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REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
3
Janeiro/Março 1970
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REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura
DIRETOR:
Mozart de Araújo
CONSELHO DE REDAÇÃO:
Clarival do Prado Valladares
Manuel Diégues Júnior
Adonias Filho
Pedro Calmon
Afonso Arinos de Mello Franco
Redação: Palácio da Cultura 7º andar
Rio de Janeiro Brasil
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
ANO II
JANEIRO/MARÇO 1970
N.º 3
Sumário
ARTES
CARLOS CAVALCANTI
HELZA CAMÊU ...
As artes no sécuIo XX 9
Importância histórica de Brazílio
Itiberè da Cimila e da sua
fantasia característica «A
Sertaneja» 25
CIÊNCIAS HUMANAS
GILBERTO FREYRE
ALVARO TEIXEIRA SOARES
RAYMUNDO FAORO
MARCOS CARNEIRO DE MENDONÇA
CARLOS DE ARAÚJO LIMA
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS .
Tempo, ócio e arte 47
Limites do Brasil na Amazônia 59
Rio Grande do Sui: linhf.s ge-
rais de sua formação política 87
Roteiro pombalino no Brasil 111
História do Direito Luso-Brasileiro 119
As Escolas de Direito na Forma-
ção da Cultura Brasileira 151
LETRAS
ADONIAS FILHO
Aspectos sociais do Romance
Brasileiro 147
PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO
MÁRIO BARATA
Condições e exemplos de defesa
do patrimônio histórico e
artístico 163
Calendário cultural 183
Arteí
AS ARTES NO SÉCULO XX
CARLOS CAVALCANTI
A s formas dominantes nas artes plásticas deste meio século arqui-
tetura, escultura, pinturao filhas legítimas e diletas da indus-
trialização.
Nos seus processos técnicos e valores expressivos, estão refletindo
e traduzindo, com maior ou menor fidelidade, conforme os casos, as trans-
formações que a industrialização trouxe à sociedade contemporânea,
com as suas imediatas e revolucionárias conseqüências da produção,
do consumo e da comunicação de massa. Por isso mesmo, o que se
Convencionou denominar generalizadamente arfe moderna apareceu, em
primeiro lugar, na Europa e na América, nos países pioneiros da in-
dustrialização Inglaterra e Estados Unidos. Difundiu-se depois
ràpidamente nos países de norte europeu, suficientemente industriali-
zados. Demorou a aparecer, por exemplo, na Itália, que demorara, por
sua vez, a se industrializar, pela pobreza dos recursos naturais indis-
pensáveis à industrialização, primeiro o carvão e o ferro, depois o
petróleo.
Aqui no Brasil, evidência nem sempre devidamente lembrada,
a arte moderna surgiu emo Paulo, justamente o nosso Estado mais
industrializado, com a ruidosa Semana de Arte Moderna, 1922. Re-
percutiu imediatamente na Guanabara, a segunda área de mais alto
índice de industrialização do país.o poderiam as novas formas de
arte, geradas pelo progresso maquinário com a mecanização do tra-
balho, ter aparecido entre piauienses e cearenses.o porque esses
nossos patrícios sejam destituídos de talento criador para as formas
artísticas modernas, mas porque ainda hoje as regiões que habitam se
caracterizam pelo baixo teor econômico e social.
Na sociedade industrial em que vivemos, em virtude do desenvol-
vimento das ciências e de suas aplicações práticas, o conhecimento
humano explora um universo invisível e insuspeitado as relações
de tempo-espaço, no átomo e no cosmos, a eletricidade, o inconsciente
individual e coletivo. Na outra margem do torrencial rio do saber, a-
extraordinária contribuição do pensamento matemático à interpretação
e explicação do universo.
Como a ciência e a técnica, a arte e a educação estão hoje a
serviço da indùstria. Por isso mesmo é cada vez maior na sociedade
industrial a importância da arte. À medida que se aperfeiçoa, científica
e tècnicamente, abandonando agora a idade da máquina para ingressar
na idade do circuito elétrico, a humanidade se aperfeiçoa artisticamente.
o se pode negar, portanto, a significação crescente da arte na so-
ciedade industrial. Arteo mais entendida como ócio intelectual,
recreação ou ornamento do espírito, nem privilégio ou monopólio de
elites. Arte entendida como instrumento de conhecimento e explicação
do universo e de aprimoramento individual e social, sobretudo na sua
dominadora aplicação à educação.
Tudo isso porque a criação, percepção e fruição dos valores es-
téticos perderam os processos e os conceitos
1
consagrados pela tradição,
que vinha da mentalidade e da sensibilidade pré-máquinas. Agora,
nestes últimos anos, estão sendo os da mentalidade e sensibilidade da
idade da eletricidade. Antigamente, os valores estéticos eram conside-
rados acessíveis só a sensibilidade privilegiadas, dotadas de predisposi-
ções excepcionais, nos indivíduos ou em determinados segmentos sociais.
Hoje criar, sentir e viver a arte está se transformando num tesouro
social comum, porque a educação artística, mesmo a capacidade de criar
artisticamente, se faz pela prodigiosa e avassaladora multiplicidade,
variedade e soberania dos meios de comunicação audiovisual, produzi-
dos em massa e consumidos em massa, como o cinema, o rádio, a
publicidade, a televisão, a forma bela do produto industrial.
A função de educar- artisticamente, para preparar e formar a hu-
manidade feliz, ociosa e artística do futuro,o está mais restrita às
academias e escolas tradicionais, por sua filosofia, organização e fina-
lidades, incapazes de atender às novas necessidades e exigências esté-
ticas das massas. A tarefa de educar artisticamente as massas está
sendo feita pela indústria, através da Estética Industrial, nesta revo-
lucionária sociedade de consumo. Como educação artística de massa, o
«industrial designer» ao conferir valores estéticos ao produto industrial
exerce influência educativa mais direta e eficaz do que os mais res-
peitáveis teóricos de estética, professores celebrados, perspicazes pro-
gramas escolares.
O interesse pela ciência e a arte na cultura da civilização industrial
é crescente. A arte, sob as suas diferentes manifestações, se integrou
desde muito na vida social moderna. As novas gerações brasileiras
estão despertando também para a arte, à medida que se acelera o nosso
processo de industrialização. Como as necessidades de consumo dos
bens materiais ou utilitários produzidos na sociedade industrialo
necessidades de consumo de massa; também de massao as neces-
sidades de consumo dos bens artísticos ou espirituais.
As artes, que nos seus processos de produçãoo se massificarem
para ser consumidas em massa, essas artes ou formas de arte se mar-
ginalizarão, como instrumentos de comunicação de cultura, no sistema
industrial.
ARTE E PÚBLICO NA SOCIEDADE INDUSTRIAL
Desde muito tempo se tem falado no divórcio entre a arte mo-
derna e o público. Em 1924, o inspirado pintor moderno Paul Klee
se lamentava «O povoo está conosco!» Nesse sentido, faz-se
abundante literatura, enquanto o assunto tem sido objeto de congres-
sos internacionais de historiadores de arte que no campo das artes
plásticas se demoram sobretudo no problema do divórcio entre escul-
tores, pintores e o público. As especulaçõeso brilhantes. Em regra,
porém, pecam pela falta de objetividade, porque se distanciam da
realidade dos fatos, que falam linguagem diferente.
Os fatoso deixam dúvidas. Revelam que o divórcio entre certas
artes ou certas formas de arte e o público se acentuou à medida que se
intensificava e ampliava o processo de industrialização da sociedade
contemporânea. Por outro lado, mostram que as artes isentas de pro-
blemas nas suas relações com o públicoo justamente aquelas nascidas
dos processos maquinários e agora elétricos de proc\ução em massa,
destinada ao consumo também de massa. Essas artes, espontânea e
profundamente identificadas com o público,o as novas artes geradas
pela industrialização o cinema, a publicidade, a televisão, o rádio,
sem esquecer no campo da música a revolução da gravação sonora,
isto é, o disco.
Os processos de criação e produção nessas artes, como sabemos,
oo individuais, muito menos manuais ou artesanais.o coletivos,
maquinários, ùltimamente eletromagnéticos. Resultam das atividades
coordenadas de equipes de indivíduos de diversificadas aptidões e
apetrechados de conhecimentos e instrumentais altamente especializa-
dos. A aplicação desses conhecimentos e meios mecânicos constituem
o que se chama a tecnologia da comunicação de massa. Eis porque as
finalidades de consumo dessas novas artesoo nem poderiam ser
individuais, como no passado, mas coletivas ou de massa.
Em conseqüência, procuremos ver os fatos lùcidamente, os atelieres
das artes realmente modernas necessariamente mecanizadas e indus-
trializadas nos processos de criação para terem eficácia socialo
podem ser os mesmos dos mestres artistas glorificados do passado, que
nas suas torres de marfim trabalhavam ajudados por aprendizes e pro-
duziam para o consumo restrito e privilegiado das elites, representadas
pela córte do rei, nobreza e clero. Agora tudo é diferente, porque a
lei inexorável, mesmo para as artes, é a produção e o consumo de massa.
Desse modo, os atelieres das artes modernas nascidas com a industria-
lização,o os imensos e complexos estúdios de cinema e de tevê, as
companhias construtoras de arquitetos e urbanistas associados, as-
bricas de disco, as agências de publicidade internacionais, estas servidas
por elencos humanos multiformes, desde os propriamente artísticos aos
sócio-econômicos, para pesquisas de mercados e vulnerabilidade da
massa consumidora.
Diante desses fatos,o será difícil concluir pela incompatibili-
dade entre os processos artesanais de produção e as finalidades de
consumo individual, ainda dominantes em algumas artes principal-
mente no teatro, na escultura e na pintura e as exigências de produ-
ção e consumo de massa da sociedade industrial, as quais exigências
só poderão ser satisfeitas plenamente com a máquina e daqui por diante
com os circuitos elétricos.
O CASO DO TEATRO
O caso do teatro é ilustrativo do busilis do problema do divórcio
entre as artes tradicionais e o público, neste meio século de oiência e
de massa.
O cinema, todos estamos cansados de saber, é o teatro mecani-
zado e industrializado, porque arte produzida cm massa para consumo
em massa. O cinema substituiu as velhas formas artesanais e aristo-
cratizadas de representação e narração do teatro.
Eis porqueo tendo se mecanizado nem se industrializado, so-
brevivência da idade pré-máquina, o teatro perdeu a sua validade social.
É uma forma de arte morta, ainda insepulta, nos seus diferentes e
outróra apetecidos gêneros, desde a ópera cortesa e pomposa à revista
fantasista e picante. Em tôda a parte, mesmo nos países desenvolvidos
ou considerados de elevada cultura, o teatro precisa de subvenções
oficiais para sobreviver, porque a natureza anacrônica de sua produção
e consumo o tornou antieconômico, incapaz de dar lucro sangue,
nervo e alma da sociedade industrial. O transporte, por exemplo, de
uma companhia teatral cenários, artistas e técnicos é laborioso e
caro. Um filme, com virtualidades de narração e expressão artística
infinitas em relação às do teatro, se remete fàcilmente pelo correio. O
mesmo filme pode ser visto, ao mesmo tempo, em todo o planeta, por
milhões de espectadores.
Em nosso país se fazem apelos comoventes, em nome da arte e
da cultura, ao público para voltar ao teatro. O público, cada vez mais
artístico e culto,o volta nem voltará. como pelo resto do mundo,
os nossos velhos teatros, amados por outras gerações, se transformam
em cinemas. As suas fenecidas e rebuscadas decorações «art-nouveau»
sao substituidas pelo decorativismo geométrico e funcional em que se
sublima plàsticamente a nossa sensibilidade afeita e modelada pelo
mecanismo da vida moderna. Enquanto o teatro implora subvenções
oficiais e procura apiedar o público, o cinema é fonte de renda para os
governos e as salas de exibição transbordam dia e noite.
Ninguém de bom senso poderá negar seja o teatro arte e cultura,
mas formas de arte e cultura superadas, porque da idade pré-máquina.
O próprio cinema, forma de arte da idade da máquina, estará sendo
superado amanhã pela televisão, forma de arte da idade do circuito
elétrico, na qual já estamos vivendo e alguns artistas pioneiros pro-
curam expressar, introduzindo ocultos dispositivos eletromagnéticos nas
suas obras, para efeitos visuais, auditivos e cinéticos simultâneos. O
próprio Estado moderno, industrial e realista, está convencido da invia-
bilidade do teatro como instrumento de comunicação de massa e, por-
tanto, de arte, educação e cultura. As tentativas de mecanização da
cenografia teatralm sido engenhosas e originais, mas limitadas e
inconseqüentes, porqueo atingem o busilis do problema, que é pro-
duzir e consumir em massa. Portanto, cuidemos de ser realistas. Sub-
vencionar empresários teatrais será o mesmo que subvencionar empre-
sários editoriais que se proponham a produzir livros com os processos
manuscritos da Idade Média. E ninguém poderá negar sejam os
manuscritos medievais expressões de arte e cultura, que desapareceram
com os progressos técnicos da imprensa inaugurados por Gutemberg.
As especulações
1
sobre se cinema é arte ou indústria estão empoei-
radas. Foram frutos do nefelibatismo nefelibataso os caras ou
as caras, moços ou velhos, distantes da realidade, ainda numerosos nos
quadrantes do nosso orbe foram frutos do nefelibatismo inseparável,
das mentalidades fim de cultura. O norte-americano, com o prag-
matismo de sua mentalidade industrial,o perde tempo discutindo
bizantinamente o sexo dos anjinhos em relação ao cinema. Trans-
formou-o numa de suas principais fontes de riqueza, ao lado do pe-
tróleo, do automóvel e do tanto por cento do dinheiro emprestado.
O CASO DA ARQUITETURA, DA ESCULTURA E DA PINTURA
Nas artes plásticas, também chamadas artes visuais, o divórcio
entre arte e públicoo ostensivo na escultura e na pintura, pràtica-
menteo existe na arquitetura.
Arte por excelência sensível aos condicionamentos históricos e
sociais, em virtude de suas finalidades predominantemente utilitárias,
a arquitetura logo se mecanizou e industrializou. A mecanização e
industrialização se deram tanto nos processos como nos materiais de
construção, sobretudo com a padronização e a pré-fabricação. Ex-
pulsando o tijolo, foi a primeira arte moderna a expulsar ao do
homem, isto é, a habilidade operatòria manual. Arte matriz das demais
artes, como sabemos, ela está determinando e impondo novas formas
técnicas e expressivas às suas subsidiárias mais ilustres a escultura
e a pintura. Está promovendo o fato artístico talvez capital deste
século, que nasceu sob o signo da ciência e da massa — a síntese, a
fiusão das três artes plásticas.
Que vivemos numa sociedade de consumo é hoje uma verdade
banal. Também sabemos que o «nível de consumo é a medida correta
do mérito social. » Valemos socialmente, em nossos dias, pelo que
consumimos.o há mérito social no consumo dos bens industriais
produzidos em massa igualitária e niveladora, que está cada vez mais
diluindo as diferenciações de classe.o há mérito social no consumo
de uma geladeira, por exemplo, produzida em massa e de fácil con-
sumo, nos países desenvolvidos. Um norte-americano, outro exemplo,
o se distingue socialmente pelo consumo de um automóvel.
uma das marcas de distinção social (poder econômico) que pa-
radoxalmente ainda persiste na sociedade industrial de produção e de
consumo de massa democratizadores é o consumo de bens de certas
artes, os quais pela natureza de seus processos de produção se trans-
formaram em bens de consumo privilegiado, revelador de mérito social,
em outras palavras, de poder econômico. A pessoa pode se distinguir
socialmente pelo consumo de produto excepcional, único e insubstituível,
porque produzido manualmente e destinado a consumo em última
instância individual. Pode se distinguir pelo consumo do modelo único
do costureiro famoso, tratando-se da dona de casa, ou pelo consumo do
original único e irrepetível de Van Gogh, tratando-se agora do dono
da casa.o consumos
1
economicamente privilegiados e socialmente
meritorios, também espiritualmente, pela flagrante distorsão de critérios
e valores.
Esse consumo aristocratizado de certos bens da arte, especial-
mente pinturas e esculturas
1
, é uma contradição na sociedade industrial
democratizadora por efeito da produção e consumo de massa. So-
mente como contradição seja possível explicar o mito individualista
da peça única e, por outro lado, a marginalização social de escultores
e pintores, ainda presos às técnicas tradicionais de produção artística.
A PEÇA ÜNICA
Mais do que em quaisquer outras artes, a incompatibilidade entre
a produção artesanal e a produção mecanizada está flagrante no campo
da escultura e da pintura.o as artes plásticas mais socialmente
marginalizadas talvez porque aindao se aperceberam completamente
dos reciursos audivisuais da tecnologia da comunicação de massa.
A peça única é uma sobrevivência da mentalidade manufatureira,
quando aindao se conheciam a mecanização e a industrialização,
com as suas imediatas conseqüências definidoras de nossa época a
produção e o consumo de massa. O valor atribuído à peça única
artística é uma contradição aberrante do sistema industrial. Subsiste
com o prestígio de um mito ou superstição, com o qual o indivíduo
certamente procura preservar a sua soberania, para muitos perdida
na sociedade de massa em que vivemos.
A limitação e numeração da tiragem de cópias de seus trabalhos
pelos gravadores antigos ou modernos, por exemplo, limitação e nume-
ração restritivas e valorizadoras do consumo, obedecem ao mesmo en-
cantamento milenar da peça única. Em outras palavras, obedecem à
crença nos poderes mágicos da mão, a primeira e miraculosa ferra-
menta usada pelo homem no longo caminho da técnica para o domínio
da natureza. Aliás, a arte da gravura como ainda hoje se pratica nos
seus processos tradicionais é anterior a Gutemberg. Tenho amigos,
inteligentes e sensíveis, instruidos, anel de doutor no dedo, viajados
pelos sete mares, que deliram porque a sua cópia de gravura do nosso
talentoso Goeldi pertence a uma série apenas de dez, em poder de
proprietários, cujos nomes êle sabe de cor e salteado. Quando se
considera a tecnologia da produção de massa alcançada pela imprensa
moderna tudo isso parece pueril.o fosse o milenar sortilègio do
prestígio da presença da mão, criando o prestígio da peca única, milhões
poderiam ser possuidores ou consumidores de originais de Goeldi.
O mito da peca única, destinada em essência à contemplação indi-
vidual, ainda domina sobretudo no campo da pintura e da escultura,
justamente as artes plásticas mais socialmente marginalizadas, porque
o produzidas e consumidas em massa. Um quadro de Van Gogh
voltemos ao atormentado holandês profeta das neuroses deste século
um quadro de Van Gogh vale muito por seus poderes de persuasão
estética. Vale muito mais, no entanto, pelo fato de Van Gogh ter
morrido eo ser mais possível a produção de seus quadros, que se
tornaram insubstituíveis peças únicas. Por isso mesmo, passaram a
custar milhões alucinantes, sem que às vêzes o preço esteja no nível
do valor estético, porque como todo o criador artístico Van Gogh
deixou também mediocridades. O Van Gogh bom vale tanto quanto
o Van Gogh ruim. Ambos custam indiferentemente alucinações em
dinheiro. A distorsão do critério de valor é manifesta. O verdadeiro
valor, na verdade, é o da peça única. Rabiscos distraídos de Picasso
fazem milionários. Algo existe de podre na sublime paróquia da pin-
tura, na sociedade industrial. O mesmo, nos mesmos termos, ocorre
com a escultura. Eis porque transformados em consumos privilegiados
os Van Gogh, como os Portinari,o hoje acessíveis somente aos po-
derosos econômicos e socialmente meritorios milionários que os guar-
dam ciosamente nas suas
1
mansões, fundações culturais ou museus que
exibem como títulos de glória social ou mesmo os negociam lucrativa-
mente. O consumo dêles é assim a correta medida do mérito social de
indivíduos ou de instituições.
A PRODUÇÃO E O CONSUMO EM MASSA DA ARTE E SEUS PROFETAS
O divórcio ou o trágico abismo, assim o denominam alguns estu-
diosos, entre a escultura e a pintura e a sociedade de consumo de
massa, tem tido os seus profetas.
O abismoo tem passado ignorado de inspirados artistas, in-
tuitiva ou conscientemente lúcidos da situação daquelas duas artes na
sociedade industrial com a sua cultura intensamente visual, pouco ou
quase nada discursiva. Mais do que nunca, ganha atualidade o pen-
samento do velho Confucio sobre o poder da imagem «mais vale
uma imagem, do que mil palavras bonitas».
Entre os intuitivos, armados daqueles poderes proféticos reconhe-
cidos e proclamados nos artistas inspirados, estão o escultor Brancusi
(1876-1957) e o pintor Mondrian (1879-1944). As obras de ambos
parecem adequadas à produção mecânica em série, pois sugerem-
nimos de material, de processos operatórios mecânicos e de custos e
máximos de multiplicidade. O «Pássaro em vôo», de Brancusi, e a
«Composição em vermelho e aziul», de Mondrian, se apresentam, nesse
particular, carregados de eloqüência. O primeiro, pela sublimação
plástica do sentimento de vitalidade universal; o segundo, pela mesma
sublimação da mecanização da vida moderna. Ambos ainda se identi-
ficam, nos meios materiais e valores expressivos, pela síntese, exigência
maior do espírito destes tempos de massa e de velocidade. Final-
mente, ambos usam a mesma linguagem simbólica,o a alegórica, na
qual a percepção visual se enriquece de associações mentais.
Entre os artistaso intuitivos mas conscientes dos antagonismos
entre a produção manual e o consumo individual dos bens de arte e
a produção mecanizada e o consumo de massa dos bens da sociedade
industrial, está Victor Vasarely (1908). É húngaro, nacionalizado
francês, vivo em Paris. Sentiu como poucos o problema, ao criar a
«Plástica cinética», isto é, a plástica do movimento,e da «Op-Arte».
No seu entender, a pinturao pode mais continuar sendo feita,
em plena idade da mecanização e da industrialização, com os mesmos
processos técnicos manuais e os mesmos valores expressivos pincéis,
tintas solúveis e concepção estática do universo empregados desde
sessenta ou oitenta mil anos, pelos decoradores das cavernas pré-
históricas. A pintura adotará os processos de produção mecanizada e
de consumo em massa e exprimirá concepções dinâmicas da natureza
e da sociedade ou desaparecerá pelo anacronismo de suas formas tra-
dicionais, técnicas
1
e expressivas, socialmente ineficazes.
O lúcido Vasarelyo nos deu, porém, a solução do problema.
Apenas o denunciou com nitidez. É bem verdade que a insinua no seu
estilo, feito de formas geometrizadas que sugerem multiplicidade e de
excitações retinianas que visam a provocar sugestões fisiológicas de
movimento veloz. Multiplicidade e velocidade eis como no seu
linguajar de artista,o de sociólogo Vasarely define a nossa ver-
tiginosa e agressiva sociedade de produção e consumo de massa. como
nenhum outro pintor moderno, com as sugestões de multiplicidade e
velocidade do seu geometrismo monumental, profetizou o desapareci-
mento do quadro de cavalete, isto é, da peça única, reservada em
essência à posse e à contemplação individual.
O CONSUMO EM MASSA DA PINTURA
O consumo em massa da pintura já está sendo obtido de certo
modo com o muralismo, isto é, as grandes decorações nos lugares
públicos, desde o «hall» dos conjuntos residenciais ou edifícios de
apartamentos, as universidades, as praças, as margens das rodovias,
os estádios, as fábricas. O mesmo se dá com a escultura monumental
que, como a pintura, está se integrando hoje mais nos conjuntos ur-
banísticos do que nos arquitetônicos. Esse desejo da integração da
escultura e da pintura primeiro na arquitetura, no urbanismo depois,
transformando-as assim em tesouros sociais comuns, já está de cabelos
brancos nos tempos modernos. Na escultura, se
t
u pioneiro foi Auguste
Rodin ( 1840-1917), quando pediu que o seu grupo "Os burgueses de Ca-
lais», destituidos de base, fossem colocados na praça principal da-
quela cidade, misturados e confundidos com o vai e vem da multidão.
Queria certamente que as suas esculturaso fossem estátuas, fossem
gente, comum dos mortais.
A pintura mural e a escultura monumental, que os novos materiais
permitem viver ao ar livre, ambos se destinam ao olhar das multidões,
o à pupila sofisticada do contemplador individual, como acontecia e
ainda acontece com o quadro de cavalete.
O quadro de cavalete, isto é, o quadro de reduzidas' dimensões,
produzido manualmente, transportável e objeto de comércio, destinado à
contemplação ou ao consumo individual, está desaparecendo. Perdurou
enquanto nos tempos modernos, da Renascença aos fins do século XIX,
a vida social se organizava sob o signo do interesse individual,o do
coletivo. Em outros tempos mais recuados, sempre que a sociedade se
organizava comunitàriamente, dominava a pintura mural. Entre os an-
tigos egípcios, assim como entre os gregos arcaicos, ambos pertencentes
a estruturas sociais nas quais o individualo contava na vida coletiva,
o se conheceu pràticamente o quadro de cavalete. Quem reinava na
pintara eram os amplos murais, destinados à edificação da alma popular
e propriedade social comum.
Foi quando a organização social grega se dividiu em classes com
a propriedade individual de bens antes comuns, que apareceu entre os
gregos o quadro de cavalete. A pintura deixou de ser propriedade
comum, passou a ser vendida pela primeira vez na história e perdeu as
finalidades de meio de comunicação social direta e comum. Naquela
remota sociedade de classes, se tornou privilégio da classe dominante,
a aristocracia das cidades manufatureiros e mercantilistas, substituta
dos velhos clãs tribais e agrários, nos quais tudo pertencia a todos para
usofruto comum, inclusive as artes.
Isso tudo se deu na Grécia, na transição do arcaismo para o clas-
sicismo, na idade de ouro do manufatureirismo e do mercantilismo gregos,
quando Atenas se tornara a rainha das comunidades helénicas, que já
estavam identificadas ou nacionalizadas
1
pelos mesmos interesses, desuses
e língua.
Na alta Idade Média, por um conjunto complexo de causas longas
a esmiuçar, o quadro de cavalete novamente desapareceu, substituido
pelo mural, que era o mosaico bizantino, o afrêsco románico, o trans-
parente e luminoso vitral gótico. Pelao da Igreja, a pintura reto-
mava suas finalidades sociais e educativas, ainda que posta a serviço
do clero católico, cujos interesses se confundiam com os da realeza e
da nobreza. Consideradas as circunstancias sociais existentes na época,
o poderia ser de outro modo.
O quadro de cavalete reapareceu, na evolução da pintura européia,
com o advento do individualismo burguês da economia renacentista,
manufatureira e mercantilista, igual em substância ao da época clássica
da velha Grécia. Mais uma vez, os fatos nos mostram que formas his-
tóricas e sociais idênticas produzem formas artísticas também idênticas.
A teocracia bizantina, por exemplo, produziu formas artísticas, na téc-
nica e na expressão, idênticas, em última análise, às da teocracia egípcia.
Se o quadro de cavalete persistiu até ontem e começou a declinar foi
porque a partir de ontem a industrialização, com a massificação da
produção, do consumo e da comunicação,o tem deixado lugar ao
indivíduo, como valor básico da estrutura da sociedade contemporânea.
Em outras palavras, o quadro de cavalete é na pintura a peça
única. A sua permanência nestes nossos dias de nova coletivização,
imposta pela produção, consumo e comunicação de massa, significa por
isso mesmo verdadeiro anacronismo, na opinião de muitos estudiosos.
Eis porque nas obras de tantos pintores contemporâneos se manifesta
constante tendência para a substituição do quadro de cavalete indivi-
dualista pelo mural coletivista, com o emprego de novos materiais e
valores expressivos, dentro do espírito da síntese das artes, sobre o qual
já falamos. Nesse sentido, os muralistas mexicanos Diego Rivera,
Orozco, Siqueiroso pioneiros americanos da pintura moderna de
finalidades sociais e propósitos educativos. Inovaram na sua época.
o fossem as apaixonadas e ardentes implicações de propaganda po-
lítica partidária de suas obras, teriam maior reconhecimento na historia
da pintura moderna.
A aplicação de dispositivos eletromagnéticos nas formas escultó-
ricas e pintoneas, para a produção de efeitos de movimento, de som
e de luz simultâneos, audiovisuais em outras palavras, como na famosa
torre cibernética de Nicholas Schoffer (1912), dotada de cérebro ele-
trônico sensível às variações atmosféricas e aos nuídos urbanos, se por
um lado anunciam o ingresso da escultura na era da eletricidade, pro-
curam por outro lado caracterizar as finalidades de consumo de massa
da escultura.
Se o muralismo da pintura e o monumentalismo da escultura estão
abrindo caminho ao consumo de massa dessas artes, o mesmo ainda
o está ocorrendo com os seus processos de produção. Aindao se
produzem em massa pinturas e esculturas, como os demais bens produ-
zidos pela sociedade industrial. Produzidas em massa, pinturas e es-
culturas continuarão com os mesmos mágicos poderes de persuasão
estética? Só para argumentar, sem pretensão de solucionar o problema,
situado hoje na área da estética industrial, será o caso de perguntar
se a beleza de um automóvel, de uma geladeira, desaparece ou diminui,
deixa de atuar em nossa sensibilidade, pelo fato de terem as suas
formas e cores obedecido às necessidades de estandartização para a
produção em série e o consumo de massa. A estandartização, tanto se
tem repetido, é uma beleza nova, própria da máquina. O pensamento
lógico, isto é, o princípio racionalista da forma segundo a função, é
incompatível com a parcela de irracionalismo ou inconsciente inseparável
da criação artística? Na velha Grécia, o velho Sócrates já dizia que
não, porque «se alguma coisa é útil para algo pode nesse sentido se
chamar bela.» Eis a essência da beleza do funcionalismo, gerado pela
máquina, cujas virtualidades poéticas Marinetti e os futuristas lirica-
mente já exaltavam na primeira década deste século.
Na sociedade industrial, a estandartização, isto é, a produção ra-
cionalizada e mecanizada, criações obedecendo ao rigor do pensamento
lógico,o apenas cria beleza. Estabelece, impõe a beleza. No seu
conhecido livro, «O novo estado industrial», John Kenneth Galbraith
escreveu «E uma vez que a General Motors produz cerca de me-
tade de todos os automóveis, seus desenhoso apenas refletem a moda
atual, eleso a moda atual. O formato correto de um automóvel,
para a maior parte das pessoas, será aquilo que os donos da indústria
automobilística decretam que seja.»
Talvez seja preciso acrescentar apenas que para aceitação dessas
formas de beleza somos verdadeiramente dirigidos ou automatizados
pela influência avassaladora e irresistível da publicidade, nos seus pro-
cessos subliminares de ação sobre a sensibilidade das massas consumi-
doras. A faculdade crítica individual, no particularismo de seus po-
deres restritivos, selecionadores e preferenciais, parece assim obliterada
ou reduzida ao mínimo, sob a ação da propaganda, agora ainda mais
irresistível porque servida pela tecnologia elétrica na comunicação de
massa, instantânea e global, como no caso da televisão.
ARTE E LUCRO
o existe, porém, medalha sem reverso. A medalha da situação
de arte, tradicionalmente conceituada, tem na sociedade industrial, para
muitos espíritos, o reverso de desafiadora problemática.
Todos sabemos que a motivação do trabalho na sociedade industrial
é o lucro ou seja motivação pecuniária. Evidente que se o trabalho
de criação artística se submete aos processos de produção industrial,
a sua finalidade última será o lucro eo a expressão plena de uma
personalidade específica, excepcional e complexa, como se admite seja a
do artista. A necessidade vital de expressão artística, desde a criança
do primário ao otogenário Picasso, é como sabemos por essência de-
sinteressada, obedecendo à absoluta gratuidade. A combinação feliz
de formas, cores e movimentos, capazes de produzir obras de arte
exemplares, jamais poderá ter, na opinião de muitos, por motivação
originária e exclusiva o lucro. Nenhum poeta cantará a sua alegria
ou tristeza visando ao lucro, senão à satisfação da necessidade de
expressão e de comunicação estéticas, necessidade que hoje admitimos
o vital ou instintiva, igual à fome e ao amor.
Evidente também vá o leitor enfileirando essas evidências,
agora para poder ir reservando o lugar do «industrial designer» nas
artes contemporâneas evidente também que em tôda a criação ar-
tística existe uma parcela de inconsciente ou irracional, obscuramente
instintivo ou vital, rebelde ao rigor e disciplina do pensamento lógico,
indispensável aos processos de mecanização e industrialização. No
sistema industrial, poderá a criação artística continuar isenta da moti-
vação do lucro? A pergunta abre as
1
portas de uma nova estética, a dos
nossos tempos a estética industrial. As formas indiscutivelmente
belas dos arranha-céus foram criadas nos fins do século passado, pelos
norte-americanos, sob inspiração ou motivação do lucro imobiliário.
Lançando-se às alturas escreveu o argentino Angel Guido os
arranha-céuso as novas catedrais de um novo deus, a renda ou o
lucro imobiliário.
Por suas finalidades utilitárias, servida pela industrialização e pré-
fabricação dos elementos construtivos, a arquitetura moderna parece
ter sido a primeira das artes plásticas a solucionar o problema da
motivação do lucro nos trabalhos de criação artística na sociedade de
produção e consumo de massa. Arte matriz das demais artes, a ar-
quitetura sempre tem sido profética, desde o tempo dos profetas. Sa-
be-se melhor da vida de uma sociedade «lendo» os seus arquitetos do
que os seus tantas vêzes cerebrinos sociólogos. Por seu espírito cien-
tífico e realista, o artista da arquitetura moderna está sempre em con-
tacto mais direto com as realidades sociais, técnicas e naturais. Por
isso mesmo, parece melhor armado, entre os demais criadores plásticos,
para viver o presente e prefigurar o futuro.
A VERSATILIDADE E A COMPLEXIDADE DOS ESTILOS
A versatilidade e a complexidade estilísticaso outros aspectos
marcantes queo podem ser esquecidos nas artes da sociedade indus-
trial. Os
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artistaso hoje em dia extremamente versáteis. Estão mu-
dando constantemente de estilos ou de escolas, assim como também de
processos técnicos.o é falta de personalidade, como muita gente
pensa, mas identificação com os nossos tempos, por excelência bastante
versáteis e complexos. Na sociedade moderna,oo apenas arqui-
tetos, escultores e pintores que mudam de estilo tudo muda ràpida-
mente pelos poderes de criação e transformação cada vez maiores da
técnica.
A propósito da versatilidade dos tempos modernos, dando-lhe
raízes nas exigências de consumo da sociedade industrial, escreveu Gal-
braith «Numa cultura que dá alto valor à alteração tecnológica,
haverá a suposição natural de que qualquer produto novo é inerente-
mente superior ao antigo. Esta atitude será explorada por aquêles que
imaginam estratégias de vendas, com o resultado de que uma grande
quantidade de mudanças em produtos e embalagens será feita simples-
mente para se obter algo que seja chamado de novo. Temos aqui a
explicação das repetidas alegações de quase tôda a publicidade de que
os seus produtoso novos».
A complexidade é outra marca da vida moderna que se reflete nas
artes. Por isso mesmo, muitos artistas modernos, principalmente pin-
tores, fundem ou misturam diferentes e, às vêzes, contraditórias escolas,
influências e mesmo técnicas. Diga-se de passagem que complexidade
estilísticao é peculiaridade dos nossos tempos. Apenas parece
hoje mais insistente. Quem quiser se deleitar com um caso na pintura
de fascinante complexidade estilística no passado é só olhar El Greco
misturou o mosaico bizantino, o sensualismo veneziano e o ardente
ascetismo da catolicidade espanhola apavorada com Lutero, num ecle-
tismo capitoso.
A INTERNACIONALIZAÇÃO DOS ESTILOS
A industrialização, com a uniformização dos materiais e das técni-
cas, no campo da plástica promoveu em primeiro lugar a universaliza-
ção das formas da arquitetura.
Nada mais natural, considerando-se que a arquitetura se destina
a satisfazer as necessidades humanas, individuais e coletivas, fundamen-
talmente iguais em tôdas as partes. Todavia, mesmo na aplicação mais
rigorosa do funcionalismo racionalista arquitetônico,o se podem ex-
cluir no estilo internacional as variantes nacionais e mesmo regionais.
Basta se levar em conta a divisão da humanidade em nações tanto do
ponto de vista étnico quanto do ponto de vista social e político, além
da variedade dos meios naturais ou geográficos que ela ocupa, para
se concluir pela relatividade do conceito de uma arquitetura ou de qual-
quer outra arte intransigentemente internacional. O internacionalismo
o exclui, nem poderia fazê-lo, as
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variantes nacionais e regionais. Um
pintor cubista germânico, por exemplo, sob os nevoentos céus nór-
dicos, se impregna de obscura espiritualidade, isenta de cartesianismo
plástico, que encontraremos num francês ou num italiano, que vive sob
a limpidez dos céus meridionais.
Aliás, os fatos da história ensinam que todo o estilo inicialmente
internacional, quando reflete novas etapas de evolução histórica e social
de agrupamentos humanos como os europeus, tende com o tempo a
se nacionalizar. Guarda, no entanto, as características gerais, sinais
das peculiaridades comuns da mesma etapa histórica e social. A nacio-
nalização é reflexo das particularidades do meio natural ou do jugo
inexorável da natureza, ao qual o homemo tem podido se furtar.
A natureza é soberana mesmo nas mais altas abstrações do espírito.
Mesmo quando o homem aumenta o seu poder de transfigurá-la, para
o dizer destruí-la, como parece que agora está fazendo, ao promover
a substituição gradual do meio natural em que êle vivia feliz pelo meio
técnico em que êle agora está existindo cada vez mais infeliz.
No campo dos estilos, assim aconteceu no passado, assim está
acontecendo no presente. A arquitetura clássica grega, por exemplo,
se orientalizou e se romanizou, na fase helenística, sem perda de suas
características marcantes. Adaptou-se às diferenciadas condições na-
turais e sociais às quais fora submetida, diferenciadas mas fundamen-
talmente as mesmas. Outros grandes estilos arquitetônicos do passado
o bizantino, o romànico, o gótico, o renascentista italiano, todos ti-
veram destino semelhante. Também se nacionalizaram.
As formas renascentistas italianas se internacionalizaram no seu
cientificismo e realismo porque foram expressão da mentalidade cientí-
fica e utilitarista da burguesia manufaturara e mercantilista que ascendia
em quase tôda a Europa ao poder econômico e político, quebrando os
velhos quadros econômicos e sociais da Idade Média. A ascensão da
nova e revolucionária classe, servida pelos meios tecnológicos existentes,
começou precisamente nos pequenos e progressistas estados da penín-
sula italiana. Inovadores na ciência e na técnica, os italianos também
o foram nas artes. Assim se tornando modelares as suas atividades
práticas de manufatureiristas e mercantilistas, também modelares se tor-
naram as suas atividades espirituais.
Empire State Building (1930-1932). Nova Iorque. Arquitetos associados Shreve, Lamb
e Harmon. A arquitetura [oi a primeira das artes plásticas a se identificar com os processos
de mecanização do trabalho e estandartização dos materiais característicos da produção e
consumo de massa da sociedade industrial.
Nu descendo uma escada nº 2 (1912). Marce/ Duchamp (1887). Museu
de Arte, Filadélfia. Desde 1909, os futuristas procuraram expressar a
mecanização e velocidade da vida moderna. Cantaram liricamente a
beleza da máquina. Exerceram influência no aparecimento de outras
concepções plásticas no mesmo sentido.
O pássaro emo (1925)'. Constantin
Brancusi (1876-1957). Museu de Zuri-
que. Pela economía do material, sen-
timento de síntese c expressão da vita-
lidade universal, Brancusi {oi um dos
profetas da adequação das formas ar-
tísticas à produção e consumo de
massa. Um dos inspiradores da linha
aerodinâmica nos produtos industriais,
Composição (1923). Pict Mondrian (1872-1944). Coleção particular, Milão.
Partindo do Cubismo, Mondrian estabeleceu princípios de composição e proporções de
espaço, posição e cores, tão elementares que encontraram generalizada aplicação nos
processos maquinários da produção industrial. Por outro lado, sublimou plàsticamente
a sensibilidade mecanicista dos nossos tempos.
Crescimento (1938). Hans Arp (1887). Museu
Guggenheim, Nova Iorque. Outros escultores e
pintores, em lugar de exprimir os dinâmicos ritmos
da mecanização, procuram traduzir a vitalidade uni-
versal, o impulso primordial da vida, indistinto nos
reinos vegetal e animal, [ormas isentas de definições
particulares. Arp como que tenta surpreender a
própria formação das formas de vida.
Construção no espaço. Anton Pevsner (1884-1963). Museu de Ba-
siléia. Sob influência do Futurismo, os escultores construtivistas, os
irmãos Anton Pevsner e Nahum Gabo à [rente, procuraram exprimir
as novas concepções de espaço e a mecanização da vida moderna.
Substituíram as formas tradicionais e estáticas da escultura, por novas
formas extremamente dinâmicas.
Betclgeuse Victor Vasarely (1908). Coleção Denise René. Paris. Criador da Plastica Cinètica, fundada
em cxcitações cetinianas para sensações de movimento veloz, o seu estilo deu origem ¿i Op-Arfe. Um dos
criadores plásticos empenhados na solução do problema de produção e consumo de massa da pintura,
par.i integrá-la nas exigências da vertiginosa sociedade industrial. Entende que a pintura não pode set
feita manualmente, em plena idade da mecanização.
Atualmente, as formas internacionais da arquitetura moderna assu-
mem nos países escandinavos, por exemplo, nos materiais, na técnica
e na expressão, acentos iniludivelmente nacionais.
A verdade, porém, é que num mundo onde as diferenciações raciais
e nacionais se tornam cada vez mais tênues, desaparecido o indivíduo
substituído pela massa, a civilização industrial está produzindo técnicas
e formas universais, que se refletem naturalmente na universalização
dos estilos de arte. A tecnologia elétrica, nos seus processos instan-
tâneos, está apressando essa universalização. «A unidade dos plás-
ticos disse Pierre Francastel tende a se realizar no planeta antes
da unidade das línguas. » Estamos realmente a caminho dessa unidade,
que promoverá as demais, à medida que o homem aumentar o seu poder
sobre a natureza e tornar menor o império dela, quando passará a
viver mais no meio técnico do que no natural. Mas até que se cumpra
essa improvável etapa da evolução humana, o domínio completo e a
neutralização da natureza,o se pode deixar de ir reconhecendo que
quanto mais identificados com as realidades naturais e sociais, em outras
palavras, quanto mais nacionais, mais internacionais se tornam as formas
artísticas. Certamente isso ocorre quando o artista, nos seus processos
intuitivos de eleição, soube captar e exprimir, no âmbito restrito de
sua vivência natural e social, os ritmos elementares da vida, queo
apreendidoso pela percepção intelectual, mas pela percepção sensí-
vel ou vital, que é a mesma em todoss e, por isso mesmo, universal
no espaço e no tempo.
A PROSPERIDADE E A ARTE
As perspectivas que os progressos da ciência e suas aplicações
práticas na era da eletrônica estão abrindo ao futuro da humanidade
simplesmente maravilham.
Todos sabem, dizem e escrevem que à medida que o homem
r se libertando das necessidades e privações físicas, da fome, nudez
-e desabrigo, com a abundância dos bens que a técnica está promo-
vendo, maiores serão as suas necessidades espirituais de sublimação
através da arte. As gerações futuras, libertas das necessidades físicas
elementares e do castigo bíblico de ganhar oo com o suor do rosto,
serão gerações ociosas, mas artísticas. O «mundo dourado do bem
«Star» e da ociosidade dignificada pelas ocupações do espírito: A hu-
manidade só de artistaso tardará muito.
IMPORTÂNCIA HISTÓRICA DE BRAZILIO ITIBERÊ
DA CUNHA E DA SUA FANTASIA
CARACTERÍSTICA "A SERTANEJA"
HELZA CAMÊU
JLM 17 de junho de 1869, o «Correio Paulistano» anunciava o
lançamento da Fantasia Característica, intitulada «A Sertaneja», de
autoria de Brazilio Itiberê da Cunha, então estudante da Faculdade
de Direito de S. Paulo. Logo no noticiário da época encontram-se
referências freqüentes à música em apreço por inclusão em programas
de concerto. Até aí nada demais, pois era, como até agora, fato
rotineiro. Mas, se naquele momento logrou inequívoca aceitação,
naturalmente por sua originalidade, depois do advento do nacionalismo
musical a peça passou a ser considerada de importância capital e seu
autor apontado como pioneiro do movimento que veio a se consolidar
nas primeiras décadas do 900. As razões derivam de um único ponto:
o tema popular inserto na obra.
com isso abriram-se caminhos às pesquisas de profundidade no
intuito de esclarecer se houve, de parte de Brazilio Itiberê, intenção
de fazer música brasileira ou se a peça apenas reflete sua disposição
de espírito naquela ocasião, motivada por fatores aindao claramente
percebidos. De qualquer forma que se estabeleça a procura das razões,
estas convergirão para um só e mesmo resultado: a nacionalização
musical.
Que na época havia preocupações nacionalistas ê fora de dúvida,
mas será preciso provar que isso interessou os compositores de um
determinado nível. Porque música de sentido brasileiro já existia na
época; a nacionalização visava somente a obra mais elaborada, pois
esta é que se mantinha fora do plano nacional. Para uma certa camada
social e até profissional, música clássica era denominação aplicada a
todo e qualquer gênero fora do popular. Balisando o movimento
musical do tempo, conclui-se que o nível artísticoo correspondia ao
sentido que hoje lhe é dado. Além demais faltavam escolas, professores
credenciados, sobretudo interessados nas manifestações típicas brasileiras.
A musicalidade brilhante, entontecida pelo sucesso fácil, deixava-se
levar pela intuição, desperdiçando talento, que uma boa formação
teria disciplinado, aproveitado melhor. Mas a verdade é que o
momento aindao comportava a avaliação de níveis devido à absoluta
falta de preparo e às condições sociais.
AMBIENTE MUSICAL
No panorama musical da época distinguiam-se três categorias:
a que apreciava e praticava música clássica e romântica, a que fazia
música popular e a que se deliciava com o gênero salão.
É claro que a primeira vivia em sociedades fechadas, os clubs,
e às vêzes quase em família, como sucedia no lar de João Manoel da
Cunha, pai de Brazílio Itiberê. A música popular ficava naturalmente
em seu ambiente próprio, enquanto o gênero salão vicejava dentro de
uma sociedade pouco exigente em matéria de arte.
As Províncias, naturalmente, copiavam a Corte.
Nesta altura será preciso frisar que música de salãoo pressupõe
sistemàticamente produção de segunda ordem, visto obras de mestres
do Romantismo incluirem-se nessa categoria. Mas o que se difundiu
mais no Brasil desse tempo representou uma distorsão do romântico,
tal a sobrecarga de artifícios que o caracterizou. Virtuosismo fácil
derivado da valorização justa ou exagerada do intérprete, às vêzes
artista de possibilidades invulgares, como um Liszt, um Thalberg.
Mas essa valorização, plenamente justificada em certos casos, im-
pressionou demais os menos categorizados e o amador, sempre ansiosos
pelo sucesso imediato. Daí a abundância de música de nível duvidoso
de permeio com a boa produção.
As condições do meio encareciam a composição de conteúdo
brilhante, assim como a de caráter langoroso, piegas e as peças de
bravura, mais feitas para o sucesso fácil do que para se imporem;
ainda encareciam a temática de origem operistica e popular. E porque
valorizavam essas particularidades, favoreciam o aparecimento de
fantasias, paráfrases, variações e mais uns tantos tipos reveladores
de nível fraco, sem possibilidades de continuação.
Atentando para os dois pontos básicos da composição musical
da época ópera, tema e ritmo populares, será fácil encontrar-se
a relação direta com a obra romântica que entrou no Brasil através
do piano e na qual foram largamente explorados os dois recursos.
A produção brasileira desse momento apareceu inteiramente
calcada naqueles modelos.o foi, portanto, repertório popular,
mas de tipo intermediário que tanto agradava ao profissional, como
lisonjeava o amador. Esse modeloo desapareceria logo (se é que
chegou a desaparecer), mas foi continuado, ainda figurando nos prin-
cípios do século, em obras assinadas por nomes ilustres. O meio, o
nível de cultura musical, estavam naturalmente condicionados a acei-
tarem esses tipos característicos de momento de transformação, criados
mais pela personalidade do intérprete do que pela do compositor.
A música de sentido nacional, no entanto, já existia no seio do
povo, apenas suas particularidades ainda eram desconhecidas pelo
músico de formação acadêmica e ainda mais pela sociedade, que a via
como produto de segunda ordem. Daí a divisão em campos antagônicos.
Realmente há distinção entre música e música popular dando causa à
divisão em gêneros diferentes, maso opostos, de conteúdo e caráter
diversos, mas sujeitos às mesmas normas lógicas de formação e até
desenvolvimento. Entre eles, portanto, há pontos de contato, de
aproximação, mantendo constante interdependência, muito favorável às
músicas nacionais.
O preconceito dificultou a expansão da obra brasileira, pois os
músicos de talento que, aqui, namoravam as toadas da terra e escreviam
aproveitando as fórmulas usuais do populário, saindo para o estrangeiro
como que perdiam em entusiasmo e, seo abandonavam de todo o
contato com a música brasileira, arrefeciam, perdendo em colorido e
originalidade. Esse o caso de Brazílio Itiberê da Cunha.
A falta de conhecimento sobre as verdadeiras características po-
pulares deu ensejo a interpretações e estas favoreceram as influências
estranhas.
A música de salão que floresceu no Brasil no século passado
representa a reprodução fiel do que aqui foi introduzido de autoria de
Schulhoff, Smith, Leybach, Lack, Thaíberg, Napoleão, Ascher, Gotts-
chalk. Mas sobretudo Gottschalk, cuja música precedeu sua chegada
ao Brasil, em 1869. E nela depara-se com o aproveitamento da temática
popular, aliás já encontrada na obra de Chopin e de Liszt. Mas nem
Chopin, nem Liszt gozaram de tanta popularidade como o compositor
americano e isso, simplesmente, devido à sugestão do tema (geralmente
de procedência negra), dos ritmos, dos títulos e ainda mais pela faci-
lidade de comunicação.
No caso brasileiro a influência desse repertório de nível inter-
mediário, pelo fato deo ser produto do próprio meio, deu ensejo
a experiências válidas, pois estas abriram caminho a nova estética, esta
sim, de interesse nacional legítimo. Na época seria impraticável dar
ênfase às verdadeiras características populares.
A FAMÍLIA ITIBERÊ
Na família Itiberê, em vida do seu chefe, João Manoel da Cunha,
havia culto pela música clássica. Em sua casa fazia-se música de
câmara com o conjunto constituído pelo próprio João Manoel da Cunha,
como 1" violino, seu irmão Jacinto Manoel, 2" violino, José Brito, viola,
e o Dr. Bento Menezes, violoncelo ou piano.
Na época, os conjuntos amadores desempenharam função relevante
na educação musical no interior do Brasil. Assumiam o papel de
orientadores abnegados, porque se instruíam, faziam por prazer e in-
terèsse em divulgar sempre mais, levando, aumentando ou consolidando
cultura. Também João Manoel da Cunha e seus colaboradores faziam
música sem se aperceberem do alcance de sua iniciativa.
Num ambiente desses as tendências e as vocações artísticas desa-
brochariam naturalmente. E foi o que sucedeu: seus filhos e netos,
como também parentes próximos, o continuaram e alguns o fizeram
através da composição.
Nesse meio Brazílio Itiberê da Cunha viveu até aproximadamente
os 19 anos, quando se matriculou na Faculdade de Direito de S. Paulo.
As informações a respeito de sua instrução musicalo falhas.
Sabe-se que estudou, primeiro, violino para depois iniciar o piano com
sua irmã, Maria Lourença. Quem teria sido o professor de violino?
Até onde teriam ido esses estudos? Nada se sabe. Falam em Gotts-
chalk (naturalmente na parte referente à composição) mas, se houve
aproximação, esta somente poderia ter se dado durante a estada do
compositor americano em S. Paulo, em 1869, ano em que desembarcou
no Brasil e aquí faleceu. Foi, portanto, uma estada de alguns meses
apenas, a qual grande parte absorvida por iniciativas gigantescas (tal
o número de instrumentos programados) queo daria oportunidade
a qualquer contato naquele sentido. Gottschalk deveria ter influido
pela presença e, sobretudo, através de sua composição, jâ divulgada
antes da chegada ao Brasil. Por essa época «A Sertaneja» já fora
lançada, publicada, fazendo parte do repertório pianístico de quase
todo o Brasil.
Pelo que ficou registrado, Brazílio Itiberê deveria ter sido pianista
brilhante, de técnica fácil, mas issoo chega a concluir por boa
preparação, pois há habilidades inatas, surpreendentes, a esse respeito.
Tôda a produção musical de Brazílio Itiberê da Cunhao traz
qualquer vestígio de convívio com os clássicos, o que faz pensar que
o meio familiar nada influiu no desenvolvimento de sua musicalidade.
o teria influido realmente? Ou o novo ambiente, o da Faculdade,
mais favorável à expansão do espírito jovem, teria desvanecido de todo
a orientação inicial? Também será possível aventar que, embora em
sua casa praticassem música de alto gabarito, Brazílio Itiberêo par-
tilhasse dos mesmos pontos de vista, enveredando por trilha diversa.
O problema da juventude é sempre o mesmo em tôdas as épocas: re-
beldia em relação ao passado.
O tema d'«A Sertaneja» demonstra seu conhecimento, mesmo que
superficial, do folclore da região paranaense, conhecimento fácil, insi-
nuado, vindo da boca do povo e que, por isso mesmo, deixou impressão
profunda. Para chegar a saber-se de onde veio o interesse de Brazílio
Itiberê pelo folclore, seria preciso conhecer muito melhor a vida da
família de João Manoel da Cunha, o que até agora foi impossível.
A FACULDADE
Saindo do Paraná, então ainda Comarca de S. Paulo, Brazílio
Itiberê da Cunha se matriculou na Faculdade de Direito de S. Paulo,
em 24 de março de 1866, contando 19 anos, pois nasceu em 1* de
agosto de 1846. Iniciava vida nova.
Estabelecer ligação entre a vida familiar, o meio paranaense e o
ambiente de Faculdade, seria resposta para algumas interrogações
provocadas pela atividade de Brazílio Itiberê da Cunha em S. Paulo.
É possível que o contato com a massa estudantil, heterogênea, tenha
modificado convicções. Mas modificado ou reforçado?o há meios
que provem que só depois de seu ingresso na Faculdade é que tenha
demonstrado interesse pelas características populares. O certo é que
desse tempo é a melhor parte de sua produção musical.o fugindo
ao gosto da época, sua música revela atenções para com o popular
e ainda guarda umas tantas constancias. Esses traços, que deram
cunho brasileiro a um estilo quase universal o salão, estão pro-
vandoo só a sensibilidade afinada com o espírito boêmio e popular
de sua geração, como as próprias intenções do compositor.
Quando Brazílio Itiberê entrou na Faculdade esta já contava com
uma tradição musical deveras interessante, digna de ser apreciada e
estudada, pois daí talvez saiam mais esclarecimentos sobre o movimento
nacionalizante. Tem-se notícia de que as preocupações nativistas já
atingiam o lado musical. Carlos Penteado de Rezende transcreveu
em sua obra, «Tradições Musicais da Faculdade de S. Paulo», trecho
do artigo de Vicente Xavier Toledo, inserto no «Correio Paulistano»
de 8 de agosto de 1867, incitando os músicos à luta:
«Prevalecemo-nos do ensejo para exprimir o desejo que temos de
ver nacionalizada também a música no Brasil. Apareça um Glück e
tudo será feito nesta terra onde a poesia germina em todos os corações».
O ensejo derivava diretamente da Campanha Abolicionista, da
qual Brazílio Itiberê sez colaborador ativo, participando do entusiasmo
geral, colocando-se a serviço da campanha, tomando parte em concertos,
como pianista e compositor, ainda cooperando para alforria de escravos.
Num ambiente onde todos comungavam dos mesmos ideais altruísticos,
onde Música e Poesia, de mãos dadas, contribuíam para abrilhantar e
concorrer materialmente para fundos beneficentes, é fora de dúvida
que os espíritos jovens, compenetrados de sua participação na vida
nacional, estavam capacitados a dar ênfase a tudo o que engrandecesse
a obra brasileira. E justamente por isso a música dos estudantes
fosse moldada à feição do que existia no meio popular e no gosto da
maioria: lundus e modinhas, música de salão, marcada por características
brasileiras.
Em comparação com a Poesia, realmente tocada pelo entusiasmo
do momento, a Música contribuiu bem modestamente, embora, daí
tenha saído estímulo para a obra nacional.
Mas qual a espécie da música mais difundida no meio estudantil?
Do que se conhece nada diferia do que se fazia na Corte. Além
da modinha e do lundu, o repertório ainda comportava as danças de
procedência européia: valsas, schottischs, polcas, etc. Quanto a estas,
é certo que houve, naturalmente, adaptação espontânea, em virtude de
interpretações provocadas pelas condições ambientes.
A composição dos colegas de Brazílio Itiberê, em grande parte ou
mesmo na totalidade, foi realizada como música de salão: fantasias,
variações e árias variadas, peças características. Qualificando como
característico tinham como propósito destacar o lado interessante ou
excêntrico da peça. Antônio Cardozo de Menezes em sua polca «Os
canários» indicou-a dessa forma para ressaltar o efeito no registro
agudo do piano imitando o canto do pássaro; Brazílio Itiberê usando
a mesma palavra quis se referir ao tema popular.
Da épocao as coleções: «Alegria dos salões», «Colar de pérolas»,
«Souvenirs de l'opera» e outras tantas.
o há indícios de que na Faculdade de Direito de S. Paulo,
no período em que Brazílio Itiberê a freqüentou, tivesse lugar a música
clássica, nem mesmo a dos mestres do Romantismo. Tudo se media
pela bitola do fácil, do agradável, do brilhante, quandoo do medíocre
irremediável.
com o tema popular inserto em «A Sertaneja» Brazílio Itiberê
escapou do comum, projetando-se para uma etapa memorável.
O TEMA POPULAR
A inclusão do tema popularo se revestiu de originalidade
absoluta na época de Brazílio Itiberê, visto já em 1819, compositor
austríaco Sigismund Neukomm, aportado ao Brasil, em 1816, na co-
mitiva do Duque Luxemburgo, ter utilizado o tema de um lundu no
rondó «O amor brasileiro». Na peça de Neukomm a linha musical
do tema ficou desfigurada devido a clima haydniano, enquanto em
Brazílio Itiberê marcaram-se características de época: o ritmo de
habanera e o tema popular.
As transformações lógicas, que encaminharam até o ponto em que
esses elementos passaram a interessar o compositor, estão naturalmente
ligadas ao processo de difusão e integração verificado na prática da
música em diferentes camadas sociais. Essas transformaçõeso se
operaram no transcurso de uma ou duas gerações;o pouco as mo-
dificações deram tempo à observação direta, imediata. Quando o
tema popular e os ritmos se impuseram é porque condições especiais
já os amparavam e impunham. A presença do colono, a permanência
do negro escravo no seio da família e, sobretudo, sua influência junto
a gerações mais novas concorreram para difusão das características de
cada um. A tradição oral se, por um lado, deu oportunidade à di-
vulgação e à continuação, nem sempre contribuiu para a fixação.
Muita coisa se perdeu à falta de quem a lembrasse, a registrasse.
O aproveitamento do tema popular se impõe quando a consciência
nacional desperta e isso foi o que sucedeu na época da criação d'«A
Sertaneja». É certo que já havia exemplos e estes nada significariam
seo existissem condições favoráveis. Quer parecer que a campanha
abolicionista foi estímulo à nacionalização musical. Apenas, pelo fato
de, no momento, predominar o amadorismo fácil, a nacionalização foi
retardada de alguns anos mais. Mas foi o amadorismo que permitiu
a inclusão na obra de classe dos elementos nacionalizantes que abririam
caminho à música brasileira.
A utilização do tema popular, acompanhado ouo das caracte-
rísticas rítmicas, aponta o início da fase consciente da música nacional.
A SERTANEJA
Quando e onde Brazílio Itiberê da Cunha teria escrito sua Fantasia
característica?
Esta a interrogação que preocupa diante da posição do seu autor
no panorama da música brasileira.
Suas filhas, Sras. Maria Brazília Itiberê Bernardes e Maria
Adelaide Itiberê Mendes de Almeida, julgam realizada em 1864, en-
quanto um dos seus irmãos, o crítico João Itiberê da Cunha a situou
entre 1866 e 1868. Carlos Penteado de Rezende opina: «A Sertaneja»
pode ter sido elaborada entre 1863 e 1865, quando estudava prepa-
ratórios . A idade e a pouca experiência do autor, porém, servem de
argumento em contrário. O mais verossímil é que fosse composta ou
em 1866, ou 1867, ou 1868». O certo é que o «Correio Paulistano*
de 17 de junho de 1869, anunciou seu lançamento.
Escrevendo-a no Paraná ou já em S. Paulo, nenhuma diferença
trará ao curso do raciocínio, pois, de qualquer forma, ao fazê-lo,
Brazílio Itiberê deu franca expansão à sua musicalidade aindao
disciplinada por estudos teóricos. Estes, feitos mais tarde, e aliados
à permanência em meio estranho, cortaram-lhe os arroubos nacionalistas,
a originalidade, dando ocasião a trabalhos completamente destituídos
de interesse.
o foi apenas com «A Sertaneja» que o compositor procurou
fazer música brasileira, pois a «Dança americana» apresenta a mesma
intenção. Em várias outras peças da fase estudantil, que foi a que
viveu no Brasil antes de ingressar na carreira diplomática, encontra-se
a característica brasileira aflorando espontaneamente. Essa influência
da música popular está presente até em trabalhos escritos já no estran-
geiro, como pode-se notar no Noturno, um dos números das «Noites
Tropicais».
Mas o que interessa no caso é saber se Brazílio Itiberê da Cunha
agiu instintiva ou intencionalmente.
Tudo indica que, naquela ocasião, houve intenção de ressaltar os
elementos vindos do povo. Essa intenção se concentra no sub-título
d'«A Sertaneja» Fantasia característica. com isso Brazílio Itiberê
quis dar relevo ao tema e ao ritmo, no caso o de habanera, por certo
mais difundido na época.
com a «Dança americana», Brazílio Itiberê pensou em explorar cr
lado rítmico, ainda pouco conhecido e, por isso, depara-se com mais
uma tentativa,o propriamente visando a música brasileira, mas a
música continental. É forçoso admitir que em tudo há improvisação,
aliás compreensível dadas as condições do momento.
Certas particularidades que aparecem na obra de Brazílio Itiberê
provam insinuações, influências em vias de fixação.
«A Sertaneja» avulta no conjunto da obra de Brazílio Itiberê.
Nela ficou marcado um ponto distante de transformação, ainda pouco
sensível na época, em caminho da realização consciente; transformações
operadas através do aproveitamento de ritmos e do tema popular.
Este bem mais importante, pois ainda apareceria na obra dos com-
positores responsáveis pelo desenvolvimento em termos nacionais.
D'«A Sertaneja» partiu o incentivo para criações mais significativas:
suas linhas serviram de modelo de como explorar o tema popular.
E, estranho que pareça, Brazílio Itiberê da Cunha foi o mais feliz
nesse sentido, pois soube, como nenhum outro, nem mesmo os músicos
profissionais, valorizar um motivo simples como o do «Balaio...».
Depois de Brazílio Itiberê, o primeiro a utilizá-lo foi o paulista
Alexandre Levy, que tanto poderia tê-lo tirado da obra de Sant'Anna
Nery, Folk-Lore Brésilien, obra editada em Paris, em 1889, como poderia
ter-se inspirado na própria «A Sertaneja». De qualquer forma a
sugestão partiria da mesma fonte, visto os exemplos contidos no livro
citado terem sido fornecidos por Brazílio Itiberê. Ainda deve-se
atentar para o fato de «A Sertaneja» ser posta à venda, em 1869,
simultaneamente pelas casas H.L, Levy e Mme Fretin, de S. Paulo.
Por èsse tempo Alexandre Levy contava apenas 5 anos, mas a música
z carreira, e por essa razão devia tê-la ouvido muitas vêzes. Além
disso o próprio interesse nas coisas nacionais o teriam levado a apreciar
a composição do estudante Brazílio Itiberê.
A maneira por que Alexandre Levy aproveitou o motivo demonstra
claramente a influência do músico amador. O mesmo pode-se notar
nas «Variações sobre um tema popular», de Francisco Braga, cujo
desenvolvimento estabelece imediata aproximação com seus antecessores.
Alberto Nepomuceno também explorou o mesmo tema na peça para
piano «A Brasileira» (da qualo se conhece a data de composição)
e no Prelúdio de «O Garatuja», trabalho realizado em 1904. Finalmente
Luciano Gallet, em 1923, retomouo o motivo popular, mas a própria
peça procurando transformá-la na «Rapsódia Sertaneja». Justificando
seus pontos de vista, Luciano Gallet escreveu a Mário de Andrade
em 1926: «É fácil constatar que evitei, cuidadosamente, fazer obra
minha. Quis exclusivamente valorizar a música de Brazílio Itiberê.»
A intenção foi boa, mas o resultadoo correspondeu, pois muito mais
interessante é a peça original.
Se «A Sertaneja», possivelmente, é de 1866 a 1868, como pensa
Carlos Penteado de Rezende, o trabalho de Gallet, de 1923, surgindo
Brazílio Itiberè da Cunha
1846-1913
54 anos após a publicação d'«A Sertaneja», dilata, significativamente,
o tempo para utilização de um tema popular.
O canto «Balaio», parece que teve como área de expansão o
litoral paranaense para onde afluiu, no passado, regular contingente de
açorianos. Por isso tem-se como provável a procedência portuguesa,
vindo a fixar-se no Paraná de onde se irradiou. Sua identificação é
feita ou pela letra ou pela linha musical. O motivo em tela foi
encontrado também em Pernambuco, Sergipe, Bahia, Minas, Rio de
Janeiro e Rio Grande do Sui. Sua linha melódica se confunde com
a do «Pinicapau» ou «Pica-pau». Um dos primeiros, senão o primeiro
a divulgá-lo foi o baiano Nuno Marques Pereira, quando cuidou de
pássaros brasileiros em sua obra publicada em Lisboa, em 1728, Com-
pêndio Narrativo do Peregrino da América.
F. A. Pereira da Costa, em Folk-Lore Pernambucano, considera
o tema como baiano e que serviu a sátiras endereçadas ao Governador
da Província da Bahia, Barão de Boa Vista (1841/42). Joaquim
Norberto de Souza e Silva o aponta como fado mineiro muito antigo
e vulgarizado em Pernambuco. Silvio Romero o dá como dança
sapateada muito popular no Rio Grande do Sul e logo o identifica
nos Reisados da Borboleta, do Maracujá e do Pica-Pau, em Sergipe.
O motivo do «Balaio. . .» figura ri A Música no Brasil, de G. Pereira
de Mello. Alexina de Magalhães Pinto estampou a versão mineira
do citado canto, enquanto Oneyda Alvarenga repete as informações
de Pereira de Mello e Silvio Romero.
Nas linhas melódicas dos cantos recolhidos por esses pesquisadores
ou coincide o desenho completo ou repetem-se pontos básicos.
O roteiro do motivo popular tem sido longo mas, embora modificada
no contorno melódico, na letra ou mesmo nas intenções, há pontos que
ligam as diferentes versões e entre estes a quase constância do primeiro
verso: «Balaio, meu bem, balaio». Meu bem ou meu bom? A versão
fornecida por Brazílio Itiberê a Sant'Anna Nery, traduzida para o
francês, indica bom eo bem: «Panier, mon bon panier/ Panier du
pintingao/ Qui n'a pas de panier/ Met sa couture par terre.»
Na versão divulgada por Pereira da Costa encontra-se: «Balaio,
meu bem, balaio/ Balaio do coração/ Quem tiver o seu balaio/o
saia com êle não/ Que os rapazeso travessos/ Botam o balaio
no chão.»
Nepomuceno poderia ter conhecido o motivo em causa através
de uma das versões que chegou até o Norte brasileiro. No entanto
o local de trabalho. Rio de Janeiro, e a época parecem indicar sugestão
direta de «A Sertaneja».
Brazílio Itiberê da Cunha, além de utilizar o tema popular, ainda
deu a um dos períodos da peça o ritmo de habanera, coisa que, hoje
em dia, parecerá estranho, visto o ritmo em questão fugir completamente
da sensibilidade brasileira. Isso agora, depois que se consolidaram as
características nacionais, depois que tomaram conhecimento do que
realmente o povo empregava e praticava. No tempo de Brazílio
Itiberê, e mesmo depois, pretenderam usar a fórmula rítmica da
habanera como típica da música brasileira. É claro que isso se verificou
entre os compositoreso familiarizados com o meio popular. Ainda
nos fins do século XIX, Carlos de Mesquita escrevia sua 2* Habanera
sobre motivos brasileiros, peça queo diferia muito, rítmicamente, da
Canção Crióla sobre motivo espanhol, também de sua autoria. Em
1890, Alexandre Levy compôs seu «Tango Brasileiro», o qual, segundo
o redator chefe da «Gazeta Musical», no número de 17/2/1892, era
«finamente acabado e conservando o nossoo afandangado ritmo
nacional...»
Ainda por esse meio pode-se notar que Brazílio Itiberê quis fazer
obra brasileira, e a realizou no gênero salão característico da época.
Diante das condições artístico-sociaiso poderia ser outro o
caminho para a música de cunho nacional. Os elementos que, na
ocasião, poderiam marcar as intenções nacionalistas foram justamente
os utilizados por Brazílio Itiberê da Cunha, elementos esses também
encontrados na música vinda do estrangeiro. Brazílio Itiberê da Cunha,
seo foi original, contudo mostrou-se inteligente, útil, ao transpor
para sua composição os pontos essenciais, necessários, à construção
de uma obra nacional, de cuja realidade estavam ainda bem distantes.
com isso é possível afirmar que o compositor estudante agiu consciente
e deliberadamente, demonstrando idéias bem avançadas em relação ao
momento e ao meio. Que outros tenham lançadoo do tema popular,
antes ou depois, nenhuma importância apresenta porque foi a peça de
Brazílio Itiberê da Cunha que realmente ficou atestando o principio
consciente de uma nova fase da Música no Brasil.
A IMPORTÂNCIA HISTÓRICA DE BRAZÍLIO
ITIBERÊ DA CUNHA
Se a Fantasia Característica, «A Sertaneja» foio só exemplo
como incentivo aos compositores interessados na obra de sentido nacional;
se ainda foi tomada como modelo para a elaboração de trabalhos de
maior envergadura, é claro que seu autor teria naturalmente de ser
destacado do panorama de sua época para ocupar a posição a que
realmentez jus.o importa que Brazílio Itiberê tenha sido um
amador e sua música se enquadrasse num gênero intermediário, carac-
terístico de época, muitas vêzes de valor duvidoso. A importância
histórica do músico paranaense mede-se pela repercussão d'«A Ser-
taneja» no processo de desenvolvimento da música brasileira. O direito
ao título de precursoro está ligado apenas à obra em si mesma,
nem à ordem cronológica, mas sobretudo à ligação que se estabelece
entre gerações sucessivas, que, assim,o construindo a tradição.
Foram os músicos nacionalistas e, mais tarde, os compositores nacionais
que, conscientemente, contribuíram para a consagração do nome de
Brazílio Itiberê da Cunha, tomando-lhe «A Sertaneja» como padrão
de obra nacional.
«A SERTANEJA?, ANALISE
Sempre que aparece «A Sertaneja» vem à baila, fatalmente, o
motivo do «Balaio, meu bem, baiaio», que, na verdade, é a razão de
sua longevidade e celebridade. Apontam-no como um dos temas da
fantasia e nada mais. Os outros trechoso considerados de criação
do autor, apenas fazendo lembrar ritmos e ambientação nacionais.
Também há quem a veja como rapsódia.
A análise da peça, no entanto, dá como resultado um só esquema
para todos os motivos e èsse esquema parece ter origem no do
«Balaio. . .»
Ora, no suplemento musical da obra de Sant'Anna Nery, «Folk-
Lore Brésilien», há sete números devidos à colaboração de Brazilio
ltibirê e que estão apontados mesmo como «Noté par Mr. I. da Cunha»:
o «Balaio, meu bom balaio», o «Bitu», classificados como modinhas,
cujas letras, infelizmente aparecem vertidas para o francês, um canto
indígena e mais quatro «airs sans paroles». Entre as quatro «airs
sans paroles» está um dos motivos da «A Sertaneja».
É estranho o encontro de cantos sem palavras na música popular.
O povo canta focalizando alguma coisa ou algum fato, modificando
ou deturpando a letra, mas nunca a abandonando totalmente. É
possível que, ao grafar a música, Brazilio Itiberêo tivesse lembrado
a letra, maso é propriamente a falta desta que causa estranheza,
mas a indicação «sem palavras».
Entre a canção do «Balaio...» e um dos cantos sem palavras
há afinidades que parecem provirem de uma só e mesma fonte:
Os esquemas dos dois motivos coincidem curiosamente fazendo
supor que o primeiro, pela maior simplicidade, é que tenha dado
aparecimento ao segundo. Seria interessante saber se, realmente,o
cantos distintos firmados em base comum. Isso seria possível admitir
tendo em vista a limitação da linha musical.
Brazílio Itiberê, ao aproveitar-se dos dois temas,z modificações
dando ensejo a nova interrogação. Assim, no motivo do «Balaio. .,
substituiu a sincopa por valor pontuado seguido da fração complementar
o que tornou o desenho mais quadrado.
No canto sem palavras transformou os mordentes (N) em quiálteras.
Qual das versões seria a original?
Quer parecer que deveria ser a contida na obra de Sant'Anna
Nery, visto tratar-se de trabalho de valor documentário.
Pelo fato de os dois motivos apresentarem base comum faz supor,
ainda mais, que o «Balaio...» tenha sido realmente o inspirador da
«A Sertaneja». Inspirador no sentido exato de motivo que deu ensejo
ao aparecimento de outros temas, aparentemente estranhos. Isso é
conhecido na forma da variação por amplificação, onde o tema condutor,
ainda reconhecível melódica, rítmica e harmonicamente, surge profun-
damente modificado a ponto de tomar feição absolutamente nova e
independente. Mário de Andrade teve ocasião de observar que a
forma de variação é muito comum no populário, especialmente nos
cocos. O mesmo pôde ser notado, em 1948, na música do grupo
indígena «Guaikurus». (Documento gravado por Darcy Ribeiro.)
Escrevendo a peça mais ou menos aos 18 ou 19 anos,o se
sabe se Brazílio Itiberê já fizera estudos de teoria superior da Música.
Certas indecisões em algumas das composições dessa época deixam
dúvidas a respeito. Tudo leva a crer que Brazílio Itiberê foi guiado
exclusivamente pelo acentuado pendor musical, muito bem demonstrado
através da espontaneidade da criação. De tal forma o tema o
interessou que, inconscientemente, trabalhou-o, extraindo dele os demais
temas da peça, que aparecem como verdadeiras variações das quais a
base, o esqueleto do contorno melódico é sempre, invariavelmente, o
do «Balaio...», que, dessa maneira, passou a desempenhar o papel
de motivo gerador.
Analisando a peça verifica-se que é constituída por uma Introdução,
longa de 47 compassos, e 4 períodos encadeados por ligações:
IMPORTÂNCIA HISTÓRICA DE BRAZÍLIO ITIBERÊ DA CUNHA
Em C está contido o motivo gerador sem qualquer artifício.
Tomando o desenho inicial (Introdução) depara-se, logo no
primeiro compasso, com a cabeça do tema (mi-lá) modificada pelo
fato de aparecer em tempo forte marcando a tônica, por isso em
intervalo invertido ( 1 ) :
na parte aguda (2) com linhas melódicas calcadas no motivo gerador
que,, sofre modificações no ritmo, nos graus modais (por alteração)
e ainda pela supressão de notas:
Rematando a Introdução (5) o mesmo desenho visto em 4 (x) é
repetido por diminuição, o que quer dizer que ainda é um fragmento
do tema que sugeriu esse desenho curto que serve de ligação:
Este mesmo desenho é apresentado no tom da dominante com as
mesmas características da parte analisada.
Ainda na Introdução (do compasso 11 ao 27) há uma frase lírica
queo é mais do que o motivo gerador apresentado por aumentação
e privado da parte inicial (anacrústica) e da final, tendo como ponto
de partida o 6" grau baixado, quando este participa do acorde de
sétima diminuta (lã bemol menor) e o 5" quando no acorde perfeito
do l
9
grau (4) :
IMPORTÂNCIA HISTÓRICA DE BRAZÍLIO ITIBERÊ DA CUNHA
Finalmente em A a peça começa a desenvolver-se, e o que se
encontra é a mesma combinação do desenho inicial ( 1 ) da Introdução
apresentado logo com o acorde completo, isto é, com a 3
9
, o que lhe
dá característica tonai definida. Também aí está o motivo gerador
dissimulado por alteração e supressão de notas.
Em C, finalmente, aparece o tema do «Balaio. ..» claramente
exposto e completo:
como no desenho inicial, pode-se notar, no primeiro compasso de A,
a sugestão da cabeça do tema (mi-lá).
com o aparecimento de B surge nova idéia a qual, ainda uma
vez, é o tema gerador incompleto e modificado, exatamente como foi
explorado na Introdução: por aumentação e diminuição.
A ligação que se encontra entre este último período (C) e o
seguinte (D) também está calcada no tema, mas aí disfarçado num
harpejo descendente do acorde perfeito de lá bemol maior, apenas
com os sons essenciais:
Ao aparecer o 4
9
período (D) depara-se com o canto sem palavras
completo:
Entre C e D há nova ligação (7) que obedece ao mesmo motivo
das anteriores, mas desta vez vem modificado por aumentação e su-
pressão de notas:
Ao chegar à Coda enccntra-se novamente o tema gerador exposto
com clareza, mas interrompido:
como foi observado o tema do «Balaio...» foi aproveitado
n'«A Sertaneja» em tôdas as suas minúcias, o que demonstra que o
autor estava de tal forma saturado do motivo popular que pôde
apresentá-lo seguidamente, fragmentado, dissimulado e mesmo completo,
sempre com aparência nova e interessante capaz de iludir numa leitura
superficial. Assim, se na Introdução há atmosfera vaga condizente
com a natureza do trecho, motivada pela ausência da 3* no acorde
perfeito (lá bemol,, mi bemol), em A èsse mesmo grau marca o
sentido tonal, dando, desse modo, início ao desenvolvimento da peça.
Tá em B a construção tem clima próximo à modinha, malgrado a
presença de quiálteras, vindo logo em seguida a dança e em D o
movimento de habanera. Em conjunto há graça e lirismo contrastando
agradavelmente.
A harmonia recai sistemàticamente sobre o, 4º e 5º graus e
as raras modulaçõeso de caráter passageiro, geralmente aos tons da
dominante e subdominante e uma única vez, na Coda, ao tom do 3°
grau (dó menor) por meio de acorde comum. Todos os harpejos e
escalas, queo à peça toque de virtuosismo, projetam-se, invaria-
velmente, para a dominante, o que a mantém sempre próximo ao tom
principal.
Embora a armadura indique o tom de lá bemol maior, desde a
Introdução sente-se o modo menor pelo emprego seguido do abaixamento
do 3* e 6" graus. Justificando a indicação tonai aparecem os períodos
C e D e mais a Coda.
Na harmonia encontram-se elementos que provam quanto Brazílio
Itiberê estava integrado com os processos da música popular e entre
eles estão: a maneira de passar do modo maior para o menor dentro
da mesma tonalidade e a modulação para a subdominante. Curiosidades
que Mário de Andrade encontrou na modinha e apontou como matéria
para criar planos tonais característicos.
N'«A Sertaneja» os períodos se encadeiam tendo como apoio, que
soa quase como um refrão, o período A, de forma a dar ao conjunto
o seguinte quadro:
Introdução A B — A' C D C A" B' Coda
O quadro é o de um rondó imperfeito, pois entre C-D e D-Co
se nota a volta a A, e cujos motivos caminham até um determinado
ponto (D) retrocedendo logo sobre os mesmos passos:
Pela maneira por que Brazílio Itiberê realizou a peça dá a impressão
que foi ao período A que procurou dar maior destaque, fazendo-o
ouvir seguidamente. No entanto, pela análise, verifica-se que em C
está o ponto mais importante, pois aí aparece o tema completo do
«Balaio...». O compositor colocou-o no centro da peça, por duas
vêzes, sem qualquer alteração,o intercalando entre essas duas apre-
sentações o período A, mas um outro, o D, de aparência absolutamente
nova, mas que ainda é uma variação, e das mais amplas, do tema
gerador.
Neste ponto pergunta-se: o que é «A Sertaneja»?
Rapsódia, como am classificado, Fantasia ou Variações em
Rondó?
Em relação a cada uma destas formas, a peça apresenta falhas
queo permitem a classificação pronta e exata. Mas se o enqua-
dramentoo pode ser justo, e isso acontece até em obras de mestres.
a aproximação sempre é possível.
Há quem a veja rapsódia, embora o autor a considerasse uma
fantasia. Na rapsódia há absoluta independência entre os trechos
que a compõem, geralmente pouco ou mesmo sem desenvolvimento,
procurando apenas o pitoresco e o imprevisto, o queo impede a
realização, no gênero, de obras com formação mais sólida.
N'«A Sertaneja», mesmo levando em conta os dois temas insertos
na obra de Sant'Anna Nery, a classificação como rapsódiao é
aceitável, visto os trechos, sendo apresentações modificadas de um tema
único, fugirem a essa independência e por conseguinteo se enqua-
drarem no tipo.
Da forma de variações em rondó há aproximação pelo fato de
todos os motivos terem como base a linha melódica de um tema,
sendo um dêles repetido seguidamente à maneira de refrão. Mas na
variação o tema condutor aparece em primeiro lugar, claramente exposto,
enquanto n'«A Sertaneja» o tema condutor está no centro da peça,
servindo às variações que o precedem e sucedem como uma espécie
de moldura. No entanto todos os períodoso variações do tema
aproveitado.
O autor classificou-a como fantasia. Na fantasia também há
um plano para seguir: Temas, limitação de períodos distintos, caráter
contrastante dos mesmos.
Ora, «A Sertaneja» tem afinidades com a variação e com a fan-
tasia, mas nenhuma em relação à rapsódia, porque, embora sejam
ouvidos temas independentes sucessivos, esta independência é apenas
aparente.
Da variação tem os temas que guardam estreita dependência
com um determinado motivo, tomado como base para os demais (va-
riação sob vários aspectos); do rondó a seqüência de motivos que
voltam sempre a um outro, que soa como refrão. N'«A Sertaneja»
isso é imperfeito, pois na parte contrai esse motivo-refrãoo aparece
por duas vêzes.
Da fantasia tem os temas contrastantes, os períodos distintos, mas
a dependência de formação dos motivos contraria a classificação.
Fugindo à severidade da forma, o compositor enveredou pelo
terreno livre, criando um tipo de variações quase cm rondó, visto o
plano sofrer interrupção no centro da peça. Mas desde o momento
que o autor teve o cuidado de classificar a composição como fantasia
característica é fora de dúvida queo pensou em planos clássicos.
Mas a verdade é que, ainda uma vez, Brazílio Itiberê se mostrou
absolutamente coerente com seu tempo, pois a forma do rondó está
na música da época, na obra dos mestres do Romantismo e com as
mesmas irregularidades; está na produção de músicos categorizados
e naturalmente na do amador. Nesse ponto pode-se notar a influência
da música de classe sobre a popular, muito embora seja fato comprovado
que a formao depende da formação acadêmica. Ela é livre, resulta
da lógica de criação.
Em relação ã época verifica-se que a forma de rondó predominou
na totalidade das manifestações musicais. No Brasil ainda é encontrada
nos princípios deste sécuIo, como se pode notar na obra de Ernesto
Nazareth.
Brazílio Itiberê da Cunha, por certo, afinava com as normas
vigentes em seu tempo, mas sua musicalidade e inteligência abriram-lhe
caminhos mais amplos, tanto que de um tema simplesz uma obra
cujo interesse perdura um século depois de seu lançamento.
Bibliografia consultada:
ALVARENGA (Oneyda): Música Popular Brasileira Ed. Globo, 1950, Rio.
ANDRADE (Mário): Ensaio sobre a música brasileira Chiarato, S. Paulo. 1928.
GALLET (Luciano): Estudos de Folclore C. Wehrs, Cia. Rio, 1934.
LEVY (Alexandre): Poliantéia publicada p/Gazeta Musical, Rio, 1892.
MAGALHÃES Pinto (A) : Cantigas das crianças e do povo e Danças populares do
Folclore brasileiro F. Alves e Cia., Rio, s/d.
MELLO (G. T. Pereira): A Música no Brasil Tipografia, S. Joaquim, Bahia, 1908.
PEREIRA da Costa (F): Folk-lore Pernambucano R.I.H.-GB. vol. 70, Rio, 1908.
REZENDE (C. Penteado): Tradições musicais da Faculdade de Direito de S. Paulo
Ed. Saraiva, S. Paulo, 1954.
ROMERO (Sylvio) : Cantos populares do Brasil J. Olympio, Rio, 1954.
Ciencias Humanas
TEMPO, ÓCIO E ARTE: REFLEXÕES DE UM
LATINO-AMERICANO EM FACE DO AVANÇO
DA AUTOMAÇÃO (*)
GILBERTO FREYRE
V IVEMOS hoje num ritmo tal de desenvolvimento tecnològico que
nao é bastante, nem ao homem de ação nem ao de estudo, que con-
siderem problemas das suas ciências ou das suas indústrias, da sua
política ou da sua engenharia, fixarem sua atenção apenas no que
esses problemas apresentam de atual, de imediato, de estritamente
moderno. O prestigio desta palavra moderno é um prestígio
em crise.
Em crise porque é um moderno a que falta, atualmente, tempo e
condições sociais para prolongar-se como moderno o bastante para se
impor como um fenômeno tecnológica e sociologicamente ou filosofi-
camente significativo. É assim que com a valorização excessiva que
sez de semelhante modernismo está prestes a dissolver-se a glori-
ficação exclusiva do trabalho e do trabalhismo, como filosofia básica
de civilização industrial; enquanto a arte parece pronta a, associada
com outros empenhos, ao lazer, tomar, sob vários aspectos, o lugar
psico-socialmente vazio, do trabalho assim glorificado. Trata-se de
filosofia — a de glorificação do Trabalho vinda do que se conven-
cionou denominar de inicio de uma época moderna no desenvolvimento
humano: a marcada pela emergência do capitalismo urbano-industrial e
pela reação aos abusos, quer no plano econômico, quer no social, desse
sistema. Época quase de todo ultrapassada. Daí, com a crescente
automação, estarem sendo ultrapassadas também ideologias como a
trabalhista, a laborista, a proletarista marxista.o ruídos em torno
de ex-realidades já fantasmas em grande parte do mundo: o Burguês
gordo e de charutão na boca; o Proletário magro e de macacão azul,
(*) Este ensaio já aparecido nas línguas francesa, inglesa, espanhola {Diogene,
Paris) é agora publicado pela Revista Brasileira de Cultura, no original português.
todo melado de graxa de uma era agora paleotécnica: a da máquina
servida, em vez de tecnològicamente, dominada pelo Homem; ou ciber-
nèticamente orientada, segundo a mais adiantada ciencia transformada
em super-técnica.
Antes de prosseguirmos nestas considerações em torno do que
seja ócio em relação com trabalho nas sociedades e nas economias
atuais mais desenvolvidas, um pouco de semântica. Lembremo-nos de
que ócio é o positivo de que negócio é o negativo. O positivo é o
tempo livre de trabalho, de comércio, de preocupação com assuntos
apenas úteis. O negativo é o tempo ocupado exclusiva ou quase
exclusivamente por essas preocupações de trabalhos e de comércio,
com os ágapes rotarianos como uma expressão da predominância do
senso de negócio sobre o espirito do ócio.
Quanto ao sinônimo de ócio, lazer, deriva-se, como se sabe, de
palavra grega que significa escola: isto é, refere-se a estudo livre
daquelas mesmas preocupações utilitárias, comerciais. Ambas as pa-
lavras parecem ter desde as suas raízes implicado numa caracterização
de usoo só desinteressado de proveitos econômicos, como recreativo,
de tempo. O que sugere suas afinidades com o sentido, também, em
grande parte, recreativo, da palavra arte, como significando aquela
expressão de personalidade ou de grupo humano que importa em
afirmação de sua criatividade: creatividade pessoal por vêzes prolongada
em coletiva.
Atentemos, mais, no seguinte: a palavra recreaçãoo significa,
em sua raiz, passatempo frivolo, porém contínua criação, criação repetida:
re-criação. Compreende-se assim que a arte seja, principalmente.
desfrute recreativo ou lúdico de tempo que implique em criações, sin-
gulares ou repetidas, capazes de transmitir sentido de beleza ou visão,
mais profunda que a comum, de realidade mais obscura, atingida pio-
neiramente por artistas ou por indivíduo de gênio, e transmitida a
espectadores, ouvintes, leitores, seus contemporâneos e, em vários casos,
também a seus pósteros.
Quanto a lúdicoo é preciso que se recorde aqui ser palavra
que vem do latim ludus, que significa brinquedo. Quem desfruta
lúdicamente o tempo brinca com o tempo, no sentido de gozá-lo, re-
criando-se, quandoo criando.
O problema das relações entre ócio e trabalho em economias e
sociedades modernas é preocupação cada vez maior de sociólogos tanto
quanto de homens de governo e de homens de empresa e de educadores.
o cientistas sociais da responsabilidade de um Ernest W. Bur-
gess que se pronunciam sobre o assunto reconhecendo estarmos de fato
no fim de uma época de que a motivação predominante de vida foi
o trabalho e no início de outra época em que o gozo do lazer é que
começa a ser o motivo central de vida. Trata-se nada menos do que
de uma revolução. Mas revolução queo parece implicar, como
pretendem os retardatarios que se extremam na glorificação da figura
do chamado proletário sobre o chamado burguês, na extinção do ca-
pitalismo e sim na sua provável substituição pelo que se vem deno-
minando capitalismo cibernético que, modificado pela automação e
reinterpretado por Keynes, supera de tal modo a filosofia do «laissez-
faire», que aceita a presença do Estado nas atividades econômicas.
Esta presença, porém,o para dirigir mas para regular tais atividades,
no interesse geral, visando menos a cura que a prevenção de crises
ou de desajustamentos entre produtores e mercados, já que as crises
nas relações entre o chamado Capital e o chamado Trabalho, tendem,
com a automação, a se tornarem quase impossíveis com a crescente
presença do trabalhador, sob o crescente aspecto de técnico, nas orga-
nizações industriais de produção e de transporte.
Temos todos homens de ação e homens de estudo atuais
que considerar, em vários problemas aparentemente modernos, as pro-
jeções desse futuro quase presente, sobre eles, problemas efêmeramente
modernos. Esta a exata situação do homem de hoje em face do que
seja moderno tanto na sua ciência como nas suas técnicas: é um
moderno efêmero.
Um problema à base de vários desses problemas que sendo
modernoso também, por antecipação, pós-modernos, é o da transição,
em que parte considerável do mundo já se encontra, de uma civilização
mecanicamente industrial, em que o problema máximo foi ou é
ainda em algumas áreas o da organização do trabalho, nas indústrias,
para outra, supra-industrial, em que o problema máximo começa a
ser o da organização do lazer entre as populações das áreas mais
adiantadamente industriais.o populações, essas, responsáveis, em
várias categorias, pelo funcionamento de indústrias em vias de pas-
sarem do estado de simples mecanização ao de arrojada automatização.
A repercussão dessa revolução tecnológica será imensa no plano
da organização de relações de caráter econômico entre os homens.
Mas será igualmente imensa no plano psico-social das relações
interumanas; no plano cultural dessas relações; nos estilos de convi-
vência humana; nos objetos em que se nxará a preocupação, a criati-
vidade, a atividade lúdica do homem quer do médio, quer do estética
ou intelectualmente superior.o há exagero algum em esperar-se
desse novo tipo de civilização um tipo também novo de homem; e das
suas relações com a arte, um novo tipo de relações.
Podemos até contar com a revalorização de certas expressões
atuais de comportamento humano que, de serem consideradas princi-
palmente defeitos, defeitos latinos em contraste com virtudes anglo-
saxônicas, em alguns casos poderão vir a ser consideradas menos
defeitos do que virtudes. Há Pireneus no tempo semelhantes aos
Pireneus no espaço, dos quaiso cogitou Pascal e sobre os quais
deixou de escrever Montaigne. Nem por isto deixam esses outros
Pireneus de ser realidades. O ardor excessivo no trabalho incessante,
por exemplo, está entre virtudes a pique de se tornarem defeitos. O
afã na conquista da fortuna, de sucesso, de prestigio social, pelo trabalho
assim absorvente, com sacrifício de outras expressões de vida no indi-
víduo e das suas relações com a comunidade, é outra virtude em estado
de crise aguda.
o virtudes, essas, e algumas outras, que jáo se apresentam
inteiramente como virtudes, aos olhos do sociólogo ou do psicólogo
social que, alongado em filósofo social, considere as crescentes projeções,
sobre os atuais estilos de convivência humana, da crescente automação
e do crescente aumento de média de vida entre os homens, tornando
o tempo-lazer muito mais largo que o tempo-trabalho. Defeitos como
os dos indivíduos que trabalham sem se deixarem, porém, matar pelo
trabalho e escravizar pelo tempo-dinheiro o «time is money» dos
anglo-saxões estão a pique de poder ser, em parte, reinterpretados
como virtudes, dada a relativa rapidez com que o próprio Brasil tropical
tropical e quase tropical poderá ser atraído, de modo considerável,
para a automação; e com que o próprio brasileiro, a despeito de homem
situado em clima tropical (ao qual se vem associando, além de uma
patologia, que seria inseparável desse clima, um pendor, também
inseparável, segundo alguns, da gente do trópico, para a inatividade,
volutuosa ou não), poderá graças aos avanços de ciências médicas,
higiênicas, sanitárias, ter prolongada a sua média de vida tanto quanto
essa média já se acha prolongada nos Estados Unidos e no Norte da
Europa: nos países de clima frio, de civilização industrial à base de
incessante atividade na grande maioria dos seus habitantes, de religião
ou de ética, principalmente Protestante, na sua expressão mais ou menos
Calvinista, glorificadora do trabalho útil e remunerado e detratora do
tempo inocupado e nem sempre remunerado.
Sucede que caminhamos precisamente, com a crescente automação,
para uma época de imenso tempo desocupado: de preponderância desse
tempo sobre o ocupado, identificado com o ganho, a remuneração, o
trabalho produtor de riqueza individual eo apenas de bem estar
coletivo. É assunto, este, que já versei perante um auditório brasileiro
constituído principalmente por líderes industriais e por líderes operários.
Venho hoje feri-lo de novo, em artigo de revista, para um público
mais amplo considerando aspectos do mesmo problema sob pontos de
vista de possível interesse para aquêles que, em vários países, começam
a viver ou breve viverão, senão em cheio, quase em cheio, a maior
parte da sua vida, numa época de imensa preponderância do tempo
desocupado sobre o ocupado.
Pode-se prever uma democratização de novo tipo nas relações
interpessoais que venha a ser, senão trazida, favorecida, por esse
crescente tempo desocupado, ou livre, para todos os componentes de
uma sociedade de tipo industrial cuja técnica de produção e cujo regimen
de trabalho passem de mecanizados para automatizados, tendo por
conseqüência a automação. Isto porque a tendência em sociedades
desse tipo vai ser provavelmente no sentido de cada sociedade suprir
os seus componentes de espaços para recreação e para lazer e de
facilidades recreativas ou lúdicas de diferentes tipos, permitindo a mais
ampla liberdade de escolha de recreações da parte dos mesmos com-
ponentes. Sendo assim, é de esperar que, nesses espaços recreativos,
prováveis substitutos, em escala mais larga, dos atuais clubes recreativos
e esportivos, misturem-se indivíduos de procedências diversas, quanto
às suas categorias nos seus respectivos lugares de trabalho a cate-
goria empresarial, a burocrática, a técnica e de vários graus de
qualificação. Também dos dois sexos e de diversas idades.
Reunidos por gostos idênticos quanto ao modo, da sua livre escolha,
de gozarem o tempo livre, o lazer, o ócio desprendido de negócio,
nesses espaços recreativos, a associação desses indivíduos de proce-
dências, categorias e idades diversas e dos dois sexos, possivelmente
se verificará antes à base de tais preferências de caráter lúdico do que
do prolongamento, nos mesmos espaços, de categorias hierárquicas em
vigor nos espaços de tempo ocupado. Teríamos, assim, a tendência
para um reajustamento de relações interpessoais, nos espaços recrea-
tivos, capaz de retificar desajustamentos causados por divisões de
caráter hierárquico em espaços de trabalho. uma tendência saudà-
velmente democrática sem que, em tais casos, a democratização de
relações interpessoais importasse no desconhecimento de diferenças de
aptidões, de inteligência, de capacidade de aprofundamento no estudo
e no saber, dos diferentes membros de um complexo industrial, sabido,
como é, que, no lazer e nas atividades lúdicas que preencham o tempo
ocioso, podem se verificar aproximações e se definir afinidades entre
indivíduos desiguais no grau de inteligência, no saber e na cultura.
o célebres as amizades que sem formado, entre indivíduos assim
desiguais e essa espécie de desigualdade é provavelmente irredutível
entre os homens, por motivos antes biológicos do que sociológicos
reunidos, durante meses ou semanas, para eles memoráveis, pelo mesmo
gosto ou entusiasmo em torno de aventuras ou experimentos de pesca,
de caça, de navegação, de alpinismo, de colheita de plantas agrestes
em matas ou florestas, de criação de canários, de gaios, de galinhas
de raça. A tourada tem sido um desses gostos lúdicos, comuns a
indivíduos de camadas sociais diversas, entre latino-americanos.
Destaque-se, a esta altura, de automatização isto é, «mecanização
avançada», «substituição progressiva do trabalho humano pela máquina»,
como a define o Professor Wilson Batalha, à página 15 do seu «Auto-
mação, Segunda Revolução Industrial», publicado em 1961 em Ca-
dernos da Indústria (Rio de Janeiro) que se distingue hoje da
automação, em que a substituição vai além, nao apenas de trabalho,
mas de contrôle: o controle humano substituído pela super-máquina.
Tanto um como o outro processo tendem a concorrer de tal modo para
o aumento de tempo livre nas sociedades industriais que essa dilatação
de tempo livre é já forte motivo de inquietação para industriais, soció-
logos, juristas, psiquiatras, educadores, líderes religiosos. Refere-se
ao assunto João XXIII. «Automatarias operationes» é como a auto-
matização é considerada no texto latino da sua monumental Mater
cf Magistra.
Na Grã-Bretanha pareceu-me, na última vez que lá estive, haver
excessivo receio das conseqüências sociais da automação sobre o sistema
britânico de economia industrial. Na República Federal Alemã,o
me impressionou a inquietação dos seus líderes em torno do problema:
preocupam-se com êle maso o consideram de aspectos principalmente
negativos e sim positivos. Em 1967, fui convidado para participar
num dos maiores centros industriais dos Estados Unidos — Corning
Glass de um conclave de homens de ação e de homens de estudo
em que um dos temas considerados pelos organizadores deo inte-
ressante reunião da qual participaram, ao lado de industriais como
David Rockfeller, e de líderes operários, homens de estudo da eminência
de Julian Huxley, John dos Passos, Raymond Aaron, Salvador de
Madariaga foi o dos prováveis efeitos da automação sobre sociedades
industriais supra-desenvolvidas. É claro que o que mais parece in-
quietar certos líderes industriais e certos homens de governo, preo-
cupados atualmente com o problema da automação, é a possibilidade
de, com a intensificação desse processo de produção, desenvolver-se,
nas mesmas sociedades, o desemprego. A verdade, porém, é que, se
com a automação, diminuem as oportunidades de trabalho para os
operários não-qualificados, aumentam essas oportunidades para os
qualificados, aumentando também, com o aumento de qualificação e de
responsabilidade, a participação de técnicos de um novo tipo e de
vários graus pois a figura convencional do operário tende a desa-
parecer no trabalho industrial de produção. É claro advertem
estudiosos do assunto que, alargando-se com a automação, com a
maior utilização da energia atômica, com as possibilidades que se abrem
ao homem para obter produtos sintéticos por processos químicos, as
possibilidades de produção industrial, alargam-se também as possibi-
lidades de aproveitamento de técnicos de vários graus em novas in-
dústrias. Claro é, também, que, com o aparecimento de novas
indústrias ao lado das tradicionais, será necessário que esses dois
tipos de indústrias se harmonizem, quer através de novas formas de
planejamento, em que colaborarem com os elementos empresariais e
manageriais os técnicos, quer através de intervenções em conflitos de
atividade econômica da parte de governos que, vigilantes pela pre-
dominância do interesse geral sobre os particulares,o se excedam
dessa vigilância, passando ao dirigismo mais ou menos totalitário de
que as conseqüências podem ser ou são, sem dúvida válidas,
em certos setores de atividade técnico-econômica, ou política e militar;
maso nos de vida psico-social e de criatividade cultural mais amplos.
Os exemplos da União Soviética e da China Popular parecem a alguns
observadores ser, neste particular, muito expressivos.o países em
que, com o tempo dos homens dirigido por um Estado interessado
principalmente em sua fase atual de reconstrução em trabalho
útil, das populações, a esse Estado, e na recreação de tal modo ideo-
logicamente condicionada que seja, também ela, atividade a exclusivo
serviço do Estado totalitário, as artesm várias delas declinado
e com essas artes, quase tôdas as ciências e quase todos os estudos
menos relacionados com o desenvolvimento tecnológico dos mesmos
países. Aqueles avanços se tem verificado, na Rússia Soviética, de
modo notável, em setores técnico-científicos; em estudos de física e de
química agrária, principalmente. Sua arquitetura, porém, do mesmo
modo que sua pintura, sua escultura, sua música, parao nos refe-
rirmos à sua literatura, à sua filosofia, à sua sociologia, apresentam-se,
segundo vários observadores, deficientes em arrojos de criatividades e
de livre originalidade. Sendo assim, parece que a Rússia ou a
União Soviética vem caminhando para a época de automação pre-
parando espectadores para espetáculo, jogos e concertos dirigidos pelo
Estado e sem cuidar de prepará-los para um diversificado uso de
tempo livre que, resultasse, em alguns setores, e da parte de alguns
individuos, em criações ou expressões de caráter artístico, condicionadas
por uma diversidade possivelmente anárquica.
Maso será a automação já adiantada nos Estados Unidos,
nas áreas mais industriais da Europa Ocidental e na própria União
Soviética tecnològicamenteo avançada assunto de interesse
apenas platônico para países ainda em grande parte, técnica e economica-
mente sub-desenvolvidos, como o Brasil? como os da América Latina
situada em espaço tropical? Parece que não. Lembremo-nos de que, num
mundo em que grande parte de lavouras e de indústrias dependia de
trabalho escravo, como o mundo do meado do século XIX, verificou-se
quase repentina propagação do sistema de trabalho a áreas onde se
supunha que o regimen de trabalho escravo se prolongasse até os
últimos anos daquele século e possivelmente até os primeiros anos do
XX. O plano de gradual extinção do trabalho escravo no Brasil
baseava-se nessa relação de tempo: relação que fracassou, com resul-
tados nada vantajosos para lavouras e indústrias, ainda demasiadamente
dependentes, no Brasil da segunda metade do século XIX, do então
crescentemente arcaico braço escravo. \
O mesmo pode suceder com o modo por que venha a comunicar-se
a áreas brasileiras de alguma indústria, como o próprio Nordeste, o
sistema automizado de produção industrial e a própria automação,
criando de repente problemas de transição de um tipo de trabalho
para outro que apanhem de surpresa líderes industriais, homens de
governo, educadores. Digo educadores porque cada dia se torna mais
evidente a necessidade de reorientar-se a educação de jovens e dos
próprios adultos, da era que o mundo começa a viver em suas áreas
mais industrializadas, a fim de que essa educação deixe de ser, quando
técnica, para funções especializadas relacionadas com o manejo de
máquinas ainda demasiadamente dependentes de trabalho humano.
Semelhante especialismoo o quer nem o reclama a automação.
Reclama maior responsabilidade técnica e dentro dessa maior respon-
sabilidade mais amplo conhecimento, pelo técnico, de varas funções
do sistema de produção industrial a que se ligue eo de uma.
como, porém, a responsabilidade, assim alargada terá de exercer-se
num número muito menor de horas de trabalho industrial, a educação
do homem pós-moderno que se destine a èsse tipo de trabalho é pro-
blema do qual já é tempo de andarem governos e homens de empresa,
até em países como o Brasil, tendo em vista esta realidade que do
futuro já se projeta sobre a atualidade, em áreas industriais de van-
guarda: começamos a viver uma época de civilização mais de lazer do
que de trabalho. O homem pós-moderno precisará de ser educado
por mais fantástico que isto ainda pareça à maioria da gente de
hoje mais para o lazer do que para o trabalho. E dessa educação
tende a fazer parte uma educação artística que habilite o individuo
a encher o seu tempo desocupado com atividades lúdicas ou criadoras
criadoras eo apenas espectadoras de caráter artístico.
Daí um pensador da lucidez do Professor Sidney Hook sugerir.
no seu recente Education [or modern man, que o problema da educação
de caráter criador deslocou-se do plano em que a criatividade esti-
mulada pela educação, vinha se associando ão preparo de homens
segundo vocações específicas, para o de preparação dos homens para
o uso de lazer em sociedades automatizadas. Lembra o Professor
Hook que já se verifica há alguns anos o fato de os técnicos em eletrici-
dade na cidade de Nova York trabalharem apenas vinte horas por semana.
O problema para o educador é: o queo fazer com o seu imenso
tempo livre técnicos dessa e de outras especialidades que venham a
trabalhar apenas dez horas por semana? É certo que se prevê que à
crescente redução de horas de trabalho industrial se junte verdadeira
multiplicação do que Hook chama «oportunidades vocacionais», embora
duvide que essas oportunidades, à proporção que aumentem os desen-
volvimentos tecnológicos, se ampliem em posições que permitam, pelo
seu grande número, completo aproveitamento dos indivíduos mais
capazes pela sua mais alta instrução e pelo seu mais elevado saber
de nível universitário. Nesse nível talvez venha a verificar-se um
desajustamento entre o que outróra se chamava oferta e procura. De
qualquer modo, porém, impõe-se o desenvolvimento de um tipo de
educação que prepareo só indivíduos de quem as indústrias reclamem
cada dia menor número de horas de trabalho, como indivíduos que
dificilmente serão aproveitados, com vantagem econômica para eles e
para o sistema social de que sejam membros, em posições adequadas
ao seu saber ou à sua instrução de nível superior, para o lazer, o ócio,
o tempo desocupado, em que passarão a viver. É provável que nesse
novo tipo de educação os estudos humanísticos venham a recuperar,
sob novos aspectos, sua importância, ao lado dos científicos. Prova-
velmente, também, que se desenvolva a educaçãoo só para as artes
superiormente criadoras como para as artesanais que, numa sociedade
industrial de abundante tempo livre para todos os seus membros,o
atividades que tendem a ser notavelmente valorizadas ou revalorizadas.
Sendo assim, talvez, haja certo simplismo sociológico no clamor
do Professor Uslar-Pietri, ao qual se junta o do Professor Cosio
Villegos dois brilhantes professores latino-americanos por um
novo tipo de educação para a América Latina que se liberte de elementos,
segundo eles, parasitários, concentrando-se em ser educação científica
e técnica. Para esses dois críticos do regimen de educação atualmente
predominante na América Latina, o que há de mais alarmante nesse
regimen é o fato de, ainda agora, numa universidade tipicamente latino-
americana, como a Nacional, do México, haver sete mil estudantes de
Direito para apenas mil de engenharia e cento e cinqüenta de física.
Mas esse desajustamento da realidade talvez seja transitório. Os
elementos humanísticos no estudo do Direitooo todos parasitários
se os considerarmos sob o critério de uma educação que venha a ser
adaptada às sociedades já automizadas em que os empresários, os
técnicos e os cientistas, reclamados por um tipo industrial democrático
de civilização, ao seu saber relativo a máquinas, a operações automizadas
e a processos químico-sintéticos, precisem de acrescentar outro
humanístico, artístico, religioso que os habilite a viver o tempo
desocupado que a técnica e a ciência lhes começa a proporcionar com
tanta largueza.
o só que os habilite a viver esse tempo lùdicamente, criado-
ramente, saudàvelmente: também que os habilite a impedir que seu
sistema politico-industrial se aproxime dos totalitários através de
excessos daquele planejamento político-econômico que, até certo ponto,
a automação exige dos dirigentes, quer do governo, quer das indústrias,
numa sociedade automatizada.
Sobre este ponto é bom que se leia o que tem a dizer no seu
Liberal Education in an Industrial Democracy (1957), o Professor
Mortimer Adler, sem nos esquecermos do que adverte o já citado
Sidney Hook: o primeiro, neo-tomista na sua filosofia social; o segundo,
discípulo de John Dewey. Hook salienta dos indivíduos de formação
exclusivamente científica e técnica, que são, quase todos, pouco sen-
síveis aos valores e à defesa dos valores democráticos, inclusive a li-
berdade de criação artística e de ideais, políticos e culturais da sociedade
em que vivem. Daí destacar que as vozes que hoje se levantam em
algumas das modernas sociedades de industrias em processo de auto-
matização embora de agricultura terrivelmente arcaicao menos
vozes de cientistas físicos, de matemáticos e de técnicos, do que de
poetas, de dramaturgos, de artistas, de humanistas. De Hook é
também o reparo de ter sido o grande físico-matemático que foi Albert
Einstein homem de idéias de todo simplistas com relação à assuntos
políticos: a sua formação quase exclusivamente científicao o tornara
sensível aos valores político-sociais mais necessitados de consideração
e de compreensão numa democracia industrial. Daí a necessidade
que educadores de hoje, dentre os mais idôneos, salientam, de uma
educação para o lazer que se junte à educação para o desempenho
pelos homens de um futuro já extremamente próximo de nós, de funções
ou responsabilidades técnicas, e que inclua a sua iniciação, quer em
artes para que êle possa escolher a da sua preferência que se
torne companheira dileta dele, em grande parte do seu tempo dseocupado
quer no conhecimento de assuntos político-sociais e jurídico-políticos,
sob critério quer científico-social, quer humanístico. Pois sem esse
conhecimento, sem que se desenvolva neles a sensibilidade a valores
libertários e democráticos através de estudos livremente humanísticos
de História, de Filosofia, de Religião, de Sociologia, de Antropologia,
de Economia, de Direito, os indivíduos de formação exclusivamente
técnico-científica correm o risco de se tornarem, numa sociedade indus-
trial automatizada, quase robots submissos a dirigentes de feitio rigi-
damente totalitário ou absolutamente ditatorial, de um novo tipo.
Que artes artes no sentido mais amplo da expressão tendem
principalmente encher o tempo-ócio de um homem moderno? Que
artistaso por êle mais estimados ou desejados? Depende, por um
lado, das tradições psico e sócio-culturais da sociedade a que pertença
esse homem moderno e, por outro, das próprias predisposições desse
mesmo homem como indivíduo que, moderno, pode guardar dentro de
si arcaísmos artisticamente significativos. Tudo indica, com relação
ao Brasil, em particular, com relação à América Latina, em geral, que
a tradições psico e sócio-culturais da sociedade brasileira se juntam
predominâncias de predisposições individuais no sentido de um gosto
pela arte da músicao dos africanos e dos indígenas desta parte
da América eo da Igreja Católica, civilizadora principal dessa mesma
sociedade maior que o gosto por outras artes. Entretanto, há
tradições outras, de arte, que, dentro de um maior tempo-ócio para
um maior número de brasileiros, poderão se exprimir em atividades
artísticas consideráveis. Entre essas tradições, a da cerâmica, a da
escultura em madeira, a da renda, a da marcenaria, a da culinária.
Aqui tocamos num ponto merecedor de atenção especial. É este:
com o aumento do tempo-ócio para um maior número de brasileiros,
apresenta-se, sob novo aspecto, o problema de atividades artísticas
social e culturalmente condicionadas pelo sexo puro ou pelo meio-sexo
de cada um. Trata-se, nas expressões deste último tipo, de um possível
afastamento de convenções quem abafando vocações em grande
número de indivíduos: vocações de homens para bordar, por exemplo;
ou para cozinhar; ou para costurar. Ou de mulheres, para marcenaria
ou carpintaria.
O aumento de tempo-ócio, numa civilização em que homens e
mulheres se encontrem livres para dispor da maior parte do seu tempo,
segundo suas predisposições mais íntimas, pode resultar em forte mo-
dificação nas convenções de rígido condicionamento de atividades ar-
tísticas pela suposta expressão sócio-cultural do sexo do indivíduo apenas
em determinado sentido. Poderá o indivíduo do sexo masculino, dono
dêse maior tempo-ócio, sentir-se livre para utilizá-lo na satisfação fora
de quadros rigidamente profissionais e rìgidamente sexuais de atividade,
de desejos nele reprimidos pelo império das convenções dominantes;
e entregar-se com todo o gosto e até todo o afã à arte de bordar ou
de fazer renda; ou de cozinhar; ou de inventar novas combinações de
dôces; ou de costurar. O mesmo poderá acontecer, em sentido con-
trário, à mulher, que poderá dedicar-se, dentro de um maior tempo-ócio,
a artes a que se sinta inclinada, em desacordo com as convenções do-
minantes com relação ao que seja atividade profissionalmente masculina
ou atividade profissionalmente feminina. A desprofissionalização
dessas atividades criará, provavelmente, condições favoráveis a uma
maior liberdade na satisfação, por indivíduos dos dois sexos, e de
meio-sexo, de desejos de caráter artístico, neles abafados por convenções
mais ou menos tirânicas, ainda fortes em sociedades modernas, segundo
as quais determinados trabalhoso próprios apenas de um sexo e
vergonhosamente impróprios de outro.
Também é de esperar-se que, com o aumento de tempo-ócio, se
acentue nas universidades, em cursos quer de artes, quer de ciências,
a presença de indivíduos já idosos, dos dois sexos. Há muito de
convencional na idéia de ser a universidade apenas para jovens; e de
o aprendizado de artes, assim como o de ciências, constituir um pri-
vilégio de adolescentes e de moços.o constitui.
A cada ano maior extensão de média de vida humana, que é um
dos fenômenos mais significativos da nossa época, começa a dar a
numerosos indivíduos um período de quase completo ócio entre as
idades de 65 a 75 anos, que vários dêlesm aproveitando para o
apiendizado de ciências e, principalmente de artes, em cursos univer-
sitários, quer regulares, quer de extensão. Sabe-se de Winston
Churchill ter, já homem de idade proveta, começado a dedicar-se à
pintura. Várioso os indivíduos idosos que, aposentados ou jubilados
nas suas profissões,m adquirindo, em cursos universitários ou por
correspondência, conhecimentos de jardinagem e horticultura e, à base
desses conhecimentos, constituindo-se em rivais de especialistas no
cultivo, em suas chácaras ou quintais, de orquídeas, de rosas, de hor-
tensias: ocupações de um acentuado caráter artístico, lúdico, recreativo.
O ex-Governador Carlos Lacerda, sem ser já homem de idade plena-
mente proveta, constituiu-se num cultor sistemático, durante os seus
ócios, de rosas que sabe fazer desabrochar de seus jardins de modo
verdadeiramente artístico. Eo nos esqueçamos desses quase artistas
que dedicam o seu tempo ocioso a colecionar obras de arte: obras de
arte que, a certa altura,o incorporadas a museus com grande vantagem
para o grande público. Foi o que sucedeu com as preciosidades que
Guerra Junqueira passou todos os seus ócios a colecionar, viajando,
montado biblicamente num burrico, por velhas estradas rústicas de
Portugal e da Espanha. Estão hoje, essas obras de arte, num museu
do Porto, dirigido por uma filha do poeta-colecionador.
Vários dos chamados «hobbies»m o seu que de atividade artística
a encher tempo ocioso: antigo professor de Economia Política da
Faculdade de Direito do Recife dedicava seus ócios a duas pequenas
porém difíceis artes muito diferentes da ciência da sua especialidade:
a arte de consertar relógios e a arte de verter para o português trechos
de clássicos latinos. Enquanto de outro mestre da mesma Escola
se sabe que vem consagrando os seus lazeres à arte da poesia.
Do que já pode e deve cuidar tôda universidade que se preocupe
o só do tempo presente como desse tempo considerado por
alguns estritamente presente projetado em futuro próximo, dentro
do intenso ritmo em que, nos nossos dias, êsses dois tempos se inter-
penetram, é de facilitar aos estudantes de diversas especialidades a
iniciação, quer em estudos cívicos e sociológicos que habilitem espe-
cialistas ou técnicos a estimar, em democracias, os valores de que essas
democracias vivem e queo valores de execução ou de aplicação ao
cotidiano político-social ou econômico-social menos simplista que a
aplicação a esse mesmo cotidiano de valores totalitários, quer em
estudos das mais diferentes artes recreativas, lúdicas, religiosas, soli-
daristas, umas, individualistas, outras. É preciso que o técnico em
Direito ou em Medicina ou em Engenharia seja iniciado, durante a
sua formação universitária, num conhecimento de artes várias
pintura, escultura, música, marcenaria, cerâmica, carpintaria, construção,
culinária que o habilite a escolher uma, de sua preferência, em que
se inicie; e que assim adquirida venha a ser companheira sua, no
tempo-lazer, habilitando-o até, em alguns casos, a ganhar algum
surplus com sua arte lúdica. O útil acrescentado ao agradável.
Noutros casos, será uma arte que desempenhará, para o indivíduo
que a adquira e encontre nela agradável companheira durante o crescente
tempo-lazer que vai caracterizar a civilização pós-moderna já quase
diante de nós, o papel saudàvelmente psico-cultural de uma laborterapia:
um resguardo, portanto, desse indivíduo e da sociedade particular a
que êle pertença, do perigo de que já hoje há evidências de existir
em sociedades como a sueca, célebre tanto pela sua quase perfeição
econômico-social ou tecnológico-social como pelo número de suicídios
entre sua gente da insipidez, da monotonia, do tédio de vida sempre
que o homemo sabendo matar o tempo o tempo desocupado
cujo excesso o oprime, mata-se a si mesmo.
LIMITES DO BRASIL NA AMAZÔNIA
DENSIFICAÇAO DEMOGRÁFICA E ECONÔMICA DAS
FRONTEIRAS. AÇÃO DO EXÉRCITO, MARINHA E
AERONÁUTICA
ÁLVARO TEIXEIRA SOARES
1. DO TRATADO DE MADRID AO "UTI POSSIDETIS" DE 1810
X~^ ARA se estudar a evolução do processo histórico, diplomático e jurídico
da definição das nossas fronteiras na Amazônia, é evidente que temos
de partir do Tratado de Madrid, de 13 de janeiro de 1750, porque até
então a raia fronteiriça era teórica.
A impetuosa expansão promovida pelos Bandeirantes, sempre
apoiada pelas autoridades portuguesas, mesmo durante os sessenta
anos de união das coroas de Portugal e Espanha no tempo dos Filipes
de 1580 a 1640, alarmou as autoridades espanholas do Alto Peru.
A fundação em 1680, na riba setentrional do estuário platino, da
Colônia do Sacramento por Dom Manuel Lobo em obediência a ordens
emanadas de Dom Pedro II, rei de Portugal, e a subseqüente instituição
da Capitania d'El-Rey, no reinado de Dom João V, depois Província
deo Pedro do Rio Grande e, na República, Rio Grande do Sui,
demonstraram que a expansão portuguesa na América do Sui cumpriu
dois propósitos fundamentais:
1 ) a busca dos limites arcifínios ou naturais; e
2) a totalização do Brasil num enquadramento geográ-
fico dotado de continuidade territorial.
Assim, o avanço em direção à bacia amazônica com a integração
da bacia Tocantins-Araguaia e a conquista dos campos gerais, do
pantanal e das serranias de Mato Grosso, representou o resultado
prático de um pensamento político permanente, posto em ação.
Da mesma forma, no Sul èsse pensamento político, oriundo do
Conselho Ultramarino e transformado em energia criadora, após a fun-
dação da vila de Santo Antônio da Laguna, se empenhou em vencer
o grande vazio existente entre Laguna e Colônia do Sacramento.
Durante muito tempo esta praça forteo só se valeu da ligação
marítima com as bases do Rio de Janeiro e de Santos. Por conseguinte,
abrir caminhos terrestres em direção à Colônia do Sacramento com o
concomitante assenhoreio das terras intermédias, foi pensamento de alta
política, traduzido em ação permanente e incansável. Conquis.ar o
dilatado Pampa e povoá-lo. Imperativo geopolítico ao qual se deve dar
importância imediata. Os procónsules portugueses cumpriram esse
imperativo geopolítico. Dirá Moysés Vellinho, numa bela síntese, em
sua Capitania d'El~Rey:
«O pampa, que tudo absorvia e escondia na sua imen-
sidade — a obstinada resistência dos naiivos, a rebe.dia dos
mestiços, o ressentimento dos desajustados e os aventureiros,
e os desertores, e os criminosos foi o grande aliado, o
cúmplice das turbas gauchescas que tanto tumultuaram as
províncias do Prata».
Debruçando-se um diplomata, um historiador, um geógrafo, um
engenheiro, um militar e um sociólogo sobre o mapa do Brasil, que
sentem ao estudar o passado? Por certo, uma profunda emoção de
grandeza ante a obra realizada pelos nossos Maiores naque'a época
turbulenta de expansão territorial e de consolidação da Coroa de
Portugal em terras americanas. O passadoo é cemitério. O passado
é uma soma prodigiosa de energias latentes que descortinam caminhos
novos aos porvindouros. Esta é a lição da História.
Muitas e muitas vêzes em conversa com historiadores honestos
do Uruguai, da Bolívia, do Peru e da Colômbia, se me foi proposto
este problema fundamental: - como se explica que um país pequeno,
que jáo era mais a grande potência marítima de quinhentos, houvesse
conseguido com uma tenacidade extraordinária realizar um plano de
avassa ámenlo de terras que pode figurar na história moderna como
um dos mais singulares ensinamentos da Geopolítica aplicada à rugosa
realidade?
Respondi-lhes que, por mais curioso que possa parecer, Portugal
sempre tivera um sentido diplomático muito mais agudo que a Espanha.
O historiador uruguaio Francisco Bauzá, estudando os acontecimentos
do século XVIII ocorridos no Prata e cristalizados na luta pela posse
de Colônia do Sacramento, escreveu com azedume:
«La diplomacia española se mostro completamente inepta
con relación a Portugal. Nunca se vió un cúmulos abultado
de errores, que los de Ia Corte de Madrid en sus negociaciones
con la de Lisboa. Unas veces por temor a complicaciones
con Inglaterra, y otras por indolencia, se dejó arrebatar
inmensas zonas en el Continente, a pesar de las advertencias
repetidas de los gobernadores y virreys que se cansaban de
señalar los peligros y su remedio». (Historia de la dominación
española e el Uruguay», Montevidéu, 3* edição, 1929,-
gina 491) .
O segundo motivo residiu em que a administração colonial poi-
tuguêsa, tendente a um rígido unitarismo, contrastou com a adminis-
tração castelhana, propendente à pluraíização administrativa. A América
portuguesa consolidou-se numa só unidade. A América espanhola
dividiu-se no período colonial em Vice-reinos e Capitanias. A matriz
histórica dessas divisões alentou a vida das futuras nações hispano-
americanas .
Internacionalmente, a Amazônia brasileira aparece pela primeira
vez nas difíceis negociações do Congresso de Utrecht, de 1712 a 1715.
Dom Luis da Cunha, sucessor na chefia da Missão diplomática em
Londres do Visconde de Fonte Arcada e que seria o maior diplomata
de Portugal no seu tempo, e o Conde de Tarouca (Teles da Silva),
plenipotenciarios de um país sem poderio militar-naval e que antes
vivia em «apagada e vil tristeza», enfrentam com habilidade a Espanha,
França e Inglaterra. Propósito fundamental da diplomacia portuguesa:
o só consolidar a posse na foz do Amazonas, como evitar que
franceses aumentassem seu território da Guiana à custa das Terras
do Cabo do Norte, assunto que motivara a notável resposta do Secre-
tário de Estado Roque Monteiro Paim ao Embaixador de França em
Lisboa em 30 de julho de 1699 («Rev. do Instituto Histórico, vol. VI,
1844, pag. 266). Evitar que a Inglaterra, aliada de Portugal, mas
vencedora da Guerra da Sucessão d'Espanha, alimentasse quaisquer
veleidades amazônicas. Nação vencida, a França tinha fôlego de gato.
Quando os representantes das províncias Unidas, Buys e Van der
Dussen, vestidos de preto como puritanos, entraram com fortes exi-
gências contra a França, receberam do Abade de Polignac, negociador
francês e sucessor de Bossuet na Academia francesa, a seguinte
resposta: «On voit. Messieurs, que vous n'avez pas l'habitude de vaincre.»
Que valia Portugal através dessas difíceis negociações? A motivação
política portuguesa tão-sòmente poderia radicar-se no talento dos seus
negociadores, que foram pacientes e finos, opondo contra-astucia à ação
dos «grandes». Foi o que aconteceu em Utrecht. Mas, Bolingbroke,
árbitro do Congresso, pretendia negociar com Portugal, cobrando-lhe
a libra de carne de Shylock. com a Espanha, os negócios eram lentos
e difíceis e complicados, e justamente por causa da indefinição de
soberanías em terras americanas.
Ao cabo, o Conde de Tarouca e Dom Luis da Cunha puderam
escrever de Utrecht o que se segue a Diogo de Mendonça Côrte-Real,
Secretário d'Estado de El-Rey Dom João V:
«O tratado que remetemos a V.M. nos deixa o grande
gosto de entender que S. M. que Deus guarde foi bem servido
pelas razões seguintes. Tudo o que pretendíamos da França
a respeito do Maranhão, era a desistência das terras do
Cabo do Norte, eo se esperavam dantes mais que aquelas
em que se achavam os Fortes de Araguan e Camaú; mas
agora nos ficam cedidas sem alguma limitação, antes com
grande aumento de nos darem em propriedade tôda a margem
setentrional do rio das Amazonas; e na verdade que, se qui-
sermos intentar o comercio por éste rio, como já se mostrou
que era fácil, chegando as tropas portuguesas até o Quito e
vizinhança do Mar do Sul, podemos julgar de suma impor-
tância ter esta porta franqueada no Peru, a qual El-Rey de
França reconhece que nos toca, e lha fechamos a êle suposto
que nem para uma, nem outra circunstância tivéssemos ordem»
(Eduardo Brazão. Portugal no Congresso de Utrecht, Lisboa,
1934, pag. 99).
Assim, os plenipotenciarios portugueses no Congresso de Utrecht
indicavam ao Rei de Portugal a factibi idade do caminho para Quito
e daí para o Mar do Sui (Oceano Pacífico) .
Numa interessante «Memória sobre trabalhos históricos, desde
1750 que se podem consultar nas negociações das demarcações de
limites», estudo feito em 1851 por Varnhagen, pai da nossa História,
como lhe chamou João Francisco Lisboa, e por ordem de Paulino José
Soares de Sousa, então Ministro dos Negócios Estrangeiros do Império,
e que se encontra na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional,
Códice n' 6-24-14, o nosso grande historiador assinalou a importância
das instruções secretíssimas passadas pela Corte de Madrid em 30 de
outubro de 1713 ao Duque d'Osuna, seu plenipotenciario em LLrecht,
a respeito da redação ambígua que Convinha se desse ao artigo que
tratasse da entrega de Colônia do Sacramento pelos Espanhóis. Essa
redação motivou uma série de questões diplomáticas e militares na
riba platina. Vernhagen assinalou também a correspondência do embai-
xador espanhol em Paris, Conde de Aranda, pela qaul se vê que
os geógrafos Bellin e Buache gravaram errado, mas com pleno conheci-
mento de causa, por assim dizer por ordem superior, os mapas a respeito
da região do Oiapoque; e que as demoras na demarcação na Amazônia,
após os tratados de Madrid e de Santo Ildefonso, que tanto desgotaram
as duas Cortes, provieram da inação dos comissários espanhóis.
A obra do Congresso de Utrecht ficou, porque Portugalo
foi desalojado do senhorio da foz do Amazonas, posição estratégica
da mais alta importância.
Contudo, os ingleses, holandeses e franceses da Guiana, os flibus-
teiros e interlopos que subiram os rios Essequibo, Demerara e Oiapoque,
procuraram penetrar nas posses portuguesas, pretendendo transpor as
serranias do Norte (Tumucumaque, Acari, Roraima e Parima), da
mesma forma que os espanhóis de Nova Granada (hoje, Colômbia)
e Venezuela.
Os problemas entre Lisboa e Madrid se tornaramo sérios, tanto
na bacia amazônica como no Prata, que a diplomacia teve de entrar
em ação para evitar a possibilidade de uma guerra tanto no Norte
como no Sui. Por causa de Coiônia do Sacramento já havia uma guerra
intermitente localizada, entre Portugal e Espanha. Cada vez que
Portugal perdia Colônia do Sacramento pela força das armas, recupe-
rava-a pela ação diplomática.
Na parte final do reinado de Dom João V, justamente a partir de
1748, reconheceram as Cortes de Lisboa e de Madrid a necessidade
de procurarem um entendimento definitivo.
Numa síntese geopolítica, verdadeiramente luminosa, Capistrano de
Abreu explicará o desenvolvimento da «mancha de azeite» de Portugal
na Amazônia:
«A rápida expansão do Brasil pelo Amazonas até ao Javarí,
facilitada pela direção uniforme da bacia, sempre emparelhada
à linha equinoxial no rumo aproximado do E.-O, pela ausência
de empecilhos à navegação num rio de profundidade máxima
e declive mínimo, favorecida pelos ventos que demandam as
terras andinas, o avanço vertiginoso decorrente das desco-
bertas de Cuiabá e Mato Grosso alé ao Guaporé, o incremento
vigoroso do Sui, intimaram a necessidade de atacar de frente
a questão de limites entre possessões portuguesas e espanholas,
no velho e no novo mundo, sempre adiada, sempre renascente,
de interpretar autenticamente o convênio de 1494. com este
fim, os dois monarcas da península assinaram um tratado em
Madrid, a 13 de janeiro de 1750». («Caminhos, etc,-
gina 126).
Afirmou o Barão do Rio Branco com sua alta autoridade de
historiador que «o verdadeiro negociador foi o ilustre paulista Alexandre
Gusmão, embora o seu nomeo figure nesse documento», que foi
assinado pelo negociador de proa, o Visconde de Vila Nova de Cer-
veira. Alexandre de Gusmão, membro do Conselho Ultramarino e
Secretário privado d'El-Rey Dom João V, foi considerado por Rodrigo
Octavio o verdadeiro «pai do Panamericanismo», porque o Tratado
de Madrid, ao estabelecer os limites naturais (cumiadas das serras
ou grandes rios), determinou também que, mesmo que as Metrópoles
se empenhassem em guerra na Europa, reinaria paz entre suas colônias
na América do Sui.
Pelo Tratado de Madrid, que adotou o princípio do uti possidetis,
Portugal ficou senhor de quase 3/4 partes da bacia amazônica, mas
perdeu a Colônia do Sacramento em troca dos Sete Povos das Missões.
Celebrado o tratado, prestou-se este a uma controvérsia pouco
feliz. O brigadeiro Antônio Pedro de Vasconcelos, que durante vinte
anos fora governador de Colônia do Sacramento e a defendera em
1735 inexpugnàvelmente de um cerco imposto pelos espanhóis coman-
dados por Salcedo que durou quase oito meses e durante o qual 935
homens com 80 peças de artilharia zelaram pela honra de sua bandeira,
saiu à praça com uma carta impressa para criticar a obra de Gusmão,
maso criticar o negociador ostensivo (ou figura de proa), o Visconde
de Vila Nova de Cerveira; o que provava que Gusmão fora de fato o
ideador e o negociador principal, ou de retaguarda, digamos assim, do
Tratado de Madrid. Gusmão replicou a Vasconcelos com uma carta
notável, também impressa. As críticas portuguesas ao Tratado de Madrid
consistiram principalmente em que, com a cessão de Colônia do Sacra-
mento, Portugal perdia todo o território ao norte da cidadela, isto é,
a vasta campina uruguaia. As sete aldeias dos índios com seu território
circundanteo valiam a praça forte, que tantos sacrifícios de sangue
e de fazenda custara a Portugal. Dessarte, os espanhóis ficavam
senhores do estuário do Prata; Portugal perdia um limite natural e
ficava metido num território interno, dependente das chaves do estuário.
Na Espanha, as críticas foram também muito vivas, alegando-se que
a Rainha Barbara de Bragança, esposa de Fernando VI, pelo fato de
ser filha de Dom João V, exercera influência decisiva sobre o rumo das
negociações. Dizia-se ademais que o negociador espahol Carbajal y
Lencastre se deixara envolver pela argumentação da Corte de Lisboa,
quando devia contrariá-la.
Os índios guaranis opuseram-se aos demarcadores português e
espanhol (o Conde de Bobadela, Gomes Freire de Andrada, desde
1733 governador do Rio de Janeiro e das Capitanias do Centro e do
Sul; e o Marquês de Valdelírios) . Daí a chamada guerra guarani,
que durou de 1754 a 1756, na qual foram os índios derrotados, posto
chefiados por um cacique hábil e fanático, San Sepê, que morreu em
combate.
Contudo, a conquista do Rio Grande se processou como resultado
de um grande pensamento político. Daí afirmar Jaime Cortesão que
«o Rio Grande era o complemento econômico do Brasil mineiro».
Na Amazônia as posses portuguesaso foram perturbadas pelos
espanhóis. A explicação disto se encontra em que os Portugueses
conheciam a Amazônia muito melhor que os Espanhóis, fato que foi
reconhecido em 1782 pelo Rei Carlos III d'Espanha ao inaugurar a
Junta de Governo, em Madrid. Assim, puderam as autoridades por-
tuguesas proceder a importantes levantamentos cartográficos, à fundação
de fortes estratégicos, como Tabatinga em 1766, e ao estabelecimento
de uma cortina de fortificações que se estendiam deo José de Mira-
bitanas ao forte deo Joaquim, que as autoridades do Império
deixaram desmantelar-se, construções do tempo de Pombal, que também
mandara construir as monumentais fortalezas de Macapá e do Príncipe
da Beira, no Guaporé. O General Lyra Tavares, no seu belo Iivro
A Engenharia militar portuguesa na construção do Brasil, publicado
em Lisboa em 1965, assinalou o mérito excepcional desses engenheiros
militares que construíram fortificações no parâmetro do Brasil.
O Tratado de Madrid foi anulado pelo tratado de El Pardo, de
12 de fevereiro de 1761. Pombal, que estabelecera um sistema de
espionagem que tinha seu quartel general em Madrid e inaugurara a
«propaganda dirigida» através da Europa com sua campanha contra
os Jesuítas, espalhando livros e panfletos em francês, espanhol, italiano
e latim, resolveu adotar uma política deo forte contra a Espanha:
reconquistar Colônia do Sacramento e ampliar a expansão na Ama-
zônia. Pombal fundou três Capitanias gerais (a do Piauí, a do Rio
Negro e a de Mato Grosso) . Ademais, fundou umas 15 cidades à
beira-Amazonas com toponimia tirada do Reino e fomentou uma expa-
triação anual de quase 2.000 pessoas de Portugal para as paragens
amazônicas. Enquanto Pombal esteve no poder, isto é, de 1750 a 1777,
as posses portuguesas na Amazônia consoiidaram-se e expandiram-se.
O estadista, que dissera a seu Secretário d'Estado Dom Luis da Cunha
Manuel, sobrinho do famoso Dom Luis da Cunha, que «vale mais e
custa menos fazer a guerra com dinheiro do que com exércitos», no
final do seu enérgico proconsulado se empenhou noutra guerra no
Prata. Êle perdeu a Colônia do Sacramento e a ilha de Santa Catarina,
esta ignominiosamente defendida pelo brigadeiro Antônio Carlos Furtado
de Mendonça, que dispunha de 2.000 homens contra os 10.000 atacantes
espanhóis de Pedro de Cevallos.
A Rainha Dona Maria I resolveu liquidar a situação político-militar
por meio do infeliz tratado de 1" de outubro de 1777, o chamado tratado
de Santo Ildefonso, a respeúo do qual externou o Barão do Rio Branco
os seguintes conceitos:
«... tratado que os espanhóis violaram no Amazonas e
no Paraguai, fundando estabelecimentos em território português
durante a demarcação, queo se ultimou em conseqüência
de profundas divergências entre os comissários dos dois países.
Para responder às usurpações espanholas, ocuparam os por-
tugueses a margem direita do Paraguai, fundando Coimbra e
conservaram a fronteira de Tabatinga. Durante a guerra de
1801, estendemos os nossos domínios do Rio Grande do Sui
até ao Uruguai, Quaraim e Jaguarão, de sorte que, io dar-se
a independência das colônias espanholas, grande parte da linha
das fronteiras estabelecidas pelo tratado de 1777 estava modi-
ficada, ocorrendo mais a circunstância deo ter sido este
tratado revalidado pelos de Badajoz e Amiens (1801 e 1802)».
Quem se der ao trabalho de seguir as linhas mestras da expansão
de Portugal na Amazônia verificará que a avançada portuguesa sez
com vistas a conseguir uma saída para o Norte e para o Oeste. Por
muito tempo firmou-se a esperança de uma saída para o Norte, que
seria pelo Demerara ou pelo Essequibo, plano de larga envergadura
que demandaria mobilização de forças militares importantes. Para Oeste
o lance heróico de Pedro Teixeirao pôde ter seguimento, primeiro
porque os portugueses encontraram terras altas que lhes dificu.taram
o passo; e segundo, porque se lhes depararam aldeiamentos castelhanos
fixados nas cumiadas e nas vertentes andinas por causa da busca da
prata e de outros metais. Recorda-se que Potosi, fundada no tempo
de Carlos V numa altitude de 4.000 metros, devido à sua produção
de prata, chegou a ter no século XVII uma população superior a 100.000
habitantes. Bogotá foi fundada por Jimenez de Quesada a 2.680 metros
de altitude; e Quito, a 2.800 metros de altitude. A mineração da prata
sedentarizou populações em altas paragens andinas.
Nos meiados do século XVIII, intensificada a mineração no Centro,
levada a expansão militar no extremo norte aos seus pontos de estabi-
lização mais afastados, conquistado Mato Grosso, portugueses e es-
panhóis encararam-se com imensa desconfiança. uma negociação
diplomática tem sempre dois inimigos — o demasiado e o muito pouco.
O Tratado de 1777 pecara pelo demasiado de concessões à Espanha.
Contudo, as condições desairosas desse tratadoo paralisaram a
expansão portuguesa. Na Amazônia, numerosas foram as expedições
que demandaram rios extensos e penetraram em rincões perdidos da
nossa atual fronteira no Norte e no Oeste. Intenso propósito de levan-
tamentos cartográficos, e realmente notáveis, de rios desconhecidos
conjugou-se com o estabelecimento de postos militares ao longo dessas
vias fluviais. Foi essa a sistemática de Manuel Lobo d'Almada. Urna
dessas últimas expedições foi a de Ricardo Franco de Almeida Serra,
concluída em 1781, aos rios Maú, Tacutú e Pirara, de que êle nos
deixou uma narrativa interessante dirigida ao astrônomo e explorador
Antônio Pires da Silva Pontes e estampada na «Revista do Instituto
Histórico», vol. VI, 1844, págs. 84 e segs.
Assim, no movimentado período que vai de 1719 data da funda-
ção do forte deo Joaquim, segundo alguns historiadores até à
Revolução francesa, a região situada ao norte do rio Amazonas até as
cordilheiras setentrionais foi intensamente percorrida, e policiada, pelas
autoridades portuguesas. Contudo, a França ficara encurralada na sua
Guiana, mas nem por isso perdera a esperança de meter uma cunha na
bacia amazônica. Por isso, a França resolveu penetrar nas Terras do
Cabo do Norte por meios militares em 1836. Mais tarde, tivemos
as explorações do prussiano Schomburgk (que se naturalizou inglês e
foi enobrecido como Sir Robert Hermann Schomburgk), o qual, comis-
sionado pela Real Sociedade de Geografia de Londres, partiu em 1835
para a Guiana inglesa a fim de proceder a várias explorações e trabalhos
cartográficos, entre os quais o reconhecimento da primeira fronteira
eventual da Guiana inglesa com a Venezuela. Desinteressadamente
ajudado pelas autoridades do forte deo Joaquim, foi êle praticamente
o «inventor» do litígio anglo-brasileiro da Guiana, que só teve solução
definitiva pela arbitragem de 1904 com a infeliz decisão do àrbitro,
o rei da Italia Vitor Manuel III. «Região ondeo existe uma vaca»,
como dizia com ironia Lord Salisbury ao nosso Ministro em Londres
Souza Correia, foi essa a zona litigiosa entre os governos de Londres
e do Rio de Janeiro. É oportuno assinalar que Amônio Ladislau Mon-
teiro Baena, já em 1841, soltara o grito de alerta contra o possível
projeto de expansão britânica nas terras do Repununi, escrevendo
uma «Memória sobre o intuito quem os ingleses de Demerari de
usurpar as terras ao Oeste do rio Repununi adjacentes à face austral
da cordilheira do Rio Branco para amplificar sua colônia», memória
publicada na «Revista do Instituto Histórico», vol. III, ano de 1841.
págs. 322-332.
Assim, pela escotilha aberta num remoto recanto da fronteira Brasil
com a Guiana inglesa, haviam os ingleses obtido acesso às águas da
vertente amazônica; mas, curioso, jamais tiraram proveito disso, mesmo
depois da infeliz sentença do árbitro de 1904.
O ano de 1810 marca o início da campanha em prol da libertação
política dos povos hispano-americanos. A Junta Suprema de Santa Fé
de Bogotá dirigiu-se em 1810 à de Caracas para lhe fazer saber que
o princípio fundamental do Novo Reino de Granada era o da con-
fraternidade e o da união com todos os povos do Continente americano.
Bolivar impõe-se como a figura máxima da destruição de uma
«velha ordem» e da construção de uma «nova ordem». Simon Bolivar,
nascido em Caracas em 1783 e falecido em Santa Marta na Colômbia
em 17 de dezembro de 1830, herói de umas cem batalhas, libertador
de seis povos e fundador de uma república à qual deu seu nome, atingiu
as culminâncias do poder e da glória para conhecer uma queda dra-
mática só comparável à de Napoleão. Bolivar encarou o Brasil, sob
suas instituições monárquicas, com certa suspicacia, a qual subiu de
tom por motivo dos enredos de Rivadávia, presidente da Confederação
das Províncias Unidas do Rio da Prata, tendentes a levar o Libertador
a mover guerra ao Império do Brasil. Na correspondência e papéis
políticos de Bolivar, publicados em 22 volumes pelo governo venezuelano,
bem como na de Santander, encontram-se provas desse plano. Contudo,
Bolivaro anuiu às idéias de Rivadávia.
O plano gigantesco de Bolivar, exposto na famosa Carta de Jamaica,
de 6 de setembro de 1815, de construir uma grande nacionalidade
hispano-americana espalhada sobre um território de uns quatro milhões
de quilômetros quadrados ou mesmo mais (Venezuela, Nova Granada
com sua província do Panamá, Equador, Peru e Bolívia),o foi
entendido por seus colaboradores. Os acontecimentos tiveram rumo
a contra-pêlo dos planos bolivarianos, porque nem Bolivar nos moveu
guerra, antes procurou manter boas relações com o Império, nem a
grande unidade territorial que êle arquitetara chegou a materiaüzar-se,
porque se fragmentou em vários países. Contudo, no século passado
ficou certa política residual de prevenções hispano-americanas contra
o Brasil, que acabaram felizmente por se dissipar.
A historiador espanhol Mário Hermández Sánchez-Braba, em sua
«História Universal da América», publicada em dois grossos volumes
em Madrid em 1963, analisou o Congresso do Panamá (ao qual o
Brasilo compareceu), e afirmou que
«Una buena parte dei Congresso de Panamá giró en
torno al deseo hispanoamericano de conseguir una declaración
colectiva con los Estados Unidos que promoviese la accesión
del conjunto de Repúblicas hispanoamericanas a la doctrina
Monroe, en cuanto significase mutuo auxilio en cuestiones
defensivas de la integridad territorial, en caso de intentos
de penetración extranjera. Es evidente que los delegados
hispanoamericanos intentaron conseguir tal accesión, sin nin-
guna clase de éxito; en otras palabras, en aquela ocasión,
Hispanoamérica solicitó cooperación norteamericana sin fruto,
porque los Estados Unidos no se manifestaron dispuestos
a ello».
O Império do Brasil, então nação jovem em sua vida independente,
viu-se isolado no Continente americano, com suas fronteiras indefinidas,
suportando prevenções alheias porque era regido por instituições monár-
quicas num Continente republicano, mas disposto a reagir contra con-
dições adversas. Fa-lo-á magistralmente por meio de uma ação
diplomática persistente, bem orientada e realmente notável. O Brasil
o dispunha de poderio militar-naval; mas dispunha de uma diplomacia
vigilante, cauta e previdente.
2. AÇÃO DA DIPLOMACIA BRASILEIRA
O uti possidetis de 1810, tantas vêzes invocado pelos políticos e
historiadores hispano-americanos, corresponde ao nosso uti possidetis
de 1822, segundo a interpretação dada pelo Conselheiro Paranhos,
então Ministro dos Negócios Estrangeiros do Império, em despacho
de 30 de dezembro de 1856, dirigido a Filipe José Pereira Leal, Ministro
em Caracas:
«O princípio adotado pelo Governo Imperial sobre limites
é, como V. S. sabe, o uti possidetis. A adoção deste prin-
cípio é base sine qua non para a ratificação por S. M. o
Imperador de qualquer tratado desse gênero com as Repú-
blicas vizinhas. Sendo necessário fixar uma época para a
definição da posse, e podendo haver dúvida sobre qual fosse
essa época, o Governo Imperialo duvidou admitir a do
ano de 1810, por coincidir o estado da posse naquele ano
com o de 1822, em que teve lugar a emancipação política
do Brasil. Isto pelo que diz respeito às Repúblicas de Ve-
nezuela, Nova Granada e Equador, que declararam-se inde-
pendentes em 1810.
O principio adotado sobre navegação fluvial é que ela
pertence pelo Direi.o das Gentes ao soberano por cujo território
passa o rio, e só pode estender-se aos outros ribeirinhos e
às demais nações, em virtude de convenções prévias, nas quais
se regule o exercício do direito imperfeito dos primeiros, e as
franquezas concedidas aoso ribeirinhos, por modo que
se proveja a segurança e policia territorial e se conciliem os
interesses especiais, comuns e gerais. Nestes princípios fun-
dam-se os tratados de limites com Venezuela e Nova Granada,
de 25 de novembro de 1852 e 25 de julho de 1853, e as Con-
venções da navegação fluvial de 25 de janeiro e 14 de junho
de 1853.
Devo chamar a atenção de V.S. especialmente para as
duas seguintes cláusulas contidas nas referidas convenções:
i a navegação do Amazonas e seus afluentes pertence
exclusivamente aos ribeirinhos; 2
:
\ os Governos de Venezuela
e Nova Granada concorrerão com o do Brasil para subven-
cionar a primeira empresa de navegação por vapor que se
estabelecer para aquele fim recíproco.
Ao adotar a primeira destas cláusulas na Convenção que
celebrou com o Peru em 23 de outubro de 1851, e ao ordenar
depois que fosse ela inserta nas já citadas com Venezuela
e Nova Granadao tinha o Governo Imperial em vista mani-
festar um sentimento hostil ou mesquinho para com Nações
cujas relações de amizade e comércio lhe convém e deseja
manter e estreitar. Seu pensamento era e é atender a consi-
derações de prudência que lhe parecem assaz óbvias. As
margens do Amazonas e seus afluentes estão atuamenteo
pouco povoadas, que a ação protetora e repressiva dos Go-
vernos que as possuemo se faz nelas sentir de um modo
regular e eficaz. Nestas circunstâncias franquear a todos
aquelas vias fluviais,o seria servir aos interesses gerais do
mundo civilizado, seria abrir desertos interiores às aventuras
flibusteiras e à impunidade dos malvados, obrigando-se o
Imperador e os seus ribeirinhos a manter uma policia difícil
e dispendiosa nessas paragens».
Por causa da defesa dos legítimos interesses do Brasil na Amazônia,
a diplomacia brasileira exercerá uma ação notável de esclarecimento
e de previsão em face de antagonistas fortes, como a França e a Ingla-
terra, bem como em face dos países convizinhanies. É uma tarefa
admirável, dotada do mais alto senso político e de um profundo conhe-
cimento dos precedentes históricos e diplomáticos. Aureliano de Souza
e Oliveira Coutinho, depois Visconde de Sepetiba, notável ministro
de Dom Pedro II, dedicou o máximo dos seus esforços ao contestado
entre a França e o Brasil. Logo em 1841 consegue êle neutralizar
o território litigioso com a Guiana francesa e em 1842 o território
também litigioso com a Guiana inglesa. Atente-se nesta circunstância:
nessa época era o Brasil um país fraco no jogo feito pelas grandes
potências.
Parecendoo se ter conformado com a derrota no Congresso
de Utrecht, a França, no tempo de Luis Filipe, acesa em veleidades
imperialistas, fomentou explorações e expedições de Caiena que se
internaram em território brasileiro. Assim, em 1831 Leprieur explorou
o Oiapoque e o rio Uaçá. Adam de Ia Bauve percorreu o Jari e outros
afluentes amazônicos, inclusive o Trombetas numa extensão de quase
200 kms. Desceu o Trombetas, subiu o Negro e o Rio Branco até
ao forte deo Joaquim, aonde chegou em 1834. Depois subiu o
Pirara e vokou ao Joaquim a 15 de dezembro de 1834. Estudou
o Tacutú e o Repununi, seguindo velhos roteiros portugueses, desceu
éste uitmio rio e cnegou ão posto inglés de Amapá no baixo Fssequibo
em 18 de fevereiro de 1835 (ver Pandiá Calógeras, Da Regencia
à queda de Rosas, Sao Pauío, 1935, págs. 245 e segs. ). Quando em
1835 se deu a revolta sangrenta de Malcher e Vinagre no Pará, as
autoridades de Caiena pensaram ser o momento azado à expansão
territorial. A este respeito existe um ofício muito interessante de
William Hunter, Encarregado de Negócios dos Estados Unidos no
Rio de Janeiro, de 12 de setembro de 1838, dirigido ao Secreiário de
Estado Forsyth, no qual faia dos propósitos expansionistas da França,
dizendo: «... que o Príncipe de Joinville pode resolver muitas questões
intrincadas, mesmo a das fronteiras da Guiana francesa por meio da
cessão das duas províncias refratárias do Pará e do Maranhão e o
nascimento de outra monarquia no território americano. Naturalmente
tudo issoo boatos mas tudo isso pode muito bemo ser absurdo».
Este ofício encontra-se na coleção de Manning, «Diplomatic corres-
pondence of the United States/Inter-American Affairsf/1831-1860».
Washington, 1935, pag 230.
O Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros, de 1854,
às págs. XX diz o seguinte:
«A ocupação do Amapá por forças francesas, desde 1836
a 1840, teve em resultado ficar considerado neutro o território
compreendido entre o rio Oiapoque e o ponto daquela ocupação
na altura da baía de Vicente Pinson».
As pretensões francesas e inglesas contra as quais o Visconde
de Sepetiba e o Visconde de Uruguai reagiram corajosa e habilmente
cifravam-se em estabe'ecer eventual domínio sobre uma vasta área.
Se essas pretensões fossem unificadas, sem dúvida alguma poderiam
estender-se do Oiapoque até ao Cassiquiare. Território imenso por
certo. Nessa altura Joaquim Cadano da Silva publica em Irances
o seu notável trabalho de defesa dos direitos do Brasil ao Amapá.
Palavraso existem para exaltar o trabalho magistral dos diplo-
matas do Império que, defendendo o que era nosso com a apresen.ação
de títulos irrefutáveis, abriram caminho para a admirável vitória do
Barão do Rio Branco na questão do Amapá. A decisão do árbitro,
o Presidente do Conselho Federal da Suíça, Hauser, deu ganho de
causa ao Brasil que ficou com 225.000 km2, ao passo que a França
ficou apenas com 5.000 km2.
O litígio da Guiana inglêsa-Brasil, submetido à decisão do árbitro
de 1904, ultimou-se na divisão do território litigioso de 33.200 km2,
dando 19.630 km2 para a Inglaterra, e 13.570 km2 para o Brasil.
Nabuco, o advogado do Brasil, defendeu os nossos direitos num trabalho
magistral de história, cartografia, ciência jurídica e alto sentido diplo-
mático que deve ser gratamente relembrado.
Nesse período, que vai de 1840 até à abertura do rio Amazonas
à livre navegação internacional em 7 de dezembro de 1866 durante a
Guerra da Tríplice Aliança, a diplomacia imperial empenhou-se num
prélio denodado em prol da defesa da nossa Amazônia fazendo-o com
uma tenacidade que ainda hoje nos comove, quer contra as aspirações
absurdas de flibusteiros norte-americanos crentes de obter o endosso
do governo de Washington para forçar o Império a abrir a navegação
do grande rio aos nor.e-americanos em primeiro lugar e depois às
demais bandeiras, quando justamente a polúica imperial consistia
primeiro em resolver o assunto de limites com os países condôminos
da bacia amazônica, e depois abrir o rio à navegação internacional;
quer exercendo notável e persistente ação diplomática em Lima, Caracas,
Bogotá e La Paz. Em 8 de maio de 1850 o Secretário de Estado
Clayton dirigiu um aviso ao Secretário da Marinha Preston, no qual
afirmou que o Departamento a seu cargo «de algum tempo a esta
parte vinha contemplando certas providências com vista a obter para
os cidadãos dos Estados Unidos a navegação do rio Amazonas e de
alguns dos seus tributários» (ver Lawrence F. Hill, Diplomatie relations
between the United and Brazil, 1932, pag. 231) .
A campanha de Maury, Herdon e Gibbon para despertar o inte-
rèsse da opinião pública dos Estados Unidos pela abertura do rio
Amazonas ao comércio internacional parecia ir de vento em popa.
Maury considerava a Amazonia um verdadeiro Jardim das Hespérides.
Em 26 de julho de 1851, J. Randolph Clay, ministro dos Estados
Unidos em Lima, assinou um tratado de amizade, comercio e navegação
com o Peru, tratado que garantia aos nacionais de ambas as partes
signatárias a cláusula da nação mais favorecida. como firmou Hill,
«suspeitando da tática e dos motivos norte-americanos, o Governo
brasileiro estabeleceu planos para neutralizá-los». É a missão do Barão
da Ponte Ribeiro. Durante algum tempo Ponte Ribeiro e Clay, tanto
no Peru como na Bolívia, se empenharam numa batalha vivaz e nem
sempre igual, consoante afirmou Hill. Ponte Ribeiro derrotou o diplo-
mata nor^e-americano, porque a 23 de outubro de 1851 negociou com
o governo de Lima, representado pelo Ministro das Relações Exteriores
Bartolomé Herrera, o Tratado de Comércio, Limites e Navegação,
o quai estabeleceu a exclusividade da navegação amazônica para ambas
as partes signatárias.o obstante os protestos do ministro norte-
americano, o tratado foi ratificado. O «ataque de flanco» da diplo-
macia norte-americanao colhera êxito.
É preciso assinalar que Ponte Ribeiro assinara com o governo de
Lima o tratado de Amizade, Comércio e Navegação, de 8 de julho
de 1841, queo obtivera a aprovação do Govèrno Imperial. Pelo
art. XIV desse tratado, as Altas Partes Contratantes convieram em
demarcar limites fixos e preciosos conforme ao uti possidetis de 1821.
O art. VII do Tratado de 1851 voltou a reconhecer o princípio do
uti possidetis; e as Allas Partes Contratantes «reconhecem, respecti-
vamente, como fronteira a povoação de Tabatinga; e daí para o norte
em linha reta a encontrar o rio Iaporá (Japurá), defronte da foz do
Apapóris, e, de Tabatinga para o sul, o rio Javarí, desde a sua con-
fluencia com o Amazonas».
Dirá o Barão do Rio Branco, na Exposição de Motivos íóbre o
Tratado de 8 de setembro de 1909 entre o Brasil e o Peru:
«O chamado uti possidetis juris, do momento da indepen-
dencia das nações sul-americanas, foi uma invenção mal achada
de publicistas e diplomatas de origem espanhola que, nas
discussões sobre fronteiras com o Brasil, quiseram tomar por
fundamento das mesmas o inválido Tratado preliminar de
1777. «El uti possidetis à la época de la emancipación de
las colonias españolas» escreveu de Lima, em 11 de setembro
de 1857 o notável jurisconsulto D. Andrés Bello «era
la posesión natural de España, lo que España poseía real y
efectivamente con cualquiera título ó sin título alguno, no lo
que España tenía derecho de posser y no poseía».
O tratado celebrado com o Peru em 1851, obra prima da diplomacia
imperial por sua oportunidade histórica, teve a excepcional vantagem
de, ao fixar os limites com o Peru, por uma espécie de exp'osao em
cadeia mexer com os eventuais limites entre Nova Granada e Peru,
Nova Granada e Brasil, Nova Granada e Venezuela, Venezuela e o
Brasil; e, por último, com os possíveis limites entre Peru e Bolívia
e o Brasil. Tôda uma temática política referente à definição de fron-
teiras na Amazônia entrou em ação.
Outro notável diplomata do Império, o Comendador Miguel Maria
Lisboa (depois Barão de Japurá que faleceu como Ministro do Império
em Lisboa com 76 anos de idade) negociou e assinou em Caracas
em 1852 um tratado de limites e uma convenção sobre navegação
fluvial. Em 1853 assinou em Santa Fé de Bogotá com Lourenço Maria
Lleras, Ministro das Relações Exteriores, um tratado de limites e uma
convenção sobre navegação fluvial. Esses tratados de limites e essas
convenções sobre navegação fluvialo foram ratificadas. Em 1859
o Conselheiro Filipe José Pereira Leal assinou em Caracas o Tratado
de Limites com a Venezuela.
Ciente de que o ditador Melgarejo, da Bolívia, pretendia entrar
na Guerra da Tríplice Aliança ao lado de López, porque este lhe
oferecera a parte da Província de Mato Grosso conquistada pelas
forças paraguaias, o Governo Imperial despachou o Barão de Lopes
Netto a La Paz de Ayacucho, onde assinou o Tratado de Amizade,
Comércio, Limites e Extradição, de 27 de maio de 1867.
As negociações de Lopes Netto com Mariano Donato Muñoz,
Ministro das Relações Exteriores de Melgarejo,o foram nada fáceis;
pelo contrário, encontraram dificuldades enormes, dado o clima então
reinante, o da Guerra do Paraguai. Dirá um historiador boliviano,
citado no meu livro O Drama da Tríplice Aliança (1865-1876): «Es
(Melgarejo) desprendido con la heredad nacional, cuando no la conoce
personalmente. En cambio, se constuye en guardián celoso de lo
que él cree boliviano, discutiendo palmo a palmo los territorios de
las fronteras donde estuvo confinado. Esto si que no! Esto es boliviano'
exclama con énfasis cuando el Ministro brasileiro López Netto trata
de incluir en el mapa del Brasil, los pueblos de Santo Corazón y San
Matías» (Alfredo Sanjinés, El Quixote Mestizo, La Paz, 1951-
ginas 348-49).
Dirá o Barão do Rio Branco numa extraordinária sínteseo
apenas de ciência geográfica, mas de alta ciência política, que convém
aqui reproduzir:
«Pelo Tratado de 27 de março de 1867, com a Bolívia,
estabelecendo a linha Javari-Beni, muito diferente da de
1777, o Brasil cedeu a essa República os territórios do
Juruá e do Purus, com os seus afluentes, entre os quais o
Gregorio, o Tarauacá, o Acre ou Aquiri, e o Yaco ou Hyaco,
ao sui da dita linha Javari-Beni. Pelo Tratado de Petrópolis,
em 17 de novembro de 1903, recuperou-os, resgatando ao
mesmo tempo, mediante uma indenização e outras compen-
sações, o seu título anterior, português-brasileiro, por isso
que, enquanto esses territórios foram bolivianos, o Governo
da Bolíviao havia cedido ao Peru parte alguma dêles,o
tendo nunca admitido a linha provisória Javari-Inambari, nem
a do projetado acordo Polar-Gómez (o meridiano de 69
graus oeste de Greenwich) ou qualquer outra das que, por
parte do Peru, andavam sendo citadas. Contra o antigo título
português-brasileiro, baseado no Direito Internacional, nada
podiam valer os decretos dos Reis de Espanha fixando os
limites administrativos das suas possessões no Vice-Reinado
de Lima e na Audiencia de Charcas, nem o caduco Tratado
de 1777, sobretudo depois da Convenção de 1851 entre o
Brasil e o Peru».
A 7 de dezembro de 1866, em plena guerra da Tríplice Aliança,
o Brasil abriu o Amazonas, o Tocantins, o Tapajós, o Madeira e o
rio Negro até Manaus à navegação de tôdas as bandeiras, campanha
pela qual se bateram Tavares Bastos, Octaviano, Mauá, Souza Franco,
Saraiva, Ladário e o Conselheiro Nabuco.o contente de abrir o
Amazonas, o Brasil pelo mesmo decreto abriu ao comércio internacional
um rio absolutamente seu, oo Francisco. Neste ponto o Governo
Imperial dava exemplo ao mundo inteiro, exemplo que anteciparia os
esforços de internacionalização à outrance dos rios, propugnada pela
conferência internacional de Barcelona, de 1921. Soza-Rodriguez, em
sua obra Le droit fluvial international et les fleuves de l'Amérique latine,
referindo-se à questão da navegação do Amazonas, afirmou com muita
propriedade:
«A política dos Estados Unidos acabou, pois, por triunfar,
mas elao triunfou senão porque o próprio Brasil se inteirou
das vantagens que tinha em permitir a livre navegação do
Amazonas. Ademais, notemos que essa liberdade só foi con-
cedida quando o Brasil a julgou oportuna eo foi concedida
especialmente aos Estados Unidos, mas ao mesmo tempo às
bandeiras de tôdas as nações, e istoo sobre a base do
reconhecimento de um direito que lhe fosse proveitoso, doutrina
que o Brasil jamais admitiu, mas em virtude de um decreto,
ato de soberania, e a título de concessão graciosa». (Paris,
1935, pag. 163).
Contudo, a despeito do trabalho magistral de Miguel Maria Lisboa
e do Conselheiro Nascentes de Azambuja em sua memorável missão
especial a Bogotá de 1868 a 1870, foi só no tempo do Barão do Rio
Branco que se assinou o Tratado de limites de 24 de abril de 1907
com a Colômbia, durante a missão especial de Enéas Martins.
Disse o Barão do Rio Branco no seu estilo lapidar de historiador,
ao apresentar ao Presidente Afonso Pena, o Tratado de Limites Brasil-
Colômbia, de 1907:
«O Tratado de Limitese termo feliz a negociações
mandadas iniciar há 54 anos pelo Visconde de Uruguai e
nas quais tanto se ilustraram, por nossa parte, os Conselheiros
Miguel Maria Lisboa, em 1853, e Joaquim Maria Nascente
de Azambuja, de 1868 a 1870. Seria injustiça deixar eu nesta
ocasião de recomendar ao alto apreço de Vossa Excelência
o Plenipotenciario brasileiro, Dr. Enéas Martins, pelo zelo,
tato e competencia com que se houve nas negociações dos
acordos que agorao ser submetidos às duas Câmaras do
Congresso Nacional».
Assim, ficaram definitivamente definidas, fechadas e demarcadas,
as nossas fronteiras na Amazônia após um paciente e admirável tra-
balho da diplomacia brasileira, o qual se traduziu nas seguintes infor-
mções sobre a extensão dessas fronteiras:
Guiana francesa, 655 kms de extensão;
Guiana holandesa, 593 kms 040;
Guiana inglesa (hoje, Estado da Guiana), 1.605 kms 800;
Venezuela, 2.199 kms 267;
Colômbia, 1.644 kms 180;
Peru, 2.995 kms 272; e
Bolívia (cuja extensa fronteira com o Brasil é partícipe
da bacia amazônica, bem como da platina), 3.125 kms 951.
O trabalho da diplomacia brasileira, representado no passado pela
ação do Barão da Ponte Ribeiro, do Barão de Lopes Netto, de Filipe
José Pereira Leal, do Conselheiro Nascentes de Azambuja, do Barão
de Japurá, de Nabuco, de Enéas Martins e do Barão do Rio Branco,
é assinalado, como bem merece, com emoção quanto à defesa dos
interesses do Brasil na Amazônia, trabalho que foi obra de tenacidade,
de cultura, de fino sentido político e diplomático e de continuidade
histórica.
3. DENSIFICAÇÂO DEMOGRÁFICA E ECONÔMICA DAS FRONTEIRAS.
AÇÃO DO EXÉRCITO, MARINHA E AERONAUTICA
A lição do passado fortalece o ânimo do presente quanto ao apro-
veitamento econômico da Amazônia. Na vida das nações, tempo perdido
é irrecuperável. Por conseguinte, no lidar com problemas de grande
complexidade cumpre sempre ter-se o ânimo decidido de resolvê-los.
No passado, tivemos o exemplo gigantesco de Mauá, a máxima
expressão do empresariado brasileiro, preocupado com o aproveitamento
econômico da Amazônia bem como sua colonização. Quando a 1º de
janeiro de 1853, iniciou êle o serviço regular de navegação a vapor
de Belém a Iquitos,o se contentou de realizar obra de caráter
limitado. Entendeu de ampliá-la, dando-lhe atenção permanente: «o
modesto serviço foi, porém, julgado insuficiente e os interesses da
região amazônica exigiram imperiosamente maior desenvolvimento.
Prestei-me quanto era possível, e sucessivamente novos navios fun-
deavam na capital do Pará por conta da companhia», dirá êle em sua
Autobiografia. A «Companhia de Comércio e Navegação do Amazonas»,
por êle fundada, chegou a ter mais de 12 navios, construídos em
estaleiros nossos (no da Ponta d'Areia, em sua mor parte) e coman-
dados por oficiais brasileiros, trafegando de Belém a Iquitos. Mauá
acreditou nas imensas possibilidades de comércio através dos rios
amazônicos, estradas que marcham. Convém ter presente que os Estados
Unidos transportam por ano 489 milhões de toneladas através dos
seus rios; que a pequena Bélgica transporta 85 milhões de toneladas
através dos seus rios e canais; e que o Brasil transporta menos de
10 milhões de toneladas por ano através dos seus numerosos rios que
apresentam baixo índice de utilização. Por conseguinte, Mauá foi um
pioneiro genial, e mais que pioneiro, um realizador. Acreditou no
aproveitamento econômico da Amazônia.
No século passado, quando o Império mantinha o Amazonas fe-
chado à navegação internacional porque procurava antes liquidar a
questão de limites com os países vizinhos na área, certos publicistas
estrangeiros mostraram-se particularmente azedos na apreciação da
política brasileira, bem comoo deixaram de manifestar a opinião
de que as terras amazônicas deveriam merecer a atenção de povos
mais fortes e mais cultos. Charles Mansfield, em sua obra Paraguay,
Brazil and the Plate, publicada em 1856, manifestou-se muito claro
ao apreciar (ou melhor, ao depreciar) o Brasil:
«Now the first fact is, that here, in South America, are
numberless thousands of square miles of the most splendid
land in the world, for the production of every article the
soil will yield to man. Here, in Brazil, and in the provinces
drained by the tributaries of the La Plata, is every variety
of soil, mountain, valley, plain, and forest, claimed by a race
of people who, like dogs in manger, will not cultivate themsel-
ves, and yet claim a right to prevent others from doing so.
What a monstrous folly, to guarantee by treaties the possession
of those lands to the Iberians!,
Now one of two things will be done some day: either
the industrious masses of Europe will invade these countries,
and take by force what they require here for their necessities;
or these lands must be silently conquered by the slow and
sure process of immigration, and the present owners absorbed
in the industrious race that will really people the country»
(pag. 223).
No meu Iivro, O Gigante e o Rio, publicado em 1957, no qual
estudei a ação de Mauá tanto no Brasil como no Uruguai e na Argen-
tina, reproduzi conceitos do grande Empreendedor, extraídos do Rela-
tório da sua companhia de navegação apresentado aos acionistas em
1864. Mauá informou que um inglês Edward Haslewood, num Iivro
intitulado «Novas Colônias no Alto Amazonas», procurou demonstrar
às potências européias, e em particular ã Inglaterra, que a aquisição
de terras nessas fertilíssimas regiões seria de vantagem incalculável
para o comércio do mundo e, ao mesmo tempo, para os Estados que
então possuíssem esse território. Chegou mesmo a advogar a idéia
do estabelecimento de uma colônia européia às margens do Amazonas,
o que seria acontecimento importantíssimo para o mundo, por que
obrigaria o Brasil a abrir o rio ao comércio internacional.
Esses exemplos do passado, colhidos a esmo, mostram como certas
ambições internacionais tatalaram como milhafres sobre a Amazônia
brasileira. Razão por que, no tempo do Império, a nossa diplomacia
pelejou pelo respeito das nações mais fortes aos nossos direitos de
soberania. Foi a política de Paulino José Soares de Souza. Se tivemos
a história daquele ministro norte-americano, acreditado junto a Dom
Pedro II de 1861 a 1869, que se empenhou em negócios, tais como a
constituição de uma companhia para transferir negros do Sui dos Esta-
dos Unidos para a Amazônia; tivemos também o episódio simpático
da fixação de antigos confederados, chefiados pelo major Lansford
Warren Hastings, na boca do Tabajós em 1867.
O portentoso exemplo de Mauáo teve émulos ou seguidores
brasileiros. Estrangeiros, sim, aproveitaram-se da experiência de Mauá
e lhe copiaram os planos. O exemplo heróico do general Couto de
Magalhães ao estabelecer a navegação a vapor no Araguaia em 1863 e
pretendendo num assomo de audácia ligar o Amazonas ao Prata com o
aproveitamento do rio Taquari, ficou sem seguimento. Se o plano de
Couto de Magalhães tivesse contado com o firme apoio do Governo
através do tempo, horizontes econômicos verdadeiramente imensos se
teriam descortinado ao comércio e ao povoamento do Brasil central!
Thomas Hancock estabeleceu na Inglaterra a primeira fábrica de
borracha em 1820. Em 1833 se estabeleceu nos Estados Unidos a
primeira fábrica de produtos de borracha, a Roxbury índia Rubber,
em Massachussetts. Em 1844 descobriu-se o processo de vulcanização
da borracha. O ciclo da borracha, no Brasil, começou pouco depcis
de 1850 e terminou melancólicamente em 1914. O ciclo da borracha
ativou o giro de riquezas na Amazônia brasileira, no Béni boliviano e
nos Lhanos orientais da Colômbia. Mas, foi uma experiência de extra-
tivismo predatório que passou, quando o Brasil perdeu o monopólio
da borracha. Craveiro Costa, em sua obra, «A Conquista do Deserto
ocidental», assinalou que em 1867 o Brasil exportou 53.045 arrobas
de hevea bcasiliensis. Perdemos o monopólio da borracha devido a
um espírito de ganância inqualificável que nos desonrou no mercado
internacional, esta é a verdade. Esquecemo-nos do revide alheio que
apareceu. Estrangeiros também se beneficiaram da experiência brasi-
leira, transferindo a borracha para a península de Malaia. Depois
se enriqueceram, enquantos nos empobrecemos. A seguir, periodo
mormacento de inatividade e desalento se implantou na Amazônia,
que durou de 1914 a 1940.
Contra esses fatores negativos, acumulados num passado tristonho,
reage a consciência nacional no sentido de uma grande obra política,
que é prática e gerencial, de aproveitamento econômico da Amazônia,
vivificando-a com planos de colonização de gente brasileira, bem como
com um planejamento audaz e diversificado no qualo figura apenas
o Governo Federal, mas figuram também as nossas Forças Armadas
(Exército, Marinha e Aeronáutica) e o empresariado nacional.
Está em nossas mãos criar condições de civilização moderna na
Amazônia, e com gente nossa, insisto em dizer gente jovem nossa.
o precisamos de imigrantes estrangeiros na Amazônia. As dilatadas
distâncias da área bem como a falta de comunicações regulares através
desse território facilitariam a formação de quistos étnicos, o que devemos
evitar. Precisaremos de gente jovem que sejam empresários, topógrafos,
geólogos, sanitaristas, prospectores, médicos, engenheiros, agricultores,
botânicos, arquitetos, gente jovem brasileira que vá para a Amazônia
devassar regiões, colonizar, sanear, abrir estradas, fundar empreendi-
mentos comerciais e industriais e edificar cidades novas num modelo
novo. Por isso, é preciso criar na Amazônia uma casa popular que
utilize os materiais da região. A propósito, recomendo a leitura desse
número admirável da revista «/ aba» (Arquitetura brasileira do ano),
no qual figuram estudos altamente interessantes; e, à justeza do assunto,
um dêles é o do arquiteto César Oiticica, intitulado «Experiência do
clima e materiais na habitação popular». O número dessa revista é
dedicado à Amazônia.
A densificação demográfica e econômica da Amazônia apresenta
dois problemas imediatos; 1 ) o aproveitamento das terras aptas à colo-
nização intensiva tanto na região bragantina do Pará, como no Amapá.
Roraima e Rondônia; 2) a densificação das nossas fronteiras para
transformá-las em fronteiras vivas.
Criando-se na Amazônia o que chamaríamos civilização de /'ron-
íeira. estaremos levando o sangue arterial da nossa riqueza aos recantos
mais remotos das nossas raias fronteiriças. Nessa tarefa de vigilância,
densificação demográfica e aproveitamento econômico terá papel pri-
macial a gente jovem e pioneira que se estabelecer nas nossas raias,
radicada nas glebas que lhe [orem doadas pelo Governo Federal com
a obrigação de povoá-las e aproveitá-las economicamente; bem como
notável missão a cumprir terão as nossas Forças Armadas.
Repito aqui conceitos que verti num estudo publicado no «Correio
da Manhã» em sua edição de 19 de dezembro de 1968: Muita gente
associa a idéia de Fronteiras com ermo, a desolação, a agrestia, a
insegurança, o abandono, o perigo. «Nossos antepassados bandeirantes
e pioneiroso tiveram esse horror à Fronteira, e por isso mesmo a
Fronteira está onde está», disse o embaixador M. Pio Corrêa na
publicação do Itamaraty, «A Nova Política de Fronteiras».
É evidente que a tarefa de vigiar, povoar e enriquecer as fronteiras
na Amazonia requer um planejamento de envergadura a ser cumprido
durante anos a fio. Claro. Mas, será uma tarefa de entusiasmo
criador. Será uma tarefa que poderá levar gente jovem das grandes
cidades para as paragens raieiras. Dentro da faixa federal de Fron-
teira, que lhe pertence, o Govèrno Federal, para transformar essas
fronteiras em zonas hacheadas de progresso, de vigilância militar e
de densificação demográfica, terá de criar novos territórios federais.
Assim, por exemplo, vizinho do Amapá, será de pensar-se na criação
de um território federal entre os rios Jari e Trombetas, entestando
com a Guiana holandesa e o Estado da Guiana (a antiga Guiana
inglesa) . Há poucos dias, em declarações a «O Globo», o Sr. Artur
César Ferreira Reis manifestou-se favorável à criação de novos ter-
ritórios federais na Amazônia. Em abono do seu ponto de vista, citou
o caso dos territórios federais de Roraima e de Rondônia, noutros
tempos das áreas mais atrasadas da Amazônia, mas hoje t.acudidos
por intenso surto de progresso material. O êxito da «Operação Rondón»
demonstrou que a mocidade, em se lhe oferecendo oportunidades,
sente a grandeza de um belo plano, comunga com êle e o executa
no terreno.
Órgão periférico do Estado, segundo a definição de Ratzel, um
dos mestres da Geopolítica, a fronteira deve ser zona de forte sensibili-
dade política, econômica e social, quando é uma fronteira viva. Das
fronteiras do Brasil, a fronteira com o Uruguai é a que apresenta o
mais alto grau de sensibilidade. O Estatuto Jurídico da Fronteira
Brasil-Uruguai, de 1933, constitui o resultado dessa sensibilização
política, econômica e social.
No meu livro, Amazônia, publicado em 1967, assinalei a necessidade
de o Governo Federal dar pleno cumprimento ao aproveitamento da
faixa de 150 kms de profundidade ao longo das fronteiras, cumprindo-se
assim o disposto na Lei n" 2.597, de setembro de 1955, no Decreto-lei
«» 39.605-B, de 16 de julho de 1956, e na Lei n* 4.947, de 1966.
O Governo Federal deve utilizar-se dessa faculdade legal para cumprir
os requisitos básicos de resguardo das fronteiras amazônicas porque
estas fronteiraso imensas e pouco povoadas. Velha Lei n' 691,
de 1850, estabeleceu em 10 léguas ou 66 kms de profundidade a faixa
de fronteira de domínio do Governo central, prova do interesse do
Governo imperial pela segurança das nossas lindes. Essa lei ainda
está em vigor. (A propósito deste assunto, existe interessante parecer,
de 1" de maio de 1967, do Sr. Adroaldo Mesquita da Costa, Consultor-
Geral da República. Mereceria também releitura o parecer do Senhor
Orozimbo Nonato, então Consultor-Geral da República, intitulado
«A zona das fronteiras», publicado no «Jornal do Comércio» em sua
edição de 24 de abril de 1941).
Conforme assinalou o Ministro Ruben Rosa, no seu voto proferido
no Tribunal de Contas da União, em Brasília, a 22 de agosto de
1962, e publicado em opúsculo intitulado Dos Territorios Federais.
«a Constituição de 1937 inovou o tema dos territorioso só dando-lhes
nova redação como fazendo predominar na criação dêles o espírito
da defesa nacional».
É esse o espírito de reflexão e de ação que deve prevalecer no
examinar-se o problema das nossas fronteiras na Amazônia.o
podemos adotar outra atitude queo seja a do estudo, da vigilância
e da ação planificada.
Viajei longamente pela Bolívia e pela Colômbia. Em companhia
do então Presidente Paz Estenssoro, do Embaixador dos Estados
Unidos Gerald Drew e do Embaixador do Uruguai Lacarte Muró,
durante sete dias discorri por diversas áreas da Bolívia para assistir
à inauguração de melhoramentos rurais, rodoviários e educacionais do
governo boliviano. Enorme proveito colhi dessas andanças, porque
visitei o Béni, bem como conheci Tarija, o deserto do Chaco, Villa-
Montes e a zona do Pilcomaio.
Quanto à fronteira com a Bolívia, zonas mortas entorpecem-lhe
a vida de relações, favorecem o contrabando e alentam pretensa
situação de indefinição. País participante tanto da bacia amazônica
bem como da bacia platina, encruzilhada entre o Amazonas e o
Prata, e o Atlântico e o Pacífico, a Bolívia desde o tempo do
Império foi encarada como um sócio eventual numa grande obra de
densificação econômica através de uma fronteira de mais de 3.000 kms
de extensão. Foi esse o significado do famoso Tratado de 1867,
negociado pelo Barão de Lopes Netto. O art. IX desse tratado previu
a construção da ferrovia Madeira-Mamoré, promessa renovada solene-
mente, como afirmou o Barão do Rio Branco, pelo Tratado de 15 de
março de 1882. No tempo do Império, aconselharam a construção
dessa ferrovia Tavares Bastos, o Marquês deo Vicente, o Barão
de Cotegipe, o Visconde do Rio Branco e outros. Tomada ian globo,
a construção da ferrovia, com desastre nas cachoeiras, endemias,
acidentes vários, teria matado cerca de 40.000 homens, consoante afirmou
Júlio Nogueira em sua obra A Madeira-Mamoré (Rio de Janeiro, 1913,
pag. 43). Foi esse também o alcance do Tratado de Petrópolis,
negociado em 1903 pelo Barão do Rio Branco e que o Barão denominou
«Tratado de permuta de territórios e outras compensações». Foi esse
o fito dos Tratados de 1938 (construção da ferrovia Corumbá-Santa
Cruz de la Sierra; e descimento e aproveitamento do petróleo boliviano),
negociados pelo embaixador Pimentel Brandão, quando Getúlio Vargas
era Presidente da República. O negociador boliviano desses tratados,
num livro admirável «Una obra, un destino», consignou a repercussão
que tais tratados tiveram em tôdas as capitais americanas. Foi esse
o significado da grande negociação de Roboré, de 1958. Em 1938.
Santa Cruz de la Sierra, isolada do mundo, era um burgo de uns
20.000 habitantes; em 1969, devido à construção da estrada de
ferro Corumbá-Santa Cruz de la Sierra, que tem 654 kms de extensão,
ela já conta com uma população de 145.000 habitantes. Contudo.
por causa de um debate que se estabeleceu a respeito da negociação
de Roboré, nem a ferrovia Corumbá-Santa Cruz de la Sierra chegou
a Cochabamba para se ter a ferrovia transcontinental Arica-Santos
completa; nem foi construída pelo Brasil a ferrovia Puerto Grether-
Ichilo-Trinidad, que está sendo construída pelos argentinos da ferrovia
Yacuiba-Santa Cruz de la Sierra, que já chegou a Montero a -10 kms
ao norte de Santa Cruz. Assim, a ferrovia argentina acabará chegando
à riba do Guaporé, bem em frente ao Brasil isto é, acabará cruzando
a Amazônia boliviana (Béni) . O petróleo boliviano desce de Madre-
jones a Buenos Aires por um oleoduto e os natural boliviano desce
de Madrejones a San Lorenzo por um gasduto. A Argentina acaba
de assinar com a Bolívia um contrato de fornecimento de petróleo
boliviano da ordem de 300 milhões de dólares durante dez anos, isto
é, à razão de 30 milhões de dólares por ano.
A extensa fronteira Brasil-Colômbia, servida por grandes afluentes
amazônicos, apresenta apenas uma pequena área de hacheamento demo-
gráfico, econômico e social: é a zona constituída por Leticia, do lado
colombiano, que já conta 12.000 habitantes; e Tabatinga, Marco e
Benjamin Constant, do lado brasileiro. O restante dessa extensa
fronteira é ainda deserto demográfico e econômico. É pena que tal
aconteça, porque se trata de uma nítida «fronteira de aproximação»,
para usar o conceito do general Júlio Londoño, em sua obra «Sur
America o Ia geografia como destino» (1948), que se lê com vivo
interesse. Londoño, do exército colombiano, ex-embaixador e professor
universitário, assinala que a serra de Macarena divide os maravilhosos
Lhanos orientais do maciço rochoso andino, constituindo por isso
obstáculo de porte a ser vencido.
Maior selvaticidade ocorre na extensa fronteira Brasil-Venezuela
com a agravante de que, na zona Tacutu-Maú, o produto da garimpagem
do ouro e dos diamantes dos garimpos de Arimatã, na região seten-
trional de Roraima, por força da gravitação da relativa proximidade
em relação à Guiana, é transportado para o estrangeiro com evidente
prejuízo para a economia e para o fisco do Brasil.
Em relação à fronteira com o Peru, parece ainda estar de pé a
lição do ex-Presidente Belaunde Terry em sua obra «La conquista
dei Peru por los peruanos», publicada em 1963. Duas rodovias peruanas
estão sendo construídas em direção ao Acre. A mais oriental já se
encontra a pouca distância do território brasileiro, faltando construir
uns 80 km para chegar ao Acre. É a rodovia de Puerto Maldonado-
Ibéria-Iñapari. A outra rodovia, a mais ocidental, é a de Lima-Cerro
del Pasco-Pucalpa. Em virtude de recentes entendimentos feitos com
o Peru, levados a cabo pelo Itamaraty mas motivados pelo Ministro
Mário Andreazza, as estradas peruanas se vincularão com as brasileiras
que estão sendo abertas no Acre. Assim, mercê da vinculação rodoviária
brasileiro-peruana, o setor da fronteira Brasil-Peru, justamente no Acre,
adquirirá um sentido de vida nova, porque o deserto demográfico e
econômico será vencido pelas rodovias. A respeito dos limites Brasil-
Peru, recomendo a leitura da obra de Alberto Wagner de Reyna,
«Los Límites del Peru», de 1961.
Nesta hora de verdadeira «integração do Brasil», procura-se vencer
o arquipelaguismo econômico que reinou em nosso território durante
tanto tempo. O Governo Federal, bem como as Forças Armadas,
empenham-se na realização de extensa obra de integração rodoviária,
de vigilância e de aproveitamento econômico da Amazônia com seu
adensamento demográfico, partindo dos centros estáveis de riqueza
econômica. Já se entra pelo «fundo do quintal» na Amazônia por meia
da rodovia Brasília-Belém. Através de Rondônia a BR-264 já chegou
a Rio Branco, capital do Acre, e mui breve as cidades acreanas situa-
das sobre a chamada «Linha Cunha Gomes», isto é, Cruzeiro do Sui,
Tarauacá, Feijó e Sena Madureira, serão ligadas por estradas de
rodagem. O devassamento de Rondônia faz-se a passos rápidos por
meio do deslocamento de gentes deo Paulo, o dínamo industrial do
Brasil, e de Mato Grosso para esse território federal. Jáo se pode
desconhecer a existência de um eixo econômico, que se vinca de dia
para dia,o Paulo-Cuiabá-Pôrto Velho. Os bandeirantes de hoje
trafegam em caminhões. Noutros tempos tinham as botas de sete-
léguas de Fernão Dias. Coloniza-se a área do rio Abunã, em Mato
Grosso.
Em dezembro de 1968 estive em Manaus para conhecer a Zona
Franca, havendo escrito extenso estudo publicado em «O Globo» em
sua edição de 7 de janeiro do corrente ano. Lá tive ensejo de ouvir
uma preleção admirável no Quartel do Comando do Grupamento de
Elementos de Fronteira feita pelo General Edmundo da Costa Neves,
autoridade máxima dessa organização militar.
Os Destacamentos de Fronteira encontram-se localizados em Boa
Vista, capital de Roraima, onde também existe um Batalhão de Enge-
nharia; Cucuí, Japurá, Santo Antônio do Içá, Tabatinga, Ipiranga.
Estirão do Equador, Palmeiras, Rio Branco, Porto Velho, Guajaramirim
e Guaporé (região do Forte do Príncipe da Beira, monumental cons-
trução militar do tempo de Pombal). Esses destacamentos, que se en-
contram alojados em quartéis modernos e confortáveis, perfazem atual-
mente efetivos de 4.500 a 5.000 homens. Atentando-se para a vas-
tidão territorial da Amazônia e para a necessidade de resguardo das
nossas fronteiras, é preciso pensar que imperativos de segurança na-
cional obrigam ao aumento desses efetivos. Oxalá novos Destacamen-
tos de Fronteira sejam criados (em Cruzeiro do Sul e Taumaturgo,
segundo as últimas informações), porque o nosso arco imenso de fron-
teira no Setentrião e no Oeste reclama contínua vigilância e, ao mes-
mo tempo, medidas de repressão ao contrabando e ao trânsito de
aventureiros empenhados em comércio predatório através da raia.
O Comando Militar bem como o Comando Naval de Manaus, a
construção de vivendas para oficiais e suboficiais da Marinha, Exéricto
e Aeronáutica naquela cidade patenteiam o interesse do Governo Federal
pela execução de providências de molde a darem uma consciência
atuante às populações locais, queo mais se sentirão desamparadas.
O Ministério da Aeronáutica iniciará dentro em pouco a construção
de 46 novos campos de pouso na Amazônia.
Nas áreas da fronteira, cada quartel de Destacamento de Fronteira
será por certo a crisálida de uma futura cidade. Ao lado do quartel,
o campo de pouso da Aeronáutica serve como base de comunicação e
de expansão. A propósito citarei conceitos do General Lira Tavares,
Ministro do Exército:
O grande sentido da presença do Exército na Amazônia
Ocidental é o de promover a fixação do povoamento através
da criação da auto-suficiência de suas organizações e do
nucleamento das populações civis adventicias, que tendem a
viver em torno dos quartéis, pelas condições melhores de
segurança e subsistência ( ) . As granjas militares,
os recursos médicos, as escolas e as serrarias das unidades
de fronteiras, além de outras facilidades que o Exército trata
de desenvolver, abrangem nos seus benefícios, os militares
e a comunidade civil.
Realiza-se agora na Amazônia um gigantesco mutirão. Vê-se que
a ação dos Destacamentos de Fronteira é ação de fixação e de expansão
tecnificadas. As largas fronteiras, em grande parte mortas porque
despovoadas, com as Guianas bem como com a Venezuela, Colômbia,
Peru e Bolívia reclamam uma verdadeira conquista da retaguarda para
a periferia, tendo Belém, Macapá, Manaus, Boa Vista, Tabatinga,
Rio Branco e Porto Velho como centros de propulsão de adensamento
demográfico e econômico. Num extenso setor da fronteira Brasi-
Guiana-Venezuela existem os prospectores de diamantes, que os ingleses
chamam pork-knockers, sedentarizados durante algum tempo. Pois bem,
o existe espécie alguma de policiamento do nosso lado dessa fronteira.
Todo o ouro e diamanteso expatriados para Georgetown. Ê situação
queo pode perdurar.
A vigilância a ser exercida nos grandes rios amazônicos compete
à nossa Marinha de Guerra. Por isso, seria de urgente conveniência
que se aumentasse o número dos nossos navios de guerra em serviço
nas águas da região, parao só darmos prova tangível de que estamos
acautelando o que é nosso, bem como para que esses nossos navios
procedam a trabalhos de sondagens e de cartografia, indispensáveis
à navegação nos afluentes amazônicos.
Há poucos dias assinalava com muita justeza o Professor Maurício
Joppert da Silva em «O Globo» (edição de 26-8-1969) : «A conjugação
da navegação com as obras de aproveitamento hidrelétrico e os métodos
de comboios de barcaças, impelidos por empurradores, deram novo
bafejo à navegação que volta a competir com os outros sistemas». Ora,
na Amazônia temos cerca de 40.000 km de vias navegáveis. Nessas
condições, o aproveitamento do transporte, por meio de comboios de
barcaças impelidos pqr empurradores, deverá transformar-se numa
preocupação constante na Amazôniao só porque seja um transporte
barato, mas também porque constitua a melhor solução para Tansferir
carga pesada de um ponto a outro na bacia amazônica.
Fronteiras mortasoo símbolos tangíveis de soberania. Já em
sua obra, que merece releitura, intitulada Fronteiras nacionais (3^ edição,
Rio de Janeiro, 1922), José Maria Mac-Dowell assinalava o abandono
das fronteiras do Brasil, notadamente da fronteira norte, referindo-se
como jurista a uma série de fatos, que frisaram pelo escândalo, de
concessões irregulares feitas a estrangeiros queo souberam apro-
veitá-las economicamente.
Fronteiras mortaso só propiciam o contrabando em larga escala.
como atraem aventureiros que as consideram «terras de ninguém», aí
se fixando mercê de falsos títulos de propriedade ou nelas estanciando
em razzias predatórias. Mal o Pico da Neblina (de 3.014 metros de
altitude) na fronteira com a Venezuela foi reconhecido como parte do
Brasil em decorrência dos trabalhos demarcatórios realizados pela
Comissão Demarcadora de Limites 1" Divisão, do Ministério das
Relações Exteriores, chefiada pelo General Bandeira Coelho, apareceu
um aventureiro que se julgou dono desse acidente orogràfico.
Sem dúvida a fronteira está marcada no mapa. Está. Mas pode
ser zona morta, quandoo tiver população brasileira, polícia brasileira,
guarnição militar brasileira. Então que soberania é essa que dinámica'
menteo se exerce?
Se na Amazônia ainda existem desertos demográficos, muita culpa
cabe sem dúvida ao nosso federalismo antiquado. Se o Governo Federal
houvesse de há muito cuidado da criação de novos territórios federais,
zonas vazias poderiam ter sido transformadas em áreas de progresso.
Atente-se, por exemplo, para o deserto existente entre os rios Jari e
Nhamundá e as serras de Tumucumaque a Acari, o qual apresenta
apenas os tristes povoados de Aperó, Meriruma, Tácale e Tarima na
bacia do rio Paru. Nada mais. Essa zona já devia ser de há muito
um território federal. Em contraste com essa área, aí está a rodovia
Brasília-Belém, eminentemente pioneira e colonizadora, a qual já suscitou
um deslocamento de cerca de 500.000 nordestinos para suas margens
e acarretou a fundação de mais de 30 povoados ao longo do seu
percurso.
Felizmente, a Engenharia do Exército está construindo a rodovia
Manaus-Guajaramirim (a BR-319); e o 6" BEC, instalado em Boa
Vista (Roraima), construirá as rodovias Manaus-Boa Vista, fronteira
da Venezuela, e a Boa Vista fronteira do Estado da Guiana (a anti-
ga Guiana inglesa) .
Se a fronteirar morta, seo tiver vida econômico-social, que
valerá como elemento de afirmação de soberania e que proteção terão
os bens dominiais do Governo Federal? Mais uma razão, pois, entre
muitas outras igualmente militantes, para que, na faixa federal de
fronteira, a densificação demográfica, econômica e social seja também
iniciativa de planejamento militar. Imperativos de segurança nacional
obrigam o Governo Federal a ativar o uso público da faixa federal
de fronteira no sentido de colonizá-la, bem como de protegê-la militar-
mente. Napoleão afirmou que «a Política de tôdas as Potências está
na sua Geografia». Neste caso, a nossa geografia obriga-nos a prestar
atenção ao fato de ser o Brasil um país-continente que necessita ter
altamente sensibilizado seu órgão periférico a fronteira. Se quisermos
as nossas fronteiras em estado de vivas e de vigiadas, pensemos em
povoá-las e militarizá-las progressivamente. É uma função de nacio-
nalismo claro e aberto, sadio e previsor, nacionalismo queo enxerga
fantasmas ao meio dia, e que deseja coisa que está na consciência
de todoss um Brasil forte e progressista. Assim procedendo,
o estaremos incomodando ninguém. Estaremos, isto sim, cumprindo,
em tôda a plenitude, o dever fundamental de zelar pelo que é nosso
numa permanente missão de resguardo e vigilância.
RIO GRANDE DO SUL: LINHAS GERAIS
DE SUA FORMAÇÃO POLÍTICA
RAYMUNDO FAORO
A expansão lusa na direção do sul processou-se lentamente, com
retardamento de quase dois séculos. Paranaguá, no atual estado do
Paraná, é de 1647, e Desterro, na Ilha de Santa Catarina, de 1673.
O espantalho das Tordesilhas opunha, em favor dos espanhóis, título
de legitimidade às pretensões portuguesas, amparadas pela prioridade
da descoberta e navegação do Rio da Prata, ponto extremo das reivin-
dicações territoriais portuguesas na América (expedição de D. Nuno
Manuel de 1513). O Prata estava, na margem direita, ocupado, desde
o século XVI, pelos castelhanos, sediados em Buenos Aires, duas vêzes
fundada, como atalaia do comércio ao rico e lendário Potosi. A
margem esquerda, sobretudo no território do atual Estado do Rio Grande
do Sui,o definida a soberania de nenhuma das duas potências penin-
sulares sobre a região, ficara entregue, no curso da primeira metade
do século XVII, às lutas entre jesuítas e bandeirantes. As aldeias
jesuítas fixaram-se, desde 1619, aquém do rio Uruguai, sob o estímulo
dos espanhóis, espraiando-se nos vales dos rios Ibicui e Vacacai.
procurando, pela bacia do Jacui, aproximar-se do Atlântico. Os povoa-
dos proliferaram, como prolongamento das reduções do Paraguai e do
Parapanema, estas em território do atual Estado do Paraná: N. S. da
Conceição, em 1619;o Nicolau, sobre o Piratini, em 1612; N. S. da
Candelária sobre o Ibicui, em 1626; N. S. da Assunção, sobre o Ijuí,
em 1626. Imensa obra de evangelização dos índios teve lugar, arredia,
maso hostil, às autoridades espanholas, estruturada na lição de
Santo Inácio, criando uma civilização original, com economia própria,
baseada na agricultura.
Entre 1630 e 1635, introduziram os padres nas reduções algumas
cabeças de gado, de proveniencia vicentina, porém originárias do Pa-
raguai, distribuindo, em 1634, noventa e nove cabeças para cada aldea-
mento, proibida, nos anos iniciais, a matança. A bagualada já campeava
livremente nos pampas, trazida pela expedição de Mendoza ao Prata,
em 1535, com o desembarque de setenta e dois cavalos e éguas. Os
rebanhos, protegidos pelos acidentes naturais de florestas e rios (os
rincões), proliferaram com abundância, povoando as famosas «vacarías
do mar». Um acidente, porém, cortou o espraiamento jesuístico rumo ao
mar. As incursões bandeirantes, em busca do índio forte e manso,
alcançaram o Rio Grande do Sui, em 1636, com Antônio Raposo Tava-
res, repetindo-se em 1637 (André Fernandes) e 1638 (Fernão Dias
Paes). A ferro e fogo os padres, com os índios remanescentes da preia
paulista, batidos impiedosamente, retraíram-se, espavoridos, aos seus
pontos de partida, volvendo sobre o Uruguai para a mesopotâmia do
Paraná. Lograram os inacianos, depois de recolhidos ao Paraguai,
deter as investidas dos bandeirantes, que, ao destruírem os obstáculos
jesuíticos, no Paraná e Rio Grande do Sui, ameaçavam abrir caminho,
oelo interior, ao Peru e ao Prata. A luta prossegue pelo espaço de
quarenta anos, sem que se cansem os padres de advertir às autoridades
espanholas: «Vayan abriendo paso y camino al Peru». No Prata, os
paulistas, mercê desses avisos, eram esperados a todo momento à frente
de numerosas tropas.
O Rio Grande, como conseqüência dessa luta áspera e dura, ficou
ao abandono durante cinqüenta anos, O gado solto, sem pastoreio e
abate, multiplicou-se extraordinariamente. Ganhou o pampa, em tôdas
as direções, alimentado pelas pastagens naturais das planuras do sui,
no Uruguai e no Rio Grande.
Em 1680, afinal, tomou realidade a advertência jesuítica, em obra
oficial da metrópole lusa, eo da iniciativa tumultuaria paulista.
D. Manuel Lobo, governador do Rio de Janeiro, no cumprimento estrito
de ordem regia, em desafio audacioso ao Tratado de Tordesilhas, ocupa
a ilha deo Miguel, na margem esquerda do Prata, frente a Buenos
Aires. Nascia uma praça fortificada, teatro, durante um século, de
luta armada entre as metrópoles portuguesa e espanhola, com o nome
de Colônia do Sacramento, cobrindo as trinta léguas, até a boca do
Rio da Prata, doadas em 1674 a Salvador Correia de Sá e Benevides,
na jurisdição do Bispado do Rio de Janeiro, ampliado em 1676 até
os confins das terras concedidas, por força de bula papal. A trinta
dias de viagem marítima do Rio, com o apoio mais próximo na ilha
do Desterro, em Santa Catarina, a Colônia, no espaço de um século,
foi quatro vêzes arrasada e três vêzes restituida a Portugal, vivendo na
dependência das guerras da Europa e dos tratados. Destruída, mal
assentados seus fundamentos em terra, a Colônia renasceu, no ano
seguinte, para permanecer em mãos portuguesas até 1706. Portugal
a recuperou em 1715, como decorrência do Tratado de Utrecht, com o
território de tôda a margem esquerda do Prata ou circunscrito ao raio
de um tiro de canhão, conforme a interpretação, respectivamente, lusa
e castelhana.
A fundação de Laguna, em 1682 ou 84, forneceu à Colônia um
ponto de apoio mais próximo para acudi-la das aperturas em que a
colocavam o índio, industriado pelo jesuíta, e o castelhano. A costa
do Rio Grande, desprovida de abrigos naturais, hostil à abordagem,
poderia ser evitada, com a base em Laguna, pela abertura de caminhos
terrestres. Concomitantemente com a consolidação desses dois pontos
do domínio português — a Colônia e a Laguna os jesuítas, aliviados
da pressão paulista nas suas bases paraguaias, retornam ao Rio Grande,
atravessando pela segunda vez o Uruguai, em cuja margem esquerda
estabelecem os Sete Povos das Missões (São Nicolau,o Miguel,o
Luiz,o Borja,o Lourenço,o João e Santo Ângelo), em funda
incursão nos domínios reivindicados pela Coroa lusa. Mais tarde, para
fechar o cerco sobre a, Colônia, os espanhóis fundaram Montevidéu
(1726), dificultando a expansão conquistadora da praça portuguesa,
limitada a viver, durante um século, das incursões na sua orla, em busca
do gado ou prosperando pelo contrabando com o Prata, negócio de
vulto, na época, e que fazia, escoar a prata peruana para as mãos in-
glesas, cujos artigos serviam de instrumento à burla do monopólio co-
mercial castelhano. A extração de couros, decorrente da pilhagem de
gado, e o contrabando de mercadorias de proveniencia inglesa, definem
duas figuras marginais, que seriam uma constante da sociedade riogran-
dense: o pilhador de gado (o futuro gaúcho) e o contrabandista. A nota
especifica dessa inicipiente sociedade seria a organização militar. A
Colônia, como presídio armado, condicionava tôdas as atividades econô-
micas sob sua proteção. Seria o germe de um patriciado militar,
enriquecido pelas pilhagens do gado, com o fito de recolher couros (as
arreadas), praticado por grupo nômade, sem lei e sem rei, a golpes de
lança e boleadeira, ajudado pelo cavalo. O contrabando era praticado
pelos soldados e chefes, em ambas as margens do Prata, sob o estímulo
discreto da Inglaterra, fornecedora dos produtos descaminhados As
riquezas do Potosi escoavam-se, dêsse modo, para as Ilhas Britânicas,
após a intermediação portuguesa.
A Colônia, sitiada nos seus estreitos limites, inquietada pela vizi-
nhança incômoda vivia precariamente. Nenhuma expansão dela se
projetara, em demanda ao interior e à costa, atravessando os campos
próximos, no rumo do Rio Grande. De outro lado, a Laguna, apertada
entre o mar e a serra,o lograra constituir núcleo seguro de socorro.
Entre um e outro estabelecimento mediava longo espaço, cuja travessia
marítimao se suavizava por nenhum porto, dificultada a passagem
terrestre pelo assédio dos índios e pela ausência de caminhos. Perdida
a Colônia, o deserto intermédio cairia em mãos espanholas, pela pressão
do Prata ou pela descida das Missões jesuíticas. Diante de tais
circunstâncias, para evitar o malogro do presídio, duas novas iniciativas,
de cunho diverso, procuram cobrir o deserto interior, povoado de gado
e cavalgaduras. A primeira dessas providências prate da Laguna.
Parece que mesmo antes de ser ela criada, Domingos Brito Peixoto, seu
fundador, alcançara a Lagoa dos Patos. Um caminho precario entre
o Rio e a Colonia foi aberto em 1703, por Domingos de Filgueira, sobre
a velha trilha bandeirante, sucedendo-se em 1715, determinação do
Governador do Rio ao capitão-mor da Laguna para que reconhecesse
o Continente, ordem logo cumprida, com a entrada exploratória até o
Rio Pardo. Nessas excursões iniciais esboçam-se os raios da penetração
lagunense: a barra do Rio Grande, pela costa; e o rio Pardo, pelo
interior, nas margens do Jacuí. Um fato veio, porém, apressar a con-
quista, já reconhecida pela sua riqueza. O aparecimento, em 1723, de
cinco castelhanos para comerciar gado recolhido do sui, logo comuni-
cado ao Paulo, provocou imediata ordem de Rodrigo Cesar de
Menezes a Francisco de Brito Peixoto para seguir para o Rio Grande,
onde deveria fundar uma povoação. Origina-se daí a «frota» de Jcão
Magalhães, genro do fundador da Laguna, levada a cabo em 1725.
Reconhecendo caminhos e estabelecendo currais abriu-se o comércio
de trânsito. É a fase das «invernadas» que se inicia, caracterizada
pela necessidade de reunir o gado alçado, arrebanhado para as tropea-
das. Começa aí o ciclo dos tropeiros, persistente na economia do sui
por dois séculos, incrementado pela necessidade de muarés e gados
das Minas, sem os quaiso se poderia expandir o «rush» do ouro,
carecedor de transporte e alimentação. O reconhecimento determinou
a ocupação definitiva do solo, a partir da Laguna para o sul, pela gente
de Brito Peixoto e pelo próprio João Magalhães, passo a passo, via
Tramandai, buscando Viamão, rumo ao Guaíba, à magnífica rede
interior navegável do Continente, desde a barra do Rio Grande até aos
afluentes do Guaíba. As invernadas cedem lugar às estâncias de gado
e às lavouras, consolidadas a partir de 1733 pelas cartas de sesmaiia.
As estâncias invadem a faixa que vai do Tramandai ao canal do Rio
Grande, condensando-se na zona de Viamão, centro geográfico desse
movimento de populações. Concomitantemente, a construção da estra-
da confiada ao sargento-mor Francisco de Souza Faria e aberta em
1727 (em 1732 melhorada pelo tropeiro Cristóvão Pereira de Abreu.
contratador dos couros da Colônia), que, do morro dos Conventos, cm
Araranguá, infletia para o planalto catarinense, na altura de Lajes, daí
buscando o planalto de Curitiba, marginaliza a Laguna, reduzida a
um pobre porto de mar com sua população em fuga para o Rio Gran-
de, onde as terras eram férteis e o gado abundante. Abra-se a era
da estância, caracterizada pela pilhagem do gado, associada à agricul-
tura, que florescerá por cinqüenta anos. uma sociedade pacífica e
ordeira, sem o tumulto militar da outra, que nascera na Colônia, con-
servará, no futuro, feição particular.
A outra iniciativa, que aproximaria os dois elos extremos da
conquista do Rio Grande, parte de uma expedição destinada a socorrer
a Colônia do Sacramento, posta a cerco durante 22 meses. O Briga-
deiro José da Silva Pais recolhe-se, em 1737, ao rio Grande, através-
sando-lhe a barra, onde já o aguarda o tropeiro Cristóvão Pereira de
Abreu, à frente de 160 aventureiros. Ligam-se, desta sorte, as duas
fontes de penetração lusitana, no extremo alcançado pelos lagunenses.
Na barra, funda a fortificação Jesus Maria José, origem da atual cidade
do Rio Grande. O Rio Grande militar e guerreiro que se expande cm
torno das fortalezas e acampamentos, por meio das estâncias, comple-
ta-se com o Rio Grande agro-pecuário, na busca de interpenetração de
atividades e interesses. Viamão ganha o rio Gravataí, transpondo-o,
e se espraia pelos campos que confinam com o rio dos Sinos, à margem
do qual, em 1824, se localizará a colonização alemã. As populações se
adensam nos dois núcleos, mercê da imigração açoriana, situados no Rio
Grande (1749) e em Viamão (1752), seguindo a linha de penetração
já iniciada pelos paulistas e lagunenses e soldados desmilitarizados.
O esboço de colonização, impulsionado a partir dos 2 centros,
consolida-se com as conseqüências do Tratado de Madri (1750). A
Espanha, na forma desse ajuste, incorporaria ao seu domínio, definiti-
vamente, a Colônia do Sacramento, com todo o território do atual
Uruguai. Por sua vez, Portugal receberia as Missões, afastados os
estabelecimentos jesuítas para a outra margem do rio Uruguai, com
o deslocamento de suas populações, em repúdio ao princípio do uti
possidetis. A Comissão demarcadora, sob a chefia, pelos portugueses,
ce Gomes Freire de Andrade, encontrou, para cumprir sua tarefa, tenaz
oposição dos índios aldeiados, instigados pelos inacianos. Sepé Tiaraju,
figura que se projetaria na história cercada da aura da lenda, opôs-se
aos planos das Coroas peninsulares. O número de índios rebelados,
insolentes nas suas exibições bélicas, forçou a criação de um exército
demarcador, preparado para longa e áspera campanha. O plano estra-
tégico de Gomes Freire, pacientemente lançado, projetou o terceiro,
último e definitivo elo da conquista riograndense, ligando-se aos dois
outros (Rio Grande e Viamão) pela imensa e contínua via hidrográfica
da Lagoa dos Patos, rio Guaíba e seus afluentes. O domínio dessa
Lase líquida consolidaria a conquista e definiria o contorno da coloni-
zação. Partindo do Rio Grande, com escala no porto de Viamão
(depois Porto dos Casais e Porto Alegre), subiu Gomes Freire o rio
Jacuí (afluente do Guaíba), até alcançar seu extremo navegável, onde
fundou, no alto de um penhasco sobranceiro às suas águas e às várzeas
e coxilhões do rio Capivari, uma fortaleza, com o mesmo nome da do
Rio Grande «Jesus Maria José», guarnecida pelos Dragões, de eficiên-
cia comprovada no Rio Grande. Nascia a «tranqueira» do Rio Pardo
( 1752 ), que, invicta nas lutas posteriores, serviria de base para o
domínio do território das Missões. No caminho de Viamão até o Rio
Pardo a terra já se encontrava povoada, provida de fazendas de gado.
Atrás da nova fortaleza, algumas famílias açorianas, aí prudentemente
localizadas, deram começo à hoje cidade do Rio Pardo. Alargada a
fronteira, protegida ao longo do Jacuí com depósitos de munição e
\iveres, estava o exército da Comissão demarcadora, composto de
espanhóis e portugueses, em condições de levar a guerra às aldeias
jesuíticas. Nos primeiros combates, o cacique Sepé Tiaraju foi morto,
passando o comando dos índios ao cacique Nicolau Neenquiru, que
sustentou a maior batalha da campanha Caibaté (1756), na
qual pereceu, depois de combater com valentia. Depois dessa cruel
matança de índios, sacrificados pela deficiência de técnica militar e
armamento, cessou a resistência, logrando Gomes Freire atingir a
capital das Missões (o povoado deo Miguel) e Santo Ângelo, em
poucos dias. Os remanescentes das Missões atravessaram o rio
Uruguai ou fugiram para as florestas vizinhas. Os oficiais e soldados
das forças vitoriosas recebem, como prêmio aos serviços, largas sesma-
rias, trocando a disciplina militar pela vida das estâncias, de caráter
semi-guerreiro, em constante preia de gado alçado (arreadas), tenaz-
mente disputado pelos espanhóis, com os quais se concertaria a paz
precária das incertas fronteiras em conflito.
Ao traçado inicial da conquista Colônia do Sacramento e
Laguna substitui, por obra militar, a linha da colonização, protegida
pela bacia hidrográfica que se irradia da barra do Rio Grande, Viamão
e Rio Pardo. Dentro de tal configuração geográfica, que exercia
pressão para o exterior, define-se e consolida-se a economia riogran-
dense. A agricultura toma particular incremento com o cultivo do
trigo, ajudada pela mão-de-obra escrava, como desenvolvimento do
núcleo de Viamão. Em 1748, a produção tritícola atingira 220.297
alqueires, iniciadas as exportações em 1790. O gado, nessa época,
pouco valia, utilizado o couro para «surrões» de trigo. A estância,
que, pela sua mobilidade, permitia rápida expansão, caracteriza-se como
empresa de pilhagens de animais alçados, sem a preocupação da ?ngor-
da e cria. Dentro de pouco tempo em 1822 já o Rio Grande
consumia trigo americano — a situação se alteraria, com a predomi-
nância absoluta do gado e o abandono do trigo. No outro extremo
da faixa agrícola, interpenetrando-se, estratificava-se a sociedade militar
iio-grandense. A militarização da campanha obedecia a moldes pró-
prios, diferenciada do militarismo burocrático, cujo padrão era o Regi-
menco dos Dragões. A diferenciação de atitudes levará ao conflito,
velado a princípio, entre as duas ordens. Os corpos de milícias, ante-
mural da tênue defesa dos Dragões, manterão o vínculo entre a estância
guerreira e a burocracia portuguesa, vínculo de estabilidade precária,
sacudido,o raro, por violentas tensões, provocadas por interesses em
choque.
Nem a anulação do Tratado de Madri, pelo de El Pardo (1761),
com a volta ao statu quo anterior, nem o Tratado de Santo Ildefonso
(1777) conseguiram desarticular a fronteira firmada com a campanha
de Gomes Freire de Andrade. As Missões seriam do Rio Grande,
pela fatalidade da sociedade que se criara na campanha. As hostili-
dades peninsulares, decorrentes do Pacto de Família, destinado a
combater a hegemonia marítima e comercial inglesa, ao qualo aderiu
Portugal, fiel a uma aliança muitas vêzes secular, repercutiram imedia-
tamente na América. O governador de Buenos Aires, D. Pedro
Ceballos, tomou, em 1762, a Colônia do Sacramento, novamente cm
mãos de Portugal, em vista do Tratado de El Pardo, e, com um exército
de três mil homens, depois de atravessar a planície uruguaia, ocupou
a vila de Rio Grande (24 de abril de 1763), lançando uma cabeça de
ponte emo José do Norte. O governador do Rio Grande, cel. Elói
Madureira, transferiu a sede do governo para Porto Alegre, onde
permaneceria definitivamente. Em poder de Portugal restavam apenas
as povoações situadas ao norte da Lagoa dos Patos e do Jacuí, em
ocupação que se prolongou por treze anos, e, apesar das determinações
do Tratado de Paris (10 de fevereiro de 1763), apenas a Colônia do
Sacramento foi absorvida. A posse espanhola sofreu constante inquie-
tação de assaltos e guerrilhas, já comandados por rio-grandenses, os
caudilhos à frente de seus gaúchos. A estância desenvolvia, assediada
pelo castelhano, constante atividade militar, com o auxilio de peães,
preadores de gado e contrabandistas. A guerra estimulava os aventu-
reiros, com a promessa dos despojos e das vastas sesmarias. Apertado
dentro de sua fronteira hidrográfica, o Rio Grandeo cede à pressão
espanhola, espetacularmente lançada, numa ocasião, pelo exército de
três mil homens do governador de Buenos Aires, D. Juan Ortiz y
Salcedo, concentrado às portas da tranqueira do Rio Pardo, en: 1773.
Vencido Rio Pardo, o espanhol desceria, pelo Jacuí, ao Guaíba, encon-
trando-se com as forças que se projetariam da barra do Rio Grande,
descrevendo, em sentido contrário, o curso estratégico de Gomes Freire
de Andrade. A resistência, sob o comando de valoroso governador do
Rio Grande, o Cel. Marcelino de Figueiredo (1769-1780), conseguiu
deter as duas posições chaves,o José do Norte e Rio Pardo, nas
mãos de Portugal, defendidas por apenas quatrocentos e trezentos
homens, respectivamente. É que, em auxílio da pesada e tarda máquina
portuguesa de guerra, conjugava-se, agora, uma técnica guerreira
peculiar ao pampa, baseada na velocidade do cavalo e na surpresa das
arremetidas. Tropas pouco numerosas, sem canhões ou carretas, a
cavalo, equipadas de lança, pistola e faca, alimentadas com o gado
entre uma correria e outra, sob a chefia do mais hábil, arguto e valente,
desmantelariam os tardos comboios militares. O chefe é, agora, o cau-
dilho, animado pela adesão carismática e incondicional dos seus segui-
dores. A «arriada», constituída para apoderar-se de gado e para a
represália das investidas castelhanas, amadurece e se apura numa arte
militar que, por quase duzentos anos, dominaria o sui, aquém e além
do Prata. Nesse ambiente surge o primeiro legendário caudilho rio-
grandense, Rafael Pinto Bandeira (1740-1795), a quem incumbia retar-
dar, inquietar e atalhar a investida castelhana. Graças aos estragos
que lhe causou na vanguarda, com ataques de surpresa,o se atreveu
Vertiz y Salcedo acometer Rio Pardo, aturdido com a irrupção de um
fenômeno que aindao compreendera em tôda a extensão. Junto à
organização burocrática, levanta-se um poder novo, àquela inassirailável,
que o guardava e vigiava, maso o submetia incondicionalmente. A
ocupação teve fim graças a uma campanha de grande envergadura,
chefiada pelo Tenente-General Henrique Bonn, a serviço de Portugal,
à frente do mais numeroso exército já reunido em território brasileiro
(6.800 homens). Depois de dois anos de luta, onde se destacou a
ação de Rafael Pinto Bandeira e a primeira geração guerreira de rio-
grandenses, o Rio Grande foi reconjuistado (1» de abril de 1776). As
guarnições espanholas, uma n uma, cedem lugar às forças lusas e rio-
grandenses.
Essa jornada de treze anos revela a coexistência de duas sociedades,
com seus heróis diversos. José Marcelino é o herói oficial e Rafael
Pinto Bandeira o herói popular. À revelia do governador do Rio
Grande, Rafael Pinto Bandeira, que se torna o mais rico estancieiro,
partilha as terras entre seus amigos e colaboradores, contemplados com
rebanhos tomados do castelhano. Define-se, a partir desse remoto
período colonial, uma dissenção econômica e social, que só teria termo
em 1930, depois da sangrenta década de 1835-45 e da penosa Revolução
federalista. O conflito, obscuramente pressentido, definido no rml-estar
de uma ordem social desajustada, teria, já em plena República, formu-
lação clara.
A luta libertadora, antes do revide castelhano, que já começara
com o arrasamento da Colônia do Sacramento, mais uma vez, esta a
última vez, teve um desfecho infeliz e inesperado, com o Tratado de
Santo Ildefonso (1777). O território riograndense reduziu-se em mais
de um terço do que o previsto no Tratado de Madri, com a volta do
território das Missões ao domínio espanhol. A sociedade riograndense,
formada à margem do oficialismo, consciente de seus interesses e de sua
força militar,o aceitou o ajuste de 1777, que feria um movimento
em ascenção, para o qual as Missões constituíam um espaço satélite,
exposto ao comércio e contrabando riograndense, invadido pelas «ama-
das», dependente de sua economia. A obra de Gomes Freire, coloni-
zando Rio Pardo, projetava-se ao norte e noroeste, com a ocupação de
Santa Maria da Boca do Monte, com o cerco do território das Missões,
desorganizado na sua vida interna, exausto de homens e recursos depois
da sangria de 1756. A longa e precária paz de vinte e quatro anos
preparou a ação de 1801, motivada pelas hostilidades das Coroas
peninsulares, agitadas com as guerras napoleônicas. com o estímulo do
comandante dos Dragões do Rio Pardo, cel. Patrício Corrêa da Câmara,
primeiro visconde de Pelotas, dois caudilhos riograndenses, filhos da
escola guerrilheira de Rafael Pinto Bandeira, em avanço fulminante,
conquistam para Portugal o extenso território das Missões. José Borges
do Canto, filho de estancieiro, soldado raso desertor do Regimento dos
Dragões, figura que se tornara lendária no mundo dos aventureiros
que dominavam a fronteira em guerra permanente, em manobra associa-
da com Manoel dos Santos Pedroso, fazendeiro da região de Santa
Maria, à frente de bando pouco numeroso, talam as velhas Missões,
então administradas por um prepósto do vice-rei de Buenos Aires. Aos
conquistadores se incorporam os remanescentes das reduções jesuíticas,
ansiosos pela mudança de domínio, reduzidos à miséria por um governo
distante e desinteressado de seus problemas. Da antiga civilização
haviam restado apenas ruínas e uma população de 1.500 índios em
completa miséria. Após a conquista, a larga distribuição de sesmarias,
disputadas pela fama de fertilidade de suas terras, consolidou a coloni-
zação, que atrai povoadores deo Paulo, das comarcas de Curitiba
e Lajes, juntamente com os soldados aquinhoados pelos seus feitos.
O feito militar completa a integração geográfica do Rio Grande, de
forma definitiva. As Missões passaram a ser riograndenses e a Colô-
nia do Sacramento, depois de um século de disputas, incorpora-se defini-
tivamente ao domínio espanhol. A população, de 17.923 habitantes
em 1780, cresce ràpidamente, fomentada pelas correntes imigratórias
do norte os «baianos», como os riograndenses passam a chamar os
filhos das outras províncias alcançando 70.656 pessoas em 1814,
com cerca de um quarto de escravos. com a elevação à Capitania
Geral, em 1807, encerra-se, também, um ciclo da história riograndense.
À sociedade estratifica-se, enrijecendo-se a estrutura de classes. A
estância ocupa o centro da vida econômica, manancial do tropeiro de
cavalgaduras que alimenta as feiras de gado deo Paulo, sobretudo a
de Sorocaba, para daí espraiar-se para o norte, e fonte do gado, que
as charqueadas passam a consumir. Essa vinculação comercial afasta
a fazenda do tropismo feudal e autárquico, para torná-la dependente
do mercado, onde o produto valoriza a terra eo vice-versa. Graças
às charqueadas, introduzidas no Rio Grande como decorrência da retra-
ção dos produtores cearenses, assolados pela grande seca de 1777, o
gado se valoriza, determinando a transformação da estância, empresa
de pilhagem, em empresa racional, de tendência exclusivista, ao ponto
de expulsar o cultivo de trigo da economia sulina. A economia riogran-
dense articula-se ao resto do Brasil com o caráter subsidiário, atendendo
PS necessidades de alimentação da escravatura e das classes pobres do
Norte, bem como fornecendo as cavalgaduras ao país, o único meio de
transporte e,ntão utilizado. Formava-se, com isso, uma unidade fechada
de produção, ligada ao mercado interno nacional, com interesses homo-
gêneos, sem nenhum produto de exportação (com exceções sem grande
significação) . A peculiaridade, associada à formação militar, dariam
à sociedade sulina uma consciência de isolamento, agravado pelo caráter
secundário de sua economia,o essencial aos interesses da classe
dominante da Córte, preocupada com as exportações agrícolas. As
charqueadas, que logo modificaram a paisagem, sediadas sobretudo na
região deo Francisco de Paula a atual Pelotas progrediram
rapidamente em conseqüência das agitações decorrentes da emancipação
do Prata (1810). Os «saladeros» de Buenos Aires e Montevidéu
concorriam nos mercados brasileiros com um produto melhor e mais
barato, desbancando o similar riograndense nos períodos de paz. Èsse
o outro caráter da economia riograndense: a concorrência estrangeira.
Sem a proteção do Centro, a produção do suio poderia se impor no
mercado consumidor, estimulando no riograndense sentimento de revolta
pelo abandono, agravado com os altos impostos que feriam o charque.
Na terceira década do século XIX a estância se tornara uma empresa
lucrativa, ligada ao mercado, dependente sua prosperidade da char-
queada.
A mobilidade vertical das classes perde seu impulso, findas as
guerras de fronteira. As terras já estavam cobertas de sesmarias,o
raro gerando pleitos intermináveis. Alarga-se, na base, o proletariado
rural, composto do gaúcho: «vagabundo, mas valente nas guerrilhas;
coureador, por sua conta, mas excelente campeiro; arisco, indócil, mas
agradecido quando bem tratado...» Extintas as antigas arreadas
tornava-se peão, entre nômade e campeador, ganhando, com o tempo.
uma aura de respeito. As estâncias imensas transformavam o Rio
Grande num «deserto povoado», onde, em 1803, contavam-se apenas
quinhentos proprietários, formando, na fronteira, o patriciado militar,
no mesmo pé de igualdade do tropeiro. A guerra faria dos chefes os
caudilhos, aos quais a peonada seguia, num movimento de identificação
emocional, carismàticamente. O contrabando também criava os chefes,
à frente de bandos armados, sujeitos às suas próprias leis, fomentando
um caminho de ascensão, aberto marcialmente na ordem cerrada da
sociedade estancieira. Ao Leste, todavia, formava-se uma sociedade
pacífica e próspera, com sede em Porto Alegre, arredia da aventura e
das guerras, agarrada à bacia hidrográfica, fiel aos costumes açorianos.
O século XIX reservou ao Rio Grande a missão de vigiar a frontei-
ra meridional, como sentinela da política imperial no Prata. As campa-
nhas platinas firmaram a sociedade marcial, fazendo surgir os líderes
riograndenses, em geral vinculados às milícias. A solidariedade do
particular com o Estado firmou-se, no curso do século, em amálgama de
interesses, entendido o Estado como obra do homem em armas, sem a
mística das entidades burocráticas. Se o Estado se afastasse do cidadão,
a este ocorreria o recurso revolucionário, de rebeldia, substituído pela
camada de guerreiros nativos. Daí o caráter altivo, sobranceiro, às
vêzes autoritário do homem riograndense, amante da liberdade e da
autonomia, mas, ao mesmo tempo, exigente da disciplina dos coman-
dados.
No curso do governo do primeiro presidente da Província, Desem-
bargador José Feliciano Fernandes, futuro senador do Império e
Visconde deo Leopoldo, chegaram ao Rio Grande os primeiros
imigrantes alemães, estabelecidos à margem do rio dos Sinos (1824).
Consolidar-se-ia, com essa medida, uma tradição do imigrante pequeno
proprietário rural, iniciada com o açoriano, e que se propagaria até as
primeiras décadas do século XX. Em 1858 já teriam entrado 7.911
imigrantes. Vinte anos após a primeira leva de alemães se haver insta-
lado, disputando as terras aos índios,o Leopoldo, a capital teulo-
brasileira, já exportava produtos da lavoura, do artesanato e da pequena
indústria. À margem da sociedade pastoril, com seus contrastes de
classe, floresce o pequeno proprietário, modificando, sempre de modo
crescente, a paisagem pastoril riograndense.
A organização política da Província, com a Assembléia Provincial,
trouxe à tona as tensões sociais latentes na economia do gado. A
asfixia tributária a que a submetia o Governo Imperial, comprometendo
a valorização de sua produção, com preços que mal concorriam com os
similares platinos, encontrou áspero porta voz na opinião liberal e
federalista, desencadeada no período regencial. As classes produtoras,
criadoras e charqueadores, unidas ao patriciado militaro burocrático,
encontraram expansão de seu descontentamento na imprensa e na
assembléia provincial. O esforço das guerras contínuas, desfalcando
a riqueza dos campos sem indenização, em época em que o gadoo
se encontrava solto, à mercê do pilhador, acendeu fundos descontenta-
mentos. O Rio Grande exigia, como unidade econômica e social, um
lugar nas decisões do Centro, empolgado pelos exportadores de produtos
tropicais e pelos importadores urbanos, donos do capital financeiro.
O isolamento forçava uma abertura, em busca da integração nacional
Um líder de extraordinário prestígio, célebre pelos feitos nas guerras
contra Artigas, fêz-se o porta-voz das reivindicações: o deputado Bento
Gonçalves. O presidente da Província, José Mariani, com o apoio do
comandante das armas, o Marechal Barreto Pinto, move-lhe a surda
guerra de extermínio. uma pequena intriga precipita o confronto pelas
armas. Bento Gonçalves, acusado de conspirar contra a integridade
do Império por seus entendimentos com o caudilho uruguaio J. Antonio
Lavalleja, logra, em concerto com a Corte, nomear novo presidente
provincial, Fernandes Braga. A mudançao conseguiu aliviar a
dissenção, alimentada pela sociedade pastora comandada por seus caudi-
lhos. A revolução começa em 19 de setembro de 1835, com a entrada
triunfal de Bento Gonçalves em Porto Alegre, à frente das tropos
riograndense, reforçadas por adesões nas linhas imperiais, notadamente
do Cel. Bento Manoel Ribeiro e do Major João Manoel de Lima e
Silva, irmão do Regente e tio do futuro Duque de Caxias. Ingram
os revolucionários indicar para o governo da Província o Dr. José
Araújo Ribeiro, deputado geral pelo Rio Grande, que, bem recebido por
Bento Gonçalves, é hostilizado pela facção exaltada da Assembléia,
extremamente federalista. Èsse equívoco, gerado por desconfianças e
intrigas, provoca defecção do Cel. Bento Manoel. Deflagra-se a Revo-
lução, agora identificada com o federalismo, ao qual, por fidelidade aos
conjurados, se filia Bento Gonçalves. Instala-se a duplicidade de
governo, com o Dr. Marciano Ribeiro na presidência da Província e o
Major João Manoel de Lima e Silva comandante das armas, pelo lado
farroupilha, em Porto Alegre, e os delegados imperiais emo José do
Norte, junto à barra do Rio Grande. A guerra se desenrola em torno
da vasta bacia hidrográfica da Província, com a vantagem inicial das
armas farroupilhas, que, em 7 de abril de 1836, se assenhoreiam de
Pelotas. Antonio de Sousa Neto, um dos mais expressivos líderes
rebelados, vence os imperiais no Seival (10 de junho de 1836), o que
coloca quase todo o território da Província em poder dos farroupilhas,
corri, exceção da estratégica linha da barra do Rio Grande, chave do
território, cuja importância já fora notada por Silva Pais, um século
antes. A perda de Porto Alegre (15 de junho de 1836), devida a um
golpe de surpresa por parte dos imperiais, compromete, para o futuro,
o êxito da guerra. com essa vitória, os farroupilhas ficam desfalcados
da base hidrográfica, com suas comunicações nacionais, à cuja borda
vivia a pacífica população do Leste, sedentária e avessa à sociedade da
fronteira, com suas reivindicações federalistas, As populações lagu-
ri enses e açorianas, com o tropismo nacional e integrador ao Império,
que lhes ditou a economia, separou-se da causa farroupilha, fornecendo
a base da reação do Centro. Daí por diante a guerra, agravada pelo
desastre do Fanfa (4 de outubro de 1836), no qualo aprisionados
Bento Gonçalves e Onofre Pires, tornou-se uma causa perdida, susten-
tada com obstinação durante nove anos. O General Antônio Neto, em
11 de novembro de 1836, proclama a República do Piratini, separada
do Império, com sede na vila de Piratini. Bento Gonçalves, escolhido
presidente quando ainda prisioneiro, é substituído na chefia do Executivo
por José Gomes de Vasconcelos Jardim. O Major Manoel de Lima e
Silva, promovido a general, assume a chefia do Exército revolucionário,
sucedido, por morte, pelo General Antônio Neto, uma das maiores figu-
ras da década heróica, substituído, no período final, por Davi Canabarro.
O separatismo foi meio necessário ao prosseguimento da luta, com
a reserva expressa dos revolucionários de se reincorporarem ao
país logo que banido o trono. Federalismo e repúblicao o lema
da insurreição, que, à repulsa ao Império, aliava-se ao sentido
nacional, vinculada estreitamente aos movimentos sediciosos das outras
províncias, ampliando suas pretensões, parece, e uma união federal
com o Uruguai, Santa Fé e Três Rios. Os farroupilhas, para
uma população de 200.000 habitantes, reuniram um efetivo militar
de cerca de 10.000 homens. A marinha republicana, num certo
período sob o comando de José Garibaldi, composta de poucos e mal
equipados barcos,o logrou anular a supremacia imperial, firmemente
estabelecida na bacia hidrográfica Guaíba-Lagôa dos Patos, embora
creditasse aos seus serviços alguns feitos de brilho efêmero, como a
expedição à Laguna, onde Davi Canabarro proclamou a República
Juliana (1839), de curta duração. Depois da evasão de Bento Gonçal-
ves, que se reintegrou à guerra, a Revolução, nos primeiros cinco anos,
mercê do domínio do «hinterland», manteve maior agressividade nas
ações. Ajudou-a o opulento rebanho (5.000.000 bovinos, 1.000.000
de eqüinos), bem como a continuidade do comércio de muarés para
o Paulo e a exportação pelo Porto do Rio Grande, tolerados pelos
imperiais. A República organizou-se internamente, com a cobrança de
ingressos fiscais, estabelecendo relações diplomáticas com o Uruguai
c as províncias de Entre-Rios e Comentes, que lhe franquearam os
portos de Montevidéu e Buenos Aires. Cuidou de obras públicas e da
sua institucionalização, convocada uma Assembléia Constituinte, que se
encerrou sem votar a Carta Magna, dilacerada por dissenções de grupos.
O ponto mais alto da luta seria atingido com o malogrado ataque ao
]osé do Norte, comandado por Bento Gonçalves (16 de julho de 1840),
desfechado com o propósito de tomar a entrada da Lagoa dos Patos.
Depois desse episódio sangrento, a guerra declina, condenada ao maras-
mo, incapazes os rebeldes de conquistar Porto Alegre, durante três anos
cercada pelas tropas de Bento Gonçalves. As reservas de munições,
vestuário e víveres dos farroupilhas exauriam-se ràpidamente. Do lado
imperial, o comando do Gen. Luis Alves de Lima e Silva, barão de
Caxias, que atraíra às suas fileiras o Brigadeiro Bento Manoel Ribeiro,
que mais uma vez mudara de lado, tornou impossível a vitória farrou-
pilha. com seu tino militar, aliado ao tato conciliador, levantou, no
Rio Grande, o espectro da invasão estrangeira de Rosas, logrando, com
tais artifícios e o aceno de uma paz honrosa,r termo à luta, pelo
convênio de Ponche Verde (28 de janeiro de 1845), cujas cláusulas,
incluída a anistia ampla, honram os chefes farrapos. Aos republica-
nos coube indicar o presidente da Província.
A guerrilha cedera ante o poder bélico de uma estratégia de grande
envergadura, com extraordinária superioridade de armas e combatentes.
O poder do Império, concentrado no sui, prevaleceu sobre os dispersos
caudilhos, que serviriam, sob o comando de Caxias, nas duras campanhas
posteriores: a luta contra Rosas (1852) e a Guerra do Paraguai (1864-
70). Essas guerras, ao contrário da Revolução Farroupilha,o pro-
vocaram o colapso econômico da Província, senão que, a par de seus
sacrifícios em soldados (33.803 soldados riograndenses na guerra do
Paraguai), forneceu produtos agrícolas e pecuários, indenizados pelo
justo valor. A agricultura, florescente com a colonização alemã, pôde,
na contingência, contribuir largamente para a alimentação das tropas.
A diferenciação de interesses, aliada à desconfiança que a Revolu-
ção Farroupilha criara ao Império, extremara o isolamento riograndense,
afastado da mesa das grandes deliberações do Centro. A ponte entre
a Província e o Império foi, porém, aos poucos estendida pelo Partido
Liberal, que, após a Guerra do Paraguai, depois de 1872, domina o Rio
Grande até a República, com a originalidade da oposição vencer os
pleitos mesmo contra o Gabinete. O Rio Grande, desamparado pelas
oligarquias partidárias, surge, no cenário nacional, com uma linguagem
nova e demolidora, em nome do povo, entidade até então desconhecida
no Parlamento. Por meio da agitação democrática, Silveira Martins
irrompe no cenário político carregado de ameaça revolucionária, como
um farroupilha popular, ameaçando a paz das coligações e do reveza-
mento pacífico dos partidos no exercício do poder. uma liderança nova
que o Rio Grande prestigiará durante trinta anos, ameaça, vez ou outra.
«riograndisizar o Brasil». Ensaia Silveira Martins, premido pelas
combinações financeiras do café, uma abertura política para sua Provín-
cia, com base no elemento popularo explorado. É uma tentativa, se
o de hegemonia, pelo menos de rompimento do cerco político a que
ficara confinado o sui. Graças aos reclamos de seu lider, o Rio Grande
entrou na fase ferroviária (Porto Alegreo Leopoldo Novo
Hamburgo: 1874-76; Porto Alegre Uruguaiana ( 1877 1880)
Cachoeira Santa Maria (1885) Pelotas Bagé (1881-84); Quaraí
Itaquí (1888). A barra do Rio Grande, cuja obstrução dificultava
o comércio, recebe melhoria. Somente em 1874, instala-se o Tribunal
de Relação em Porto Alegre. Logrando atendimento para as reivindi-
cações riograndenses, tornou-se Silveira Martins paladino da integração
da Província com o Império, obra em que a República o surpreendeu.
Relevante, pelas conseqüências que traria, é a expansão das corren-
tes imigratórias de alemães e italianos, oficialmente estimulados depois
da segunda metade do século XIX. Ainda nesse fato é possível
identificar a tensão das camadas dominantes do sui, gerada pela prepo-
tência da política central, dominada pelo café e pelo açúcar. Buscava-se
com a radicação do estrangeiro o incentivo a novas atividades econômi-
cas a agricultura da pequena propriedade e a indústria, capazes
de alargar o domínio dos senhores do gado, reforçando-lhe, em nome
de uma economia diversificada, o peso diante do descaso dos meios
políticos. O «progresso», ideologia prevalente no século, encontrava,
no Rio Grande, a tradução específica no estimulo à agricultura, qua-
se abandonada pela sociedade pastoril, e às indústrias. A colonização
alemã prosperava intensamente, espraiando-se pelos vales dos rios Caí,
Taquarí e Pardo. A prosperidade das pequenas indústrias (calçados,
arreamentos, chapéus) dava nova dimensão à Província. A partir de
1874, a corrente imigratória italiana, aquinhoada com lotes agrícolas,
ganha impulso, com 60.000 colonos entrados no Rio Grande até 1S89,
dando feição particular a uma imensa região. Ao contrário da corrente
imigratória localizada emo Paulo, os colonos riograndenses .íão se
destinaram a substituir a mão-de-obra escrava. Formaram, apoiados
na pequena propriedade, uma camada social de nível médio, justaposta à
grande propriedade pastoril, com estao vinculada por laços de solida-
riedade, aproximando-se da sociedade do Leste, pacífica, ordeira,
abrigada junto às cidades. Estariam ausentes, portanto, das agitações
do início da República, alheias às ideologias em pugna. A indústria,
que nascia dos descendentes de imigrantes, teve rápido incremento no
fim do século XIX e começo do XX, sem desenvolver-se além da
mediania.o alcançou, mesmo neste momento, o porte da grande
indústria, em conseqüência da pouca possibilidade de capitalização dos
estabelecimentos domésticos. Além disso, a poupança dos criadores de
gadoo se canalizou para essa nova sociedade, empregada na melhoria
das raças. O êxito da pequena burguesia industrial foi o elemento tiue
tolheu, paradoxalmente, a criação da grande indústria.
Enquanto a imigração, pelos seus filhos e neto prospera, proli-
fera no campo, sem horizontes, o proletariado rural, o peão, andarengo
e inculto, sem a vida fácil dos antigos gaúchos, com o gado farto paia
carnear. Agora, o abate do gado para matar a fome torna-se crime,
sujeito à repressão severa. A estatística criminal revela-se, ano a ano,
mais alarmante, povoado o pampa de contingentes nômades e associais.
A libertação dos escravos iria agravar o problema, conjugado com a
abolição do recrutamento, sorvedouro natural desses elementos ingover-
náveis .
O Partido Liberal, no momento em que reconciliaria o Rio Grande
com o Império, removendo a tensão decorrente da economia subsidiária,
tensão abrandada com o progresso agrícola e industrial, perdeu a
agressividade democrática e popular dos idos de 1872. Tornava-se
conservador, apoiado pela grande propriedade pastoril e pelos comer-
ciantes de importação, em progressivo abandono de suas origens. Seu
domínio, consolidado pela máquina de compressão eleitoral, que os
gabinetes conservadores se acostumaram a respeitar, encontrou coares-
tação nos propagandistas republicanos. «A Federação», que começou
a circular em l
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de janeiro de 1884, apareceu disposta a desafiar a chefia
de Silveira Martins, procurando vincular a Revolução Farroupilha, com
suas cores heróicas, marcadamente federalistas, à causa republicana.
Essa a tarefa que se propõe Júlio de Castilhos, avultando entre seus
companheiros de propaganda, Venâncio Aires, Ramiro Barcelos, Assis
Brasil, Pinheiro Machado, Demétrio Ribeiro e outros. Apelam os
republicanos para ressentimentos da predominância da Corte, tentando
despertar o dissídio contra o despotismo do Centro. A ressonância
popular para a nova orientação é mínima. Um aliado inesperado, porém,
lhes dá alento, recrutado nos quartéis, exasperados com a «Questão
Militar», alimentada pelo exército em rápida ascensão, depois de longa
campanha do Paraguai. A oficialidade que servia no Rio Grande do
Sui, entre a qual se contava Deodoro da Fonseca, oferecia-lhes a
oportunidade de um levante armado. O positivismo, do qual estavam
encharcados os jovens republicanos, seria mais um traço de aproximação,
sobretudo com a oficialidade moldada pela pregação de Benjamin
Constant. A combinação entre República e Exército, a serviço da
sonhada hegemonia riograndense, fruto do sentimento de isolamento
econômico e político, seria uma constante da política riograndense, que
desembocaria em 1930, com o reencontro da diretriz popular e democrá-
tica, já cultivada por Silveira Martins. Na disposição conjuratória
de preparar a República com a espada, a espada dos burocratas e dos
caudilhos, detendo-se apenas «diante da vitória ou da morte», colheu-os
a surpresa do 15 de novembro.
Silveira Martins, presidente da Província, admirado até a idolatria
pelos seus partidários, ouvido e respeitado pela Corte,o raro temido,
é chamado pelo Imperador, na hora derradeira, para salvar o trono.
Prèso e isolado, deixara o Rio Grande ermo, à mercê dos republicanos,
aos quais se juntaram logo os remanescentes do Partido Conservador.
O espectro liberal exigia cautela,o permitindo, de imediato, um gover-
no republicano, somente possível com o esmagamento militar dos
adversários. Para preparar com suavidade a transição, escolheram os
jovens de «A Federação», para governador interino, a figura veneranda
do 2" Visconde de Pelotas, senador do Império, coberto de glórias na
campanha do Paraguai. De índole conciliatória, soldado da tradição
de Caxias, sem vínculos com a geração positivista, serviria de biombo
aos seus ardorosos secretários: Júlio de Castilhos, Ramiro Barcelos,
Antão de Faria e Barros Cassai. O dissídio de mentalidades precipitou
os acontecimentos, com o abandono do governo pelo velho marechal.
Suceder-se-iam três anos de agitações, que revelariam a dura e áspera
liderança de Júlio de Castilhos, com o férreo domínio do Partido Repu-
blicano, afeiçoado ao seu ideário positivista e autocrático. Éntreos
republicanos de Castilhos e os liberais de Silveira Martinso havia
meio termo possível: as conciliações fracassariam tôdas, mesmo as que
aspiravam a criar uma terceira solução, como a de Assis Brasil, na mesma
trilha malograda do Visconde de Pelotas. Os liberais e os dissidentes
republicanos fundariam a União Nacional, que, com o regresso de
Silveira Martins da Europa, em 1892, se transformaria no Partido
Federalista, aceita a República como fato consumado, mas hostil à
ascensão do jovem Júlio de Castilhos. com o afastamento dos funcio-
nários públicos, nomeação de republicanos, distribuindo à larga patentes
da Guarda Nacional, sem desdenhar o uso da violência, o Partido Repu-
blicano desmontou, da cúpula à base, a máquina eleitoral do Partido
Liberal, a mais poderosa do Império. com realismo, impiedosamente,
feriram-se as fontes do poder liberal, com o castigo financeiro necessá-
rio, com a destruição da propriedade em muitos casos. A Constituinte
federal contou, diante da abstenção da União Nacional, com represen-
tantes apenas do Partido Republicano, fato que se repetiu na estadual.
Castilhosz votar sua Carta 14 de julho de 1891, obra de
manifesta inspiração positivista, ajustada à conjuntura riograndense.
onde somente um executivo forte, reduzida a Assembléia à fiscalização
orçamentária, poderia firmar o predomínio de um Partido. Era o ins-
trumento apropriado à hora e ao líder, consciente de uma missão polí-
tica. Eleito Presidente do Estado pela unanimidade dos deputados,
Castilhos, apeado depois do poder, volta à chefia do executivo, onde
se instala, por escrutínio direto, em 1893. Emigrados os federalistas,
feridos na propriedade, ameaçados na vida, encontra Castilhos pela
frente a Revolução, a mais cruenta que o Rio Grande conheceria.
As divergências entre castilhistas e gasparistas decorriam de causas
profundas.o se cifravam a disputas de chefes. Ambas as facções
eram federalistas, bandeira que, depois de arvorada pelos Farroupilhas.
incorpora-se ao ideário gaúcho. Sustentava-a a peculiar economia
subsidiária do Rio Grande, alijada das decisões da oligarquia produtora
de artigos de exportação. A consciência de autonomia, com o Estado
auto-suficiente para suas necessidades fundamentais, exasperava-se até
ao isolamento. Em termos de política econômica essa situação Poder-se-
ia romper ou com a garantia de exportações, tarefa impossível face à
concorrência platina, ou com a hegemonia sobre o país. O Partido
Liberal encontrara um «modus vivendi» com o Imperio, na forma de
autonomia integradora, à qual se acomodara o alto comercio e a grande
propriedade rural. Por isso, o Congresso de Bagé, comandado por
Silveira Martins, advogava o federalismo sob controle da União, em
termos moderados nas disputas internas, substituída a carta autoritária
de 14 de julho por uma ordem majoritária-minoritária, que garantisse
a representação das minorias. No plano federal, empenhava-se por
um govèrno parlamentar, onde a predominância dos grandes Estados
sofreria o contrapeso das possíveis coligações das unidades federadas
menores. A bancada riograndense na Constituinte federal sustentava
outras idéias, postulando, dentro da União, Estados autônomos, livres,
como se fossem pequenas repúblicas. A União teria suas rendas discri-
minadas taxativamente, cabendo as restantes aos Estados, que, cm caso
de calamidade pública ou insuficiência de recursos, a socorreriam.
Haveria, assim, uma organização federal dependente dos Estados.o
toleravam, ainda, o comando intervencionista do Centro na economia
privada e local, como ocorrera no Império, por meio da orientação
financeira central. A criação do «Banco Emissor» no Rio Grande, por
ferir a liberdade bancária, proposto no período do encilhamento, provo-
cou grave crise, com a renúncia do presidente do Rio Grande e de
Demétrio Ribeiro, ministro do governo Deodoro. Para resistir ao
Centro, urgia a organização de um Estado livre e autônomo, firmemente
controlado por um Partido monolítico, representativo, inclusive, das
camadas médias da população, em franca ascendência, como resultante
da imigração. O positivismo, sem os extremos sectários, assegurava ao
grupo dominante a unidade de pensamento, necessária para um Estado
que, refugiado no isolamento, sonhava com a hegemonia nacional. O
castilhismo tornava-se uma concepção específica do federalismo isola-
cionista e hegemônico, acobertado pela tradição de 1835.
A implantação do Partido Republicano, diante dessa situação, i'êz-se
a ferro e fogo. Os federalistas, perseguidos na propriedade, expurgados
das listas eleitorais, impedidos de votar pelo oficialismo armado (os
batalhões patrióticos), emigraram, em massa, para o Uruguai. A
revolução, adiada uma vez pela interferência pacificadora de Silveira
Martins («chefe partido, aconselho; correligionário, peço; riograndense,
suplico: guerra civil não»), tornou-se inevitável, com a eleição direta
de Júlio de Castilhos, que assumiu o governo estadual em 25 de janeiro
de 1893, para um qüinqüênio. A Revolução de 93 (início em 5 de
fevereiro de 1893) tem assim, causas puramente locais, meramente
ocasional o encontro com a Revolta da armada, que obedecia a outras
inspirações. À frente de 5.000 homens, mal armados, com a disciplina
precária das guerrilhas, o General João Nunes da Silva Tavares, orien-
tado pelo chefe civil Silveira Martins, começa as hostilidades. Castilhos
aceita o desafio, que lhe consolidaria a liderança do Rio Grande, movido
pela sua extraordinária capacidade de dirigir e mandar, firme e tenaz.
A Revolução, que duraria 30 meses, causando mais de 10.000 mortos,
desenrolar-se-ia num ambiente de ódio e fanatismo, que os movimentos
anteriores desconheciam (Castilhos: «Não poupe adversários, castigue
nas pessoas e bens, respeitando famílias»). Os adversários eram inimi-
gos da República ou da humanidade, pagando os prisioneiros com a
degola. Ao furor ideológico acrescentava-se o ódio fermentado dos
peães, bloqueados em sua ascensão social, marginalizados na vida nômade
e miserável dos campos, ressentidos contra os senhores das terras e
dos gados. Por esse meio extravasou-se a opressão de classe, reprimida,
todavia, na formação de uma consciência diferenciada. O coureador
antigo, o velho ladrão de gado, os remanescentes das arreadas e guerri-
lhas, mal estabilizados às atividades sedentárias e regulares, foram a
matéria prima que fermentaria as vinganças e crueldades indiscrimi-
nadas. Os chefes, formados numa tradição de cavalheirismo, intoxi-
cados ideològicamente,o puderam deter a onda de terror que varreu
os campos. A insurreição limitou-se à guerrilha, incapaz de assegurar
posições estáveis, sem conseguir sensibilizar à sua causa as populações
do Leste, onde Porto Alegre avultava como centro regional, dominando
a colônia. A bacia hidrográfica, a espinha dorsal do Rio Grande,
permaneceu nas mãos dos legalistas, que, com isso, pugnavam contra
uma causa vencida. A Revolução revelou um extraordinário talento de
guerrilheiro, Gumercindo Saraiva, cuja Coluna, abandonando a orla
da fronteira, onde operavam as demais forças, ao longo de 18 meses,
depois de atravessar o Rio Grande de ponta a ponta, empreendeu uma
marcha de 2.500 quilômetros, no território dos três Estados do Sul. No
seu encalço, o chefe legalista Pinheiro Machadoo lhe deu descanso,
combatendo-o tenazmente, golpe a golpe, descrevendo os maiores feitos
da guerra. Os dois caudilhos se eqüivaliam em intrepidez e obstinação,
nas negaças, recuos, surpresas e ataques das guerrilhas. Morto o cau-
dilho revolucionário (10 de agosto de 1894), a guerra entrou em rápido
declínio, limitada por parte dos insurretos, aos assaltos às cidades e
vilas da fronteira, transitòriamente ocupadas, e às irrupções momentâneas
e descoordenadas num ponto e outro. As hostilidades se encerram com
a invasão das forças remanescentes da Revolta da Armada, comandadas
por Saldanha da Gama, que, à frente de 3.000 homens, tentou dar
novo alento à Revolução, perecendo em Campo Osório (24 de junho
de 1895). A paz foi assinada em 23 de agosto de 1895, sob o patrocínio
de Prudente de Morais, assegurando aos rebeldes a reintegração na
vida riograndense. O Presidente da República visava, com a interme-
diação, acompanhada friamente pelo castilhismo, evitar o domínio abso-
luto do Partido Republicano. Respondia, com isso, à resistência que
o Rio Grande opusera à sua candidatura, cujo significado, o predomínio
deo Paulo na federação,o escapara ao entendimento dos republi-
canos do sui.
Júlio de Castilhos, findo seu mandato, poro querer se reeleger,
escolheu Antônio Augusto Borges de Medeiros para sucedê-lo. Con-
servou a chefia do Partido, obediente ao comando férreo do jovem de
35 anos, que, por morte (1903), passou às mãos do Presidente do
Estado, durante 25 anos na chefia do governo (1898-1908 e 1913-1928).
Durante quarenta anos o Partido Republicano permaneceu fiel à orien-
tação castilhista, esgotada, pelo atingimento de suas metas, em 1930.
O Rio Grandeo seria caudatàrio dos dois grandes Estados, nem
aceitava a partilha da Federação por eles desfrutada. Prudentemente,
isolar-se-ia do jogo político, na forma da tradição, solapando a aliança
o Paulo Minas e estimulando a rebeldia coordenada dos pequenos
Estados. Esta a política posta em prática até a Revolução de 30,
constantemente defendida por Borges de Medeiros, por meio de seu
delegado, o Senhor Pinheiro Machado, cuja argúcia e senso de oportu-
nidade dominou o cenário da primeira República. Organizou no
Congresso, uma força parlamentar capaz de controlar e moderar o
Presidente da República. Opôs, de outro lado, tenaz resistência à
supremacia paulista, em luta contra as candidaturas de Prudente de
Morais e Campos Sales, inaugurando a reação contra as indicações dos
sucessores pelos próprios presidentes. A oposição («nem oposição
sistemática, nem apoio incondicional»), com cautela e prudência,o
chegava ao rompimento. Sem suporte seguro para manobrar na resis-
tência, via-se o Rio Grande na contingência de limitar-se às escaramuças
de bastidores. A sucessão de Afonso Pena, todavia, devolver-lhe-ia o
velho aliado castilhista, o exército. A política, com a candidatura
Hermes da Fonseca, deslocar-se-ia de seu eixo oligárquico, para, sob a
influência riograndense, aniquilar as situações estaduais, numa manobra
envolvente contrao Paulo. O momentoo favoreceu a audaciosa
manobra. Borges de Medeiros, depois de desaparecido Pinheiro Macha-
do, logra indicar Epitácio Pessoa, filho de um pequeno Estado, à Presi-
dência. Na oportunidade seguinte, engajava-se na Reação Republicana,
com a candidatura Nilo Peçanha contra Bernardes, afinando-se, mais
uma vez, com os sentimentos militares, agora estimulados pela presença
popular quase se diria populista na campanha. Povo e exército
eram as saídas possíveis para o cerco oligárquico, combatido pelo -'solacio-
nismo hegemônico. (Borges, após a derrota eleitoral: «Quanto ao Rio
Garnde, êleo deve inquietar-se, porque já se habituou, de longa data,
a trabalhar e viver per se. Por isso, ser necessário, isolar-se em sua
modesta autonomia e na fatalidade histórica e geográfica que lhe assina-
la seu território, localizado neste extremo meridional, nada o fará sair
da linha em que se tem mantido até hoje.). A herança farroupilha
pesava em tais decisões, como espectro constante e inquietador.
Apesar do revés da Revolução Federalista, a oposiçãoo esmore-
cera de sua pugnacidade e vigilância. Coèsa e disciplinada em
contrapartida ao Partido oficial, monolítico e aguerrido obrigava o
governo a manter alto padrão de conduta, com a incorporação, nos pos-
tos de chefia, dos mais destacados valores das novas gerações. A
chefia suprema unilateralo degenerou numa constelação de satélites
obedientes. Um vasto plano de obras públicas, o alargamento da ins-
trução, em todos os graus, o alto padrão de moralidade dos dirigentes.
fiéis ao exemplo de Borges de Medeiros, o estímulo permanente à imi-
gração e colonização, mantiveram o Estado em constante progresso. A
barra do Rio Grande foi, definitivamente, aberta ao tráfego marítimo, o
que, complementado com a ligação ferroviária atéo Paulo,s termo
à segregação geográfica de dois séculos .A produção gaúcha, enrique-
cida pela agricultura e pelas suas modestas indústrias, é levada, com
facilidade, aos mercados consumidores. O processo de urbanização se
acelera, elevada Porto Alegre à categoria de metrópole econômica.
Na pecuária, uma relevante mudança se faz notar após a primeira
guerra mundial, provocada pela introdução dos frigoríficos. A velha
charqueada, com o desperdício dos sub-produtos bovinos, cede lugar
às novas empresas, criadas pelo capital estrangeiro: Armour, Swift e
Anglo. A indústriao resultou da poupança das estâncias, como
prolongamento natural a uma fase mais adiantada de produção, senão
que foi enxertada de fora, como exigência do consumidor estrangeiro.
As relações entre o criador de gado e o industrial provocam a melhoria
dos rebanhos, com a importação de raças européias, de maior rentabi-
lidade, provocando, a longo prazo, o aperfeiçoamento e melhoria dos
campos. A estância assume, com a nova conjuntura, caráter capitalista.
gerando o melhor aproveitamento da mão-de-obra, com o abandono do
trabalhador supérfluo. O velho peão — o gaúcho antigo reduz-se a
assalariado, extinta a parceria paternalista aos agregados, com sua
criação particular nos campos do proprietário. O proletário abriga-se
à margem das cidades e vilas, no regime do sub-emprêgo, condenado à
marginalização social, sem terras para cultivar e sem oportunidades de
trabalho industrial. com o peão definha outro exemplar típico da
vida gaúcha: o tropeiro. Êle se converte em especulador e mero inter-
mediário .
A indústria, que medra à sombra do capital estrangeiro e das ofici-
nas. dos imigrantes, ocupará, em pouco tempo, o segundo lugar na riqueza
do Rio Grande, depois da pecuária, que se prolonga na produção de.
O ramo mais importante será a da alimentação, com a exploração dos
produtos bovinos e suínos, impulsionada pelos frigoríficos estrangeiros
e as empresas de descendentes de imigrantes. A indústria dos artefatos
de couro, cortumes e sapatos, aproveitando a matéria prima abundante,
assumirá rápido relevo, seguindo-se a metalúrgica e têxtil e a extrativa
da madeira. Sem afastar o predomínio da pecuária, onde se notam
fundos contrastes de fortuna, emerge, na agricultura e na indústria, uma
forte classe média,o solidária com os interesses dos criadores de
gado. Antes, porém, que a nova situação alterasse a composição do
comando político do Estado, um fato, na undécima hora, retardou a
substituição das lideranças.
A reeleição de Borges de Medeiros, em 1922, vivamente impugnada
pela oposição, reunida em torno da candidatura de Assis Brasil, cujos
partidários apoiaram Bernardes, levou à Revolução de 1923. Ensaia-
va-se, por meio de colunas esparsas de guerrilhas, que irromperam na
orla da fronteira, o preparo de condições para a intervenção federal no
Estado. 1923 é um revide tardio à decepção de 1893, gerado pelo
antagonismo combativo das facções, inconformadas com o longo e impe-
netrável domínio do Partido Republicano. A luta desencadeava-se,
ideològicamente, contra a Constituição de 14 de julho, animada pela
reconquista das liberdades públicas. As escaramuças e guerrilhas,
empreendidas sem crueldade, culmiram na Paz de Pedras Altas (1923),
que, segundo uma de suas cláusulas, proibia as reeleições. Findo o
mandato de Borges, em 1928, foi eleito, sem oposição, Getúlio Vargas.
com uma política de brandura e entendimento, os velhos ódios se amai-
naram, o que permitiu ao Presidente do Estado, candidato à Presidente
da República, na hora derradeira da política castilhista, tecida no
inconformismo do predomínio paulista, unir as facções para o lance
extremo da Revolução. A revolta se estruturou numa coligação de
inconformismos, com os Estados sublevados, os «tenentes» e o proleta-
riado industrial, então em surgimento, contra a velha República, cem
sua oligarquia anacrônica, ferida por profunda crise econômica. No
poder, Getúlio, ainda traduzindo sua formação castilhista, procura anular
o ascendente paulista, mantendo o Estado em discórdia, sob seu contrô-
le, afastado, também, da influência de Minas Gerais. Para fugir ao
vácuo, dado que o Rio Grande, como Estado,o lhe poderia oferecer
base segura de sustentação, procura Getúlio organizar o proletariado
urbano, sob a orientação do recém-criado Ministério do Trabalho, desti-
nado a controlar e coordenar, e, na ausência de líderes, criá-los à imagem
do governo, ao mesmo tempo em que reorganiza o Exército, afeiçoando-o
à ordem revolucionária, dirigido, de fato, pelo líder revolucionário Cel.
Góis Monteiro. como terceiro elo da corrente, lança-se a Revolução a
uma política de incentivo industrial, de cunho nacionalista, resultante da
necessidade de substituir importações, comprometidas pela crise econô-
mica, queo permitia compensá-las com as exportações em crise. O
Rio Grande chegava, depois de 40 anos, ao poder supremo da República,
mas, para assegurar a posição, viu-se forçado a ceder às pretensões
hegemônicas, em favor de forçaso locais, nacionais na sua índole e
dinâmicas: exército, povo e indústria. Condenava-o a isso a sua debili-
dade econômica, com a economia de subsistência, sem peso na exportação
nacional. O ascendente do Exército, acentuado pela necessidade de
combater a insurreição paulista de 1932, anulou a força das milícias
estaduais, uma das bases da liderança gaúcha, com uma tradição secular
de guerra. A ordem federativa sofreu rápida transformação, perdido
o caráter autonomista, que agoniza, simbolicamente, com a intervenção
no Rio Grande, em 1937, sem que a Brigada Militar pudesse resistir ao
assédio, sacrificado o último caudilho riograndense, o Governador Flores
da Cunha (interventor de 1930 a 34 e governador a partir de 1934).
Daí por diante, a ascendência dos políticos riograndenseso se caria
mais como prolongamento do Estado, resultaria de movimentos nacionais,
com o predomínio das camadas médias e o proletariado, fiel à liderança
de Vargas. A política castilhista, ao se realizar, provocava situarão
inversa às suas inspirações originais.
Enquanto a estrutura política nacional se alterava, o Rio Grande
sofria profundas mudanças internas. A classe média rural e urbana,
resultante da colonização alemã e italiana, projetando-se na agricultura
e na indústria, vinculada ao proletariado (em 1934: 94.018 operários),
empenha-se para conquistar o comando dos negócios estaduais. Duran-
te a Ditadura, a pressão se manifesta silenciosamente nos municípios,
com os prefeitos nomeados. No cenário estadual, desponta um líder
dessas camadas médias, Alberto Pasqualini, esforçando-se em dar cunho
doutrinário às aspirações de vasta parte da população.o é possível
identificar, em tal movimento, como ocorrera com a pregação de Júlio
de Castilhos, o esboço de uma missão regional. Parece, antes, um
esforço integratório nacional, como prolongamento da obra de Vargas.
Reaberto o debate eleitoral, em 1945, os velhos partidos Republicano
(Castilhos, Borges), Republicano Liberal (Flores da Cunha), Liberta-
dor (Silveira Martins, Assis Brasil, Raul Pilla) se surpreendem
diante do aparecimento avassalador de novas forças, à procura de
lideranças autênticas. O Estado rompe-se, eleitoralmente, em dois
blocos (PSD e PTB), coligados, eventualmente, com os remanescentes
dos antigos Partidos. A estância perde, definitivamente, o comando
eleitoral, em favor da agricultura de pequenos lavradores, da indústria
e das camadas médias urbanas, inclusive o proletariado.o significa
esse fato que a pecuária tenha decrescido em importância na economia
do sui. Sua população rarefeita passou a constituir um entrave na
representação popular, ocupada pelas demais categorias econômicas.
Ocuparia, entretanto, papel de destaque nas preocupações do Estado,
que a tutelaria, como faria com os plantadores de arroz, também organi-
zados em empresa capitalista.
Depois de vinte anos de atividade política, com o revezamento dos
partidos antagônicos no governo do Estado (Walter Jobim, PSD
1947 50; Ernesto Dornelles, PTB 1951 54; lido Menegheti,
PSD, UDN, PL 1955 58; Leonel Brizóla, PTB, PRP 3959
62; lido Menegheti, PSD, UDN, PL 1963 66), o Rio Grandeo
encontrou caracterização política, com lideranças capazes de definir-lhe
as aspirações. O predomínio das camadas médias da população, ora
com coloração demagógica, ora de feição conservadora, de interesseso
homogêneos, às vêzes antagônicos, foi fator hostil à sedimentação social
e continuidade política. Iniludível é a ascensão dos descendentes de
imigrantes, nas atividades econômicas e políticas, em nítida diferencia-
ção, sem que, todavia, se tenha estruturado uma específica cultura
regional, como o foi a cultura estancieira e militar. Talvez a sociedade
em maturaçãoo permita ainda discenir os valores que a informam.
Além disso, a instabilidade econômica muito terá contribuído para a
situação atual. Vinte anos de inflação prejudicaram sua expansão
pecuária e agrícola, peada pelos tabelamentos oficiais, em favor das
populações urbanas, cujos produtos, de natureza industrial, disputavam
livremente os preços no mercado. Sem grande indústria, limitado às
indústrias de pequeno e médio porte (em 1958, apenas 101.481 operá-
rios para 5.200.000 de habitantes e 237.000 kw), embora com papel
de relevo no Brasil, desprovido de recursos naturais (com exceção do
carvão), pobre de capital financeiro, enfrentou o Estado, nos últimos
anos, sensível crise de empobrecimento, se comparados seus níveis de
aumento de produção com os da área mais rica do país. As finanças
públicas ressentiram-se agudamente, com apelos constantes ao Tesouro
Nacional. Sua posição de terceiro membro da Federação viu-se amea-
çada, com desprestígio de suas reivindicações junto à União, Desapa-
receu, contudo, a consciência de isolamento, como sepultadas estão as
premissas da política hegemônica, à maneira de Castilhos.
Depois de se reencontrar consigo mesmo, recuperando-se dos estra-
vios de suas tensões internas, será possível discernir a feição político-
cultural do Rio Grande, ora em obscura reformulação.
ROTEIRO POMBALINO NO BRASIL
MARCOS CARNEIRO DE MENDONÇA
D ÈVE-SE, em boa parte, a alguns aspectos da literatura histórica
jesuítica, o limitado e precário conhecimento que se tem da patriótica
e monumental contribuição do Gabinete Pombal ao Brasil. Contribuição
prestada, em geral, por meio de suas equipes de trabalho que aqui agiam
sob a sua sábia direção, no decorrer das três primeiras décadas da
segunda metade do século XVIII. Essa contribuição sez sentir
sobretudo na Amazônia, em Mato Grosso, no Rio Grande do Sui, Santa
Catarina,o Paulo, Rio de Janeiro, e ainda em Minas Gerais, Bahia
e Pernambuco.
Para mostrar alguns de seus pontos mais importantes, em relação
à conservação da unidade territorial brasileira, vamos apresentá-los em
forma de roteiro, na certeza de que, com isto, a ninguém será dado
conhecer a fundo a sua extensão e importância.
Partindo do princípio de que tôda a parte territorial situada ao
Norte do Rio Amazonas era, pràticamente, terra de ninguém, até o
ano de 1751, porque nela entravam quando e como queriam, franceses,
ingleses, holandeses e castelhanos, temos o primeiro ponto de nosso
roteiro.
Para dar fim a essa grave e ameaçadora situação, proveniente,
sobietudo, do estado de extrema miséria a que chegara tôda a vasta
região amazônica, o Governador Francisco Xavier de Mendonça
Furtado, já veio credenciado para transferir deo Luis do Maranhão
pan*. Belém do Pará, a sede principal de governo do norte do país,
ficando o governador do Maranhão a êle subordinado.
Francisco Xavier, depois de em Belém do Pará tomar tôdas as
medidas ligadas à sua nova e importante função, e de escrever ao irmão
ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo, a primeira das 187 cartas
qu; lhe dirigiu no decorrer dos anos em que lá esteve, dando-lhe notícia
da calamitosa situação em que se encontrava tudo aquilo que ia governar,
em data de 18 de dezembro de 1751, passa ao capitão-mor João Batista
de Oliveira a Instrução que levou para estabelecer, como estabeleceu.
a nova Vila deo José de Macapá: primeiro ato de envergadura
administrativa do seu governo, em defesa da Amazônia.
Nessa Instrução se: «Por ser preciso e conveniente aos serviços
de S. M., que na nova povoação e fortaleza do Macapá haja uma
pessoa queo só contenha aqueles novos moradores em paz, mas que
também os persuada ao trabalho e cultura das terras,o deixando
precipitar essa gente no abominável vício da preguiça, nem no cutro
igualmente pernicioso que é o do desprezo do trabalho manual, o qual
tem sido muita parte de se reduzirem essas terras à penúria e miséria
em que se acham, etc. . ., passe logo àquela povoação e fortaleza,
adonde farà executar as ordens seguintes:
«A primeira cousa em que V. Mercê deve cuidar, é em conservar
em paz e união a estas gentes, e que vivam numa recíproca amizade,
fazendo-lhes compreender que um dos principais meios,o só da sua
conservação, mas do seu aumento, consiste nesse sabido e elementar
fundamento, sem o qualo é possível que haja república que subsista
e floresça, etc.
«Logo que V. Mercê chegar àquela povoação, dever todo o
cuidado e esforço em persuadir e obrigar a essa gente ao trabalho e
cultura das terras, advertindo-lhes que este foi o único fim para que
S. M. os mandou transportar para este Estado, e que nele devem seguir
a -nesma vida e trabalho com que foram criados em suas terras,
certificándoles, etc.
«Para evitar o abuso que estáo arraigado nestas terras de que
«só os índioso os que devem trabalhar, e que a todo branco é
injurioso o pegar em instrumento para cultivar as terras,o consentirá
V. Mercê que estes povoadores se sirvam de índio algum para o trabalho
da cultura, etc. .. Só podiam ter índio caçador e pescador, enquanto
o tivessem ganho a necessária prática, destinada a esses serviços,
ligados diretamente à sua subsistência.
«como S. M. defende com repetidas ordens todo o comércio com
Caiena, será preciso que V. Mercê proíba e vigie com todo o cuidado
para que talo aconteça.
«Sucedendo porém virem alguns franceses à dita povoação, ainda
com pretextos que lhes pareça justo, lhes deve V. Mercê logo intimar
que nas terras das conquistas de El Rei Nosso Senhor,o podem
ser admitidos sem ordem expressa sua, e que devem, sem demora, tornar
para os domínios de S. M. Cristianissima, provendo-os dos gêneros
que permitir a terra, para a sua viagem; eo bastando essa adver-
tência, que deve ser feita com muita prudência e suma brandura, nestes
termos, fará V. Mercê a apreensão nela e me avisará com a brevidade
quer possível, para eu dar a providência que me parecer justa.
«Acontecendo (o queo espero) que os ditos franceses venham
cometer algum atentado com algum corpo de gente, a embaraçar-nos
aquela povoação, depois de lhes fazer os pretextos de nossa justiça, da
posçessão mansa e pacífica em que nela nos achamos; e se depois de
tudo isso quiserem continuar no atentado, neste caso usará V. Mercê
de <odos os meios queo permitidos a uma rigorosa defesa, fazendo-os
retroceder para sua Praça, e dando-me no mesmo instante conta.
«Também me consta que várias vêzesm vindo holandeses, etc, de-
vendo, pelo disposto nesse item, tudo se passar como com os franceses».
Lamento ter feito uso de tais citações, mas, isto, casado com a
vinda de dois regimentos militares completos, com a presença de novos
valores representatives da Justiça, com a abertura do comércio com a
Capitania de Mato Grosso e o da sua intensificação com o da Metrópole.
cor., a chegada de substanciais recursos financeiros, com a criação da
Capitania deo José do Rio Negro, que é hoje o Estado do Amazonas,
por meio da qual tôda a gente daqueles confins foi levada a se reunir
e viver debaixo de um regime de lei; tudo isso, e mais o novo sistema
de fortificações fronteiriças, todo pombalino, constituído pelos fortes e
fortalezas de Macapá,o Joaquim,o José de Marabitanas,o
Gabriel da Cachoeira, e Tabatinga, e ainda mais para o Sui, Bragança
e Príncipe da Beira,z com que, ao fim de algum tempo, tôda a parte
Norte das terras situadas acima do rio Amazonas passassem, de terra
de ninguém, a terra verdadeiramente luso-brasileira.
Antes disso, a defesa de tôda a região amazônica estava entregue
à preciosa guarda dos fortes do Presépio, de Gurupa, dos Pauxís e
de outros de menor importância, sempre situados nas margens do grande
Rio-Mar, eo nos pontos de importância nevrálgica das fronteiras,
ainda por definir.
Quando o Governador Mendonça Furtado, com a sua carta de
20 de janeiro de 1752, dirigida ao ministro Diogo de Mendonça,
conseguiu que fosse restabelecido o tráfego regular com a Capitania
de Mato Grosso, pela via fluvial do Amazonas, Madeira e Guaporé,
já os jesuítas da Espanha tinham se instalado na margem direita deste
último rio, com três importantes missões, que dominavam vastíssima área
de terras dessa margem, com o que, entre o mais, podiam estrangular
as relações de tôda natureza, entre a Amazônia e Mato Grosso, ainda
coni faixas preciosas de terra, por definir, no decorrer do cumprimento
do Tratado de limites, assinado em Madri, a 13 de janeiro de 1750.
A proibição de tráfego provinha do fato de se querer, ao tempo
de reinado de Dom João V, impedir que por aquela via se desse o
descaminho do ouro do Cuiabá, sendo de notar que nas proximidades
do encontro das águas do rio Madeira com as do Amazonas, os jesuítas
de Portugal tinham fundado a aldeia do Trescano, junto da qual, depois
de restabelecida a tal navegação, foi, pelo Governador Mendonça
Fuitado, instalado um posto militar, para controle dessa navegação, e a
partir do dia 1" de janeiro de 1756, a aldeia, de conformidade com o
disposto nos alvarás de lei de 6 e 7 de junho de 1755, transformada
em Vila de Borba a nova.
As três missõe jesuíticas, castelhanas, da margem direita do rio
Guaporé, foram, com muito jeito e talenta, dali removidas pelo trabalho
conjugado dos dois grandes governadores de Mato Grosso e do Grão
Pará, D. Antônio Rolim de Moura e Francisco Xavier de Mendonça
Furtado. Dali saíram, mas passaram depois disso a constituir forte
obstáculo contra o cumprimento do Tratado de 1750, em sua parte
Norte.
Desse Tratado, era 1? Comissário Regio, demarcador de sua parte
Sul, Gomes Freire de Andrade, e do marco do Jaurú para cima, o
Governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado.
A vasta documentação, pouco conhecida, das ações jesuíticas
contra o cumprimento do Tratado de 1750, estão, já agora, ao alcance
de quem as quiser conhecer, tendo cabido ao ilustre Professor Jaime
Cortesão, já falecido, revelar grande parte da mesma, em seus magníficos
trabalhos sobre Alexandre de Gusmão e o referido Tratado de 1750,
publicados pelo nosso Itamaraty. Tratado finalmente anulado pelo
de El Pardo, de 12 de fevereiro de 1761.
No Sui, a razão então apresentada para o Tratadoo ser posto
em prática, se tornou clara:o davam aos dois Reis o direito de trocar
as terras ocupadas pelos jesuítas de Espanha, com as suas sete missões
da banda oriental do rio Uruguai, pela Colônia do Sacramento, mandada
fur dar, no ano de 1678, na embocadura do Rio da Prata, pelo então
Príncipe Regente de Portugal, D. Pedro, depois rei D. Pedro II.
como deste roteiroo podem deixar de constar pontos cruciantes
das várias tentativas de cumprimento do já referido Tratado de 1750,
po
c
so lembrar que, depois de minuciosa preparação, Mendonça Furtado,
em carta ao irmão, Sebastião José, informa-o que no dia seguinte, isto é,
a 2 de outubro de 1754, partia com tôda a sua numerosa comitiva para o
alto Rio Negro, aonde, na aldeia de Mariuá, devia se encontrar com os
Comissários Demarcadores de Espanha. Agora, se para chegarem até
ali, levaram 88 dias, o que pensar sobre o fato dele ter lá ficado mais
de dois anos, à espera, em vão, dos seus ilustres colegas espanhóis ?
Nao deixando de ser curioso o fato, por êle mesmo observado, que as
notícias que lhe vinham dos mesmos, eram sempre fornecidas por
importantes jesuítas de Lisboa. Assim, se no Sui o bravíssimo futuro
Corde de Bobadela teve de enfrentar incríveis trapaças e tramóias,
arquitetatas pelos do grupo contrário à realização do Tratado, quantas
mai."o teve também Mendonça Furtado de enfrentar, na sua parte
Norte ?
Para se ter uma pequena idéia de quanto foram difíceis, por vêzes,
as ações das equipes pombalinas no Brasil, basta lembrar que em um
estudo do 1" Comissário Iturriága, êle considerava como sendo da
Espanha tôda a região situada ao Norte do Rio Amazonas. Mas,o
foi esta a fonte de maiores dificuldades que tiveram de enfrentar. Sem
o jogo castelhano-jesuítico se tornar claro e preciso, como no Sul, pela
troca das 7 missões pela Colonia, as resistências veladas, no Norte,
pelo que se viu, provinham, sobretudo, da perda das terras da margem
direita do Guaporé. Tanto assim, que logo depois de terem conseguido
anular o Tratado de 1750, pelo de El Pardo de 1761, o Governador
de Santa Cruz de la Sierra, recebeu ordem de comunicar ao muito
ilustre Governador Rolim de Moura que, em vista do disposto no mesmo
tratado anulatório, as referidas terras deviam lhes ser prontamente
devolvidas.
A resposta do Governador foi,o só prontamente dada, contrária
à referida pretensão, como também com o correr do tempo teve ela de
ser duramente sustentada, em combates que se tornaram decisivos para
os portugueses e para o Brasil; pelos quais,o só o mesmo Governador
recebeu o honroso titulo de Conde de Azambuja, como dali foi passado
pam a governança da Capitania da Bahia, e desta para o Vice-reinado
do Estado do Brasil, segundo, em ordem, da série Rio de Janeiro,
iniciada a partir do ano de 1763.
Pelo roteiro, na mesma Capitania de Mato Grosso, um pouco mais
para o sui, a partir da antiga Vila Bela, há dois rios que, durante o
período das águas, permitem ir por eles, dali até a cidade de Cuiabá.
Um dêles é tributário da bacia Amazônica, que é o Alegre, e o outro,
da do Prata, que é o Aguapeí. Nas proximidades de suas respectivas
nascentes, há um varadouro, pelo qual as canoaso passadas por terra,
de um para o outro rio. Pois bem, pelo disposto no art. VII do
Tratado de 1750, tôda a área territorial percorrida por estes dois rios,
ia ser perdida, seo fossem as ações firmes e quase temerárias dos
do's grandes e já mencionados Governadores.
Deixando as plagas matogrossenses, neste roteiro pombalino,
vamos ter ao antigo Continente deo Pedro do Rio Grande, hoje
Estado do Rio Grande do Sui., como na Amazônia e em Mato
Grosso, vamos encontrar marcas inconfundíveis das contribuições
pombalinas e de suas equipes de trabalho, prestadas ao Brasil.
Por motivos claros, mas longos de explicar, em maio de 1763,
D. Pedro de Cevalhos invadiu grande parte das terras do Rio Grande.
Nelas, estiveram os castelhanos enquistados, de 1763 até 1776. Para
que tal se desse, D. Pedro, o invasor, fingiu desconhecer que desde o
dia 10 de fevereiro, anterior,, em Paris, tinha sido assinado o Tratado
de Paz, que dava fim à célebre Guerra dos 7 Anos, na qual a França
e a Espanha haviam sido derrotadas pela Inglaterra; guerra em que,
a partir do ano de 1762 Portugal se viu envolvido, por causa da
assinatura do tratado conhecido por Pacto de Família, por ser velho e
tradicional aliado da Inglaterra, e por ser a rainha, mulher do rei D.
José I, de Portugal, uma Bourbon, da Espanha.
Assim que o Ministro Sebastião José de Carvalho e Melo teve
notícia da assinatura do referido Pacto, firmado entre os Bourbons da
França e da Espanha, previu, pela razão acima indicada, que os seus
signatários iam querer, como tentaram, que D. José a eles se juntasse
coríra a Inglaterra. Esta sua capacidade de previsão já se tinha
manifestado, em relação ao sui do Brasil, quando, a partir do ano de
1751, ficou encarregado do cumprimento, por parte de Portugal, do
Tratado de Limites, assinado em Madri, a 13 de janeiro de 1750, corn
a Espanha.
com a percuciência que Deus lhe dera, desde os seus primeiros
contatos com os negociadores espanhóis, o futuro Marquês de Pombal.
ficou certo de que jamais, os espanhóis daquele tempo, iam abandonar
a idéia de serem os verdadeiros donos das terras situadas abaixo do
paralelo 28, Sui, que passa por Laguna; razão porque, desde então.
tena pensado na organização do plano de defesa territorial do Brasil,
a que deu o nome de SISTEMA POLÍTICO, MILITAR E CIVIL, por êle posto
silenciosamente em prática, a partir do ano de 1757; plano que tive
ocasião de revelar, em conferência realizada no Instituto Histórico, a
convite de seu então Presidente perpétuo, Embaixador José Carlos de
Macedo Soares, no dia 8 de maio de 1953.
Por muitas razões posso afirmar que, devido à existência desse
plano, é que foi possível se dar a expulsão dos castelhanos de D. Pedro
de Cevallos, do Rio Grande, a partir do dia 1? de abril de 1776.
Esta expulsão pode ser tida por milagrosa, pelo fato de se ter,
finalmente, dado, poucos meses antes da morte do rei D. José, e da
queda de Pombal; porque se assimo fosse,o seria com a gente
da famosa Viradeira, que envolveu a coitada da jovem D. Maria I, que
essa quase impossível expulsão se iria dar.
O que ela custou, também quase que posso dizer, que só eu sei,
por se acharem ainda por publicar os documentos que mostram e provam,
como foi possível chegar a essa milagrosa expulsão, depois de anos e
anos de dificil, penosa e custosa preparação.
o documentos belíssimos e surpreendentes, pelo que contam e
revelam. Aparecerão todos em «O CONTINENTE DEO PEDRO DO
RIO GRANDE E A COLÔNIA DO SACRAMENTO NA ERA POMBALINA». em
que virão acompanhados de outros muitos documentos espanhóis que,
em contra-partida, mostram os, por vêzes, ansiosos reflexos que na
Espanha iam tendo os preparativos militares e civis que iam se
cumprindo, pelo Gabinete Pombal, visando a sua já referida expulsão.
Virão eles ainda acompanhados de linda e inédita documentação
¡corogràfica, a cores, pela qual vai se tornar verdadeiramente conhecida
a indumentária dos soldados que serviam nos regimentos mandados e
orgpnizados no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, e, especialmente
o garbo de seus oficiais e soldados de cavalaria, montados em
impressionantes cavalos de rara beleza. Para o revelado nessa
documentação se tornar mais accessível, temos ainda dois mapas
minuciosos, também coloridos, da Ilha de Santa Catarina e seus
contornos, e outro de tôda a região do Rio Grande, em que as lutas se
deram.
O que aqui está, é apenas um panorama de parte das contribuições
do Gabinete Pombal ao Brasil, porque há ainda muito mais a revelar.
O fato da Cidade do Rio de Janeiro, a partir do ano de 1763, ter
sido honrada com o predicamento de sede doVice-Reinado do Estado
do Brasil,o passou de uma conseqüência natural do cumprimento do
Sistema Político, Militar e Civil, de Pombal, criado para preservar e
defender a unidade territorial do grande Império que, reiteradamente,
êle e o irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, mostraram
deüejo e real intenção de aqui verem criado.
HISTORIA DO DIREITO LUSO-BRASILEIRO
CARLOS DE ARAÚJO LIMA
XZJ STAMOS certos? Estarão eles errados? Queremos nos referir aos
povos que encontramos, na Europa, conscientes do que representa
a História dos respectivos Direitos, instituindo essa cadeira como
fundamental e obrigatória no curso ju^riico. como temos divulgado
e o faremos por todos os rneios, quer em contato com estudantes e mes-
tres de nossas universidades, quer em livros e palestras (Presença de
Portugal no Direito Criminal Brasileiro, Image Editora; Carta de
Segurança, edição da Fundação Cultural do Amazonas em convênio
com o Conselho Federal de Cultura, ambos no ano de 1969) é
ina
r
reditável que essa matéria a História do Direito Brasileiro
funcione como um requinte cultural de doutorado eo se inscreva
como essencial e obrigatória, no primeiro ano do aprendizado jurídico.
De um professor ilustre ouvimos certa feita que aindao teria
existência, com autenticidade e caracteristicas próprias, um Direito
Brasileiro.
Suas ponderações queo nos convenceram, tiveram, entretanto,
um efeito. A cadeira, a nosso ver, deve ser titulada como História
do Direito Luso-Brasileiro. Nela compreendidas origem, unidade,
diferenciação. Direito bifurcado, na expressão de Sylvio Roméro.
transplantado de galho das Ordenações para o solo brasileiro, seu
levantamento histórico é uma realidade bibliográfica já expressiva que
corsta de estudos, subsidios, monografias, publicações, realizados em
nosso meio, partindo ou querendo partir, seus autores, das relações de
convivência e costumes imperantes em nossos índios. Podemos referir,
nesse particular, Martins Junior, Aurelino Leal, Assis Ribeiro, Bezerra
Câmara, Aldebnro Klautau, entre tantos que a essas pesquisas se
dedicaram, destacando-se um Waldemar Ferreira, com o seu tratado.
como compreender as instituições em vigor sem olhar o passado,
sem ver o porque surgiram e o terreno em que suas raízes medraram,
quase tôdas nos costumes e forais dos concelhos lusos?
como viver a consciência da oportunidade e funcionalidade de tais
instituições sem a perspectiva, o olhar para a frente, o pressentimento
das novas direções face à percepção da realidade social. comoo
surpreender e observar nas vivências e no temperamento do povo os
prováveis infletimentos do Direito na Lei ?
Quando Rippert estuda o declínio do Direito está fixando a
constante de uma crise que consiste no legalismo fluido a que se refere
Jeoxt Cruet, isto é, à quase inoperância da lei, da lei que nem sempre
é Direito. O problema, em essência, está nesse ponto: o Direito nem
sempre está na Lei.
Parece que muito contribui para essa problemática Lei sem
Direito é uma superfetação, é uma impressão de Direito, é um artifício,
é inexistência da Lei com elemento de coordenação e disciplinação
social o fato de os nossos juristaso terem o conhecimento, ou
melhor, a habilitação histórica. O fato histórico, a idéia histórica, o
conhecimento que nem sempre é a compreensão histórica, tudo isso, é
evidente, e imporia em ampliação crescente de interesse e saber na
proporção em que fosse se abrindo, em leque infinito e socratiano, o
campo de estudo.
Vejamos, no entanto, as vantagens imediatas. Mesmo no terreno
do conhecimento, este é precário no adolescente universitário, o qual,
quando muito, carreia para o curso superior, vagas reminiscências da
História do Brasil ensinada nos bancos escolares. O jovem que ingressa
na Faculdade de Direito teria, logo na entrada do seu aprendizado, ao
acDmpanhar a criação ou adoção de instituições queo se definindo
em sintonia com a sedimentação da nacionalidade, uma oportunidade
mais fecunda de fixar, melhor ainda, de tomar consciência também do
muito que devemos em ternura, respeito e entusiasmo a figuras e
personagens cuja atuação precisa ser lembrada e entendida.
A internacionalização do interesse cultural neutra-iza em parte a
atenção pelo que é nosso e estimula a receptividade para soluções que
o nos dizem respeito porqueo resultaram da nossa formação e da
no^sa índole. O desconhecimento desses fatores da afirmação nacional,
da autenticidade luso-brasileira, do porque nasceram essas formas de
convivência brotadas do direito costumeiro costume he ley do
primeiro período jurídico, começado com a Fundação de Portugal por
Affonso Henriques e que se encerra com o Conde de Bolonha,
Afíonso III em 1248, é responsável, assim o cremos, pela tendência a
des"incular a lei do direito, o que decorre da ignorância da evolução
deste último.
TRADIÇÃO E COSTUMES
Portugal resultou de um processo de decantações e superposições
de influências as mais diversas e antagônicas. Nesse rumo e em campo
criminal basta o registro de que aos séculos de impregnação visigó ica,
o característica, em que prevalecia a justiça pública, o interesse coletivo
na repressão dos crimes, se segue o domínio árabe em que prepondera
a auto tutela. Territorialmente pequeno, recebeu através dos inúmeros
concelhos que o constituíram as mais estranhas infiltrações. Apesar
disso ou talvez por isso, é, e se define como nação, isto é, como um
corpo inteiriço no sentir, no pensar, no querer. Compreende-se a força
do costume e a expansão do direito costumeiro quando se entra em con-
tato com a história portuguesa. Os povos só podem contar com eles
mesmos. As ameaças externas, as guerras, as terríveis fermentações
internas, poder real, nobres, clero, em luta de primeiro plano porfiando
na conquista e manutenção de privilégios e isenções, tudo induzia as
vilas, grêmios, concelhos a elaborarem, na contingência vivida dos seus
problemas, a solução para os mesmos. Os foraiso os diplomas de
que nos podemos valer para ciência dessa maneira de conviver e de
sobreviver consagrada, freqüentemente, pelo Rei. Cabe aqui a
contribuição de Alexandre Herculano definindo os concelhos como
pequenas repúblicas unidas pelos laços da monarquia. O eu social a
que aludia, pela força de coesão exacerbada pela consciência dos perigos,
iria, na elaboração do direito costumeiro assumir tal relevância que
Affonso III, no Juramento de Paris, se comprometia publicamente a
«qualquer que seja o título por que alcançar o reino de Portugal
guardará, e fará guardar a todos os municípios, concelhos, cavaleiros
e peões, aos religiosos, e ao clero do reino, todos os seus costumes e [oros
escritos e não escritos de que estivessem de posse desde o tempo de seu
avô, e de seu bisavô.» Vale, também,o esquecer que, ressalvando,
a tempo, o empenho em reforçar o seu prestígio e força, habilmente
e para neutralizar o compromisso acima afirmava que «se es/orcará por
abolir todos os maus costumes e abusos introduzidos em qualquer
ocasião, ou por qualquer pessoa, no tempo de seu pai e de seu irmão,
especialmente o excesso de extorquir multas em dinheiro dos vizinhos
de qualquer lugar em conseqüência de homicídios perpetrados nele,
sobretudo sendo conhecido o autor do assassinio». Esta atribuição iria
ganhar vulto com os juízes de [ora, com o atendimento nas cortes aos
agravos dos povos, com a ação dos corregedores, com o placito regio
«nenhumas bulas nem letras pontificiais serão publicads em Portugal
sem consentimento meu» Pedro I com as confirmações, meio de
verificar a procedência e normalidade dos títulos de propriedade,
senhorio, isenções, com as cartas de seguro que intervinham até na
justiça canônica ensejando o livre curso das apelações interpostas e
evitando excomunhões inescrupulosas...
Lembra Ivan Lins no seu precioso estudo sobre Antonio Vieira, que
este «antecipando-se de quase dois séculos ao fundador da Sociologia,»
proclamava no Sermão de Quarta-Feira de Cinza, pregado em Roma
no ano de 1672:
«Se queréis ver o futuro, lede as histórias e olhai para
o passado: se queréis ver o passado, lede as profecias, e olhai
para o futuro. E quem quiser ver o presente para onde há
de olhar?o o disse Salomão, mas eu o direi. Digo que
olhe juntamente para um e para outro espelho. Olhai para
o passado e para o futuro, e veréis o presente. A razão ou
conseqüência é manifesta. Se no passado se vê o futuro e no
futuro se vê o passado, segue-se que no passado e no futuro
se vê o presente, porque o presente é o futuro do passado
e o mesmo presente é o passado do futuro».
A Historia do Direito Luso-Brasileiro habilitará o jurista, dentro
da realidade sentida ou pressentida, a sintonizar as normas que espe-
lhem essa realidade.
Ela é aquilo que Marcelo Caetano, mestre também nessa matéria,
define com esta precisão e clareza:
«Encontra-se a cadeira de História do Direito Português
no primeiro ano dos estudos jurídicos. Quer isso dizer que
se pretende com ela facilitar a introdução do estudante no
mundo do Direito: é uma cadeira propedêutica, de intenção
eminentemente formativa, destinada à educação do futuro
jurista. »
... «O que interessa, pois, é agrupar os fatos jurídicos
nas instituições características de cada época e procurar
compreendê-los e explicá-los de acordo com os modos de ser
e de viver dos homens dessa época, destacando embora as
constantes que possam revelar a identidade da natureza
humana e a marca do caráter nacional».
(Lições de História de Direito Português o grifo é
nosso).
Exemplifiquemos: João Mendes de Almeida Junior, em seuo
proveitoso O Processo Criminal Brasileiro, invoca o capítulo XXI do
Deuteronomio. «Quando era achado o cadáver de um homem
assassinado, sem que se soubesse quem foi o assassino, iam os anciãos
e os juízes ao lugar onde estava o cadáver, mediam a distância daí às
cidades do contorno; e os anciãos da cidade mais vizinha, tomando uma
novilha aindao posta ao jugo nem ao arado, cortavam-lhe o pescoço.
Chegando os sacerdotes, por cuja sentença se determinava tôda a causa,
os anicãos da dita cidade vizinha, perante eles, levando as suas mãos
sobre a novilha degolada, declaravam solenemente que suas mãoso
foram as que derramaram o sangue do assassinado, nem os seus olhos
viram quem o derramou.»
O Tempo carreando civilizações e culturas, nos faz encontrar em
Portugal no ano de 1380, nos Foros de S. Martinho de Mouro
(Inéditos, vol. IV), essa norma de conduta já com outro aspecto:
Todo homê que acharem morto no dito julgado de morte
foccedanha, e nom fouberem quem no matou, penhorará o
moordomo os que moram nas tres aldeyas mays chegadas
darredor, por trinta maravedís de coomha, e fe fouberem o
matador, e ouver per hu pague a coomha, nom feerem as ditas
tres aldeyas penhoradas, nem conftrangudas.
Manda o corregedor, que fe guarde feu cuftume maao,
poys he antigo, porque efeto pode feer mays tofte defcoberto
o malfeytor.
No Elucidario de Santa Rosa Viterbo lá está, igualmente, essa lei
costumeira:
Em todos os nossos Forais antigos era o Omizio uma das
coimas que se nunca omitia. Do que aleivosamente tirou a
vida do seu proximo. No aro de Lamego era costume, que
achando-se homem, ou mulher mortos, sem se saber o seu
agressor: a terra, ou lugar mais vizinho, era obrigado a pagar
de Coima ao Mordomo trinta maravedís, ou provar quem o
matou, ou porque modo, e de que sorte morreu.
El Rey D. Afonso IV abolió este costume nas suas
primeiras cortes.
O jurista que acompanha e analisa os dados da história depois de
sentir essa reação dos hebreus na sua forma preponderantemente
religiosa vai surpreendê-la em Portugal, já com mais realismo e
substância prática, como elemento de evolução da justiça. Observe-se
que a essa época, com a erosão que se dava na justiça particular, o
Rei, encarnação do Estado, já se sentia com autoridade para abolir esse
costume. como assinalamos e cremos tê-lo demonstrado em Carra de
Segurança, é no reinado de Afonso IV que a auto tutela (direito de
represália) cede lugar à tutela pública, àquela em que tôda a sociedade
tem empenho na repressão e prevenção dos atos que a vulneram.
Os juízos de Deus, prova do fogo, prova da água, o duelo etc...
vingaram na Baixa Idade Média e, aqui e ali, na Alta. Compreendemos
que isso tenha acontecido em Portugal quando tomamos conhecimento
do medianido. Que era, que representava o medianido?
Já falamos na singular coesão que o imperativo da própria
conservação forçava os concelhos a manter. Os apelidos, previstos
expressamente nas Ordenações, com sanções pecuniárias para os que
o acudissem ao interesse de todos nos momentos de perigo e com
umi agravação muito severa aos que usassem, naquela emergência de
expressão diversa de aqui del rey (o Poder Real se ampliava, se
impunha, e, psicologicamente zelava por si mesma em detalhes de grande
significado moral como esse...) os apelidos,o dessa coesão prova
bem válida e expressiva.
Herculano a propósito dos juízos de Deus esclarece que «nas causas
crin.es entre habitantes de diversos concelhos, que se decidiam nos
medianidos, achamos vestígios do combate judicial, e já também notamos
que o forai tipo d'Évora estabelecia em regra, nessa hipótese, a
alternativa do repto ou da prova testemunhai.»
Sobre a influência dos medianidos nas ordalías, conferindo a estas
maior resistência no tempo, ainda Herculano faz ver que eram «remédio
eficaz para resolver muitas dificuldades, e até garantia admirável
considerados em relação ao sistema jurisdicional dos grêmios, mas que,
avaliados sob outro aspecto, contribuiam por certo para radicar as
provas bárbaras dos juízos de Deus, que obviamente deviam ser
preferidos naqueles tribunais mistos, para onde tanto os magistrados
como os jurados levavam prevenções e afeições de espírito da localidade,
e onde, portanto, os acordos da razão fria e imparcial seriam difíceis.»
A necessidade da compreensão histórica na formação do jurista
visa à harmonia da Lei com o Direito. O problema ou o conflito
começa na verdade elementar,o lùcidamente lembrada e desenvolvida
por Jean Cruet: o Direito brota da Vida e a tem de refletir. A Lei,
por mais perfeita, é uma parada do Direito. Daí instituições que
complementam essa omissão ou carência, como o júri, cujas raízesm
deo longe e abrangem os homens bons dos concelhos portugueses. ..
Os jurados sentem o Direito porque vivem a vida do homem comum,
no cotidiano da existência humana. Os juízes profissinais, juízes toga-
dos, conhecem o Direito através da leitura da Doutrina ou dos julgados
dos tribunais e, por isso, também correm o risco de pronunciar justiça
hirta e fria. Muitas vêzes a sensação da Verdade vale mais do que o
seu aparente conhecimento.
Temos um conceito, uma forma de sentir a importância da
História... Que é cenestesia ? Conjunto de sensações pelas quais
tomamos ciência do nosso ser como existência individual.
Os livros consultados revelam a mesma dificuldade no definir.
Cenestesia está para além dos sentidos, excede-os, supera-os.
Sentimento vago que temos do nosso ser diz mestre Laudelino
Freire independentemente da indicação dos sentidos.
Pois bem, para nós, assim como há a cenestesia, essa reação que
independe dos sentidos para que nos sintamos como indivíduos no mun-
do exterior e interior, a História, a História, na sua integral expressão,
conteúdo e alcance, é a Cenestesia da Humanidade. Possibilita a esta
se sentir como um Todo. Um Todo no Tempo e no Espaço.
O DIREITO E A LEI
como preliminar e síntese do Direito na Europa, vale a pena
divulgar aqui trecho de uma conferência de José Hermano Saraiva,
A Lei e o Direito, Lisboa 1967:
«5.o foi pela força do hábito que dei primazia ao
argumento histórico; é que poucas vêzes a lição da história se
reveste deo instrutiva eo flagrante oportunidade.
Pretendo referir-me, especialmente, ao processo de
formação do direito europeu.
Sabe-se como, até ao século XII, o direito se caracterizava
pelos costumes locais, pelos privilégios e pelas exceções.
Populações de sangues e usanças bárbaras diferentes
tinham-se instalado nas antigas províncias do império; as suas
instituições jurídicas eram em grande parte as regras
costumeiras; no direito público coexistiam farrapos adulterados
do direito clássico, influências do direito canônico, regras do
legislador nacional. Cada classe tinha o seu estatuto
direitos do nobre, direitos do clero, direitos da cidade, direitos
dos mesteres, direitos foraleiros. Em muitos territórios o
arbítrio do senhor da terra era o único direito. O solo
europeu na expressiva frase do Professor Marcelo Caetano
era um imenso «mosaico, em que cada pedra correspondia
ao particularismo de certo regime jurídico. Esta situação
adequava-se a uma sociedade de economia fechada, onde o
comércio, o crédito, a moeda e a circulação das riquezaso
passavam de uma fase embrionária.
com as cruzadas, as condições de vida alteraram-se
completamente. O Levante e o Poente, a Itália e a Flandres
estabeleceram correntes de comércio ativo. Cresceu ràpida-
mente a riqueza; as cidades extravazaram dos antigos muros;
aumentaram a cultura, a técnica e as exigências dos homens.»
Vem, então, o período de influência do direito comum. O Rei
di"põe de autoridade e força para legislar, e, como observa Nuno
Espinosa, o faz com abundância a que nem sempre corresponde um
efetivo conhecimento, por parte dos povos, de qual a norma vigente.
Surgiram, tinham de aparecer, as Ordenações, compilação geral,
que comenta Pedro Martins «estão longe de resumir e representar as
leis gerais da monarquia nas épocas que precederam a sua redação. »
Para nós, de hoje, é pitoresca, a forma por que o Rei se situa, na
parte final das Ordenações Afonsinas:
Foi acabada esta obra na villa de Arrude, aos 28 de
julho de 1446, ano de Nosso Senhor Jesus Cristo, Dom
Affonso, o Quinto.
E se aos entendidos a dita obrao parecer assim bem
e estudiosamente pensada e composta, comoo alto feito e
o grande substância exigia, culpem e repreendam o dito
Doutor (Ruy Fernandes) que foi dela o compilador e principal
obrador; e d'outra guifa feja dado louvor e gloria ao Todo
Poderoso Nosso Senhor DÉOS, que sem a sua graça e ajuda
obra alguma, de mérito, pode ser trazida à boa perfeição.
Ergo feja El Louvado para todo e sempre. Amém.»
Essa legislação era um misto de superstição e desigualdade.
A constante consistia na graveza dos casos e na qualidade das
pessoas.
C. Assis Ribeiro em sua História do Direito Penal Brasileiro, frisa
que «todos os códigos naqueles tempos elaborados, evidenciam
expressamente a íntima união da Religião com o Estado e, outrossim,
as desigualdades nos julgamentos de acordo com as classes. Todos
conferem aos juízes arbítrio despótico e todoso racistas. Maso
devemos criticar o direito passado exclusivamente à luz das doutrinas
coTitemporâneas.
Cumpre-nos compreendê-lo. Êle é um vivo sentimento da reali-
dade de um período histórico.o estamos desligados dele, como nos
adverte o método aplicado ao estudo da história. Porque nele está a
consciência jurídica de nossos antepassados.
Já observou alguém, que nas instituições humanas, nada é subitáneo.
Eis porque urge compreender as denominadas «terríveis ordenações
«indicando-lhes as causas e os efeitos. »
Nas Ordenações Filipinas, do regedor da Casa da Suplicação,
achamos o modelo ou aspiração do verdadeiro juiz:
deve o Regedor dela ter as qualidades que para o cargo de
tanta confiança e autoridade se requerem. Pelo que se deve
sempre procurar, que seja homem Fidalgo, de limpo sangue,
de sã consciência, prudente, e de muita autoridade, e letrado,
ser possível; e sobretudoo inteiro que sem respeito de
amor, ódio ou perturbação outra do ânimo possa a todos
guardar justiça igualmente.
E assim deve temperar a severidade, que seu cargo pede,
com paciência e brandura no ouvir as partes, que os homens
de baixo estado, e pessoas miseráveis achem nele fácil e gra-
cioso acolhimento, com que sem pejo o vejam e lhe requeiram
sua justiça, para que suas causas seo percam ao desam-
paro, mas hajam bom e breve despacho.
Havia o juramento perante o Chanceler Mor. Também um sacer-
dote, que todos os dias pela manhã diga Missa no Oratório da Relação,
antes de se começar o despacho.
Julgar é, realmente, uma função que excede tanto a condição
humana que assim como nos juízos de Deus os homens pensavam
que colhiam as manifestações divinas para bem decidir, um sacerdote,
uma oração na Santa Capela do Palais em Paris ou no Oratório da
Relação de Portugal, é sempre, em essência, a mesma confissão implícita
do receio ou da impossibilidade de fazer justiça.
A MORAL NAS ORDENAÇÕES
A sociedade medieval portuguesa, afeita por circunstâncias de sua
sedimentação à violência, havia de se mostrar rude no comportamento
sexual. Herculano, Theofilo Braga, Gama Barros, todos os historia-
dores, apresentam fatos de uma brutalidade quase inacreditável. A fúria
de sobreviver acarretava e promovia todos os excessos. Some-se a essa
realidade de ordem social os elementos de natureza racial, caldeamento
de tantos povos, culminando com as ardências mouras.
Previam as Ordenações o crime dos que praticam sodomia com
alimárias, decorrência evidente da falta de mulher, comum até hoje, em
lugares ermos e abandonados.
Colhe aqui lembrar, a propósito de violência, que Herculano con-
fere particular atenção ao crime em que, a seu ver, ela mais se manifesta,
expressamente intitulado merdimbueca. como ato de vingança era o
que de mais torpe se podia executar. «Era aquela a máxima afronta
informa Herculano e por isso considerada como ação altamente
criminosa. O nosso povo, nos ímpetos de cólera, ainda hoje usa com
freqüência de uma frase que recorda aquele mau hábito de outros
tempos. Dar com a lama na cara. A interpretação literal, que parece
deveria ser intromissão, repugna ao senso comum, e em muitos casos
como no forai de Anciães se conhece que a ação era às vêzes mais
violenta, à vista da frase que aí se emprega: «siquis home per maia
volúntate dederit cum m. . . in vultu hominis, etc.»
Dois anos de África sendo homem, e de internação em Castro
Marim para mulher, era a sanção para «homem que se vestir em trajos
de mulher ou mulher em trajos de homem, e dos que trazem máscara»
figura criminal em que, sentimos, a falsa identidade podia igualmente
ser o efeito da distorsão sexual.
Aqui a desigualdade de tratamento vai beneficiar um representante
do poder judiciário, na casuística da previsão legal. Do que matou sua
mulher pola achar em adulterio. » Achando o homem casado sua mulher
em adultério licitamente poderá matar, assim a ela como o adultero,
salvo se o maridor peão e o adultero Fidalgo ou nosso Desembargador
ou pessoa de maior qualidade. Porém quando matasse alguma das
sobreditas pessoas, achando-a com sua mulher em adultério,o mor-
rerá por isso, mas será degredado para África com pregão na audiência
pe'o tempo, que aos Julgadores bem parecer, segundo a pessoa que
matar,o passando de três anos».
Que acontecia a quem fosse surpreendido dormindo com mulher
casada ?
«Mandamos que o homem que dormir com mulher casada
e que em fama de casada estiver, morra por ello.
. .E tôda mulher que fizer adultério a seu marido, morra
por isso. E aquelle com que ela se for, morra por isso, sem
mais no-lo fazerem saber. »
Excepcionados, já vimos, o Fidalgo ou o Desembar-
gador. ..
E se o marido consentisse que a mulher tivesse relações com
outsrm ? Resolve assim o Código Filipino:
«E sendo provado que algum homem consentio a sua
mulher, que lhe fizesse adultério, serão êle e ela acontados com
senhas capellas de cornos, e degredados para o Brazil.»
A legislação tinha de ser casuística. Esta hipótese, por exemplo,
Ordenação Afonsina:
«E porque algumas vezes acontece que o marido acusa
sua mulher de adulterio e aquele que com ela pecou e depois
se reconcilia com a mulher e perdoa-lhe o dito pecado e deixa
o feito do adulterio sendo apreciado pela Justiça a qual pro-
cede contra esse segundo o rigor do Direito e outras vezes lhe
perdoa requerendo à Jusitça que o solte; e porque segundo
Direito o maridoo pode perdoar o adultero senão somente
a adultera em favor do matrimonio acontecia algumas vezes
ficar a adultera reconciliada com o marido e ser feita justiça
ao adultero, o que parecia ao povo cousa de escandalo; por
tanto o Rey meu Senhor e Pai, segundo ouvimos por infor-
mação algumas vezes mandou, que quando o marido se re-
conciliava com a mulher e perdoava ao adultero, fosse este
relevado da morte e degredado para Ceuta por sete anos.»
Do texto acima merece destaque a parte em que a legislação pro-
clama o marido não pode perdoar o adúltero senão somente a adúltera
em /avor do matrimônio Eis um elemento que impõe atenção parti-
cular ao analista da transformação da justiça particular para pública em
Portugal, e no qual a constante do interesse especial pela sociedade fa-
miliar está patente. como se debruça, de forma interessantísima nas
varadas, intrare in fustem, entrar em varas, de que se origina a ex-
pressão comum ainda hoje, em Portugal e no Brasil, entrar aos paus,
pena essa que em determinadas regiões era aplicada aos pequenos deli-
tos, lesões corporais, ofensas leves físicas e morais (injúrias causadas
poi pequenas desavenças de vizinhagem) e que mereceu de Herculano
páginaso curiosas e de Paulo Merêa um ensaio a que modestamente
deu o nome de achêga para o curso de História de Direito Português,
na Universidade de Coimbra, Composição Corporal. Em respeito à
família o juiz, alcaide ou seu representante, dirigia-se à casa da infra-
tora, experimentava na presença do marido e numa almofada as varas,
em batida certa, nem a mais nem a menos e entregava essas varas o
marido para que este executasse na esposa a sentença. Se, por acaso,
o marido ao cumprir a decisão, o fazia batendo fora da justa medida,
mostrando-se compassivo ou apiedado, era êle quem entrava aos paus.. .
Sendo que, lembra Merêa, no caso de ser a acusada criatura de
qualidade podia ela transferir a outrem a condição passiva, na recepção
das varadas...
Ainda com referência aos crimes sexuais dessa época, há o que ver
na Crônica de D. Pedro I de Fernão Lopes.
No capítulo VII como el rei quisera meter um bispo a tormento
porque dormia com uma mulher casada.
Esse mesmo monarca, Pedro o Justiceiro, o vingador, que fazia
trigosa justiça, temperamento em que incidiu o trauma passional de Inés
de Castro e do assassinato desta, no capítulo IX do livro de Fernão
Lopes, vemos em circunstâncias que podem hoje espantar mas que cor-
respondiam à atmosfera e mentalidade imperantes. como el rei
mandou queimar a mulher de Afonso André e doutras justiças que
mandou fazer.
... «e foi-se a el rei por se queixar do que lhe feito havia.
E el rei, como o vio, antes que lhe ele falasse, pediu-lhe alvís-
saras do que mandara fazer, dizendo que já o tinha vingado
da aleivosa de sua mulher e do que lhe punha os cornos, e
que, melhor sabia ele quem ela era, que ele».
O crime de estupro, sem perdão, também punido com morte.
Roussada chamava-se a vítima. Processualmente a lei, resguardando a
prova da verdade e a possível inocência do acusado, especificava nas
Ordenações os cinco sinais que tinham de coexistir. A forçada tinha
que sair gritando logo vede que me Fez Fuan e mostrar que es-
tava carpida, e ser logo abrigada na casa do juiz ou do homem bom.
A propósito, ainda Fernão Lopes informa, no livro citado:
«Que diremos de Maria Roussada, mulher casada com seu
marido, que dormira com ela por força, a que então chamavam
roussar, por a qual cousa ele merecia morte ?
E tendo já dela filhos e filhas, viviam ambos em grande
benquerença. E ouvindo-a el rei chamar por tal nome, per-
guntou porque lho chamavam: e soube da guisa como tudo
fora e que se avieram que casassem ambos, por tal feitoo
vir mais à praça. El rei, por cumprir justiça, mandou-o en-
forcar; e, atrás dele, iam a mulher e os filhos carpindo.»
Note-se que no crime de sedução, do que dorme com mulher virgem
ou viuva honesta por sua vontade, a esses a lei manda que casem e o
casamento faz desaparecer o crime.
O respeito e a moral administrativa também estavam previstos em
proibição e cominação severa para atos como do oficial do Rei que dorme
com mulher que perante ele requer. «Todo o Desembargador ou Oficial
de Justiça, e outro algum nosso oficial, assim da Corte como de nossos
Reinos, Advogado, Procurador, Escrivão, Porteiro, Meirinho, que
dormir com mulher que demanda, ou desembargo requeira perante ele
se for leigo perca o Ofício e mais seja degredado para a Africa por um
ano. E se for Clérigo perca todo que des tiver».
Ssse dispositivo faia em Clérigo, estão eles, os religiosos, com uma
freqüência impressionante, na casuística prescrição das Ordenações.
A danação, os coitos desenfreados, os costumes maaos, se escancaram à
simples leitura dos enunciados legislativos. O jeito era tentar frear
esses males, de forma oblíqua, punindo as barregãs dos clérigos pois
estes estavam imunes à justiça real. Essa imunidade foi de tal ordem
que Capistrano de Abreu refere um caso na Bahia, no século XVIII,
de quase revolução porque o oficial de justiça quis cumprir o mandato
e o acusado se homiziara em local religioso. Ainda Capistrano, em
assunto dessa natureza, lembra que desde muito antes, por efeito do
respeito e mêdo à força das excomunhões e penetração da justiça canô-
nica, os meirinhos antes de procederem às intimações ou execuções dos
mandados, examinavam cuidadosamente a cabeça daqueles em que
incidia a !ei. à procura preliminarmente e prudentemente de tonsura...
Ora, esses fatoso muito eloqüentes quando a gente se reporta à carta
de seguro, como espusemos anteriormente, concedida pelo Rei para
neutralizar excomunhão e determinar na justiça canônica o prossegui-
mento dos recursos interpostos para Roma. .., nesse ponto, parece
que a força moral do Rei superava o aspecto negativo do caso ameaçado
de distorsões na justiça da Igreja.
Gama Barros, em sua monumental História da Administração-
blica em Portugal, volume II, 2* edição, dedica um capítulo que im-
pressiona estado moral do clero em geral.
«No principio do sécuIo XV a dissolução do clero era a
mesma. Reunindo D. João I as cortes em Braga, os pro-
curadores dos concelhos representaram que muitos clérigos e
religiosos tinham barregãs em suas casas à vista dos prelados
e de todo povo, trazendo-as «vestidas e guarnidas também
niilhor que os leigos trazem as suas molheres» e por esta razão
muitas donzellas deixavam de tomar marido legítimo e junta-
vam-se com clérigos, com frades e freires ou com outras pessoas
religiosas.»
Certo é que o poder real já ganhara tamanha consistência que os
próprios prelados «julgavamo grande a imoralidade do clero, queo
viam outro meio de atalhar o escândalo senão o castigo que el rei im-
puzcsse às barregãs porque, diziam elles, por maiores penas que se ful-
minem contra os clérigos e religiosos,o deixarão de ter concubinas.»
O Direito Criminal será sempre um campo de pesquisa, que a
História ampliará e aprofundará cada vez mais.
Porque os preceitos que visam prevenir e reprimir o Crime estão
condicionados ao conhecimento do Homem.
Vieira no sermão 27* do Rosário dá uma oportuna idéia da extrema
dificuldade para esse conhecimento:
«os homensoo feitos de uma só peça como os anjos
e os brutos. Os Anjos e os brutos (para que nos explique-
mos assim)o inteiriços; o Anjo porque é todo espírito; o
Bruto porque todo é corpo.»
AS ESCOLAS DE DIREITO NA FORMAÇÃO
DA CULTURA BRASILEIRA
ARTHUR CESAR FERREIRA REIS
O ONZE DE AGÓSTO E A CULTURA BRASILEIRA
1 A cultura brasileira em suas raízes mais profundas.
2 Coimbra na formação dos quadros brasileiros.
3 A criação dos cursos jurídicos na linha das mudanças que se efe-
tuam no Brasil para ajustá-lo aos novos tempos, criados pela
independência.
4 O iluminismo brasileiro foi uma resultante dos cursos jurídicos
ou já vinha sendo uma resultante de outra motivação vinculada
às idéias que nos chegavam, via de Portugal, desde o século
XVIII ?
5 No decorrer do Império, o que significou a contribuição dos cursos
jurídicos no processo de desenvolvimento político, social e cultural
do Brasil.
A cultura brasileira tem suas raízes em três continentes: América
África e Europa. Resulta, portanto, de culturas as mais variadas, mul-
tiformes, ricas em conteúdo e em valores e cores. Resulta do condi-
cionamento que o meio físico e as naturezas espirituais e materiais de
etnias diversas permitiram. Meio físico também o mais variado, como
etnias igualmente diversas, diferentes, ricas e algumas profundamente
exóticas. como conseqüência imediata, teremos de considerar que
nossa culturao é, assim, uma cultura autônoma, mas, como produto
de um imenso conflito, uma cultura mestiça.
Dos que aqui se encontravam à chegada dos europeus peninsulares,
ibéricos, sabemos muito e ao mesmo tempo pouco. Sabemos muito
porque os antropólogos e os lingüistas realizaram pesquisa intensa que
permitiu o conhecimento dos grupos tribais em muitas das respectivas
peculiaridades. Sim, porque esses mesmos grupos tribaiso eram
todos integrantes de uma única família humana ou social. Eram dis-
tintos, conflitantes, distanciados entre si, como sucedia, aliás, na própria
Europa, de etnias e culturas variadas diferentes, Europa que procedia,
desde os fins do século XV, aos descobrimentos de novos mundos e
novas humanidades, desse modo completando a façanha que começara
nas Cruzadas e nos contatos mais distantes e difíceis com o Oriente
mais velho, mas só agora sabido em sua realidade admirável.
A contribuição dos grupos tribais americanos queo haviam, no
espaço onde seria construído este país, realizado a aventura política de
um império, como ocorria em outras regiões das Américas, teria sido
uma contribuição que se registra na nomenclatura geográfica, nas de-
nominações da natureza, em suas peculiaridades, nos nomes de pessoas,
na alimentação, nos tipos físicos, em certos usos e costumes e compor-
tamentos sociais que só hoje começam a ser devidamente constatados
para explicar o que nos define e constitui muito de nossa melhor feição
psicológica. É de assinalar que a esse gentio primitivo em suas mani-
festações, devemos, ou antes, devem os que vieram criar o Brasil como
nação, a identificação do território como natureza e como mundo físico.
Sem eles, muito pouco ou muito mais vagarosamente teria sido possível
inventariar a terra, percorrendo-a e possuindo-a sem as dificuldades
que foram sendo vencidas com relativa facilidade. Sem eles, a socie-
dade solidáriao poderia ter funcionado com a velocidade e a profun-
didade por que se elaborou e realizou com sua presença e sua atuação
constante e decisiva o domínio do espaço e a formulação de sua economia
e de sua ação construtiva material.
Os que chegaram da África forçados, na imigração violenta que
os negreiros promoveram sob a tese de que se fazia necessária a impor-
tação e o movimento migratório para suprir falhas de mão-de-obra e
sustentar a economia tropical, que dava fundamento à relação de troca,
que se operava com a Europa, de mercados ávidos pela produção tro-
pical, produção que os portugueses mantinha incessantemente pela utili-
zação de seus mundos ultramarinos, montados em três continentes, esses
que chegavam sem liberdade e sem direito à esperança de se virem
considerados membros da espécie humana, trouxeram igualmente uma
contribuição que ninguém pode ignorar. Foi uma contribuição que
o se estringiu ao trabalho no emgenho de plantação de cana e fabrica-
ção de açúcar, na fazenda onde se cultivava o tabaco e o algodão ou
nas áreas da mineração. Porque se ampliou imensamente, como a do
indígena americano, no enriquecimento das dietas alimentares, nos cos-
tumes e usos diários, no vocabulário da língua imperial, que se impuzerà
como conseqüência da presença do europeu, que se fazia de senhor e
de legítimo dono do espaço como homem político, e como na contribuição
daqueles, na própria sociedade mestiça que recebeu um contingente
gigantesco, contingente que, inclusive, nos assegurou certa doçura, certa
meiguice que é característica positiva de nossa presença como parte da
espécie humana.
Por fim os ibéricos de Portugal, por si também resultantes de uma
ampla e centenária pluralização de culturas, étnicas, a queo foram
estranhos, em tempos recuados de sua formação histórica, elementos
escuros, trazidos à península na época das invasões árabes. Esses
transferiram-nos a fórmula política do Estado, com todo seu cerimonial,
sua estrutura e sua aparelhagem. E nisso estava a superioridade por
que se apresentavam e lhes autorizou, com a permanência, a afirmação
da superioridade de sua cultura. O lineamento de nossas raízes polí-
ticas encontra neles, no que nos legaram, todo o conteúdo que nosz
Povo, Nação e Estado. E como tal, a segurança e a experiência, cons-
tante de instituições novas, que nos incorporaram às fórmulas e insti-
tuições que davam conteúdo à vida que se vivia na Europa dos grandes
impérios, dos códigos, das universidades, das regras de legitimidade
da própria existência pela contextura dos textos da lei escrita.
A ordem política foi-nos, assim, imposta ou a ela nos confinamos
através do sistema institucional de que os portugueses foram os portado-
res. Esse sistema institucional, à época dos primeiros contatos com
o que viria a constituir o Brasil na imensidade geográfica que o faz
continente, ao mesmo tempo que o define também como arquipélago,
o diferia dos demais em vigor na Europa. Havia normas e regras
absolutamente idênticas em tôdas as unidades que, desde o medievo,
compunham a família política européia. O velho direito romano es-
tendera-se e servira de fonte maior a todo o regime político legal adota-
do. A contribuição germânicao excedera em nenhum momento a
contribuição de Roma. Se mais tarde Napoleão se orgulhava do-
digo que o faria imortal, os romanos, que haviam elaborado os princípios
jurídicos fundamentais e dentro dos quais tôda a sociedade européia
se afirmara, teriam razão de sentir o mesmo orgulho. Portugal pautara-
se e disciplinara-se de acordo com as lições que Roma distribuíra. A
própria maior instituição cultural, representada no idioma, que operava
a unificação do país em crescimento territorial, era uma resultante da
romanização, o rústico falar dos soldados, mercadores, funcionários, co-
lonos eo o falar acadêmico dos letrados que criavam os valores lite-
rários .
Durante trezentos anos, os que aqui nasceram ou os que aqui vieram
para partilhar conosco das venturas e desventuras do dia a dia, estiveram
submetidos à regulamentação legal do direito português. Esse direito
elaborava-se continuadamente. Tomara corpo na codificação Afonsi-
na, Manuelina, e por fim Felipina. Os juristas que lhes haviam dado
forma escrita, eram juristas da mesma estirpe dos que, em outros países,
criavam o direito escrito. Formavam-se nos Estados Gerais de Coim-
bra. Lá aprendiam as letras jurídicas ao lado dos que aprendiam as
lições de teologia, das humanidades, da filosofia, da ciência médica.
O experimentalismo no ensinoo entrara ainda na cogitação de mes-
tres, de discípulos nem dos orientadores do magistério, os responsáveis
pelo funcionamento da Universidade. Até lá iam os nossos, os que
aqui nasciam, para o ordenamento legal.o dispúnhamos como até
bem pouco sucedia em Angola e Moçambique, de Estados Gerais que
seriam o embrião da Universidade. Esta só nos chegaria depois de
experiências atrevidas, mas insuficientes, no Paraná e no Amazonas,
cem as vésperas do primeiro centenário da independência política.
Tôda a formação da inteligência brasileira fêz-se, em conseqüência,
na Europa: em Coimbra e em Montpelier. Sabemos hoje, através de
investigações de eruditos, brasileiros ou não, os nomes dos que fre-
qüentaram os dois centros de altos estudos. Os bacharéis de Coimbra
nem todos voltaram ao Brasil. Muitos dêles ficaram em Portugal,
principalmente no século XVIII, quando as idéias reformistas começa-
vam a penetrar no Reino, pondo fim ao distanciamento em que êle
vivera do que, na Europa, se estava realizando no campo da cultura.
Os "estrangeirados" que chegavam ou influíam na elaboração da nova
consciência, promoviam uma retomada de contato com o pensamento
europeu, restituindo a Portugal aquela posição ímpar que desfrutara
no século XVI, fazendo os descobrimentos de mares, terras, humanida-
des, naturezas e delas dando ao mundo a informação que se refletia
numa literatura exótica, fundamental na reformulação do espírito eu-
ropeu, que dessa forma reajustava os princípios do Renascimento, asse-
gurando-lhe seiva, queo era mais aquela restrita ao classicismo em
que se firmara para eclodir.
As reações que se operavam em Portugalo constituíam, então,
um movimento isolado na península. Sucedia o mesmo na Espanha,
onde uma série de homens de pensamento reagia valentemente ao con-
servadorismo, denunciando a precariedade das instituições, o passado
comprometedor e que muitos pretendiam ainda defender, num reaciona-
rismo, como diríamos hoje,, realmente impressionante. A investida
contra todo esse processo rotineiro estava amadurecendo. E no caso
espanhol, atingira a própria área americana do império, através de socie-
dades que estudavam a terra, suas necessidades, suas peculiaridades e
seus anseios: as Sociedades Econômicas de Amigos dei Pais, de que
tinham fundado, em Espanha, mais de 70.
Em Portugal, seja no que nos ensinava Teófilo Braga, seja XiO
que nos dizem hoje Hernani Cidade e Silva Dias, o movimento tomava
alento. E desse movimento participava a inteligência brasileira. Ora
os nossos se mantinham na linha do conservadorismo, e isso era o mi-
nimo, ora já assumiam uma posição de autonomia de pensamento que,
seo poderia ter taxado de rebelde, revolucionário, subversivo, já
permitia descobrir que as gerações que formávamos ali estavam conta-
minadas das novidades que se importavam da França e da Inglaterra.
A preocupação que havia, em torno à problemática do Brasil as-
cendente, era visível. uma vasta literatura, meio pragmática, vinna
sendo elaborada sem tergiversações e com uma decidida preocupação
em saber o que, realmente, representávamos e poderíamos representar
mais tarde para a solução da problemática portuguesa e, quem sabe,
des próprios se ocorresse o qu já ocorria em terras americanas,
aquelas onde a colonização fora empresa britânica.
Entre 1772 e 1822, oitocentos e sessenta e seis brasileiros formaram-
se em Coimbra. Desses, quinhentos e sessenta e oito graduaram-se
cm Direito e os restantes em outros campos do saber humano, convindo
registrar que dos quinhentos e sessenta e oito bacharéis em leis, como
então se chamavam, duzentos e oitenta e um também se graduaram
em ciências naturais e matemáticas. A freqüência dos estudantes bra-
sileiros à Universidade era realmente ponderável. E vários dêles
vieram, posteriormente, a instalar-se na própria Universidade, servindo-a
como professores. No momento exato em que Sebastião José de Car-
valho e Melo iniciou a reforma universitária, inclusive introduzindo o
estudo experimental e montando os laboratórios e jardins botânicos e
zoológicos, as mesas operatórias, as chamadas aulas de anatomia, que
agora passavam a ter, ao invés de animais, pessoas humanas para a
aprendizagem dos alunos, apelou para um brasileiro, quez a reforma,
o famoso Dr. Francisco de Lemos de Faria Pereira Coutinho, queo
se arreceiou das reservas que se opunham, nem da rotina de muitos
que teve de afastar para queo entravassem as mudanças fulminantes
que comandou. Ao lado dele, outro brasileiro, Valente do Couto,
nascido em Macapá, na Amazônia, e a cujo cargo correu a reforma na
parte do ensino das matemáticas.
É certo que uma campanha desmedida se fizera ouvir. Os orato-
rianos acusavam os Jesuítas de espírito retrógrado. Domingos Maurí-
cio, o insigne mestre da Companhia de Jesus, já demonstrou a falta de
fundamento na acusação de que os Inacianos ignoravam as novidades
da época.o as admitiam, no entanto, em seu domínio, exercido
sobre o ensino médio e universitário. Rafael Bluteau e posteriormente
o agitado e atrevido José Antônio Verney, censurando o ensino como
se ministrava, pedindo as mudanças, nçgando qualquer sentido ao siste-
ma pedagógico em vigor, que eles reputavam responsável pela decadên-
cia nacional, uma vez queo poderia autorizar a formação dos quadros
de que a nação carecia para recompor-se e recuperar-se por seus próprios
recursos técnicos, serviam à caur^i da reforma que Pombal decretaria
com a energia que era a sua constante como homem de governo.
Os brasileiros constituíam a parcela mais dinâmica da vida intele-
tual dae pátria na oportunidade. O Arcadismo representava-se,
como riqueza de formas, pelos brasileiros, alguns dêles participantes da
Inconfidência Mineira. E de Portugal, chegavam solicitações às au-
toridades que governavam as Capitanias brasileiras para que as melhores
inteligências locais fossem remetidas ao Reino, a fim de cursarem a
Universidade. Lembro o caso de paraenses que, concluído o curso,
foram proibidos de regressar à Amazônia sob a alegação de que eram
necessários na península pelo muito que sabiam e pelo muito que po-
deriam servir, na metrópole, ao mesmo tempo que se reclamava a ida
de outros, daquele tipo, para aumentar o rendimento da Universidade
e melhorar os quadros administrativos europeus.
A exploração do Brasil, como a exploração da África, empresa
científica oficial, estava então atribuída a brasileiros. Bastará referir
dois nomes: Alexandre Rodrigues Ferreira e Lacerda e Almeida, cien-
tistas os dois, sagrados, no tempo, pela operosidade e pela alta com-
petência, de que se tornaram famosos, nas tarefas que executaram,
sendo ainda em nossos dias, merecedores de imensa admiração. A
geração brasileira integrava-se "de figuras do porte mental de José
Bonifácio de Andrada e Silva, João da Silva Feijó, Antônio Pires Ha
Silva Pontes, Francisco José de Lacerda e Almeida, Pizarro e Araújo,
Valente do Couto, Souza Caldas, Ferreira da Câmara, Francisco de
Melo Franco, José da Silva Lisboa, José de Sá Bitencourt Acioly, José
Vieira Couto, Manoel de Arruda Câmara, José Manoel de Siqueira.
Tal geração representava realmente a vitalidade da colônia, pois nela
se incluíam filhos de tôdas as regiões, desde os trechos de fronteira,
como eram os casos de Valente do Couto e Manoel de Siqueira, aquêle
de Macapá e este de Cuiabá, aos territórios interiores, como Ferreira
Bitencourt, Vieira Couto, do nordeste e ao sul, corno José Bonifácio
e Arruda Câmara, respectivamente deo Paulo e da Paraíba."
Quando, sob D. Maria, tentou-se destruir a obra de reforma nos
meios universitários, e nos círculos profissionais e governamentais,
presos à rotina, apavorados com as mudanças que o mundo experimen-
tava e lhes parecia o fim de tôda uma civilização que imaginava insubs-
tituível, preparava-se a resistência a tudo quanto representasse mudan-
ça, foi um brasileiro, Francisco de Melo Franco, no panfleto famoso,
"O Reino da Estupidez", quemz a crítica acerba a esse movimento
de retrocesso queo teve êxito maior porque já alvoreciam, realmente,
os novos dias que o sistema liberal iria implantar.
As academias literárias, que se montavam no Brasil, provocando
c que denominamos agora de "movimento academicista" e de que em
breve teremos os textos da produção, que se guardava inédita, e repre-
sentando a incorporação do Brasil, província ultramarina, às inquieta-
ções que abalavam as velhas estruturas espirituais e institucionais, valiam,
igualmente, como centros vivos de comunicabilidade, no decorrer da
qual já se formulavam idéias comprometedoras, anunciadoras de um
pensamento filiado à França e aos princípios de liberdade. A biblioteca
de cónego mineiro Luis Vieira da Silva, inconfidente,o revelava a
preocupação de um conhecimento que nao era mais aquele do passado
recente ?
Desembarcando no Rio de Janeiro, para fundar um novo Império,
D. João, Príncipe Regente, abriu perspectivas à inteligência brasileira
através de uma vasta série de atos que punham fim ao sistema colonia-
lista vigorante para graduar-nos num autêntico Estado soberano. As
perspectivas que se rasgavam podiam ser encontradas nos quadros dos
serviços públicos que se montavam, na aparelhagem administrativa que
se estabelecia, nos institutos novos que iam permitir que aqui mesmo
se fossem formando as elites regionais, que desse modoo careceriam
niais de ter de fazer a travessia do Atlântico para a diplomação ou o
enriquecimento cultural que, até então, só a metrópole européia concedia.
A fundação da Imprensa Regia, a impressão de dezenas de publi-
cações, que se principiara a editar, os debates que se abriram à volta
da própria problemática nacional, agora a propor-se em sua atualidade,
em sua gravidade e em suas peculiaridades, constituindo uma preocupa-
ção e uma atividade que se começava a criar, indicavam a existência
dos tempos novos que o Brasil experimentava, inclusive naquele esforço
por melhor conhecer-se que se ativou de maneira ponderável.
Os doutores de Coimbra tinham, assim, agora, maiores possibili-
dades de encarreirar-se.o se limitariam mais ao exercício da
magistratura regular e quantitativamente inexpressiva. Os Ministérios,
os serviços especializados das carreiras à conquista dos quais se lança-
vam e se organizavam os queo eram reinóis, compunham, ademais,
motivação para que se fosse elaborando um estado de consciência reno-
vado, capaz de levar a exigências, que se iam formulando e para cuja
solução o caminho seria a mudança radical, isto é, a soberania total,
de que já desfrutavam os Estados Unidos e o Haiti.
com a independência aquêles conhecimentos, adquiridos em Coim-
bra e, de certo modo alterados para ajustar-se às novidades do iluminis-
mo e da Grande Revolução, que se iniciara com os Enciclopedistas e os
economistas britânicos, todos lidos e sabidos entre nós, iam agora ser
postos em comprovação maior no que podiam representar para a formu-
lação de pensamento e de condições políticas que se deviam experimen-
tar. Os textos legais que se decretaram, inclusive a Constituição de
1824, por acasoo poderá servir a essa avaliação do que aquêles conhe-
cimentos e novidades haviam assegurado à inteligência brasileira? Lem-
bremos que a Constituição, seja no projeto que a Constituinteo soube
discutir com a necessaria velocidade, detendo-se em questões políticas
que a absorveram e autorizaram o golpe de D. Pedro, dissolvendo-a
e dispensando-a da elaboração do diploma fundamental do Império,
seja no código admirável que foi mandado vigorar depois da consulta
que se faz à nação por intermédio das Câmaras Municipais, que repre-
sentavam anseios e decisões populares, era fruto daquele saber acumu-
lado e bem digerido.o se improvisara o conhecimento. Êle viera pela
lição de mestres portugueses e de mestres franceses, insisto, lidos e
sabidos pelos que recebiam a incumbência de tornar efetivas as medidas
necessárias ao bem comum de uma nação que nascia.
Os juristas que vieram de Coimbra, portanto, os responsáveis pela
urdidura jurídica de nossos tempos heróicos. Se examinarmos os textos
legais que se estavam elaborando na mesma conjuntura nas demais
unidades que nasciam na América espanhola, a legislação brasileira
que sez por mãos e pela inteligência dos nossos, em nada desmerece
dos conhecimentos e da atualização desses conhecimentos que os nossos
possuíam. Estávamos em dia com as novidades democráticas e liberais
em pleno vigor pelo mundo afora. Corra-se, a propósito, tôda a série
de atos legais que se praticaram. Mesmo aqueles anteriores ao fun-
cionamento do Parlamento Nacional: fazem honra aos que os expediram
ou escreveram, com a particularidade de queo importavam em cópias
ou meras adaptações das novidades, atos que refletiam, inclusive,
a compreensão de queo poderíamos ter a tessitura jurídica em conflito
com a realidade, imposta pelas condições e peculiaridades do Brasil.
O sistema unitário, que adotamos, era o único implantável, capaz de
impedir a secessão. As limitações às Provínciaso podiam deixar
de ser mantidas, desse modo impedindo-se a proliferação das pequenas
pátrias. A própriao estendida às demais partes das Américas, como
fundamento do panamericanismo,o resulta também dessa formação
jurídica ?
Muito do que hoje em dia anda por, indicado como conquista
dos técnicos ou exigência do que se intitula a segurança nacional, já
entrara na cogitação dos juristas que formulavam o contexto legal do
país. Será suficiente registrar, como exemplificação, o que entendemos
hoje de chamar atestado de ideologia. Por isso mesmo é velho.o
se podia exercer cargo público sem apresentar a comprovação de que
aceitara a independência e jurara fidelidade ao regime e às instituições
vigentes. Os serviços públicos deviam ser estruturados de maneira
a constituírem, realmente, o instrumento essencial ao funcionamento do
Estado. uma comissão estudou a reformulação desses serviços, que
deveriam ter legislação adequada. Um órgão próprio, cuidaria da for-
mação de pessoal e da mecânica dos serviços oficiais. Os exemplos se-
riam quase infinitos. Será bastante examinar o cedulário que se expediu
e dá a justa medida de que os homens que criavam o Império na sua
estrutura jurídica tinham a noção exata de suas responsabilidades e,
mais que isso, a preparação essencial a que dessem boa conta üe seus
deveres.
As necessidades do país, no entanto,o se restringiam à elabora-
ção de seus textos legais. Fazia-se sentir a conveniência da formação
de suas elites, em quantidade e qualidade que permitisse a continuidade
da Pátria, através da ação de seus quadros de direção política e admi-
nistrativa. Os Seminários haviam dado excelente contribuição. Nas
Províncias e na própria Corte eles haviam assegurado a formação de
pessoal habilitado nas humanidades que se exigiam. Parlamentares,
presidentes de Província, diplomatas, servidores graduados tinham for-
mado a inteligência pragmática naqueles Seminários que funcionavam em
Belém,o Luis, Olinda, Salvador, Rio de Janeiro,o Paulo, Mariana.
Impunha-se a renovação com o estabelecimento de novos institutos de
ensino superior. As Escolas de Direito eram a necessidade mais visí-
vel. Compreende-se a exigência. Entendia-se que os homens que
traziam a formação jurídica dispunham de uma massa de conhecimentos
queo se encontravam nos que possuíam outros cursos superiores.
Está certo até certo ponto, portanto, a tese dos que sustentam que o
grande movimento de reforma, de atualização do Brasil, com a prepara-
ção de seus quadros dirigentes, de suas elites intelectuais, vai ser encon-
trado nas Escolas de Direito que, em 1827, se instalam em Olinda e em
o Paulo. Nelas, os filhos dos grandes proprietários rurais, ainda
os senhores das decisões políticas no País, iriam fazer sua formação,
para a direção dos negócios nacionais. E assim realmente ocorreu.
Porque daí em diante, os quadros brasileiros, as chamadas "elites" bra-
sileiras, que se recrutavam igualmente nos cursos médicos em funcio-
namento desde época muito mais distante,o precisavam mais realizar
a aventura de uma presença na Europa para freqüentar seus cursos
universitários. Coimbra deixaria de exercer aquela influência poderosa
do passado. Sua projeção declinava. Seu papel na vida brasileira
encerrava-se. Olinda eo Paulo substituíram-na, com larga margem
de sucesso, tanto mais quanto agorao se doutoravam apenas uns
tantos, mais felizes e de possibilidades menos limitadas. Agora, o
caminho estava franqueado a todos quantos aqui estivessem em condi-
ções de freqüentar os cursos de direito.
Os códigos e leis que seo atualizar ou elaborar já constituirão,
em conseqüência, uma resultante da atividade que se desenvolve nas
duas Academias.
Tôda uma geração de homens públicos recebeu ali, os elementos
culturais de queo carecer para o exercício,o apenas da profissão
de advogado ou o exercício da magistratura. Ali aprendem o essencial,
na época, para a compreensão da grave problemática que vai viver o
país, sob a forma imperial, o sistema unitário que, insistamos, era o
sistema necessário, no momento, para evitar a desagregação da unidade
e a adoção de fórmulas liberais como era do figurino ideològico da
¿poca.
É preciso, a esta altura destas notas históricas, lembrar que o Brasil
passava pela dramática experiência política de nação soberana. As
Províncias hesitavam, ou antes,o se comportavam corretamente na-
quela fase decisiva. A inexperiência de seus responsáveis pela causa
pública era visível. A caudilhagem, que marcava a hora na América
espanhola,o tivera vez no Brasil, é certo, mas nem por isso a prova
sangrenta deixara também de ocorrer. A Constituição fora gisada em
termos de consolidação da ordem interna e de consolidação da unidade.
Contra ela, no entanto, fazia-se a crítica negativa, sob a alegação de
que as liberdades que deviam ser concedidas às mesmas Províncias
haviam sido restringidas. Contra esse estado de espirito, os homens
nc podero se mostravam capazes de uma ação menos drástica ou Tiais
sensata. A solução da força fora empregada continuadamente. O
espírito públicoo se fazia sentir senão através da comoção militar,
a quartelada continuada, e das manifestações de rua dos que se apre-
sentavam como legítimos representantes daquelas inquietações.
As duas escolas de direito, organizadas com o objetivo da criação
de profissionais e, mais que isso, de estadistas, porque, na verdade,
essa foi função que as duas nunca deixaram de possuir, a da formação
de governantes, de diplomatas, e de parlamentares, nacionais ou pro-
vinciais, nos primeiros tempos realmenteo podiam proporcionar a
riqueza numérica suficiente para o preenchimento dos claros que se
constatavam. com o decorrer do tempo, todavia, essa riqueza passou
a existir e, com ela, o exame mais sereno, a análise menos dramática,
a solução mais humana e legal que se foi adotando para a problemática
brasileira. O que João Camilo de Oliveira Torres chama de «Demo-
cracia Coroada», ou seja, o funcionamento das instituições imperiais
em termos de ordem democrática, que foi senão uma conquista de que
as duas escolas foram responsáveis?
Textos legais da maior significação,o apenas para a ordem
jurídica e o prestígio dos bacharéis brasileiros de então, refletiam o
êxito das duas faculdades. Também a projeção no exterior ocorreu.
Porque foi graças ao espírito de ordem, espírito de ordem jurídica, que
o era uma constante nas demais nações, emergidas do regime colonial,
comos do Brasil, que o Brasil começou a ser a grande realidade
política de' que poude ufanar-se e explicaria a frase famosa do presiden-
te Paul, da Venezuela, ao saber do 15 de Novembro «acabou-se a
única república que havia na América.»
Os textos a que nos referimos eram o Código do Processo Criminal
do Império, o Código Criminal, o Código Comercial e o Regulamento
737. Pelo Código do Processo, fizera-se uma reformulação da vida
provincial através da reorganização judiciária, que implicara na refor-
mulação municipal. Os Conselhos do Governo, que funcionavam nas
Províncias, e mais tarde seriam substituídos pelas Assembléias Provin-
ciais, examinaram a aplicação do Código e, na execução que lhes fora
atribuída, procederam à revisão da estrutura municipal, extinguindo
municípios, criando municípios, criando comarcas, assentando uma ".ova
máquina administrativa. Na verdade, o Código complementava, a certos
aspectos, a própria Carta Constitucional de 1824.
A geração de juristas que elaborou tôda essa vasta e admirável
codificação sóo alcançou êxito no momento em que tentou o Código
Civil. Teixeira de Freitas acreditara que soara a hora de profundas
modificações na vida civil, e quem dizia vida civil dizia também vida
social. Ora, se assim era, como concordar em que se registrassem e
fixassem direitos de pessoas sobre outras pessoas, reconhecendo a umas
a condição de seres livres, membros de uma sociedade autônoma, senhora
de seus destinos e de sua conduta, e a outros seres também humanos,
e também membros da mesma família humana, negar-se a condição de
ser livre, capaz de conduzir-se eo podendo ser objeto de transação
mercantil, transferido em herança e incapacitado para o exercício de
qualquer ato que importasse em decisão própria ? Teixeira de Freitas
recusou dar ingresso no projeto de Código àqueles dispositivos, con-
trarios à dignidade humana. Sua filosofia de vida e sua consciência
de homem e de jurista, envolvido pelo movimento universal de libertação,
de combate ao sistema da escravidão,o lhe permitiam anuência às
exigências de uma sociedade que se estruturara, durante três séculos,
de maneira diferente eo podia abriro do que entendia fundado
cm princípios de bom direito, nem em aceitar a novidade, que importava
em destruir, com a instituição centenária, o suporte de uma economia
agrária, realizada para suprir mercados externos e promover o bem-estar
de uns poucos.
É tempo de lembrar que na feitura de tôda essa ordem ndmirável
que consagrou as instituições monárquicas e lhe abriu o crédito que
a nação lhe concedeu, houve uns tantos queo podem deixar de ser
mencionados pelos próprios nomes, como sejam: Bernardo Pereira de
Vasconcelos, Manoel Alves Branco, Paula Batista, Pimenta Bueno,
Cândido Mendes, Zacarias de Góis e Vasconcelos, Paulino Jose Soares
de Souza, Brás Florentino Henrique de Souza, Joaquim Rodrigues de
Souza. Pimenta Bueno, para destacar um, nao se sagrou apenas como
o intérprete sereno, objetivo, da Constituição imperial. Foi, igualmente
um analista e professor do direito administrativo eme se executava nas
Províncias ou era privativo dos Ministérios de Estado. Sua projeção
maior lhe veio, porém, de seu "Direito Internacional Privado", primeira
obra que, no gênero, se escreveu no continente, obra que resultava de
sua experiencia como jurista, como administrador, como diplomata, como
parlamentar, como chefe de gabinete, primeiro Ministro, portanto. Os
outros, ora fazendo a exegese dos diplomas que regulavam a ordem
jurídica nacional, ou tendo participado de sua elaboração, recorde-se
mais uma vez, haviam saído dos bancos acadêmicos de Olinda eo
Paulo.
com essa literatura jurídica e esses monumentos de saber e de
legislação ordenadora de um sistema político, escrevia-se, também, con-
tribuição efetiva do ensino das duas Academias a literatura política,
que se divulgava nas colunas dos periódicos, dos panfletos e dos livros
de maior tomo. Neles, a crítica a homens públicos, a instituições, a
sistemas, sofria a análise, contundente muitas vêzes. "Os Males do
Presente e as Esperanças do Futuro", de Tavares Bastos, como o seu
"Provincia",o estavam nessa linha de entendimento, de critica severa?
O livro de Américo Brasiliense acerca dos "Programas dos Partidos
e o Segundo Império", tambémo se inscrevia entre as obras de
análise da vida política nacional como fruto da experiência política de
seu autor mas, também, como fruto do que aprendera no curso jurídico
deo Paulo ?
Dois livros recentes, um intitulado "História das Idéias Políticas
no Brasil", de autoria de Nelson Saldanha, da Universidade de Per-
nambuco, e outro de Maciel de Barros, intitulado "A Ilustração Brasi-
leira e a idéia de Universidade", da Universidade deo Paulo, fazem
a história, a análise e a crítica sensata do que os bacharéis saídos de
Olinda e Recife, produziram a serviço do Brasil.o ensaios medita-
dos, que sustentavam a tese do quanto deve o pais a seus homens,
formados nas escolas de Olinda eo Paulo. Completam as obras,
que escreveram, anteriormente, Clovis Beviláqua e Spencer Vampré,
acerca das duas Faculdades e do papel de ambas, na formação c'a
inteligência e do espírito brasileiros.
Aquela afirmativa de Tobias Monteiro, em panfleto quez época,
"Funcionários e Doutores", no qual atribuía aos dois profissionais
todos os males que enervavam o Brasil, continham seus processos de
desenvolvimento, desserviam à Nação, empobreciam-na. dificultavam «>ia
elaboração mais veloz e mais pragmática, aquela afirmativa, evidente-
mente, quando se lê e medita o que Saldanha e Barros, citados, escre-
veram, sem sentimentalismo, mas à luz de uma indagação e de tim
critério crítico ponderável, perde conteúdo. Porque, na verdade, o
ensino do direito no Brasil, principiado em 1827, como o ato de 11 de
agosto,o valeu apenas como ensino para criar profissionais mas,
como sustentei, serviu para criar consciência ética e assegurar com a
plenitude de direitos, o encaminhamento reqular da solução brasileira
aos problemas que, ontem como hoje,o essenciais para o fortaleci-
mento do poder e a segurança das instituições, sem o que o progresso
material e espiritual serão letra morta, nada significando para a ascensão
e a potencialidade de nossa pàtria. com o Onze de Agósto, o Brasil
abriu perspectivas admiráveis na formação de seus melhores quadros de
inteligência e de pragmatismo. Olinda eo Paulo foram a raiz das
várias dezenas de escolas de direito que depois da implantação da Re-
pública se foram estabelecendo nas antigas Províncias e constituem hoje
uma área positiva, no contexto universitário brasileiro, para a manuten-
ção e enriquecimento daqueles objetivos políticos e culturais que leva-
ram ao Onze de Agosto de 1827.
Letras
ASPECTOS SOCIAIS DO ROMANCE BRASILEIRO
ADONIAS FILHO
V ALE observar que o romance brasileiro, em todos os caminhos de
sua temática, contraria a evasão. É um pequeno detalhe, de impor-
tância crítica e significação histórica, mas que talvez possa expiicar
porque certos movimentos novelísticos enquadrados nos movimentos
literárioso conseguiram, à sua sombra, maior irradiação. Geo-
graficamente marcado,o deixando de refletir condições culturais
típicas, tornou-se um romance interessado no sentido da manifestação
nativista. O mundo brasileiro, em sua exterioridade plástica e sua
efervescência social, de tal modo se impôs que acabou por eliminar
qualquer tendência para a evasão.o vingou o trabalho especula-
tivo, de raízes subjetivas, destinado a urdir uma problemática subjetiva.
E precisamente por isso sobretudo porque resultante e articulado
com a oralidadeo temos um romance morto.
Está claro que, ao realizarmos um romance socialmente interessado,
o exterminávamos a possibilidade da introversão. A auscultação
interior, em busca da criatura humana na base da sua condição e de
suas paixões, subsistiu em penetração psicológica que se condicionava
a tipos sociais brasileiros. A sondagem, se possível de enquadramento
na psicologia social — e capaz de justificar o moderno realismo psico-
lógico, caracterizava flagrantemente a anti-evasão como a constante
mais poderosa no comportamento novelístico brasileiro. É um estado
por assim dizer orgânico e nos limites de todos os círculos históricos.
As denominações quem sendo empregadas, documentário ou realismo,
testemunho ou reportagem, denunciam tão-sòmente a repulsa à evasão.
Mas, se esse romance deve surpreender a percepção crítica européia
quanto aos valores temáticos,o pode situar-se em virtude mesmo
dos valores temáticos nas classificações estabelecidas pela percepção
crítica européia para valores temáticos europeus. Entrosado, porém.
no complexo cultural brasileiro e dele retirando sua motivação, compete
â critica classificá-lo dentro de sua própria percepção. Esta, a meu
ver, será a chave para esclarecer-se,o apenas a posição estética do
romance brasileiro, mas sua própria mensagem como realização coletiva.
Efetivamente, se considerarmos a temática e a estilística como os ..eus
dados fundamentais, logo concluiremos que êle se fecha como um mono-
bloco em torno da temática nacional e da estilística como manifestação
restrita ao romancista. A articulação com exceções de casos isola-
dos queo alteram a mensagem coletiva se estabelece entre esses
dados: a contribuição estilística se manifestando através dos próprios
valores temáticos. É como se o romance brasileiro convertesse os va-
lores temáticos em seu próprio sangue.
o foi realizado, até hoje, o levantamento desses valores temáti-
cos. A critica histórica, de Ferdinand Wolf a Ronald de Carvalho, os
tem desprezado para restringir o nosso romance — e mais que o ro-
mance, a nossa literatura a reflexo da ficção européia. A crítica
histórica, condicionando o reconhecimento às escolas européias i.omo
o romantismo e o naturalismo negava, com o desprezo dos valores
temáticos, o próprio complexo cultural brasileiro. Admitia a evasão,
como é fácil verificar, onde evasãoo havia.
Inúmeras seriam as conseqüências resultantes dessa atitude crítica
como, por exemplo, o isolamento do romance das matrizes nacionais.
Os produtos culturais geradores dessas matrizes, em três séculos de
fermentação oral, e responsáveis sobretudo pela matéria ficcional,o
foram considerados. E, admitida em preconceito de evasão, o romance
foi e continua sendo configurado à margem daquelas matrizes. Mas,
se e quando levantadas trabalho que começa a ser realizado e do
qual tanto Sílvio Romero se aproximou provarão o entrosamento do
remance com a oralidade decorrente do complexo cultural brasileiro.
Realmente surpreendente a formação do nosso romance à sombra ia
oralidade.
Poder-se-á mesmo acrescentar queo encontrará explicação,
principalmente em seus aspectos sociais, fora da oralidade. É nesse
ventre que se realiza o processo: o fabulário popular engendrando a
epopéia; os contos e os abecedarios, mobilizando o repositório folclórico,
fornecendo os tecidos para o romance. Em sua continuidade, a partir
do século XVI até a eclosão erudita do romance nos começos do século
XIX, em sua continuidade abrangendo as contribuições indígena,
africana e ibérica a oralidade executa trabalho simplesmente extra-
ordinário que a crítica histórica inexplicavelmenteo associou ao ro-
mance. É o mesmo trabalho que, provocando a matéria ficcional, en-
gendra as constantes literárias. As vinculações a serem estabelecidas
da oralidade com a matéria ficcional e desta com as constantes lite-
rárias e das constantes literárias com a epopéia nativista demonstram
que o ciclo novelístico é realmente brasileiro na base das fundações.
Os movimentos temáticos que o concretizam, em tórno da materia
ficcional e das constantes literarias advindas da oralidade,m suas
raizes nas próprias raizes do complexo cultural brasileiro: o indianismo,
o escravismo, o sertanismo, o urbanismo. Csses movimentos temáticos,
a partir da epopéia embora ultrapassados o indianismo e o escravismo
em conseqüência do processo de mudança que atinge o complexo cultu-
ral brasileiro caracterizam ainda hoje, através do sertanismo e do
urbanismo, o nosso romance. Temos que atentar bem nisso: a inter-
ferência da oralidade, fluxo ininterrupto que atua desde o século XVI,
éo flagrante na moderna novelística sertanista, por exemplo, quanto
o fora nos autos e nos contos populares do século XVIII. E, se fòsse
possível ampliar a afirmação, diríamos que a terrao era literariamente
virgem no instante da descoberta. Os contos e os autos populares,
através do sincretismo luso-indigena-africano e posteriormente bra-
sileiro, já denunciavam a vocação documentária do romance brasi-
leiro como suas únicas matrizes e raízes autênticas.
Entremos, pois, neste caminho
As constantes literárias ibéricas, quando atingem o Brasil,o
encontram uma terra literariamente virgem. No momento do desem-
barque português e, a seguir, quandoo estabelecidas as feitorias, uma
ficção primitiva de carreira oral transita em lábios indígenas. É enorme
a área geográfica que ocupa essa ficção veiculada pela língua tupi.
Nennhuma língua primitiva do mundo, observa Couto de Magalhães,
ocupouo grande extensão geográfica. Na idade da pedra, como
todos os primitivos nessa idade, o selvagem brasileiro dispõe de valores
concepcionais intelectivos e dos conseqüentes meios de expressão. A
imaginação, que moveu ao do homem paleolítico em desenhos de
beleza e possibilitou o ritmo plástico ritmo que marca sua literatura
e sua música, completa-se no homem neolítico que, produzindo o
instrumento decorador, revela o interesse imediato e prático. Em sua
forma expressional primitiva, servindo-se tanto da imaginação quanto
da percepção para conceber as narrativas numa inspiração imediata, o
selvagem cria uma ficção.
6 uma ficção que, em seus incidentes primários e seu elementarismo
descritivo,o oculta o fundo nativo que projeta ambiente brasileiro.
A arte indigena da narrativa, fazendo da repetição ritmica o traço fun-
damental como em qualquer literatura primitiva como já observara
Franz Boas, adquire significação peculiar precisamente porque ofe-
rece qualidades próprias. Usando a linguagem que era o veículo co-
mum da vida diária, e a observação seria feita por Mary Austin a
propósito da ficção indígena norte-americana, sempre apresenta o ar-
gumento lógico numa base simbólica. Em qualquer das lendas do
fabulário indígena,o flagrantes todos os elementos ficcionais: o cená-
rio, a personagem, a trama episódica, o diálogo e certa mensagem.
O cenário surge ao vivo na aparição da selva, os rios e as árvores,
as estrelas e o sol, as noites e as madrugadas. A personagem dispõe
de conduta psicológica na revelação de um caráter como, por exemplo,
a astucia no jabuti e a falsa esperteza na raposa. A trama episódica
constitui uma seqüência lógica e engendra o centro de interesse. A
ação é breve e assegura o equilíbrio ao relacionar o cenário, a persona-
gem e a trama episódica. O diálogo é conversacional. E a mensa-
gem, que Couto de Magalhães pôde captar ao examinar os argumentos,
revigora os mitos indígenas que tanto penetraram na estrutura psicoló-
gica do povo brasileiro.
Esse ciclo ficcional indígena, ao lado dos mitos que tanto
preocuparam os cronistas Nóbrega e Anchieta, Gabriel Soares e Simão
de Vasconcelos, constituirá parte do repositório comum folclórico
que, ingressando na ficção escrita, marcará decisivamente tanto o teatro
quanto o romance brasileiros.o seria mesmo possível evitar que
o ciclo ficcional indígena, robustecido por fatores como a extensão geo-
gráfica que percorria numa emigração ininterrupta e como o acervo
vocabular que impôs à língua nacional, atingisse o cerne da ficção
brasileira. Sua contribuição ao repositório folclórico, seo igual à
portuguesa, é maior que a africana. No acervo vocabular, e sobretudo
na linguagem popular, sua contribuição é imensa. Mas, se essa ficção
de trânsito oralo permitiu que os portugueses encontrassem uma
terra literariamente virgem, sua evolução prosseguiu, como prosseguiu a
evolução africana, ao lado das constantes literárias ibéricas. É através
dos contos e dos autos populares que a manifestação se fará. E talvez
se posea mesmo dizer que os contos antecedem o romance, assim como
os autos antecedem o teatro.
As tradições indígenas, ficcional e mítica, concorreriam para formar
a tessitura dos nossos contos populares. Ao lado dos dialetos tupi
e guarani a partir de Anchieta, estudados até hoje, enriquecendo
de brasileirismos o nosso vocabulário e impondo a toponomástica na-
cional, aquelas tradições se infiltram e se transfiguram ao fundir-se na
combinação cultural. Outras permanecem, em sua pur/eza original,
dentro dessa mesma combinação. É o que explica o reencontro por
Sílvio Romero dos contos divulgados por Couto de Magalhães. A
penetração, se flagrante no trânsito oral, atingirá o ciclo ficcional escrito
em desenvolvimento obstinado e lento.
Mas, se o indígena oferece um dos alicerces, a contribuição do
outro será feita pelo africano. Se a transmissão dos contos indígenas,
nos meados do século XVIII ainda se realizando em idioma tupi, acom-
panhou o roteiro histórico a partir das primeiras expedições explorado-
ras, a transmissão afro-negra conhece processos diferentes. No ciclo
oral, face à contribuição original para a ficção brasileira, o africano
assume uma posição singular. Em todos os desdobramentos, nas alte-
rações, nas fases de transição que os contos atravessam, a atuação negra
é significativa. A escrava negra, ao transmitir os contos de tôdas
as procedências indígena, ibérica, africana e, conseqüência da fusão,
já pròpriamente brasileiro, converte-se em uma espécie de jogral
queo se restringe ao elemento africano. Se sua contribuição como
conteur é extraordinária sua participaçãoo o é menos no ciclo ficcio-
nal africano.
o nos interessa pesquisar a origem dos contos se, de fato,
africanos, mas os dados que, por seu intermédio, foram transmitidos
aos contos populares e posteriormente ao romance. Mas, procedentes
da África ou aclimatados no Brasil, originais ou alterados pelos contatos
com as tradições ficcionais ibérica e indígena, também sobrevivem no
repositório folclórico. É na base dessa sobrevivência que se torna
possível o reconhecimento.
A colaboração cultural africana, fora do círculo ficcional, é imensa.
Marcaria certos tecidos como superstições, festas populares, sensibili-
dade musical e a própria alimentação.o se deve esquecer, porém,
que em tôda essa colaboração há uma limitação geográfica: o negro
nao atingiu o sertão. O fluxo negro, se alcançou zonas de mineração,
deteve-se na faixa litorânea.o participou densamente das grandes
migrações: entradas, bandeiras, preação. Se ponderável nos ciclos do
açúcar, do ouro e do café, é estranho ao ciclo do ouro. Apesar da
presença nos engenhos de açúcar,o invadiu a área sertaneja nordes-
tina que, nos tipos étnicos e nos costumes, abrigam sobrevivencias indí-
genas queo da cabeça chata dos Cariris às comidas de milho e man-
dioca, da rede observada por Vaz Caminha ao mais popular dos mitos
que é o do caipora. Detendo-se na linha litorânea, na migração fol-
clórica encontraremos a reafirmação da limitação geográfica. E, por-
que essa migração se restringe, é que, quando mobilizados, os contos
populares africanoso ultrapassam o litoral. Situa-se neste recôn-
cavo a carreira dos contos divulgados por Sílvio Romero e nêle é que
se move o acervo folclórico negro.
Mas, se o fluxo é enorme nessa fase totèmica de uma ficção pri-
mitiva incorporando contos de animais e o ciclo inteiro do Kinbunqu
nêle por vêzes se mantendo a língua e as crenças, a verdade é
que a expansão folclórica negra dar-se-ia sobretudo através de um
personagem pai João que se completaria em elementos brasileiros.
Nêle se condensam, observa Artur Ramos, o transmissor da tradição
africana e o cronista oral da história da escravidão no Brasil. O grande
universo negro, das selvas africanas às plantações brasileiras, abriga-se
em sua voz: os contos, as parlandas, as cantigas da escravidão. É o
bardo, mùsico, mestre de cerimônimas dos jogos e autos populares. E,
porque é um ser vivo, e porque interfere na efervescência ficcional,o
pode identificar-se como julgou Artur Ramos com o Uncle Remus
norte-americano.
O Uncle Remus é uma personagem literária inseparável dos livros
de Joel Chandler Harris. Revelador do caráter e do dialeto negros
já adaptados, confessa Alphonso Smith. É a correspondência negra
do índio, de Fenimore Cooper. E, ao contrário do pai loão,o é
uma personagem coletiva que, dispondo de personalidade social, vai
fundir-se com os produtos culturais em sua própria efervescência.
Essa ficção primitiva, em sua oralidade — e é necessárioo es-
quecer que resiste a três séculos de fermentação e desenvolvimento,
atingirá a ficção erudita para caracterizá-la nas constantes literárias e
nos movimentos temáticos. E, se por um lado os contos populares
antecedem e já marcam socialmente o romance, pelo outro os autos po-
pulares como o dos Pagés na matriz indígena, o do Congo na matriz
africana e o da Náu Catarineta, na matriz ibérica também antecedem
e já marcam a dramaturgia brasileira. Vale observar, neste momento,
que o mais autêntico auto popular brasileiro Bumba-meu-Bci, nas-
cido no século XVIII por sincretismo dos autos indígena-negro-ibérico,
já incorpora as constantes literárias e os movimentos temáticos que trans-
ferirá para a ficção erudita.
Os movimentos temáticos como o indianismo, escravismo, sertanismo
e urbanismo estão potencialmente nele como nele esse auto Bumba-
meu-Boi potencialmente estão as constantes literárias como o lirismo,
o drama e a vocação documentária. Coloca-se, pois, entre a ficção pri-
mitiva de trânsito oral e a ficção erudita de trânsito escrito como uma
espécie de ligação espantosa que prova ter sido necessária a fermentação
dos produtos culturais durante três séculos para que na novelística
e na dramaturgia — a ficção brasileira se fizesse. E se fizesse, prin-
cipalmente à sombra do romance, contra a evasão. Tudo finalmente
se esclarece, porém, ao saber-se que em um processo de intercurso,
recebendo as matrizes culturais acumuladas e contribuindo para enrique-
cê-las em seu próprio círculo, as matrizes culturais nacionais tornaram-
se responsáveis pela ficção. É normal, pois, que orgânica e historica-
mente a ficção se realizasse na procura de uma caracterização nacional.
Temos que reconhecer, agora, que a ficção a partir do nasci-
mento absorve a oralidade. Dar-se-á a absorção, e o melhor do-
cumento será o romance na base de tôda a sua história, mas dar-se-á
a absorção através de elementos ponderáveis como
a faia
a técnica da narrativa
a temática.
Servindo-se desses veículos, a oralidade atua em circulação pro-
gressiva. Na continuidade histórica, da primeira manifestação ficcional
com o teatro de Martins Pena ao romance contemporâneo, a circulação
se realiza num processo de penetração que reaje em função das mudan-
ças culturais brasileiras. Na dinâmica dessa continuidade histórica,
em suas relações com a oralidade, a ficção se altera quando
incorpora traços expressivos da faia
apreende a técnica da narrativa
adota a temática.
É na temática, porém, — a temática que necessita da linguagem
e da técnica da narrativa que a circulação oral penetra verticalmente
na ficção para transmitir-lhe
o inconsciente popular
a sensibilidade coletiva
os costumes, as tradições e as crenças.
A conclusão que se impõe é incontestável: se a ficção dispõe de
constantes literárias oriundas da formação social brasileira; se essas
constantes resultam do caráter nacional configurado pelos produtos
culturais; se a circulação oral decorrente desses produtos culturais pe-
netra verticalmente na ficção e lhe transmite o inconsciente popular, a
sensibilidade* coletiva, os costumes, as tradições e as crenças está
claro que a ficção se condiciona ao caráter nacional e, em sua conti-
nuidade histórica,o sofre influências das escolas literárias. Trans-
cende tôdas essas escolas romantismo, naturalismo, simbolismo
para, integrando-se no próprio ritmo da mudança cultural, refletir inten-
samente o caráter nacional. A penetração da oralidade em circulação
progressiva comprova que a ficção brasileira, ao invés de evadir-se, se
enraiza no comportamento cultural brasileiro articulando-se. em conse-
qüência, com o seu processo de mudança.
É no fundo desse quadro geral contendo as condições e os
elementos de ação social que o romance, um dos agentes literários
da ficção, se move e se expande em torno do corpo nacional. Nesse
quadro, as verificações imediatas são: a permanência das constantes
literárias, a crescente absorção da oralidade, a sistematização dos motivos
temáticos e a estruturação da linguagem expressional brasileira. O
percurso, que irá conformar o romance em sua evolução histórica, se
realiza em torno desse enorme e fantástico quadro.
Tendo os alicerces nas constantes literárias lírica, dramática e do-
cumentária sem que se obscureça, naturalmente, o imaginativismo;
participando da circulação oral que a memória coletiva alimenta; captan-
do e sistematizando a temática na base dos cenários e dos costumes;
submetendo a linguagem à força expressional da faia será impossível
divorciar a ficção, e, portanto, o romance, do povo brasileiro. Obser-
varemos que nascendo do caráter que confere a esse povo uma perso-
nalidade nacional, a êle se identifica de tal modo, refletindo-o e pro-
jetando-o, que se desenvolve à sombra de todos os seus valores. O
percurso histórico se traduzirá em conseqüência, nessa penetração dos
valores brasileiros que, esmagando as resistências, encaminha a ficção
para a sua fase contemporânea.
Esta a colocação histórica e crítica da ficção brasileira.o ee
registram fases, escolas e movimentos literários que a retirem dessa
colocação. O percurso que realiza é ininterrupto e de tal modo linear
que se articulam rigorosamente os elementos formadores com sua fase
contemporânea.
E, já que vimos como a oralidade transfere os seus principais com-
ponentes as constantes literárias e os movimentos temáticos para
o romance na ficção erudita, s«Jrá fatal também que entregue à novelís-
tica as determinantes regionais. O complexo e longo círculo oral, do
século XVI ao XIX, distendendo-se sobre o território inteiro à sombra
dos produtos culturais, teve o seu processo na linha das exigências
daquelas determinantes. E, conseqüência dessa realidade geográfica
o sensível quanto a realidade social que, na dependência dos pro-
dutos culturais, aguardou que o país adquirisse o "caráter nacional" e
jurídicamente se configurasse para que surgisse a ficção erudita, e,
conseqüência dessa realidade geográfica, sobreveio o que chamarei de
a regionalização da matéria ficcional. É a matéria ficcional, pois,
culturalmente gerada e geogràficamente distribuída, que engendra o
regionalismo.
A matéria ficcional, e tenho que repetir, é regional. Nos contos
e nos autos populares, sobretudo nos abecedarios, a conformação regional
é sensível. Adaptam-se regionalmente mantendo as características
essenciais e o conteúdo mitológico em enorme variação. É a região,
na homogeneidade social da comunidade sertaneja ou na heterogenei-
dade da comunidade urbana, que, concentrando matrizes nacionais, com-
pleta a matéria ficcional com seus próprios componentes. Essa penetra-
ção de tecidos localistas, com exemplo nas inúmeras versões dos autos
e contos populares, prova que a oralidade se sujeitava à imposição
regional.
Ao nascer, pois, à sombra mesma da oralidade, é regional a matéria
que a ficção apreende.o sendo possível realizar-se fora dessa ma-
téria, capta-a em forma documental. Estruturados os movimentos te-
máticos, que resultam da matéria ficcional,o será difícil verificar a
configuração regionalista. Eo é por outro motivo que os dois mo-
vimentos temáticos subsistentes — o sertanismo e o urbanismo, quando
superados o indianismo e o escravismo pelo processo da mudança social
se irradiam e se fragmentam em obediência ao curso histórico e ao
imperativo geográfico, também responsáveis pela organização política
nacional.
o esqueçamos que, ao surgir, já a ficção encontra uma nação
politicamente organizada em torno da imposição geográfica. As Ca-
pitanias da Colônia, já descritas no sécuIo XVI do Amazonas ao Prata,
adaptam-se mais rigorosamente à imposição geográfica para constituir
as Províncias do Império no século XIX. Aires do Casal, neste ponto,
completa Gabriel Soares. E, se resultam da própria expansão histórica
em suas causas gerais o impulso metropolitano através das donatárias
particulares, o bandeirismo, a irradiação dos criadores de gado, o mis-
sionansmo católico, contiguram-se geogràficamente desde o colonato,
incluindo Mato Grosso e Goiás, conquistados e povoados no século
XVIII.
Essa regionalização, e seria mais certo dizer provincialismo, cons-
titutivo da organização política no Império, robuster-se-á numa pro-
gressiva fixação que vem da Colônia aos nossos dias. Reconhecer-se-á
nele o federalismo republicano que, mantendo "a organização demo-
crática estadual" na expressão e segundo Rui Barbosa,o cor-
rompeu a estrutura nacional. Irrompendo em torno de complexos cultu-
rais próprios às Províncias, inunda a matéria ficcional com elementos lo-
cais. É o instante de justificar-se, pois, que o repositório folclórico, e
como já observaram todos os pesquisadores, se caracteriza em função
da Província. O gênio lingüístico, em um exemplo objetivo, articula pro-
vincialismos na faia comum. A matéria ficcional, em seu percurso
oral tangida pelo repositório folclórico e pelo gênio linguistico, se insere
na área da Província identificando-a como área regional.
É nessa área, em obediência ao provincialismo, que os movimentos
temáticos sertanismo e urbanismo prosseguem até os primeiros
anos da República. Os movimentoso subsistentes, que cessam
quando cessam as motivações o indianismo e o escravismo, esses
também se revigoram pelo nativismo regional. É flagrante neles o
aproveitamento literário do acontecimento histórico. No escravismo,
a partir de Bernardo Guimarães, os suportes orais negros,o evidentes
nos autos e contos populares, se mostram como as verdadeiras raízes.
Sujeito ao trânsito oral, pois com a memória coletiva o apreendendo
e a imaginação popular o transfigurando, o acontecimento histórico
gera o mito em seu próprio ventre.
É no mito, baseado na tradição oral, que Santa Rita Durão recolhe
a motivação e as personagens do Caramuru. Moema, antes que se
converta em personagem ficcional na epopéia poética, já era uma índia
estilizada pela imaginação popular. E também Paraguaçu que, ?on-
vertida em mito de extraordinária duração, sobrevive na cabocla das
festas do dois de julho, na Bahia. Nativo, como se verifica, o mito
indianista estava no sangue, na história e na voz do povo. O mito
escravista, com exemplo no ciclo do sacrifício aberto pelo Ncgrinho do
Pastoreio, também estava no sangue e na voz.
É desse fundo coletivo com base folclórica nos autos e nos con-
tos populares, gerando a estilização da personagem ficcional, que
o indianismo emerge com destino inevitável na ficção e no romance bra-
sileiros. A estilização, porém, partindo da oralidade para o aprovei-
tamento literário, se desfigura a realidade humana do índio como em
José de Alencar, respeita-a como em Gonçalves Dias, na órbita poéti-
ca. E é realmente curioso observar como o indianismo, alcançando a
novelística e a poesia, atinge em cheio, com Martins Pena, o teatro.
Tendo como antecessores Anchieta, Basílio da Gama e Santa Rita
Durão, Martins Pena situar-se-á ao lado de Gonçalves Dias e José
de Alencar. A aproximação é surpreendente de uma perspectiva críti-
ca. A configuração romântica que se atribuíra ao indianismo, fazen-
do-a retornar à ficção brasileira através de Chateaubriand, sera insus-
tentável quando a relacionarmos, na oralidade, com o teatro colonial
coletivo e anônimo. É flagrante, perfeitamente enraizada no ciclo oral,
a estilização do índio como personagem ficcional. Observemos a enor-
me transformação a que se submete: da participação sem identidade
no Auto dos Pagés ao personagem já caracterizado no Auto do Burn.-
ba~meu-Boi., na representação coletiva e em sua própria faia, iden-
tifica-se ao caboclo que Capistrano de Abreu reconheceu como o herói
dos contos populares. O indianismo, como se, emerge da oralidade
na base do mais autêntico fluxo folclórico.
Mas, quando a revelação folclóricao bastasse como prova do
nativismo indianista, bastaria a substituição do mito romântico do «bom
selvagem» pela realidade humana do índio e que Cassiano Ricardo
já demonstrara em Gonçalves Dias para que o nativismo se jus-
tificasse. O mito, que Chateaubriand consagra literariamente, já está
corrompido em Fenimore Cooper. Debruçado sobre o panorama da
fronteira norte-americana, convertendo-a em crônica clássica de uma
época heróica como diz Van Doren, Cooper provoca, através
do indianismo, uma mitologia nacional. Em conflito com o romantis-
mo, suas personagens índias tornando-se uma porção na lenda dos
Estados Unidos como o Uncle Remus, Cooper herda o folclore e atra-
s dele é que enriquece a mitologia do seu povo. O mito europeu
o o atinge como,o atingindo Basílio da Gama e Santa Rita
Durão, tambémo atinge Martins Pena, Gonçalves Dias, Gonçalves
de Magalhães e José de Alencar. A explicação é simples: o mito
românticoo subsiste face ao mito indianista nativo.
O que subsiste, à sombra desses movimentos temáticos em sua
primeira manifestação erudita, é o provincialismo que se conforma em
função do conteúdo indianista ou escravista, sertanista ou urbano.
É o provincialismo que transparece em Bernardo Guimarães, Manuel
Joaquim de Macedo, Manuel Antônio de Almeida, Franklin Tá'/oia.
Mas, quando superados o indianismo e o escravismo por falta de
materia viva que os sustentasse o que vemos é o provincialismo
estruturar-se ainda mais a partir de Alfredo d'Escragnolle Taunay até
Adolfo Caminha.
A verdade é que a matéria ficcional nativista, nascida dos produ-
tos culturais e convertida em movimentos temáticos, se impunha como
a grande motivação. E seria através do provincialismo, como conse-
qüência da realidade regional, que se realizaria. Tentaremos, através
do sertanismo e do urbanismo e à sombra de romancistas e drama-
turgos, essa que será uma rápida viagem.
Em Taunay, se o sertanismo está flagrante no romance Inocência,
o urbanismo constitui a própria temática dos outros romances: Ma-
nuscrito de uma Mulher e Ouro sobre Azul. O roteiro de Inocência,
em seu ruralismo, é o mesmo que se observará em Martins Pena e
Bernardo Guimarães. O urbanismo dos outros romances como do
drama Amélia Smitho será diferente, no próprio ambiente dos
salões cariocas, em Joaquim Manoel de Macedo e José de Alencar.
É inevitável, como se verifica, a imposição da matéria ficcional. Mas,
com Inocência, sempre um romance de base no movimento temático
sertanista, o que Taunay sobretudo consegue é articular o roceiro de
Martins Pena, como tipo social, à ficção posterior, dentro do provin-
cialismo regional.
Observemos como esse tipo social se configura regionalmente: o
roceiro fluminense de Martins Pena, o matuto nordestino de Franklin
Távora, o caipira mineiro de Bernardo Guimarães, o matuto do Brasil
Central de Taunay. E na ficção posterior: o matuto de Afonso Ari-
nos, o caipira paulista de Monteiro Lobato e Valdomiro Silveira.
Atentemos em sua gênese, como personagem, no caboclo dos contos
e dos autos populares.
Mas, nesse período que se pode situar entre Taunay e Adolfo
Caminha, é indiscutível o predominio do movimento temático urbanis-
ta — o predomínio e a sua significação no quadro geral da ficção
brasileira. O sertanismo, porém, robustece, com Inglês de Souza, os
elementos já incorporados à novelística por Alencar, Távora e Bernar-
do Guimarães. O provincialismo regional reafirma sua participação
no sentido do documentário. A matéria ficcional amazônica, eo
importante na oralidade como área mitológica, encontra o seu primeiro
romancista. O processo de apreensão da matéria ficcional é o mesmo
de Manuel Antônio de Almeida e Távora. A matéria ficcional, em
conseqüência do ambiente, é que é diferente. E a conclusão é simples:
dentro do movimento temático, o ficcionista sujeita o artesanato à ex-
ploração da matéria ficcional. Essa exploração, acrescida das constan-
tes literárias, anulou o romantismo. Anulará também o naturalismo, a
começar de Inglês de Souza.
Observemos o detalhe: o romancista Inglés de Souza, trabalhando
a matéria ficcional amazônica, continua o documentário iniciado por
Martins Pena. As constantes literárias, lírica e dramática,o visíveis
como em José de Alencar. O que distingue um do outro, excluída
naturalmente a órbita estilística, é a matéria ficcional. Quando apreen-
dida em sua realidade, a matéria ficcional força o documentário. Pro-
va-se, desse modo, a inexistência de um comportamento romântico ou
naturalista na ficção brasileira. Debruçados sôb're a matéria ficcional
brasileira engendrada pelos produtos culturais que conformam o cará-
ter nacional, gravitando em torno das constantes literáris também
oriundas dos produtos culturais, os ficcionistas de Martins Pena a
Adolfo Caminha e déste até os contemporâneos adquirem um só
comportamento: fixam em documentário, dentro dos movimentos temá-
ticos, a matéria ficcional.
E, a título de ilustração, se tomarmos o movimento temático ur-
banista como roteiro, verificaremos que a força descritiva que favorece
o documentário,o se altera no processo da fixação. E, se essa fórca
descritiva é sensível em Macedo, Antônio de Almeida e Alencar
com interesse pela análise do caráter na interiorização do drama em
função do ambiente socialo o será menos em Aluísio de Azeve-
do. O romancistao inaugura, mas continua um processo que se
realiza em virtude da imposição da matéria ficcional.o seria por
acaso que, abandonando a matéria ficcional maranhense após a publi-
cação de O Mulato, apreende a matéria ficcional carioca. Antes que
venha a fixar novos aspetos da metrópole, como a casa de pensão
e o cortiço, o romancista se detém em torno da província: temos, então,
O Mulato.
A simples leitura do romance, face à fixação dos costumes e das
festas populares, basta para demonstrar que Aluízio de Azevedo con-
tinua a linha anteriormente aberta. Apoiando-o nas constantes literá-
rias lírica e dramática ao lado da contribuição imaginativa que ca-
racterizariam livros menores como O Homem e O Coruja leva-o
ao plano que tanto preocupara Alencar, Távora e Bernardo Guima-
rães: dentro do provincialismo, a matéria ficcional brasileira. É do
fundo dessa matéria que extrai o mulato, com Alencar extraíra o
gaúcho, Távora o cangaceiro e Guimarães o matuto. Se o rigor na
auscultação é maior e provoca o documentário em cores mais realistas
é precisamente porque, já encontrando a matéria ficcional trabalhada,
pôde indavdi-la em profundidade. No provincialismo metropolitano
ao tomar o caminho de Macedo, Antônio de Almeida e Alencar, a
necessidade dessa invasão em profundidade restringe a matéria ficcio-
nal a espaços sociais limitados como a casa de pensão e o cortiço. É
o que acontece com Raul Pompéia em relação ao O Ateneu.
A matéria ficcional, seo ampla como no provincialismo cario-
ca a ponto de absorver um romancista como Machado de Assis,
implica em sondagem psicológica ao limitar-se a espaços sociais. Foi
a sondagem que Aluízio Azevedo, em Casa de Pensão e O Corticc
o pôde evitar. Adquire em dimensão vertical o que perde em exten-
o horizontal. O documentário, se poderoso nos elementos exterio-
res,o anula a fixação do caráter em sas reações psicológicas.. Em
O Ateneu, por exemplo, o documentário é o internato, o caráter é Aris-
tarco. O caráter, individualizando a personagem em sua personali-
dade, gravita em tórno e sustenta o próprio documentário. Essa con-
ciliação, que Machado de Assis realiza de modo extraordinário, de-
monstrao apenas a força do documentário na ficção brasileira, mas
a impossibilidade em afastar-se a ficção da matéria ficcional.
O fundo brasileiro da ficção, resultante dessa matéria queo
reflete porque é o país em si mesma, prosseguirá a caracterizar o
romance até o Modernismo. Em tôdas as passagens, sempre no pro-
vincialismo, ninguém como Graça Aranha, Xavier Marques, Lima
Barreto, Coelho Neto, Domingos Olympio, Afrânio Peixoto, Lindolfo
Rocha, Manuel de Oliveira Paiva mas ninguém mesmo conseguirá
escapar à sua influência através dos movimentos temáticos, urbanismo
e sertanismo. Um crítico da lucidez de Astrojildo Pereira já mostrou,
no romance introvertido de Machado de Assis, suas relações sociais
com o Segundo Reinado. Há um compromisso, pois, decorrente das
causas e das matrizes, das fundações e das raízes, que contrariam e
impedem a evasão.
Um compromisso, espécie de testemunho, mas compromisso que
aindao se partiu com o mundo brasileiro. A grande solicitação,
que vem do povo como humanidade e vida, que vem da terra como
cenário, foi atendida e teria que se concentrar fatalmente em ex-
pansão e densidade na fase moderna tanto da ficção quanto do
romance. O Modernismo, por isso mesmo, tornou-se um movimento
de base.
A revolução, aparentemente poética, interferiu de modo extraordi-
nário na ficção porque se estabeleceu como um impacto lingüístico. O
nativismo poético, reclamando a expressão brasileira, atento à impor-
tância da faia como atributo e receptividade da linguagem literária,
o concorreu apenas para a renovação do teatro. O «genius» lin-
guistico, finalmente liberto com a alteração do português em conse-
qüência do contato com a formação social do Brasil, esse «genius»
linguistico sez vida na ficção. E, a partir da entrada que está em
Mário de Andrade, com Macunaíma, a superação gramatical em pro-
veito do instinto criador do povo.
Após a libertação linguistica, que marcará para sempre o Moder-
nismo como um movimento literário de interesse culturalmente histó-
rico, e sem que se desvinculasse da linha documentária, pôde o ro-
mance e já romance moderno porque, a partir de 1930, coincidindo
com a revolução militar e política ressurgir, em sua afirmação artís-
tica, dentro do complexo social brasileiro. O moderno romance brasi-
leiro, em conseqüência, e como já o disse na segunda série de Mo-
dernos Ficcionistas Brasileiros, prosseguiria com o material nati-
vo a paisagem, os problemas, os tipos sociais, o povo em plena
missão de testemunho e, portanto, documentária. A auscultação se
faria em provincialismos, ou agrupamentos regionais como o nordesti-
no, em torno da evidente preocupação social. Manter-se-ia, como no
dia da estréia, contra a evasão.
Está claro que esse romance como, aliás, tôda a ficção
o vingaria por ser documentário, seu conteúdo temáticoo bastan-
do para justificá-lo como literatura. Vingaria, como vingou, precisa-
mente porque sem perder as raízes orais aplicou os elementos
literários, sobretudo de estilística, ao conteúdo temático. O exemplo
imediato está na linguagem que, nas diferenças individuais dos roman-
cistas, recolheu a faia, dando-lhe inflexão estética. Quero dizer com
isso que, se o universo brasileiro se mostra em quadro e imagem, pro-
blema e drama, ficcionalmente se movendo no poder de uma temática
que oferece, com os mitos e os símbolos, o caráter nacional quero
dizer com isso que é o romancista, porém, como intérprete de um com-
plexo cultural definido, quem confere validade literária ao documento.
Encontra-o já oralmente legitimado na apreensão que vem do conto
popular ou do abecedario para o tratamento literário. E trabalhando-o
como costume, aceitando-o como mensagem, revaloriza-o pela contri-
buição criadora e o artesanato literário. Complementa a brasiliana,
pois, sem deixar de ser literatura.
Agora, quando devíamos nos deter sobre a conseqüência imediata
do Modernismo que é o romance brasileiro de 30, creio bastar o meu
último livro precisamente O Romance Brasileiro de 30 para con-
firmá-lo nos movimentos temáticos, nas constantes literárias e nos
provincialismos. Permanece a vinculação ao documentário, e sem que
isso o deforme no sentido de uma penetração interiorizante, que vem
das origens. É fácil nele enxergar, ainda, a sombra da grande ora-
lidade que sez através dos contos e dos autos populares. E nele
estão, como acabamos de ver, os séculos da formação nacional e da
oralidade literária. E, precisamente por tudo isso, é que se ergue con-
tra a evasão.
A verdade é que o mundo brasileiro, marcou em sua complemen-
tação cultural, a força e o destino do seu romance.
Patrimonio Histórico e Artístico
CONDIÇÕES E EXEMPLOS DE DEFESA DO
PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO
MÁRIO BARATA
\*J MA das maiores surpresas do terço final deste século, está sendo,
no mundo inteiro, o amadurecimento das idéias humanísticas de pro-
teção e conservação dos bens culturais em geral, destacando-se en-
tre eles os de caráter histórico, artístico e paisagístico. Um estudioso
do assunto nos anos 30 ou 40 da centúria difícilmente prevería que.
nos anos 60, organizações como a UNESCO, o Conselho da Europa
e a própria OEA dedicariam amplo e profundo interesse a este setor,
que durante muito tempo, sobretudo nas nações de pouco desenvol-
vimento cultural, pareciam preocupação de pouca monta, restrita a
grupo de amadores teóricos e até, ofensivamente, às vêzes considera-
dos sonhadores, afastados da vida real.
A intensidade que este movimento de salvaguarda cultural está
atingindo parece ser em parte uma conseqüência, nos países avançados,
do bem estar crescente e da existência de maiores recursos à disposi-
ção das atividades humanas. Mas por outro lado pode-se perceber,
na situação vigente, um acréscimo desse esforço de preservação como
resposta de homens de ação cultos e intelectualmente preparados ao
brutal desafio colocado em muitos casos pela recente expansão da tec-
nologia e as mudanças supervenientes, no «habitat» e no comporta-
mento humanos.
Diversas necessidades e novas aspirações surgiram em decorrên-
cia da rapidez dos transportes, da industrialização tendendo à auto-
mação, do surto dos instrumentos de comunicação de massas, da técni-
ca resolvendo problemas inúmeros e se expandindo em campos inespe-
rados para o homem. Comoções e instabilidades psico-sociais se pro-
duzem nessas condições de mudança brusca, podendo acelerar o desa-
parecimento de tradições culturais, sobretudo nos países pouco desen-
volvidos, nos quais o estudo e a culturao menos estáveis e pouco
enraizados, podendo a industrialização e a tecnologia provocar cho-
ques brutais e às vêzes consideráveis perturbações. Nestas nações
o ocorre o desenvolvimento progressivo que dá tempo para se adap-
tarem elementos anteriores a novas configurações e a novos contextos
sociais e humanos. O desrespeito pelo passado pode assumir formas
de inconsciência ou mesmo insensatez quase generalizada, com pre-
juízo dos valores que existem em monumentos e criações que paulati-
namente ajudaram a formar a civilização contemporânea e ligam o ho-
mem a suas raízes estruturais, sociológicas e técnicas. O «tecnologis-
mo» como vício de comportamento pode, com maior facilidade, repu-
diar o humanismo. E o aproveitamento do cotidiano sepultar a pre-
sença do passado, erroneamente considerada supérflua e desnecessária.
A esse desafio das condições gerais e rápidas de mudança, so-
bretudo a UNESCO respondeu com esforço redobrado e enfático, sim-
bolizando a consciência de milhares de homens de valor e lucidez inte-
lectual, em dezenas de países. Em contraste com a situação das na-
ções cujos conselhos de pesquisas se desinteressaram de certas ciên-
cias humanas, a UNESCO apoiou exemplos como os da França, da
Itália, do Japão, em que os centros máximos de amparo às investiga-
ções científicas, incorporam o financiamento e estímulo aos trabalhos e
publicações de livros, no campo histórico e artístico. E desdobrou o
exemplo anglo-norte-americano, germânico, escandinavo de melhoria e
eficácia na conservação do patrimônio estético e humanístico do mundo,
através de Fundações culturais e do respeito e integridade devidos
ao novo homem universitário, de status intangível, garantido pelas ins-
tituições, e de metodologia avançada obtida pelo uso de técnicas mo-
dernas de pensamento e ação.
como «experts» culturais e participantes do Conselho da Europa
asseveraram recentemente, nossa época está passando da noção passiva
de conservação à concepção ativa de colocação em valor e de integra-
ção dos monumentos ao «environnement» e à economia geral do pais.
São, de agora em diante considerados como uma das soluções às
necessidades do «habitat» e do meio ambiente equilibrados permitindo
o desenvolvimento do homem na civilização industrial.
O primeiro episódio em que se configurou a noção exemplar e o
esforço considerável da UNESCO neste campo do patrimônio univer-
sal foi o da campanha de salvação dos monumentos da Núbia. Essa
ação coletiva, que honrosamente para nosso país teve como presidente
um brasileiro de capacidade excepcional: o professor Paulo Estevão
Berredo Carneiro, constituiu-se no maior êxito de solidariedade inter-
nacional, em campo cultural, no século XX. A ela seguir-se-á sobre-
tudo a recém-iniciada campanha de verdadeiro salvamento e recupe-
ração da cidade de Veneza, a cujo serviço se achava nos primór-
dios da situação que conduzia ao citado esforço outro brasileiro
ilustre, o professor e crítico de arte Lourival Gomes Machado, quando
ocorreu, em 1967, o seu falecimento na Itália, como funcionário do
referido organismo internacional.
A essa tarefa de proteção ao patrimônio histórico e artístico, no
plano brasileiro, dedicou exatamente a metade da duração cronológica
de sua existência tôda a sua maturidade, por assim dizer uma
inteligência e dignidade raras: o Dr. Rodrigo M. F. de Andrade.
Sua compreensão do problema era grande e excepcionalmente viva e
lúcida e a êle se deveu a montagem e o prestígio do serviço especiali-
zado do Ministério da Educação e Cultura, que dirigiu por mais de
30 anos com eficiência e dedicação de causar assombro. Servidor do
país na República, como raros o foram mesmo no Império, aproveitava
o respeito pessoal que granjeou no Brasil para transferi-lo ao campo
da defesa, feita em condições operacionais cada vez mais difíceis e
desprovidas de recursos, dos monumentos e bens móveis e imóveis re-
presentativos do que chamou «a identidade brasileira».
Este artigo visa modestamente à divulgação de elementos da dou-
trina vigente no campo dessa proteção a bens culturais, no plano in-
ternacional, e a situar aspectos da situação atual dessa preservação, no
Brasil, fundamentado para isto em relatórios recentes da própria re-
partição dela encarregada.
Hoje em dia a idéia fundamental em relação à conservação de
monumentos arquitetônicos é a de garantir-lhes certas condições de
sítio, isto é, de «environnement». Ligado em parte a isto observa-se
a tendência crescente ao tombamento de conjuntos urbanos e arquite-
tônico-paisagísticos. A escolha dos mesmos é sempre resultante de
vários critérios de valor e de ponderação e exame das implicações do
tombamento, feitos e aplicados por conselho de especialistas.
No caso de ruínas, a consolidação e conservação do que resta de
um monumento é um passo básico. Chama-se anastilose a reconstru-
ção de um monumento desmembrado, quando fragmentos importantes
subsistem, sendo possível, graças a mensurações e estudos, reconsti-
tuir a sua forma e determinar as suas dimensões com exatidão. De-
vem-se utilizar materiais cujar ou textura se distingam, mesmo
harmonizando-se com o conjunto, do que restara do original. Essa
condição, hoje bastante adotada, inclusive em objetos e bens móveis,
evita a ilusão falsificadora.
H. J. Plenderleith, conhecido especialista e diretor do Centro
de Roma da UNESCO desde 1959, considerou que podem ser feitas
anastiloses audaciosas, desde que:
1 ) Conheçam-se irrefutavelmente os planos e a decoração do
monumento original e o lugar de cada fragmento.
2) O monumento reconstituído se integre na paisagem. Aí di-
minuem os inconvenientes visuais da manutenção dos sinais de recons-
tituição, visíveis de perto, já que êle funciona sobretudo à distância.
3) Exista, ão lado ou bastante perto do monumento, um centro
de documentação permanente que permita verificar quaiso os ele-
mentos originais e quais os reconstituídos (
l
) .
A prática da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-
nal tem recorrido pouco a anastiloses, ao passo que a Direção Geral
dos Edifícios e Monumentos Nacionais do Ministério de Obras-
blicas de Portugal fá-lo mais freqüentemente. O cuidado, a cautela, a
prudência caracterizam sobremaneira a atuação do «Patrimônio» no
Brasil, que emj relação ao uso das anastiloses se acresce da crônica
falta de recursos financeiros que aflige a repartição. Todavia, tanto
no Portugal de hoje como no Brasil, tem-se em mente que a conserva-
ção deve ter prioridade sobre a restauração, como disse P. Coremans,
em reunião do ICOM, em Nova York.
A conservação pura e simples é já tarefa árdua em todos os cam-
pos da arte, devido à ação desagregadora da umidade, às deteriora-
ções mecânicas produzidas pelo calor, à ação de fungos, criptógamos
e vegetais em geral, a de parásitos e insetos, a migração de sais e
eflorescencias, «doenças» de pedras, etc. Tôda uma ciência impede
hoje a adoção de técnicas erradas de conservação e restauração, sobre-
tudo no caso da pintura.
Livros de Plenderleith (La Conservation des Antiquités et des
Oeuvres d'art, Paris, 1966), de G. Thomson e outros {Recent advan-
ces in conservation, London, 1963), de G. L. Stout e outros, bem
como aulas e cursos de especialistas como Edson Motta no caso
brasileirom divulgado soluções aconselhadas pela experiência
científica no campo da conservação e restauração.
Destaque-se o Centro de Roma (Centro Internacional de Estu-
dos para a Conservação! e a Restauração de Bens Culturais) criado
pela UNESCO, na capital italiana, e de cujo Conselhoz parte em
1967-1968 o Brasil, ali representado pelo Diretor do Patrimônio His-
tórico e Artístico Nacional. A sede prevista para a instituição é o Pa-
lazzo San Michele, importante monumento setecentista adquirido em
1968 pelo Governo italiano. O Centro coopera com a «Scuola di Per-
fezionamento per lo studio dei monumenti» da Universidade de Roma.
PRESERVAÇÃO DE VENEZA
Exemplo atual de campanha em desenvolvimento para proteger e
recuperar uma cidade de arte, mantendo-a viva aspecto indispensá-
vel de sua preservação é a organizada pela UNESCO em prol de
Veneza. Campanha difícil, pelas suas implicações com o desenvolvi-
mento industrial e urbanístico da região costeira de Marghera e Mes-
(1) in La Preservation des Biens Culturéis, UNESCO, 1969, p. 142.
tre. O Rapporto su Venezia de Rollet-Andriane e M. Conil Lacoste,
numa iniciativa da conhecida entidade, reúne conclusões e informa-
ções a respeito do atual conflito entre a potente indústria petroquí-
mica de Marghera e o destino da capital do Adriático. As principais
conseqüências desse contraste imporão um planejamento de expansão
econômica de que até hoje, em lugar nenhum do mundo, se teve pre-
cedente. A livre iniciativa econômica chocar-se-á com o imperativo
da salvaguarda de um patrimônio histórico e artístico excepcional.
Talvez a inteligência humana forneça meios para mudar, parcial e
sabiamente, o complexo industrial. A batalha está travada.
Em janeiro de 1967 saía a edição do Le Courrier sobre Floren-
ça-Veneza / ufna campanha mundial da UNESCO, incluindo aspe-
tos dos estragos e desgastes causados pela grande inundação de
novembro de 1966. Para a história da preservação de bens culturais é
um número excepcional. Em dezembro de 1968, publicou-se o núme-
ro VENEZA EM PERIGO com belas e inúmeras ilustrações. A se-
gunda parte da revista inclui o apelo oficial de René Maheu, diretor
geral da instituição (ligada à ONU) em prol da salvação, dos templos
da ilha de Filae, no Egito, lançado aos 6 de novembro de 1968, tam-
m no campo da arqueologia e história da arte.
No tocante a Veneza já foi assinado acordo preliminar entre o
Governo italiano e a UNESCO, visando à sistematização da campa-
nha e a um plano, de bases internacionais, para salvar a vitalidade da
bela urbs do Adriático.o se trata só de manter de pé os monu-
mentos, cada vez mais abalados pelas inundações ou, um pouco, pelas
ondas diárias produzidas pelas lanchas nos canais, mas de dar condi-
ções de vida jovem e ativa à cidade, prejudicada pelas novas forma-
ções urbanas e industriais, da terra firme, em frente das ilhas da lagu-
na vèneta.
Ali Vrioni, técnico da referida orgnização internacional, assina ex-
celente artigo, cujo título conclui: «ainda há tempo de salvar Veneza».
Mas alerta: «as possibilidades de sobrevivência física de Veneza se ve-
o igualmente afetadas;o há nenhuma garantia de que uma cidade
transformada em museu, parcialmente despovoada e de capacidades
econômicas aleatórias possa defender-se contra a natureza e os efeitos
nocivos da atividade humana com a mesma eficácia de uma cidade em
plena explosão vital (pag. 7).
Em 70 anos Veneza afundou 20 centímetros e a isso adiciona-se a
ação dos gases das fábricas próximas, que estão ràpidamente alte-
rando os aíreseos e pinturas reunidos através dos séculos na pérola do
Adriático, verdadeira maravilha do mundo, cidade dos 10.000 tesou-
ros, como escreve em bom artigo neste mesmo número — o escritor
francês Louis Frederic, também da UNESCO.
Êle aponta a verdadeira e multiplicada conspiração da natureza
contra a arte, nos últimos tempos, na quase legendária metrópole das
águas, cidade «cuja decoração confirma a continuidade do espetáculo
que Veneza constitui». E acusa o perigo das eflorescencias salinas,
que atacam a superfície das fachadas, as fundações dos palácios, as
pinturas, somadas curiosamente ao do péso e decomposição de
detritos orgânicos dos milhares de pombos da cidade. uma pintura
emo Moisés tinha por trás «um peso de 500 quilos desse guano»
(pg. 27).
Técnicos italianos ou mundiais, porém, irão salvá-la. Folgamos
com isto pelo proveito direto e por um sentimento de universalismo
natural na humanidade mesmo evocando melancólicamente num
plano menor e para lição moral que no Brasilo se soube evitar
o fim dos belos e importantes azulejos do Solar do Saldanha, na Bahia,
somente ameaçados pelo desleixo dos homens, que os destruiu impie-
dosamente.
Após o salvamento de Abu Simbel, no Egito, teremos ainda ali,
pois, o de Filae e, na Europa, seguramente, o muito mais dificil, de
Veneza.
A atual ameaça de morte contra essa cidade única voltando ao
assuntoo é figura de retórica e está superiormente analisada no
volumoso documento «Apresentação dos Problemas de Veneza», pre-
parado pela UNESCO, com inteligência e ciência. As marés, as cor-
rentes marítimas, conjugadas a resultados de desvio de rios próximos
e de aterro de paludes vizinhos e, diretamente, o lento mas notável
afundamento dos solos da laguna vèneta, combinado com o alteamento
do nível do mar e das chamadas águas-altas (inundações periódicas)
e a maior freqüênciaí destas, nos últimos anos, aceleraram de muito o
perigo de fim à vista para Veneza.
A citada organização internacional se prepara para colocar à dis-
posição das autoridades italianas estudos sobre a hidrografia lagunar,
correntes, fenômenos de mecânica dos solos e, por firn, influências hi-
drobiológicas indispensáveis a uma ação de proteção. As decisões serão
italianas. O governo do país já criou organismos de estudo, de coorde-
nação e de ação neste particular no nível nacional e no local.
Masz bem em convidar a UNESCO a cooperar nas tarefas de sal-
vação de Veneza.
Notícias vindas da mesma cidade informaram recentemente que
uma comissão do governo italiano concluiu que Veneza será destruída
pelo mar no prazo de 20 anos, ao ser que as águas dos canais so-
fram uma drenagem parcial. Para evitar o desastre, a comissão, que
é composta de 70 membros, propôs um programa de oito pontos. O
professor Antônio Franco, chefe da mesma, disse que Veneza afun-
dou quase 100 milímetros entre 1904 e 1952 e submergiu outros 50
milímetros de 1952 a 1961, e previu que a «Cidade das Góndolas»
afundará outros 200 milímetros até o ano de 1990, enquanto o nível
das águas se elevará 100 milímetros no mesmo período. Acrescentou
que cinco grupos de peritos estabeleceram o seguinte programa para
salvar a cidade: imediata construção de um aqueduto para abastecer
as indústrias em terra; revisão do sistema de água potável da cidade;
todos os poços artesianos da zona deverão ser fechados dentro de dois
anos; tôdas as perfurações petrolíferas no Mar Adriático, perto de Ve-
neza, devem ser proibidas; devem ser proibidas novas obras ao longo
dos rios Benta e Piave sem que antes sejam feitos estudos para de-
terminar suas conseqüências em relação à cidade; nos canais a ãgua
deve ser bombeada sob a terra; o governo deve conceder subsidios aos
venezianos que desejam reparar seus edifícios; deve ser financiada a
construção de um modelo de Veneza e dos canais para que sejam estu-
dados os efeitos das marés e correntes sob as águas».
Sintetizemos a situação, verdadeiramente alarmante. Esculturas
caem, pinturas se descoloram, edifícios tombam em ruínas, 3.500 pes-
soas por ano sobretudo jovens abandonam definitivamente a sua
cidade, cujo casario fica cada vez mais vazio e em péssimo estado.
O relatório da UNESCO conclui: é necessário dar à cidade novo im-
pulso e nova juventude. Venezao renuncia à vida es no mun-
do inteiro desde os intelectuais, metaforicamente, de todos os >em-
pos passados, aos poetas e artistas e homens sensíveis de hoje e aos
homens comuns (seguramente mais cultos) dos próximos séculos
o renunciamos a essa maravilhosa e quase irreal cidade. O Governo
e o povo brasileiros devem ajudar financeiramente de modo direto
ouo — a Campanha da UNESCO para preservar Veneza. Va-
mos todos a bem da cultura e da humanidade, da paz e do espírito de
fraternidade construtiva, impedir, modestamente que seja, o declínio,
inadmissível, da cidade do Adriático.
PRESERVAÇÃO DO BARROCO IBERO-AMERICANO
E AS NORMAS DE QUITO
Papel de relevo à proteção e conservação do passado histórico e
artístico na América Latina coube a algumas instituições nacionais
que recolheram documentação e publicaram análises de monumentos,
em alguns dos nossos países. O estudo é necessariamente a base para
a preservação de um patrimônio histórico e artístico nacional ou conti-
nental e o fundamento desse estudo, com as pesquisas e investigações
necessárias, está sendo elaborado por institutos ou centros como o Ins-
tituto de Investigações Estéticas da Universidade do México, o Insti-
tuto de Arte Americana e Investigações Estéticas da Faculdade de Ar-
quitetura e Urbanismo da Universidade de Buenos Aires, o Centro de
Investigações Históricas e Estéticas de igual Faculdade da Univer-
sidade Central da Venezuela e, num plano especial, a Diretoria do Pa-
trimônio Histórico e Artistico Nacional do Ministério da Educação e
Cultura do Brasil.
Para a preservação dos monumentos e o turismo cultural o pro-
blema de interligação ibero-americana começou a ficar bem encami-
nhado recentemente. Deve-se dizer que finalmente está se implan-
tando na América do Sui, com o apoio e diretivas iniciais da UNESCO
e com nova orientação bastante significativa e digna de encomios
da OEA, a noção da salvaguarda e recuperação de monumentos e con-
juntos histórico-artísticos, entrosados ao desenvolvimento do turismo,
como fonte de renda para uma região.
1969 afigurou-se, nesse particular, como o começo prático de nova
era, o lançamento de outra etapa na preservação de patrimônios his-
tóricos e artísticos nacionais, a cujo fecundo impulso muito se deverá,
brevemente. uma das últimas publicações da OEA (
2
) intitula-se pre-
cisamente Preservación de Monumentos, n' 2 da série Patrimônio Cul-
tural, P.A.U., Washington, 1968. Apresenta as chamadas Normas
de Quito, com o informe e as conclusões da hoje já famosa reunião ce-
lebrada na capital equatoriana, de 29 de novembro a 2 de dezembro de
1967, estudando a aplicação imediata de uma das atividades previstas
para a OEA pela Declaração dos Presidentes das Américas, de Punta
del Este, de 1967. Decidiu-se ali «estender a cooperação interameri-
cana à conservação e à utilização dos monumentos arqueológicos, his-
tóricos e artísticos».
Da reunião no Equador participou o arquiteto Renato Soeiro, Di-
retor do Patrimònio Histórico e Artístico Nacional do Ministério da
Educação e Cultura do Brasil. Sua experiência e o reconhecimento
internacional do prestígio dessa repartição conduziram à indicação, no
término da Reunião, da sugestão para funcionamento, no Rio de Ja-
neiro, de um Centro Interamericano de formação em matéria de IÍS-
tauração e «colocação em valor» de monumentos e lugares de interesse
histórico e artístico. Posteriormente, a quinta reunião do Conselho
Interamericano Cultural aprovou Resolução (21-68) a respeito.
Pouco depois, a participação de Soeiro, como vice-presidente da
importante reunião promovida pela UNESCO, em Pistoia (Itália) de
9 a 14 de setembro de 1968, destinada a estudos sobre Formação dos
Arquitetos e Técnicos em Matéria, de Conservação dos Monumentos) e
Sítios levou-o a encarar ainda mais bem como a seus companheiros
técnicos da OEA a necessidade de obter arquitetos especializados
nesse setor, apoiando todos a proposta de extensão do Centro previsto
no Rio ao campo da formação de arquitetos especializados, feita
1
por
G. de Zéndegui.
O relatório final de Pistoia era excelente, incluindo o histórico
do aspecto educacional em causa e o texto básico de nosso antigo colega
(2) Circulando no Brasil aos cuidados de Waldemar Lopes e G. Jardim,
U.P.A., Rio de laneiro.
do ICOM, Pietro Gazzola, atual presidente do ICOMOS, que tamb'ém
estudava a participação do ensino de disciplinas históricas na forma-
ção de arquitetos. Trata-se de belo relatório, longo e pertinente, que
conclui apresentando os moldes de funcionamento, anexo à Faculdade
de Arquitetura da Universidade de Roma, de uma Escola de pós-gra-
duacão e aperfeiçoamento de arquitetos especializados em monumen-
tos. É internacional, sendo os cursos dados em italiano, francês e
inqlês, em cinco seções. Esse Curso corresponderia a uma necessidade
e foi estabelecido como promoção da UNESCO.
Para o mundo latino-americano, um curso bem mais modesto,
ao início será criado no Rio de Janeiro, de acordo com a decisão
já referida, de passagem em janeiro último do grupo de trabalho
que reestruturou o Departamento de Assuntos Culturais da OEA, reu-
nido em Washington, igualmente com a presença de Renato Soeiro.
Relembre-se, ainda, que se a UNESCO foi o primeiro organismo
internacional a pensar na reorganização do conjunto «Pelourinho», no
Salvador, em bases práticas de finalidade turística, coube a OEA apro-
var, na reunião de Quito, esse projeto, como um dos planos-pilotos a
serem executados com o apoio financeiro da entidade.
As Normas de Quito deixam bem claro que as medidas levando
à preservação de monumentos se ligam a uma adequada utilização dos
mesmos e «não só guardam relação com os planos de desenvolvimen-
to, comoo ou devem ser parte dos mesmos».
A Resolução n
9
2 do C.I.C. da OEA já estabelecera que «a ex-
tensão da assistência técnica e ajuda financeira do patrimônio cultural
dos Estados-Membros será levada a cabo em função de seu desenvol-
vimento econômico e turístico». Isso implica na Planificação em nível
nacional, isto é, «a avaliação dos recursos disponíveis e a formulação
de projetos específicos dentro de um plano regulador geral».
O Capítulo VI das Normas de Quito, tratando da «Colocação em
valor», estabelece que se incorporará a um potencial econômico um va-
lor atual e se o acrescentará através da pasasgem da cultura, do domí-
nio de minorias eruditas para o das maiorias populares.
O item 6 dessa parte faia do incremento do valor real de um bem
por ação reflexa, constituindo uma forma de plus-valia que deve ser le-
vada em conta pelos órgãos estatais, contrabalançando através de taxa-
ção o caso oposto em que o ambiente preservado diminui o valor
econômico de prédios próximos dos monumentos, que ficarão com seus
impostos diminuídos.
A lei deve ser justa em ambos os casos. E, além disso, previu-se
em Quito as reações contrárias de interesses privados e a necessidade
de contorná-las, por formação de uma consciência pública ou cívica
de apoio ao interesse superior da coletividade, neste terreno.
Recomendou-se também, na reunião do Equador, o lógico e indi-
cado contato com Espanha e Portugal, no estudo dos monumentos, já
que a restauração só vai até o momento «em que começam as hipó-
teses» .
A prioridade dos projetos levará em conta a avaliação dos be-
nefícios econômicos que de sua execução advirão para uma área dada.
O estudo de grandeza das inversões e das etapas necessárias até fin-
darem-se os trabalhos de restauração e conservação incluem as obras
de infraestrutura e adaptações, que o equipamento turístico exija, para
a colocação em valor dos monumentos. O secionamento em etapaso
fará perder de vista a obra global e sobretudo a continuidade de pes-
quisas, estudos e catalogação e inventários a respeito.
como vemos, estamos no pórtico de nova era para o Patrimônio
Histórico e Artístico nos países da América do Sui. Para o México e
um pouco a América Central essa nova etapa chegou mais cedo, devi-
do a importância que ali logo se deu ao turismo, como indústria e fonte
de renda capaz de auxiliar a cultura.
Que o Ministério da Educação e Cultura e os órgãos executivos
do nosso país continuem aprovando as novas tarefas da DPHAN, nesse
terreno de singular importância e atualidade,o os votos de todos os
técnicos e dos homens cultos do Brasil, no plano nacional. Tornou-se,
inclusive, urgente, a enunciação de Curso de Pós-Graduação dos refe-
ridos Arquitetos Especialistas, nas atuais formulações da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, em vista de possível convênio com o Centro
Interamericano a ser criado nesta cidade.
DEGRADAÇÃO DE MATERIAIS E PROBLEMAS CONSERVATIVOS
DE ESCULTURAS AO AR LIVRE
Em setembro de 1969 realizou-se importante simpósio científico
sobre o tema acima, em Bolonha, e mostra documentária a respeito
nessa cidade e, pouco antes, em Ferrara. Esses empreendimentos se
deveram conjuntamente ao Ministério da Educação italiano, a Entida-
de de Manifestações Artísticas de Bolonha e ao Município e à Pro-
víncia de Ferrara.
O volume publicado a respeito na grande cidade da Emilia é um
resumo notável da ação do ar poluído, com fumaças diversas e forma-
ção de ácido sulfúrico e outras substâncias e sua atuação sobre as pe-
dras e os metais.
Giorgio Tottaca estudou inicialmente as alterações das pedras,
suas causas e métodos de tratamento. A seguirm exemplos de fenô-
menos de degradação em monumentos de Ferrara (Duomo), Bolo-
nha, (San Petronio e uso de arenarias), Modena (obras de Wiligelmo
e outros no Duomo), Parma (esculturas de Antelami), Florença e Ve-
neza. O nível dos trabalhos é surpreendente, dando um exemplo de
método científico simultaneamente aplicado no campo da restauração e
no da História da Arte.
Snyers e Henau estudam «a conservação da pedra» no já citado
manual da UNESCO de 1969 e o ICOMOS programou há poucos me-
ses reunião sobre a proteção de obras desse material. O problema
atinge o Brasil em áreas como a da pedra-sabão e da proteção aos 12
profetas do Aleijadinho, em Congonhas.
CARTA DE VENEZA
Em relação às grandes linhas de conservação de monumentos ar-
quitetônicos nada melhor do que reproduzir, a seguir, os termos da
Carra de Veneza,o citada e que regí) o ICOMOS (Conselho In-
ternacional de Monumentos e Sítios), entidade ligada à UNESCO.
Diz, o documento, o seguinte: «O II Congresso Internacional de
Arquitetos e de Técnicos de monumentos históricos, realizado em
Veneza de 25 a 31 de maio de 1964, aprovou o seguinte:
«A noção de monumento compreendeo só a criação arquitetônica
isolada, mas também a moldura em que ela é inserida. O monumento
é inseparável do meio onde se encontra situado e, bem assim, da
história da qual é testemunho. Reconhece-se, conseqüentemente, um
valor monumental tanto aos grandes conjuntos arquitetônicos, quanto
às obras modestas que adquiriram, no decorrer do tempo, significação
cultural e humana.
«A conservação e a restauração de monumentos constituem dis-
ciplina que apela para tôdas as ciências e tôdas as técnicas capazes
de contribuir para o estudo e salvaguarda do patrimônio nacional, sob
a direção de arquitetos especializados.
«A conservação e a restauração de monumentos visam a salva-
guardar tanto a obra de arte, quanto o testemunho histórico.
«A conservação de monumentos é sempre favorecida quando se
atribui a esses monumentos função útil à sociedade, utilização essa que
o pode alterar a disposição dos elementos que os compõem, nem
seu ambiente. É, pois, dentro desses limites que devem ser concebidas
e podem ser autorizadas as reformas exigidas pela evolução dos usos
e costumes.
«A conservação de monumentos impõe, antes de tudo, perseve-
rança em sua manutenção.
«Desde que as técnicas tradicionais se revelem insuficientes, a
consolidação de um monumento pode ser assegurada recorrendo-se
a tôdas as técnicas modernas empregadas em obras de conservação
e de construção, cuja eficácia tenha sido comprovada por meios cien-
tíficos e pela experiência.
«A restauração é uma operação que deve ter caráter excepcional.
Ela visa a conservar e a revelar o valor estético e histórico do monumento.
Apóia-se no respeito à substância da coisa antiga ou sobre documentos
autênticos e deverá deter-se onde começa a conjetura. Além disso,
todo trabalho complementar, verificado indispensável, deverá se des-
tacar da composição arquitetônica e levará a marca de nosso tempo.
«Os elementos destinados a substituir as partes que faltarem,
deverão integrar-se harmoniosamente no conjunto, embora distinguin-
do-se dos elementos originais, a fim de que a restauraçãoo falsifique
o documento de arte e de história.
«As contribuições de tôdas as épocas para a construção de um
monumento devem ser respeitadas,o devendo considerar-se a unidade
do estilo como o objetivo a alcançar no curso de uma restauração.
«Quando ocorrem num edifício diversas contribuições superpostas,
a recuperação do estado jacenteo se justifica senão excepcionalmente
e sob a condição de que os elementos a serem retiradoso apresentem
nenhum interesse, ao passo que a composição, colocada à mostra,
constitua um testemunho de alto valor histórico, arqueológico ou estético
e seu estado de conservação seja julgado satisfatório. O julgamento
do valor dos elementos em causa e a decisão sobre as eliminações a
serem feitaso podem depender somente do critério do autor do
projeto.
«Os acréscimoso podem ser tolerados senão quando respeitem
tôdas as partes interessantes do edifício, seu quadro tradicional, o equi-
líbrio de sua composição e suas relações com o meio ambiente.
«A remoção total ou parcial de um monumento do sítio original
para outro localo pode ser tolerada, salvo se sua preservação assim
o exigir ou se razões de grande interesse nacional ou internacional a
justificarem.
«A preservação do monumento implica a da moldura tradicional;
as construções, demolições ou agenciamentos novoso poderão, pois,
alterar as relações de volume e colorido do monumento com seu am>
biente próprio.
«Quer sejam urbanos ou rurais, os sítios queo testemunhos
de determinada civilização, de algum acontecimento histórico ou de
uma evolução significativa, devem constituir objeto de cuidados especiais
tanto com o objetivo de salvaguardar sua integridade e assegurar seu
saneamento, como de favorecer seu agenciamento e valorizar sua
ocorrência. Conseqüentemente, todo elemento arquitetônico ou de
outra espécie que lhe comprometa o equilíbrio ou a escala deve ser
evitado ou eliminado.
«Os trabalhos de escavações devem ser executados de conformidade
com as normas definidas pela recomendação da UNESCO, de 1956.
relativas a escavações arqueológicas. O agenciamento de ruínas e as
medidas necessárias à conservação e à proteção permanente dos ele-
mentos arquitetônicos, assim como dos objetos descobertos, serão
assegurados. Por outro lado, tôdas as iniciativas deverão ser tomadas
com o objetivo de facilitar a compreensão do monumento descoberto
sem, jamais, desvirtuar sua significação. Todo trabalho de reconstrução
deverá, entretanto, ser excluído a priori; somente a anastylose pode ser
admitida, quer dizer, a recomposição de partes existentes, porém des-
membradas. Os elementos de integração serão sempre identificáveis
e representarão o minimo necessário para assegurar as condições de
conservação do monumento e restabelecer a continuidade de suas formas.
«Os trabalhos de conservação, de restauração e de escavações
serão sempre acompanhados de uma documentação precisa sob a forma
de relatórios analíticos e críticos, ilustrados com desenhos e fotografias.
«Tôdas as fases dos trabalhos de recuperação, de consolidação,
de recomposição e de integração, assim como os elementos técnicos e
formais identificados no decurso dos trabalhos, deverão ser consignados
nos mesmos relatórios. Essa documentação deverá ser depositada em
arquivo de órgão da administração pública e posta à disposição dos
pesquisadores; sua publicação é aconselhável. Veneza, 29.V. 1964.»
CONFERÊNCIA EUROPÉIA DOS MINISTROS RESPONSÁVEIS
PELA DEFESA E VALORIZAÇÃO DE SITIOS E CONJUNTOS
DE INTERESSE HISTÓRICO E ARTISTICO
O Conselho da Europa levou a efeito em Bruxelas, de 25 a 27
de novembro de 1969, importante Conferência de Ministros de Estado
dos 18 países membros de seu Conselho de Cooperação Cultural, para
tratar do patrimônio cultural imóvel. Foi a primeira Conferência da
organização nesse domínio;o visava, segundo palavras do Príncipe
de Liège, «colocar em evidência aspectos sobretudo políticos de ação
que os Governos serão chamados a empreender num futuro imediato,
em conseqüência das decisões da própria reunião».
Dois relatórios dos três que serviram de base à Conferência tratavam
respectivamente do «Valor do patrimônio imóvel do passado para a
vida do homem de amanhã e a integração dos sítios e conjuntos históricos
na vida econômica e social» e «A formação e informação da opinião
pública, nas questões relativas à defesa dos monumentos históricos».
Duas resoluções foram publicadas, em conseqüência dos trabalhos
efetuados. A primeira dizia essencialmente:
Considerando:
que os cinco confrontos de estudos sobre o assunto
realizados pelo CE. fizeram ressaltar claramente todo o
valor que o patrimônio cultural imóvel possui, tanto do ponto
de vista cultural como dos pontos de vista humano, social e
econòmico e que os mesmos sublinharam as múltiplas ameaças
que em todos os países pesam sobre este patrimônio europeu;
que o agravamento destas ameaças é inquietante em
razão do desiquilíbrio crescente entre os perigos a eliminar
e os recursos disponíveis para fazer face a isso;
que a tomada de consciência do valor social deste
patrimônio lhe confere uma dimensão nova que impõe sua
conservação e sua integração ativa na vida dos homens.
Recomenda aos Governos, notadamente:
Fazer ràpidamente inventário de proteção dos bens
culturais, para que as informações recolhidas possam servir
de base aos planos de urbanização ou aproveitamento do ter-
ritório ou a outras medidas de proteção.
Integrar esse patrimônio cultural na política geral de
aproveitamento do território, sobretudo pela cooperação per-
manente em todos os níveis das administrações.
Adoção de medidas de ordem fiscal e sucessoral e
administrativa encarregando os proprietários ou usuários a
assegurarem a reanimação ou restauração do patrimônio cul-
tural imóvel.
Incluir nos orçamentos trabalhos de proteção aos bens
colocados em perigo por trabalhos públicos ou privados.
Sugeria ainda:
A elaboração de uma Carta enunciando a política global de salva-
guarda e reanimação desse patrimônio.
Que se fizesse brevemente o Ano Europeu da Con-
servação do Patrimônio Cultural Imóvel (1970 é o ano da
Conservação da Natureza).
MANUAL DE PRESERVAÇÃO DE BENS CULTURAIS
A XI publicação da série Museus e Monumentos da UNESCO
lançada em 1969 é o volume La preservation des biens culturels/ no-
tamment en milieu tropical, redigido em cooperação com o Centro de
Roma da UNESCO e também publicado em espanhol e inglês.
Livro prático, verdadeiro manual, será útil aos que trabalham,
com seriedade, neste setor. O 11" estudo: A conservação dos sitios
urbanos é de autoria de Rodrigo M.F. de Andrade, que ainda viu o
livro impresso, semanas antes de seu falecimento. Ao que me informara,
foi revisto por comité da publicação, que unificava certos aspectos em
todos os estudos publicados, mas guardou a marca essencial do autor
e nos transmite a sua preciosa experiência, obtida com bom senso,
neste setor. Rodrigo toma explicitamente Ouro Preto como paradigma
para ilustrar bom número de pontos da problemática em questão. A
inspeção para verificar se as leis estão sendo cumpridas, os efeitos da
modernização e expansão urbana, conflitos de jurisdição, planejamento
dos transportes e aspectos práticos de preservaçãoo ali estudados.
O respeito pela configuração do sítio, inclusive nos «acidentes
geográficos», desníveis do solo em velhas estradas ou ruas, jardins
públicos ou privados deve tender a conservação e o caráter original
da urbs. A conservação de uma paisagem urbana inteira pode apre-
sentar tanta importância como a de um monumento particular e sua
vizinhança, diz-nos.
Certas formas de publicidade comercial devem ser excluídas e
esta obedecerá a normas estritas quanto às dimensões, forma, apre-
sentação, localização e conteúdo, para poder figurar em sítio tombado
ou nas suas proximidades.
Em relação aos critérios para novos edifícios Rodrigo diz que, caso
se trate de preencher, num bairro histórico, certos espaços vazios, é
o princípio da fiel imitação que deverá prevalecer. Em outros casos,
com uso de materiais diferentes dos antigos, convém acentuar ao
máximo o contraste. Nos dois casos o sucesso dependerá aliás da
competência e senso artístico do arquiteto, conclui. Em geral acres-
centou a criação de molduras ou «décors» mais ou menos fictícios
é a desaconselhar e, em tôdas as circunstâncias, devem-se evitar as
demasiadas diferenças de escala e velar pela harmonia das cores e
proporções.
A UNESCO E O PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DO BRASIL
Michel Parent, Inspetor principal dos Monumentos Franceses,
cedido pelo Ministério da Cultura da França à UNESCO, foi en-
carregado de estudos preliminares sobre a valorização dos locais tom-
bados pela D.P.H.A.N. no Brasil. Os resultados do trabalho foram
enfeixados no chamado Relatório Parent, que constitui «verdadeira aná-
lise histórica e crítica do acervo monumental brasileiro».
A missão se deteve principalmente nos seguintes locais: Alcântara
«conjunto de monumentos históricos localizados numa ilha a 30 minutos
de lancha deo Luiz do Maranhão», Olinda (inteiramente tombada
pela D.P.H.A.N.) Pelourinho (bairro de Salvador), Parati (cidade
litorânea do Estado do Rio) também tombada, Ouro Preto, Anchieta
(no Espírito Santo) e zona das Missões, no Rio Grande do Sui.
Três projetos principais foram elaborados, relativos a Parati, Ouro
Preto e Pelourinho. Os estudos preliminares sobre Parati couberam
ao arquiteto belga Limburg Stirum; os de Ouro Preto (e futuramente
os de Alcântara) ao urbanista português Viana de Lima. Os do
Pelourinho aos urbanistas ingleses Schankland, Walton e Morris, que
aqui permaneceram desde fins de 67 até meados de 68.
O bairro do Pelourinho, um dos mais antigos do Brasil, será, em
1973, de acordo com os planos já aprovados, um centro de atração
turística. As obras compreenderão a restauração de quase mil edifícios
dos séculos XVIII e XIX que compõem o bairro atualmente em
precárias condições, transformados em casas de cômodos — e os ser-
viços de calçamento e esgoto. Quase tôda a população será transferida
para residências fornecidas pelo Banco Nacional de Habitação.
Os casarões e as unidades menores, depois de restaurados man-
tendo-se o estilo do século em que foram construídos, serão transfor-
mados em hotéis, cinemas, teatros, atelier de artistas populares, escolas
de artes plásticas, salas de exposições e lojas de objetos típicos. . O
governo Luis Viana Filho, que organizará belo museu regional no
antigo Engenho Freguezia, no Recôncavo, criou a Fundação do Pa-
trimônio Cultural da Bahia, destinada a executar as obras do projeto.
Anote-se ainda que a Embratur acompanha os trabalhos dando total
apoio à D.P.H.A.N. A UNESCOo financia projetos deste tipo,
limitando-se a fornecer assistência técnica e providenciando eventual
contribuição de organizações financeiras internacionais, interessadas em
investimentos em nosso país.
Contribuíram para os mencionados entendimentos o Prof. Carlos
Chagas Filho e o Prof. Paulo Carneiro, antigos Delegados do Brasil,
na UNESCO.
DIRETORIA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTISTICO NACIONAL
O objetivo principal da Diretoria do Patrimônio Histórico e Ar-
tístico Nacional é o tombamento, a conservação e a colocação em valor
do patrimônio cultural nacional, móvel e imóvel. Compreende a Di-
retoria duas grandes divisões: a) Estudos e Tombamento e b) Con-
servação e Restauração, cada uma delas subdividida em duas seções:
Arte e História (na primeira) e Projetos e Execução (na segunda).
Inclui 4 Distritos, localizados em Salvador, Recife, Belo Horizonte e
o Paulo, cujos Chefes se beneficiam, como observou Coremans, de
autonomia suficiente para prosseguir nas tarefas correntes. Na Bahia,
em Pernambuco, Estado do Rio de Janeiro, Guanabara e Minas Gerais,
se encontra a maior concentração de monumentos antigos e obras de
arte do país.
Paul Coremans, em seu relatório de junho de 1964 à UNESCO
considerou indispensável a reestruturação da Diretoria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, que, sugeriu, deveria se transformar
num Instituto, com edifício próprio, moderno, a ser construído «e que
serviria de exemplo a tôda a América Latina».
O atual Diretor da Repartição, Arquiteto Renato Soeiro, resumiu
em relatórios e pareceres recentes, no Ministério da Educação e no
Conselho Federal de Cultura, o planejamento para reformular a Di-
retoria e atender às necessidades do país neste setor.
Segundo êle, entre outras coisas:
«A instrumentação atualizada da DPHAN adaptando-se ao
artigo 172 de Decreto-lei n° 200 de 25 de fevereiro de 1967, consta
das sugestões encaminhadas ao Senhor Ministro da Educação e Cul-
tura e foi então indicada em organograma anexo, destacando-se:
a) criação de mais (4) quatro Divisões técnicas correspondentes
aos serviços de:
I Restauração de obras de talha e pintura, que já funciona
cm âmbito nacional e interamericano;
II Arqueologia que vem promovendo sistemàticamente o ca-
dastramento das jazidas arqueológicas em todo o país;
III Museus regionais e casas históricas que, à vista das ini-
ciativas já realizadas e programadas, necessita estruturação própria, e
finalmente a de:
IV Difusão cultural, que deverá abrangero só a divulgação
através do ensino, como a iniciativa de execução de filmes documentários,
publicações, programas de Rádio e TV Educativa, além da promoção
de exposições, conferências, iniciativas ligadas ao turismo cultural, etc,
atividades muito restritas até então. Para caracterizá-las, basta citar
o fato de, por carência de meios, há 6 anos, estarem suspensas as suas
publicações especializadas.
b) organização de mais 5 (cinco) Distritos, com sedes nas ci-
dades de Belém (Estado do Pará);o Luis (Estado do Maranhão);
Rio de Janeiro (Estado da Guanabara); Brasília (Sede) e Pòrto Alegre
(Estado do Rio Grande do Sui).
c) constituição de um Serviço de Consultoria Jurídica.
d) reformulação completa dos seus quadros administrativos e
técnicos.
O diretor da Repartição fornecia-nos então também, com certa
ênfase as Indicações de medidas complementares às leis específicas de
proteção ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional relatadas abaixo:
a) Efetivação da legislação proposta pelo Conselho Federal de
Cultura assegurando utilização condigna e conveniente aos monumentos
inscritos nos Livros do Tombo da DPHAN.
b) Distinção, em projeto a ser proposto, entre zona monumental
e zona de ambientação como indispensável à maior e mais eficiente
proteção aos bens tombados agrupadamente e constitutivos de conjuntos
urbanísticos integrantes do patrimônio histórico e artístico nacional.
Na 1* Zona estaria vedada qualquer interferência, exceto para
fim de recuperação da autenticidade dos atuais componentes e de admis-
o de elementos em áreaso ocupadas e cuja introdução contribua
para a valorização daquela autenticidade. Na 2* Zona será permitida
intervenção desde queo prejudique a ambiência e, especialmente, a
escala da zona monumental.
c) Obrigatoriedade legal de prévia consulta ao órgão encarregado
da proteção do patrimônio histórico e artístico nacional para fim de
aprovação de tôda e qualquer iniciativa, pública ou particular, que
interfira, de algum modo, na visibilidade e na ambiência de bem tombado.
d) Conveniência de se atribuírem aos proprietários mediante
proposta legislativa, de imóveis tombados, que o requeiram, benefícios
e isenções compensatórios dos ônus do tombamento;
e) Conveniência de estenderem-se às atividades culturais os be-
nefícios concedidos pelo Grupo de Trabalho de Reforma Universitária
em favor das atividades educativas.
/) Conveniência de serem sugeridas aos órgãos competentes pela
reformulação dos currículos de ensino, sugestões tendentes à:
l
9
) Introdução nos currículos de ensino, do primário ao univer-
sitário de: noções sobre história da arte; informações sobre a existência
dos monumentos, sua significação e dever de preservá-los, como con-
tribuição indispensável à formação da consciência e da integração da
própria nacionalidade.
2
9
) Criação em grau universitário de cursos de técnica de museus.
3") Criação em grau pós-universitário de cadeiras especializadas
em conservação e restauração de monumentos e de obras de arte
(baseado nas conclusões do encontro de Pistoia, promovido pela
UNESCO, em 14-9-1968).»
As conclusões do Relatório do arquiteto Renato Soeiro, relativo
a 1969, estimam que:
«São perfeitamente conciliáveis as iniciativas visando o desenvol-
vimento dos centros urbanos e rurais com a proteção, a preservação e
a revalorização da paisagem e dos monumentos e demais bens de valor
histórico e artístico ali localizados, desde que respeitada a legislação
específica vigente e judiciosamente projetados os respectivos planos.
Conciliáveis e desejáveis, pois de conseqüências propícias à economia
do próprio país que certamente se beneficiará de uma política inteli-
gentemente planejada de exploração de suas consideráveis riquezas,
paisagísticas e culturais.
«A DPHAN, pela experiência que tem tido com os monumentos
restaurados eo devidamente utilizados, tem adotado como orientação,
sempre que possível, o aproveitamento desses bens da arquitetura civil,
militar e religiosa disponíveis, em museus, casas históricas ou quaisquer
instituições culturais ou de ensino. Essa iniciativa, às vêzes sob a
sua própria responsabilidade, outras por Convênio com entidades idôneas,
objetivao só garantir a esses monumentos sua preservação como
testemunho válido do passado, mas também dar-lhes uma destinação
atuante na sociedade contemporânea.
Para enfrentar êsses desafios, a Diretoria do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional tem procurado:
a promover a realização de planos diretores dos prin-
cipais conjuntos tombados no país, Ouro Preto, Parati, Sal-
vador (Pelourinho),o Luis e Alcântara, com o auxílio de
organizações internacionais, UNESCO e a OEA e dos orga-
nismos nacionais de financiamento;
b acompanhar os projetos de obras públicas junto aos
órgãos específicos DNER, DER, DPVN, EBCT, etc, e
Serviços de Urbanização das Prefeituras Municipais;
c estudar os circuitos de interesse cultural e turístico
com melhoria das vias de acesso e a indicação de unidades
de apoio (Pousadas), sempre que possível em exemplares de
arquitetura tradicional;
d organizar novos museus e casas históricas conciliando
a defesa do patrimônio móvel e imóvel do país;
e solicitar o concurso de outros órgãos da administração
pública federal, dos Governos dos Estados, dos Municípios,
das Universidades e outras instituições públicas ou privadas
através Ajustes ou Convênios;
/ solicitar o concurso da iniciativa privada e de par-
ticulares visando o levantamento de fundos destinados à com-
plementação dos recursos orçamentários da Diretoria do
Patrimônio Histórico e Artistico Nacional como inicialmente
através da Fundação Rodrigo M.F. de Andrade, em orga-
nização.
«Concluindo, esta Diretoria considera da maior necessidade para
o pleno atendimento das atribuições do órgão, o seguinte:
l
9
maiores recursos humanos e financeiros;
2
9
— a complementação da legislação protetora dos bens
de valor cultural do país;
3' flexibilidade do órgão especializado;
4' a remuneração adequada do pessoal técnico espe-
cializado;
5' a formação em pós-graduacão e extensão univer-
sitária de especialistas de conservação de monumentos e
obras de valor cultural;
6° — a informação sobre o valor dos bens de valor
cultural no país, nos currículos de ensino dos diferentes níveis;
7
9
a reformulação da atual Diretoria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional».
CALENDÁRIO CULTURAL DE 1970
Segundo Trimestre
ABRIL
24 DE ABRIL CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE ZEFERINO
BRASIL.
Zeferino de Souza Brasil nascido em Taquari (RS), aos vinte e quatro de
abril de 1870, faleceu no dia 3 de outubro de 1942, em Porto Alegre (RS) . Foi
romancista e teatrólogo mas adquiriu prestígio como poeta, chegando mesmo a ser
eleito o Príncipe dos Poetas do Rio Grande do Sul. De linhagem simbolista, deixou
grande obra inédita. Entre as obras divulgadas, destacamos: Allegros e Surdinas
(1891) Traçosr de Rosa (1893) Alma Gaucha (1935) Vovó Musa
(1903) Torre de Marfim (1910).
29 DE ABRIL CENTENARIO DE NASCIMENTO DE OSÓRIO DUQUE
ESTRADA.
Joaquim Osório Duque Estrada nasceu aos vinte e nove dias de abril de 1870,
em Pati do Alferes (RJ) e faleceu no dia 5 de fevereiro de 1927, no Rio de Janeiro.
E autor da letra oficial do Hino Nacional Brasileiro com música de Francisco
Manuel da Silva.
MAIO
23 DE MAIO DIA DO LIVRO INFANTIL.
O Dia do Livro Infantil foi instituído pelo Decreto-lei n* 1.333 de 20 de
junho de 1967.
JUNHO
6 DE JUNHO SESQUICENTENARIO DE NASCIMENTO DE JOA-
QUIM NORBERTO.
Joaquim Norberto de Souza e Silva nasceu aos seis de junho de 1820, no
Rio de Janeiro e faleceu no dia 14 de maio de 1891 em Niterói (RJ) . Poeta,
romancista, teatrólogo, biógrafo, historiador e crítico literário, cultivou quase todos
os gêneros literários. Foi um dos maiores historiadores da Inconfidência Mineira,
destacando-se com a obra "História da Conjuração Mineira". Entre suas obras
citam-se: Mosaico Poético (1844) Dirceu de Marília (1845) O Chapim
do Rei (1851).
7 DE JUNHO CENTENARIO DE FALECIMENTO DE ARAÚJO LIMA,
MARQUÊS DE OLINDA.
Pedro de Araújo Lima nascido era 22 de dezembro de 1793, em Serinhaém,
hoje Gameleira (PE), e falecido aos sete dias de junho de 1870, no Rio de Janeiro.
Politico abstraído das causas populares, nao deixou seu nome ligado à nenhum
movimento do Império, à exceção do período regencial.
19 DE JUNHO CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DE PANDIA
CALÓGERAS.
João Pandiá Calógeras nasceu aos dezenove dias de junho de 1870, no Rio
de Janeiro e faleceu no dia 21 de abril de 1934 em Petrópolis (RJ). Engenheiro,
deputado em várias legislaturas, ministro de Estado em dois governos (foi o pri-
meiro Ministro da Guerra civil) e escritor, teve a sua vida dedicada aos grandes
estudos sobre o Brasil. Autor de vasta obra de sociologia e de história, com
sucessivas edições.
24 DE JUNHO SESQUICENTENARIO DE NASCIMENTO DE JOA-
QUIM MANOEL DE MACEDO.
Joaquim Manoel de Macedo nasceu aos vinte e quatro dias de junho de 1820
em Itaboraí (RJ) e faleceu no dia 11 de abril de 1882 no Rio de Janeiro. Con-
siderado o fundador do romance nacional, seu prestígio de ficcionista na época só
foi superado pelo de Alencar. Sua produção é das mais vastas abrangendo o
romance, a poesia e o teatro. Entre suas obras se destacam: A Moreninha (1844)
reeditada constantemente - O Moço Loiro (1845) As Mulheres de Man-
tilha (1870).
27 DE JUNHO CENTENARIO DE NASCIMENTO DE ALFREDO DE
CARVALHO.
Alfredo Ferreira de Carvalho nasceu aos vinte e sete dias de junho de 1870,
em Recife (PE) e faleceu no dia 23 de junho de 1916 na mesma cidade. Jorna-
lista, critico de arte e de literatura, historiador. Foi por excelência um historiador
de Pernambuco, tendo traduzido e escrito vários trabalhos sobre o domínio holandês
no Brasil. Antes de morrer dedicou-se a dois trabalhos: "Anotações à História
da Revolução de 1817" e "Biblioteca Pernambucana Alienígena", obra ilustrada.
(Notas de Luiz ANTONIO BARRETO)
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
4
Abril/Julho 1970
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura
DIRETOR:
Mozart de Araújo
CONSELHO DE REDAÇÃO:
Clarival do Prado Valladares
Manuel Diégues Júnior
Adonias Filho
Pedro Calmon
Afonso Arinos de Melo Franco
Redação: Palácio da Cultura 7' andar
Rio de Janeiro Brasil
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
ANO H
ABRIL / JUNHO - 1970
. 4
Sumário
ARTES
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
CARLOS CAVALCANTI
OCTAVIO DE FARIA
Arte de Formação e Arte de
Informação 9
Os três profetas da pintura
moderna 27
Problemas do cinema nacional
em 1969 49
CIÊNCIAS HUMANAS
AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO ....
Luis
DA CÂMARA CASCUDO
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
IR . JOSÉ OTÃO
ALMIR DE ANDRADE
HÉLIO VIANNA
Ciência política nos países tro-
picais 63
Adivinhando chuva... 75
D. João VI e o inicio da
modernização do Brasil 95
Instituições culturais do Rio
Grande do Sui 109
O tempo como horizonte e con-
teúdo do ser 123
Cartas de Alexandre Herculano
a Joaquim Pinto de Campos 145
LETRAS
GILBERTO FREYRE, GILSON SOARES E
JOSÉ FRANCISCO CARNEIRO
ANDRADE MURICY
Heróis e vilões no romance bra-
sileiro 155
Nova Hélade 175
Calendário cultural 189
Artes
ARTE DE FORMAÇÃO E ARTE DE INFORMAÇÃO
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
I
O quadro sociológico brasileiro, de profunda diferença de classes,
explica a relevante desigualdade entre a arte que se produz nos estra-
tos sociais elevados, e aquela outra que se motiva e se consome ao
nível das comunidades economicamente inferiores.
Conceituamos arre popular como aquela da cultura-base limitada
aos produtos de inerência estética motivados e consumidos em seu pró-
prio meio econômico e cultural. Corresponde, por conseguinte, aos pri-
meiros fundamentos da arre de formação. Esta diferenciação é indis-
pensável parao incluir, inadvertidamente, os inumeráveis exemplos
de objetos artesanais e pseudo-artísticos, suscitados pelo ânimo aquisi-
tivo das elites e elaborados por grupos ou pessoas das comunidades
pobres que os produzem em procura de um rendimento, às vêzes suple-
mentar e muitas vêzes fundamental.
Nossa análise visa apontar inerência estética, espontânea, compa-
tível e imánente ao tipo de cultura da comunidade. Pretende, pois, evi-
denciar na transitoriedade aculturativa de nosso meio e época, de defa-
sagem anulada em face da comunicação tecnológica atual, a remanes-
cência de atributos de uma genuinidade capazes de ajudarem a cons-
cientização e a autodeterminação cultural de um povo, de uma nação.
Este critério dificulta consideravelmente o trabalho, fecha o ângulo
do problema, restringinndo a observação a uma faixa de autenticidade
por vêzes inaparente em face da alienação cultural a que as comuni-
dades se submetem como recurso de sobrevivência. ( 1 )
II
Necessito fazer aqui, neste tópico, uma anotação biográfica capaz
de ajudar a compreensão do fenômeno.
Comecei a trabalhar em pesquisa de campo no ano de 1934, no
Nordeste, como auxiliar para os estudos de Gilberto Freyre. Levantei,
sob orientação do sociólogo, centenas de registros e observações de
moradores de mucambos, de embarcadiços de transporte marítimo e
fluvial, dos carregadores dos armazéns de açúcar, e até das tendas de
ervas medicinais do Mercado deo José (2, 3).
Naquela data o nível de civilização industrial no Brasil era inex-
pressivo no Norte e Nordeste, as estradas deficientes e precárias e o
transporte dominante era o marítimo, tanto para o tráfico de merca-
dorias como para o êxodo dos nordestinos nos períodos de seca, quando
emigravam em procura de mão-de-obra indiferenciada, no eixo pro-
gressista Rio—São Paulo.
Os «flagelados» assim eram chamados os retirantes das secas,
ocupavam os porões e o tombadilho da terceira classe de navios
mistos e cargueiros, numa aglomeração de sujeira e doenças, de desâ-
nimo quase em cada face.
Eu era ainda estudante, exaltado pela pesquisa de campo, ia ao
encontro daquela gente que nem tinha permissão de desembarcar nos
portos de parada, mas recordo quanto me deslumbrava descobrir na-
queles analfabetos, famintos, doentes e desgarrados, valores supreen-
dentes de uma estrutura cultural.
A música ao violão, à sanfona, ao ganzá, ao pandeiro, à clarineta,
à flauta de bambu, ao cavaquinho e à rabeca de duas cordas.
Os versos cantados da tradição oral dos desafios, das estórias, das
ladainhas, das preces.
A grandeza mítica de Padre Cícero, padrinho de todos, líder ca-
tólico messiânico, muito mais que o Papa, em Juazeiro que era como
o Vaticano do Nordeste.
As histórias do cangaço, Lampião ainda vivo, impondo terror, e
através do terror uma certa aceitação de autoridade e justiça.
Muitos dos entrevistados me indagavam por Antônio Silvino, ban-
doleiro anterior a Lampião, prisioneiro da cadeia de Recife.
Surpreendia-me, naquela gente, as devoções, a total entrega do
destino e de tôda realidade ao sobrenatural, a extrema docilidade às
autoridades de bordo, de terra, dou e do inferno.
Era difícil, para o jovem estudante-pesquisador, aceitar a passivi-
dade daquele gado humano, admirável na estranha beleza dos parcos
objetivos que traziam, os seus «teréns», tôda posse.
Redes de dormir enchendo o convés do navio de cores e dese-
nhos caprichosos da tecelagem.
Gaiolas com sinais de arquitetura do Oriente e passarinhos de canto
ensinado.
Punhais e facas fabricadas doo das molas dos caminhões, com
os cabos ornados em inscrustações de chifre, madeiras e pedras.
Alpercatas de solado de pneumàtico. Colchas de retalhos, multicôres
e geometrizadas. Caixas, lampadarios, vasilhames de restos de emba-
lagens remodelados e decorados para uma nova existência de objeto
útü. O lixo da civilização visitante era nobilitado.
Havia em cada coisa um sinal de cultura e um apelo ao progresso.
III
Num outro período, a partir de 1939, em Salvador-Bahia, dedi-
quei-me à pesquisa dos ex-votos, de desenhos, pinturas, relatos e obje-
tos, da devoção de Nosso Senhor do Bonfim que concentra fantástica
afluência. (4, 5)
Ainda predominavam, naquela época, os quadros pintados por um
certo João Duarte da Silva, que usava a rubrica de Toilette de flora,
e atendia sobretudo à elevada clientela de associações operárias, de
artífices e homens do mar para a representação de milagres relata-
dos. (6)
João Duarte da Silva morreu em 1935, deixou numerosa obra nas
«¡alas de milagres da Igreja do Bonfim e de N. Sra. das Candeias,
principalmente.
Estudei cada um dos seus trabalhos ainda conservados, sendo o
mais remoto datado de 1900 e o mais recente de 1934.
Aquêle acervo e experiência convenceram-me de que a génuinidade
da arte popular, representada pelo artista autêntico a que chamamos
impròpriamente de primitivo, ingênuo ou «naif», somente poderá ser
determinada através dos objetos dotados de qualidade artística que se
motivam da emocionalidade própria da comunidade e que se destinam
ao consumo limitado no meio de origem.
O ex-voto era o exemplo completo deste critério. O exemplo da
produção da arte popularo extrapolada para o interesse aquisitivo
das camadas sociais mais ricas.
Ocorreu, então, a casualidade de encontrar, em 1959, no verso
de um quadro de ex-voto da autoria de João Duarte da Silva, o seu
anúncio de pintor profissional especializado em ex-votos, cenas para
lapinhas e presepes e também de cruzes mortuárias, mortalhas com
letras prateadas ou douradas, e uma série de ornatos da decoração para
funerais e sepulturas.
Decidi-me à pesquisa desse território, visitando, anotando e foto-
grafando os cemitérios. Surgia, para a minha tese, um campo inteira-
mente novo e bem ajustado ao critério do diagnóstico da arte genuína,
bem como dos processos aculturativos e alienatórios.
Assumi, inevitavelmente, a posição polêmica de indicar arte genuína
popular restrita a uma área independente dos inumeráveis objetos da
transculturação imposta pelo consumidor abastado sobre o produtor
primário.
uma outra sutileza de entendimento que muito dificulta a concei-
tuação de arte popular é a generalidade concedida aos produtos do
artesanato primário, formador dos acervos folclóricos.
IV
Por motivo desta franquia perde-se de vista a implicação estética
que o objeto de validade artística deve comportar. Sendo pitoresco,
atraente, exótico e compatível com os propósitos de decoração domés-
tica sofisticada, passa a ser cotado como arte popular.o se atribui,
pois, validade estética na arte popular, mas simplesmente característi-
cas menores, de atrativos.
A religiosidade imánente ao ex-voto, ao túmulo e à representação
iconográfica de imagens e símbolos, confere maior resistência e inte-
gridade contra a deculturação,
Na maior parteo objetos originados de cultos e rituais, sejam
ícones, símbolos litúrgicos, alegóricos, instrumentos musicais, adereços,
trajes, cerâmica, culinária típica, etc. que pouco a pouco se trans-
figuram, se desnaturam, admitindo acréscimos decorativos, exageros de
forma e de elementos compositivos sempre em atenção ao fator aquisi-
tivo dominante de elitização.
A experiência brasileira demonstra que a degradação da genuini-
dade resulta de dois fatores inexoráveis: a cessação natural das carac-
terísticas do comportamento arcaico em face da civilização industrial,
como fenômeno sociológico inevitável, e, doutro lado, a decomposição
dos padrões originais pela transculturação imposta, alterando as carac-
terísticas primitivas do objeto das comunidades insuladas ou margina-
lizadas, em direção ao gosto do grupo adquirente. (7)
Poucos aceitam, no contexto de nossos estudos, a reserva, talvez
mais cautela que restrição, que indicamos em relação aos objetos utili-
tários dos artesanatos populares, considerados por excessiva generali-
dade como exemplos da arte popular e dotados de implicação estética.
O critério diagnóstico, sumário, de identificá-los como produtos do
folclore parece-nos insuficiente para categorizá-los em nível estético.
Talvez sejamos desentendidos ao considerar folclore como um território
de estudo de antropologia, da sociologia, eo necessariamente da
estética.
A implicação cultural do produto folclóricoo é bastante para
sua validade artística. A inerência estética dependerá do universo de
historicidade, compreendendo motivação, conflito, e expressividade, que
se refletem no objeto.
Por este complexo de razões, a ocorrência estética participa mais
dos objetos da religiosidade.
Isto é, a criação artística consciente e proposital, diferenciada como
motivo e finalidade, elaborada sob o propósito de relacionar-se ao
.sobrenatural mais que à condição empírica.
O produto folclórico traz sempre um lastro de procedência cultural,
mas nem por isto acha-se implicado a uma expressão estética. A
ausência desse discernimento tem determinado equívoco de agrupamento
de objetos utilitários, dotados de caracteristicas culturais com o outro
acervo de objetos implicados à criação artística das mesmas comuni-
dades .
Sendo o Brasil país de área geográfica imensa, e de muitas fontes
colonizadoras, tem o seu zoneamento cultural marcado por forte divi-
sionismo regionalista. O mercado folclórico brasileiro se diversifica nas
diversas procedências de zonas culturais de remanescência da cultura
neolítica indígena.
Comunidades indígenas aculturadas, sobretudo no Planalto Cen-
tral, já produzem arremedos de seus objetos genuínos para um turismo
interno desenvolvido com as estradas que afluem à Brasília. Recente
denúncia do médico antropologista Noel Nutels, adverte que a cerâmica
dos índios carajás, de reconhecida validade plástica a ponto de ter
sido fonte de influência na obra do escultor Victor Brecheret, acha-se
atualmenteo degradada, que os seus produtores aceitam encomendas
de comerciantes do folclore pitoresco em temas e representações obsce-
nas.
Várias vitrines do comércio de souvenirs no Rio, Brasília, Goiás,
o Paulo e aeroportos diversos oferecem cocares (capacetes), cola-
res, e outros adereços imitando a arte plumaria primitiva dos indígenas,
em nível de comércio industrializado.
Outra área cultural brasileira de produção folclórica é o Nordeste
compreendido desde o Maranhão, Piauí, Ceará, com produção artesa-
nal tradicional das comunidades indígenas aculturadas e evoluídas es-
pecialmente na tecelagem, cestaria e cerâmica.
O filme documentário do cearense José Siqueira, denominado «A
rede de dormir» é a fonte de exemplificação para a afirmação proposta.
Mostra a área geográfica produtora da rede de dormir que parece,
a princípio, um produto original indígena mas que, mediante pesquisa,
como a de José Siqueira, poderá ser demonstrado em termos de acultu-
ração .
O roteiro atinge o interior do Maranhão nos limites em que a rede
de dormir, trabalhada pela tecelagem indígena, com aplicações decora-
tivas de arte plumaria, motivada para o mercado de trocas, desaparece
do próprio consumo do produtor que prefere dormir em construções
toscas de ripados levantados do chão, tipo jirau.
Outro aspecto dessa área cultural é a tecelagem de fios de algo-
o nos dois séculos passados, na província do Maranhão, no Pará e
Amazonas. (8)
Certamente veio com o colonizador português o conhecimento de
numerosos trabalhos de prendas domésticas. Estes se baseiam no tempo
disponível da mulher, na necessidade complementar da economia, na
tradicionalização do gosto e na influência dos padrões manifestados
em objetos adornativos de outras finalidades.
O exemplo principal da área mencionada tem hoje a denominação
generalizada de «bordados e rendas do Ceará», elaborados numa vasta
zona geográficao delimitada. Seus padrões até hoje mantidos como
protótipos derivam do fabrico equivalente tradicional ibérico, de in-
fluência árabe. (9)
No Museu de Arte da Religiosdiade. em Aquirás, no Ceará, há
paramentos do século passado cujos bordados parecem ter sido tomados
dos desenhos da ourivesaria remanescente das missões jesuíticas do
século XVIII, como ainda podem ser confrontados aos detalhes da
cruz e tocheiros processionais, conservados no mesmo museu.
Tradicionalizou-se no artesanato dos bordados do Ceará um de-
terminado tipo de lavor denominado labirinto. Este. consiste em se
construir as figuras da composição do desenho mediante a subtração
dos fios de tecelagem. Em nossa documentação de cemitérios do Ceará
há exemplos de jazigos de famílias imitando capelinhas, tendo como
principal indicação alegórica figuras de anjos em bordados de labirintos
colocados por trás de vidros.
O Museu da Fundação Raymundo Castro Maia da Floresta da
Tijuca, na Guanabara, o Museu de Arte Popular da Universidade do
Ceará, o Instituto de Antropologia da Universidade do Rio Grande do
Norte, o Museu do Forte dos Reis Magos, de Natal, e o Museu de
Artes Populares, do Unhão, em Salvador, o Museu do Folclore de São
Paulo, e vários outros possuem ricas coleções da cerâmica popular de
áreas indicadas, algumas dotadas de classificação adequada.
A área de sertão compreendida desde o norte de Minas, Estados
do Nordeste e Norte, assume uma característica de artesanías deri-
vadas da civilização pastoril, isto é, da atividade predominante quase
exclusiva de uma economia dependente do gado e destinada ao comércio
do couro, como produto principal. com o crescimento das populações
e transportes ferroviários instalados no século passado, a economia
pastoril alargou-se para o comércio de carne e laticínios, porém, como
expressões econômicas menores. A indústria primitiva das carnes desi-
dratadas ao sol, as charqueadas, ainda representa o comércio secundá-
rio principal da atividade pastoril. (10)
A chamada Civilização Pastoril do Nordeste Brasileiro marcou
características culturais muito próprias, principalmente pela multipli-
cidade de aplicações e aproveitamentos de matéria-prima representada
no próprio couro bovino.
O arquiteto José Liberal de Castro, da Universidade do Ceará,
tem estudo demonstrando a utilização de fios de cursos na constru-
ção das cobertas das casas e das igrejas, substituindo pregos e arames
para fixar as vigas e os ripados da carnaúba (palmeira da região de
tronco fibroso, alongado, utilizado nas construções). Fios de couro
também foram utilizados nas portas e janelas substituindo bisagas, do-
bradiças e fechos. (11)
O tradicional traje do vaqueiro, todo êle elaborado em couro re-
cortado e costurado, em peças isoladas, ao jeito de uma armadura,
algumas delas destinadas à proteção do cavalo, a fim de poder entrar
e perseguir o novilho dentro da caatinga, constitui um relevante exem-
plo do traje ecológico de funcionalidade específica.
Todavia é escusado informar que já se dispõe de um sem-número
de barracas e feiras «nordestinas», de próspero comércio de roupas de
vaqueiros, acrescidas de contrafações e superfluidades, destinadas à
demanda turística.
Um outro traje caracterizador da civilização pastoril daquela área
foi o do cangaceiro, semelhante ao do vaqueiro porém ricamente acres-
cido de adornos (amuletos e distinções), e elementos necessários ao
equipamento de armas e munições.
Enquanto o traje do vaqueiro se explica rigorosamente pela fun-
cionalidade ao tipo de trabalho e habitat, o do cangaceiro sofre rele-
vantes influências culturais que merecem um outro tipo de análise
Acham-se conservados no Museu do Instituto Histórico de Ala-
goas, em Maceió, o traje e os apetrechos do mais célebre cangaceiro
brasileiro, Capitão Virgulino Ferreira, o Lampião, que usava no mo-
mento de sua morte em 1938. O documentário curta-metragem «Me-
mória do Cangaço» de Paulo Gil Soares, inclui trechos de um célebre
rolo cinematográfico, feito por um mascate do comércio paulista, amigo
de Lampião, que lhe permitiu filmar várias cenas de batalhas, missões.
o cotidiano do bando, e atos religiosos.
O traje do cangaceiro é um dos exemplos demonstrativos do com-
portamento arcaico brasileiro. Ao invés de procurar camuflagem para
proteção do combatente, é adornado de espelhos, moedas, metais, botões
e recortes multicôres, tornando-se um alvo de fácil visibilidade até no
escuro. Lembremo-nos, entretanto, que no entendimento do comporta-
mento arcaico, o homem está ligado e dependente ao sobrenatural, em
nome do qual êle exerce uma missão, lidera um grupo, desafia porque
se acredita protegido e inviolável e, de fato, desligado do componente
da morte.
Esta explicação, embora sumária, de algum modo justifica a inci-
dência da superfluidade ornamental no traje do cangaceiro, que antes
de sua implicação mística deriva do empírico traje do vaqueiro.
V
A ceràmica acompanha tôda a vasta área da civilização do couro
e nela a criatividade artística popular encontra expressão mais imediata.
Cerâmica de produção utilitària (vasos, pratos, panelas, etc.) e
uma outra linha de produção de representação de figuras ligadas ao
interesse e à atividade lúdica.
Entre os temas mais freqüentes desta segunda produção encon-
tram-se, principalmente, a figura do touro e a do cangaceiro montado
a cavalo.
Através dos acervos atualmente já organizados nas Universidades
e outras entidades tornou-se possível o estudo do estilo regional da
cerémica popular artística. Destinguem-se desse modo, a de Cascavel
do Ceará, a de Caruaru, e de Cariri, a de Serinhaém de Pernambuco,
a de Carrapicho de Sergipe, a de Penedo de Alagoas, a de Nazaré
das Farinhas e Maragogipinho da Bahia e assim sucessivamente. Além
da caracterização do estilo regional tornou-se possível, em algumas
áreas, o reconhecimento e a consagração estilística individual. O nome
de Vitalino refere-se ao ceramista de Caruaru que deixou elevada
produção e descendência de artesões, com destacado sucesso entre
intelectuais e público simpático às artes folclóricas.
A característica da cerâmica de Vitalinoo é identificável ao
arcaico brasileiro, mas a um expressionismo caricatural de nítida in-
fluência da civilização urbana até mesmo quando suas figuras preten-
dem representar cenas de tipos rurais. O sucesso e a demanda pelas
figuras de Vitalino, durante quase dois decênios, resultaram no verda-
deiro comando de temas das encomendas, de revendedores das grandes
cidades que consumiam tôda sua produção a preço vil. Cenas de sala
cirúrgica com três e quatro figuras e doente de ventre aberto, de es-
critório de advogado assombrado com o relato do cliente, de deputado
seduzindo eleitores, de padre ouvindo beatas de grandes pecados, de
sermão de casamento, e de presos em delegacias, foram temas pratica-
dos em produção massificada.
Vitalino caracterizava a figura numa síntese de íepresentação, sem
perder o cômico da atitude, e, como recurso de expressividade, com-
pletava com olhos de contas de vidro.
A ceramista Feliciana, de Sergipe, tem o seu estilo individual bem
assinalado na imponente figura do touro zebu. Seu principal comércio
é com o Rio de Janeiro,o Paulo e outras grandes cidades que lhe
encomendam, permanentemente, figuras de Iemanjá para o culto das
macumbas (deculturação das religiões primitivas africanas no Brasil).
Feliciana produz dois tipos de Iemanjá (divindade feminina idên-
tica à sereia, meer-maid, de busto e cabeça de mulher e a metade
caudal de peixe). O primeiro tipo de Iemanjá tem o busto levantado
e o corpo alongado, nivelado ao solo. No segundo tipo a extremidade
caudal também se levanta e a figura toma urna forma curvilinea, ele-
gante, em U, atingindo uma certa equivalência da figura da lira. In-
dagando o motivo desta variação, obtive o esclarecimento de que muitos
dos encomendadores possuíam nichos (armários envidraçados) de di-
mensões reduzidas, razão por que preferiam a Iemanjá do tipo em
U. (12)
É impossível numa simples abordagem da generalidade da Arte
Popular no Brasil, catalogar os exemplos e os padrões da rica cerâmica
popular no País. Tal é o número de centros produtores, numa im-
pressionante diversidade de padrões e distanciamento de áreas, que tôda
razão cabe ao etnòlogo Edison Carneiro quando afirma que. .. «A
despeito de sua importância como expressão das visissitudes e das ex-
pectativas de nosso povo, a arte popular aindao mereceu um levan-
tamento nacional e, menos ainda, uma pesquisa digna desse nome.»
Antes de lamentar falta de pesquisa, é de se lamentar a simples
falta de cadastramento, de registro suficiente como fonte de informação
e de confronto aos que estudam e se dedicam í. este .. . «mundo que
temos por descobrir e que urge descobrir, para que se revigore e
fecunde as artes no Brasil.» (sic.) (13)
VI
Tentaremos, agora, a abordagem da Arte Brasileira Popular e da
Arte Brasileira Erudita, consideradas no comprometimento cultural de
Arte de Formação e Arte de Informação.
Nos últimos vinte anos, com o desenvolvimento do sistema rodo-
viário, as áreas anteriormente insuladas acham-se interligadas e envol-
vidas na expansão industrial e maior amplitude de consumo. Os antigos
artesanatos de aproveitamento dos materiais desgastados da civilização
industrial visitante, desapareceram de qualquer área em que se ofereça
novo mercado de trabalho suscitado pelas indústrias e conseqüente
comércio.
o se pode reter grupos e comunidades marginalizadas da civili-
zação industrial, quando essa se faz presente e se torna, de fato, parti-
cipante.
As artes populares brasileiras observadas neste mesmo periodo
perdem a genuinidade, se desnaturam da origem cultural e aceitam,
em substituição, a massificação dos meios de consumo da emocionali-
dade coletiva.
O cinema, a televisão, o rádio transistorizado, e o suprimento in-
dustrial dos objetos que antes implicavam em artesanatos, desfazem por
completo o interèsse e o tempo ocioso indispensáveis ao lavor das
prendas caseiras e das artesanías subsidiárias.
o é possível a uma rendeira do Ceará fazer o seu trabalho
quando dispõe de televisão, nem um entalhador de horas vagas preferirá
aquele antigo passatempo quando no mesmo horário fica ocupado pelas
retransmissões de comentários intermináveis do futebol de todos os
estados.
A pequena burguesia que se forma nas áreas prósperas do País,
oriunda até do êxodo nordestino, ou mesmo das favelas das periferias
urbanas, reserva sua disponível vivência artística para a superfluidade
do lar e a tradicionalização de hábitos religiosos mediante os produtos
industrializados, massificados, em conseqüência da desnaturação da pri-
mitiva cultura.
Tal fenômeno inspira, nas linhas industriais, a produção do «kitsch.»
Isto é, os produtos industriais imitativos de protótipos de qualidade
artística, destinados ao amplo consumo das classes desculturadas, entre-
tanto estimuladas no arremedo da riqueza e de seus sinais esterio-
tipados.
uma outra via de expressão das artes populares dentro da atual
civilização urbana, se verifica nas decorações dos ambientes de grande
trânsito e consumo.
È de nossa autoria um ensaio sobre painéis, de pintura ou de
azulejos pintados, que nobilitam os modestos restaurantes e bares das
metrópoles brasileiras, usando cenas bucólicas, marinhas, religiosas, e
alegóricas em termos de primarismo da escola da pintura acadêmica
que imitam.o se trata de expressões artística de uma comunidade.
Eqüivalem, simplesmente, ao inevitável processo de deculturação. (14)
O ambiente de equivalência deste fenômeno para o consumo da
Arte Erudita nos dias atuais corresponde, em maior freqüência, às
sedes e agências de bancos. Nomes da maior respeitabilidade e de
preços mais elevados das Artes Contemporâneas Brasileiras,m as
suas rubricas em painéis e telas do grande consumidor de arte da
atualidade. No Recife, o melhor exemplo de pintura (cerâmica) de
Francisco Brenand é um painel de cerca de 30 metros na parede ex-
terior de um Banco.
O mesmo se poderá dizer da obra de Caribe, Carlos Bastos e
Mário Cravo, na Bahia, e de Emiliano di Cavalcanti, Mabe, Cícero
Dias, e outros no Rio de Janeiro.
Enquanto a arte popular, como arte de formação, se reduz ao
número mínimo de núcleos produtores remanescentes, e se anula cada
vez mais em face da civilização industrial do País, a arte erudita
(arte de informação) adquire novos e expressivos mercados bem como
iniciativas Bienais, Salões. Premiações que lhe asseguram o pres-
tígio.
VII
A quarta área cultural brasileira resta como simples registro his-
tórico. Era definida pelo Rioo Francisco interessando os Estados
de Minas Gerais, Bahia, Alagoas e Sergipe. De acordo cora o percurso
de navegabilidade dividia-se em dois tipos distintos de cultura. O tre-
cho de Cachoeira de Paulo Afonso até a foz, integrado sob a influên-
cia da civilização que partia de Recife desde o século XV11 até a
emancipação de Alagoas, como província de Pernambuco, no começo
do século XIX.
Penedo é o exemplo da cidade sãofranciscana de maior evidência
de riqueza do século XVIII, em seus monumentos religiosos.
O médioo Francisco, desde Minas ao alto sertão baiano, cor-
responde à área cultural mais desafiante para o estudo antropológico,
relativo à cultura e manifestação artística. Diversos autores estimam em
mais de dois séculos o isolamento de tôda esta região com profunda
defasagem de civilização das metrópoles. (8)
A raiz cultural portuguesa é a característica predominante, mas
nao se trata de uma semelhança à coetaneidade correspondente. É
portuguesa no sentido e na dimensão da espiritualidade do colono
sertanista, degradado, cristão-novo, ou herético que trouxe e ensinou
um tipo de cultura de pelo menos dois séculos defasada, que trouxe.
praticamente os restos da Idade Média na tradição oral, no catolicismo
de tendência messiânica, e na atitude de extrema submissão ao sobre-
natural.
É esta a área brasileira mais eloqüente de nosso comportamento
arcaico.
A arquitetura, ainda hoje manifestada nas construções populares,
parece coincidir com traços da romântica-ibérica e as igrejas, mesmo
as mais recentes, coincidem com traços do proto-gótico. O elemento
definidor da cultura do médioo Francisco foi o seu meio de trans-
porte: a barca de vareiros e de velejamento. Aquelas barcas, desusa-
das a partir de 1945, percorreram o rio desde a era do colonizador.
o parece ter sido o primeiro meio de transporte, uma vez que
a estrutura de construção e de elementos comportam uma diferenciação
social dos usuários, certamente formada através o tempo.
A famosa barca doo Francisco se caracterizava por uma co-
lossal figura de proa (carranca, na denominação regional), despro-
porcionada, dando ao barco a silhueta zoomórfica. Essas carrancas,
hoje peças de coleções de museu,o os exemplo definitivos da figura
apotropaica do complexo arcaico brasileiro. (15)
A civilização sãofranciscana, feudalista, patriarcalista, arcaica, mes-
siânica e submetida por séculos a endemias graves (malária, disente-
rias, tifo, doença de Chagas, verminoses), teria que, pelas mesmas
razões, corresponder às devoções exaltadas, à tendência ao misticismo,
ao sincretismo religioso, como causas geradore;; das grandes romarias
e da produção popular de imagens e objetos de ações votivas.
Essas produções se fizeram muito mais em escultura, do que em
pintura, o que de logo diferencia a contingência rural eo urbana.
É nessa região que se formam os centros exaltados do misticismo
católico, como pontos de milagres. Foi sede do catolicismo messiânico
representado no fabuloso fenômeno do Padre Cícero de Juazeiro.
Vili
Outro objeto de manifestação artística arcaica relevante é o ex-voto
esculpido em madeira, ou representado em cerâmica. Na presente data
já existe o comércio organizado nas principais galerias de arte situadas
no Rio de Janeiro,o Paulo e seus correspondentes em Paris, dessas
figuras produzidas em todo o Nordeste e noo Francisco, muitas
delas por marceneiros especializados e de freguesia certa. (16, 17, 18)
O número fantástico de afluência dos romeiros que levam essas
esculturas aos locais de devoções (igrejas, capelas, cruzeiros de estra-
das, grutas, túmulos) tem possibilitado o desinteresse de indústria de
falsificações, uma vez que, o atual comércio se mantém suprido com
as colheitas dos amontoados dos ex-votos, após as datas das romarias.
O musicòlogo Oswaldo de Souza, do Rio Grande do Norte, du-
rante mais de dois anos acompanhou as barcas doo Francisco e as
romarias, registrando os cânticos funéreos, as novenas e uma série de
ladainhas da ampla região. (19)
É curioso notar-se que o denominado estilo bossa-nova, divulgado
no Brasil em conseqüência do sucesso das músicas de João Gilberto,
tem algo que ver com a tradição da região franciscana. João Gilberto
apareceu pela primeira vez tentando sucesso nas estações de rádio de
Salvador, Bahia, vindo de sua terra natal nas margens do grande rio.
A característica de seu estilo era a extrema simplicidade de uma
melodia horizontal, na estrutura do canto-chão, e muito semelhante às
ladainhas e rezas cantadas das novenas doo Francisco.
Foi possível, graças ao trabalho do escultor baiano Agnaldo Manoel
dos Santos, e ao colecionador Franco Terranova do Rio de Janeiro,
o registro biográfico que fizemos, mais importante, do derradeiro es-
cultor de carrancas doo Francisco: Francisco Biquiba La Fuente
Guarani, morador de Santa Maria das Vitórias, com quase 80 anos,
ainda vivo no ano passado, e que se presume descendente de padre
jesuíta da primeira metade do século XVIII, com índia da região. (20)
A literatura científica e ficcional referente ao Rioo Francisco
é numerosa. Neste nosso estudo torna-se importante mencionar que
Euclides da Cunha, ao fazer o seu famoso estudo «Os Sertões»
visando estudar o drama do messianismo de Antônio Conselheiro, em
Canudos, localidade do sertão nordestino baiano, bem distante do Rio
o Francisco, necessitou, por alguma razão queo deixou explicada,
dedicar os últimos capítulos de sua notável obra, ao misterioso e fan-
tástico rio.
IX
A região sui brasileira compreendendo o Rio de Janeiro,o Paulo,
Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sui, tem características cul-
turais próprias quando estudadas nos paralelos da contemporaneidade
européia ou em termos mais gerais da civilização industrial (arte de in-
formação ).
Esta afirmação encontra franca oposição ao se verificar que o
maior número de sociedades folclóricas brasileiras registradaso dos
Estados sulistas. Traduzimos tal fato como sinal de maior capacidade
de organização política e administrativa dessas regiões.
O sui do País caracteriza-se por uma alta qualificação do trabalho
artesanal capaz de transformar-se, por habilitação rápida, nas instala-
ções industriais. ,
Estudada em paralelo aos centros hegemônicos universais, o Sui
do País, sobretudo Rio de Janeiro eo Paulo, equivale aos níveis
correspondentes da arte erudita internacional. Sabe-se do grande
número de artistas brasileiros procedentes das áreas do Norte e do
Sui que se consagram nas duas grandes metrópoles, Rio de Janeiro e
o Paulo, ao assimilarem a arre de informação, renunciando à de
formação.
Desde o século XIX, quando a arte erudita brasileira firmou-se
nos cânones da arte acadêmica européia, o caminho procurado por
qualquer artista brasileiro era quase sempre o Rio de Janeiro, saltando
déste para a Europa.
Evitamos comparar o período da primeira metade do século pas-
sado, ainda sob a influência dos mestres da «Missão Artística Fran-
cesa.»
Prendemo-nos às décadas derradeiras dos Oitocentos, época do
predomínio absoluto de artistas talentosos de escolaridade européia,
em torno dos quais brasileiros de vários Estados acorriam como dis-
cípulos, evoluíam, realizavam-se e, por sua vez, europeizavam-se.
o receamos afirmar que quaseo há diferença de produção
brasileira do academismo do fim do século passado, e de vários dos
movimentos propostos no presente século até a data, nos diversos
países latino-americanos, como simples ressonância de influência euro-
péia.
Paisagem local, tipologia étnica, detalhes e objetos de ambiente
oo bastantes para conferir autenticidade de estilo de região e de
época.
Os artistas eruditos do século passado e os de nossa contempo-
raneidade foram menos felizes na informação que aqueles outros do
século XVII e XV1II dedicados à temática religiosa, mais próximos
cia genuinidade. Muitos daqueles artistas eruditos eram egressos das
classes sociais inferiores, na maioria mestiços e às vêzes negros.
Escravos, descendentes de escravos, mestiços das três raças e um
elevado número de anônimos da sociedade colonial descobriram na
atividade profissional da construção, da pintura, da escultura e da
decoração, uma via de ascensão social e afirmação profissional pouco
disputada pelas classes abastadas. No século XVII a autoria da obra
de arte religiosa é devida com maior freqüência aos próprios religiosos,
monges, frades, padres e irmãos. Muitos desses eram europeus fixados
mas quase todos tiveram discípulos brasileiros com obra marcante de
alto nível artístico. No século seguinte o exercício da produção artís-
tica se generaliza sob o comando das irmandades e confrarias.
Estas reconhecem os profissionais dos artesanatos e das artes,
contratam-nos para obras monumentais que formam o acervo brasileiro
de maior interesse artístico de tôdas as épocas.
A decadência desse período processa-se no século XIX decorrendo
das seguintes causas atribuíveis:
1 ) a fixação da corte de D. João VI à metrópole do Rio de
Janeiro impondo mudança de aspecto das construções coloniais, julgadas
atrasadas e repulsivas, em confronto à contemporaneidade européia;
2) a transferência para a propriedade laica, imperial e privada,
dos contratos das obras de arte com a formação de uma nova menta-
lidade metropolitana na classe abastada;
3) a decadência das confrarias e das irmandades em várias for-
mações urbanas (vilas) das áreas de economia esvaziada;
4) o desenvolvimento emigratòrio europeu e asiático formando
novas comunidades de comportamento religioso diverso e de outro tipo
de cultura., entretanto, uma exceção: a emigração italiana desti-
nada a desenvolver a cultura cafeeira deo Paulo trouxe em seu
lastro numerosos artesões de trabalhos decorativos para a construção
civil e de limitado conhecimento técnico de engenharia.o eram
profissionais de elevado nível de educação artística, na grande maioria
eram simples operários diferenciados em trabalhos suplementares para
as decorações da época. Estucadores, pintores especialistas em fingi-
mento de madeira, pedra e ouro velho, modeladores de ornatos de
relevo para as fachadas, entalhadores, marmoristas, marceneiros, tor-
neiros e metalúrgicos, distribuídos por todo o país se encarregaram,
mais uma vez, de alterar a fisionomia das cidades remanescentes do
barroco colonial ou definidas pela sobriedade do neo-classicismo da
primeira metade dos Oitocentos.
O Brasil experimentou muito mais o estilo «floreale», que era o
art-nouveau nivelado ao gosto da pequena burguesia e dos artesões
italianos, que as verdadeiras propostas daquele movimento estético de
fim de século. A esta produção de menor categoria e de grandes
equívocos considerava-se Arte Erudita por ser de figurino europeu.
A célebre «Semana de Arte Moderna», de fevereiro de 1922, ocorrida
emo Paulo, e hoje louvada como tendo sido a redenção da cultura
nacional,o resiste a uma análise crítica histórica fora do diagnóstico
de um anseio de grupos para uma coetaneidade mais efetiva com os
movimentos europeus. Prova disto é a coincidência do estilo individual
dos principais participantes com os seus mestres de Paris. Era o modo
de se fazer a temática brasileira de acordo com os elementos paisa-
gísticos, raciais e ambienciais nos termos do cubismo sintético de Léger,
da pintura «talhada a facão» de Braque, da fase cubista de Picasso
e da geometricidade de efeitos colorísticos. A cada inventor de estilo
conseqüente, no espírito da época, sempre tivemos os nossos talentos
de correspondência para o encaixe da temática local.
O atual conceito de Arte Erudita, (arte de informação), equivale
ao de participação mais efetiva com a contemporaneidade, enquanto
que a conceituação de .Arfe Popular se restringe cada vez mais ao
produto folclórico e à produção rudimentar que artistas moderada-
mente habilitados fazem, como imitação, ao estilo dos genuínos. Tor-
nam-se raros os exemplos da autenticidade temática associada a uma
inventividade de estilo capaz de corresponder aos valores de uma uni-
versalidade.
Evitamos, propositadamente, mencionar nomes de artistas consa-
grados nos confrontos entre os centros hegemônicos e suas ressonân-
cias locais. Tal procedimentoo nos impede, doutro modo, mencionar
artistas brasileiros de produção erudita fundamentada na pesquisa e na
colheita das inerências estéticas da cultura-base.
Esta opção caracteriza uma atitude cultural,o implicando na
escala de apreciação crítica das qualidades artísticas quanto ao lavor.
Poderíamos, aqui, parodiar Alejo Carpentier ao julgar determinada
novela de sua simpatia política: «não bastam bons propósitos em lite-
ratura para se fazer boa obra.»
Entretanto, o estudo do escultor Agnaldo Manuel dos Santos, dos
gravadores Samico e Hélio Oliveira, dos pintores Djanira, Rubem Va-
lentim e Alfredo Volpi, demonstra exemplos imediatos para o amparo
da afirmação de que a Arte Erudita Brasileira nobilita-se quando sabe
ir à fonte da genuinidade, desse modo identificando-se à Arte de
Formação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1) Arte Brasileño Erudito y Arte Brasileño Popular Mundo Nuevo, n
9
35..
maio 1969, Buenos Aires pp. 60-68. Neste artigo o A. expõe grande
parte das idéias que constituera a materia do presente ensaio. A citada
publicação foi, posteriormente, transcrita no n* 4, vol. 2 de 1969, da Revista
Internacional de Educação de Adultos Convergence. Ontario, Canadá.
2) Gilberto Freyre «Mucambos do Nordeste» Pub. SPHAN, n
v
1, MES,
Rio, s/d, il.
3) Gilberto Freyre «Açúcar» Col. Canavieira, n' 2, Rio, 2" ed. 1969,
286 pp., il.
4) Clarival Valladares «O Aperfeiçoamento dos Artesanatos (II) . A Uni-
versidade do Taboão Tempo Brasileiro, Ano II, n' 4-5, 1963, pp. 150-163.
5) Clarival Valladares «Riscadores de Milagres», Sec. Educ. e Cultura da
Bahia, Rio, 1967, 141 pp., 56 il.
6) - Jorge Amado «Tenda dos Milagres» (romance), Liv. Martins Ed. S. A.,
S. Paulo, 1969, 374 pp
§
. il.
Nota: o personagem Lidio Corro é inspirado no relato biográfico do
riscador de milagres João Duarte da Silva, bem como o ambiente descrito
nos estudos das referências 4 e 5.
7) Edison Carneiro, in Dicionário das Artes Plásticas no Brasil, Roberto Pontual
Ed. Civilização Brasileira, Rio, 1969, pp. 559, 1.200 il., v. cap. Artes
Populares: seu universo e diversidade.
8) Há na documentação iconográfica da «Viagem Filosófica» de Alexandre Ro-
drigues Ferreira (1783-1792) duas ilustrações da autoria dos desenhistas da
expedição à Amazônia. Joaquim José Codina e José Joaquim Freire,
datadas de 1785 e respectivamente intituladas «Prospecto do Tear em
q. fazem as suas Rêdes mais delicadas as índias de Villa de Monte Alegre»
e «Prospecto das Casas das Índias de Monte Alegre, onde fazem as Cuyas.»
Na primeira, acha-se desenhada em destaque uma banqueta com almofada
de bilros de rendeira e na segunda, além do fabrico de cuias, vêem-se índias
tecendo redes em teares. Esteso os documentos iconográficos de data mais
remota reproduzindo atividade artesanal de implicação artistica, no Brasil
9) Arthur Ramos organizou valiosa coleção de rendas de bilro e bardados nor-
destinos, documentada e classificada, que Arthur Cesar Ferreira Reis adquiriu
c. de 1965 quando Governador do Estado do Amazonas para o Museu
Estadual, onde se acha preservada.
10) Jean Baptiste Debret fixou em sua «Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil»,
alguns aspectos curiosos da atividade pastoril, relativa ao comércio de carne:
a «Vista Geral de uma Fazenda de Charqueada», o «Transporte de Carne
de Corte», e o «Armazém de Carne Seca», «Vendedores de Capim e Leite»,
tôdas ilustrações da atividade pastoril de consumo urbano. Releva-se, entre-
tanto, a estampa «Canoa brasileira de Couro», estranha utilização de couro
para o transportes individual em rio de água mansa.
11) A Escola de Arquitetura da Universidade do Ceará está desenvolvendo tra-
balho de pesquisa de campo por iniciativa e sob orientação do Prof. José
Liberal de Castro, procedendo levantamento com documentação fotográfica,
desenho técnico e verificação de material, das construções remanescentes sete-
centistas, e mais recentes, em diversas áreas Fortaleza, Mecejana, Arquiraz,
Sobral, Icó, Canindé e outras visando futura publicação. Este trabalho
de pesquisa e documentação é de relevante interesse para o conhecimento'
dos recursos, soluções, materiais empregados e influência estilística ocorridos
naquela vasta área da civilização pastorial nordestina.
12) Luis Savio de Almeida, pesquisador do folclore alagoano, prepara monografia
sobre ceramistas nordestinos destacando Feliciana de Carrapicho, da margem
sergipana do Rio Sao Francisco defronte a Penedo.
13)- Edison Carneiro op. cit.
14) Clarival Valladares «Arte Popular e Pop-Arf», Jornal do Brasil, Cad. B,
19-8-67 v. também «Arie Urbana Arfe Rural», Jornal do Brasil,
cad. B, 9-9-1967.
15) Clarival Valladares «Duendes do São Francisco», in Paisagem Rediviva,
Imp. Of. Bahia, 1962, pp. 243. Neste trabalho o autor transcreve a refe-
rência que Durval Vieira de Aguiar faz sobre as barcas de carrancas do
o Francisco, no seu livro de crônicas «Descrições Práticas da Província
da Bahia», editado em 1888.
16) Luiz Saia «Escultura Popular Brasileira'» Ed. Gaveta, S. Paulo, 1944,
pp. 62, il. 26.
17) Verissimo de Melo «Xarias e Canguleiros» Imp. Universitária
Natal, RGN 1968, pp. 171, v. cap. «Devoções e Ex-votos», p. 53-64.
18) Luis da Câmara Cascudo «Dicionário do Folclore Brasileiro» Instituto
Nacional do Livro, MEC, Rio, 1962.
19) Oswaldo de Souza «Romaria dos Penitentes» in Arq. do Inst. Antropo-
logia da Un. Fed. do R. G. N., vol. II ns. 1 e 2 — 1966 e Culto
dos Mortos» in Cadernos Brasileiros n' 40, março-abril 1967.
20) Francisco Biquiba La Fuente Guarany, Escultor de Carrancas de Santa Maria
das Vitórias Reportagem (texto e foto) de Othon de Lima Athayde
ed. do Diário de Noticias da Bahia, 26-10-1959 (dados biográficos, infor-
mações sobre a formação e obra do último e mais conhecido escultor de
carrancas das barcas do Rioo Francisco).
21) Sobre o vocabulário e o linguajar regional nordestino referente ao vestuário
do vaqueiro, ver «Brasil do boi e do couro», de José Alípio Goulart, Ed.
GRD, 1965, Rio. Recomendam-se, também, as notas e comentários de Luis
da Câmara Cascudo à tradução brasileira de «Trevels in Brasil», da autoria
de Henry Koster (Viagens ao Nordeste do Brasil E. Nac.o Paulo,
1942) e sobretudo a excelente monografia de Oswaldo Lamartine de Faria.
intitulada «.Encor/ramenfo e Arreios do Vaqueiro no Seridó», Ed. Fundação
José Augusto Natal, RBN, 1969.
OS TRÊS PROFETAS DA PINTURA MODERNA
CARLOS CAVALCANTI
O s três profetas da Pintura Modernao Vincent Van Gogh
(1853-1890), Paul Gauguin (1848-1903) e Paul Cézanne (1839-1906).
Originais e diferentes, possuem no entanto nas suas personalida-
des, vidas e obras, pontos comuns de identidade, que a um só tempo
os aproximam e distanciam. Em primeiro lugar, foram pràticamente
autodidatas, isto é,o tiveram formação ou aprendizado escolar sis-
tematizado, numa academia ou sob a orientação de um mestre catego-
rizado; em segundo lugar, viveram e trabalharam solitários, rebeldes
e incompreendidos, por seus dons criadores à margem de qualquer
filiação ou classificação estilística; em terceiro lugar, negados em vida,
foram reconhecidos e consagrados depois de mortos; e, finalmente,
receberam influências do Impressionismo, mas lhe opuseram reações
pessoais e de conseqüências imediatas na formação das três primeiras
grandes escolas da Pintura Moderna. Estilìsticamente é onde sobre-
tudo se distanciam.
O exasperado emocionalismo de Van Gogh, por exemplo, concor-
rerá para o advento da primeira grande escola moderna de pintura, o
Expressianismo (1905); o sentimento dos ritmos elementares da na-
tureza em Gauguin, que viveu entre populações primitivas da Oceania,
contribuirá para o aparecimento da segunda grande escola moderna
de pintura, o Fovismo (1905); e as preocupações de simplificação e
construção intelectual da forma em Cézanne, geòmetra disfarçado de
pintor, serão responsáveis pela elaboração do Cubismo (1908), a últi-
ma das três primeiras grandes escolas na pintura dos nossos dias.
Considerando a essência de suas obras, poderemos dizer com sim-
plicidade que Van Gogh é sentimento, Gauguin vitalidade, Cézanne
razão. Estes, como sabemos, os modos de ser fundamentais da natu-
reza humana, aos quais souberam dar formas de expressão, sob tantos
aspectos ainda inéditas, na linguagem da pintura.o somente por
seus poderes de criação, como pelas influências que exerceram na pin-
tura do século XX numerosos os estudiosos que encontram em
Cézanne, por exemplo, além de sugestões para o Cubismo, as raízes
do Abstracionismo e do Construtivismo, expressões plásticas geradas
pela mentalidade científica e tecnológica dos nossos tempos impõe-
se conheçamos as suas vidas e personalidades, para melhor compreen-
o do sentido renovador que as suas obras tiveram.
VINCENT VAN GOGH
A sua atribulada existência e seu atormentado rosto, tantos os
dramáticos auto-retratos,o hoje mundialmente conhecidos.
Nasceu a 30 de março de 1853; em Zundert, Holanda; morreu a
29 de julho de 1890, em Auver-sur-Oise, França, em conseqüência ¿um
tiro de revólver, que dois dias antes disparara em cima do coração.
Era o filho mais velho dum pastor evangelista. Desde a adolescência,
revelará temperamento sempre tenso e sensível, que o tornará inapto
à vida prática.
Aos dezesseis anos, vai trabalhar na capital holandesa como ven-
dedor na galeria de arte Goupil, cujo proprietário era aparentado de
sua família. É removido em 1873 para a sucursal em Londres, onde
se hospeda na casa de uma viúva, que com a filha ainda moça mantém
uma creche para filhos de mães que trabalham.o demora muito se
confessa à moça apaixonado por ela. Era feio, sardento, atabalhoado,
tropicão, sem alegria, coisa esta de que as mulhereso gostam no
sexo adverso. A moça achou graça na paixão do ruivento e disse-
lhe rindo estar secretamente comprometida. O insucesso desse primeiro
amor o arrasou pois de arrasamentos era feito. Em 1875, está traba-
lhando na sucursal da Goupil em Paris e morando em Montparnasse.
No Natal desse ano, sem avisar aos patrões, viaja para a casa dos pais
na Holanda. Ao regressar, os novos donos, sucessores do parente da
Goupil, o põem no olho da rua pela indisciplina e, sobretudo, pela in-
capacidade funcional. Vender quadros, discutir as qualidades da ier-
cadoria com gente que considerava quadrada, tudo isso o irritava sobe-
ranamente. Arranja emprego de professor em Londres, onde novamen-
teo se demora muito tempo, voltando à casa dos pais. Em 1877,
consegue novo emprego, agora numa livraria em Dordretch, na Ho-
landa.o se ajusta ao novo trabalho, comoo se ajustara na Goupil
e no professorado londrino. Diante desses continuados fracassos na
vida prática, resolve seguir a carreira paterna de pastor evangelista.
Faz estudos e exames de suficiência em Amesterdam e Bruxelas,
terminados os quais recebe a primeira missão de pastor entre os traba-
lhadores do Borinage, região belga de minas de carvão. Permanece um
ano (1879-1880) entre os mineiros miseráveis. Os dirigentes >ivan-
gelistas, depois de outra experiência, concluem por sua completa falta
de embocadura para o trabalho de missionário. Volta à casa dos pais,
agora em Etten, ainda na Holanda. Está com vinte e sete anos de
idade.o dá para nada,o sabe fazer nada. Fracassou em tudo.
Os pais cocam a cabeça com aquele filho imprestável ou estragado
para a vida. Ainda por cima, complicado, nervoso, suscetível, ensi-
mesmado, subindo aos céus por uma palha, ou descendo aos infernos
por outra.
PINTURA E PARIS
Está decidido agora a ser pintor. Da noite para o dia, passa a
desenhar e pintar, infatigável e febrilmente, dominado por ansiosa ne-
cessidade de se exprimir. Nessa época, bolsos vazios, outra paixão
arrasadora uma prima viúva (feiosa e preconceituosa,e de um
menino também feioso), que o repele bruscamente. Outro arrasa men-
to total. No dia do rompimento definitivo, tem um gesto de doido -
na casa da prima, que se recusa a velo, encosta ao à chama de um
candieiro, para obrigá-la a aparecer. Quando está quase desmaiando
de dor, o tio horrorizado intervém.
No Natal desse mesmo ano de 1881, sempre um Natal tormen-
toso na sua vida, depois de violenta discussão sobre religião com o pai,
este lhe pede que deixe a casa. Viaja para Haia, ajudado por Theo, o
irmão mais moço. Temperamento completamente diferente, tranqüilo
e metódico, Theo Van Gogh trabalha na Goupil de Paris e passa a
enviar-lhe pequena mensalidade para que possa continuar os estudos
de pintura. Nas ruas da capital holandesa, encontra uma prostituta e
alcoólatra, com uma filha pequena e grávida de segundo filho de pai
desconhecido. Leva-a para casa, com a intenção de desposá-Ia, certa-
mente numa vingança sentimental pelo desprezo da prima. Só aos mui-
tos rogos do irmão, porta-voz da revolta da família, com aquêle casa-
mento adoidado em perspectiva, abandona Sien, a prostituta bêbeda, e
volta à casa dos pais, que estão agora residindo em Nunen, Holanda.
Num galpão, nos fundos do presbitèrio, continua desenhando e pintan-
do, como se fossem contados os seus dias de artista.
Viaja para Antuérpia, matriculando-se em janeiro de 1886 na
Academia de Arte da Cidade. Abandona-a menos de ums depois.
Em março do mesmo ano, desembarca inesperadamente em Paris, £>lo-
jando-se com o irmão. Freqüenta pouco tempo o atelier de Fernand
Cormon (1845-1924), mestre acadêmico que se especializara em re-
constitutes da Pré-história. O mestre o considera um desvairado re-
belde, incapaz de compreender e expressar a beleza ideal e eterna.
Respirou aliviado quando o viu ir embora.
O clima artístico parisiense o excita e deprime, a um só tempo.
Descobre a pintura clara dos impressionistas, o divisionismo de Seurat,
o colorido suntuoso e musical de Delacroix, os gravadores japonesas e
conhece Toulouse-Lautrec, Gauguin, Signac, Cézanne e Píssaro, em
suma, os artistas que se proclamam independentes e lutam abertamen-
te contra os mestres oficiais e o Salão de Paris.
Continua trabalhando intensamente. A vida em Paris finalmente
o fatiga, aumentando-lhe a natural nervosidade. No começo de 1888.
troca Paris pelo interior. Vai viver em Aries, Provence, na esperança
de paz de espírito, vida barata e mais luz no céu. Encanta-se cora a
região sofregamente, pintando sobretudo paisagens, que envia ao irmão
em Paris, na ilusão de aparecer compradores entre os clientes da
Goupil, em geral admiradores da arte acadêmica. Para viver e traba-
lhar, conta apenas com o dinheiro, as telas e as tintas mandadas pelo
irmão.
GAUGUIN E O DRAMA DA ORELHA
Em outubro do mesmo ano, depois de convidá-lo insistentemente,
tem Gauguin como companheiro de moradia e de trabalho. A convi-
vência começa num mar de rosas, maso tardam os espinhos dos
temperamentos contrastantes e das idéias artísticas divergentes. O mar
de rosas acabaria dramaticamente. Nos fins de dezembro, sempre o
Natal, Gauguin resolve deixar Aries e voltar a Paris. Van Gogh exas-
pera-se e, mais do que isso, desespera-se com a decisão do amigo. Dei-
xemos, porém, o próprio Gauguin contar o caso, aliás o único depoi-
mento que se conhece sobre o episódio.
Na noite de 24 de dezembro, véspera do Natal, depois de Gau-
guin preparar as suas bagagens,o tomar absinto num café. Nova
discussão sobre arte. Em dado momento, discussão fervendo. Van
Gogh atira o copo no rosto de Gauguin, que se desvia e leva à casa
o amigo exaltado, que logo cai num sono de pedra. No outro dia, ma-
talotagem arrumada, Gauguin está pronto para embarcar na manhã
seguinte. Resolve espairecer à noite, noite de Natal, sozinho, pela cida-
de. Ia distraído numa das praças, quando ouve atrás de si os passos
secos e rápidos,o conhecidos, do amigo. Subitamente volta-se e dá
de cara com êle, fisionomia transtornada, navalha aberta em punho,
prestes a atacá-lo. Encara-o com firmeza bem dentro dos olhos. Van
Gogh baixa a cabeça e retrocede correndo.
Por medida de prudência,o volta para casa e pernoita num
hotel. Manhã cedo, ao ir apanhar a bagagem para embarcar, encontra
a rua burburinhando de curiosos e a polícia presente. Fica sabendo do
drama. Voltando à casa e, sem dúvida, para castigar-se do impulso
homicida contra o amigo, Van Gogh havia decepado com a navalha
parte da orelha esquerda. Envolveu a cabeça numa faixa para estan-
car o sangue, limpou o pedaço sangrento da orelha, colocou-o num
envelope e levou-o, como presente de Natal, à sua amiga Raquel, mo-
radora de uma pensão de mulheres, onde costumava aparecer. Diz-lhe
apenas isto: «uma lembrança minha!» e desaparece na noite. Ao
abrir o envelope, Raquel desmaia. A dona da pensão chama a polícia
e entrega-lhe o pedaço da orelha. Ao amanhecer, a notícia do caso
corria pela cidade.
com a polícia, Gauguin sobe ao quarto, manchas de sangue desde
a escada. Encolhido na cama, parecendo um menino, cabeça empapada
de sangue, Van Gogh dormia profundamente. Despertado e medicado,
sobrevem-lhe longa crise de loucura furiosa. Posto no quarto de isola-
mento do hospital, esbraveja e berra, chora e canta, uma semana intei-
ra. Gritou tanto que ficou rouco, quase completamente afônico.
Passada a crise, volta para casa, cabeça enfaixada e retoma o tra-
balho. Todos os dias, curativo da orelha no hospital. Seu tipo e com-
portamento parecem extravagantes aos olhos da população, que num
abaixo assinado ao prefeito pede o seu internamento corno louco defi-
nitivo. Vai internado no hospital e as crises se sucedem. Na verdade,
perdia alternadamente a razão, sem deixar de pintar nos períodos de
lucidez. Permanece internado algum tempo no asilo de doentes mentais
de Saint-Paul-le-Mausole, perto de Saint-Remy. Tinha permissão de
sair para pintar, tempo marcado, guarda ao lado. Melhorando, o irmão
o convence a ir morar em Auver-sur-Oise, mais perto de Paris onde
reside o Dr. Paul Gachet, médico, gravador e colecionador, compassi-
vo e paciente, que poderá cuidar de sua saúde. Foi recebido afetuosa-
mente pelo médico, que o tranqüiliza quanto às crises e será o primeiro
a reconhecer-lhe o gênio de pintor.
O SUICÍDIO
Estamos em princípios de 1890. O louco está ajuizado, sereno,
como sempre trabalhando frenèticamente, vez por outra uns rompan-
tes. Vai visitar em Paris o irmão, agora casado, com um filhinho.
Passa quatro dias em companhia dele e da cunhada, mas regressa mui-
to deprimido. Dizem que a cunhada o teria censurado por viver às
custas do irmão. Poucos dias mais tarde, andando pelo campo, falan-
do sozinho e gesticulando, dispara um tiro de revólver em cima do pei-
to. Fumando muito, em silêncio, tendo ao lado o irmão vindo de Paris
e o Dr. Gachet, morre tranqüilamente dois dias depois, no pequeno
quarto da pensão em que vivia.
Estes, assim resumidos, os trinta e sete anos, dolorosos e fulgu-
rantes, de sua existência. No mesmo ano, de sua morte,o queima-
da, orelha cortada, peito varado a bala, naquele humilde quarto de
pensão, começa a sua glorificação de artista. Tardiamente, o mundo
descobre-lhe o gênio, que havia sido vislumbrado pelo obscuro e be-
nevolente médico de província. Sua vida, personalidade e obra, inclusi-
ve a sua doença, cujo diagnóstico aindao se firmou definitivamente,
comoo o fizeram os médicos que o trataram,o hoje temas cons-
tantes de universal e apaixonante interesse.
A AMIZADE DO IRMÃO
Na sua vida, porém, um capítuloo pode ser esquecido pela
comovente beleza humana — a amizade do irmão mais moço, Theo ou
Theodore Van Gogh.
como dissemos, era um temperamento inteiramente oposto ao do
infeliz irmão mais velho, sem as tensões, os arrebatamentos e prostra-
ções, que o acabariam destruindo. Foi muito mais do que irmão, por-
que foi o protetor, o confidente, o amigo compreensivo, certo e insubs-
tituível, que Van Gogh pôde encontrar na sua mortificada passagem
por este mundo. Durante dez anos, regularmente, pontualmente, sem
uma palavra de censura ou de cansaço, mandava-lhe alguns francos
mensais, além de telas, tintas e pincéis. Graças a essa ajuda, Van
Gogh pôde viver e realizar sua obra. Conseguira vender em vida, três
meses antes de se matar, um único quadro, «A vinha vermelha», hoje
em Moscou, à pintora Ana Boch, que o adquirira em Bruxelas, por
quatrocentos francos. Este o único e vasqueiro pagamento de arte que
recebera. No entanto, em 1958, sessenta e oito anos depois, na venda
Goldschmidt, em Londres, o seu «Jardim público em Aries» alcança-
va a soma cósmica de cento e cinqüenta milhões de francos.
Sempre sofrerá com a dependência econômica em que vivia do
irmão, que tantas vêzes lhe remetia o dinheiro com sacrifício. Manda-
va-lhe todos os quadros que pintava, propôs os assinassem juntos
Theo e Vincent. Um dia, costumava dizer, haveria de devolver-lhe
todo aquêle dinheiro e seo o pudesse fazer lhe daria em pagamen-
to a própria alma, o que afinal parece ter feito, bem apuradas as contas
dos imponderáveis de alma e de Van Gogh. Quando o irmão casou e
logo apareceu um filho, que recebeu o nome de Vincent em sua home-
nagem, o seu constrangimento aumentou. Sentia-se inútil e completa-
mente fracassado, mesmo como artista, porque ninguém lhe comprava
um quadro, senão mais tarde aquêle de Bruxelas.
Alguma coisa, que cada um explicará conforme o seu entendi-
mento, parecia ligar misteriosamente aquelas duas almaso desiguais.
Depois da morte do irmão, Theo Van Gogh começou a ter agravados
velhos achaques dos rins. A doença avança inesperada e assustadora-
mente. A esposa o leva à Holanda, onde o tranqüilo Theo também
enlouquece e morre seis meses depois do irmão. Bom e desprendido, seu
último pedido- ser enterrado ao lado do irmão, cujo corpo ficara
no pequeno cemitério de Auver-Sur-Oise. Última vontade trabalhosa
de defunto pobre, como sabemos, raramente tem vez. Só vinte e qua-
tro anos depois, a glória de Vincent em ascenção nou da pintura,
pôde a família atender-lhe à última vontade, transferindo-lhe os ossos
para o humilde cemitério da pequena cidade francesa, para que os
dois irmãos repousassem, lado a lado, unidos na morte, como unidos
estiveram na vida e na arte.
AS DUAS FASES DA PINTURA DE VAN GOGH
Van Gogh escrevia ao irmão, como aos demais parentes e a
alguns amigos, constantes e longas cartas, nas quais se mostra também
talentoso escritor.
Nessas cartas, documentos de vivo interesse humano, reunidas
hoje em livros, expõe as suas idéias estéticas, possibilitando assim me-
lhor compreensão de sua arte. Tôda a sua obra, imortal tarefa como
tem sido considerada, realizou-a em dez anos apenas, desde 1880
quando abandona a carreira de pastor evangelista a 1890 quando ao
regressar da visita ao irmão se mata em Auver-Sur-Oise. Os estu-
diosos concordam em dividi-la em duas fases distintas e característ'"-
cas
_ a fase holandesa (1880-1886) e a fase francesa (1886-1890).
Em ambas, um traço comum a nervosa e febril, mas segura e con-
cisa, espontaneidade de execução, no desenho e na pincelada, sinal
anunciador do rápido domínio da técnica para criar estilo de inconfun-
dível originalidade.
A fase holandesa está visivelmente sugestionada, no realismo e
no claro escuro, pelos velhos mestres nacionais dos séculos XVII e
XVIII. Caracteriza-se pelos tons sombrios e terrorosos, marrons es-
curos, intensos e frementes, pinceladas instantâneas e pastosas. Os
temas preferidoso paisagens, tipos e flagrantes da vida e das ativi-
dades das populações trabalhadoras rurais e urbanas, sobre as quais
pesava implacável a dureza da revolução industrial. Fixa-as numa
visão dolorida da natureza e do homem, animada de sentimentos huma-
nitários e de crítica social. Interessa-se, por outro lado, pelo estudo
da côr. Intuitivamente faz e aplica observações sobre as complemen-
tares e os contrastes das cores, que coincidem com as realizadas na
mesma época pelos impressionistas, as quais só conhecerá mais tarde
em Paris. A obra mais representativa da fase holandesa é a conhecida
«Comedores de batatas», pintada em 1885, hoje em Laren, na cole-
ção de Vincent Wilhelm Van Gogh, o filho de Theo. A atmosfera
dessa obra é rembranesca e tudo ressuma cru e tocante verismo, de
modo especial nas deformações.
A fase francesa, (1886-1890), luminosa mas também intensamen-
te dramática, caracteriza-se e distingue-se pela influência do Impres-
sionismo. Havia chegado a Paris, no mesmo ano da última exposição
coletiva dos impressionistas. A nova pintura estava começando a ser
reconhecida e aceita pela crítica e o público, ao mesmo tempo que evo-
luía, com Seurat e Signac, para o Divisionismo ou Pontilhismo. Sob
as sugestões dos impressionistas, abandona as dramatizadoras tonali-
dades escuras e pesadas. Ilumina e enche de sol a sua paleta. Adota
os princípios impressionistas. Empolga-se pelas tonalidades límpidas
e planas dos gravadores japoneses e pratica o pontilhismo, fascinado
pelas teorias científicas de Seurat e Signac.
A ARTE DE VAN GOGH
Em mais de um autor é comum encontrar Van Gogh, juntamente
com Gauguin e Cézanne, classificado entre os impressionistas. Em
quaisquer dos casos, trata-se de classificação ou conceituação estilís-
tica hoje inaceitável, pelo melhor conhecimento e interpretação das
obras desses três fundadores da Pintura Moderna. Reagiram ao Im-
pressionismo, como sabemos, guardando-lhe apenas a luminosidade das
cores. Em conseqüência dessa reação, criaram estilos inconfundivel-
mente pessoais, nos quais se diluíram ou foram recusados os principios
impressionistas, substituídos por novos valores técnicos e expressivos.
Dissemos que Van Gogh escrevia ao irmão freqüentes e longas
cartas, nas quais expunha as suas idéias sobre a arte em geral e pin-
tura em particular, se revelava dotado de qualidades literárias. Algu-
mas trazem desenhos rápidos dos quadros sobre os quais falava. Qual-
quer pessoa medianamente informada lendo-as poderá ver, sem de-
mora, que o Impressionismo, sendo exclusivamente visual, fundando-se
em simples sensações óticas, isento de subjetivismo, além do mais ana-
lítico e laborioso de técnica, particularmente no pontilhismo,o pode-
ria satisfazer-lhe a arrebatada emotividade e a expressão de seus sen-
timentos intensos, quase explosivos.
Conhecendo e aplicando a luminosidade impressionista,o se
limitou ao simples registro de sensações luminosas e coloridas, como
estava no catecismo impresionista. Deu ao impressionismo o que lhe
faltava alma. Procurou traduzir, com veemente e pungente since-
ridade,o as sensações, mas os sentimentos, as reações morais e afe-
tivas, que a realidade lhe despertava, conferindo valores simbólicos,
sempre carregados de afetividade, às linhas e às cores. Por isso mes-
mo, por sua intensa emotividade, foi um deformador das imagens
visuais, principalmente na côr. Tudo, na sua visão, se carregava de
afetividade. «Procuro com o vermelho e o verde escrevia ao irmão
exprimir as mais terríveis paixões humanas». com a côr, queria co-
municar sobretudo sentimentos,o simplesmente sensações.
MENTIRAS QUE SAO VERDADES
Quando ainda na fase holandesa pintava «Os comedores de bata-
tas», informava ao irmão: «Meu grande desejo é fazer tais inexatidões,
tais anomalias, tais modificações, tais transformações da realidade,
que resultem em mentiras, se quiserem, porém mais verdadeiras que a
verdade literal. Devemos pintar camponeses com se fôssemos um dêles,
pensando e sentindo como um dêles». Dizia ainda que numa tela um
camponês deve parecer «pintado com a terra que semeia», para con-
cluir: «Se uma pintura de camponeses cheira a toucinho, a fumaça,
a batata, perfeito!o é mal. Se um curral cheira a estéreo, bom. É
por causa disso que é curral. Se os camposm um cheiro de trigo
maduro ou de batata ou de adubo ou de estéreo é justamente o que
está certo. Um quadro de camponeses nunca deve ser perfumado».
«Segundo um biógrafo, ficou muito contente ao escrever-lhe o
irmão: «... quando os citadinos pintam os camponeses, mesmo que
as suas figuras estejam magnificamente pintadas, fazem involuntária-
mente pensar nos habitantes dos subúrbios parisienses». Ainda a pro-
pósito dos «Comedores de batatas», escrevia ao irmão dizendo que pro-
curara acentuar os gestos e o caráter das mãos dos camponeses, mãos
com as quais haviam plantado, adubado, arrancado do solo e, agora,
comiam as batatas. Esta busca do caráter profundo da realidade, com
implicações humanas e sociais, será uma constante na sua arte, nutri-
da de impulsos, veemências, paroxismos emocionais e intuições reve-
ladoras.
OS FUNDAMENTOS DO EXPRESSIONISMO
Há certo trecho de uma de suas cartas ao irmão, bastante conhe-
cido. Nele, Van Gogh lança os fundamentos do Expressionismo, a pri-
meira e ainda hoje dominadora escola da Pintura Moderna, de que
será o inspirador, pouco depois de sua morte. Ei-lo:
«Em lugar de repetir com exatidão o que tenho diante dos olhos,
sirvo-me arbitràriamente da côr, para exprimir-me com intensidade.
Mas, deixemos isso de lado, porque vou dar-lhe um exemplo do
que pretendo fazer. Quero pintar o retrato de um amigo artista, que
sonha grandes sonhos, que trabalha como o rouxinol canta, pois assim
é a sua natureza. Este amigo é louro. Desejariar no retrato
minha admiração e meu afeto por êle. Para começar, o desenharia
tal e qual,o fielmente como pudesse. Mas, o retratoo estaria
terminado. Para o concluir, serei agora um colorista arbitràrio.
Exagero o louro da cabeleira, chego aos tons alaranjados, aos cromos,
ao limão pálido. Atrás da cabeça, em lugar de pintar o muro banal
do mesquinho apartamento, pinto o infinito, fazendo um fundo simples
do mais rico e mais intenso azul que possa conseguir. E, por essa
simples combinação, a cabeça loura e iluminada sobre esse fundo de
azul rico, obtenho misterioso efeito como o da estrela nou profundo.
No retrato do camponês, procedi da mesma maneira. Neste caso.
o quis evocar o brilho misterioso da estrela pálida no infinito, mas
imaginei o camponês sob a fornalha da colheita, em pleno meio dia.
Daí os alaranjados fulgurantes como o ferro em brasa, os tons lumi-
nosos de ouro velho nas tenebras. Ah, meu caro, as pessoas sensatas
verão nesses exageros apenas caricaturas...»
CÔR, TENSÃO EMOCIONAL
Ninguém precisará ser esteta esmerado para logo concluir, à simples
leitura desses trechos de suas cartas ao irmão, como Van Gogh está
distanciado do Impressionismo, apesar da reverberante luminosidade
de suas cores.o tinha em mente representar ou reproduzir as
aparências da realidade, nem fixar os fugidios efeitos da luz solar nas
cores da natureza, objetivos comuns aos realistas e impressionistas.
As realidades visuais, deformava-as, transfigurava-as, para que nos
falassem de suas realidades interiores — a permanente e angustiada
tensão sob que vibrava, conseqüência em última análise, de seu mórbido
psiquismo. As cores, levou-as a verdadeiro paroxismo emocional con-
ferindo-lhes significados simbólicos, numa ardente e mística afetividade
«o amarelo, dizia, é ar da amizade». Côr, para Van Gogh,
deve ser acentuado,o era sensação, como para os impressionistas,
mas sentimento profundo, ungido de poderes totêmicos, como se fosse
um primitivo.
A PINCELADA MÁGICA
A veemência de seus sentimentos revelou-ao apenas nas defor-
mações do desenho e da côr. Revelou-a também na pincelada, sem
cair no maneirismo, como observou Emile Langui, porque tudo na sua
técnica jorra sempre virginal e expressivo. A sua dolorosa inquietação
interior, que o tornará o profeta da angústia de nossos dias, soube
transfundí-la na pincelada, intuitiva e instantânea, eletrizada e vibrante,
mágica de expressão, nos vertiginosos movimentos ondulatorios e fla-
mejantes, convulsivos às vêzes.
O PRIMEIRO EXPRESSIONISTA
Nos fins do século passado, entre alemães e escandinavos, surge
e se irradia fecundo movimento de reação ao Impressionismo. A reação
se fazia de modo especial ao excessivo realismo visual, à ausência de
drama humano e de sensibilidade social dos impressionistas. O mo-
vimento, mais tarde denominado Expressionismo, será o primeiro da
Pintura Moderna. Possuirá manifestas raízes geográficas e raciais
refletirá a atmosfera nevoenta do norte da Europa e exprimirá tendências
marcantes do temperamento germânico, mais afeito à beleza do caráter
do que à beleza da forma, no velho e irredutível antagonismo entre
germanidade e latinidade, em outras palavras, entre as brumas nórdicas
e as claridades mediterrâneas. Os principios básicos, técnicos e ex-
pressivos desse movimento, nos quais o emocional domina o intelectual,
tiveram em Van Gogh o seu primeiro e direto inspirador.
PAUL GAUGUIN
O segundo artista que exerceu decisiva influnêcia na formação da
Pintura Moderna foi Paul Gauguin (1848-1903). Nascera em Paris
e falecera em Hiva-Oa, nas ilhas Marquesas, Oceania, filho do jorna-
lista Clovis Gauguin e de Aline Chazal. Suae era filha de Flora
Tristan, líder feminista e escritora francesa que deixou certo nome,
e de Don Mariano Tristan Moscoso, aristocrata peruano, os quais se
conheceram e amaram na Espanha, convulsionada na época pela invasão
napoleònica.
A ascendência materna explicará mais tarde, segundo alguns estu-
diosos, o todo forte e taciturno de inca que possuía, no corpo e na
alma —rijeza física, energias concentradas, triste e sombrio, poucas
palavras, lábios selados repara um biógrafo, olhar distante, sensibilidade
ávida pelo elementar e primitivo, na terra e no homem ou, como parolam
os superficiais, pelos encantos do exotismo. Quando tinha um ano
de idade, em companhia dos pais e de Maria, a irmã mais velha, em-
barcou para a terra dos ancetrais, calados e enigmáticos, cujo sangue
lhe corria nas veias. Viajou ao Peru. Clovis Gauguin, jornalista
político medroso, fugia à revolução de 1848; Aline ChazaI, herdeira
esperançosa, ia atrás do monumental testamento paterno. O jornalista
morre do coração na viajem, enterrado nas solidões frias da Patagônia.
Recebidos carinhosamente pelos ricos e poderosos Moscoso, verdadeiros
donos do país, ae e os filhos viveram seis anos em Lima, no fausto
barroco e sensual de ostentosos oligarcas hispano-americanos do
século XIX.
Eram servidos e acompanhados de pajens índios, mestiços e chi-
neses, tudo num clima de misticismo e lubricidade. O mundo peruano
semibárbaro o marcará nas profundezas da alma.o o esquecerá
jamais, inapagável visão de paraíso, nos mistérios do sangue e na ima-
ginação de criança. Derrubada a oligarquia Moscoso do poder, por
um dos sistemáticos e fatais «pronunciamentos», em 1855 está com a
irmã e a mãe, herdeira desiludida, novamente em Paris, agora sofrendo
os apertos de quase miséria. Ae costura para fora.
VIAJENS PELOS SETE MARES
Aos dezessete anos, embarca como praticante de piloto no navio
mercante «Luzitano», a bordo do qual faz duas viajens ao Rio de Ja-
neiro (1865 e 1866), a primeira com permanência de um mês, fascinado
com a natureza e a população negra e mulata, deliciado com a galanteria
de uma compatrícia, atriz de opereta famosa por suas aventuras senti-
mentais e muito cortejada na rua do Ouvidor, cheia de «boutiques»,
lojas e atelieres de moda franceses.
No ano seguinte, embarca no «Chili», para viajem de um ano
em volta do mundo. Novas visões de paraíso, mulheres de pele
dourada, nas terras e gentes distantes dos sete mares.
Regressando à França em 1867, engaja-se no ano seguinte como
marinheiro de terceira classe no navio de guerra «Jérôme-Napoleon»,
que realiza cruzeiros no Mediterrâneo, no Mar do Norte, participa
ainda de operações da guerra franco-prussiana (1870).
Deixa a carreira naval em 1871 e emprega-se como corretor na
casa de câmbio parisiense de Paul Bertin. Nessa época, por sugestão
e insistência de um companheiro de escritório, Emile Schuffenecker
(1851-1934), pintor amador mais tarde profissional, arquiteto e de-
senhista, começa a interessar-se por pintura. Torna-se também pintor
amador, pintando aos domingos. Prestígio na casa Bertin e bons
negócios na Bolsa de Paris levam-no a casar em 1873, com a dina-
marquesa Mette-Sophie Gad, de quem terá cinco filhos. O gosto
da pintura é mais absorvente cada dia que passa e apesar do casamento
participa como amador do Salão Sous-bois à Viroflay, no mesmo
ano de 1876 em que os impressionistas estão fazendo a sua segunda
exposição coletiva.
A DECISÃO DE SER PINTOR
Novos negócios na Bolsa lhe permitem invejável trem de vida.
Dá-se ao luxo de colecionar obras de arte, porque agora a paixão de
pintar é obsessiva. com esculturas e quadros, concorre às quarta,
quinta, sexta e sétima exposições impressionistas, de 1879 a 1882,
merecendo mesmo simpática referência da crítica. com a /inalidade
de dedicar-se exclusivamente à pintura, abandona em 1883 o emprego
na casa Bertin e as lucrativas atividades de corretor. Está dicidido
a trabalhar e viver somente como artista. Nada mais o interessa no
mundo senão a pintura. A decisão inesperada paralisa de espanto a
esposa, os parentes, os colegas de negócios, os amigos sensatos. Nada,
argumentos, apelos, rogos, absolutamente nada o demove. Taciturno,
lábios selados disse o biógrafo, decidira em silêncio: o resto da vida
viveria exclusivamente para a pintura.
o demorava muito, um tanto perdulário, acabava o pé de meia
das corretagens. Adeus boa vida. com a mulher e os cinco filhos,
pois o último nascera naquele ano de 1883, começa a sofrer as primeiras
ferroadas da pobreza, depois o passou a espiar o olho duro da miséria,
como diria o nosso Machado de Assis. Artista interessante e pro-
missor sem dúvida, maso achava um comprador. Muda-se para
Rouen, vida mais barata. Viaja para a Dinamarca, onde convencida
de que o marido perdera a razão a esposa o abandona, resolvendo ficar
para se livrar da miséria, auxiliada pela família e ensinando francês.
Voltando sozinho a Paris, expõe na oitava e última exposição impres-
sionista (1886) e vive de brisa. Para comer, prega cartazes na rua.
Depois de breve permanência em Pont-Aven, na Bretanha, onde
pinta seduzido pela rusticidade da natureza e do povo, viaja ao Panamá
e Martinica, atraído pelo primitivismo da região. No Panamá, tra-
balhou como operário nas obras do canal, quase morrendo de disenteria
e febre. Perto está o Peru, pulsação do sangue, visão de paraíso na
infância, que o continuará chamando e o chamará sempre, pelos caminhos
do mundo. Hálito da terra, cores mágicas, ondular felino de fêmeas
i Lima, Rio de Janeiro, Panamá, Martinica, Tonquin e Madagascar,
em sonhos, finalmente o acalanto dos Mares do Sui.
AS ILHAS DE SONHO
Retorna à França, novas fomes em Paris e na Bretanha. Vive
com Van Gogh de quem se afasta para sempre depois do drama da
orelha cortada em Aries.
Estamos em 1890 e, nesta altura, depois de algumas obras, «O
Cristo amarelo», «O Calvário», «A bela Ângela» e de algumas escul-
turas, os estetas parisienses o apontam como um dos mestres da pintura
simbolista. Olhar distante, está projetante viajens a Tonquin e Ma-
dagascar. Decide-se por Taiti, ilhas francesas na Oceania, sul do
Pacífico, mundo ainda desconhecido, para onde embarca em 1891,
depois de obter alguns recursos com uma venda de quadros no hotel
Drouot, em Paris. Instala-se, primeiramente, na ilha de Papeete,
depois na de Matalea. Começa a série de obras taitianas que o cele-
brizarão e se inicia na religião mágica dos indígenas.
Dois anos depois, está de volta à França para receber parte da
herança de um tio, expõe em Paris, pinta na Bretanha. Na localidade
bretã de Concarneau, quebra uma perna numa briga com marinheiros.
Depois de promover nova venda de obras no hotel Drouot, regressa
definitivamente a Taiti em julho de 1895, instalando-se agora em
Punaauia, onde continuará vivendo praticamente na miséria. Em si-
lêncio e na solidão, amado e servido pelas silenciosas e tímidas vahinas
de corpos dourados, curte anos seguidos de privações desesperadoras,
tantas que o arrastam à tentativa de suicídio em 1898. Um ano antes,
o golpe da notícia da morte, na Dinamarca, da filha querida Aline.
A partir de 1900, porém, as coisas melhoram. Suas obras começam
finalmente a despertar interesse do público francês e dos colecionadores
estrangeiros. Assina com o «marchand» parisiense Ambroise Vollard
contrato que lhe assegura pequena, mas regular mensalidade. Desa-
foga-se um pouco, mas outro golpe lhe estava reservado — a morte
de Clovis, o filho mais velho. Em agosto de 1901, deixa Taiti pelas
ilhas Marquesas, estabelecendo-se em Hiva-Oa, onde constrói uma
casa, «La Maison du Jouir». Entra em conflitos exasperantes com
as autoridades e missionários da ilha, em defesa dos nativos explorados
pelos brancos. Em conseqüência, acusado de ter difamado um policial,
vai condenado a três meses de prisão e quinhentos francos de multa.
A MORTE E A GLÓRIA
Empenhava-se em contornar a situação, para escapar às penalidades,
quando um ataque de coração o mata, na manhã de 3 de maio de
1903. Estava sozinho na «Maison du Jouir», à beira da praia iluminada,
areias douradas, águas prateadas. Ao encontrá-lo inerme, seu amigo
nativo Tioka lhe morde deseperadamente a cabeça, para lhe restituir
a vida. Chamado às pressas, seu amigo civilizado, o pastor protestante
Vernier, tenta lhe recuperar a vida com respiração artificial, no corpo
ainda quente, pendendo fora do leito a perna que os marinheiros bretãos
haviam quebrado em Concarneau.
Enquanto os missionários católicos e protestantes argumentam e
disputam o direito aos ritos do funeral, Tioka unta-lhe de óleos mágicos
e cobre-lhe de flores o corpo. Naquele velho bronzeado, seminìi,
estendido na cama de tábuas, ungido de magia, coberto de flores, jazem
o menino do Peru, o rapaz do Rio de Janeiro, o marinheiro dos Sete
Mares, apagadas para sempre as visões de paraíso, que trazia no
olhar glauco e distante.
No mesmo ano, a gloria já o esperava em Paris. Numa exposição,
na galeria de Anibroise Vollard, que as estocara previdentemente, as
suas obras alcançam preços surpreendentes. É um mestre, um criador.
um gênio, abrem-se tôdas as bocas antes fechadas. Cinqüenta e seis
anos depois, a visão paradisíaca «Te tiai na oc ite rata», (Tu esperas
uma carta?) será arrematada por 130 mil libras esterlinas ou 180
milhões de francos, preço até então jamais alcançado pela obra de
pintor moderno.
A ARTE DE GAUGUIN
Apesar de autodidata e de vocação tardia, despertada nas con-
versas de um companheiro de escritório, quando ainda corretor na
casa Bertin, Gauguin exerceu enorme influênciao apenas na pintura.
mas na arte moderna em geral. A sua obra de pintor, pois fora
também escultor e gravador, deu origem à segunda grande tendência
da Pintura Moderna, o Fovismo, aparecido em Paris em 1905.
Antes de sua arte, vejamos a sua decisão, sem dúvida heróica, de
trocar a civilização pela barbárie. com soberana indiferença, aban-
donou uma profissão rendosa, a esposa e cinco filhos, os quais nunca
mais voltaria a ver, os amigos, o conforto, a civilização, em suma,
para ir viver e pintar, solitário e esquecido, morrendo de miséria, entre
selvagens de ilhas distantes da Oceania. O seu gesto de renúncia
à civilização diz-nos que lhe havia irrompido por força ou necessidade
interior, misteriosa e irresistível, superior à sua consciência c perso-
nalidade social de civilizado. Na época e mesmo mais tarde, mesmo
ainda hoje, entre os infinitos representantes do bom senso, o seu gesto
tem sido duramente criticado pelo frio e feroz egoísmo. O crítico de
arte e poeta Herbert Readz a propósito, no entanto, observação
justa. Disse que se Gauguin tivesse abandonado a família e a civi-
lização para seguir a Deus, trancando-se num convento a rezar e bater
nos peitos, todos estariam de pleno acordo. Mas, como renunciara
à vida civilizada para seguir a beleza, consagrando-se à pintura, tôdas
as condenações desabaram sobre sua cabeça.
Olhemos a sua arte. Em virtude certamente do sangue incàico.
das impressões da infância no Peru e das visões da adolescência nas
viajens ao Rio de Janeiro e a outras regiões ainda barbarizadas aos
olhos de um parisiense, fim de século, a sua sensibilidade de artista
ainda em formação num meio erudito, saturado de cerebralismo, fora
insensivelmente se deixando dominar pelo sentimento do elementar na
natureza e no homem. Inculto mas inteligente, tinha idéias originais.
As suas opiniões sobre pinturao curiosas e, sobretudo, contraditórias.
porque entretecidas, a um só tempo, de primarismo instintivo e requin-
tado intelectualismo.
Os TRÊS PROFETAS DA PINTURA MODERNA
O SINTETISMO
Foi para a Bretanha atraído pela rusticidade da natureza e da
população, na esperança de encontrar e captar a obscura e elementar
vitalidade, ignorada pelo cerebralismo sofisticado dos parisienses.
Conheceu então jovem e talentoso pintor, Emile Bernard, às voltas
com a nova concepção de pintura, denominada Sintetismo. A nova
pintura se inspirava, sob influência dos simbolistas, que procuravam
exprimir idéias complicadas sob formas simplificadas, nas largas e
simples formas dos egípcios antigos, nos vitrais do gótico primitivo,
nas gravuras japonesas e nas artes populares bretãs. Baseavam-se os
sintetistas no princípio de que a memória e a imaginação retêm apenas
o essencial, o expressivo, um esquema mental das formas e cores.
Esses elementos, retidos pela memória ou pela imaginação, representam
a síntese da memória visual.
como era original e criador, Gauguin deu maior desenvolvimento
à teoria sintetista, fascinado pelas insinuações de elementarismo que
pressentia nela e a sua sensibilidade de primitivo estava exigindo.
como sintetista, passou a doutrinar, com ingênua ou propositada
suficiência. Dizia, por exemplo, que o pintoro deve ser apenas
um olho para registrar as formas e as cores da natureza, como queriam
os impressionistas. Deve, ao contrário, recriar a natureza, conferindo
a cada imagem valores simbólicos e decorativos inexistentes na realidade.
A pintura, insistia,o é uma análise, mas uma síntese, conjunto
harmonioso de formas e cores. Sintetizar, porém, está doutrinando o
antigo e próspero corretor da Bolsa,o é simplificar no sentido
comum da palavra, mas extrair das formas e cores as qualidades real-
mente expressivas que possuem, tornando-as mais sensíveis, inteligíveis
e comunicáveis. Através da síntese, agora está dando a sua contribuição
inovadora ao Sintetismo, através da síntese o artista deve exprimir o
que existe de mais vital ou elementar no homem, na mesma vitalidade
ou elementarismo dos selvagens e das crianças, porque a cultura, isto
é, o desenvolvimento e apuro intelectual, embota o sentido de percepção
e comunhão do homem com os ritmos primordiais da natureza. Por
isso mesmo, proclamava voltaro aos cavalos clássicos dos baixos-
relevos de Fídias no Partenon, mas aos grosseiros cavalinhos de pau
com que brincava na sua infância peruana.
como muito bem observou Alberto Martini, «diz ser um selvagem,
mas faia do valor do inexprimível, do símbolo, .das harmonias musicais,
da enigmática força expressiva da côr, como o mais sutil dos sagazes
intelectuais parisienses dos fins do século». Realmente, quando faia
de pintura, é um intelectual sofisticado; quando pinta, um primitivo
carregado de vitalidade. Esta sua contradição capitosa talvez seja
o segredo e o poder de sua arte. Foi à Bretanha atrás do elementar,
encontrou apenas esperanças de elementarismo, como depois no Panamá
e na Martinica. É quando projeta ir viver em Madagascar ou Tonquin,
mas acaba indo para as ilhas sonhadas dos Mares do Sui, ainda
misteriosas, quase lendárias, onde em relações mágicas com a natureza
viviam nativos puros, simples e belos. Seo fossem a sobrecasaca
prêta, as calças brancas e as botinas de verniz de Dom Pedro II,
talvez tivesse vindo para a negraria e mulataria langorosas do Rio
de Janeiro ou mergulhado na melancolia dos incas e mestiços de sua
infância em Lima.
BÁRBARO E REFINADO
Nos Mares do Sui, consegue finalmente encontrar e dar expressão
plástica ao sentimento do elementar ou dos ritmos vitais da naturez.a
que perseguia, nos seus refinamentos de civilizado, como ideal de arte.
Aos poucos podemos percorrer este caminho na sua obra consegue
destruir e eliminar completamente os resíduos de intelectualismo ainda
sobreviventes na sua sensibilidade culta de europeu, para finalmente
identificar-se e exprimir-se com a mesma pureza e autenticidade de
primitivos dos indígenas taítianos. Pensa, sente, vê e entende o
universo, màgicamente, como um daqueles nativos. Mata o civilizado
que havia dentro de si, ainda que o seu primitivismo resultasse de
laboriosa elaboração intelectual. Possuía, porém, especial poder de
identificação com o primordial, no homem e na natureza. Ainda na
Bretanha já revelara esse poder ao identificar-se com o sentimento
popular bretão no «Cristo amarelo» e no «Tobias e o Anjo», mos-
trando-os tais como deviam aparecer à imaginação simplória dos
camponeses, como observou Louis Hautecoeur. Mais tarde, em Taiti,
fazia o mesmo, ao pintar «Ia Orana Maria» («Eu te saúdo, Maria»
isto é, Nossa Senhora e o Menino Jesus) e o «Nascimento de Cristo»,
mostrando-os tais como apareciam aos taítianos convertidos ao cato-
licismo. com este poder de captar e exprimir ritmos elementares.
graças à sensibilidade de civilizado, mostra-se a um só tempo «civilizado
e primitivo, claro e obscuro, bárbaro e refinado», como disse Octave
Mirbeau.
Foi mais além, no entanto, na sua intuição de artista. Fixando
aspectos e flagrantes daquela natureza e humanidade simples e primitivas,
quase intocadas, adotou igualmente técnica simples e primitiva, para
criar novas ordens nas relações de cores, tornando-as capazeso de
reproduzir, mas de sugerir o real. Realizou, desse modo, a conciliação
o difícil, criadoras das verdadeiras obras de arte, entre o conteúdo
e a forma. Os temas da natureza e da humanidade primitivas foram
tratados com sentimento e técnica igualmente primitivas.
Finalmente, o bárbaro e refinado trouxe duas contribuições revo-
lucionárias à estética contemporânea. A primeira foi ter revelado à
sensibilidade do homem moderno a beleza do elementar. Despertou
o nosso interesse pelas artes carregadas da mesma vitalidade com que
impregnara as suas obras as artes das culturas arcaicas, dos povos
ou sociedades ainda no estágio mágico do conhecimento, como os sel-
vagens, os negros e os medievais primitivos. Também pelas artes
populares e dos autodidatas ingênuos, das crianças, em suma, tôdas
expressões artísticas incontaminadas de intelectualismo. O seu mergulho
profundo no universo misterioso dos instintos humanos dará origem
imediata ao Fovismo, a segunda grande escola da Pintura Moderna,
que se inspira justamente na exploração das camadas mais profundas,
por assim dizer, instintivas e vitais do ser humano «as minhas cores
o gritos do instinto», exclamava o fovista Vlaminck.
A sua segunda contribuição, pelo sentido monumental das formas
simplificadas e das largas e planas áreas der intensa, em composições
presididas por velado sentimento de construção arquitetônica, foi a de
ter aberto o caminho ao muralismo moderno. como tantas vêzes tem
sido dito, o muralismo parece o destino atual da pintura, com a con-
seqüente morte do quadro de cavalete, num imperativo inelutável de
nossa sociedade de tecnologia e de consumo, quaisquer os materiais e
técnicas usados pelo pintor.
PAUL CÉZANNE
A trindade dos fundadores da Pintura Moderna se completa com
Paul Cézanne (1839-1906), nascido e falecido em Aix, Provence.
France. É muito justamente chamado o pai da Pintura Moderna.
As suas concepções conduziram diretamente, através de Picasso e de
Braque, ao Cubismo e, indiretamente, ao Abstracionismo, uma das
discutidas tendências da pintura contemporânea.
No ginásio da cidade natal, teve entre os condiscípulos Emile
Zola, o futuro romancista, com quem se ligaria por intima e duradoura
amizade, finalmente desfeita quando se sentiu o personagem central
do romance «A obra», história de um pintor, Claude Lantier, que se
suicida vítima de frustração artística. Mais tarde, aos dezenove anos,
enquanto a irmã Maria aprendia aquarela, ornamento das prendas
domésticas de uma moça de boa família, estudava desenho e pintura com
Joseph Gibert, pintor acadêmico e conservador do Museu de Aix, ao
mesmo tempo que frequentava a Faculdade de Direito da cidade,
abandonando-a pouco depois para se dedicar só à pintura.
A personalidade e a vida de Cézanne, assim como a sua arte.
o possuem os fortes acentos dramáticos e românticos, que encontramos
em Van Gogh e Gauguin, mortos na miséria, enquanto êle vivera e
morrera na abastança. Era o único varão da família de antigo fabricante
de chapéus, que enriquecera e se fizera banqueiro. O pai era, porém,
criatura de coração seco, inteligência miúda e estreita, viva e pronta
apenas para ganhar e guardar dinheiro, de uma avareza que o levava
a dar bom dia aos outros resmungando. Acalentava o sonho de ter
o filho como sucessor no banco e, desde cedo, começou a prepará-lo
nesse sentido. Quando o percebeu artista, vago e distante, no mundo
da lua, imprestável para negócios, guardou-lhe, até morrer, surdo c
implacável rancor.
Vendo que o filhoo dava mesmo para o banco, condescendeu
em fornecer-lhe dinheiro para ir a Paris em 1861, preparar-se na
Academia Suiça para o exame de admissão à Escola de Belas Artes,
no qual foi reprovado. Alegaram os professores a sua absoluta falta
de jeito para o desenho. O paio cabia em si de contentamento
pelo fracasso artístico do filho, inclusive porqueo ficava bem, nos
preconceitos da época, uma família ter entre os seus membros um
pintor, profissão de boêmios e libertinos pouco recomendável. O próprio
Cézanne, animando-se e desanimando-se com facilidade, acreditou nos
professores da Escola e, depois de comprida conversa com o pai,
resolveu largar a pintura e trabalhar no banco. Afundou-se no mundo
positivo e árido dos empréstimos, juros e lucros, créditos e débitos.
Em pouco tempo, porém, insinuantemente, a tentação voltava irressistível.
Deixou o banco e tudo mais para se entregar ao demônio da pintura.
Aos olhos paternos, era realmente um perdido.
CALVARIO MEDÍOCRE
Enquanto o pai viveu, a sua existência foi medíocre, mas verdadeiro
calvário. O velho negou-lhe praticamente a palavra e dava-lhe min-
guada mensalidade para os gastos pessoais, considerando a incapacidade
do filho pra ganhar a vida. Em tôda a sua carreira de artista, Cézanne
jamais vendera um quadro. Para agravar a situação, era difícil.
cabeçudo e Casmurro, de poucas palavras e poucos amigos, com ver-
dadeiro horror de contato físico dos semelhantes, mesmo simples aperto
de mão.
Casou com um modelo, escondido do pai, queo admitiria mais
uma boca a sustentar vinda daquele filho inútil. Chegou-lhe um
filho, outra boca a sustentar. Escondeu-o também ao pai, revelando-o
apenas àe e à irmã. Fingia morar cm casa, quando, na verdade.
morava com a esposa e o filho, numa localidade vizinha. Dormia
com a esposa e o filho, manhã cedinho, vencida a distância, estava
em casa, cara de santo, para tomar café em família, o pai calado na
cabeceira da mesa. O velho, cada dia mais rico e avarento, quando
voltava do banco, farejava qualquer coisa no ar, esquisitices no mulherio
era a alegria proibida do neto e do sobrinho. Cézanne só respirou
livremente, homem feito e careca, quando o pai morreu. Teve, depois,
na sua casmurrice, um desabafo feroz: Meu pai foi um homem de
gênio, deixou-me quarenta mil francos de renda!» Pôde se dedicar
livremente à paixão da pintura.
Ninguém, no entanto, lhe reconhecia os méritos originais, sempre
negado, negado ainda com maior violência do que os impressionistas,
aos quais por sua vez negava teimosamente, como estava no seu feitio.
o se afastou, porém, sequer um milímetro de suas convicções,o
teve um momento de dúvida, sob a geral condenação da crítica e do
público, dos mestres oficiais e mesmo de muitos artistas independentes.
Embezerrou-se nas suas idéias e acabou. Exigente ao extremo, jamais
ou senão raramente se dava por satisfeito. Era comum, no meio do
trabalho, em pleno campo, atirar ao ar ou pisotear a tela que pintava
e voltar para casa emburrado. Algumas dessas telas, recolhidas por
camponeses, foram descobertas por «marchands» ávidos, depois da
rápida valorização de suas obras. Passava dois ou três dias sera
pegar nos pincéis, ruminando. Depois voltava à luta.
Quando no firn da vida começava a sentir o gosto do reconhecimento
e da vitória, sobretudo por parte dos jovens que o iam procurar no
retiro provinciano, a morte chegou-se-lhe de manso, aos sessenta e
sete anos. Estava pintando no campo, quando sentiu ao pesar,
a vista escurecer. Desmaiou e ficou duas horas estendido no chão
sob o aguaceiro que começava a cair, até passar um camponês, que o
conduziu na carroça à casa. Dois dias depois, parava de respirar.
como acontecera a Van Gogh e a Gauguin, numa ironia do
destino desculpará o leitor o encardido lugar comum no mesmo
ano de sua morte, abria-se o clarão de sua glória. Foi preciso morrer,
como os outros dois, para que todos vissem ter sido um dos gênios
modernos da pintura.
A ARTE DE CÉZANNE
Sabemos que na ânsia de fixar as constantes modificações que
a luz do sol produz nas cores da natureza e as transparências fluídicas
da luminosidade atmosférica, os impressionistas acabaram eliminando,
nas suas obras, a sensação de estrutura, opacidade, solidez e péso da
matéria dos objetos.
Na representação impressionista, a matéria como que se volatiliza,
dissolvendo-se em vibrações luminosas e coloridas. Os últimos quadros
de Monet, por exemplo, sobretudo aquêles pintados no jardim de
Giverni, verdadeiras fosforências as ninféias do pequeno lago,o nesse
particular significativos. Ao seu olhar, embriagado de luz, tudo se
transfigura em cambiantes irisadas pedrao é mais pedra, madeira
o é mais madeira tudo se imaterializa ou se fluidifica em névoas
luminosas e fugazes cintilações. Quando chegamos ao Neo-impressio-
nismo, Divisionismo ou Pontilhismo, completa-se a destruição da ma-
téria . com a mistura óptica ou a dissociação das cores, a matéria
como que se pulveriza, em bom brasileiro, se esfarinha, perdendo na
visão neo-impressionista as características estruturais de solidez, opa-
cidade e péso.
A PLASTICIDADE DE CÉZANNE
Cézanne resolveu reagir à destruição da matéria que os impres-
sionistas estavam praticando. Vai procurar restaurar a sensação de
estrutura, solidez, péso e forma da matéria dos objetos. Disse mesmo
que pretendia reconstruir o que os impressionistas haviam destruído,
para fazer do Impressionismo urna coisa séria e digna dos museus.
Vai introduzir uma ordem intelectual nas impressões várias e dispersas
dos sentidos. Na verdade, dentro dele havia um geòmetra rigoroso,
pronto a cortar as asas da imaginação tôdas as vêzes que ela pretendia
alçar vôo. Èsse geòmetra, reconstrutor das formas, simplificando-as,
trabalhariao com um compasso e uma régua, mas com a côr.
Tôda a significação inovadora está na maneira porque reagiu ao
Impressionismo, visto ter sido uma sensibilidade original, preservada
pelo autodidatismo de sua formação, poiso se pode levar muito
a sério a aprendizagem com Joseph Gibert em Aix e a preparação ao
vestibular da Escola de Belas Artes de Paris, na Academia Suiça,
ondeo havia professor, apenas o modelo e os cavaletes à disposição
dos numerosos freqüentadores. Recebera mais decisiva orientação, es-
pecialmente na pintura ao ar livre, de Pissarro, que havia orientado
também Van Gogh. Se reagindo ao Impressionismo tivesse adotado
os preceitos técnicos e expressivos consagrados pela tradição desde a
Renascença, evidentementeo teria sido um inovador eo seria
considerado um dos criadores da pintura contemporânea.
Reagindo ao Impressionismo, Cézanne partiu do ponto oposto de
que haviam partido os impressionistas, isto é, partiu da síntese das
formas em lugar da análise das cores, com prejuízo da sensação de
estrutura, como faziam os impressionistas. A sua preocupação de
sintetizar está clara numa frase a Emile Bernard que ficou famosa:
«...tratar a natureza pelo cilindro, a esfera e o cone», isto é, em
outras palavras, reduzir as formas da natureza aos seus elementos
geométricos básicos. uma cabeça, por exemplo, pode ser reduzida
a um simples ovòide, um braço ou um tronco de árvore, a um simples
cilindro. Esse processo de simplificação ou geometrização das formas,
para nos comunicar a impressão da estrutura total dos objetos,o
o fazia, no entanto, à base da sensação visual, mas à base de processo
intelectual de abstração, pelo qual traduziria pràticamente idéias e
conceitos sobre as formas, pois Cézanneo via o tronco de árvore
se transformar num cilindro, mas sabia que um tronco de árvore pode
ser abstratamente transformado num cilindro.
Desse modo, retirava a pintura do campo única e exclusivamente
visual, onde a haviam colocado os impressionistas, para situá-la
também no plano da especulação intelectual. Passaria a praticar o
que se convencionou chamar de realismo intelectual.
como sabemos, existem na pintura duas espécies de realismo
o realismo visual e o realismo intelectual. No realismo visual, o
pintor pinta apenas o que; no realismo intelectual, o pintor pinta o
que vê e também o queo, mas sabe que existe nas formas, como
no caso do nosso Cézanne, que sabia poder sintetizá-las, para restaurar
a sensação ou idéia da estrutura total dos objetos. Isto acontecia
porque êle fora um grande plástico, isto é, dotado de plasticidade.
Diz-se isso do pintor que, antes de ver o que as imagens representam,
vê antes e apenas os seus valores plásticos, isto é, a força expressiva
de suas formas e cores, sem associados intelectuais, literárias ou sen-
timentais, que ocorrem geralmente ao comum dos imortais.
Quando Cézanne via u'a maçã, por exemplo,o lhe ocorriam
ao espírito certas associações de natureza histórica, literária, simbólica
ou de qualquer conteúdo, como o fato de ter sido a maçã a fruta do
pecado original ou as suas propriedades medicinais, maçã alimenta e
acalma os nervos, recomenda-se aos doentes, o seu sabor, etc. Nada
desses elementos associativos lhe ocorria ao espírito. Á sua percepção,
exclusivamente plástica, a maçã surgia apenas na sua estrutura esférica.
que iria procurar sugerir na sua totalidade, como se tivéssemos dado
uma volta em torno dela ou sopesado o seu peso.
Os pintores do passado, cujas obras permanecem atuantes em
nossa sensibilidade, apesar das mudanças de mentalidade, possuem em
alto grau esse dom de plasticidade, tema fundamental à compreensão
dos verdadeiros valores da pintura, merecedor de mais amplo desen-
volvimento, que ultrapassa, no entanto, os limites desta conversa.
A FORMA E AR
O interesse da pintura de Cézanne aumenta, especialmente para
pintores, quando se observa que êle quer nos dar a sensação da estrutura
total dos objetoso com o desenho, mas com a côr. Entendia que
na pintura o desenho e aro inseparáveis, com a predominância
desta última. A forma, na sua concepção, resultava da côr,o da
linha,r para construiro para emocionar. Aliás,o apreendia
ou percebia a forma dos objetos sem a côr, porque era visceral ou
ctlularmente um colorista.
o sabia desenhar sem a ajuda dar e, por isso mesmo, levou
pau no vestibular da Escola de Belas Artes de Paris, porque lhe deram
para fazer um desenho em preto e branco, no qual naufragou sem
salvação. Dizia —eis outra de suas frases famosas que «o desenho
e aroo distintos, à medida que pintamos, desenhamos. Mais
ar se harmoniza, mais o desenho se define. Quando ar atinge
a sua riqueza, a forma está na sua plenitude. Os contrastes e harmonias
de tons, eis o segredo do desenho e do modelado. ..»
Para obter o modelado ou o volumeo se valia do recurso tra-
dicional do claro-escuro, isto é, das gradações entre luz e sombra.
Os impressionistas obtinham o modelado por meio de planos luminosos,
como fazia o próprio Van Gogh, recurso fácil de ser observado prin-
cipalmente nos seus retratos. Cézanne, ao contrário, afirmavao ser
possível reproduzir a luz, que deve ser representada por outra coisa,
a côr. Assim modelava com a côr, modulando-a, palavra que retirou
do vocabulário musical para aplicá-la ao da pintura. como um músico
modula os sons, êle modula as cores, opondo cores quentes a cores
frias. Servia-se do mesmo recurso para sugerir a ilusão de distância
ou de profundidade.
Viviao absorvido em nos comunicar a sensação da totalidade
da estrutura dos objetos, buscando acentuar os planos internos, que
perdia de vista os limites da forma. O contorno me escapa, dizia
sempre. Eis porque em face das suas deformações, muitas pessoas
o consideram mau desenhista, segundo as regras convencionais de de-
senho. Esquecem-se essas pessoas de que Cézanne estava empolgado
com a estrutura interna dos objetos eo apenas com os limites de
sua forma. Os impressionistas também perdiam muitas vêzes o con-
torno dos objetos porque estavam empolgados pelas vibrações luminosas
e coloridas. Ambos, os impressionistas e Cézanne, foram considerados
pela estética oficial péssimos desenhistas.
como disse Tristan Klingsor, pintor de aguda inteligência crítica
que o estudou lùcidamente, Cézanne era uma originalidade lenta e
laboriosa. Levou muito tempo para fazer as suas descobertas
corrigir as impressões várias e imprecisas dos sentidos e conferir-lhes
valores conceituais, para traduzir, desse modo, os estados de permanência
da matéria e das formas. Enquanto os impressionistas perseguiam a
fugacidade da luz, êle perseguia, através da síntese, a permanência
da forma. A verdade luminosa dos impressionistas era efêmera, a
sua arte era estrutural e permanente.
PRECURSOR DO CUBISMO
o tinha do universo a concepção dinâmica dos impressionistas,
mas a estática de um geòmetra construtor de formas imutáveis.
As suas preocupações de sintetizar as formas, reduzindo-as, como
dissemos, aos seus elementos geométricos básicos e, por outro lado, a
intenção de despertar-nos a idéia da estrutura total dos objetos, numa
pintura mais de conceitos do que de sensações, tudo isso de sua obra
levará diretamente ao Cubismo, através das experiências iniciais de
Picasso e Braque, dois anos apenas depois de sua morte.
Analisada detidamente, veremos sem dificuldade que, por outro
lado, a sua pintura conduzirá, agora indiretamente, ao Abstracionismo,
desde que êle a retira do domínio exclusivo da sensação visual para
situá-la também no campo da especulação intelectual ou da utilização
das formas e cores para expressão de idéias e conceitos.
Van Gogh (1853-1890) «Os comedores de batatas» (1585). Col. V. W. Van Gogh, Laren. Obra tipica da fase holan-
desa, sob
influencia
do realismo e fortes
contrastes
luminosos dos mestres nacionais do
XVII
século.
como
pintor,
manteve pelas classes trabalhadoras o mesmo interesse humanitário quando pregava nas minas do Borinage.
Van Gogh (1853-1890) «Retrato do Dr. Gâcher» (1890). Museu do
Louvre. Na fase francesa, sob as sugestões do Impressionismo, ilumina
a sua paleta. Ar luminosa adquire violência emocional ainda des-
conhecida. Em lugar de traduzir sensações visuais, como os impressio-
nistas, a suar expressará veementes reações afetivas diante do homem
e da natureza.
VanGoyh (1853-1890) - ,Auto -retrato» (1887). Col. V. W. Van Gogh, Laren. com virtuosismo incom-
parável,
a
-iou técnica própria e inconfundível. Neste auto-retrato, aplica de modo pessoal a técnica do
ontilhismo ou divisionismo, que os impressionistas empregavam para maior pureza da luminosidade solar. Aqui,
porém, utilizou-a para maior efeito da tensão emocional.
Caria de Van Gogh ao irmão (1888). Nas numerosas
cartas ao irmão e amigos, Van Gogh revela-se escritor,
estilo simples e direto, Muitaso ilustradas com desenhos
dos quadros que na ocasião pintava. Nesta, um esquema
do conhecido "Quarto do artista em Aries", hoje na
Col. de V. W. Von Gogh, Laren.
Paul Gauguin ( I8-18-1Q03) Retrato. Descendente de familia esp¿i-
nhola desde muito radicada no Peru,oo poucos os estudiosos
que atribuem sua atração pelo primitivo à hereditariedade e à infância
peruana. Os anos vividos no Peru o teriam marcado profundamente.
Depois as viagens, inclusive ao Rio de Janeiro, exotismos de terras c
gentes. Seu todo, físico e espiritual, era o de um inca.
Paul Gouguin (1848-1903) «Ta Mátete» (O mercado, 1892). Museu de Basiléia. Eliminando quaisquer vestígios
da visão erudita de europeu, Gauguin conseguiu realizar perfeita harmonia entre conteúdo e forma. Igual ao tema, a
técnica é também elementar, na composição, desenho e côr. Por outro lado, com a simplificação da forma e as cores
puras, atinge o monumental. Anuncia, desse modo, o muralismo moderno.
foul Cézanne (1848-1906) A curva na estrada» (1881). Detalhe. Museu de Arte, Boston.
1 ara reagir à destruição das formas operada pela luminosidade impressionista, Cézanne procurou
siinplicá-las ao máximo. Tratava-as como se fossem figuras geométricas cones, esferas, cilindros.
As suas idéias sobre as formas levaram diretamente ao Cubismo, dois anos depois de sua morte,
Georges Braque (1882-1963) <'Casas no Estaque» 1908). Fundação H. Rupf. Berna. Aqui
nasceu o Cubismo. Braque e Picasso levaram às últimas consequências a simplificação das
formas proposta por Cézanne. O local fora o mesmo pintado por Cézanne. Mais tarde, através
da decomposição arbitrária da estrutura dos objetos, o Cubismo pretenderia proporcionar a visão total
e simultânea dos objetos. Buscou suprir as relações espaço-tempo.
PROBLEMAS DO CINEMA NACIONAL EM 1969
OCTAVIO DE FARIA
Ds aspectos fundamentais parecem ter dominado a problemática
de nosso cinema, no decorrer do ano de 1969. Outros, sem dúvida,
como o da conquista do mercado estrangeiro ou o da padronização dos
ingressos, podem e devem ser assinalados. Mas, esses dois a que me
refiro merecem um cuidado todo especial: o do aumento de reservas do
mercado interior para exibição de filmes nacionais e o da dublagem.
Foram os mais importantes.
Sobre eles, e em cada um a seu tempo, incidirá nossa análise aqui.
I
O AUMENTO DA RESERVA DE MERCADO
a) O problema em si
De um relativo estacionamento, nos anos de 1963, 64. 65 e 66,
em torno de uma média de 30 filmes por ano, a produção nacional
passou a aumentar consideravelmente a partir de 1967, quando atingiu
o nível de 40 filmes, logo superado em 1968, ultrapassando 55 filmes,
e chegando em 1969 às proximidades da casa dos 70 filmes. (1)
Contrastando com esse crescimento, mais ou menos duplicativo da
produção nacional costumeira, a exigência legal, em relação ao número
de dias de exibição obrigatória, permaneceu inalterado: 56 dias por
(1) Variam os números das estatísticas a esse respeito. Damos a seguir os
números oficiais do INC com, colocados entri paréntesis, os fornecidos por outras
fontes, mais ou menos autorizadas: 1963: 33 (30); 1964: 26 (33); 1965: 26 (31);
1966: 30 (31); 1967: 41 (40); 1968; 47 (56); 1969; 63. Quanto a este último
número, há grandes divergências, alegando alguns que a nossa produção foi superior
a 70 filmes.
ano. (2) Donde o problema criado: dado o relativo pequeno número
de nossas salas de exibição e o ceticismo dos exibidores em relação à
boa rentabilidade dos filmes nacionais, ficava mais ou menos bloqueado
o escoamento total do produto. Em poucas palavras: grande quanti-
dade de filmes nacionais sobrariam, indo morrer nas prateleiras das
casas distribuidoras sem conseguir salas que os exibissem. Grande
prejuízo material em vista, já que nosso cinemao se movia mais
na área do quase amadorismo de antes, o número de espectadores do
país tendo passado de 180 mil (1948 números redondos) para mais
de 320 mil (1968) e com uma arrecadação anual calculada em quase
duzentos milhões de cruzeiros novos.
Movimentaram-se, em conseqüência, os nossos produtores para
pedir ao Instituto Nacional de Cinema que duplicasse a reserva de
dias de obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais de 56, pas-
seriam a 112, salvando-se assim o cinema brasileiro da bancarrota
iminente que acarretaria, inclusive, o desmoronamento do próprio INC,
privado de sua maior fonte de renda. (3)
Em contraposição, firmou-se o ponto de vista dos exibidores: im-
possível aumentar, em um dia que fosse, o quantum da reserva já
estabelecida, uma vez que o filme nacional, salvo algumas pequenas
exceções, dava prejuízo às casas exibidoras, já representando uma carga
bem pesada para a economia das mesmas. Argumentando ainda que,
se a mercadoria fòsse bem aceita pelo público,o haveria necessidade
de medidas protecionistas, pois seriam as próprias casas de exibição
que aumentariam a quantidade de dias de programação.
Antagonizados os pontos de vista, de nada valeram as «compensa-
ções» propostas, de um lado e de outro (adicionais para os exibidores.
maiores prêmios aos produtores, etc). Um grupo de trabalho, nomeado
pelo INC dois representantes dos produtores, dois dos exibidores e
dois do próprio INC concluiu por dois relatórios absolutamente anta-
gônicos, irredutíveis em torno da exigência de 112 dias, um; de sua
negação, outro; recusando-se inclusive à conciliação de 84 dias obriga-
tórios que pareceu por algum tempo ter sido a fórmula ideal conci-
liatória sugerida pelo INC.
Foram então os dois relatórios submetidos ao Conselho Consultivo
do INC e, posteriormente, ao seu Conselho Deliberativo que final-
mente, decidiu «conceder, em caráter excepcional, sete (7) dias de
exibição obrigatória ao filme nacional, para cumprimento no último
trimestre de 1969, além da quota determinada pela Resolução INC
n* 3.» (4) Esta concessão, «em caráter excepcional», baseava-se em
(2) Resoluçao n° 3, do INC, de 11 de maio de 1967.
(3) v. Relatório apresentado ao INC pelos Produtores Cinematográficos Bra-
sileiros, entregue em 17-7-69.
(4) Em 18-9-69.
varias ponderações que assim podemos resumir: considerando que, dada
sua complexidade e relevância, os estudos necessários aindao tinham
sido concluídos (certos esclarecimentos ainda se fazendo necessários),
e que, por outro lado, havia urgência de atender às necessidades ime-
diatas prementes da produção nacional, forçoso era recorrer a uma
medida provisória, a única possível, isto é: a concessão de sete dias a
mais para o último trimestre do ano de 1969.
Em resumo, portanto: questão ainda aberta. . .
b) Discussão do problema
Qualquer que seja a solução a que finalmente se chegue, o que
o resta dúvida é que alguma coisa tem de ser modificada no atual
regime de reserva de mercado para o filme nacional. Jáo atende,
evidentemente, ao crescimento inequívoco de nossa produção, que exige
soluções imediatas, sob ameaça de graves prejuízos.
A exigência de que o número de dias de reserva seja duplicado,
passando, portanto, dos 56 estabelecidos (8 semanas por ano) para
112 (16 semanas) baseia-se no extraordinário aumento de nossa pro-
dução nos últimos dois ou três anos, pràticamente duplicando, e já
beirando a casa dos 70 filmes. Essa produção, evidentemente,o
«escoará» se a reserva estabelecidar mantida. E, na verdade, os
7 dias suplementares (uma semana para o último trimestre de 1969),
concedidos pelo INC, representam o reconhecimento inequívoco, ainda
que parcial, dessa necessidade.
O que se teme, porém, para a concessão da duplicação de dias
pedida pelos produtores é que: 1') seja excessiva, dada a possível
o repetição, nos anos vindouros, da quantidade de filmes produzidos
nos anos de 68 e 69; 2") abra um precedente perigoso, no caso de a
nossa produção vir a aumentar cada vez mais.
A primeira hipóteseo seriao absurda quanto à primeira vista
pode parecer. O insucesso de uns e de outros; o «aventurismo» de
muitos que, acaso desiludidos de lucros imaginados (e superimagina-
dos!...), fossem buscar outras «minas»; ou mesmo circunstâncias im-
previsíveis de nossa economia privada, poderiam levar essa produção
elevada de 68 e 69 a cair consideravelmente, a partir de 70 ou de 71.
E, então, ficariam os 112 dias de reserva acaso concedidos csobrando»
e prejudicando de modo decisivo o outro prato da balança a sempre
reclamante ordem dos exibidores. Para evitar um desmoronamento,
ocasiona r~se-ia provavelmente outro...
Julga asim uma facção moderada, na qual ouso, aliás, me incluir,
que uma reserva de 84 dias (12 semanas, em lugar das atuais 8 ou
das 16 pedidas) seria mais prudente e consultaria as necessidades pro-
venientes da verdadeira realidade do crescimento da produção nacional:
intenso, sem dúvida, mas aindao regular, assegurado. (E tal parece
também ser o pensamento do INC ao conceder, em medida excepcional,
provisória) os 7 dias (uma semana) para o último trimestre de 1969,
isto é: 7 dias num trimestre, 28 num ano (4 semanas) . Ou
seja: acréscimo, aos 56 estabelecidos, de mais 28, perfazendo um total
de 84 (12 semanas ). E ficaria ainda a porta aberta para futuros
acréscimos (mais 28 dias (4 semanas), no caso do crescimento
de nossa produção se manter ou se acentuar ainda mais.
O queo é aceitável, afirma essa corrente moderada, é que a
quase duplicação de nossa produção nesses dois últimos anos determine,
automaticamente, a imediata duplicação do número de dias de reserva,
como se estivéssemos tratando de questões matemáticas. Tanto mais
quanto o precedente poderia se tornar altamente perigoso. uma nova
duplicação de produção, na base de dois ou três anos, e estaríamos com
224 dias (32 semanas), isto é: mais de meio ano reservado para o
cinema nacional. Donde a angustiante pergunta: e se essa «elefantiase»
progredisse, a queo chegaríamos? A exclusão de exibição da pro-
dução estrangeira?. ..
Foram provavelmente essas hipertrofias, previstas ou previsíveis,
que endureceram os exibidores em sua recusa à aceitação de qualquer
aumento de reserva de número de dias. Segundo eles, 56 dias já é
sobrecarga que os asfixia, obrigando-os a recorrer à exibição de filmes
estrangeiros de classe C (relativamente baratos e de boa aceitação
por parte do público) para «compensar» o prejuízo que lhes acarreta
a obrigatoriedade de filmes nacionais (também baratos mas de má
aceitação pelo público). E insistem na argumentação: se o filme na-
cional é
r
na maioria dos casos, deficitário (em relação, pelo menos, ao
filme estrangeiro cujo lugar ocupa nos possíveis mesmos dias de pro-
jeção) é porque o público, via de regra,o gosta do filme nacional,
acha-o mal feito, desinteressante, ou, pelo menos, prefere o filme es-
trangeiro . .
Assim, para que auxiliar o crescimento do número desses filmes
«indesejados», «rejeitados» mesmo, em vez de procurar modificá-los,
melhorá-los, torná-los de qualidade tal (ainda que em número bastante
mais reduzido) que o público os considere à altura do produto estran-
geiro senão em seus exemplares culminantes, pelo menos em sua
mediania? E os recentes exemplos de «Macunaíma» (que é um ótimo
filme, de qualquer ângulo que se o examine) e de um «Roberto Carlos
Em Ritmo de Aventura» (que eles julgam ótimo), surgem em abono
da tese dos exibidores, prestigiados por suas rendas altamente com-
pensadoras, em oposição aos desastres de bilheteria de um Júlio Bres-
sane, de um Ozualdo Candeias e de outros muitos.
É um ponto de vis'ta,o há dúvida. Mas, que o cinema, ao
lado de ser uma indústria, seja uma arte também, e que, entre seus
objetivos, secundários ou não, esteja o de educar o povo culturalmente.
ao invés de, satisfazendo apenas seus pendores menos elevados, tra-
zê-lo de nôvo ao clima das chanchadas ou mergulhá-lo no pantanal
da eroticidade fácil, eis, evidentemente, o queo ocorre a esses exi-
bidores que, como em tôda a parte do mundo, cuidam, e só cuidam,
de seus negócios, da rentabilidade de seus capitais.
É o problema dêles, está claro. Eo cuido aqui de discutir
sua legitimidade. Apenas, de afirmar que é nosso dever como o é,
também, daqueles que dispõem de força e autoridade pública de-
fender o cinema nacional enquanto arte, procurar assegurar suas con-
dições de desenvolvimento e melhoria, sem esquecer jamais que, arte
e indústria ao mesmo tempo,o pode subsistir como arte seo lhe
proporcionarem a base material imprescindível. Certo, e por tôda a
parte, a indústria prejudica a arte. Mas, sem a primeira, fenece a
segunda., portanto, que conciliá-las. E é o problema de todos os
cinemas, do nosso como de qualquer outro.
E eis porqueo hesitamos em afirmar que há absoluta neces-
sidade de alterar o nosso regime de reserva de mercado no sentido
de favorecer um pouco mais a produção nacional. De que modo, e
até que ponto, foi o que tentamos estabelecer, mas ainda há um ponto
em que julgamos útil insistir, se bem que de passagem, sujeitando-o a
estudos mais profundos.
c) Sugestão à guisa de conclusão
De que se queixam os nossos produtores? De que os exibidores
o cumprem a lei,o observando a reserva de 56 dias por ano
para filmes nacionais? De modo algum. Os exibidores a issoo
obrigados, e cumprem a exigência, segundo manda a lei. Certos cine-
mas mesmo chegam aos três quartos do ano com a sua quota de obri-
gatoriedade já satisfeita.
O que, então? Por que se queixam os cineastas e os produto-
res? E por que ficam filmes nas prateleiras dos distribuidores sem
serem exibidos? A resposta me parece muito simples: é que cada exi-
bidor tem que exibir em cada uma de suas salas filmes nacionais
durante 56 dias por ano, mas pode exibir, em cada cinema, se quiser,
se julgar que lhe dá lucro, um único [Ume. Contanto que complete,
com sua exibição, 56 dias oito semanas, portanto.
O que, na prática,o é difícil de acontecer. Temos visto filmes
nacionais, do gênero «chanchada» ou não, mas em geral de nível artís-
tico bastante baixo, ocupando semanas e mais semanas num mesmo
cinema ou em várias salas de um mesmo circuito. Ainda há pouco,
filmes como «Roberto Carlos Em Ritmo de Aventura», «O Jeca e a
Freira» ou «Tovens Pra Frente» quase que deram para que certos
cinemas perfizessem suas quotas anuais de dias de reserva.
Ora, ninguém ignora: o nível de consumo de bom cinema por
parte de nosso público é, infelizmente, ainda muito baixo. Recém saído
do clima repelente das «chanchadas», mal se vem habituando ão
ambiente evidentemente mais elevado que nosso cinema, digamos, de
1960 para, veio apresentando, atribua-se ou nao èsse progresso aos
inteligentes esforços do chamado cinema novo. Seja, graças a quem
fôr, o indiscutível é que a produção melhorou consideravelmente.
O queo impede, é claro, que continuem a surgir chanchadas
ou produções que visam apenas «bilheteria», baseadas exclusivamente
na fama de determinadas «vedetes» de rádio ou televisão, de nível
quase sempre bastante duvidoso. Permitir que, com a exibição dessas
chanchadas ou coisas que disso se aproximam, se «esgotem», nos nossos
cinemas, os 56 dias estabelecidos, é o queo me parece certo, ou,
pelo menos, educativo, cultural. Pois, podemos chegar, afinal, a um
quadro que quase se poderá chamar de cômico: cada uma de nossas
salas «lotada» por um ou dois filmes de «grandes bilheterias», como
Chacrinha, Roberto Carlos, Mazaroppi, Jair Rodrigues, Jô Soares, Zé
Trindade, Wanderléia, ou mesmo um Oscarito (um grande ator,
no entanto, e sem dúvida alguma).
Nessas condições, evidentemente,o poderá sobrar grande «es-
paço» para que se exibam filmes de Glauber Rocha ou de Walter
Hugo Khoury, de Lima Barreto ou de Nelson Pereira dos Santos,
de Paulo Cesar Saraceni ou de Carlos Diegues. Quando muito, de
decênio em decênio, haverá uma «coincidência» como «Macunaíma»,
de Joaquim Pedro de Andrade, podendo atingir ao mesmo tempo o
grande público e a camada mais elevada. A regra geral será, inevi-
tavelmente, o retorno à chanchada, a renúncia a qualquer cinema mais
autêntico e mais esclarecido.
o considerações dessa ordem que nos levam a pensar na possi-
bilidade de que se estude uma espécie de critério misto para melhorar
ou revalorizar o problema da obrigatoriedade da reserva de dias. Isto é :
ao mesmo tempo que se fixará um número de dias compulsórios (de
acordo com o que se averigüe corresponder às necessidades da nossa
produção), estabelecer-se-á, para cada sala de exibição, um mínimo
de filmes a serem programados, por ano. Ou seja: digamos que tenha
sido fixada uma reserva de 84 dias (12 semanas). Então, determi-
nar-sc-á um mínimo de, digamos, 6 filmes por ano o que daria
uma média de duas semanas para cada filme média queo impediria,
é claro, que, se um exibidor quisesse manter um filme 7 semanas,
pudesse fazê-lo, contanto que, nas 5 semanas de obrigatoriedade res-
tantes, exibisse 5 filmes diferentes (um per semana) . Ou, caso
julgasse de seu interesse, exibir esses filmes mais de uma semana, que
os projetasse quanto tempo quisesse, mas sem prejuízo do tempo com-
pulsório que seria intangível: 12 semanas, com um mínimo de 6 filmes.
Essa base aqui estabelecida (6 filmes diferentes para 12 semanas
totais, ou 8 filmes para 16 semanas, no caso de serem 112 os dias
obrigatórios) é meramente exemplificadora, problemática. Claro é que
sua fixação dependeria de um estudo a ser feito pelas autoridades
competentes produtores e exibidores consultados, opinantes. Visa,
tal como foi ideada, apenas, levantar uma possibilidade de defesa sen-
sível para o cinema de qualidade em relação à produção puramente
comercial ou «de bilheteria», como se costuma dizer. E nem se argu-
mente, contra ela, que represente uma qualquer tentativa de limitação
para o lucro dos exibidores, uma vez que nada impedirá que exibam
um filme «de bilheteria», chanchada ou não, o número de dias, semanas
ou meses que julgarem da conveniência de seus interesses. Apenas,
que o façam sem prejuízo da reserva estabelecida - reserva de número
de dias obrigatórios, sejam eles 84 ou 112 e reserva de número de
fiimes, sejam eles 6, 7. 8 ou quantos forem.
Pessoalmente, insisto, parece-me que uma reserva de 84 dias. com
um mínimo de 6 filmes, poderia atender, provisòroamente pelo menos.
ao problema existente. Então, 1970, ou 1971 na pior das hipóteses,
responderiam se podemos nos fixar nesses números ou se, com a con-
firmação do acréscimo na produção real, será preciso aumentar, chegar
aos 112 dias, com 8 filmes no mínimo.
II
O PROBLEMA DA DUBLAGEM
a) o Decreto 603 e sua extensão
o faltou quem propalasse que o Decreto 603, de 30 de maio
de 1969, havia instituído a dublagem imediata obrigatória para os fil-
mes estrangeiros exibidos no Brasil. Uns como disfarçada repugnân-
cia, pensando nos dantescos atentados que iriam ser cometidos contra
o cinema considerado como arte. outros já se rejubilando com os pos-
síveis lucros que adviriam a indústrias nacionais que fossem gravitar
em torno do problema da dublagem, todos comentaram o decreto.
Mas, como de costume, falou-se quase sempre apressadamente.
E, aqui e ali, sem nem mesmo ter tomado conhecimento do decreto
em questão. Pois a verdade é que esse Decretoo obriga a dublagem
imediata e total, apenas determina que, entre as atribuições do Insti-
tuto Nacional do Cinema, figure a de «formular normas» para a
dublagem. Estabelece, de fato condições para que, caso dos estudos
e discussões que o Instituto Nacional de Cinema leve a efeito, resulte
ser considerada oportuna a imediata implantação da dublagem, logo
possa ela ser efetuada. Diz textualmente, em seu art. 4
9
, que trata
dos atributos do INC, item XV: «Formular normas destinadas a
tornar obrigatório o uso do idioma nacional nos filmes estrangeiros
que forem exibidos nos cinemas existentes no território brasileiro.»
Nem foi de outra forma que compreendeu o Decreto o Presidente
do INC, Durval Gomes Garcia, ao declarar à imprensa que os estudos
a respeito da dublagem dos filmes estrangeiros estavam sendo realiza-
dos por uma assessoria técnica que deveria ouvir produtores, exibido-
res e distribuidores, sendo ainda cedo para prever quando a medida
entraria em vigor. O relatório conclusivo, a ser elaborado pela asses-
soria, seria oportunamente encaminhado ao Conselho Deliberativo do
INC, ao qual caberia a decisão final. 5) E esclareceu, logo em seguida
a suas declarações públicas, que este estudo levaria em consideração
dois pontos fundamentais, a saber: «em primeiro lugar, averiguará as
vantagens econômicas da dublagem para o desenvolvimento da indústria
cinematográfica nacional. Se comprovada a vantagem, o estudo passará
então para uma segunda etapa, que será a busca de uma fórmula que
permita ao cinema nacional usufruí-la sem que o filme, quando consi-
derado obra de arte ou meio de comunicação cultural, seja prejudi-
cado.» (6) Para, enfim, concluir: «Tudo indica que a fórmula a ser
encontradao seja simples, obrigando, por exemplo, a dublagem de
todos os filmes estrangeiros, mas sim um pouco complexa, permitindo
harmonizar o choque entre os interesses econômicos e os da arte cine-
matográfica.» (7)
Julgo, portanto, queo há porque se apavorar tanto com o «fan-
tasma» da dublagem que, para muitos, equivale ao fim do cinema como
forma de arte. E, realmente, a dublagem integral, absoluta, como pre-
tendem muitos dos nossos chauvinistas do cinema,o eqüivaleria a
outra coisa. Que Deus nos preserve de tamanha calamidade. Mas.
o acredito que seja preciso apelar parao alto. O simples bom
senso e bom gosto do INC bastará para nos fazer chegar a fórmulas
bem menos catastróficas.
b) Desvantagens grandes e vantagens mínimas
É altamente discutível a principal vantagem que os defensores da
dublagem compulsória total apresentam e que se poderia sintetizar nessa
fórmula: maior auxílio ao cinema nacional. Claro que, se se entender
por esta fórmula: auxílio aos laboratórios e aos profissionais queo
fazer as dublagens, ainda se poderá aceitar a idéia, discuti-la à luz
de números e probabilidades. Mas, estendendo-a ao cinema nacional
em geral, é absolutamente inaceitável.
Pois,o resta a menor dúvida que, no dia em que os filmes
estrangeiros forem totalmente dublados no Brasil, o cinema nacional
enquanto conjunto, totalidade, sofrerá a mais terrível das concorrências.
(5) Segundo declarações prestadas a «Jornal Do Brasil» 15-6-69.
(6) v. «Jornal Do Brasil», 15-6-69.
(7) Idem.
E, sem possibilidade de se defender eficazmente, creio eu. Nem tanto
nos grandes centros urbanos, mas, sobretudo, no interior, onde, a um
público geralmente iletrado e, nao raro, marcado por forte percentagem
de analfabetismo, será oferecido, com tôdas as facilidades de acesso e
uso pleno, um produto «estrangeiro,» isto é: beneficiado por tôdas as
vantagens reais e as auréolas preconceituais que, via de regra, acom-
panham os produtos dos grandes centros de produção alienígena.
E o que mais me surpreende é que cineastas e produtores brasi-
leiros e, entre eles, alguns dos mais esclarecidos e competentes
tenham logo vindo a público, em plena sinceridade de suas declara-
ções espontâneas, louvar a medida, invocando justamente as possíveis
«vantagens» do cinema nacional. Um dos mais capazes, dentre eles,
chegou mesmo a «descobrir» sete razões a favor da dublagem (8) que
me parecem ignorar totalmente os interesses mais reais da produção
nacional. E, com êle, outros de igual gabarito artístico e cinemato-
gráfico. (9)
É verdade que muitos outros, dentre esses homens esclarecidos
mais chegados aos interesses vitais do nosso cinema, bem cedo lobri-
garam o perigo eo esconderam seu firme receio pela tremenda
concorrência que o filme estrangeiro dublado iria trazer ao produto
nacional, aindao liberto da carga de «preconceito» com que geral-
mente é visto pelo nosso público. Um dêles, e dos mais competentes.
o cineasta Walter Lima Júnior, responsável por «Menino de Engenhos
e «Brasil Ano 2.000», declarou que só passaria a defender a dublagem
no dia cm que lhe provassem que ela iria beneficiar o cinema nacional.
maso palavras textuais: «até agora só vejo pontos negativos:
concorrência com o filme brasileiro; perda certa de concorrência para
a televisão que apresenta filmes dublados na casa do freguês; e, sobre-
tudo, uma grande piora do nível artístico.» (10) No mesmo sentido,
opina outro diretor de renome, alegando que a dublagem redundaria
na «total dominação do mercado brasileiro peias organizações estran-
geiras» que passariam a montar entres seus próprios laboratórios,
anulando, portanto a vantagem inicialmente conseguida. E conclui:
«Dispondo agora de uma legislação que lhes permite associarem-se aos
produtores brasileiros, em partes iguais, na realização de filmes nacio-
nais, as empresas distribuidoras estrangeiras terão na dublagem obri-
gatória o que lhes faltava para concluir a dominação integral do mer-
cado brasileiro.» (11)
(8) v. em "Jornal do Brasil", 15-6-69 as declarações do Diretor do Sindicato
dos Produtores Cinematográficas, cineasta Domingos de Oliveira.
(9) Entre outros, Joaquim Pedro de Andrade, David Neves, Luis Carlos
Barreto, etc.
(10) v. «Jornal Do Brafil», 25-6-69.
(1) v. declaração de Geraldo Santos Pereira, «Jornal Do Brasil», 15-6-69.
Estas as perspectivas essenciais da problemática econòmica da
dublagem. Mas, como sabemos que o cinemao é apenas uma in-
dústria, mas sim, e essencialmente, uma arte, vejamos o panorama que
se nos depara do ponto de vista artístico.
o será talvez grande novidade minha posição pessoal nesse
problema. E permito-me relembrá-la aqui. Já em 1960, quando a Pri-
meira Convenção Nacional de Crítica Cinematográfica se reuniu, em
o Paulo, nos primeiros dias da segunda década de novembro e votou
uma «recomendação» contra o primeiro projeto de dublagem obrigatória
então em andamento, (12) considerando a dublagem fator perigoso de
«desfiguração artística e ideológica» e «elemento de competição do
filme nacional», já nessa época vim a público pelas colunas de «Jornal
do Comércio» testemunhar a minha solidariedade à «recomendação»
da Primeira Convenção Nacional de Crítica Cinematográfica, (13) em
dois artigos, em que protestava contra «o monstro chamado dubla-
gem. (14)
De lá para, naturalmente,o se modificou meu ponto de vista.
Eo foram de natureza a mudá-lo, os lamentáveis exemplos de du-
blagem que nos foi dado apreciar. (15) E isso, tanto aqui no Brasil
(as terríveis dublagens de algum desenhos animados de Walt Disney,
como «Branca de Neve e os Sete Anões», «A Bela Adormecida»,
os filmes dublados na televisão, certas tentativas de filmes de longa
metragem como «Os Delfins», como no estrangeiro, onde certas obras
primas do cinemao literalmente «assassinadas» pelas deformações
da dublagem. (Jamais me esquecerei do «choque» que foi, para mim,
assistir, em Paris, em 1957, «Due Soldi Di Speranza», o belo filme de
Renato Castellani, em versão dublada para o francês. Literalmente,
impossível de ser assistido! E, lembro-me, dias depois, revendo o filme
em «v. o.» («version originelle»), a «revelação» que foi encontrar a
obra que marcou um dos momentos mais interessantes do neo-realismo
italiano. Um filme novo, inteiramente diferente do que assistira dias
antes... ou que quaseo assistira).
E, realmente, quando pensamos nos «perigos» que nos ameaçam,
como seja, por exemplo, ver uma Katherine Hepburn dublada por
uma Dercy Gonçalves qualquer ou um Dustin Hoffman por um qual-
quer Zé Trindade, ou ter de ouvir os «acordes» de um Chacrinha nos
(12) De autoria de Gerald Lindgren (1969), a que se seguiu o projeto de
Aureo Melo (1966).
(13) . . . sabiamente orientado por Paulo Emílio Sales Gomes e Francisco
Luis de Almeida Salles.
(14) v. «Jornal Do Comércio» («Notas»), 7-12-60 e 6-1-61.
(15) ... e tantas vêzes veementemente denunciada pela pena inteligente e
autorizada de José Sanz.
lábios de um Laurence Olivier ou de um John Gielgud, eis o que nao
parece uma perspectiva risonha. Eis mesmo o que nos enche de um
santo e justo pavor.
Argumentar, por outro lado e já agora do ponto de vista
sócio-educacional que a dublagem seria um bem por levar às massas
analfabetas do país uni espetáculo de que até agora se viam privadas,
dada a impossibilidade de lerem as legendas que acompanham os filmes
estrangeiros, tambémo me parece razoável. Afigura-se-me, inclusive,
uma atitude senão demagógica (acredito na boa fé de muitos dos defen-
sores da tese), pelo menos francamente anti-educacional. Pois,o
será conceder prêmio ao analfabetismo, em vez de combatê-lo? Ë preciso
ensinar o analfabeto a 1er legendas e, não, incentivá-lo em sua igno-
rância, oferecendo-lhe uma facilidade, um divertimento a mais. É de
ensinar que se deve cogitar,o de suprir as deficiências educacionais
com prêmios-extra.
Outro aspecto educacional que o problema apresenta, também
negativo, em relação à dublagem, é que o cinema estrangeiro tal como
é apresentado, misto de faia na língua original e de legendas em por-
tuguês, é um poderoso fator de ensino de línguas vivas notadamente
do inglês e, um pouco, do francês e do italiano. E niguém ignora
que, na preferência que cada dia mais acentuadamente se manifesta entre
s em relação aos livros de língua inglesa ou americana, é fator
preponderante a influência constante, quase diária para muitos, dos
filmes americanos que representam, como se sabe, o grande contingente
da produção que nos é apresentada.
Resulta, assim, que nenhum bem real nos advirá da dublagem
compulsória total que alguns querem implantar. Mas, infelizmente, de
tal modoo pensam os nossos mais ferrenhos chauvinistas. E já foi
conseguido, e está, o Decreto 603 que por tantos anos foi possível
adiar. Regulá-lo, contê-lo, atenuar suas piores conseqüências, eis a
tarefa dos que estão incumbidos de assessorar tècnicamente o Instituto
Nacional do Cinema.
c) Um mal menor
Nesse sentido, o mal menor, a melhor esperança que nos resta, é
recorrer ao velho e mais ou menos comprovado sistema da simulta-
neidade da «versão original» e da «versão dublada.»
Estão os franceses, seo me engano, na base dessa idéia inte-
ligente e, portanto, naturalmente francesa. Parte ela do seguinte
principio: certos filmes, de grande qualidade (jáo digo: filmes de
arte pura, mas de qualidade superior, ouo estritamente comerciais)
m de ser defendidos em sua integralidade artística original, isto é:
de. Imagem, de som e de expressão oral. Serão, assim, exibidos em
circuitos ou cinemas especiais, ficando os demais, dublados, para o
uso e consumo do grande público nos cinemas de maior lotação, nas
chamadas «salas populares.»
Paris conheceu desde cedo esse sistema das «version originelle»
que outras capitais, como Roma ou Londres, entre outros grandes cen-
tros, vieram a imitar, ainda que em escala menor. E me parece ser o
único caminho que teremos diante de nós, quando tiver de ser «regu-
lada» a dublagem compulsória estabelecida no Decreto 603. Ficar-
nos-á, pois, a possibilidade de ir a determinadas salas se quisermos
ver filmes como «A Hora do Lobo» ou «Teorema» em sua integral
originalidade» E iremos a outros cinemas quando a «arte» em sio
estiver em jogo, e sim, apenas, o divertimento que, em seu aspecto
artístico, poderá ser um pouco mais ou um pouco menos cuidado. Nada
de muito extraordinário nisso. Pois jáo temos os xspaghetwestems»,
isto é: esses simulacros de filme de far-west, a que assistimos falados
em americano e que foram filmados em italiano e concebidos por uma
ralé de diretores com nomes truncados para melhor poder vender o seu
miserável «produto»? E, quando queremos,o sabemos onde encontrar
o verdadeiro cinema, o dos John Ford e dos Bergman, dos Visconti
e dos Antonioni, dos Bresson e dos Resnais? ,
Ciencias Humanas
.CIÊNCIA POLÍTICA NOS PAÍSES TROPICAIS *
AFONSO ARINOS DE MELO FRANCO
1 CONCEITUAÇÃO DA CIÊNCIA POLITICA
A expressão «Ciência Política» deve ser conceituada com clareza,
ainda que em síntese, a fim de evitarmos ambigüidade ou confusão no
seu emprego. Evitaremos, com isto, dificuldades no debate no nosso
tema, e poderemos limitar com mais segurança o campo das nossas
observações.
O significado dos termos «Ciência Política» costuma variar bas-
tante, ainda mesmo quanto ao conteúdo da expressão e, em conse-
qüência, quanto aos métodos empregados na exposição e na pesquisa
da matéria.
De uma maneira geral poderíamos considerar duas correntes no
tratamento da Ciência Política: uma mais voltada para a técnica so-
ciológica e outra para a técnica jurídica.
Considerada mais no quadro da sociologia, a ciência política se
interessa pela pesquisa, interpretação e sistematização dos fatos ligados
ao fenômeno geral do poder, dentro da sociedade. Observa-se, desde
logo, nessa forma de tratamento da Ciência Política, que os problemas
referentes à estrutura legal do Estadoo relegados a plano relativamente
secundário.
É, com efeito, racionalmente aceitável e até históricamente veri-
ficável, a existência de sociedades humanas que conheçam ou hajam
conhecido o poder político, sem que, no entanto, tenham se organizado
em forma de Estado, pelo menos de acordo com o nosso entendimento
desta palavra.
O exame de tais sociedades compete principalmente aos antro-
pólogos, etnógrafos e sociólogos, quando não, em certos casos, aos
historiadores.
Mas, mesmo em se tratando de sociedades altamente avoluídas, de
nações perfeitamente organizadas em Estados e mesmo em grandes
( * ) Trabalho submetido a debate no Instituto de Tropicologia da Univer-
sidade Federal de Pernambuco abril de 1970 coordenação do Professor
Gilberto Freyre.
e poderosos Estados — é comum praticar-se a Ciência Política como
pesquisa de assuntos que poucas relações possuem com o Estado e
sua organização jurídica.
Nos Estados Unidos, por exemplo,o feitos importantíssimos
estudos de Ciência Política quem por objeto processos correntes na
sociedade americana, os quais, no entanto, se desenvolvem fora do en-
quadramento jurídico do Estado. Assim os estudos sobre a formação
das candidaturas presidenciais, com todo o gigantesco aparelho extra-
legal que as determina; sobre o funcionamento do Congresso, escla-
recendo as pressões econômicas, raciais e geográficas exercidas contra
êle; sobre os fundamentos econômicos da política externa; sobre as
relações internacionais à margem das leis e da jurisprudência, e tantos
outros.
o é com esta intenção que abordaremos o nosso tema. Seria,
com efeito, impraLicável, além de estultamente pretensiosa, procurar
em uma hora de dissertação resumir todos os aspectos histórico-socio-
lógicos (tomadas estas expressões no seu largo sentido) dos problemas
relacionados com o poder político em todo o mundo tropical, da Ásia,
África e América. Esse gigantesco ensaio sobre as coordenadas
políticas dos países tropicais quer dizer dos países em vias de
desenvolvimento seria talvez um empreendimento digno de uma
instituição como o Instituto Joaquim Nabuco, mas muito superior às
forças de um só homem, principalmente quando elaso escassas, como
as minhas. Seria, talvez, assunto para uma conferência da Unesco,
nesta bela casa do Recife.
Nossos propósitoso bem mais modestos; circunscrevem-se ao
âmbito da nossa especialidade de professor com mais de 20 anos de
cátedra, em um ramo do conhecimento que também deve ser incluído
entre as Ciências Políticas.
com efeito,o devemos esquecer que se dá o nome de Ciência
Política a um tipo de atividade intelectual que tem principalmente em
vista as linhas de organização do Estado, no quadro jurídico. Esta
é a segunda corrente de conceitos e de métodos, referida no princípio
deste estudo. Em vez de inclinar-se pelo método sociológico ela se
inclina pelo método jurídico. Conseqüentemente, em vez de preocupar-se
primordialmente com os fatos, ela se preocupa especialmente com as
idéias.
Mas, da idéia política à Ciência Política, existe um longo e de-
morado caminho a ser percorrido.
Pelo que sabemos da história da cultura ocidental, a idéia política
expandiu-se desde a civilização helenística.
Na verdade desde muito cedo o homem civilizado foi levadoo
somente a refletir sobre si mesmo, sobre as origens e fins de sua
existência, e este foi o campo da filosofia, como também a cogitar
sobre a sua posição no seio da sociedade humana, e este foi o território
da política.
A princípio as duas formas de conhecimento se integravam; daí
Sócrates, Platão e Aristóteles serem a um só tempo filósofos e pensadores
políticos. A especialização dos conhecimentos é que vai dando aos
mesmos a categoria de ciência e por isto é que a Ciência Política (no
sentido que aqui lhe emprestamos) foi se desentranhando lentamente
da idéia política, da ideologia política, da doutrina política, até adquirir
a forma e a técnica que lheo próprias, no campo dos estudos
jurídicos.
Hoje a expressão Ciência Política é usual nos estudos jurídicos
que cobrem as áreas da Teoria do Estado e do Direito Constitucional.
Freqüentes sao os livros, e mesmo os manuais, que evitam a terminologia
alemã Teoria do Estado para adotarem as palavras Ciência Política.
Também os autores de Direito Constitucionalo recusam utilizar
aquelas palavras na caracterização dessa disciplina. O usoo é
recente, vem pelo menos de fins do século passado, mas agora se
divulga com mais freqüência, talvez porque a expansão enorme da
atividade jurídica do Estado contemporâneo tenha incluído no seu
domínio muitos assuntos anteriormente reservados à arte da política.
Mas o jurista, quer no campo da Teoria do Estado, quer no do
Direito Constitucional, aborda a sua matéria com os instrumentos pro-
venientes da sua formação intelectual.
O cientista político, no campo do direito, pode isolar-se numa
espécie de racionalismo abstrato, ou pode apoiar-se na observação dos
fatos da vida. Nossa tendência é mais a segunda que a primeira.
2 SELEÇÃO DE OBJETIVOS
Delimitado, da maneira por que viemos fazer, o nosso propósito
quanto aos objetivos teóricos da dissertação, convém restringi-los agora,
quanto às áreas geográficas e humanas a serem observadas.
A área tropical do mundo, quase sempre coincidente com a do
subdesenvolvimento, é grande demais para poder ser compreendida em
um pequeno estudo de Ciência Política.
Devemos, portanto, restringir-nos a algumas zonas significativas.
Pensei que a índia, a África e a América tropicais (e, quando existirem,
também, as faixas equatoriais) seriam pontos importantes de atração
para as nossas desvaliosas reflexões.
o me pareceu necessário incluir a Austrália, apesar de larga
faixa ao norte do país situar-se na zona do trópico meridional. A
importância da Austrália na Ciência Política é, sem dúvida, das maiores,
principalmente no que concerne à prática do federalismo, que, naquele
país, adquire aspectos inovadores muito interessantes. Pareceu-me,
porém, que a Ciência Política australiana encontra-se enraizada na
tradição britânica,o se lhe podendo atribuir, de fato, as características
habituais dos países tropicais. Aliás, a parte mais influente do con-
tinente australiano, a que abriga as grandes cidades, o maior poder
econômico c a mais forte influência política, situa-se ao sul, fora da
zona tropical.
INDIA
A India oferece ao observador contemporâneo um dos campos
mais fascinantes do mundo, quanto à elaboração, em contínuo proces-
samento, da Ciência Política.
como se sabe, o domínio britânico sobre o país durou oficialmente
menos de um século, ou seja, do Government of India Act de 1858, até
à proclamação da independência e da república da índia, com a Cons-
tituição de 1950.
Encontraram-se nesse período a experiência britânica e a sabedoria
indu, que, através de urn gradualismo progressivo, nem sempre isento
de dificuldades, conseguiu, afinal, o que ainda hoje causa assombro
aos estudiosos: a formação de um Estado livre por via pacífica e
superiormente ética, tarefa espinhosíssima, quando recordamos as di-
ficuldades decorrentes de uma população imensa, composta de numerosas
raças, com mais de uma centena de línguas; população em grande parte
entregue às crenças mais retrógradas, aos mais rígidos preconceitos de
casta e ao conflito agudo de interesses econômicos e radicalismos
ideológicos.
Tudo isso, seo foi resolvido completamente, foi pelo menos
colocado em termos de análise e solução pacífica e livre, através de
um sistema de governo que incorpora as formas das instituições oci-
dentais, mas que venceu e subsiste porque soube identificar as peculia-
ridades nacionais e, debaixo das fórmulas jurídicas aparentemente
clássicas, compor um mecanismo complexo e profundamente autêntico,
capaz de resolver os problemas próprios da formação da índia.
Tive oportunidade de visitar a índia em fins de 1964 e começo de
1965. como representante do Congresso brasileiro pude entrevistar-me
com parlamentares, ministros, juízes, antigos dignitários locais, e
também com o presidente da República e o governador-geral inglês,
que ainda vive no seu palácio, como um símbolo. Coisa ao mesmo
tempo fascinante e estranha, para um político brasileiro, ver como
coexistiam sem choque tantas autoridades efetivas e operantes. Um
presidente filósofo, eleito de forma a atender o princípio proporcional
e a equivalência entre os Estados-membros; um ministério formado ao
modelo britânico, mas vivendo sob a pressão de um intenso federalismo
e de um vertiginoso aglomerado de raças, línguas e crenças; um go-
vernador-geral instalado na sua mansão, cercado de jardins, com o
seu bigode branco, o seu monóculo e o seu whisky, guardando im-
perturbável dignidade no seu consciente papel de rei de presépio. Ao
futido insondáveis massas populares, de difícil decifração, mas que
pareciam seguras da autenticidade nacional daquela complicada estru-
tura, cujas raízes alienígenas nem talvez sejam perceptíveis para ela.
Partindo da consideração de que a Constituição da índia é a mais
longa do mundo, po'ji forma um livro com cerca de 400 artigos, ser-me-á
permitido salientar, nela, apenas o que se oferece de mais significativo.
O que mais impressiona no seu exame é a comprovação do que
já foi indicado acima, isto é, que, adotando instituições tornadas clás-
sicas pela ciência política ocidental, na verdade os constituintes indianos
seguiram uma filosofia política profundamente nacional, que encontrou
suas expressões mais altas no Mahatma Gandhi e em Pandit Nehru.
Os traços marcantes dessa filosofia são, quanto aos processos, o
compromisso e, ao violência e, quanto à substância, um profundo
entrosamento do sentimento religioso com a ética política.
Campo fértil, floresceu na India a prática inglesa do realismo,
do apriorismo, da ausência de dogmatismo, de desprezo pela coerência.
Sendo uma Constituição escrita, a lei básica indiana possui no
entanto coisa extraordinária para o cientista político ocidental
uma série de prescrições queoo exercitáveis, isto é, cuja aplicação
o pode ser exigida perante a justiça, mas que funcionam sabidamente
como fontes de inspiração para os homens de governo, como advertência
para a auto-limitação dos seus poderes e como princípios diretores de
interpretação.o as prescrições que o professor Durga Das Basu
chama «justiciable and non-justiciable rights». Esta noção mesma de
direitoso exigíveis perante a justiça é oposta à nossa tradição
romanista, e seria considerada aberrante por certos juristas brasileiros,
em geral bastante enfáticos quando mal informados.
Um aspecto de particular interesse para nós, brasileiros, é o que
diz respeito ao caráter ao mesmo tempo rígido e flexível da Constituição
da índia. É sabido que a admirável Constituição do Império brasileiro
na minha opinião o maior documento de Ciência Política que já
possuímos em tôda a história do nosso direito público estabelecia
duas instituições originais, a do Poder Moderador (original quanto
à aplicação, emborao quanto ao pensamento) e a de que havia certas
partes da Constituição queo eram de direito constitucional e, portanto,
poderiam ser adaptadas por leis ordinárias. Esta invenção surpreendente
dos nossos constituintes de 1824 foi depois copiada pela Constituição
da Itália (o chamado Estatuto Albertino da Casa de Savoia) e per-
mitiu, no Brasil, a acomodação de graves crises políticas, como a do
excessivo federalismo, através da Lei de Restauração do Conselho de
Estado e outras.
Na índia de 1950 adotou-se a mesma solução do Brasil de 1824.
Numerosas provisões constitucionais podem ser mudadas por lei ordi-
nária, enquanto outras, não. Restaurou-se, pois, o tipo de Constituição
escrita semi-flexível cujas vantagenso óbvias. Certas instituições
políticas adquirem categoria constitucional, masoo rígidas.
Alterá-laso é fácil, pois sua «sacralidade» para usarmos a expressão
de alguns autores cria certo impedimento moral que obriga à pon-
deração. Mas, se a aplicação levar a positivo mau resultado, então
a alteração se faz. Entre as matérias que podem ser alteradas por
lei ordinária, algumaso relevantes, como a questão da formação e
desmembramento de Estados-membros, o que significa flexibilidade
no federalismo (art. 4); modificações no Poder Legislativo estadual
(art. 169); e administração federal de determinadas áreas ou grupos
populacionais, em situação semi-tribal (disposições acrescidas ns. 5 e 6).
Em outro ponto o exemplo indiano é muito fecundo. Refiro-me
à reunião do sistema parlamentar de governo com o princípio da revisão
judicial da legislação, ou seja, com a capacidade de o Poder Judiciário
declarar inaplicável uma lei do parlamento.
O parlamentarismo do Império brasileiroo tinha alcançado esta
perfeição. Ficara na tradição européia (inglesa e francesa) de que
só o Legislativo poderia rever os seus próprios atos. Nós, no Brasil
contemporâneo, tínhamos contudo aproveitado o exemplo da índia.
No memorável eo incompreendido Ato Adicional de 1961, que res-
tabeleceu o parlamentarismo no Brasil, ficou assentada, como na índia,
a coexistência de governe de gabinete com o controle da constitucio-
nalidade das leis.
uma das mais valiosas contribuições da Ciência Política indiana,
com evidentes repercussões na teoria geral do direito e no Direito
Internacional Público, é a maneira engenhosa e sutil pela qual os seus
pensadores políticos combinaram o princípio da soberania nacional com
a necessidade da organização mundial. como se sabe, a índia é uma
República independente. Nenhum cidadão indiano é, juridicamente,
súdito da Rainha da Inglaterra. Istoo impede, entretanto, que a
índia, como República, faça parte da Comunidade britânica, e considere
a Coroa inglesa como símbolo da união desta comunidade. Contradição?
o me parece. Apenas engenho e arte. As necessidades políticas
fazem a Ciência Política, e esta faz o Direito Constitucional.
A índia e Inglaterra, por razões diversas mas genuínas, são-
excepcionalmente capazes para a prática deste realismo ilógico. Num
tempo de mudanças, como o nosso, a imaginação é a arma mais forte
dos estadistas. Pandit Nehru exprimiu admiràvelmente esses senti-
mentos na seguinte reflexão: «Enquanto queremos uma Constituição
o sólida e permanente quanto possamos fazê-la, sabemos queo
existe permanência nas Constituições. .. Em quaisquer circunstâncias,
o poderemos fazer nossa Constituiçãoo rígida queo se possa
adaptar às condições da mudança».
como disse, esta auto-limitação da soberania pela integração em
uma Comunidade que, seor internacional no sentido jurídico, será
pelo menos interestatal, é um dado de grande valor nos conceitos do
Direito Internacional, principalmente no das organizações internacionais.
uma última observação sobre a India. A tradição de liderança
política pessoal é dominadora. A tradição dos governos oligárquicos
nas cidades e vilas, das chefias religiosas, do poder dos marajás, tudo
habituou os indianos a personalizar as instituições, depois da inde-
pendência. De Gandhi a Nehru, de Nehru a Indira Gandhi, é a
chefia pessoal predominando sobre os partidos e as organizações go-
vernativas. Mas o extraordinário é que esta liderança pessoalo
se estabelece sobre ditaduras. Nem Gandhi, nem Nehru, nem Indira
Dodem ser considerados líderes ditatoriais. É uma liderança sem
ditadura, coisa espantosa paras brasileiros, que praticamos a verdade
oposta, isto é, as ditaduras sem liderança. Este ponto merece acurada
reflexão dos sociólogos do Instituto Joaquim Nabuco. Penso que
Gilberto Freyre e o seu grupo teriam aí um assunto fascinante a
pesquisar: este das lideranças sem ditadura e das ditaduras sem lide-
rança; coisaso diferentes das ditaduras com líderes, como o nazismo,
o fascismo e o comunismo. Seria talvez um tema para aquêle sugerido
e quem sabe se possível encontro sob os auspícios da Unesco.
ÁFRICA
Na ligeira apreciação que farei da Ciência Política na África, vou
limitar-me à raça negra, equatorial e tropical.o examinarei as
instituições dos países árabes, da Etiopia, nem das repúblicas brancas
e racistas de origem inglesa.
É sabido, entre os cientistas políticos, o quão arriscado é fazer
generalizações sobre o continente negro. Em primeiro lugar, certos
fatores básicos da evolução política daqueles povoso se acham
ainda esclarecidos; e, em segundo, a rapidez com que se processam
as modificações políticas na África desanima qualquer pesquisadoro
especializado. Alguém já escreveu que a edição atual de um livro
sobre a África é aquela que aindao foi impressa.
Para cumprir com o que foi prometido, tentarei ocupar-me da
matéria, embora seja o primeiro a reconhecer as deficiências do que
pude coligir.
Da milenaria história africana, cumpre relembrar algumas noções
que auxiliem a compreensão das suas atuais condições políticas.
Os povos negros da Áfricao bastante mesclados, apesar da
importância social do princípio étnico, que adiante será mencionada.
As migrações, exogenias, absorção e troca de prisioneiros e outros
usos ancestrais tornaram muito pouco prováveis as comunidades
etnicamente puras na África negra. Nem os pigmeus das florestas
equatoriais escapam à mescla, por causa do hábito da troca de homens,
como compensação de mortes em lutas com outras nações.
Esta situaçãoo impediu que a formação das sociedades negras
se baseasse nutr. sentimento de etnias, que era mais cultural do que
racial. Da família alargada em clã, deste à tribo e do aglomerado
destas às nações vai a marcha evolutiva da formação dos Estados
negros, que existiram provavelmente desde a antigüidade helenística.
A enorme bibliografia africana moderna mostra como a colonização
e a escravidão européias, a partir do Renascimento, foram desagregando
Estados e culturas. Mas, hoje, se tem idéia mais aproximada de
como as instituições autóctones ainda funcionam, subjacentes ao aparelho
político importado pelos vários povos colonizadores e projetado nas
instituições que sucederam à formação dos novos Estados independentes.
Os estudos feitos sobre o direito costumeiro africano permitiram
a sua composição efetiva com as instituições importadas, principalmente
nas colônias de língua inglesa. E os juristas europeus que se dedicaram
a pesquisar o direito costumeiro dos povos negros enfatizam o avanço
de alguns dêles e a sua eficácia, em muitos assuntos referentes à
família, à propriedade e aos governos locais. Deu-se, com a conquista
inglesa da África, algo de parecido com o que ocorreu na conquista
normanda da Inglaterra. O direito do invasor vitorioso sobrepôs-se
maso eliminou o direito do autóctone vencido. Normandos e
saxões; ingleses e negros.
A etnia funciona como elemento de união e ordenação política.
No pior período de lutas no Congo belga, os grupos, em vez de se
juntarem por partidos, ideologias, ou classes, reuniram-se por comuni-
dades étnicas sempre no sentido mais cultural que racial como
forma última de defender a ordem e a segurança.
o pretendo ser conhecedor da questão do negro no Brasil;
nas suas implicações sociológicas e antropológicas. Mas, como estu-
dioso da históri;i e da Ciência Política, creio poder manifestar minhas
dúvidas sobre a valia da aplicação, ao negro brasileiro, dos estudos
feitos sobre o negro africano. É evidente que o transplante para a
América e a escravidão criaram condições inteiramente diferentes, nas
quais as instituições políticas originais devem ter-se desfigurado com-
pletamente.
As estruturas políticas africanas baseiam-se na experiência científica
européia, principalmente inglesa, francesa e portuguesa, na parte que
interessa a este trabalho.
o vou entrar na ordenação política dos chamados territórios
ultramarinos portugueses, na minha opinião colônias de Portugal.
Exatamente o status colonial, que me parece evidente, impede a apre-
ciação das estruturas políticas, nos termos do plano desta conferência.
O delicado problema de Direito Internacional tem repercutido nas
Nações Unidas e provocado debates no Brasil. Minha opinião a
respeito é conhecida, embora muitas vêzes tenha sido desvirtuada de
má. Conheço os trabalhos dos estadistas portugueses, como Marcelo
Caetano e Adriano Moreira, ou dos seus juristas, como Antonio
Manuel Pereira. A posição oficial portuguesa, às vêzes mais, às
vêzes menos apoiada pelo Brasil, contradiz, segundo penso, os com-
promissos impostos pela Carta das Nações Unidas, e a marcha para
a emancipação naquelas colônias me pareceo inevitável, com o passar
do tempo, como a transformação interna da Rodesia e da África do
Sui. Mas istoo conjeturas do futuro. O assunto, como disse,
escapa ao nosso exame, no momento.
A experiência científica européia, como ficou dito, prevaleceu na
super-estrutura das organizações políticas da África negra. É sabido
que a divisão territorial, de que resultam os países atualmente inde-
pendentes,o correspondeu aos limites das formações tribais ou quase
nacionais. Aquela divisão, derivada do Congresso de Berlim, de
1885, atendia aos interesses das potências coloniais e da sua atividade
econômica.
Mas nem sempreo exatas as apreciações radicais, às vêzes
apressadas, sobre as conseqüências disso.
É certo que etnias diferentes viram-se amalgamadas em um terri-
tório estatal, com graves resultados, como os verificados nas sedições
de Catanga (pronuncia francesa de Catinga) no Congo, e de Biafra,
na Nigéria. Mas também é verdade que o fator territorio funciona
na África, como em outros continentes, como elemento de formação
dos Estados de etnias diferentes. No Brasil, para ficarmos em casa,
o territorio é o principal fator de aglutinação do Estado, dominandc
a divisão de línguas, de raças, de distâncias e de nível de civilização.
Somos brasileiros, em maior parte, porque temos consciência territorial.
Isto também começa a funcionar na África, onde alguns Estados negros
pluri-raciaiso se unificando na base daquela consciência. No
Gabão, que tem 500.000 habitantes,o faladas 30 línguas. Só na
antiga África Ocidental francesa falavam-se cerca de 150.
Mas a diferenciação entre os Estados vai-se acentuando e a união
interna dêles se consolidando, graças à técnica política importada r
adaptada, muitas vêzes com inegável sabedoria, às condições do meio.
Tomo como exemplo o Senegal, que visitei como embaixador em
missão especial. Leopoldo Senghor (nome tirado do português
«senhor») é um intelectual francês. Tôda a capacidade intelectua'
que lhe permitiu interpretar e sistematizar o conhecimento do seu próprio
país vem da universidade francesa, sendo de se notar que a Universidade
de Dacar é considerada uma das mais importantes da França. Um
dos seus reitores saiu para ser Ministro da Instrução, em Paris.
O aprendizado dos líderes como Senghor, Mamadou Dia, ou
Doudou Tovan aplicou-se à criação de um sistema que exprimissp
também as realidades africanas. A forma parlamentar foi adotada,
apesar da grande liderança pessoal de Senghor, para dividir o poder
político com outras correntes, representativas de segmentos populacionais,
de culturas e tribos diferentes, entre as quais avultava em importância
a de Mamadou Dia, mais tarde afastado da vida pública.
Sem atingir ao aprimoramento que se observa na índia, também
a influência cultural africana realiza permanente obra de adaptação
das instituições européi&í; e em certos casos norte-americanas, im-
portadas.
Quando se examina formalmente o texto das Constituições dos
países africanos, tem-se a impressão da transposição fiel de instituições
políticas alienígenas. Mas a fatalidade da ambientação cultural do
trópico opera nelas, como operou na índia, através a adaptação cos-
tumeira e interpretativa daqueles documentos às realidades locais.
Por isto enganam-se certos juristas ao assegurar que as tradições
culturais negraso influíram nas organizações políticas, ou, como
se chegou a dizer «o pássaro negro veio só ocupar o ninho deixado
pelo pássaro branco».o é exato isto, segundo comprovam obser-
vações mais cuidadas.
A importância do papel reservado à mulher é maior do que a
princípio se pensava, porque os padrões de observação regulavam-se
pelos costumes europeus. A significação do indivíduo no processo
político é bem diferente das afirmações dos textos, por causa do soli-
darismo tribal pré-existente. A idéia da democracia multi-partidária
nunca pôde ser bem assimilada,o só pela razão acima, como porque
os movimentos de independência exigiram naturalmente as uniões po-
líticas nacionais. Quando existem divisões partidárias é muito mais
em decorrência de diferenças étnicas do que de oposições ideológicas.
Tudo isso, ou quase tudo, vai se constituindo em prática política à
margem dos textos. como acentuou acertadamente um dos melhores
estudiosos da política africana, o professor Manso Stramacci, da Uni-
versidade de Roma, «não se pode compreender o direito constitucional
africano sem que se conheçao só a história dos últimos anos, mas
também aquela, mais remota, da África».
AMÉRICA LATINA
Quase todos os países da América chamada Latina participam,
em maior ou menor extensão, das zonas equatorial e tropical. Alguns
Estados importantes, como a Argentina, apenas margeiam o trópico
em estreita faixa. O México já possui uma parte maior de terra
tropical. O mais importante país tropical, pela sua significação política
e pela sua extensão na zona é, sem dúvida, o nosso.
Tomarei, assim, o nosso próprio país como assunto e ponto de
observação, mas procederei, antes, a algumas considerações gerais sobre
a América Latina.
A independência do nosso Continente fêz-se tôda sob a influência
das idéias políticas do chamado constitucionalismo liberal. A leitura
de autores setecentistas como Sieyès, Raynal e, naturalmente, J. J.
Rousseau, ou de juristas do começo do século XIX, como Bentham,
J.B. Say, Benjamin Constant, Pelegrino Rosso e outros, criaram esta
espécie de parentesco entre as idéias, que é inconfundível para quem
possui alguma experiência dos textos básicos que representam os vários
processes de independência, quer da América bolivariana, quer do Chile,
Argentina, Estado Oriental, América Central, México e Brasil. Re-
públicas militaristas espanholas e monarquia parlamentar brasileira
aproximam-se, de forma impressionante, quanto às idéias norteadoras.
Por isto mesmo tenho observado mais de uma vez que a independência
dos países da América Latina, antes de ser uma sucessão de aconte-
cimentos nacionais, foi, de certa forma, um acontecimento internacional.
Houve, contudo, uma diferença fundamental entre o Brasil e as
repúblicas espanholas, quanto às condições políticas do processo de
independência, diferença queo é habitualmente enfatizada pelos
historiadores nossos, na sua maioria estranhas à Ciência Política.
A diferença foi que, no campoo da História mas da Ciência Política,
no Brasil, graças à transladação da corte metropolitana e à Constituição
do Brasil-Reino, a organização política precedeu à independência,
enquanto que, nas repúblicas espanholas, verificou-se o oposto. Grande
parte da unidade lusa decorre disto, e, certamente, o funcionamento
das instituições imperiais, que parece um enigma surpreendente e
mesmo pasmoso, em contraste com a anarquia andina e platina, decifra-se
logo que atentamos naquela circunstância. Voltemos às semelhanças.
A similitude das fontes do constitucionalismo liberal é acentuada,
entre outros, por Gil Fortoul, quanto à Constituição venezuelana de
1810; Jorge Hunecus quanto aos vários atos constitucionais chilenos,
principalmente a Constituição de 1828; Julian Barraquero, quanto às
Constituições argentinas de 1819 e 1826; Pivel Devoto, quanto à
Constituição uruguaia de 1830; José Rolz Bennet, sobre a Constituição
centro-americana de 1824; e por mim próprio, quanto à Constituição
imperial brasileira.
O movimento histórico latino-americano do começo do século XIX
foi bem diferente do ocorrido na África, nos nossos tempos. Na
África, a emancipação racial procedia-se ao mesmo tempo que a
emancipação política. As elites brancas, nos países livres, limitaram-se
a passar o poder às elites negras. Reconheceram, mais do que fizeram,
a independência. Tanto assim que na Rodesia, na África do Sul e
nas colônias portuguesas, onde as elites brancas comandam o processo
político, a emancipação racialo se fêz.
Na América Latina, o Brasil, grande país negro, deve ser observado
com particular atenção, quanto ao ponto referido.
A independência política fêz-se muito antes da abolição, e fêz-se
pela ação predominante das numerosas elites brancas (ou culturalmente
brancas), educadas no constitucionalismo liberal.
Na Argentina e no Uruguai, paíseso tropicais (a faixa argentina
é mínima) o problema racial dizia respeitoo ao negro, mas ao índio,
e terminou com o seu extermínio ou assimilação. O «Martin Fierro»
de Hernandez contém viva descrição desse choque com os índios na
Argentina, ques brasileiros, só conhecemos na nossa fase pré-
política. Quanto aos países tropicais da região andina, o índio se
encontra ali mais ou menos na situação do negro nas chamadas re-
públicas brancas da África ou nas colônias portuguesas: em estado
de submissão forçada às elites brancas, ou culturalmente brancas.
No Brasil as idéias políticas, cujo estudo sistematizado compete
à Ciência Política mundial, apresentaram sempre extraordinário cunho
de originalidade, e uma surpreendente capacidade de invenção. No
Império o Poder Moderador e o caráter semi-flexível da Constituição
imperial, a evolução quase inteiramente pacifica da Abolição, (obra
de poetas, juristas e oradores, eo de exércitos como nos Estados
Unidos). Na primeira República o controle jurídico das lideranças
oligárquicas estaduais, e o estabelecimento do poder civil (contrôle e
poder senão plenamente satisfatório, pelo menos muito melhores do
que os da Argentina),o fatos incontestáveis. A nossa capacidade
de modificação das instituições dos Estados Unidos é revelada por
um jurista daquele país, Herman James, que, em 1923, publicou exce-
lente e pouco conhecido estudo sobre a nossa primeira República.
Ao revés dos juristas brasileiros, que porfiavam por enfatizar as
semelhanças formais entre as duas estruturas políticas, Herman James
mostrou as profundas diferenças de prática entre elas.
Mas, apesar dessa capacidade de criar uma vida política brasileira
por debaixo dos textos fundados em idéias importadas, a Ciência Política
brasileira nunca se desprendeu deste complexo de inferioridade de
procurar sempre imitar textos queo observa. Este é o grande
mal da Ciência Política,o só brasileira, como de tôda a América
tropical em geral.
O Estado Novo de Vargas e Campos foi um regime brasileiro
que pretendia imitar o fascimo europeu. As Assembléias de 1934 e
1946 continuaram imitando os modelos europeus, obviamente diferentes,
que se seguiram às vitórias de 1918 e 1945. E a revolução de 1964
o alcançou, por seu lado, nenhuma originalidade de pensamento.
Tenho chamado a atenção, algumas vêzes, para o fato de que tôda
a literatura oficial, civil e militar, só faia em ideais da revolução, mas
nunca em idéias dela. É queo existem. O grande problema da
Ciência Política da América tropical no século XX, é este: conquistar
a sua independência; libertar-se do colonialismo ideológico estrangeiro.
CONCLUSÕES
Sou o primeiro a proclamar a insuficiência deste pequeno estudo.
Mas espero que se reconheça, também, que o seu tratamento em pro-
fundidade exigiria trabalho coletivo. Sem dar a esta sugestão caráter
formal, volto a lembrar que um encontro sob os auspicios da Unesco,
de um grupo de trabalho composto de especialistas recrutados em certos
países selecionados das áreas tropicais, poderia ser um ponto de partida
objetivo, para a fixação de certos princípios de Ciência Política, cuja
aplicação no direito interno fosse possivel. Tal encontro, repito,
poderia ter lugar nesta bela casa do Recife. É possível que o Secretário-
Geral das Nações Unidas, U Thant, dada a sua nacionalidade, con-
siderasse a sério tal possibilidade.
A vantagem seria o provável reconhecimento da necessidade de
uma outra forma de descolonização política. Refiro-me à descoloni-
zação intelectual, à decisão de optar por caminhos próprios em matéria
de organização das instituições políticas, de forma a garantir, dentro
das necessidades do Estado, o livre desenvolvimento da personalidade
humana, mas sem a preocupação que chamarei colonialismo inte-
lectual de adotar necessariamente fórmulas ou modelos europeus
e norte-americanos, cuja aplicação, ao cabo de mais de século e meio,
tem sistematicamente fracassado.
Se, em vez de considerarmos a situação no plano internacional,
ou intertropical, como venho de fazer a considerarmos no plano interno,
minhas conclusõeso seriam diferentes. Entendo que a Ciência
Política brasileira, auxiliada pela História, a Sociologia, a Economia e
cutías ciências sociais, deve, por intermédio das Universidades e os
institutos de pesquisa adequados, lançar-se a sério no estudo da criação
das instituições políticas que realmente nos convenham.
ADIVINHANDO CHUVA. . .
Luis DA CÂMARA CASCUDO
METEOROLOGIA TRADICIONAL DO SERTÃO
O Povo guarda e defende sua Ciência tradicional, secular patri-
mônio onde há elementos de tôdas as idades e paragens do Mundo.
Esse «estudo» do Tempo é grave e circunspecto na comunicação, irritando
restrições e «novidades» críticas. Ninguém poderá saber mais do que
os «ANTIGOS», doutores do Tempo. TEMPO, estado atmosférico,
situação da densidade aquosa nas áreas do Espaço, é a imagem mais
vulgar no Brasil. O Tempo-duração, medida cronológica das cousas,
ocupa suplência na linguagem brasileira. É herança de Portugal, tendo
outra amplidão vocabular.
Bom e mau Tempo; fechado, aberto, cerrado, carregado, claro,
escuro, indeciso, seguro, ameaçador. O Tempo «se armando», quando
ou escurece de nuvens. Tempão! Desabou um Tempão! Temporal.
No Mar é Tormenta e no Rio de Janeiro ou S. Paulo, Toro.
Interèsse vital das chuvas ou evitação dos excessos prejudiciais.
Lubbock, Tylor, Lang, Mannhardt, Frazer, Saintyves, pesquisaram as
interrelações da Meteorologia supersticiosa e a intervenção mágica do
Homem. J. Leite de Vasconcelos é bom, infelizmente parcimonioso,
informador em Portugal. Também pertenci ao grupo coral, publicando
umas «Superstições Meteorológicas» no Boletim do Museu Nacional,
(vol. V, n
9
1, março de 1929, Rio de Janeiro), ampliadas e reproduzidas
no Informação de História e Etnografia, (Recife, 1940) . Na Revista
de Etnografia, (n
9
26, Porto, Portugal, 1970), divulguei a «Notícia das
Chuvas e dos Ventos no Brasil». Taiso os antecedentes da simpatia
indagadora.
Pertenço a famílias do Sertão onde vivi e deixei já rapazinho.
O material desse depoimento constitui cenário de infância e juventude.
Gado, cavalos, vaqueiros, cantadores. Residindo em Natal, a casa
de meu Pai era o «Consulado do Sertão», cheia de exilados das caatingas
e derrubadas. comoo entender a prefernêcia temática da minha
Raça? A imagem que me aplicavam na inquietação menina, ainda
emprego, maquinalmente, aos netos, inocentes de Sertão: «Você está
adivinhando chuva?»
Viagens, leituras, convivência, a cátedra,o apagaram o menino
sertanejo. Essas informaçõeso quase autobiográficas. On écrit
de telles choses pour transmettre aux autres la théorie de l'universe
qu'on porte en soi. Escreveu, desculpando-me, Ernesto Renan.
NUVENS
Dividem-se em Nuvens de Vento, (Estratos e Cirros), e Nuvens
de Chuva, (Nimbos e Cúmulos) . O Cúmulos é o mais importante
nas previsões. Em proporções avantajadas, espessas, imensos globos
brancos em marcha serena, como um desfile de elefantes,o deno-
minados «Torre» ou «Torreão», notadamente quando assumem forma
vagamente piramidal, a base horizontal mais negra voltada para o solo
ou na linha do horizonte marítimo. O conjunto é o «Torréame».
«Ao pôr-do-Sol o Torréame estava formado». Nimbos e Cúmulos
reunindo-se dizem que as nuvens «estão fiando». É um sinal de
esperança.
Ou cheio de Estratos anuncia «vento-solto», ventania-doida,
rodando sem fixação constante nos quadrantes. É a «Carneirada»,
rebanho pastando, todo igual, ou «Céu pedrento», pela idéia de pedrinhas
claras decorando o Espaço azulado. Se é visível o azul entre os
Estratos, é mesmo a «Carneirada». Notando-se o cinzento-escuro,
é o «Céu pedrento», chuva-e-vento. Mas sem intensidade e duração
fecundantes. Os Estratos, faixas paralelas,o merecem confiança
de «Bom-Tempo». No Sertão tradicional, da Baía ao Piauí, Bom-
Tempo é o que promete chuva. Inverso do conceito urbano, que é
europeu. «Prometia Bom-Tempo mas o Vento espalhou e também
o Arco-da-Chuva bebeu muita água». O sign of a very fine day, para
o sertanejo brasileiro, é a garantia de uma farta chuvada. Eo dia
de Sol. Tempo-bonito é um anúncio de inverno.
As Nuvensoo formadas pela evaporação condensada.o
invólucros de matéria fluídica, transparente, resistindo às pressões do
líquido contido. Essa é a lição vaqueira e plantadora.o se
desfazem em chuvas. Apenas descarregam as demasias, eo embora,
ao sabor do vento, «beber água no Mar»: (Aristófanes, As Nuvens,
423 a.C: Mégha Douta, de Kalidasa, VI d.C). É ainda a ciência
popular pelo Mundo. Lição do Padre Antonio Vieira, na Sé da Baía,
ante o primeiro Vice-Rei do Brasil, D. Jorge de Mascarenhas, marquês
de Montalvão, em 1640: «Apareceu uma nuvem no meio daquela baía,
lança uma manga ao Mar, vai sorvendo por oculto segredo da natureza,
e depois que está bem cheia, depois que está carregada, dá-lhe o vento,
c vai chover daqui a trinta, daqui a cinqüenta léguas».
É semelhante à do padre José Gomes de Souza Gadelha, um
século depois, no poema A Manijada ou a Vida Marítima:
Afirma por cousa certa,
Eo duvida jurar,
Que já viu, estando alerta,
As nuvens com a boca aberta
Bebendo as águas do Mar.
o recebemos essa imagem dos ameríndios ou negros africanos,
sudaneses e bantos, que a sabiam também. Era o Classicismo em
Roma, Atenas, índia. Antes da sucção, de estender um filamento
como uma tromba na superfície marítima, a manga do Padre Vieira,
as Nuvenso finas, incolores, transparentes. Todoss vimos passar
na altura essas «Nuvinhas» sedentas, esponjas autênticas, inocentes e
tranquilas, rumando o oceano, centro da inesgotável subsistência.
Lucrecio morreu 55 anos antes de Cristo e ensinava que as Nuvens
eram criadas pela exalação, evaporação partindo da Terra. O Povo
continua ignorando o VI do De Natura Rerum. Nos sertões e nas
cidades do Brasil, um homem ou uma mulher do Povo dirá que a
Nuvem trás água do Mar. Constitui um conteúdo independente do
continente. A Nuvem é apenas o envelope.
Procurei saber se a Nuvem «carregava» água doce dos rios e
lagoas. As afirmativas foram em percentagem mínima. Mesmo no
Rio de Janeiro contemporâneo, janeiro de 1969 em Copacabana, con-
firmaram a sabedoria imóvel sertaneja. E o Sal? A Nuvem côa,
deixando-o no depósito oceânico. Noutras versões, o sal é atirado em
poeira impalpável nos dias furiosos de calor. Os Ventos de rajadas
«raspam» o sal das Nuvens, acumulado na parte inferior. O Vento
quente é sempre salgado. Mas o bafo da chaleira, mesmo fervendo,
é doce.
Fazem os prognósticos das chuvas pelo volume e coloração das
Nuvens. Preferencialmente nos crespúsculos matutino e vespertino.
É a mesma técnica por tôda a Europa, no plano da Cultura Popular.
Vermelhão no sertão,
Velha no fogão.
Manhã encarnada,
Tarde atolada.
Red in the morning,
Sailor take warming.
Red at night,
Sailor delight.
Ruivas ao nascente,
Chuva de repente.
Quando estão as ruivas ao Mar,
Pega nos bois e vai lavrar. (Portugal).
Os «Antigos», primeira metade do século XIX, viam em deter-
minadas figuras sugeridas pelas Nuvens da tarde, «sinais e avisos».
Essa prudente notação desapareceu depois que as etradas ligaram os
sertões às orlas do Atlântico.
Foi a glória dos Antigos,
Hoje é mofa dos Modernos.
o há no Brasil superstições ligadas às Nuvens, como havia
em Portugal, (Beira Baixa) e na Itália, (Piemonte), afastando-se os
agouros com orações nas Igrejas.
As Nuvens baixas, visivelmente abaixo do nível normal, despertam
suspeitas. Trariam, como em Pindela, (J.Leite de Vasconcelos), os
espíritos de Excomungados, indesejáveis nou e no Inferno, pairando
sobre as povoações naquela penitência. Benziam-se. Era tudo.
Alcântara Machado e Luis Edmundo citam «orações-fortes» alusivas
ao «Ar escomungado» e ao «Ar de morto escomungado». A Nuvem
rasteira seria a sinistra condução. Mas em Pindela a Nuvem estranha
é «muito carregada», anormalmente escura, quando no Brasil é a pouca
altura despertando atenção, independente da côr.
Ainda nas primeiras décadas do século XX, mencionavam nos
sertões do Nordeste, a «Nuvem Mariana», um cúmulos negro, voando
devagar, soprando vento abafado e morno. Denominavam-na «Nuvem
da Seca», e outróra. «Nuvem da Peste», porque anunciava essas cala-
midades.
Promessas a S. Sebastião.
o Sebastião,
Santo Protetor,
Da Fome e da Peste,
Nos livre, Senhor!
VENTO DE CHUVA
Sopro curto, quente, passando como um bafo de coivara.o
arrasta poeira como o de Carlos Alberto de Araújo:
E o vento rasteiro
vestido de poeira,
passa faminto como umo
farejando a terra.
o é o «Vento do Chão», exalado pelo solo combusto, emanação
de braseiros. Faz resfolegar e suar. Maso «sustenta» nem chega
em fortes rajadas. Vem em ritmo sincopado, como fugindo de porta
de fornalha, aberta e fechada, sucessivamente. Em Minas Gerais
anuncia o Aruega, chuva fina, fria, pajeada pela Neblina. Talvez
resquícios nominais do Vento Noruega, violento, gelado, nortista, de
Historia antiga. Depois, bem depois, é que o vento esfria nas nuvens
pesadas e prometedoras. Mas esse vento, cortante como rocega, é o
porteiro, abrindo a cortina ao chuveiro. O «abafamento» desaparece.
Chove, chuva!
TEMPESTADE. TROVÃO. VENTO. RELÂMPAGO.
RAIO E CORISCO.
Ventania uivante, chuva de alagação, trovoada abaladora, «que-
brando o Céu», relâmpagos matando a Noite, o ziguezague ofuscante
do Raio, os caracóis do Corisco, «o Mundo se acabando!» É o momento
incomparável do apelo a Santa Bárbara e ao seu acompanhante,o
Jerónimo. O espetáculo selvagem da Tempestade talvez se irradiasse
ao nome sonoro da madrinha sideral, Bárbara!
Filha do rico Dioscuro, foi sacrificada na Nicomédia em 235, ou
Heliópolis, em 306. O Pai degolou-a pela obstinação em conservar-se
cristã. Ante o mutilado cadáver, um Raio abateu o carrasco brutal.
Noutra versão, o pro-consul Marciano obrigou-a a expor-se despida
numa praça. A mártir suplicou a Deus, que cobrindo de nuvens o Céu,
ocultasse a nudez de sua serva aos olhos dos ímpios.
Et il descendit du ciel un ange qui lui apporta une tunique blanche:
(Jacques Voragine, La Légende Dorée, II, ed. Garnier). Padroeira
dos artífices da pólvora, denominou o depósito do explosivo nas for-
talezas, castelos e baluartes. O Raio punira seu matador. Ficaria
em sua dependência. Há também a invocação aou nublado, a
túnica alvinitente, o Pai chamar-se Dioscuro, elementos convergentes
ao seu simbólico armorial. Venerada no Mundo católico. No Brasil,
doze municípioso «Santa Bárbara». O «Sainte-Barbe», onde guar-
davam as munições de guerra, notadamente a pólvora, era de uso pela
Europa.
Outróra os sinos soavam estrepitosamente, Fulgura [rango, afu-
gentando os Demônios turbilhonantes na Tempestade, os spiritus pro-
cellarum, Na antiga Ladainha de Todos-os-Santos implorava-se: Libera
nos. Domine, a fulgure et tempestate.
A dedução da Europa Católica, transmitida ao Continente ame-
ricano, era a evidência do castigo divino. Entoavam as «Misericórdia,
meu Deus!». Resavam a «Magnificat». O «Deus-Santo, Deus-Forte,
Deus-Imortal» já vulgares no séc. XIV. Queimavam palha benta.
Ardiam as velas nos oratórios domésticos. Imprecavam o auxílio
santíssimo em altas vozes desesperadas. Batiam no peito, confessando,
embora mudamente, os pecados promotores da tormenta. Pedia-se
ao José:
Poderosoo José,
Nosso Protetor,
Pedi a Jesus
Que aplaque o furor.
As crianças, «os inocentes», repetiam gaguejando sob o ditado
da angustia, a «Salve Rainha». Interrompiam tôdas as tarefas.
Cobriam os espelhos, que podiam atrair raios. As residências fechadas
tinham o ar lugubre do velório a defunto.
Rosários de joelhos, cabeça curvada. Litanias intermináveis.
Súplicas de piedade para os que estavam nas ondas do Mar.
Talqualmente o Velho do Y Juca Pirama, de Gonçalves Dias, posso
afirmar: «Meninos, eu vi!» participando das rogativas na casa-grande
de fazenda-de-gado, em 1912, Augusto Severo, Rio Grande do Norte.
Juro em face do original ao qual me reporto e dou. Os velhos
Vigários rosnavam, rancorosos: «Só se lembram de Deus quando
troveja!»
O Trovão, dizam-me, é uma exalação do calor da Terra explodindo
entre as nuvens frias.
O Trovão era a manifestação mais expressiva e sonora dos Deuses
impacientes. A catequese jesuítica no Brasil fizera do Trovão o deus
Tupã, o Júpiter ameraba. O Prof. Trombetti evidenciou que Puluga,
o Trovão, era a significação mais tradicional e vulgar da Divindade:
(Prof. Trombetti, Puluga, il nome Più Diffuso della Divinità, Bolonha,
1921). Na África Oriental, Mulungu, o Trovão, é o Ser Supremo em
25 idiomas: (Edwin W. Smith, African Ideas of God, Londres, 1950).
Tor, o deus escandinavo do Trovão, era mais temido e popular que
seu Pai Odin. Teshub o Trovão, constituía omnipotencia entre os
hititas.
Quando a Trovoada estala é porque o Pai Eterno perdeu a pa-
ciência .
Santa Bárbara, a Bendita,
Que nou está escrita,
com papel e água-benta
Abrandai essa tormenta.
Está, literalmente, em J. Leite de Vasconcelos: (Tradições popu-
lares de Portugal, 65, Porto, 1882), como resada no Minho. Noutra
fórmula, de Vila Real, reproduzem-se as imagens ainda contemporâneas
no interior do Brasil:
Vou espalhar as trovoadas
Que nou andam armadas.
o sei de interpretação alguma sobre a Trovoada, sua imagem
explicativa, a origem do rumor apavorante nas alturas do Espaço. Em
Portugal, Bárbara dá Santa Barborinha, facilmente confundivel com o
Borborinho, sinônimo português do Remoinho.
o entendo bem a colaboração de S. Jerónimo, (331-420), cujas
atividades foram inteiramente diversas das preocupações meteorológicas.
Entretanto, dizia-se em Sinfães:
Para onde vais, S. Jerónimo?
Vou espalhar a trovoada.
Espalha-a bem espalhada!
Missão idêntica a de Santa Bárbara.
o Lourenço é o Eolo cristão. Guarda e comanda os Ventos.
Quando os soproso precários e bem inferiores às necessidades rurais,
dirigem o requerimento oral, bem alto: «São Lourenço! Solte o Vento!»
Reforçam a petição com três assobios longos e finos, sem modular.
É uma presença da navegação veleira, evitando as calmarias podres.
To whistle for a Wind. Peneirar ao ar-livre milho, feijão, arroz, ati-
rando-os para o alto e aparando os grãos, é uma fórmula de convite
sedutor para as aragens. Assim fazia o pai do poeta Mistral, arejando
o trigo: Allons, souffle, souffle, mignon! O vento obedecia. Era o
poderoso homónimo, Mistral, o nordeste «Vent-Maístre» da Provença.
Resiste a imagem clássica dos Ventos possuírem um descanso,
longínquo e misterioso paradeiro onde ficam em silêncio e repouso,
reunidos como monstros dóceis. uma entidade inominada dirige-os,
soberanamente.o Lourenço parece-me guardião eo administrador
dos vendávais. A idéiao os recolhe aos sacos homéricos mas numa
gruta, rasgada na montanha ignorada e distante. Há sempre vento
nas montanhas, Serras, para o Sertão. O solar deve ficar nos escar-
pados arredores.
No sertão o Relâmpago diz-se «Relampo», português arcaico e
espanhol antigo, como escrevia Fernão Alvares do Oriente em 1602,
informa mestre Antenor Nascentes. O «relampado» camoniano foi
recusado. Deve ser bem posterior. Dizem «fuzilar». Os relampos
fuzilando! É o fuzil, ponta de ferro riscando áspera na pederneira,
provocando a chispa. Isqueiro. Artifício. Binga. O Relâmpago
repete o breve lampejo clareador. Nasce do Trovão, ao detonar sua
carga de vapores ardentes.
O Raio é o dominador de todos os meteoros. Conserva a função
ritualista do castigo sobrenatural. É superior a tôdas as forças, po-
tências, grandezas. Irresistível. A locução que o compreende evidencia
a fulgurância do Poder Supremo. «Foi um Raio!»z desaparecer
todos os obstáculos, defesas, resistências. Corisco é o diminutivo de
Raio. No Rio Grande do Sui denomina-se «Mandado-de-Deus».
Abrindo o deslumbrante arabesco no escurão da Noite, está em serviço
divino, desempenhando um encargo secreto de aviso ou punição entre
os homens. Poderá coriscar sem o estampido trovejante. Mas, para
o sertanejo, é um Raio, com o mesmo aspecto, finalidade e conteúdo.
Traz uma pedra, Pedra-de-Corisco, Pedra-de-Raio, indispensáveis e
características, encontradiças, com outras explicações graves da Arqueo-
logia. Cogéis, Blinkinberg, Saintyves, foram os ceifeiros dessa seara
universal e milenar. Pierre de Foudre, de Tonnerre, d'éclair, as duas
últimas, do Trovão e do Relâmpago,o sabidas no Brasil mas vivas
em Portugal.
A Pedra-de-Raio perdeu sua História e aplicação. Reduzida a
uma curiosidade,o tem emprego terapêutico ou supersticioso. Anti-
gamente, quando meu Pai era menino, livraria da fulminação as casas
que i possuíam. Mergulha no solo sete braças no impacto do arremesso
na chegada, e cada ano sobe uma para a superfície. Ao fim dos sete
anos fica à flor da terra. É o ritmo ascensional mais vulgar na
Europa, mantido pela memória ibero-americana.
o conheço no Brasil os processos de afastar o Raio de certos
locais. Os encantamentos premunitórios. Em março de 1897 um
Corisco arrancou o Galo de bronze da torre da Igreja de Santo Antonio
em Natal, ali colocado em 1800 pelo Capitão-Mor Caetano da Silva
Sanches. Versinhos documentais:
Esse Corisco que veio
Por astucia do Demônio,
Tirou o Galo da Torre
Sem respeitar Sant'Antonio.
É bom que fique lembrado
Esse aviso de favor:
Se foi assim com o Santo
Que será com o Pecador?
A praga típica portuguesa «Mau Raio te parta!», duplicação na
ameaça temerosa porque seria suficiente o Raio sem o adjetivo,o
se aclimatou no Brasil. O Raioo figura no repertório das maldições
vulgares. Existe o pavor incontido pela morte fulminada e é notável
a gravidade com que se narra o trágico episódio. Nenhuma outra
causa mortal impressiona mais o espírito popular como sabendo alguém
ter sido vitimado por um Raio. Tenho a impressão de um nome-tabu.
com o Raioo se brinca.
NEVOEIRO
Recorrer-se à Santa Clara: «Santa Clara! Clareai o dia!»
A grave fundadora das «Pobres Clarissas», discípula de S. Fran-
cisco de Assis, tornou-se «Santa do Tempo» por um mito de confusão
ou sugestão verbal, como diria Max Müller. Durante sua existência,
1193-1253, nenhuma manifestação sabemos de interesse pela intervenção
na paisagem atmosférica.
No Diário da Navegação, de Pero Lopes de Souza, existe a denun-
ciação inicial do culto. No registo de 12 de agosto de 1530, anotou:
«Quis Nossa Senhora e a bem-aventurada Santa Clara, cujo dia era,
que alimpou a névoa, e reconhecemos ser a ilha de Cananéia».
com o Nevoeiro-fechado, algodão-em-rama, expõem ao ar-livre um
terço de contas brancas num prato com água. Atiram punhados de
farinha sessada, de mandioca ou de trigo, Farinha-do-Reino. Espalham
cinzas ao vento. No Pará, oferecem, pondo no telhado, folhas de
tabaco ao Pedro. Jogam farinha ou cinzas na direção dos pontos
cardeais. Dizem, alto, a jaculatoria: «Santa Clara! Clareai o dia!»
Põem farinha seca numa salva em recanto sossegado no interior
da casa, preferível canto de parede. Meu tio Francisco José Fernandes
Pimenta, irmão de minha Mãe, dizia ser fórmula decisiva: «Nevoeiro!
Nevoeiro! Tira aqu! o meu argueiro!». Divulgo sem muita confiança nos
ensalmos do capitão Chico Pimenta, profissionalmente zombeteiro.
A influência dos objetos brancos, apresentados ao Nevoeiro, de-
termina a imitação na claridade.
o consegui apurar crendice referente aos dois Nevoeiros mais
famosos do Brasil a Garoa emo Paulo e o Ruço na cidade de
Petrópolis.o o dissipam exibindo as nádegas nuas, como nos
Abruzos, Algeria e Mondim da Beira, em Portugal. O Nevoeiro,
tal qual o urso na Lapônia, respeita o sexo feminino, informava Axel
Munthe.
o se sabe quem possa originar um Nevoeiro, e os feiticeiros,
mestres do Catimbó, babalorixás dos Candomblés e Umbandas, pais-de-
terreiro respeitáveis,o atingiram a perfeição de provocá-los no Rio
de Janeiro, Salvador e Recife, como ainda é possível aos bruxos na
Europa.
REMOINHOS
Remoinho, Redemoinho, Rodamoinho,o é o Pé de Vento, lufada
inesperada e brusca que passa, reboando. O Pé de Vento sopra numa
direção. O Remoinho é a ventania em aspirai, rodando como um
gigantesco parafuso. Os alemães ligaram-no à víbora, Wirbelwind,
pelo giro sinuoso. Whitlwind, para os ingleses. Tem vida própria
e atende às divinas intervenções. A origem é o encontro de dois
sopros desocupados. Briga de ventos, duelo, vadiação inútil e per-
turbadora. No sui do Brasil é o Saci Pererê, duende pequenino, negro,
unípede, de carapuço vermelho e cachimbo na boca, o responsável desde
o séc. XIX, pelos Remoinhos. Pula e salta no bojo dos ventos de-
sencontrados, imprimindo-lhes velocidade circular e ascensional, e arranca
pelas ruas e caminhos, arrebatando folhas, garranchos, poeiras, num
ronco assustador de turbilhão reduzido. Outróra seria obra das Almas
Penadas ou Diabinhos vagabundos. Para o Brasil meridional e central
é o Saci Pererê, que estudei na Geografia dos Mitos brasileiros. (Rio
de Janeiro. 1947) . Para o Norte, o Remoinho perdeu a história do
seu conteúdo. Deveria, antigamente, manter a herança portuguesa
nesse particular, vasta e variada sobre o «Balborinho».
D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos informava: «As almas que
aparecem nos Balborinhoso de campesinos que cometeram delitos
agrarios». Roubo de terras ou abigeato. Quando o Balborinho de-
positava palhinhas e folhas acarreadas em determinado local, indicava
o endereço do culpado. O Balborinho seria um conduto turbilhonante
para castigo e purificação das almas lusitanas.
No Brasil persiste a vaga impressão desagradável do Remoinho.
E que contenha uma finalidade, susceptível dos esconjuros e exor-
cismos plebeus para obrigá-lo a fugir. Atira-se um terço de contas
claras, uma palha do Domingo de Ramos em forma de cruz. Grita-se
o alarme: «Aqui tem Maria! Aqui tem Maria!»
O divino nome deterá o malefício girador. Vai rodar para outra
paragem. Há ordens peremptórias que o Remoinhoo ousa deso-
bedecer:
o João disse que quando chegasse,
fosse por ali (aponta-se) eo demorasse.
O eólio caracol segue o rumo indicado. Diz-se, também: «Santo
Antônio passou por aqui e deixou dito queo demorasse...» O vento
circular, bailando samba, arruma-se no roteiro do Santo de Lisboa e
Pádua.
Há gestos de magia defensiva. Cruzar os polegares, mostrando-os
ao Remoinho. Riscar no solo o sinal-de-Salomão, estrela de seis pontas,
a hexalfa. uma cruz improvisada dá o mesmo resultado afastador.
O Remoinho dispersa-se. servilmente. Os tangerinos, almocreves,
comboieiros, arrieiros,m «fiança» no Sino Salomão, de milenar força
mágica. Riscam-no às pressas no chão poeirento. Os «Antigos»
repetiam o formulário português, tal e qual. As gerações que viram
o automóvel, ignoram a crendice. Mons. Alfredo Pegado de Castro
Cortez, (1876-1941), dizia-me que, no seu tempo de rapaz, o meio
poderoso para afugentar o Remoinho, quando envolvido por êle, era
cruzar os braços no peito. O vento-rodador desmanchava os círculos
silvantes. Ia embora. ..
J. Leite de Vasconcelos, (LUSA, I): «Barborinho, espírito do
vento».
CALOR E FRIO
O «frio da madrugada» diz-se Cruviana, plagiando-se o vento
sudoeste derramado das cordilheiras dos Andes pelas bacias do Purus,
Juruá, Madeira, Acre, Amazonas, Pará, determinando a Friagem, como
chamam no Mato-Grosso. Temperatura mais baixa nas «manhencenças»
apelidaram, trazido pelos nordestinos seringueiros, Cruviana, desde
Bahia, Curviana e no Ceará também Graviana, que me lembra a Gravaria,
monsão ao sul do Cabo-Verde e Serra Leoa, velha amiga dos veleiros
no rumo do Brasil antigo. Em Minas Gerais falam na Currubiana,
com nevoeiro e neblina, queo ocorre para o Nordeste. Dizemos
correr uma Friagem quando a temperatura perdura até depois do Sol-
nascer. Vento brando. Nao anuncia Inverno nenhum. As madru-
gadas de 1915 e 1945 eram geladas e a Seca tinia no Mundo! Nem
sempre a sensação friorenta é indice de chuvas. Vêzes o Calor é
melhor profeta, um calor abafado, com intercadências para maior e
menor intensão, especialmente ao anoitecer e amanhecer.o um
calor de contino mas tendo como modulações na intensidade percebivel.
É o «Calor de Chuva», mesmo com ou escampo, quase limpo de
nuvens. O calor efetivo, permanente, sem descontinuar, é que é a
«Carta da Seca».
Infelizmente jáo vivem os Doutores da Seca, Jerónimo Rosado,
(1861-1930), Des. Filipe Guerra, (1867-1951), Eloy de Souza,
(1873-1959), Joaquim Inácio de Carvalho Filho, (1888-1948).
Esses, tinham o Sertão nas veias.. .
ARCO-IRIS
Arco, Arco-Celeste, Arco-de-Chuva, (rainbow), Olho-de-Boi
(quando incompleto) tombem Arco-da-Velha como em Portugal, bebe
água nos rios, riachos, lagos e lagoas, e também ao Mar estende a
sucção de suas extremidades luminosas. Pode engulir gado miúdo,
aves e mesmo crianças que brinquem nas áreas do seu exercício.o
atinge às proporções famintas possuídas na espécie européia, onde de-
glute navios veleiros e os grandes cetácios deparados na superfície
oceânica. Antes da refeição líquida era quase invisível, desbotado,
descolorido, acinzentado. Repleto, fica amplo, radioso, rutilante. Depois
de permitir por brev- tempo a visão de sua beleza indisfarçável, desa-
parece. «.Você é como o Arco-íris, bebeu, some-se!»
É deslumbrante mas antipático para a população rural de todos os
países do Mundo. Dispersa, consumindo, um elemento vital. Con-
corre, negativamente, com as gentes do ciclo pastorial e agrário. Sorve
água na Terra, Mar e mesmo no Céu, ainda guardada nas Nuvens.
O arco encantador alcança os grossos Cúmulos que vinham trazer
auxílio aos homens. Esgota-lhes a carga destinada às plantações pre-
ciosas. Recebe, noventa por cento, pragas dos agricultores, como sau-
dações a sua visita ornamental e dispensável. «Vá beber no Inferno!»
tantas vêzes ouvi nos sertões, apostrofando-se o fáustico Arc-en-Ciel
bíblico. A representação festiva merecida na Antigüidade, da Grécia,
Roma, nos Edas, Sagas do Niebelung-not, passagem de íris voando
do Olimpo à Terra com mensagem de Juno, Ceinture d'Iris, Bifroest,
passarela policolor sobre o rio que circula Asgard, morada dos deuses
nórdicos, transmuda-se em figura serpentina e maldosa. É uma víbora
que ataja /a lluvia y no deja llover, na sensibilidade dos amerindios.
O Arco-Iris Víbora é a configuração mais espalhada no Mundo.
Beleza insaciável e maléfica. As versões que herdamos dos lavradores
portuguesesoo favoráveis ao Arco-da-Velha. Em meio século de
investigação etnográfica jamais registei que o Arco-íris distribuísse
em chuva o que retirara da Terra, das Nuvens ou do Mar. Fòsse
benéfico o Arco-Celeste, o Arco-da Aliança de lavé, (Genesis, 9, 13),
teria bênçãos eo esconjuros e despedidas:
Arco da Velha
Vai para Castella.
Faze uma casa,
Mete-te n'ela!
Afastam-no apontando-o com os indicadores cruzados. Riscam
traços retos no chão. Dispõem em filas pedrinhas e gravetos. O Arco
desmancha a galhardia setecolor, e viaja. Sendo eternamente curvo,
arcada lombar da Velhice, tem por injuriosas as coisas em linha uniforme
e direita. Procedem semelhantemente na França e na Córsega.o
tenho informação portuguesa nesse particular. Quem passa por
debaixo do Arco-íris muda de sexo. Retomará o anterior repassando
o Arco em sentido contrário. Dei uma longa nota sobre o Arco-íris
no Dicionário do Folclore Brasileiro, (INL, Rio de Janeiro, 1962).
Apesar do mau renome, o Arco-íris mantém resquícios do velho
prestígio junto aos Deuses mortos. Quem «verte» água diante de suas
cores, adoece das vias-urinárias. Um vaqueiro do Umari, Martins,
Rio Grande do Norte, por desprezo, voltou as traseiras e deu um
traque para o Arco-íris. Sofreu com diarréias dias seguidos, passando
horas angustiadas. Ficou respeitando o meteoro. Avistando-o, dizia
reverente: «Deus te salve, Arco Santo!»
As pontas do Arco-íris apoiando-se em terra indicam fontes, te-
souros, sepulturas ignoradas. Localizando-se a coordenada topográfica,
houve quem teimasse em buscas inúteis e afanosas. Jamais o terreno
estaria virgem de vestígios do homem ou de animais, visíveis nas poei-
rentas ossadas. Comumente o Arco-da-Chuva mergulha as extre-
midades sucçoras na água cobiçada pelos rebanhos, plantios e criaturas
batizadas. Os arbustos, iluminados pela faixa radiante,o se desen-
volvem. O Arco levou-lhes a potência do crescimento. Marmeleiros,
muçambês, matapastos, amolecem, murcham empapados pela poeira
úmida e colorida. Mesmo secos, serão imprestáveis.
o crêem que se origine da reflexão dos raios solares nas gotas
de chuva, projetando a decomposição das cores espectrais. O Ârco-
lris é um corpo definido, independente, com organização suficiente.
Quando desaparece,o morreu, dissipado. Viajou para outra paragem,
retomando a missão captora das águas, em sede inestinguível e perma-
nente. É eterno e autonomo como uma Nuvem.
FOGO SANTELMO OU CORPO SANTO
Aparece, em condições especiais e propícias, aos pescadores que
ousam pescarias de mar-alto, no "fundo-de-fora", nas "Peredes", derra-
deiros pesqueiros, sem fundo para as faxeiras e tauaçús". Noites sem
sentido e visão das praias encobertas, terra "assentada", apenas sen-
tindo o sopro morno do Terral.
A flama azulada com lampejos de prata, ardendo sem calor,
irrompe bruscamente numa presença sempre assombrosa na solidão
noturna do Atlântico. Clareando no topo do mastro é uma garantia de
próximo bom-tempo sereno. Oscilando nos baixos níveis do barco,
inquieta como lamparina soprada, é sinal de tempo-cerrado, mau-dia
futuro, com chuva teimosa e vento assobiador.
Nada mais recordam da história deo Pedro Gonçalves, o São-
Telmo, mas CORPO~SANTO perdura no vocabulário dos jangadeiros
nordestinos como reminiscencia dos avós portugueses na Volta da Mina
e Carreira da índia. Apenas em Sergipe e Alagoas é "Jan Galafoice".
"João Galafuz" na ilha pernambucana de Itamaracá. Para o extremo-
norte talvez se confunda com os olhos chamejantes da BOIÜNA, a fan-
tástica COBRA-GRANDE amazónica.
Será uma polarização do fluido elétrico, concentração e descarga
do potencial atmosférico, que primeiro coroou as cabeças de Castor e
Pollux quando remavam no rumo da Colchida, com Jasão, buscando
o velocino de ouro. com o Cristianismo foi indispensável arrebatar aos
Dioscuros o privilégio rutilante e pacificador. Surgiram Santo Elias,
Santo Anselmo, Santo Erasmo, Santa Helena, Santa Clara,o Nicolau,
esses três últimos vistos por Fernão de Magalhães na costa africana,
proa para a circunavegação, na pista atlântica do Brasil recém-nascido.
Foi a primeira devoção regular e fiel, cumprida nas tarefas marí-
timas brasileiras. Já em 1548,o Pedro Gonçalves possuía Capelinha
humilde e real no Recife, que era um arraial de pescadores. Essa cape-
linha, tornada imponente Igreja-Matriz do CORPO-SANTO, foi demo-
lida em 1913, na exigência da pseuda técnica urbanística e vítima da
insensibilidade cultural do Arcebispo, aprovador do sacrilégio. A Capela
era um ano mais velha que a SÉ da Bahia, também abatida com o
consentimento prelaticio. Apenas S. Cosme e Damião em Igaraçu, Per-
nambuco, erguera-se quatorze anos antes. A mais antiga do Brasil.
CORPO-SANTO batizou a Canela, Matriz e Freguesia reci-
fense. Vez por outra, os mais "lidos e corridos" citam o FOGO
SANTELMO. Jamais mencionamo Pedro Gonçalves, falecido em
1246, já canonizado pelos mareantes de Espanha e Portugal.
A crença resistiu até à segunda década do séc. XX na orla brasi-
leira do Atlântico-austral. Está esquecida. O MAR perdeu a faculdade
impositiva e milenar do MEDO aos seus fiéis valentes.
Durante séculos, os Letrados nao deram cabimento ao FOGO
SANTELMO ou CORPO SANTO escrevendo os nomes mie o Povo
amava. Diziam ser as Exalações Castor e Pollux. O doutor Brás Luis
de Abreu, (PORTUGAL MP.DICO, Coimbra. 1726), leciona a ma-
téria, justamente como os antigos pescadores nordestinos decoraram e
sabiam ensinar aos curiosos do meu lote: "As exhalaçoens Castor,
e Pollux se apparecem no fundo da Nao, ou ao lume da agoa predizem
tempestades; porque mostrão, que a perturbação do ar superior as nao
deixa subir; e se se divizaõ nos mastros, ou velas indicaõ serenidade,
porque se, que os ventos as nao podem dissipar; como dis o Plinio."
Ciência é assim. Podia ter indicado a fonte de Plínio, livro II, cap. 37.
Os grandes pescadores que identificavam o CORPO-SANTO,
vivo em sua luz de azul e prata flamejante na grimpa do mastro janga-
deiro, jáo existem. Mestre Manuel Claudino morreu em setembro
de 1940. Mestre Filó em novembro de 1947. Pescaram mais de sessenta
anos. Mestre Filó foi o Patrão do "Republica" e Manuel Claudino do
"Pinta", dois dos três botes de pesca, primários e legítimos, que foram
de Natal ao Rio de Janeiro, vinte e cinco dias de mar e noite em 1922,
Centenário da Independência, num ritmo de caravelas.
o se faia mais no FOGO SANTELMO. O CORPO-SANTO,
que Luis de Camões viu, é um mesquinho e triste índice de meteorologia
analfabeta. uma simples claridade no Mar Tenebroso, sem endereço e
conteúdo para os olhos contemporâneos.
Afonso Lopes Vieira, devoto deo Teimo, sabia rezar:
Por isso as Naus se desgarram,
Santo nome de Jesus!
Salva, salva, oh Corpo-Santo,
Acende ao alto a tua luz!
ESTRELA CADENTE
O sertanejo, do meu tempo e que de todoo desapareceu, mental-
mente, descreve a Estrela Cadente como um pequeno Cometa. O rasto
rutilante, explicado pela resistência no atrito atmosférico, às vêzes pro-
longa-se na percepção visual, sugerindo o clássico apêndice.
uma Estrela correndo assusta-o, infalivelmente, porque é uma
exceção no quadro hierárquico de suas irmãs, aparentemente imóveis.
Crê que o Firmamento seja uma abóbada sólida, a concavidade voltada
para a Terra, cobrindo-a defensivamente. A Cadente despregou-se,
perdendo a colocação regular. Em Portugal saúdam-na:
Deus te guie bem guiada,
Que nou foste criada.
Temem que destrua a Terra com seu lume resplandecente. As Pro-
fecias anunciavam o Fim-do-Mundo pelo Fogo. Chamam-na Lágrimas
de São Lourenço.o Lourenço é o Padroeiro dos Ventos.o é uma
Estrêla-que-passa mas, fielmente etimológica, uma Estrêla-que-cai!
A saudação brasileira é mais explícita:
Deus te salve! Deus te tenha!
Que na Terra nunca venhas. ..
A frase usual integra a portuguesa: "Deus te guie, Zelação!"
Zelação é exalação. Emissão, lançamento, expulsão. A Estrela
Cadente é uma exalação, uma saída do Céu, arrebatada pelo vento
irresistível. Daí o título que J. Leite de Vasconcelos registrou e queo
existe no Brasil «Lagrima deo Lourenço». como todas as cousas,
terá uma missão, desde que Deus permitiu sua queda. Que fará a
Estrela errante? Deus a guie. Para onde? Para o Mar queo tem
fim nas dimensões da extensão e profundeza. O Mar apagará o fogo,
sepultando-a no abismo.
Um enfermo grave suspeita o próximo desfecho se as Estrelas
Cadentes multiplicam o número visível, o que acontece em abril, agosto,
novembro, meses de incidência por possível encontro da Terra com
enxame cíclico ou passagem pelo anel de asteroides, como sugere o Padre
Jorge Ó Grady de Paiva: {ASTRONOMIA e ASTRONÁUTICA,
Rio de Janeiro, 1969).
Enquanto durava o traço fulgurante de seu trajeto, a praxe era
descobrir-se. O chapéuo perpetrava intolerável anacronismo. Era
o minuto da saudação: "Deus te guie!" Para o Mar ou para outros
infinitos, distantes da precariedade terrena.
Quando se vê o desenho luminoso de visita sideral formula-se um
desejo cujo enunciado coincida com a visão rutilante. Acontecerá quanto
se pediu. As moças gritam o nome dos namorados. Voando da Guiné
para o Brasil, na noite de 16 de março de 1927, o aviador major Sar-
mento de Beires obedeceu à tradição portuguesa: "Pelas 22 horas,
um aerolito despenhando-se no espaço, corta o azul do céu, com a faixa
coruscante da sua trajectoria. Lembrei-me da superstição popular, e
desejei, com um frémito vibrante de tôda a minha alma, que o "Argos"
atingisse Natal": (ASAS QUE NAUFRAGAM. Lisboa, 1927).
Que relação existe entre a Estrela Cadente e a Meteorologia tradi-
cional? Sinal de estio, secura, estiagem. Ocorrendo a "Chuva de Es-
trelas", jamais previsível, riscada a noite pelas rápidas perpendiculares
e diagonais em ouro e chama, o "sintoma'' é alarmante para os sertões
enxutos. É a SECA, trazendo a companheira sinistra, a VELHA DO
CHAPÉU GRANDE, personalização da Fome.
Nós, nordestinos, da pancada-do-Mar e sertões, estamos habituados
com a normalidade das nossas Estrelas nou tropical. Há uma longa
nomenclatura designativa, nomes do séc. XVI, os mais novos, outros
imemoriais, vindos dos árabes olhando a noite no Mediterrâneo e Ásia
Menor; Estrelas que marcaram caminhos às caravanas e aos rebanhos,
anunciando as monções que faziam cóncavas as velas gregas, fenicias
e romanas. A maior percentagem recorda o ciclo pastoril e viajou de
Portugal. Foram adaptadas à mentalidade ambiente e prestam depoi-
mentos de ternura antiga. Assim o SETE-ESTRÊLO, masculiniza a
espécie, o "Cruzeiro" ascensional fixa as horas mortas, como a Boeira,
a Papa-Ceia, lembram que o gado está recolhido e a ceia fumega, aguar-
dando o grupo familiar:
Pai do Céu, agradeço o comer
Que me deu sem eu merecer.
A Estréia Cadente é uma peregrina desconhecida. Ninguém sabe
de onde vem e para onde vai. Mas, foi criada no Céu.
Deus te guie, Zelação!
Bem estranhamenteo atingiu o Brasil a imagem da Etoile filante
representar uma alma penetrando o Paraíso, como na Provença de
Mistral e Daudet. A nossa cadente Estréia é a derradeira paga no
fabulário anônimo.o sendo possível alguma cousa independer do
Poder Divino, também a radiosa vagabunda foi conduzida ao aprisco
do Onipotente. Do mistério total resta a própria presença fugaz e clara,
atravessando o painel da curiosidade humana como uma ave iluminada
e revel, acendendo-se instantes depois de libertar-se das trevas, extin-
guindo o fanal ao retomar as fronteiras do negro universo de onde se
exilou.
Deus te guie, Zelação!
FOGO-FÁTUO
Confirma o Verão. O Boitatá, Batata, Batatão, dez outras variantes
nominais em todo o Brasil, aparece nas ardentes noites estivais, com o
vento de fornalha abafada. O tempo refrescando, os Feux-follets desa-
parecem, voltando ao palco se a temperatura subir. Ausentes, ficam
aguardando a força centrífuga do calor, apressando a decomposição
das matérias orgânicas nos pântanos, abrejados e velhos cemitérios
abandonados. As emanações do hidrogênio fosforado inflamam-se espon-
taneamente ao contacto do oxigênio atmosférico, promovendo o nasci-
mento dessas petites flammes, centros de Pavor popular pelo Mundo
inteiro. Representam entes sobrenaturais e maléficos. O mais antigo
registro do Boitatá é o do padre Joseph de Anchieta, maio de 1560, em
S. Vicente, no litoral de S. Paulo. Seria de mbae-tatá. "Cousa de
Focro". sem característicos definidos. O vocábulo popularizado. BOI-
TATÁ, provirá de mboi, cobra, e assim "Cobra de Fogo" ou "Víbora
de Foqo" é a figura mais vulgar no Continente americano, por influência
do idioma dos indíoenas tupi-auarani. As modificações apavorantes
percorrpm tôdas as Culturas vulnares e resumi o Boitatá no DICLO-
NÁRIO DO FOLCLORE BRASILEIRO. (INL, Rio de Taneiro. 1962)
com as manifestações oue esnavorecem americanos, europeus e africanos.
"Luzinhãs" ou "Fogachos" em Portugal.
com maior incidência, significam para o Povo "Almas Penadas",
cumprindo penitência visível para exemplo aos vivos reincidentes.
Envolver o condenado numa chama é castigo clássico e Dante Alighieri
o o esqueceu no INFERNO: (E ogni fiamma un pecatore invola,
XXVI-42). As preferências e habilitações do "Fogo Corredor" variam
na extensão geográfica do Medo. Desde o peregrino do Purgatório até
o espírito das crianças mortas sem batismo ou sacrificadas pelas mães
vergonhosas. Noutra classe,o entidades distintas, ocupadas na conti-
nuidade da assombração humana: Jack with a lantern, Inlicht, Moine
des Marais, Will-o-the-Wisp, Mboya da Africa setentrional, os Pôtres
e Poulpicans da Bretanha, luzes-loucas dos castelos do Reno, Koboltes
e Trolls na Europa Central.
Na ilha de Marajó é a "Mãe do Fogo": (Peregrino Júnior, HIS-
TÓRIAS DA AMAZÔNIA, Rio de Janeiro, 1936). Região pastoril.
Matança de gado.
Fauna fantástica do Verão!
ADIVINHANDO CHUVA...
Existem no Brasil, e universalmente, fórmulas da previsão tradi-
cional para o conhecimento do futuro Inverno. Deduz o Povo o prognós-
tico de vegetais, animais, aspectos atmosféricos, nuvens, estrelas, conste-
lações, incidência pluvial em determinados dias. Além dos recursos
rogatórios aos "Santos-que-fazem-Chover", os SANTI PLUVIALI na
Itália.
A regular estação chuvosa, positiva em junho, é prevista na floração
prematura dos cardeiros, joazeiros, oiticicas, carnaúbas. No gotejamento
do Umari, (Geoffroya spinosa, L. ) . Nas chuvas, mesmo breves, nas
vésperas da Conceição e Natal, (7 e 24 de dezembro), durante o Car-
naval e Semana-Santa, festas móveis; Dia de S. José, 19 de março, data
solsticial, de antiquíssimo prestígio:
comoro José,
Assim o ano é!
A humilde bracatinga, (Mimosa escabrella, Benth.) dando exsu-
dação, pregoa a vinda das águas do Céu:
Bracatinga chorou,
Tempo mudou!
O João-de-Barros, (Fumarais rufus, Gm.), construindo a casinha
com a abertura da entrada para o leste, mau anúncio. Para oeste, água
farta. As formigas dos barrancos fluviais fazendo mudança, o rio vai
encher. Cavalcante Proença registou que as formigas do S. Francisco
deixavam as velhas moradas e, às vêzes, o rioo aumentava de volume.
A culpa era do rio. Desaparecimento de abelhas e marimbondos?
Estiagem. Moscas agrupadas, voando em bando,o arautos da invernia.
Sapos roncando, chamam chuvas. Quando os pirilampos, vagalumes,
cagafogos, iluminam-se dentro de casa, é aviso de inverno. Oss das
orelhas suadas nos jumentos, saltos e alegrias nas ovelhas, carneiros e
bodes, brincando nos pátios da fazenda, dizem uma garantia de chu-
vadas. Peixe com ovas no fim do ano é chuva certa. Ervanço, grão-de-
bico, nascendo "embastido", com muitos grãos, chuvas!
Olhando o Céu, nuvens "carregadas", quase negras, vistas repeti-
damente ao pôr-do-Sol; as manchas do Carreiro de Santiago, Via Látea,
em dezembro, escuras e nítidas; a Lua com a boca voltada para o norte,
as pontas do Crescente nessa direção,o alvíssaras do bom-Inverno,
assim como o Sete-Estrêlo embaciado, nublado, indeciso em sua lumino-
sidade serena. Lua com "bolandeira", halo lunar, traz água-no-bico.
Estréias muito claras, numerosas, com pouca palpitação, enchendo o
Firmamento, Seca muito provável. Às avessas de Portugal: «Noite
estrelada, manhã borrada." Crepúsculo vermelhão, água no Sertão.
Muita coruja e bacurau cantando no mato e vizinhanças, Inverno!
Pau d'Arco florindo,
Inverno vem vindo!
Barriguda florou,
Chuva chegou.
E curiosamente as chuvas virão do lado em que a floração da Bar-
riguda (Ceiba pentandra, Gaertn. ), começou.
Cachorro fazendo muita volta antes de acomodar-se; cabras, bodes,
burros, procurando abrigo com o tempo-limpo, vem chuva, inevitável.
Bodes e carneiros marrando uns nos outros, em plena explosão lúdica,
água-de-roncar vem-vindo. Muita cobra, pouca água. Olho d'água
aumentando, grande aviso benéfico.
A mais valorizada e crédula "Experiência de Chuva" é a de Santa
Luzia, em 12 de dezembro. O solsticio de inverno no hemisfério norte
passará a 21. No DICIONÁRIO DO FOLCLORE BRASILEIRO,
("Chuva", INL, Rio de Janeiro, 1962) guardei quanto sabia no assunto
processos provocadores das chuvas, para cessar os excessos, conhecer
de sua aproximação, origens e variantes pelo Mundo. A "Experiência
de Santa Luzia" estudei-a mais longamente no ANUBIS E OUTROS
ENSAIOS. (VII, Rio de Janeiro, 1951).
Prefiro o depoimento de Euclides da Cunha, (OS SERTÕES, Ili.
25* ed., 1957), anotado em 1897. "É a experiência tradicional de Santa
Luzia. No dia 12 ao anoitecer expõe ao relento, em linha, seis pedrinhas
de sal, que representam, em ordem sucessiva da esquerda para direita,
os seis meses vindouros, de janeiro a junho. Ao alvorecer de 13
observa-as: se estão intactas, pressagiam a seca; se a primeira apenas
se deliu, transmudada em aljófar límpido, é certa a chuva em janeiro,
se a segunda, em fevereiro; se a maioria ou tôdas, é inevitável o inverno
benfazejo. Esta experiência é belíssima. Em que pèse ao estigma supers-
ticioso, tem base positiva, e é aceitável desde que se considere que dela
se colhe a maior ou menor dosagem de vapor d'água nos ares, e, deduti-
vamente, maiores ou menores probabilidades de depressões barométricas,
capazes de atrair o afluxo das chuvas."
o posso rir dessas estranhas faculdades higroscópicas, acusando
o futuro desequilíbrio na temperatura como consultando um novo e
mágico radar, disseminado nas células orgânicas. Os calos beliscam
e os reumáticos sentem dores inesperadas com dias de antecedência às
baixas barométricas. Disposições mais sensíveis aos registros de menores
variações de calor, frio, umidade.
Bode espirrando,
Chuva chegando!
Quintino Cunha, (1875-1943), ouvindo, de dama em Fortaleza,
o adagio sertanejo, respondeu, julgando-se alvejado:
Bode espirrando?
Cabra chegando!
E continuou aos espirros.
Decorrentes das "Experiências de Santa Luzia" vivem indicações
esparsas mas autorizadas pela antigüidade veneranda. Dia de Ano-
Bom, limpo, luminoso, Sol claro, bom augùrio. Chovendo no 1* de
janeiro será Ano-Ruim. Dia 2 de fevereiro, Nossa Senhora da Cande-
lária, caindo chuva, o Inverno virá. Em Portugal: "Quando a
Candelária chora, o Inverno já está fora!" Chuvas parciais em outubro,
muita esperança. Em novembro, agouro. Em Portugal é os regalado.
Mata-se o porco e peloo Martinho, dia 11, prova-se o vinho. Relâm-
pago em dezembro, sinal de fartura.
Quando certos trechos entre os píncaros escurecem, avisam chuvas.
Oo de Açúcar, no Rio de Janeiro, enrolado pela bruma matutina, é
bandeira pluvial. Os cariocas diziam: "Está cachimbando!" ou
"amanheceu de touca!" O "Buraco da Velha", (Guaimicoàra), espaço
entre morros ao sui de Natal, enegrecendo, a chuva marcha para a
cidade.
Névoa na serra,
Chuva na terra.
Às vêzes, de grutas, fendas naturais no solo, ouvem persistente
e surdo rumor, traduzido como prenuncio de Inverno. Boboca, perto da
Bica, na cidade de Portalegre, Rio Grande do Norte, serve de exemplo.
A dura escola do Sertão ensina aos seus filhos num curso univer-
sitário vitalício. Em 1915, meus parentes, pequenos agricultores e cria-
dores de gado, diziam a meu Pai, também sertanejo, que a Seca seria
longa e cruel porque os formigueiros apareciam nos leitos dos rios
mortos, avisando que águao passaria por ali. "Nessas cousas, os
"brutos" sabem mais que os cristãos!" Enchenteo alcança formi-
gueiro povoado.
Os uruás, aruás, moluscos gastéropodes, do gênero Ampulária,
fixam sua colônia na meia altura dos paus cujas extremidades inferiores
mergulham nos rios, lagoas e açudes. "Besta como uruá!" dizemos no
Nordeste, porque uruá vem de iuvu-à, bôca-aberta. Os parvos uruás
mudam a residência alguns metros acima da antiga. Infalìvelmente a
água cobrirá o nível onde estavam morando. Nenhum agrupamento
humano "civilizado" possui essa capacidade previsora. "Alagação" é
sempre esmagadora surpresa para os habitantes da região. Uruáo
morre afogado, como o HOMO SAPIENS...
Natal. Fev. 1970.
D. JOÃO VI E O INÍCIO DA MODERNIZAÇÃO
DO BRASIL
ARTHUR CEZAR FERREIRA REIS
PORQUE D. JOÃO TRANSFERIU A CORTE PARA O BRASIL
A história brasileira, a começar da chegada da Família Real Portu-
guesa ao Brasil, assume proporções e características novas que
prenunciam a mudança radical que se vai operar. Inicialmente, será
conveniente registrar que o episódioo pode mais ser considerado no
primarismo das versões negativistas que se divulgaram visando a desmo-
ralizar a transferência da Córte para a colônia ou império ultramarino
na Sulamérica, como seria talvez mais interessante e acertado deno-
minar-nos. Quando Hitler, com suas legiões fanatizadas, apoderou-se
de espaços políticos que eram soberanos, seus governantes retiraram-se
para outros países, onde organizaram governos no exílio, desse modo
logrando parte dos propósitos do nazismo. Sob aclamações, sob lou-
vores, sob o crédito que se abriu, entendeu-se que, na manobra, aqueles
homens que exerciam o poder estavam creditando-se à confiança de seus
nacionais e dando um exemplo de coragem, de civismo, de inteligência
política. Todos lhes louvaram o ardil, que tantos frutos promoveria,
posteriormente, ao fim da façanha hitlerista.
Ora, bem examinado o episódio da transferência da Corte portu-
guesa, de Lisboa para o Brasil, o que o Príncipe Regente estava fazendo
era antecipar-se aos gestos de hoje de outros monarcas. com a circuns-
tância de que os de hoje passavam a viver e a dirigir, à distância, mas
em solo estranho, gentilmente ou politicamente autorizado a ser utilizado
na conjuntura difícil que devia mobilizar todos quantos se opunham
à aventura da Alemanha de então, enquanto que a Família Real portu-
guesa, no fim de contas Família Real do Brasil, a essa altura parte
integrante da Monarquia como área ultramarina, passava a viver e a
governar à distância, é certo, mas em solo que lhe era campo próprio
para atuar porque componente de seu patrimônio territorial. Certo? A
teseo parece realista? Por que louvarmos os de hoje e negarmos o
Príncipe com a solução que adotou, no momento próprio, e a segurança
que permitiu os êxitos que todos passaram a constatar? Será conveniente,
por fim, recordar que passando ao Brasil, D. João e os seus impunham
à Napoleão a primeira derrota visível, palpável, pois que seria o único
Monarca a escapar às exigências e maus tratos do Imperador dos
franceses.
Falamos em mudanças que se operariam no Brasil. Falamos em
solução acertada do Príncipe passando ao Brasil, ao invés de entregar-se
a Napoleão, como sucedeu com o sogro e com o cunhado, respectiva-
mente Carlos IV e Fernando VII, ambos aprisionados, castigados, des-
moralizados, obrigados a procedimentos vergonhosos que serviram para
comprometer a Coroa e levar à perda quase imediata do Império, cons-
truído a longas e duras penas, mas que entrara em decomposição antes
de findar o século XVlil e agora perdia a integridade pela soma de
fatos graves que a ação napoleònica determinara. As duas tônicas
passarão, de agora em diante, a constituir nossa preocupação para a
conversa que passaremos a ter.
Comecemos por recordar que a transferência da Córte, da área
européia para a área ultramarina, no caso o Brasil, era idéia que datava
do século XVI, portanto quando ainda despontávamos, indecisamente,
na nossa formação, como trecho do mundo que se descobria e disputava
entre nações européias.o se definira ainda, devidamente, qual a
soberania que se exerceria ao longo da vasta costa que se reconhecia
e sobre que franceses, ingleses, espanhóis e portugueses procuravam
impor sua decisão de permanência e portanto de manutenção de sobe-
rania intocável. No entanto, já àquela altura compreendera-se, em
Portugal, nos meios oficiais, que aos perigos constantes a que Portugal
estava exposto, a solução para a preservação da Monarquia seria a
mudança para o ultramar, o império que se elaborara na África, na
Ásia e agora na própria Sulamérica, numa das aventuras políticas mais
admiráveis pelo que de profundo, como previsão do futuro, havia na
consciência dos homens que dirigiam o Estado português e compreendiam
que era necessário ter soluções preestudadas para os momentos de cala-
midade e de perigo, quandoo há tempo para o estudo e a meditação
necessárias. ¡
Vamos transcrever de Luis Norton os trechos em que faz a crônica
do desenvolvimento do projeto. Escreveu aquele ilustre historiador em
seu Iivro clássico «A Corte de Portugal no Brasil», pgs. 14 e 15 da
segunda edição, recentemente saída em Lisboa: "Abandonar a Europa
para fundar no Brasil um grande império, fora, em Portugal, desde o
século XVI, um plano esboçado, estudado maduramente por soberanos
e estadistas, quando circunstâncias políticas tornaram periclitante a
soberania portuguesa, ou esta foi ameaçada por estranhas tentativas
de absorção.
Martim Afonso de Sousa, organizador da colonização sistemática
do Brasil, teria sido um dos primeiros a aconselhar a transmigração da
Família Real para a America do Sui, revelando a D. João III a extensão
dos seus domínios neste continente e o valor prodigioso das riquezas que
nele se encontravam profusamente distribuídas. Poucos anos depois, em
1580, Felipe II da Espanha, no desejo de afastar Dona Catarina de
Bragança da concorrência ao trono de Portugal, prometeu elevar, a favor
dela, a colônia do Brasil à categoria de reino independente. Mais tarde,
D. João IV, receando pela independência portuguesa, admitia, como
propusera o P.
e
Antônio Vieira, a trasladação da Corte para o Rio de
janeiro, lugar mais seguro e distante das cobiças castelhanas, disposto
a sacrificar às contingências políticas da Península seu filho Teodosio,
que êle desejava casar com uma princesa de França.
A mesma medida fora objeto de uma interessante proposta apresen-
tada a D. José por D. Luis da Cunha, na qual se lêem passos deste
teor: "... Que é Portugal? uma orelha de terra, de que um terço está
por cultivar posto que capaz de cultura, outro pertence à Igreja, e o
terceiroo prqduz grão bastante para sustentar os habitantes. As
outras potências da Europa protegeriam Portugal contra a Espanha,
e esta mesma se absteria de apoderar-se dele com receio de perder em
troca as províncias do Prata e do Paraguai..."
"... Nem seria difícil obter o Chile e tôdas as terras até ao Estreito
em troca do Algarve, que pelos seus portos muito conviria à Espanha. . .
Tantos portugueses seguiriam a córte que a éste respeito pouca dife-
rença haveria dentro em pouco entre as cidades de Portugal e do
Brasil. . . E quanto às Tapuias do sertão direi que em nada, senão na
côr, diferem dos rústicos das nossas províncias, e demais, depois de
instruídos, observam os preceitos da Igreja melhor que os nossos campo-
neses, que ou os esquecem ou desprezam. "
"Mas onde bate o ponto é aqui:o pode El-rei manter Portugal
sem o Brasil, enquanto que para manter o Brasilo carece de Portugal:
melhor é pois residir onde está a força e abundância, do que onde é a
necessidade e a falta de segurança... Acabarei pois esta minha visão,
dizendo a Vossa Majestade que sem embargo deo ser já tempo de
falar nela, pode vir algum (de que Deus nos livre) em queo seja
mal lembrada."
D. Luis da Cunha era o mais lúcido homem de espírito e de con-
cepção política dos problemas de Portugal e de seu império. Tôda a
obra que nos deixou, e sobre a qual Ferrand de Almeida vem fazendo
admiráveis interpretações, ao mesmo tempo que analisa a vida do grande
estadista, diplomata, é obra que reflete suas inquietações acerca do
presente e do futuro da Pátria, num mundo que se angustiava sob
fórmulas, como hoje sucede, que prenunciavam a destruição de um
sistema de vida político, anunciado na "Enciclopédia" e nos textos dos
"iluministas" franceses, ingleses e já agora também peninsulares, a
começar de Vernei em Portugal. Pois para D. Luis, que sugeriria a D.
José a chamada ao poder do futuro Marquês de Pombal, o Brasil seria
a salvação de Portugal. Carvalho e Melo, ascendendo ao governo,o
esqueceria a sugestão e, por mais de uma vez, deu demonstrações posi-
tivas de que a aprovava, para o que providenciava a adoção de medidas
práticas, materiais muitas delas, para assegurar o futuro. Rio ou Belém
seriam as soluções. A ambas as cidades, por isso mesmo, deu uma atenção
particular, pois alguma delas talvez viesse a servir na solução que se
aceitava como perfeita. Em Belém fizeram-se construções monumentais.
Para o Rio mudou-se o poder central português na América, atribuindo-se
ao seu Capitão-General a graduação de Vice-Rei.
D. João, Príncipe Regente, premido pelas circunstâncias graves
que as exigências napoleônicas haviam imposto,o teria, portanto,
outro caminho a seguir. Silvestre Pinheiro Ferreira, em 1802 e em 1807,
voltara ao assunto para indicar a mudança como emergência impossível
de evitar.
No Brasil, lembrava há pouco Américo Lacombe, a idéia já tomava
corpo. Elementos da Inconfidência já pensavam no problema. Outros.
posteriormente, sustentaram a decisão como imperiosa. Um príncipe
português no Brasil, fosse na condição de Regente ou na de Monarca
de um Reino vassalo, como Aranda, em fins do século XVIII, imaginara
que fosse solução, na América, para a permanência da mesma América
na condição de vinculada à Espanha, daria consistência a laços que
mantivessem Brasil e Portugal solidários numa mesma comunidade polí-
tica eo apenas cultural e econômica. Essa fórmula política entrava na
cogitação de pessoas responsáveis pelos destinos do país.
Na consciência dos perigos, no desejo de frustrar os propósitos do
Corso e na decisão de servir à Pátria, salvando-a, D. João cumpriu os
planos de Estado, velhos de séculos, passando ao Brasil. Sabemos com
detalhes de todo o exame a que se procedeu, dos prós e contras trazidos
ao debate, dos conciliábulos, das conversas secretas a respeito do passo
a dar, pois que todo o documentário pertinente está divulgado. Leia-se.
por exemplo, o que Angelo Pereira reuniu em seus livros acerca de
«D. João VI, Príncipe e Rei». Justamente o primeiro volume da série
refere-se todo êle à «Retirada da Família Real para o Brasil». Leia-se
«O Conselho de Estado Português e a Transmigração da Família Real
em 1807», em que Enéas Martins Filhoz a análise da documentação
que se guarda no Arquivo Nacional, documentação que é nada mais
nada menos que o arquivo do Conselho de Estado de Portugal nas suas
atas originais, inéditas ainda na atualidade. Leia-se a conferência de
Alan Manchester, sobre a «Transferência da Corte Portuguesa nara o
Rio de Janeiro», publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográ-
fico Brasileiro, número 277. Leia-se, finalmente, o livro admirável
¿¡obre «D. João VI no Brasil», de Oliveira Lima.
Ninguém poderá ter a menor dúvida do que ocorreu como dramati-
cidade, naqueles momentos que se viveram em Portugal, entre a pressão
britânica e a pressão francesa, esta com os soldados penetrando em
território português e aquela materializada por uma esquadra, fundeada
frente a Lisboa e canhões apontados para uma ação destrutiva imediata.
Naqueles cedulários, estudados pelos historiadores referidos, a que se
deve juntar Caio de Freitas com «George Canning e o Brasil», escrito
à luz das peças, que utilizou, do Public Record Office, está tôda a vida
que se viveu então e nos revela o episòdio nas suas minudèncias, intimi-
dades e clareza.
D. João, passando ao Brasil, preservava a Monarquia, mantinha-a
e fundava um novo Estado. Porque, como passaremos a verificar, foi
essa a grande conseqüência dessa transmigração, cujos reflexos, na
própria América, aindao mereceram a análise de historiadores hispa-
no-americanos, apesar do que se pode antever sem maiores exames
e meditações.
Fundaria um Estado. É necessário recordar, na oportunidade, que
a América Inglesa já alcançara a autonomia depois de forte luta Militar
e diplomática com a velha Britânia, que a estabelecera. O Haiti desli-
gara-se do domínio de França. Dois Estados experimentavam, assim,
as venturas e as dificuldades naturais nos países de recente elaboração
política para a comunhão mundial. Os exemplos poderiam frutificar.
Em Espanha, sentira-se o perigo que se avizinhava. Dera-se balanço
realístico, inventário negativo do processo colonial, da autoria de Jorge
Juan e Antonio de Ulloa. as famosas «Notícias Secretas de América»,
que pretendem impugnar como apócrifas, mas que na verdade contêm
um informe áspero do que era, então, o império, no desregramento dos
governantes, nas desventuras dos governados, nos perigos que a pene-
tração inglesa oferecia e de que os planos de Tomas Hobbes constituíam
uma demonstração fácil de compreender no que representavam como
propósito da Coroa das ilhas do norte da Europa, penetração i;ôbre
que nos deu excelente trabalho de investigação histórica a professora
paulista Olga Pantaleão. Que sucederia na América portuguesa? As
Inconfidências jáo prenunciavam um futuro diferente?
Portugalo se pudera desprender, apesar de todo o esforço de
Pombal, dessa influência britânica que via agora, perdidas as oportuni-
dades nas tentativas sobre Havana e sobre o Prata, o momento próprio
para penetrar na vida mais íntima da Sulamérica, através do Brasil.
Sustentando a conveniência da transferência, os ingleses vislumbravam o
domínio econômico de uma nova área, que incorporariam ao seu campus
de ação econômica como compensação pela perda das colônias do norte.
D. João vinha, portanto, fundar o Estado. Um Estado em nova
forma de vida. Um Estado no tipo da sistemática européia, tom o
fausto das Cortes de, com as regras e princípios que a marcavam, com
a máquina governativa que se transferia pura e simplesmente no esforço
de implantá-la no seu conteúdo e na sua formalistica como se estivesse
funcionando? O Estado que D. João vinha fundar, ou estabelecer
no Brasil, seria um Estado de linhas novas, construção que, tendo simile
no Velho Mundo, como era natural, teria de ajustar-se às condições
do Novo Mundo, já definido em suas variantes, em suas peculiaridades,
em seu sistema de viver exótico, diferenciado, quase autônomo. Se a
pròpria linguagem, a alimentação, os modos de ver e compreender as
coisas, os costumes, os usos domésticos ou não, já possuíam caracterís-
tica local ou regional evidente!
QUE ERAMOS EM 1808. O INVENTÁRIO A QUE
SE PROCEDEU
Ao chegar ao Brasil, D. João e as 15 mil pessoas que o acompanha-
ram, o que é suficiente para comprovar o caráter de vinda decidida e
o fuga, com os arquivos e livros como os mais pertences embarcados
de lá para utilização do novo Império, iam encontrar um espaço que
estava definido em suas grandes linhas territoriais. Sabíamos até (.nde
chegáramos na expansão, como sabíamos onde principiavam os territó-
rios alheios. Nesse espaço, semeara-se um sem número de centros
urbanos, desde o vasto litoral ao interior distante, no sul, no norte, no
extremo-oeste. O espaço era gigantesco. Valia como um continente
pelas proporções geográficas, mas constituía igualmente um imenso
arquipélago cultural. Nele, havia o extativismo animal e vegetal. A
mineração entrara em decadência. uma sociedade agrária e pastoril
procedia à formação da riqueza. Os caminhos eram difíceis. Do
ponto de vista da elaboração de um espírito engrandecido pela aventura
da inteligência, o que haviao impunha grande respeito. As escolas
de primeiras letras estavam entregues a religiosos e mestres aprovados
em Lisboa, após demonstrações públicas de pequena exigência técnica.
A Igreja era a católica, realizada sem a majestade dos atos litúrgicos
que se formalizavam em Lisboa e nas outras cidades importantes do Reino
europeu. O processo de mestiçagem criara a sociedade solidária.
Caboclo já era nome queo significava inferioridade. Ao estrangeiro,
no entanto,o se permitia o acesso de qualquer espécie. O trabalho
n.T terra era empresa áspera do escravo africano. Dera-se libertação ao
índio local. O comércio de exportação constituía o elemento material
básico sobre que se afirmava o domínio de Portugal. O monopólio, explo-
rado pelos mercadores de Lisboa e do Porto, uma vez que estava proibida
a relação mercantil direta com os mercadores de outras nacionalidades,
garantia a situação. O fundamento econômico da ação política estava
claramente proposto e consolidado. com a chegada do Príncipe, toda-
via, muito daquilo iria ser alterado. E nesse particular, a providência
inicial poderia ser interpretada como o sinal das reformas que se iam
experimentar e serviriam de ponto de partida para a conquista posterior
da independência.
A abertura dos portos do Brasil às relações comerciais com o resto
do mundo eo apenas com os mercados portugueses, foi o início da
revolução. com a revogação dos alvarás que proibiam as atividades
manufatureiras e o uso da terra e a localização, nela, do estrangeiro que
o viesse criar o quisto ideológico e étnico. Dissemos revolução. Sim,
porque, efetivamente, o que começava era a destruição de um sistema,
de uma ordem política, para abrir-se oportunidade à experiência de uma
outra, ousada, embora necessária, mas que só poderia ser recebida como
uma mudançao violenta como soe acontecer com as revoluções que
pretendam elaborar uma nova estrutura nas sociedades estagnadas ou
em desenvolvimento demasiadamente lento.
Wanderlei Pinho, em quem nos acostumamos a ver o historiador
consciente de seus deveres, liberto de preocupações ideológicas, em
ensaio eruditissimo sobre a matéria, pôs-nos em dia com os algarismos
que explicam, com exatidão, o que a abertura significou. como, poste-
riormente, Pinto de Aguiar, em outro ensaio, também farto em algaris-
mos, comprobatorios da importância do ato revolucionário. Naquelas
providências D. João principiara a remover o passado recente para
inaugurar o novo momento histórico.
O Brasil, à época,o constituía, é tempo de lembrar, mundo por
descobrir totalmente. O que denominamos iluminismo do século XVIII
teve, entre nós, a virtude de provocar o interesse de homens de espírito,
de relativa formação humanística, adquirida em Coimbra e em Montpelier.
Havia mesmo literatura pragmática, se assim podemos chamá-la, que
procurava revelar o país em suas peculiaridades. Além do que se
escrevera pela iniciativa particular, havia mais um vasto trabaiho de
indagação e de curiosidade, promovida por determinação de Lisboa
pelas autoridades locais que, em suas áreas de ação, tentavam o levanta-
mento da realidade física, social e econômica. Procedia-se, desde fins
do século XVIII, a um imenso reconhecimento dessa realidade. Quando
se fizer o levantamento minucioso do que se guarda inédito e do que
foi publicado, nesse particular, há de verificar-se que a curiosidade
científica ou paracientífica que se promovia estava permitindo um
conhecimento mais profundo do que era o Brasil. Na minha Amazônia
o distante, além do que fora realizado pelos grupos de campo das
comissões de limites, e do trabalho da maior importância científica de
Alexandre Rodrigues Ferreira, começara a efetuar-se um censo,o
apenas exótico mas, realmente, interessando à espécie humana por
outros motivos.
Todo èsse material, que poderia autorizar a política a seguir de
imediato na nova formalistica a adotar na antiga colônia, em breve
elevada à categoria de Reino, o único que houve na América, foi exami-
nado.o se considerou suficiente. O país era gigantesco. Seus
problemas exigiam soluções que só agora se percebiam na gravidade, na
importância e na extensão que apresentavam. uma política no conhe-
cimento do que era real. A indagação oficial foi iniciada. No Arquivo
Nacional, no Instituto Histórico e Geográfico, na Biblioteca Nacional,
como deve suceder nos Estados, então as Capitanias de primeira e
segunda ordem, isto é, Capitanias governadas por Capitães-Generais,
ou Capitanias administradas por simples Governadores, os relatórios e
as exposições que se escreveram, em cumprimento às ordens expedidas
do Rio de Janeiro,o imensuráveis e poderão permitir uma noção exata
do que se apurava e valeu, imensamente, para as providências que se
foram adotando.
O Brasil era um conjunto de regiões, ilhas num continente. A
dispersão das populações processara-se no decorrer de 300 anos.o
se improvisara.o ocorrera, todavia, em cumprimento a um plano de
govèrno, visando à ocupação do espaço. Marchara-se impetuosamente
contra o futuro, sobre o desconhecido, mesmo que os chamados pólos
de atraçãoo existissem. Muitas, às mais das vêzes, essa expansão
resultara da decisão dos próprios colonos. Em nenhum momento, no
entanto, deixando de haver a cobertura oficial que dava segurança à
façanha ilimitada. A mobilidade dos colonos, mestiços ou não, fora
surpreendente. «Raça de Gigantes» denominara Saint Hilaire a essa
gente admirável queo se cansara nem tivera medo do desconhecido e
da aventura que perseguia decididamente.om razão os que preten-
dem afirmar que, na grande época que imortalizou os norte-americanos,
a marcha para oeste, que lhes assegurou, com a grandiosidade conti-
nental do território, a marcha da fronteira como escrevia, muito acerta-
damente, Turner seu historiador mais autorizado e mais consciente do
que aquilo representava para caracterizar o povo do norte, haviam eles
criado uma situação ímpar nas Américas. É que também nós, aliás,
em período muito anterior, havíamos escrito a mesma história, definindo-
nos como imortais criadores do espaço ecumenizável e elaborando
fronteiras queo se amparavam nos textos dos diplomas internacionais
que os portugueses, no Reino, assinavam para legalizar o Império.
O Brasil era um conjunto de regiões, queo se intercomunicavam
na continuidade e na facilidade necessárias. As Capitaniaso se
vinculavam pela existência, aqui, de um poder que decidisse e impusesse
a disciplina política. O poder maior residia em Lisboa: eram o Rei e
o Conselho Ultramarino. O Vice-Rei do Rio de Janeiro exercia sua
competência administrativa reduzido à Capitania do Rio de Janeiro,
que compreendia o queo hoje os Estados do Rio e Guanabara.
Ninguém lhe era subordinado. O título dava distinção,o assegurava,
no entanto, poder maior que o concedido aos outros Capitães-Generais.
que êle também era. Consolidar o arquipélago, pondo-o agora sob a
direção de uma nova autoridade, que fosse única eo dispersasse
competência e exercicio de poder, era passo essencial. E èsse foi o
outro ato revolucionário que ficamos a dever a D. João. Porque Lisboa
entrara a constituir passado. O Rio de Janeiro, sede da Monarquia, era
agora, efetivamente, o centro coordenador do poder e da nova ordem
oue.se elaborara. As autonomias parciais das Capitanias entraram em
declínio. A consolidação da unidade ia efetuar-se em definitivo. E o
papel centralizador, necessário para a unidade do país, estava confiado
a uma cidade padrão, o Rio de Janeiro, a Corte, como então passou a
denominar-se.o seria ela apenas sede passageira, experimental, de
um governo que a qualquer momento poderia regressar à Europa. Era,
desde esse instante, a cidade que exerceria o comando da vida brasileira,
como ainda hoje ocorre, apesar de Brasília.
D. RODRIGO DE SOUSA COUTINHO E CONDE
DA BARCA E SEUS PLANOS DE GOVERNO
As reformas e as transformações que seo experimentar, como
decorrência de tudo isso,o podem, porém, ser atribuídas unicamente a
iniciativas de D. João. Seria impossível que tivesse sucedido de manei-
ra diversa. Em nenhum momento, o governante pode ser o responsável
único pelas idéias, pelas iniciativas, pelas execuções. Seu corpo de
auxiliares imediatos, seus Ministros, seus Conselheiros, devem ser consi-
derados no papel que exerceram e muitas vêzes foram a força de convic-
ção para que, no debater da problemática, se adotem normas e orienta-
ções na política governamental. No período de D. João no Brasil assim
sucedeu. Ademais, de acordo com a sistemática administrativa, havia
Conselho de Estado e Ministros ocupantes de pastas, responsáveis dire-
tos pelo que deveria ir ocorrendo. Nada se fazia sem a reflexão levada
ao Conselho e ao pronunciamento dos Ministros nas pastas ligadas ao
assunto em pauta. Dois desses homens de Estado tiveram, embora rivais
e a serviço de ideologias e pensamentos em conflito, um papel decisivo
na condução dos negócios administrativos: Conde da Barca. Antônio de
Araújo de Azevedo, e Conde de Lnhares, D. Rodrigo de Souza Cou-
tinho, que o Marquês do Funchal, Marcos Carneiro de Mendonça e
Maria Odila da Silva propuseram à nossa admiração na obra de pro-
moção e de investigação científica que promoveu. O primeiro era de
formação francesa. O segundo, de formação inglesa.
Linhares era o mais diligente, o mais ousado nas concepções, o
mais decidido na defesa de idéias que visavam, fundamentalmente, à
reestruturação da Monarquia e de seu império. Faziam-lhe mossa das
novidades que sustentava. Nas reuniões do Conselho de Estado, como
se vê dos que depuseram posteriormente acerca daqueles dias agitados,
suas idéias eram recebidas sob reservas dos que sustentavam a rotina,
eram pela moderação, defendiam a conveniência das soluções demasia-
damente meditadas e sem a velocidade que o amigo dos ingleses
propunha. A família era tôda assim. Um Souza Coutinho, na África,
governando Angola, fizera uma administração modelar, marcada por
atos de coragem e iniciativas também revolucionárias. Outro Souza
Coutinho governara a Amazônia e ali se mostrara identificado com o
espírito reformista dos seus, promovendo uma série de providências que
lhe imortalizaram o nome na região. Linhares, às voltas com a proble-
mática nacional, preocupado com a decadência, visível aos olhos menos
abertos e às inteligências mais primárias, já vinha, desde Lisboa,
procurando interessar o Monarca, mesmo na condição de Príncipe
Regente, para o que se fazia necessário e urgente a fim de salvar o
Estado, a Coroa, e assegurar uma continuidade digna à Pátria. Suas
reflexões a respeito, divulgadas umas por Marcos Carneiro de Mendon-
ça no Iivro acerca do «Intendente Câmara», outras pelo Marquês do
Funchal e muitas delas inéditas em seu arquivo, que se guarda agora na
seção de manuscritos da Biblioteca Nacional desta capital,o reflexões
que revelam o estadista, mas estadista mesmo eo arremedo de homem
público, destes que se arreceiam de qualquer ato menos moderado e
o uma constante negação do progresso que, em nenhum momento,
pode ser limitado por decisões manhosas ou descorajosas. Parao
cansar o auditório, lembraria apenas que Linhares imaginava, no caso
particular do Brasil, promover o aproveitamento regular das vias nave-
gáveis, fazendo inclusive a junção de bacias para facilitar o trânsito ou
as interligações regionais. Pensava em termos de uma sede para o poder
central no Brasil, a ser instalada e construída no centro do pais, a fim
de que pudesse estar a salvo de agressões de inimigos e assegurar mais
rapidamente o progresso integral da nova nação, que êle vislumbrava.
Já o Conde da Barca, menos atrevido nas iniciativas, mais chegado
a reformas dentro do estilo francês, enquanto Linhares foi forte ou
existiu,o deu demonstrações mais visíveis de sua compreensão do
que valíamos e do que nos estava reservado. Devemos-lhe, desde logo
seja registrado, a vinda da Missão Francesa, que abriu perspectivas à
inteligência brasileira pela criação do ensino artístico e pela obra de
interpretação da natureza, que os artistas da Missão souberam gravar
nas telas que nos legaram, como nas construções que dirigiram e lhes
ficamos a dever, contribuindo notavelmente para a modificação da
fisionomia colonial, pobre, sem esplendor, que o Rio de Janeiro oferecia
a quem quisesse examiná-lo com olhos de menos carinho e menor enten-
dimento .
D. JOÃO E AS REFORMAS A QUE SUBMETEU O BRASIL.
A EXPANSÃO TERRITORIAL
D. João, na série de medidas que foi decretando para preservar
o novo Reino e alimentá-lo da seiva que era preciso aproveitar, valeu-se
sempre desses dois admiráveis servidores que, sem vaidades, antes com
a maior devoção, espírito cívico e funcional, asseguraram todo um vasto
acervo de sugestões, essenciais à política que transformou a colônia em
Estado soberano. Sim, Estado soberano. Ao assunto, porém, volta-
remos mais adiante. Porque agora desejamos lembrar que, chegando
ao Brasil em fase difícil da vida internacional, com Napoleão traçando
rumos para o mundo, mas encontrando oposição que o faria vítima
próxima de suas próprias ambições de um poder universal, D. João
teve pela frente problemas de política,o interna, da maior gravidade.
Portugal, convémo esquecer, estava em guerra com a França.
Havia, no norte, colônia francesa. Era de todo conveniente conquista-
la como desafronta ão insulto da invasão ao território peninsular. A
conquista foi decidida e realizada. Conquista que ocorreu com certa
rapidez e permitiu admirável experiência de ação criadora como foi a
que realizamos em Caiena, seja com o governo militar, sereno, seja com
o governo civil, a cargo de João Severiano Maciel da Costa, mais rarde
Marquês de Queluz. Os franceses haviam fracassado na empresa
colonial ali. Milhares dêles haviam morrido. Nada pudera ser cons-
truído até então. A presença luso-brasileira modificou o panorama.
Realizamo-nos, ali, com decisão e sucesso verdadeiramente sensacional.
À nossa saída, em 1817, os próprios franceses choravam, despedindo-se,
o que provocaria a surpresa do general francês que viera receber a
praça e a colônia. Pedira êle, então, que idênticas lágrimas marcassem,
nos olhos dos franceses, o dia em que concluísse sua administração,
porque estaria certo de que teria governado bem.
O outro episódio aconteceu no sui. Estava ali a fronteira nevral-
gica, palco de guerras e guerrilhas constantes. Portugal sonhara sempre
com a fronteira no Prata. A Colônia do Sacramento fora erigida d' ntro
daquele objetivo. Montevidéu resultava da contrapartida espanhola.
para preservar o espaço cobiçado, de onde partiriam, mais tarde, para as
aventuras que nos importunavam no território deo Pedro do Rio
Grande, o Continente deo Pedro como então se dizia. Os problemas
do Prata eram difíceis. O estado de agitação que lavrava entre os
platinos exigia cautelas e ação severa. Além de vigilância, tudo pronto
para repelir o que fosse pior. A conquista da Cisplatina foi, em conse-
qüência de todo o passado e dos fatos novos ligados ao processo de
independência e ao conflito com os ingleses, que teimavam em apode-
rar-se dos dois maiores centros políticos regionais, Montevidéu e Buenos
Aires, passo impossível de evitar. A história, imparcialmente elaborada
à luz da documentação existente e das análises frias que já se podem
realizar,o é outra senão essa da conclusão que acabamos de fazer.
A Cisplatina teria de ser conquistada, face à necessidade de preservar
a segurança do Brasil na faixa lindeira. Foi realizada e, sob o Império.
ainda por decisão brasileira, alcançou a soberania, queo fora cogitada,
lembremos na oportunidade, pelos que se haviam levantado, a serviço
dos interesses argentinos, parar fim à presença brasileira, já agora
impossível de destruir pelo imenso relacionamento de sangue e de
interesse recíprocos, inclusive os de base econômica, que se vinham
construindo.
Os dois episódios, cumpreo ignorar, constituíam afirmações de
poderio. Importavam em demonstrar que na Sulamérica estava surgindo
uma nação, aquele Estado a que nos referíamos antes, obra de D. João
e de seus auxiliares, sem que, na afirmativa, estejamos, de qualquer
modo, desfazendo do esforço de colonos e administradores que, nos três
séculos anteriores, tinham lançado os fundamentos materiais e, de certo
modo, espirituais que permitiam a estrutura que se argamassava a¿ora.
REI DO BRASIL. INTRODUTOR DE uma NOVA
UNIDADE POLITICA MUNDIAL
D. João, na execução ou nao de plano de Estado, visando a criar o
novo Estado, mas consciente ou inconscientemente promovendo tôda
uma política que, no fundo, era a política que conduzia à existencia
desse Estado, com Corte à moda européia, corpo diplomático acreditado.
o em Lisboa, mas no Rio de Janeiro, subordinação a esse mesmo Rio
de Janeiro, do ainda vasto território ultramarino, que se compreendia
na África e no Oriente,o era o Rei da América como pejoratinamente
procuravam obscurecer sua ação e sua permanência no Brasil, que êle
começara a amar intensamente, feliz com o respeito que todos lhe devo-
tavam e a quietude que a cidade e sua paisagem natural proporcionavam.
o será necessário enumerar a série de medidas de governo eme
D. João decretou, desde o Banco do Brasil, às iniciativas culturais, como
a criação dos estabelecimentos de ensino militar, técnico, profissional,
da Biblioteca Nacional, o início da imprensa periódica, a divulgação
intensa de folhetos da Imprensa Regia que ensinavam técnicas novas,
proporcionavam conselhos a lavradores, à revogação do alvará que
fechara as tentativas manufatureiras. A matéria tem sido suficiente-
mente divulgada. Ainda há pouco, no Curso sobre D. João VI, promo-
vido pelo Instituto Histórico Brasileiro, Francisco da Paula e Azevedo
Ponde, como Maria Odila da Silva Dias em «Aspectos de Ilustração no
Brasil», fizeram a crônica pormenorizada desses aspectos do ¡jovêr/io
de D. João.
Bastará, para tanto, que as recordemos, como elementos comproba-
torios de que o Brasil, sob D. João, entrava realmente na fase decisiva
de sua vida, deixando a condição de território ultramarino para ingressar
na de verdadeiro Estado soberano.o devendo deixar de ser lem-
brado que, sob D. João, o Brasil abrira-se aos olhos da ciência universal.
Spix e Martius, com o que divulgaram de suas viagens e observações,
o serão suficientes?
Antes do Sete de Setembro, na verdade, o Brasil já dispunha de
todos os elementos constitutivos dos Estados soberanos. Os vínculos
com Portugal eram agora vínculos tênues, que seriam desfeitos sem
maiores hesitações. Silva Lisboa, em livro clássico, intitulado, com muita
precisão. «Memórias dos benefícios políticos do Governo de El-Rei
Nosso Senhor D. João VI», traçou excelente e pormenorizado quadro
do que definiu a grandeza do período.
Voltemos, para terminar, a períodos já propostos. Dissemos que
o Brasil, à chegada do Príncipe Regente, era um aglomerado de unidades,
obedientes a Lisboa.o se configurava a existência de uma unidade
maior, que prenunciasse o Brasil unitário. Os próprios movimentos,
aqui e ali descobertos como manifestações de desgosto, descontenta-
mento. mal-estar, eram todos locais, limitados aos espaços regionais.
Em nenhum dêles encontramos o pensamento global de um Brasil no
gigantismo continental que o caracteriza. O globalo estava no pensa-
mento dos que divergiam e conspiravam. com a chegada de D. João,
essa situação findou. E o Rio de Janeiro passou a servir ao ideal do
Brasil unificado. Estado unitário, que começava a pensar em lermos
nacionais. A independência, próxima, seria o coroamento da política
joanina. Porque as Provincias, que sucediam às Capitanias, quando
se decidiram pela nova posição política, decidiram pela integração no
Brasil. As diferenças regionaiso se sobrepuseram, como forças de
dispersão ou de secessão. A unidade manteve-se. D. João deve
merecer, portanto, o nosso reconhecimento.o tivesse êle atravessado
o Atlântico para fundar o Reino do Brasil e no momento da independên-
cia, mais cedo ou mais tarde alcançada como sucedia com as varias
partes do Império de Espanha,o teria havido o espírito de .inid.ide.
O Brasil estaria retalhado. Seria fatal o desmembramento. A D. João,
tomo a liberdade de insistir, por isso, em nosso entender, cabe a glória
de ter lançado as bases políticas da unidade, objetivo sempre perma-
nente quando cogitamos do Brasil em termos de seu passado, de seu
presente e de seu futuro.
INSTITUIÇÕES CULTURAIS DO RIO GRANDE
DO SUL
IR. JOSÉ OTÃO
1 CONCEITO DE CULTURA
XL/NTENDEMOS a cultura no sentido lato e restrito. No primeiro
sentidoo expressões de cultura tôdas as formas, atitudes, modos de
pensar e de agir, de ser e de ter, todos os costumes e valores materiais
e espirituais assistemáticos existentes no homem e manifestados através
da sua conduta individual e social e das instituições coletivas.
No sentido restrito entendemos por cultura certo desenvolvimento
sistemático, intencional, religioso, social, intelectual, artístico, científico
no qual se revela um sentido humano, um esforço pessoal e coletivo pela
libertação de tôdas as formas de limitação humana.
Ainda no mesmo sentido a cultura se desdobra em tríplice dimensão :
pessoal, comunitária e transcendente. A cultura pessoal se abre para a
conquista do homem e do cosmos. A comunitária para a integração
ativa da anterior na comunidade dos homens. A transcendente para
a inserção de ambas em Deus.
Obstaculam essa tríplice tendência da cultura insuficiências pessoais,
barreiras comunitárias, falsas concepções de Deus. Surgem daí exata-
mente as instituições culturais que, se autênticas, agem como verdadeiros
instrumentos de libertação do homem, derrubando de sua frente as
barreiras que lhe impedem de realizar-se como pessoa, como membro da
família humana e como filho de Deus.
As instituições culturais surgem, sob esse ângulo de visão, como
organismos destinados a libertar o homem no sentido mais amplo da
palavra. Libertá-lo, isto é, ajudá-lo a conquistar-se a si mesmo, desper-
tando, desenvolvendo e orientando tôdas as potencialidades inatas, e
levando igualmente a conquistar a criação inteira e o próprio Criador,
para que êle disponha de quanto é, de tudo quanto a criação oferece
e do poder infinito de Deus para plenificar-se e plenificar os seus seme-
lhantes .
A verdadeira cultura torna-se patrimônio da humanidade, um bem
comum a todos os homens que se transmite de geração a geração de forma
sempre mais perfeita, num crescendo sempre mais fascinante.
2 INSTITUIÇÕES CULTURAIS
Por mais que recuemos no estudo da história da humanidade, encon-
tramos sempre a presença de instituições culturais. Impossível e mesmo
desnecessário descobrirmos suas origens. Interessa-nos conhecê-las na
atualidade, saber interpretar-lhes a mensagem humana libertadora de
queo veículos, mensagem que é ressaibo de alguma realização do
passado que se timbra em ter no presente e perpetuar no futuro. É uma
espécie de herança, sempre humana, que pode ser nacional, regional,
local, cara aos que a conhecem e de que os responsáveis pela cultura
se esforçam para tornar ainda viva, autêntica, genuína e vivificante.
No aspecto metafísico, podem as instituições culturais ser estáticas
e dinâmicas. As estáticas ou tradicionais fixam, imprimem, gravam em
seu bojo o pensamento e a ação do homem do passado, em formas mais
ou menos estáveis, sem movimento de atualização, porque esta as adulte-
raria em sua essência. Assim, o Centro de Tradições Gaúchas atuali-
zado, transformado, por exemplo, nos moldes da «Juventude Manda
Brasa», deixaria de ser o que é, perderia o sabor da origem e o Rio
Grande do Sui ficaria privado de uma de suas instituições culturais
mais tìpicamente próprias. Por esse caráter estático, as instituições
tradickjriais constituem objeto de curiosidade e de pesquisa científica
cada vez mais agudas mesmo por parte das gerações novas porque já
o entrando no panteão das lendas sempre fascinantes à imaginação
infanto-juvenil e mesmo adulta, sobretudo do adulto estudioso dos
problemas do passado humano.
Exemplo de instituições culturais estáticaso tôdas as Tradições
Vivas, essa espécie de patrimônio caro aos recantos do mundo onde êle
surgiu, carregado de uma veneração quase sacrai por parte das popu-
lações que o acarinham. No Brasil temos a variedade de tradições
sertanejas, nordestinas, mineiras, paulistas etc. No Rio Grande do
Sui os Centros de Tradições Gaúchas reúnem em si tôdas as -nuanças
do Tradicionalismo gaúcho, desde o «mate-chimarrão» até o «rodeio
crioulo», com suas festanças e alegrias compartilhadas por tôda
a população, do engraxate ao prefeito municipal, da lavadeira à primeira
dama da comuna.
As instituições culturais dinâmicas, móveis, mutáveis, flexíveis
levam em seu interior o germe da renovação, do crescimento, da matu-
ridade nunca atingíveis dada a gama infinita de estilos e de tendências
da vida humana.o dinamizadas em seu âmago pelo fermento da
evolução, do aperfeiçoamento, da mobilidade vertical e horizontal, cujo
impulso escancara as portas do progresso indefinido em tôdas as dire-
ções. Por seu caráter evolutivo, elaso perdendo com o tempo a
forma original, ficando na atualidade uma espécie de convenção prática,
sem filiação filogênica, como uma estrada que se riscou do mapa. Assim.
o aperto deo ocidental perdeu totalmente o significado primitivo de
«estender as mãos para ver se a pessoa que abordamoso está com
armas escondidas...» para tornar-se uma convenção mundial, porta-
dora de simpatia e de amizade. Ao estender ao para alguém,
ninguém pensa hoje em verificar se a pessoa que saúda é portadora de
armas, A origem do gesto perdeu-se no tempo.
Sociologicamente consideradas, as instituições culturais exercem uma
espécie de coação sobre o homem. O homem do meio em que elas
existemo pode deixar de sentir-se imantado por sua atração e influen-
ciado em sua personalidade, em seu pensamento, em sua ação. Sua
linguagem, seu sotaque, sua faia, seus modos de ser e de agir traduzem
algum cunho longínquo ou próximo das tradições e instituições que o
marcam indisfarçàvelmente como epígono delas.
Essa característica das instituições culturais leva-nos a considerá-
las, segundo certa teoria, como que tolhedoras de parte da vontade
humana e portanto cerceadoras de seu poder criativo. O homem, ^enci-
lhado por elas, jáo age segundo sua vontade pessoal, pura, n'as
empurrado por um lastro do passado, o que equivale dizer por vontades
humanas do passado que o acorrentam a formas e práticas diferentes das
do presente. Na ação do presente o homemo é totalmente senhor
daquilo que faz. uma força oculta do passado aciona seu intimo e o
obriga a proceder segundo padrões e fórmulas cuja procedência igr.ora.
Nesse sentido o homem vinculado a tradições e instituições parece trans-
formar-se em robô, em manipulador e repetidor de vontades alheias.
A instituição parece introduzir o homem no caminho da alienação
pessoal.
Outros teoristas das instituições tradicionais defendem a "ese con-
trária. Para eles, as instituiçõeso caminhos abertos por onde outros
já andaram com segurança. Por que abandoná-los, e construir cami-
nhos paralelos?o redundaria essa atitude em pura perda de tempo
e de espaço? Andar por elas, pelo contrário, é começar a viver em
estado adulto.
3 A INSTITUIÇÃO CULTURAL MAIS ANTIGA
DA HUMANIDADE
A mais fundamental de tôdas as instituições, como fundamento de
tôdas as demais, parece ser a linguagem. como tôdas as outras obras
é produto da atividade humana em seu sentido global. O homem
exprime o seu ser todo e todos os seus pormenores através da lingua-
gem, a qual é, simultaneamente, resultado e meio de comunicação.
Nasceu da necessidade de o homem comunicar-se passando do grito à
palavra num período da História que os filólogos e historiadores ainda
o determinaram com precisão, o queo vai ao caso no momento.
Da linguagem surgem as demais instituições humanas, cujo leque
hoje vai se abrindo sempre mais. Instituições sociais, políticas, cultu-
rais, religiosas, nacionais, internacionais, desde a linguagem falada até
a linguagem escrita, em tôdas as variedades artísticas e chãs, cultas e
plebéias, escorreitas e vulgares. Tôdas elas trazem a marca do homem
em sua riqueza ôntica inexaurível. Podem traduzir costumes populares,
afirmações rudimentares sob a forma de provérbios, lendas, fábulas,
folclore, conhecimentos especializados de setores institucionais, concep-
ções filosóficas da vida, elementos normativos sócio-religiosos etc.
4 O INICIO DA CULTURA NO RIO GRANDE DO SUL
Na história da cultura a extensão de um século assemelha-se a um
momento. A culturao sedimenta rapidamente como as águas de
uma hidráulica. Ela necessita antes de longos períodos de sedimen-
tação como os terrenos geológicos.
Os primórdios da cultura rio-grandense-do-sulo recentíssimos
pois que datam historicamente de ontem, de duas centúrias apenas. Por
isso,o podemos envaidecer-nos,s gaúchos, de possuirmos uma cultu-
ra fixa, formada, sòlidamente constituída. Nossa cultura, considerada
em seus aspectos gerais, se parece com as dunas movediças da areia da
praia. Ela ainda vai em busca de estabilidade. No entanto, já podemos
ir esboçando da cultura gaúcha um futuro auspicioso pois que o presente
é promissor.
Para ver como nossa cultura é incipiente, basta atentar para o fato
indiscutível hoje de que a primeira escola primária pública no Rio
Grande do Sui data de 1770, por ato do então governador da Província
Manoel Jorge Gomes de Sepúlveda, sendo o primeiro professor oficial-
mente nomeado para dirigi-la o Sr. Antônio José de Alencastre ou
Alencastro.
A primeira escola secundária, o «Liceu D. Afonso», surge em
Porto Alegre apenas em 1846. E a primeira escola superior foi a
Faculdade de Medicina, criada em 1890. A escola sempre foi a
semente das atividades culturais.
Desse primeiro núcleo de albores culturais, dessa aurora da cultura
gaúcha,m surgido as instituições culturais de hoje, disseminadas por
todo o Estado e que já começam a honrar o Brasil e o mundo. Os
centros culturais sul-rio-grandenses constituem hoje um conjunto de
instituições sociais que seo tornando cada dia mais consolidados,
tradicionais, portadores queo de específica função humana, doméstica,
destinados a assegurarem a coesão nacional e a continuidade e o amadu-
recimento de valores idiossincrásicos da terra dos pampas.
A cultura rio-grandense-do-sul no começo é uma mescla de cultura
indígena e dos colonizadores espanhóis, paulistas, alemães e italianos.
Dos indígenas praticamenteo ficou nada nos atuais costumes
fio-grandenses, porque quase tudo neles trazia o sinete da vida selva-
gem, repudiado pelos colonizadores.
Segundo o historiador gaúcho Walter Spalding, a primeira cultura
rio-grandense-do-sul foi essencialmente religiosa trazida pelos missio-
nários espanhóis, muito antes da entrada dos primeiros paulistas e
lusos. Diz textualmente o conhecido historiador: «Não foram os guer-
reiros os primeiros desvirginadores do solo rio-grandense, mas três
humildes roupetas, três jesuítas vindos do Rio da Prata, Roque Gonza-
les de Santa Cruz, Alfonso Rodriguez e João del Castillo que, com seu
sangue puro e generoso, fecundaram o solo gaúcho.. .»
Em 1727 estabelecem-se as primeiras estâncias luso-mamelucas na
região compreendida entre a Serra Geral, o Guaíba e o Mar. Em 1752
chegam ao Continente os primeiros «casais» vindos diretamente dos
Açores que iriam povoar as margens dos rios da bacia oriental do Estado.
Em 1824, a primeira leva germânica fixou-se nas margens do Rio dos
Sinos de onde se expandiria para o Oeste e para o Sui. Finalmente,
em 1875 chegaram a Nova Palmira, na então colônia mista de Santa
Maria de Soledade e em Conde d'Eu e D. Izabel a meia encosta da
Serra, os primeiros emigrantes italianos.
Os jesuítas procedentes do Rio da Prata foram incansáveis na
civilização dos indígenas espalhados sobretudo na região dos Povos
das Sete Missões. Ainda hoje, as ruínas deo Miguel atestam a
grandiosidade da obra missionária iniciada nas coxilhas gaúchas dos
atuais municípios de Santo Ângelo,o Nicolau,o Luis das Missões,
Paimeira das Missões,o Paulo das Missões, Campina das Missões,
Santo Antônio das Missões, Guarani das Missões, Roque Gonza]es,
CUJOS nomes perpetuam a obra pioneira.
Os paulistaso deixaram vestígios estáveis de cultura em solo
rlo-grandense- do-sul.
Os lusos deixaram-nos três heranças: o gosto pelo comércio, o
estilo arquitetônico peculiar a que sei chamar de «Estilo colonial
português» e o senso de Deus. «O colono português, escreve João
Belém na «História de Santa Maria»,o fazia questão de escola,
fazia questão de igreja. Daí os velhos templos coloniais de Viamão,
de Porto Alegre, de Rio Grande, de Rio Pardo e outros, hoje patri-
mônio histórico do Estado, a atestarem a índole predominantemente
religiosa dos primeiros habitantes lusos».
Inegavelmente, os alemães foram os mais completos civilizadores
do Rio Grande do Sui, deixando à posteridade abundante obra cultural,
intelectual e artística e monumentos vários ainda hoje admirados pelos
rio-grandenses-do-sul.
Segundo Klaus Becker, organizador da «Enciclopédia Rio-Gran-
dense» (5 volumes)» os alemães é que imprimiram impulso notável na
cultura sul-rio-grandense. Assim apenas para exemplificar, em 1924
existiam nada menos de que 229 sociedades de diferentes tipos: econô-
micas (cooperativas), recreativas, rurais, profissionais, caritativas,
culturais, como as de canto e música. Santa Cruz do Sui contava com
96 sociedades, a mais antiga das quais remontava a 1866; Venâncio
Aires, com 48; Porto Alegre, com 41 etc.
Boa parte da alegria de viver e da pujança cultural da olònia
teuta deve-se a estas sociedades, de maneira que ainda hoje o visitante
experimentado fàcilmente pode distinguir colonias como sociedades
outróra florescentes. Grande parte delas, especialmente as culturais,
cairam vítimas da segunda guerra mundial, que foi grande em destruir
mas incapaz de dar coisa melhor ou equivalente da destruída». Até
aqui o citado historiador gaúcho Klaus Becker.
Os italianos foram incansáveis no trabalho de desbravamento da
serra íngreme, no cultivo da terra e sobretudo na cultura religiosa que
traziam da península. Sempre tiveram suas folhas impressas que
circulavam de família em família e lhes levavam notícias dos emigrantes
e da mãe-pátria. O «Correio Rio-grandense», semanário que se publica
em Caxias do Sui, nasceu 61 anos atrás na antiga Vila hoje cidade de
Garibaldi como órgão da colonização italiana do Estado com o nome
de «Stafetta Rio-grandense». Os inúmeros santuários alinhados ao
longo do asfalto ou das estradas poeirentas da região colonial italiana.
os capiteis, demonstram o evidente espírito religioso das populações
procedentes da Itália. As cidades gaúchas onde prevalece a população
de descendência itálicao cidades marcadas pelo trabalho, pela religio-
sidade e pela cultura.o amostras dessa afirmação as cidades de
Caxias do Sui, a peróla das colônias, Bento Gonçalves, cuja renda per
capita alcança 800 dólares por habitante, Garibaldi, Farroupilha, Carlos
Barbosa, Veranópolis, Flores da Cunha, Getúlio Vargas, Antônio Prado
e outras, cujo pólo de desenvolvimento é Caxias do Sui com sua Univer-
sidade em pleno funcionamento e em plena expansão. A renda per
capita de Caxias do Sui, segundo o «Correio Rural», suplemento do
«Correio do Povo», é igual à deo Paulo (cidade), de Porto Alegre.
Dos quatro grupos de civilizadores, sobre cujas atividades se erguem
hoje as instituições culturais do Rio Grande do Sui, podemos afirmar
o que dizia Homem de Melo, na sua mensagem presidencial em 1868:
«Sinto-me penetrado da profunda reverência quando contemplo os resul-
tados maravilhosos do trabalho livre. Até pouco reinava aqui a solidão.
apenas povoada por feras. Hoje, este solo se transformou para sempre
ao domínio do homem civilizado, pelo esforço de um povo, no qual v
:
vem
a energia e a religião».
5 AS INSTITUIÇÕES CULTURAIS DA ATUALIDADE
NO RIO GRANDE DO SUL
O Rio Grande do Sui apresenta-se hoje como um Estado da Fe-
deração Brasileira de alto índice cultural, como se depreenderá da
exposição sucinta que faremos a seguir.
Para justificar a afirmação procuraremos assinalar o que existe nele
no concernente ao Ensino, às Bibliotecas, aos Museus, à Imprensa, à
Rádio, e à TV e a outros órgãos culturais.
ENSINO
No campo do ensino o Rio Grande do Sul possui uma rede encolar
das mais bem montadas do País. Nove Universidades instaladas, três
federais, três católicas e três Fundações constituem a cúpula cultural
gaúcha, no aspecto civil. No aspecto religioso, possui o Estado três
Seminários Maiores internacionais, respectivamente, em Viamão,o
Leopoldo e Santa Maria, para servirem à comunidade católica e, igual-
mente, a Faculdade de Teologia evangélica emo Leopoldo para as
comunidades cristãs do Estado.
No setor universitário gaúcho, a Universidade Federal do Rio
Grande do Sui, a mais antiga, é constituída pelas Faculdades de Medi-
cina, Farmácia e Bioquímica, Odontologia, Engenharia, Arquitetura,
Belas Artes, Economia, Direito, Filosofia, Agronomia, Veterinária.
Geologia, Educação Física, Enfermagem e pelos Institutos de Ciências
Naturais, Química, Física e Matemática, Pesquisas Hidráulicas (o mais
bem equipado da América Latina) e Microbiologia. Mantém uma
emissora de radiodifusão com programação diária. Recentemente eut! ou
em funcionamento a primeira etapa do seu grande Centro Agronômico
localizado a 60 km de Pòrto Alegre na BR. 290, em área de 1.560 Ha.
Trata-se da Fazenda de criação de Bovinos, Ovinos, Equinos,
Suinos etc, em cujas instalações mestres e estudantes entregam-se às
mais variadas pesquisas do ramo. No momento a Universidade Federal
do Rio Grande do Sul se empenha em concluir seu majestoso e modernis-
simo Hospital de Clínicas. Dela já se desmembraram as duas outras
Universidades Federais do Estado, a de Santa Maria e a de Pelotas.
A Universidade Federal de Santa Maria destaca-se no conjunto
universitário brasileiro por ter sido ai* Universidade federal situada
fora das capitais estaduais, no interior do Estado. Se bem que nova,
ela dispõe de vasta extensão de 600 Ha, com bem planejada cidade
universitária que, quando completa, contará com 63 prédios, cuja terça
parte está começada e em parte acabada. Foi pioneira no País na
abertura do «campus avançado» de Roraima, na campanha de integração
amazônica. Mantém pràticamente todos os cursos superiores das
Universidades brasileiras.
A Universidade Federal de Pelotas recentemente criada está às
voltas no presente momento com sua organização como entidade autô-
noma.
As três Universidades federais congregam uma população escolar
de 15.000 alunos atendidos por um corpo docente de aproximadamente
3.000 Professores.
O segundo grupo de Universidades gaúchas é formado pelas três
Universidades Católicas, a Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, a Universidade Católica Sul-Rio-grandense de Pelotas
e a Unisinos, ou Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
A Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sui iniciou
suas atividades com a fundação da Faculdade de Ciências Políticas e
Econômicas em 1931. Foi reconhecida pelo Decreto n
9
25.794 de
9/11/48. O título de Pontifícia foi-lhe outorgado por S.S. o Papa
Pio XII a l
9
de novembro de 1950. É mantida pela congregação dos
Irmãos Maristas.
Integram a Universidade as seguintes Faculdades e Institutos: Fa-
culdade de Ciências Políticas e Econômicas, Faculdade de Educação,
Faculdade de Serviço Social, Faculdade de Direito, Faculdade de Odon-
tologia, Escola Politécnica, com os cursos de Engenheiros civis, eletre-
cistas, mecânicos, eletrônicos, de Operação (civil, Edificações, Industrial
e Mecânica), Faculdade de Meios de Comunicação Social com os Cursos
de Jornalismo, Propaganda, Rádio, Televisão, Relações Públicas e Cine-
ma, Instituto de Ciências Exatas e Naturais, Faculdade de Zootècnica
de Uruguaiana, esta última como agregada. Além das Faculdades
acima, a PUCRS mantém ainda os Institutos de Psicologia, de Letras
e Artes, de Filosofia e Ciências Humanas, de Estudos Sociais Políticos
e Econômicos, de Cultura Hispânica, de Matemática e Física, de Cirur-
gia Buco-Facial, de Português para Estrangeiros, de Teologia e Ciências
Religiosas, Seminário de Estudos Germânicos, Centro de Estudos
Econômicos e Financeiros, Centros de Pesquisas e Estudos Audio-vi-
suais e de Estudos da Língua Portuguesa.
A Cidade Universitária da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sui ocupa uma área de 40 Ha. Junto a cada edifício
há locais de estacionamento, jardins, praças, constituindo o conjunto o
«campus> da Universidade. Já estão construídos os prédios da Odonto-
logia, da Engenharia, do Direito, da Faculdade de Ciências Políticas e
Econômicas, do Laboratório de Física e Eletricidade, da Reitoria, da
Tecnologia Mecânica, do Processamento de Dados, do Restaurante e
residência de universitários, bem como os prédios auxiliares da Tipo-
grafia, da Marcenaria, e do Almoxarifado geral, com uma área global
superior a 50.000 m
2
. Estão em construção o Salão de Atos, o Labora-
tório de Ciências Biológicas e o Laboratório de Química.
A Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sui já visitou
o Alto Amazonas, na Região de Uaupés, onde vai instalar seu «Campus»
avançado a partir de 1970. Para 1970 estão aprovados também a
abertura e o funcionamento da Faculdade de Medicina, o acabamento
dos atuais prédios em construção, o início das obras da Biblioteca Central
e a ampliação da Faculdade de Direito.
A Universidade Sul-Rio-grandense de Pelotas foi constituída no
início pela fusão das Faculdades de Filosofia e Economia de Pelotas,
das Faculdades de Direito, Filosofia de Rio Grande e as Faculdades
de Filosofia e de Ciências Econômicas de Bagé. Posteriormente ela
abriu em Pelotas mesmo as Faculades de Medicina e de Engenharia.
E ultimamente obteve autorização de funcionamento da Faculdade de
Direito de Bagé. com a criação da Universidade do Rio Grande, as
Faculdades de Direito e de Filosofia dessa cidade passaram a integrar
a Fundação Universidade de Rio Grande.
A Unisinos, com sede em Sao Leopoldo, é a 3* Universidade Cató-
lica gaúcha. Vai instalar-se nos prédios em que funcionou o Colégio
Conceição deo Leopoldo. Depois de funcionar como Colégio secun-
dário de 1876 a 1912, D. João Becker, com a anuência dos Jesuítas a
quem o colégio pertencia, instalou nele o Seminário Maior da Província
Eclesiástica do Rio Grande do Sui. Tendo-se o mesmo Seminário
transferido para Viamão, começaram a funcionar nele as Faculdades
de Filosofia, Direito, Economia, Teologia e, em 1970 a Engenharia de
Operação, que constituem hoje a novel UNISINOS.
As três Universidades Católicas do Rio Grande do Sui somam
aproximadamente 12.000 alunos, 7.500 dos quais integram o corpo
discente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sui.
O terceiro grupo de Universidades gaúchas é composto de Funda-
ções Universitárias localizadas em Passo Fundo, Caxias do Sul e Rio
Grande, reunindo, juntas pouco mais de 6.000 alunos.
Além das nove Universidades oficialmente organizadas, existem no
Estado numerosas Faculdades isoladas em regime de incorporadas,
agregadas ou de extensão das mesmas Universidades, nas cidades de
Livramento, Uruguaiana, Alegrete, Bagé, Viamão, Porto Alegre, Lajea-
do, Bento Gonçalves, Santa Cruz do Sui, Cachoeira do Sul, Cruz Alta,
Ijuí, Santo Ângelo, Erechim, Palmeira das Missões, Novo Hamburgo e
Santa Rosa.
O Ensino Superior tomou literalmente conta do Rio Grande do Sui
que conta hoje mais de 35.000 universitários para uma população de
6.700.000 habitantes, alcançando a percentagem de 53 por 10.000
habitantes quando a média brasileira atinge de 42 a 43 por 10.000.
O Ensino Médio e o Primário pràticamente cobrem todo o território
gaúcho, de tal forma que nos dias que correm tôda criança em idade
escolar pode freqüentar a escola e adquirir os conhecimentos suficientes
para ingressar com confiança e segurança na convivência da comunidade
brasileira.
BIBLIOTECAS E MUSEUS
As Bibliotecas e Museuso índice de cultura em marcha.o
como que viveiros de cultura encontrados nos patamares da ascensão
humana por todos aquêles que os freqüentam com assiduidade. No Rio
Grande do Sui é promissor o desenvolvimento das bibliotecas,o ¿.endo
o encorajador o dos Museus. Existem bibliotecas instaladas em tôdas
as comunas gaúchas, quer como bibliotecas municipais, quer como biblio-
tecas organizadas pelos estabelecimentos de ensino, pelas paróquias e
pelos clubes recreativos.
As principais bibliotecas da capital gaúchao a Biblioteca Pública
do Estado com 80.000 volumes catalogados, a da Pontifícia Universi-
dade Católica do Rio Grande do Sui com 70.000 volumes, a do Colégio
Anchieta com 21.000 volumes, a da Faculdade de Direito da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sui com 18.000 volumes, a da Secretaria
da Agricultura com 13.000 volumes e dezenas de outras menores em
instituições públicas ou particulares. No interior do Estado a biblioteca
mais notável é a da Cidade de Rio Grande, Biblioteca Pública Municipal,
com aproximadamente 100.000 volumes.
Entre os museus do Rio Grande do Sui destaca-se o Museu Júlio
de Castilhos, criado em 1903, com o primitivo nome de «Museu do Esta-
do do Rio Grande do Sui». Em 1907 recebeu a denominação de Júlio
de Castilhos. Por leis e decretos sucessivos da Secretaria de Educação
e Cultura foi o Museu desmembrado de suas Seções de História
Natural, Arte Moderna, e Arquivo Histórico, passando cada um dêles
a órgão independente subordinado à Divisão de Cultura. O Museu
Júlio de Castilhos ficou exclusivamente com a parte referente à História.
Encontram-se nele reminiscências históricas de épocas remotíssimas,
tais como peças indígenas de centenas de anos e objetos dos primórdios
da História do Rio Grande do Sui. Está instalado na própria casa
aonde morou o grande homem público gaúcho Júlio de Castilhos. Enci-
mando o portal vê-se a data de construção do velho solar: 1896.
À entrada encontram-se quadros com motivos da vida tradicional do
Rio Grande do Sui, magníficas imagens procedentes das missões jesuí-
ticas e velhos sinos. Subindo a escadaria da entrada, vêem-se telas
representando igrejas, solares antigos, ruas e edifícios de Porto Alegre.
A sala de artefatos indígenas contém peças preciosas. O museu de
armas é um dos maiores do Brasil, o que se explica por ter sido o Rio
Grande do Sui campo de lutas bélicas freqüentes. Há ainda a rica
coleção de leques e objetos do século passado, instrumentos de torturas
dos escravos, bem como uma coleção de miniaturas de autoria de Ovidio
Magalhães, mostrando aspectos da vida campestre.
Outros Museus de Porto Alegre: O Museu de Arte do Rio Grande
do Sui situado nos altos do Teatroo Pedro, na praça da Matriz com
exposição permanente de Artes Plásticas. O Museu Riograndense de
Ciências Naturais, localizado na praça D. Feliciano. O Museu de
Ciências da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sui.
No interior do Estado salienta-se em primeiríssimo lugar o Museu
Oceanogràfico da cidade de Rio Grande; o Museu de Paleontologia em
S. Vitória do Palmar; o Museu Maurício Cardoso, de Petrografia, em
Soledade; o Museu Geral, em Venâncio Aires; o Museu D. Diogo de
Souza, em Bagé, o Museu das Missões, em S. Miguel; o Museu de Rio
Pardo, em Rio Pardo; o Museu Farroupilha, em Piratini; o Museu David
Canabarro, em Livramento; o Museu João Pedro Nunes, em S. Gabriel;
o Museu da União dos Caixeiros Viajantes, de S. Maria, e outros.
IMPRENSA, RÁDIO E TV
«A cultura no sentido do conhecimento completo dos fatos contem-
poráneos, com seu «background» histórico, sua localização geográfica,
suas correlações políticas, econômicas, sociais e religiosas e a projeção de
suas conseqüências no futuro» está tôda no Jornal que passa a ser cada
vez mais um instrumento de Cultura do que mera fonte de informações.
O Rio Grande do Sui pode gloriar-se de sua Imprensa, constituída
de Jornais, de Reristas, da TV, e do Rádio.
Além de possuir três cursos de Jornalismo, na Pontifícia Universi-
dade Católica do Rio Grande do Sui, na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul e Universidade Sul-Riograndense de Pelotas, detém ima
rede de publicações e de meios de comunicação praticamente cobrindo
todo o Estado e o próprio Sul de Santa Catarina.
Circulam em Porto Alegre três matutinos: «Correio do Povo»,
«Diário de Notícias» e «Folha da Manhã» e três vespertinos: «Zero
Hora», «Folha da Tarde» e «Jornal do Comércio».
O primeiro periódico Pôrto-Alegrense surgiu a l
9
de junho de 1827
«O Diário de Porto Alegre», órgão do Governo estadual, que circulou
até 1828. Era impresso na tipografia pôrto-alegrense que, segundo
alguns historiadores, foi a primeira oficina gráfica do Estado. Em 1828
apareceu um jornal político e literário «O Constitucional Rio-Gran-
dense». Em janeiro de 1936 foi fundada a Associação Rio-Grandense
de Imprensa que desenvolve grandes atividades culturais.
Os dois jornais de maior penetração no Estado, no momento, paie-
cem ser o «Correio do Povo» e o «Diário de Notícias». O primeiro
publica três suplementos semanais, um às sextas-feiras, o «Correio
Rural».o vinte páginas de doutrinação rural sadia e permanente,
que leva aos agropecuaristas os conhecimentos, as notícias e as técnicas
rurais de homens especializados no assunto. É uma verdadeira enciclo-
pédia rural que o «Correio Rural» oferece aos seus assinantes ou simples-
mente aos seus leitores.
O segundo suplemento, em cadernos especiais, traz uma série de
artigos culturais variadíssimos para todos os sabores do público ledor
rio-grandense.
O «Diário de Notícias», além dos artigos de fundo, diários, ipresen-
ta aos domingos cadernos de feição literária, artística, científica, peda-
gógica, social, religiosa que satisfazem plenamente os gostos de seus
numerosos leitores.
como revistas de cunho cultural, editam-se, em Porto Alegre, princi-
palmente a «Revista do Globo», quinzenário da Editora Globo e que
circula em todo o País. Também se edita a «Revista do Ensino», uma
das mais completas do País no setor do Ensino Primário.
A Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sui contribui
também para a difusão da cultura através das publicações «Anuário»,
«Veritas», revista trimestral, «Letras de Hoje» e «Jornal da PUC».
O Colegio Anchieta publica «O Eco» revista juvenil de âmbito
nacional.
Entre os varios estabelecimentos gráficos e editoriais destacam-se a
«Editora Globo», a «Tipografia Editora Champagnat», a «Sulina», a
«Selbach», a «Nação», e, outras.
As principais Radiodifusoras sao a Farroupilha, a Guaíba, a Difu-
sora, a Triunfo, a Cultura, a Itaí, a Metrópole, a Pampa, a Pòrto
Alegre Continental, a Princesa, a Educacional da Pontifícia Universi-
dade Católica e a Rádio da Universidade Federal do Rio Grande do
Sui.
Três estações de TV estão no ar diàriamente a Piratini
Canal 5, com mais de 30 estações retransmissoras abrangendo ç.rande
parte do Rio Grande do Sul e parte de Santa Catarina; a TV Gaúcha
Canal 12, que também está instalando estações retransmissoras de
longo alcance, a TV Difusora Canal 10, ultimamente entrada em
funcionamento, já estando igualmente em operação as TVs. de Caxias
do Sul e de Erechim.
No interior do Estado, elevada porcentagem de Municípios mantém
seus jornais próprios, suas Editoras e tipografias, como S. Maria, Pelo-
tas, Rio Grande, Novo Hamburgo, Uruguaiana, Livramento, Passo
Fundo, Santa Cruz do Sui, Cachoeira do Sui, Bagé, Canoas, Viamão.
O que é mais notável é a numerosa rede de Rádios estabelecidos em
lodo o Estado.
Porto Alegre dispõe ainda do maior e mais moderno teatro ao ar
livre da América Latina que é o Auditório «Araújo Viana», com capaci-
dade para 4.500 pessoas e instalado no centro do Parque Farroupilha.
Na sua construção foi executado um grande aterro para atender à curva
de visibilidade da platéia e ergueram-se muros laterais de isolamento
que atuam como painéis acústicos e ao mesmo tempo definem e deli-
mitam as entradas.
uma torre de 24 metros de altura, no eixo da avenida interna.
sustenta um refletor móvel, visível em tôda a cidade. Junto à concha
acústica, encontram-se sala de ensaio para música sinfônica e ballet.
sala e cenários, sala de ensaio de teatro, camarins individuais, salas
para música e de arte dramática.
Outros cenáculos da Cultura Rio-grandense-do-sulo as Acade-
mias Literárias Masculina e Feminina que funcionam em Porto Alegre,
o Instituto Histórico e Geográfico, o Conselho Estadual de Educação,
o Conselho Estadual de Cultura e uma dezena de Academias de Letras
espalhadas pelo Interior, como em Uruguaiana, Passo Fundo e outras
cidades.
As Academias literáriaso a continuação do primeiro núcleo lite-
rário gaúcho, o célebre «Partenon Literário», fundado em 1868 com
finalidades específicas — o cultivo das letras, a abolição da escraavatura
e a instauração da República no Brasil. Sua duração foi apenas de
20 anos, desaparecendo com a morte de seus entusiastas fundadores
Apolinário Porto Alegre, Caldre Fião e outros. O nome «Partenon»
continuou ligado ao bairro onde a Academia se instalara e onde surge
o centro de Cultura de que se ufanam o Rio Grande do Sul e o Brasil
que é a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sui.
Existe ainda «A Estância da Poesia Crioula», fomento da literatura
gauchesca, mantendo a Editora Globo a Secção «Província» para a publi-
cação de obras portadoras do espírito, do vocabulário, das lendas, do
folclore e tradições do Estado.
Um outro aspecto típico da Cultura e das Instituições rio-granden-
ses-do-sul é a organização dos Centros de Tradições Gaúchas, que visam
perpetuar os costumes dos primeiros povoadores do Estado. Antiga-
mente, as festas populares que se realizavam eram as «Cavalhadas».
Tais festas, porém, por longos anos, ficaram no esquecimento. Feliz-
mente, agora, com o Centro de Tradições Gaúchas voltaram a ser prati-
cadas. Cada Centro de Tradição Gaúcha recebe nome próprio, lem-
brando alguma tradição local ou o nome de um gaúcho célebre na
localidade, como sejam: «O Rancho dos Tropeiros» de Ibirubá, o CTG
«Fogão Gaúcho» de Taquara, o CTG «Sinuelo» de Canguçu, o CTG
«Vaquéanos da Fronteira» de Alegrete, o CTG «Os Minuanos» de
Uruguaiana, etc. As reuniões se realizam na sede social que é o
«Galpão» eo presididas pelo «Patrão», o presidente, ajudado pelos
«Capatazes». Fazem-lhe corte as «Prendas» e o peões. Nas reuniões
domina o estilo sulino no linguajar gauchesco, na indumentária obriga-
tória que é a bombacha, no chapéu de aba larga, quebrado na pinha,
na bota e espora, no facão na cinta, no cigarro de palha. A gaita,
tocada com garbo e galhardia, dá o som festivo às reuniões gauchescas.
Outro aspecto da Cultura Gaúcha é o número expressivo de
Monumentos que enfeitam as cidades do Estado. Monumentos dedi-
cados a cidadãos notáveis ou simplesmente erigidos para conservar o
tradicionalismo dos Pampas. Assim em Uruguaiana, ao lado de vinte e
dois monumentos existentes na cidade, alteia-se dentro de um piquete o
«Monumento ao Gaúcho», de cuia nao direita e de chaleira na
esquerda, de bota e espora, pala nos ombros e laço na cintura. Em
Porto Alegre, quase em frente ao Aeroporto Salgado Filho, ergue-se
outro Monumento ao Gaúcho, mas em posição de acolher os visitantes
que aportam à cidade.
Emo Leopoldo, o Monumento ao Imigrante, comemorando a
chegada dos colonos alemães.
Em Caxias do Sui o «Monumento ao Imigrante» lembra os feitos
dos primeiros italianos chegados ao Estado. Na cidade de Rio Grande
existe um monumento sui generis. É o «Monumento ao Moleque»,
mas ao moleque que é o menino com bodoque, bolsos cheios de pedrinhas
para caçar passarinhos. Está representado em posição de atirador,
mirando para um passarinho com o bodoque estendido.
Embora incompleto, já vai longe este trabalho sobre as instituições
Culturais do Rio Grande do Sui. Vou encerrar o tema convidando
os leitores para uma visita ao meu Estado onde serão recebidos no CTG
«Porteira do Rio Grande», da cidade de Vacaria, e convidados a assistir
ao «Rodeio Crioulo» que constitui uma espécie de Aperitivo do apetitoso
banquete espiritual gauchesco queo saborear visitando suas Institui-
ções Culturais.
BIBLIOGRAFIA
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Centenário da Rev. Farroupilha. Ed. Globo 1936 2 vols.
2. Becker, Klaus Enciclopédia Riograndense (5 vols.) 1958 Ed. La
Salle Canoas.
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dional- 1950 Tipografia Champagnat.
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PUCRGS 1963.
8. Pimentel, Fortunato Aspectos Gerais de Porto Alegre 1945 Porto
Alegre.
9. "Provincia deo Pedro" Revista colaboradores diversos vols. 3 e 15.
10. Ramirez, Hugo "Os Primordios da Instrução Pública no RGS Art. na
"Veritas", n' 54 junho de 1969.
11. Spalding, Walter artigos diversos em revistas e jornais.
12. Terchsuer, Carlos História do RGS. ( 3 vols. ) .
O TEMPO como HORIZONTE E CONTEÚDO
DO SER
ALMIR DE ANDRADE
O grande mèrito da filosofia existencialista foi haver fixado a estreita
vinculação entre as idéias de ser e de rempo. como filosofia do nada
e da morte, calcada na preocupação e na angústia e voltada para o
que Deidegger denomina visão antecipadora do futuro, o existencia-
lismo é uma experiência frustrada de racionalização do irracionalizável.
Kierkegaard foi mais coerente, porque compreendeu que sua angústia
jamais se aplacaria no plano racional: e o mergulho kierkegardiano
no abismo do nada foi mera passagem subterrânea pelas trevas do
mundo em busca de um outro ser que se revelaria capaz,o de «intro-
duzir o nada no mundo», como o ser-fantasma de Sartre, mas de criar
o mundo do nada, como o Ser-unidade e o Ser-eterno de Deus.
Nos limites finitos da inteligência do homem,o há saída racional
para essa irremediável finitude e contingência que o ameaça a todo
instante com o nada da morte. Conhecemos e explicamos a vida; tôda
ciência humana è ciência da vida. Nas fronteiras da morte a razão se
detém: estamos agora diante de verdadeira e autêntica transcendência,
onde a lógicao penetra e a consciência das nossas próprias limitações
nos impõe silêncio e humildade.
O grande saldo positivo do existencialismoo está, pois, nas
suas investigações como filosofia do nada e da morte, porém como
filosofia do ser e da existência. E nesse terreno se destaca, com es-
pecial significação, a doutrina de Heidegger, graças à vinculação, que
estabeleceu, entre os conceitos fundamentais de ser e de tempo. Procla-
mou-a no próprio título da sua obra capital, O ser e o Nada, e na obser-
vação introdutória da mesma, onde afirma cie seu principal objetivo é,
o só responder à pergunta relativa à significação do ser, mas também
dar, ainda que provisoriamente, uma interpretação do tempo como
horizonte possível de tôda compreensão dele. Esclarece também, nou-
tra passagem, que, quando se levanta a questão do sentido do ser, é
preciso demonstrar que e como a problemática central de tôda a onto-
logia deita raízes no fenômeno do tempe, corretamente examinado
e explicado. A que tempo, todavia, pretende êle referir-se? Que é
o tempo para Heidegger e a filosofia existencialista em geral? E em que
medida ou de que maneira pode o tempo constituir-se em horizonte do ser?
Para bem compreendê-lo, temos que remontar a Husserl e à sua
distinção entre o tempo fenomenològico, que é o tempo interior da
consciência, inseparável das nossas vivências, e o tempo cósmico, que
é o tempo objetivo e mensurável da ciência e do mundo físico. Só
o primeiro se manifestaria como duração e como "horizonte" de uma
vivência, ou de um conjunto de vivências. Tôda vivência real é
necessariamente uma vivência que dura e que, como tal, se insere num
interinino continuum de durações, ou, como diz Husserl, num continuo
denso, e tem obrigatoriamente um horizonte de tempo que é infinito
e denso por todos os lados. Isto significa que tôda vivência pertence
a uma corrente infinita de vivências, onde uma vivência individual
a vivência de uma alegria, por exemplo pode começar e acabar, pondo
fim à sua duração, mas a corrente mesma das vivências é infinita e
consubstancia aquêle horizonte, eminentemente temporal, onde se en-
cerram as suas possibilidades de expansão, as suas «possibilidades
predeterminadas» (vorgezeichnete Potentialitãten), ou seja, tudo aquilo
que o ser deseja, pretende, aspira ou possui a capacidade de vir a ser;
e èsse horizonte de tôda vivência muda com as mudanças do seu complexo
de consciência e com as mudanças de fase do seu próprio fluxo.
A idéia husserliana de horizonte, como predeterminação das pos-
sibilidades do ser, iria influir decisivamente em todos os filósofos exis-
tencialistas, sobretudo em Heidegger. E está indissolùvelmente ligada
à idèa de temporalidade: é predeterminação daquelas possibilidades
no tempo. Mais exatamente: é um devir, que se antecipa no interior
da consciência, que é vivido como poder-ser ou aspiração de vir a ser
e que pode ouo realizar-se, total ou parcialmente. De início, porém,
Heidegger despiu a temporalidade do caráter de infinitude que lhe atri-
buíra Husserl, quando a descreveu na duração do fluxo contínuo das
vivências: o horizonte heideggeriano do tempo é sempre finito, comò
finitaso tôdas as possibilidades humanas. Mesmo quando a cons-
ciência transcende de si para compreender algo fora de si, dá um passo
dentro da finitude e o horizonte das suas possibilidades é também finito.
Até onde e por onde se estende, contudo, esse horizonte? Que vem
a ser o tempo, que lhe serve de suporte? E que é ser, que lhe fornece
o conteúdo?
Para responder a tais interrogações, Heidegger ressuscitou a velha
discriminação, que fizera a filosofia grega, entre o ser propriamente dito,
como «algo que é», êinai e o ente, no sentido de ser-existente, ou ser
"que se encontra-aí" e pode ser percebido em algum instante e em
algum lugar, fó-on discriminação que se exprime respectivamente, em
latim por essere e ens, em francês por l'être e l'étant, e em alemão por
das Sein e das Seiende. Tomado na sua universalidade, como algo que
é. das Sein, o ser constitui realidade ontológica; ao passo que o ente,
das Seiende. considerado como ser concreto, ser-existente, é o que
Heidegger denomina realidade "ôntica". Havendo uma infinidade
de entes, ou de seres-existentes e concretos, temos que eleger um
dentre eles para responder a tôdas as perguntas concernentes à realida-
de do ser. E a escolha só poderá recair no ente que "somoss
mesmos" e que representa o ser-aí, ou o estar-no-mundo do homem: o
Dasein. O ser, Sein, é o ser de um ente, Seiende, especialmente desse
ente que vive no mundo, arremessado-aí que é o Desein, o ser-existente
do homem, o ser-aí. O ser-aí se compreende sempre a partir da exis-
tência, isto é, das suas possibilidades de ser ou não-ser êle próprio:
quando consegue sê-lo, assume atitude autêntica; quando não, sua atitude
é inautèntica. Ente lançado no mundo sem escolha, o ser-aí se interroga
sobre o seu próprio ser. Pela angústia que sente deo poder ser o
que aspira angústia que se agrava quando percebe que o seu ser
caminha inexoravelmente para a morte, é um ser-para-a-morte, Sein-
zum-Tode, e pela constante preocupação. Sorge, com que see a
abrir no mundo os seus próprios caminhos, acaba compreendendo que
o ente do seu ser-no-mundo jamais consegue ser todo o ser do seu ser.
Vive, por isso, projetando-se no futuro, em busca das possibilidades
próprias de vir a ser algo. E o tempo é a estrutura mesma dessas
possibilidades, é o horizonte dentro do qual elas se expandem, embora
nunca cheguem à meta final, que seria a plenitude ontológica do ser na
faticidade ôntica do ente, porque o horizonte último e intransponível,
para o qual se encaminham, mergulha no nada da morte. Quanto
mais próximas estão as possibilidades ônticas do ente vir a ser algo, mais
longínquas se acham as possibilidades ontológicas dele vir a ser o que
realmente é e de viver a sua existência autêntica.
Nessa constante angústia e preocupação de vir a ser o que aspira,
a existência do Dasein se desenrola como história. É um ente que
vive no encalço das possibilidades de ser e que, assim, cria a sua própria
história e, historicamente, vive a sua própria temporalidade. Originària-
mente, esta é o fenômeno característico do Dasein: consiste em "sair de
si para... " viver o passado, o presente e o futuro. E a ação de
«sair de si para. . .» se exprime, etimològicamente, pelo vocábulo «êxtase».
Assim, como expressões dessa e^rreríorfzação de si mesmo, efetuada pelo
ser-aí, passado, presente e futuro constituem cs três êxtases da tempo-
ralidade. Discriminando-se o papel de cada um dos três, o principal
acento deve recair no futuro, pois a essência do ente que somos nós,
a essência do Dasein, é projeção para o futuro: é o ente que se projeta
no horizonte da temporalidade, buscando angustiosamente, e às vêzes
desesperadamente, o próprio devir, na autenticidade do ser que é o seu
ser aindao realizado, porque foi lançado no mundo e nèle decaiu, ao
ser privado de existência autêntica e compelido a viver inautènticamente
na banalidade e no terra-a-terra do quotidiano. A temporalidade ex-
prime conjuntamente essa queda, Verfalien, e o angustioso cuidado de
viver sempre a projetar-se no futuro, sem nunca atingir a plenitude do
ser; pois na realidade quotidiana, este ser-no-mundo, este ente que é o
Dasein só logra projetar no futuro o seu próprio passado e vir a ser
o que sempre foi, isto é, o constante não-ser do seu próprio ser.
Incessantemente voltado para as suas possibilidades, o comporta-
mento do ser-aí é sempre "antecipante" quando se projeta no futuro;
e, ao exteriorizar-se. é fundamentalmente temporalização. Através dos
três êxtases da temporalidade, passado, presente e futuro, o ser se tem-
poraliza existindo, na mesma medida em que existe temporalizándose.
Mais ainda. Ao temporalizar-se. êle temporaliza o próprio mundo
o qual existe,o por si ou em si, mas somente como temporaliazção do
Dasein, quando este sai fora de si e se exterioriza pelos três êxtases
temporais.
A temporalização do mundo é ato de transcendência, por cujo
intermédio o ente do homem se faz intramundano e, dessa maneira, se
torna objetivo, desdobrando a multiplicidade dos seus aspectos e pos-
sibilidades na unidade estrutural da temporalidade mesma, enquanto
horizonte dessas possibilidades. Por isso, a existência do mundo é sempre
relativa à existência do Dasein: o mundo é ùnicamente aquilo que o
Dasein projeta diante de si. no horizonte temporal do seu ser.o
haveria mundo seo houvesse o Dasein. E Heidegger resume desta
maneira a sua idéia do tempo: "O tempo é, originàriamente, a tempora-
lização da temporalidade, mediante a qual se constitui a estrutura da
preocupação; a temporalidade é essencialmente extática e se temporaliza
primordialmente a partir do futuro; e, originàriamente também, o tempo
é finito.
Sabemo-lo finito porque o Dasein ao projetar-se no futuro e anteci-
par as suas possibilidades de ser, topa com a morte e se compenetra
da sua pròpria finitude. Neste momento, o Dasein alcança a tempora-
lidade autèntica, enquanto projeção ou antecipação do futuro, já que
«o fenômeno primário da originária e autêntica temporalidade é o
futuro. E neste mesmo instante compreende também que até então
estiverà mergulhado na banalidade e no erro de urna temporalidade
inautèntica, que é a do senso comum, para o qual vivemos "no" tempo,
como se fora o tempo algo independente de nós, dividido entre passado,
presente e futuro e composto de instantes que se sucedem uns aos
outros. Esta é a forma grosseira e mundana de interpretar a tempo-
ralidade. No fundo, há uma só estrutura da temporalidade autêntica,
onde os três êxtases passado, presente e futurooo propria-
mente fases "do tempo'', considerado em si e por si, porém exterioriza-
ções do Dasein, que, pelo simples fato de existir como projeto-de-ser
arremessado para o futuro, se temporaliza a si mesmo temporalizando
o mundo.
Na obra de Sartre, a concepção da temporalidade é essencialmente
a mesma de Heidegger, com diferenças de detalhes: o tempo se revela
quando o ser-para-si se temporaliza e temporaliza o mundo. Em
correspondência com a distinção heideggeriana entre temporalidade ori-
ginária ou autêntica e temporalidade mundana ou inautèntica, surge aqui
a discriminação entre a temporalidade originária da própria consciência
que dura e a temporalidade psíquica (a do senso comum), expressa pela
consciência de durar. O tempoo existe por si; é o ser-para-si da
consciência humana que se temporaliza existindo. Tãopouco existe
o "instante", pois o presente, que nos permitiria surpreendê-lo, é uma
fuga perpétua em face do ser. A principal divergência de Sartre com
relação ao existencialismo alemão é que, embora aceite a noção e a
terminologia dos «três êxtases da temporalidade», passado, presente
e futuro, faz recair o acento mais forte,o no futuro, como Heidegger,
mas no presente. A temporalidade está no ser-para-si da consciência,
enquanto presença a si e por si; o meu pessado jáo sou eu, pertence
ao ser-em-si, ao être-ensoi do que fui
Essa focalização existencialista do problema da temporalidade,
com a transposição dele para o plano ontològico, corno problema-
sico do próprio ser enquanto ser, representa, sem a menor dúvida,
importante e decisivo progresso o mais significativo dos que se efe-
tuaram depois de Bergson para a reabilitação do tempo e sua valo-
rização como objeto de pesquisa filosófica. Realmente, verificamos a
cada passo e esta é a tese fundamental, que será aqui defendida
até o fim que os problemas do ser e do tempo estão indissoluvel-
mente vinculados no plano ontològico. Ê impossível conceber o ser in-
dependente do tempo, ou o tempo independente do ser. Todo ser exis-
te temporalizando-se, ou melhor antecipando a terminologia que
será firmada mais adiante todo ser existe no seu tempo-de-ser e
possui um tempo-de-ser que lhe é próprio,o apenas quantitativa,
mas qualitativamente. Havero só proclamado isso com energia, mas
também tê-lo enriquecido com minuciosa análise existencial da estru-
turação ontológica dessai vinculação e da sua expressão como vivên-
cia — é o maior mérito da filosofia existencialista e o seu incontes-
tável título de desbastadora de novos caminhos. Quer as obras de
existencialistas de orientação autônoma, como Gabriel Marcel, Jas-
pers, Louis Lavelle, Merleau-Ponty, Abbagnano, quer sobretudo as
de Heidegger e Sartre, onde se descobre nítida linha de filiação, cons-
tituem valiosas contribuições, no terreno dessa análise, para o esclare-
cimento de problemas que dizem respeito às mais profundas interpe-
lações que a consciência humana constantemente faz a si mesma e
ao mundo.
Todo ser existe temporalizando-se e o tempo é «tecido» na¡ mais
profunda essência do ser: eis uma verdade que, como se verá, trans-
cende os limites de qualquer filosofia e tem alcance universal. Infe-
lizmente, o existencialismoo esclareceu e definiu esse problema com
a mesma firmeza e fecundidade com que o formulou. Filiando-se ao
idealismo de Husserl e ao critério de buscar a significação das coisas
na experiência pura da consciência e nas evidências ditadas pelo eu
transcendental propôs-se o existencialismo explicar o ser em geral
pelo ser-existente do homem e a temporalidade como vivência do ser
do homem esquecendo, ouo percebendo, que o mundo exterior, e
cada um dos seus objetos de per si, também possui um tempo-de-ser que
lhe é próprio e se temporaliza, na mesma medida que o ser do homem.
Apreciando o pensamento de Heidegger, observa De Waelhens
que a tese central de tôda a sua filosofia reside na afirmativa essen-
cial de que «a estrutura da existência humana é que determina e con-
m tôdas as questões e tôdas as respostas que possa o homem legi-
timamente formular». No mesmo sentido se pronuncia Hoberg: «Con-
siderar o ser do homem como o ser em geral é a tese fundamental,
com que a filosofia heideggeriana se firma e se destrói».
Ambos os conceitos se podem aplicar, com igual propriedade, à
doutrina de Sartre. Um e outro apresentam pormenorizada visão sub-
jetiva do mundo.o importa que ambos pelejem por mudar-lhe esse
caráter, postulando que o mundo real se torna objetivoi no momento
em que o ser consciente do homem se temporaliza temporalizando-o;
isto é como, num passe de mágica, extrair a pomba do saco de um pres-
tidigitador. Ou então poderíamos batizá-lo com as mesmas palavras
inadequadamente usadas por Sartre para qualificar a tese de Bergson
sobre a temporalidade do passado e da memória: é mera figura de
retórica.
Quando Sartre, levando a tese de Heidegger às últimas conse-
qüências do seu desenvolvimento dialético, afirma que o presente é
aquilo que não é e que o próprio tempo não é, mas vem a ser, à me-
dida que o ser-existente se temporaliza estamos retrocedendo muito
para traz de Husserl e chegando a Hegel, que há século e meio nos
dera definição semelhante, nestes termos, aliás bastante vagos: «O
tempo é o ser que, quando é, não é e quando nãoi é, é; é o devir
intuído». Só que, para Hegel, essa definição tinha alcance universal,
abrangia tanto o tempo da conciencia como o tempo do mundo fisico,
pois êle considerava tôdas as coisas como contraditórias em si mes-
mas, na sua própria essência, enquanto que, para Heidegger e Sar-
tre, a sentença se aplica fundamentalmente ao ser-existente do ho-
mem e ao tempo que nasce da temporalização deste, já queo há
tempo e nem sequer há mundo senão em função de um ser consciente
que se temporaliza e que tem consciência da sua temporalização. Essa
posição idealista e subjetivista do existencialismo cortou tôdas as pon-
tes que poderiam estabelecer sadia e proveitosa intercomunicação entre
asj suas conclusões e as da ciência positiva, encerrando-o num com-
partimento estanque, onde estão, por certo, as vivências humanas na
sua imensa riqueza subjetiva, mas ondeo penetra a luz da reali-
dade exterior, nem chega o eco da voz do mundo., A mais recente
concretização dessa atitude de subjetivismo radical que é, ao mesmo
tempo, subjetivismo do indivíduo em face do mundo e subjetivismo
do homem ante o resto da Natureza se consubstancia na ùltima
ob'ra filosofica de Sartre, a Critica da Razão Dialética, onde preten-
de mostrar que a pròpria dialética, como processo de totalização e equi-
librio de contrários e que dia a dia se vem revelando como a expres-
o filosofica mais adequada à explicação do mundo físico que a cien-
cia vai progressivamente desvendando, só pode ser materia de exame
quando aplicada ao ser humano e à sua historia, nunca às realidades
do mundo exterior, nem aos objetos estudados pelas ciências posi-
tivas .
Explica-se a atitude existencialista, eremos nós, como reação sub-
jetiva do homem contra a hipertrofia da ciencia e da técnica e o deses-
pero em que foi lançado no interludio entre duas grandes guerras,
que lhe recordaram, com maior e mais brutal evidência do que nunca,
o nada a que verdadeiramente se reduz a sua existência e a cons-
tante ameaça de morte e aniqüilamento que envolve o seu destino.
Maso há de ser por isso, nem pelo aterrador impacto desses acon-
tecimentos, que havemos de inverter a ordem do progresso cultural,
nem renunciar às mais sadias conquistas de quatro mil anos de civi-
lização. Aquêle progresso, com efeito, se processou sempre no sentido
de melhor e mais eficaz ajustamento do homem à realidade exterior e
incessante adaptação das suas visões subjetivas às exigências da obje-
tividade. Foi lição multi-secular de humildade, que nos ensinou a con-
siderar o ser ques somos e os mais profundos anseios dal nossa
consciência como passageiras e minúsculas sementes de vida, que se
perdem na imensidade de um Universo que nos abarca e nos trans-
cende.
De fato, antes de chegar à objetividade do conhecimento cientí-
fico da Natureza, a humanidade atravessou milênios tentado com-
compreender e explicar o mundo pelas analogias e semelhanças deste
último com a sua própria vida, projetando nele as suas próprias vi-
vências. E muito ainda precisará caminhar para se desprender intei-
ramente desse passado e alcançar a última etapa de uma compreen-
o integral da realidade exterior. As fases superiores do conheci-
mento, em que a experiência nos ensina a discriminar o que é objetivo
e separá-lo do subjetivo, para podermos ter do primeiro noção racio-
nal e lógica que nos faculte efetivamente dominar a Natureza (como
a dominamos hoje pela ciência, chegando à perfeição de desintegrar
o átomo e utilizar-lhe a gigantesca potencialidade interna, ou subjugar
as forças naturais, a gravidade, a incrível distância dos espaços inter-
planetários para atingir a lua, Marte, Venus, ou talvez outros corpos
mais longínquos),o o resultado final de lenta e persistente evolução.
Na sua plenitude, o conhecimento é esforço de ajustamento,o
apenas entre sujeito e objeto, como monòtonamente o repetiram sem-
pre os manuais de filosofia, mas entre duas objetividades, a objetivida-
de da coisa e a objetividade do sujeito. A expressão «objetividade do
sujeito», se a soubermos empregar devidamente, nos dará,o só o
verdadeiro sentido do progresso da filosofia e da ciência, que se esfor-
çam por conhecer e explicar o mundo real tal como é, senão que a
meta que devemos mirar na própria vida individual, sempre que pre-
tendemos orientar-nos pela experiência do mundo e ajustar a subjeti-
vidade do eu a essa experiência, a fim de que possa o eu expandir-se
sem prejudicá-la, nem ser por ela prejudicado nas suas expansões.
A objetividade do sujeito representaria, historicamente, secular con-
quista da experiência humana; e, individualmente, o perene esforço de
autodisciplina do espírito, através do qual aprendemos a distinguir as
essências subjetivas, que estão em nós, das essências objetivas, que
estão nas coisas. Só quando fazemos nitidamente essa distinção é que
nos habituamos a viver a nossa própria vida subjetiva sem permitir-
lhe que interfira prejudicialmente nas representações objetivas, ou que
as mascare a seu capricho. É sempre longa a caminhada e intensa a
luta, até que logremos conciliar as duas atitudes e criar, dentro des
mesmos, uma objetividade de pensar que corra paralelamente à subje-
tividade de viver. Nesse instante derradeiro e difícil, em que o conhe-
cimento deixa de ser mera relação entre sujeito e objeto, ou simples
auto-revelação do objeto através do sujeito e do sujeito a si mesmo,
um e outro fundidos na ação mesma de ir descobrindo e ser descober-
to relação e auto-revelação permanentemente expostas às interfe-
rências e deformações que o sujeito pode sempre imprimir no obje-
to para se tornar, enfim, autêntica relação entre duas objetividades,
a objetividade da coisa e a objetividade do sujeito (aquela apreendida
nas suas relações invariantes e na sua essência real, esta apoiada na
prática diuturna e na consolidação da experiência), nesse instante ape-
nas, é que podemos confiar no que conhecemos e repousar na segu-
rança de que o mundo é realmente semelhante ao que percebemos, pelo
menos na sua única maneira-de-ser acessível aos nossos sentidos e
inteligência, eo como supomos, desejamos ou imaginamos que seja
quando o figuramos à semelhança des mesmos.
Essas observações se aplicam cabalmente à crítica da atitude exis-
tencialista em face dos problemas do ser e do tempo, que estamos
analisando. Antes de querer definir um e outro pelo ser do homem,
que se abandona ao estar aí das suas próprias vivências e as pro-
jeta no mundo, seja pela projeção heideggeriana antecipadora do fu-
turo, seja pela projeção sartreana geradora de um presente queo
existe sem ela e senão como expressão dela precisa o homem esque-
cer-se por algumas horas, mergulhar no seio do mundo, para ali colher
as evidências de uma realidade exteriormente diversa da sua, dialetica-
mente oposta à sua, mas na qual se contêm os elementos básicos
da sua existência e a verdadeira significação do seu próprio ser.o
é somente éste ser, o Dasein, que se temporaliza existindo e que existe
temporalizando-se; na mesmíssima medida o fazem os outros seres do
mundo e o mundo mesmo, na sua universalidade física fenomenal,
como esperamos demonstrar nas páginas seguintes.o pode o ser-
existente do homem colher dentro de si tôda a explicação do mundo,
nem pode o mundo conter tôda a explicação do Dasein. Há sempre
que conciliar as duas coisas, ajustar as duas coisas. E somente uma
visão totalitária da realidade, onde sejam confrontados e examinados
sob a mesma luz de clara e transparente imparcialidade os dois pro-
blemas, que se entrosam ìntimamente e que só se podem solucionar
em conjunto o do ser humano e o dos outros seres, animados e
inanimados, que com êle convivem, constituindo o mundo nos per-
mitirá entender o queo realmente e que significaçãom o ser e
o não-ser, a existência e o tempo, a vida e a morte.
Apesar da vinculação dos conceitos de ser e de tempo, estabele-
cida pelo existencialismo, ter constituído grande progresso no esclare-
cimento dos problemas da ontologia, pecou, entretanto, pelo critério
idealista e subjetivo que a inspirou, baseado na extensão à idéia gené-
rica do ser de tôdas as conclusões extraídas da análise particular do
ser humano, através da experiência pura do eu transcendental da cons-
ciência. Por outro lado, a atitude final do existencialismo, preten-
dendo que o mundo se torne «objetivo» no momento em que o ser
consciente do homem se temporaliza temporalizando-o, é querer re-
construir a realidade do mundo sobre as suas próprias cinzas, depois
que a consciência mesma a renegou, incinerando-a. Ora, fixado o
conceito de realidade como fusão cocxistencial de mundo e consciência
e estabelecido o critério de pesquisar conjuntamente os dois campos de
experiências o da experiência interna da consciência e o das expe-
riências objetivas da ciência, através da constante interação consciência-
mundo e mundo-consciência é claro que deveremos equacionar o
problema em termos muito mais amplos e buscar no exame da essência
objetiva do tempo o indispensável complemento esclarecedor que ainda
nos falta. Por outro lado, se, como já o afirmara Husserl, o tempo é
o horizonte de tôda experiência possivel do ser, a dupla investigação,
subjetiva e objetiva, da noção do tempo nos conduzirá também à dupla
conceituação, subjetiva e objetiva, da realidade do ser.
A explicação do tempo em ¿unção daquilo que Heidegger chamou
os três êxtases da temporalidade, ou seja, as suas três formas de
exteriorização, passado, presente e futuro, é meramente descritiva. Cor-
responde ao modo mais primitivo e mais universal de intuir e perce-
ber o tempo. Tôda a gente sabe, sem qualquer esforço racional pre-
liminar, o que é passado, o que é presente e o que é futuro. A inter-
rogação e a dúvida surgem quando pretendemos penetrar na sua natu-
reza, isto é, quando desejamos esclarecer o que é o tempo em si mes-
mo, que ora se manifesta como passado, ora como presente, ora como
futuro. Já o pressentira, na Idade Média, o gênio 'filosófico de Santo
Agostinho, ao formular a comovente e humilde interpelação ao Senhor:
Que é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu o sei; mas se quiser
explicá-lo a quem me pergunta, jáo o sei mais. O que posso afir-
mar com segurança é que, se nada passasse,o haveria tempo pas-
sado, se nada adviesse,o haveria tempo futuro, e se nada existisse,
o haveria tempo presente. (...) Confesso-te, Senhor, que até este
momento ignoro o que seja o tempo;o obstante, sei que estou dizen-
do isso tudo no tempo, que há muito estou falando do tempo, e que
o de há muito há muitoo seria o que é seo houvera a duração
do tempo. como é que sei isto, se desconheço ainda o que o tempo é?
ou será que ignoro a maneira como hei de dizer o que sei? (...) Tu
iluminarás minha lanterna, senhor meu Deus, tu iluminarás minhas
trevas».
como essência subjetiva, o tempo nos, a cada instante, a me-
dida des mesmos, das dimensões de cada um de nós. Transcorre
a nossa existência num constante e renovado presente, a partir do qual
ou com referência ao qual passado e futuro se projetam em sentidos
opostos, mas retornando sempre para imergir e afogar-se no seu seio.
No presenteo há só o dia de hoje: há também o de amanhã, na
medida em que representa o que espero ou desejo possuir; e o de
ontem, relativamente às coisas que sobrevivem na minha lembrança.
Tudo o que sou, que fui e que serei está em função do presente. O
passado só é meu quando o recordo e o reintegro no momento de
agora. O passado queo se atualiza mais em mim é um passado mor-
to, que jáo me pertence. O futuro também só é meu quando
posos evocá-lo, planejá-lo, idealizá-lo agora. O futuro que ignoro, o
vir-a-ser queo se reflete hoje na minha vida como algo que espero,
ambiciono ou receio, é um futuro que para mimo existe, que ainda
o sou eu. Além dos instantes que se sucedem e de um presente que
dura, há em mim a sombra que fica dos instantes passados queo
podem voltar; e há o germe silencioso dos instantes que aindao vie-
ram, mas queo de vir.
O tempoo apenas une, constrói e consolida. Também divide,
retarda, retalha. Nossas vivências mais intensas e mais profundas virão
a seu tempo. Virão quando tiverem de vir. Ninguém pode nada inde-
pendente do tempo. Hoje é semper cedo para que vinguem as idéias e
frutifiquem as ações, que virão amanhã. O que passou foi um dia;
o é mais. É um não-ser. O que há de vir será um dia; aindao
é. Outro não-ser. Tôda afirmação ou negação no plano da existência
envolve discriminação de momentos em relação ao dia de hoje, ao ins-
tante de agora, ao presente. Só o presente afirma a realidade integral
do ser. Seu desaparecimento é a própria morte: transitória como a
morte aparente do sono, do coma, da anestesia; definitiva, como a
morte real. Se penso: «eu fui», «eu serei», o passado e o futuro do
tempo verbal nada mais significam que uma individualização de mo-
mentos em função do presente, ou em relação a este momento único
em que estou pensando. No instante imediato já direi «eu fui» onde
acabara de pensar «eu sou», e «eu sou» onde antes dissera «eu
serei».
O passado foi presente quando o estávamos vivendo. O futuro
contiinuará presente quando o vivermos.o obstante, o presente é
paradoxal; é flagrante fuzaz entre a morte de dois momentos, o de
antes e o de após; mas é também a continuidade de mim mesmo atra-
s de todos os momentos. Ontem eu vivia no presente, e no presente
viverei amanhã; no presente de ontem ainda era o não-ser do que sou;
no presente de amanhã serei o que aindao sou. Mas num e noutro
caso continuo sendo, existindo e durando. Parece, pois, que a conti-
nuidade da minha existência nasce de um compromisso ou conciliação
desse antagonismo fundamental entre o que passa e o que fica, o
móvel e o imóvel, o múltiplo e o uno entre a diversidade do vir-a-ser
dos instantes do meu existir e a identidade do ser que sobrevive em
mim e que perdura, após a morte de cada instante que passou e o
nascimento de cada instante que virá.
Essas observações mostram que a tese existencialistao pecou
apenas pelo subjetivismo da sua concepção da temporalidade e do ser:
falhou também, parcialmente, como explicação das vivências da pró-
pria consciência. Pois, mesmo do ponto de vista puramente subjetivo,
tudo indica que a discriminação desses dois aspectos ou dessas duas
faces do tempo que exprimem, respectivamente, o passar e o durar,
tem muito maior importância e se reveste de caráter muito mais subs-
tancial do que a simples ordenação descritiva dos «três êxtases da
temporalidade», que se chamam passado, presente e futuro. Trata-se
de uma discriminação muito mais geral e que deita raízes muito mais
profundas na essência da temporalidade tanto assim que se mani-
festa com universal constância em qualquer dos três êxtases e se sobre-
põe, pela intensidade dos seus efeitos, às características de qualquer
dos três. Ontem, hoje ou amanhã sempre existe algo que passa e,
ao mesmo tempo, algo que cíura. Vejamos o passado, por exemplo: êle
muda, se altera, desaparece, morre, no que fica para trás; mas também
dura ou permanece em tudo o que dele sobrevive em nós. O futuro
é a passagem de algo que deixou de ser para outro que vem a ser;
mas também dura e nos segue no presente, através do que aspiramos,
tememos, sonhamos, desejamos, idealizamos, esperamos, ou então lu-
tamos por impedir, se porventura nos repugna. O presente é a turbu-
lenta mutação de instante para instante, o momento fugitivo e tran-
sitório em que agora nos achamos, sucedendo ao de ontem, prece-
dendo o de amanhã; mas é também a nossa constante presença no mun-
do, a permanência do ser através do tempo em que dura a sua exis-
tência, o eterno presente des mesmos, que se contrapõe ao instante
presente de cada minuto e cada hora. Em cada momento da existência,
portanto, há semppre algo que passa e algo que dura, algo que se trans-
forma e algo que se conserva, algo que morre e algo que sobrevive.
Cada instante é uma espera, cada instante uma saudade.
Impossível negar, por conseguinte, seja o tempo, ao mesmo tempo,
princípio de continuidade e permanência, que se desdobra através de
constante presente, e princípio de descontinuidade e divisão, que se
fragmenta e pulveriza em multifários e incontáveis instantes. É como
se o âmago de tudo o que dura verdadeiramente ems e também
em volta des jamais fosse afetado, nem destruído, pelo hetero-
geneidade e contraditoriedade do que passa.o estará porventura,
nessa oposição dialética entre o passar e o durar, uma revelação defi-
nitiva da mais profunda essência do tempo? E se o tempo é o perene
destruidor do que passa,o é também, na mesma medida e com a
mesma força, o eterno construtor do que dura? Se algo ems deixa
a cada instante de ser o que é para ser outro, passa de ser para não-ser
e de não-ser para ser,o há também, na medula mais íntima da nossa
formação intelectual e afetiva, uma constante de ser, uma invariante
de vir a ser queo passa, queo muda e que, ontem, hoje e amanhã,
continua sendo o que é? De um lado, o tempo corrompe, modifica,
devora, destrói; de outro, preserva, consolida, edifica, perpetua. É
como se fora o tempo instrumento de uma realidade que nos trans-
cende e a serviço da qual atua, ou lídima expressão da mais pro-
funda essência das coisas; como se êle separasse e destruísse o que
«precisa» ser separado e destruído, consolidasse e unisse o que «pre-
cisa» ser consolidado e unido.
Essa oposição entre o passar e o durar a que poderíamos chamar
as duas faces dialéticas do tempo nos conduz ao reconhecimento de
duas atitudes aparentemente contraditórias. De fato, como posso me
sentir eu mesmo, na essência do meu ser, enquanto me sinto ourro na
quotidiana evidência dos meus pensamentos, impulsos e desejos, à me-
dida que o tempo passa e que, com a idade, a experiência e as vicis-
situdes da vida, meu comportamento se transforma? como pode, simul-
taneamente, alguém ser outro e ser o que é? ser outro e persistir sen-
do o que foi? vir a ser diferente sem deixar de ser o que era?
Meus atos, emoções, pensamentos diferem a cada instante;o
contraditórios muitas vêzes. Constituem o que muda, o que passa em
mim. Todos, porém, se passam em mim, eo noutra parte ou noutra
pessoa qualquer. Este ato, aquêle, aqueloutroo diversos entre si;
mas todoso meus atos, fui eu quem os praticou. Esta emoção, aque-
la, aqueloutra diferem umas das outras; maso minhas emoções,
fui eu quem as sentiu. E isto constitui o queo muda e o queo
passa, o que é invariante em meio a tôdas as variações de mim mesmo:
o eu que dura, permanecendo no tempo, desafiando a passagem do
tempo. Há em mim um ser que dura, a partir de certo instante passa-
do, que foi o de nascer, até um instante futuro, que será o de morrer;
mas que dura separado de todos os outros seres, opondo-se dialetica-
mente a todos os demais, negando a todos os demais, pelo menos o
bastante para que eu me atribua autonomia existencia] e individuali-
dade pròpria e me considere, ontem, hoje e amanhã, essencialmente
idêntico a mim mesmo. como conciliar, porém, a unidade e identidade
do eu com a heterogeneidade e a contraditoriedade dos seus instan-
tes? E que sou eu que, existindo, me sinto passar e durar, tenho pre-
sente, passado e futuro, vivo na esperança, na saudade, na plenitude
e no vazio de cada hora que corre, de cada instante fugitivo que des-
ponta, e cresce, e se aniquila?
Eu sou, eu existo. Certo. Mas, como o sei? por que o afirmo?
Contemplo o mundo e me contemplo a mim. Vejo o meu instante de
agora, que se comprime entre o dia de ontem que passou e o de
amanhã que se aproxima. Sei que ontem fui eu mesmo quem viveu; e
amanhã ainda serei eu mesmo quem continuará vivendo.o obstante,
há uma distância que me separa de todos os outros seres, no espaço
e no tempo. Distância que semelha ser mistura deste com aquele, amál-
gama de espaço-tempo. De fato, na extensão do mundo material, há
um lugar que é só meu: o lugar onde acontecem os meus atos. Mas
o tempo em que duro é também só meu: é o meu tempo próprio de ser
o que sou, distinto do tempo em que vejo durarem os outros homens
e as outras coisas. Se quisesse exprimir essa idéia do meu tempo pró'
prio na linguagem existencialista, eu diria, com tôda a propriedade: é o
tempo em que {me temporalizo existindo e existo temporalizando-me.
Essa distância, que têmporo-espacialmente me separa dos outros
seres, bem que posso transpô-la em pensamento, ultrapassar os limites
de mim mesmo, penetrar na continuidade perfeita de todos os momen-
tos do Universo. Outros seres vivem ao meu lado e a eles estou
preso por vínculos diversos. Outras coisas existem em torno de mim,
com as quais me relaciono de mil maneiras. Integrado e perdido nesse
todo universal a que pertenço,o posso apenas dizer ou crer que exis-
to. Mas coexisto. Minha vida é função e reflexo de tôdas as vidas.
Meu destino é uma incógnita na equação de todos os destinos. Assim
como eu, também todos os outros seres ao meu lado se temporalizam
existindo e existem temporalizando-se. Cada qual tem o seu rem-
po próprio de ser o que é, ou de vir a ser o que aindao é.o
obstante, eu os vejo divididos uns dos outros, como me vejo a mim
dividido de tudo, no sentido de que cada coisa é por si mesma alguma
coisa, cada ser é êle próprio, e não outro, e eu de mim encarno um
sujeito, uma pessoa, um ponto de referência de relações. Neste mo-
mento em que escrevo, ou em qualquer outro da minha existência, nos
anos passados ou nos dias que virão, sinto-me durar com o meu pre-
sente; mas também sei que sou hoje diferente do que fui ontem e do
que amanhã serei, porque, juntamente com o presente que dura, per-
cebo a descontínua sucessão dos meus instantes, queo diversos
entre si, passando uns após outros e exprimindo cada qual o não-ser
do que passou e o vir-a-ser do que se segue. Sei que¡ o meu ser se
conserva essencialmente o mesmo através da contradição possível dos
meus momentos, porque sinto que continuarei durando, enquanto a
morte nao puser fim ao meu presente; mas também sei que me trans-
formo a cada instante, que a cada instante existe uma parte de mim
mesmo que deixa de ser o que foi e se prepara para vir a ser o que
será, porque o meu tempo de existir nunca abreo de qualquer das
suas duas faces paradoxais: revela-me o que é diferente em cada um
dos meus momentos e modos de ser, juntamente com o que é invarian-
te nesse constante presente que é a essência de mim mesmo.
A experiência pura da consciência parece indicar, pois, que o nais
marcante e significativo contraste que se manifesta no ser-existente do
homemo está nem na diversificação dos três êxtases da temporali-
dade, nem na oposição entre o ser que sou e o ser autêntico que
se dissimula na minha preocupação antecipadora do futuro, mas sim,
e sobretudo, nesse perene antagonismo entre o passar e o durar
queo é senão a própria alternativa entre o viver e o morrer, trans-
posta para o destino dos nossos momentos-de-ser e das nossas vivên-
cias mais profundas de tôdas as horas. Olhado por uma das faces,
o meu tempo flui continuamente como a correnteza de um rio
l'élan vital, la durée, the stream of consciousness the stream of
thought; olhado pela outra, é um incessante processo de vir a ser ou-
tro, onde, na contraditoriedade dos meus impulsos e caprichos e na
multiforme exteriorização dos meus conflitos interiores, me sinto a cada
instante diferente do instante anterior e me deixo arrartar pela diversi-
dade descontínua de antes, agora e depois.
Mas, se a essência de mim mesmo à algo constante, invariante,
que me dá a medida das minhas próprias dimensões e me faz ser o
que sou, diferente de tudo o mais queo sou, como identificá-la ou
defini-la, todavia, em meio a tantas contradições que descubro em mim,
ou na interminável sucessão de heterogêneos instantes, por entre os
quais se desdobra o tempo próprio da minha existência? As duas faces
dialéticas da temporalidade, que se manifestam respectivamente pelo
passar e pelo durar, se projetam no plano ontològico e ali identificam
também dois aspectos do ser, que estão em nós, mas que taimbém estão
em todos os seres exteriores a nós: o acidental e o essencial. De um
lado o que se transforma; de outro o que se conserva. De um lado
o que pode mudar do igual para o oposto, do idêntico para o contrá-
rio, no incessante vir-a-ser das existências; de outro o queo é
suscetível de contrariedade ou mudança sem que a própria coisa
deixe de ser o que é. Assim comoo fujo à dualidade paradoxal
do tempo, que, embora constante e contínuo na duração do meu pre-
sente, «morre» a cada instante que passa e «nasce» em cada instante
que desponta, tãopouco escapo à fundamental dualidade do meu ser
e modos de ser, onde algo sempre se conserva no que muda, continua
sendo no que deixa de ser e dura no que passa. Dentro do eu ou
no mundo exterior a mim, examinando o jogo de antagonismos das
coisas que foram,m a ser ou deixam de ser ante os meus olhos,
percebo, também, com igual generalidade, a admirável constância e
sobrevivência do mundo e de mim mesmo e guardo a visão incessante
de algo que perdura, com a firmeza dos rochedos, por entre o con-
tínuo fluir das águas do rio.
o importam as dimensões do espaço que me cerca. Por mim
mesmo divido esse espaço: distingo, separo o «lugar onde» se pro-
cessam os atos e pensamentos que considero meus.o importa a
continuidade do tempo, em que me vejo durar com a duração das
outras coisas. Por mim mesmo divido esse tempo: distingo, separo o
«meu» momento e o «meu» presente, de permeio aos momentos dos
outros seres. A delimitação do espaço que ocupoo deriva apenas dos
limites exteriores do meu corpo, mas também, e sobretudo, das minhas
energias interiores, desse dinamismo que percebo em mim e que me
arrasta para a vida, dessa atividade que me sinto capaz de desenvol-
ver e que reconheço como sendo minha, partindo de mim, realizando-
se dentro de mim. Mais ainda. Tudo aquilo que em mim perdura
ou se modifica no tempo, consciente ou inconscientemente converto
em termos ou figuras espaciais.oo apenas as horas e minutos
que vou medindo, por exemplo, pela trajetória espacial do ponteiro
no mostrador de um relógio:o pensamentos e impulsos, elaborados
e cristalizados pelo tempo na mais profunda essência de mim mesmo,
que pouco a poucoo se exprimindo, exteriorizando em termos de dis~
tâncias. isto é, de dimensões espaciais, que me colocam psicologicamen-
te mais perto ou mais longe, mais unido ou mais divorciado dos obje-
tos da minha simpatia ou interesse, indiferença ou desprezo. Quantas
vêzes, por exemplo, as divergências ou incompatibilidades, que nos
afastam de coisas e pessoas, se alimentam dessa intuição vaga de dis-
tanciamento de tudo, como se, pouco a pouco, algo ems deixasse
de ser o que é para ser outro, passasse gradativamente para o não-ser
e para o nada! É como se algo estivesse «morrendo» dentro de nós.
Dir-se-ia que, nesses momentos, poderoso impulso institivo nos leva a
traduzir em termos de espaço, de distância no espaço, o que na ver-
dade é distanciamento no tempo e por obra do tempo. Sentimo-nos
afastados, distantes daquilo que se desvinculou do nosso amor, simpa-
tia, ou mesmo dos nossos interesses imediatos; sentimo-nos, acima de
tudo, afastados e distantes daquilo que o tempo mostrou ser essencial-
mente diferente des mesmos, contrário aos nossos anseios, tendên-
cias e necessidades. Eo só nos sentimos, mas também nos com-
portamos como seres afastados e distantes de outros seres, que a
experiência do convívio diário nos revelou possuidores de impulsos,
opiniões, traços de caráter, atitudes e ideais de vida antagônicos, ou,
às vêzes, simplesmente diversos dos nossos.
Assim, o meu tempo corre, mas dentro do meu espaço. A por-
ção de espaço que delimita o meu eu e onde este se situa éo inse-
parável da minha existência como o próprio tempo.o há abstra-
ção capaz de fazer-me conceber a duração do eu independentemente
da parcela de espaço onde as fontes da vida individual se expandem
e desenvolvem. Um eu perdido no tempo, sem ter lugar e sem re-
presentar êle próprio um «lugar onde», em algum instante, há sempre
algo sucedendo seria tudo menos um eu humano. Para onde quer
que eu, arrasto comigo, necessariamente, uma porção de espaço,
que define as minhas dimensões e me separa de tudo o mais queo
sou. Antes de tudo, há em mim um espaço mental interior que é tecido
nas malhas do próprio tempo e participa da minha essência subjetiva:
um espaço no qual se condensam, tal como no tempo próprio da minha
consciência, o ser e o não-ser de mim mesmo.
Enquanto me sinto durar, por conseguinte, o que realmente dura
em mimo as minhas energias interiores, que possuem dimensões e
limites, prefigurando um autêntico e incontrastável espaço-tempo men-
tal interior, onde está ai fonte de vida que anima cada um dos meus
instantes e que nunca se confunde com os fenômenos similares dos
outros seres. E se, no mundo físico, há constante e universal primazia
do tempo sobre o espaço, nada nos impede de supor que o mesmo
ocorra no mundo da consciência. Istoo significa que devamos partir
da idéia a priori de que o que vale para o físico haja de valer também
para o mental. O único argumento válido aqui é a circunstância de
que certas conclusões da ciência relativas ao mundo físico entre
estas as modernas investigações científicas sobre a natureza do espaço-
tempo nos fazem compreender de tal maneira a natureza do espaço
e do tempo e as relações de um com outro, lançam tanta luz na explicação
de um e de outro, que, inevitavelmente, tais esclarecimentos nos permitem
hoje entender melhor o que se passa dentro des e nos conduzem a
uma reformulação completa dos conceitos tradicionais sobre a natureza
da consciência. Trata-se, aqui como alhures, de uma autêntica revisão
dos dados da experiência pura da consciência à luz dos dados objetivos
das experiências da ciência.
Assim, a pouco e pouco, vai-se revelando o tempo inseparável
da essência das coisas, dos seus modos de ser, deo ser, de vir a
ser e de parecer, condicionando, igualmente, o espaço do mundo real,
em que elas existem, e o espaço do mundo mental, em queo per-
cebidas. É evidente que, já agora, estamos reunindo num só vocá-
bulo, tempo, o tempo próprio da vida mental e o tempo físico em que
ocorrem os fenômenos do mundo exterior. Cada um desses fenômenos
objetivos possui também o seu tempo próprio de acontecer. E ambos,
o tempo físico e o tempo mental, possuem passado, presente e futuro;
e em ambos se manifesta a paradoxal coexistência dialética de algo
que dura com algo que passa.
É óbvio que tais reflexões envolvem aspectos aindao escla-
recidos. Passo a passo, a natureza do tempo vai-se destacando da
atmosfera nebulosa que primitivamente o envolvia. Mas aindao
lhe percebemos todos os contornos, nem penetramos na totalidade
da sua essência. Algumas imagens, colhidas na tradição cristã do
Ocidente, aliadas a interessantes pesquisas filológicas, poderão auxi-
liar-nos a esclarecer melhor o problema, antes de prosseguirmos no
plano traçado e de iniciarmos a verdadeira análise da essência objeti-
va do tempo. Retornemos por instantes à ingênua simplicidade da
velha e autnêtica sabedoria popular, que se condensou nos Livros
Sagrados do povo de Israel.
A Bíblia está cheia de pequeninas sentenças,o inocentes quanto
cristalinas e profundas, relativas à natureza do tempo. Colhamos algu-
mas ao acaso: Tudo tem o seu tempo, e há tempo para todo propósito
debaixo do céu; há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de
plantar e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de matar e tem-
po de curar; tempo de derrubar e tempo de edificar; tempo de chorar
e tempo de rir; tempo de danças e tempo de lamentações; tempo
de espalhar pedras e tempo de as ajuntar; tempo de semear abraços
e tempo de evitá-los; tempo de procura e tempo de perda; tempo de
guardar e tempo de esbanjar; tempo de rasgar e tempo de costurar;
tempo de prosa e tempo de silêncio; tempo de amor e tempo de ódio;
tempo de visitação e tempo de tribulação; tempo de calamidade e tem-
po de fartura; tempo das vindimas, tempo das canções, tempo de
ceifa, tempo de pacificação, tempo de ira, tempo de aflição, tempo
de oprobio, tempo de vingança, tempo das migrações, tempo das chu-
vas, tempos difíceis, tempos de bem-querer, tempos de iniqüidade, tem-
pos de angústia, tempos de abundância, tempos maus e tempos bons,
tempos de juízo, tempos antigos, tempos que virão, tempos fora de
tempo, tempo de todos os tempos...
Procuremos entender o verdadeiro sentido dessas expressões. Re-
side na constante vinculação do tempo ao ser e ao aconrecer de cada
coisa. Cada coisa tem o seu tempo; e há um tempo próprio de cada
coisa. No texto bíblicoo se concebe o tempo ùnicamente corno essa
entidade abstrata, quantitativa, irreversível e retilínea, que se mede por
anos, dias, horas, minutos e segundos e dentro do qual tudo se con-
m e tudo sucede; porém como algo concreto e vivo, experimental,
qualitativo, que se incorpora aos seres e objetos e queo se pode re-
presentar independentemente dêles. A idéia bíblica de tempo próprio
envolve, assim, uma participação de cada coisa na natureza do tempo,
e vice-versa, pois a participação é mútua: tanto participa a coisa da
natureza do tempo, porque precisa de um tempo-de-ser para ser o que
é, como participa o tempo da natureza da coisa, visto que aquêle tem-
po-de-ser vem a ser, em última análise, o seu tempo próprio de ser o
que é, distinto do tempo-de-ser das outras coisas, queoo o que
ela é.
o se julgue, porém, que tal concepção seja exclusivamente ca-
racterística dos textos bíblicos. Reflete, na verdade, uma visão do
mundo que era comum a todos os povos semitas, eo profundamente
arraigada nestes, que influiu decisivamente na gramática de suas lín-
guas, onde o «verbo» principal veículo da expressão do tempo
nunca traduz a noção abstrata de um tempo dividido entre passado,
presente e futuro (como em tôdas as línguas e filosofias dos povos do
Ocidente), mas sempre a noção concreta de um, tempo incorporado à
ação e aos movimentos das coisas, no sentido de indicar, de maneira
constante e preponderante, a circunstância de estar «completa», «aca-
bada», «realizada», ou, ao contrário, «irrealizada», «inacabada»,
«incompleta» a ação expressa pelo verbo. Isto é verdadeo só para
o hebraico, senão que para tôdas as demais línguas do tronco semítico,
vivas e mortas; árabe, aramaico, acadiano, etiòpico, fenicio, gués, cal-
deu, cananeu, tigré, tigrina, siríaco, amárico, moabita, sudarábico, ha-
rari, etc.
Na língua hebraica, quer a antiga usada no Velho Testamento,
quer a moderna enriquecida, na era cristã, com os textos massoréticos
e a influência rabínica, só se conhecem duas formas verbais relaciona-
das com a idéia de tempo: o «perfeito» e o «imperfeito», um e outro
absolutamente independentes do conceito ocidental abstrato de tempo
como ordem de sucessão passado-presente-futuro; pois o perfeito ex-
prime «ação completa e acabada», e o imperfeito «ação inacabada,
incompleta», qualquer que seja, em ambos os casos, o quando da sua
realização, isto é, quer ocorra a ação no passado, no presente ou no
futuro.
Na língua árabe que compõe com o hebraico as duas principais
ramificações do tronco semitico se verifica a mesma coisa : o "perfeito"
e o "imperfeito" das formas verbais podem designar indiferentemente
uma ação presente, passada ou futura, pois só cuidam de exprimir-lhe
o processo de desenvolvimento e o grau de complementação desse pro-
cesso. O que interessa à expressão verbal árabe ou hebraica é mostrar
que o ser ou a coisa, da qual se faia, chega ouo à plena realização
do seu conteúdo, melhor diríamos, da sua essência. Se se realizou
completamente e veio a ser tudo o que é ou devia ser, exprime-se no
«perfeito»; se não, traduz-se pelo «imperfeito» pouco importando,
quer num, quer noutro caso, que a sua realização (completa ou incom-
pleta) tenha lugar no passado, no presente ou no futuro.
Isto se aplica, de modo geral, a tôdas as línguas semíticas. Poderia
parecer, à primeira vista, que se trata de concepção primitiva, típica
de linguagem antiga, já que esses idiomas, na sua quase totalidade,
datam de milênios.o é assim, porém. Importante pesquisa efetua-
da há quase meio século pelo grande orientalista Marcel Cohen, que
teve a preocupação de acompanhar cada uma das línguas semíticas
desde a origem até às formas mais evoluídas da atualidade, veio de-
monstrar que o sistema verbal semítico persistiu através da história
com as mesmas características essenciais da sua essência primitiva:
raramente aparece nele a noção abstrata, retilinea e quantitativa do tempo
dividido entre passado-presente-futuro, mas sempre, preponderante-
mente, a mesmissima idéia concreta, experimental e qualitativa que se
encontra nos textos bíblicos. Aliás, o simples lato dessas caracteris-
ticas haverem persistido através dos séculos,o só no hebraico, mas
também no árabe expressão de uma cultura intelectual altamente
evoluída e habituada aos mais audaciosos vôos da abstração matemática
e filosófica, tanto que soube conservar e transmitir-nos o imenso oatri-
mônio da filosofia e da ciência gregas, em grande parte destruído pelo
incêndio da Biblioteca de Alexandria é prova suficiente de estarmos
diante,o de concepção grosseira e primitiva, mas de outra maneira,
autêntica e profunda, de apreciar a natureza do tempo nas suas rela-
ções com os atos humanos e com os movimentos que compõem o eterno
devir dialético dos seres do mundo.
A análise que vimos fazendo da natureza do tempo, se ainda está
longe de completar-se, chegou, todavia, a um ponto, que nos permite
compreender melhor o sentido e valor dessa oposição entre as duas
concepções a ocidental e a semítica. Na essência, o tempo se apre-
senta sob duas faces que se complementam: o passar e o dut ar. como
passagem, é uma ordem de sucessão de momentos, passado-presente-
futuro, ontem-hoje-amanhã, antes-agora-depois; como duração, é fluxo
contínuo ou processo em perene devir, que persiste sendo o que é desde
o instante em que começa, em que se realiza, até o instante em que
acaba, ou em que deixa de ser o que é para ser outro. Quando nos
detemos para apreender e definir o tempo, é sempre possível escolher
como principal objeto de cogitação um ou outro desses dois aspectos.
Se o que nos preocupa em primeiro lugaro as considerações de
ordem prática, as exigências de adaptações ao mundo e os fins utilitários
que nos permitirão «aproveitar o tempo» para obter tais ou quais re-
sultados, daremos importância maior, evidentemente, ao primeiro aspecto:
visto que, como passagem, ou ordem de sucessão de acontecimentos,
o tempo se torna mensurável, divisível em instantes descontínuos, susce-
tíveis de relacionar-se com a nossa posição de observadores e de clas-
sificar-se em «atuais», «passados» e «futuros», quando tomados em
relação ao presente de nós mesmos. Foi o critério adotado desde épocas
bem remotas pela maioria dos povos do Ocidente. Ao contrário, se
a maior preocupação recai sobre o conteúdo daquilo que se desdobra
no tempo ou que se processa no tempo, independentemente do seu rela-
cionamento com o nosso presente de observadores; isto é, se emprestamos
significação maior ao próprio ser ou à própria coisa que se temporaliza
através de uma ação qualquer então o acento principal estará no segundo
aspecto, pois, como duração, o tempo mostra o que alguma coisa é ou
vem a ser e fornece os elementos de apreciação da sua própria estrutura
ontológica, na medida em que define um ser ou um modo-de-ser (isto é,
uma ação) completo e acabado, ou algo ainda em processo de vir a ser,
inacabado e incompleto. Foi o critério que prevaleceu entre os povos
semitas e que, pela sua mais intima conexão com a experiência vivida
da consciência humana alheia a quaisquer outros fins de ordem prá-
tica se introduziu também, embora por outros caminhos, na menta-
lidade dos povos primitivos, pouco afeitos ao pensamento abstrativo e
em mais estreito contato com a Natureza.
Conforme já foi dito, o pensamento ocidental só começou a con-
siderar mais sèriamente este segundo critério em fins do século passado
e princípio do atual, depois que as investigações de Bergson nos aler-
taram contra a inconveniente e habitual prevalência do primeiro e
realçaram o fator duração, como conteúdo autêntico da mais profunda
essência do tempo. O problema com que hoje se defronta o pensamento
filosófico, todavia,o é discutir qual dos dois critérios é o melhor ou
deva substituir-se ao outro, mas sim fundi-los num critério único e
totalizador, capaz de entender e explicar o tempo na sua realidade
integral que, como já adiantamos, é essencialmente dialética e se compõe
de dois elementos ou de duas faces antagânicas, que aparentemente se
contradizem, mas que na verdade se completam: o passar e o durar, o
que muda e o que persiste, o que se transforma e o que se conserva: c
transposta a mesma dualidade para o plano mais vasto do Todo
Universal, o finito e o infinito, o múltiplo e o uno, o transitorio e
o eterno.
Se a filosofia de Bergson, descrevendo o tempo, concreta e qua-
litativamente, como duração em perene devir, aproximou-nos melhor
de um corpo de idéias que, no tocante à conceituação daquele, há
milênios já se tinha incorporado (acabamos de vê-lo agora) à tradição
cultural dos povos semitas e à tradição cristã dos textos bíblicos, as
modernas doutrinas existencialistas, inspirando-se na fenomenologia de
Husserl e firmando-se principalmente na ontologia de Heidegger, er-
gueram mais uma ponte no mesmo sentido, a partir do instante em
que, embora restringindo a análise ao Dasein ou ao ser existente do
homem, mostraram a impossibilidade de conceber o ser independente
do tempo, ou o tempo independente do ser, já que o ser se temporaliza
existindo e existe temporalizándose. E é este mesmo resultado que,
de outro modo e por outros caminhos, havia sido alcançado pela tra-
dição semitica e pela tradição cristã sem definição precisa, porém
cristalizado na fórmula sintética e aforismática: Tudo tem o seu tempo,
e um tempo para cada coisa.
A principal diferença de conteúdo está em que aquela afirmativa
aparece na obra dos existencialistas, e na de Heidegger em particular,
aplicada ao ser humano, ou ao Dasein erigido em critério universal de
investigação ontológica, ao passo que, na linguagem bíblica, evidente-
mente se amplia a tôdas as coisas. Todos os seres e tôdas as ações,
dentro do mundo, possuem um tempo próprio de serem o que são, e
há para todos um tempo determinado — o seu tempo de ser e de
suceder.
Generalizado o problema dessa maneira, surge a interrogação fun-
damentai, à quai as paginas seguintes se propõem responaer: iodos
os seres do mundo se temporalizam existindo e existem temporalizándo-
se? be a respostar atirmativa, importantes serão as conseqüências,
dentre as quais salientaremos desde agora as seguintes: 1) a idéia do
tempo passara a constituir elemento integrante da definição do ser em
geral e lator decisivo na diferenciação entre ser e não-ser; li) a dialé-
tica de Hegel, fonte inspiradora de tôdas as dialéticas posteriores c
base da identiticação inicial do puro ser ao puro nada, que abalou in-
clusive o princípio de contradição, devera sofrer integrai revisão dos
seus fundamentos; 111) a presença da idéia do tempo no principio de
contradição ("uma sõ e mesma coisao pode ser eo ser ao mesmo
tempo"), que chegou até a ser julgada desnecessária ou a êle estranha,
aparecerá sob nova iuz e será compreendida no seu real e imprescindível
papei; IV) todo o processo dialético de estruturação do real deverá
ser reformulado em termos dessa interdependência e dessa íntima vin-
culação ontológica entre o ser e o tempo; V) reconheceremos a exis-
tência de mais perfeita unidade de normas e de princípios nas transfor-
mações dos dois mundos que interagem mùtuamente, o subjetivo e o
objetivo; VI) entender-se-á com mais clareza e coerência a função
desempenhada pelo tempo no Universo fisico, especialmente no seu
atual papel de "quarta dimensão" do contínuo espaço-tempo; VII) serão
descritas e definidas as raízes comuns que prendem ao mesmo solo o
"tempo próprio" investigado na fisica e na teoria da relatividade e o
"tempo próprio" que, nas profundidades do ser, inclusive do ser do
homem, o caracterizam como sendo o que é e o distinguem de tudo o
mais queo é; VIII) teremos elementos mais seguros para reformular,
em termos atuais e atuantes, a teoria do movimento indissolùveîmente
unida à teoria do tempo — e dar-lhe feição mais ampla, capaz de
abranger na mesma unidade de princípios básicos o movimento no sentido
ontològico de mudança no próprio ser e o movimento como força de
trabalho no mundo físico, exteriorizando-se na universal equivalência
entre matéria e energia; IX) chegaremos, através do complexo ser-
tcmpo-movimento, a apreciar sob esse novo ângulo o problema do infi-
nito, que, como veremos, depende muito mais do movimento do que
até agora se supunha, inclusive nas suas duas formulações matemáticas,
representadas respectivamente, pelo infinito da análise infinitesimal e
pelo transfinito de Cantor; X) lograremos, finalmente, dar forma e
conteúdo lógico e em perfeita harmonia com o espírito do pensamento
moderno e com as grandes conquistas da ciência contemporânea à
esplêndida e maravilhosa intuição que, há vinte e três séculos, levara
Aristóteles a proclamar, num instante de genial clarividência: "Se o
tempo é eterno, necessariamente eterno será também o movimento".
CARTAS DE ALEXANDRE HERCULANO
A JOAQUIM PINTO DE CAMPOS
HÉLIO VIANNA
UM dos escritores portugueses mais apreciados por D. Pedro II foi,
sem dúvida, Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo (1810/1877).
Plenamente se justifica essa admiração,o só por se tratar do talvez
mais eminente escritor lusitano de seu século, certamente o maior histo-
riador de seu país, como por suas excepcionais qualidades de caráter,
do mais alto valor moral.
HERCULANO E O IMPERADOR DO BRASIL
Nove cartas de sua autoria, datadas de 1854 ao ano de sua morte,
dirigidas ao nosso soberano, guarda o arquivo do Museu Imperial, de
Petrópolis, bem como duas minutas das que, provavelmente em maior
número, a êle dirigiu o monarca. Procedem da doação do inestimável
Arquivo da Família Imperial, por esta generosamente feita àquela ins-
tituição, por intermédio do Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans-
Bragança, bisneto do Imperador, em 1941. No respectivo Anuário,
volume VIII, de 1947, em 29 páginas, reproduziu-as o dedicado primeiro
Diretor do Museu, Alcindo Sodré, às páginas 108-137.
uma dessas cartas, aquela em que o grande escritor, solicitado
por D. Pedro II, manifestou sua franca e autorizada opinião, contrária
aos méritos de A Confederação dos Tamoios, de Domingos José Gon-
çalves de Magalhães, depois Barão e Visconde de Araguaia, poema
épico àquele dedicado, já foi três vêzes publicada e comentada.
Primeiramente pelo francês Professor Georges Raeders, no estudo in-
titulado "Alexandre Herculano", incluído no Bulletin des Études Por-
tugaises, do Instituto Francês de Portugal (Lisboa, 1940) . Reprodu-
ziu-a em seu livro Pedro II e os Sábios Franceses (Rio, 1944) . Depois
da publicação petropolitana,o se incluiu em A Polêmica sobre "A
Confederação dos Tamoios", do Professor José Aderaldo Castelo (São
Paulo, 1953) .
Também das mais curiosas a troca de cartas entre o historiador e
o monarca, a propósito da recusa, por aquele feita, pelo segundo nobre-
mente aceita, da Grã-Cruz da Ordem da Rosa. O motivo, por Her-
culano apresentado, toi o de ter antes recusado a Comenda da Tórre
e Espada, que lhe oferecera seu amigo, o já falecido Rei de Portugal,
D. Pedro V, aliás sobrinho e afilhado do Imperador do Brasil.
Por ocasião das três primeiras visitas de D. Pedro II àquele país,
encontraram-se os missivistas. Primeiramente, em 1871 no Lazareto
de Lisboa, em Caparica, em que o soberano brasileiroz questão de
passar pela quarentena a que estavam sujeitos seus patricios ( 1 ).
Depois, no ano seguinte, em excursão ao retiro agrícola do escritor, em
Val-de-Lôbos, perto de Santarém. Pela última vez, novamente em
Lisboa, 1877, poucos dias antes da morte do historiador (2).
Gostando de possuir originais da autoria de escritores, também
uni atribuído a Herculano teve o Imperador, entre os manuscritos de
sua Biblioteca, a maior e melhor por um particular reunida no Brasil,
no século passado. Atribuido, dissemos, por ser contestada, com bons
fundamentos, aquela autoria, entretanto sugerida por um entendido,
Camilo Castelo Branco. Trata-se da sátira Os Pedreiros cujo autó-
grafo (ou cópia) realmente se encontra entre os do "Catálogo C", de
"Códices e Livros Manuscritos", do "Inventário dos inestimáveis do-
cumentos históricos do Arquivo da Casa Imperial do Brasil, no Castelo
d'Eu, em França", aí levantado pelo historiador Alberto Rangel (3),
aquêles hoje pertencentes ao Príncipe D. Pedro Gastão de Orléans-
Bragança, residente em Petrópolis.
uma nota de Camilo, de quem passou o manuscrito ao poeta e
diplomata brasileiro Luis Caetano Pereira Guimarães (1847/1898),
por oferta ou aquisição, o qual, provavelmente, teria sido quem o passou
ao Imperador, declarava a autoria de Herculano. Acrescentou que
cm 1828 (quando só tinha 18 anos!), já era liberal, tendo emigrado
de Portugal tm 1831.
Entretanto, no Dicionário Bibliográfico Português, de Inocencio
Francisco da Silva, tomo XXI, 14
9
do Suplemento de Brito Aranha
(Lisboa, 1914), em que se encontra erudito estudo crítico sobre Her-
culano, devido a J.J. Gomes de Brito, lê-se, à pag. 655, a propósito
de seus Opúsculos tomo V, Controvérsias e Estudos Históricos, tomo
II, de 1881: "Tendo Antônio de Serpa Pimentel publicado, neste mesmo
ano, o seu livro reivindicador: Alexandre Herculano e o seu Tempo,
( 1 ) Lourenço, Luiz Lacombe A Primeira Visita do Imperador do Brasil
D. Pedro II a Portugal (Lisboa, s.d., 1963), págs. 5, 8, 10/12, 14.
(2) Heitor Lyra História de D. Pedro II, vol. II (S. Paulo, 1939),-
ginas 328 e 434/414.
(3) Nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. LV, de 19B3
(Rio, 1939), nº 134, pag. 499.
os editores dedicaram-lhe o tomo V. De carta que está presente,
do punho do velho amigo de Herculano, se vê que êleo pôde já
referir-se, por estar concluído o seu livro, às malévolas atoardas que
davam o autor da Semana Santa por autor também da insulsa sátira
Os Pedreiros, cuja primeira nota, só por si, bastaria para demonstrar
o ser possível que Herculano, com dezoito anos, possuísse já a erudi-
ção que tal nota supõe. Sempre declarao ter visto a sátira de que
se trata, e foi, segundo tudo faz crer, escrita por José Agostinho de
Macedo, mas crê ter, em diversas notas do Iivro, ajustado suas contas
com os detratores de Herculano" ( 4 ).
Realmente, conforme por gentileza de Sua Alteza o Príncipe
D. Pedro Gastão tivemos ocasião de verificar no manuscrito de Os
Pedreiros, as notas citadas eruditamente comentam versos de Homero,
o podendo ser de autoria do jovem Herculano, apesar da precocidade
de seu talento.
DUAS CARTAS DE HERCULANO AO PADRE
PINTO DE CAMPOS
À Biblioteca Particular do Imperador do Brasil, na parte reservada
aos manuscritos, foram ter duas cartas de Alexandre Herculano, diri-
gidas ao político e escritor Padre (depois Monsenhor) Joaquim Pinto
de Campos.
o se trata de personagem inteiramente secundária, .em nossa
vida pública e literária, pois foi combativo Deputado-Geral por sua
Província, a de Pernambuco, três vêzes tendo chegado a participar
de listas sextuplas e tríplice para o preenchimento de vagas senatoriais,
embora oo tivesse escolhido D. Pedro II. Dos sermões, discursos
parlamentares, folhetos, livros de viagens e traduções, que escreveu,
destaca-se, especialmente, a Vida do Grande Cidadão Brasileiro Luis
Alves de Lima e Silva Barão, Conde Marquês e Duque de Caxias,
publicada em Lisboa, 1878, dois anos antes da morte do biografado.
Antes, em capítulos publicados na revista carioca O Futuro, de
Faustino Xavier de Nováis, de 1862-1863, mais tarde, em 1871, postos
em folheto, no Porto, com uma «Advertência» de Camilo Castelo
Branco, tentou biografar O Senhor D. Pedro II Imperador do
Brasil. Tentativa, esta, que por ser, pelo menos em alguns pontos,
algo fantasiosa,o agradou ao atingido. Manifestou-o, ao próprio
autor, logo no início daquela publicação, a 7 de outubro de 1862,
conforme registrou em seu Diário desse ano, que publicamos. (5)
(4) Op. cit.; doe. cit.
(5) D. Pedro II Diário de 1862, separata do Anuário do Museu Imperial,
de Petrópolis, vol. XVII, de 1956 (Rio, 1960), pag. 225.
o teria sido este o motivo dos três vetos do soberano à candi-
datura senatorial do sacerdote (6), que o levaram, desgostoso da
política, a retirar-se para Portugal, em 1877, no estrangeiro permane-
cendo até falecer, dez anos depois. com o Imperador, havia sido uma
das principais vítimas do vingativo e caricatural furor literàrio-político
de outro Deputadoo escolhido para o Senado, José de Alencar,
no romance-de-chave A Guerra dos Mascates, de 1873-1874, conforme
também já tivemos ocasião de demonstrar (7) .
Pouco antes de morrer, com D. Pedro II se encontrou Pinto de
Campos, em Paris, «tendo sido tocante, segundo dizem, essa cena de
reconciliação». ( 8 )
Já antes disso, tendo publicado, em 1886, uma tradução do Primeiro
Cântico da Divina Comédia O Inferno,o deixou de mandar
exemplares ao Imperador e à Imperatriz, por intermédio da Legação
do Brasil em Lisboa, conforme consta da respectiva Correspondência
com a Mordomia da Casa Imperial.
o é, portanto, de estranhar, que do arquivo particular de Mon-
senhor Pinto de Campos, por doação ou compra, fossem ter à Biblioteca
de D. Pedro II, peças como as duas cartas de Alexandre Herculano,
que adiante transcreveremos. E, da mesma forma integrada em seu
Códice n
9
221, outra a êle dirigida, em latim, pelo eminente teólogo
piemontês, o jesuíta Padre João Perrone (1794-1876), datada de Roma,
1859, verdadeiro parecer sobre questão em que se empenhou o >acerdote-
Deputado, na Câmara, a do casamento dos acatólicos, igualmente do
interesse do Imperador. (9)
Também podem ter sido obtidas por seu intermédio, duas outras
cartas encadernadas no mesmo conjunto. uma do poeta e orador
sacro Padre Antônio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814), dirigida
à jovem pernambucana Joaquina Angélica Pires Ferreira, depois Ba-
ronesa de Cimbres (falecida em 1868) (10). Outra endereçada ao
(6) Da primeira vez que foi candidato (1869), era o último votado em
lista séxtupla. Da segunda vez (1871), era terceiro, também em lista séxtupla,
em que foram escolhidos os dois p-imeiramente colocados. Na terceira e última
vez (1876), teve o terceiro posto em lista triplice, encabeçada pelo notável
ex-Ministro Conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira, queo deixaria de
ser o escolhido.o tinha, portanto, razões de queixa, poiso houve, no caso,
preterições injustas. Outros seriam os motivos de seu desencanto político.
(7) Em «José de Alencar e D. Pedro II (1868-1874)», capítulo de nosso
D. Pedro I e D. Pedro II Acréscimos às suas Biografias (S. Paulo, 1966),
págs. 206-211 e 216-224.
(8) Solidônio Leite uma Figura do Império, biografia de Monsenhor
Pinto de Campos (Rio, 1925), pag. 125.
(9) Hélio Vianna «Códice luso-brasileiro do Imperador», Folhet'm publicado
no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, a 15 de novembro de 1969, n' 10.
(10) Aqui nos penitenciamos do engano, contido no Folhetim «Códice luso-
brasileiro de D. Pedro II», publicado no Jornal do Comércio de 7 de novembro
de 1969, no qual atribuimos essa carta ao revolucionário alagoano Padre José
Antônio de Caldas. Cor-igido o equívoco, determinado pela simples assinatura
«Padre Caldas», publicamos a «Carta do Padre Antônio Pereira de Souza Caldas»
no boletim Cultura, do Conselho Federal de Cultura, do Rio de Janeiro.
pai desta, João de Deus Pires Ferreira, de 1820, de seu amigo, o
Tenente-General Francisco de Borja Garção Stockier (1759-1829),
então Governador do Arquipélago dos Açores, pouco depois Barão
da Vila da Praia, na qual também há referência ao Padre Caldas,
de cujas Poesias foi o primeiro editor (11). Isto porque o retrato
do poeta, que pertencera àquela Baronesa, foi entregue ao Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, onde ainda se encontra, por Mon-
senhor Pinto de Campos, sócio da entidade desde 1855 (12).
Estabelecidas estas preliminares, apresentamos a seguir, anotadas,
as duas cartas de Alexandre Herculano ao Padre Pinto de Campos,
que pertenceram a D. Pedro II, ns. 24 e 26 do citado Códice n° 221,
de sua Biblioteca Particular.
CARTA DE 1856
«limo. Snr. Joaquim Pinto de Campos
«Esta carta, que a necessidade de lhe recomendar o portador,
que é um filho do meu amigo José Estevam Coelho de Magalhães, o
nosso primeiro orador (13), servirá, ao mesmo tempo, para suplicar
desculpa do longo tempo que tenho estado sem escrever a Vossa
Senhoria. Prouvera a Deus que esta dívida fosse a única nesse gênero;
porque estouo mimoso (14) da benevolência de Vossa Senhoria,
que já conto com o perdão. O que peço é que Vossa Senhoria acredite
que o mereço, porque se desgostos (15) e ocupações instantes mem
feito faltar para com muitos amigos,o é isso indício de quebra
de amizade, nem esquecimento de tantos sinais de afeto.o tardará
que eu escreva mais extensamente a Vossa Senhoria. Agora, ao que
me limito é a recomendar-lhe o filho do meu amigo, moço de talento,
(11) Conforme o Folhetim citado na nota 9, manuscrito n' 9 do citado-
dice n' 221
(12) Cf. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do Rio de
laneiro, tomo LXI, de 1898, Parte II, vol. 98, pag. 584.
(13) Realmente, José Estêvão é considerado um dos maiores oradores por-
tugueses. Militou na campanha liberal anti-miguelista, brilhou na tribuna parlamentar.
Nasceu no Aveiro, 1809, morreu em Lisboa, 1862.
(14) No sentido antigo, de favorecido, feliz.
(15) No ano em que escreveu esta carta, sendo Alexandre Herculano Pre-
sidente da Academia Real de Ciências, de Lisboa, teve de suspender ura de seus
funcionários, responsável pela apropriação de documentos pertencentes à instituição.
como o governo da épocao era apoiado pelo escritor, por acinte nomeou o
acusado Diretor do Arquivo da Torre do Tombo, o que moralmente impediu o
historiador de ali continuar suas pesquisas, essenciais à continuidade de sua
monumental História de Portugal. Muito suscetível, perdeu, por algum tempo, o
gosto por todo trabalho literário. É o que a respeito explicou a Grande Enciclopédia
Portuguesa e Brasileira, no verbete a êle relativo, vol. 13.
que vai empregado do nosso Consulado em Pernambuco (16) . Queira
Vossa Senhoria nas letras e em tudo guiá-lo pelo bom caminho. Nin-
guém o pode aí fazer melhor. Entretanto, acredite que sou, como
sempre,
«De Vossa Senhoria,
«Amigo e Criado Obrigado
«A. Herculano.
«Lisboa, 18 de dezembro, 1856».
CARTA DE 1857
«limo. Amigo e Snr.
Estou envergonhadíssimo da minha descuriosidade (17) em
escrever a Vossa Senhoria. Sei que a amizade de Vossa Senhoria
será a própria que tenha inventado desculpas em meu abono; que a
amizade é assim.o sei, porém, se acertaria. A verdade é que
nunca falta meia hora para escrever uma carta. A única desculpa
aceitável será a que vou dar e que vem a ser a verdadeira. Desgostos
que me feriram profundamente, tiraram-me por muito tempo o gosto
a tudo (18). Naturalmente avesso, como sempre fui, a escrever cartas,
falecia-me absolutamente o ânimo para o fazer em tal situação. Tôda
a minha correspondência de ano e meio reduz-se, talvez, a uma dúzia
de cartas indispensáveis para a minha vida econômica. Pouco mais
fiz, literariamente: vivi nesta espécie de torpor intelectual :m que os
afetos violentos costumam deixar por muito tempo o espírito. Foi
necessário uma grande cólera, a que me excitou a vergonhosa concor-
data de Portugal com Roma, para sair por oito dias desse longo
dormitar. O folheto de que me faia é o facit indignado de Juvenal:
o tem outro mérito; creio que nem o da boa gramática. O ¿om-ositcr
esperava que se escrevesse o quarto de papel, para prosseguir na com-
posição. De resto, parece-me queo discordaremos na essência da
questão, como supõe, porque me persuado de que é justo, e de que
meo supõe capaz de ir estribar o nosso direito de padroado numa
parte da Ásia na bula divisória de Alexandre 6* (19), ou no direito
de conquista. Limitei-me a defender o nosso jus naquelas dioceses
em que os princípios de jurisprudência econômica, aceitos por todos
(16) O filho de José Estêvão, queo é o poeta Luis Cipriano de Magalhães,
somente nascido em 1859, serviu, no Recife, sob as ordens do Cônsul Dr. José
Henrique Ferrei-a. Dispondo de boas relações, em sua Província, te-lo-á devida-
mente recomendado Pinto de Campos.
(17) No sentido de descurado, de incúria,o no de falta de curiosidade.
(18) Conforme a nota 15, acima.
(19) A famosa Bula Inter Coetcra, de 1493, de divisão, entre Portugal e
Espanha, das regiões, recentemente descobertas, a se-em ainda exploradas, ou de
acesso marítimo somente então esclarecido, em que os dois países ibéricos exe-ceriam
atividades de catequese, nas quais conseqüentemente, teriam domínio político.
e há muitos séculos, no-lo assegurava. Vossa Senhoria, se fosse por-
tuguês, havia d'indignar-se forçosamente, como indecente negócio,
sobretudo se soubesse a parte secreta da história daquela concor-
data (20).
«Agradeço a Vossa Senhoria a remessa do seu discurso. Li-o
¡ogo, e, com a franqueza que uso, direi a Vossa Senhoria que o acho
mui superior ao outro que teve a bondade de me mandar. É um
excelente trabalho, nas idéias e no estilo:o tem senão um defeito,
defeito inevitável, suposto o fim a que era destinado. É ser demasiado
curto (21).
«Acabo aqui, porque nem sei o que escrevo, com uma violenta
dor de cabeça, resultado de uma forte constipação. Fico contando os
meses, à espera de sua viagem à Europa. Naturalmente em Lisboa terá
parentes ou amigos, e, portanto, cômoda e amigável hospedagem. Ao
pé de Lisboa, no Alto da Ajuda, tem, porém, uma casa de estudantes
onde será recebido singela e talvez pobremente, porque o donoo
é rico, mas com simples e sincera boa-vontade (22).
«De Vossa Senhoria
«amigo e Criado obrigado
«A. Herculano».
Depois de 1856 e 1857, continuou Herculano a corresponder-se
com Monsenhor Pinto de Campos. É o que prova a inclusão de mais
uma missiva sua, ao sacerdote destinada, nas Cartas de Alexandre
Herculano, tomo I, editadas por Aillaud, Alves, Bastos & Cia., de
Lisboa, juntamente com a Livraria Francisco Alves, do Rio de Ja-
neiro, s.d. Aí se contém uma, a êle dirigida, datada de Lisboa, 2 de
junho de 1862. Nela comentou nada ter podido escrever sobre a morte,
no ano anterior, de seu jovem amigo, o Rei D. Pedro V.
o é impossível que outras peças dessa interessante correspon-
dência ainda apareçam. como as do Imperador ao grande escritor
português, além das duas cujas minutas guarda o Arquivo da Família
Imperial, no Museu Imperial, de Petrópolis, citadas no início deste
trabalho.
(20) Referia-se Herculano a seu panfleto A Reação Ultramontana em Portugal
ou a Concordata de 21 de Fevereiro, de XI-56, páginas, em 1857 aparecido em
Lisboa. Incluído, posteriormente no vol. X de seus Opúsculos.
(21) Recebera Herculano, enviado pelo Padre Pinto de Campos, seu Discurso
Sagrado, recitado em Comemoração da Independência do Brasil, no Soleníssimo
*Te Deum» que a Sociedade Ipiranga fêz celebrar no dia 7 de Setembro de 1857,
na Igreja do Carmo, desta Capital, folheto de 32 págs., no Rio de Janeiro publi-
cado no mesmo ano. O anterior, também mencionado, era outro Discurso Sagrado,
recitado em Comemoração da Independência do Brasil no solene «Te Deumz que
os Habitantes da Imperial Cidade de Niterói [\izeram celebrar no dia 7 de Setembro
de 1855, impresso no Rio de Janeiro, no mesmo ano, com 40 páginas.
(22) Exercendo, até 1867, o cargo, pertencente à Casa Real Portuguesa,o
ao Estado, de Bibliotecário do Palácio da Ajuda, em suas proximidades residia
Herculano, ainda solteiro, em casa que era habitual ponto de reunião de estudantes,
a qual gentilmente ofereceu ao seu correspondente brasileiro.
Letras
HERÓIS E VILÕES NO ROMANCE BRASILEIRO
Interpretação de dados colhidos em uma pesquisa antroposociológica
sobre tipos antropológicos no romance brasileiro
GILBERTO FREYRE
GILSON SOARES E
JOSÉ FRANCISCO CARNEIRO
ESTE
TRAbalho
é nota prévia à interpretação parcial, isto é, apenas
estatística, de uma pesquisa, realizada de 1967 a 1969 pela então
Divisão de Antropologia Tropical do Instituto de Ciências do Homem
da Universidade Federal de Pernambuco, sobre tipos antropológicos
que podem ser identificados, como tais, quer nos meios susceptíveis de
ser reduzidos a números, quer por meios extraestatísticos ou extra-
quantitativos, nos romances brasileiros, desde A Moreninha, aos ro-
mances atuais, e que tragam à tona revelações de interesse sociológico
ao lado do literário. Trata-se de resultado de pesquisa a ser publicada
breve, em livro, com longa introdução extraestatística do seu idealizador
e orientador, o antropologo-sociòlogo e escritor Gilberto Freyre, e
comentários individuais, igualmente extraestatísticos, sem desprezo por
evidências de caráter estatístico, dos estudantes da Universidade Federal
de Pernambuco que participaram desse estudo pioneiro no Brasil ou
em qualquer país: Gilson Soares, Marcos Albuquerque, José Francisco
Carneiro. Da pesquisa também participaram, no seu início, a Senhorita
Isabel Montezuma, há meses residente no Rio de Janeiro e Roberto
Galvão, há um ano emo Paulo.
Na pesquisa sobre «tipos antropológicos no romance brasileiro»
procurou-se analisar característicos sócioantropológicos de personagens
no romance nacional, em dois tempos sociais: o patriarcal e o pós-
patriarcal, estabelecendo paralelos e, em alguns casos, linhas, ora de
coincidencia, ora de contraste, entre os dois. Duzentos romances foram
considerados como representativos dos dois tempos sociais.
Os personagens foram divididos, para efeitos de computação esta-
tística, além da qualitativa, e interpretação quantitativa de seus
característicos, em quatro categorias éticas: Herói, Vilão, Misto e Neutro.
Foram considerados, além dos seus caracteres psicosomáticos, suas
predileções em: vestiária, passatempos, profissão, situação social e
educação, lugar de origem; e também sua região, sua idade e, é claro,
seu sexo, em suas projeções sobre seu comportamento como per-
sonagens .
O tempo social caracterizado como patriarcal enquadra a fase do
romantismo o romantismo convencional no romance nacional,
em sua máxima exteriorização: o século XIX. Os personagens se
fazem notar pelo seu conflito com a rigidez de costumes patriarcais,
pela idade extremamente jovem das heroínas, pelas suas sedas e seus
s pequenos e pela sua castidade guardada pelas famílias com extremos
de zelo ligados a sentimentos de honra; e também pela importância
da figura do patriarca, pelo herói jovem de tipo físico com caracte-
rísticos de barba, de bigode e de vestuário, em grande parte importados
da Europa, e com traços, por vêzes, marcadamente norteeuropeus: daí
a exaltação de virgens louras e alvas. A heroína quase sempre se
mostra, na verdade, europeianoide em seu físico, aparência, comporta-
mento e vestuário, embora com Macedo e Alencar tenha se iniciado
a consagração da morena e, por conseguinte, de um ideal brasileiro
de morenidade ligado já à situação étnica de grande parte da população
brasileira.
O herói no romance patriarcal tem predominância masculina. Num
total que perfaz 48,2%, êle é 26,6% masculino contra 22,2% feminino,
embora a heroína tenha sido lançada no romance patriarcal com traços
extremamente apologéticos da figura feminina.
Predominantemente o herói da época patriarcal, masculino ou femi-
nino é moço, com faixa de idade situada quase sempre entre os 15
e 25 anos, com idade média da heroína em torno de 16 anos.
No setor profissional, o herói do romance da época patriarcal
oscila entre a intelectualidade do herói e a domesticidade da heroína:
5,6% e 18,6% respectivamente, sendo que essa última é um atributo
exclusivamente feminino. No sexo masculino, ao herói burocrata, 1,2%,
segue-se o que vive de rendas e usufrutos 1,7% de atividade
mecânica ou manual (quase sempre o herói rural) 4,5%, de pequeno
ou grande Proprietário rural 1,8%; de outras atividades; 16,3%.
Seu estado civil lança-o na condição de solteiro, com 32,3% contra
apenas 9,8% de casado; 1,0% amigado; 2,4% viúvo. Quando urbano,
situa-se na classe média-média 12,4% com inclinações conside-
ráveis para a média-alta 3,8% e média-baixa 4,3%. Se
rural, a medianidade social perde seu lugar para a condição média-baixa
6,0% e alto (5,0%), ficando a média-média em apenas 4,3%.
Acentua-se, assim, a instabilidade sócio-econômica de uma região que,
na época,o possuía condições que permitissem uma presença pre-
dominante, no contexto social, da classe média-média, ainda em processo
de surgimento.
Predominantemente, o herói, quer masculino, quer feminino, do
romance brasileiro da época patriarcal, é branco; 10,8%, ou provavel-
mente branco- 17,9%, caracterizando um período na literatura nacional
que foi marcado ètnicamente pela reduzida presença do personagem
negro 1,0% do ameríndio 0,7% graças ao nativismo
alencarino e do mestiço 8,9% este com seus traços antropo-
lógicos quase sempre aproximados dos da etnia branca ou caucásica.
O herói patriarcal é quase sempre um longelíneo (13,9%), esbelto,
delgado, paradoxo em relação com uma época que exaltava, sobretudo
na mulher, as formas arredondadas do tipo brevilíneo daí o «gorda
e bonita». O tipo brevilíneo é, entretanto, representado na estatística
levantada pela pesquisa do Recife por um reduzido 2,6%.
O herói patriarcal brevilíneo, quando ocorre, é quase sempre :1o
sexo feminino, sob formas ligeiramente arredondadas: uma espécie
de compensação antropológica ou contraste sociológico — à esbeltez
às vêzes exagerada do herói masculino mais andejo, enquanto o
feminino se apresenta mais sedentário.
Embora com aparências de tipo físico marcantemente imitado de
modelos europeus, em sua maior parte, o herói patriarcal é brasileiro
nascido no Brasil, criado no Brasil, fixado no Brasil de maneira
quase absoluta (42,3%), ficando a presença portuguesa ou quase
brasileira, em igualdade estatística com os heróis estrangeiros: 1,2%.
Caracteristicamente urbano (18,9%), o herói patriarcal reflete a
predominância sociológica do urbano, ou do rural para-urbano, como
meio preferido pelos romancistas, sobre o puramente rural, para cenário
de seus romances. Um urbano, esse, que surgiu sob condições propícias
ao seu predomínio, em áreas de maior concentração de população
do todo imperial brasileiro: as mais utilizadas repita-se pelos
romancistas da época para cenários dos seus romances.
Ligado a um sistema patriarcal rígido de família, de economia e
de sociedade, o romance para-rural só aos poucos perde para o plena-
mente urbano, na competição que se estabelece entre os dois, desde
a fase patriarcal. Vários dos heróis urbanoso de origem rural
mas de realização urbana. Quando urbanizados,o poucos desses
heróis se apresentam absorvidos pelo esplendor da Corte, vivendo nela
a maior parte de suas vidas (11,0%) . Nela, uns. Outros, nas capitais
de Províncias: 10,5%. Mesmo assim, o herói rural, isto é, aquêle cujo
ambiente de maior duração em sua vida se apresenta como o interior,
chega ao fim da época patriarcal, atingindo a 23%.
Intelectualizados, por vêzes retóricos, é como se apresentam em
sua educação, além de alguns dos rurais, vários dos heróis patriarcais
urbanos ou urbanizados. Dêles 9,8%m curso superior; 12,7%m
educação média.
Por outro lado, o herói rural representa 8,7% dos personagens
de educação rústica ou dos apenas alfabetizados (6,6%), com as
heroínas apresentando-se, quase tôdas, moças ou senhoras de educação
puramente doméstica.
As preferências do herói patriarcal, no que se refere a diverti-
mentos, prendem-se aos de caráter intelectual (5,5%), ficando os
esportivos com 3,1% dessas preferências. Os divertimentos mundanos
dos heróis patriarcais aparecem na pesquisa com 9,7%. Incluem teatro,
festas domésticas, saraus patriarcais.
Esplêndido, quase sempre, em sua saúde física, o herói patriarcal
destrói o mito do herói enfermiço, tido e havido, por alguns, como
protótipo dessa fase da literatura nacional. Os heróis doentios e pálidos
representam apenas 4,3% na pesquisa, contra 26,7% de bons e até
ótimos exemplares eugênicos.
Na indumentária, o herói patriarcal urbano ou rural-urbanizado
é pródigo em elegância. 8,6% de seus impecáveis representantes
anulam, com suas sedas e casimiras importadas, a rusticidade do ruralità
(0,9%), o regionalismo, no trajo, do gaúcho, do vaqueiro, do ban-
deirante, (0,8%), o simbolismo, também no trajo, do militar e do <ia~
cerdote, (3,8%), a tanga, as penas, a nudez do selvagem (0,2%).
Apenas 0,5% dos heróis patriarcais têm, nos romances, vícios con-
sideráveis abuso de bebidas fortes, jogo em casas de tavolagem,
freqüência ¡moderada a casas de prostituição contra 5,5% de vícios
insignificantes como seriam o rapé, o abuso do café, o cafuné.
O temperamento do herói patriarcal lava-o à introversão (20,9%)
ou a ser mais introvertido que extrovertido (12,9%). Quando extro-
vertido (10,7%), ou mais extrovertido que introvertido (4,5%), ainda
se trai quando heroína em risos pela metade, em rubores temerosos
de um excesso, em timidez.o resquícios ou marcas da introversão
que traz dentro de si, e devidos, em parte, à excessiva submissão
do filho ou da filha ao pai. Tende, por conseguinte, o herói
patriarcal a apresentar-se antes um apolíneo (35,6%) e um tipo, pelo
menos na aparência, socialmente normal (44,5%), que um dionisíaco
(13,1%) ou, em extremo, um rebelde às normas do seu meio e do
seu tempo. Tende à anormalidade social (4,3%) pelo menos
repita-se aparente.
O vilão do período patriarcal da literatura brasileira acompanha,
em alguns casos, o herói, em seus característicos. Também é predo-
minantemente masculino (11,2%), ficando a vilania feminina repre-
sentada apenas por 2,4%. JÊ moço: 7,0% entre os 20 e 35 anos.
Quase nunca adolescente: 0,2% entre os 11 e 19 anos. Em 4,0%
dos casos, é maduro; entre 36 e 50 anos. E só 2,6%o de 50 anos
em diante.
No setor da atividade profissional, êle também oscila entre a do-
mesticidade 2,2%, e a intelectualidade; 1,4%, seguidos de perto pelo
vilão, grande ou pequeno proprietário rural (1,0%), ficando o burocrata,
o de atividades mecânica ou manual e o que vive de rendas e usufrutos,
igualados em uma mesma faixa estatística: 0,7%. Predominantemente
solteiro (7,5%), com ligeiro aumento no número de vilões casados
quando comparados ao número de heróis, 4,6%. Viúvo, 2,4% e amigado
1,0%. É medianamente situado no setor econômico (2,9%). Situação
social: média-média-urbana.
Quando rural, o vilão da época patriarcal oscila igualmente entre
a média-alta-rural e a média-baixa-rural (1,4%). É branco (3,6%)
ou provavelmente branco (4,5%) . Há predominância do vilão mestiço
(1,4%) sobre o negro (0,2%) e sobre o ameríndio (0,7%). É também
um longilíneo (3,6%), com ligeiro acréscimo no número de brevilíneos
(1,7%), isto é, com número aproximado estatisticamente da metade
dos vilões longilíneos. Brasileiro, 9,3%, com os vilões portugueses
(1,0%) inferiorizados em face ao número de vilões estrangeiros (1,2%).
A Corte e, depois, a Capital Federal tornou-se seus pontos
principais de atração (12,2%), notando-se, porém, um número de
o poucos vilões que preferem os ambientes rurais para passarem
a maior parte de suas vidas: 21,3%. As capitais de Províncias, no
entanto, equilibram os pratos da balança fixando em seus limites 10,5%
dos vilões patriarcais.
Quanto à educação, o vilão do romance da época patriarcal também
tem seus representantes «doutores» 2,8%m curso superior, 1,7%
possuem educação média.o obstante, o número de vilões com
educação rústica predomina sobre esses dois; 3,1%, seguidos pelos
vilões alfabetizados: 4,0%. Fato interessante é o da ausência de vilões
com aducação doméstica. Em divertimentos o vilão assim se apresenta:
0,0% praticam divertimentos intelectuais; 0,2% gostam de divertimentos
esportivos e a maioria é ruidosamente seguidora do mundanismo (3,4%).
Em saúde, o vilão do romance da época patriarcal se apresenta
o forte quanto o herói (9,1%). Nota-se a quase inexistência de
vilões enfermiços (0,9%) . Em elegância, êle tende a rivalizar com
o herói: 2,4% dos vilões patriarcaiso impecáveis no trajo: 0,2%
o rústicos; 1,9%o simbólicos no trajo, sacerdotal ou militar
inexistindo o vilão selvagem e o pitorescamente regional.
Tem vícios insignificantes (2,6%), predominando estes sobre os
significantes (1,0%). Em contra-partida cresce, entre os vilões, o
número de extrovertidos (6,0%), que ultrapassa o de introvertidos
(5,7%), ficando igualados os mais introvertidos que extrovertidos e
os mais extrovertidos que introvertidos; 1,0% cada. No entanto, ainda
predomina, entre vilões como entre heróis, o número de apolíneos sobre
o de dionisíacos; 7,2% para um e 5,5% para o outro.
* * *
O período pós-patriarcal do romance nacional reflete desde o inicio
certa descentração no sistema rígido de moral, de conduta, de costumes,
com uma tentativa de fuga aos condicionamentos patriarcais. O herói
continua moço. No entanto as heroínas adolescentes entram numa
curva decrescente. Já aparecem sem aquêle extremo juvenil em idade,
característico da heroína patriarcal.
O herói do romance brasileiro da época pós-patriarcal ainda é
predominantemente masculino (34,2%), contra 19,7% de heroínas.
No setor profissional outro fato importante acontece: a presença
do intelectual ou intelectualizado diminui, (6,8%) cada. Quase desa-
parece o herói que vive de rendas e usufrutos. A atividade mecânica
ou manual surge ao lado das profissões intelectuais (7,7%) . O grande
proprietário rural, quase extinto (0,9%), perde a importância que
teve no romance da época patriarcal. A domesticidade mantém-se
predominante entre as heroínas (9,4%) porém já atenuada por fatores
extra-domésticos.o há mais o controle rígido que, por linhas infle-
xíveis, condicione a mulher socialmente normal a um viver exclusiva-
mente caseiro.
Continua o herói predominantemente solteiro (34,2%). A me-
dianidade social do herói urbano predomina de maneira quase absoluta
(24,8%), quase desaparecendo o herói da classe alta-urbana e ficando
a média-média-urbana fortemente distanciada dos seus dois extremos:
da média-alta, com 6,8% e da média-baixa, com 10,2%. O herói de
origem social baixa começa a surgir.
Ètnicamente o herói pós-patriarcal continua predominantemente
branco (9,3%), ou provavelmente branco (23,8%), sendo raro o
herói de etnia ostensivamente negra. Os heróis mestiços apresentam-se,
entretanto, com aumento considerável em relação ao período patriarcal,
competindo quase com o herói de etnia branca (11,1%). O ameríndio
continua com sua limitada presença (0,9%).
O herói pós-patriarcal é, ainda, um longilíneo (10,2%). É quase
sempre brasileiro (46,6%), aparecendo um aumento, entretanto, no
número de heróis, estrangeiros e quase desaparecendo o herói português.
Seu ambiente de maior duração de existência romanesca é o urbano
(38,8%), decrescendo o rural (2,6%), com a Córte e depois, a Capital
Federal (12,0%), perdendo seu lugar para as capitais de Províncias
ou Estados (16,2%) no que diz respeito à fixação de heróis. O interior
decresce em número (5,1%) como local de permanência de heróis ou
de vilões. Há um fluxo maior de heróis rurais para ambientes urbanos.
Sua educação mantém-se ainda entre a superior (7,7%) e a média
(21,3%), havendo no entanto, um aumento no número de heróis
alfabetizados (11,1%) .
Os divertimentos deixam transparecer outra mudança psico-social
siqnificativa: os de caráter puramente intelectual (4,3%)o relegados
a segundo plano, em face da preferência por divertimentos esportivos,
mais do gosto do herói pós-patriarcal (5,1%) . O divertimento mundano
continua a atrair adeptos.
A saúde dos heróis mantêm-se boa (35,8%) e a elegância de
trajo burguês, europeu se apresenta como um característico
significativo de classe ou de status. Ainda 11,1% dos heróis patriarcais
ostentam-na em suas formas burguesas e européias., no entanto,
quase um desaparecimento do herói pitorescamente regional do
tipo do «matuto» de Tavora e do selvagem o «bom selvagem»
dos romances de Alencar. Os vícios significantes aumentam sua inci-
dência no herói (3,4%), continuando porém os insignificantes a
predominar.
O panorama no que diz respeito aos característicos de personali-
dade apresenta-se aparentemente inalterado. Os heróis aindao
introvertidos (29,9%) ou, antes, mais intra que extrovertido: 13,7%.
Nota-se, porém, extra-estatisticamente, um comportamento mais descon-
traído da parte dos heróis. Continua o herói típico predominantemente
apolíneo, porémo se pode negar sua indisfarçável tendência para
rompantes dionisíacos de comportamento.
O vilão do período pós-patriarcal continua seguindo o herói em
muitos pontos. Há menor contraste entre a figura do herói e a do
vilão. O vilão pós-patriarcal, como o patriarcal, é, em sua maior parte,
masculino. Também, em grande parte, jovem ou moço. Porém, em
profissão ou atividade, se apresenta mais diversificado que na época
patriarcal. É ainda mais solteiro que casado: solteiros (5,1%) contra
4,2% de casados.
Sua situação social, quando urbana, é proporcionalmente igual à
do herói, com a média-média-urbana 4,3% predominando sobre a
média-alta e sobre a média-baixa (2,6 e 0,9% respectivamente) . Quando
rural o meio, o mesmo fenômeno que observamos no herói rural
acontece: quase desaparecem da classe média-alta-rural.
A classe média-baixa-rural inexiste para os vilões ocorrendo sua
fixação repita-se na classe média-média-rural.
No que diz respeito à etnia, os vilões brancos (0,9%)o em
número igual aos vilões negros (0,9%), com o vilão ameríndioo
se fazendo notar. Apresentam-se com aumento no número os vilões
mestiços. É claro que essas proporções ocorrem em relação à predo-
minância de personagens brancos nos romances brasileiros que, tendo
sido forte na época patriarcal,o deixou de se fazer sentir nos
romances da época pós-patriarcal, tornando de certo modo arbitrárias
as relações entre etnias nas sociedades fictícias com as etnias na
sociedade real.
o os vilões da época pós-patriarcal predominantemente longilí-
neos, brasileiros e de ambiente urbano tanto quanto os heróis. Em
matéria de educação, a superior e a média estão num mesmo plano
estatístico (2,6%), desaparecendo os vilões com preferência por diver-
timentos intelectuais e preferindo, como os heróis, a esses, os diverti-
mentos mundanos: teatro, casas públicas de jogo, cabarés.
Sua saúde é boa (3,4% contra apenas 0,9% de doentes) . Fato
interessante ocorre no vestiário: o vilão pós-patriarcal apresenta-se
elegante à maneira urbano-burguêsa. Quaseo existe o vilão rústico,
regional, simbólico ou selvagem. Seus vícios obedecem o mesmo nor-
mativo do herói: 0,9% para os insignificantes, 2,6% para os signi-
ficantes .
Em característicos de personalidade, no entanto, ocorre um con-
traste maior: 0,9% dos vilões pós-patriarcaiso introvertidos contra
7,7% de vilões extrovertidos. A condição mais introvertida que extro-
vertida desaparece entre os vilões. Os vilões dionisíacos predominam
sobre os vilões apolíneos (0,9% e 9,4% para apolíneos e dionisíacos
respectivamente) . Os vilões do período pós-patriarcalm sua anor-
malidade social em igual número ao que apresentam superficialmente
de normalidade (5,1%) social.
* * *
Para a pesquisa «Tipos Antropológicos no Romance Brasileiro»
foram lidos 200 romances. Esses romances foram situados em dois
tempos sociais: o patriarcal e o pós-patriarcal, o primeiro com 150
romances e 418 personagens, o segundo com 50 romances e 117 per-
sonagens, ambos subdivididos em 4 éticas: herói, vilão, misto e neutro.
Por se tratar de números de personagens diferentes nos dois
tempos sociais, foram considerados também dois universos distintos.
Para o cálculo dos percentuais, foi considerado o número de heróis,
vilões, mistos e neutros de cada período, o patriarcal e o pós-patriarcal,
e dividimos pelo total, ou seja, para o patriarcal, por 418 personagens.
Esse processo foi adotado para todos os itens, a fim de se verificar
a maior ou menor incidência dos heróis, vilões, mistos e neutros com
relação a: sexo, idade, profissão e atividade característica, estado civil,
situação social, etnia, tipo físico, origem do personagem, ambiente
de maior duração na vida do personagem, educação, divertimentos e
passatempos, saúde, características principais do trajo, vícios e caracte-
rísticas de personalidade. Exemplo: na categoria sexo do período
patriarcal foram constatados 111 heróis, 47 vilões, 43 mistos e 61
neutros, do sexo masculino. Essas quantidades foram divididas pelo
total de personagens, ou seja 418, que deram percentual de 26,6%,
11,2%, 10,3% e 14,6%. Daí chegou-se à conclusão de que, no período
patriarcal, o total de personagens do sexo masculino, nas 4 éticas,
foi de 262 e o percentual de 62,7%. Procedeu-se da mesma forma
com os personagens do sexo feminino.
Esse mesmo critério foi adotado para os personagens do período
pós-patriarcal.
HERÓIS E VILÕES NO ROMANCE BRASILEIRO
PESQUISA SOBRE TIPOS ANTROPOLÓGICOS NO ROMANCE BRASILEIRO
Período Patriarcal
1. SEXO
2. IDADE
3. PROFISSÃO E ATIVIDADE CARACTERÍSTICA
ÉTICA
Htrói
Villo
Misto
Neutro
TOTAL
ÉTICA
Herói
Vilão -..
Misto
Neutro
TOTAL
ÉTICA
Herói...;
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
GILBERTO FREYRE, GILSON SOARES E JOSÉ FRANCISCO CARNEIRO
4. ESTADO CIVIL
ÉTICA
Herói
Villo
Misto
Neutro
TOTAL
5. SITUAÇÃO SOCIAL
ÉTICA
Herói
Vilão -....
Misto
Neutro
TOTAL -..
6. ETNIA
ÉTICA
Herói
Vilão -..
Misto
Neutro
TOTAL -
HERÓIS E VILÕES NO ROMANCE BRASILEIRO
7. TIPO FISICO
8. ORIGEM DO PERSONAGEM
9. AMBIENTE DE MAIOR DURAÇÃO NA VIDA DO PERSONAGEM
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
GILBERTO FREYRE, GILSON SOARES E JOSÉ FRANCISCO CARNEIRO
10. AMBIENTE DE MAIOR DURAÇÃO NA VIDA DO PERSONAGEM
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
11. EDUCAÇÃO
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
12. DIVERTIMENTOS E PASSATEMPOS
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
HERÓIS E VILÕES NO ROMANCE BRASILEIRO
13. SAÚDE
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
14. CARACTERISTICAS PRINCIPAIS DE TRAJO
ÉTICA
Herói
Vilão -....
Misto
Neutro
TOTAL -
15. VICIOS
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
GILBERTO FREYRE, GILSON SOARES E JOSÉ FRANCISCO CARNEIRO
16. CARACTERÍSTICAS DE PERSONALIDADE
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
17. CARACTERISTICAS DE PERSONALIDADE
Período Pós-Patriarcal
1. SEXO
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL...
HERÓIS E VILÕES NO ROMANCE BRASILEIRO
2. IDADE
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
3. PROFISSÃO E ATIVIDADE CARACTERÍSTICA
ÉTICA
Herói
Vilão -....
Misto
Neutro -
TOTAL -..
4. ESTADO CIVIL
ÉTICA
Herói
Vil5o
Misto
Neutro
TOTAL
GILBERTO FREYRE, GILSON SOARES E JOSÉ FRANCISCO CARNEIRO
5. SITUAÇÃO SOCIAL
ÉTICA
Herói
Vilão -
Misto
Neutro
TOTAL -..
6. ETNIA
7. TIPO FISICO
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
ÉTICA
Herói
Vilão -
Misto
Neutro
TOTAL -
HERÓIS E VILÕES NO ROMANCE BRASILEIRO
8. ORIGEM DO PERSONAGEM
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
9. AMBIENTE DE MAIOR DURAÇÃO NA VIDA DO PERSONAGEM
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
10. AMBIENTE DE MAIOR DURAÇÃO NA VIDA DO PERSONAGEM
ÉTICA
Herói
Vilão....
Misto
Neutro
TOTAL
GILBERTO FREYRE, GILSON SOARES E JOSÉ FRANCISCO CARNEIRO
11. EDUCAÇÃO
12. DIVERTIMENTOS E PASSATEMPOS
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
13. SAÚDE
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
14. CARACTERISTICAS PRINCIPAIS DE TRAJO
ÉTICA
Herói
Vilão ...
Misto
Neutro
TOTAL -
15. VICIOS
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
16. CARACTERISTICAS DE PERSONALIDADE
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL
GILBERTO FREYRE, GILSON SOARES E JOSÉ FRANCISCO CARNEIRO
17. CARACTERÍSTICAS DE PERSONALIDADE
ÉTICA
Herói
Vilão
Misto
Neutro
TOTAL...
Dario Vellozo
Rio de Janeiro 26-11-1869
Curitiba 28-9-1937
NOVA HÉLADE
ANDRADE MURICY
O Mestre era Euzébio Silveira da Mota, nos primórdios déste
século, nosso lente de Lògica, e exegéta implacável de Stuart Mill.
Primo de Álvares de Azevedo, colega de turma e de formatura, na
Faculdade de Direito de Sao Paulo, de Joaquim Nabuco, Afonso
Penna, Rodrigues Alves, Rui Barbosa, e, durante o ano de 1868, de
Castro Alves, o «velho» Euzébio considerava-se anti-místico. O seu
platonismoo era o das regiões vertiginosas, das altitudes da con-
templação interior; ou, quem sabe, recalcava-o para algum indevassável
«santo dos santos». Adivinhávamos nele um visionário secreto, a quem
o néo-platonismo de Plotino seduzia, porém deixando-o transido, sob
um deslumbramento cegante. Penso, hoje, que nem mesmo teria evo-
cado os cenários históricos em que a Academia platônica se acusara
como realidade concreta. Talvez lhe fosse indiferente a Atenas de
mármore, e tôda a glória azul do Mar Jônio.
E eis que uma nova Hélade se foi afirmando, na Curitiba de
minha adolescência, presença sensível em tórno do logicista impenitente.
Ao invés das vozes de frioo do implacável jogo da Razão,
das Categorias aristotélicas ou da Escolástica nominalista, era a
Hélade das Cores e dos Ritmos em que ia imergindo, surpreendido.
Surgida, dir-se-ia, das espumas iridiscentes, como Afrodita, juvenil e
virginal, vencidos os vagalhões turvos e sombrios provocados pela
sangrenta ressaca da Revolução Federalista de 93, e pelo repentino
adensamento das virtualidades criadoras; e foi a preamar do Deca-
dentismo e do Simbolismo, que ali se afirmaram, com uma pujança
juvenil. A nova Hélade formou-se nos derradeiros anos da «belle epoque»
e ainda hoje, uns sessenta depois, ainda vestígios seus persistem, que
se insinuam pela trama de complexidade e dinamismo da realidade
paranaense, neste ano em que seria centenário Dario Vellozo (26 de
novembro de 1869-1969).
O cenário? «A paisagem é grega, escreveu um dos adolescentes
maravilhados, dentre os que ouviam as lições taumatúrgicas déste
principe da juventude, e as sereníssimas e transcendentes de Euzébio
Mota. desenvolve-se luminosa, ondulante, suave, dir-se-ia quase,
musical. No horizonte afastado, perfil esmaecido de montanhas azuis,
a circundá-la tôda. A atmosfera, deo límpida e diáfana, como que
perturba a linha das perspectivas. Nos jardins, nas colinas, erguem-se
cedros e ciprestes clássicos. Um pouco mais ao longe, os pinheirais
hieráticos.
Se é em setembro, quando os pessegueiros florescem, a cidade
veste-se de um mantor de rosa. É então que mais lindo se faz o
seu perfil adolescente. É, nesse instante, a cidade da alegria serena,
dos enlêvos idílicos, da mansuétude interior.
Hã uma orgia de flores e folhagens: tufos verdes e polícromas
assembléias, brotando de cada canto, as trepadeiras enroscam-se emol-
durando os chalets, subindo a muros altos, enfestoando os gradis. Por
tôda parte, a mesma graça jovem, a mesma impressão de virgem puber-
dade, que é o traço mais característico de Curitiba. E, coroando o
conjunto, o clarou sulino, alto e límpido, algumas vêzes profundo.
u de seda macia, desdobrado como benção de amor sobre a paisagem
florescente». ( 1 )
Esse, o cenário, expresso de maneira insuperável; cenário profun-
damente trabalhado pelo homem, depois de vencido o paúl primitivo,
tremedal até bem pouco ainda renitente aqui e ali, com o qual se
defrontaram no longínquo Seiscentos, os meus avoengos bandeirantes.
Dario Vellozo, carioca, chegara menino, aos 14 anos, aprendiz
tipògrafo, com uma imensa ânsia de conhecimento. «No Paraná,
escreve, referindo-se a Euzébio Mota, a convivência de austero
filósofo amadurecera-lhe o espírito, em plena adolescência. Dominou-o o
enigma da Substância e da Essência, a tortura de abstrair as formas
que vestem e velam a realidade». (2) Abria-se, assim, o caminho
para a Poesia, porém para uma radical transfiguração do real:
Ocaso.' Ópatas e amaranto,
Jalne e opala;
Curva azul de horizontes,
Montes...
Além. o Sul trescala
Ánforas de óleo-santo,
Lirio e nenúfar. . .
Unção da Noite, prece.
Voguemos!
O Ocaso é mar
De violetas e crisantemos. ..
Ceifeiro a messe
De meu amor vai ceifarl
NOVA HÉLADE
O Sol mergulha,
E a Noite crepes negros estende,
Crepes da alma,
Luto da alma,
Crepes sobre o mavì
Esperançai Esquife de hulha'-
Impiedade,
Crueldade,
Esperança, Flor dos Lírios vão te incinerar!
Carregam traves. ..
Fu mega a pira!
Lira,
Entra a cantar!
Morro de frio em minha ermida branca,
Alva de luar. . .
Urzes crescem na ermida,
Urzes da vida,
Urzes da ermida branca. . .
Que mão de piedade arranca
Urzes de bruma de meu tédio, Istar?
Mendigo
Cego e morto de fome. . .
Dá-me a luz de teu nome,
O sol de teu olhar!
Tens a meiguice de olhar de monja,
Istar.
. Meu olhar é uma esponja
Que bebe a luz de teu olhar.
Vais tão alto e tão longe!
Cego! Que serei eu?
Monge
Que nos reps da noite se envolveu... (3)
Parecerá inimaginável esse paroxismo decadentista, num jovem
saudável, entusiasta, de idealismo engajadíssimo, essa tôrre-de-marfim
tenebrosa.. . Mas os tempos passaram. Levado pelas mãos do Mestre
a outros páramos, de pensamento depurado de escórias esteticistas,
herméticas até um extremo sem dúvida negativo e esterilizante, a
aproximação das auras néo-helênicas já provocavam no seu estro acordes
assim :
Plenilúnio. O luas molha as colunas dóricas. ..
Junto ao pronaos medito, evocando o teu rosto.
Que saudade de ti, dessa tarde de Agosto,
De tintas outonais... ( 3 )
Adensava-se em realidade que luminoso sonho suscitara, e, por
artificiosa que tenha sido a sua concepção, feita vida e experiência
existencial indelével no passado espiritual de minha terra, e uma verdade
nova: a da aceitação da alegria, até então excluída pelo brumoso
fatalismo do Decadentismo. O pròprio Mestre venerando, aquêle
filòsofo abstraído dos ritmos do quotidiano imediato, seria desde então
a Testemunha, sempre rodeado de admiração, chamado a tudo pacien-
temente presidir, e, quem sabe, aprovar.. . Era como se o velho plato-
nista se fosse esgueirando, ao longo dessas surpreendentes sebes
helénicas, recuperadas dos milênios; talvez entrefechando os olhos,
feridos pelo excesso dessas oníricas luminárias. Talvez nem bem as
percebesse, porém carinhosamente acedendo, como num naufrágio feliz.. .
o bem à margem, porém como aquêle estranho pássaro,
Pássaro negro, de plumágem [eia.
... se queda, como quem se enfeia
Horas a [io misteriosamente.. . (4)
Euzébio teria, ainda assim, de sair de sua caverna. Deixaria de
somente freqüentar o seu habitual e fechadíssimo clube, o dos jogos
das categorias de Substância e Essência, onde se entregava a infinito
diálogo sem interlocutores, como quando comentava, diante de nós,
seus alunos, as comédias de Aristófanes ou alguma passagem de
A República de Platão...
O que se lhe armara em torno,o sùbitamente, e quase como
uma montagem de teatro, fora aquela curiosa e delicada Nova Hélade,
uma aventura do espírito de um poeta, por êle criada como num golpe
de mágica.oo somente os fantasmas que existem, como diria
Chesterton, mas sobretudo a força demiùrgica de uma mistagogia
exaltada :
Iam dentro de um sonho, coroadas
De narcisos, as Ninfas, ondulando
Os peplos de safira, enamoradas
Amigas de Persé[one, cantando. . .
Iam cantando o amor, as alvoradas!. . . (5)
Dario Vellozo foi o deus-ex-machina da inesperada [eérie néo-
helênica. com um prestígio que nos parecia (éramos adolescentes...)
taumatùrgico. Tirou de sua imaginação aquela realidade-de-arte (que
o é bem a realidade de vida), a qual durou até os começos da
grande guerra de 1914-18.
como perante tôda realidade-de-arte, da parte daqueles que tinham
o espírito fechado ao júbilo da Poesia, houve sorrisos; muitas vêzes
franca antipatia. Aquele paganismo floridoo chegou, porém, a
assustar. Nem mais assusta hoje, porque, afinal, passou como breve
visão da fecunda Fantasia, projetada em irisada nuvem...s sen-
tíamos, obscuramente, como ao fenômeno de concretização dum ato ima-
ginativo. Êle se inscrevia com propriedade naquele cenário formoso
fixado por Tasso da Silveira, em evocação de pura poesia, página para
sempre necessária e fundamental de qualquer antologia paranaene,
escrita poucos anos depois de interrompido o espetáculo. . .
Curioso é que o único elemento talvez um tanto restrito daquele
lindo quadro, deo insinuantes inflexões barrèsianas, poderia ser a
própria afirmação inicial: «A paisagem é grega». Que assim pudés-
semos considerá-la era então inevitável,o vivo o seu interesse imediato
de sedução. A paisagem curitibana, porém,o era grega. Era a
da Grécia ques idealizávamos. Nas minhas viagens encontrei
outras, que talvez bem mais próximas me pareceram da da minha Curi-
tiba: por exemplo, Fiesole e os arredores de Florença, com os seus
ciprestes estilizados e nítidos. Sem dúvida, na cidade do Lírio Ver-
melho o hieratismo é como um cinzelado e bruñido de arte, enquanto o
hieratismo, na paisagem de Curitiba provinha das araucárias nativas,
graves, um pouco ríspidas e como dramáticas: mas também dos cedros,
das casuarinas, dos ciprestes, estes trazidos pelos velhos ¡migrados ger-
mânicos, como signos evocatórios da sua saudade. Doçura e claridade
como as da luz curitibana, porém muito menos florida, encontrâmo-la
ali, na Toscana, e, com matizes ainda mais finos, na indizível e serena
Umbria, sobre a qual os cânticos deo Francisco de Assis apuseram
uma pátina de divina alegria. A luz da Grécia, tal a da «Grande
Grécia» (aí incluídas Nápoles, Sorrento, Capri, Pompéia), é muito mais
«quente», dum dourado de que se aproxima a do Rio de Janeiro, quando,
nesta, a sua perpétua e rala névoa seca é ocasionalmente afastada...
Quão diferente daquela visão fiel de Curitiba, e fiel também como
expressão espiritual, e já dificilmente contralável, na Curitiba de
cimento-armado, de hoje, é a paisagem mediterrânea, semi-desértica,
com os seus austeros olivêdos, da Hélade atual.
A paisagem da Hélade clássica há muito nem mais existe. Real-
mente, pouco importa essa divagação interpretativa. A paisagem curi-
tibana é duma juvenilidade quase ingênua. . . No caso,o se tratava
da Hélade, porém de uma noya-Hélade. Dario Vellozo, quando teve
de optar, fê-lo em favor da «Grande Grécia», do Sui da Itália: e foi
uma «Nova Krótona» que espiritualmente fundou. (6)
Há quem ainda sorria dessa conversão do poeta simbolista para-
naense (nascido no Rio de Janeiro, de pai baiano ee carioca) a um
passado mais do que bi-milenário: e sobretudo pelo ter êle tentado ma-
terializar essa sua adesão ao recuado paganismo helénico. Rirão, quem
sabe ?, ainda, os incompreensivos por leviandade, ou os puritanos, pre-
venidos contra os gestos livres e graciosos de imaginação ativa e do
júbilo juvenil. Por mim, que presenciei, com certa desconfiança de co-
meço, ao espetáculo, êle se mez muito logo simpático, por parecer-me
compatível com os meus sonhos sociais de então: o falanstèrio de Fourier,
nos termos líricos em que o apresentava um livro, então dos meus pre-
diletos: Travail, de Zola. Nada havia, no entanto, nada de grotesco
naquilo tudo. Sorrir, sim, eu sorria, um pouco, então, afastado sempre,
como me impunha uma congênita e definitiva timidez, e também, vejo-o
hoje, a inconfiança complacente que no poeta ilustre provocara o meu
apagamento. (7)
A formação dos simbolistas do Paraná recebeu grandes subsídios
ao Esoterismo. De todos, foi Dario Vellozo o mais inebriado por essa
misticidade obscura, cuja correnteza subterrânea tem aflorado tantas
vêzes à superfície da cultura ocidental, e,o próximo ainda, em pleno
Romantismo francês novecentista, (8) apresentando como credenciais
mais autnêticas os trabalhos da Alquimia medieval, que preludiaram à
ciência moderna. Dario Vellozo, por muito tempo, entreteve, parece, luta
espiritual íntima. Foi, aos poucos, porém, instilando esoterismo na
sua obra de poeta e de escritor- Aos poucos, também, um hermetismo
estrito foi dominando aquela produção. Chegou a um compromisso
sui-generis entre os elementos da antiga retórica altissonante, e uma
concisão bastante rígida. Foi, por outro lado, criando um vocabulário
e expressões tipo muito particulares, uma verdadeira tecnologia «iniciá-
tica», que invadiu por completo o texto dos seus numerosíssimos
opúsculos e revistas especiais, por êle próprio compostos e impressos, em
pequena tipografia de sua propriedade.
Por outro lado, muitos dos simbolistas eram remanescentes, apesar
de ainda jovens, das campanhas republicana e abolicionista, principal-
mente Nestor Vítor e Rocha Pombo. (9) com os princípios republicanos
tinham se insinuado convicções positivistas (que só mais tarde encon-
traram, em João Pernetta, irmão de Emiliano, o seu apóstolo local), e
principalmente um laicismo, um ultra-voltairianismo, um anticlericalismo
fanáticos, ultra porque implicavam quase sempre em ateísmo militante,
quando o próprio Voltaire era deista. Isso, muito por influxo da Ma-
çonaria, e nesta Dario Vellozo encontrava aspectos rituais e iniciáticos
para êle cheios de atrativo, por que afins com os do Esoterismo antigo.
Dario já era, de tudo isso, como a própria encarnação, quando lhe
veio às mãos instrumento decisivo de eficiência apostolar: o professo-
rado, na cátedra de História Universal e do Brasil do Ginásio Para-
naense e da Escola Normal. Foi-lhe ela incomparável tribuna.
Dentro em pouco, o seu prestígio era levado para o Estado inteiro, e
até muitas vêzes para Santa Catarina, por várias gerações de estudantes.
Dario Vellozoo era um Sócrates, como a Eusebio Mota se lhe
afigurava ser, mas realmente o aedo, o vates, em missão de proselitismo
e de encantamento. Dificilmente algum aluno teve coragem de dis-
sentir da sua lição: nem mesmo teria qualquer disposição defensiva
pessoal consciente em relação a êle. Depõe Tasso da Silveira, como
eu poderia fazê-lo,o estivesse já assim realizado esse registro ad rei
memoriam: «Êle é o Mestre querido e evocado a todos os instantes.
Amam-no os jovens com um amor que é antes paixão exclusiva, admi-
ração queo admite restrições, entusiasmo queo quer mais analisar.»
Segue: «Cada um trabalha, no mais rude esforço íntimo ,por se fazer
individualmente indefectível aos olhos do Mestre. Os pequeninos
vícios desconhecidos tomam na consciência de cada um proporções de
faltas graves. O Mestre vai adivinhar pelos olhos. . .» (10)
Inesquecível, a magia evocativa que representava o elemento di-
nâmico em suas aulas. Sem ser propriamente um visualista e um plás-
tico, ainda assim estas lhe saiam como quadros cheios de vida. Prova de
que sabia estimular as imaginações. A História apresentava-se-lhe como
um panorama, um [riso rico e sugestivo, que se ia desenrolando, em
cores brilhantes, aqui e ali carregadas de treva e lampejos sinistros.
Porque Dario interpretava apaixonadamente a História à luz de suas
convicções, dos seus princípios. A História-erudição e documentário,
que aliás seria realmente imprópria naquele grau do ensino, porém sub-
entendida nos fundamentos da matéria a expor, era substituída pela
re-criação, por assim dizer artística, encantatória, levada num verbo mu-
sica], que se fazia cetinoso ou soava com característicos sibílos ríspidos,
ligeiramente anasalados,o seus característicos, de ironia e condenação.
«Os cenários antigos se desenham nítidos.» ( Diria, talvez eu:
envoltos num halo transfigurador. ) «As grandes figuras universais
tomam relevo de estátuas animadas.» Se trata de Jesus: «Contorna-
mos o lago de Genezaré, enternecemo-nos com os apóstolos.» Depois:
«Raras vêzes pregador cristão terá conseguido gravaro fundo na ar-
gila plástica das almas o semblante divino de Jesus. E a impressão
dominante e sempre a de doçura, de uma doçura infinita, iluminando
tudo, escorrendo sobre a vida, como um luar». (11)
O mel do Mestre crisólogo insinuava ems um Jesus que era o
de Renan, poética sombra romanesca. A Companhia de Jesus era a «in-
fame», de Voltaire. Savonarola, Galileu; o Marquês de Pombal (por ter
expulso os jesuítas); o papa Clemente XIV, por que dissolvera a referida
Companhia, eram apresentados como os gigantes da História, de par
com os prógonos da Revolução Francesa. Até mesmo os mediocríssimos e
incompreensivos Waldeck-Rousseau e Combes eram venerados como
padrões de civismo e de laicismo esclarecido, portadores da grande tra-
dição da Verdade e da Justiça. A Rocha Pombo aludia-se com amar-
gura, por motivo de ter traçado nobres páginas sobre a catequese je-
suítica nos primórdios da nacionalidade, em sua monumental História do
Brasil. Nós, seus alunos, éramos com tudo isso plenamente concor-
dantes. Mais ainda, como ainda observa Tasso da Silveira: «Sob o
império de tal força de pretígio, os estudantes se tornam, em relação a
Dario, verdadeiros discípulos, no sentido filosófico da palavra.» Alguns,
aliás, foram-lhe discípulos amados e verdadeiros apóstolos.
Bastante para além e para oeste de Curitiba, Dario construiu um
solar, modesto e simpático, de madeira, com a sua varanda coberta de
trepadeiras, e que rodeou de árvores. Ao fundo havia um terreno de
labor, no qual, tolstoiano a seu modo,z lavrarem a terra filhos e filhas,
e lavrou-a, enquanto pôde, êle próprio. Chamou-lhe o «Retiro Sau-
doso», do nome do arrabalde do Rio de Janeiro em que nascera. No
dia aniversário do Mestre, havia, todos os anos, peregrinação carinhosa
ao «Retiro Saudoso». Satisfação sincera para êle, que nos recebia sor-
rindo, e com aquêles seus olhos azuis, dum azul escuro e vivaz, olhos
de poeta, iluminados de sonho, olhos de polemista, por vêzes, agudos e
intimidantes. uma festa para nós, também, e como uma celebração um
pouco misteriosa.
Daí, pôde Dario Vellozo dar um passo para diante. À antiga
Grécia daria sua preferência par nela situar o seu sonho. Tudo que
se lhe referisse cativava-o e o exaltava. uma Grécia também de sonho,
trabalhada, alindada pelo trabalho lendário de dois milênios de ideali-
zação. Por vêzes, até, uma Grécia unilateral, parcial, romântica, e tal
romo tem a sua arbitrária apologia num livro que apaixonada e religio-
samente reliamos: O Último Fauno, do português João Grave» (12)
O passo para diante dado por Dario Vellozo foi precisamente o
que de menos eficaz fêz, mas que tanto deu na vista, e tanto foi criti-
cado: a realização das «Festas da Primavera». Os jovens e as jovens,
levestidos de clámides de cores rigorosamente autênticas em relação às
da indumentária grega antiga, por sobre as brancas túnicas. Crianças
«empunhando guirlandas que formavam, entre uma fila e outra, ensom-
brada abóbada de flores», recorda ainda Tasso da Silveira. Depois
do desfile, no jardim principal da cidade, começavam os jogos atléticos,
os velhos jogos olímpicos: pentatlon, lançamento do disco, lutas, etc;
e também torneios poéticos e corais.
Faltavam, ali, sem dúvida, o teatro, a Tragédia, a Comédia, mas
sobretudo a Dança, está claro que por absoluta deficiência do meio.
Na Curitiba atual até isso seria possível. Em compensação, cada ano
era eleita para personificar a Primavera, uma «Clorís» curitibana,o
menos bela do que a antiga figura mitológica, personificação helênica
da Primavera...
Dario Vellozo sobreviveu ao maremoto da guerra mundial de 1914
quez esvaecer o seu sonho. Daí o ter-lhe dado, afinal, corpo dife-
rente, porém, dessa vez, concreto:z edificar o Templo das Musas,
ainda no seu querido Retiro Saudoso. Ali presidia a celebrações com-
plexamente rituais, a serviço do Instituto Pitagórico, a que tanto se de-
votou, e que permanece. com a rica biblioteca especialíssima de Dario
Vellozo (Simbolismo e todo o Esoterismo mundial), esse singelo Par-
tenon curitibano foi em boa hora devidamente tombado. Já então che-
gara para o poeta, com a aposentadoria de sua cátedra, a possibilidade
de mais profundamente recolher-se àquela «vie recluse en poesie», como
se exprime Patrice de La Tour du Pin. Edificada a sua epopéia in-
irìnsccamente esoterista Atlântida, vimos o estro do poeta de Rudel
um seu antigo ciclo arcaizante, à maneira medieval, eo cordial de
atmosfera sentimental, chegar à simplicidade superior, superoridade
de arte, que subentende complexidade interior, e ressoar em harpejos de
penetrante suavidade. Um poeta que Manuel Bandeira declarou ter
sido «grandemente sacrificado» pelo «nefelibatismo» terá sido um dos
que mais longamente foram marcados por essa tendência; e verificamos
agora, quando as suas poesias completas foram por fim reunidas no
III volume das OBRAS (edição do Centenário), - que terá sido Dario
Vellozo o mais carregado de decadentismo dentre todos os poetas do
movimento, para o que terá concorrido a sua completa entrega ao Eso-
terismo, a tôdas as doutrinas iniciáticas de raízes oriental ou medievais,
mas sobretudo gregas.
A expressão intencionalmente elíptica e mesmo, tanta vez rígida,
levou-o a um hieratismoo propriamente hermético, porém eminente-
mente incomunicativo., porém, em Cineràrio (1929), assinalam-se
muitos indícios de uma flexibilização do instrumento verbal. A florida
«Nova Héláde» insinuara no teor esoterista progressivas intervenções
daquele «natural» de que falava Sainte-Beuve, numa humanização da
expressão que evidenciava reservas secretas de sensibilidade e mesmo
de sensualidade, no sentido estético do vocábulo. Na adusta Atlântida,
suma de seus conhecimentos esoteristas, mesmo ali já encontramos traços
assim:
Branca areia das praias!. . .
Areia de cambraias !...
Longas praias,
Polvilhadas do pó da lua cheia !
No alto o céu sereno, azul de seda,
à noite de brilhantes tauxiado,
No litoral as praias marulhosas
De âmbar e cristal pulverizado.
; ao Norte a [lama
Da zona quente, e temperada ao Sui;
Numa a purpura viva, a outra recama
O linho das geadas sob o azul. (13)
Retorna, sem dúvida, quase a cada passo, a nota decadentista,,
porém capaz de fluidez:
E as merencóreas lágrimas colhia,
Em sua merencórea soledade,
Transmudando-as de gotas de agonia
Em lírios brancos de serenidade. (14)
Já se permite por vêzes um livre movimento contemplativo:
Calma e silêncio; os astros cintilando
Nos altos céus,
Filtrando,
Através dos tenues véus
Da noite majestosa,
O aroma das pétalas, a rosa
Da lua branca... (15)
De manso e manso a neve das Estrelas
Faz-lhe mais branca a [ace pálida. (16)
O velho Mestre aquêle quase fantasmático Euzébio Mota, o es-
quivo Mentor da colorida e florida aventura helenizante, já se fora,
deixando o Mago do Retiro Saudoso sem o apoio do seu sorriso, quem
sabe talvez enigmático... Morrera sozinho comigo, seu antigo aluno
tímido, num quarto de hotel carioca. Naquele Templo das Musas,
Dario Vellozo sentia insinuar-se o seu próprio crepúsculo nos magnífi-
cos, imensos crepúsculos do planalto que acolhera o carioca imigrado.
Este, agora, o seu verso irá aproximar-se da musicalidade que poderia ter
sido a sua em tôda a sua vida,o fora a constrição voluntária, o asce-
tismo expressional a que se jungiu; neste soneto, dos derradeiros que
escreveu ( «Santuário Branco» ) :
Branco de luz astral, branco de espuma,
O arminho encontro de macio pouso,
A impressão de jardim tranqüilo c umbroso,
Todo luar sem névoas e sem bruma.
Ninho, tecido de [rouxcl precioso,
Para o êxtase, o sonho, a prece, o encanto. . .
De onde se eleva o mavioso canto,
Blandicia de esperança e de repouso.
Nem rumores do mundo, nem rumores
De paixões, que malsinam, de venenos
Que travam de amargura os sonhadores;
Serenidades reflorindo em tudo,
Dúcteis arpejos de vergéis amenos,
A pureza das almas de veludo. (17)
Dario Vellozo faleceu no Retiro Saudoso, de Curitiba, a 28 de se-
tembro de 1937. Foi sepultado em cova rasa, o seu corpo «envolto
no hábito de linho dos pitagóricos».
O segredo
Da Hélade espiritual
Nos lábios de ouro do Cantor expira! (18)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (*)
1. Tasso da Silveira, Dario Velhzo/Períil espiritual. MCMXXI, Rio. Depois
in A Igreja Silenciosa, Anuário do Brasil, Rio, 1922.
2. Dario Vellozo, A Trança Loura, in obras, V. I, pag. 419.
3. Dario Vellozo, Cineràrio, Palingenesia, Curitiba, 1929, págs. 27 a 29. Id.,
pag. 165.
4. A. J. Pereira Da Silva, Solitudes, "Estranho pássaro", Leite Ribeiro, editora,
Rio, 1918, pag. 205.
5. Dario Vellozo, Atlântida, Curitiba, 1938, pag. 262.
6. Hoje Cortona, porém a do Sul, porquanto existe outra, da qual o oragoo
é Pitágoras, porém a admirável mistica Santa Margarida de Cortona.
7. Apesar dessa minha reserva, e como participação na derradeira Festa da Pri-
mavera, em setembro de 1913, publiquei, em opúsculo, um conto, intitulado
Sonata Paga, dedicada a Emiliano Perneta, com a mesma apresentação gráfica
de um outro, da autoria do meu saudoso amigo e companheiro de juventude,
Acir Guimarães, intitulado Sinfonia do Amor.
8. v. Auguste Viatte, Victor Hugo et les Illuminés de son temps. Editions de
l'Arbre, Montreal, Canadá, 1924.
v. E. Michelet. De l'Esoterisme dans l'Art, Paris, 1891.
v. Victor Charbonnel, Les Mystiques dans la Littérature présente. Mercure de
France, Paris, 1897.
9. v. Valfrido Piloto, Paranistas, Curitiba, 1938.
10. Tasso da Silveira, op. Cit., págs. 233/7.
11. Tasso da Silveira, op. cit., pag. 233.
12. Imagino o estupor que causaria então, se por lá o lessem, o desabusado ensaio
«Anti-Helênicas», de Jackson de Figueiredo, in Afirmações, Anuário do Brasil,
Rio, 1934, págs. 297/332.
13. Dario Vellozo, Atlântida, págs. 84, 101.
14. Dario Vellozo, Atlântida, pag. 202.
15. Dario Vellozo, Atlântida, pag. 218.
16. Dario Vellozo, Atlântida, pag. 298.
17. Dario Vellozo, Fogo Sagrado, in Obras, III, pag. 550.
18. Dario Vellozo, Atlântida, pag. 263.
( * ) O centenário do nascimento de Dario Vellozo foi comemorado pelo Insti-
tuto Pitagòrico (Templo das Musas, Rua Professor Dario Vellozo nº 460, Curitiba)
com a publicação integral das OBRAS do homenageado, em três volumes: I a) Horto
de Lisis, abrangendo os livros Ramo de Ouro, Luz de Crotona, No Jardim do Templo,
Nii Espiral da Harmonia e Irradiações Pitagóricas; b) Símbolos e Miragens; c) Do
Rciiro Saudoso; d) A Trança Loura; e e) Jesus-Pitagòrico ; II a) Primeiros
Ensaios; b) Esquifes; c) No Sólio do Amanhã; d) Da Tribuna e da Imprensa;
e) No Limiar da Paz; [) Livro de Alyr; g) Flauta Rústica; h) Psiques;
III |Poesia| a) Efêmeras; b) Alma Penitente; e) Esotéricas; d) Helicon;
e) Rude!; [) Cinerario; g) Atlântida; h) Fogo Sagrado; num total de 1.563-
ginas. Realizou-se no Templo das Musas, de 23 a 26 de novembro de 1969, o
Primeiro Encontro Internacional Pitagórico, com numerosas delegações, em comemo-
ração, também, do sexagésimo aniversario da fundação do Instituto Pitagórico. De
relevante significação foi o lançamento de Dario Vellozo/Cronologia, do ilustre cri-
tico e pedagogo Erasmo Pilotto (roteiro biográfico modelar), Curitiba, 1969.
CALENDÁRIO CULTURAL DE 1970
Terceiro Trimestre
CALENDÁRIO CULTURAL DE 1970
JULHO
DE JULHO CINQÜENTENÁRIO DE FALECIMENTO DE DELFIM
MOREIRA
Delfim Moreira da Costa Ribeiro nasceu no dia 7 de novembro de 1868 na
Fazenda da Pedra, municipio de Cristina (MG), e faleceu ao primeiro dia dos
de julho de 1920, em Santa Rita do Sapucaí. Foi secretário de governo em Minas
Gerais por dois quatriênios e Vice-Presidente da República, assumindo a Presidência
em virtude da morte de Rodrigues Alves, permanecendo no cargo até a eleição de
Epitácio Pessoa. A sua atuação foi destacada principalmente no campo da instrução
pública no interior.
18 DE JULHO DUZENTOS E CINQÜENTA ANOS DA EXECUÇÃO
DE FELIPE DOS SANTOS
Felipe dos Santos Freire foi executado em Vila Rica, hoje Ouro Preto (MG)
aos dezoito dias dos de julho de 1720, chefe da sedição que em Minas Gerais
serviria de princípio para a luta republicana culminada em 1898.
18 DE JULHO CENTENÁRIO DE FALECIMENTO DE FRANCISCO
JOSÉ FURTADO
Francisco José Furtado nasceu em Oeiras (PI) no dia 3 de agosto de 1818 e
faleceu aos dezoito dias dos de julho de 1870, no Rio de Janeiro. Foi, como
politico, orador no Parlamento e um dos chefes do Partido Liberal. Juiz íntegro
e ilustrado, um dos maiores que o Brasil já possuiu.
22 DE JULHO CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DO POETA
AZEVEDO CRUZ
João Antonio de Azevedo Cruz nasceu no município de Campos (RJ) aos vinte
e dois dias dos de julho de 1870 e faleceu em Nova Friburgo (RJ), no dia 22 de
janeiro de 1905. Poeta de tendência simbolista, publicou «Profissão de Fé» em 1901.
Suas poesias escolhidas foram reunidas em 1943 no livro «Sonho».
24 DE JULHO CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DO POETA
ALPHONSUS DE GUIMARAENS
Afonso Henriques da Costa Guimarães (Alphonsus de Guimaraens) nasceu aos
vinte e quatro dias dos de julho de 1870 em Ouro Preto (MG) e faleceu no dia
15 de julho de 1921 em Mariana, Minas Gerais Poeta dos maiores do Brasil filiou-
se à corrente simbolista, influenciado por Verlaine e Mallarmé, de quem foi tradutor
e a quem dedicou um soneto em francês no qual confessa o que lhe deve. Sua
biografia é pobre, pois sempre viveu no interior de Minas como juiz. Os seus
versos eram mandados para os jornais das cidades, ou revistas da capital. Dentre
as suas obras podemos destacar: «Setenario das Dores de Nossa Senhora» e «Cá-
mara Ardente», Rio 1889. «Dona Mística», Rio 1899. «Kiryale», Porto 1902.
«Pauvre Lyre», Ouro Preto 1921. «Pastoral aos Crentes do Amor e da Morte»,
o Paulo... 1923 (edição póstuma) . Todos estes livros e mais os inéditos foram
reunidos em «Poesias».
26 DE JULHO TREZENTOS E CINQÜENTA ANOS DE NASCIMENTO
DO PADRE ANTONIO DE SA
Antonio de Sá nasceu aos vinte e seis dias de julho de 1620, no Rio de Janeiro
e faleceu na mesma cidade no dia 1' de janeiro de 1678. Comparado à Vieira, o
padre Antonio de Sá foi um dos maiores pregadores brasileiros existindo uma edição
impressa em Lisboa, no ano de 1750, que reúne os seus sermões.
AGOSTO
5 DE AGOSTO CENTENARIO DE NASCIMENTO DO POETA
JOÃO ITIBERÊ DA CUNHA
João Itiberê da Cunha nasceu em Açungui, hoje Cerro Azul aos oito dias do
s de agosto de 1870 e faleceu no Rio de Janeiro a 25 de fevereiro de 1953. Com-
positor, crítico musical, jornalista e poeta. Foi o introdutor do movimento simbo-
lista no Paraná. A sua produção poética está reunida em «Préludes», publicado na
Bélgica em 1890.
SETEMBRO
i DE SETEMBRO CENTENARIO DE NASCIMENTO DO POETA
PETHION DE VILAR
Egas Moniz Barreto de Aragão era o nome de batismo do poeta baiano Pethion
de Vilar, que nasceu aos quatro dias dos de setembro de 1870, em Salvador,
BA e faleceu na mesma cidade no dia 18 de novembro de 1924. Médico, professor,
jornalista, poeta, foi um dos líderes do movimento simbolista baiano. Suas obras:
«Suprema Epopéia», Bahia 1900. «Lira Moderna». «Poesias Escolhidas», Lisboa,
1928 (edição póstuma).
7 DE SETEMBRO CINQÜENTENÁRIO DA CRIAÇÃO DA PRIMEIRA
UNIVERSIDADE BRASILEIRA,
a do Rio de Janeiro, composta de três faculdades: Direito, Engenharia e Medicina.
(Notas de Luiz Antonio Barreto).
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