verdadeiro, sobretudo, no
domínio psicológico – essa necessidade é logo substituída por outra.
A dinâmica das necessidades é, aliás, complicada. Verificamos que
certas necessidades só podem ser satisfeitas por intermédio de ou-
tras necessidades. Assim, a sede, a necessidade de beber, trará a ne-
cessidade de um sacarrolhas se a garrafa com o liquido desejado
estiver fechada. A necessidade do sacarrolhas pode ser chamada de
necessidade derivada, com relação à sede, que seria a necessidade primária.
Uma necessidade derivada pode, aliás, por sua vez, gerar nova ne-
cessidade derivada. A necessidade do sacarrolhas pode suscitar a
necessidade de encontrar a chave do armário onde está o sacarrolhas.
A necessidade da chave, a necessidade de saber onde se encontra, na
ocasião, a pessoa que a tem no bolso, e assim por diante.
E o que cabe observar é que todas essas necessidades derivadas
são determinadas pela necessidade primária, da qual representam
o papel de “meios”.
Uma necessidade primária, com as suas derivadas, forma um
vasto sistema de encaixe. Cada necessidade derivada só tem como
razão de ser a satisfação da necessidade precedente. Desejo ver um
amigo (necessidade primária, 1); mas como esse amigo está em
Berlim, tenho necessidade de ir a Berlim. 2) Para ir a Berlim tenho
101
Cf. Claparède, E. Le sentiment d’infériorité chez l’enfant. Revue de Genève, jun. 1930. (*).
(*) V., com o mesmo título, uma conferência de Claparède, reproduzida no vol. 24 desta
coleção; MeloTeixeira, J. et al. Aspectos fundamentais da educação. São Paulo: [s.n.],
1937. p. 157-87. V. também a revista Escola Nova. São Paulo, v. 1, pp. 286-290, 1930.
(Nota do tradutor).
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necessidade de um guia de estradas de ferro. 3) Para consultar esse
guia, tenho necessidade de meus óculos. 4) Depois, tenho necessidade
de arrumar as malas. 5) Etc. etc. Poder-se-ia esquematizar esse encai-
xe (que se pode prolongar ao infinito) pela seguinte figura:
1) Ver meu amigo
2) Ir a Berlim
3 5
Vemos as necessidades derivadas sucederem-se como as ondas
de um lago: uma desaparece e é substituída por outra. Poder-se-ia
definir um indivíduo que realiza uma atividade, como uma “má-
quina a transformar-se à medida da necessidade, das necessidades
do momento”
102
. Se fizermos, com efeito, certo número de cortes
na ação continua de tomar um bonde por exemplo, teremos pri-
meiramente uma “máquina-de-esperar-olhando”; logo depois uma
“máquina-de-subir-para-o-bonde”; em seguida, uma “máquina-
de-sentar”; depois, uma “máquina-de-pagar-passagem”; etc. A
mola de cada uma dessas condutas é uma necessidade derivada,
posta em ação por uma necessidade primária mais geral.
Em tudo que foi dito até o presente, não empreguei a palavra
tendência; a tendência corresponde, praticamente, à necessidade. A
tendência é o movimento que “tende” a provocar uma necessidade,
é o aspecto mais especialmente dinâmico da necessidade. (Para
Ribot, era um movimento ou parada de movimento, no estado
nascente). Esses termos podem ser, o mais das vezes, usados um
pelo outro: a tendência a jogar é a mesma coisa que a necessidade
de jogar. Um fox-trot provoca a necessidade de dançar ou ten-
dência a dançar? O pássaro que constrói o ninho manifesta ten-
dência a juntar palhinhas ou necessidade de juntar…?
O termo tendência se aplica, sobretudo, ao caso do condicionamento
das reações. Dir-se-á que o antílope tem, antes, tendência a fugir do
102
Claparède, E. Point de vue physico-chimique et point de vue psychologique. Scientia,
p. 256, 1912.
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leão do que necessidade de fazê-lo. É preciso não esquecer, porém,
que a tendência depende das necessidades, o que é bem claro no do-
mínio sexual: conforme a época, em um animal, a tendência sexual é
ativada ou permanece, ao contrário, insuscetível de ativação. A ten-
dência parece, pois, subordinada à necessidade.
Lei da extensão da vida mental
A lei da necessidade é uma lei biológica; não é, propriamente,
uma lei psicológica. Com efeito, a necessidade pode satisfazer-se
sem que intervenha a atividade mental: a necessidade respiratória,
por exemplo, e todas as necessidades intraorgânicas que provocam,
automàticamente e sem que o percebamos, uma multidão de me-
canismos reguladores da temperatura do corpo, da digestão, das
secreções externas e internas, o que tudo concorre para a manu-
tenção do equilíbrio necessário à vida.
Mas, então, em que interessa ao psicólogo a lei da necessidade?
E por que, se tantas necessidades se satisfazem automática e in-
conscientemente, outras há que mobilizam a atividade mental?
É que, como se sabe, entre esses vários meios de regulação do
equilíbrio vital, alguns há que implicam agentes que só podem ser
obtidos por certas atividades do organismo em seu conjunto, isto
é, por uma certa conduta. Assim, a procura do alimento.
Essa verificação nos permite perceber um novo aspecto da
significação da vida mental. A vida mental, a conduta, tem por fun-
ção remediar a insuficiência de adaptação natural do organismo.
Quando um organismo é construído de forma a poder encon-
trar, no lugar em que está, sem precisar mexer-se – como um
pólipo ou uma esponja – tudo que é necessário à sua subsistên-
cia, não há, absolutamente, necessidade de conduta nem de vida
mental. Assim, não temos necessidade de atividade mental para
respirar, porque o ar nos envolve e está sempre à disposição. Ao
contrário, a respiração suscita atividade mental quando a necessi-
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dade de ar não se pode satisfazer automàticamente: a atividade
mental entrará em ação, procurando inventar um sino de mergu-
lhador quando, por exemplo, se trata de trabalhar na água, onde
não existe ar que o homem possa respirar; ou imaginará máscaras
contra gases asfixiantes etc.
Estes últimos fatos nos levam a uma nova lei – a “lei da exten-
são da vida mental”. O desenvolvimento da vida mental é proporcional à
diferença existente entre as necessidades e os meios de satisfazê-las.
Se a diferença é nula (respiração, reflexos pupilares, tosse, es-
pirro, secreções etc.), nenhuma atividade mental. Se é muito gran-
de (fome, que suscita a invenção de todos os instrumentos de caça
e de pesca, dos necessários à agricultura etc. etc.), atividade mental
muito extensa.
Lei da tomada de consciência
A lei precedente tem como corolário o que chamei de lei da
tomada de consciência. O indivíduo toma consciência de um pro-
cesso, de uma relação ou de um objeto tanto mais tarde quanto
mais cedo e por mais tempo sua conduta envolveu o uso automá-
tico, inconsciente, desse processo, dessa relação ou desse objeto
103
.
Vejamos alguns exemplos. Se indagardes de uma criança as
diferenças ou semelhanças entre objetos (Que semelhança existe
entre um coelho e uma mosca?), verificareis que, antes dos seis ou
sete anos, ela terá muita dificuldade em indicar as semelhanças, ao
passo que fàcilmente indicará as diferenças. Às vezes, parece até
não compreender a própria noção de semelhança, enquanto que a
diferença lhe é, de há muito, familiar. Parece paradoxal esse fato,
porque vemos, ao contrário, que a criança tem tendência a tratar
de maneira idêntica (logo, como se se assemelhassem) objetos na
103
V. meu artigo La conscience de la ressemblance et de la différence chez l’enfant, Arch.
de Psychol., XVII, 1918.
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realidade muito diferentes. Conheci uma criança de 18 meses que,
possuindo um livro de figuras onde havia um galo, chamava de
coca todas as outras aves e todos os outros livros
104
. Parecia, pois,
perceber entre esses objetos tão diversos uma semelhança que es-
capava aos adultos, pois os agrupava a todos sob o mesmo termo.
É que, em virtude de outra lei (lei da reprodução do seme-
lhante) que adiante veremos, a criança trata instintivamente de
maneira idêntica tudo quanto para ela corresponde à mesma ne-
cessidade. Logo, porém, esse automatismo encontra dificulda-
des: a realidade não se dobra a essa forma rudimentar de agir
para com ela. O indivíduo sente um choque, não atinge o fim
que tinha em vista e toma, então, consciência da diferença entre
as coisas. Não é senão mais tarde, quando tiver tratado diferen-
temente objetos que deveriam ser tratados de modo semelhante,
que virá a tomar consciência de sua semelhança. Outro exemplo:
a criancinha se conduz, certamente, como uma pequena perso-
nalidade que possui um eu muito manifesto, um eu que deseja, que
se defende, que procura de todo jeito afirmar sua existência.
Entretanto, a “consciência de si mesmo” só aparece mais tarde,
quando já não basta, para essa afirmação a simples atividade
reflexa. Bernfeld supõe que é na ablactação, crise que assinala o
instante em que a criança deixa de ser dependente, que surge a
consciência do eu
105
.
104
Essas imagens de caráter geral, que se formam devido à falta de discriminação das
diferenças, recebem em psicologia o nome de “imagens genéricas”. Embora possua um
caráter geral, a imagem genérica não deve ser confundida com a “representação ou
imagem geral”. Foram descritas pelos estudiosos do psiquismo da criança (Preyer, Peres
etc.) e dos animais (Romanes). Uma criança, por exemplo, antes de diferenciar, no
domínio das sensações térmicas, o quente do frio, frequentemente define todos os
excitantes térmicos como frios ou como quentes. Recebendo pela primeira vez um
sorvete, declara que é quente e sopra para diminuir o excesso da sensação térmica não
discriminada” (Radecki, Trat. de Psych., p. 81). (J. G.).
105
Bernfeld. Psychologie des Säuglings. Viena : [s.n.], 1925.
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J. Piaget deu vários exemplos desta lei de tomada de consciência,
extraídos à psicologia da lógica infantil. Assim, uma criança é inca-
paz de definir uma palavra que conhece muito bem; ela “pratica”,
“vive sua definição muito antes de ter tomado consciência dessa
definição”
106
.
É clara a função da tomada de consciência: permitir uma adap-
tação que seria impossível sem a presença da consciência. Vamos
indo por um caminho sem pensar em nossos passos nem no cami-
nho. Eis, porém, que a estrada está meio impedida por trabalhos de
canalização. Nesse momento, tomamos consciência da estrada, do
lugar em que devemos pôr os pés para não cair no buraco. Prestamos
atenção, tornamos cons cientes fenômenos que não o eram.
Mas, se é clara a função dessa tomada de consciência, dessa
“mentalização”, a maneira por que a consciência trabalha e o me-
canismo de sua atividade são completamente obscuros. Agirá a
consciência como tal, como agente consciente ou será a mentalização
apenas o concomitante psíquico de um mecanismo fisiológico especial,
por exemplo, uma “corticalização” dos ajustamentos motores? E
questão que não vamos abordar aqui
107
.
A lei da tomada de consciência tem como oposta a lei da
perda de consciência. À proporção que um ato se automatiza,
torna-se inconsciente. A inconsciência progressiva dos atos habitu-
ais é uma ilustração banal desta lei.
É sabido que Le Bon disse que “toda educação deve consistir
na arte de fazer passar o consciente para o inconsciente”. É isso
mesmo: o ideal seria, de fato, que pudéssemos “viver” todos os
106
Piaget, J. Le jugement et le raisonnement chez l’enfant. Paris: Neuchâtel, [s.d.]. p. 78
e segs.
107
Cf. meu artigo La mentalisation, Polskie Archiwum Psychologji, março de 1930. A
consciência se nos apresenta senhora de uma propriedade que falta aos processos físicos:
a propriedade de abranger uma multiplicidade numa unidade, a propriedade de perceber as
relações entre meios e fim, de “levar em conta” todas as circunstâncias presentes, de
abrangê-las numa única visão, a fim de adaptar a elas a reação conveniente.
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nossos conhecimentos e que nossa conduta fosse por eles automá-
tica e imediatamente influenciada, sem que jamais tivéssemos ne-
cessidade de “recordá-los”. Convém não esquecer, porém, que
essa etapa da passagem do consciente para o inconsciente tem
quase sempre como condição indispensável o ter sido precedida
pelo estádio da tomada de consciência, isto é, da passagem do
inconsciente para o consciente. É, por exemplo, tomando consci-
ência de certos erros que comete ao falar que a criança os evitará,
a princípio conscientemente, graças a um ato de atenção voluntá-
ria; e, depois, graças ao hábito de não cometer a incorreção.
Aliás, o papel respectivo do consciente e do inconsciente na
aprendizagem ainda é questão algo obscura, que exigiria estudo.
Sabe-se como é difícil, nas experiências de aprendizagem de um
labirinto ou do um puzzle mecânico qualquer, distinguir o que cabe
ao consciente e ao inconsciente.
Lei da antecipação
Temos agora a questão de saber em que momento a necessidade
aparece. Para responder a essa questão é mister nos reportarmos à
distinção, feita anteriormente, entre as necessidades que encontram
no ambiente imediato um recurso de satisfação (como a respira-
ção) e aquelas que não estão nesse caso e necessitam, ao contrário,
de uma pesquisa que exige, por vezes, muito tempo. Ora, é evi-
dente que neste último caso a necessidade se manifesta, de certo
modo, de antemão, isto é, antes que a vida esteja realmente em
perigo. A necessidade não indica ainda um desequilíbrio manifesto
e, sim, apenas um começo de desequilíbrio.
Por outro lado, vimos também que todos os mecanismos pro-
tetores do equilíbrio orgânico tinham como função preservar esse
equilíbrio e deviam, pois, entrar em jogo antecipadamente.
Essa antecipação da reação protetora ou adaptativa tem gran-
de inportância para a conduta: e é tão geral que dela podemos
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fazer uma lei: Toda necessidade que, por sua natureza, corre o risco de não
poder ser imediatamente satisfeita, aparece com antecedência (isto é, antes
que a vida esteja em perigo).
É assim que a fome aparece muito antes do momento em que
estaríamos a ponto de morrer de inanição. Certos jejuadores podem
permanecer três a quatro semanas sem comer. Poderíamos dizer
que comemos, geralmente, com quinze ou vinte dias de antece-
dência! Explica-se perfeitamente a razão de ser da margem entre a
aparição de uma necessidade e o momento em que a desordem
orgânica que essa necessidade manifesta é verdadeiramente peri-
gosa para a vida. Se as necessidades cuja satisfação exige pesquisa
surgissem no último momento, o indivíduo estaria irremediavel-
mente perdido, desde que não pudesse encontrar, no mesmo ins-
tante, os objetos necessários ao restabelecimento do equilíbrio or-
gânico. Vemos, pois, que essa antecipação com referência à neces-
sidade real tem grande valor funcional.
Convém, entretanto, notar que as necessidades que não podem
ser imediatamente satisfeitas são, ao mesmo tempo, as que, de or-
dinário, fazem intervir a vida mental. Poder-se-ia, pois, acrescentar
à lei da antecipação o corolário seguinte: toda necessidade cuja
satisfação exige a intervenção da atividade mental (ou que mobiliza
a conduta em seu conjunto) aparece com antecedência. Aliás, sem
essa margem entre o aparecimento da necessidade e a necessidade
real do organismo, a atividade mental seria impossível (porque
não teria onde alojar-se) e não teria nenhuma razão de ser.
É graças a essa margem que a curiosidade e a atividade
intelectual do cientista aparecem como inteiramente desinteressa-
das, sem relação com as necessidades da conduta. Sabe-se que, de
Platão a H. Poincaré, a ciência tem sido considerada como não
visando a nenhum fim prático. Poincaré chegou a dizer: “O co-
nhecimento é que é o fim e a ação é o meio”
108
. Tais declarações
108
Cf. Meyerson, E. De l’ explication dans les sciences, v. 1. Paris: [s.n.], 1921. pp. 33-36.
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COLEÇÃO EDUCADORES
correspondem bem ao sentimento íntimo do cientista, para quem
a verdade objetiva aparece como ideal a atingir. Para o biologista,
porém, esse sentimento repousa numa ilusão, que a lei da antecipação
explica: a necessidade da verdade científica nem sempre decorre
das necessidades mesmas de nossa adaptação presente; é uma ne-
cessidade do que chamei de nosso aparelho protetor. Não pode-
mos compreender a existência desse aparelho protetor, desse apa-
relho de pesquisar a verdade (a menos que nele vejamos um luxo
concedido por Minerva) a não ser atribuindo-lhe a função de pre-
parar sempre melhor a adaptação ao meio
109
.
A observação que acabamos de fazer se aplica, também, à
curiosidade e à atividade da criança porque há grande analogia
entre a criança e o cientista. A curiosidade infantil parece ter, tam-
bém, fim desinteressado, sem relação com as necessidades imedi-
atas da ação. É que corresponde a uma necessidade de crescimento;
e os interesses ditados por essa necessidade antecipam-se ao
momento em que serão diretamente úteis à conduta.
A lei da antecipação está, como se vê, envolvida na lei da ex-
tensão da vida mental, bem como na do interesse momentâneo.
Mas, a lei da antecipação não regerá também reações que –
parece – poderiam realizar-se sem intervenção da vida mental,
poderiam efetuar-se a todo momento, sem depender de nenhuma
pesquisa, como, por exemplo, as necessidades de excreção
109
É verdade que, quase sempre, não é o próprio cientista que tira proveito de seu labor.
Trabalha para a espécie, em detrimento próprio, dispendendo energia nervosa sem lucro
para o próprio organismo. Em obra recente, cuja primeira edição data de 1899 (Les
illusions évolutionnistes, Paris, 1930), André Lalande sustenta a tese de que a evolução
é acompanhada por uma dissolução, por uma involução, que em particular o progresso da
inteligência enfraquece a vida do corpo, que há “relação inversa entre o pensamento e a
vida”. Essa tese poderia, sem dúvida, basear-se no fenômeno da antecipação. A anteci-
pação, condição do progresso intelectual, favorece a dissolução, aumentando a diferen-
ça entre o gasto mental e as necessidades do organismo. Emancipando destas o apare-
lho de pensar, ela conduz o indivíduo a dispender sua energia de maneira desinteressada
e, por consequência, ruinosa para ele mesmo (como o caso de um industrial fabricante de
produtos que não consumisse nem vendesse jamais).
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ANTONIO GRAMSCI
(defecação, micção) e o sono? Podemos, com efeito, em certa
medida, recusar obediência imediata às injunções do intestino ou
da bexiga. A objeção não procede, porém, porque a vida social
mentalizou as necessidades de excreção e, nas circunstâncias em
que hoje vivemos, a satisfação dessas necessidades nem sempre
pode ser imediata. Com o sono, o caso é um pouco diferente.
Poderia ser muito perigoso para o animal cair subitamente ador-
mecido. Aqui ainda, a margem existente entre o momento em que
a necessidade de sono aparece e o momento em que o organismo
está realmente esgotado, é muito útil ao indivíduo para lhe permitir
tome providências a fim de dormir em condições que lhe não
sejam desfavoráveis (escolher um lugar protegido etc.).
Lei do interesse
Temos falado, até aqui, da necessidade. Mas, de fato, o indivíduo,
embora a necessidade seja realmente a mola que o move, visa
sempre a um objeto, a um fim objetivo, e não ao desaparecimento de
uma necessidade. Se nem sempre é assim quando se trata de ne-
cessidades orgânicas, é o caso geral quando se trata dessas necessi-
dades psicológicas que a cada instante mobilizam nossa atividade
mental. Essas necessidades se projetam, de certo modo, no mundo
exterior e aí se transfiguram. Aparecem-nos como objetos a obter.
O homem faminto deseja pão e não o desaparecimento da fome;
o glutão, uma refeição suculenta e não o desaparecimento do ape-
tite (desaparecimento que lamentará quando terminar a refeição).
Uma dor (embora índice de um desequilíbrio orgânico) é para
nós um objeto a afastar e, não, uma necessidade de equilíbrio a
satisfazer. Por outras palavras, nossa conduta tem alcance positivo
e, não, negativo. E movida, psicologicamente falando, não por
uma necessidade, mas por um interesse.
O interesse é o que num dado momento nos importa, é o que
tem um valor de ação, porque corresponde a uma necessidade.
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COLEÇÃO EDUCADORES
Parece-nos interessante atingir o objeto capaz de satisfazer a neces-
sidade, e a ele adaptar a conduta. Podemos, pois, formular uma lei
do interesse, que não é, de certo modo, senão um aspecto mais
geral, e mais psicológico também, da lei da necessidade: Toda con-
duta é ditada por um interesse. Isto é: Toda ação consiste em atingir
o fim que nos importa no momento considerado.
A palavra “interesse” exprime uma relação de conveniência
entre o indivíduo e o objeto que lhe importa num dado momento,
O interesse não é, pois, evidentemente, uma qualidade objetiva das
coisas: as coisas só se tornam interessantes na medida em que se
relacionam com uma necessidade, na medida em que são capazes
de determinar a conduta no sentido que importa ao indivíduo. O
pão só tem interesse quando se tem vontade de comer. E, então, a
vista do pão determina a conduta de maneira adequada.
As coisas se passam como se as reações que importam ao
indivíduo num dado momento fossem dinamogenizadas. O inte-
resse não é um agente misterioso. A cada passo verificamos, ob-
servando um homem ou um animal em atividade, que certas rea-
ções se efetuam e outras não se efetuam. Denominamos “interes-
se” aquilo que põe em atividade certas reações. Essa causa não é
sômente a necessidade; também não é o objeto apenas: é o objeto
em sua relação com a necessidade. A reação efetiva é a resultante da ação
combinada da necessidade com o meio ambiente (excitações ex-
ternas). É a essa síntese causal que damos o nome de “interesse”.
Foi encarando a conduta desse ponto de vista que declarei, no
Congresso Internacional de Psicologia de Roma, em 1905, que
“interesse é o princípio fundamental da atividade mental”
110
. Com
efeito, quando procuramos justificar ou explicar nossa conduta ou
a direção de nosso pensamento num momento dado, chegamos
sempre a um último termo, além do qual não podemos ir; fazemos
isso porque nos interessa.
110
Cf. Atti Del V Congresso int. di Psicologia, Roma 1905, p. 253.
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ANTONIO GRAMSCI
Agir, ter uma conduta, é escolher, a cada passo, entre muitíssimas
reações possíveis.
O móvel dessa escolha contínua é o interesse.
Por que ides à estação? – Para tomar o trem. – Mas por que
quereis tomar o trem? – Para ir a Londres. – Sim, mas por que
ides a Londres? – Para assistir a um congresso.
Mas por que desejais assistir a esse congresso? Porque isso me
interessa.
Afinal de contas, sempre fazemos as coisas porque têm interesse
para nós: ganhar dinheiro, ir ao teatro, fazer caridade, trabalhar para
uma obra filantrópica, escalar montanhas, arriscar dinheiro no jogo,
viajar pela China, fazer política, ler jornal... É absolutamente impos-
sível encontrar um ato que não seja ditado pelo interesse.
O interesse, dissemos, não é nada de misterioso. Não entendo
por “interesse”, absolutamente, nenhum agente específico, nenhuma
entidade inteligente, nenhuma enteléquia (alma, espírito etc.) que
viesse governar nossas reações e adaptá-las às necessidades. É sim-
plesmente o nome que dou à causa ou à coordenação de causas que
provocam a conduta predominante num momento dado. Mas a
observação me mostra que a conduta de um organismo se orienta
sempre no sentido da satisfação de uma necessidade, daquilo que
lhe importa, daquilo que é de seus interesse. Dou, então, a essa
causa, ou a essa coordenação de causas, o nome de “interesse”.
Tomo, pois, a palavra “interesse” no sentido de “o que im-
porta”. Seria preciso instituir a palavra import (que existe em inglês)
como substantivo de importar. E poder-se-ia dizer que é o “import”,
isto é, nossa necessidade em relação com o que pode satisfazê-la,
que nos dirige a conduta
111
. A necessidade como tal, por si só, é
111
Em todo este pequeno trecho, o A. se refere, como é óbvio, a um aspecto do léxico
francês, no qual desejaria a inclusão de um substantivo que em português possuimos:
importante, que significa exatamente o que importa. Mas, em francês também se usa,
substantivado, o adjetivo important, com sentido próximo ao do import inglês. (Nota do
tradutor).
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COLEÇÃO EDUCADORES
incapaz de orientar nossa conduta. Pode somente provocar movi-
mentos de tateio. A conduta é orientada quando o organismo é
determinado não só pela necessidade, mas ainda pelo objeto capaz
de satisfazê-la, pelos caracteres desse objeto, por sua posição no
espaço etc. Poder-se-ia dizer que a conduta implica uma dupla
adaptação: adaptação ao meio interno (à necessidade) e adaptação
ao meio externo (ao objeto).
A palavra “interesse” exprime bem, segundo a etimologia
(interesse, estar entre)
112
, o papel de intermediário que o interesse
desempenha entre o organismo e o meio: interesse é o fator que
ajusta, que estabelece o acordo entre este e as necessidades daquele.
É claro que resta à ciência biológica descobrir o mecanismo
desse ajustamento e desse acordo
113
.
Lei do interesse momentâneo
Mas, várias necessidades e, pois, vários interesses podem aparecer
simultâneamente? Que se passará? Qual delas vai provocar a ação?
Pois, é evidente que o indivíduo não pode ter várias condutas ao
mesmo tempo, não pode, ao mesmo tempo, comer e dormir, com-
bater e amar. Muito bem: como em todo conflito, vencerá o mais
forte: é a necessidade mais urgente no momento considerado, é o
interesse mais intenso que domina os outros e produz a reação. Pa-
receu-me útil consignar esse fato fundamental da conduta sob forma
de lei, a lei do interesse momentâneo: em cada momento, um
organismo age segundo a linha de seu maior interesse
114
.
112
V., a este propósito: Clóvis Monteiro, “Apontamentos sobre a etimologia dos portugue-
ses ‘posse’ e ‘interesse’”, Revista de Filologia Portuguesa, São Paulo, 1925, v. 5, 331.
(Nota do tradutor).
113
Cf. em minha Psycholegie de l’énfant, 2. ed., 1909, p. 134 (e também nas seguintes),
o capítulo intitulado: “Concepção psicobiológica do interesse”.
114
Cf. meu trabalho Esquisse d’une théorie bislsgéque du sommeil. Arch. de Psyschol.,
p. 280, 1905. Havia dado também, nesse trabalho, uma segunda fórmula dessa lei: “Em
cada momento, é o instinto que mais importa que se avantaja aos outros”.
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ANTONIO GRAMSCI
Locke já havia percebido muito bem essa predominância de
um interesse sobre os outros:
Mas, como, neste mundo, estamos cercados por diversas necessidades
(unieasiness) e distraídos por diversos desejos, o que se apresenta
naturalmente como tema de investigação é: qual dessas necessidades
é a primeira a determinar a vontade a exercer a ação seguinte? Ao que
se pode responder que, ordinariamente, é a mais premente de todas
as de que nos julgamos em condições de nos libertar…
A maior necessidade presente é a que nos impede de agir, é o aguilhão
que sentimos constantemente e que, de ordinário, determina a von-
tade à escolha da ação imediatamente seguinte
115
.
Poder-se-á, talvez, dizer que esta lei do interesse momentâneo
não passa de tautologia. Pois, não é pela reação que executa num
momento dado que julgamos, precisamente, do maior interesse
do organismo? Assim acontece quase sempre. Podemos, entretan-
to, verificar a lei de maneira indireta, e de três modos:
1.°) Pela introspecção ou, se se preferir, pelo testemunho dos
indivíduos: estes declaram que a conduta eleita entre várias pos-
síveis é justamente a que mais lhes importa no momento dado.
Sou surpreendido por forte chuva e não tenho guarda-chuva.
Embora apressado, procuro abrigo. É que, nesse momento, é
mais importante, para mim, não ficar molhado do que conti-
nuar. Mas a chuva não para. E acabo por deixar meu abrigo,
porque me importa mais não perder a condução para casa do
que ficar molhado. Neste caso vê-se bem que, conforme o
outro interesse em jogo, o interesse de “não ficar molhado”
dirige ou não a conduta.
2.°) Por uma experiência objetiva. Intensificando uma necessidade
num animal, por exemplo impedindo um cão de beber, de co-
mer ou de dormir durante certo tempo, vê-se bem que a conduta
115
Locke. Essai sur l’entendement humain (trad, Coste), liv. II, cap. XXI, §40. Ver também
§ § 31, 47 etc. Substituir aqui a palavra ‘inquietude” (pela qual Coste traduziu uneasiness)
pela palavra “necessidade”.
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COLEÇÃO EDUCADORES
do animal será determinada pela necessidade mais intensificada
pela privação. É ocioso insistir sobre esse fato evidente.
3.°) A observação nos mostra também que a conduta muda
quando uma necessidade é satisfeita. Certa conduta pode ser
momentâneamente interrompida para dar lugar a outra, sendo
depois retomada (um indivíduo interrompe o trabalho para jantar
ou para telefonar etc.). A simples observação externa faz clara-
mente perceber que essas oscilações da conduta correspondem
às oscilações da intensidade dos interesses ou necessidades.
Mostra-nos, pois, a lei do interesse momentâneo que um inte-
resse que surge subitamente pode recalcar um interesse anterior e
ainda não satisfeito; e que também um interesse subitamente satisfei-
to pode libertar outro interesse subjacente, momentâneamente
recalcado por ele. Eis um exemplo de cada um desses casos:
Cobri com um copo emborcado a mosca que vinha se banque-
tear com as migalhas deixadas sobre a mesa do jantar. Vereis então
que, quando ela percebe que está presa, abandona a refeição para
pôr-se a voar dentro do copo ou a procurar uma saída. Enquanto
estiver presa não se interessará absolutamente pela fruta ou pelo
doce. E como se o interesse de fugir, o interesse de liberdade tives-
se, de súbito, recalcado o interesse alimentar. (Notemos, de passa-
gem, como esse instinto de independência, de liberdade, de tão grande
intensidade no animal, tem sido ignorado pelos psicólogos, que ra-
ramente o têm incluído em suas listas de instintos). E agora a segun-
da observação. Possuí outrora um grande cão de São Bernardo, que
não gostava de ficar amarrado. Quando estava preso em frente de
sua casinha, ficava, horas a fio, a puxar a corrente e parecia de tal
modo preocupado, absorvido pelo desejo de liberdade que chega-
va a não tomar a sopa que se lhe trazia. Poder-se-á dizer que o
interesse (ou a necessidade) de liberdade lhe inibia o interesse pela
sopa? Certamente, e aqui temos a prova: desde que eu o soltava, o
animal, que permanecera horas ao lado da sopa sem tomá-la, após
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ANTONIO GRAMSCI
alguns pulos que lhe davam a certeza da liberdade, voltava para a
sopa e a devorava avidamente, embora já completamente fria!
Parece-me que essas duas observações são ilustrações típicas
da lei do interesse momentâneo. Essa lei nos lembra, pois, duas
coisas: 1.º Quando um interesse é satisfeito, desaparece para ser
logo substituído por outro. 2.° Quando dois interesses não satis-
feitos coexistem, o mais importante recalca o outro.
Un souci chasse l’autre, afirma justamente o ditado. Schopenhauer
já o havia notado:
Quando enfim ficamos livres de um cuidado que nos oprimia, outra
inquietação, cujos elementos todos já estavam em nós, mas que nossa
consciência não sentia como tal, porque não podia sentir, toma-lhe o
lugar. Mas, quando o lugar fica livre, esses elementos surgem pronti-
nhos e sobem ao trono para tornar-se a inquietação dominante...”
116
Falamos do interesse como dinamogenizador de reações. Re-
almente, as coisas se passam como se os objetos que nos impor-
tam tivessem o poder de suscitar energia e os que não nos interes-
sam o de estancar nossas capacidades energéticas. Parece que pos-
suímos em nosso organismo um reservatório de energia nervosa,
graças ao qual podemos, em dado momento, desenvolver grande
força de ação. A observação nos mostra que o mesmo indivíduo,
recebendo sucessivamente notícias, ora boas, ora más (como, por
exemplo, num dia de eleições, cujos resultados parciais são anun-
116
Schopenhauer, Die Welt als Wille..., 4 Buch. Tomo esta citação a um artigo do Dr.
Kollarits, um dos raros autores que reconheceram a importância da lei do interesse
momentâneo (Das momentane Interesse bel nervösen und nicht nervösen Menschen,
Journ. f. Psychol. u. Neurol., Bd. n. 21, 1915). Ver também um artigo do Dr. Ch. Ladame:
Ladame, C. La loi de l’intérêt momentané et de l’inlérét éloigné, Annales médico-psychol.,
1913. Ladame distingue, do interesse momentâneo, o interesse pelo futuro; mas o
interesse pelo futuro é, ainda, um interesse presente, é apenas um aspecto particular do
conteúdo do interesse momentâneo. Encontrei ainda uma alusão a essa lei em um artigo
do fisiologista O. Polimanti, Ueber die Ursache und die biol. Bedeutung des Hungers
(Naturwíss. Woch, 1911): “Der Hunger folgt dem psychologischen Gesetz des
Ueberwiegens des augenblicklichen interesses”.
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COLEÇÃO EDUCADORES
ciados uns após os outros), passa de um instante para outro, da
mais ruidosa excitação à mais completa depressão e vice-versa.
Há muito tempo já havia eu apelado para esse reservatório de
energia a fim de explicar a dinamogenização
117
. Trata-se, certa-
mente, de uma hipótese, porque desconhecemos ainda, inteira-
mente, a maneira pela qual a energia é distribuída nos centros ner-
vosos. Talvez não sejam também os centros nervosos que desem-
penham esse papel de reservatório e seja necessário apelar para
glândulas de secreção interna, como o fígado, por exemplo, que,
segundo as pesquisas de Cannon
118
, descarrega açúcar quando o
indivíduo é presa de uma emoção. Qualquer que seja a natureza
exata desse mecanismo, as coisas se passam como se a energia
pudesse, em dado momento, ser subitamente descarregada. Essa
maneira de ver está, aliás, implícita na lei do interesse momentâneo.
Se um animal é, por exemplo, inopinadamente atacado, é indis-
pensável que possa dispor, nesse mesmo momento, de uma quantidade
suficiente de energia para fugir ou para combater, para realizar um
esfôrço excepcional
119
. O mais simples dos atos de atenção prova
essa possibilidade de uma súbita descarga de energia.
Lei da reprodução do semelhante
As leis anteriormente expostas diziam respeito às “molas” da
atividade mental. Devemos dizer duas palavras das leis que, pare-
117
Cf. Arch. de Psychol., v. V, 1905, p. 56. Soube depois que essa hipótese de um
reservatório de energia já tinha sido sugerida, principalmente por Sherrington e por
McDougall (citados por Spearman, The abilities of man, 1927, pp. 124-125). Ver também
o belo artigo de James, W. The energies of man, 196 (trad. na Rev. de Philos., 1907).
118
Cannon, W. B.Bodily changes in pain, hunger, fear and rage. 2. ed. New York: [s.n.],
1929.
119
Ilustremos aqui essa brusca descarga de energia com uma anedota, célebre nos anais
da história de Genebra. Em uma noite de 11 a 12 de dezembro de 1602, alguns saboianos
conseguiram escalar a cidade, penetrando na casa da senhora Piaget: esta, apavorada,
teve forças para transportar uma enorme arca para diante da porta, de onde, depois não
foi capaz de tirá-la.
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ANTONIO GRAMSCI
ce-nos, regem a direção da reação (encarada do ponto de vista
funcional).
Vimos que a necessidade suscita uma reação, a reação adequada
às exigências do momento, a reação que importa. Mas por que, dentre
todas as reações possíveis, justamente a que corresponde a essa ne-
cessidade momentânea é a única efetivamente dinamogenizada?
Chegamos a um dos problemas capitais da ciência da conduta.
Em certos casos, a reação está, graças a mecanismos hereditários,
em conexão inata a necessidade que ela deve satisfazer (fala-se en-
tão de reflexos, de instintos). Nos outros casos, é a experiência
adquirida que enlaça à necessidade a reação adequada.
É este último caso que desejamos considerar aqui. Quando,
sentindo uma necessidade, um organismo não está armado de
reflexos ou de instintos próprios a satisfazê-la, que acontecerá? É
claro: esse organismo vai pôr em atividade as reações que lhe fo-
ram anteriormente proveitosas em situações análogas. É o que
exprime a nossa lei da reprodução do semelhante: Toda necessi-
dade tende a reproduzir as reações (ou situações) que lhe foram
anteriormente favoráveis, a repetir a conduta que, anteriormente,
foi bem sucedida em circunstância semelhante.
É quase supérfluo dar exemplos dessa lei. A primeira coisa
que fazemos, quando somos pilhados de surpresa, é repetir o que
fizemos anteriormente, em circunstâncias análogas. Apreciamos o
caso novo, adaptamo-nos a ele, à luz do caso antigo parecido. Se
encontramos fechado o portão de um jardim para onde nos diri-
gimos pela primeira vez, procuraremos os “segredos” que nos
permitem abrir os portões que conhecemos. Ou, então, veremos
se há campainha.
Aqui temos uma lei de importância considerável. Ela põe em
evidência o valor funcional da memória e do hábito, que é fazer
beneficiar a situação nova da experiência anteriormente adquirida.
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COLEÇÃO EDUCADORES
A conduta se baseia, pois, numa crença implícita no determi-
nismo: o que teve êxito ontem terá êxito hoje, desde que as circuns-
tâncias sejam mais ou menos as mesmas. As circunstâncias nunca
são idênticas: em primeiro lugar, o momento já não é o mesmo, o
lugar pode não ser o mesmo e as circunstâncias novas só podem,
pois, ser análogas (e não idênticas) às circunstâncias antigas. Agi-
mos, porém, como se essas diferenças de tempo e lugar não alte-
rassem as relações das coisas, como se instintivamente percebêsse-
mos a identidade sob a analogia. Assim, aplicamos a uma ferida
do braço direito o mesmo remédio que anteriormente curou uma
ferida da perna esquerda. Sem essa crença em relações permanentes
e imutáveis, teríamos um perpétuo sentimento de desconforto, de
mal-estar; o solo nos faltaria sob os pés
120
. E, de fato, ficamos
desorientados, desamparados, quando o novo é muito diferente
do antigo para que possamos organizar a conduta segundo um
ponto de referência já conhecido
121
.
Essa tendência à reprodução do semelhante é tão forte que,
ultrapassando o próprio fim, dá ocasião a frequentes erros. Uma
120
V., para estudo do raciocínio por analogia: André Cresson, Les réactions intellectuelles
élémentaires. Paris: Alcan, 1922. (Nota do tradutor).
121
É quase ocioso lembrar que essa tendência a reproduzir o semelhante, a perceber a
identidade sob as diferenças fenomênicas, está na base não só do hábito, como também
de todos os fenômenos da inteligência, como a percepção, a recognição, o raciocínio, a
formação da ideia geral etc. E, também, o fundamento do princípio de identidade e do
princípio de substância, como bem mostrou, em sua obra notável (L’évolution du jugement,
Paris, 1904), Tb. Ruyssen, um dos primeiros que consideraram o juízo do ponto de vista
biológico e funcional. Cf. também Baldwin, J. M. Le développement mental chez l’enfant.
trad. fr., Paris : [s.n.], 1897. p. 294.
122
Eis aqui, entre mil, um exemplo dessa tendência a reproduzir o semelhante. Fala-se, a
uma senhora, de um suíço, o Dr B., “privat-dozent” em Basileia, a quem ela não conhece.
Ela tem logo uma imagem visual, na qual, depois de alguma hesitação, reconhece o Dr. R.,
privat-dozent em Urich, seu conhecido há alguns anos. A imaginação, pois, apresenta-lhe
um homem concreto, lembrado pela associação da nacionalidade e da função comum dos
dois colegas. (Kollarits. Obs de ps. quotidienne, Arch. de Ps., n. 14, p. 231, 1914).
Enfeixam este artigo numerosas observações do mesmo gênero: imagens visuais de
pessoas ou de lugares desconhecidos. “Se penso num lugar que nunca vi – diz o autor – e
não chego a uma representação mental desse lugar, sinto sempre irritação”. Essa irritação
trai, evidentemente, a tendência ao semelhante que não consegue efetivar-se.
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ANTONIO GRAMSCI
criança mordida por um cão, julgará que todo cão vai mordê-la.
Ela ouviu dizer que “correr”, no passado, é corrido; de “fazer”
tirará fazido
122
. Uma dona de casa que teve aborrecimentos com
uma cozinheira ruiva, não aceitará outra ruiva, acreditando que os
mesmos aborrecimentos se repetirão
123
.
Nosso ponto de vista funcional permite considerar de um
ângulo novo a famosa questão das “leis da associação”
124
.
A doutrina clássica da associação de ideias formulava, como se
sabe, duas leis: a da contiguidade e a da semelhança. Longo tempo
se discutiu a respeito de qual das duas tinha a preeminência
125 e 126
. A
123
A crença no determinismo não é, pois, como se tem dito, uma conquista da ciência
ocorrida relativamente tarde na evolução humana. Está, ao contrário, implícita nas
primeiras reações da criança e do primitivo. E porque essa crença é muito forte que este,
quando a sucessão esperada não se realiza, apela para um poder mágico a fim de explicar
essa exceção à reprodução do semelhante, exatamente como a ciência apela para uma
energia potencial a fim de explicar fatos que, sem isso, seriam contrários ao princípio de
conservação da energia. O progresso da ciência consistiu em limitar o determinismo,
analisar os casos em que existe, tomar consciência dele: não, porém, em inventá-lo.
124
Procurando a relação que deve existir entre duas representações ou ideias para que
possam ser associadas, os investigadores, de Aristóteles a nossos dias, formularam leis
que se referem mais às relações lógicas dos conteúdos objetivos das representações
associadas, do que às suas reais relações fenomênicas. Assim acontecia, porque, na
concepção tradicional, a “representação” ou a “imagem” de um objeto nada mais era do
que a sua cópia psicológica, um como que clichê fotográfico desse objeto. Essa concep-
ção estática da “representação” falseou a interpretação do processo associativo, desvi-
ando por assim dizer o curso da psicologia, visto como aquele processo constituía o eixo
em torno do qual gravitava essa ciência. (J. G.). – Vide, a sair brevemente: “Os funda-
mentos da psychologia moderna”, J. Grabois e E. Cannabrava, cap. sobre o
associacionismo. (J. G.).
125
Claparède, E. L’association des idées. Paris : [s.n.], 1903. p. 23; cf. tb. Arch. de Ps.,
n. 17, p. 78, 1918.
126
Deixamos de lado, aqui, a questão de saber se, como ensinava a doutrina clássica,
quando se formou uma associação entre a e b, a presença de a é bastante para evocar b,
se a possui em si a força reprodutora necessária. O fato foi contestado, principalmente por
K. Lewin que, depois, de pacientes experiências (Das Grundgesetz der Association, Z. f.
Psychol., Bd. 77, 1917, e Ps. Forschung, I e II, 1921-1922), declara que a força evocadora
não emana do indutor, mas de uma fonte de energia mais profunda, a “disposição para agir”
do individuo. É fora de dúvida que assim acontece nas associações do pensamento
adaptado, comandadas pela necessidade e pelo interesse. (Cf. meu livro Assoc. des idées,
1903, p. 136, 172, 233 etc.). Também o hábito tem base em uma necessidade. (Cf. Larguier
des Bancels, Rev. Philos., n. 2, p. 183 segs, 1930. e Baldwin, op. cit., p. 194).
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meu ver, ambas são verdadeiras; mas cada qual num plano dife-
rente.
No plano do mecanismo, toda associação se reduz à contiguidade.
As ideias, as imagens e os movimentos apresentados conjunta-
mente só se podem ligar entre si pela contiguidade; e um só pode
evocar o outro se, de um modo ou de outro, alguma conexão
permite que a excitação passe de um para outro.
No plano funcional, porém, toda associação é, ao contrário,
associação por semelhança. Percebemo-lo imediatamente se nos
perguntamos “para que serve a associação”, não só a associação
que se cria, como a reprodução associativa. Evidentemente, para
enriquecer o organismo, de modo a que, quando se apresente uma
situação, reapareçam todos os elementos que já tinham pertencido
a situações semelhantes. Ela serve para reduzir o novo ao conheci-
do, por intermédio de um termo idêntico ou semelhante. Por ou-
tras palavras, o processo de associação tem por função fazer que
o organismo aproveite a experiência adquirida.
É ainda obscuro, no entanto, o mecanismo próximo dessa
função. Pois, a associação por si só não basta para fazer surgir a
reação adequada. Somente as reações, os pensamentos úteis é que
realmente aparecem. As reações inúteis tendem a ser eliminadas.
Qual o agente da escolha? A necessidade, o interesse, foi o que
dissemos, O que, porém, ainda ignoramos é como o interesse realiza
a escolha e a razão pela qual, quase sempre, somente as reações
úteis se fixam na memória
127
.
Lei do tateio
Mas a reprodução do semelhante pode ser impossível, de a situ-
ação ser inteiramente nova. Ou, então, inoperante. Que acontecerá?
127
Veja-as no livro de Koffka. Die Grudlangen der psychischen Entwiecklung. Osterwieck:
[s.n.], 1925. p. 115 as.), a discussão desse problema no que diz respeito à eliminaçao dos
gostos inúteis nas experiências de labirinto, caixas com truque etc., no animal e no homem.
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Vemos, então, aparecer um novo tipo de conduta, cuja signifi-
cação funcional não é duvidosa – o tatear. E podemos enunciar a
seguinte lei: Quando a situação é tão nova que não evoca nenhuma associação
de similitude ou quando a repetição do semelhante é ineficaz, a necessidade
desencadeia uma série de reações de pesquisas, de ensaio, de tateio.
Não insisto nesse fenômeno, que o biologista Jennings foi o pri-
meiro a esclarecer
128
. Ver-se-á adiante (capítulo sobre “a psicologia da
inteligência”) que papel desempenha o tateio na atividade inteligente.
Lei da compensação
Quando, por uma razão qualquer, uma necessidade não pode
ser satisfeita, entra em jogo um novo mecanismo, a compensação.
E, como esse mecanismo é muito geral na economia do organismo,
podemos fazer dele uma lei: quando o equilíbrio perturbado não
pode ser restabelecido por uma reação adequada, é compensado
por uma reação antagonista do desvio por ele produzido.
Compensar não é suprimir a falta que provocava a necessidade:
é contrabalançá-la por uma achega em sentido contrário. A com-
pensação é, pois, um estratagema empregado pelo organismo para
remediar um desequilíbrio. É sabido que no indivíduo que tem
uma perna muito curta a coluna vertebral apresenta uma curvatura
“compensadora”. O coração lesado se hipertrofia para compensar,
de algum modo, a qualidade pela quantidade.
No domínio psicológico, a compensação desempenha grande
papel. Flournoy já havia percebido a função compensadora dos
romances sonambúlicos; Freud observou a dos sonhos e de nu-
merosas obsessões; Ribot, a do pensamento afetivo
129
etc. E já
Lombroso, há cerca de sessenta anos, considerava o gênio como a
supercompensação de um organismo degenerado.
128
Jennings, H. S. Behavior of the lower organisms. Washington, [s.n.], 1904.
129
Ver também uma comunicação interessante, no Congresso Internacional de Psicologia
de Genebra, em 1909; Dr. 5. Szecsi, Psychische Kompensation als Uebergang vom
Normalen ins Pathologische, Rapports, p. 792.
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Desde, principalmente, os trabalhos de Adler (a partir de 1907) é
que a noção de compensação entrou a fazer parte das preocupações
dos psicólogos da infância e dos educadores. Segundo Adler, a maioria
dos defeitos das crianças seria devida à compensação de alguma in-
ferioridade congênita. Essa noção é, aliás, das mais fecundas.
É por vezes, difícil distinguir a compensação – que não passa
de estratagema para disfarçar o desequilíbrio – da satisfação real
da necessidade, que restabelece o equilíbrio. Assim nos jogos in-
fantis encontram-se esses dois processos. Têm-se descrito os jogos
das crianças como se fossem, todos eles, fenômenos de compen-
sação
130
. A atividade lúdica compensaria a insuficiência de ativida-
des úteis. É ir, porém, longe demais. Se é certo que a criança, sob o
impulso do crescimento, apresenta a necessidade de vencer a rea-
lidade que lhe oferece resistência, podendo facilmente satisfazê-la
ficticiamente no jogo, o jogo atende antes de tudo à necessidade
de desenvolvimento da criança e não é apenas um estratagema que
lhe dissimula a fraqueza.
Em certos casos, é verdade, o jogo é puramente compensador.
O jogo do adulto, especialmente. E a criança também, sobretudo
se sofre de inferioridade, o jogo pode permitir desempenhe papel
dominador impossível na vida real. Temos aqui uma espécie de
compensação afetiva
131
. Mas é antes o conteúdo do jogo do que o
próprio jogo que tem esse valor compensatório. O jogo em si, e
como tal, satisfaz a uma tendência profunda da criança.
Lei da autonomia funcional
Formulemos ainda, para terminar, uma última lei funcional, que
também merece a atenção do educador: Em cada momento de seu
130
Robinson, E. S. The compensatery funclion of make-believe play, Ps. Rev., 1920. Cf.
minha Ps. de l’enfant, p. 444.
131
Lehman; Witty. Playing school, a compensatory mechanism, Ps. Rev. 1926. verifica-
ram que os escolares negros brincavam de escola mais a miúdo que seus discípulos
brancos, o que se e pela necessidade de compensar a condição inferior.
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ANTONIO GRAMSCI
desenvolvimento, um ser animal constitui uma unidade funcional,
isto é, suas capacidades de reação são ajustadas às suas necessidades.
Por outras palavras, uma criança, considerada em si, não é um
ser imperfeito, um adulto incompleto e, sim, um indivíduo que
tem sua autonomia. Um girino é um ser que se basta a si mesmo e
cujo funcionamento é tão perfeito como o da rã; não é uma rã
incompleta, uma rã de funcionamento insuficiente. Veremos adi-
ante o desenvolvimento dessa ideia, que não é nova, ainda que,
por vezes, contestada.
Terá essa lei grande importância para a prática educativa? Sem
dúvida que sim. Contribui, tanto quanto as outras, para transformar
a imagem que até aqui se vinha tendo do processo educativo. Se a
criança é um ser “autônomo”, completo, com vida própria e ne-
cessidades próprias, segue-se que a educação não é – do ponto de
vista da criança – preparação para a vida e, sim, vida.
Tentarei, no último capítulo deste livro, mostrar toda a riqueza
que contém, para o educador, essa fórmula ousada.
Creio que todas as grandes leis funcionais que aqui tentei reunir
podem ser úteis ao educador desejoso de tornar-se aliado da na-
tureza da criança. A maioria delas exigiria mais amplo desenvolvi-
mento. Muitos pontos são ainda obscuros no determinismo da
adaptação fisiológica e mental! Mas, as páginas que precedem não
passam de simples introdução às que se seguem.
A escola sob medida
132
Minha ambição é apenas atrair a atenção dos educadores para
esta enorme questão. Nossa comissão de reforma escolar tencionava
preconizar algumas modificações imediatamente realizáveis. Não
132
Capítulos V, extraído do livro A escola sob medida e estudos complementares sobre
Claparède e sua doutrina, por Jean Piaget, Louis Meylan, Pierre Bouvet, publicado pela
Editora Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, trad. de Maria Lúcia do Eirado Silva, 1951.
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COLEÇÃO EDUCADORES
creio que, no referente às aptidões individuais, se pudesse desde
logo decidir qual o regime mais apropriado a favorecer-lhes o
livre desenvolvimento. Com efeito, há reformas que não podem
ser feitas sem um sério estudo prévio. A pedagogia prática deve
acostumar-se à ideia de que não são discussões em torno da mesa
que permitem introduzir, em nossas escolas, melhorias realmente
satisfatórias, mas sim o estudo em profundidade dos fatos psico-
lógicos em correlação com as desejadas melhorias e, principal-
mente, experiências, ensaios. Antes de introduzir um novo regime
em bloco, e ne varietur, sob os auspícios de uma lei que, por bem
ou por mal, obrigará à conformidade, seria preciso fazer ensaios
em escala reduzida, ou durante um período limitado, e não crista-
lizar o novo sistema em texto lei ou de regulamento, senão quando
tivesse saído vitorioso das experiências feitas. Melhor seria, aliás,
não cristalizar coisa alguma e ter uma organização bastante maleável,
de modo que acolhesse qualquer nova melhoria, para aproveitar
de qualquer experiência concludente, para se valer de qualquer re-
toque que a tornasse mais próxima da perfeição. Assim procede a
indústria, assim procede a ciência, assim procedem os homens de
boa fé. Não poderiam nossas escolas adotar esta prática, que é a
do próprio progresso, e da própria procura da verdade?
A questão das aptidões implica uma multidão de outras, e a
solução depende em parte da que se der a estes problemas diversos.
Tudo é concatenado, na educação. Porém, fico obrigado a deixar
de lado todas estas questões conexas, para limitar-me à própria
questão das aptidões individuais.
Minha exposição
133
deveria compreender as quatro partes se-
guintes: 1. Existência de diversidades individuais nas aptidões; 2.
Necessidade pedagógica de lhes dar atenção; 3. Maneiras de levá-las
em conta, reformas por fazer; 4. Maneira de determiná-las; diag-
133
Como se sabe ele fez, mais tarde, do assunto, objeto de um volume inteiro: Claparède,
E. Comment diagnostiquer es aptitudes des ecoliers. Paris: Flamarion, [s.d.].
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ANTONIO GRAMSCI
nóstico e seleção. – Por falta de tempo, não tratarei este último
parágrafo, sobre o diagnóstico das aptidões.
Existência das diferenças individuais
É quase desnecessário demonstrar a existência, no homem e
na criança, da diversidade de aptidões. Salta aos olhos. Este é hábil
nas operações do espírito, aquele prefere as ocupações manuais, é
um artista, outro matemático etc.
Em que consistem estas diferenças? Para sabê-lo, seria preciso
conhecer a estrutura das aptidões. E, de saída, o que é uma aptidão?
Uma aptidão é uma disposição natural a comportar-se de certa
maneira, a compreender ou sentir de preferência certas coisas ou a
executar certas espécies de trabalho (aptidão para a música, para o
cálculo, para as línguas estrangeiras etc.). É algo complexo. Assim,
a aptidão para o desenho implica certa habilidade motriz, estima-
tiva dos tamanhos, memória visual, compreensão de perspectiva,
senso estético etc.; a aptidão literária exige memória verbal, imagi-
nação, juízo crítico etc. e, sob estes et cetera, ficariam ainda muitas
outras qualidades intelectuais ou afetivas. A diversidade das aptidões
prende-se ora às variedades individuais de tais processos elemen-
tares (tipo visual, auditivo, verbal etc.), ora à diversidade de suas
combinações.
As aptidões variam em razão de diversos fatores, notadamente
do sexo e da idade. Não entrarei no terreno perigoso de saber se as
aptidões dos homens e das mulheres são equivalentes, nem
tampouco examinarei como se modificam as aptidões no curso
de seu desenvolvimento mental. Limitar-nos-emos à das aptidões,
enquanto variam de um indivíduo a outro.
Convém primeiro distinguir bem a aptidão do gosto (ou do
interesse). Pode-se ter gosto por uma espécie de trabalho, sem ter
a necessária aptidão. Se há maus pintores, maus poetas, inventores
estéreis (estes se encontram muitas vezes em asilos de alienados), é
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justamente porque pode haver gosto sem aptidão. E, reciproca-
mente, pode haver aptidão sem gosto. Pelas razões de ordem
afetiva, um aluno toma aversão a certa matéria, para a qual é
verdadeiramente dotado. Seria importante, para o educador, co-
nhecer tal caso, que mereceria um estudo especial. Em que medida
um estudo, cujos primeiros elementos repugnaram a um aluno,
em consequência da inabilidade do mestre, pode eliminar a apti-
dão nativa para o seu aproveitamento?
As aptidões apresentam diferenças de quantidade e de qualidade.
Dois indivíduos podem ser diferentes, porque um é desenhista e o
outro, poeta, ou porque um é melhor desenhista, ou poeta, do que o
outro. A escola não ignora as diferenças quantitativas de aptidão, pois
em exames, em concursos, dá notas e classificações aos alunos por
seus trabalhos. Mas desconhece, em geral, a natureza destes graus de
aptidão, julgando-os dependentes da boa vontade, da aplicação do
aluno, o que não é verdade, senão em casos limitados. Por outro lado,
a escola esquece completamente as diferenças qualitativas de aptidão, e
são as mais importantes. É delas, principalmente, que desejamos falar.
Vejamos, pois, quais as espécies de aptidão manifestadas pelos
alunos. Questão delicada. As observações que nos oferecem as
escolas não podem, com efeito, ser recolhidas, a não ser como
inventário, pois, por um lado, nossas escolas repousam sobre um
princípio oposto ao desabrochar de aptidões novas; e, por outro,
não podemos saber se os defeitos de aptidão observados são
reais ou aparentes (Assim, se três quartos dos escolares detestam a
matemática, será por que não têm queda para ela, ou por que tudo
fizeram para que lhes repugnasse?).
Nota-se, entretanto, certo número de tipos de espírito, bastante
gerais. Poder-se-iam contrapor os observadores, que têm o espírito
voltado para o mundo exterior, e os refletidos, cuja inteligência, ao
contrário, se volta sobre si mesma; os intelectuais, sempre com o
nariz nos livros, e sempre perguntando, e os manuais que gostam
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ANTONIO GRAMSCI
acima de tudo de fabricar, de criar. E os intelectuais podem, por
sua vez, subdividir-se em críticos, em imaginativos (que têm espírito
de argúcia) e em lógicos (que manifestam espírito de geometria).
Ostwald, como se sabe, dividiu os espíritos em clássicos (eruditos,
perseverantes, de produção considerável, porém lenta) e em ro-
mânticos (originais de reações rápidas). Pode-se mais ou menos es-
tabelecer um paralelo entre estes dois tipos e os que o Dr. de
Maday descreveu como trabalhadores e combatentes. De Maday, que
era oficial do exército húngaro na grande guerra, teve ocasião de
observar dois tipos bem diferentes de indivíduos: os Pflichtsoldaten
e os Lustsoldaten – soldados por dever e soldados por prazer. Uns
servem bem nas trincheiras, suportam com paciência bombardei-
os é intempéries, conservam a calma e a disciplina. Os outros são
valentes principalmente no ataque; despendem seu heroísmo de
uma só vez. Encontram-se qualidades análogas naqueles que lutam
no domínio do pensamento: os trabalhadores são mais lentos, mais
frios, mais reservados, mais tímidos, porém mais conscienciosos,
mais perseverantes, mais conscientes do fim por atingir; os comba-
tentes só trabalham bem quando pegam embalagem; então são ca-
pazes de um esforço considerável, mas seu trabalho não dura; são
diaristas, só atuam em repentes.
Sob outro ponto de vista, poderíamos distinguir os práticos e
os artistas, os positivos e os sonhadores. E, sob outro ainda, os ligeiros e
os lentos, ou também os ativos e os passivos.
Nosso colega, o professor Ph. Guye, numa conferência feita
há alguns anos, no Instituto Rousseau, comparava a energia humana à
energia física, e mostrava que ela é o produto de dois fatores, o
fator capacidade, representado pela soma dos conhecimentos, e o
fator tensão, esta qualidade do caráter (vontade, domínio de si
mesmo) que permite ao homem dar valor a seus conhecimentos.
Estes dois fatores podem variar independentemente um do ou-
tro; quando a tensão é mais fraca do que a capacidade, o trabalha-
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dor fornece uma atividade prolongada, mas de pouca intensidade;
no caso contrário, sua atividade é intensa, mas de pouca duração.
O resultado objetivo pode ser o mesmo nos dois casos, porém os
meios de atingi-lo são completamente opostos
134
.
Todas estas subdivisões cruzam-se entre si, de maneira que
podemos ter infinitas combinações de caracteres. Muitas vezes,
elas diferem muito das que se poderiam esperar. A lógica rigorosa
da matemática alia-se perfeitamente ao tempera mento sonhador,
assim como a imaginação transbordante do romancista pode es-
tar a par de um espírito positivo e realista. Os ilustres exemplos de
Henry Poincaré e de Emile Zola, outrora estudados pelo Dr.
Toulouse, aí estão para demonstrá-lo.
Destas combinações, quais as que são principalmente encon-
tradas na realidade, entre os nossos estudantes? Caberia aos mes-
tres dizê-lo, aos que viram desfilar sob seus olhos tantas gerações.
Mas é curioso verificar que os mestres quase nunca pensaram em
observar sistematicamente seus alunos, e publicar o resultado de
suas observações.
Os colégios, é verdade, reconhecem, na maioria, duas grandes
categorias de espíritos, os literários e os científicos; há em nossos estabe-
lecimentos seções clássicas, seções técnicas, e não se poderia negar
que esta distinção corresponde a certa realidade. Mas, quão elementar
é, e quantas aptidões diversas compreende cada uma das duas cate-
gorias! Aliás, o modo pelo qual se dividem nossos filhos entre uma
e outra depende muito mais, é preciso confessá-lo, das tradições e
preconceitos sociais, do que da verdadeira preocupação de satisfazer
suas inclinações. E, seja qual for a seção considerada, nela é muito
mais cultivada a erudição do que a originalidade.
Além das diversidades nas aptidões especiais, é preciso menci-
onar as diversidades dentro do que pode chamar aptidão geral, ou
134
Ver L’Intermédiare des écueateurs, Genève, mai., 1913.
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ANTONIO GRAMSCI
inteligência global, que se determina tirando a média de todas as aptidões
particulares.
Os indivíduos não se assemelham no referente à inteligência glo-
bal; uns são mais inteligentes, outros menos. Esta aptidão média não é
alheia à escola, pois ela procura avaliá-la por cifra: nota média do trabalho,
e não há o que dizer contra tal processo, a não ser que, talvez, esta
média expresse mais diferenças de memória e de aplicação, do que
diferenças na própria inteligência. Mas, o que é lastimável é o fato de a
escola pensar ter realizado tudo, quando atribuiu esta nota, quando
estabeleceu tal distinção. Esta determinação é, para ela, um ponto de
chegada. quando deveria ser um ponto de partida: os fortes, os medí-
ocres e os fracos não são tratados diferentemente, são obrigados a
andar no mesmo ritmo, o que é nocivo, a uns e outros. Não parece
suspeitar que uma notação é um processo didático. Uma nota baixa
pode, às vezes, estimular o zelo de um preguiçoso inteligente. De
modo algum, não poderia socorrer uma inteligência insuficiente!
Em uma palavra, a escola ignora as diferenças de aptidões e
quando. por acaso, se lembra de avaliá-las, é para não levar em
conta o resultado de sua pesquisa!
Necessidades de levar em conta as diversidades de aptidões
Mas, de fato, será muito necessário levar em conta estas
diferenças individuais? A escola nunca o fez. Nunca considerou
como dignas de sua solicitude senão aquelas que se conformam a
certo tipo esquemático, criado à sua imagem, isto é, um tipo mons-
truoso e antinatural – o aluno médio
135
. Porém sempre ignorou as
135
Por vezes, é verdade, a escola parece pressupor na criança qualidades sobre-humanas,
como uma paixão inata pelas coisas aborrecidas, capacidade de trabalho inesgotável etc.
Mas, na prática, não se presta absolutamente às necessidades intelectuais de espíritos
originais e verdadeiramente acima da média. É por isso que a maioria dos grandes homens
conservou uma lembrança amarga do tempo da escola. Um de meus amigos, professor em
Neuchâtel, contou-me ter sido, outrora, muitas vezes punido porque, sendo muito forte em
latim, seguia adiante durante as lições de tradução, em vez de seguir, simplesmente, isto
é, submeter-se ao andamento do infeliz colega chamado para decifrar o texto.
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COLEÇÃO EDUCADORES
diferenças entre os tipos. Talvez em nenhum outro campo se tenha
mostrado, mais do que neste, a herdeira fiel e cega do passado,
pois o homem médio, neutro e informe, sem relevo, já que sem
luz e sem sombra, era o ideal de outrora. Descobri num canto de
minha biblioteca um velho alfarrábio intitulado A arte de conhecer os
homens (L’Art de Connoistre les Hommes), do senhor De la
Chambre, conselheiro e primeiro médico do Rei, publicado em
1662, com o privilégio de Sua Majestade. Eis o que se lê no pará-
grafo intitulado Todas as inclinações naturais são defeitos:
É que, embora haja inclinações boas em si, e que mereçam algum
louvor, como as que se têm por virtudes; são entretanto, defeitos,
que alteram a perfeição natural conveniente à natureza humana…
Ora, a perfeição do homem é ser indiferente e, sem que seja determi-
nado a uma virtude particular, ser capaz de todas... A alma, por sua
natureza, não é determinada e deve ser capaz de todas as ações... As
inclinações, mesmo que fossem pelas mais excelentes virtudes, são
defeitos; não deve ter nenhuma em particular, mas é preciso que as
tenha para todas juntas.
E, ainda, no parágrafo Tudo deve ser medíocre no homem:
A perfeição do homem não reclama imaginação muito viva, nem
juízo muito circunspeto, nem memória por demais feliz: ela nem
pode suportar estes espíritos sublimes que estão sempre presos à
contemplação das coisas altas e difíceis.
Esta concepção não responde às visões de certos contempo-
râneos defensores da igualdade, que, sonhando com uma sociedade
bem nivelada, querem, a pretexto de justiça, cortar todas as cabe-
ças que sobressaem. Seu ideal, como o do senhor De La Chambre
é a mediocridade.
Tal ideal, no fim de contas, se vivêssemos num mundo de ideias
puras, poderia ser defendido, como qualquer outro. Infelizmente –
ou felizmente – a observação nos mostra que, no planeta em que
estamos, um indivíduo só produz na medida em que se apela para
suas capacidades naturais, e que é perder tempo querer por força
desenvolver nele capacidades não possuídas. Não seria desperdiçar
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tempo e dinheiro querer tirar à força carvão de um terreno que só
tem ferro, ou cultivar num solo próprio só para uva?
O filósofo Bacon pronunciou outrora uma frase muito pro-
funda, que deveria ser escrita em letras de ouro no frontão dos
nossos estabelecimentos de instrução pública ou privada: “Não se
obriga a natureza, a não ser obedecendo-lhe.” Sim, é preciso obe-
decer à natureza da criança, se dela queremos fazer alguma coisa; é
a condição sine qua non. Os criadores ou domesticadores de ani-
mais deram-se conta disso há muito tempo: o conhecedor de ca-
valos não fará correr em Longchainps um pesado percherão, nem
atrelará a uma carreta qualquer iam puro-sangue inglês. O diretor
de um circo explorará em cada um de seus animais a aptidão de
melhor rendimento, que é mais conforme à natureza do animal. Tirará
partido das mãos do macaco, da tromba do elefante, da aptidão
do cão para correr etc. Não exercitará um ganso no trapézio, nem
o cavalo no salto da morte. Sabe muito bem que proceder assim
seria expor seus esforços a um fracasso certo.
Os educadores – não podemos, ai de nós, dizer que sejam conhe-
cedores de crianças – bem deveriam seguir o exemplo dos conhecedo-
res de animais. Pois, justamente, o que resulta de nosso sistema de
programas uniformes é obrigar as crianças a cuidar principalmente
das disciplinas para as quais não têm aptidão natural. Precisamente
aquele que não tem queda para matemática passa noites em cima de
problemas que absolutamente não compreende e, como não se pode
fazer tudo a um só tempo, ei-lo que negligencia sua composição
francesa, talvez mais conforme a um de seus gostos inatos. Na cor-
rida de obstáculos que constitui um ano escolar, empurrados, atro-
pelados, fartos, nossos filhos, por uma espécie de apreensão, bem
natural, dirigem todas as suas preocupações, senão todas a suas ener-
gias, aos ramos de estudo para os quais não sentem disposição par-
ticular. Gastam-se no trabalho ingrato de cultivar o solo estéril e de
deixar inculto justamente aquele que prometia uma bela colheita.
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119
COLEÇÃO EDUCADORES
A culpa do menino, nesse ponto, é talvez de ser dócil demais,
de aceitar muito facilmente este tratamento antinatural. O animal
não se dobra; quando se lhe pede o que não pode dar, morde,
debate-se, ou então recusa-se obstinadamente a aprender qualquer
coisa; e, finalmente, é-se forçado a levar em conta sua natureza
própria. Ao passo que o menino é muito... bom menino.
Mas, senhoras e senhores, tudo o que aqui vos digo não é
novidade. E desculpar-me-ia de empurrar uma porta que deveria
estar aberta, se esta não estivesse ainda trancada com duas voltas
de chave. Tentaram abri-la por diversas vezes, mas em vão. Quando
houve o XVII Congresso da Sociedade Pedagógica da Suíça
romande
136
de realizado em Genebra em 1907, M. Louiz Zbinden,
em notável relatório, observava que:
A organização atual dos exames e da promoção não permite à escola
cumprir integralmente sua missão para com TODOS os alunos,
dada a diversidade de suas aptidões, e de assegurar o progresso de
cada um deles... O vício fundamental é querer agrupar em uma única
e mesma sala quarenta e cinquenta alunos apresentando diferenças
consideráveis no seu desenvolvimento intelectual, físico e moral.
Assim é que os fracos e os fortes são sacrificados, pois o mestre é
obrigado a trabalhar para a média.
E o congresso tinha adotado esta conclusão, por unanimida-
de, penso: “A organização atual da promoção não permite o cum-
primento da missão para com todos os alunos; ela assegura o
desenvolvimento da média. Esta organização pode e deve ser
melhorada, de modo que assegure o progresso de cada um.”
Este pedido era dirigido aos Departamentos de Instrução
Pública da Suíça romande. E não me acreditaríeis, se dissesse que
não permaneceu ineficaz.
Resumindo, é preciso levar em conta as diferenças de aptidões,
porque ir contra o tipo individual é ir contra a natureza. E ir contra a
136
Parte da Suíça em que se fala francês ou italiano. (Nota tradutor).
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natureza tem duplo inconveniente: em primeiro lugar, como já
vimos, não há rendimento, ou só um rendimento não proporcional
ao esforço despendido. E, em seguida – é preciso insistir –
repugnância. Este fenômeno da repugnância, muito descuidado
pela pedagogia corrente, tem imensa importância moral e social.
Importa, com efeito, que a ideia do trabalho não esteja associada à
da repugnância, mas, ao contrário, à da satisfação.
Ora, como quereis que a criança aprenda a amar o trabalho,
quando se lhe faz executar, antes de mais nada, tarefas para as quais
não tem aptidão e, por conseguinte, nas quais está, de antemão, certa
do fracasso? Nela, como se retesaria a mola da ação, quando esta
está constantemente associada à ideia de fracasso? O rendimento,
naturalmente, deve estar em relação estreita com o esforço despendido,
ser-lhe a consequência natural. Dissociando-se, arruína-se o sentimento
do valor do trabalho, sufoca-se o próprio germe da vontade. Em
vez de ensinar a estimar o esforço, a escola habitua a considerá-lo
estéril. É como se se ensinasse, aos aprendizes de certa manufatura,
a utilizar de preferência máquinas que só fabricassem mercadoria
ruim, e a deixar de lado as que criassem bons produtos. Acabariam
por desprezar completamente o trabalho.
Ora, no domínio intelectual, a máquina de rendimento fecundo
é a aptidão. Levar em conta as aptidões da pedagogia do trabalho,
mas também da educação da vontade.
Maneira de levá-las em conta - A escola sob medida”
Chegamos agora à parte construtiva. É muito menos fácil cons-
truir do que criticar. Ainda outro dia, M. Roorda fazia notar, com
muita sagacidade, que o fato de a maioria dos problemas educativos
admitir várias soluções satisfatórias é que tornava tão difícil o acordo
sobre as soluções pedagógicas.
O problema que nos ocupa está justamente neste caso. Que
fazer para as aptidões serem respeitadas e exploradas em vista do
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COLEÇÃO EDUCADORES
maior bem de seu possuidor? É bem possível que não houvesse
nada que fazer, numa escola ideal, de programas inteligentes, onde,
sendo dada a maior liberdade a cada um, a questão do não apro-
veitamento das aptidões não existisse.
Porém, enquanto lá não chegarmos, ela se põe. E as soluções que
ocorrem imediatamente ao espírito são em número de quatro, sem
contar as combinações que poderiam ser feitas entre elas: classes pa-
ralelas, classes móveis, aumento do número das seções (clássicas,
modernas, técnicas etc.) nos colégios, enfim, o sistema de opções,
sendo a maior parte deixada às ocupações individuais de cada aluno.
1. As classes paralelas. Quando o número dos alunos e o orça-
mento do Estado o permitem, subdivide-se cada classe em
uma classe forte, para os mais inteligentes, e uma classe fraca
para os que têm mais dificuldade em segui-la. Sempre é me-
lhor que nada. Estas classes se distinguem, ou pelo fato de o
programa ser reduzido numa delas, e de se poder andar mais
devagar nesta, ou porque, sendo menor o número de alunos,
pode- se cuidar melhor de cada um, ou porque os métodos
seguidos são mais intuitivos. Tal sistema tem a vantagem de
não ser mais uma simples criação do espírito. Ele existe (em
Mannheim, principalmente, há uns vinte anos) e tem sido
satisfatório
137
.
Em Zurique, graças à iniciativa de M. Hans Hösli professor
de francês, organizaram-se cm 1915, nas escolas secundárias, clas-
ses paralelas que, segundo o afirmado a mim por M. Hösli, pres-
tam grandes serviços, há algum tempo. Numa das classes (classe
3), seguem-se métodos mais abstratos; na classe B, métodos mais
concretos. Os alunos são repartidos amistosamente entre os
137
Em outras cidades da Alemanha, em Charlomburgo, em Berlim, em Hamburgo, em
Breslau, nestes últimos anos, foram criadas escolas, ou classes, para os bem dotados
(Begabtenschlen, Sonderklassen für hochbegabte Volksschulkinder).
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122
ANTONIO GRAMSCI
professores interessados, e levam-se em conta, tanto quanto
possível, nesta repartição, mais ainda as diferenças qualitativas e
de espírito, do que as diferenças quantitativas e de capacidade de
trabalho.
138
Pelo que me disseram, não é menos interessante para o mestre
trabalhar com os alunos da classe B, do que com os da categoria
A. Manifestam uma inteligência mais prática, estão mais próximos
da vida, são frequentemente mais engenhosos que seus camaradas
tidos como mais fortes. Penso poderem ser imediatamente tentados
ensaios e experiências deste gênero, sem que seja preciso mudar
nada em qualquer lei, nem em qualquer regulamento e, somente
com a condição de que dois professores de classes paralelas, ou
dois professores especiais funcionando nas mesmas classes, se en-
tendessem, como foi o caso em Zurique, para repartirem os alunos
segundo as capacidades. Suponhamos, por exemplo, que dois
mestres, dando cada um três horas de aula numa classe desdobrada,
o de matemática e o de alemão, por exemplo, combinem de tal
forma que possam ter suas aulas nas mesmas horas do dia.
Em vez de darem duas vezes suas três aulas a duas classes de
capacidades misturadas, cada um deles daria três horas aos alunos
fortes das duas classes, reunidos para sua aula, e três horas aos alunos
fracos reunidos. Enquanto o professor de matemática trabalhasse
com os fortes, o de alemão teria os fracos, e vice-versa. Foi assim que
começaram em Zurique, e a tentativa foi coroada de sucesso. A
objeção que se pode fazer, entretanto, é que os fortes em aritmética
não são necessariamente os fortes em alemão, e que uma repartição
racional em dois grupos não seria possível, senão neste caso.
O Congresso Pedagógico, ao qual fiz alusão ainda agora, tinha
emitido votos em favor de uma tentativa de agrupamento de alunos
138
Para pormenores sobre esta iniciativa de Zurique, ver os artigos publicados por Hösli,
M. Pädagogischer Beobachter. Zurique, abr. 1918.
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por capacidade: “A promoção deve esforçar-se por reunir numa
mesma classe crianças que tenham atingido o mesmo desenvolvi-
mento intelectual... É de desejar que os Departamentos de Instrução
Pública tirem a prova do sistema seguido nas escolas de Mannheim
139
.”
Porém, há doze anos, nada foi feito, infelizmente. Ter-se-ia
podido tentar a experiência com pouco dispêndio. Supondo-se
que não tivesse resultado no que se esperava, por certo não teria
feito mal a ninguém, e talvez tivesse sugerido qualquer outra ino-
vação – pois é próprio de toda experiência ensinar-nos sempre
alguma coisa, mesmo quando não confirme a hipótese que lhe
tinha sido submetida.
Parece-me, além disto, que a criação de classes fortes e fracas
não poderia resolver de modo satisfatório o grave problema das
aptidões. O que importa, com efeito, não é tanto diferenciar as
crianças conforme o vulto de sua capacidade de trabalho, senão
conforme a variedade de suas aptidões. Tal classificação quantita-
tiva, seria preciso substituí-la por uma classificação qualitativa. A
escola atual sempre quer hierarquizar; antes de mais nada, o impor-
tante é diferenciar. Esta ideia fixa de hierarquia vem do emprego dos
diversos sistemas empregados para aguilhoar os alunos: boas notas
ou más, filas, castigos, concursos, prêmios... Mas é claro que, na
escola de amanhã, todos estes expedientes serão postos de lado,
ou, em todo caso, não terão mais a importância de outrora. O
interesse, eis a grande alavanca que dispensará as outras.
Chegou a hora de substituir a pedagogia de uma dimensão –
que coloca todos os alunos em fila indiana e numa só linha – por
139
Depois disso, foi introduzido no cantão de Genebra, onde as crianças são assim
repartidas: a) classes normais ordinárias, onde são agrupadas as crianças de idade
mental correspondente à idade civil; b) classes denominadas de desenvolvimento, rece-
bendo alunos com alguma dificuldade em seguir a marcha normal dos estudos, sem que
sejam retardados; c) classes especiais, abertas aos escolares apresentando graves
atrasos de desenvolvimento; d) escolas-jardins, de planície ou de montanha (para nervo-
sos, débeis); e) classes de observação (crianças difíceis).
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ANTONIO GRAMSCI
uma pedagogia de duas dimensões que, a par das diferenças ine-
gáveis de capacidade de trabalho, leve em conta principalmente os
diversos tipos de aptidões, tipos esses que devem ser colocados
no mesmo plano e não uns atrás dos outros.
A maneira pela qual se opera tal classificação hierárquica é,
aliás, das mais discutíveis. Dá-se como certo terem certas matérias
importância primordial, ou dá-se às notas obtidas em algumas
delas uma predominância, sendo multiplicadas arbitrariamente por
um coeficiente. E, relembrando a encantadora preleção feita aqui
para nós pelo M. Roorda, noutro dia, permitam-me ler a diverti-
da fantasia publicada por ele recentemente na Tribuna de Lausanne:
“Os pedagogos chineses – ninguém se espantará com isso –
empregam um meio muito complicado para saber se devem permi-
tir a este ou aquele de seus alunos continuar os estudos que o levarão
a exercer, mais tarde, a profissão de dentista. Quando o aluno com-
pleta dezesseis anos, calcula-se a média das notas obtidas por ele nos
últimos doze meses, nas lições de chinês. Faz-se a mesma coisa para
as notas de Geografia, de história, de Matemática, de Religião, de
Economia Política, de desenho, de dança, e de trombone de-vara.
Cada uma dessas médias é multiplicada por um dos números: 5, 4, 3,
2 ou 1. Será, por exemplo, o multiplicador 3 para história e o
multiplicador 1 para desenho. Depois adicionam- se todos os resul-
tados obtidos. Se o total da adição é inferior a 266, o aluno fica mais
um ano na escola, isto é, abrevia-se de um ano sua vida de dentista.”
“Os pedagogos chineses se dividem, aliás, em dois campos
opostos: os partidários do Dr. Dzimm, que multiplicam por 3 a
nota de geografia e por 2 a nota de matemática; e os partidários
do professor Lahiton, que fazem o contrário.
“Como se poderia prever, os pedagogos de nosso país proce-
dem de maneira muito mais racional. Em primeiro lugar, renuncia-
ram desde sempre ao ensino do chinês. Acham, com razão, que um
futuro veterinário pode contentar-se em estudar latim oito anos a
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COLEÇÃO EDUCADORES
fio. Mas é sobretudo no modo pelo qual ensinam o francês a seus
alunos que se mostram mais sérios que seus colegas do Celeste Im-
pério. Num grupo, consideram a redação e o ditado; noutro, colo-
cam a gramática, a recitação, a análise lógica e a leitura. São bastante
razoáveis para compreender que a importância da redação está para
a da leitura como 2 está para 1; e, definitivamente, basta-lhes efetuar
nove adições, nove divisões e uma multiplicação para reconhecer
que o jovem Roberto só merece, no francês, a nota 6,392. E, como
esta nota, combinada com as outras (calculadas pelo sistema
Bolomais), dá somente a média 6,499, o aluno Roberto deverá ficar
mais um ano nos bancos da escola, antes de suceder a seu papai, o
veterinário. Eis porque as vacas são tão bem tratadas.”
Já que falamos de notas e médias, permitam- me, Senhoras e
Senhores, chamar a atenção das autoridades competentes sobre a
maneira por de mais estranha de tirar às vezes as médias, em nossas
escolas. A pretexto de medir a capacidade, falseia-se de modo
imperdoável o resultado desta determinação.
Há alguns anos, um dos mais brilhantes alunos do Colégio Superior,
em Genebra, caiu doente com escarlatina, na ocasião dos exames de
junho, e não pôde fazê-los. Sabem que notas lhe deram pelos exames
não feitos? Zeros em todas. Como suas notas mensais fossem muito
altas, estes zeros não lhe abaixaram a média a ponto de impedi-lo de
passar e, praticamente, o incidente não teve consequências desastrosas.
Mas o que dizer do processo? Como é que uma instituição como o
Colégio, que ensina aos alunos tirar as médias e que procura despertar
neles o respeito à verdade científica, se permite falsear uma média,
por zero medidas que não foram tomadas? Que se diria de um físico,
encarregado de determinar a temperatura média de uma localidade,
e que, em pleno verão, pusesse zero grau para cada dia em que não
tivesse feito a observação, ou porque estivesse doente, ou porque o
termômetro estivesse quebrado?
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ANTONIO GRAMSCI
Tal modo de agir não é somente escandaloso do ponto de vista
matemático e estatístico, mas também do ponto de vista do bom
senso. A probabilidade de um aluno, primeiro da classe, tirar zero em
todos os exames, é tão ínfima, que admiti-la seria simplesmente um
absurdo. Aliás, não se entende bem porque, se se quer à força pôr
uma cifra para medida que não foi tomada, escolhe-se precisamente
a mais baixa. Se, quando em dúvida, se pusesse a nota do meio, por
exemplo, 3 sobre 6, isto não se justificaria tão pouco, do ponto de
vista do rigor matemático; mas diminuiria ao menos o distanciamento
provável e o erro cometido. Teria, além do mais, a aparência de certa
neutralidade moral para com o aluno ausente. Enquanto que colocar
um zero até prova do contrário não é reconhecer implicitamente que
o aluno é suspeito, como disse M. Roorda? Muito menos que um suspei-
to, pois um suspeito é tido como inocente até que o tenham reconhe-
cido como culpado, enquanto o aluno é a priori considerado nulo, até
provar não merecer tal indignidade!
Trata-se atualmente de suprimir os exames, mas as provas
mensais permanecerão e seria preciso, por princípio, não dar um
zero ao aluno que nesse dia faltasse à chamada. Ainda uma vez,
substituir por zero uma observação não feita é chegar à falsificação
da média, é causar um verdadeiro prejuízo moral a um aluno. Esta
prática não honra nem o espírito de geometria, nem o espírito de
argúcia da instituição que o emprega.
Perdão pela digressão e voltemos às nossas aptidões.
2. As classes móveis. Chama-se assim ao sistema que permite a
um aluno seguir aulas de graus diferentes nas diversas matérias.
Assim, um aluno forte em matemática e fraco em latim seguiria
aritmética com os alunos do terceiro ano e latim com os do
segundo. Este sistema (racional, sem dúvida algum) é empre-
gado com resultado em algumas escolas novas, mas traz difi-
culdades de aplicação, de horário e de promoção. Não se de-
veria recorrer a este sistema, a meu ver, senão quando nenhum
outro sistema pudesse ser-lhe preferido.
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COLEÇÃO EDUCADORES
3. As seções paralelas. Tal regime existe em numerosos colégios,
principalmente no nosso, onde temos seções clássicas, real, téc-
nica, pedagógica, e, ao lado do colégio, escolas profissionais,
de artes e ofícios, de comércio etc.
Esta diversidade oferece, sem dúvida, possibilidades de esco-
lha, da qual se poderá beneficiar a cultura das capacidades especiais.
Mas, ainda aqui, trata-se mais de direções diferentes de estudo,
levando a metas diferentes, do que de caminhos abertos ao desen-
volvimento de aptidões individuais. No próprio âmago de cada
seção, encontramos aptidões variadas, nelas não encontrando os
meios de expansão que lhes seriam necessários.
Então, multiplicar as seções? Mas, afora as dificuldades ad-
ministrativas que disso adviriam, não se resolveria o problema.
Por um lado, esta multiplicação, por maior que fosse, não pode-
ria responder a todos os desideratos individuais; por outro lado,
principalmente, o que dissemos de início mostra que o problema
das aptidões ultrapassa de muito o dos programas. Com efeito,
a aptidão não é unicamente caracterizada pela preferência a cer-
tas matérias, mas também pela maneira de cultivá-las, pelo modo
de trabalho.
4. As opções. Os diversos meios que acabamos de examinar
sucintamente só satisfazem a metade do desiderato que às nossas
consciências de educadores é imposto pela existência de
aptidões. Como proceder para que cada tipo individual de
espírito tire da escola o máximo de benefício que se tem o
direito de esperar? O problema parece insolúvel. A escola,
feita para a média, levará algum dia em conta os casos indivi-
duais? Não se pode também ter uma escola para cada aluno!
E, no entanto, é preciso resolver este problema, pois, enfim,
em nossas sociedades, o indivíduo é tudo. No próprio interesse da
coletividade, é necessário ser o indivíduo capaz do maior rendi
mento possível.
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ANTONIO GRAMSCI
Como arranjar então para realizar o que de outra vez chamei,
numa conferência na Sociedade Médica (em 1901), a escola sob medi-
da? E, já que assim nos exprimimos, e por muitas vezes já o fizemos,
quisera desfazer um mal- entendido. Pensou-se várias vezes que, por
escola sob medida, eu entendia uma escola onde se mediam os alunos!
Nem se precisa dizer que estas palavras significam apenas uma esco-
la adaptada à mentalidade de cada um, uma escola que se acomode
tão perfeitamente aos espíritos, quanto uma roupa ou um calçado
sob medida o fazem para o corpo ou para o pé.
Quando o alfaiate faz uma roupa – escrevia eu em 1905 – acerta-a
pelo corpo do freguês, e, quando este é baixo e gordo, não lhe
impõe um terno apertado, sob pretexto de ser a largura que
corresponde à sua altura. O sapateiro, fazendo um sapato, começa
por traçar num papel os contornos do pé que vai calçar, e consigna
suas particularidades e até suas deformações. O chapeleiro adapta
seus chapéus ao mesmo tempo à forma e à dimensão dos crânios...
Pelo contrário, o pedagogo veste, calça e cobre todos os espíritos
do mesmo jeito. Só tem coisa pronta e suas prateleiras não oferecem
escolha: alguma numeração diferente, é verdade, mas sempre o
mesmo corte! Também entre os alunos de nossas escolas se veem
alguns afogados nas pregas de um programa grande demais para
suas fracas aspirações e problemáticas capacidades e atrapalham-se
a cada passo nas abas enormes de tal uniforme, não conseguindo
enchê-lo nem até acima, nem até abaixo enquanto outros estão tran-
cados numa disciplina tão apertada, que impede o justo desenvolvi-
mento de sua personalidade intelectual ou moral de tal forma que, a
qualquer movimento que se permitam, lhes salta um botão.
Por que não se têm para o espírito as atenções dispensadas ao
corpo, à cabeça, aos pés?...
Pois bem, como não se pode ter uma escola para cada aluno
ou para cada tipo de espírito, o sistema que há de realizar, ao
máximo, o desiderato da escola sob medida, será aquele que per-
mitir a cada aluno agrupar o mais livremente possível os elementos
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favoráveis ao desenvolvimento de suas aptidões particulares. Este
sistema é o das opções.
Ultimamente, começaram a preconizá-lo de vários lados. E
parece-me ser o regime do futuro.
Eis, em duas palavras, como vejo as coisas, principalmente
quanto ao referente às classes superiores do Colégio: em primeiro
lugar, diminuir consideravelmente o número das horas obrigatórias
de aula por semana, o que deixará margem às combinações diversas
que se procuram realizar. Digamos vinte horas por semana. É a
dose admitida nos ginásios franceses, e parece me ser perfeitamente
suficiente. A metade, mais ou menos, destas horas de aula seriam
comuns a todos os alunos. Seriam reservadas ao ensino de progra-
ma mínimo, dos elementos ou dos fundamentos de cada disciplina.
Quanto às outras dez horas obrigatórias para cada aluno, poderiam
escolhê-las e combinar a seu gosto entre as que figuram no horário
geral (como se faz nas universidades). Estas aulas, livremente esco-
lhidas, seriam complementos dos cursos gerais, ou estudos especiais,
ou ainda lições de exercícios, nas quais se aprofundariam certos
ensinamentos. Não entrarei aqui em minúcias; basta chamar a atenção
dos homens competentes para o princípio do sistema
140
.
Será que farão a este projeto a objeção de negligenciar a cultu-
ra geral? Cultura geral! É ainda outro problema interessante e um
tanto confuso, que mereceria ser tratado, só por si. Não posso
pensar nele aqui. Notemos que se dão ao termo cultura geral dois
sentidos um pouco diferentes: para uns, a cultura geral é o mínimo
de conhecimentos que deve possuir um homem cultivado, míni-
mo necessário para que não se sinta como um estranho, quando
140
No entanto, desejaria fazer notar que a diminuição do número de lições permitiria dar
maior importância aos trabalhos individuais. Deveria haver em nossos colégios grandes
salas de trabalho, com biblioteca, dicionários, coleções etc., que pudessem ser livremen-
te consultados pelos alunos. Um professor especial ficaria adido a esta biblioteca e daria
aos trabalhadores os conselhos ou as direções pedidas. Muitos jovens não podem
encontrar em casa a tranquilidade necessária a um trabalho pessoal fecundo; seria
natural que a escola lhes desse amplo acolhimento.
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sai de sua especialidade. Para outros, cultura geral é a que se dirige
a todas as funções do espírito, às funções de reflexão e de crítica,
tanto quanto à imaginação, à linguagem, aos sentimentos estéticos
etc. Seria melhor dizer, nesse caso, cultura intelectual.
Ora, o sistema das opções não prejudica nenhuma dessas duas
concepções de cultura geral. O programa mínimo assegura a aqui-
sição desses conhecimentos comuns que devem formar uma es-
pécie de laço espiritual entre os homens do mesmo meio e da
mesma geração. Poder-se-ia, aliás, discutir a questão de saber se,
de fato, são os conhecimentos escolares que constituem o essencial
de tal patrimônio comum; se esse laço espiritual não depende prin-
cipalmente de conhecimentos não escolares, e adquiridos dia a dia,
pela leitura de jornais e de livros, pelo teatro, pelas conversas etc.
Mas deixemos isto por enquanto.
O desenvolvimento das aptidões especiais também não prejudi-
ca a cultura intelectual. Porque a inteligência, isto é, a capacidade de
resolver problemas novos, de imaginar hipóteses, de controlá-las – a
inteligência é sempre a mesma, no fundo de todas as elocubrações
do espírito. É preciso tanta inteligência para traduzir um texto latino,
quanto para resolver um problema de geometria. São apenas os
materiais sobre e com que trabalha esta inteligência que variam. Mas
o próprio mecanismo da inteligência é o mesmo, nos dois casos.
Muitas vezes pensa-se, e urge dissipar este preconceito, ainda
enraizado em muitos bons espíritos, que certas matérias têm virtude
própria como fatores de desenvolvimento de certas faculdades
mentais: assim a matemática desenvolveria o raciocínio, a compo-
sição a imaginação, as ciências naturais, a observação etc. Mas a
observação, a imaginação, o raciocínio intervém em tudo. Não
será preciso um grande rigor para encadear sem contradição as
peripécias de uni romance, ou de um drama, e a imaginação não
desempenhará um papel de primeiro plano na matemática?
A verdade é que os diversos indivíduos não estão aptos a em-
pregar igualmente sua inteligência nesses domínios diversos. A
inteligência, que é a mesma em seu mecanismo profundo, só po-
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derá ser aplicada por tal indivíduo em problemas literários, por
outro, em problemas filológicos, e, por um terceiro, em problemas
de álgebra. Por quê? Ignoramos, mas o fato em si está aí e é o
importante principalmente para nós. Cada uma dessas disciplinas é
como um meio próprio para o desencadeamento dos processos
intelectuais. Peçam a um Henri Poincaré que escreva um romance
de aventuras; na mesma hora, suas faculdades mais brilhantes ficarão
como que paralisadas; peçam a um Zola que ponha sua incansável
perseverança a serviço dum problema de trigonometria, o fracas-
so será certo. É como se pedissem aos seres que se movessem em
meios para os quais não foram feitos. As aptidões aqui se apresen-
tam como órgãos adaptados a um meio particular. Um peixe não
pode nadar em terra, nem tampouco um coelho pode correr sobre
a água. E, no entanto, a função de nadar e de correr é a mesma nos
dois casos: a locomoção. Porém, segundo os meios, são necessárias
aptidões especiais para realizá-la.
Nossos meninos não podem, eles também, desenvolver sua
inteligência a não ser em um meio favorável ao despertar dessa
inteligência. Vemos, portanto, que um regime como o das opções,
despontando as aptidões, estimulando-lhes as virtudes, longe de
prejudicar a cultura intelectual, aparece, pelo contrário, como lhe
sendo a condição necessária.
Criemos o mais depressa possível este meio favorável, que per-
mita a cada um dar o seu máximo e expandir sua personalidade.
E não esqueçamos que, trabalhando para o indivíduo, desen-
volvendo sua capacidade, sua originalidade, valorizando suas forças
e suas riquezas latentes, trabalhamos também, e sobretudo, pela
sociedade
141
.
141
Claparède acolhera com profunda alegria a experiência tentada, ao fim da última
guerra, no ensino secundário francês. Nas classes chamadas novas, foi eficientemente
realizado o sistema das opções. Ao redor de um tronco comum (matérias indispensáveis),
são organizados complementos muito variados, sob forma de ensino – em particular
diversas técnicas de trabalho manual – a fim de que os alunos fiquem em condições de
tomar consciência de suas aptidões e de seus interesses. Pais e professores, então,
podem decidir, com mais segurança, a orientação dos estudos.
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CRONOLOGIA
1873 - Édouard-Jean Alfred Claparède nasce, aos 24 de março, em Champel,
Genebra. Filho de pastor protestante calvinista, mais novo de uma prole de
cinco filhos, tratado como o pequeno pela diferença de idade de seus
irmãos. Fora criado e educado sem severidade, aproveitando sua infância
em contato direto com a natureza, fato que desperta curiosidade e interes-
se. Ingressou na escola aos quatro anos de idade e cursou a Privat dos oito
aos doze. Aos quinze se viu órfão de pai e, no mesmo período, desejou
abraçar a vida religiosa, realizando o desejo paterno.
1891 - Conclui o Colégio de Genebra, quando publica um artigo intitulado “Quelques
mots sur le Collège de Genève”, no qual sugere reformas nos métodos
educativos empregados. Embora preocupado com as ocorrências e
experências escolares, prepara-se para estudar medicina, como seu tio e seu
primo Theodoro Flournoy. Na palestra “A alma e o corpo”, proferida por
Flournoy, teve o primeiro contato com a psicologia, que abriu os caminhos
profissionais de Claparède, que, contudo, não desistiu dos estudos médicos,
por lhe parecerem mais adequados para o conhecimento do homem.
1892 - Frequenta por um ano a Faculdade das Ciências de Genebra, que o coloca
diante da disciplina psicologia experimental, ministrada pelo próprio
Flournoy, e onde conheceu Willian James, que divulgava sua teoria da
emoção. Nesse período desenvolveu uma pesquisa entre os colegas uni-
versitários sobre a audição colorida, mencionada na Revue dês Deux-Mondes
em outubro de 1892.
1893 - Sua pesquisa é publicada no livro Synópsies
142
. Inicia o curso de medicina na
cidade de Leipzig, inscrevendo-se, de imediato, na disciplina Prakticum de
psicologia na tentativa de estudar com Wundt, que admitia apenas quatro
alunos por turma e Claparède era o quinto. Conclui a faculdade na Universidade
de Genebra, para acompanhar sua mãe idosa que vivia sozinha.
142
Cf. Archives de psychologie, 1936.
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1896 - Casa-se com Mlle. Spir.
1897 - Apresenta sua tese de doutorado intitulada Du sens musculaire à propôs de
quelques cas d’hermitage posthémiplégique, que o coloca novamente em con-
tato com a psicologia por intermédio da neurologia.
1898 - Passa um ano em Paris, estudando no Salpêtrière com Dejerine e dá
prosseguimento às pesquisas sobre os problemas de sensibilidade presen-
tes nos atáxicos e hemiplégicos, interessando-se especialmente pela per-
cepção esterognóstica, agnosia e apraxia. Conhece e frequenta o labora-
tório de Alfred Binet, com o qual ampliou informações sobre as questões
da inteligência.
1899 -Retorna a Genebra e trabalha com Flournoy, dedicando-se ao magistério
superior.
Por volta de 1900, envolve-se com pesquisas de laboratório, neurologia
e psicologia animal. É convocado, nessa época, a colaborar com professo-
ras de uma escola dedicada ao atendimento de crianças deficientes.
Claparède não tinha intimidade com o assunto e, a partir dessa demanda,
estuda e visita instituições que acolhiam alunos com deficiências, em
especial as dirigidas por Decroly e Demoor, em Bruxelas. É incumbido,
posteriomente, pelo Departamento de Instrução Pública de Genebra a
apresentar suas conclusões.
1900 - Demonstra, em uma palestra à Sociedade Médica de Genebra, a impor-
tância de uma escola sob medida. Nesse mesmo ano entra em contato com
a obra de Karl Groos que desviou sua atenção para uma concepção
biológica dos fenômenos psicológicos, determinando seus estudos e con-
cepções posteriores.
1901 - Funda com Flournoy o períódico Archives de psychologie, ano em que nasce
seu primeiro filho.
1904 - A teoria biológica do sono – apresentada à Sociedade Física e de História
de Genebra, repercutiu até meados do século XX e foi o trabalho prefe-
rido de Claparède. Nesse ano também assumiu o lugar de Flournoy na
direção do laboratório da Faculdade das Ciências.
1906 - Organiza um seminário de psicologia pedagógica destinado a educadores,
muito criticado dado o caráter liberal de suas proposições, enterrando as
expectativas de Claparède em transformá-lo como parte dos cursos de
formação de professores.
1919 - Cria o Instituto J. J. Rousseau, com a finalidade de colocar os futuros
profissionais em contato com a criança.
1908 - Recebe nomeação para professor extraordinário de psicologia.
1910 a 1915 - Produz e divulga vários trabalhos, entre eles: A concepção funci-
onal da educação em 1911.
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1915 - Substitui Flournoy na cátedra de psicologia da Universidade de Genebra.
1920 e 1921 - Preside as primeiras Conferências Internacionais de Orientação
Profissional, realizadas em Genebra e em Barcelona, respectivamente.
1926 - É nomeado secretário permanente dos congressos internacionais de psi-
cologia.
1928 - Visita o Egito, onde realiza estudos visando à reforma escolar no país.
1929 - Escreve sua autobiografia.
1930 - Visita o Brasil durante a publicação da primeira versão em português de
A escola e a psychologia experimental.
1937 - A morte do filho Jean-Louis, vítima de um ataque cardíaco, e o início da
Segunda Guerra Mundial, influenciam sobremaneira a vida e as ativida-
des de Claparède.
1940 - Falece em 29 de setembro, aos 67 anos, três anos após a morte de seu
filho.
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BIBLIOGRAFIA
A bibliografia mais recente e mais completa da obra de
Claparède foi feita por Carlo Trombetta e figura no princípio de
seu livro Edouard Claparède psicologo. Roma: Armando editore, 1989.
pp. 11-39.
Obras de Claparède
143
CLAPARÈDE, E. Annales suisses d’hygiène scolaire. Zürich, n. 525, 1912.
______. L’association des idées. Paris: Doin, 1903. 426 p.
______. Autobiographie. In: MURCHISON, C. (Ed.). A history of psychology in
autobiography, v. 1. Worcester: Clark University Press, 1930. pp. 63-97.
______. Autobiographie d’Edouard Claparède. Paris: Delachaux, 1930.
______. Aux collégiens. Journal de Genève, 3 sep. 1917.
______. A Barcelone. Intermédiaire des Éducateurs. Genève, pp. 80-84, [s.d.].
______. La biotypologie humaine. Intermédiaire des Éducateurs. Genève, n. 113,
pp. 233-237, [s.d.].
____. Cahiers de Pédagogie Experimentale et de Psychologie de l’Enfant. Neuchâtel:
Delachaux & Niestlé, 1934.
______. Causeries psychologiques. Genève: Kündig, 1933.
______. Causeries sur l’éducation. Tribune de Genève, 24 jan. 19-20 fev.; 30 mars;
27 avr.; 31 mai; 13 jui; 2 oct.; 25 dec. 193?.
______. Les chevaux savants d’Elberfeld. Genève: Kündig, 1912.
______. Le cinéma comme méthode d’étude de l’enfant. Journal de Psychologie.
Paris, pp. 241-243, jan./mar. 1924.
143
As obras de Claparède foram traduzidas para quase todas as línguas europeias.
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138
ANTONIO GRAMSCI
______. Cinquante jours au Brésil. Intermédiaire des Éducateurs. Genève, n. 140,
pp. 113-118, avr. 1931.
______. Classification et plan des méthodes psychologiques. Genève: Kündig, 1908. 44 p.
______. Comités Internationaux de Pédagogie. Archives de Psychologie. Genève,
n. 9, p. 139, 1910.
______. Comment diagnostiquer les aptitudes chez des écoliers. Paris: Flammarion,
1923. 300 p. (Bibliothèque de philosophie scientifique).
______. La conception fonctionnelle de l’éducation. Bulletin de la Société Livre
pour l’étude Psychologique de l’Enfant. Paris, n. 75, p. 45, 1911.
______. Le Congrès Universel de l’éducation et la solidarité internationale.
Journal de Genève, août. 1929.
______. Des chevaux qui étudient. Semaine Littéraire. Genève, 23 mar. 1912.
______. Des méthodes d’éducation et la psychologie appliqué. Informateur des
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Este volume faz parte da Coleção Educadores,
do Ministério da Educação do Brasil, e foi composto nas fontes
Garamond e BellGothic, pela Sygma Comunicação,
para a Editora Massangana da Fundação Joaquim Nabuco
e impresso no Brasil em 2010.
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