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REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
Janeiro/Março 1973
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REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura
DIRETOR
Mozart de Araújo
CONSELHO DE REDAÇÃO
Octávio de Faria
Djacir Menezes
Adonias Filho
Pedro Calmon
Afonso Arinos de Mello Franco
Redação: Palácio da Cultura 7° andar
Rio de Janeiro Brasil
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
ANO
V _ JANEIRO/MARÇO - 1973 N. 15
ANEXO
ÍNDICE GERAL DA REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA (Nº 1, ju-
lho/setembro de 1969 a nº 14, outubro/dezembro de 1972), organizado por Amélia
Lucy Geisel, da Câmara do Patrimônio Histórico e Artístico, do C.F.C. ... 125
Sumário
ARTES
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES ..
MÁRIO BARATA
VICENTE SALLES
ADONIAS FILHO
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
SÔNIA BRAYNER
LETRAS
Arte e Sociedade nos Cemitérios
Brasileiros 9
Revisão de Picasso 17
A Biblioteca Nacional e a Mú-
sica Barroca Mineira 21
O Clássico e a Comunicação ... 41
Junqueira Freire e Mestre Fer-
nando Pessoa 49
Graciliano Ramos e o Romance
Trágico 59
O Centenário da Convenção de
Itu 73
A Civilização Fluminense 79
A Liberdade e suas Mistificações 89
Santos Dumont, Um Brasileiro .. 95
O Sebastianismo no Maranhão . 111
AFONSO ARINOS DE MELLO FRANCO .
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
DJACIR MENEZES
IVAN MARTINS VIANNA ..,
PEDRO BRAGA DOS SANTOS
CIÊNCIAS HUMANAS
Artes
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
Este livro tem uma co-autoria, presente em cada detalhe e mo-
mento: a de Erica do Prado Valladares, esposa do autor e sua com-
panheira em tudo que lavra há trinta anos.
Retornando ao tema principal que é o de Arte e Sociedade nos
Cemitérios Brasileiros, deixei dito que foi editado em 1972, porém
concluído em 1970. Dessa maneira os assuntos que serão comentados,
ocorreram daquela data para.
o falhas que teriam sido menores se tivesse tido oportunidade
de viagem ao Rio Grande do Sul e a Belém do Pará, antes da conclusão
do livro.
o teria deixado escapar a enorme construção comunitária dos
edifícios dos Cemitérios deo Miguel e Almas, de Porto Alegre, que
traduzem muito bem o caráter organizativo da sociedade a que servem.
Nem teria escapado a pomposidade burguesa dos cemitérios de Belém,
vicejantes no curso da riqueza da borracha, cercados de gradis ao
invés de muros, para que a pompa dos túmulos custosos pudesse ser
vista de longe.. .
Falha maior, do livro, verifica-se em relação aos cemitérios de
igrejas, e das catacumbas, de Minas antiga. Insisti, exaustivamente,
junto aos conhecedores de assuntos mineiros, quanto à existência de
lápides sepulcrais. Com exceção daquelas dos bispos de Mariana, que
antes ficavam no presbitério da Matriz, e das consagradas aos Incon-
fidentes no Museu e a Aleijadinho no chão da Igreja Matriz da Con-
ceição de Ouro Preto, em tempo algum consegui constatar outras.
De fato, na época dos enterros de chão de igreja, havia forte espírito
de irmandade em Minas e a inumação se fazia, sem demarcação de
perpetuidade, uma ao lado da imediata.
Qualo foi minha surpresa, recentemente, ao descobrir que o
adro altaneiro da Igreja Matriz de Santo Antônio de Tiradentes é
revestido de lajes sepulcrais epigrafadas, com datas legíveis a partir
de 1845, sendo uma delas a da Baronesa de Itaverava, em posição
de destaque, no eixo do centro, do jeito que ocorrem com os exemplos
do Norte.
Deixei, também, de perceber a transformação das catacumbas de
ordens ricas, v.g., a do Carmo deo João dei Rey, deo Francisco
de Cabo Frio, e da Ordem da Penitência da Bahia, de seus primitivos
protótipos bem equilibrados e discretos, em túmulos jactantes e fan-
tasiosos, laicisando, a toda força, aquilo que trazia a sobriedade re-
ligiosa .
Assinalei, maso com a ênfase necessária, a incrível perda de
patrimônio artístico que resulta da desfiguração das primitivas cata-
cumbas de igreja, aproveitadas como espaço de depósito, ou como
ossuário de subdivisões, sempre implicando na destruição do aspecto
ARTE E SOCIEDADE NOS CEMITÉRIOS BRASILEIROS
arquitetural de origem. No antigo convento franciscano de Santa
Maria dos Anjos de Penedo a sala que era o cemitério dos frades, hoje
é depósito. As catacumbas da Ordem Terceira deo Francisco da
Penitência na Bahia desfiguraram-se para a modernização mais rentável
como ossuário. Mais recentemente os frades capuchinhos do Convento
da Piedade da Bahia descobriram o primitivo cemitério, em forma cir-
cular, acompanhando as dimensões e as fundações da rotunda, totalmente
aterrado. Conseguiram, aqueles frades, por conta própria, abrir de
novo o espaço da catacumba monumental mas agora para loteá-la em
múltiplos columbários, ao gosto dos novos usuários.
Entre a data de entrega dos originais à tipografia (1970) e a de
publicação (1972) foram inumeráveis as mutilações, destruições, desa-
propriações de jazigos ditos perpétuos que observamos nos cemitérios
do Rio de Janeiro.
As próprias igrejas, quandoo se derrubam, pelo menos se mo-
dificam ou se esvaziam.
A primitiva igreja dos frades capuchos da Ilha de Bom Jesus da
Guanabara, hoje ligada ao Fundão, está totalmente esvaziada e alterada
em seus valores de origem e,, eu pude apenas constatar dois objetos
restantes: o lavabo da sacristia, de delfins cruzados entalhados em
pedra lios, e a notável lápide sepulcral do «PRIMEIRO PADROEIRO
DESTE CONVENTO ANTONIO TELES DE MENEZES», fale-
cido em 1757». O valor desta pedra tombai tanto é histórico, de
caráter genealógico, como é artístico pois é um dos mais belos relevos
de armaria paquifada, em pedra portuguesa embrechada, além de trazer
um certo detalhe extremamente raro em lápides da época: a rubrica
em caligrafia criptográfica, do entalhador-canteiro.
Acha-se no meio da nave, frente ao arco-cruzeiro, submetida ao
desgaste e sob o risco de se estragar, ainda mais.
Seria aconselhável que um objeto como esse, rareado eo im-
plicado à crónica fluminense, fosse conservado em posição vertical
numa das paredes, comoo as pedras tombais do Convento franciscano
de Santo Antônio, que foram transferidas do chão da nave para as
paredes do claustro. Ou então, em caso de menor interesse da atual
Igreja, que se doasse ao Museu da Cidade para o merecido destaque
e divulgação.
Nos cemitérios secularizados do Rio de Janeiro a perda de objetos
tumulares de eventual valor artístico é um acontecimento corriqueiro.
Um dos fatos que mais me impressionaram foi o de constatar as des-
truições, desaparecimentos e modificações de jazigos ditos perpétuos.
Provei, sobejamente, que a perpetuidade resulta da vigilância per-
manente dos herdeiros usuários. Para os cemitérios brasileiroso
há perpetuidade perpétua, mas vigiada.
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
O pior é que vários jazigos dotados de casualidade artística, sobre-
tudo os do terceiro quartel dos Oitocentos, acham-se mais frequente-
mente entre os atingidos pela tradição da perpetuidade cassada.
Para finalizar este depoimento com algo de útil, mais consequente,
passarei a mencionar alguns dos exemplos de túmulos em cemitérios
brasileiros, já destituídos de zelo dos usuários ou pelo menos sob possí-
vel permissão de melhor aproveitamento das esculturas, na eventualidade
de, por exemplo, doação e transferência para museus. Alguns desses
o de artistas brasileiros, mas outroso de escultores europeus de
renome e de obra fixada a vários museus internacionais.
De alguns tenho ouvido a advertência quanto a impropriedade de
arte funerária em âmbito de museu. Isto é contestável, tanto porque
os principais museus do mundo estão cheios dela, como porque as es-
culturas da época dos cemitérios secularizadoso supreendentemente
profanas.
*
No Cemitério dos Mínimos deo Francisco de Paula, no Ca-
tumbi, Rio de Janeiro, há no túmulo de Matilde de Castro um belo
busto de mármore, representando a jovem de dezesseis anos, com a
rubrica do escultor G. CLÉRE Paris 1893. Este jazigo acha-se
deteriorado, sem conservação. O busto é de excepcional lavor, repito
esta advertência, e já deveria estar no museu. Istoo seria favor
ao escultor pois o seu verbete biográfico do BENEZIT informa o seguinte:
G. CLÉRE GEORGE PROSPER CLÉRE escultor, nascido em Nancy,
a 9-11-1819, falecido em 1901. Escola francesa, discípulo de P.
Rude. Participou pela primeira vez no Salão de Paris de 1853 com
«Matoine au tombeau d'Oscar». Deve-se a este artista, no Palácio
do Louvre, o frontão «La Vendange» (...) o grupo de coroação da
praça Napoleão, a estátua «Phoebe» e outras. Trabalhou no Palácio
das Tuileries, no Palácio da Municipalidade de Versailles («La Seine
et 1'Oise», Le Triomphe de Flore», «Cérès», «Bacchus» et «Pomone»,
(bustos). O Museu de Nancy conserva deste artista «Histrion et
Hercule êtouffant le lion de Nemée», e no Museu de Chateau acha-se
no coro a «Jeanne d'Are» de sua autoria.
O busto de Matilde de Castro, abandonado no Cemitério de Ca-
tumbi, é obra de real valor artístico e de nível museológico.
Há no Cemitério deo João Batista do Rio de Janeiro um lu-
xuoso túmulo identificado pela epígrafe seguinte: A BOA AMIGA
ARTE E SOCIEDADE NOS CEMITÉRIOS BRASILEIROS
DOS INFELIZES / GRANDE PROTETORA DOS ANIMAES
/ ELVIRA SANTOS / (1853-1910) / SAUDADES DE SEU VE-
LHO AMIGO / JOAQUIM MURTINHO, encimado por uma ma-
gistral escultura em monobloco de mármore Carrara, figurando um belo
o terranova, sentado, que mede 120cm e traz a assinatura do esta-
tuário francês GARDET, datado de 1910.
Transcreverei agora, resumidamente, a notícia biográfica sobre
GEORGE GARDET, escultor, especializado em escultura animalista, nas-
cido em Paris a 1º de outubro de 1863 e falecido no ano de 1939.
Foi discípulo de Aimé Millet e de Fremiet. Reconhecido mestre ino-
vador de novas formas e matéria, em suas proposições. Autor do
grupo «Panthéte et Python» do Parque Montsouris, apresentado no
Salon de 1887, que lhe valeu o título de sucessor de Barye e de Mêne.
De sua numerosa obra destacam-se o «Tigre» e o «Bisão» da entrada
do Museu de Lavai. Foi reconhecido autor de obra monumental por
ocasião da Exposição Internacional de 1900. Obteve, entre 1886 e
1900, toda a escala de premiações e títulos, inclusive o Grand Prix de
1900 com o grupo de leões e tigres destinados ao Castelo Vaux-le-
Vicomte. Suas obras se encontram nos acervos dos museus de Arte
Moderna de Paris, nos museus de Bucareste, Limoges, Hamburgo, no
Petit Palais e Roanne. GARDET é o autor de «Os Cachorros de
Chantilly» e o grupo «Leão e Leoa» do acervo do Museu de Arte Mo-
derna de Paris.
Diante desse resumo biográfico, tirado do verbete de BENEZIT,
parece-me muito justa a sugestão para que a obra de GARDET hoje
exposta noo João Batista, deteriorando-se ao tempo, seja cedida
para sua verdadeira perenidade a um dos museus do Rio de Janeiro.
Um dos escultores estrangeiros de maior presença de obras no
Brasil, no período de 1905 a 1925, foi certamente Jean Magrou (Jean
Marie Joseph Magrou), nascido em Bèziers (Herault) a 22-10-1869
a falecido em Paris cerca de 1940. Foi discípulo de Thomas e de
Injalbert. Premiado com medalha de ouro do Salão dos Artistas
Franceses em 1926. Autor dos conjuntos «Faune réveillé par les
nymphes» e «Orphée» do Museu de Bèziers. Sua importância quanto
ao Brasil está no fato de ser autor das três mais importantes estátuas
do Imperador Dom Pedro II — a de Petrópolis (figura sentada) de
1910, a figura caminhante da Quinta da Boa Vista, de 1925, ambas
em bronze e as figuras jazentes, em mármore, de D. Pedro II e de
D. Thereza Christina na Matriz deo Pedro de Alcântara, em
Petrópolis, de 1924. Deleo igualmente as esculturas do túmulo
de Braulia Machado, no Cemitérioo João Batista, em bronze, e
da figura debruçada do Jardim de Botafogo, em frente à rua Farani.
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
Mas, o que traz o seu nome a este comentário, é o fato de ser
o autor da extraordinária figura jazente de um nu feminino, envolvido
em surpreendente jogo de panejamento, da sepultura inominada, n° 529,
datada de 1905, do Cemitério deo João Batista. É uma obra em
monobloco de mármore Carrara, de excepcional beleza e de interesse
como das melhores coisas que temos do art nouveau, já com sinais de
fissura e erosão da pedra. Merecia, sem dúvida, ser acolhida por um
de nossos museus, antes que pereça, como está. Sei que os descen-
dentes da primeira usuária, D. Zulmira Uchoa Cavalcanti de Freitas
Barros, concordariam nesta solução, em termos de doação.
Entre os jazigos de família construídos em capelas de mármore
e bronze, na segunda metade do século passado, destaca-se uma da
antiga ala nobre do Cemitério do Catumbi do Rio de Janeiro. É o
da família NIOAC, em abandono, despojado e com a coberta colapsando.
Tinha três vitrais, hoje resta um. O que resta, ainda inteiro,
representa Santa Cecília tocando órgão. As figuraso bem feitas
e o colorido chama atenção pela equilíbrio e harmonia. Traz a rubrica
E. DIDRON. Refere-se a Edouard-Amédée DIDRON, pintor vitralista,
arquiteto, desenhista e escritor de arte, nascido em Paris a 13-10-1836
e falecido na mesma cidade a 15 de abril de 1902. Publicou numerosa
obra escrita sobre vitrais. Expôs nos Salões de 1857 e 1858. Era
sobrinho e filho adotivo de Adolphe Napoleon Didron (1806-1867),
arqueólogo e pintor vitralista, conhecido sobretudo como fundador dos
«Anaes Arqueológicos».
Convenhamos que é muito luxo, para nós, permitir que o vento e
os vândalos derrubem o último dos três vitrais de Edouard Didron,
objeto de arteo rareado entre nós, quando seriao fácil transferi-lo
para um de nossos museus, como peça rubricada pelo autor!
*
Nesse mesmo Cemitério dos Mínimos deo Francisco de Paula
acham-se em total abandono os jazigos monumentais do Comendador
Agra, com duas imagens de Nossa Senhora e deo Francisco de
Paula em pedra lios, de lavra portuguesa, de cinco palmos cada e o
mausoléu gigantesco do 1' Barão e 1° Visconde de Guaratiba (Joaquim
Antônio Ferreira) com sua estátua jazente, em mármore. Trata-se
de uma obra de raro acerto escultórico, enegrecida pela poeira e fungo
à espera de recuperação e de justificada transferência para um museu.
Presumimos ter sido Benedetto Cresta o seu autor.
ARTE E SOCIEDADE NOS CEMITÉRIOS BRASILEIROS
Mas,o é somente no Rio de Janeiro que se deve clamar por
um melhor destino para essas obras de arte, antes que os vândalos
e o tempo destruam-nas!
Casos absurdos acontecem em toda a parte. Há uns três anos,
em Salvador, deu-se um jeito de se vender a um novo-rico, nada
menos que o jazigo do Barão de Cajahyba, que além de nobilitar-se
por guardar os restos de nobre Marechal de Campo e Grande da
Independência, e mais tarde os de seu filho, o Visconde de Itaparica,
herói da Guerra do Paraguai, traz sobre o pedestal a famosa estátua
da, com a rubrica do escultor
Prof.
J.
HALBIG,
Munchen, 1865.
Sobre a importância do escultor JOHANNES, OU JOHANN von HALBIG
(Dusseldorf 1814 Munique 1882) é que devemos meditar a fim
de cercar com mais cuidado a sua notável obra encontrada no Brasil.
Foi considerado um dos classicistas proeminentes do século XIX, de
excelente técnica comparável a de Canova. Reagiu contra o roman-
tismo de Schwanthaler, na Alemanha. Deixou obras no Museu de
Ansbach, «Platão», no Museu Ferdinandeum de Innsbruck, as estátuas
de Francisco José I e Elisabeth da Áustria e a estátua de Radetzky.
Outraso «Helene Paulovna», no Museu de Leningrado, «Maximi-
liano II» no Museu de Lindau, «Os Leões», «Roma e Minerva», no
Museu de Munique; «Nymphes sortant du bain» e «A emancipação»
no Museu de New York e «A Paixão» no Museu de Oberammergau.
Seria, da melhor cautela, a remoção da célebre estátua da Fé do
túmulo do Barão de Cajahyba para um ambiente fechado, adequado,
que fosse especificamente para ela construído.
*
Deixei de mencionar vários outros exemplos de Rodolfo Bernardelli,
José Otávio Correia Lima, Victor Brecheret, Belmiro de Almeida, Tar-
sila do Amaral e de Franz Weissmann por já ter feito referência noutros
trabalhos, alguns a publicar.
Meu empenho foi exatamente este: sugerir aos museus do Rio de
Janeiro, e outros do Brasil, o bom serviço de recolher em tempo esse
acervo de casualidade artística, entregue ao abandono, à chuva e aos
pássaros.
Se me perguntassem, agora, seo estou arrependido de ter gasto
tanto tempo de minha vida em assuntos exóticos, e que eram normal-
CLARIVAL DO PRADO VALLADARES
mente rejeitados por todos os estudiosos, assuntos que antes nunca
mereceram capítulos quanto mais livros e vasta documentação icono-
gráfica, hoje responderia queo tenho de que me arrepender.
Tenho sim, o bastante para me sentir compreendido e aprovado,
na demonstração do Prêmio da Crítica de 1972, conferido pela Asso-
ciação Brasileira de Críticos de Arte, sob a presidência de Antônio
Bento de Araújo Lima e sob o patrocínio da IBM do Brasil, a quem
agradeço, na pessoa do seu Presidente o Dr. Bonifácio de Abreu Amo-
rim, o estímulo destinado aos que estudam.
Esta premiação nega-me o caminho de fuga dos frustrados que
se abrigam no silêncio.
Ao contrário, dá-me o direito de falar sobre a obra que venho
fazendo há trinta anos, interrompida mil vezes para atender o custo
da vida e mil vezes retomada para sobreviver a alma.
Conforta-me a compreensão e a bondade dos confrades, assim
como me alegra verificar ter despertado em outros, pelo menos desde
1968 quando fiz a primeira exposição de Arte Cemiterial na Galeria
Goeldi, e no ano seguinte na II Bienal da Bahia, razoável curiosidade
e interesse de prosseguimento e de ampliação de campo de pesquisa da
mesma temática.
A bibliografia brasileira sobre ex-votos cresceu brilhantemente
após a publicação do meu livro Riscadores de Milagres, chegando o
texto narrativo a interessar um dos grandes ases da novelistica.
A conceituação de comportamento arcaico, de cultura de base e de
arre genuína aquela que se motiva e se consome no seu próprio meio
de origem fazem hoje o lastro temático de alguns de nossos jovens
pesquisadores e historiadores de arte. Determinada galeria de arte
deo Paulo, hoje reputada como a mais poderosa do mercado,
anunciou para 1973 uma exposição sobre arte cemiterial, como território
demonstrativo da criatividade de base, sem visar lucros, obviamente.
Alegra-me, sobretudo, verificar que os mais novos darão melhores
frutos. Assim serão vistos, sempre, através do meu reconhecimento
e através da alegria de quemo pode negar, nem se esquecer, que
nesses novos rumos dos estudos sobre genuinidade brasileira foi semente
que medrou e viceja.
A todos que me ampararam para este único prémio que mereci,
já no cansaço da vida, o meu profundo agradecimento.
Cemitério de São Francisco de Paula Catumbi Rio de
Janeiro. Escultura representativa de um jovem estudante
de Coimbra com a alegoria recoberta. Monobloco em mármore
de Lisboa, segunda metade do Século XIX
Jazigo mandado lazer por Albino Joaquim Peixoto pura sua jovem
esposa Martinha 1918, Escultor Rodo'fo Bernardelli Cemitério
São Francisco Xavier. Rio de Janeiro
Sepultura SP-529 Cemitério São João Batista. Rio de Janeiro.
Escultura de Jean Magrou, Paris, 1905, o mesmo estatuário das
figuras jazentes dos Imperadores D. Pedro II e D. Teresa
Cristina
Jazigo cie Eugenia Santos, Presidente da Sociedade de Proteção
aos Animais Escultura em monobloco de mármore de Carrara
da autoria de George Gardet, Paris, 1910 Cemitério São João
Batista, Rio de Janeiro
Jazigo de uma senhorita 1914 Cemitério do Catumbi ,
Rio de Janeiro Escultura de José Otávio Correia Lima
Revisão de Picasso
MÁRIO BARATA
A
gente compreende um pintor quando vê e na medida em que
vê a sua obra. «Guernica», infelizmente, foi pouco reproduzida
nas comemorações brasileiras, dos 90 anos de Picasso. Maso
só essa obra marcante é fundamental em sua criação: «Demoiselles
d'Avignon» e o cubismo, «projeto de monumento» (Dinard, 1928),
«Banhistas» (1937) da coleção Peggy Guggenheim, «Pesca Noturna de
Antibes» («Modem Art» de N. York), as obras do castelo Grimaldi,
na Cote d'Azur, «Massacre na Coreia» e tantas outras revelam a po-
tência do artista que mais exuberante e globalmente marcou o nosso
século. Mais que Strawinski ou Stockhausen na música ou Klee e Mon-
drian na pintura, Eisenstein e Chaplin no cinema, Joyce e Kafka, Brecht,
Beckett ou Ionesco, na literatura.
Picasso foi mais direto e geral na criação de seu mundo e o fez
sempre em situação ostensiva de ruptura. Só a arte tecnológica e con-
ceituai irão, talvez, no plano plástico, exceder o seu momento decisivo.
Todavia elas abarcam o final do século,o toda a centúria e
nasceram em parte porque houve o cubismo. Pode-se fazer a Picasso
a restrição deo ser o futuro, mas ele foi a própria época, de 1900 a
1960. Na proporção em que o artista representa criticamente o seu
tempo, Picasso afirmou-se impetuosamente, na primeira linha do século,
com a energia e o vigor que a longevidade confirmou.
Outros podem ter elaborado uma arte mais íntima. O espanhol de
Paris, também tanto francês, (1) um misto de Goya e Rabelais, tornou
(1) A Aliança Francesa do Rio prestou homenagem a Picasso na «Maison
de France».
MÁRIO BARATA
visível, como se sabe, as novas forças que a ciência de um lado, o
humanismo de outro, e o espírito destruidor, por fim, carrearam para
o século XX. A sensibilidade ao ou do visualo era mais e nisso
ele prefigura a atual anti-arte fundamental, à primeira vista, na
vivência de sua pintura, na qual todavia a beleza existe e nisso ele
ainda é um homem da generalidade dos tempos e do passado do
século: um artista evidenciado para os amadores e as multidões. Esteve
porém perto do «dada» em algumas obras que realizou, como também
do surrealismo em certas execuções. Fez colagens insólitas e desprezou
algumas vezes, os materiais nobres, sobretudo na escultura. Contudo
e é a maior deficiência aparente da sua globalidade eleo repre-
senta realmente toda a época que está vivendo, porque lhe faltou a
consciência pura do abstrato e a da contestação completa ao clássico.
Mas será que alguém pode ser tudo?o se trata, aqui, da vocação
opcional entre formas e graus do poético.
Picasso é o último Ticiano da história, só que nele temos um
Ticiano muito mais revolucionário, renovador, inquieto e dramático, E
como Ticiano, sua energia física e mental o levou a viver mais de
noventa anos. Convém relembrar, de passagem, que o renascentista,
tendo sido entre os nove e os dez anos colocado como aprediz na
oficina de Zuccaro, é dado como nascido em 1485. Chegou aos noventa
e um anos. respeitado como um monarca e célebre em toda Europa.
Picasso, em outras condições históricas,o precisou, porém, ter
o apoio de reis e pontífices. Sua época a nossa já era a do
individualismo e a de um tipo particular de especulação financeira, em
torno da arte em que o artista podia sobreviver isolado do mecenas,
com relativa independência. O orgulho do artista pode aliás tornar-se
um sintoma disso.
Picasso foi também desenhista aos nove anos, oscilando então e
pouco após, entre a sua propensão à liberdade criadora, que o levaria
ao modernismo, e o academismo insuflado pelo seu pai e pela tradição
das escolas de Belas Artes dos séculos XIX (e, para tristeza nos-
sa, do XX).
A estabilidade da obra do Ticiano contrasta com a variação da do
espanhol (
2
) e esse fato documenta «a olho nu» as circunstâncias típi-
cas e envolventes da nossa época, a que nenhum longevo poderia
resistir.
A fixação de Picasso em um estilo só terminou de efetuar-se apro-
ximadamente nos anos 40, e daí por diante ela sobrevive dentro do
que alguns chamam de pós-cubismo e outros de picassianismo. Arte,
em todo caso, de um dolorido e intenso expressionismo, em que a con-
(2) Na Calle Mancada, cm Barcelona, há simpático Museu Picasso. O mo-
vimento das Ramblas é ainda hojeo cheio do nervo popular, do qual Picasso
possui algo.
REVISÃO DE PICASSO
formação angulosa e às vezes dupla e irregular das coisas e dos seres,
dos planos e das linhas, fornece o rictus peculiar ao artista. Vi recente-
mente desenhos e guaches seus de 1971, como vi pinturas de 67 a 70,
nos quais a quantidade cromática declina, mas o tonus nervoso do
estilo é o mesmo e o frenesi de trabalho constante. Admirável lição,
senão estética, pelo menos ética, num ser de 90 anos. A amplitude de
sua obra só tem equivalente, talvez, na de Goya. Sua capacidade de
nos surpreender em tantas ocasiões, bastante durou, desde a arte de
sequência social-humanista à de filão lúdico-erótico, que se alternam e
conjugam em sua obra.
Ao fazer entre 1897 e 1901 os desenhos Meeting anarquista, o
Prisioneiro algemado, os Fugitivos, como alegorias da injustiça social
que o comovia, o andaluz-catalão-parisiense seguia temática e visua-
lidade de um Steinlem e mesmo, de longe, de um Daumier, até chegar
à criação genial de Guernica e ao estupendo Massacres na Coreia, pas-
sando pelos Guerra e Paz, típicos do final dos 40 ou início dos 50.
Mas artista de uma época de profunda ruptura revolução per-
manente em setores do que a civilização tem de mais iniciador e capaz
passou cedo a uma reformulação formal que abalou a visão da huma-
nidade do mesmo modo intenso pelo qual as teorias de Einstein abala-
riam a física e as conquistas da técnica transformariam inopinadamente
or meios de comunicação. Após 700 anos de um seguimento na figura-
ção espelhante, como dissemos, o homem deixou de ver-se na realidade
aparente e passou a reencontrar-se contorcido, inédito e inaudito, sob
novas formas em realidade também psicológica e sensível. O cubis-
mo com Picasso foi a grande revolução da estética no século e
anunciou e prenunciou tudo o que se seguiu na compreensão da visua-
lidade e da função ampliada das artes. O pintor formalista abandona
nele a cor e entrega-se aos cinzas e ocres do retrato possante de Ger-
trude Stein (1906, no «Metropolitan» de N. York) e sobretudo nos
mais intelectualizados e «acoloridos» de 1909-10 de A. Vollard (1910)
e de Kahnweiler. Antes, em 1907, surpreendera o público artístico com
o citado «Demoiselles d'Avignon», em que a estrutura dos planos e a fi-
guraçãom o rictus e a influência da escultura africana e ainda leve
influxo cezaniano, enquanto a cor recorda a pintura romântica de sua
querida Catalunha. Esta obra de grandes dimensões (para trabalho de
cavalete) contrasta com o preto e branco do Guernica, no museu no-
vaiorquino,o só pelas cores o que seria óbvio mas pela elegân-
cia da primeira em choque com a rudeza exemplar da segunda.
Falamos da linha erótica que tanto tem afetado as últimas estam-
pas do autor e desenhos dos anos 67 a 70. Do desafio passa à fêerie.
Éo importante que certo «ludus» surgisse neleo adequadamente
em 1944, quando fez A Bacanal (segundo Poussin, coleção Picasso),
após a liberação de Paris, e pouco depois viesse a se entregar às delícias
de viver, em Antibes, realizando obra plena de alegria, ignorando de
MÁRIO BARATA
certo modo intencional a «guerra fria», pressentindo, numa intuição
genial, que esta passaria, e que eleo poderia deixar de marcar a
felicidade humana, como fato fundamental. Fê-lo cedo, repetimos, e
essa circunstância é das mais sintomáticas de toda a história da arte,
no plano de capacidade de revelação dos artistas. E fê-lo paralelamente
a uma contribuição generosa à luta pela paz, com a «paloma» e a par-
ticipação nos Congressos da Paz de Varsóvia (1948) e de Paris
(1949), de tanto eco humanista. Em ciclos anteriores já abordara, por
exemplo, os Silenos e os Pescadores, como em 1933, representando-os
nus e eufóricos ao bordo do mar, mas nunca com a intensidade e a
quantidade da fase de Antibes.
Os sátiros e faunos, toda a mitologia mediterrânea, vieram servir
à sua visualidade da delícia de viver, como tema a justapor-se ao das
tauromaquias e dos minotauros, ao da maternidade, ao das figuras de
circo e teatro, enfim das diversas fases de sua obra às vezes entre-
cruzadas e paralelas, cujos ritmos não. temos espaço, aqui, para dis-
criminar .
Nos decores para os bales russos e na fase «clássica», poucos anos
após a estada de 1917 em Roma (com viagem a Pompéia) também se
prova a personalidade do artista. Ele agiganta às vezes os personagens
levando-os a uma situação volumétrica, maciça.
O surrealismo mereceu-lhe também uma contribuição pessoal, bem
espanhola.
Infatigável, dotado de rara força orgânica e telúrica, Picasso é,
neste sentido, realmente, o Ticiano de cinco séculos depois. Nervoso
e inquieto, humano e reivindicador, é, como dissemos, o Goya de cerca
de 200 anos após. Entre o desafio e a «féerie» ele realiza essa obra que
ainda nos espanta.
Mas com Picasso o fenômeno arte ficou mais claro, como cons-
ciência e expansão do ser; o que honra a nossa época. Qual a impor-
tância da arte? Porque ela se realiza, se justifica? Arte e humanidade,
arte e reflexão através da sensação, participam da importante contri-
buição à cultura deste nosso contemporâneo, que chegou impávido a
uma idade que poucos merecem. Ele a mereceu.
A Biblioteca Nacional e a Música Barroca
Mineira
VICENTE SALLES
E
M 1961, por sugestão do jornalista e historiador José Teixeira
Neves, a Seção de Música da Biblioteca Nacional tomou a
iniciativa de fazer pesquisas em arquivos musicais de Diaman-
tina, Estado de Minas Gerais. Conhecida a existência de várias coleções,
em poder de particulares e de associações religiosas, além daquelas que
habitualmente se conservam nas igrejas e nas cúrias diocesanas, o acervo
de manuscritos espalhados por esses «depósitos» assume, no Brasil,
certo caráter ou sentido «arqueológico» da maior importância histórica,
já que muito material vem do século XVIII. Marca-se uma fase distinta
da criação musical, embora restrita à arte que se praticava nas igrejas.
Esse patrimônio precisa ser conhecido dos brasileiros e mantido em
nossos arquivos. Levantamentos parciais já se realizaram aqui e ali.
Em Minas Gerais, contudo, as pesquisas se mostraram mais frutíferas.
O conjunto da obra já conhecida podeo conter a dimensão artís-
tica que alguns pretendem, mas de qualquer forma constitui marco
da criação artística brasileira como tantos outros testemunhos
materiais, especialmente escultura e arquítetura — e justifica a
existência do «barroco» musical em nosso País.
À Biblioteca Nacional, através da Seção de Música, coube levantar
todo o acervo existente em três arquivos de Diamantina, em Minas
Gerais. A listagem desse material é o objeto desta comunicação.
VICENTE SALLES
Pela Portaria nº 23, de 22 de maio de 1961, expedida pelo então
diretor da Biblioteca Nacional, escritor Adonias Filho, a Sra. Mercedes
Reis Pequeno, chefe da Seção de Música, recebeu a incumbência de
examinar e proceder o levantamento do acervo musical pertencente à
Pia União doo de Santo Antônio e, em seguida, opinar sobre
a possibilidade de aquisição dessa coleção para ser incorporada àquele
setor da Biblioteca Nacional.
O trabalho foi realizado imediatamente. A 18 de agosto de 1961
já estava parcialmente concluído. A Sra. Mercedes Reis Pequeno
contou com a colaboração da Professora Cleofe Person de Mattos,
conhecedora do assunto e, também, funcionária do Ministério da
Educação e Cultura.
A primeira tarefa das duas pesquisadoras, em Diamantina, foi
ordenar o material encontrado. Em completa desordem, achava-se ele
guardado precariamente em duas malas velhas.
Além das peças encontradas na sociedade Pia União de Santo
Antônio, as pesquisadoras tiveram oportunidade de examinar duas
outras coleções. Uma de propriedade do Sr. Vicente de Paula
Barbosa, residente nas proximidades de Diamantina, emo Gonçalo
do Milho Verde, e outra localizada no Palácio do Arcebispo que
se supôs logo ter sido desmembrada do acervo doo de Santo
Antônio,o constituindo, portanto, uma coleção independente. As
informações colhidas no local corroboraram depois essa suposição.
Compreendendo centenas de peças musicais inéditas de compo-
sitores mineiros dos séculos XVIII e XIX, em cópias manuscritas da
época, essas coleções constituem, sem dúvida alguma, importante
contribuição para o enriquecimento do patrimônio musical brasileiro.
É, portanto, do maior interesse cultural a preservação das mesmas em
nosso País, bem como muito oportuna a divulgação da lista de peças
tombadas, em 1961, por Mercedes Reis Pequeno e Cleofe Person
de Mattos. A pesquisa nos arquivos mineiros tem sido frutífera e este
trabalho em Diamantina vai relacionar-se tanto aos achados anteriores,
quanto aos esforços mais recentes, como o que acaba de concluir o
P. José de Almeida Penalva na área e nas adjacências de Barão de
Cocais, antiga S. João do Morro Grande. Estas pesquisasm
mostrado que, se havia certa mobilidade de obras, nem sempre isto
era possível e cada listagem que se nos apresenta contém títulos de
obras e nomes de autores emo pequeno número que tiveram
vivência exclusivamente local. Difícil, na verdade, deve ter sido a
difusão da obra desses artistas mineiros, já que o único veículo geral-
mente utilizado foi o árduo trabalho do copista.
O acervo do Sr. Vicente de Paula Barbosa, o particular residente
emo Gonçalo do Milho Verde, foi avaliado, na época, em
Cr$ 45.000,00 (quatrenta e cinco mil cruzeiros), importância que lhe
A BIBLIOTECA NACIONAL E A MUSICA BARROCA MINEIRA
foi oferecida pela direção da Biblioteca Nacional. Infelizmente aquele
senhoro deu resposta à comunicação e oferta oficial que lhe foi
feita e os manuscritos continuaram, certamente, na posse dele ou de
sua família. A Biblioteca Nacional interessou-se, ainda, pela aquisição
o só do material em poder do cônego Walter Almeida, noo de
Santo Antônio, como do que foi levado para o Palácio do Arcebispo.
Tambémo foram concluídas as negociações.
A imprensa de Diamantina documentou na época o interesse por
essas pesquisas. Sob o título «Ministério manda pesquisar música
em Diamantina», assim noticiou a «Voz de Diamantina» em sua edição
de 18 de junho de 1961, na primeira página:
«Em missão especial do Ministério da Educação, estiveram em
Diamantina as Sras. Mercedes Reis Pequeno, da Biblioteca Nacional
Seção de Música, e a Professora Cleofe Person de Matos, Diretora
da Associação Coral do Rio de Janeiro.
As duas funcionárias do Ministério aqui estiveram pesquisando
o que ainda existe em nossos arquivos, de música sacra, principalmente
de compositores do século XVIII, inclusive peças de autoria do mais
famoso das 3 Américas, que foi o diamantinense José Joaquim Emérico
Lobo de Mesquita.
Do levantamento feito foram descobertas partituras preciosas de
grandes compositores, algumas incompletas, é verdade, mas uma boa
parte com todas as partes para orquestra e vozes. Entre as peças
encontradas citamos:
De José Joaquim Emérico Lobo de Mesquita: 1 Missa, a 4 vozes,
para Quarta-feira de Cinzas, cópia de 1778, 1 Gradual, 1 Laudate
Pueri, Antífona Tota Pulchra; Stabat Mater e todo o ofício da Semana
Santa desde o Domingo de Ramos.
De Marcos Coelho Neto: 2 Ladainhas, uma em ré e outra em,
Do Pe. José Maurício: Missa em mi bemol.
De Leal Moreira: Missa e Ladainha, cópia de 1820.
De Francisco Manoel da Silva: 2 Missas e um Te Deum.
De João de Deus: 2 Missas, uma a 8 vezes e uma a 4 vozes.
De Parreira Neves: Salve Regina, cópia de 1865.
De João Batista de Macedo (Pururuca): Libera me (impresso).
Do Pe. José Maria Xavier: Te Deum. Além destas, outras peças
de Paiva Quintanilha, Leal Moreira, Sales Couto, Miguel Cardoso,
Modesto Antônio Ferreira, Jerónimo de Souza (2 Ladainhas), João
Ribeiro Ursine.»
VICENTE SALLES
Trazendo de Diamantina apenas anotações e a árdua experiência
de pesquisa, classificação e ordenação de milhares de folhas manus-
critas, às pesquisadoras coube, ainda, fazer, como tarefa imediata,
inclusive para possibilitar sua avaliação, o catálogo ou melhor a
relação de todo o material encontrado nos três arquivos, visando seu
levantamento primário. Divulgamos essa lista sumária. Guardamos
a ordem da listagem, a fim de se ter ideia precisa do acervo de cada
arquivo. Notar-se-á que algumas cópias foram multiplicadas, constando,
portanto, de dois e até dos três arquivos de Diamantina. Chama,
também, a atenção o elevado número de composições anônimas,
encontradas, principalmente, no arquivo da Pia União doo de
Santo Antônio. Muitos autores estão perfeitamente identificados nos
manuscritos. Outros, porém, só se identificarão após estudo minucioso
do material. Finalmente, outroso quase incógnitos, conhecendo-se
apenas os nomes ou pré-nomes. O estado de conservação do material,
na época, já era bastante precário.
1ª LISTA
Manuscritos musicais pertencentes ao Sr. Vicente de Paula
Barboza, residente em São Gonçalo do Milho Verde, município de
Diamantina:
JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA
Missa em Mi Bemol Maior [partes vocais e instrumentais].
FRANCISCO SALLES COUTO
Credo em Fá [partes vogais e instrumentais].
JERÓNIMO DE SOUZA LOBO
Ladainha em Si Bemol [partes vocais e instrumentais].
JOSÉ JOAQUIM EMÉRICO LOBO DE MESQUITA
Credo em Fá Maior [partes vocais e instrumentais].
Ladainha em Si Bemol [idem, idem].
Missa em Fá Maior [incompleta] .
Paixão de Jesus Cristo (?) [Partes vocais e instrumentais] .
ANTÔNIO LEAL MOREIRA
Credo em Dó [partes vocais e instrumentais].
Credo a 4 Vozes, com violinos, clarinetas e trompas.
A BIBLIOTECA NACIONAL E A MUSICA BARROCA MINEIRA
FRANCISCO MANOEL DA SILVA
Missa em Mi Bemol [partes vocais e instrumentais].
GERVÁSIO JOSÉ DA FONSECA
Missa em Ré [partes vocais e instrumentais].
Te Deum em Dó Maior [idem, idem].
Tantum Ergo
Árias ao Pregador
Ladainha em lá (?)
Veni Creator
PADRE VICENTE
Missa em Mi Bemol [partes vocais e instrumentais].
JOAQUIM DE PAULA
Missa em Dó Maior [partes vocais e instrumentais].
Luís DIONÍSIO [da Mota]
Ladainha em Dó Maior [partes vocais e instrumentais]
PAIVA (?)
Credo a 5 vozes.
MANUEL DIAS
Missa em Ré Maior [partes vocais e instrumentais].
MIGUEL CARDOSO
Ouvertura (sic)
«Solo ao Pregador
Ladainha em Maior
A. RABELLO
Missa em Maior
ANÔNIMOS
Ladainha dos Frades
Gradual «Exaltata est Santa Dei Genitrix»
Salve Regina
«Veni Sanctae Spiritus»
Gradual «Anna Parens» e outras peças avulsas.
VICENTE SALLES
2ª LISTA
Relação das Músicas manuscritas encontradas na Sociedade «Pia
União do Pão de Santo Antônio», de Diamantina. Junho de 1961.
JOSÉ JOAQUIM EMÉRICO LOBO DE MESQUITA
Ladainha de N. Senhora, a quatro vozes com violinos, clarinetas,
trompas e baixo. 1864. [Só parte do Baixo instrumental] Dó M.
Hymno Stabat Mater. 1859. [S. A.T.B., violinos e bombardino].
Ladainha. [Fá M. Só partes de violinos]. No Palácio do
Arcebispo existem as seguintes partes desta Ladainha, datadas de
1893: contra-baixo, clarinetas, saxhornes e pistons.
Ladainha. 1887. [Dó M. Só parte de contralto].
Antífona de N. Senhora. 1814. «Totta Pulchra es Maria», com
violinos e baixo. [Só parte de baixo instrumental].
Gradual «Oculi omnium». com violinos, trompas e baixo
[S.A.T.B. violino, trompas e baixo] .
Laudate Pueri Dominus, com viola, trompas e baixo. 1860.
[Sol M, T.B. violino, trompas e baixo].
Ladainha. 1863. [Si b M. S.A.T.B. violinos, oboé, trompas
e baixo].
Ladainha de N. Senhora, com violinos, viola, trompas e baixo.
1880. [Fá M. S.A. violino, trompa e baixo].
Missa a 4 vozes para Quarta-feira de Cinzas, com violoncelo e
órgão. 1778. [Fá M. —violinos, violoncelo, flauta, trompas e baixo].
Motetes para a procissão do Senhor dos Passos. 1911. [Sol M.
S.A.T.B. e baixo instrumental].
Ofício da Semana Santa
Dominica in Palmas. 1890. [Parte de baixo instrumental e
trompa 1ª].
Antiphonas para Quarta-feira de Trevas e Quinta-feira Sancta.
«Traditor e Pesuereunt». 1892. [S.A.T.B. Baixo].
Para Feria 5ª ad Matutinum. 1892. [A.T. violinos, clari-
netas, trompas].
Feria Sexta ad Matutinum. «Astiterunt». Com 4 vozes, violinos,
viola, clarinetas, trompas e baixo. 1892. [S.T.B. —violino, clarineta,
trompa e baixo].
Sabbado Santo ad Matutinum. 1888. [Flautas, clarinetas, trompas
e baixo instrumental].
A BIBLIOTECA NACIONAL E A MUSICA BARROCA MINEIRA
Matinas Surrexit Dominas Vere. 1894. [S.A.T.B. flautas,
oboés, trompas, violino c baixo].
JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA
Missa. 1879. [Mi b M. S.A.T.B. flauta solo, clarineta,
trompas, violinos e violoncelo. No Palácio, partes de: S. B., flauta,
violino e baixo].
FRANCISCO MANOEL DA SILVA.
Missa lªa4 vozes com violinos, viola, clarinetas, trompas e baixo.
1890. [Mi b M. S.A.T.B. violinos, clarinetas, trompas e baixo].
No Palácio do Arcebispo existe outra cópia datada de 1899.
Missa. 1871. [Fá M. S.A.T.B. violinos, viola, violoncelo,
contrabaixo, flauta, clarinetas, trombas e baixo]. As partes existen-
tes no Palácio completam a coleção do «Pão de Santo Antônio.»
Te Deum Grande, com violinos, flauta, clarineta, trompas, 4 vozes
e baixo. [Sol M< S.A.T.B., violino, viola, flauta, clarineta e baixo],
PAIVA QUINTANILHA
Missa a 4 vozes, com violinos, óboes, trompas e baixo. 1863. [Soi
M S.A.T.B. violinos, trompas, óboes, baixo].
Credo a 4 vozes, com violinos, viola, óboes, trompas e baixo. 1861.
[Sol M S.A.T.B., violinos, viola, óboes, trompas e baixo].
Ladainha de N. Senhora, com violinos, viola, trombone e baixo.
1890. [Sol M — S.A.T.B., violinos, trompa e baixo].
Ladainha de N. Senhora, com violinos, piston, basso e óboes. 1894.
[Dó m S.A.T.B., violinos, viola, óboes, trompas, piston e baixo].
IGNÁCIO PARREIRAS NEVES
Salve Regina Antífona de N. Senhora a 4 vozes com violinos,
trompas e baixos. 1865. [Dó m S.T., violinos, violoncelo, óboes,
trompas e baixo].
JOÃO DE DEUS
Missa a 8 vozes e Credo. 1894. [Ré M S.A.T.B., violinos,
viola, violoncelos, flautas, clarinetas, fagotes, clarins, trompas].
Missa. 1862. [Ré M A.T.B., violino, viola, violoncelos, flauta,
oboé, trompas, clarins].
Credo [para] violinos, flautas, clarinetas, trompas, violoncelo e
baixo. 1889.
Ladainha. 1867. [Mi b M S.T.B., violinos, viola, flauta,
trombone e baixo].
VICENTE SALLES
«Domine ad juvandum». 1895. Com «Beata est Virgo» e «Veni
Sancte Spiritus». [Ré M S.A.T.B., violinos, viola, flautas,
trompas e baixo].
PADRE VICENTE
Missa a quatro vozes, com violinos, clarinetas, flautas, pistons,
trombones e baixos. 1872. [Mi b M — S.A.T.B., violinos, violon-
celos, requinta, clarinetas, pistons, trombone e baixo].
ANTÔNIO LEAL MOREIRA
Missa. 1820. [Dó M A.T., oboés, clarins]. No Palácio, há
partes de: trompas, violinos e baixo].
Ladainha. [Fá M - violinos, clarineta e trompa].
JOAQUIM A. GOMES DA SILVA
Moteto para procissão do Senhor dos Passos. 1911. [Fá M
S.A.T.B. e baixo instrumental].
JOAQUIM DE PAULA
Missa. 1866. [Sol M S.A.T.B., oboés, trompas, violinos,
violeta, batedores, baixo]. No Palácio encontram-se partes de Tenor,
oboé, trompa, clarineta e violino.
Missa. 1878. [Dó M S.A.T.B., oboé, clarineta, sax, pistons,
violinos e baixo].
P. F. COSTA
Missa. 1906. [Lá M flautas, piston, violino].
JOSÉ FELIPE CORRÊA
Missa pequena. 1910. [Dó M S.A.T.B., flautas, trompa,
violinos, baixo].
PINTO
Missa de Pinto a 4 vozes, com violinos, basso, trompas, clarinetas,
viola, 1872. [Mi b M S.T.B., clarineta e baixo]. No Palácio
encontram-se partes de A.T.B., trompas, clarinetas, violino e viola.
MIGUEL CARDOSO
Missa. 1908. [Mi b M — S.A.T.B., flauta, clarinetas, trompas,
violinos, contrabaixo]. No Palácio encontram-se partes de S.A.B.,
violino.
COSTA MAGNA
Credo. 1922. [Si b — S.A., clarineta, piston, bombardino, baixo].
A BIBLIOTECA NACIONAL E A MUSICA BARROCA MINEIRA
CÂNDIDO M. GOMES
Credo. 1808. [Fá M S.A.T.B., flautas, trompas, sax, piston,
violinos].
FRANCISCO SALLES COUTO
Ladainha. 1884. [Dó m S.A.B., clarineta, piston, violinos
e baixo].
Credo. 1914. [Fá M S.A.T.B., flautas, trompa, violinos,
baixo].
Te Deum. 1915. [Dó M Harmonium].
JOSÉ MARIA XAVIER
Te Deum. 1911. [Dó M Soprano, flauta, violinos, harmonium].
Lava pés. 1910. [Ré M S.A.T.B., flauta, clarineta, pistons,
violinos, viola, contrabaixo, baixo].
JOÃO BATISTA DE MACEDO
(Filho)
Libera-me. solo para soprano composto em memória da Exa.
Sra. D. Júlia Felícia da Mata Machado. 1882. Rio de Janeiro, Buschman
& Guimarães, Cg. nº 1072. [Dó M — Sop. solo, flautas, trompas,
violinos, violeta, violoncelo e baixo].
Invitatorio Venite Adoremus, com violinos, viola, clarinetas, trom-
pas e basso. [Dó M S. A.T.B., clarinetas, trompas, violinos, baixo].
Ave Maria, com violinos, 4 vozes, flauta, clarinetas, trompas e
baixo. 1888. [S.T.B., flauta, clarinetas, trompas, bombardon, violi-
nos, baixo].
Preguiere. 1895. [Mi b M — flauta, clarineta, pistons, violinos,
violoncelo].
Regina Cceli 1882. [Mi b M S.A.T.B., trombones, pistons,
violinos e baixo].
Subvenite a grande orquestra com 4 vozes, violinos, trompas e
baixo. [Sol m — T.B., violinos, baixo].
Sub tuum [Ré M S.T.B., flauta, violinos e baixo].
Veni Sancte Spiritus. 1901. (?) [S.A.T.B., pistons, helicon,
violino e baixo].
MARCOS COELHO NETTO
Ladainha de N. Senhora a 4 vozes, 2 violinos, 2 oboés, trompas
e baixo. 1872. [Dó M S.A.T.B., oboé, trompa, violinos, viola
e baixo].
Ladainha de N. Senhora. 1874. [Ré M S.T., violinos e baixo].
VICENTE SALLES
Luis DIONÍSIO DA MOTA
Ladainha a 4 vezes, violinos, clarinetas, pistons e baixo. 1890.
[Dó M S.A.T.B., clarinetas, pistons, violinos, baixo].
MODESTO ANTÔNIO FERREIRA JÚNIOR
Ladainha de N. Senhora a 4 vozes, violinos, viola, clarineta, pistons
e baixo. 1856. [Sol M S.A.T.B., clarineta, piston, violinos, viola,
violoncelo].
Salve Regina, antífona de tempo pascal. [Si b M — S.A.T.A.B.B.,
flautas, clarineta, requinta, piston, violinos e baixo].
RAPHAEL COELHO MACHADO
5 Padre Nosso. [Flauta, clarineta, pistom, violinos]. No Palácio
há partes de S.A.T.B., órgão, trompas, oficleide, violoncelo e
contrabaixo.
JERÓNIMO DE SOUZA [LOBO]
Ladainha, 1861. [Fá M — S.A.T.B., trompas, violinos, viole-
ta, baixo].
Ladainha de N. Senhora com violinos, oboés, trompas, 4 vozes
e baixo. 1869. [Sol M A.T.B., oboés, violinos, baixo]. No Palá-
cio encontram-se partes de trompa, piston, violino, baixo.
Ladainha. 1860. [Si b M S.T.B., flautas, trompas, violinos].
Ladainha. [Dó M T.B., oboé, piston, trompa, violinos, baixo],
ALBERTO FERNANDES DE AZEVEDO
Gradual Veni Sancte Spiritus com violinos, viola, trompas e baixo.
1881. [Só a capa].
Domine ad adjuvandum, com violinos, viola, trompas e basso.
[Trompas, violinos, viola]. [Sib].
PAIVA (?)
Ladainha de N. Senhora. 1890. [Fá M S.A.T.B. trompas,
violinos, violeta e baixo]. No Palácio, há partes de S.A.B., clarineta,
violinos, e baixo.
ANÓNIMOS
Offertorio «Confirma hoc Deus». [S.A.T.B., flautas, trompa,
violinos e baixo].
Missa de Patafufo. 1878. [Ré M — S.A.T.B., clarineta, trompa,
pistons e violinos]. No Palácio há partes de flauta, saxhorn, violino
e baixo.
A BIBLIOTECA NACIONAL E A MUSICA BARROCA MINEIRA
Credo de Patafufo. 1878. [S.A.T.B., oboés, trompas, violinos
e baixo].
Ladainha. 1870. [Mi b M A.T.B.].
Ladainha a 4 vozes, violinos, flautas, trompas e baixo. 1863.
«Ladainha de Cândido». [Sol M S.T.B., flautas, clarineta,
trompas, saxhorn, oficleide, violinos, viola, violoncelo, contrabaixo].
Moteto para o Lava-pés. 1894. [S.A.T.B., violino e baixo).
Christus factus est. [Si b M S.A.T.B., trompas, violino,
viola e baixo].
Preguiere. 1892. [Soprano solo, clarineta, piston, violinos e
baixo. Mib M].
Credo a 4 vozes com violinos, flautas, trompas e baixo. 1864.
«Credo de Ouro Preto». [Fá M — S.A.T.B., flauta, trompas, vio-
linos e baixo] .
Te Deum Laudamus a 4 vozes com violinos, viola, trompas e baixo.
1830. [ Só parte de baixo instrumental] .
Te Deum. 1873. [Lá M S.A.T.B., violinos].
Salve Regina a 4 vezes com violinos, piston, baixo e oboés. 1866.
[Lá m oboés, piston, violino e baixo].
Stabat Mater a 4 vozes, violinos e baixo. 1900. [Dó M S.A.T.B.,
violinos e baixo].
Motetos para a procissão do Senhor dos Passos. 1911. [Fá M
S.A.T.B., baixo instrumental].
Encomendação de defuntos a 4 vozes, viola e baixo. 1863. [Sol
m S.A., baixo instrumental].
Pange língua. 1897. [Si b M S.A.T.B.].
Antífona de N. Senhora das Dores. [Dó m só baixo ins-
trumental] .
Sub tum praesídium. [Ré m — S.A.T.B., baixo instrumental].
Sub tum praesidium. 1891. [Dó M A.T.B., clarinetas, violi-
nos e baixo].
Sub tum praesidium, por J.J.A. (?) [S.T.B., clarinetas, trom-
pas, violinos e baixo] .
Quae est ista. 1866. [A.T. trompas, violinos, viola. Ré M].
Haec Dies e Alleluia. [Ré M — S.T.B., flauta].
Sanctae Francisce. 1866. [Si b M — A.T., flautas ou violinos,
trompas e baixo].
VICENTE SALLES
Christus factus est. [Dó m trompa e baixo instrumental].
Veni Sancte Spiritus. 1908. [Si b M S.A.T.B., violinos
e baixo].
Veni Sancte Spiritu [e] Confirma hoc Deus Gradual e
Ofertório. [Si b e Ré M — S.A.T.B., violinos e baixo].
Veni Sancte Spiritu. 1878 Hino. [Mi b M S.A.T.B.].
Veni Sancte Spiritu. 1915. [Si b S.A.T.B., clarineta, bom-
bardino, trombone, violinos e baixos].
Domine ad adjuvandum. [Dó M S.A.].
Ave Maris Stella. 1890. [Sol M A.T.B., clarineta e violinos].
Regina Cceli [e] Haec Dies. [Dó M flauta].
Regina Cceli. [Mi b M violinos].
3' LISTA
Relação das músicas manuscritas encontradas no Palácio
do Arcebispo em Diamantina, junho de 1961.
FRANCISCO MANOEL DA SILVA
Missa nº 1 Vide acervo do «Pão de S. Antônio».
Missa nº 2 Idem, idem.
ANTÔNIO LEAL MOREIRA (?)
Credo de Leal. 1880. [Ré M S.A.T.B., clarineta, trompa,
clarim, violinos, viola].
Missa de Leal Moreira. [Dó M] Vide acervo do «Pão de
S. Antônio».
Missa a 4 com violinos, oboés, trompas e baixo. 1879. [ Si b
A.T.B., clarinetas, trompas, violinos, violeta e baixo].
Credo a 4 com violinos, viola, clarim e baixo. 1880. [Ré M —
parte de contralto e baixo instrumental].
JOÃO BATISTA DE MACEDO
Ária ao pregador «Lucis creator spritus», com acompanhamento
de pequena orquestra ou piano. 1888. [Requinta, clarineta, pistons,
oficleide, violinos].
Veni Sancte Spiritus. 1895. [Sol M — S.A.T.B., flauta, cla-
rinetas, pistons, violinos, baixos].
A BIBLIOTECA NACIONAL E A MUSICA BARROCA MINEIRA
Terra tremit Offertorio a 4 vozes, violinos, trompas e baixo.
1883. [S.A.T.B., trompas, violinos e baixo].
M. C. (MIGUEL CARDOSO)
Missa. 1883. [Partes de soprano, violino lº e baixo instrumental].
PINTO PE. (PADRE PINTO)
Missa. 1872. Vide acervo do «Pão de S. Antônio».
JOSÉ JOAQUIM EMÉRICO LOBO DE MESQUITA
Missa. 1886. [Fá M S.A., trompa e violeta]. Vide acervo
do «Pão de S. Antônio».
Magnificai com violinos, oboés, trompas e baixo. 1879. [Lá M
. flautas, clarinetas, trompas, sax, violinos e baixo].
Antiphona Salve Regina. 1808. [Lá m S.A.B., clarineta,
violinos e violeta] .
Ladainha. 1880. [Dó M T.B., clarinetas, trompa, violinos].
HENRIQUE ALVES DE MESQUITA
Te Deum. 1893. [Partes de soprano, flauta, clarinetas, fagotes,
trompas, pistons e baixo].
JOÃO DE DEUS
Antífona de N. Senhora com violinos, oboés, pistons e baixo.
1879. [Lá M — T.A.B., flautas, violinos e baixo].
FRANCISCO SALLES COUTO
Missa de Salles Couto a quatro vozes, violinos, clarineta solo,
trompas e baixo. 1890. [Fá M S.A.T.B., clarineta, trompas, vio-
lino e baixo].
Missa a 4 vozes com violinos, flautas, flautim, clarinetas, pistons,
trompas e basso. 1888. [Dó M S.A.T.B., trompas, piston, violinos e
baixo].
Missa a quatro vozes com violinos, viola, flautas, trompas e
bassos. 1889. [Fá M S.A.T.B., clarineta, trompas, oficleide,
violinos, viola e baixo].
Ladainha por Salles Couto. 1927. [Mi b M — S.A.B., clarineta,
piston, violinos, viola e baixo].
JOSÉ FELIPE CORRÊA
Missa a 4 vozes. 1907. [Fá M pistons, baixo e l
9
e 2' so-
pranos] .
VICENTE SALLES
PAIVA (?)
Credo pelo Paiva, 1879. [Ré M S.A.T.B., violinos, oboés].
GERVÁSIO JOSÉ DA FONSECA
Ladainha. 1886. [Dó M — S.A.T.B., clarinetas, pistons,
saxhornes, violinos, violeta, contrabaixo e baixo].
Missa. 1881. [Fá M S.A.T.B.].
FELIPE NERY DE SOUZA
Crede a quatro vozes, violinos, clarinetas, flautas, trompas e
baixo. 1869. [Ré M S.A.T.B., flautas, clarinetas, trompas, vio-
linos e baixo].
ANTÔNIO EFIGÊNIO DE SOUZA
Te Deum. 1879. [Sol M « clarinetas, pistons, bombo, violinos].
MANUEL JOSÉ COUTINHO
Te Deum. 1888. [S.A.T.B., trompa, violino e baixo].
MANUEL DIAS
Missa. 1880. [Fá M S.B., flauta, trompa, violinos e baixo].
Missa. 1880. [Sol M S.T.B., clarineta, trompas, piston,
violinos, violeta e baixo].
MOURA GOUVÊA
Missa. 1908. [Mi b M S.A.T.B., flautas, clarinetas, piston,
trombone, sax, bombardino, violinos e baixo].
PADRE CAFÉ
Missa a terceto. 1920. [Si b S.A.B., flautas, clarim, trompas,
bombardino e contrabaixo].
A. F. SOUZA MAIA
3ª Missa. 1907. [Si b — S.A.T.B. e órgão].
Luís DIONÍSIO [DA MOTA?]
Ladainha SS. Coração de Jesus. 1899. [Dó M S.A.T.B.,
clarinetas, pistons, contrabaixo, violinos e baixo].
MODESTO ANTÔNIO FERREIRA
Ladainha de N. Senhora. 1888. [Sol M S.A.T.B., trompas,
violinos, violoncelo e baixo].
A BIBLIOTECA NACIONAL E A MUSICA BARROCA MINEIRA
ALFREDO RABELLO
Missa. 1888. [Dó M S.A.T.B., flautas, clarinetas, piston,
sax, oficleide e baixo].
Credo. 1888. [Dó M S.T.B., flautas, piston, oficleide, sax
e baixo].
Ladainha grande. 1889. Sagrado Coração de Jesus. [Fá M
flautas, clarineta, piston, oficleide].
Obras do mesmo autoro tombadas por falta de tempo:
Missa 2º, Mi b; Credo, Dó M; Missa, Dó M; Ladainhas; Tantum
Ergo, Fá M.
ANÔNIMOS
Te Deum. 1879. [A.T.B.].
Missa para defuntos. [Fá M — T., flautas, trompas, oficleide].
Veni Sancte Spiritus a 4 com violinos, trompas, clarinetas, flautas
e baixo. 1879. [Ré M — S.B., clarineta, trompas, oficleide, violinos
e baixo].
Missa da Diamantina. 1880. [Dó M S.A.T.B., clarinetas,
trompas, pistons, violinos, bombo, baixo e harmonium].
Credo. 1861. [Ré M oboé, violinos e baixo].
Te Deum. 1879. [Dó M A.T.B., oboés, trompas, pistons,
violinos, violeta e baixo].
Ladainha de Marquinho. 1883. [Si b S.T.B., clarinetas,
pistons, saxhorne, violinos, violeta e baixo].
Missa. 1881. [Fá M flauta, clarinetas, pistons, saxhorne,
violinos, contrabaixo].
RELAÇÃO DOS COMPOSITORES
1. AZEVEDO, Alberto Fernandes de Obras em Diaman-
tina: Gradual Veni Sancte Spiritus e Domine ad adjuvandum (apenas
no arquivo doo de Santo Antônio).
2, CARDOSO, Miguel Flautista e compositor diamantinense,
nascido em 1850. Aluno de Michele Saladino no Real Conservatório
de Milão. Residiu no Rio de Janeiro, onde lecionou na Escola Normal
e no Instituto Benjamin Constant. Morreu no Rio de Janeiro em 1912.
Autor de peças para piano, canto, orquestra, música para teatro etc.
Obras em Diamantina: Ouvertura, Solo ao Pregador e Ladainha em
Ré Maior (lº lista); Missa (partes divididas entre dois arquivos,
conforme 2º e 3º listas); Ladainha de Nossa Senhora (2ª lista).
VICENTE SALLES
3. COELHO NETO, Marcos Exímio trompista. Teria
nascido em Vila Rica no século XVIII, onde, em 1786, dirigiu a parte
musical dos dramas e óperas ali representados. Obras: Ladainha de
N. Senhora, a 4 vozes (Dó Maior) e Ladainha de N. Senhora (Ré
Maior) (2
a
lista).
4. CORRÊA, José Felipe Teria nascido em Ouro Preto.
Obras em Diamantina: Missa pequena (2
a
lista) e Missa a 4 vozes
(3
a
lista) .
5. COSTA, P. F. Obras em Diamantina: Missa (2ª lista).
6. COUTINHO, Manuel José Obras em Diamantina: Te
Deum (3
a
lista) .
7. COUTO, Francisco Salles Obras em Diamantina: Credo
em Fá (1
a
lista); Ladainha, Credo e Te Deum (2ª lista); Missa de
Salles Couto, Missa a 4 vozes (Dó Maior), Missa a 4 vozes (Fá
Maior) e Ladainha (3
a
lista) .
8. DIAS, Manuel Obras em Diamantina: Missa em Ré Maior
(1ª lista); Missa (Fá Maior) e Missa (Sol Maior) (3ª lista).
9. FERREIRA JÚNIOR, Modesto Antônio Obras em
Diamantina: Ladainha de N. Senhora e Salve Regina (2ª lista).
10. FERREIRA, Modesto Antônio Obras em Diamantina:
Ladainha de N. Senhora (3ª lista) .
11. FONSECA, Gervásio José da Obras em Diamantina:
Missa em Ré, Te Deum em Maior, Tantum Ergo, Árias ao Prega-
dor, Ladainha em Lá, Veni Creator (1ª lista); Ladainha (Dó Maior)
e Missa (Fá Maior) (3
a
lista) .
12. GARCIA, José Maurício Nunes Carioca, nascido em
1767 e falecido em 1830. Obras em Diamantina: Missa em Mi b Maior
(lª lista); Missa em Mi b Maior (2
a
lista) (Nota: as partes vocais e
instrumentais estão divididas entre os arquivos doo de Santo
Antônio e o do Palácio do Arcebispo) .
13. GOMES, Cândido M. Obras em Diamantina: Credo
(2ª lista) .
14. GOUVÊA, Moura Obras em Diamantina: Missa
(3ª lista).
15. JOÃO DE DEUS Obras em Diamantina: Missa a S
vozes e Credo, Missa, Credo, Ladainha e Domine ad adjuvandum
(2ª lista) .
16. JOAQUIM DE PAULA (O mesmo citado pelo P. José
de Almeida Penalva?) . Obras em Diamantina: Missa em Dó
Maior (I
a
lista); Missa (Sol Maior) e Missa (Dó Maior) (2
a
lista).
A BIBLIOTECA NACIONAL E A MÚSICA BARROCA MINEIRA
17. LODO, Jerónimo de Souza Informa o P. José de
Almeida Penalva que foi compositor muito fecundo, do fim do século
XVIII, tendo falecido em 1803. Obras em Diamantina: Ladainha em
Si bemol (1ª lista); Ladainha (Fá Maior), Ladainha de N. Senhora,
Ladainha (Si b Maior) e Ladainha (Dó Maior) (2ª lista) .
18. MACEDO (Filho), João Baptista Compositor e mestre
de banda. Natural de Diamantina, onde foi conhecido como «Mestre
Pururuca». Morreu em 25-6-1895. Obras em Diamantina: Libera me,
Invitatorio Venite Adoremus, Ave Maria, Preguiere, Regina Coeli, Sub'
venite, Sub tuum e Vera Sancte Spiritus (2ª lista); Ária ao Pregador
«Lucis Creator Spiritus», Veni Sancte Spiritus e Terra Tremit (3ª lista).
19. MACHADO, Raphael Coelho Português, nascido na
Ilha da Madeira, em 1814, morreu no Rio de Janeiro, em 1885. Obras
em Diamantina: 5 Padre Nosso (2ª lista).
20. MAGNA, Costa Obras em Diamantina: Credo (2ª
lista).
21. MAIA, A. F. Souza Obras em Diamantina: 3ª Missa
(3ª lista).
22. MESQUITA, Henrique Alves de Carioca, nascido em
1836 e falecido em 1906. Obras em Diamantina: Te Deum (3ª lista).
23. MESQUITA, José Joaquim Emérico Lobo de Do século
XVIII, foi ativo no Arraial do Tijuco, depois Diamantina. Obras em
Diamantina: Credo em Fá Maior, Ladainha, Missa e Paixão de Jesus
Criso (1ª lista); Ladainha de N. Senhora, Hymno Stabat Mater,
Ladainha (Fá Maior), Ladainha (Dó Maior), Antífona de N. Senho'
ra, Gradual Oculi Omnium, Laudate Pueri Dominus, Ladainha (Si b
Maior), Ladainha de N. Senhora, Missa a 4 vozes, Motetes para a
procissão do Senhor dos Passos, Ofício da Semana Santa, Dominica
in Palmas, Antiphonas para Quarta-feira de Trevas, Para Feria Quinta
ad Matutinum, Feria Sexta ad Matutinum, Sabbado Santo ad Matu-
tinum e Matinas Surrexit Dominus Vere (2ª lista); Missa (Fá Maior),
Magnificai, Antiphona Salve Regina e Ladainha (Dó Maior)
(3ª lista).
24. MOREIRA, Antônio Leal Português. Obras em Dia-
mantina: Credo em Dó e Credo a 4 vozes (lº lista); Missa e Ladainha
(2ª lista); Credo de Leal, Missa de Leal Moreira, Missa a 4 e Credo
a 4 (3ª lista).
25. MOTA, Luís Dionísio da Obras em Diamantina:
Ladainha em Dó Maior (lº lista); Ladainha a 4 vozes (2ª lista);
Ladainha SS. Cotação de Jesus (3ª lista).
26. NEVES, Inácio Parreiras Obras em Diamantina: Salve
Regina (1» lista).
VICENTE SALLES
27. PADRE CAFÉ Obras em Diamantina: Missa a terceto
(3ª lista) .
28. PADRE VICENTE Obras em Diamantina: Missa em
Mi b (1ª lista); Missa a 4 vozes (2ª lista) .
29. PAIVA (O mesmo Paiva Quintanilha?) Obras em
Diamantina: Credo a 5 vozes (1ª lista); Ladainha de N. Senhora
(2ª lista); Credo pelo Paiva (3ª lista).
30. PINTO (O mesmo Padre Pinto?) Missa de Pinto a
4 vozes (2ª lista) .
31. PINTO, Padre Obras em Diamantina: Missa. (3ª lista)
32. QUINTANILHA, Paiva Obras em Diamantina: Missa
a 4 vozes, Credo a 4 vozes, Ladainha de N. Senhora (Sol Maior) e
Ladainha de N. Senhora (Dó Maior) (2ª lista) .
33. RABELLO, Alfredo Obras em Diamantina: Missa em
Dó Maior (1» lista); Missa (Dó Maior), Credo (Dó Maior), Ladainha
grande, 2ª Missa (Mi bemol), Credo (Dó Maior), Missa (Dó Maior),
Ladainha e Tantum Ergo (3ª lista).
34. SILVA, Francisco Manoel da Carioca, nascido em 1795
e falecido em 1865. Obras em Diamantina: Missa em Mi b (lª lista);
Missa lª (Mi b Maior); Missa 2ª (Fá Maior) e Te Deum Grande
(2ª lista); Missa nª 1 e. Missa nº 2 (3ª lista).
35. SILVA, Joaquim A. Gomes da Obras em Diamantina:
Moteto para procissão do Senhor dos Passos (1ª lista).
36. SOUZA, Antônio Efigênio de Compositor e regente,
natural de Diamantina. Obras em Diamantina: Te Deum (3ª lista).
37. SOUZA, Felipe Nery de Obras em Diamantina: Credo
a 4 vozes (3ª lista).
38. XAVIER, José Maria Sacerdote e compositor, natural
deo João del Rei, nascido em 1819 e falecido em 1887. Obras
em Diamantina: Te Deum e Lava-pés (2ª lista).
Letras
O Clássico e a Comunicação
ADONIAS FILHO
G
OETHE esteve na Biblioteca de Weimar, em 1820, a solicitar uma
das traduções alemães de «Os Lusíadas», de Camões. O inte-
resse universal pelo poema, já agora com quatro séculos de atua-
lidade,o explica apenas a curiosidade de Goethe. Escritores como
Cervantes, Lope de Vega e Voltaire, como o próprio Goethe, muito
se preocuparam com Camões assim como ele mesmo se preocupara com
os épicos e os mitos do clássico antigo. O que importa concluir, pois,
é que já um poema clássico foi por causa desse clássico, «Os
Lusíadas», que Goethe esteve na Biblioteca de Weimar.
A conclusão, porém, se denuncia a biblioteca como indispensável
armazém do acervo clássico, reflete uma constante humanista em sua
expansão histórica. A exigência em preservar-se o clássico, eo so-
mente o clássico, requer a conceituação. Uma pergunta, em consequên-
cia, se torna inevitável: por que o clássico? A resposta também se torna
inevitável: porque o clássico, por imposição mesma dos seus componen-
tes, assegura a duração no tempo.o há novas experiências ou pro-
cessos revolucionários que consigam eliminá-lo como território artístico
ou base de influência.
E, precisamente porque acima do tempo, e como o próprio tempo,
o clássico é.
A sua irradiação, em consequência, far-se-á contemporânea de
todas as épocas. É intemporal, pois, o encontro que provoca com as
ADONIAS FILHO
gerações. Mas, se preservado em livro na biblioteca ou em material
plástico no museu em função mesmo daquele encontro, temos
que admitir que, na criação artística ou na atividade intelectual, per-
tence ao clássico a única divulgação permanente. Ele, e apenas ele
resiste ao fenômeno das mudanças sociais e das inovações estéticas
como os ciclos de civilização e cultura o comprovam. Dir-se-á mesmo
que aquelas mudanças e inovações e ciclos se processam muito abaixo
do seu vértice.
, pois, uma verificação que historicamente se comprova:o
sobrevive artística e intelectualmente a idade queo pode criar o seu
clássico.
Mas, para criar esse clássico que funciona como matriz irremovível
de toda a atividade intelectual posterior responsável pela biblioteca
e o museu como veículos de divulgação permanente e com exemplo na
visita de Goethe, para solicitar «Os Lusíadas», na Biblioteca de Wei-
mar,o será simples o laboratório. Provam-no círculos artísticos
definidos como as grandes manifestações trágicas no teatro ocidental
com exemplos nos gregos (Eurípedes e Sófocles), franceses (Corneille
e Racine) e nos ingleses elizabetanos (Marlowe e Shakespeare). E
sobretudo o comprova a instintiva participação do homem que, sempre
a avançar na direção de uma religião, uma arte e uma filosofia, já
mostrava a sua vocação para o clássico nas mais primitivas raízes.
No centro da natureza, devendo conquistá-la para controlá-la, o
homem — e nessa fase pré-histórica inicia a destinação clássica
com a abertura mesma da revolução cultural. Julian Huxley já obser-
vara que a evolução, naquela fase, se caracterizou mais pela cultura do
que pela mudança genética ou biológica. A verdade é que, sempre a
avançar na direção da
arte
religião e
filosofia
realizava, no Paleolítico e como observa William Johnstone,
desenhos de surpreendente beleza e a melodia na música. E, no Neo-
lítico, produzia o instrumento que, ajustado à mão, associava arte e
engenharia no uso e na aplicação dos materiais. E tudo isso se fez
possível porque, em sua configuração extrema, o homem se mostrava
no conjunto de elementos psicológicos criadores: imaginação, percep-
ção, memória, inteligência. Era a partida ainda elementar, numa se-
quência de funções ao lado da linguagem, mas a partida para a comu-
nicação e a difusão. O «inventio», que assegurava o poder criador, já
era o clássico porque, estabelecendo o entendimento, promovia as rela-
ções entre as obras, as gerações e os períodos. Indiscutível, pois,
O CLÁSSICO E A COMUNICAÇÃO
e desde as origens, a interferência do clássico como agente da difusão
permanente.
I
Está claro que, vista de um ângulo utilitário, a biblioteca se associa
à divulgação como o agente imediato de informações no que concerne
ao clássico. E, porqueo a podem prescindir dessa tarefa como acer-
vo de documentação, especializou-se precisamente por isso. A guarda,
pois, é do acervo bibliográfico ou iconográfico que no caso das
bibliotecas nacionais deve preservar para o resto dos tempos. A
guardiã, e como se, para o futuro mais remoto, de todo o trabalho
escrito ou impresso. E, precisamente por isso, porque fonte de consulta
para o futuro a incorporar ininterruptamente os acervos de todas as
épocas, é que nela fundamentalmente se abriga o clássico.
o será difícil verificar, em consequência, que a biblioteca carac-
teriza a difusão que será mais circunstancial à proporção em que menos
reprojete o clássico. Difusão que será permanente, pois, à proporção
em que, dispondo do acervo clássico, possa torná-lo consulta em qual-
quer época. A ilustração ainda é a mesma: Goethe, na Biblioteca de
Weimar, a pedir «Os Lusíadas».
Mas, no sentido mais extremo, é o clássico que configura a «per-
manência» na difusão. Ele, o clássico, e como já vimos, é o agente
mesmo na difusão permanente. E tanto isso é verdade que, assegurado
o poder criador pelo «inventio» a partida elementar para a comuni-
cação e a difusão, o homem, do Paleolítico até hoje, através de
todas as idade, jamais perdeu em si próprio a vocação do clássico.
Historicamente, em seus elementos psicológicos, o clássico é a maior
constante. E, precisamente porque o é, vê o homem articular a arte e
a comunicação sempre nas origens para engendrá-lo no processo
mesmo da difusão.
O desenho paleolítico, de homens e animais e objetos, e muito
antes da escrita, foi usado como veículo de a) informação e b)
comunicação. Ideias, pensamentos e emoções foram mutuamente trans-
mitidos de um para outro homem ou de uma para outra tribo. As
imagens, carregadas de inspirações e símbolos, converteram-se no «hie-
róglifo egípcio» que, sendo tipos de decoração, simplificaram-se por
sua vez em «leiras». É precisoo esquecer, porém, que essas letras
o foram inventadas pelo impressor mas, copiadas por ele, resultaram
do trabalho do escriba que, desse modo, gerou a caligrafia.
Surpreende, entretanto, que as relações entre o escriba (que é o
artista) e o impressor (que é o técnico), percorrendo a Idade Média
ADONIAS FILHO
através dos livros de iluminação, permaneçam até hoje. Os modernos
meios mecânicos, responsáveis pelo livro e a imprensa como hoje a
conhecemos,o alienaram o artista que, observa Johnstone, continua
a desenhar para o impressor. A única e grande diferença é que, em
termos atuais, o autor da informação, embora se diferencie do autor
da comunicação, com ele se identifica no interesse comum pela difusão
circunstancial.
O cerne do problema se revela quando demonstra que a comu-
nicação se fez um veiculo do clássico em seu processo histórico. A
imagem, no desenho paleolítico ou no hieróglifo, transporta a matriz
clássica na vocação artística do homem. A preservação dessa imagem
a pictografia, que já é um sistema de escrita, ou o uso posterior do
papiro, o «biblos», já responde pela biblioteca. No longo caminho,
que vem da Antiguidade ã Idade Média, até o advento da impressão
mecânica, o livreiro está inapelavelmente a serviço do clássico pelas
dificuldades em executar o manustcrito. Os escravos letrados, que em
Roma e Atenas copiavam os grandes livros em caligrafia incensurável,
foram substituídos pelos monges medievais. E todos esses escribas, res-
ponsáveis pelo acervo das bibliotecas, copiavam apenas os livros clássi-
cos. Era a «difusão permanente», integrada no clássico, o que
promoviam nas vilas e nos mosteiros.
A difusão, pois, se processava através da biblioteca em função do
clássico.
Eo há como contestar, precisamente por isso, a origem humanis-
ta da biblioteca já que o humanismo e o clássico tanto se aproximam
que quase se identificam. A verdade, porém, é que e até o advento
de nossa civilização tecnológica — a biblioteca serviu ao clássico para
jamais deixar de servi-lo na base de um acervo que se concentrava
em torno da
mitologia
teologia e
filosofia.
Os componentes do clássico estão aí como T. S. Eliot os teuniu
na definição a propósito de Dante. A abordagem que se faça, por
qualquer lado, refletirá esses componentes como as bases fundamentais
do «inventio». O clássico, em consequência, tendo aí as fundações,
prova queo poderia sujeitar-se a era tecnológica. E, resultado de
sua posição, mais que uma parte, será uma das soluções para a crise do
nosso tempo. Poder-se-á dizer mesmo que a solução está no reconhe-
cimento da biblioteca (e do museu) como o principal veículo de difusão
do clássico.
O clássico, em resumo, é a solução.
O CLÁSSICO E A COMUNICAÇÃO
II
O clássico é a soluçãoo porque organicamente disponha de
equilíbrio e ordem que, na duração histórica, já comprovaram a contri-
buição ao mundo civilizado. É a solução porque, alterando lentamente
a mente e a vida do homem, teve na espontaneidade uma resultante
da criatividade artística o suporte definitivo do seu processo. O
«monopólio clássico da cultura», embora ferido como observa Lewis
Mumford, refugiou-se na biblioteca e no museu. Esses veículos de
preservação e retransmissão, que o trouxeram da Antiguidade até a
Renascença, explicam a incorporação dos seus valores na linha da
contribuição permanente.
o será difícil entender, agora, porque o clássico é a solução. E
a solução tenho que repetir porque interferiu na mente, que
também o gerou, para a criação dos grandes valores da civilização. A
mente clássica possibilitou a organização social que a antropologia e a
sociologia provam ter nascido de elementos poéticos e míticos. «A
evolução da mente já demonstrou, afirma Jacques Barzun, que a arte
é a chave para o conhecimento da vida». E, acima de tudo, se a arte
pode gerar e ordenar uma experiência e um comportamento sociais,
o tem como fazê-lo fora do clássico.
, por isso mesmo, a difusão permanente que será uma espécie
de filtro histórico para sua legitimidade. Goethe, por exemplo,o
iria à Biblioteca de Weimar para, ao invés de «Os Lusíadas», solicitar
um poema morto. O clássico, além dos elementos intrínsecos que o
caracterizam como a estrutura, a dimensão e a mensagem, tem a
qualificá-lo a necessidade da própria difusão permanente.
A melhor definição, ou a mais exata, será a de reconhecer que o
clássico permanece acima das mudanças estéticas, das transformações
dialéticas e da própria evolução da arte.o é, em última palavra,
apenas um estado da mente no sentido da mais livre e espontânea
criatividade artística. É sobretudo o que impõe a difusão permanente.
E, já pelo fato de impô-la e ajustar-se ãs novas situações,o é
estático.
Mas, e porque nessa posição de contemporaneidade irremovível,
participa ou rejeita o presente. E será fácil vê-lo no percurso inteiro
na mitologia pré-socrática, no tempo grego filosófico e artístico, na
jurisdicidade latina, na ortodoxia cristã e medieval, no complexo renas-
centista, nos raros movimentos modernos com exemplo na tragédia eli-
zabetana vê-lo no percurso inteiro a interferir ouo na ordem
cultural. O desencontro sobreveio, porém, com a era tecnológica, anti-
clássica pela gestação e os componentes, precisamente porque nascida
do racionalismo
do utilitarismo e
do cientificismo.
ADONIAS FILHO
O racionalismo anti-mitológico, o utilitarismo anti-teológico e o
cientificismo anti-filosófico, se responsáveis pela era tecnológica, tam-
m seriam responsáveis pela negação do clássico. E, se o negavam
pela afirmação de elementos mecânicos que funcionam como peças
de compressão, alteraram forçosamente a própria mente humana, E
isso se fez contra a configuração clássica da cultura.
III
E, porque contra a configuração clássica, também contra a confi-
guração humana da cultura. Dir-se-ia mais oportuna hoje que ontem, e
precisamente por isso, a visita de Goethe à Biblioteca de Weimar em
busca de «Os Lusíadas». Alguns frente à crise cultural moderna
já com sintomas de agonia acusam o «intelecto» e outros radicali-
zam o diagnóstico nas «transformações do homem». E, se o diagnóstico
parece indiscutível, a conclusão provoca dúvidas.
A fixação será a do quadro que todos testemunham porque dela
participam todos os dias. E o reconhecimento logo demonstra que se
tornou necessária, com a alienação do clássico, uma nova mente capaz
de ajustar o homem à era tecnológica. A mente efetivamente se alterou,
desfigurando-se, em funções decisivas como a imaginação e a percep-
ção. Envolveudo-a, cercando-a por todos os lados como atingindo
mesmo o fundo biológico do pensamento, toda uma cultura tecnoló-
gica a aciona contra qualquer espécie de humanização.
Uma cultura mecanicamente ordenada que, despersonalizando o
homem pela falta da mente humanizada, encarcerou-o em sistemas e
esquemas de organização, controle e estandardização. O absolutismo
empresarial, burocrático e administrativo converteu-se em ideologia de
poder apenas superado na hierarquia anti-clássica pela invenção
técnica ou a descoberta científica. Entregue à inteligência despersona-
lizada, responsável peia massificação de valores como os da própria
cultura, comprometeu de tal modo a mente humana queo pode evitar,
agora, as ameaças resultantes da crise que gerou.
É a «inversão auto-destrutiva», na expressão de Mumford, que
tem como agente esse monstro que é o homem educado fora do clás-
sico. Caracterizam-no a violência, a indigência mental e o vazio interior
que os veículos mecânicos de comunicação como o cinema, a tele-
visão e o rádio se encarregam de encher de primarismo e brutalidade.
É curioso verificar como, cada vez mais educado mecanicamente para
a cultura tecnológica de massa, cada vez mais também involui na atrofia
da sensibilidade e do gosto e na perda crítica das resistências intelec-
tuais.o há necessidade de inteligência, aliás, para participar de uma
cultura que, tudo reduzindo ao «thought-cliché»,o tardará a eliminar
o debate crítico.
O CLÁSSICO E A COMUNICAÇÃO
A verdade é que, sempre contra a criatividade e a favor do fabrico,
e na linha de montagem dos recursos eletrônicos, tinha que preferir o
quantitativo e orgulhar-se da estatística. A montagem que armou, e
sobretudo em termos de comunicação eletrônica, apesar da «galáxia de
Gutemberg», de McLuhan,o tem como evitar a crescente inversão.
Essa comunicação, aliás, agrava a inversão já que, transmitida em massa
e sem preocupação artística, ao menoso requer a participação. Re-
ceptiva como uma antena, sim, maso intelectualmente participante.
É aqui, neste extremo, que se mostram as diferenças entre as duas
mentes, a clássica e a técnica. Os meios eletrônicos de comunicação,
impondo a voz e a imagem, e porque conformam a mente desse homem
técnico, nele sacrificam a própria faculdade de intelectualizar-se. E,
contra a teoria mesma de McLuhan, o principal imolado é Gutemberg.
E o é rigorosamente porque, sem a leitura clássica que requer a medi-
tação a leitura meditada, diria Thomas Merton,o será possível
a intelectualização. A leitura clássica que Gutemberg democratizou,
correspondendo ao debate mudo pelo exame crítico e a reflexão analí-
tica, cumpre a função e o destino de humanizar o homem precisamente
porque o intelectualiza.o será por acaso que a «lectio»,o identi-
ficada com a meditação e ainda no monaquismo se associava com a
prece, a «oratio».
O máximo esforço, porém, e dessa cultura técnica que esvazia inte-
lectualmente o homem, é para fazer acreditar que dispõe de forma e
sent:do. Frente ao que realizou, porém com todos os seus matemá-
ticos e físicos, laboratórios e computadores,o conseguiu provar
qual a sua finalidade. E o trágico, nessa experiência técnica sem obje-
tivo humano, é que já gerou o começo da autodestruição na .base da
neurose, da angústia e do medo.
Torna-se evidente, pois, ser indispensávelo destruir mas
salvar o mundo moderno na consciência e na inteligência do homem
da cultura técnica. E, para isso, muitoo será preciso fazer. Demons-
trar e obrigá-lo a acreditar que todos os resultados positivos se
perderão sem a intelectualização que apenas o clássico assegura. A
lição, em um símbolo, está na visita de Goethe à Biblioteca de Weimar
para solicitar «Os Lusíadas» . Há nessa lição, porém, a sugestão do
perigo.
E o perigo é que, amanhã, a Biblioteca de Weimar jáo tenha
«Os Lusíadas» para atender ao pedido de Goethe.
Junqueira Freire
e Mestre Fernando Pessoa
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
C
ento e quarenta anos depois do seu nascimento, Junqueira Freire
continua sendo o menos popular dos poetas românticos brasi-
leiros. Nada mais natural, porquantoo possui todos os in-
gredientes (digamos assim) que fizeram do romantismo uma escola de
escritores lidos com interesse pelo grande público. Ou, melhor dizendo,
o só a maior parte de seus temas diferia daqueles utilizados pelos seus
companheiros, embora ele tivesse também partilhado de muitos dos sen-
timentos dos seus companheiros de geração, como, e principalmente,
porque sua expressão,o obstante tormentosa e intensa, éo raro
áspera, dura, sem a musicalidade embaladora que fez de um Casimiro
de Abreu, para citar um só exemplo, ídolo de gerações e gerações.
Historicamente, pertence ele à segunda geração romântica, onde
figuram, na poesia, Álvares de Azevedo e Casimiro, além de Bernardo
Guimarães, que mais se distinguiu como romancista. Sua poesia é ori-
ginal porque, antes de tudo, representa a projeção de uma vida dramática
talvez a mais dramática entre a de todos os românticos, pelos con-
flitos morais em que se debateu o poeta (nascido em Salvador em
21.XII. 1832, ali morreria a 24 de junho de 1855, com 22 anos apenas,
seguindo assim a sina dos seus contemporâneos, que foi, com pouquís-
simas exceções, essa de deixar o mundo ainda em plena adolescência.)
Mas já aqui me ponho a meditar no que afirmei de início sobre a
sua menor popularidade. Não; também ele teve seus poemas capazes
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
de torná-lo conhecido, e justamente, comoo raro acontece, aqueles
queo seriam os melhores. É o caso de «A órfã na costura», que me
lembra ter ouvido por várias vezes, menino ainda, numa escola primária,
em Belo Horizonte, e que tem levado Junqueira Freire a muitas anto-
logias. Há ainda os acentos amorosos, luxuriosos mesmo, de uma parte
de sua obra, como há ainda, o que já tem sido devidamente frisado, notas
de sentido social, antimonarquista que foi. Mas o que o caracteriza
mais, a meu ver, é que a essas notas se funde uma ainda mais definidora
e que para logo o distingue dos demais poetas importantes do nosso
romantismo: é aquela em que o vemos padecer a sua condição realmente
patética de poeta-monge rebelado das Inspirações do Claustro.
Sabe-se que entrou para um convento antes dos 19 anos, numa
resolução impensada, agindo como que sob a ação do sonho. Esse
gesto irrefletido emprestou à sua vidao breve o clima da tragédia.
Ingressou no Mosteiro deo Bento, da Bahia,o novo ainda, para
depois se lastimar pungentemente. O grande erro da sua vida trans-
formou-o ele, como já dissemos, nos versos reunidos em Inspirações do
Claustro.
Maso vos aproximeis,s que julgais ternas ou suaves essas
inspirações do claustro. .. Cardíaco (até nisso difere dos companheiros,
consumidos pela tísica), angustiado, o sentimento religioso que Jun-
queira Freire julgou ter a ponto de professar num convento ficou sempre
abafado por um temperamento de tendências alucinatórias.o di-
gamos julgou ter: que teve, como julgam muitos, mas dentro do clima
de inquietação e revolta em que sempre se perdeu, incapaz de alcançar
o apaziguamento.
O JUÍZO DE ANTERO DE QUENTAL
Em carta a um amigo, Antero de Quental analisou a poesia brasi-
leira. E fez questão de mencionar o caso de Junqueira Freire, para
dizer que «seo morre, seria dos primeiros do século, que lhe sinto
no que deixou elementos para isso». Também se deteve Antero no
aspecto mais importante da vida de Junqueira Freire: o seu sofrimento
agudo, a sua insaciedade, o seu tormento aflitivo. Tudo doía nesse
espírito inconstante e seus poemas filosóficos, suas meditações, se im-
pregnam de mágoa asfixiada e asfixiante, clamor de quem nada consegue
ver além da sombra em que navega. Suas declarações de amor à morte
(Pensamento gentil de paz eterna/ Amiga morte, vem) se fazem seguir
de outros versos em que o poeta procura compensar a tendência ao fim
com a exaltação de uma falsa vitalidade, derivando para o amor ardente
e simplesmente humano, com todas as suas limitações. Cremos que
podemos afirmar queo chegou a ser, em nenhum momento, um poeta
místico puro.
JUNQUEIRA FREIRE E MESTRE FERNANDO PESSOA
Antônio Carlos Villaça, que lhe dedicou excelente ensaio, organi-
zando com a maior segurança, esplendidamente, uma antologia sua para
a coleção «Nossos Clássicos», revela que «Bernardo Guimarães já em
1859 lhe observara o gosto às palavras duras e à metrificação monó-
tona, pesada.» E Roberto Alvim Correia, que preparou e prefaciou
a edição crítica de suas Obras, em 1944, assinala: «O censurável em
Junqueira Freireo reside na virtuosidade nem no lusitanismo inevitável
do tempo, mas no recurso, de vez em quando, a expressões estereotipadas
e meio pleonásticas, como os banais «frio inverno», «lábios de carmim»,
«bálsamo divino», ou imagens igualmente previstas, como esses «sons
divinos qual doce arpejo terno». E ainda o emprego, sem dúvida em
voga em todos os românticos, mesmo assim abusivo e finalmente pedante,
de certos vocábulos de origem erudita, como «estridulo», «ínvio», «ignoto»,
entre os quais, particularmente, uma série de epítetos como «femíneo»,
«cóbreo», «argênteo», «incorpóreo», «sanguíneo», «sidério», «equóreo»,
«fulmíneo», «brônzeo», «ígneo» e outros do mesmo tipo," inutilmente exu-
mados do latim, ao ser um ou dois como «aéreo», revificado pelas
circunstâncias que lhe estão conferindo uma significação bélica inesque-
cível .»
HORAS DE DELÍRIO
Creio que o escritor foi feliz indicando o que lhe pareceu serem
defeitos em Junqueira Freire, sem deixar de acentuar que deleso se
eximiram seus companheiros de escola, cuja linguagem é por vezes gorda,
exuberantemente vazia. Em Junqueira Freire contam-se às dezenas
versos sem nenhuma pulsação, sem nenhuma vibração de um coração
confrangido e amargurado. O poeta mais autêntico se revela nele,
pensamos nós, naqueles poemas em que sintomaticamente fez seguir ao
titulo um subtítulo: «Hora de delírio». Aí sim, vamos depará-lo na
intensidade de uma expressão queo é apenas eloquência, mas sin-
cera e mesmo contundente. Num desses poemas, a que chamou «De-
sejo», as duas estrofes finaiso suficientes para dar-nos uma impressão
do que seriam essas «horas de delírio»:
Eu quero ver se encontro alguns suplícios
Que o coração me domem;
Quero lhe ouvir esta palavra incógnita:
«Chora por fim, que és homem!»
Que de arrostar as dores desta vida
Quase pareço eterno!
Estou cansado de vencer o mundo:
Quero vencer o inferno!
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
Quase pareço eterno... Em outro poema, intitulado «Louco» (e
acompanhado do subtítulo Hora de delírio), vêmo-lo afirmar:
Não,o é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre,
Aproxima-se mais à essência etérea.
Agora é mais espírito que corpo:
Agora é mais um ente lá de cima:
É mais, é mais que um homemo de barro:
É um anjo de Deus, que Deus anima.
A morte o persegue, como a todos os românticos, e dela pensa
escapar refugiando-se nos braços da amada, como se lê no poema
«Temor»:
Deitemo-nos aqui. Abre-me os braços,
Escondamo-nos um no seio do outro:
o há de assim nos avistar a morte,
Ou morreremos juntos.
O POETA-MONGE
Já se falou devidamente do que foi o sentimento religioso, em Ins-
pirações do Claustro, nesse poeta-monge. Em «Meditação» leremos ver-
sos como estes:
Deus! em teu nome Satanás impera!
Aqui nos claustros os demônios moram,
E o monge verga ao desespero o colo,
E julgao divina ao que o toca,
E blasfema do Cristo, e as aras cospe,
E a cruz e a Bíblia entre delírios pisa.
Tal sou, tal é o monge, ente não-homem,
A quem privou-se a liberdade, - e nela
Privada topa a consciência em nada.
Mas ao afinal, se sentirá mais calmo:
Frontais anosos,
Tetos sombrios, seculares muros,
Respondei-me, falai. Em vosso espaço
Com o dia emenda-se a mudez da noite?
Senti nas veias afluir-me a calma,
JUNQUEIRA FREIRE E MESTRE FERNANDO PESSOA
E cri que o monge a conseguiu comigo.
Inda corria a viração da noite,
Com fresca madidez. Pedi-lhe as asas,
E fui saudoso meditar meus carmes.
Talvez nenhum poema traduza mais os sentimentos antagónicos e
dilaceradores que defrontava do que o célebre «À profissão de Frei João
das Mercês Ramos». Basta transcrever a primeira e a última dessas
catorze estrofes:
Eu também antevi dourados dias
Nesse dia fatal:
Eu também, como tu, sonhei contente
Uma ventura igual.
Que sobres os filhos da desgraça
Levantes um troféu:
E queo aches, comos achamos
Inferno em vez de céu!
OS BONS MOMENTOS
Antônio Carlos Villaça, depois de ter reproduzido a observação
de Bernardo Guimarães sobre as palavras duras e a metrificação mo-
nótona, pesada, de Junqueira Freire, acrescenta: «Mas há momentos de
extrema simplicidade, nessa poesia tantas vezes de mau gosto, ou pre-
tensiosa. Versoso simples como estes, de uma leveza encantatória:
«Eu te saúdo, viração da noite, frescor suave e triste.» E: «Posso
então retrair-me em minha essência, viver comigo...» e todos os versos
de «Também ela» e todos os versos de «Martírio».
Creio que a esses poderiam ser juntados outros, versos isolados,
trechos isolados, poemas inteiros. Vamos a alguns desses versos:
Em «Meditação»
Gosto de vós, sombras da noite queda,
Morte do dia.
Em «Também ela»:
Ela também sentiu a fresca aragem
Sobre os cabelos — e talvez dissesse.
A fresca aragem, que adormece os outros,
o me adormece.
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
Em «O arranco da morte»:
Pesa-me a vida. Força de bronze
Os desmaiados braços me pendura.
Ah! jáo poder o espírito cansado
Sustentar a matéria!
Em «Morte (Hora de Delírio)»:
Pensamento gentil de paz eterna,
Amiga morte, vem. Tu és apenas
A visão mais real das que nos cercam (...)
Em «Fragmento do Canto I do Poema Dertinga»:
Hora que inspiras pensamentos santos,
Vem, recendendo aromas e tristeza (...)
Detenhamo-nos num dos seus poemas mais extensos e doridos: «O
Monge», que traz o subtítulo: «Século XIX», como que a indicar que,
cuidando o poeta,, das cismas e meditações pungentes de um monge,
do monge Junqueira Freire, e seu atormentado destino, é que nos fala.
como aliás se pode inferir de certas passagens. De início,
Do embate aos sinos, pelos vãos da torre,
Noturnas aves correm.
E:
A solidão profunda
Aumentava o pavor, crescendo a noite.
(Acho da maior beleza essa imagem da soidão profunda aumentando
o pavor, «crescendo a noite».)
Seu drama está descrito em linguagem que nos comunica a sua
febre, ou delírio, com a verificação, dele próprio, deo poder encontrar,
no idioma dos homens, expressão para o seu sofrimento:
E vim depois, e num furor sagrado,
Louco religioso, entrei num templo.
Com lágrimas de amor devota insânia!
Prostrei-me soluçando aoss das aras,
No jaspe dos degraus. Ali com o choque
Do corpo ardente em flamas de delírio
Sobre o frio do chão, senti. .. Quem pode
Verter esse mistério em língua de homem?
JUNQUEIRA FREIRE E MESTRE FERNANDO PESSOA
Voltarei a uma passagem, especialmente, desse poema. Antes, quero
reproduzir outro verso seu de grande beleza, agora de amor (o poema
intitula-se «Ela»), desse amor humano que andou sempre misturado à
ansiedade, à procura do amor divino no adolescente infeliz e arrebatado:
s de amar-me na terra, e além dos astros.
ONDE ENTRA FERNANDO PESSOA
Retorno a «O Monge», e a este passo:
Clamam infames! que com as próprias unhas
Rasguei, abri o coração a Cristo,
E com seu sangue borrifei meus lábios,
E com seu sangue sigilei meu pacto,
Quando, esgotada essa visão terrível,
Visão que a dor me realiza e a raiva,
Olhei pra mim, desconheci-me quase.
É bem real, Pitágoras, teu sonho!
O Dêmon que inspirava-te era um anjo.
Dos arcanos dou alguns tiveste.
As almas dos mortais transmigram, passam
De corpo em corpo, ou duma essência em outra.
Corpo nem alma os mesmos me ficaram.
Homem que fuio sou. Meu ser, meu todo
Fugiu-me, esvaeceu-se, transformou-se
Vivo, mas acabei meu ser primeiro.
Eu te creio, Pitágoras, nos sonhos!
As almas dos mortais transmigram, passam
De corpo em corpo, ou duma essência em outra.
Seguem-se dois versos, o segundo dos quais particularmente me
impressiona (penso que foi o poeta Fernando Mendes Viana que me
chamou a atenção para ele):
Se euo morri, sou trânsfuga da vida.
Dista, dista de mim, minh'alma antiga.
«Dista, dista de mim, minh'alma antiga...» Esse verso me trouxe,
desde logo, uma ressonância que me levava além dele mesmo.o
tardou que o associasse aos de ... Fernando Pessoa. Chega a soar-me,
com efeito, como um verso de Fernando Pessoa. Vou então à Obra
Completa do luso extraordinário e no poema 62 do «Cancioneiro» (edi-
ção de 1960 da Aguilar Editora), leio este verso:
De que é que a minha alma dista?
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
No poema 51, «Hora Absurda»:
Sermos, eo sermos mais!...
o sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...
No poema 68:
Além da minha alma, que outra alma há na minha?
No poema 82:
Com que ânsiao raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz?o sei:
Fui-o outrora agora.
No poema 156:
o pertencer nem a mim!
No poema 157:
Que coisa distante
Está perto de mim?
No poema 180.3:
Quem desta Alma fechada nos liberta?
No poema 452 («Ficções do Interlúdio», de Álvaro de Campos):
Que grande felicidadeo ser eu!
No poema 507, de «Inéditas»:
Minha alma é uma lembrança que há em mim.
Mas há um poema no «Cancioneiro», o de nº 167, que como que
nos fala de Junqueira Freire, e do seu destino:
Montes, e a paz que há neles, poiso longe...
Paisagens, isto é, ninguém...
Tenho a alma feita para ser de um monge
Maso me sinto bem.
Se eu fosse outro, fora outro. Assim
Aceito o que me dão,
Como quem espreita para um jardim
Onde os outros estão.
JUNQUEIRA FREIRE E MESTRE FERNANDO PESSOA
Que outros?o sei. Há no sossego incerto
Uma paz queo.
E eu fito sem o ler o livro aberto
Que nunca mo dirá...
«Dista, dista de mim, minh'alma antiga.»
«De que é que a minha alma dista?»
Como em Junqueira Freire, a alma de Fernando Pessoa distava de
si própria. É essa espécie de autodesconhecer-se, de autopesquisar-se,
de «não pertencer nem a mim!», ou então de projetar-se nos outros,
(«Se pudesseo ter o ser que tenho/ Seria feliz aqui...», diz ele no
poema 614 de «Inéditas»), ou então no admirável poema dedicado a uma
ceifeira (92 do «Cancioneiro»: «Ah, poder ser tu, sendo eu!»), que me
levam do verso de Junqueira Freire à poesiao mais densa e realizada
de mestre Pessoa. Maso há como duvidar que o nosso poeta ado-
lescente, de obrao desigual porém das mais importantes do nosso ro-
mantismo, andou muita vez, como nesse verso, ainda mais belo se iso-
lado do contexto, na intimidade da poesia mais autêntica e profunda.
Também ele, como Pessoa, tinha a alma feita para ser de um monge,
mas, por igual,o se sentia bem. Também ele, eo moço ainda, pa-
decia daquela angústia de que nos fala o nosso Lúcio Cardoso num dos
seus poemas dessa poesia que é um dos bons caminhos para melhor
se compreender toda a grandeza da sua obra de ficcionista: ou seja, a
angústia de sentir a vida muito mais cedo dos que os outros sentem.
E, de sentindo, ter a sensação de já ter vivido a tal ponto que de si
distava sua alma antiga, como Pessoa indagaria: «De que é que a
minha alma dista?»
Como quer que seja, por mais incompleta ou insuficiente a imagem
que acaso fique ao leitor da aproximação de dois poetas assim, o que
mais desejo, com isso, é salientar que o verso de Junqueira Freire basta
para demonstrar o que havia nele de intuição poética e para assegu-
rar-lhe um pouco mais do apreço de quantos, hoje, seo também à
prática da poesia, ou a afeiçoam.
Graciliano Ramos e o Romance Trágico
SÓNIA BRAYNER
N
ascido no interior de Alagoas em 1892, Graciliano Ramos, se ainda
estivesse vivo, completaria em 1972 seus oitenta anos. Entretanto
nada mais presente, quando se fala em um escritor, que tudo
aquilo deixado como depoimento de vida na forma de sua obra. Em
verdade, é uma existência ligada inexoravelmente ao destino do escrever,
do desnudamento do intelecto na conquista diária de um terreno ideativo,
de princípios e fantasias.
Preocupado com a situação do homem no seu mundo brasileiro,
seus dilemas e contradições, frutos de agenciamento de fatos dos quais
o consegue se furtar, o velho Graça nunca esteveo atual. Esta
permanência de seus romances e memórias deve-se em primeiro lugar
ao alto nível estético que preserva o verdadeiro dentro da História e
relega ao esquecimento os fogos-fátuos de uma literatura momentânea
de consumo. Em segundo lugar, a mensagem que traz situa-se univer-
salmente na realidade do humano, nos desencontros sempre mais
frequentes em um mundo estranho. Aprendiz de feiticeiro, o homem
contemporâneo desenvolveu técnicas aperfeiçoadas, máquinas destinadas
a substituí-lo no próprio trabalho, na ânsia de ganhar o tempo na
corrida do século. Agora, a mágica começa a tornar-se fantasmagórica.
A crise instala-se e a situação-limite do homem a braços com sua própria
essência leva-o a perder o equilíbrio da lógica de um contexto em que
confiara e no qual colocara o endereçamento da vida. Este descompasso
com os valores reflete-se na literatura moderna ao contaminar a ficção
com um sentido de tragédia até então contido na forma dramática,
numa tentativa, entre outras, de questionamento do ser.
SÓNIA BRAYNER
No Cap. V da Poética, Aristóteles afirmou estarem a épica e a
tragédia numa mesma mimese, isto é, apresentavam o mesmo material de
formas diferentes. O que predomina na tragédia é a concentração e
crise de momento humano, quando o mundo ameaça desabar por estar
minado o princípio diretor e a lógica que o sustentava. Na épica, o
importante é o caminho percorrido e este desenvolvimento na extensão
vai caracterizá-la. Entretanto, cada vez mais os romancistas buscam
concentrar em uma figura, seu destino e crise, o «erro trágico». Essa
tendência torna-se acentuada no romance do século XX, surgindo como
veículo do trágico muito mais do que o teatro da época.
É neste campo que se insere o romance Angústia de Graciliano
Ramos. Publicado em 1936, localiza-se dentro da experiência literária
da atualidade.
Uma questão importante se coloca na medida em que é analisado
o conteúdo trágico desses romances. Por que fica sendo a ficção a
depositária do conflito original da tragédia? O que vem a ser um
«romance trágico»?
O romance é a primeira arte que vai buscar a significação do homem
de forma explicitamente histórico-social. Surge como uma necessidade
da angústia humana na procura do sentido de sua historicidade. E é
exatamente ela que está em causa no romance. O sentido do tempo,
principal categoria humana, é o operador romanesco básico, distinguindo
sua cronologia em passado, presente, futuro, vinculando-o ao que já foi
feito, dito ou destruído. Ora, tal categoria impõe-se no mundo da arte
da linguagem, concentrando no romance uma narratividade dispersa por
outros caminhos.o é sem razão que o romance afirma-se a partir
do século XVIII, culminando no século XIX e XX, numa ânsia de
situação dos homens no continuum social. Quer exponham cenas
precedidas por exposições de antecedentes histórico-sociais, como Balzac,
quer emerjam imediatamente na fenomenologia de uma consciência,
como Joyce,o modos narrativos que se situam em momentos significa-
tivos da história social,
Qualquer que seja a forma assumida pelo romance no seu desliga-
mento do mito, eliminando o sonho ou mergulhando em visões mágicas
da vida, conserva sempre a natureza fundamentalmente histórico-social,
no sentido «que as relações interpessoais aí estão apresentadas segundo
um devenir mais ou menos contínuo, mas sempre evolutivo e veto-
rial». (
2
) Uma consequência imediata dessa historicidade é a gradativa
conquista do cotidiano para a narrativa. A linguagem aos poucoso
vai mais sendo seccionada em sermo nobilis, sermo humilis, mas conquista
com esforço um lugar no estilo do dia a dia, do intercâmbio pessoal.
(1) ZERAFFA, M Roman et Société. Paris, PUF, 1971. p. 16
(2) ibidem,, p. 18.
GRACILIANO RAMOS E O ROMANCE TRÁGICO
Com isso as situações trágicas que passam a surgir no romance estarão
inteiramente desniveladas com as da primitiva tragédia, que as pretendia
grandes e nobres. Um mundo mesquinho de Dostoiewsky pode ser
altamente trágico. Além disso, a modificação da sociedade traz situa-
ções novas, o advento da burguesia, a era industrial e tecnológica
contribuem para um redimensionamento do mundo.
O homem trágico nesse contexto novo jáo tem aquela «dignidade
e grandeza na queda», que preconizava Aristóteles, característica para
altos personagens como os príncipes e reis da tragédia grega ou
shakespeariana. Agorao interessam tanto os reis, pois pouco sabemos
deles e poucoso os que sobraram no mundo moderno. O herói
trágico, do dizer de Conrad, «é um de nós», Seu «erro trágico»
(kamartia da tragédia aristotélica) pode mesmoo se configurar num
mal passo ou numa escolha indevida. Kafka deixou Joseph K. de
O Processo buscar um crime para justificar uma justiça. Mas seu
desespero é trágico, sua busca do conhecimento é a do seu conheci-
mento, a priori colocado como absurdo e sem solução. Enquanto os
gregos buscam o ser em um mundo capaz de ser conhecido, o humem
moderno busca sua essência com a dúvida kantiana do conhecimento
encravada na alma.o é mais trágico ainda buscar uma essência do
ser, desconfiando se a verdade é possível?
«ANGÚSTIA» DE GRACILIANO RAMOS
O início do século, em especial a década de vinte, assistiu ao nasci-
mento e desenvolvimento de dois mitos que se complementam: o da disso-
lução do corpus social e o da fragmentação da pessoa. Tornam-se temas
recorrentes em autores como Freud, Picasso, Proust, Joyce, Pirandello.
O analitismo é uma constante entreo díspares representantes.
Angústia inscreve-se nessa linhagem.
Romance de ritmo fragmentário, representa formalmente a disso-
lução de seu personagem principal e pseudo-autor, Luís da Silva. A
cavalo entre dois mundos — o agrário, dos pais e avós, e o urbano,
em que vive desagrega-se continuamente às vistas do leitor, come-
tendo um crime na ilusão de solver seu problema vital. Como pseudo-
autor, narra num livro sua vida cinzenta, fixando-se em tênue fio
narrativo presente para o mergulho profundo no passado, refúgio do
desconcerto psicológico, histórico, social e político. O conflito trágico
instaura-se na bipolaridade da situação: de um lado o homem com
seus limites, de outro o sentido da ordem dentro da qual se coloca como
um herói trágico.
A circunstância ficcional e o caráter estão em íntima relação
vida mesquinha para um ser cinzento. «Vida de sururu». Entretanto,
SÓNIA BRAYNER
o conflito trágico que envolve essas circunstâncias e impõe-se por estar o
personagem numa situação-limite eo numa rotineira passagem da
vida. Resolve escrever um livro para contar-se, depois de ocorrido
o crime e depois de sair de um delírio intemporal. É justamente o
momento da crise que surge,o lógico-discursivo mas fragmentado, em
homologia com a consciência do ser que o traduz.
A figura de Luís da Silva vai-se compondo à medida que sua
subjetividade o delineia e mostra a relação que estabelece com o mundo.
É nessa dialética que Graciliano Ramos vai aos poucos trazendo porme-
nores realistas ratificadores das preocupações sociais anteriormente
assumidas. O trágico em Angústia configura-se no nível da história
num contínuo pressentimento de culpa em que as causas imediatas
crime passional, compulsão homicida diluem-se em uma predesti-
nação contida na mente do personagem, aí reclusa e germinando durante
toda uma existência de repressões. A arbitrariedade dos deuses ou
alguma vaga referência metafísicao substituídos por uma vida
inconsciente na qual os padrões de condutaoo superficiais mas
complexos.
A fuga à quantificação do tempo e sua ideologia monetarista
(«Time is money») refugia o homem contra a história e o relógio no
plano da memória que opera uma subjetividade. Talvez seja uma das
últimas tentativas de reconquista da totalidade humana perdida. Como
pedra lançada à superfície da água, o presente do personagem lança
círculos concêntricos sempre mais largos na direção do passado. O
monólogo interior torna-se veículo de uma síntese. Microcosmos
humano, nessa parcela liberada do tempo encontram-se a memória indi-
vidual e a memória Humana. «O romance torna-se uma encruzilhada
psico-cultural» (
3
).
Angú\stia é essa encruzilhada em que a fenomenologia de uma
consciência no seu acontecer se impõe como espaço crítico. A concen-
tração característica do estilo de tensão aí se processa numa discursivi-
dade que aparentemente parece comprometê-lo. Entretanto, a crise é
menos um momento excepcional e mais uma saturação de valores
antinômicos.
Todo o romance se elabora numa percepção do mundo e dos
objetos que envolvem o personagem e dos quais tira a própria inteligibi-
lidade do que o cerca. Entretanto, este espaço cede constantemente a
outro, no passado, que se torna presente através da evocação da memória.
Luís da Silva, ser humilhado e reprimido, percebe o mundo por fímbrias
e a escolha espacial colabora para sua construção como personagem.
Alguns motivos espaciais tornam-se mesmo obsessivos, reiterando
para o leitor a importância do espaço para um ser fragmentado: o
(3) idem, Personne et Personnage- Paris, Klincksieck, 1971. p. 45.
GRACILIANO RAMOS E O ROMANCE TRÁGICO
quintal, a visão da rua, do bar cm que se reúne, da casa, em minúcias
alucinatórias. O passado também é referido espacialmente através de
evocações sempre ligadas às áreas semânticas de morte e destruição:
o enterro do pai, as lições de natação no poço das Pedras, seu Evaristo
enforcado em seu casebre, o avô Trajano com a cobra enrolada no
pescoço, no pátio da fazenda. As sensaçõeso promovidas a uma
hiperfuncionalidade pois transmitem um espaço nem sempre perceptível
à visão. Uma fantasmagoria expressionista desenvolve a captação do
mundo, sendo observada sua atuação pelo pseudo-autor:
Agora porém os sentidos irritados percebiam tudo. O chap-
chap da mulher, o rumor do líquido, pregões de vendedores
ambulantes, o rolar dos automóveis, a correria dos filhos de
D. Rosália no quintal próximo, o cheiro das flores, dos
monturos, da água estagnada, da carne de Marina, entravam-me
no corpo violentamente (p. 71).
O espaço de Luís da Silva é demarcado pelo tempo da consciência
que o deforma na medida da perturbação progressiva. Tanto o espaço
do presente quanto o do passadoo suportados por este rendimensio-
namento perceptivo. Assim, surge um terceiro espaço,o ligado ao
tempo, que é o verdadeiro apoio da percepção, ou seja, o espaço da
consciência enquanto se percebe acontecendo.
Os conflitos de valores tornam-se cada vez mais acirrados pois sua
descrição pela consciênciao lhes traz solução («Adquiro ideias novas,
mas estas ideias brigam com os sentimentos queo me deixam»).
Caminham em homologia com a forma romanesca que, no final da
narrativa mergulha numa durée em que todos os tempos se reúnem
numa atemporalidade. Universo fechado, tendendo para uma redução
espacial até a essencialidade, circunscreve o indivíduo a si mesmo, negan-
do-lhe tragicamente qualquer comunicação. «Mas no tempoo havia
horas» traduz o mergulho no indivisível, a consciência impondo-se como
último reduto para a totalidade.
A DECADÊNCIA FAMILIAR-AGRARIA, ANTECEDENTES DE UM
DETERMINISMO TRÁGICO
Luís da Silva é fruto da sociedade rural em decadência, perten-
cendo a dois mundos com os quaiso consegue se identificar. O
passado de desagregação da família ruralista a que pertence e o presente
urbano em que se insereo lhe trazem qualquer segurança ou compen-
sação. Caracteriza-se como a própria imagem dessa dissolução na
ausência significativa dos sobrenomes ancestrais importantes: apenas
SÓNIA BRAYNER
Luis da Silva, enquanto o avô fora Trajano Pereira de Aquino Caval-
cante e Silva e o pai, Camilo Pereira da Silva.
Este complexo de fatores acumulados na lembrança do personagem e
alinhados de maneira ampliadora na narrativa colocam-nos como uma
referência fora da ação mas que a comanda e justifica, na mesma funcio-
nalidade dos crimes familiares radicados no passado do herói trágico
grego. Agamênon morre pelas mãos de Clitemnestrao apenas porque
serviu-se de um crime morte de Ismênia para satisfazer seu
orgulho guerreiro imolando esta filha aos deuses, mas sobretudo porque
pertence à família dos Átridas. A Moirao o deixará em paz até
a morte e desaparecimento de todos os descendentes dessa raça maldita.
O complexo familiar-cultural de Luís da Silva preenche o vazio
deixado para a fatalidade; como dados esparsos, num processo acumula-
tivo, encaminha-se para seu destino trágico e insolúvel, determinado
por uma problemática da qual é simultaneamente agente e paciente.
A constante evocação de um passado decadente envolve o perso-
nagem em motivações psico-sociais, que se reúnem num complexo gerador
e determinante de suas opções como ser. A liberdade inexiste, tudo
acha-se previamente decidido e Luís da Silva, abúlico e passivo, deixa-se
envolver por todas as situações, arrastando-se por caminhos sem saída.
Como o personagem trágico grego, possui uma evolução destruidora que
o leva ao crime irremediável. Entretanto, ao contrário da tragédia
é dominadoo pela ação mas por uma introspecção que o constrói
como ser ficcional: qualquer atividade ao ser a nomeada explici-
tamente pelo tempo da enunciação é assistida. O personagem emerge
algumas vezes para referir-se ao livro em que conta sua vida e o crime
cometido: «talvez o mamoeiro, as roseiras, o monte de lixo me passassem
despercebidos, e se os menciono, é que, escrevendo estas notas, revejo-os
daqui». Ou ainda, «procurando reproduzir os nossos diálogos, com-
preendo queo dizíamos nada».
Assim a única atividade que se apresenta como «real» e presente é
a de escrever. Tudo subjaz na consciência que reinterpreta, revive.
Esta reflexão sem interrupção configura toda a lucidez acerca do que
aconteceu e o livro que escreve traduz a presença do sofrimento tortu-
rante, da angústia incontrolável na busca de uma explicação que
satisfaça o desejo de compreensão do mundo.
Graciliano Ramos traz para o espaço urbano um personagem em
trânsito do meio rural e com isto atinge outra vez, depois deo
Bernardo os problemas do Nordeste. O complexo econômico agora
unido às situações psicológicas complexas de uma mente em desagre-
gação, dominada por obsessões infantis e alimentada por delações sociais
deformadas,o os dados que controlam a paixão intensa e destrutiva
de Luís da Silva.
A opressão presente em todas as relações afetivas ou sociais possui
sempre uma motivação de valores em luta. A predominância do dinheiro
GRACILIANO RAMOS E O ROMANCE TRÁGICO
e do sistema de mundo gerido por ele mantém o personagem numa tensão
continuada, exacerbando-lhe as antinomias. Os medos referem-se a
dívidas, aluguéiso pagos, Marina troca-o por um amante que lhe
proporcione sedas e perfumes, as misérias que passa estão relacionadas
estreitamente ao seu impossível entrosamento num mundo de valores
quantificados.
Essa tensão de índices em torno de um complexo econômico-cultural
faz com que a ação do personagem assuma uma dimensão ética, pois
condicionada por um sistema de valores em conflito com os da sociedade,
lança-se tragicamente num caminho errado, no qual a morte de Julião
Tavares é vislumbrada como a solução. Todos os elementos veiculados
por sua fragmentária consciência geram a necessidade absoluta do
desenlace, em que a liberdade de opção aparece como cada vez mais
longínqua.
A atmosfera de alucinação e angústia que domina desde o início do
romance já resolve a participação do personagem nesse processo, acen-
tuada evidentemente pelo fato de ser ele mesmo o foco narrativo.
Assim, o sentido humano de vitalidade que caminha para o conflito
trágico fica logo eliminado substituído por um condicionamento psicoló-
gico que prepara e mesmo antecipa fantasmagoricamente o desastre da
vida e o crime.
É impossível qualquer dissociação entre o background psicológico
e social poiso a baseo apenas semântica mas também formal das
soluções estéticas desse romance. Entretanto, é justamente no silêncio
do texto que se encontra sua contestação e afirmação de valores posi-
tivos. Visão pessimista que se abre à meditação.
O CRIME CÀTARTICO: O ERRO TRÁGICO DE LUIS DA SILVA
Julião Tavares é a concretização de todas as opressões sofridas
pelo personagem Luís da Silva: nível social, afetivo, psicológico, tudo
é englobado em traços que o compõe negativamente. «Julião Tavares
era uma sensação», exprime-lhe bem o simultaneísmo de reações.
A necessidade da morte do Outro surge como um processo de
catarsis. uma purgação para todas as humilhações e a vingança, ato
clímax para o exorcismo do Mal.
A partir deste momento o desejo da morte passa a ser uma visuali-
zação alucinatória mais do que obsedante, de efeitos ritualísticos. A
aceitação e a necessidade desse desejo racionalizada mil vezes induzem
o personagem a um caminho sem saída, no cumprimento de uma
hamartia trágica. Seu erro é a confirmação de um passado e de um
presente: a purificação entrevista é puramente individual.o é Luís
da Silva o representante de nenhuma revolta coletiva mas apenas de
SÓNIA BRAYNER
seu estado pessoal. É exatamente esta falta de marca, o mergulho no
cinzento da burguesia, a inútil mudança (peripetéia) de destino que lhe
o dimensões trágicas dentro da ficção moderna.
O pathos no sentido aristotélico de sofrimento que leva ao conhe-
cimento (agnorisis) percorre todo o texto do romance e chama-se
angústia, termo moderno divulgado pela psicanálise freudiana. Assume
o conhecimento suprema dor e completa inutilidade na constatação de
que aquela morte nada significava em termos de modificação do
contexto.
A execução de Julião Tavares traz no exato momento do enforca-
mento a catacsis esperada, nele contidos seus desencontros e misérias;
mas, constata imediatamente que fora «inútil, tudo inútil». O conheci-
mento proveniente da confrontação com o fim de seus atoso
proporciona senão desespero e medo.
O sentido dessa agnorisis final dá ao conflito trágico do personagem
um sentido de totalidade e uma ameaça ao leitor, já que Luís da Silva
é um de nós. É o ponto sem retorno no qual a estrutura romanesca
apóia-se desenvolvendo os momentos de desagregação da mente através
dos recursos do fluxo da consciência.
O mergulho fora do tempo cronológico, o deslize pela dureé que
constitui o tempo da consciência ratificam o caminho sem volta, ou sem
saída para um eterno presente. O herói trágico de Sófocles luta contra
as potências da vida com base nas forças que descobre no seu próprio
interior; isto constrói-lhe a personalidade individual. Essa nobreza no
embate e na quedao dominarão Luís da Silva: ele é representativo
pela fraqueza, impotência e fragmentação. Entretanto, sua tragicidade
é a afirmação dessas negações: «Milhares de figurinhas insignificantes.
Eu era uma figurinha insignificante e mexia-me com cuidado parao
molestar as outras».
Ao contrário de Malraux, cujos personagenso afirmações de
força, reatando a linhagem da tragédia grega, este personagem de
Graciliano Ramos insere-se no quadro dos «vencidos», como os deno-
minou Mário de Andrade. As ações projetadaso catárticas e
isoladas. A introspecção domina a ação e a solidão se instaura no
terror provocado pelo conhecimento das impossibilidades e da alienação.
A LINGUAGEM E O ESCRITOR
Ao escolher um pseudo-autor como foco narrativo para Angústia,
Graciliano Ramos retoma sua preocupação com o texto enquanto produ-
ção. O sistema de valores instaurado vai delimitar as relações do
escritor com a linguagem de uma forma agressiva, estabelecendo um
diálogo característico de alguns romances modernos.
GRACILIANO RAMOS E O ROMANCE TRÁGICO
A solidão do indivíduo aparece na opção de se escrever, dada a
impossibilidade de um encontro satisfatório com outro ser humano.
Luís da Silva até então como escritor fora vítima da opressão; vende,
consciente, sua escritura que assume os contornos e valores do opressor:
«Se me tivesse encomendado e pago um artigo de elogio à firma Tavares
Cia., eu teria escrito o artigo».
O próprio ato de criação literária vem nele desvirtuado por ser fruto
de encomendas, tráfico do espírito a que se submete para sobreviver.
Sua liberdade criadora acha-se comprometida com jornais elogiosos,
políticos venais ou comerciantes inescrupulosos. Esse tema, caro a
Graciliano Ramos, sofre um aprofundamento em Angústia:o se
assiste com tanta frequência como emo Bernardo a carpintaria da
obra, mas vê-se como objeto de discussão o intelectual e o mundo para
o qual escreve e a que pertence como classe.
Como intelectual Luís da Silva sente-se animado por dois sentimentos
contraditórios, mais uma de suas antinomias trágicas: o sentimento de
privilégio e o de miséria do espírito com relação ao real. O privilégio
lhe advém dos valores culturais ou do conhecimento do homem implicados
em sua profissão. Ê uma «consciência» moral e intelectual ao mesmo
tempo, emergindo do fundo cultural sob uma forma de papel político-
social. Mas Luís da Silvao assume nada, fez todas as concessões
para viver e restou-lhe a consciência trágica de saber-se vendido e
alienado. Tem a exata noção de que se distanciou do povo, pois teme
seu contato, «as minhas palavraso tinham para eles significação».
A visão que teve deles era veiculada por escrituras alheias, «a literatura
nos afastou: o que sei deles foi visto nos livros».
O personagem traz a marca indelével dos que despertaram para a
realidade e sentiram a miséria e deformação dos valores humanos. O
estigma da pergunta sem resposta, da humilhação para o enquadramento
institucionalizado percorrem o texto sob forma de imagens obsedantes
da infância ou da adolescência. A sufocação no poço das Pedras infli-
gida pelo pai ampliou-se para uma extensão vital, o personagem foi-se
destruindo gradativamente, mas deixa um último libelo no texto questio-
nador. Esse interrogar-se através da linguagem e da re-produção de
um real queo sabe sequer suportar («quando a realidade me entra
pelos olhos, o meu pequeno mundo desaba») instaura um conflito de
valores insolúvel.
Ao matar Julião mata-lhe também as palavras sem sentido, vazias
«como o discurso do Instituto Histórico». E mais todos os «adjetivos,
doces ou amargos, em conformidade com a encomenda».
Contestação final ao nível da linguagem, a produção do texto é
o epitáfio de uma consciência que se encerra em ritmo cada vez mais
acelerado num fluxo verbal, eliminando-se como consciência histórica,
negando-se como ser total. Fica apenas uma linguagem que ao se
fazer reitera infinitamente suas contradições agora isoladas nesse nível.
SÓNIA BRAYNER
GRACILIANO RAMOS E A VISÃO TRÁGICA DA REALIDADE
Graciliano Ramos coloca-se com Angústia bem no cerne do romance
moderno, para o qual uma história, um estado d'alma ou uma descrição
de costumeso é mais o que interessa. Importa colocá-lo na vida,
assumindo a condição humana e nela o meio temporal em que o homem
se debate e que é sua categoria principal.
A luta do personagem é a configuração de um crescente conheci-
mento de sua própria natureza e contradições. A visão trágica e pessi-
mista que constrói o sistema de valores da visão de mundo de Graciliano
generaliza o drama individual até o âmbito das relações sociais, desven-
dando-as como aniquiladoras das possibilidades humanas. As relações
familiares, na comunidade primeira de Luís da Silva,o núcleos
repressivos de contínua violentação; a partir dessas primeiras situações
de convívio e afeto ampliam-se em círculo concêntrico os contatos poste-
riores com o homem. Tudo se confirma numa consciência submetida a
um processo de fuga, na qual o confronto com a realidade é motivo
para humilhações.
O Nordeste agrário e os problemas nascidos dessas relações de
senhores e escravos, a decadência dos grandes engenhos absorvidos
gradativamente pela tecnologia das usinas aparecem como referências
sociológicas implícitas, sintetizadas ficcionalmente no caso-limite de uma
consciência doentia. A tragédia da realidade cotidiana nada tem de
nobre e a queda é mais um deslizamento progressivo na inutilidade de
qualquer esforço. Nesse processo de degradação, no sentido etimológico
da palavra, o animal assume o homem e Graciliano constrói uma
zoologia inferiorizante correspondente à diminuição de humanidade: rato,
sabiá, ratuína, sururu, coruja, vão-se incorporando e ganhando lugar
nesse mundo, no qual um primitivismo de sujeição pela sobrevivência
substitui um sistema de valores ao nível do humano.
Angústia encerra também uma aproximação à aporia proposta por
todas as situações trágicas: Luís da Silva, para conseguir sua liberdade,
esmaga a do outro, eliminando-o pelo crime. Entretanto, o malo
aparece com a clareza lógica com que se desejaria para a descoberta.
O erroo é uma consequência simples da vontade humana, podendo
ser corrigido na mesma medida em que ocorreu. O personagem do
«romance trágico»o tem o domínio do engano que comete, que o
envolve e encerra defintivamente. A culpabilidade remonta a uma
origem menos impenetrável que complexa, em que aos fatores psico-
culturais juntam-se os sócio-econômicos.
A exploração da mente de Luís da Silva, a utilização do monólogo
interior em algumas variações até a tentativa final de fluxo contínuo e
incoerente trazem este romance de Graciliano Ramos para o mesmo
campo das tentativas de Joyce, Virgínia Woolf, Faulkner. Como muito
GRACILIANO RAMOS E O ROMANCE TRÁGICO
bem caracterizou o crítico americano Daiches, tenta-se com essa nova
saída para a ficção eliminar a caracterização por extensão para assumi-la
em profundidade. A descrição fenomenológica de uma consciência que
beira a anormalidade, emparedada em suas obsessões, retoma a visão
determinista do naturalismo agora em um novo espaço, o do inconsciente.
O fundo de crenças comuns que suportava o trágico grego e dava
unidade àquele mundo é substituído por filosofias múltiplas ou por uma
atitude materialista. O divórcio entre homens e deuses eliminou a
mútua culpabilidade, situando-a como uma requisição da criatura ao
criador, um esforço desesperado para reduzir em definitivo Deus a seus
limites. (
4
)
A essência da «sociabilidade» característica do romance como arte
o identifica, trazendo consequências inelutáveis para a escolha ou acolhi-
mento de temáticas até então exclusivas do estilo dramático. A luta
do homem com valores dicotômicos, a busca do ser e do conhecer estão
ficcionalmente encerradas na narratividade do romance, instituído grada-
tivamente o meio imaginário para essas questões.
O combate de tensões suportadas pelo personagem trágico grego,
sobretudo em Sófocles, era sustentado pelas forças interiores que lhe
demarcavam o poder da personalidade. De tal modo c vigoroso nesse
embate que seus contornos se delineiam, deixando patente o caminho
que vai do desespero e miséria a uma possível liberação ou morte. A
solidão instaura o ser: a sentença deifica «conhece-te a ti mesmo» está
mais próxima dessa configuração.
O romance vai focalizar o indivíduo na história da sua vida, na
significância do seu tempo. Quando o trágico nele se introduz, quer
numa visão de mundo quer em um conflito circunstancial, encontram-se
as perguntas que a tragédia dirigia aos deuses. Agora,o mais
surgem divindades responsáveis e a forma romanesca preenche o
sentido do acontecer trágico dentro de uma dimensão humana.
A cosmogonia mítica implica a ideia do eterno retorno. Como
apontou Levi-Strauss, o mito comporta a permanência de um tema, com
uma possibilidade, em princípio, infinita de variações. A ordem mitica
se compõe de substituições, compensações, correspondências. O mito
é um conjunto global, estrutural e categorial. A memória que corres-
ponde a ele é o saber total do ser eo do fazer.
A escolha do humano em detrimento do divino, a rutura do Cosmos
mítico acontece no momento em que os homenso preferência à reali-
dade temporal, progressiva e mortal. O ser humano foi expresso pelo
romanesco quando assumiu um status dominantemente histórico. A
memória ocupa então uma função psico-social, depositada na durée
histórica.
(4) DOMENACH, J. M. Le Retour du Tragique. Paris, Seuil, 1967.
SÓNIA BRAYNER
A possibilidade de identificação é oferecida ao leitor através da
figura do herói, situado no tempo e no espaço. Um personagem tem um
passado que o explica, um presente que constrói e um futuro que projeta.
Corresponde a uma pessoa pertencente a uma sociedade, obedecendo a
uma hierarquia de valores e ideais. O herói míticoo tinha essa
representatividade, pois era a-histórico.
Tempo e sociedadeo indispensáveis ao romanesco. A problemá-
tica do trágico será incorporada ao romance na medida em que ele se
transforma na arte literária passível de acolhê-lo num dimensionamento
temporal. As situações trágicas gregaso enriquecidas com os aconte-
cimentos do homem romanesco, instituído como personagem. Os confli-
tos de valores descem da tonalidade grandiosa que era proposta entre
divindades e reis para entrar na convivência cada vez mais cotidiana.
O trágico romanesco é o homem às voltas com o ser e o tempo.
Os oitenta anos de Graciliano fizeram apenas ratificar a atualidade
de seus romances e de suas preocupações.o envelheceram, pois as
lutas tematizadas continuam. Sem tréguas.
Ciências Humanas
O Centenário da Convenção de Itu
AFONSO ARINOS DE MELLO FRANCO
A
República no Brasil foi, nos seus antecedentes próximos, um
movimento de ideias, e, como era inevitável, dadas as condições
do país no século passado, sobretudo um movimento de assimi-
lação de ideias vindas da Europa. Se observarmos, porém, os primórdios
da doutrina republicana, tal como se apresentou em Minas Gerais, em
1788-1789, no movimento da Inconfidência, verificaremos que eles eram
especialmente influenciados pelos Estados Unidos.
A variedade de influências explica-se por si mesma, cronologica-
mente. Quando os inconfidentes mineiros e, mais do que todos eles,
o Tiradentes, que era apelidado por debique «o República», pensavam
em apelar,o mais para o Trono português solicitando reformas, porém
para o povo da Colônia pregando a revolução, eles tinham, naturalmente,
em vista, o extraordinário e recentíssimo espetáculo do nascimento de um
governo constitucional e republicano no Norte do Continente. A
Constituição de Filadélfia, do ano anterior, era uma espantosa inovação
histórica, pois inaugurava um regime de governo do povo limitado pela lei.
A Revolução Francesa aindao eclodira, e nada se parecia com
o novo Estado americano, na História do mundo.
Era, assim, inevitável que o precoce e, por isto mesmo, nati-morto
movimento brasileiro se inspirasse no modelo americano, cuja Consti-
tuição federal chegara rapidamente até às ruas íngremes de Vila Rica.
AFONSO ARINOS DE MEI.LO FRANCO
Se isto ocorreu com o drama frustrado de 1789, muito diferentes
seriam as fontes inspiradoras do movimento que se tornou vitorioso um
século mais tarde.
Toda a trama civil e militar do 15 de novembro origina-se do
pensamento politico europeu. O caráter presidencialista e federativo
americano, a estrutura jurídica, em suma, da primeira República, foi
uma imposição dos projetos levados à Constituinte, e, principalmente,
do feito mais coerente que lhes foi impresso pelo poderoso cérebro de
Rui Barbosa.
O gabinete conservador de 2 de maio de 1861, presidido pelo
Duque de Caxias, e de que fazia parte o Visconde do Rio Branco,
encontrou na Câmara dos Deputados forte oposição da chamada Liga
Progressista, a qual terminou por derrubar o Ministério e propiciar a
subida da situação ou do Partido Progressista, com o gabinete de 24
de maio de 1862, sob a presidência de Zacarias de Góis.
Joaquim Nabuco, na biografia do pai, descreve a influência decisiva
que este teve na vitória progressista, obtida por um voto de diferença.
O discurso do velho Nabuco, chamado do uti-possidetis, derrubou os
conservadores, na opinião de Francisco Otaviano. Era a primeira vez,
desde 1848, que um governo caía por votação da Câmara. Observa
Joaquim Nabuco: «A Liga estava triunfante... As consequências desse
movimento parlamentar...o se desenrolar, de legislatura em legis-
latura, como as ondulações de um mesmo fluido, até a última Câmara
do Império.»
Américo Brasiliense fornece o programa da Liga, depois Partido
Progressista, que era a fusão dos liberais com os conservadores mode-
rados. Esse programa era, também, moderado. Considerava extintos
os antigos partidos; repelia a República; recusava a eleição direta;o
queria a Federação. Suas reivindicações eram vagas: «regeneração
do sistema representativo»; «realização da liberdade individual»;
«defesa dos interesses locais».
O que nem Nabuco nem Brasiliense lembram é que o progressismo
brasileiro de 1862 vinha do progressismo espanhol de 1854 e já vinha
atrasado, pois, como recorda Sanchez Agesta, o Partido Progressista
pareceuo avançado ao nefasto governo da rainha Isabel II da
Espanha (filha do pouco digno Fernando VII) que, em 1863, foi ele
impedido, por famosa circular, de fazer propaganda eleitoral.
Na Espanha o governo progressista durou dois anos, de 1855 a
1856; no Brasil apenas 3 dias, de 24 a 27 de maio de 1862, sendo
derrubado pela Câmara que o Imperadoro quis dissolver, para evitar
a sua ascensão. Mas, como observou o Conselheiro Saraiva, alguns
dias depois, as poucas horas do governo Zacarias serviram para cimentar
a existência do Partido Progressista, de modelo espanhol, durante
seis anos.
O CENTENÁRIO DA CONVENÇÃO DE ITU
Em 1868 o progressismo brasileiro cedeu ante as realidades da
Guerra do Paraguai e a imposição do prestígio de Caxias. Zacarias,
então de novo Presidente do Conselho demite-se, e voltam os conser-
vadores, com o Visconde de Itaboraí.
Mas o desaparecimento dos progressistas, em 1868, levou os liberais
brasileiros a um forte desvio para a esquerda. Tomam corpo as ideias
republicanas, funda-se o novo Partido Liberal e o seu programa de
1869 é baseado na célebre alternativa: «Reforma ou Revolução».
Na Espanha ocorria o mesmo, na mesma época. Os progressistas
tinham desaparecido; formara-se um novo partido, a União Liberal,
que representava, como no Brasil, o radicalismo liberal. E os espanhóis
foram mais longe do que nós.o falaram só em revolução repu-
blicana. Fizeram-na. Em setembro de 1868 começa a revolução
espanhola, exila-se a rainha Isabel em França, reunem-se em 1869 as
Cortes Constituintes, e em 1873 proclama-se a República,
A queda do Império francês em 1870, e a confusa gestação da
República, haviam propiciado no Brasil, naquele mesmo ano, a fundação
do Partido Republicano, através do lançamento do manifesto de 3 de
dezembro, devido principalmente a Quintino Bocayuva e Salvador
de Mendonça.
A presença da França na memória e na pena de Quintino Bocayuva
faz-se sentir em trechos do Manifesto de 1870. Leiamos: «O último
presidente do Conselho de Ministros do ex-Imperador dos franceses...
deixou escapar esta sentença: a perpetuidade do soberano, embora
unido à responsabilidade, é uma coisa absurda; mas a perpetuidade unida
à irresponsabilidade é uma coisa monstruosa.»
E, logo, o comentário: «Nesta sentença se resume o processo do
nosso sistema de governo.»
Mais adiante, afirma o Manifesto, com maior nitidez: «O nosso
Estado é, em miniatura, o estado da França de Napoleão III. O
desmantelamento daquele país, que o mundo está presenciando com
assombro,o tem outra causa explicativa.»
Em 1870 os republicanos brasileiros queriam a Federação, maso
o presidencialismo. Seus olhos voltavam-se para o processo em desen-
volvimento na França.
Passávamos do presidencialismo americano dos Inconfidentes, para
o parlamentarismo francês de Gambetta e de Thiers.
Mais tarde, em 1873, com a proclamação da República espanhola,
o movimento tomava novo impulso; o liberalismo brasileiro cindia-se,
reforçaram-se os republicanos e foi a Convenção de Itu.
O manifesto republicano de 1870 despertou a consciência revolu-
cionária dos paulistas. Muitas foram as adesões ao Manifesto, partidas
AFONSO ARINOS DE MELLO FRANCO
daquela Província. Os liberais radicais evoluíram rapidamente para
a República.
Fundaram-se clubes republicanos em Campinas, Amparo e outras
cidades.
O «Correio Paulistano» era o jornal do partido, como «A Repú-
blica», no Rio de Janeiro. Em janeiro de 1872 o Partido Republicano
começou a se estruturar regularmente na Província, elegendo uma
comissão diretora composta de Américo Brasiliense, Campos Sales e
Américo de Campos. Entre outros fundadores estavam Bernardino de
Campos e José de Almeida Prado, de Itu.
No dia 18 de janeiro daquele ano de 1872, a Comissão Diretora
encaminhou aos correligionários do interior da Província uma comunicação
das diretrizes partidárias. As principais eram: autonomia do partido
provincial, disposição para concorrer às eleições nacionais, apoio aos
republicanos da Corte, plano de reunião próxima de um Congresso
republicano. Aqui estava a ideia que se concretizou na Convenção de Itu.
Todos os republicanos paulistas desejavam essa reunião, cujo
preparo foi centralizado pelo Clube Republicano da Capital.
Em circular de 28 de outubro de 1872, o Clube Republicano da
Capital paulista sugeriu que a reunião dos adeptos da mudança de
regime se fizesse em Campinas, nos de novembro. Mas a 24 deste
últimos os paulistanos propuseram que o evento ficasse marcado
para o dia de Natal, em Campinas ou em Itu. As respostas, como era
inevitável, se contradiziam. Alguns clubes municipais preferiam a
Capital, outros, Campinas, mas o maior número deles fixou-se em Itu.
E havia razões para isto.,
Itu era um dos centros mais veneráveis deo Paulo. Povoação
bandeirante do século XVII, foi a terceira comarca criada na Capitania
deo Paulo e, em 1817, recebia o título de Vila Fidelíssima. Foi
erigida em cidade no ano da revolução liberal, 1842, revolução de que
Feijó, seu grande filho adotivo, participou e cujas consequências sofreu.
Feijó, nascido emo Paulo, mudara-se para Itu em 1818, aos
34 anos, já padre, mas aindao político. Feijó se trasladou para
Itu por influência do padre Jesuino do Monte Carmelo, ele próprio
nascido em Santos e sobrinho bisneto de Bartolomeu e Alexandre de
Gusmão. Sobre o ilustre pintor que foi Jesuino do Monte Carmelo, e
sobre suas pinturas ainda existentes em Itu, escreveu Mário de Andrade
admirável estudo.
Pois foi na terra adotiva de Feijó, Meca do liberalismo paulista
desde a altiva atitude de resistência de sua Câmara Municipal à Carta
outorgada por Pedro I, resistência encabeçada pelo mesmo Feijó, que
se reuniram intencionalmente os republicanos de 1873.
O CENTENÁRIO DA CONVENÇÃO DE ITU
Escolhida a sede da Convenção, ficou em aberto a questão
da sua data.
O Clube da Capital havia proposto que a Convenção de Itu coinci-
disse com a inauguração da estrada de ferro que ligaria aquela cidade
a Campinas.
Como tal ligação fosse iniciada em abril de 1873, foi a 18 de abril
daquele ano, faz portanto praticamente um século, que se instalou na
cidade de Itu a memorável Convenção fundadora do Partido Republicano
Paulista, ele próprio fundador e governante da República civil, em
ascensão, desde 1894, com Prudente de Morais, até 1906, com
Rodrigues Alves.
A Convenção de Itu foi presidida por João Tibiriçá Piratininga,
cujo nome de nativista indianismo apenas encobria o da velha família
Almeida Prado, que era o seu. Também Tibiriçá Piratininga chamou-se
seu filho Jorge, depois Presidente do Estado deo Paulo.
João Tibiriçá, presidente do Clube Republicano de Itu, foi natural-
mente levado à presidência da Convenção de 1873, que deo perto
seguia os movimentos da República de Castelar, na Espanha.
Américo Brasiliense foi o secretário da Convenção. Estiveram
presentes representantes de 17 municípios. Deliberações importantes
foram tomadas, inclusive a da fundação de um jornal, na cidade de
o Paulo, que pregasse as ideias republicanas. Este jornal, fundado
por Rangel Pestana, foi a «Província deo Paulo», hoje transformado
no «Estado deo Paulo», um dos mais importantes órgãos de imprensa
da América.
A 19 de abril, a Convenção de Itu encerrou os seus trabalhos,
convocando a reunião do primeiro Congresso Republicano, na Capital
da Província.
Era a fundação do Partido Republicano Paulista.
Com efeito, o chamado Congresso Republicano Provincial, reunido
na cidade deo Paulo, de 1 a 3 de julho do mesmo ano de 1873
o foi senão o ratificador da Convenção de Itu. A este Congresso
já comparecem Francisco Glicério, Campos Sales, Prudente de Morais,
Cerqueira César, Américo Brasiliense, Bernardino de Campos, patriarcas
do republicanismo paulista e, também, da República brasileira.
É com o pensamento emo grandes nomes, emo ilustres patrícios,
que contribuíram decisivamente para fundar e consolidar, no Brasil,
a República constitucional e o Estado de Direito, que o Conselho
Federal de Cultura comemora a passagem do primeiro centenário
da Convenção de Itu.
A Civilização Fluminense
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
C
OMECEMOS por indagar que será a civilização fluminense?
Como se elaborou, como se realiza, que a caracteriza? Apresenta
particularidades que a distanciem do processo civilizatório
brasileiro? Será, apenas, um capítulo da civilização brasileira?
Recordemos que a característica mais visível do Brasil é a sua
condição de arquipélago e de continente. Continente pelo gigantismo
da extensão territorial, representada em mais de oito milhões e meio
de quilómetros quadrados, o que lhe assegura a posição de quarta
potência em área contínua no mundo. Arquipélago, pois que, na reali-
dade, o Brasil é um conjunto de regiões, perfeitamente definidas,
distanciadas pelas fisionomias geográfica e econômica e, de certo modo,
como afirmaram, acertadamente, Viana Moog e Gilberto Freyre, cultural
também. As ilhas que integram o arquipélago, autônomas, no somatório
resultam no mundo brasileiro, cuja unidade tem raízes distantes, no
tempo, mas na realidade se nos apresenta como um desafio a uma
explicação exata, satisfatória.
A civilização brasileira, sabemos, resulta, inicialmente e fundamen-
talmente, do conflito cultural entre as três etnias e culturas que, durante
os primeiros trezentos anos de nossa formação, aqui se impuseram,
conquistando e dominando o espaço físico e nele montando, com os
fundamentos de uma economia tropical, de espécies vegetais, de espécies
animais, de exploração do subsolo, os centros urbanos, com o sistema
institucional, uma sociedade mestiça e o exercício de uma soberania,
a de Portugal, que por fim passou às nossas mãos, mantendo-se e
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
crescendo nos outros dois séculos de nossa experiência como partici-
pantes do processo de convivência e de vivência universais. Nesses
outros dois séculos ocorrendo, então, a contribuição de etnias e culturas
que nos chegaram, desde a abertura dos portos brasileiros ao intercâmbio
mundial, o que nos fez integrantes do mundo livre que se criava ao
advento do liberalismo.
A civilização fluminense, como fruto magnifico da civilização
brasileira, ou como participante ativa de sua elaboração, tem, portanto,
existência, valendo como expressão das inquietações, reflexões e ações
criadoras do povo que se criou na velha Província fluminense e em
nenhum momento esteve ausente do processo de construção da pátria
brasileira nos variados ângulos por que ela se pode identificar.
Já em três pequenos ensaios acerca da formação fluminense, intitu-
lados «Formação social e econômica da Província fluminense», «A vida
econômica da Província fluminense» e «A Província fluminense e o
Município Neutro», este, capítulo do 4
o
volume da «História da
Civilização Brasileira», dirigida por Sérgio Buarque de Holanda, tentei
fazer o perfil histórico da região, nas linhas centrais de sua indivi-
dualidade. O que me parece porém, de logo, fundamental, para a
caracterização, é a obra admirável que os fluminenses realizaram,
amansando a terra, na empresa agrícola, construindo uma rede urbana,
contribuindo, com seus estadistas, para a ordenação jurídico-adminis-
trativa nacional e a defesa de nossos vários títulos de soberania, na
ordem internacional, e decidindo seus pleitos e sua problemática sem
recorrer à violência. A história fluminense é, nesse particular, modelo
admirável, sobre que é preciso meditar.o, nas páginas dessa
história, de quase quinhentos anos, os arrebatamentos, o estado de
guerra, os gestos insurreicionais que marcam a crônica das outras
unidades federativas. O episódio de Benta Pereira e Mariana Barreto
o constitui uma constante. Revelou a consciência de direitos que
os campineiros possuíam e os levaram àquele ato excepcional.o se
queira ver, no entanto, nessa característica, um sinal de insegurança, de
excesso de serenidade, de ausência de ímpeto. Porque, na terra flumi-
nense, nasceram grandes soldados do Brasil, sendo suficiente registrar
o nome de Luís Alves de Lima e Silva, Duque de Caxias, o único Duque
da galeria nobiliárquica brasileira e o grande militar das guerras platinas
e da consolidação da ordem e da unidade sob o Império. E que dizer,
de outro lado, dos grandes nomes da inteligência criadora, com que a
humanidade fluminense vem enriquecendo o patrimônio brasileiro?
As raízes dessa civilização encontram-se, como é natural, nos pri-
meiros momentos da posse da terra, promovida ao longo do litoral,
quando nele se fixaram os padrões do descobrimento e da ocupação,
através de pequenas unidades urbanas, que significavam uma soberania,
a portuguesa, que desse modo deixava claro sua decisão de executar,
contra os propósitos de seus concorrentes franceses e ingleses, o que
A CIVILIZAÇÃO FLUMINENSE
fora assentado no diploma de Tordezilhas. A baixada, em consequência,
é esse início significativo que se consolida na montagem dos engenhos
da baia e dos pontos de pesca. O Rio de Janeiro está, então, na linha
dessa empresa política, econômica e, por queo concluir, também social,
porque desde logo principiara a elaboração de sociedade mestiça, soli-
dária, de que Araribóia seria o elemento graduado a dar-lhe garantia
e eficiência. Com o Rio de Janeiro, Cabo Frio,o Lourenço, Angra
dos Reis, Mangaratiba, Parati, Maricá, Saquarema, Araruama,o Pedro
da Aldeia, Barra doo João, Macaé,o João da Barra, toda essa
vasta linha de centros urbanos, que assinalam presença humana de tipo
ocidental, importando, igualmente, em exercício de soberania.
O caminho da serra começou em 1565, com Magé, seguido por
Meriti, Inhomirim, Iguaçu, Macacu. Campos dos Goitacazes prende-se
à experiência da Capitania de Paraíba do Sul. O caminho da Paulicéia,
marca-o Paraíba do Sul, Campo Alegre (Resende),o João do Prín-
cipe (São João Marcos). O caminho das Minas tem em Vassouras
e Cantagalo seus núcleos mais importantes. A rede urbana, significando,
do litoral às fronteiras com as Minas e com a Paulicéia dos bandeirantes,
significando, insisto, a presença da sociedade que enfrentava a natureza
e a estava dominando, importava também no sucesso de uma política
que estava criando área humanizada, essencial à conquista do hinterland
da colônia. O litoral estava possuído efetivamente. As várias incur-
sões de franceses haviam sido contidas. O litoral era a porta de entrada
para o Oeste. Os outros núcleos, aqueles já erigidos no primeiro sertão,
completavam a linha de frente que ia dar segurança à penetração, à
expansão, ao ato dramático e admirável da formação da nossa base física.
Entendo que os núcleos fluminenses, e aqui fica uma tese proposta
aos historiadores fluminenses, têm, assim, uma participação de alto sen-
tido no episódio da criação de nossa base física, o continente Brasil.
Porque, insisto, se a «raça de gigantes», de S. Paulo, realizou a façanha
da penetração do Oeste, a segurança desse Oeste processou-se pela
existência dos núcleos fluminenses, de que o Rio de Janeiro era parte
integrante. O caminho velho, para S. Paulo, fora sucedido pelo Ca-
minho Novo, para o acesso às minas, que do litoral fluminense recebiam
o essencial braços, alimentos, e por onde se comunicavam com mer-
cados de consumo. O açúcar, o anil, o tabaco e os gêneros alimentícios
compunham o fundamental em termos de economia. Havia, porém, co-
mércio intenso ao longo dos dois caminhos, o que valia para a perma-
nência da ocupação, um tanto indisciplinada e sem a continuidade de-
sejável .
A conquista partiu, portanto, do litoral. Com a decadência das
Minas, no entanto, abrira-se nova' diretiva é que delas, os que lhe
fugiam à decadência, atingiram o vale do Paraíba do Sul, iniciando-lhe
a colonização. Os centros urbanos, cumprindo, com os engenhos, pontos
de referência ponderável para caracterizar o processo de formação flu-
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
minense. ao findar o século XVIII apresentavam índices de vitalidade,
que Spix e Martius, nos começos do século XIX. assinalaram. O mapa
organizado por Joaquim José de Queiroz, para 1821, registrou o cres-
cimento demográfico, a significar o progresso que ocorria. Havia, na
futura Província, 253.335 habitantes, distribuídos por 14 municípios.
Os homens livres somavam 115.742 e os escravos, portanto ao de
obra dos engenhos, 137.593. Em Campos, só para exemplificar, vivia
uma população que totalizava 36.514 pessoas.
Toda essa aventura geopolítica, talvez possamos assim definir a
história que se escrevia, era promoção ativa, constante, de luso-brasileiros.
O gentio fora dominado, incorporando-se, pela mestiçagem, à sociedade
regional.
Se é certo que a Província fluminense pode e deve ser considerada
nas subregiões geográficas e consequentemente também culturais de sua
paisagem, portanto diversificada,o homogénea, nem por isso podemos
deixar de constatar que essa diversificaçãoo conflitava com a unidade,
que ia crescendo à medida em que o homem afirmava seu domínio na
terra e estabelecia os contatos entre as subregiões, vinculando-as e asse-
gurando aquela unidade pelas características comuns da ação impetuosa
sobre a mesma terra e da formação étnico-cultural.
Lembre-se, pois é oportuno, que do ponto de vista da estrutura
político-administrativa, a regiãoo era também um corpo homogéneo.
Distribuíra-se, inicialmente, pelas Capitanias deo Vicente,o Paulo,
o Tomé, Paraíba do Sul, Cabo Frio, Rio de Janeiro que, por fim, lhe
absorvera o corpo físico. No processo de conquista, já vimos, a regio-
nalização ficara evidente. O controle do Rio de Janeiro, consubstan-
ciando a coesão, desfizera a desarmonia nos possíveis efeitos negativos
que se produzissem. A dispersãoo punha em risco a unidade.
Quando se iniciou a vida brasileira em termos de vida de nação
soberana, a Província fluminense estava definida e, em seu território.
um povo capaz dava início a uma outra experiência agrícola, a do café,
que iria influenciar na projeção alcançada no decorrer do primeiro e
segundo Reinados.
Os que estudaram a Província, nos seus variados aspectos, como
Oliveira Viana, Everardo Backeuser, Renato da Silveira Mendes, Alberto
Ribeiro Lamego, José Matoso Maia Fortes, Honório Silvestre, Afonso
Várzea, Clodomiro Vasconcelos, indicaram a etapa desenvolvimentista,
que o esplendor cafeeiro provocou e influiu,o apenas naquela pro-
jeção a que nos referimos, mas em outra, a da projeção dos homens
públicos e das inteligências criadoras que irradiaram por todo o Brasil
e importavam na indicação de que a civilização fluminense, como parte
da civilização brasileira, era, talvez, a de maior significação na aventura
da criação do Brasil.
Na hora da independência, as Câmaras fluminenseso se haviam
portado revelando hesitação, receios, indecisão. Ao contrário, encabe-
A CIVILIZAÇÃO FLUMINENSE
çaram o movimento autonomista de libertação, em demonstração positiva
de que estariam possuídas de forte sentimento cívico, revelador, igual-
mente, de que aquela dispersãoo valera como força impeditiva da aglu-
tinação do pensamento político, objetivando a conquista da soberania
nacional. O papel das Câmaras Municipais fluminenses foi incisivo e,
de certo modo, importando em pressão sobre o Príncipe na hora muito
grave das decisões que o levaram ao 7 de Setembro.
Daí para frente, a Província tomaria uma consciência nova, como
participante dos destinos nacionais. A autonomia politica, que o Ato
Adicional lhe atribuiu, provocou a mobilização de energias para a cons-
ciência regional que encerrara as possíveis distâncias ainda existentes.
Os Municípios de Campos,o João da Barra e Parati, que haviam
sido transferidos ãs Capitanias deo Paulo e Espírito Santo, restituí-
ram-se às raízes fluminenses, para integrar o corpo político da mais
nova unidade imperial. Praia Grande, que passava a ser a cabeça da
Província, ia começar sua atuação mais expressiva nos destinos flumi-
nenses. Sua história fora até então uma história mansa, sem grandes
lances. Fora crescendo lentamente, do burgo de Araribóia, para, agora,
empossar-se no título de capital, e assim comandar, como sede do poder
político que se inaugurava — o executivo e o legislativo.
O que vai suceder até 1888, quando se fez a libertação dos escravos,
assegura à Província e aos seus filhos um êxito sensacional. Escrevi,
no capítulo para a «História da Civilização Brasileira», que os flumi-
nenses, nesse período, foram «compondo uma sociedade refinada. Uma
grande rede de centros urbanos dinâmicos e progressistas começou a
resultar numa mudança rápida e trepidante. Entre 1837 e 1850 haviam
nascido novos municípios: Pirai (1837), Capivari (1841), Pajuarema
(1841), Barra de S. João (1846), Rio Bonito (1846), Rio Claro (1849),
S. Fidelis (1850). Mesmo nas cidades e vilas que datavam de fases
anteriores, a sociedade fluminense criou salões para reuniões elegantes.
Como centros urbanos, experimentavam progresso de fácil constatação
nos edifícios públicos construídos, como casas de câmara e teatros, re-
sidências apalaciadas, ruas e praças cuidadosamente tratadas, ilumina-
ção. Nas fazendas, havia conforto; em algumas, certo bem-estar que se
aproximava do luxo. As festas de aniversários, batizados ou religiosas
proporcionavam demonstração de bom gosto e das posses dos que as pro-
moviam. Enfrentando a floresta, na serra e nos vales dos pequenos e
grandes rios, até o Paraíba do Sul, os fluminenses elaboravam uma his-
tória cheia do maior interesse nessa decisão de criar riquezas e de re-
finar-se. Ao longo dos caminhos que se iam abrindo, montaram as
fazendas de café que assegurariam à Província, com o primeiro grande
rush, o esplendor de que se ufanaria, proporcionando ao Império uma
esplêndida contribuição à sua economia de exportação. A conquista
da terra, efetuada com uma rapidez espantosa, constituía o grande título
com que se apresentavam.
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
A sociedade que se estava constituindo na expansão e no domínio
exercido sobre a natureza agreste, era uma sociedade do tipo patriarcal,
que se alicerçava no trabalho do braço escravo, trazido da África e cuja
grande participação na criação da riqueza aumentava sem cessar à me-
dida que se processava o surto cafeeiro ao longo do Vale do Paraíba.»
Essa sociedade só raramente se alterara quanto à composição étnico-
cultural, com a entrada de emigrantes suíços e alemães, responsáveis
pelos núcleos de Petrópolis e Friburgo.
Oliveira Viana, com aquele poder de síntese e de análise que tanto
o distinguem como intérprete da sociedade brasileira, escreveu sobre os
fluminenses nessa quadra: «Nãom o orgulho paulista, nem o demo-
cracismo mineiro.o mais finos, mais polidos, mais socialmente cultos
pela proximidade, convívio e hegemonia da Corte, cuja ação como que
os absorve e despersonaliza. Os seus grandes representativos, Uruguai,
Itaboraí, Francisco Belisário, Otaviano, justiniano, Macedo Soares, Pauli-
no de Sousa,o apresentamo vivo, como os de Minas e S. Paulo,
o traço rural. O polimento urbano lhes corrige a rusticidade matuta,
emborao lhes altere a admirável cristalinidade do caráter. Pela ele-
gância espiritual, pela finura, pelo senso da proporção e do meio termo,
pela limpidez e pela calma da inteligência, representam, ao sul, os nossos
atenienses da política e das letras.»
Completando o retrato avancei: «Os senhores de engenho do ciclo
colonial tinham cedido lugar aos «land-lords», do café,o numa trans-
ferência mansa, tranquila, rotineira, mas num rompimento quase abrupto,
sensacional, do equilíbrio social vigente com a ascensão ampla, vigorosa
e multiforme dos cafeicultores, que passaram a constituir figuras da mais
alta expressão nos quadros da nobreza, da politica e do capitalismo
nascente no país.
Concedeu-lhes o Imperador os títulos de fidalguia numa preferência
visível. Recebendo-os, souberam polir-se, perdendo o ar matuto de
origem para desfrutar uma vida faustosa dos salões das casas solarengas,
por que substituíram as habitações acanhadas, sem conforto, rústicas
demais, assim descritas pelos viajantes europeus que percorreram a região
no início do «rush» do café.
Ascendendo aos postos de política, tomavam a si, praticamente, a
condução do Estado, nos gabinetes, nos governos das Províncias, nos
postos graduados da administração nacional, no Parlamento.
A Província fluminense, tinha garantida a sua condição nova, na
constelação das Províncias que integravam política, social, económica
e culturalmente o Império.»
Tal situação ia, todavia, alterar-se profundamente com o 13 de Maio,
provocando a decadência. Os estudos de Roberto Simonsen e de Clo-
domir Cardoso, sobre o acontecimento, divulgados nos volumes sobre o
Café à passagem do segundo centenário de sua introdução no Brasil,
A CIVILIZAÇÃO FLUMINENSE
registraram, seguramente, o desolador da paisagem econômica que se
seguiria. Foram 160.000 escravos negros que se tornaram livres, numa
população que totalizava 800.000 habitantes. A hegemonia do vale do
Paraíba,o magnificamente proposta por Oliveira Viana e Backeuser,
perdeu expressão. Na baixada, a decadência principiara em meados
do século, com a supremacia da região cafeeira. Sua decadência, no
entanto, tomava agora aspectos mais violentos. Ao iniciar-se a Re-
pública, o Estado oferecia quadro desolador, que os primeiros gover-
nantes indicaram no realismo negativo que era preciso constatar para
a nova orientação a seguir, capaz de restaurar a velha Província em seus
dias de euforia e de progresso.
No tocante à história política e à história econômica, o Estadoo
experimentava aquela euforia que lhe marcara a presença no cenário
nacional. A galeria de homens públicos que, na alta administração do
Império e na diplomacia, haviam e'aborado grandes páginas cívicas, ia
perder a grandeza do passado. Porque a participação fluminense na
condução dos destinos da Repúblicao ocorreu mais, pelo menos com
a intensidade e as características e profundidade que tanto a haviam
definido. Consequência da perda de substância econômica que a abo-
lição provocara? O certo é que os episódios, que marcaram a vida politica
regional,o significaram mais fatos que importassem em participação
maior na vida nacional. Valiam, antes, como acontecimentos domésticos
sem maiores repercussões ou expressão.
Uma região, todavia,o se distingue, na paisagem nacional, apenas
pela nomeada ou pela ação direta, impetuosa, de seus homens públicos,
mas, e talvez até mais ponderavelmente, pela atuação que importe na
valorização de sua natureza física, compreendida essa valorização pela
utilização do espaço em termos de produção.o ocorreu, no entanto,
na velha Província. E no particular das operações visando à reconquista
da substância econômica, perdido o esplendor açucareiro e cafeeiro, tudo
se processava sem velocidade.
Em meados do século XX, porém, a recuperação principiava. Al-
berto Lamego, em seus livroso cheios de substância, registrou as
mudanças que se operaram no vale histórico do Paraíba. Everardo
Backeuser, Matoso Maia Fortes e Edgard Teixeira Leite, estudando a
paisagem geográfica, política, econômica e social que se transformava,
indicaram o esforço de recuperação que, insnta-se,o se processara
com a dinâmica necessária. Volta Redonda e a industrialização con-
sequente significou, realmente, revitalização nascente em que se em-
penhou o povo fluminense. A valorização do vale do Paraíba, planejada
agora com tanta objetividade, é passo importante nessa tarefa de ci-
vilização .
Da civilização fluminense, sobre que Celso Kelly nos deu ensaio
da maior importância, «A Ecologia na interpretação da cultura flumi-
nense», insistindo na tese da expressão rural do processo de vida flu-
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
minense,o se pode deixar, todavia, de assinalar o ângulo da urbani-
zação, em que se afirmara também, afirmara muito mais sensivelmente
que as demais regiões ou subregiões brasileiras.
A civilização fluminense, sob a República, deve, no entanto, a nosso
ver, ser indicada através de três nomes ilustres de sua galeria cívico-
cultural,o bem proposta nas páginas, cheias de lucidez, de compreensão
e de objetividade de Lourenço Filho, quando inventariou «O grupo
fluminense na cultura brasileira» e sugeriu que sua constatação e análise
partisse da certeza de que «o torrão fluminense foi a sede de uma sub-
região que, logo se diferenciou, por muitos aspectos, da cultura de origem,
a portuguesa.»
Ora, o certo é que, esse subgrupo, a aceitarmos as conclusões do
mestre paulista, projetou-se, para o Brasil, sob a República, na contri-
buição extraordinária de três fluminenses a que devemos as grandes
interpretações de nossa presença no mundo. Referimo-nos a Alberto
Torres, Euclides da Cunha e Oliveira Viana.
Alberto Torres, nas reflexões acerca da evolução nacional, nos altos
e baixos que a marcaram e nas realidades negativa e positiva, por que
aquela evolução oferecia,o se mostrou limitado ao inventário, ao re-
gistro do que lhe pareceu mais típico, mais sensível, mais indicativo.
Analisou, com um senso de exatidão e de autonomia como até então
ninguém procedera. Analisou para indicar a solução institucional, que
se fazia necessária e seria fruto,o de um transplante de técnicas
constitucionais vigorantes noutros povos, de índole, de formação, de
comportamento diferente do nosso, portanto técnicas queo provariam
bem, entre nós, comoo provaram, mas de nossa própria experiência
para atender nossas conveniência e carências socioculturais.
E em «O Problema Nacional Brasileiro», «Fontes da vida no Brasil»
e em «A Organização Nacional», neste seguramente adotando, para o
ensaio, como modelo, o livro de Juan Batista Alberdi, «Puntos de Partida
para La Organizacion Nacional», propôs a problemática que nos angus-
tiava e estava exigindo soluções nacionais, urgentes, inadiáveis. Na-
cionalista sem a exaltação prejudicial, compreendera-nos nos defeitos e
virtudes que nos personalizam e, sem descer ao ufanismo, propunha-nos
no que efetuáramos, já éramos e de como poderíamos vir a ser desde
que tomássemos novas direções, necessárias, fundamentais. Sua lição
era enérgica, objetiva, leal e exata. Ainda hoje é modelar.
Euclides, homem de espírito irrequieto e nisso diferindo de Alberto
Torres, no Nordeste e na Amazônia viu os graves e contundentes as-
pectos de nossa problemática. Enquanto os detentores do poder se
deixavam arrastar por outros ângulos das conjunturas nacionais, ele
denunciava ao país, naquele estilo inconfundível, que refletia sua espi-
ritualidade agitadiça, mas dominado pelo mais ardente amor à pátria,
os dramas que ocorriam nas duas regiões a que padecia aos rigores
das secas e de população sofredora que, de armas na mão, exigira atenção
A CIVILIZAÇÃO FLUMINENSE
e solução para suas inquietações e inferiorização material, e a que se
descobria, por entre desventuras e se começava a propor na exteriori-
zação, no vazio demográfico, no extrativismo predatório e na composição
de um quadro novo de preocupações que precisavam ser devida e ve-
lozmente enfrentadas para evitar os perigos futuros que ele já antevia.
Oliveira Viana, já noutro momento histórico, no silêncio de seu
gabinente, à luz de uma filosofia, de uma ciência política em renovação
rápida, preocupado com a sociedade plurirracial que compúnhamos, com
o regime político que precisávamos adotar, as fórmulas de um sistema
de trabalho mais humano nos direitos a serem reconhecidos, crítico severo,
mas sereno, do que ele denominaria idealismo de uma constituição es-
tranha a nossas mais legítimas aspirações e realidades socioculturais,
atento às diversidades regionais e ao que, no decorrer das idades, dera
conteúdo para a elaboração da unidade, como resultante de fatores
culturais que a explicavam, era o outro, o terceiro intérprete com que a
Província fluminense comparecia ao imenso esforço visando definir-nos.
Os três, cada um a seu modo, mas sem fantasia, completavam-se na
interpretação do Brasil, desse modo assegurando, ao que chamaríamos
de civilização fluminense, o capítulo mais denso de sua caracterização.
A civilização fluminense que, através dos tempos, como expressão
particular de civilização maior, a brasileira, apresentou aquelas carac-
terísticas aqui lembradas, no momento em que se festeja a passagem
do quarto centenário de Niterói,o poderá deixar de ser acentuada,
nos seus traços mais vivos, de maneira a permitir a compreensão de como
se processou a contribuição do povo fluminense para a elaboração da
pátria brasileira que é, em última análise, a resultante do esforço, da
dinâmica, da decisão dos brasileiros de todas as regiões que lhe con-
formam a paisagem física, humana, cultural.
A Liberdade e suas Mistificações
DJACIR MENEZES
P
ARA começo de conversa, conto-lhes um exemplo concreto desses
tempos agitados de mocidade inquieta, habilmente explorada na
sua inquietação. Eu era, então, professor da Faculdade de
Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Àquela época,
os estudantes pretendiam ampliar a liberdade para limites desastrosos.
À certa altura, apoderaram-se do prédio, fizeram piquetes de greve,
ditaram acordos, capitaneados por sovietizinhos impúberes.
Com alguns professores interditados de entrar no prédio da Fa-
culdade, contemplamos os alunos entrincheirados no edifício, proibindo
que determinado Paraninfoo falasse na solenidade de entrega de
diplomas. E voltamos todos para casa deíxando-os na praça sitiada
pela polícia. Felizmente, tudo findou em paz, decepcionando a minoria
ávida de mártires para a propaganda.
Seria essa a liberdade que se pretende? Vale a pena analisar
o sentido desta liberdade em que minorias audaciosas comandam maiorias
mais ou menos passivas. Na velha legislação constitucional, fala-se
na liberdade de ir e vir, insinuando no espírito que a liberdade começa
quase fisicamente. Lembro a anedota que ouvi ainda nos velhos tem-
pos. O matuto compareceu preso e amarrado perante o delegado.
o conseguia explicar o que tinha ocorrido. «Doutor, desamarre
as mãos que eu explico tudo, porque assim a palavrao vem não».
É que o gesto já significa a palavra que evoca. A palavra é gesto
vocálico e começa nos próprios braços e mãos.
DJACIR MENEZES
Este aspecto aparentemente primário já revela, com efeito, ativi-
dade da mente. O problema da liberdade se inicia nas disposições e
atitudes corporais.o é problema a respeito de coisas, mas de pes-
soas interrelacionadas e coisas. O sentido do problema começa na
relação interpessoal, na convivência humana. Dai é que se torna in-
trapessoal, irradiando na consciência, evidenciando-se nas perplexidades
da opção. Seo há possibilidade de optar, desaparece o sentido
subjetivo da liberdade.o recordarei aqui sequer o étimo liber
que conota crescimento, porque o grego leibo indica o que cresce.
Crescer é ritmo de expansão, tem suas leis. Liberdadeo é situação
de anomia ausência do espírito normativo. Ela cresce no processo
de convivência; é congruência entre seres semelhantes. É um aspecto
da normatividade. A velha antinomia de «liberdade» e «autoridade»
é antinomia inoperante, resultado da filosofia do século XVIII, que se
agravou no século XIX a dentro.
A liberdade é fenômeno supremamente espiritual. O crescer
histórico da liberdade é função do conhecimentoo só do mundo real,
da estrutura do mundo físico como do mundo social, à medida em que
as leiso apreendidas pela consciência. Esta consciencialização dá
o sentido de liberdade melhor, a racionalização da liberdade.
Nesse sentido, as leis históricas e sociais conhecidaso condi-
cionando o processo de evolução humana, submetendo-o ao controle
voluntário. Esse sentimento de liberdade, incessantemente se forta-
lece. Quando falo em «consciência», lembro-me do indivíduo, cujo
apanágio é a liberdade, configurando-o como pessoa. A evolução da
personalidade padece hoje os efeitos da tendência contrária, que é o
avanço da massificação. Neste processo, a eliminação de prerrogativas
racionais da pessoa humana termina na fabricação de títeres.
Contestamos a distorsão institucional a título de que a Universi-
dade representa o pensamento livre. Esse princípio é a fonte vital
das Universidades. Contestamos o proselitismo, que pretende sufocar
as maiorias congregadas no âmbito estudioso com finalidades que dis-
crepam da instituição. Contestamos a desvirtuação do princípio que
se transmuda velhacamente no seu contrário, fazendo do «campus»
universitário um campo de batalha social.
Basta ver o comportamento agressivo dessas maiorias que confis-
cam a palavra do adversário onde quer que assumam a liderança.
Quando certos diretórios acadêmicos, obedientes ao comando marxista,
dominaram, durante curta fase da vida universitária, os piquetes de
execução das greves, intimidaram maiorias desprevenidas queo dis-
punham de órgão adequado para contraminarem a escalada tecnica-
mente bem orientada do sectarismo. Eis porque está mal posto o
problema da liberdade universitária, nesse jogo de cartas marcadas.
o trago impressões de cristão novo, nem estou adotando nova pers-
A LIBERDADE E SUAS MISTIFICAÇÕES
pectiva do Reitor que deseja ordem e paz para poder realizar alguma
coisa duradoura; reclamo compreensão e apoio do alunado. Muito
mais disse, há cerca de dez anos, na Faculdade de Filosofia, quando
era apenas professor de História das doutrinas econômicas. E toda
minha ação pedagógica se concentrava na descentralização do espírito
juvenil, que, pela sua impaciência generosa, é facilmente captável às
ilusões dos caminhos messiânicos e das soluções rápidas. Se vencem,
serão os primeiros trambolhos a serem alijados pelos reais condutores
do movimento, ondeo passam de brigadas de choque, utilizados
nesta fase do combate. É impressionante a mudez da Universidade
dos países totalitários.
O rumor das apoteoses é manipulação de massas domesticadas,
que se entusiasmam dentro dos programas do poder. Onde quer que
uma personalidade se erga originalmente — o facão do partido único
lhe corta a voz, isto é, para melhor segurança, o pescoço. Mas como
é difícil convencer sectário! Convencer medularmente, de que só na
liberdade se torna possível evitar a contaminação dessas mitologias em
que se divinizam as massas! Assentam nessa massificação inicial, ra-
cismo, facismo, maixismo, leninismo, stalinismo, vinhos da mesma pipa
totalitária; pretendem realizar a justiça social e a liberdade intelectual.
Onde encontrar a demonstração histórica das realizações? Nos
países onde se implantaram, criaram a oligarquia burocrática, que con-
fiscaram as conquistas democráticas. «Cassaram os direitos burgue-
ses!», explicam. Mentira. Sujeitaram todos. E mesmo os queo
se iludiram, o rolo compressor esmagou-os quando quiseram recuperar
a voz. Até em assunto de genética, filosofia e teoria de relatividade,
a censura foi asfixiante.
No triênio 1936-39, mais de um milhão e meio de membros do
partido comunista soviético metade do total foram encarcerados,
muitos deles torturados no curso dos interrogatórios. 600 mil trans-
portados ou mortos em campos de concentração. Raríssimos os que,
reabilitados, voltaram a cargos de direção. Quem no-lo conta é o
físico nuclear Andrei Sakharov, do Instituto Leberdev, de Moscou,
Sakharov se bateu pela liberdade intelectual e teve o prêmio Stalin
em 1950. Insubmisso aos oligarcas do Partido, passou a ser suspeito
ao regime, o que significa um risco de liberdade e de vida.
Dizem então os pregoeiros que se pretendem desquitar os estudiosos
das preocupações políticas.o é verdade. Preservar o meio uni-
versitário dos escarniçamentos ideológicos e políticoso significa
alienar os professores e alunos dos interesses vitais da comunidade, mas
impedir que o «campus» se torne o centro de conspiração e os líderes
universitários meros agentes de uma propaganda que alicia a juventude
contra a ordem democrática. É curioso que esses advogados de uma
Universidade que submeta todos os valores à crítica, sejam exatamente
DJACIR MENEZES
os representantes de sistemas sociais que encabrestaram a Universidade
à burocracia totalitária do credo comunista.
Ao converter-se em órgão da ideologia oficial, ela perdeu a liber-
dade das opções intelectuais no litígio das doutrinas. Porque, de seu
seio, desaparecem os litígios, decretando-se a uniformidade. Tais
seitas promovem, valendo-se da liberdade existente, as violências que
deflagram no «campus» da Berkeley, da Cornell, e de outras universi-
dades norte-americanas. É um erro supor que uma política abdicatária
contribui para apaziguar a intolerância dos agressores. Tivemos exem-
plos em algumas universidades do país, no tempo do governo Goulart,
quando grupos estudantis, capitaneados por marxistas, pleiteavam a
dominação dos colegiados, defendendo a ideia da «co-gestão» didática
e administrativa das universidades. Assistimos a sessões de Congrega-
ção onde a equipe dos líderes discentes, beneficiando-se da faixa on-
dulante de professores, alguns já amarelos de medo, outros avermelha-
dos de ideologias, conseguiam obter decisões favoráveis a seus propó-
sitos. Nas vésperas de 31 de março, o controle dos diretórios era
visível em quase todas as unidades, com algumas exceções.
Como disse o Reitor da Universidade de Berkeleyo se nega
o direito a manifestações inteiramente dissociadas dos programas que
frustram a liberdade universitária pela intromissão das teses sociais e
políticas que deveriam ser objeto de estudo de outros programas pelos
respectivos especialistas.
, hoje, uma grande ressonância espiritual promovida pelos órgãos
de comunicação queo responsáveis por essa padronização dos espí-
ritos e por certa frustração da originalidade. Porque originalidade
juvenilo é repertório de atitudes mais ou menos rebeldes típicas do
de «cabeludismo» e de outras manifestações, superficiais e inócuas. .
Com a deslocação da tónica para a técnica, o centro da vida uni-
versitária, do ponto de vista cultural, concentrou-se na pesquisa. O
que se está vendo? Uma evolução dialética: a tese volve-se na sua
contrária. Ora toda vez que uma tese é agravada, alcança os limites
em que gera organicamente a sua própria antítese.
Hegel nunca afirmou essas coisas de uma maneirao simplista,
como fizeram depois os seus epígonos, usando as lentes de Marx.
A afirmação se faz através do subjetivo, que define o objetivo. Quando
Marx quis fazer, com aquela história de por a dialética nos verdadeiros
pés, uma dialética materialista eliminou toda a força que tem a dialética
hegeliana. Sua dialética do concreto é falsa. No grego, tese é o
que se põe, a afirmação. Nada vem de fora para combatê-la. A
A LIBERDADE E SUAS MISTIFICAÇÕES
antítese, que se impõe,o lhe é estranha, aparecendo externamente
como adversária. O ato de afirmar implica o de negar. Disse ato,
logo estou no plano subjetivo, onde vivem os conceitos e nesse jogo
do pensar é que cobram significados os aspectos do processo dialético.
o posso compreender o que é «norte» senão pela valência subterrânea
que tem a semântica «sul». Falando em «esquerda», esta noção, dita
soltamente, implica a sua contrária, queo foi enunciada, nem precisa
sê-lo, porque está na imanência da contradição, que move o pensar.
É a dinâmica do próprio espirito e está dentro da intimidade conceituai.
Vamos, porém, à tese. A Universidades a tônica na pesquisa,
onde concentrou a atenção. Tudo é pesquisa. E, chegou-se à con-
clusão de que o ensino feito, o ensino elaborado, que tem de ser trans-
mitido, difere radicalmente da pesquisa, que está nas áreas do conheci-
mento em elaboração. Toda a ação docente universitáriao está
empenhada na pesquisa, embora, nas condições em que se desenvolve
a civilização moderna, ela represente o núcleo de elaboração de novos
valores em todos os planos da cognocibilidade e da sensibilidade humana.
A Universidade é o órgão seletivo de preparação de elites. Elites
«abertas», capazes de dominar os métodos de ação científica, queo
essencialmente métodos de reflexão e de crítica.o desconheço
que, ao falar de «elites», posso incorrer na ira ou prevenção dos que
insistem na apologética das massas, exaltando-as como o supremo motor
da história. Essa pregação perde todo seu pathos demagógico
quando a análise sociológica desentranha os mecanismos que acionam
os movimentos históricos.o é esta a oportunidade para aproximar-
me do tema; apenas devo declarar que, ante a idolatria bárbara do
número, conduzindo às estruturas irracionais das autocracias, creio ver
o espírito universitário inclinar-se para a racionalidade qualitativa da
consciência progressivamente iluminada pela expansão crescente do
saber, condição vital das democracias. E vem a calhar esta profunda
reflexão de Pontes de Miranda a educação superior frustra a pos-
sibilidade dos Messias, corta o caminho dos demagogos, abate as ban-
deiras dos meneurs, porque substitui o voluntarismo carismático dos
profetas pela verificação objetiva das verdades sociais.
Santos Dumont, um Brasileiro
IVAN MARTINS VIANNA
ANO-CENTENÀRIO RAZÕES DAS COMEMORAÇÕES
O
Governo Brasileiro, pelo seu Presidente, General Emílio Gar-
rastazú Medici, houve por bem, em Decreto de 19 de dezembro
de 1972, nomear uma Comissão Nacional de alto nível para
planejar e programar as comemorações em memória do insigne inventor
patrício Alberto Santos Dumont, durante o ano de 1973, quando
este completaria, se vivo fosse, seu Centenário de nascimento, aos 20
de julho.
Ao Ministro da Aeronáutica, coube, por sua vez, baixar Portaria
designando o Chefe da Comissão «Ano-Centenário Santos Dumont»,
seus auxiliares imediatos, e dando outras providências, de acordo com
o Decreto Presidencial.
Aos Governos Estaduais foi incumbido nomearem as Comissões
Estaduais respectivas, e recomendação no mesmo sentido foi endere-
çada à Academia Brasileira de Letras na qual o próprio Santos
Dumont era um dos «imortais» às suas congêneres Estaduais, e
Institutos Históricos, além da Liga de Defesa Nacional para que,
todas juntas, se esforcem, neste 1973, para comemorarem com brilho
o 1
o
Centenário de nascimento do «Pai da Aviação».
O Brasil iria, portanto, prestar n um dos mais ilustres de seus filhos,
conhecido em todo o Mundo, as mais justas e merecidas homena-
IVAN MARTINS VIANNA
gens de que se fez merecedor, pelo muito que contribuiu para o pro-
gresso da Aviação.
Razõeso apenas de ordem sentimental, mas sobretudo de direito
e de justiça, levarão este ano todos os brasileiros a se lembrarem de
quem, pela sua inteligência e seu espírito inventivo, conseguiu, a seu
tempo, e depois de experiências inúmeras e coroadas de êxito, provar
de maneira cabal e indiscutível, ao mundo, a «dirigibilidade dos balões»
e o «vôo do mais pesado-que-o-ar».
O brasileiro de aspecto franzino e ávido em conhecer física e me-
cânica, que habitou Paris na última década do Século XIX e quase
30 anos do Século XX, foi, perante o Mundo, o responsável por grandes
descobertas no campo da aerostação, e da aviação propriamente dita.
O seu merecimento e valor, naquele campo das descobertas, foio
mais notável, quanto o seu desprendimento em jamais desejar aparecer
como o «inventor» ou o «descobridor» mas apenas como o homem que
conseguiu, pelos seus esforços, «desenvolver» e «aperfeiçoar» os meios
de transporte do homem no «mais-leve-que-o-ar» os balões, que
se tornaram dirigíveis, e os «mais pesados-que-o-ar», i.é., os aviões.
Alberto Santos Dumont, pelo seu valor e inteligência, iria se dife-
renciar de outros «inventores» da época, nada querendo para si, nem
mesmo «patentear» suas descobertas (e poderia tê-lo feito), e nem
tampouco desejar vendê-las a terceiros.
A sua glória é pois, tanto mais transcendental, como o seu elevado
procedimentoo apenas em relação a seus mecânicos e auxiliares mais
diretos, como também em relação aos seus colegas igualmente balonistas,
aeronautas, fabricantes ou simples «experimentadores» de aparelhos
mais leves, ou «mais pesados-que-o-ar». E tudo isto, nos albores da
autêntica aerostação (balões e dirigíveis), e dos aviões, entre 1895 e
1909, quando a seu lado, o mais moderno, rápido e seguro meio de
transporte do homem, o automóvel, dava também seus primeiros
passos.
As comemorações que terão lugar, no Brasil, em memória de
Santos Dumont, por ocasião do 1º Centenário de seu nascimento, serão
portanto mais que justas e merecidas. Pelo muito que ele fez no campo
da aeronáutica, ele deixou de ser apenas BRASILEIRO, para ser CIDADÃO
DO MUNDO.
E a prova disto, é que, naquela época, os jornais ingleses,
americanos, russos, suíços, italianos, espanhóis e portugueses (e de
outros tantos países da Europa, Ásia e Américas), já falavam das
descobertas «do brasileiro SANTOS DUMONT, rico desportista residente
em Paris...»
A França estará ao lado do Brasil, em julho próximo, nas come-
morações do Centenário do grande aeronauta e" inventor brasileiro.
SANTOS DUMONT, UM BRASILEIRO
Governo e entidades aviatórias francesas estarão juntas nas homena-
gens que serão prestadas a Santos Dumont, em 20 de julho próximo,
junto aos seus dois monumentos em Paris: o de Bagatelle, e o de St.
Cloud!
Certamente, outros países, como a Espanha, Portugal, e meia dúzia
de nações latino-americanas, que desde há muitos anos reconhecem
as glórias e o valor de Santos Dumont em suas descobertas no campo
da aerostação e da aeronáutica, irão prestar-lhe justas homenagens pelo
transcurso do 1ª centenário de seu nascimento.
Pelo menos uma dúzia de museus de fama mundial, sediados nos
Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra, México, Espanha,
Portugal, Argentina, Uruguai, Suíça, Itália, etc, já possuem miniaturas
ou «réplicas» do 14-BIS e do «Demoiselle», além de fotos da época.
desenhos, e plantas dos balões, dirigíveis e aviões construídos por San-
tos Dumont, em Paris, de 1898 até 1909, i.é., do «Brasil» aos últimos
modelos do «Demoiselle».
NOTAS BIOGRÁFICAS
Eram portugueses os ascendentes de SANTOS DUMONT, pelo lado
materno, e franceses, por parte de pai. Com a apressada vinda de Dom
João VI e sua Corte para o Brasil, no começo do Século XIX, veio
um ilustre médico português, Dr. Joaquim dos Santos, que era «Co-
mendador» . Um de seus filhos, Francisco de Paula Santos, já bra-
sileiro, estabelecera em Ouro Preto, onde se casou, e era abastado
negociante. Uma de suas filhas, Franci sca, seria, mais tarde, em 1832,
esposa do jovem engenheiro Henrique Dumont, natural de Diaman-
tina, os quais foram os pais de Alberto Santos Dumont.
Henrique era filho do francês François Dumont, que com sua
esposa Eufrásia François Honnorée Dumont, ele parisiense, e ela filha
de rico joalheiro de Bordeaux, vieram para o Brasil logo após a Inde-
pendência, estabelecendo-se em Diamantina, na época, muito rica região
aurífera e diamantífera da Província de Minas. O casamento de Henri-
que foi em Outro Preto, em 1832, com Francisca Santos, onde nasceu
a primeira filha do casal, Maria Rosalina.
O jovem Henrique, ainda com 15 anos, fora levado para a Europa
por seu padrinho, também francês e residente em Diamantina. Ali,
mais tarde iniciou seus estudos de engenharia na École Centrale des
Arts et Métiers de Paris, onde se diplomou.
Regressando ao Brasil, Henrique esteve primeiramente em Ouro
Preto, indo depois para o município de Santa Luzia do Rio das Velhas,
onde adquiriu, de sociedade com seu abastado sogro, Sr. Paula Santos,
da Coroa, a grande Fazenda da Jaguara, de alguns milhares de alquei-
IVAN MARTINS VIANNA
res mineiros. Supunha o jovem engenheiro que a Jaguara fosse reposi-
tório de riquezas minerais, tais como ouro, ferro e diamantes, mas
acabou constatando que ali existiamo e somente, mas em grande
quantidade, reservas calcáreas, naquela época aindao aproveitáveis,
como hoje em dia, para o fabrico de cimento. Explorou então, as matas
ali existentes, extraindo madeirame apropriado para escoramento das
galerias da Minas de Ouro do Morro Velho, dos ingleses, onde as
vendia ao seu grande amigo Dr. George Chalmers, Diretor-Superin-
tendente da «St. John d'El Rey Minning Company». O transporte
das madeiras se fazia pelo próprio Rio das Velhas, que banhava a
Jaguara, e em Reposos fazia a mais próxima comunicação com o arraial
onde se localizavam as Minas, cm Conceição do Sabará, hoje Nova
Lima, a 18 quilómetros de Belo Horizonte. Mas, com o tremendo incên-
dio e desmoronamento da Mina, ocorrido em 1871, cessaram as vendas
de madeiras, e o engenheiro Henrique passou a explorar, então, pe-
quena empresa de navegação fluvial entre sua fazenda, e as cidades de
Santa Luzia e Sabará.
E foi em Sabará, que foi ele trabalhar finalmente no exato exercí-
cio de sua profissão de engenheiro, em trecho ferroviário da Estrada de
Ferro D. Pedro II (a atual Central do Brasil), então em construção.
Uma antiga ponte de madeira, sobre o Rio Sabará, foi obra de Hen-
rique Dumont. Na Jaguara nasceram mais duas filhas do casal: Ga-
briela e Virgínia, e um filho, Luiz. Outro trecho da nova ferrovia foi
dado ao engenheiro Henrique, desta vez entre Juiz de Fora e Barba-
cena, na Serra da Mantiqueira, considerado muito difícil e trabalhoso.
O casal Henrique Dumont e Francisca Santos Dumont, já então com
quatro filhos, teve que se mudar para as proximidades da construção,
entre aquelas duas cidades. Escolheram então, em plena Mantiqueira,
o local conhecido como Cabangu, também nome dado à casa do enge-
nheiro-residente (construtor), no Distrito de João Aires, Município de
Barbacena, tendo como mais próxima a Estação de Rocha Dias. Mais
tarde, com o advento da República, em 1889, e desmembramento de
grandes municípios mineiros, aquela parte da Mantiqueira deixou de
pertencer a Barbacena, para formar um novo município, que tomou
o nome de Palmira, em homenagem à esposa de um Presidente, da
época.
Foi aos 20 de julho de 1873, em Cabangu, que veio ao mundo
o 5º filho do casal Santos-Dumont, e que tomou o nome de Alberto.
Em sua homenagem, 60 anos mais tarde, o novo município o de Palmira
passaria a se denominar Santos Dumont.
O pequenino Alberto, porém,o iria morar em sua terra natal
senão um ano e meio, pois, terminando a construção do trecho entregue
a seu pai, pela Estrada de Ferro, a família se mudaria, em 1875,
para Casal, próximo a cidade fluminense de Valença. O Dr. Hen-
rique, depois de trabalhar alguns anos em sua profisão, resolveu voltar
SANTOS DUMONT, UM BRASILEIRO
a ser fazendeiro, desta vez de café, novamente em sociedade com seu
sogro. Os cafezais do Estado do Rio floresciam, e rivalizavam com
os paulistas em produção e riqueza. Em Casal, nasceram mais dois
filhos dos Dumont: Henrique e Francisquinha, inteirando portanto,
sete. Família muito numerosa, para descendentes de franceses.
Mas a fama das «terras roxas» do interior paulista, ótimas para
café, chegou até aos ouvidos do já grande fazendeiro de Valença.
E depois de cinco anos ali radicados, tomaram rumo de Ribeirão Preto,
onde adquiriram enormes glebas de terras excepcionais para café, e que
se constituiriam, pouco mais tarde, na grande e rica «Fazenda Arin-
deúva» ou Fazenda dos Dumont. Henrique, saído de Valença, já
levava consigo um número muito grande de escravos. Na nova fazenda,
adotou métodos modernos, iniciando, já naquela época, a mecanização
da lavoura, inclusive fazendo construir pequena estrada de ferro, para
transporte do café, para Ribeirão Preto.
O progresso havido foio grande, e o êxito do negócio, que,
já em 1890, Henrique Dumont era considerado o «Rei do Café», com
mais de cinco milhões des e imensa produção. E foi na «Fazenda
de Arindeúva» que o pequeno Alberto tomou, em sua vida, os primei-
ros contactos com a natureza, e com as máquinas. Em seu livro, mais
tarde, ele contaria como lhe ensinaram a manejar a pequena locomotiva
«Baldwin» da fazenda, levando sacas de café, das tulhas para a cidade,
para embarcarem para Santos. A brincadeira, com os garotos de
sua idade, e seus irmãos, «Homem voa» pergunta à qual ele,
Alberto, teria respondido «voa», acertadamente para ele e para a His-
tória, mas erradamente para seus amigos,foi passada na fazenda de
Ribeirão Preto. Onde, também, Alberto fez seus primeiros estudos, ini-
cialmente com sua irmã mais velha, e depois em escola. Seus prepara-
tórios (equivalente hoje ao ginásio), ele os fez em Campinas, no
Colégio «Culto à Ciência», onde teria usado, pela primeira vez, suas
calças compridas. . .
O rapazinho Alberto se deliciava então com a literatura juvenil
da época, que continua saborosa até os nossos dias, com os livros de
Júlio Verne sobre viagens em balões, viagens à Lua, de submarinos,
ao centro da terra, etc. etc, que o fascinavam. A influência destes
livros, em Santos Dumont, seriao grande, que mais tarde, às voltas
com seus próprios balões, dirigíveis, e depois aviões, a cada passo ele
se lembraria de Júlio Verne e dos heróis de seus livros.
O pai julgou então que já era hora de matricular o filho em uma
famosa Escola, para fazer seu curso superior. E o fez na Escola de
Minas de Ouro Preto (terra de sua esposa,e de Alberto, e onde se
casou), Escola fundada em 1876 pelo notável sábio francês Dr. Henri
Gorceix. Mas Alberto foi apenas matriculado, eo consta que tenha
chegado a cursar a famosa Escola. Com apenas 18 anos, foi com seus
IVAN MARTINS VIANNA
pais para a Europa, depois de haver recebido, em Cartório, passada
por seu pai, imensa fortuna, que o emancipava, e lhe dava meios de
poder estudar, no estrangeiro, sem ter necessidade de trabalhar ou
se preocupar, para o resto de sua vida, com problemas financeiros.
Nesta primeira viagem à Europa, o jovem Alberto aindao iria
decidir que caminho tomar em matéria de estudos. O pai, entretanto,
pressentindo que sua saúde se acabava, e lhe avizinhava o fim, reco-
mendara ao filho que, em Paris, procurasse professores de tísica,
Mecânica, Matemática, Ciências, mas queo havia necessidade de se
tornar «doutor». ALBERTO SANTOS DUMONT, com apenas 18 anos,
ficaria órfão de pai, em 1890, e teria que se dirigir, por conta própria,
de ora em diante. Deixaria pouco depois, e detinitivamente, o Brasil
sua terra, para residir na França, terra de seus avós paternos.
UM BRASILEIRO EM PARIS
SANTOS DUMONT, de agora em diante, será «um brasileiro em
Paris», embora sempre saudoso de sua querida e distante pátria. Entre
1889 e 189/ ele fara quatro viagens entre o Brasil e a França, para
finalmente ali se radicar, a partir de 1897. A França foi, de fato, para
o jovem Alberto, uma segunda pátria, e mais que isto, foi inegavelmente
o País onde ele recebeu incentivos, e teve meios como aperfeiçoar e
desenvolver seus engenhos aéreos, desde os balões-livres (esféricos), em
l898 e 99, aos baloes-dingíveis de 99, 1900, até 1906.
O que lera de Júlio Verne em seus tempos de adolescente, em
Ribeirão Preto e Campinas, sobre baiões, viagens, aventuras, mecânica
e física, iriar em prática, finalmente, em Paris, a partir de 1898.
A fase construtiva e inventiva de Santos Dumont, em Paris, tem
início, pois, em 1698, quando ele faz à firma especializada de baiões
de Lachambre e Machuron, encomenda de seu primeiro esferico de
apenas 113 metros cúbicos, lendo feito o seu 1ºo (ou melhor, as-
censão) aos 4 de julho de 1898, mais tarde a ele se refere em seu 1º
livro: o «BRASIL».
No mesmo ano, SANTOS DUMONT inicia a construção de balões mo-
dificados, i.e., já agora «fusiformes» aos quais adapta um pequeno
motor a explosão, tornando-se então DIRIGÍVEIS. Assim, em seu balão
SANTOS DUMONT N. 1, de 1898, que cubava 186 metros cúbicos, adap-
tou um motor de 3,5 HP. Tinha 25 metros de comprimento, e 3,5 me-
tros em seu maior diâmetro. Era ainda um balão «não-rígido».
No mesmo ano de 1898, o argonauta brasileiro construiu o seu
SD-Nº 2, também balão-dirigívelo rígido, de 200 metros cúbicos, o
qual, tanto como o N. 1 (e o esférioco «BRASIL») era cheio de hidro-
gênio .
SANTOS DUMONT, UM BRASILEIRO
Em 1899, Santos Dumont prossegue em suas construções de ba-
lões, fazendo ascensões agora então, já voos controlados e bem
dirigidos, sobre Paris e arredores — e faz o seu SD-Nº 3, de 500 me-
tros cúbicos, cheio coms de carvão, com 20 metros de comprimento,
e 7 metros em seu maior diâmetro. Á medida que o inventor avança
em suas construções de balões, acrescenta-lhes novos aperfeiçoamentos,
melhorando suas «performances», rendimento de vôo, direção e tempo
de viagem.
Em 1900, o seu SD-Nº 4 cubava 420 metros, a hidrogênio, com
29 metros de comprimento, e 5,2 m., em seu maior diâmetro.
Neste balão, por várias vezes, Santos Dumont colocou uma ban-
deira brasileira, como já o fizera em seu SD-Nº 2, demonstrando assim,
em púbico, a sua nacionalidade e seu amor ao Brasil. Era, de fato,
um brasileiro em Paris.
Em 1901 constrói o seu N. 5, de 550 metros cúbicos, com 34
metros de comprimento e 5,2 m. em seu maior diâmetro, também cheio
de hidrogénio, e ao qual adaptou motor de 15 H.P. No mesmo ano
faz ainda outro balão-dirigível, o seu SD-N. 6 que iria se celebrizar
ao ganhar, aos 19 de Outubro daquele mesmo ano, o grande prémio
«Deutsch» de 100.000 francos, contornando a Torre Eiffel e voltando
ao ponto de partida em tempo pré-determinado, i.é., em 30 minutos,
O N. 6, que foi também o mais fotografado, e ao qual tantas enciclo-
pédias de tantos países fazem alusão, cubava 622 metros, tinha 33 me-
tros de comprimento e 6 m em seu maior diâmetro, e estava equipado
com um motor de 20 H.P.
Este balão SD-Nº 6 merece destaque especial sobre os outros pela
grande vitória que proporcionou ao seu idealizador, construtor e piloto.
Pois foi com ele, no qual reuniu todos os aperfeiçoamentos e melhora-
mentos que a construção dos 5 antecedentes lhe proporcionaram, que
SANTOS DUMONT, UM BRASILEIRO, provou finalmente ao Mundo, de
maneira indiscutível, a DIRIGIBILIDADE DOS BALÕES. O homem poderia,
finalmente, navegar pelos ares, para onde queria, eo mais ao sabor
dos ventos, como nos balões esféricos, livres, os quaiso tinham dire-
ção dada pelo homem, e sim, pelos ventos dominantes e correntes
atmosféricas.
De 1902 a 1904, período no qual Santos Dumont empreende sua
primeira viagem ao Brasil depois de se ter iniciado (e vitorioso) na
construção de balões na França. A recepção que teve no Rio de Janeiro,
emo Paulo, e em Minas (na nova Capital, Belo Horizonte) foi uma
consagração ao insigne inventor patrício, e um reconhecimento público,
do Governo e Povo brasileiros, ãs suas vitórias no campo da aerostação.
Regressando à França, constrói o seu SD-Nº 7, muito grande, de
1.257 metros cúbicos, com 2 hélices, motor de 60 H.P.
IVAN MARTINS VIANNA
Na relação dos balões-dirigíveis construídos por Santos Dumont,
entre 1898 e 1906,o figura nenhum com N. 8, certamente porque
este númeroo agradava ao argonauta. Ainda em 1903, ele constrói
o seu SD-Nº 9, que foi conhecido como «Balladeuse» («moça que ca-
minha») de apenas 11 metros, equipado com pequeno motor de 3,5 HP.,
de 220 metros cúbicos.
Foi com este balão, que ele, aos 14 de Julho de 1903, «Dia da
Bastilha», feriado nacional francês, sobrevoou demoradamente as tropas
em desfile no Champs Elysées, quando em certo momento, deu 21 tiros
de revolver, em saudação ãs tropas e ã data nacional da França. Exis-
tem fotografias, da época, que mostram claramente o balão N. 9 de
Santos-Dumont sobre as tropas em desfile, fato considerado excepcio-
nal, verdadeira «manchete» nos jornais do dia seguinte. Dias depois,
Santos-Dumont ofereceu ao então Ministro da Guerra da França,
General André, que assistira suas evoluções sobre as tropas no «14
DE JULHO», os seus inventos balões números 6, 7, 8 e o 9, armas de
guerra da França, fazendo apenas uma ressalva em sua doação: em
caso de guerra entre a França e quaisquer das Américas,o valeria
sua oferta, bem como, no caso (que julgava impossível) de uma guerra
entre a França e seu País, o Brasil, também seus balõeso poderiam
ser usados. E foi o próprio Ministro da Guerra que, dias depois, res-
ponde em carta a S. Dumont, cumprimentando-o, inicialmente, pelo
sobrevoo das tropas em 14-7, e agradecendo a oferta. Dava-lhe conhe-
cimento ainda de que um oficial encarregado da parte de balões mili-
tares iria procurá-lo, em seguida, para tomar conhecimento do material
que ele ofertara à França, etc. etc. Este gesto de Santos-Dumont,
dirigido ao País no qual residia, teve muita repercussão, havendo «prós»
e «contras».
Ficou claro, porém, em seu procedimento, ao qual foi levado certa-
mente pelo entusiasmo que despertou em todos quantos dele tiveram
conhecimento, que ele, Santos Dumont, mesmo assim, agiu como BRA-
SILEIRO e por sentimento de gratidão ao Governo e Povo da França,
terra de seus avós, onde recebeu incentivos, compreensão e condições
excepcionais para todos os seus trabalhos, desde 1898, com seu primeiro
balão.
Em 1904 prossegue com suas construções aerostáticas, com seu
SD-N. 10, muito grande, de 2.010 metros cúbicos, 42 metros de com-
primento, 9 metros em seu maior diâmetro. Em 1905, o N. 11, jáo
era mais balão-dirigível, mas um «ante-projeto» de um próximo-
futuro «MAIS PESADO QUE O AR», um monoplace de 22 metros quadra-
dos de área alar, que seria mais um PLANADOR, e no qual,o consta
que tenha sido colocado qualquer motor, bem como,o consta que
tenha voado. Deve ter sido, isto sim, a primeira tentativa de sua INICIA-
ÇÃO em voos com aparelhos MAIS-PESADOS-QUE-O-AR, que teria prosse-
SANTOS DUMONT, UM BRASILEIRO
guimento em 1906, ano decisivo para Santos Dumont, neste novo campo
de invenções, descobertas e vitórias.
No fim de 1905 e início de 1906, outro revolucionário invento de
Santos Dumont, o Número 12, que foi um «pré-modelo» de HELI-
CÓPTERO, com 2 motores, duas hélices que giravam em sentido con-
trário, que teria sido o seu «hidro-glisseur», pois se apoiava na água,
sobre o Rio Sena. Precursor, talvez, de hidroavião. Neste invento, e
no seu antecedente, notava-se claramente que o inventor brasileiro se
aproximava, cada vez mais, de sua última e definitiva descoberta, no
campo da verdadeira AVIAÇÃO, que seria o «MAIS PESADO QUE O AR»,
ou o AVIÃO.
No mesmo ano de 1905, Santos Dumont constrói mais um balão,
o SD-nº 13, de 1.902 metros cúbicos, a hidrogênio e ar quente, mas
queo voou.
Finalmente, em 1906, constrói um biplano «canard», isto é, que
possui «aleirons à frente», com 42 metros quadrados de área alar,
deriva horizontal à frente, equipado com motor «Antoinette» de 50 H.P.
comprimento de 13 metros e envergadura (asas) de 10, 2 metros. Para
«testar» este novo aparelho de voar, «MAIS PESADO QUE O AR», Santos
Dumont primeiramente o amarrou a cabos de aço, e o fez puxar por
uma parelha de burrinhos. Depois, prosseguindo em seus testes preli-
minares, amarrou o já designado «14-BIS» (porque 14 seria outro
balão, projetado ou construído em seguida ao Número 13, de 1905),
ao balão SD-14 e o fez «correr» pela grama, a pequena altura, amarrado
ao balão, à velocidade queo ultrapassou os 30 horários. Em Setem-
bro, perante fiscais e testemunhas, do Aeroclube de France, fez em
Bagatelle, no Bois de Boulogne, as primeiras provas para concorrer
ao prémio «ARCHDEACON» de 1.000 francos, para aparelhos mais-
pesados-que-o-ar que conseguissem voar mais de 60 metros, à altura
mínima de 2 metros.
Nas primeiras tentativas, o 14-BIS de S. Dumont conseguiu se
elevar do solo menos de um metro, e «voar» menos de 20. Nas provas
definitivas de 23 de Outubro de 1906, no mesmo local, conseguiu final-
mente Santos Dumont, com seu 14-BIS, a grande vitória que o con-
sagraria em definitivo, como tendo resolvido o voo mecânico, com seus
próprios meios, de um avião. Naquele dia, perante fiscais do Aeroclube,
testemunhas da FAI (Federation Aeronautique Internationale), ami-
gos, colegas também construtores de aviões e de balões (Voisin, Farman,
Blériot...) e centenas de curiosos, o seu «canard» 14-BIS elevou-se
do solo mais de 2 metros, em distância superior a 60 metros, num
total de 200 metros! Estava consagrado o grande aeronauta brasileiro,
em definitivo, por toda Paris, e todo o Mundo! Os jornais do dia se-
guinte publicaram as fotos históricas, a cena foi inclusive filmada, e as
agências telegráficas levaram aos quatro cantos do mundo, a grande
103
IVAN MARTINS VIANNA
notícia. Chegaram mensagens de felicitações dos EE.UU., (de Edison,
inclusive), da Itália (Marconi), da Rússia, Espanha (Rei Affonso XIII),
Portugal, BRASIL, Suíça, Alemanha, Holanda, Bélgica, etc. etc.
Mas Santos Dumonto julgava ainda completa a sua vitória
com seu 14-BIS, e desejava aperfeiçoá-lo, para melhorar as «marcas»
e determinar, em definitivo, os «recordes». E, aos 12 de Novembro
do mesmo ano, voltou à Bagatelle com seu «canard» e perante nova-
mente fiscais, testemunhas, fotógrafos, e centenas de curiosos, conseguiu
levantar voo com seu 14-BIS, batendo os que foram os «primeiros
recordes de aviação do Mundo»!
Mais tarde, no monumento que o Aeroclube de France lhe levantou
na Bagatelle, próximo ao local onde ele voou em 23-10 e em 12 de
Novembro, fez gravar em granito: «Aqui, aos 12 de Novembro de 1906,
Santos Dumont estabeleceu os primeiros recordes de aviação do Mun-
do» — E acrescentavam: «Sob o controle do Aero Clube de France»
Duração 21 segundos e 1/3; Distância, 220 metros.»
O grande aeronauta, projetista, construtor e piloto de seus balões,
dirigíveis e «aeroplanos», o BRASILEIRO SANTOS DUMONT, prosseguiu
em suas construções aeronáuticas. No início de 1907 projeta outro
biplano, o Número 15, com motor de 100 H.P., queo chegou a
levantar voo porque se desmontou em acidente, na partida. A sua
hélice era colocada na frente (portanto, propulsora) eo como no
14-BIS. Em 1907, ainda, constrói o seu Número 16, com 99 m2 de
área alar, que tambémo chegou a voar, pois foi destruído. O-
mero 17, também em 1907, era biplano, foi apenas projetado maso
construído. Finalmente surge o N. 19, designado «DEMOISELLE», que
fez inúmeros voos com sucesso, podendo inclusive fazer curvas, pois
já possuía além de aleirons, «derivas» de direção e de profundidade.
Antes desse «Demoiselle» (o primeiro deles), de N. 19, Santos
Dumont projetou e construiu um «experimental» N. 18, que designou
«hidro glisseur», espécie de lancha provida de motor e hélice, sobre
o Sena.
O de N. 20, construído em 1908, com motor de 112 H.P., e o
de número 21, também «Demoiselle», foram de fato «aviões», com os
quais o seu inventor e construtor fazia voos longos, por toda Paris e
arredores.
O gênio inventivo de Santos Dumont, em matéria de balões, diri-
gíveis e aviões, «parou» em 1909, com o último «Demoiselle», mono-
plano capaz de realizar voos perfeitos, e com relativa segurança, à
velocidade superior a 60 horários!
Ele passaria, a partir de 1910, a se dedicar a outros «inventos»,
quais sejam, relógio-de-pulso (que ele desenhou e uma afamada relo-
- 104
SANTOS DUMONT, UM BRASILEIRO
joaria parisiense executou), um salva-vidas para praias, um «transfor-
mador Marciano» para facilitar alpinistas andarem na neve, e outros.
O seu gênio inventivo prosseguia ativo, mas a saúde já dava os primei-
ros sinais de declínio.
Nenhum outro inventor, planejador e construtor de balões e de
«mais-pesados-que-o-ar» conseguiu construir tantos modelos, realizar
tantas experiêncais aeronáuticas e fazer tantos voos, como Santos Du-
mont, em Paris, entre 1898 e 1909. A sua maior glória, e seus maiores
méritos foramo apenas dar ao Mundo a solução do problema da
dirigibilidade dos balões, tornando-os DIRIGÍVEIS e conseguir o voo de
um MAIS-PESADO-QUE-O-AR pelos seus próprios meios, mas de fazê-lo
sem interesse pessoal e sem o menor intuito de PATENTEÂ-LOS em
seu proveito próprio. Seus inventos, declarou, pertencem à HUMA-
NIDADE!
O EXEMPLO ÀS NOVAS GERAÇÕES
ALBERTO SANTOS DUMONT, pela sua notável contribuição às
conquistas aeronáuticas e seu consequente desenvolvimento e progresso,
se fez credor da admiraçãoo apenas de seus patrícios, mas de todos
os povos do Mundo. As suas vitórias conseguidas na França, no
campo da aerostação e da aviação, quando provou a «dirigibilidade dos
balões» e o voo de um «mais-pesado-que-o-ar» fazem-no HERÓI NACIO-
NAL, pois que ele foi sempre UM BRASILEIRO EM PARIS. Fazem-no,
também, merecedor da glorificação de outros povos, pela sua contri-
buição para solução dos intrincados problemas da navegação aérea e da
própria indústria aeronáutica em seus primórdios.
Barata Ribeiro evocou, em poucas linhas, o muito que Santos
Dumont representou, para a Humanidade, na «História da Aviação»,
desvendando segredos em caminhos até então nunca percorridos,
quando escreveu:
«SANTOS DUMONT vem de longe, vem de muito longe,
SANTOS DUMONT vem dos Espaços por onde, antes dele,
Só caminhavam com direção certeira e predita,
os raios do sol e os rumores temerosos das tempestades».
Estes versos do grande brasileiro estão gravados no bronze, em
singelo monumento a Santos Dumont, erigido nos jardins da Base
Aérea de Belo Horizonte, e inaugurado no «Dia do Aviador» 23 de
outubro, da «SEMANA DA ASA» de 1953.
As comemorações do 1' centenário de seu nascimento, que terão
lugar em todos os recantos da Pátria, neste ano de 1973, evocarão por
IVAN MARTINS VIANNA
certo a figura ímpar do inventor patrício, o que «DEU ASAS AO HOMEM
E GLÓRIA À SUA PÁTRIA»/
Ele será, pelos tempos afora, um dos mais puros exemplos de
dedicação, denodo, inventividade, perseverança e espírito construtivo,
que se voltou, em toda a sua vida, ao progresso da Humanidade, sem
intuito, uma vez sequer, de tirar proveito próprio, de tirar patentes ou
de usufruir da fama e da fortuna.
O seu espírito de brasilidade, ele o manifestou inúmeras vezes na
França, que o hospedou por quase trinta anos, e em suas costumeiras
vindas ao Brasil, onde residiu por algum tempo, após suas vitórias
aeronáuticas, em Petrópolis, no Rio, S. Paulo e mesmo em Cabangu.
o tendo cursado Escola Superior de Engenharia, demonstrou
conhecer os segredos da mecânica e da física como poucos. Seus
desenhos, planos e plantas de seus inventos eram perfeitos, e elogiados
por profissionais franceses, alemães e ingleses. Mereceu, por isto e
muito mais em sua primeira vinda ao Brasil, receber, no Clube Nacional
de Engenharia do Rio de Janeiro, o título de «Engenheiro Honoris Causa».
Escreveu dois livros, relatando com minúcias os seus inventos e
suas peripécias na conquista da dirigibilidade dos balões, em 1904,
no «Dans l'air» traduzido ao português para «Meus balões». Mais
tarde escreveu, já no Brasil, e em'português, «O que eu vi, o ques
veremos», que continha tanto de realidade, como de profecia.
De próprio punho, escreveu em 1926 uma carta ao ,então Embai-
xador do Brasil junto à Liga das Nações, em Genebra, sugerindo que
o Representante de seu País (sempre ele, SANTOS DUMONT, UM
BRASILEIRO/) apresentasse na Liga, uma Mensagem propondo a
«proibição do uso de aviões como armas de Guerra». Este, o lado
mais positivo de Alberto Santos Dumont o pacifista, o que em toda
a sua vida desejou apenas SERVIR À HUMANIDADE. Mas, antes de
tudo, um grande brasileiro!
Uma outra faceta, aliás pouco conhecida dos brasileiros, da grande
figura humana que foi Alberto Santos Dumont, foi a de seu amor à
ESCOLA e ao ENSINO.
Tendo o Governo Brasileiro, por decisão da Câmara dos Depu-
tados por projeto encabeçado pelo Deputado Federal por Minas
Gerais, Augusto de Lima (um dos fundadores do Aeroclube do Brasil
em 1911), resolvido adquirir a propriedade do Cabangu, sítio de
3 a 5 alqueires situado na Mantiqueira, entre Barbacena e Palmira,
local do nascimento de Santos Dumont, para lhe ofertar, o ilustre
brasileiro se emocionou com a dádiva do Governo de seu País.
Chegou, mesmo, a residir ali, por algum tempo, quando recebia amigos,
e criava gado leiteiro fornecendo leite para uma indústria de laticínios
de Palmira.
SANTOS DUMONT, UM BRASILEIRO
Em outra ocasião que veio da Europa para descansar por quase
um ano no Brasil, Santos Dumont se enamorou de Petrópolis, e lá
construiu, a seu gosto e em seu estilo próprio, uma casinha no bairro
do Encantado, à qual deu o nome de «Encantada».
E, quando residia na Europa, por algum tempo na Suíça, lá
também adquiriu pequena propriedade, onde costumava repousar e se
refazer em sua já combalida saúde, principalmente do sistema nervoso.
Pois, quando faleceu em Guarujá, próximo à cidade de Santos,
no Estado deo Paulo, aos 23 de julho de 1932, ao lhe abrirem o
testamento, viram quais os beneficiários do legado que deixou: a
pequena casa da Suíça, ao Governo daquele País, para transformá-la
em Escola; a Casa do Cabangu e terras adjacentes, para ser transfor-
mada em Museu ou ESCOLA, a critério do Governo Brasileiro; e a
«Encantada», de Petrópolis, também ficaria para ser transformada
em Museu ou ESCOLA/
Este seu amor ao ENSINO, que ele demonstrou quando ainda
vivo, e que se positivou quando conheceram seu testamento, acaba de
ser comprovado pelo próprio Governo da França ao determinar que,
nas comemorações do lº Centenário do nascimento de Santos Dumont,
em julho próximo, seja dado, a uma Escola de Ensino Profissional
situada em Saint-Cloud, Subprefeitura de Paris, e local de um de
seus monumentos, o nome de ALBERTO SANTOS DUMONT/
A maior homenagem, pois, que poderá o Brasil prestar à memória
de seu grande filho, em ANO CENTENÁRIO, será a de divulgar ao máximo,
junto à juventude estudiosa de nosso País, a sua vida e sua obra, toda
ela pautada em amor a seu País e à Humanidade, a quem legou todas
as suas invenções, todo o progresso e desenvolvimento que soube dar
à NAVEGAÇÃO AÉREA/
Ilustram este despretensioso trabalho sobre o brasileiro Alberto
Santos Dumont, algumas fotografias.
Na primeira, aparece o inventor patrício, o «PAI DA AVIAÇÃO,
tirada em outubro de 1903 em Belo Horizonte, recém-fundada Capital
do Estado de Minas Gerais, quando da primeira visita de Santos
Dumont ao Brasil, depois de suas primeiras e retumbantes vitórias
balonísticas na França. Coube a um insigne engenheiro português
(filho de franceses), Dr. Francisco Soucasaux, residente no Brasil há
algum tempo, e Membro da Comissão Construtora da Nova Capital,
retratá-lo, em seu «atelier fotográfico particular». Santos Dumont
tinha então 30 anos, autografou depois a foto para seu amigo, que
construía a nova capital das Gerais, a qual tinha então, apenas 6 anos
de inaugurada. Coube a um neto do engenheiro Soucasaux, professor
na atual e trepidante Belo Horizonte, ofertar a inédita fotografia, para
ilustrar este trabalho. A outra fotografia, trazida de Paris em 1963
pelo autor, mostra o 14-BIS, em cópia de foto da época, ao iniciar
IVAN MARTINS VIANNA
o históricoo de 23 de outubro de 1906, no Campo de Bagatelle,
em Paris, ofertada por Monsieur Louis Vallin, Diretor do «Musée
de l'Air», da capital francesa, em postal editado por tradicional livraria
parisiense, e que foi vendido, às centenas, durante o XXI Salon
d'Aviation Internationale de Le Bourget, nos arredores de Paris. A
outra foto (postal de 1908), mostra o N.19, o «Demoiselle», igual-
mente pousado na Bagatelle, também oferta de Monsieur Louis Vallin,
que conheceu Santos Dumont, atual Presidente da «Association des
Amis du Musée de l'Air», Diretor também de «Veilles Tiges», entidade
francesa que congrega veteranos das Guerras de 18 e de 39, e que
o tomar parte nas homenagens a Santos Dumont em Paris, em
20 de julho próximo.
A quarta fotografia mostra o Monumento de Saint-Cloud (chamado
o ÍCARO DE ST. CLOUD), na Praça Santos Dumont, subúrbio
de Paris, tirada pelo autor em 20 de julho de 1963.
Ao finalizar este trabalho sobre a figurao humana,o discutida,
que foi Alberto Santos Dumont, e para explicar, finalmente, a razão
maior do título que lhe foi dado «SANTOS DUMONT UM
BRASILEIRO», transcrevo os memoráveis versos que EDUARDO
DAS NEVES, notável poeta e cançonetista do começo do século, no
Rio de Janeiro, fez (letra e música), em homenagem a Santos Dumont
quando voltava ao Brasil, pela primeira vez, depois de suas retum-
bantes vitórias na França. Esta canção, que se tornou popular em
1902, no Rio, se constitui hoje como que (quase o é) um hino oficial
a Santos Dumont, sendo tocada e cantada nas grandes solenidades
das
«SEMANAS
DE
ASA»,
inaugurações de monumentos, escolas, ruas e
praças com o nome de
SANTOS
DUMONT.
«A
CONQUISTA
DO AR»,
letra e música de Eduardo das Neves, editada no Rio, em 1902, e que
consta de todas as boas biografias do ilustre brasileiro, certamente será
novamente o
HINO
OFICIAL
a S. Dumont, nas comemorações do seu
ANO-CENTENÁRIO.
A CONQUISTA DO AR
Letra e Música de
EDUARDO DAS NEVES
Rio, 1902
A Europa curvou-se ante o Brasil
E clamou «parabéns» era meigo tom.
Brilhou lá nou mais uma estrela:
Apareceu Santos Dumont.
SANTOS DUMONT em 1903
(em Belo Horizonte)
«14-BIS» NA BAGATELLE
Em 23-10-1906
1907 -- Paris O Demoíselle, 19
na Bagatelle
Monumento a SANTOS DUMONT
Em St. Cloud Paris
SANTOS DUMONT, UM BRASILEIRO
II
Salve, Estrela da América do Sul,
Terra amada do índio audaz, guerreiro!
A gloria maior do Século Vinte,
Santos Dumont, um brasileiro!
III
A conquista do ar que aspirava
A velha Europa poderosa e viril,
Rompendo ou que a ocultava,
Quem ganhou foi o Brasil
IV
Por isso o Brasilo majestoso,
Do Século tem a Glória principal:
Gerou no seu seio o grande herói,.
Que hoje tem um renome Universal.
V
Assinalou para sempre o Século Vinte
O herói que assombrou o Mundo inteiro
Mais alto do que as nuvens, quase Deus,
SANTOS DUMONT UM BRASILEIRO/
BIBLIOGRAFIA
1. Santos Dumont, de Gondin da Fonseca. Rio, 1940.
2. Quem deu azas ao Homem, do Dr. Henrique Dumont Villares (edit. p/Min. da
Aer.) 1956.
3. História da Aeronáutica Brasileira, de José Garcia de Souza. Rio, 1943.
4. Study in Obsession, de Peter Wykemann. Londres, 1965. Em português, A
História de uma Obsessão, trad. de Comandante Altino, S. Paulo,, 1965.
5. O Pai da Aviação, de Edmar Morei. Rio, 1966.
6. Como nasceu o Aeroplano, pelo Almirante Gago Coutinho, edit. p/Governo
Brasileiro, Rio, 1956.
7. Aircrafts between 1903-1909, edited by «Science Museum». London, 1969.
8. Balões e Dirigíveis de Hidrogénio e Ar Quente», edição de Zurich, 1966.
9. Biografia de Santos Dumont, História da Aviação, (para uso escolar), por
Francisca Gregory. Belo Horizonte, 1956.
O Sebastianismo no Maranhão:
Um Fenômeno de Comunicação Popular
PEDRO BRAGA DOS SANTOS
1. RAIZES HISTÓRICAS
sebastianismo com certeza chegou ao Brasil na bagagem cultural
do colonizador luso, principalmente na dos cristãos-novos. É
provavelmente expressão do processo de transculturação, sendo,
aqui, reinterpretado, ajustado e acomodado à luz de uma realidade intei-
ramente diversa daquela em que florescera em Portugal quinhentista.
Com o desaparecimento de D. Sebastião, em 1578, na batalha de
Alcácer-Quibir e com a morte, dois anos depois, do Cardeal D. Hen-
rique, seu sucessor, Portugal vê-se ante sério problema político: Felipe II,
Rei da Espanha, assume o Trono português. Portugal passa, então,
para o domínio da Coroa espanhola.
Entretanto, ao povo desagrada tal dominação. É preciso lutar pela
autonomia perdida, pela rutura dos vínculos de dependência à Coroa
hispânica. É quando, ora por espontaneidade da gente simples do povo,
ora por trama das lideranças nacionalistas, difunde-se a crença de que
D. Sebastiãoo morrera, Ele regressaria, glorioso, após algum tempo
de provação, em que carpia a derrota de Alcácer-Quibir. D. Sebastião
viria a constituir a bandeira necessária e capaz de erguer o povo em
armas pela restauração da Coroa portuguesa. «A crença no seu regresso
escreve João Ameal significa, em última análise, a vontade nacional
PEDRO BRAGA DOS SANTOS
de se conservar em mobilização permanente, apta a obedecer ao primeiro
comando que levante a bandeira emancipadora.» (1) E mais: «O se-
bastianismo converte-se, para os portugueses conscientes da era filipina,
numa idéia-força do patriotismo ansioso de desforra, do autonomismo
resolvido a sacudir, logo que se torne possível, o domínio intruso.» (
2
)
Surge assim o mito sebástico, o «mito condutor», como o denomina
Manuel Múrias; ideologia libertária que unifica e impulsiona as forças
empenhadas na libertação lusa. «El sebastianismo en aquella época
relata Julião Maria Rúbio citado por João Ameal fué algos
que el piadoso deseo de que D. Sebastián no hubiera muerto en los
campos africanos; fué las alta expresión de libertad y independência
política que ardientemente deseaba el pueblo português.» Longe do
sebastianismo representar a apatia e o conformismo, refletia a aspiração
de liberdade e de autodeterminação. O que desejava o povoo era
simplesmente o regresso do Rei desaparecido em campos da África,
mas o que isso haveria de significar: a restauração da autonomia perdida.
Na sua raiz histórica, o sebastianismo desempenha explicitamente
função política, que é a de aglutinar e mobilizar as forças envolvidas na
luta de libertação portuguesa.
A difusão do mito encontrou campo fértil. Já por volta de 1520.
circulavam na Península Ibérica estranhos vaticínios, inspirados prova-
velmente no Velho Testamento, em escritos de Santo Isidoro de Sevilha,
em profecias do feiticeiro Merlin, na poesia mística de Frei João de
Rocacelsa. É quando surgem as Coplas de Frey Pedro de Frias, onde
o autor alude a «un rey que non se descubre.» E esta é a nota comum:
as antevisões, todas elas faziam referência ao Encubierto personagem
misterioso que haveria de edificar grande Império Cristão. O clímax
dessa expectativa messiânica, entretanto, foi atingido com a divulgação
entre 1530 e 1540 das célebres Trovas, de autoria do sapateiro Gonçalo
Anes, conhecido pelo epíteto de Bandarra. De Trancoso, cidade onde
residia Bandarra, difundiu-se para todo Portugal a sua mensagem:
Este Rei tem tal nobreza
Qual eu nunca vi em Rei
Este guarda bem a lei
Da justiça e da grandeza
Os outros reis mui contentes
De o verem imperador;
Todos terão um amor
Gentios como pagão
Servirão um só senhor
Jesus Cristo que nomeio
Todos crerão que já veio
O ungido do senhor.
É neste contexto que nasce o mito sebástico; em um momento histórico
de expectativa messiânica. E se, por sua própria origem e conteúdo,
O SEBASTIANISMO NO MARANHÃO
o satisfazia às aspirações religiosas dos que aguardavam a vinda do
messias, vinha de encontro, todavia, às necessidades políticas das
lideranças nacionalistas.
2. O TOURO ENCANTADO DA ILHA DOS LENÇÓIS
O sebastianismo no Maranhão adquiriu características quase de
conto de fada. Conta-se que no dia 24 de junho, dia deo João, à
meia-noite, aparece nas praias da ilha dos Lençóis (*) um touro negro,
deitando fogo pelas narinas e com uma estrela alvinitente à testa. É
D. Sebastião «encantado», o «dono da praia» como é vezo dizerem
os embarcadiços que transitam por aquela região.
A ilha dos Lençóis oferece-nos paisagens verdadeiramente feéricas.
O azul das águas; a espuma imitando rendado que se desfaz com o re-
fluxo, para se formar de novo; os raios de sol que se refletem nos-
moros; areias branquíssimas que se assemelham a imensos lençóis (daí
o nome da ilha) tudo lá é impregnado do fantástico.
Os primeiros portugueses que se instalaram naquela região prova-
velmente escolheram as praias dos Lençóis para habitat do Rei, pelo
fato de suas dunas sugerirem alguma semelhança com os campos de
Alcácer, onde desapareceu D. Sebastião. Ademais, a paisagem das
praias, com seus cômoros e lagos, presta-se muito bem à morada de um
soberano. É o que diz este «ponto» (**) de terreiro de mina (***)
que lá se canta nas noites de «tambor»: (****)
Em cima daquele morro
Eu vi raios de sol.
Em cima do mesmo morro...
E o Rei dos Lençol!
Silvestre Fernandes dá-nos uma descrição das lagoas da ilha dos
Lençóis: «A vegetação higrófila começa a debruar aquela maravilha,
emprestando-lhe novos retoques. A lagoa encantada infesta-se com
toucados magníficos, num cenário de cores novas e suaves reflexos.
«Destaca-se uma planta do fundo do leito, onde se percebe um
enramado caprichoso de rizóides que imergem na areia onde já se apre-
sentam manchas descontínuas de sedimento humoso. Essa trama deli-
(*) A ilha dos Lençóis (300 habitantes) pertence ao arquipélago de Maiaú,
situado na Zona do Litoral Norte a 160 quilómetros de S. Luis.
(**) «Ponto», toada ritual.
(***) Terreiro de macumba, no Maranhão.
(****) Culto fetichista, onde se dança e canta ao som de tambor (dai o nome).
PEDRO BRAGA DOS SANTOS
cada movimenta-se em coleios c requebros fantásticos mal o zéfiro lhe
oscula a superfície polida.» (
3
)
Os pescadores que lá residem afirmam ser lagoas encantadas, es-
pelho das caruanas. (* )
«Quando sobre as folhas veludosas das salvíneas se destacam as
gotas de água faiscando aos raios de sol, persignam-se e benzem-se.
o brilhantes que vieram do fundo e que se desmancham à menor rajada.
Carbúnculos que orlam as frontes dos poderosos senhores das águas
(cavaleiros, guerreiros e príncipes) mostram-se apenas para despertar
a cobiça dos seres humanos, seduzi-los e arrastá-los para os reinos
ondinos.» (
4
)
Conchas, búzios, algas tudo que existe pelas praias da ilha dos
Lençóiso «jóias» do Rei. A ninguém é permitido trazer estas coisas.
E, caso alguém tente trazer, o mestre do barco (único meio de trans-
porte existente para a ilha) se recusa terminantemente a partir, até que
sejam devolvidas as «jóias» à praia. O barco que transportar búzios,
conchas, estrela do mar, ou qualquer outra coisa encontrada nas praias,
afundará.
O sortilégio, entretanto, pode ser quebrado bastando para isso
que alguém se disponha a desferir um golpe na estrela que o touro traz
à testa. Caso D. Sebastião desencante, S. Luís afundará e, das praias
dos Lençóis, emergirá a Corte de Queluz. Assim proclama a voz nasa-
lada dos «puxadores» (**) de toada dos terreiros de mina:
Rei, Rei, Rei Sebastião,
Quem desencanta Lenço,
Bota abaixo o Maranhão! (***)
Ô, quem desencanta Lenço,
Bota abaixo o Maranhão!
Observe-se a analogia do que ocorrerá, caso D. Sebastião desen-
cante, com a predição de Antônio Conselheiro segundo a qual «o sertão
virará praia e a praia virará sertão» e que «das ondas do mar D.
(*) Caruana, nome indígena que significa mãe-d'água.
(**) «Puxadores», cantadores.
(***) Leia-se S. Luís.
O SEBASTIANISMO NO MARANHÃO
Sebastião sairá com todo o seu exército» (
5
) a cujo eco entoam os
«dançantes de mina»: (*)
Ele é Sebastião,
Vem no rolo do mar, ah, ah. ..
Vem no rolo do mar, ah, ah. ..
Ele é pai de terreiro,
«Naguma» imperiá, ah, ah. ..
«Naguma» imperiá, ah, ah...
Os vaticínios do Profeta de Canudos certamente difundiram-se para
o Maranhão e se refletiram na lenda do touro encantado das praias dos
Lençóis; e o que é muito provável, em face das sucessivas migrações
nordestinas para aquele Estado, em busca de melhores condições de vida.
A ideia de um monarca de magnificência e riqueza também aqui
se faz presente. Aquela população praiana submetida a extrema mi-
séria sonha o sonho cotidiano de possibilidade de melhoria econômica.
À vinda de D. Sebastião está ligado o advento de bens materiais, de
melhora de vida também para ela:
Sebastião tem tesouro
Na sua Mina de Ouro. (**)
Ele pode, ele manda
Amansa seu touro.
Enquanto o sortilégioo se desfaz, os barqueiros e pescadores da
redondeza, ao passarem ao largo das praias da ilha dos Lençóis, por
força da convicção, continuam vendo velhos sobrados coloniais, com
fidalgos nos balcões, e ouvindo os cantares nostálgicos das açafatas do
reino, nas noites de lua.
*
É provável a hipótese de ser o touro remanescente totêmico e ani-
mista, herança cultural africana. (***) Há que se observar igualmente
(*) «Dançantes de mina», pessoas que dançam durante o culto fetichista.
'(**) Referência à Costa da Mina, também chamada Costa do Ouro daí a
composição Mina de Ouro, região de origem de muitos negros que vieram para
o Maranhão. Na toada, o sentido da expressão é a que sugere o contexto.
(***) «Ellis encontrou traços totêmicos entre os Gêges que se organizaram em
vários clãs (...) O totemismo do boi é largamente disseminado entre vários povos
bantus.» Arthur Ramos, O Folk-lore Negro do Brasil. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1935. 279 p., p. 75 e 105.
PEDRO BRAGA DOS SANTOS
o fato do boi figurar na galeria de personagens de antigos autos populares
europeus; e até em procissões de caráter religioso que outrora se reali-
zavam em Portugal. Na França, havia o boeuf-gras, folguedo que era
brincado nas ruas de Paris, sendo o boi conduzido em passeata. Na
Espanha, ainda hoje, o touro é uma entidade quase mítica, cultuado de
modo bastante sui-generis. No Egito, o boi era símbolo de uma divin-
dade. Ademais,o devemos olvidar que o touro é um dos doze signos
zodiacais.
Certo é queo só o boi, mas bicho indistintamente é traço constante
na cultura brasileira. Tal «complexo» do bicho manifesta-se de modos
os mais diversos. Nas cantigas de acalanto, por exemplo, com que
muitas mães brasileiras adormentam seus pequerruchos, intimidando-os:
Boi, boi, boi,
Boi do Piaui,
Vem pega fulano,
Porque eleo que dormi.
ou no gosto das nossas crianças por estórias de bicho. (*) Quemo
se lembra de na infância ter ouvido uma dessas historietas em que um
bicho (muitas vezes, um bicho simplesmente, indefinido, misterioso...)
desponta tenebroso a intimidar o auditório e a perseguir-lhe até em
sonhos? Em muitas delas, a figura do touro surge, opulenta, bravia, indo-
mável ou apenas condescendente, folgazã, solidária. O touro sempre
sugere-nos talvez por um processo de associação simbólica incons-
ciente algo de misterioso, de encantamento, de fantasmagórico; apa-
rece amiúde envolto numa aura de sortilégio sendo geralmente a
«encarnação» de algum príncipe encantado, vítima do bruxedo duma
feiticeira malvada, de alguma fada perversa.
Manifesta-se ainda em muitos «pontos» engrolados em terreiro de
mina ou de «cura», (**) como evidencia o que vem a seguir:
Boi, boi, boi, «seu» Légua, (***)
Tira a tamanca, ó «seu» Légua.
«Seu» Légua é um home,
Três vezes home,
Ele matou boi sem facão.
Essa referência constante aos componentes da nossa fauna; o nosso
gosto por narrativas e canções em que aparecem figuras de animais;
o temor obsessivo das crianças do interior pelo jurupari, tutu e outras
(*) Há inclusive um conto popular bastante semelhante à narrativa mítica da
ilha dos Lençóis.
(**) Nome com que no Maranhão se designa a pajelança. Tal prática origi-
na-se do xamanismo.
(***) Légua-Boji, divindade africana do culto Gêge.
O SEBASTIANISMO NO MARANHÃO
entidades que tais, representadas via de regra por figuras animalescas;
o gosto bem brasileiro pelo popular jogo de bicho tudo isso porventura
expresse escreve Gilberto Freyre «o fato de sermos ainda, em
grande parte, um povo de integração incompleta no seu habitat tropical
ou americano.» Essa fascinação quase mística pelos animais conclui
«indica um processo, embora lento, de integração completa no
meio.» (
6
) Ou talvez signifique apenas mera e simples recorrência aos
elementos que o habitat tropical impõe aos nossos quadros cognitivos
de referência, na faina constante de elaboração cultural.
*
A estrela que o touro traz à testa igualmente possui significado.
É um símbolo judaico, que depois passou ao cristianismo, ligado à ideia
da vinda dum messias. Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento,
encontramos referência à estrela como prenúncio messiânico. (*)
Encontramos também referência a tal signo como anunciador mes-
siânico em um «ponto», onde ele é o sinal da divindade africana-
gua-Boji:
Em cima daquele morro,
Eu vi uma estrela brilha;
E era o sinal de meu pai,
Légua-Boji, Boji-Buá!
Neste caso, obviamente, trata-se da influência de um traço cultural
judaico, já incorporado ao culto fetichista.
*
A crença sebastianista no Maranhão é notável pela sua riqueza
simbólica. O mito, aqui também, é produto e fonte do sonho cotidiano
de vida melhor nutrido por aquelas populações de pescadores e embar-
cadiços. Populações que se encontram imersas em miséria extrema re-
correm à fantasia como para aliviar as frustrações que o sistema de
exploração lhes impinge. O sonho-de-olhos-abertos, o fantástico, fun-
ciona no sentido de realizar uma catarse coletiva amainando as tensões,
na medida em que oferece a esperança ilusória de uma época que há
de vir, de opulência e felicidade. As crenças milenaristas e messiânicas
(*) «Uma estrela procederá de Jacó e um cetro subirá de Israel.» Balaão,
Números, 24:17. «Onde está Aquele que é nascido rei dos judeus? porque vimos
a sua estrela no Oriente e vimos adorá-lo.» Mateus, cap. 2:6.
PEDRO BRAGA DOS SANTOS
só florescem em solo no qual a miséria e/ou a desagregação cultural
servem de adubo.
3. SEBASTIANISMO E BUMBA-MEU-BOI
Outro aspecto que convém ser elucidado é se há relação entre o
aparecimento do touro «encantado» e o Bumba-meu-boi, que, no Ma-
ranhão, se exibe durante as festas juninas, adquirindo maior exuberância
no dia deo João. E se o fogo que lhe sai das ventas tem algo a
ver com a usança de celebrar-se a festa do santo com fogos e fogueiras.
O que talvez seja sobrevivência entres de antigo costume de cele-
brar-se o solstício com fogo. (*)
O boi, no auto do Bumba, é igualmente animal totêmico. Ele está
de tal modo ligado à vida de certos agrupamentos humanos que seria
quase impossível viver sem ele. O boi chega a asseguraro só a
subsistência, mas a própria existência de populações pastoris, propiciando
o advento daquilo a que Capistrano de Abreuo bem denominou «Ci-
vilização do Couro».
O banquete ritual o testamento do boi, pelo queo distribuídos
os seus pedaços nada mais é do que o desejo travestido daquelas
populações de compartilhar os benefícios de uma sociedade mais justa
e mais humana. É um ato de comunhão de pessoas ligadas pela mesma
sorte.o é outro senão esse o sentido deste inventário:
As tripa fina
É das menina
As tripa grossa
É das muié da roça
O coxão
É de seu João
A cabeça
É de quem apareça
Ademais, o auto do Bumba possui algo de messiânico. O esquema
cíclico da morte e ressurreição, tomado de empréstimo ao cristianismo,
por exemplo: ou ainda o repasto totêmico, igualmente de procedência
cristã. E a ressurreição do boi, encerrando o entrecho, tem algo de
apoteótico, de escatológico, de paradisíaco.
Com o nascimento do príncipe D. João, filho da rainha D. Maria
e herdeiro da Coroa Portuguesa Gil Vicente escreveu um auto
(*) o solstício de inverno no Hemisfério Sul é a 21 de junho.
O SEBASTIANISMO NO MARANHÃO
para festejá-lo, intitulado Monólogo do Vaqueiro ou Auto da Visitação.
O fundador do teatro português comparou o príncipe recém-nato a um
messias, identificado na figura de um boi. Ora, essa associação, di-
gamos, icônica (messias/boi), já devia ser de domínio social seo
Gil Vicenteo se arriscaria a provocar melindre. .. Este dado torna-se
mais relevante quando a ele acrescentamos um outro: antigamente, em
Portugal, denominavam-se os festejos do ciclo das janeiras de festa
do Aguinaldo, o que equivale dizer festa do «boi nascido» (Agnus
natus). (*)
Seguindo-se essa linha de análise, seria justificável afirmar-se haver
resquícios assegurados pelo que Lévi-Strauss chamou de «fenômeno
de convergência» da divindade egípcia representada por um boi.
Os egípcios que legaram ao Ocidente tantas coisas, por queo um
símbolo deístico?
Claude Lévi-Strauss num artigo onde indaga e analisa a etiologia
do Papai Noel, escreve: «As explicações por sobrevivênciao sempre
incompletas; pois os costumeso desaparecem nem sobrevivem sem
razão. Quando subsistem, a causa está menos na viscosidade histórica
do que na permanência de uma função que a análise do presente deve
permitir descobrir.» (
7
)
Arthur Ramos no seu Folk-lore Negro do Brasil registra o fato
de que os Ba-Naneca (povo banto), por ocasião da colheita, conduzem
um boi em procissão entre danças e cantorias. Tal prática ritual tem
como motivo a fecundação motivo presenteo só no mito zodiacal
do touro, que comemora a força fecundante do sol, como também no
culto ao boi Ápis, símbolo da fecundidade da Natureza. Isso sem fa-
larmos na tragédia grega, cuja origem vincula-se ao culto a Dionísio,
deus do vinho e da fecundidade; e nas colunas salomônicas dos retábulos
de estilo barroco das igrejas coloniais, onde aparecem juntos crianças,
frutos, espigas e folhagens num visível apelo aos ideais de fecundidade
e vida.
A temática do auto do Bumba gira em torno do mesmo motivo da
fecundidade. Vejamos, recapitulando o entrecho:e Catarina, mu-
lher de Pai Francisco, de idade já avançada, engravida. Grávida, de-
seja comer a língua do bezerro mais bonito do patrão. Pai Francisco,
instigado por ela e temeroso de que a mulher perca o filho, mata o boi.
Pai Francisco é perseguido e preso... seguindo-se todas as peripécias
c críticas sociais e de costume culminando com a ressurreição apo-
teótica do animal.
Observa-se aí uma oposição binária em termos de morte e vida, o
que de resto ocorre na crença sebastianista da ilha dos Lençóis. E mais:
na origem da tragédia grega tal oposição se manifesta. A Dionísio,
deus da fecundidade (vida), sacrificava-se em holocausto (morte) uma
(*) Vide Arthur Ramos, op. cit., p. 104 e seg.
PEDRO BRAGA DOS SANTOS
pessoa humana, que tempos depois seria substituída pelo bode («tragos»,
em grego daí o nome tragédia). Mas voltemos à analogia estrutural
entre a narrativa mítica da ilha dos Lençóis e a dança dramática do
Bumba-meu-boi. O touro, resultado da transformação de D. Sebastião,
precisa morrer a fim de que ressurja o Rei com sua Corte. Na crença,
mata-se o touro para que viva o Rei; no auto, mata-se o boi para que
viva o filho dee Catarina e Pai Francisco. Em ambos os casos, a
liquidação do animal por paradoxal que pareça significa o triunfo
da vida sobre a morte; a redução da incerteza e a posse de novo equilí-
brio. É a redenção (vida) que só se consegue com o sacrifício votivo
(morte) do animal. Assim, a usança judaica do bode expiatório. Assim,
o próprio sacrifício cristão do «Cordeiro de Deus». Assim, a tragédia
grega logo em seu início.
O mesmo conteúdo místico-religioso se encontra tanto na crença
sebastianista do touro encantado, quanto no Bumba-meu-boi. Neste
como naquele, o animal morre para salvar alguém: seja o filho dee
Catarina, seja o próprio Rei e seus adeptos. Em última análise, o ani-
mal, tanto no auto quanto na lenda, possui as caractersticas de um messias
redentor, que salva e resgata, expia e liberta. Dum messias que morre
para salvar; que sofre para redimir.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
(1) AMEAL, João Fantasmas do «Desejado». In: História de Portugal. Porto,
Livraria Tavares Martins, 1968. 846 p., livro IV, p. 364.
(2) Ibidem, p. 363.
(3) SILVESTRE FERNANDES. «A Ilha dos Lençóis«, excerto. In: Antologia da Acade-
mia Maranhense de Letras, 1908-1958.o Luís, Academia Maranhense de Letras,
1958. 263 p., p. 197.
(4) Ibidem, p. 197.
(5) CUNHA, Euclides da «O Homem». In: Os Sertões, Biblioteca Básica Brasi-
leira (5). Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1963. 474 p., p. 136-37.
(6) FREYRE, Gilberto «O Indígena na Formação da Família Brasileira». In: Casa
Grande 6 Senzala. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1949. 2 v.,
v. 1, p. 277.
(7) LÉVI-STRAUSS, Claude «Papai Noel Supliciado». In: Folkcomunicação,o
Paulo, Escola de Comunicações e Artes USP, 1971. 130 p., p. 21 (B
Texto 14) .
BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA
LAYTANO, Dante de «Origens do Floclore Brasileiro». Cadernos de Folclore, Rio
de Janeiro, MEC. Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, (7): 3-4, 1968.
Irregular.
O SEBASTIANISMO NO MARANHÃO
LIMA, Carlos de «Bumba-Meu-Boi», documentário. In: Revista Brasileira de Fol-
clore, Rio de Janeiro, MEC, Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 10 (27):
177-93. maio/ago. 1970.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de O Messianismo no Brasil e no Mundo.o
Paulo, Dominus Editora S/A., Editora da Universidade deo Paulo, 1965.
373 p.
RAMOS, Arthur O Folk-lore Negro do Brasil, Biblioteca de Divulgação Scientifica
(4). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1935. 279 p.
SERRÃO. Joel Do Sebastianismo ao Socialismo em Portugal, Coleção Horizontes (4).
Lisboa, Editorial Gleba, LDA, 1969. 113 p.
VALE CABRAL «Seres Sobrenaturais», excerto. In: Antologia do Folclore Brasi-
leiro. S5o Paulo, Livraria Martins Editora. 1965. 2v., v, 1, p. 335.
Anexo
Revista Brasileira de Cultura
ÍNDICE GERAL
n.° 1, jul.-set. de 1969 n.° 14, out.-dez. de 1972
Organizado por AMÁLIA LUCY GEISEL, da Câmara do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do C.F.C.
ADONIAS FILHO
Aspectos Sociais do Romantismo Brasileiro Ano II, n° 3,
janeiro/março 1970, pp. 147/160.
Quatro Mitos Literários Ano IV, nº 11, janeiro/março
1972, pp. 79/88.
Recepção a Octávio de Faria Ano IV, n" 12, abril/junho
1972, pp. 117/123.
ANDRADE, Almir de
O Tempo como Horizonte c Conteúdo do Ser Ano II, nº 4,
abril/junho 1970, pp. 123/143.
A Dialética Aristotélica e o Principio de Contradição
Ano II, n° 5, julho/setembro 1970, pp. 95/114.
ANDRADE MURICY
Nova Hélade Ano II, n° 4, abril/junho 1970, pp. 175/185.
O «Satyricon» Ano II, nº 5, julho/setembro, 1970,
pp. 145/152.
O Cão Saudade Ano II, n" 6, outubro/dezembro 1970,
pp. 167/177.
Retratos de Cruz e Souza Ano III, nº 10, outubro/dezembro
1971, pp. 77/84.
AMÁLIA LUCY GEISEL
ANDRADE, Rodrigo Mello Franco de
Diário de Paracatu (Notas de uma viagem ao sertão 1925)
Ano I, nº 2, outubro/dezembro 1969, pp. 83/113.
ARAÚJO, Mozart de
Sigismund Neukomm Ano I, n° 1, julho/setembro 1969,
pp. 61/74.
Ernesto Nazareth Ano IV, nº 14, outubro/dezembro 1972,
pp. 13/28.
BARATA, Mário
Condições e Exemplos de Defesa do Patrimônio Histórico e
Artístico Ano II, nº 3, janeiro/março 1970, pp. 163/181.
Situação do Patrimônio Histórico e Artístico no Brasil e o
«Compromisso de Brasília» Ano II, nº 5, julho/setembro
1970, pp. 175/189.
Relacionamento da Independência com a Unificação Nacional
Ano IV, n° 13, julho/setembro 1972, pp. 115/125.
BARRETO, Luiz Antônio
A Bíblia na Literatura de Cordel Ano III, nº 7, janeiro/março
1971, pp. 137/155.
BASTOS D'ÁVILA
O Imperialismo Ecológico Ano IV, nº 14, outubro/dezembro
1972, pp. 99/108.
BURLE MARX, Roberto
Jardim e Ecologia Ano I, nº 1, julho/setembro 1969,
pp. 27/35.
CALMON, Pedro
Bocage e o Brasil Ano II, nº 5, julho/setembro 1770,
p. 65/77.
D. João VI —Ano II, nº 6, outubro/dezembro 1770, pp. 59/67.
CÂMARA CASCUDO, Luis da
Locuções Tradicionais Ano I, nº 1, julho/setembro 1969,
pp. 143/160.
Três Provincianos Ano I, nº 2, outubro/dezembro 1969,
pp. 151/162.
Adivinhando chuva... Ano II, nº 4, abril/junho 1970,
pp. 75/94.
ÍNDICE GERAL DA REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
CAMEU, Helza
Importância Histórica de Basílio Itiberê da Cunha e da sua
fantasia característica «A Sertaneja» Ano II, nº 3, janeiro/
março 1970. pp. 25/43.
CANNABRAVA, Euryalo
Cassiano Ricardo e os Sobreviventes Ano IV, n° 11, janeiro/
março 1972, pp. 89/118.
CASTRO, Ênio
de
Freitas
e
Dicionários de Música Brasileiros Ano II, nº 5, julho/
setembro 1970, pp. 9/20.
CAVALCANTI, Carlos
As Artes no Século XX Ano III, nº 3, janeiro/março 1970,
pp. 9/23.
Os três Profetas da Pintura Moderna Ano II, nº 4, abril/
junho 1970, pp. 27/48.
A Pintura mais Popular no Brasil Ano III, nº 8, abril/junho
1971,
pp. 9/26.
As Artes Brasileiras no Século do Descobrimento Ano IV,
n° 11, janeiro/março 1972, pp. 9/21.
COLLIER, Maria Elisa Dias
Notas sobre Gilberto Freyre, Inovador e Renovador Ano III,
nº 7, janeiro/março 1971, pp. 77/83.
COUTINHO, Edilberto
Rondon e a Política Indigenista Brasileira no Século XX
Ano IV nº 12, abril/junho 1972, pp. 61/68.
José Lins do Rego, Eterno Menino Ano IV, nº 13, julho/
setembro 1972, pp. 35/40.
DANTAS, Raymundo Souza
Cutlura Popular Sergipana Ano III, nº 10, outubro/dezembro
1971, pp. 47/50.
DIAS, Catharina Vergolino
Conteúdo e Limites da Regionalização da Amazônia Ano III,
n° 7, janeiro/março 1971, pp. 47/61.
A Amazônia Brasileira: Conceitos e Características Ano IV,
nº 14, outubro/dezembro 1972, pp. 109/113.
AMÁLIA LUCY GEISEL
DIÉGUES JÚNIOR, Manuel
Os Estudos Antropológicos no Brasil Ano I, nº 1, julho/
setembro 1969, pp. 105/123.
Estrutura Social Brasileira Ano II, nº 6, outubro/dezembro
1970, pp. 107/127.
Mestiçagem e Transculturação no Brasil de Antes do Século
XIX Ano III, nº 8, abril/junho 1971, pp. 91/104.
A Independência do Brasil como Processo Nacional e, ao mesmo
tempo, continental Ano IV, nº 13, julho/setembro 1972,
pp. 101/114.
FARIA, Octávio de
Cinema Novo e Cinema Brasileiro Ano I, nº 1, julho/setembro
1969, pp. 49/60.
Kierkegaard e o Existencialismo de Ernani Reichmann Ano I,
nº 2, outubro/dezembro 1969, pp. 141/150.
Problema do Cinema Nacional em 1969 Ano jll, nº 4,
abril/junho 1970, pp. 49/60.
A Grande Crise do Cinema Atual Ano III, nº 7, janeiro/
março 1971, pp. 21/29.
Discurso de Posse Ano IV, n° 12, abril/junho 1972,
pp. 103/116.
FAORO, Raymundo
Rio Grande do Sul: linhas gerais de sua formação política
Ano II, nº 3, janeiro/março 1970, pp. 87/109.
O Espelho e a Lâmpada Ano II, nº 5, julho/setembro 1970,
pp. 153/172.
FREYRE, Gilberto
Importância de Estudos Transnacionais para a Compreensão do
Complexo Americano em Geral e em Particular do Americano'
Tropical de Sociedade e de Cultura Ano I, nº 1, julho/
setembro 1969, pp. 77/92.
Recordação de Gilberto Amado, o Recifense Ano I, nº 2,
outubro/dezembro 1969, pp. 131/139.
Tempo, Ócio e Arte Ano II, nº 3, janeiro/março 1970,
pp. 47/58.
O Brasileiro Como Tipo Nacional de Homem Situado no
Trópico Ano III, n° 6, outubro/dezembro 1970, pp. 41/57.
O Conde de Boa Vista, Simpatizante de Ideias de Reforma
Social? Ano 1,11, nº 8, abril/junho 1971, pp. 43/54.
ÍNDICE GERAL DA REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
A Propósito de Cultura Hispânica Como Cultura Transnacional
Projetada Sobre o Futuro Ano III, n° 9, julho/setembro
1971, pp. 21/32.
FREYRE, Gilberto, SOARES, Gilson c CARNEIRO, José Francisco
Heróis c Vilões no Romance Brasileiro Ano II, nº 4, abril/
junho 1970, pp. 155/174.
GUIMARAENS FILHO, Alphonsus de
A Visita de Mário de Andrade a Alphonsus de Guimaraens
Ano II, nº 6, outubro/dezembro 1970, pp. 155/166.
Cecília Meireles, Pastora de Nuvens e Mitos Ano III, n° 9,
julho/setembro 1971, pp. 125/136.
Em Torno de uns Versos Inéditos de Augusto Frederico
Schmidt Ano III, nº 10, outubro/dezembro 1971, pp. 93/104.
Acerca de um Movimento Modernista em Minas Ano IV,
nº 11, janeiro/março 1972, pp. 127/134.
Manuel Bandeira, o Escritor e o Amigo Ano IV, nº 12,
abril/junho 1972, pp. 133/139.
Sobre Mário de Alencar, no seu Centenário Ano IV, n° 13,
julho/setembro 1972, pp. 29/34.
Inquietação Espiritual (ou Visão Mística) em Carlos Drummond
de Andrade Ano IV, nº 14, outubro/dezembro 1972,
pp. 31/42.
GOULART» José Alípio
Os Quilombos Ano II, nº 6, outubro/dezembro 1970,
pp. 129/141.
As Monarquias Ibéricas e a Proteção ao íncola Ano III,
n° 9, julho/setembro 1971, pp. 67/86.
HOUAISS, Antônio
Discurso de Posse Ano III, nº 10, outubro/dezembro 1971,
pp. 53/60.
HUNT. David
Evolução do Estilo de Churchill Ano III, n° 10, outubro/
dezembro 1971, pp. 67/76.
KELLY, Celso
A Ecologia na Interpretação da Cultura Fluminense Ano I,
nº 2, outubro/dezembro 1969, pp. 69/81.
AMÁLIA LUCY GEISEL
A Arte como Expressão do Tempo Ano III, nº 9, julho/
setembro 1971, pp. 9/17.
KIEFER, Bruno
Mário de Andrade e o Modernismo na Música Brasileira
Ano III, nº 7, janeiro/março 1971, pp. 9/20.
Função Integradora da Música Ano III, n
?
8, abril/junho
1971, pp. 27/33.
LIMA, Carlos Araújo
História do Direito Luso-Brasileiro Ano 0, n° 3, janeiro/
março 1970, pp. 119/130.
LIMA, Raul
Cartas do Historiador Washington Luiz Ano III, nº 10,
outubro/dezembro 1971, pp. 39/46.
LINS, Ivan
Atuação de D. Pedro I e José Bonifácio na Independência
Ano IV, nº 13, julho/setembro 1972. pp. 57/74.
Euclides da Cunha e o Pensamento Filosófico de seu Tempo
Ano IV, nº 14, outubro/dezembro 1972, pp. 43/58.
MADEIRA, Marcos Almir
Numa outra Academia Ano IV, nº 11, janeiro/março 1972,
pp. 135/145.
MAGALHÃES JÚNIOR, R.
A Estreia Literária de José de Alencar Ano II, n° 5, julho/
setembro 1970, pp. 117/128.
As Relações Entre José de Alencar e João Caetano Ano II,
nº 6, outubro/dezembro 1970, pp. 145/153.
Revelações Sobre Cruz e Souza Ano ,111, nº 7, janeiro/março
1971, pp. 129/136.
D. Pedro II, Plagiário? Ano III. nº 8, abril/junho 1971,
pp. 163/172.
Juventude de Machado de Assis Ano IV, nº 11, janeiro/
março 1972, pp. 119/215.
Um Dom Casmurro Trágico nas Relações de Machado de Assis
Ano IV, nº 12, abril/junho 1972, p. 125/132.
MARTINS, Wilson
Um Romance Inacabado de Alencar Ano I, n° 1, julho/
setembro 1969, pp. 161/173.
130
ÍNDICE GERAL DA REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
MEDINA, Carlos Alberto
Uma Festa Ideológica: o Carnaval Ano IV, nº 11,
janeiro/março 1972, pp. 25/35.
MELO, Veríssimo de
Antropologia e História Ano III, nº 9, julho/6etembro 1971,
p. 43/53.
MELLO FRANCO, Afonso Arinos
de
Ciência política nos países tropicais Ano II, nº 4, abril/
junho 1970, pp. 63/74.
Uma visão de Proust na Segunda Metade do Século Ano III,
nº 8, abril/junho 1971, pp. 155/162.
Constituição: Mito e Realidade Ano III, nº 9, julho/
setembro 1971, pp. 33/42.
Saudação a Antônio Houaiss Ano III, nº 10, outubro/
dezembro 1971, pp. 61/66.
MENDONÇA, Marcos Carneiro
de
Roteiro Pombalino no Brasil Ano II, n° 3, janeiro/março
1970, pp. 111/117.
MENDONÇA, Renato
A Gravura Instrumento de Comunicação: de Durer a Rugendas
Ano IV, nº 12, abril/junho, pp. 9/15.
MONTELLO, Josué
A Propósito de Vicente de Carvalho Ano III, nº 7, janeiro/
março 1971, pp. 95/116.
MORAES, Carlos Dante
de
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D. João VI e o Inicio da Modernização do Brasil Ano II,
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As Raízes e o Desenvolvimento da Cultura Brasileira Ano II,
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Manoel da Nóbrega e a Pedagogia Jesuítica Ano III, nº 7,
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O Brasil de 1530 a 1580 Ano III, n° 8, abril/junho 1971,
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A Conferência de Veneza e os Problemas da Cultura
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As Relações Internacionais da América Latina nos Séculos XIX
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ÍNDICE GERAL DA REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
A Igreja na América Latina Ano IV, nº 11, janeiro/março
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Camões Roteiro de Uma Vida e de Uma Obra Ano IV,
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A Independência do Brasil no Processo de Descolonização das
Américas Ano IV, n° 13, julho/setembro 1972, pp. 75/86.
O Folclore da Amazônia Ano IV, nº 14, outubro/dezembro
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RENAULT, Delso
Um Guia Ignorado de Peter Lund Ano IV, nº 14, outubro/
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REZENDE, Carlos Penteado
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Notas Para Uma História do Piano no Brasil Ano II, nº 6,
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RICARDO, Cassiano
Sabiá e Sintaxe Ano I, nº 1, julho/setembro 1969,
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Osmar Pimentel e a Nossa Critica de Poesia Ano II, n° 5,
julho/setembro 1970, pp. 129/142.
Grafitos e Murilogramas Ano III, nº 8, abril/junho 1971,
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RÓNAI, Paulo
Rachel de Queiroz ou a Complexa Naturalidade Ano III,
nº 10, outubro/dezembro 1971, pp. 85/91.
SALLES, Vicente
Quatro Séculos de Música no Pará Ano I, nº 2, outubro/
dezembro 1969, pp. 13/36.
Guajarina: Folhetaria de Francisco Lopes Ano III, nº 9,
julho/setembro 1971, pp. 87/102.
Editoras de Música no Pará Ano IV, n° 12, abril/junho
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O «Matricidio» de Antônio Conselheiro Ano IV, nº 14,
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SUASSUNA, Ariano
A Arte Popular no Brasil Ano I, n° 2, outubro/dezembro
1969, pp. 37/48.
AMÁLIA LUCY GEISEL
TEIXEIRA SOARES. Álvaro
Limites do Brasil na Amazônia Ano II, nº 3, janeiro/março
1970, pp. 47/58.
O Mundo de Fernando Pessoa Ano III, nº 7, janeiro/março
1971, pp. 95/116.
Mário de Andrade Renovador Prodigioso Ano IV, n° 11,
janeiro/março 1972, pp. 65/78.
O Drama da Missão Saraiva Ano IV, nº 12, abril/junho
1972, pp. 69/85.
A Grande Mensagem da Nossa Independência Ano ,IV, nº 13,
julho/setembro 1972, pp. 87/100.
TELES, Augusto
C. da
Silva
Um Monumento do Barroco Mineiro Ano III, nº 10, outubro/
dezembro 1971, pp. 107/111.
TINHORÃO, José Ramos
A Deculturação da Música Indígena Brasileira Ano IV,
nº 13, julho/setembro 1972, pp. 9/26.
TOCANTINS. Leandro
Landi Um Italiano Luso-Tropicalizado Ano I, n° I,
julho/setembro 1969, pp. 13/27.
Afrânio Peixoto: Baianidade e Lusitanidade Ano III, nº 7,
janeiro/março 1971, pp. 63/75.
Brasil. Trópico e Cinema Ano IV, nº 12, abril/junho 1972,
pp. 37/47.
TORRES, Garrido
Uma Política Brasileira em Relação a Portugal Ano IV,
nº 11, janeiro/março 1972, pp. 45/65.
VALLADARES, Clarival
do
Prado
A Iconologia Africana no Brasil Ano I, nº 1, julho/
setembro 1969, pp. 37/48.
Embrechados e Embutidos Ano I, n° 2, outubro/dezembro
1969, pp. 45/53.
.Arre de Formação e Arte de Informação Ano II, ti' 4,
abril/junho 1970, pp. 9/25.
Biografia da Lagoa Rodrigo de Freitas Ano III, nº 8,
abril/junho 1971, pp. 55/74.
ÍNDICE GERAL DA REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
O Espírito Criador do Povo Brasileiro Ano IV, n" 14,
outubro/dezembro 1972, pp. 9/12.
VELLINHO, Moisés
O Mestre-de~Campo André Ribeiro Coutinho Ano I, n" 1,
outubro/dezembro 1969, pp. 115/127.
VIANNA, Hélio
Cartas de Alexandre Herculano a Joaquim Pinto de Campos
Ano II, n° 4, abril/junho 1970, pp. 145/151.
A Biblioteca do Imperador Ano II nº 5, julho/setembro
1970, pp. 29/64.
Doação da Biblioteca de D. Pedro II Ano II, nº 6, outubro/
dezembro 1970, pp. 83/106.
Manuscritos da Biblioteca Imperial Ano III, nº 8, abril/junho
1971, pp. 105/142.
DEPARTAMENTO DE IMPRENSA NACIONAL 1974
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
16
Abril/junho - 1975
CENTRO BRASILEIRO I
Biblioteca
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
Publicação trimestral do Conselho Federal de Cultura
DIRETOR
Mozart de Araújo
CONSELHO DE REDAÇÃO
Octávio de Faria
Djacir Menezes
Adonias Filho
Pedro Calmon
Afonso Arinos de Mello Franco
Redação: Palácio da Cultura 7* andar
Rio de Janeiro Brasil
REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA
ABRIL-JUNHO - 1973
ANO V
N.° 16
Sumário
THIERS MARTINS MOREIRA
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
TEIXEIRA SOARES
PAULO DE CARVALHO-NETO
Perfil e Carta de Santa Rosa .. 9
ARTES
LETRAS
No Sesquicentenário dz Gonçal-
ves Dias 17
O Nosso Romance de Anteontem,
de ontem e de hoje 25
O Conto Folclórico 35
Saudação a Amadeu M'Bow ... 65
Antônio Conselheiro, Construtor
de Igrejas c Cemitérios 69
O Homem e as Condições Ecoló-
gicas da Amazônia Brasileira . 83
Geopolítica do Brasil 109
CIÊNCIAS HUMANAS
AFONSO ARINOS DE MELLO FRANCO
JOSÉ CALASANS BRANDÃO DA SILVA .
ANTÔNIO DA ROCHA PENTEADO
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
DONATO MELLO JÚNIOR
PATRIMÓNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO
Alexandre Von Humboldt e o
Conde de Clarac 121
Artes
Perfil e Carta de Santa Rosa(*)
THIERS MARTINS MOREIRA
T
RAGO a esta homenagem o depoimento de uma amizade de vinte
anos. Talvez mais, poiso consigo saber qual o instante da
vida que nos colocou pela primeira vez face a face. Nem sei
também qual a circunstância que nos aproximou e fez surgir o conheci-
mento de uma compreensão comum para as questões da arte e das
letras e, o que acredito ter sido mais importante, o da indulgência para
tudo o queo estivesse de acordo com a nossa própria compreensão.
O sentimento de indulgênciao significa que Santa Rosa. . . E ao
escrever pela primeira vez o seu nome para falar de sua morte é que
sinto a sua realidade e significação. Comoo vi sua face morta e a
última imagem que retenho é a do amigo no aeroporto, que vai partir
para a índia, e como as últimas palavras suaso as da carta que me
escreveu de Nova Delhi, a queo tive tempo de responder, uma
nuvem de ilusão parecia constantemente colocar-se sobre esta verdade
sem remédio. Nuvem que agora definitivamente se desfaz, pois cito
o seu nome e me volto para eleo sob a forma de lembrança do amigo
ausente, mas do amigo que definitivamente se perdeu.
Sim, o sentimento de indulgênciao significa que Santa Rosa
o possuísse seu patrimônio de ideias e que lhe fosse indiferente
atitudes contrárias do gosto ou do pensamento. Quero deixar claro
este ponto, porque Santa Rosa fez parte do último grande movimento
(*) Discurso pronunciado na homenagem da Associação Brasileira de Críticos
Teatrais, em dezembro de 1956, no auditório do Ministério da Educação e Cultura.
THIERS MARTINS MOREIRA
nacional de renovação estética e foi sempre um estimulador de novas
formas de criação, onde quer que pôde fazer sentir sua influência.
Assim foi no teatro, nas artes plásticas, nas artes gráficas, na ceno-
grafia, na decoração e, de algum modo, através dos contatos individuais,
nos fatos literários. Mas porque possuía uma visão ampla de tudo, e
sabia que acima da beleza particular a cada século ou cada escola, há
a beleza incontingente, e porque sabia ser difícil ãs criaturas despren-
derem-se das concepções sob cuja influência se formaram, possuía para
elas uma serena atitude de compreensão. O que eleo perdoava,
isto sim, eram os falsos, os ludibriadores da arte, os insinceros, os que
entravavam, nos postos de orientação ou de comando, a expansão de
seus ideais,o por estarem a serviço de outras ideias, mas a serviço
de seus interesses. Era só nesses instantes que eu sentia sua repulsa
sem cólera e via despertar o seu espírito de luta sem crueldade.
Dou de início este depoimento, porque entendo ser essa uma das
suas atitudes mais íntimas e que somente os que conviveram com os
recessos de seu pensamento poderiam surpreender. No teatro, por
exemplo, combateu tenazmente os processos conservadores eo per-
doava aos queo queriam entender a arte dramática como uma das
formas superiores da cultura e da expressão. Inúmeras vezes, porém,
ouvi os seus elogios a intérpretes e diretores que estando do outro lado
de sua barricada, realizavam ou se esforçavam por realizar o teatro
que ele queria para o Brasil. É que, em verdade, tinha objetivos que
independiam das pessoas e colocava, acima de cada uma delas, os seus
ideais estéticos.
No setor teatral, minha grande convivência com Santa Rosa se
deu no período em que tentamos lançar os fundamentos de uma grande
escola nacional de teatro. Em nossas trocas de ideias sobre o assunto,
era sempre dominante o pensamento de dar início a uma instituição
que atuasse nas raízes do problema, indo ao fundo das questões que
considerávamos básicas, como a dicção, a linguagem, a cultura dos
intérpretes, as técnicas da direção e da cenografia e os novos processos
da aprendizagem da arte de representar. Coube-lhe esboçar a estrutura
da organização e se algum mérito houve naquele esforço, desejo que
lhe façam justiça de que lhe pertence grande parte das ideias inspira-
doras e que jamais pensou em um detalhe da organização tendo em
vista atender a qualquer situação pessoal sua ou de amigos seus. A
estrutura e os nomes eram estudados tendo em vista exclusivamente
aqueles objetivos.
Embora seja esta uma reunião da Associação Brasileira dos Críti-
cos Teatrais, e que promove a homenagem do teatro nacional ao seu
grande animador,o desejo deter-me mais tempo sobre este perfil
de Santa Rosa nem quero continuar no relato dos fatos, pois estou
mais interessado em depor aqui sobre a sua natureza humana e os
aspetos de sua inteligência.
PERFIL E CARTA DE SANTA ROSA
Depois de sua morte, foram inúmeras as pessoas a que ouvi dizer:
perdi um dos meus amigos mais íntimos. É que Santa Rosa possuía a
arte admirável de saber ouvir. Parecia estar sempre disponível para
escutar atentamente os problemas de cada um, a que ele respondiao
sob a forma de conselhos, mas deixando tombar ideias e sugestões que
os seus interlocutores incorporavam a si como se fossem deles próprios.
o queria impor.o dizia nada dogmaticamente. As ideias vinham-
lhe de um fundo íntimo e sincero que lhes dava uma força admirável de
persuasão. Fui frequentador assíduo de seu atelier. Conheço, com
detalhes, a sua biblioteca e os seus discos e acompanhei muitas vezes
os seus trabalhos de pintor que interpretávamos em comum, eu como
observador, ele como criador. A muitos de seus quadros dei nome,
que mais atendia à emoção literária que me despertavam do que à sua
pura mensagem plástica. Foi ali que vi passar essa multidão de amigos
e que acompanhei de perto a sua atuação sobre eles. Vinham pessoas
dos mais variados setores e temperamentos, artistas, jornalistas, que
encontravam no seu ambiente, ao calor de seu espírito, um denominador
comum que era o do plano das ideias, da beleza, da compreensão de
uma atitude intelectual ou moral em face da vida.
Envolto por confidências, era excepcionalmente discreto.o
transmitia, jamais, o segredo que lhe entregavam.o vário eo
disperso nos seus contatoso confiava de um para outro o sentimento
ou pequeno problema de que era depositário. Nunca o vi vangloriar-se
de coisa alguma. Possuía uma modéstia instintiva e natural que as
vezes parecia trazer um pouco de humildade, mas da humildade dos
que sabem que há coisas infinitas e queo cabe ao homem senão
bordejar os limites exteriores da compreensão delas. Animava os
iniciantes.o possuía vaidade e nunca, na criação ou nos atos, foi
estimulado por ela.
Insisto sobre aspectos de sua personalidade queo aqueles a que
atribuo o papel excepcional de sua influência e fez com que inúmeras
pessoas sentissem um vazio real em volta de si quando os telegramas
friamente anunciaram o seu desaparecimento.
Como se ele pretendesse documentar-me neste depoimento que
faço sobre a sua natureza humana, escreveu-me de Nova Delhi, vinte
e dois dias antes de sua morte, uma carta admirável, que desejo ler aqui:
«Nova Delhi. 7-II-1956
Caro Thiers:
Lamentando sempre a sua ausência, para sentirmos, a quatro mãos,, o espetáculo
indiano,o cheio de controvérsias e de assombro, dou-lhe aqui algumas das
primeiras impressões deste estranho mundo, que nos consola, entretanto, dos erros
e das irregularidades de nosso doce País.
Jamais havia visto e sentido, meu caro, a quanto pode a escala humana descer,
e, mais ainda, suportar modos de existência fora de qualquer previsão, deo rude
THIERS MARTINS MOREIRA
e animalesca é a vida. aqui, de 60 milhões de párias. Sujeira e miséria, estabelecem
um padrão humano, imprevisível, no seu aspecto mais hediondo.
V.o imagina o choque, caro Thiers, ao vero grande parte da humanidade
mergulhada nessa perplexa escuridão, sem possibilidade de solução.o vejo uma
saída, pois eles mesmos aceitam isso, numa passividade total. Um homem sentado
no meio da rua, o que é o comum, parece que se sentou ali, pelo menos, há vinte
anos e que está esperando, para mover-se, mais vinte anos, ainda.
É uma grande e triste lição à nossa impaciência e ãs nossas pequenas ambições,
o sem sentido deante de espetáculo surpreendente e esmagador.
Como V., meu caro Thiers, as obras de arte, queo fabulosas (secs. VII,
XI, XII, XVII) perdem a sua significação maior, em relação ao problema humano
e restam como ilustrações fantasistas, belas, mas exteriores.
Estou tentando melhores informações e contatos quanto ao «affair» GOA, mas
há grandes dificuldades de se ir até, em face da política firmada no caso. De
qualquer forma, tenho obtido e obterei mais dados que interessam.
Já passei por Bombaim e agora estou em Nova Delhi. O nosso Congresso foi
interessante e a Reunião da UNESCO começou politizada pela 'guerra no Egito.
O pior, é que com isso perderei a oportunidade de ir ao Cairo, desviadas que estão
as rotas por Istambul, via Atenas, o que, também,o é máu!
Uma grande decepção, meu caro, foram les femmes, belas e distantes, em seus
«saris» originais e graciosos. Ninguém quer nada! Mesmo com esforços brasileiros,
incisivos e específicos, elas encontram um meio poético de les dètourner. Assim,
lá se foi o sonho oriental, sem maiores consequências do que desejarmos e adorarmos,
a formosa e nossa cidade do Rio de Janeiro, onde o amor se colhe ao pé das
calçadas. Triste experiência essa,o distante, de fracassoo aflitivo. Afinal já
o 15 dias!...
Breve, partirei para Atenas, e de Atenas a Istambul, caminho das valsas de
Viena.
Voltarei, com prazer ao nosso Ocidente, e de lá tornarei a dar-lhe melhores
noticias. Com um grande abraço do seu amigo.
Santa Rosa»
Esse artista plástico, curioso até o mais íntimo de seu ser de todas
as manifestações da beleza, trabalhado, pela leitura e pela observação
de seus álbuns, para receber da Índia a sua surpreendente, e nova para
ele, lição estética, relega tudo isto a um segundo plano, porque, mais
forte do que a arte e mais rica de experiência do que ela, era a
tremenda cena humana que a massa dos párias lhe apresentou. Seus
olhos se afastam dessa decoração de uma arte secular para se debru-
çarem, atentos, sobre o sofrimento humano. Fico com a sensação, que
esta carta me, de uma decoração fantasmagórica, fabulosa, como
ele diz, em face da qual só se desenrola o espetáculo tremendo de uma
alta miséria humana. Deu-me, talvez sem querer, a sensação do último
espetáculo que tivesse visto. Ele que amou o teatro e foi cenógrafo,
também aí entendeu que as técnicas da expressão cenográficaoo
mais do que o elemento indispensável, mas mudo, em face do qual
deve desenrolar-se o eterno problema do conflito do homem com a vida,
seja o indivíduo, seja uma multidão.
PERFIL E CARTA DE SANTA ROSA
Ignoro se, estando ainda sob a emoção da perda que tivemos,
consegui, como era meu intento, dar o meu depoimento sobre a complexa
natureza do amigo.
Lembro-me que certa vez lhe disse: Santa, se você morrer antes
de mim quero escrever um artigo a seu respito para dizer o seguinte:
Santa Rosa foi, sobretudo, um homem de bom gosto. Ora, quando,
neste momento, me encontro realmente em face de sua morte e medito
sobre ele, é que vejo como aquela frase, ainda que verdadeira, me
pareceo vazia, e o pensamentoo pequeno diante da figura humana
que Santa Rosa foi. Sim, em verdade, foi um homem de bom gosto.
Sobre uma cor, sobre um traço, sobre uma composição, sobre um verso,
sobre uma atitude moral, política, sobre qualquer forma, enfim, de
manifestação do pensamento e da vida, ele possuía o julgamento mais
preciso e sabia descobrir a beleza que por acaso contivesse. Maso
era isso, evidentemente, que dava a sua riqueza. E penso, então, que
devo dizer alguma coisa de mais sério e mais exato: Santa Rosa foi,
sobretudo, um homem que ao lado da alta sensibilidade estética,
possuía o que se chama capacidade de entendimento humano.
Letras
No Sesquicentenário de Gonçalves Dias
1823-1864
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
HAVIA em Gonçalves Dias um poeta que sabia conciliar o roman-
tismo com uma contensão que afinal lhe confere nota particular
por mais romântico que tenha sido. E havia sobretudo alguém
capaz de dominar todas as formas impondo-se por uma versificação
(detidamente estudada por Manuel Bandeira) libertada da doutrina de
Cast lho. Bandeira é quem alerta:
«As regras de Gramática e as de Versificaçãoo coisas excelentes,
desde que se ressalve aos mestres o direito de as violar, porque, como
disse o Professor Sousa da Silveira, «o senso natural dos verdadeiros
poetas vale mais que todas regras, sejam da Versificação, sejam da
Gramática!» Nesse espírito é que devemos ler Gonçalves Dias. A sua
poética baseia-se nos apoios rítmicos tradicionais da poesia em nosso
idioma: o número de sílabas com as suas pausas, a rima consoante
e toante, o encadeamento e o paralelismo. De todos esses recursos se
serv u, porém dentro da velha tradição peninsular, de que nos afastaram
os árcades influenciados pela rígida preceituação malerbiana os árca-
des, Castilho, que afinal era um árcade retardatário, e os nossos par-
nasianos.» (MANUEL BANDEIRA, «A Poética de Gonçalves Dias», in:
Poesia Completa e Prosa Escolhida, de Gonçalves Dias, Editora José
Aguilar, 1959).
Se assim era o artista, menos dotadoo seria na inspiração.
Outro grande poeta moderno, Cassiano Ricardo, no estudo «Gonçalves
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
Dias e o Indianismo», inserto cm A Literatura no Brasil, direção de
Afrânio Coutinho, vol. II Romantismo (Editorial Sul-Americana,
2
a
edição, 1969) cuidará do lírico, épico e dramático na poesia gonçal-
vina, para afirmar: «Os três gêneros lírico, épico e dramático
integram a poesia de Gonçalves Dias. Canto, ação e narrativa. Sob as
três faces, foi ainda ele diferente de si mesmo quantas vezes quis.»
x
Aí está o principal do nosso poeta, cujo sesquicentenário de nasci-
mento celebramos este ano: a versatilidade, o poder de passar por todos
os gêneros demonstrando, em cada um, a força própria daqueles que
sabem conduzir-se tanto nos caminhos mais simples como nas difíceis
e tanta vez traidoras rotas da eloquência.
Em série de seis ensaios incluídos em Crítica de Estilos, Livraria
Agir Editora, 1959, o escritor mineiro Aires da Mata Machado Filho,
com a acuidade e segurança de sempre, analisa a «Canção do Exílio»,
esse admirável poema dos 20 anos que teria, só ele, bastado à glória
do nosso poeta. «A «Canção do Exílio», modelo de simplicidade»:
«Prosa e Poesia»; «Goethe e Gonçalves Dias», «Anotações Estilísticas
à «Canção do Exílio»; «Palmeira e Sabiá» e «Vida Póstuma da «Canção
de Exílio»o os títulos desses ensaios, em que o escritor ilustre a bem
dizer esgota o repertório a respeito da celebrada canção. Dirá Aires da
Mata Machado Filho: «Insisto em queo eminentemente poéticas as
qualidades que extremam a Gonçalves Dias dos outros poetas român-
ticos.o é que pretenda subestimá-los. Muito pelo contrário. Há
mais que graça menineira e queixumes de amor, num Casimiro de Abreu,
e, em Castro Alves,o vejo só a efémera poesia social, a mais falsa
das poesias adjetivas, ensejo à eloquência exornada de imagens condo-
reiras, encanto e delícias de admiradores contentáveis. O próprio estado
da adolescência é capaz de suscitar emoção legitimamente poética, se
nos transpusermos ao tempo, se nos penetrarmos da atmosfera sentimen-
tal de que se impregna o romantismo. Ora, a poesia gonçalvina ganha
em eternidade o que perde em contemporaneidade. /Talvezo fosse
preciso tanto para dizer simplesmente que o autor de l~]uca~Pirama
recebeu as sugestões em moda, guardando a própria independência e,
integrado embora em seu tempo, ultrapassou a craveira da escola, nisso
residindo a sua superioridade.» Palavras que nos parecem de todo pro-
cedentes e quem ao encontro do que sempre pensou (e defendeu)
o grande admirador, o maior decerto, que teve Gonçalves Dias, Nogueira
da Silva, queo útil seria a Lúcia Miguel Pereira, com seu arquivo de
quanto dissesse respeito ao seu muito amado poeta para que a saudosa
escritora nos desse a soberba biografia do cantor de Os Timbiras o
maior dos preitos, certamente, prestados à sua memória. E palavras que
(verificamos agora) coincidem com o que acentuamos logo no início
deste trabalho, ou seja, a nota particular que há em Gonçalves Dias,
a distingui-lo de todos os companheiros de escola.
* Veja-se também, de mesmo autor, o notável ensaio Sabiá <S Sintaxe, publi-
cado na REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA, ano I, 1, julho-setembro de 1969.
NO SESQUICENTENARIO DE GONÇALVES DIAS
«Inabalável chefe da nossa literatura indiana», chamou-lhe Fran-
klin Távora (em Cartas a Cincinato, segundo vem transcrito no suple-
mento literário de A Manhã, Autores e Livros, no nº dedicado a Gon-
çalves Dias em 8-11-1941) . O que nos conduz a considerações do pró-
prio Poeta, em carta ao Dr. Pedro Nunes Leal, reproduzida no mesmo
suplemento com a advertência de que «parece incompleta» e datada
«provavelmente do ano de 1857» (foi primitivamente publicada no
«Jornal do Comércio», Rio de Janeiro, 24-3-1907 e transcrita na Revista
da Academia Brasileira de Letras, vol. 38, nº 121, pp. 104-111, janeiro
1932, de onde foi extraído o texto com que figura na edição Aguilar
da obra do Poeta. Essas consideraçõesm a propósito de Odorico
Mendes. Diz ele que elogiou e muito a pureza do português em que
escrevia aquele «muito ilustre maranhense», para aduzir: «Lembrou-me
nessa mesma ocasião o que por lá e por cá se diz como menosprezamos
a boa linguagem./ Elogiei o Odorico por ser abundante, conciso, enér-
gico; mas tambémo concordo com os daquela opinião, tomada em
absoluto, por me parecer, que vai nisso excesso de lusitanismo. O Lisboa
mesmoo o diz; se acaso repreende esses descuidos nossos, censura
em Portugal, e com muitíssima razão, a idolatria viciosa da frase, foto-
grafando em duas palavras o caráter literário do cego Castilho». Con-
siderações tais demonstram como o poeta era consciente da sua arte
e confirmam o seu afastamento da doutrina literária de Castilho. Mas
vale a pena citar mais: «O conhecimento da própria língua é sem dúvida
de uma grande vantagem; escrevê-la bem, qualquer que ela seja, só é
dado aos grandes engenhos./ Convençam-se pois aqueles, que aspiram
à imortalidade das letras, queo há obra alguma, que se recomende
à imaginação sem o estilo. / E isso assim foi, e é, e há de ser por séculos
porque a língua é a parte material, mas indispensável das concepções
do espirito. E assim como o operárioo fará nem uma obra perfeita
seo tem os seus instrumentos, ou se mal sabe manejar os que possui,
o escritoro atingirá nunca o belo da forma se seo tiver preparado
de antemão com o estudo e com o exercício do mais rebelde, do mais
intratável de todos os instrumentos a língua./Instrumento, a arte,
o engenho, eis as três condições essenciais: mas ao passo que o engenho
vem de Deus o instrumento e arte, o estudo da língua e o estilo,
aquele mais ou menos completo, este mais ou menos aprazível e for-
moso, está ao alcance de qualquer um de nós. / Longe de me opor a
semelhante estudo, sou de opinião que se atenda mais e que os literatos
se dediquem mais profundamente aos bons autores, gregos e latinos,
como complemento da língua pátria: sou de opinião que o Governo
do Brasil, seguindo os princípios da nossa Constituição,o liberal em
matéria de ensino, devia mandar reimprimir e vender, pelo custo da
impressão, os bons escritores portugueses, pô-los ao alcance de todos,
espalhá-los por todos os recantos do Império, de modo que Vieira,
Fernão Mendes e o Padre Godinho e outros fossem por esses centros
substituir os exemplares surrados e poídos de Carlos Magno./Tudo
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
porém tem o seu termo. Abjure-se a idolatria da fama e acreditemos que
só se podem chamar clássicas as obras dos grandes engenhos obras
que primem pela ideia, conquanto revestidas de todas as louçanias do
estilo. Bons cerzidores de palavras de lei apenas servem para comple-
mento dos bons dicionários. Chamem-se embora clássicos, muitos deles,
o intoleráveis. Eu de mim o confesso, que os leio a boa soma deles,
como por castigo, e confiado na infinita misericórdia divina, que me
levará em conta esta penitência voluntária.» Mas onde está o pensa-
mento do «inabalável chefe da literatura indiana» a propósito desse
aspecto da sua obra, importantíssimo aliás? Virá mais adiante: «Bom
ou mau grado, a língua tupi lançou raízes no português que falamos, e
so podemos, nem devemos atirá-los para um canto a pretexto de
que a outros parecem bárbaros e mal soantes. Contra isso protestaria
a nossa Flora, a nossa Zoologia, a nossa Topograf.a. Clássico ouo
clássico Pernambuco é Pernambuco, cajá, paca e outros semelhantes,
om outro nome. Se isso desagrada a Portugal é grande pena, mas
o tem remédio./ Agora, se algumas dessas palavraso realmente
mal soantes e seoo absolutamente indispensáveis, rejeitem-na dos
escritos sérios, ou somente se aproveitem delas, como fez Gregório de
Matos para a sátira ou no ridículo. O que porém acontece é o contrário,
é que tais palavras na sua imensa maioriao eufônicas; mas ass m como
há ruins versejadores, que até no italiano, fazem péssimos versos, há
ouvidos rebeldes, homens de mau gosto, que, a trouxe-mouxe, foram
encaixando nas suas composições palavras tupis ou tapuias, sem aten-
derem a coisa alguma. Poderia citar Os Tamoios se o contágio fosse de
recear. Comoo é parce sepultis. / Quanto à escolha de palavras
indígenas e a sua introdução no nosso idioma, ter-me-ia lembrado arre-
dondar algumas delas das mais ásperas ou das menos sonoras, se
o soubesse que isso há de ser elaboração lenta do povo e obra do
tempo. Em tais casos, a multidão tem mais que um colégio de modistas,
mais ouvido que todos os Rossinis e mais filosofia que os doutos Kants
da Germânia./ Independente da Botânica, Geografia e Zoologia (o que
todavia jáo é mau contingente), temos uma imensa quantidade de
termos indígenas ou sejam africanos, que até nos dicionários se intro-
duziram mas que na maior parte só aparecem na conversação nomes
de comidas, termos de pesca, de lavoura, etc, queoo clássicos,
mas indispensáveis. / Acontece também que em distânciaso conside-
ráveis, comoo as do Brasil, o teor da vida muda, e os homens que
adotam esta ou aquela maneira de viver formaram uma linguagem própria
sua, mas expressiva e variada./Os vaqueiros, os mineiros, os pescado-
res, os homens da navegação fluvial estão neste caso. Pois o romance
brasileiroo há de poder desenhar nenhum destes tipos, porque lhe
faltam os termos próprios no português clássico?/ Pelo contrário, escre-
vam tudo, que tudo é bom — e quando vier outro Mora s tudo isso ficará
clássico. / Vieira, porque fala em pocemas e taperas, ficou menos Vieira?
Odorico, por ter escrito perau, ficou sendo um mau escritor?/ Bem
NO SESQUICENTENÁRIO DE GONÇALVES DIAS
haja o Amazonas, quando no seu romance (Simá?) descreve o Rio
Negro com os termos que ali aprendeu./ Convém todavia notar que o
que mais ofende o ouvido e o gosto portuguêsoo tanto os termos
forasteiros, como muitas e a maior parte das vezes, o modo e o sent do
em que empregamos vocábulos e frases queo rigorosamente seus. A
causa é que o nosso povo tem outro fraseado, os seus termos vulgares
o diferentes, donde pode acontecer, que a palavra portuguesa, aqui
muito vulgar e baixa, lá pode entrar em discurso sem produzir má impres-
são, porque o desuso a enobrece./Vês tu o nosso Macedo? o seu mere-
cimentoo é ser clássico, mas ser brasileiro, e eleo seriao esti-
mado,o popular, se andasse alambicando frases, que os poucos conhe-
cedores da língua mal compreenderiam a sopapo de dicionário. O que
o simples bom senso diz é que seo repreenda de leve num povo o que
geralmente agrada a todos. Nem se diga que o nosso ouvido é pouco
musical, e a prova é queo há brasileiro, nem mesmo surdo, que aprove
a rima de mãe com tambãim, como aqui fazem rimadores, ou que admi-
tisse um tambãim impossível, como a gente culta de Lisboa./ Em resumo:
1º A minha opinião é que ainda, sem o querer, havemos de
modificar altamente o português. 2
º
Que uma só coisa fica e
deve ficar eternamente respeitada: a gramática e o gênio da língua.
3
º
Que se estude muito e muito os clássicos, porque é miséria grande
o poder usar das riquezas que herdamos. 4
º
Mas que, nem
pode haver salvação fora do Evangelho de S. Luís, (*) como devemos
admitir tudo o de que precisamos para exprimir coisas novas ou exclu-
sivamente nossas. 5
º
— E que, enfim, o que é brasileiro é brasileiro,
e que cuia virá a sero clássico como porcelana, ainda que ao achem
bonita./E com isto dou fim a esta epístola. Está me parecendo que se
o Odorico a visse, faria-me uma pregação interminável, rejeitando-mc
tudo de pancada e admitindo-me depois, parcialmente, o mais do que
aí vai escrito. Felizmente ele está longe e eu cansado.»
A transcrição, embora longa, se fez necessária,o só para mostrar
o bom humor do poeta, certas ironias muito suas, mas principalmente
para vê-lo como foi: consciente, consciencioso, dominando a linguagem
com perfeita mestria e dotado do necessário sentimento nativo, ou nacio-
nalista.o foi à-toa que compôs o Dicionário da Língua Tupi Chamada
Língua Geral dos Indígenas do Brasil, publicado na Alemanha por
Brockaus em 1858 e cujo fac-símile das linhas (não do formato nem
da disposição tipográfica, como se informa) está reproduzido na citada
Edição Aguilar da sua poesia completa e prosa escolhida. Nem menos
rigoroso se mostrou ele, ao aplicar vocábulos indígenas, queo achasse
necessário dar-lhes o significado, em notas, como na 2ª edição alemã
dos Cantos, também publicado pelo mesmo editor alemão em 1857,
sob as vistas do poeta. Ali veremos, nessas notas, o que quer dizer,
* Alusão ao clássico Frei Luiz de Souza.
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
tacape, boré, piagé (pajé), Anhanguá, Manitos, etc. . e, cm meio de tudo.
I~]uca-Pirama, título do seu maior poema indianista. e que, como escla-
rece numa das notas, «traduzido literalmente da língua tupi, vale tanto
como se em português disséssemos o que há de ser morto, o que é
digno de ser morto».
I~Juca-Pirama.. . Se nos referimos ao seu maior poema indianista,
o podemos esquecer o lírico de Ainda Uma Vez Adeus!, elegia
que transpira pungente sentimento sincero, nem o autor dessa admirável
canção que é «Não me deixes!», que o nosso Vicente de Carvalho viria
a parafrasear e que é uma das obras-primas de Gonçalves Dias e na
verdade de toda a língua. Mas seria impossível deter-nos nos poemas
seus que realmente importam. Será talvez mais justo dizer que todos
interessam, que todos importam, ainda os menos significativos, porque
contribuem para tornar o conjunto da sua obra poética algo de harmo-
nioso e sobretudo porque demonstram, todos eles, o artista flexível,o
pouco formalista, sempre inspirado e sempre capaz de fugir, na metrifi-
cação ou no ritmo das estrofes ou de cada verso, aos espartilhos que
fizeram malograr tantas tentativas. Abjurando a cartilha de Castilho,
utilizando-se de termos da língua tupi, suave às vezes, impetuoso outras,
mas sempre autêntico, pôde legar-nos uma obra que será talvez a mais
substanciosa e realizada na poesia do nosso romantismo. Produzindo
a.» «Sextilhas de Frei Antão», em linguagem arcaica, achou também de
dar um esclarecimento, em nota, ao leitor que, sem ela, poderia sentir-se
em impenetrável selva. E a explicação é a mas singela e modesta se
a compararmos como grande empresa: «Os vocábulos que emprego
nestas sextilhas se acham todos no Dicionário de Morais, bem que as
mais das vezes no sentido antiquado. É assim que uso de porém,
porende em vez de por isso; de perol em vez de porém;
de-ora, embora em vez de agora, em boa hora etc.» Aqui caberia
citar aquele trecho da sua carta, de que nos ocupamos: «Instrumento,
a arte, o engenho, eis as três condições essenciais.» E esteso lhe
faltaram, mu to pelo contrário. Se foi um grande lírico, foi também um
grande poeta épico-dramático. O que pode recordar o dramaturgo que
foi, aos 23 anos, com Leonor de Mendonça, de que um dos nossos melho-
res estudiosos da dramaturgia nacional, Sábato Magaldi, no seu Pano-
rama do Teatro Brasileiro, Difusão Europeia do Livro,o Paulo, 1962,
dirá: «Gonçalves Dias aceitou que o drama resumisse a comédia e a
tragédia. «Ora, se a tragédia seo pode conceber sem verso, assim
também a comédia sem prosao pode existir perfeita.»o sentiu que
dispusesse de nome e simpatias, contudo, para intentar em seu teatro
uma inovação. Todas as peçaso escritas em prosa. O malogro de
uma audácia acarertaria «no progresso da arte retardamento de um
século ou de mais.» O grande poetao ousou, por isso, no teatro, tudo
o que intuía o seu gênio. Fez, em Leonor de Mendonça, um drama sobrio
e elevado. Certamente a melhor obra do gênero em nossa literatura
dramática do século XIX.» Será interessante talvez lembrar para apro-
NO SESQUICENTENÁRIO DE GONÇALVES DIAS
ximar <dois poetas eloquentes e dramáticos que o mesmo ensaísta
escreverá que «Outra obra de poeta é Gonzaga ou a Revolução de
Minas, de Castro Alves (1847-1871), escrito expressamente para o
palco. (...) Depois de Leonor de Mendonça, Gonzaga ou a Revolução
de Minas é provavelmente o drama romântico mais inspirado de nossa
literatura, transbordante de riqueza e de intenções. Se algumas peri-
pécias nascem de inverossimilhanças e do gosto melodramático, será for-
çoso explicá-los pela extrema juventude do poeta, que escreveu a peça
aos vinte anos. Quanto vigor, porém, e que visão do espetáculo como
ampla arquítetura!»
De tudo isso se infere que Gonçalves Dias lírico, épico ou dramático
permanece presente, como um dos pilares em que assenta a nossa poesia
mais legítima. Artista consciente, poeta notável por vocação, soube
assimilar as lições dos mestres da língua sem se deixar esmagar por
eles, e soube ser, conquanto muito vivesse em Lisboa, um autor nacional,
em quem reconhecemos o amor pela sua terra, decantado na «Canção
do Exílio» nos seus 20 anos e mais tarde, já no ocaso de uma breve e
atormentada existência, no poema «Minha terra», inferior à canção que
o celebrizou como o celebrizou «I—Jucá—Pirama», «Ainda Uma
Vez Adeus!», «Não me deixes» e tantos outros poemas mas que,
pelo sentimento, vale a pena deixar aqui, como mais uma afirmação do
amor à terra desse notável brasileiro:
Quanto é grato em terra estranha,
Sob umu menos querido,
Entre feições estrangeiras,
Ver um rosto conhecido;
Ouvir a pátria linguagem
Do berço balbuciada,
Recordar sabidos casos
Saudosos da terra amada!
E em tristes serões d'inverno,
Tendo a face contra o lar,
Lembrar o sol que já vimos,
E o nosso ameno luar!
Certo é grato; mais sentido
Se nos bate o coração,
Que para a pátria nos voa,
P'ra onde os nossos estão!
Depois de girar no mundo
Como barco em crespo mar,
Amiga praia nos chama.
Lá no horizonte a brilhar.
ALPHONSUS DE GUIMARAENS FILHO
E vendo os vales e os montes
E a pátria que Deus nos deu,
Possamos dizer contentes:
Tudo isto que vejo é meu!
Meu este sol que me aclara,
Minha esta brisa, estes céus,
Estas praias, bosques, fontes,
Eu os conheçoo meus!
Mais os amo quando volte,
Pois do que por fora vi,
A mais querer m'nha terra
E minha gente aprendi.
Poema escrito em Paris, no ano de sua morte 1864 — e que
demonstra como sempre andou no coração do poeta a imagem do seu
pais, que hoje lhe conserva a imagem como a de um dos seus maiores
e mais ilustres filhos, repetindo-lhe os versos, seo de outros poemas,
da sua bela «Canção do Exílio», singela e rica, simples e soberba na
sua construção e no sentimento que nela traduziu.
O Nosso Romance de Anteontem,
de Ontem e de Hoje
TEIXEIRA SOARES
I
E
STE oficio de romancista ensina muita coisa e estimula anotações,
porque se vai observando a vida e se vai apreciando a lição
deixada por outros romancistas.
É o que estamos fazendo neste ensaio a respeito do nosso romance
de anteontem, de ontem e de hoje.
A lição dada pela grave e nobre tarefa do romance abre perspec-
tivas imensas e suscita reflexões quanto à evolução desse gênero lite-
rário em nosso país.
Desde Teixeira e Souza, o autor aflito e dramatizante do Filho do
pescador (1843), até aos dias de hoje, muita coisa se realizou por
certo; mas, seria o caso de se perguntar se o romance brasileiroo
padece ainda do peso de muita tradição e seo revela poucas facetas
de renovação. Digo eu que seria o caso de se perguntar. . .
Por conseguinte, subir a correnteza histórica do nosso romance
vale como uma tarefa grave e nobre de devassamento crítico e de
ilustração cultural. Sempre se aprende muita coisa. Certa vez li que a
tradição do romance inglês sempre favorecera a extensão («length»)
e o ócio («leisure»): isto é, o inglês prefere romances alentados para
o seu entretenimento. Veja-se a lição de um Dickens, de uma George
Eliot e de um George Meredith.
TEIXEIRA SOARES
Fundamentalmente, que vem a ser um romance? Num relance
rápido, um romance é uma história comprida bem contada. A técnica
do romance exige que ele tenha enredo. Seo tiver enredo, poderá
vir a ser uma divagação sentimental, algo de parecido com o Obermann,
de Sénancour.
Perguntaremos então se temos romancistas. É claro que os temos.
Mas, teremos de reconhecer que, num país de gente lírica, o romance
merece cuidados parcimoniosos. Logo, teremos de concluir que temos
poucos romancistas.
Sei perfeitamente que o nosso romance se empenhou em fixar
gentes variadas, fosse peonada chucra ou fossem fazendeiros abastados,
burgueses repletos de si mesmos. Mesmo com suas inerentes imper-
feições ou frustrações criacionistas ou técnicas, o nosso romance vai
indo por diante, porque tem vitalidade. Mas, é preciso confessar que
tivemos romancistas «incompletos» ou «falhados» que ainda assim
ficaram no registro literário à força de muita repetição de prestígio
localista. Talvez exemplo do que acabamos de dizer possa ser represen-
tado por Xavier Marques, trabalhador consciencioso, vernaculista
insigne, mas criador muito relativo de ficção. Virgílio Várzea, por
exemplo, possuidor de qualidades de estilo e de narração, ficou injusta-
mente esquecido. Outros, porém, souberam engrandecer-se,o na sua
época, mas depois, porque, se por acaso se auto-Iimitaram, procuraram
no entanto a originalidade no que havia ao mesmo tempo de mais comum
e de mais recôndito. É o caso admirável de Manoel Antônio de Almeida
(1830-1861) com suas Memórias de um Sargento de Milícias, obra-
prima verdadeiramente única no gênero através dos fastos da nossa
literatura.
Então (será o caso de se perguntar) por que motivo existe tanta
espontaneidade em Manoel Antônio de Almeida, se ela falta, por
exemplo, à obra de Xavier Marques? Por que motivo ainda hoje se
lê um Joaquim Manoel de Macedo, quando um Franklin Távora foi
esquecido? Por que motivo ainda se lê um Taunay romancista e pouco
se relê um Bernardo Guimarães?o se trata de uma questão de moda
ou de voga; trata-se de uma questão mais séria e mais profunda.
Existe uma fronteira entre romancistas realizados e romancistas
irrealizados. Essa fronteira é muito fluida. Mas, o gosto literário do
leitor sabe descobrir essa fronteira, mesmo que um romancista possa
ter «boa imprensa» eo ser um romancista realizado. Sempre me
fiei daquele critério fácil o de saber se o romance agrada ou não.
Motivo por que o romance policial ou um romance de espionagem
exigem um ritmo diverso do romance que procura ser uma obra de arte.
No entanto, Wilkie Collins, um dos fundadores do romance policial,
escreveu duas obras-primas desse gênero, The Moonstone e The
woman in white. Um filete d'água se transforma em rio e este rio vai
O NOSSO ROMANCE DE ANTEONTEM, DE ONTEM E DE HOJE
ser imagem de vida por aí afora, iluminativo na sua simplicidade, útil
na sua dinâmica, quando outros filetes d'água se apoucam e se estiolam
no meio do seu caminho. A comparação pode aplicar-se à evolução do
nosso romance. Temos romances e romances; temos romancistas
e romancistas. No entanto, desde logo ressalta o fato de que o romance,
como gênero literário,o teve no Brasil a mesma pujança que teve
nos Estados Unidos.
Depois de Teixeira e Souza, hoje perfeitamente ilegível, como
também ilegível se tornou Joaquim Norberto de Sousa e Silva, vem
Joaquim Manoel de Macedo com seu indiscutível talento de romancista,
de contador de histórias e de bom ou mau estilista (mas isto será outro
assunto). Macedo, com A Moreninha, se propôs ser o cronista da
burguesia do seu tempo, fazendo-o ora com pieguice, ora com a incisivi-
dade do corte rápido do analista que sabe o que tem em mira. O Moço
Louro, dos seus melhores romances, desce a minúcias de indumentária
que constituem preciosa contribuição para o estudo da vida social da
época. Talvez fosse um escritor bonachão, pacato, limitado,o o
negamos; mas,o se pode questionar que Macedo houvesse sido dotado
de um talento de saber contar uma história, que é o que vale no final
das contas.
Quando se relê Macedo (como nos aconteceu recentemente), parece
que des se apodera um ritmo satúrnio, porque o volver àquela prosa
desataviada e àquela ingenuidade de ações e reações (o queo impede
haver bons enredos em certos romances de Macedo) nos leva a pensar
nos tempos pretéritos de uma vida simples numa sociedade simples.
Voltar a esses tempos, através de Macedo, vale como a reconquista de
um ritmo da nossa memória que procura extrair do passado o elemento
ilusório, a recordação.
Tanto Macedo como o nosso grande Alencar viveram o drama do
escravo e por conseguinte, o drama da escravidão. Nascido nove
anos depois de Macedo, nascido em 1829, Alencar trouxe consigo uma
força de criação impressionante e um colorido forte. É o paisagista, é
o poderoso evocador da sociedade colonial nas Minas de Prata, é o
analista de uma série de figuras femininas da Corte, é o decorador de
cenários largos e movimentados, é, finalmente, o criador de uma grande
e bela prosa. Alencar teve o propósito de nos dar todo o Bras 1 nos seus
romances desde a indiada de Iracema, Ubirajara e do Guarani misturada
com um tropel gigantesco de figuras que flamejam arrastando cava-
lhadas à soga e movimentando sertanejos, gaúchos, funcionários públicos,
aventureiros e burgueses num frémito poderoso. É o mestre da prosa
cantante de Iracema, é o possuidor de uma prosa que tem um ictus
rítmico poderoso. Pode-se ter escrito no Brasil com a eloquência feroz
dos Sertões, de Euclides; mas poucos tiveram a prosa numerosa de
Alencar {rhythmi, id est numeri, spatio temporum Constant, metra etiam
ordme, dizia famoso retórico latino). E como se descrever o Brasil
TEIXEIRA SOARES
em visões parceladaso lhe bastasse, Alencar preocupou-se com
problemas sociais e jurídicos, fazendo-o com intensidade e agudeza e
enchendo sua vida com impressionante combatividade. Quando Para-
nhos (depois Visconde do Rio-Branco) apresentou o projeto da lei do
Ventre Livre, Alencar, sendo abolicionista, votou contra ele para
surpresa de muitos admiradores seus. Alencar foi o criador do romance
sertanejo que encontraria notáveis seguidores em Bernardo Guimarães,
Franklin Távora e Taunay.
Seguidores sinceros e conscienciosos. Bernardo Guimarães sentiu o
drama da escravidão na Escrava Isaura. Franklin Távora foi o primeiro
da longa e brilhante escalada do romance do Nordeste, porque escreveu
o Cabeleira onde vasculhou a psyche do cangaceiro. Távora, escritor
sóbrio, nervoso e sombrio, trazia consigo uma visão de ferrenho amor
à gleba, porque seus matutos e seus cangaceiros ainda vivem nos dias
de hoje. É questão de senti-los com toda a justiça. Távora teve prestígio,
e muito, no seu tempo, porque, com Nicolau Midosi, dirigiu a «Revista
Brasileira», a segunda desse nome, que durou de 1879 a 1881. Nessa
revista Machado de Assis publicou o Braz Cubas e o próprio Távora
publicou o seu Lourenço.
Uma das figuras mais fascinantes da vida cultural brasileira,
Taunay se impôs como um temperamento de aguda curiosidade cientí-
tífica e estética. Por isso, ele se dedicou a um campo imenso de
atividades culturais. Ademais, pelo fato de ser também soldado, admi-
nistrador e político, Taunay se interessou por uma quantidade variada
de assuntos, versados com sua costumada elegância. Com sua Inocência,
um romance excelente, e com seus romances menores Mocidade de
Trajano e Manuscrito de uma mulher, Taunay nos mostrou um Brasil
com sua intensa vida de fazendas e nos interiorizou numa sociedade
distante do litoral civilizado, mas nem por isso menos civilizada e
dotada de uma resistência orgânica susceptível de fazê-la sobrenadar às
dificuldades do isolamento nos imensos sertões. Justamente porque
viajara bastante pelo país adentro como militar, Taunay observou
muito, pintou cenários com naturalidade e fixou tipos humanos com
muita generosidade de coração. Curioso que, tendo escrito um romance
de primeira ordem como Inocência, houvesse sido Taunay taxado de
falto de imaginação. Contudo, ele foi um pioneiro do romance sertanejo
ou pelo menos do romance da vida burguesa em remotas fazendas do
interior.
Durante o Segundo Reinadoo surgiu um grande romancista que
se houvesse ocupado da escravidão. Esta aparece episodicamente em
livros de Alencar, em Manoel Antônio de Almeida, em Franklin Távora
e em romances e contos admiráveis de Machado de Assis. Por que
motivo isso aconteceu? Tem de haver uma explicação. Porque todos
os nossos escritores pertenciam à média ou pequena burguesia, e talvez
o estivessem dispostos a combater a fundo o nefando instituto. Será
O NOSSO ROMANCE DE ANTEONTEM, DE ONTEM E DE HOJE
na poesia, será no estro de Castro Alves que a escravidão se transfor-
mará em causa célebre, em causa nacional. No entanto, a escravidão
gerou muitos e muitos dramas, internos e externos, acarretando inclusive
desprestígio internacional do Brasil quando a Inglaterra impôs unilate-
ralmente o famoso Bill Aberdeen, deo triste memória. Navios
negreiros eram pilhados por navios de guerra ingleses dentro dos
nossos portos e levados com suas tripulações para Demerara (na antiga
Guiana inglesa) e para o Cabo da Boa Esperança. Os traficantes de
escravos, argentários poderosos que então dominavam no Rio de Janeiro
e na Bahia, tinham articulações permanentes na Costa da Mina, na
Guiné, em Havana e Lisboa. Muito ouro rolou entre essas praças e
entre esses entrepostos até que Eusébio de Queirós Coutinho Matoso
Câmara com a lei de 4 de setembro de 1850 liquidou o vergonhoso
tráfico de escravos africanos para o território brasileiro. O poder
econômico dos argentários negreiroso conseguiu enfrentar o corajoso
ministro e senador do Império.
Feito o balanço do romance na época do romantismo, verificaremos
que qualidade houve, mas quantidade pouca. O binómio cidade-sertão
desenvolveu-se em função da vida na Corte e nas províncias do Rio
de Janeiro, Minas Gerais,o Paulo, Bahia e Pernambuco. O nosso
romance dessa época sofreu muito a influência inevitável do romance
francês e também do romance português. Ademais, faltou a esse
romance iluminar outras regiões do Brasil e valorizar-lhes figuras
humanas, costumes, superstições e cenários.
II
Caberá ao naturalismo, com a galeria composta por Machado de
Assis, Aluísio Azevedo, Júlio Ribeiro e Raul Pompeia, a linha de
frente, criar um novo processo estético de apreciação da sociedade
brasileira. Todos esses escritores foram, de um modo geral escritores
de cidade; por conseguinte, alheios ao drama do interior ignorado e
esquecido que depois encontrará em Euclides o intérprete amargo
e dramático de um viver anacrónico e supersticioso.
Vejamos uma aproximação curiosa: o primeiro romance de
Machado de Assis, .Ressurreição, de uma secura que poderia parecer
imitada de Mérimée, é de 1872. «Não quis fazer romance de costumes;
tentei o esboço de uma situação e o contraste de dois caracteres; com
esses simples elementos busquei o interesse do livro», explicou
Machado de Assis o que vinha a ser o seu romance. Esse romance
o trouxe nada de novo, tampouco teve excepcional reconhecimento
por parte da crítica. Machado de Assis estreara como contista e seus
contos agradaram. No entanto, em 1881 surgiu o grande romance
naturalista, o romance revolucionário, O Mulato, de Aluísio Azevedo.
Nele se espelha o drama racista pela primeira vez no Brasil, ao passo
TEIXEIRA SOARES
que o romance inicial de Machado de Assis pouco ou nada significou
como avanço ou como conquista de técnica em composição literária. De
um golpe Aluísio Azevedo se transformara em personalidade discutida
e atacada.
O naturalismo teve a vantagem de libertar-nos de uma porção de
preconceitos, porque Casa de Pensão, Cortiço, A carne e o Ateneu
tiveram muitos imitadores. Machado de Assis, mais volvido para uma
sociedade rococó e interessado nas lutas entre temperamentos vivendo
em meia-sombra, analisará os humanos com sua visão amarga que já
se encontra na sua Helena, em laia Garcia e nas admiráveis Memórias
póstumas de Braz Cubas, livros do final do Império ou do começo da
República.
O advento do naturalismo, que foi uma das metas do «Movimento
do Recife», que deu Tobias Barreto, Sílvio Romero, Clóvis Beviláqua,
Nina Rodrigues, Arthur Orlando e outros, incidiu no fortalecimento
da campanha abolicionista e da propaganda republicana. Depois, será
necessário assinalar o mérito de Inglês de Souza, que lançara o seu
romance, o Cacaulista em 1876 e cujos romances estão hoje injusta-
mente esquecidos; teremos Adolfo Caminha, lá no seu Ceará, com sua
«Padaria Espiritual», a escrever A normalista e Bom-Crioulo, romances
de excelente fatura literária; como nesse Ceará, anos depois, Antônio
Sales escreverá um romance de boa qualidade. Aves de arribação. E
surgirão outros romancistas como Coelho Netto, Virgílio Várzea,
Gonzaga Duque, com sua Mocidade morta, Graça Aranha, Domingos
Olympio com sua Luisa~Homem .
Continuava o Brasil a ser um país de poetas, eo de romancistas.
E isto porque o romance continuava a ser um gênero literário que o
bras leiro entendia difícil. Se Coelho Netto, num esforço titânico, nos
deixara uma obra muito extensa, da qual se alteiam Conquista,
Turbilhão, Rei Negro, Inverno em flor; se Inglês de Souza, depois de
haver escrito alguns bons romances espelhando a vida aventurosa do
baixo Amazonas, se alheou à literatura; se Virgílio Várzea, excelente
novelista praieiro, sofreu injusto esquecimento; Graça Aranha iria
trazer uma mensagem nova, a mensagem de Canaã, um romance dife-
rente, um romance que fazia pensar no destino do Brasil.
Quando se fundou a Academia Brasileira de Letras, dos seus
membros fundadores só Machado de Assis, Aluísio Azevedo e Coelho
Netto eram lomancistas. Os demais, poetas ou quase-poetas... Apesar
de membro fundador, Graça Aranha ainda nada publicara. Por conse-
guinte, seu êxito literário de então era obra de amigos dedicados.
O rescaldo da Guerra federalista no Sul, que iria dar a substância
dos livros de Alcides Maya, trouxera imenso desejo de paz e congraça-
mento. Iria o Brasil entrar numa fase de desenvolvimento das suas
cidades litorâneas, antes de mais nada; e de engrandecimento territorial
30
O NOSSO ROMANCE DE ANTEONTEM, DE ONTEM E DE HOJE
por obra da ação diplomática realmente extraordinária do Barão do Rio-
Branco. Esse período de calmaria e de remanso chamado «República
velha» foi de repente perturbado pelo estrondo de Os Sertões, de
Euclides, fabuloso documento literário a revelar outro Brasil ainda
barbaresco com sua jagunçada feroz e dominada pela bruxaria. É uma
grande voz que se alça em prol do Brasil esquecido e semi-desconhecido
do interior; mas do qual Afonso Arinos revelara suas veredas
malassombradas, seus pastores, seus Pedros Barqueiros nas páginas do
Pelo sertão; e nesse Brasil, Alberto Rangel iria encontrar o seu decan-
tado «Inferno verde».
O estouro de Os Sertões atroara através do Brasil inteiro. A gente
que construíra a Madeira-Mamoré sobre uns 40.000 operários mortos;
a gente que presenciara Delmiro Gouveia assuntando a prodigiosa
riqueza de Paulo Afonso e do vale doo Francisco; a gente que
construíra portos na Amazônia e a Estrada de ferroo Paulo-Rio
Grande, essa gente convenceu-se então de que existia outro Brasil,
e que esse Brasil deveria ser explorado, trilhado, descoberto.
Contudo, o romance urbano encontrara em Lima Barreto uma força
nova. Com sua visão desencantada dos humanos, Lima Barreto repre-
sentaria admiravelmente o viver dos humildes, dos barnabés, dos
pequenos burgueses dos subúrbios do Rio de Janeiro com uma arte de
recorte fino que lembraria algo de Tchekov. Lima Barreto, sem ter
aspirado a isso, será o chefe-de-fila de uma tendência literária bem
carioca que dará Théo-Filho (em sua fase inicial, que é a sua melhor
fase), José do Patrocínio Filho, Benjamin Costallat, José Vieira e José
Geraldo Vieira, o autor, dentre outros romances, dessa obra-prima,
A mulher que fugiu de Sodoma, e Marques Rebello. Afrânio Peixoto
estreou com a Esfinge, romance da vida social do Rio de Janeiro e de
Petrópolis na belle époque; mas, depois irá ao coração da sua Bahia
para de lá trazer Fruta do mato e Maria Bonita. Veiga Miranda, escritor
que muito prometia, foi tragado pela política.
Emo Paulo, a «Revista do Brasil», fundada por Monteiro
Lobato, aglutinara um grupo de escritores comoo Vaz, Godofredo
Rangel, Hilário Tácito, Valdomiro Silveira, Carvalho Ramos, o jovem
goiano.o Vaz, um mestre irónico e sutil, será o romancista do
Professor Jeremias, e Godofredo Rangel será o romancista de Vida
ociosa.o Vaz e Godofredo Rangel eram, ademais, estilistas de
primeira ordem.
No entanto, continuava o Brasil culturalmente dominado pela
influência europeia representada pelo que ela possuía de mais conven-
cional, mais artificial, mais conservador (no pior sentido da palavra).
Essa influência procedia de Paris como um holofote poderoso a iluminar
as cidades brasileiras. Era, pois, natural que se rendessem homenagens
a Paul Bourget, D'Annunzio, Pardo Bazán, Pereda Valdês,a de
31
TEIXEIRA SOARES
Queirós, Fialho de Almeida. País jovem, o Brasil vivia imerso no
passadismo da imitação.
Um mundo diferente desse mundo convencional fervia e refervia
de ideias estéticas inteiramente novas tanto em Paris, como em Roma,
Berlim, Londres e Nova Iorque. Era um mundo de rebelião estética,
que encontraria no cubismo revelado por Guillaume Appolinaire
(também excepcional poeta da língua francesa), na poesia de T. S.
Eliot, nos dramas poéticos de W. B. Yeats, na escultura de Rodin
e Mestrovic, na música de Erik Satie, de Honnegger e do Grupo dos
Seis, mundo de rebelião estética que acharia nesses criadores de
beleza, caminhos novos de libertação estética. A exaltação dos ritmos
e das formaso pertenceu apenas à literatura; estendeu-se à música, à
pintura e à escultura. O cinema se transformará, anos depois, numa
verdadeira arte, uma arte nova. Essa prodigiosa rebelião estética,
realista e lírica ao mesmo tempo, alastrou-se ao mundo inteiro, com
maior ou menor intensidade. No Brasil de 1922 a «Semana de Arte
Moderna» valeu como um terrível choque e como o ponto de partida
de novas tendências estéticas, educacionais, sociológicas e até mesmo
científicas. Então o Brasil aprendeu a conhecer-se a si mesmo, olhou-se
a um espelho e imaginou que a realidade brasileira era imensamente
complexa, colorida e misteriosa. Lá das montanhas de Roraima,
Macunaíma descera para fazer a sua pagodeira e representar o papel
de um novo Malazarte. Convenceram-se os modernistas de 1922 e os
que vieram depois que o Brasil teria de renovar-se dos alicerces à
cumieira.
Nessa obra de renovação, iniciada em 1922 e prosseguida com
afinco desde essa data, o romance teve ação destacada. 1 endências
novas sulcaram o solo literário como arados pesados. A gente jovem
dedicou-se à descoberta das raízes da magia musical brasileira. Desde
logo surgiu Villa-Lobos, o audaz renovador musical, o renovador mais
profundo de 1922. Aprendeu-se então que a música popular brasileira
tinha tesouros que valiam como aquelas folclóricas panelas cheias de
moedas de ouro. As pesquisas de folclore, iniciadas pelo grande Sílvio
Romero, proporcionaram os estudos de Mário de Andrade. Um lirismo
novo, irónico, sutil e profundo ao mesmo tempo, nos deu um
Bandeira, um Drummond, um Vinícius, um Quintana, cataventos indi-
cativos das correntes do movimento poético nacional.
A partir de 1922, o romance tornou-se variado. Mas seria o caso
de se perguntar: o romance se tornou profundo, se tornou inovador,
se tornou mensagístico?
A pergunta está feita, porque há sempre o receio de que a facili-
dade crie a repetição, e a repetição engendre o desinteresse. Sem
dúvida o romance se tornou variado, e mesmo até rico de matizes. O
romance do Nordeste, que nos deu um José Américo, um Graciliano
O NOSSO ROMANCE DE ANTEONTEM, DE ONTEM E DE HOJE
Ramos, um José Lins do Rego, e um Ariano Suassuna, já se cansou
um pouco; enquanto os baianos, como Jorge Amado e Adonias Filho,
abrem trilhas novas através da mítica popular. Lá no Maranhão temos
Josué Montello com essa obra-prima que é o Cais da Sagração. Minas
Gerais, com Lúcio Cardoso, Guimarães Rosa, Fernando Sabino, Oto
Lara Rezende e Autran Dourado mantém as tradições de uma literatura
rica de paisagens variadas, de tipos populares e de campos gerais
imensos onde pastores cuidam dos rebanhos e se empenham em descantes
festivos. É preciso reler A Barca dos Homens, de Autran Dourado.
Tem sortilégio insidioso. Mas, a densidade dramática da Crónica da Casa
Assassinada, de Lúcio Cardoso (1963), é uma espécie de peçonha que
se infiltra na imaginação do leitor eo o deixa mais. O Estado
do Rio com Carlos Heitor Cony e Campos de Carvalho concilia o
realismo dramático de um com a visão picaresca da vida do outro,
ambos excelentes criadores de ficção.o Paulo nos deu Paulo Setúbal,
com seus romances históricos que tiveram voga; Plínio Salgado, com
os lineamentos fortes do Estrangeiro, Menotti del Picchia, também
romancista; e pena foi que Mana Maria, o romance de Antônio de
Alcântara Machado, tivesse ficado incompleto. Do Rio Grande do Sul
a figura mais destacada é sem dúvida Érico Veríssimo, escritor consa-
grado por uma obra muito extensa e muito popularizada através do
Brasil inteiro. O romance urbano, com nomes representativos como
Mário Donato, José Geraldo Vieira, Gastão Cruls, Gustavo Corção,
Octávio de Faria, procura ser livre para poder transmitir uma mensagem
universalista. Este será o caso de Octávio de Faria com sua obra
cíclica, poderosa, sombria, de um avassalador maniqueísmo. E onde
enquadraríamos escritoras como Raquel de Queirós, Dinah Silveira de
Queirós, Maria Alice Barroso, Nélida Pinon e Clarice Lispector,
romancistas de primeira água? Nessas escritoras se encontra um prodi-
gioso processo de superação técnica (como é o caso de Lispector);
uma poetização profunda do meio ambiente nordestino (como é o caso
de Raquel de Queirós); uma fabulação entretecida de rude realidade
com profunda magia (como é o caso de Dinah Silveira de Queirós);
um descarnamento sombrio da luta dos sexos (como é o caso de Nélida
Pinon); o choque violento de almas primitivas com indivíduos sofisti-
cados pelo mando (como é o caso de Maria Alice Barroso).
A poderosa massificação dos meios da irradiação televisionada
está esmagando pouco a pouco a liberdade do romancista, que procura
a todo o transe ter seu público. O exemplo surpreendente de Jorge
Amado, poderoso romancista, lido de Norte a Sul, discutido e comen-
tado, vale como um exemplo isolado de gigantismo literário. É um
escritor que tem um público que ainda lhe é fiel. Quando se pensa,
porém, que o êxito espantoso das comédias ou novelas da TV afasta
milhares e milhares de possíveis leitores da compra de livros em
livrarias; e quando se pensa que os próprios editores se arreceiam de
TEIXEIRA SOARES
lançar livros de autores inéditos ou de autores que aindao tiveram
uma consagração especial, então poderemos imaginar que o nosso
romance corre sério risco. De um lado temos o rolo compressor da
TV sobre um público que só precisa ter olhos e ouvidos para entender
pouca coisa, e que nem precisa ser alfabetizado, basta ter olhos e
ouvidos para entender alguma coisa; do outro, temos certos receios de
editores que preferem publicar traduções de êxitos ocasionais de livraria
na Europa ou nos Estados Unidos, a publicar originais brasileiros. Por
conseguinte, é desanimador que o romance brasileiro, na presente quadra,
esteja sofrendo todas essas tremendas limitações que estão estiolando
o talento criador e lesando a própria dignidade da obra de arte, isto é,
do romance. E fala-se tanto e tanto em comunicação, como se o romance
brasileiroo fosse um esplêndido instrumento de comunicação de
massas e de elites. Esperemos que um bem orientado esforço de reedu-
cação venha a repor o romance no seu devido lugar e prestigiá-lo com
o apreço do público instruído. Assim, teremos o romance brasileiro
em mais ativa floração e na busca de novos padrões de originalidade
criacionista.
J. DE ALENCAR
IRACEMA
LENDA DO CEARÁ
RIO DE JANEIRO
TYP. DE VIANNA & FILHOS, RUA
D'AJUDA N 79
1865
MEMORIAS POSTHUMAS
BRAZ CUBAS
POR
MACHADO DE ASSIS
RIO DE JANEIRO
1881
TYPOGRAPHIA NACIONAL
MENINO DE
ENGENHOS
JOSÉ LINS DO REGO
(Novela)
1932
RIO DE JANEIRO
GRACILIANO RAMOS
VIDAS SECCAS
ROMANCE
Capa de Santa Rosa
LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA
RUA DO OUVIDOR, 110 E 1º DE MARÇO.13
RIO -1938
C) Conto Folclórico
Experiências de pesquisa no Equador
Notas sobre o Informante, a Coleta, o Pesquisador a Transcrição,
a Crítica, a Classificação e a Importância
do conto folclórico
PAULO DE CARVALHO-NETO
C
ONDENSAMOS neste trabalho as nossas experiências de pesquisa
do conto folclórico, com as quais obtivemos o nosso livro Cuentos
Folklóricos del Ecuador. (*) Antes de escrevê-las, tivemos a
oportunidade de expô-las na reunião do «Second Latin American Summer
Institute of Folklore», celebrada na Universidade da Califórnia, em Los
Angeles, em 14-14 de junho de 1967. Também na sessão do dia 27
de setembro daquele mesmo ano, na Sociedade Chilena de Antropologia,
em Santiago. E, finalmente, em conferências dadas nas universidades
argentinas de Mendoza, Córdoba, Santa Fe e Rosário, em junho-julho
de 1968. Estas repetidas exposições e trocas de ideias com numerosos
colegas entre outros, Ralph S. Boggs, Aurélio M. Espinosa hijo,
Stanley L. Robe contribuíram a sedimentar as nossas meditações e
a dar-nos ânimo de publicá-las. Pude havê-las enriquecido com citações
(*) Cuentos Folklóricos dei Ecuador. Tomo I. Quito: Editorial Universi»
taria, 1966. Em principio, há mais três tomos inéditos, aproximadamente.
PAULO DE CARVALHO-NETO
e comprovações bibliográficas, porém quis me limitar às minhas próprias
experiências, de maneira a imprimir a este ensaio o caráter de uma
autêntica contribuição original à problemática do conto folclórico. Espe-
ramos que ele seja útil a estudantes, colegas e público em geral.
O INFORMANTE
Suas Características
O primeiro passo do pesquisador de contos folclóricos consiste em
dar com o informante. Descobri-los, saber quemo e aonde estão,
representa um longo processo de busca. «Quem sabe contos neste
povoado?» E damos exemplos de «contos» para que fique bem claro
o que queremos. Se em tal povoado mora a pessoa que desejamos
encontrar, todos o apontam. É este o quadro, quando se trata de
localizar um autêntico informante de contos folclóricos, noutras palavras,
alguém que ainda exerça a função social de «Conversador», contando
para isto com auditório certo. (*) Mas quandoo se tem a preo-
cupação de se trabalhar, unicamente, com verdadeiros informantes,
então varia o processo de procura. Jáo se pergunta: «Quem sabe
contos neste povoado?» E sim: «O senhor conhece este conto?» E
tal pergunta é feita a cada um. E em cada povoado sempre há alguém
que recorde contos, narrando-os, de tempos em tempos, em oportuni-
dades plenamente «ocasionais». É evidente que tais peçasoo
perfeitas. Em consequência,o satisfazem o pesquisador do verdadeiro
conto folclórico.
Embora pareça incrível, portanto, ainda é possível, em nossa época,
descobrir informantes «profissionais» de contos folclóricos. E do mesmo
modo que se usa a voz «Curandeiro» para o informante de medicina
popurar, ou «Cantador» para o de folclore poético, também o narrador
de fiação oral-tradicional recebe a sua designação específica. Diz-se
«Conversador» na Costa equatoriana, sobretudo em Engabao, o povoado
de nossa pesquisa. (*) Quando nos afirmavam que «Don Vera es un
Conversador» isto significava, solenemente, que o povo lhe conferia
o título de «romancista» oral, de «escritor» à maneira deles.
Convém insistir, pois, num processo para diferençar o narrador
profissional de conto doo profissional ou casual. Tal processo, a
nosso ver, consiste em verificar se o informante é portador das seguintes
características, próprias do narrador, profissional: a) Ser ancião; b)
Ser chamado para reuniões; c) Saber um repertório rico e variado; d)
Trazer a memória em dia; e) Conhecer gêneros afins; f) Saber as
peças de maneira completa; g) Ser analfabeto. Possuindo estas
(*) Recebe o honroso título de «Conversador», na Costa equatoriana, o
narrador «profissional» de contos folclóricos.
(*) Engabao: paróquia do «Cantón» Guayaquil,. Província de Guayas.
O CONTO FOLCLÓRICO
características, necessariamente o «Conversador» ainda se distingue pelo
fato de existir em escassa quantidade. Ser encontrado pelo pesquisador
é um verdadeiro descobrimento.
o é necessário entrar em pormenores. Na leitura do Vol. II
dos nossos Cuentos Folkíoricos Del Ecuador, podem ser observadas as
peças narradas por Don Vera. Trata-se de um informante perfeito de
contos folclóricos, valioso exemplo para a problemática da pesquisa de
contos. Sendo analfabeto,o há em seus relatos a mais mínima
possibilidade de intercalação de modernas palavras eruditas ou de
trechos livrescos; vale-se unicamente de sua memória, enriquecida por
via oral. Ele emprega vozes que até ignora o sentido, simplesmente
porque «así he oído» ou «así es el caso». ..o sabe, por exemplo, o
que quer dizer «sierpe» ou «sierpa», ou «cofre de oro», ou «ninfa»...
Certa vez, interrompeu a sua estória para me perguntar: «Patrón è qué
es cofre de oro?»
O seguinte diálogo, mantido com Don Vera e Don Agapo depois
do registro de «El pájaro de los buenoh aireh», ilustra o grau de
instrução dos meus informantes e o processo de transmissão oral dos
contos folclóricos:
«Yo: Me diga una cosa, Don Vera. ;,Qué es talega 'e plata?
Don Vera: Eso si, mi patrón, yo no Ío puedo 'ecir porque en mi edad
que llevo yo no he visto, no conozco qué será una tale... oigo decir, no? «talega
'e plata», ipero qué será? no comprendo qué cantidad será. ..
Don Agapo: Bueno, eso debe ser en una forma, como decir,. una maleta
llena 'e plata...
Don Vera: Será, pueh? eso si...»
O VELÓRIO COMO OCASIÃO DE «REFÚGIO»
o os velórios, quase sempre, as reuniões para as quais os «conver-
sadores»o solicitados. Usando um termo introduzido em antropo-
logia por Gonzalo Aguirre Beltrán «refúgio», diria que o velório
é uma «ocasião de refúgio» do conto popular. Isto nos ajuda a trans-
mitir ao leitor a ideia de que o verdadeiro conto se apega ao velório
como tábua de salvação, «refugiando-se» nele para subsistir ante o
avanço do progresso. Exato; em vista de que a rádio aindao invadiu
os velórios, a função cumprida pelo «conversador», em tais ocasiões,
ainda permanece intacta. Aparentemente, tal função é a de «manter o
público desperto», para usar uma expressão de Don Vera. Por certo
que por detrás disto há também a pura e simples curiosidade intelectual
do conto pelo conto. Mas esta curiosidade é sempre secundária e a
prova é que a arte de narrar e escutar contos, nos lares, em circunstâncias
correntes, já quase desapareceu. Esta é a triste realidade, pelo menos
em Engabao, onde qualquer choça humilde abriu suas portas aos apare-
lhinhos transistores. Don Vera nos confessou queo consegue mais
PAULO DE CARVALHO-NETO
despertar o interesse de sua própria família, inclusive, porque esta vive
pendente da transmissão do futebol, ou de músicas da moda e até
mesmo de notícias nacionais e internacionais, quandoo novelas radio-
fónicas. No momento em que a novela de rádio for admitida no
velório, a morte do conto será total,o por falta de interesse, mas por
falta de ambiente.
O «velório» nos ajuda a compreender, ainda, a extrema seriedade
com que é tratado o conto popular. Se a rádioo penetrou no
velório, até agora, é porque é tida como fator de desrespeito em situação
o circunspecta. Claro: pois ela transmite slogans, propaganda,
canções... tudo quase ao mesmo tempo, sem seleção para tal ou qual
situação. Um programa estritamente planejado para velórios, é possível
que tivesse aceitação. Constituem fatores de respeito, pois, o conto e
a figura do «conversador». Daí a consideração e a admiração quem
por Don Vera, em Engabao.
Mas todos sabem, também, que Don Vera é um poço de anedotas
cheias de graça, picarescas e verdes. Os chamados «cachos». E
quando querem rir à vontade, recorrem a Don Vera, mas somente fora
do velório. E como fora do velórioo há tempo suficiente para
longas narrativas, o «cacho» necessariamente é um gênero curto. Don
Vera nunca se arriscou a contar «cachos» em velórios de adultos; seria
um escândalo. Nos velórios de criancinhas, sim, pode fazê-lo, e o faz
desde remotos tempos. Pois os velórios de anjinhos, por norma,o
ocasiões de festa.
COMO CONSERVÁ-LOS
Na pesquisa de contos, à procura do informante deve-se acrescentar
outro cuidado, inexistente na pesquisa de outros gêneros folclóricos.
Refiro-me à «conservação» do informante.
Noutros gêneros, o informante presta o seu serviço e pode ir
embora; nos contos, no entanto, sendo ele insubstituível é necessário
que fique informando por muitos e muitos dias, até esgotar seu patri-
mônio. Como retê-lo? Como induzi-lo a colaborar, roubando o seu
tempo? Eis aqui a solução: 1) Pagar-lhe; 2) Contrair amizade;
3) Permitir que ele escolha as horas que mais lhe convêm.
O pesquisador deve mostfar-se muito cauteloso durante o paga-
mento, pois tanto pode conseguir a colaboração que deseja como deitar
tudo a perder. Representa uma técnica saber como atrair o infor-
mante pelo dinheiro sem lhe despertar a ambição, isto é, evitando-se a
«chantagem» por contos. Raras vezes se deve proporcionar dinheiro
ao contado; é preferível dar presentes: chapéus, calças, camisas. . . tudo
novo e comprado na mesma área em que vive o informante. Levando-se
roupas da Capital, o informante as aceita maso as usará, poiso
quer ser «diferente» ou o clima o impede. Causam-lhe reações adversas,
O CONTO FOLCLÓRICO
portanto, o modelo e a cor do traje, considerando que os povoadoso
bem conservadores. Em consequência, as roupas de seu agradoo as
de seu próprio povoado. Além disso, elas lhe permitem avaliar o preço
do «presente». Nessa entrega, o pesquisador tampouco deve agir de
uma só vez, É melhor ir comprando pouco e presenteá-lo cada dois ou
três dias, fazendo-o sentir que eleo está perdendo o tempo por ter
aabndonado suas tarefas normais a fim de atender à gravação.
De nada vale o «pagamento»,o obstante, sem a amizade. É
necessário que o pesquisador se torne amigo do informante, entregando-se
de coração aberto com o propósito de eliminar suspeitas sem fundamento.
Também é necessário estar de acordo com o horário de pesquisa
marcado pelo informante, quer seja manhã, tarde ou noite. Aquio
m muita razão aqueles colegas que insistem em criticar as coleções
obtidas fora do momento exato de suas vivências. Em matéria de
contos, por exemplo, seria preciso esperar uma eternidade a fim de
reunir uma amostra significativa, de determinada área, posto queo
se verificam mais do que dois ou três velórios por mês, sendo que em
cada qual o Conversadoro consegue narrar mais do que oito ou
dez contos, incluídas as repetições a pedido. Além disso,o seria em
todos os velórios que o pesquisador poderia usar o gravador.
É ainda problemático, portanto, o tema do registro «vivencial» do
conto popular. Mormente nos países sem recursos electrónicos, onde
é impossível «limpar» as fitas gravadas em reuniões, isto é, eliminar-lhes
os sons excedentes: gargalhadas, diálogos adjacentes, ruídos de porta
abrindo e fechando, superposição de palavras e frases.
OS MEUS INFORMANTES
Até agora, tivemos 35 informantes nos nossos Cuentos Folklóricos
dei Ecuador. Foram tantos assim, porque os do Primeiro Volumeo
todos eles «ocasionais» ou «casuais», segundo a referida acepção.
Em consequência, só nesse Primeiro Volume, trabalhamos com 28 infor-
mantes, interrogados e fichados pela nossa equipe de estudantes, em
processo de treinamento. Do Segundo Volume em diante, até o conto
nº 118, somente houve três informantes, sendo que dois deleso os
«Conversadores» informantes profissionais Don Vera e Don
Agapo. Do conto nº 119 ao nº 139, voltamos a entrevistar informantes
o profissionais, num total de quatro.
Estudando-se estes volumes se comprova a existência daquelas
«características» indicadas. Assim, os informantes ocasionais foram
pessoas adultas, maso anciãos, e só narravam de tempos em tempos
sem que necessariamente fossem convidados para «entreter» reuniões.
Noutras palavras: avós, tios, compadres, vizinhos, empregadas. Propria-
menteo «conversavam», pois quem sabe duas ou três peças, c
incompletamente,o é um «Conversador». Conversador propriamente
PAULO DE CARVALHO-NETO
dito só tivemos Don Vera, «veterano» ou «veteranito» de setenta e cinco
anos, venerado por Don Agapo, seu discípulo e provável continuador.
Vale dizer que Don Agapo vem fazendo «um curso» oral e gratuito
para obter o título de «Conversador». Chegado o momento, Engabao
conferir-lhe-á esse título, de modo natural. Don Vera e Don Agapo
o autênticos repositórios de antiguidades, praticando sua arte com
frequência. Conhecem, cada um, mais de trinta ou quarenta contos
diferentes entre si, além de gêneros afins: advinhas, provérbios e versos.
Poder-se-ia daí concluir que os volumes restantes dos nossos
CUENTOS possuem mais valor do que o Volume Primeiro, conside-
rando queo o produto de um inigualável «Conversador»? Diríamos
que sim, se apreciamos o conto como conto. Pois aqui, cada peça está
compita, ou quase completa, tendo prólogo e epílogo, peripécias e
suspenso, mensagem final. Compare-se, por exemplo, o «Juan del Oso»
(nº 77) com o «Juan Oso» (nº 3) e se poderá ver as enormes defi-
ciências dos informantes ocasionais. Se o que pretendemos, no entanto,
é ter uma ideia do grau de supervivência de cada conto, entãoo há
razão para se considerar o referido Primeiro Volume interior aos demais.
Efetivamente, mede-se esse grau de supervivência pela circulação de um
conto «de boca em boca». Noutras palavras, o «grau de supervivência»
de uma peça folclórica está na razão direta de sua «popularidade».
Esta popularidade, no entanto, pode ainda ser avaliada peia pressão do
público ouvinte sobre o «Conversador». Quando o público exprime uma
preferência sobre tal ou qual peça inadvertidamente está valorizando-a.
Em nenhum dos nossos volumes até agora (até o conto nº 139), tivemos
a preocupação, infelizmente, de «medir» essa pressão do público ouvinte.
Ela teria que ser medida peia quantidade de pedidos sobre cada peça.
As peças desinteressantes nao sobrevivem no Folclore. O povo é um
critico exigente.
Dada a nossa despreocupação em anotar a frequência dos «pedidos»
situação impossível fora dos velórios — o nosso Volume II e seguintes
(até o conto nº 139)o superam o Volume Primeiro na medição da
popularidade. Para compensar esta falta, numeramos os contos na
medida em que foram narrados, pois os mais popularizados semprem
no começo, isto é, estão à flor da memória. Contudo, se de uma falta
grave padece o nosso Volume I, esta há sido a colheita manuscrita, sem
uso do gravador.
Devemos acrescentar que o leitoro faz uma ideia da emoção
enorme do pesquisador ao descobrir um «Conversador». Encontrar um
narrador profissional de contos, em pleno Século XX, com a rádio e a
televisão operando mudanças radicais na cultura rural dos pequenos
povoados, causa a sensação de se viver na Idade Média, presenciando
as idas e vindas dos menestréis, de casa em casa, oferecendo beleza e
felicidade. Foi o que sentimos com Don Vera. Gravamos-lhe 39
contos, classificados por ele próprio em «casos largos», «casitos» e
O CONTO FOLCLÓRICO
«cachos», os quais formarão uma coleção à parte. O «veteranito» de
setenta e cinco anos trabalha carregando água no seu jumento «su
pollino» y «conversando» quando o convidam. «Conversar» para
ele,o é só prazer, é também trabalho, pois às vezeso se encontra
bem disposto e tem que ir de todos modos a fim de garantir o êxito do
velório porque «la gente Ío espera». E fica por, nos velórios, das
sete às doze, se acontece que o povo durma apesar de tudo. Quando
ninguém dorme, ele amanhece contando contos, pois ele próprio nunca
dorme quando «conversa». Esta é uma condição fundamental do «Con-
versador»:o sentir sono durante o seu trabalho. Nessas noites
memoráveis, relata dez casos por velório, aproximadamente.
Em nossa coleta, empregamos três horas diárias, com ambos
Don Vera e Don Agapo, geralmente das três às seis da tarde (pôr
do sol), obtendo um total de 11 fitas em 30 dias, com descanso nos
sábados. Isto é: 33 horas de gravação, 5.940 metros de fita, 57 horas
de intervalos e prolegómenos. Assim:
Agosto
"
"
"
*'
"
7
8
9
10
11
12
14
15
16
20
21
Domingo
Segunda
Terça
Quarta
Quinta
Sexta
Domingo
Segunda
Terça
Sábado
Domingo
9 12.30
9 12.30
3 5.30
3 5.30
3—6
3- 6
3—6
3—6
3—6
6 7.30
8.30 11
Engabao
"
-
»»
"
"
"
Playas
Engabao
Etc, etc.
Eo chegamos a esgotar o repertório de Don Vera!o obstante,
ele nos disse ao despedir-nos:» |Mi patrón se lleva toda mi ciência!» No
último dia, minha esposa foi convidada para «cortar lah uña» de seu
neto recém-nascido e desta forma nos «compadramos» com o seu genro.
o é esta a regra, no entanto, pois há informantes com quemo se
consegue a menor intimidade. Entre os indígenas da Serra sempre nos
foi mais difícil vencer as barreiras psicológicas da pesquisa; na Costa
quaseo há desconfiança.
A COLETA
A «Matéria-Documento» e a Não-Documento
Neste ensaio, só tratamos dos aspectos mais recentes da pesquisa de
contos ou daqueles que, sendo já conhecidos, refletem novos brilhos sob
nossa análise. Tal é o caso da «matéria-documento» e dao documen-
to. O pesquisador que usa gravador deve fazer empenho por diferen-
çá-las, a fim deo arquivar o supérfluo. Tal percepção crítica é
recomendável, inclusive, para o pesquisador que possui recursos econô-
PAULO DE CARVALHO-NETO
micos, pois de todos modos lhe seria um estorvo a conservação de fitas
e mais fitas com matéria não-documento. Há folcloristas propensos a
guardar tudo, juntando verdadeiros depósitos de inutilidades. Nalguns
casos, esta seleção se apresenta com muita sutileza, dependendo da
sensibilidade do estudioso. Matéria documentária é toda aquela que
o pode ser substituída. Exemplo: o conto, as entrevistas prévias ou
posteriores à coleta, os dados complementares. Documentação em
folclore é, pois, somente o «fato concreto», além dos «testemunhos».
Sobram as descrições do pesquisador, suas considerações pessoais, suas
«notas» orais, tudo aquilo que for um meio de ação e nunca um fim
em si mesmo.
Entra em jogo neste critério, portanto, a ideia do «colecionismo»,
segundo a qual so constitui «coleção», em folclore, o folclore poético
(canções, romances, provérbios, adivinhas), o folclore narrativo (mitos,
lendas, contos e casos), o folclore linguístico, o folclore musical. Jogos,
festas, família, arte popular, transporte, indumentária, magia, medicina
popular. .. e tudo o demaiso seria, propriamente, matéria-documento,
sempre e quando fossem impressões do próprio pesquisador.
Eis alguns exemplos de «matéria-documento» constante de «teste-
munhos». Testemunhos valiosos sobre a importância dos contos reco-
lhidos; páginas de psicologia popular, através das quais se pode julgar
a sinceridade do informante:
I. De como D. Vera declara que no inventa, que es «conversador» en los
velórios, etc.
«Ahora, Sr. Vera, me diga uma cosa, Usted como aprendia estos casos?
Ihhh!... Yo era joven pue', scnor, yo rode por Iah montana', por allá
y por allá i'an hombre' que conversaban también muchos desto. Y uno pue',
así, muchacho pue' pone curiosidad en !a cabeza.
Y aprende.
Aprendi pue', ^no ve que por ahí rodaba por esas parte'?
Es decir que estos cuentos, entonces.. son de los antiguos...
De los antiguos, claro, arguno' d e'lo' eh de los antigo'. De joven aprendi
argunos caso , y ahora na'a tengo aprendido arguno.
íY donde aprendió?
Por aqui, que conversan arguna gente, yo,. pues, como se me vienen a la
cabeza se me quedar..
Se quedan.
Se me quedan si.
Pêro, la gente no inventa?
INoooo! Arguno no. Iiihhh... yo mi'mo que converso, dicen: «ICaramba!»
Yo le digo: «na'a aprendemo' hoys>. Yo oigo, pêro na'a se me queda. Y yo
tenia mucha cabeza.
;,Usted no inventa?
No. no.
Siempre...
Siempre así no ma', Sefior. A 'a decir, a la memoria.
... de los afios...
Así eh, Senorito.
Ah, muy bien.
O CONTO FOLCLÓRICO
Allá Ío mi'mo me conocen y por ahí «venga acá, me converse tales cosa'»,
ahí le' converso. No vé que yo les converso esto., me conocen?
Es decir, que Ud. es ilamado para conversar eso...
—Si. me llaman la gente por ahi, cuando...
iY a donde llaman Ud. para...?
Por ahi, las casa' para que le destraer hacer por ahi, perder el suefio un
rato
iEn los velórios?
En los velório', si, cuando se muere un cadáver también me llaman.
j, También llaman?
Si, también me llaman paia que vaya a destraer la noche.
iY Ud. queda conversando hasta qué horas?
Ihh... logo me vengo a medianoche, doce 'e la noche. En veces, también
'manezco.
iAh, si?
Si, 'manezco.
j,Y cuáles son las otras personas que conversan casos aqui?
Sí me dan, pue. Y luego me argo asi, se toma así... comida,, que hacen
para la noche, r.hi, café y to'o.
Y cuáles son las otras personas que conversan casos aqui?
Aqui no. Este Agapo, ese que vino el otro dia, pêro él dice pue, que
arguno sabe,, pêro no sabe mucho porque dice que se orvida.
íY él aprendió con Ud.?
Si, porque yo he conversado, to'os eso' por ahí luego ello mi'mo me llevan
a conversar. Ahora mi'mo el otro mes se le murió un angelito en su casa me
mandaron a llamar...
Y ahí Ud. cuántos conversa por la noche?
Ihhh... por la noche converso hasta que ya me vengo, pue, Ío que prcanzo
a conversar. Ya despuées me vengo, pues,-. i,no ve que allá están en velório, cnen
durmiendo? Ya mien... yo si me voy también a achar mi suefio. «iQué dice,
Sefior, yo... ojalá me acompane». Asi le digo (a) ello'. «Yo quiero una
persona que me acompane porque yo cuando estoy conversando a mi no me da
suefio». le digo. «Y quiero que me acompañe, pue', al amanecer». Se
duermen, medianoche ya están.
Cuántos casoss o menos Ud. cuenta por velório?
Ihhh... a un velório me converso mis diez. . . mih ccho, otross largo'
caso'. Porque hay unos caso's corto'. De to'o hay en la vida, caso', ;,no?
De to'o hay. Aqui hay unos caso', vea, Senor, le voy a conversar a Ud. de to'o,
no? y yo me da ni sé qué conversa'le a Ud. pêro en otra parte' yo le converso
y la gente le cae... Hay caso' del hijo que enamoro a la madre; hay caso dei
muchacho que enamoro a la tia, to'o; hay caso' del joven' que enamoran a las prima',
de to'o hay. Y yo les converso, pue',. por ahí y ya ello' saben, pues, me dan
a entender, dicen: «Converse ese tar caso». Ay, me saben conversar. Bueno, y
por eso, pues, yo me entretengo, porque... arguno' hay. Hay otro casito que
llaman cacho,, son chiquito. Eso' hacen reír mán. Pêro son... dicen uno, por
aqui le llaman dicen son colorado. Ajahh, pêro la gentes dicen:
«Converse». Es qu' eso' hacen reír. Si...
Qué es Ío que a la gente le gusta más? Es este caso así?
Los caso' y los cacho... Los caso' por largo. ..
õY los nifíos escuchan estos casos?
Si, argunos, porque andan por ahi, muchachos y luego se llegan. iY ve
el ctro dia que 'taban ahí como se llegaron muchos. Sí...
6 Les gusta?
Le' gusta', pue' Yo he tenido cabeza par 'esas cosa' mucho. Y yo
no sé leer, patrón.
i>No sabe?
No sé leer. Muchos me preguntan,. vea. Yo l'engafio. áUsté tiene libro?;>
PAULO DE CARVALHO-NETO
Le digo: «Si». Dirán que tengo libro. No. Porque hay libro' d'eso. Si, hay
libro', Sefior, si. Y yo no tengo.
&Y Ud. aprendió así de oir?
Ah, de orír, si, por la cabeza que...
Pêro, & desde nifío?
Si, de joven ya empece a prender. Si, de joven.
De joven ya empezó a contar.
Ya, a contar, yo conversabe Ío que aprendia por ahí.
.'Son lindos.'...
Como no, Sefior, si...
£lld. es muy conocido por aqui?
Iiihhh... to'ito en Playa', to'ito me conocen por mi nombre, uo mi'mo la
persona. To'o' eso' lugare' por aqui. Antihora (antes, ahora) ya no sargo cast
cuanto si andaba andaba pondequiera (por donde quiera), i'a por ahi; por allá no,
poço. Por ahí en la' casa".
Siempre conversando.
Si, yo de siempre...
Es decir, que así ai mes £cuántas veces Ud. conversa?
Aqui, por aqui en el pueblo converso arguna' treh vece' cuatro vece»
porque poço sargo. Cuando me invitan es que voy. Ahí me voy.
«Y le invitan de otros pueblos?
De otros pueblo', no. Aqui en Playa', si, luego. Donde ahí donde me
conocen si, me hacen conversa.
De Playas iy de qué otra parte le invitan?
De por aqui no máh, por otras partes leja' no. íPara qué, Sefior?
!Ah, si!
No, no. . .
Pêro de Playas.
De ahí si: «que vamo', dice para que nos converse». «Bueno».
digo.»
II. Noticia sobre el veteranito D. Pedro Garcia, ya làllecido, gran conversador
de casos en Engabao, antiguamente.
«Yo:
Ud. ide quién Ío aprendió?
Don Agapo:
No, ese fue de un viejito... que ya falleció, que se llamaba Pedro.
Don Vera:
Ah, Don Garcia... Si, si.
D. Agapo:
Y él me contaba y yo ese tiempo era muchacho [àpueh, no?] iihh... me
contaba de infinidade' de cuento'.
D. Vera:
Si, sL sabia, sabia...
Yo:
De Engabao también?
D. Vera:
Si, de aqui era. Fero él también habia sido hombre andante por otro la "o,
por ahí habia aprendido.
D. Agapo:
Yo me sabia toditito...
O CONTO FOLCLÓRICO
D. Vera:
Si, Ano?
D. Agapo:
... eso' caso' y m'olvidado...»
III. Noticia sobre el conversador Ronquillo, de Mamey. (Diálogo con D. Agapo,
después de narrar el caso «El Padre envidioso»):
< iY Ud. aprendió de cuándo, esto?
Eso ya aprendi casi cuando yo estaba como el nifio. (N) Eso me conto...
Yo, oiga. si yo... conforme sabe D. Vera se puede 'ecir que yo he aprendido más,
si no que D. Vera se le queda porque D. Vera siempre como es un Seflors
edad, A
no
? él anda por ahi conversando, por ahi le llevan y entonce él... ya se
ie viene [pueh]. Y yo. desde que yo apriendo yo ya no salgo más, no, yo
uo converso. Si ando por ahi, pero yo no...
Pêro Ud. tiene que conversar, porque es una cosa tan linda, tan linda,
después no hays quien converse...
Eso es. Eso yo aprendi tiempo, yo he andado también por argunas parte'
y por ahi...
Pêro Ud. ya converso este cuento alguma vez?
No, A aqui?
Si.
No, aqui no The conversado.
¿ como se acordo?
Yo asi pensando m'he acordado. Y también ese tiempo me conto cuatro
conto este seflor, porque ya fue, talleció, que llamaban por acá de un punto que
llaman Mamey.
¿Como se llamaba el señor?
El senor se llamaba este... ¿cómo llamaba este? Pêro al apellido era
Ronquillo. Ronquillo era el apellido. ¿ Como llamaba este señor?
Ahora, ¿ este es caso o es cacho/
No, casito es.
Casito...
Casito es, si. Humjunnnn...»
IV. De como D. Agapo declara que el cuento Rey Molma con la Reina Mora
..... no es de Engabao:
«Yo:
Muy bien, A'errainó, no?
Agapo:
Si.
Yo:
Ah, esto quiero saber. Este no era de aqui...?!
Agapo:
No.
Yo:
¿ De donde era?
Agapo:
Este cuento lo aprendi en Montecristi.
(N) Se refiere a mt hijo Arthur, de doce años.
PAULO DE CARVALHO-NETO
Yo:
Ah, ?Montecristi? Ahhummm!.. . ?Y los demás que Ud. conto, los aprendió
aqui?
Agapo:
Aqui, si.
Yo:
Solo este que no.
Agapo:
Si, este que no.
Yo:
Ahh. .. ?Hace raucho tiempo que aprendió este allá?
Agapo:
Si, hace a lo meno' unos doce... doce o trece ano' por ahí asi. O algo
más... ,
Yo:
Aqui no existe este... de la Mondonguera.
Agapo:
No, no...
D. Vera, vehemente:
No!
Yo: i
No conocen por aqui este.
Agapo:
No. Lo mismo eh Juan Jugador, pueh. Juan Jugador eh lo mismo de por
allá y lo mismo esta Lámpara... [este...] de Ladino de la Lámpara Maravillosa
que no me puedo acordar...
También por allá, ¿no?
Si... son lindo' eso' cuento'.»
V. De un diálogo entablado despuós del caso <<.El hombre que dio a luh:
Doa Vera:
Bueno, yo esos caso' son viejo, yo ca no lo converso, y ahora [como
dijo Ud.] como ya estoy conversando se me están viniendo los caso' ahí.
Qu'estos ya casi no los converso estos tiempo'. Otros caso' he conversa'o. Yo
sí los conversaba, antes, bastante.
VI. De la diferencia entre casito y cacho:
Diálogo que mantuve con Don Agapo después de su narración del casito «Tio
Chivo con Tio Toro»:
" ?Este es casito o es cacho?
No, casito es. Los cachos, pues, son ya de... eso' son de animale'.
Los cachos son los de gente.
De gente,. De gente que hace uno con otro, otro con , asi desas
otra cosa. Ese no, ese es cortito.»
VII. De como Don Agapo testimonia la popularidad de Pedro Imala:
Yo «Agapo, dígame una cosa, ?cuántos hay de Pedro Imala?
Agapo !Uhh! Pedro Imala hay bastante, !uhhh!... hay hartísimo.
O CONTO FOLCLÓRICO
Yo ?Más?
Agapo Si, pero titulan de Pedro Imala, por eso es Pedro Imala.
Yo Ahora ¿hays que Tio Conejo?
Agapo !Uhhuumm!...s si puede haber. Uhum, porque Tio Conejo
también hay bastante.»
O REGISTRO DA «MATÉRIA-DOCUMENTO»
È fundamental ter noção do que é ura documento oral, a fim de que
sejam tomadas as necessárias precauções no sentido de se obter uma
gravação fiel e clara, condições sem as quaiso se justifica o arquiva-
mento. O produto arquivável deve estar em excelentes condições físicas.
O que possibilitará seu uso, inclusive, pelas Seções de Conto Popular
dos grandes museus da Europa e da América. A gravação dos contos
populares, felizmente, se presta para registros perfeitos, pois pode ser
feita com indivíduos isolados, fora do alcance das bandas de música,
do ruído de motores, das ondas do mar, buzinas, vento, vozes, garga-
lhadas .. .
Se gravar constitui uma arte e uma técnica, a gravação da documen-
tação folclórica representa muito mais do que isso, pois um simples
técnico, sozinho,o se encontra em condições de obtê-la seo for, ao
mesmo tempo, um avezado folclorista. Ele deve observar, pelo menos,
os seguintes cuidados: 1) Usar um bom aparelho portátil, a pilhas e
eletricidade; 2) Dar preferência a carreteis médios e grandes; 3)
Empregar somente fitas de grande duração, isto é, as de 540 metros
para hora e meia de gravação em cada lado, usando 3 3/4 de velocidade;
4)o gravar nunca em 1 7/8 de velocidade, sob a preocupação de
economizar fita; 5) Manter o microfone o mais distante possível do
aparelho; 6)o trazê-lo à mão, mas sim deixá-lo livre, no ar,
dependurado de alguma parte; 7) Pô-lo numa altura superior à da
boca do informante; 8) Escolher um ambiente o mais possível à prova
de sons; 9) Usar sempre pilhas novas. Respeitadas estas normas,
consegue-se obter gravações que servirão à ciência folclórica indefini-
damente.
o óbvias as razões que as justificam. O carretel pequeno se
acaba logo, causando isto frequentes interrupções. O registro em 1 7/8
é precaríssimo,o serve para «documentar» uma língua, pois lhe
suprime as nuances do sotaque regional e obscurece o vernaculismo,
tendo em conta que o pesquisador provém de outras áreas. Deixa a
falsa impressão de que o informante «fala fechado», quase de maneira
inaudível. No Volume II de nossos CUENTOS há gravações em 1 7/8
correspondentes às minhas primeiras experiências, levadas a cabo sob
exíguos recursos econômicos. 3 3/4 é, pois, a velocidade que se deve
adotar; se possível, outra maior ainda. Quanto ao ambiente à prova de
ruído, o próprio automóvel do pesquisador se presta muito bem para
formar essa recamara de gravação. Primeiro que tudo, o pesquisador
PAULO DE CARVALHO NETO
se afasta do povoado, levando o informante para longe dos vizinhos,
parentes e curiosos. Irá estacionar num ermo faldas de uma
montanha ou pleno centro de um descampado botando a frente do
carro contra o vento, o que diminui o assovio sobre os lados. Arma o
gravador fora, no chão, com o microfone dentro do veículo, pegado sobre
o teto interior. O informante ou informantes devem ficar no assento de
trás e o pesquisador no lugar do chofer, voltado para eles. Horas a fio
se trabalha assim, sem maiores interrupções nem preocupações, unica-
mente a troca de fita, cada hora e meia. Nos dias atuais, já nem isto
se requer, pois as fitas mudam de lado sozinhas, automaticamente, por
um sistema de retrocesso reversível. O que nos proporciona um total
de três horas completas de gravação ininterrupta.
Esta técnica soluciona, inclusive, o chamado «problema psicológico
do microfone e do gravador», que tanto afeta a naturalidade do registro.
Problema criado pela presença ostensiva desses mecanismos. A culpa
o corresponde exclusivamente ao microfone, mas também ao gravador,
razão pela qual ambos devem ser ocultos. Destarte, os carreteis podem
girar à vontade, sem distrair a atenção do Conversador. Só aprendemos
isto depois dos erros que cometemos com o nosso informante Elias
Gómez (peças do número 119 ao número 139). A cada momento,
Elias se desconcentrava e, em consequência, se envergonhava e esquecia.
Superamo-nos ao trabalhar com Don Vera e Don Àgapo.
o se entenda por isto, no entanto, que os registros ào foram
ultrapassados. O caderninho de pesquisas ainda tem sua função. É
insubstituível como «técnica complementar», servindo para anotar per-
guntas e dúvidas a serem formuladas no final de cada conto.o
estamos dizendo que os registros ào dos precursores perderam o seu
valor. De modo nenhum. Eles também fizeram «documentação»,
embora de modo precário se os comparamos com os folcloristas atuais.
Condenável é a atitude dos que hoje trabalham sem gravadores. Para
isto sim,o há desculpas. Infelizmente, ocorre nas pesquisas de equipe
cm treinamento para estudantes, naqueles países sem recursos econô-
micos. Todo o nosso Volume I dos CUENTOS padece desta falta.
o houve outra solução.
O PESQUISADOR
A Paciência
Desde a obra de Van Gennep a paciência vem sendo enobrecida
e glorificada. «Par définition diz o Mestre, un folkloriste est
doué de patience et de perséverance.» Queremos crer,o obstante,
que escasseiam os seus estudos práticos, dentro do Folclore.
Para nós, a paciênciao é indispensável somente durante a etapa
de campo; também é básica na etapa de gabinete. Nesta, só ela é
O CONTO FOLCLÓRICO
capaz de vencer os três grandes inimigos do folclorista: o fator tempo,
a resistência física e as precárias condições higiênicas das áreas rurais.
Com efeito, o registro de contos demora mais do que o de qualquer
outro gênero folclórico, escoando-se o tempo lentamente, sob a cantilena
monótona do informante. É impossível fazê-lo narrar depressa e seria
uma incongruência levá-lo a supressões.o há meios de resistir à
lentidão seo se cultiva a paciência. Ela é uma virtude, mas também
um método.
Quanto à noção de resistência física, na pesquisa do conto popular,
elao quer dizer «aguentar firme o rojão». Do que se trata, agora,
é de aguentar firme a imobilidade forçada, o que é muito pior. De
todos modos, é este o tipo ideal de trabalho para os folcloristas idosos,
que jáom energias para correr pelas praças e pelas ruas, o dia
inteiro, debaixo do sol, envoltos na poeira, atrás de mascarados e repre-
sentações de autos dramáticos. Ficar sentado escutando estórias dá
até sono. É o informante quem nos desperta: «¿Está durmiendo,
patron? E o gravador roda e roda.
A questão das condições higiénicas, por fim, nos faz pensar que
folcloristas cheios de escrúpulos físicoso conseguem nada, pelo
mundo afora.m que brindar com a cachacinha local, brincar com
as crianças mal nutridas, dialogar com pessoas suadas e mal cheirosas.
O informante de contoso escapa à regra da pobreza. Dentro da
recâmara de gravação, o mau cheiro se torna insuportável. No final
de tudo, deleitado em sua leitura, o leitor nunca pensa no sacrifício do
pesquisador. O folclore é como o diamante; apreciando-o, ninguém faz
ideia dos pântanos inóspitos em que se meteu o garimpeiro.
Duplicam-se as reservas de paciência, na etapa de gabinete, ou as
fitas nunca serão transcritas. Aqui é muito certo aquele ditado: «A
pressa é inimiga da perfeição». Em matéria de contos,o deve haver
um prazo para a apresentação dos mesmos. Pois primeiro que tudo vem
a transcrição, crucificada pelos cuidados da fidelidade transcritiva.
Depois é quem a assimilação, o pensamento metódico, a determinação
de elaborar o livro. Tudo isto demora muito. Em nossa primeira
viagem à Cuenca (Contos nº 119 ao nº 139), empregamos 13 dias no
registro (4 ao 17 de junio de 1966) e 49 no trabalho de gabinete.
Com os 66 contos de nossas viagens a Engabao (do Nº 53 ao nº 118) o
esforço foi consideravelmente maior: mais de um ano transcrevendo o
que foi colhido em 30 dias. A colaboração de alunos, no caso, piorou
o assunto, pois eles se atrapalharam ante dois obstáculos: dar-se conta
dos diálogos e perceber as nuances fonéticas do espanhol. Sem exer-
cícios de composição literária, os transcritores misturavam diálogos e
descrições. Por outro lado, a familiaridade com a sua própria língua,
imprimia-lhes uma rapidez traiçoeira. Muita confiança e pouca segu-
rança. A principal causa do primeiro aludido obstáculo foi, a nosso
ver, verem-se os transcritores privados da possibilidade de acompanharem
PAULO DE CARVALHO-NETO
os gestos e os lábios do informante. Um terceiro obstáculo, decorrente
dos anteriores, foi o cansaço auditivo, irremediavelmente produzido pela
repetição monótona do gravador, chegando ao cansaço mental.
Na verdadeira transcrição magnetofônica dos contos folclóricos
reside, pois, a prova de fogo do folclorista. No final de cada conto,
o transcritor o sabe quase de cor.o satisfeito ainda, recapitula-o
sem audífonos, corrigindo o texto numerosas vezes. Ninguém imagina
o quanto ilude o ouvido. Textos obscuros hoje, soam claríssimos no
dia seguinte. Ouvidos sem prática tardam em captar. Ouvidos com
prática, porém cansados, captam rapidamente, mas com muitos erros.
Pense o leitor em nossos 5.940 metros de fita, ou seja, uma légua
de gravação de contos, mais os avanços e retrocessos da transcrição,
letra por letra, palavra por palavra. E mais o cuidado em perceber os
diálogos. O cansaço auditivo leva ao cansaço mental e ambos desem-
bocam no desespero. Nas têmporas se instala um ruído intermitente;
no espírito, a tensão da angústia. A paciência se alimenta de ilusões;
conforta pensar que se presta um serviço. Vivam as velhas filosofias
orientais. Em crise declarada, a solução é suspender o trabalho e
esquecê-lo por algumas semanas.
A TRANSCRIÇÃO
A Fidelidade Transcritiva
Sendo, como vimos, a «dialogística» e as «sutilezas fonéticas»
problemas fundamentais da transcrição, de acordo com eles se derivam
cinco gêneros transcritivos»: a «fidelidade transcritiva», já citada, e mais
a «adaptação científica», a «adaptação involuntária», a «adaptação lite-
rária» e a «projeção estética».
Somente a «fidelidade transcritiva» é científica e rigorosamente
falando nunca foi posta em vigor, até agora, devido às incontáveis
dificuldades que apresenta. Em consequência, o estudo do conto folcló-
rico, neste aspecto, aindao atingiu sua etapa ideal. Só se encontra
satisfatoriamente avançado em matéria de classificação, com os famosos
índices de tipos e motivos.o obstante, há especialistas que supõem
haver alcançado plena «exatidão» na transcrição.
As referidas dificuldades para a fidelidade transcritiva ligam-se aos
seguintes elementos: a fonética, a mímica, a pontuação e os equívocos
iniciais do informante. A dialogística é apenas um problema;o chega
a ser propriamente um «obstáculo».
A solução dos problemas fonéticos é dada pelos signos internacionais,
aprovados praticamente sem restrição. Mas até que pontoo linguistas
os contistas? Por outro lado, nos países sem suficientes recursos, os
editores se negam a publicar obras desse tipo. Quanto à mímica,
poder-se-ia criar uma série de signos básicos «aperto de mãos»,
O CONTO FOLCLÓRICO
«beliscão», «dormindo», «bêbado» correspondentes aos gestos mais
comuns do informante. E tais signos seriam adequadamente interca-
lados no texto. Mas aqui volta a se apresentar o problema econômico
do editor.
Dá-se o mesmo com a pontuação, entendendo-se por pontuação as
pausas e semi-pausas na emissão das palavras e das frases. Sabido é
que a pontuação da linguagem oral folclóricao coincide com a pon-
tuação gramatical. Onde o informante faz «ponto final» por ser
analfabeto ou por seguir a tradição orals costumamos fazer
«vírgula» e vice-versa. Ao transcrever, seguimos nosso critério o
critério dos alfabetizados, sem o qual o trecho escritoo faria
sentido. Ora, isto é um atentado à «fidelidade transcritiva». Teríamos,
pois, que também criar signos especiais para indicar a pontuação do
informante. Eis um exemplo, segundo a pontuação oral-narrativa do
informante:
«El joven, tenía, la edads o menos, de veinte y un años. Estaba
pescando, salió un pescado, rojo, reflejante y unos colores médios extranõs.
Que lo condujo a su casa para tener de adorno.» (El pescador. 129)
Ao ser transcrito, demos-lhe as seguintes pausas «gramaticais»:
«El joven tenía la edad,s o menos, de veinte y un años. Estaba
pescando, salió un pescado,, rojo, reflejante y unos colores médios extraños,
que lo condujo a su casa para tener de adorno.»
A esta altura, já seriam os leitores a oferecerem resistência, pois
quem encontraria prazer na leitura de um conto plissado por dezenas
de sinais? Sinais para a fonética, sinais para a mímica, sinais para a
pontuação. Ainda por cima: sinais para os equívocos iniciais do infor-
mante.o há contos verdadeiramente folclóricos sem tais «equívocos».
Ao serem publicados, mostram-se fluentes, o que é uma mentira ou um
recurso literário.
Trêso as classes de «equívocos»: os que se acham determinados
pelo esquecimento de sequências completas, os lapsi linguae e as interpo-
lações mnemónicas. No primeiro caso, o informante salta episódios,
acrescentando no fim o episódio olvidado, quando se lembra dele. Os
lapsi linguae se explicam por si. Quanto às «interpolações mnemô-
nicas», à falta de outro termo,o palavras ou frases estereotipadas
«A la...», «Hizo la...», etc. ditas para preencher as momen-
tneas lacunas orais durante os esforços de memória.
Exemplo:
« iAndate tú ai río! Ahí estará un peje y le tomas a ese peje con una
copa de agua. Ese peje al llegar A LA... donde la niña, le pones en
la corona y le riegas la copa de agua.
Cogió él la copa y se fue al rio. HIZO LA... Tomo las indicaciones que
le dio el Príncipe y lo actuo...» etc. (La Princesa Dotada. nº 131)
PAULO DE CARVALHO-NETO
Aqui os psicólogos encontrariam valioso material para os seus
estudos sobre o cansaço mental e os processos menemônicos.
Chegará uma época em que as coleções de contos folclóricos se
apresentarão com todas estas exigências satisfeitas.
A «ADAPTAÇÃO CIENTÍFICA»
O meio termo entre a «fidelidade transcritiva» inalcançável a uma
apresentaçãoo totalmente desprovida de rigor, é o que se poderia
chamar «adaptação científica», isto é, um «arranjo» levado a cabo pelo
especialista consciente dos obstáculos que o acossam, mas desejoso de
atingir a perfeição. É o caso das grandes coleções de contos no mundo,
preparadas sob o anelo da objetividade e, por isso mesmo, adotando
próprias e originais «convenções», na medida do possível. Delas temos
a pretensão de nos aproximarmos com os nossos volumes correspondentes
aos contos do nº 76 ao nº 118. Colegas nossos, neste sentido,o
Suzana Chertudi, na Argentina, e Yolando Pino Saavedra, no Chile.
Em termos de «fidelidade transcritiva» essas obraso imperfeitas.
Respondo pela minha própria, pelo menos, afirmando que ela peca de
imperfeição consciente. Doadas as fitas a arquivos internacionais de
Etnomusicologia, estarão à disposição de futuros pesquisadores, daqui
a dois ou três séculos, quando então se poderá atingir de fato a «fideli-
dade transcritiva», sem maiores complicações.
Eis as convenções que adotamos para os nossos contos do nº 76
ao Nº 118. Mesmo sendoo poucas, incomodam a leitura normal do
leitor comum. É o que sucede quando se tem em vista o interesse
científico. O leitor comum só aceita a «adaptação literária», impropria-
mente, considerada uma «melhora», pois realmente ajuda ao leitor a
apreciar o estilo e o enredo.
H Represento pelo h final o som do j, o qual substitui alguns s
finais, na fala popular da Costa. Exemplos: «Vah a cumplir» = Vas a
cumplir; soa como «Va ja cumplih». «Tanteando lah ave'», soa como
«tanteando la jave» = «tanteando las aves». Em muitas ocasiões o s é
simplesmente omitido, sem ser substituído pelo j
;
nestes casos utilizo
apóstrofos, com os quais indico as supressões de letras e até mesmo de
sílabas.
Apóstrofo. Utilizado para indicar a supressão de letras e até de
sílabas.
Sic. Do latim: assim mesmo. Vai posto depois de erros evidentes
de concordância,, os quais, pelo seu carátero elementar, poderiam parecer
erros de imprensa.
Asterisco. Reconstrução aproximada, pelo pesquisador, de trechos
inaudíveis ou de transcrições sem sentido.
Parêntese circular. Intercalação, pelo pesquisador, de conjunções e de
preposições que o informanteo disse e cuja omissão, na escrita, prejudica
a compreensão do texto.
O CONTO FOLCLÓRICO
Parêntese retangular. Idiosincrasias, da fala popular e do informante,
que propriamenteo fazem parte do enredo.
Sublinhados. Vozes e expressões que passam ao glossário. Para
o sobrecarregar o texto, sublinhei-as somente durante as ocasiões mais
importantes.
•Pontinhos. Palavras ou trecho inaudível ou incompreensível na
gravação devido a ruídos locais imprevistos: badaladas, buzinas, motocicletas,
gargalhadas,... Só superamos esta falta com os contos compreendidos entre
os Números 76 e 118, tal como já explicamos.
Nota (N) Notas à margem, do pesquisador, relativas àquelas
mímicaso intimamente ligadas ao texto que a sua inadvertência prejudi-
caria o tom emocional, bem como a compreensão do enredo. A tais
mímicas ligam-se, quase sempre, os suspiros e as gargalhadas do próprio
informante.
Observação (Obs) Observação do pesquisador, também em notas
à margem, relativas à montagem do conto nos casos de «equívocos» do
informante ou quando se queira suprimir os «asteriscos» a fim de facilitar
a leitura. Tais observações, quase sempre, encaminham o leitor e o especia-
lista às nossas fitas gravadas.
Há entre a «fidelidade transcritiva» e a «adaptação científica»,
portanto, somente uma diferença de ênfase, em seu empenho poro
deixar nada sem transcrição. Amboso se preocupam somente por
captar o sabor do conto: também desejam captar o «estilo» do narrador.
E é muito difícil captar o estilo «oral» de um Conversador; outra coisa
seria se ele tivesse um estilo escrito. O mesmo ocorre entre as pessoas
letradas: discursando, se expressam de uma maneira; escrevendo, de
outra. Naquela, com repetições e equívocos; nesta, com cuidado e
correções. O verdadeiro conto folclórico está muito longe de se parecer
ao conto escrito dos escritores eruditos.
A ADAPTAÇÃO INVOLUNTÁRIA
É um arranjo inconsciente, produto natural do conto registrado à
mão. Ao serem ouvidas e transcritas diretamente, as peçaso automa-
ticamente sendo «melhoradas», apesar do pesquisador se iludir e pensar
que está sendo exato. Um simples teste serve de prova: submeta-se um
informante a dois pesquisadores um sem gravador e o outro com
gravador, e se comparem as versões colhidas. Queira ouo queira,
a daquele conterá várias modificações subjetivas, por omissões ou por
acréscimos. A sua pesquisa nasceu «arranjada».
A ADAPTAÇÃO LITERÁRIA
Esta é, por sua vez, um meio termo entre a «adaptação científica»
e a «projeção estética». Exemplo: Câmara Cascudo, no Brasil; suas
coleçõeso muito diferentes das de Pino Saavedra, no Chile. Este
último tende à «adaptação científica». Na «adaptação literária»o
abolidos os principais erros gramaticais, as repetições, os equívocos e
53
PAULO DE CARVALHO NETO
inclusive os regionalismos vocálicos e consonânticos. Ela só respeita o
desenvolvimento natural do enredo.o obstante, nada acrescenta e
nem suprime vocábulos fundamentais. Em suma, o texto é escrito
«corretamente», emborao o seja «eruditamente». O seu objetivo é
tornar fácil a leitura de uma obra, sem «embelezá-la», nem roubar-lhe
o sabor «folclórico». Empresa assaz difícil. Difícil pelo seu próprio
caráter de meio termo. Pois no final das contas, nem se fez uma obra
totalmente «literária» nem totalmente «científica», deitando-se a perder
o verdadeiro valor científico do conto.o obstante, é um processo que
muito agrada ao leitor corrente.
A PROJEÇÃO ESTÉTICA
A rigor,o é um «gênero transcritivo», mas sim a obra pessoal
de um escritor atraído pelo folclore. Nela, a falsificação é a norma,
movida pela insniração. Trata-se de um gênero que pertence à Litera-
tura eo ao Folclore. Por exemplo, a chamada «literatura infantil»
usa e abusa dos contos folclóricos, reescrevendo-os com fins pedagógicos.
O produto desta superposiçãoo é mais folclórico, embora tenha raízes
folclóricas. O «costumbrismo» hispânico é também projeção estética.
Concluindo estas considerações sobre a transcrição, diríamos que
na nossa coleção de CUENTOS, os contos números 1 ao 52 e 119 ao
139 contêm «adaptações involuntárias», além de certos arranjos «literá-
rios», ao passo que os contos Números 76 ao 118 apresentam-se com
«adaptação científica».
A CRÍTICA
A «Adaptação Científica» e a «Variação de Informante»
Há um perigo na «adaptação científica»: generalizar as «conven-
ções», aplicando-as indiscriminadamente, o que falsifica a objetividade
do conto. Grandes mestres costumam perder a sua preocupação audi-
tiva e pensam que um mesmo informante é uniforme durante todo um
conto.o percebem que ele varia em suas próprias nuances fonéticas,
expressando-se de diferentes maneiras. Em consequência, uma vez
elaborado o quadro de convenções, o pesquisador elabora uma trans-
crição «perfeitinha», sem contradições. E estao é a realidade folcló-
rica. É preciso estar atento às «variações de informante». Noutras
palavras, o pesquisador estereotipado crê que o informante nunca fala
certo, que a sua linguagem é sempre errada. Ora, diríamos que o
informante é um homem em dúvida, igual a qualquer pessoa inteligente,
que vive em continuo processo de aprendizagem. Erraro é a sua
regra, mas sim errar e acertar, acertar e errar cada minuto.o é
folclore dizer «la' mujere'», mas sim dizer «la' mujere'» e logo depois,
de maneira perfeita, «las mujeres».
O CONTO FOLCLÓRICO
VARIAÇÕES DE INFORMANTES E VARIAÇÕES DE VERSÕES
OU «VARIANTES»
Com a noção do que sejam «variações de informante» o pesquisador
o se arrisca a confundi-las com «variação de versões» ou «variantes».
A «variante» folclórica apresenta um conjunto de variações em relação
com outras versões. De um informante se pode obter infinitas varia-
ções de si próprio sobre um mesmo conto;o as «variações de
informante». Mas eleo nos poderá dar mais do que duas ou três
variações de um só conto;o as «variantes». Geralmente, colhem-se
variantes ao acaso, entrevistando-se numerosos informantes, em dife-
rentes áreas. «Variações de informante», pois,o variações de registro
a registro, com um mesmo informante ou vários deles.o variações
absolutamente normais, já que ninguém é idêntico a ninguém, muito
menos a si próprio. Quando elas se tornam «substanciais» é porque há
alguma coisa nelas, passando a considerar-se «variantes». Estas
«variantes» se identificam pelo acréscimo de novos «motivos», mantendo-
se o «motivo» central.
Eis aqui um exemplo de uma «variação de informante». Trata-se
do começo de «Bella Flor Blanca», narrado no dia 4 de junho de 1966
por Don Vera:
Este era un Rev [?no, señor?], que tenía tre' hija', el Rey, três
Príncipe. Una se llamaba, la menor, se llamaba Bella Flor Blanca; la
nina menor.
Entonce' este Rey tenia un paje, un muchacho. Entonce' esta niña,
la menor, Bella Flor Blanca, sabia algún trabajo que habia aprendido
[?no?].
Y para esto, la nina se habia apasionado del pajé, se habia enamorado
del pajé del Rey. Y estaba enamorada.
El se dio cuenta, el Rey, un dia, (que) estaba enamorada (del pajé).
Entonce' llamó a la Reina, le dice:
Oiga, hija. ?Ud. ha visto una cosa?
?De como? le dice.
De que esta niña está bien apasionada de este muchacho. le dice.
Era un hombre... [hagamo' como nosotro' acá, ?no?] y el Rey no
queria. Dice:
Yo no quiero que mi hija se vaya a casar con este muchacho.
Majadero. le dice.
Entonce' dijo la Reina:
Ni yc también gusto.
Vinieron lah dos hermana", dijo:
Ni yo, papacito, gusto.
Pêro la niña estaba bien apasionada del muchacho. Asi que, asi
andaba, asi andaba el Rey, lo v'ia [?no?], que esta muchacha le seguia al
muchacho.
PAULO DE CARVALHO-NETO
Un dia ya habido, el Rey no le gustó. Le llamó al muchacho:
Oye, muchacho, l'ice venga acá. ?Sabe que a mi un dia
se me ha perdido un anillo de virtude? Y si tú no me lo trae mañana,
!te mato! le dije (sic) el Rey.
Ums mais tarde, no dia 7 de agosto de 1966, voltamos a gravar
o mesmo conto, novamente com Don Vera. O resultado é, como disse-
mos, uma típica «variação de informante»:
Así que [pue'], este [como digo], este era un Rey [?no?], que tenía tre'
hija', tre' niña', y la última era que se llamaba Bella Flor Blanca. Pa'
eso [pue'], este Rey, él tenía un muchacho porque era el pajé [hagamo',
¿,no?]. Y esta nina se había enamorado del pajé, le queria mucho. Así
que. .. v'ia el Rey [pue]. El Rey lo v'ia que su hija andaba ahi con
este... enamorada [?no?]. Así que un dia le dice a la Reina:
Oye. le dice ?Sabes una cosa? dijo a Ia Reyna.
?De como? le dijo.
De tu hija, pue', dice Bela Flor Blanca que está bien enamo-
rada d'este muchacho majadero. le dice.
Era el sirviente.
Le dice:
- Yo no quiero, dice el Rey que este muchacho majadero se
vaya casar con m'hija.
Ni yo gusto. dijo la Reina.
Y tenia lah otra dos. Ya l'ice la otra:
Ni yo, mamita.
La otra:
Ni yo tampoco.
No gustaba (a) ninguna, que se casara [no?]. Y ella andaba [que']
con el pajé. Icaramba! enamoradíssima. Hasta un dia ya le llamó el Rey
al muchacho:
Ve, oye, muchacho, ven acá. Yo, le dice se me ha perdido
un anillo de virtud y si tú no me la trae manãna, te mato. le dijo el
Rey, le dijo al muchacho.
Entonce', [dice], este muchacho se asustó, dice:
ESTILO DO INFORMANTE
Cada informante tem o seu estilo e tal circunstância incrementa a
confusão entre «variantes» e «variação de informantes». Há infor-
mantes inconfundíveis pelo seu estilo; é o caso de Don Vera,
personalíssimo. Dois processos nos levam a reconhecer o estilo de um
informante de contos: 1) gravações em suficiente quantidade, capaz
de possibilitar estudos comparados e detalhados; 2) e gravação das
conversas informais do entrevistado. Verificar-se-á que na linguagem
de uma coleção de contos há muito da linguagem normal de seu narrador
e vice-versa. Quando o pesquisador se acostuma com o estilo do infor-
mante, identifica-lhe as peças de olhos fechados. Veja-se como Don
Vera nos relatou a morte de seu irmão, nas plantações de cacau. Tal
O CONTO FOLCLÓRICO
relato possui as mesmas características «estilísticas» de seus contos
folclóricos.
«La muerte de mi hermano ¿no? eso fue po'acá po'los lado' de Balado,
de las montana'. El trabajador adentro 'e los trabajo'.
Un dia, pues, se fueron a trabajar ello', bueno y sano, sin nada de
enfermedad. El era tumbador 'esse cacao que tumban po' allá. Era
tumbador al cacao con la palanca que Haman. Y el recogedor va trah,
pues, es' eh otro. Así que andaban argunos, pues, trabajadores' ¿no? Y
él, pues, era el guia, cogía el viaje de adelante. Y los otros ahí ai lado,
los otros trabajadore', en otro guia.
Y así andaban, pue'. Entraban allá y salían en otro viaje. Y él
un dia, pue', ya pa' terminar el trabajo, ahí fue la muerte d'él, en la última,
Ia cuenta. Porque ya Ie dejó terminado el viaje onde i'a, ahí eh qu' estaba
una rama de la mata de cacao. estaba así, metida así en dos brazo' de
un paio questaba así. S'encanjó la rama aqui en médio y estaba ahí.
Estaba lleno de cacao a lo que i'a tumbando Ias mazorca que llaman. Y
él, pue', estaba bajo así, no estaba muy alto y había un palo ahí, se subió
ahi nos saco el macetillo para pega'le así para que caiga ¿no? No
miento, pa'trazar Ia rama qu'estaba así, así hagamo'... (*)
Saco ese macetillo y le pego ahí, entonce' de una veh le pego y le
brinco aqui (**) [como estaba él acá] y le tiro allá. Le azoto duro ;.no?
Y brinco allá. Se brincaba el hombre [dice], ahí botado. Y los compa-
fiero' ahí viéndolo, que venían ahí llegando al pie.
Cuando dice que 'ecían... [porque él decían así... tenían juego, «el
niño» le decian a él]. Y decian:
¿Qué le pasa al Nino? si veniamo'h atrás.
El otro le decía:
!Caray! dice El Niño 'ice le pego el palo dice
y cayó ahí.
No decían los otro' él eh qú'eh fregado [porque así era él
un poço zacamuyo (***) con loh compañero , [¿no?] No, él eh que se
hace ¿no? dice.
Le pego ahí... no está ahí.
Qu'encontró el palo 'ice'
¿Ese paio le pego aqui? dijo el otro.
Y el hijo también venia aní al pie. Entonce' corrieron, pue, a ve'lo.
Ya cuando corrieron ahí a ve'lo no podían levantar el hombre, no podia
enderezarse, andaba ahí, brincando. Entonce' vino el mayordomo qu'andaba
ahi ¿ no?
Apego dice icarayl al Nino 'ice ¿Qu'es qué le pasó?
Dijeron to'o', dice:
Corto la rama y le azoto aqui. Cayó ahí. Caramba, no puede
enderezarse, a pararse.
Así que, ahí, pue', no podia pararse. Entonce' dijo él:
!Carambal el mayordomo — llevémolo afuera ya mi'mo.
Se apego en er caballo y andaba,. saco la yerga (****)
Háganle 1'hamaca.
(*) El «conversador» indica con gestos.
(**) Le pego sobre el pecho.
(***) Zaramuyos chistoso risuefio,
(****) Yerga: sudadero de caballo
PAULO DE CARVALHO-NETO
L'hicieron l'hamaca y buscaron un palo, pue', y lo trajeron en hamaca
par'afuera. Todito' vinieron ya, los peone' ya detrás. Entonce,, acá en
el cementerio ya llegando, lo abrieron la... que ya venía ahí en l'hamaca
y l'abrieron. Ya venia muerto. Ahí mi'mo está el hombre. No le sacaron
vivo afuera.
Entonce', se murió. Y lo sacaron afuera, ya dieron parte todo como
había sido. Entonce' pues, l'hicieron austocia (autopsia) aquí y lo rajaron
y lo vieron, pue, que to'o el hígado, to'ito estaba hecho pedazo', ¿No ve que
I'azotó durísimo? Tuvo que morir el hombre.
Así fue la muerte de mi hermano. Y para esto yo no estaba ahí, no,
estaba aquí. Desde allá m'hicieron saber así a lo... porque, claro, de
acá pue, tiene que venir carta., ¿no? Llega no llega en el mismo día, sino
a lo... semana, argunos días que llegan por aquí loh buques.
Ya mandaron carta, yo estaba en Guayaquil también enfermo. Que...
entonce, allá, pue', ya llegaron... ya me dijieron (dijeron) que el
hermano era muerto. Y yo estaba enfermo. Si Dios hubiese querido
también que me fuera muerto en ese tiempo llegarámo' (llegáramos) junto'
ese año,. Y va corriendo mi hermano como diecisei', como a diecisiete
año' muerto.
Cuando ya vina yo de Guayaquil, que salí, como al mes passado, un
mes, fui a Balado, que ya estuve yos bueno. Entonce' ahí estaba el
sobrino y él allá, pue, me dijo to'o cómo había sido, que yo no sabía, pue,
como mi'mo había sido, ¿no? El me contó to'o así como le digo. Entonce'
me dice:
Vamo,o dice pa" enséñalo aónde que fue en qué parte
mi'mo que murió.
Lo fuimo" a ver pa' dentro 'e la montaña onde andaban en el trabajo.
Ahí l'habían parado una cruh, ahí onde había él (haga 'e cuenta que eh
ahí] se murió. Ahí estaba la cruh, limpio lo tenía ese pedazo:
Aquí cayó dice y ahí el palo [ahi estaba er palo, clarito onde
había cortado]... y allá arboló ahí. Ahí cayó. dice.
Ahí 'taba la cruz.
Ay,, porque ya no pudimo', pue, nada, porque así fue su muerte.
!Sí, señor!»
Caracterizar um «estilo», no entanto, é tarefa muito difícil; fácil
é senti-lo e identificá-lo. Constituí um erro tomar as interpolares dos
contos folclóricos como síntomas do estilo. Ora, o que é geral nao serve
de base para o particular. E o estilo é o particular. De nada nos
adiantam, pois, as seguintes interpolagoes, por serem um denominador
comum a numerosos informantes: «Estonces»... «Para esto»...
«Dice»... «Dizque dice»... «Bueno»... «Así que»...
Enquanto ao estilo, observe-se aínda que a «adaptado científica»
tende a respeitá-lo, enquanto que a «adaptado literaria» tende a
obscurecé-lo, pois o seu propósito nao é manter o «sabor do informante»,
mas sim o «sabor do contó».
TITULO DO CONTÓ
É próprio da «adaptado científica», além disso, respeitar o «título»
do contó, ou deixá-lo sem título no caso de que nao o possua. De
O CONTO FOLCLÓRICO
A CLASSIFICACAO
A Classificacáo dos Subgéneros
No estudo dos contos, so se tem prestado atencão á classificacão
de temas em «tipos» e «motivos», relegando-se a um segundo plano
a própria classificacáo natural dos contos, aquela que é feita pelo próprio
informante. Em Engabao, tal classificacáo compreende o «caso», o
«casito» e o «cacho», isto é, a estória, a estoriazinha e a anedota. Na
Serra equatoriana se desconhecem as vozes «caso» e «casito»; ambas
sao substituidas por «cuento». Esta voz «cuento», é completa-
mente desconhecida na Costa. Nao faz sentido dizer-se ai «cuente un
cuento»; o certo é «converse un caso». Dai a denominacão de «Conver-
sador». Na Provincia de Imbabura, em plena Serra, tampouco faz
sentido a voz «lendas». O certo é «pasajes». Imbabura está cheia de
«pasajes». O pesquisador perderá o seu tempo se for indagando por
lendas.
«Casos», no conceito dos informantes litoráneos, é o contó comprido,
de mais de meia hora; «casito» é o continho; e «cacho» é o continho
«colorado», as vezes de tamanho mínimo. Em nossa coleção de
CUENTOS só incluimos «casos» e «casitos», deixando os «cachos»
para um trabalho á parte. Entre estes é notoria a diferença entre o
«cacho folklórico» e o «cacho urbano». A característica fundamental
de ambos é fazer rir; o primeiro sobrevive nos velorios de anjinhos, e
o segundo anda solto pelas ruas, universidades e repartieses.
Exemplo de «cacho» folclórico:
EL MONTUBIO QUE NO CONOCÍA QUÉ ES IGLESIA
«Este el caso de un montubio que vino a Cuenca y no conocía qué
es Iglesia.
Pasaba él a eso de las tres de la mañana, con la madrugada del
Rosario de la Aurora en Cuenca. Entonces él a lo que pasaba diciendo
«Qué hage aquíl Cree que ahj están, componiendo cuerpo».
Se entra a la Iglesia. Estaban en este rato en plena comunión.
Entonces él se fue y se anotó al último. Dice: «Aquí están dando alguna
cosa para componer el cuerpo».
Va y se arrodilla él al último. Ve que todos se recibían la comunión y
se retiraban.
todos modos, para fins de classificação, os contos levam números.
Melhor ainda se nos contos sem título o pesquisador consegue «titulá-lo»
pelo episódio central, devendo, em tal caso, solicitar a ajuda do infor-
mante. O título natural ou sugerido, serve para nos Lembrarmos
do conteúdo do conto. Na prática, convém trazer entre aspas o título
«sugerido», a fim deo confundi-lo com o folclórico ou incorrer em
falsificação.
PAULO DE CARVALHO-NETO
El cura al Ilegar al lugar de él coje una brocha de estas que tienen
agua bendita y dale por la cabeza. Êl también se retiro., a arrodillarse.
Le pregunta otro:
Ov' díce ¿a vos qué te dieron?
(*)
Bruto dice eso es la sangre del Cuerpo de Cristo, animal,
Ud. no sabes.
Caramba dice Yo he estado de mala suerte. A mí me dio
con la » (**)
[César Garcia
Cuenca, 12. VI. 1966]
Infelizmente, a voz «caso» também tem outra acepção dentro do
folclore narrativo hispânico: a de «sucedido». Daí que se prefira a
voz «cuento» nos estudos bibliográficos.
CLASSIFICAÇÃO TEMÁTICA
Desde os trabalhos pioneiros de Antti Aarne e Stith Thompsono
mais se discute a necessidade de pô-la em prática. Mas há um incon-
veniente nessa classificação de tipos e motivos,o rigorosa e acadêmica:
é que os seus adeptos menosprezam as demais classificações, barrando
a possibilidade de inovações.oo de seu agrado, por exemplo, as
expressões: «contos de animais», «contos acumulativos», «contos do
diabo e de santos», «de exemplo», «humanos», «maravilhosos», «contos
da Morte», etc. Preferem o rigorismo dos números. E com isto,
tampouco se dá importância, como dissemos, à ordem em queo
narrados os contos, fator primordial para o conhecimento de sua popula-
ridade e importância.o cuidados que devem ser tomados em conta.
ELEMENTO REGIONAL DOMINANTE
Também deveria ser objeto de maior consideração a presença dos
elementos regionais nos contos «típicos» de uma área. O que marca
as «variantes»o os fatores etno-folclóricos; há uma «ecologia folcló-
rica». Noutras palavras, há uma relativa proporção de «determinismo»
geográfico no fato folclórico. Contos folclóricos equatorianos colhidos
na Serra podem ser ouvidos na Costa, mas deste lado trazem o cheiro
do Mar. O Mar entra neles, de um jeito ou de outro. Tudo é o
Mar na Costa. Porque os contos escapariam à regra? Temos, em nossa
coleção, o que chamo «o grande ciclo do Mar»: Contos números 76, 77,
78, 79, 81, 85, 88, 90, 103, 107 e outros mais, sem dúvida. Algum
dia escreveremos sobre o assunto, contribuindo para o conhecimento da
psicologia dos habitantes de Engabao.
(*) Mímicas indecorosas.
;
(**) Mímica.
O CONTO FOLCLÓRICO
CICLOS DOS PERSONAGENS
O estudo psicológico dos habitantes de uma área, feito através de
seus contos folclóricos, tem muito a ganhar, ainda, com a consideração
dos «ciclos de personagens» e dos «ciclos de elementos regionais».
Tampouco se tem prestado muita atenção a estes aspectos. Da mesma
forma que os contos do Jabuti ilustram o sentimento e o pensamento do
amazonense brasileiro, o comportamento do homem de Engabao se
condiciona, em grande parte, pelas suas estórias do «Tio Conejo», a
«Tia Zorra», o «Tio Tigre», «Frachisco» e «Pedro Imala». Fomos o
primeiro pesquisador a coletar as aventuras do famoso «Pedro Imala»
equatoriano; Malazartes no Brasil, Urdemales noutras partes.
CLASSIFICAÇÃO LITERÁRIA
Em trabalhos destinados a «aproximações psicológicas» também é
de proveito a classificação literária dos contos folclóricos. Como as
demais, infelizmente, pouca atenção se lhe presta. Refiro-me aos agru-
pamentos de peças em comédias e tragédias, dentro do clássico critério:
risos ou lágrimas. Nem sempre o conto folclórico é um simples relato
para divertir. Há tristeza muitas vezes. Engabao ri às gargalhadas
com Tio Conejo, mas chora com «La Bella Ninfa», onde há ciúme e
vingança, perseguição e ódio, calúnia e traição, com um final de suicídio.
Shakespeares da literatura oral e anónima.
A IMPORTÂNCIA DO CONTO
E para concluir estas conjecturas, pessoais, sobre a problemática
da pesquisa de contos, volvamos a um velho tema: a importância dos
contos. Ela pode ser vista sob diferentes argumentos. E um deles é o
da «antecedência da literatura nacional». Noutras palavras, o conto
folclórico considerado como o gênero precursor da narrativa literária.
Neste sentido, os nossos Cuentos Folklóricos del Ecuadovo a genuína
literatura do povo equatoriano, pois vem de ontem, existe hoje, e sobre-
viverá no futuro como expressão do sentimento artístico indígena, rural
e litorâneo. A longa vida temporal e espacial dos contos folcló-
ricos nos afirma que eleso mais importantes do que as letras eruditas.
Estas primam pelo seu individualismo, o que em muitos casos limita e
desqualifica. Onde há muitos analfabetos, por exemplo, essa literatura
erudita incrementa o divórcio entre o povo e o intelectual. Aquele
procura o intelectual que o compreenda e fale a sua linguagem: o
«Conversador». O intelectual erudito, para o povo, é um alienado, um
ser estranho, um representante da elite minoritária.
É a erudição fofa, por conseguinte, uma das causas desse famoso
divórcio entre o intelectual letrado e o povo. Nascendo disso muitos
preconceitos: um deles é a suposição de que o povo analfabeto carece
PAULO DE CARVALHO-NETO
de sensibilidade para a criação literária. Ora, o analfabetismo é uma
fatalidade econômica,o é uma fatalidade espiritual. Igualzinho ao
homem culto, o homem «folk» se debate numa desesperada sede de
ficção e imaginação. Carente de elementos,o produz em variedade,
escapando ao risco de se tornar superficial. Só produz em qualidade
isto é, pouco e bem, repetindo milhões de vezes a sua «obra prima»,
porque ela o deleita. É assim a gênese do conto folclórico, da «folk
literature». Os velórios se enchem de «ouvintes» de «casos». O veló-
rio é uma noite de arte, uma sessão acadêmica. O defunto é um pretexto.
E o «Conversador» é um escritor analfabeto, fazendo «conferências»
de povoado em povoado. Os contos folclóricos equatorianosm uma
atualidade que assombra. E os desconhecemos, os que somos «patrões»,
«ricos» e «brancos».
Ciências Humanas
Saudação a Amaciou M'Bow
AFONSO ARINOS DE MELLO FRANCO
Sr. Presidente, Senhora, Excelência, Prezados Colegas
O
Conselho Federal de Cultura honra-se, hoje, ao receber um dos
mais eminentes representantes da vida pública e cultural do Se-
negal, país com o quals outros brasileiros e, antes de nós, os
portugueses, nossos ancestrais no sangue e na cultura, mantemos relações
desde meados do século XV.
Sua Excelência, o Sr. Amadou M'Bow, nosso hóspede de hoje,
foi Ministro da Educação e da Cultura no seu país, pertenceu ao
Conselho Executivo da UNESCO, e ocupa hoje as altas funções de
Diretor da Educação desse mesmo órgão das Nações Unidas.
Para mim, pessoalmente, além da honra, é um prazer saudá-lo,
pois o Senegal está ligado às recordações de toda minha vida, da
infância à maturidade.
Na infância e mocidade, por mais de uma vez, desembarquei em
Dacar, porto de escala naquelas longínquas viagens anteriores ao avião.
Recordo-me do espanto que me causavam os senegaleses com seus
trajes nacionais, o movimento do mercado, os meninos que mergulhavam
das canoas para pescarem no fundo das águas as moedas atiradas do
tombadilho dos vapores.
Como Ministro das Relações Exteriores representei meu país na
comemoração do primeiro aniversário da Independência do Senegal.
AFONSO ARINOS DE MELLO FRANCO
Acompanhava-me meu Chefe de Gabinete, o atual Ministro do Estado,
meu amigo e ilustre embaixador Gibson Barbosa. Tivemos, então,
encontros pessoais com o Presidente Léopold Senghor, um dos maiores
poetas contemporâneos em língua latina, com o qual de novo me
encontrei nas Nações Unidas, e, mais tarde, na sua visita ao Rio de
Janeiro, onde, como senador da Guanabara, o saudei na Universidade
Católica. Felizmente paras o Brasil tem como seu representante em
Dacar um poeta da categoria de Senghor, João Cabral de Mello.
Senghor, que fez cursos universitários na Sorbonne, ex-deputado
e ex-Ministro na França, nos nossos encontros pessoais, aludiu ãs suas
possíveis origens brasileiras, que aparecem, talvez, no próprio nome de
família, que é, provavelmente, uma modificação da palavra portuguesa
senhor.
Falei há pouco da antiga presença de Portugal no Senegal. Com
efeito, em vida ainda do Infante D. Henrique, o Navegador, no ano
de 1460, os portugueses descobriram o arquipélago do Cabo Verde.
A ocupação da ilha de Santiago, mais próxima da costa africana, foi a
base da expansão portuguesa nas terras ocidentais da África Negra.
As caravelas portuguesas tornaram-se frequentadoras habituais do
estuário do rio Senegal. Faziam o comércio de escambo e traziam
mercadorias europeias, que trocavam por escravos negros, ouro, pimenta
africana (diferente da asiática, cujo grande comércio deveria florescer
pouco depois), dentes de elefante, almíscar e tecidos indígenas de
algodão e também seda, estes trazidos do Oriente pelos árabes. Os
muçulmanos, com efeito, dominavam o comércio senegalês, por suas
alianças com os chefes indígenas.
Na segunda metade do século XVI diminuía o poderio português
na Ásia, enquanto cresciam as forças navais da Inglaterra e da França.
Passou, então, a França, a disputar a Portugal a soberania do litoral
do Brasil e da África Ocidental.
Tal como fizeram no Rio de Janeiro com a França Antártica, os
franceses procuravam estabelecer-se no Senegal. E em ambos os locais
os portugueses os combateram energicamente. Em 1560 o governador
m de, apoiado em poderosa frota, expulsou os franceses da baía
de Guanabara. Cinco anos mais tarde o Cardeal D. Henrique, Regente
do Reino depois da morte, em África, de seu irmão Rei D. Sebastião,
enviava ao Senegal uma esquadra sob o comando de Diogo Carreiro,
que tambéms em fuga os franceses, que ocupavam a foz do grande rio.
Mais ou menos na mesma época os portugueses sustentavam a
sua bandeira na região de Casa Mansa, que ainda hoje é chamada
Casamance na língua francesa. Casamance é uma província senegalesa
que se limita, ao Sul, com a Guiné portuguesa. Ali. até agora, se fala
o crioulo, ou seja, o português africano.
SAUDAÇÃO A AMADOU M'BOW
Esses fatos, rapidamente recordados, fazem-me pensar na criação,
nas Universidades brasileiras e africanas, como a grande Universidade
de Dacar, de cursos de História Comparada africana e brasileira, a fim
de termos uma visão conjunta do processo histórico na nossa vida
colonial, que muito interessaria à historiografia africana e brasileira.
Parece que nos arquivos do Instituto Francês para a África Negra
(ou outro nome) há importantes documentos antigos, concernentes ao
Senegal, escritos em língua portuguesa. Isso mostra a importância do
estudo da língua portuguesa, por vós, e da pesquisa em tais arquivos,
para o estudo da nossa História comum.
*
O Senegal e o Brasil embora em estágios diferentes de progresso
econômico e técnico,o dois países em vias de desenvolvimento.
Vós, senegaleses, tendes uma concepção da Cultura que se aproxima
bastante da nossa, brasileira. Tal concepção foi defendida por este
Conselho no Plano Nacional de Cultura que preparou. Com efeito,
vossos homens de Estado, como os nossos, estão convencidos de que
a Cultura é elemento essencial ao desenvolvimento. As motivações
desta firme convicçãoo as mesmas, embora os métodos de açãoo
se aproximem. Pensamos todos que, nos nossos países, o Estadoo
pode dirigir a Cultura, pois Cultura dirigidao é Cultura, mas enten-
demos que ele deve apoiá-la.
Sei que Vossa Excelência sustenta a inserção das Ciências Sociais
como elemento de Cultura, além da Educação, e isto fazemos nós, deste
Conselho. Existe uma Câmara de Ciências Sociais neste Conselho de
Cultura.
No Brasil temos razões, fortes e particulares, para vermos a Cultura
como fator de desenvolvimento. Somos uma imensa união cultural, que
manteve, de certo modo, a unidade política nacional, por causa da sua
flexibilidade unificadora; digamos pelo fato deo sermos unitários.
Mas, à medida em que se desenvolve na demografia, na técnica,
na economia, na ocupação e integração do território, o Brasil precisa
defender sua personalidade nacional, que se confunde com sua perso-
nalidade cultural. É uma tarefa delicada, para um enorme e populoso
país, que recebe influências econômicas, técnicas e raciais de todas as
origens. A presença do Estado se impõe aqui, neste esforço de desen-
volvimento, que é de absorção livre, dessas influências centrífugas, para
evitar a dispersãoo desejada.
Daí nosso grande trabalho para a defesa do patrimônio histórico,
artístico e cultural brasileiro, ligado à nossa formação, sem recusar as
contribuições inevitáveis da história contemporânea. Para ordenarmos
AFONSO ARINOS DE MELLO FRANCO
nosso desenvolvimento devemos preservar nossa personalidade cultural
dentro do progresso inevitável.
No plano da Educação popular, que tanto vos interessa, pois que
tendes no Senegal 51% do orçamento empregados na Educação, nossos
esforços,o grandes. Atacamos maciçamente o problema, através de
um imenso trabalho de mobilização nacional pela alfabetização dos
adultos, feito pelo MOBRAL, serviço federal especializado.
A aproximação cultural entre os povos em vias de desenvolvi-
mento é de grande importância, para este desenvolvimento e também
como exemplo às grandes potências e às superpotências, que persistem
em demonstrar os perigos de uma política imediatista e insensata de
confrontação, própria de fatores de poder hoje superados pela perspec-
tiva da guerra nuclear. Enquanto despendem somas absurdas nas
experiências e acumulação de armas nucleares, queo podem usar, as
grandes potências continuam no trabalho de erosão das guerras conven-
cionais, feitas nos limites dos seus impérios, que só servem para sacrificar
vítimas inocentes e para apressar a queda da confiança que exerciam
nos países em vias de desenvolvimento.
Contra isto é que tantos países latino-americanos assinaram o
Tratado de Desnuclearização da América Latina, sugerido por mim nas
Nações Unidas, e, mais tarde, transformado em resolução pelo México.
Excelência, penso que tudo o que foi dito indica cada vez mais
a necessidade da autonomia nas nossas decisões em matéria de política
externa, concentrando-nos na defesa do que possa servir ao desenvol-
vimento, à cultura e à paz.
E por estar certo de que esseso os propósitos de Vossa Exce-
lência, Senhor Ministro e Diretor, é que o Conselho Federal de Cultura
lhe apresenta seus sinceros votos de saúde e felicidade, extensivos à
Senhora M'Bow, e sua confiança no trabalho fecundo que executais no
seio da UNESCO.
Antônio Conselheiro, Construtor
de Igrejas e Cemitérios
JOSÉ CALASANS BRANDÃO DA SILVA
onório Vilanova, uma das figuras de Canudos, revelou a Nertan
Macedo que ouvira, por volta de 1873, no lugar denominado
Urucu, Ceará, Antônio Conselheiro dizer que «tinha uma promessa
a cumprir: erguer vinte e cinco igrejas. Queo as construiria, contudo,
em terras do Ceará». (
x
)
Três anos depois, quando já começava a dar cumprimento à
promessa, disse, em Salvador, respondendo laconicamente a um inter-
rogatório policial: «apenas se ocupava em apanhar pedras pelas estradas
para edificar igrejas». (") Em seguida, ainda preso, depôs em Fortaleza,
perante autoridade da Polícia cearense, explicando o que fazia nos
sertões: «Disse que, sendo casado eo podendo viver em harmonia
com a mulher, resolvera seguir uma vida de martírio e o seu único fim
era aconselhar o povo, tendo já erguido algumas igrejas e construído
alguns cemitérios.» (
3
)
Muito tempo decorrido, quando já se tornara conhecido pela sua
incessante atividade de edificador de capelas, o Bom Jesus Conselheiro,
(1) Macedo, Nertan. Memorial de Vilanova. Rio de Janeiro, Ed. O Cruzeiro,
s.d. p. 38.
(2) Rodrigues, Nina. As coletividades anormais. Rio de Janeiro, Civ. Brasi-
leira, 1939. p. 57.
(3) Jornal de Notícias. Salvador, 30 agosto, 1897. Transcrito de «O Cearense»,
23 julho, 1876.
JOSÉ CALASANS BRANDÃO DA SILVA
falando aos seus milhares de seguidores em Canudos (Belo Monte), no
ato do recebimento da chave da igreja de Santo Antônio, por ele
construída, proclamou a utilidade da edificação dos templos: «Vejam
fiéis seo é de grande utilidade e agradável aos divinos olhos do
nosso Bom Deus a construção dos Templos. A vista destas verdades
quem deixará de concorrer para a construção dos Templos? Quem ainda
se nutrirá da tibieza e indiferentismo para um fimo útil e importante
que se bem considerasse a criatura os merecimentos que em vida mesmo
alcança de Deus, certamenteo deixaria de concorrer com suas esmolas
e com seus braços para a construção deo belas obras.» (
4
)
Tendo feito, no início da sua vida de peregrino, uma promessa
de levantar igrejas nos sertões nordestinos, plenamente convencido de
que a tarefa era útil e agradável «aos divinos olhos do Bom Deus»,
Antônio Vicente Mendes Maciel procurou realizar a grande finalidade
de sua existência.o se limitou, como declarara biblicamente, a
«apanhar pedras pelas estradas». Empregou todos os meios ao seu
alcance, a fim de atingir ao objetivo colimado, influenciando pessoas
para obter os recursos materiais, movimentando gentes para os trabalhos
das construções. Fez-se, assim, inquestionavelmente, o maior edificador
de igrejas dos sertões da Bahia, naquela zona compreendida entre os
rioso Francisco, Vazabarris e Itapicuru, por onde peregrinou durante
quase um quartel de século, de 1874 a 1897. Euclides da Cunha anotou,
com propriedade: «Em toda esta áreao, talvez, uma cidade ou
povoado ondeo tenha aparecido. Alagoinhas, Inhambupe, Bom
Conselho, Jeremoabo, Cumbe, Mucambo, Massacará, Pombal, Monte
Santo, Tucano e outros viram-no chegar acompanhado da farândula de
fiéis. Em quase todas deixava um traço da sua passagem: aqui, um
cemitério arruinado de muros reconstituídos; além, uma igreja renovada;
adiante, uma capela que se erguia, elegante sempre.» (
5
)
Teria Antônio Conselheiro atingido o número de igrejas que
pretendia construir? Pelas pesquisas pors realizadas, a resposta seria
negativa se nos apegássemos apenas às igrejas. Consideremos, porém,
que o Bom Jesus Conselheiro, no depoimento de Fortaleza, mencionou
igrejas e cemitérios, mui justamente englobados numa relação de obras.
Assim sendo, reunindo capelas construídas ou restauradas, cemitérios
levantados ou reparados, em Sergipe e principalmente na Bahia, Antônio
(4) Maciel, Antônio Vicente Mendes. Tempestades que se levantam no Cora-
ção de Maria por ocasião do Mistério da Anunciação. Manuscrito encontrado no
Santuário, Canudos, após a queda do Arraial, pelo acadêmico de medicina João de
Sousa Ponde e pelo mesmo oferecido a Afrânio Peixoto, que o transferiu a Euclides
da Cunha, após a publicação de Os Sertões. Com a morte de Euclides, terminou
sendo levado para a Livrariao José, Rio de Janeiro, ai adquirido pelo poeta
Aristeu Seixas, da Academia Paulista de Letras. Pertence, hoje, aos herdeiros de
Aristeu Seixas.
(5) Cunha, Euclides da. Os Sertões. 14 ed. corrigida. Rio de Janeiro, Liv.
Francisco Alves, 1938. p. 168.
ANTÔNIO CONSELHEIRO, CONSTRUTOR DE IGREJAS E CEMITÉRIOS
Vicente Mendes Maciel esteve próximo da meta colimada, descontadas
umas poucas realizações que a memória dos homens houvesse esquecido.
Pela primeira vez, ao que supomos,o ser devidamente relacio-
nadas as obras que Antônio Conselheiro levou a efeito, nos sertões
nordestinos. Se considerarmos a época das suas realizações, as difi-
culdades sem conta para as tarefas empreendidas, justo é consignar os
méritos de sua ação obreira, sem competidor na segunda metade do
século XIX, senão mesmo em todo o evolver da zona em apreço.
Nenhuma outra pessoa, tendo em vista os problemas da fase estudada,
prestou maiores serviços aos sertanejos. O malogro da sua obra com
a tragédia em que o sertão se viu envolvido nos anos de 1896 a 1897,
no maior drama de incompreensão da história brasileira, com erros
acumulados de todas as partes e origens,o pôde, de forma alguma,
obscurecer a atividade do Bom Jesus, que pregava para o bem, ajudava
os desafortunados, abria tanques para recolher água nas terras da
seca, erguia capelas, levantava cemitérios, realizando uma missão que
o poder público e a autoridade eclesiásticao tinham, muitas vezes,
condições ou vontade de cumprir.
I. IGREJA DA RAINHA DOS ANJOS
Pertencia à freguesia de Nossa Senhora de Nazaré do Itapicuru
de Cima e parece haver sido a primeira obra do Conselheiro, realizada
entre 1874 e 1876. A capela era antiga e foi então restaurada. Em sua
edição de 27 de junho de 1876, noticiando a prisão de Antônio Vicente,
escreve o Diário da Bahia: «também há reedificado templos como
aconteceu com a capela da Rainha dos Anjos no Itapicuru e construção
de cemitérios». (6) Sílvio Romero, nos seus «Estudos sobre a poesia
popular no Brasil», aparecidos na Revista Brasileira, em 1879, possivel-
mente baseado em informações colhidas em Sergipe, refere-se à igreja
que julgava fundada pelo místico de Quixeramobim: «Um indivíduo
criminoso do Ceará saiu a fazer penitência a seu modo e inaugurou
prédicas públicas.. . No seu percurso, veio ter aos sertões da Bahia
e fundou uma igreja em Rainha dos Anjos. Chamava-se Antônio e o
povo o denominava o Conselheiro. Passou por Sergipe, onde fez
adeptos.» (
7
)
Situada em posição aprazível, a pequena localidade continua no
município de Itapicuru.
(6) Antônio Conselheiro. Diário da Bahia. Salvador, 27 junho, 1876.
(7) Romero, Sílvio. Cantos populares do Brasil. Rio de Janeiro, Liv. Clássica
de Alves & Cia., 1897. p. VI.
JOSÉ CALASANS BRANDÃO DA SILVA
2. CEMITÉRIO DO APORÁ
Em 1875, Antônio Conselheiro procurou o vigário da freguesia de
Aporá, padre João José Barbosa, oferecendo-se para concluir o cemitério
local, iniciado pelos padres lazaristas. Queria, porém, autorização
eclesiástica para rezar o terço e pregar aos fiéis. Consultado o vigário
capitular, o pedido foi recusado. O peregrino poderia, apenas, rezar o
terço, nunca fazer pregação, que era atribuição do sacerdote. Inconfor-
mado com a decisão, Antônio Vicenteo continuou os trabalhos por
ele começados. (
8
)
Os dois serviços acima referidos, a reedificação da capela da
Rainha dos Anjos e a inacabada tarefa do cemitério de Aporá,o os
únicos de que obtivemos notícias como efetuados antes da prisão do
beato, ocorrida em 1876. Preso e enviado para Quixeramobim, sua vila
natal, onde foi posto em liberdade no mesmo ano, porque nenhum crime
cometera, Antônio Vicente teria retornado ao nordeste baiano logo e
logo, havendo informação, embora vaga, do seu reaparecimento no
terrível 1877, quando a seca assolava as terras sertanejas. A partir de
1877, aumentou extraordinariamente a popularidade do Santo Conse-
lheiro, cuja palavra era ouvida com o maior respeito e as determinações
rigorosamente observadas. Fazer igrejas e cemitérios era a ordem do
chefe messiânico. Informados da ação construtiva do Conselheiro,
choviam os pedidos dos pontos mais distanciados,o sendo alheios
aos mesmos os próprios vigários das freguesias, que faziam concessões
ao Bom Jesus Conselheiro, permitindo mesmo suas pregações. Um dos
padres que mais se aproximaram do peregrino foi o vigário de Itapicuru,
Antônio Agripino da Silva Borges.
3. CEMITÉRIO DO ITAPICURU
Segundo a tradição, de retorno à Bahia, Antônio Conselheiro
ajudou o vigário Agripino Borges na construção do muro do cemitério
de Itapicuru. Membro ativo do Partido Liberal, o pároco combatia os
conservadores, chefiados pelo Dr. Cícero Dantas Martins, depois Barão
de Jeremoabo, de grande influência política local. Jeremoabo, segundo
declaração própria,o via simpaticamente o Conselheiro, enquanto seu
adversário político tudo fazia para manter as boas relações com o
construtor de igrejas, de quem se tornou amigo.
(8) Calasans, José Notícias de Antônio Conselheiro. Salvador, Centro de Estu-
dos Baianos, 1969. p. 9 (Pub. n. 56).
ANTÔNIO CONSELHEIRO, CONSTRUTOR DE IGREJAS E CEMITÉRIOS
4. IGREJA DE MOCAMBO
De acordo com as informações de Antônio Marques da Silva, (
9
)
terminada a obra do cemitério de Itapicuru, rumou Antônio Vicente
para a fazenda Mocambo, de propriedade do médico Dr. Pedro Ribeiro.
onde construiu uma capela sob a invocação deo João Batista, termi-
nada em 1882. Um contemporâneo do Conselheiro, Durval Vieira de
Aguiar, coronel da Polícia Baiana, em duas oportunidades fez referências
à igreja de Mocambo, citando-a como construção de Antônio Conse-
lheiro. Na primeira recordando sua passagem pela povoação do Cumbe,
escreveu: «Nesta ocasião, havia o Conselheiro concluído a edificação
de uma elegante igreja no Mocambo e estava construindo uma excelente
igreja no Cumbe, onde, a par do movimento do povo, mantinha ele
admirável paz.» (
10
) Anos passados, em carta endereçada ao Jornal
de Noticias, repetiu: «Em 1882 o vi concluir a edificação de uma capela
no Mocambo e começar outra no Cumbe.» (11)
A igreja do Mocambo, localidade posteriormente denominada de
Nova Olinda e, no presente, chamada Olindina, foi demolida em 1961,
devido à sua localização e para atender ao novo traçado urbanístico,
permanecendo porém, o cruzeiro erguido por ocasião da construção do
templo primitivo. (
12
)
5. IGREJA DO CUMBE
O antigo Cumbe tem hoje a denominação de Euclides da Cunha.
cidade e município do Nordeste baiano. Como vimos, nas duas decla-
rações de Durval Vieira de Aguiar, ele vira o Conselheiro começar a
igreja do Cumbe. Entretanto, um velho sobrevivente de Canudos
Manuel Ciríaco, afirmou-nos que a capela fora erguida por um outro
Conselheiro, de nome Francisco, homem muito alegre e folgazão. José
Aras, autor de um folheto a respeito do Município, também indica o
Conselheiro Francisco como o construtor da capela e do cemitério de
Cumbe, quando assegura: «Nessa época (1880), andava por ali um
penitente o «Conselheiro Francisco» que se ocupou da construção do
cemitério e da capela,o faltando quem transportasse pedras dos
morros vizinhos e «linhas» de troncosa.s aroeiras, encontradas no Pedre-
gulho e no Saco do Zumbi.» (
13
)
(9) Informação prestada ao autor pelo sr. Antônio Marques da Silva, agente
estatístico do Município de Itapicuru, era correspondência datada de 19 de março
de 1965.
(10) Aguiar, Durval Vieira de. Descrições práticas da província da Bahia.
Tip. do Diário da Bahia, 1888. p. 76.
(11) Jornal de Noticias. Salvador. 13 junho. 1893.
(12) Informações de Antônio Marques da Silva.
(13) Aras, José. História de Euclides da Cunha. Feira de Santana, Tip. Folha
do Norte, 1960. p. 15.
JOSÉ CALASANS BRANDÃO DA SILVA
6. IGREJA DO CHORROCHÓ
Na década de 1880, quando foi levantada a igreja em estudo,
Chorrochó era uma localidade de poucas centenas de habitantes, encra-
vada no município de Capim Grosso, na região doo Francisco. Para
Euclides da Cunha, o Conselheiro andava nos sertões de Curaçá desde
1877, portanto, logo após seu retorno do Ceará. È o que consta em
Os Sertões: «Vagueia, então, durante algum tempo, pelos sertões de
Curaçá, estacionando (1877) de preferência em Chorrochó, lugarejo de
poucas centenas de habitantes, cuja feira movimentada congrega a
maioria dos povoadores daquele trecho de S. Francisco. Uma capela
elegante indica-lhe, ainda hoje, a estadia.» (
14
) A informação a respeito
da datao coincide com o texto da Enciclopédia dos Municípios,
volume XX, no verbete correspondente a Chorrochó: «Em 1884 ali
chegou o fanático Antônio Vicente Mendes Maciel, que iniciou a
construção de uma igreja contando com o auxílio material de grande
número de seus seguidores. Esta igreja recebeu, mais tarde, a invocação
do Senhor do Bonfim.» (
15
) A conclusão da obra teria sido em 1885,
conforme dizem na atual cidade de Chorrochó, pelo que se depreende
de uma reportagem publicada na imprensa baiana, que assim reza:
«Num dia do ano de 1885, o peregrino, como era conhecido, entregava
à população cabocla daquele distrito, remanescente dos Cariris, a Igreja
que se tornaria a quinta que levantou no coração agreste da região.» (
16
)
É possível que, no ano evocado, tenha sido dada por terminada a edifi-
cação da igreja, mas sabemos que, em fins de 1886, ainda arrecadava
o Conselheiro recursos para o templo de Chorrochó, porque, pelo menos
assim o julgava Luís Gonzaga de Melo, delegado de Itapicuru, em
ofício enviado ao Dr. Domingos Rodrigues Guimarães, denunciando as
atividades de Antônio Conselheiro no arraial do Bom Jesus, onde os
crentes arranjavam, de qualquer modo, dinheiro para a edificação da
capela do lugar e para a de Chorrochó. Comunicava Luís Gonzaga de
Melo: «Na construção dessa capela, cuja féria semana] é de quase cem
mil réis, décuplo do que devia ser pago, estão empregados cearenses,
aos quais Antônio Conselheiro presta a mais cega proteção, tolerando
e dissimulando os atentados que cometem, e esse dinheiro sai dos
crédulos e ignorantes, que, além deo trabalharem, vendem o pouco
que possuem e até furtam para queo haja a menor falta, sem falar
nas quantias arrecadadas quem sido remetidas para outras obras no
Chorrochó, termo de Capim Grosso.» (
17
)
(14) Cunha, Euclides da, op. cit., p. 168.
(15) Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro, 1958. v. XX,
p. 159.
(16) A igreja secular é marco do Conselheiro em Chorrochó. Diário de Notícias.
Salvador, 5 janeiro, 1968.
(17) Milton, Aristides A. A campanha de Canudos. Revista do Instituto His-
tórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 63 (2): 16, 1901.
ANTÔNIO CONSELHEIRO, CONSTRUTOR DE IGREJAS E CEMITÉRIOS
A igreja de Chorrochó, a mais imponente das capelas até então
levantadas, recorda, ainda nos dias correntes, a passagem do Conse-
lheiro na região sanfranciscana. Bem defronte ao templo, na praça
principal, alça-se um cruzeiro, sob base de cal e pedra, cercado de
madeira, constituindo uma espécie de coreto, onde o Conselheiro fazia
suas prédicas, conforme declaram habitantes da cidade. (
18
)
7. IGREJA DO BOM JESUS
Trinta quilómetros distantes da sede da Freguesia de Nossa Senhora
de Nazaré do Itapicuru de Cima, num agradável tabuleiro, ficava a
fazenda Dendê de Cima, onde possuíam terras, em 1857, Dionísia
Florinda de Santana e Bernardina Francisca da Conceição. Mais além,
perto do riacho Pecuária, no lugar denominado Dendê de Baixo, eram
proprietários José de Sousa Barbosa e Maria Ferreira de Sousa, conforme
consta do competente livro de registro de terras do município de
Itapicuru, destinado a observância da lei geral de 1850. A zona rece-
bera a denominação de Dendê em virtude da grande quantidade da
planta {Eleasis guinensis Joca) do mesmo nome ali existente, explicam
os velhos do local. Na fazenda de Dionísia Florinda de Santana, uma
santa cruz fora fincada em memória de um crime ali praticado .Uma
mulher mandara matar o marido, reza a tradição.
Perto da santa cruz, em ano desconhecido, Antônio Conselheiro
deliberou estabelecer sua moradia, mandando que seus seguidores derru-
bassem a mata e levantassem casas. Numa delas, recolheu-se o próprio
peregrino. «Uma casa imunda sem um móvel ao menos onde me
pudesse sentar», escreveu ao Jornal de Notícias um viajante que por lá
andou, Maximiano José Ribeiro. (
19
) Construiu também, na praça
extensa, um barracão para abrigar romeiros e cavou um tanque, onde
os habitantes iam buscar água. Batizou o arraial com o nome de Bom
Jesus e tratou de edificar a capela sob sua invocação, defronte da qual
ergueu um imponente cruzeiro. A capela, com ligeiras modificações,
e o santo cruzeiro ainda permanecem como nos primeiros tempos, com
grande respeito dos moradores da cidade, hoje chamada Crisópolis,
depois de haver sido arraial do Bom Jesus e Vila Rica. Quando um
pároco inovador quis transformar o templo,o contou com o apoio
dos seus paroquianos e desistiu da ideia.
Trata-se de uma das igrejas mais conhecidas do Conselheiro, «lindo
e elegante templo no Bom Jesus», que a imaginação sertaneja considera
«a mais bela dos sertões da Bahia, com o interior revestido de lâminas
(18) Diário de Notícias. Salvador, 5 janeiro, 1968.
(19) Antônio Conselheiro, Jornal de Noticias. Salvador, 16 junho, 1893.
JOSÉ CALASANS BRANDÃO DA SILVA
de ouro, ornamentada à semelhança da Igreja deo Francisco, na
Bahia, (
20
) o queo é exato.
No frontal do templo, figura a data 1892, possivelmente o ano em
que o vigário de Itapicuru, padre Agripino Borges, benzeu a igreja, com
grandes festas, música e foguetório, conforme declara um antigo morador
do local, Marcos Dantas de Menezes, nascido por volta de 1880.
Em 1886, já o Conselheiro estava trabalhando nas obras da capela,
gastando cerca de 100$000 por semana, denunciou o delegado de
Itapicuru, considerando ser a importância despendida o décuplo do que
devia ser pago.
8. IGREJA DE BERITINGA
o encontramos quaisquer documentos referentes à participação
do Conselheiro na construção da Igreja de Beritinga, antigamente
Manga. Sabemos, todavia, por informação do professor Júlio Santana
Braga, da Universidade Federal da Bahia, ser voz corrente, na referida
cidade, haver Antônio Vicente levantado a igreja que ali se encontra.
Cipriano José de Sousa, em Itapicuru, enumerando templos erguidos
pelo Irmão Antônio, incluiu o de Beritinga, município baiano da região
do Nordeste, desmembrado de Serrinha.
9. CEMITÉRIO DE ENTRE RIOS
O ilustre advogado baiano, Dr. Ubaldino Gonzaga, natural de
Entre Rios, viu e recorda a chegada, em 1887 ou 1888, de Antônio
Conselheiro em sua cidade natal, com grande número de acompanhantes
conduzindo pedras para o muro do cemitério local. Arribou no mesmo
dia, acrescenta o distinto informante, ainda muito lúcido, apesar da
idade provecta.
A construção datava da época do vigário Luís da Costa Batista,
que contara com a ajuda do povo, segundo documenta correspondência
arquivada no Arcebispado da Bahia. (
21
)
10. CAMINHO DA SANTA CRUZ
Jota Sara, pseudônimo de José Ares, morador em Bendengó e
conhecedor das histórias e estórias sertanejas atinentes à vida e às obras
(20) O que resta de Canudos arrasada. O Globo. Rio de Janeiro. 19 janeiro,
1966. p. 15.
(21) Correspondência do Arcebispo Dom Jerónimo Tomé, 1894. v. I. No
Arquivo da Arquidiocese deo Salvador, Bahia.
ANTÔNIO CONSELHEIRO, CONSTRUTOR DE IGREJAS E CEMITÉRIOS
do Bom Jesus Conselheiro, reconstruiu, num folheto rimado, muitos
episódios do tempo de Canudos. Tratando do «caminho da Santa Cruz».
a estrada pontilhada de capelinhas que frei Apolônio de Todi fez surgir
em Monte Santo, versejou, falando ao Bom Jesus:
Construiu em Monte Santo
O caminho da Santa Cruz
O povo dizia na reza:
«Dou baixou uma luz
Quemo fizer o bem
Dom Sebastião já vem
Mandado do Bom Jesus» (
22
)
A tradição recolhida por Jota Sara pode ser comprovada através
da notícia enviada, em 1893, pelo correspondente do Diário de Notícias
em Monte Santo, a propósito de Antônio Conselheiro: «Fui testemunha
ocular de que, quando aqui esteve o ano passado, envidou meios de
fazer-se alguns reparos nas capelas e na estrada do Monte, daqui, a
fim deo continuar a decadência em que se achava a instituição da
irmandade dos Santos Passos do Senhor do Calvário, pedindo e
aplicando o resultado das esmolas que recebia para este fim.» (
23
)
História e tradição juntas atestam a valiosa ação de Antônio
Vicente na reconstrução dos «passos» de Monte Santo.
11. CEMITÉRIO DA RIBEIRA DO PAU GRANDE
Maximiano José Ribeiro, já citado nesta comunicação, empregado
da firma Barbosa & Eduardo, de Salvador, andava pelo interior do
Estado da Bahia, conhecendo, portanto, os trabalhos efetuados pelo
Conselheiro, de quem fazia lisonjeiro conceito. Visitou-o, certa feita,
no arraial do Bom Jesus, tendo sido «recebido afetuosamente». Em
1893, dirigiu-se ao Jornal de Notícias, relacionando obras de Antônio
Vicente Mendes Maciel: «Em sua peregrinação, só tem feito benefícios,
levantando templos e cemitérios, dos quais conheço um lindo e elegante
templo no Bom Jesus, outro no Mocambo, outro na Rainha dos Anjos
e o cemitério da vila da Ribeira do Pau Grande.» (
24
) A antiga vila é,
na atualidade, a cidade de Ribeira do Amparo.
(22) Sara, Jota. História da guerra de Canudos. 4 ed. Euclides da Cunha,
1963. p. 7.
(23) Diário de Noticias. Salvador, 7 junho, 1893.
(24) Antônio Conselheiro. Jornal de Noticias. Salvador, 16 junho, 1893.
JOSÉ CALASANS BRANDÃO DA SILVA
12. CEMITÉRIO DE TIMBÓ
É tido como absolutamente certo, entre as pessoas do local e das
vizinhanças, haver sido levantado, pelo Santo Conselheiro, o cemitério
de Timbó, no município de Esplanada. O octogenário Marcos Dantas
de Menezes, algumas vezes invocado em nosso trabalho, disse-nos em
duas oportunidades: «o Conselheiro fez cemitério de Timbó».
13. IGREJA DO SOBRADO EM APORA
Deparamos no livrinho de Jota Sara. obra e autor anteriormente
comentado:
Fez a igreja do Sobrado
Na vila de Aporá
Fez em Timbó e Esplanada
E reconstruiu outras» (
25
)
O repórter Luís Paraguaçu ouviu do aedo sertanejo acima refe-
rido: «Aceitaram-no os padres (a Antônio Conselheiro) e o convidaram
para construir a igreja do Aporá, com dois andares. Viveu ele
31 anos no interior da Bahia, construindo 30 igrejas, algumas recons-
truídas.» (
26
)
o foram, evidentemente, 31 anos, pois remonta a 1874 a chegada
do Conselheiro aos sertões baianos, onde veio a morrer em 1897.o
teriam sido também 30 as suas igrejas. Pelo menos as que conseguimos
apurar.
Na fazenda Sobrado é que surgiu a cidade de Aporá.
14. IGREJA DE ESPLANADA
Uma mera referência na poética de Jota Sara, no item anterior.
Nada mais sabemos a tal respeito. Lembramos, contudo, que Antônio
Conselheiro conquistou muitos adeptos em Esplanada, onde apareceu
com frequência. Talvez houvesse feito reparos em alguma ermida da
Freguesia.
(25) Sara, Jota, op. cit., p. 5.
(26) O Globo. Rio de Janeiro, 19 janeiro, 1966.
ANTÔNIO CONSELHEIRO, CONSTRUTOR DE IGREJAS E CEMITÉRIOS
15. CEMITÉRIO DE VILA CRISTINA (SERGIPE)
Vila Cristina, Cristinópolis nos dias presentes, integrou, durante
muito tempo, a freguesia de Itabaianinha, onde Jota Sara localiza uma
igreja do Conselheiro:
Fez igreja em Sergipe
Campos e Itabaianinha (
27
)
Em Cristinópolis, apresentamos nosso testemunho pessoal, disseram-
nos alguns moradores, que o Conselheiro fizera obras no cemitério.
A Folha de Sergipe, Aracaju, edição de 2 de abril de 1897, registra
a construção do cemitério pelo Conselheiro.
16. IGREJA DE CAMPOS
Quando, ainda na década de 50, iniciamos nossas pesquisas sobre
Canudos e Antônio Conselheiro, conversamos longamente com Antônio
Alves de Oliveira, apelidado Cafubeira pelos seus companheiros de
repartição. Era funcionário dos Correios e Telégrafos e nascera em
Campos, atual Tobias Barreto, em Sergipe. Conhecera em sua cidade
um senhor de nome Sobem, que tinha alguns filhos doentes mentais e
era amigo e compadre do Conselheiro, a quem hospedava em suas
passagens por ali. Recordava o nosso informante que o Santo viajava
num carro puxado pelos seus adeptos. Assegurou-nos que o futuro
chefe de Canudos executara alguns reparos na igreja de Campos. O
verso de Sara confere com a indicação que nos foi dada por pessoa
digna de crédito.
17. IGREJA DE NATUBA
O caso de Natuba, depois Soure, presentemente Nova Soure, é
singular. O povoado, antiga missão jesuítica, possuía sua igreja, a
merecer consertos. Certa feita, na ausência do vigário, com quemo
vivia em harmonia, o Conselheiro apareceu e mandou carregar pedras
para fazer os necessários reparos. Com a chegada do padre, modi-
ficou-se a situação. O sacerdote entregou aos proprietários as pedras
acumuladas, que, assim, calçaram os passeios de suas casas, lrritou-se o
velho construtor de igrejas e partiu amaldiçoando a cidade ingrata.
Euclides da Cunha, a quem devemos o conhecimento do fato, prosseguiu:
«Tempos depois, a pedido do mesmo vigário, certa influência local o
chamou. O templo desabava, em ruínas: o mato invadira todo o cemi-
tério e a freguesia era pobre. Só podia renová-la quemo bem
dispunha de matutos crédulos. O apóstolo deferiu ao convite. Mas
(27) Sara, Jota, op. cit., p. 7.
JOSÉ CALASANS BRANDÃO DA SILVA
fê-lo através de imposições discricionárias, relembrando, com altanaria
destoante da pacatez antiga, a afronta recebida» (
2S
).
Em Simão Dias, Sergipe, o ancião José Marçal, que se lembrava
do Conselheiro chegando à vila, contou a Joaquim Goes que, por sua vez
repetiu a Nertan Macedo: «O Peregrino continuou viagem para Ita-
picuruzinho, daí para a vila de Natuba, onde construiu (ou teria apenas
ajudado a construir) o cemitério e a primeira igreja daquela terra» (
29
).
Evidentemente, tendo em vista a origem remota da localidade, no
século XIX, Antônio Conselheiro apenas poderia colaborar na restau-
ração de uma antiga Casa de Deus.
18. IGREJA DE SANTO ANTÔNIO (Canudos)
A história desta igreja é assaz conhecida. Numa das suas peregri-
nações, passando pelo arraial de Canudos, Antônio Conselheiro prome-
teu ao negociante de couro Antônio da Mota, de quem foi hóspede, que
voltaria para levantar uma capela, de vez que a existente era muito
pequena. Cumpriu a promessa, parecendo que a igreja de Santo Antônio
já estava quase pronta, quando ele veio a se fixar à margem do Vaza-
barris, em 1893. A bênção do templo, que admitimos tenha sido dada
pelo vigário do Cumbe, padre Vicente Sabino dos Santos, foi um grande
acontecimento, com muitos batizados e casamentos, que Pedrão e Manuel
Ciríaco, contemporâneos dos fatos, rememoraram em nossa presença.
Antônio Conselheiro pronunciou um discurso escrito por ocasião do
«recebimento da chave da igreja de Santo Anônio», dando graças a
Deus, enfatizando a necessidade das construções de igrejas, atacando
Of judeus, os protestantes e os maçons. A chave da Igreja está, hoje,
guardada no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, trazida do Belo
Monte, após sua destruição, pelo acadêmico de medicina Alvim Martins
Horcades. Como de praxe, defronte da igreja, o cruzeiro. Contém
a inscrição: «Edificadu em 1893. A.M.M.C.» No final da lápide, as
iniciais: M.M.G. As primeiras letras significavam Antônio Mendes
Maciel Conselheiro. As outras, anotou Pedro Calmon: Mestre Manuel
Gonçalo, fundidor. (
30
)
Como o buriti de Afonso Arinos, o velho cruzeiro «testemunha
sobrevivente do drama»o foi destruído. Ficou no arraial. Agora,
quando as águas do açude do Cocorobó inundaram o Belo Monte, foi
transferido para o povoado de Nova Canudos.
(28) Cunha, Euclides da, op. cit., p. 179.
(29) Macedo, Nertan. António Conselheiro. Rio de Janeiro, Gráfica Record
Ed., 1969. p. 157.
(30) Calmon, Pedro. História do Brasil, Rio de Janeiro, Liv. José Olympio,
1959. v. 5, p. 1999.
ANTÔNIO CONSELHEIRO, CONSTRUTOR DE IGREJAS E CEMITÉRIOS
19. IGREJA DO BOM JESUS
O arraial cresceu e cresceu muito, desde a chegada do Santo Con-
selheiro. Milhares de pessoas, procedentes de distanciados pontos dos
sertões, deslocaram-se para o lugar sagrado. Foi necessário, por isto,
talvez, erguer outro templo, bem maior, defronte da capela de Santo
Antônio. Na praça das Igrejas. Mais do que um local para rezas, a
nova construção seria uma fortaleza destinada a conter as forças do
governo. Assim, pelo menos, julgava a imprensa do tempo da Guerra
de Canudos.
Foram as obras da igreja nova, queo chegou a ser concluída, o
motivo da sangrenta luta fratricida, principiada em 1896. Por intermédio
de Macambira, um dos seus homens de confiança, o Conselheiro enco-
mendou madeira na cidade de Joazeiro, a pagar com os recursos da
comunidade. Espalhou-se, porém, na cidade, que os jagunços iriam
buscar de qualquer forma a encomenda, cuja entrega fora retardada.
Seria a hora do assalto ao importante centro urbano do rioo Fran-
cisco. O pânico «dominou algumas autoridades locais, a começar pelo
juiz de direito, dr. Arlindo Leoni. Foi pedida a presença de tropa para
garantir Joazeiro. Indo além, um destacamento de linha, comandado pelo
tenente Manuel da Silva Pires Ferreira, tomou o rumo de Canudos, desde
que os conselheiristaso apareciam no povoado de Uauá, travou-se o
primeiro choque. Começava a guerra. Canudos foi atacado e o Conse-
lheiroo concluiu a igreja dos seus derradeiros sonhos.
20. CEMITÉRIO DE CANUDOS
Está também incluído nas obras do Peregrino o cemitério do arraial
de Canudos, situado no fundo da Igreja Velha ou de Santo Antônio.
Foi o que soube e escreveu Manuel Benício: «Já tinha ele construído por
detrás da Igreja Velha, um cemitério» (
31
) . Ouvimos ratificada a infor-
mação por sobreviventes da Guerra.
* * *
Aí estão 20 construções, entre igrejas e cemitérios. Vagamente,
aqui e ali, algumas referências ondeo apontadas edificações ou res-
taurações em Inhambupe, Barracão, Tucano. Nada absolutamente de
concreto. Confusas informações,o raro.
De nossa parte, prosseguiremos nas perquirições, procurando escla-
recer um tema histórico aqui, agora, apresentado em primeira mão.
(31) Benício, Manuel. O rei dos jagunços. Rio de Janeiro, Tip. do Jornal do
Comércio, 1899. p. 166.
O Homem e as Condições Ecológicas
da Amazônia Brasileira
ANTÔNIO DA ROCHA PENTEADO
1. INTRODUÇÃO
A
Amazônia Brasileira possui características marcantes que a indi-
vidualizam como um território «sui-generis».
Suas três características principais são: 1') o fato de ser um
espaço tipicamente tropical; 2') o de possuir uma considerável extensão
geográfica;) o de ser uma das áreas menos ocupada pelo homem
brasileiro.
Situada ao norte do Brasil, atravessada pelo equador terrestre,
a Amazônia deve ser considerada uma região tropical,o somente pela
posição geográfica que ocupa, mas principalmente por ser uma região
onde predomina um clima quente sem inverno (temperatura média do
s menos quente do ano é igual ou superior a 18' C), onde o total
anual das chuvas é tal queo conhece a aridez (índices pluviométricos
anuais superiores a 350 mm) e onde o homem pode praticar uma agri-
cultura sem ter que, necessariamente, recorrer à irrigação. Esse con-
ceito de tropicalidade, assim expresso por Pierre Gourou
l
, define mui-
to bem as condições de tropicalidade da Amazônia Brasileira, região
(1) GOUROU, Pierre Les pays
tropicaux,
p. 1.
ANTONIO DA ROCHA PENTEADO
onde dominam os climas quentes e úmidos e na qual,o havendo falta
d'água, os processos agrícolas postos em prática pelo homemo preci-
sam recorrer ao uso obrigatório de práticas de irrigação.
A segunda característica fundamental da Amazônia Brasileira liga-
se à sua grande extensão territorial: 3.581.180 km
2
se a considerarmos
como sendo a Região Norte, segundo o critério do I.B.G. (Acre,
Amazonas, Pará, Amapá, Roraima e Rondônia) ou então, 5.031.883
km
2
se a encararmos como identificada plenamente com a Amazônia
Legal, definida em lei para efeito de incentivos fiscais, para o que
àqueles estados e territórios citados se acrescentam trechos do norte
de Goiás e de Mato Grosso e a parte ocidental do Maranhão. No
primeiro caso ela abarcaria 42,07% do território do Brasil, e, no se-
gundo, 59,11% do País.
Se a tropicalidade imprime-lhe condições específicas às suas pai-
sagens, a vasta extensão do território que possui vai fazer com que nela
as medidas das distâncias sejam tomadas em escala continental; nesses
dois aspectos, tropicalidade e vastidão, a Amazônia se identifica com
características em.nentemente brasileiras, já que o Pais se notabiliza,
também, por ser em sua grande parte, um país tropical e ocupar uma
enorme extensão territorial.
Mas a Amazônia possui, ainda, uma terceira característica fun-
damental, qual seja a de se apresentar, ainda que estejamos no ano
de 1973, como uma das regiões menos povoadas do globo, ondeo
chega a existir na maior parte de seu território, 0,5 habitantes por
quilômetro quadrado. Nisso ela difere do resto do País, especialmente
das regiões situadas ao longo da costa oriental do Brasil, desde o
litoral nordestino até o Rio Grande do Sul.
Pode parecer paradoxal, que numa época em que o homem con-
quista o espaço sideral e já conseguiur oss na superfície da Lua,
estejamoss brasileiros a enfrentar os problemas decorrentes da ocupa-
ção de um território que equivale a quase metade da área do Brasil!
Tal fato apresenta para o País a grande vantagem de fazer com que
tenhamos, ao se aproximar o último quartel do século XX, um enorme
potencial de espaço, condição que poucas nações podem conhecer; so-
mos o 4ª País do mundo em terras contínuas e um dos dois maiores,
quando se comparam as áreas realmente aproveitáveis pelo homem, já
que o Canadá e a China que nos precedem em extensão,m vastas
porções de seus respectivos territórios dominadas por climas muito frios
ou muito secos, criando vastas regiões inabitáveis, como as ocupadas,
respectivamente, pelas Tundras ou pelo Deserto de Góbi.
Isto significa, em termos de potencial de espaço, que o Brasil é
um dos países mais bem dotados de todo o mundo; «não possuímos o
problema do espaço vital e somos talvez, por isso mesmo um povo paci-
O HOMEM E AS CONDIÇÕES ECOLÓGICAS
fista» (
2
). Temos assim uma «reserva» de espaço que poucas nações
possuem e podemos utilizar esses espaços como desejarmos, como já
escreveu SUPAN:
«Feliz o Estado que possui tais espaços do futuro, pois pode
praticar assim, dentro de suas próprias fronteiras, uma política
de expansão, colonizar e prosperar em paz: ele cresce por
dentro» (
3
) .
A Amazônia Brasileira é uma das áreas do Brasil que ainda hoje
esperam a criação de uma infra-estrutura capaz de suportar a carga de
um processo de desenvolvimento; o Programa de Integração Nacional
deverá criar para a Amazônia as condições ideais para que se desenrole
um processo integratório que fará o País «crescer por dentro» através
de uma verdadeira política de expansão interna, capaz de fazer o País
«colonizar-se a si próprio», crescer e «prosperar em paz», de acordo,
aliás com os nossos Objetivos Nacionais.
2. CONDIÇÕES ECOLÓGICAS DA AMAZÔNIA BRASILEIRA
Num estudo sumário das condições ecológicas da Amazônia Bra-
sileira convém apresentar os aspectos essenciais apresentados pela natu-
reza amazônica no que diz respeito ao clima e à vegetação, à estrutura
geológica e ao relevo e aos solos e à hidrografia.
2.1 CLIMA E VEGETAÇÃO
Já acentuamos que a Amazônia Brasileira é uma região de clima
tipicamente tropical. As razões que explicam o fato da Amazônia Bra-
sileirao conhecer, nem o inverno térmico e nem a aridez dos desertos,
residem em condições locais, próprias da área em que se acha localizada,
e nas condições regionais, ligadas à circulação das massas de ar sobre o
continente Sul-Americano.
A situação da Amazônia, junto à linha do equador e estendendo-se
a poucos graus de latitude norte e sul, já por si só cria condições bási-
cas para explicar o aquecimento da região; todavia, convémo exage-
rar a presença de elevadas temperaturas na região, onde o caloro é
maior do que o conhecido por outras regiões brasileiras e até mesmo
inferior àquele que se registra no verão, em muitas localidades do sul
do Brasil.
As temperaturas médias anuaiso na região sempre superiores
a 25' C, mas raramente ultrapassam 27' C; o período menos quente do
(2) PENTEADO, Antônio Rocha «Segurança e Desenvolvimento» nº 145,-
gina 62.
(3) AZEVEDO, Aroldo de Brasil, a terra e o homem, vol. I, p. 6.
ANTÔNIO DA ROCHA PENTEADO
ano é o que vai de julho a setembro, mas as variações anuais da tempe-
raturao inferiores a 5º C, caracterizando-se o clima amazônico por
ser, do ponto de vista térmico, rigorosamente, isotérmico, pelo menos no
que se refere aos dados conhecidos sobre o assunto.
É evidente que em termos de ocupação da região, o interesse maior
está em se conhecer a variação normal das temperaturas eo o estudo
médio das mesmas; durante um dia, a variação é muito ampla pois pela
madrugada o termômetro desce a níveis inferiores a 20º C.o os
valores extremos que limitam a vida das plantas, por exemplo, condi-
cionando, portanto, o desenvolvimento regional ligado à pecuária, à
agricultura e à silvicultura.
Ao contrário do que se passa com as temperaturas, existe uma
grande variedade no que se refere à pluviosidade; há uma noção difun-
dida no Brasil e no Exterior de que na Amazôniao existe estação
seca e que seu clima é caracterizado pela grande quantidade de chuva
que possui, chuvas estas contínuas e persistentes, de tal forma que qual-
quer atividade agrícola torna-se, economicamente, impossível.
Essa noção é inteiramente falsa, porque na maior parte da Ama-
zônia o clima possui uma estação seca pequena, mas muito bem definida,
restrita a três ou quatro meses por ano, já que se consideras seco
todo aquele em que o total mensal de chuvaso ultrapassa o índice
de 60 mm; assim sendo, em Manaus há três meses secos por ano; em
Boa Vista, sete meses; em Santarém, quatro meses; em Rio Branco, cin-
co meses; em Clevelândia, dois meses, etc, conforme os dados co-
nhecidos .
A explicação dessa repartição das chuvas durante o ano está ligada
ao movimento das massas de ar sobre a América do Sul; de um modo
geral, pode-se afirmar que é no verão austral que predomina a estação
chuvosa na Amazônia, particularmente sobre a área percorrida pelo
grande rio e em toda a sua extensão meridional, rumo ao centro-oeste
brasileiro.
De dezembro a março, estendendo-se conforme os anos, até abril,
maio e junho, prolonga-se a estação chuvosa na Amazônia, chamada
«inverno», já que termicamente eleo é reconhecido. É a época que
predomina na região a permanência de massas de ar quente e úmidas,
equatoriais e tropicais.
De junho a setembro, a quantidade de chuvas diminui na Amazô-
nia salvo no seu trecho situado ao norte do rio Amazonas, como se,
com os dados referentes às localidades de Boa Vista e Clevelândia. É
o período no qual as massas de ar, de origem continental, particular-
mente a massa tropical continental vai permanecer sobre a Amazônia
Brasileira; é este também o período no qual a penetração da massa fria
polar faz sentir sua presença na parte ocidental da Amazônia (Rondô-
nia, Acre, ocidente do Amazonas), através de ondas de frio que causam
O HOMEM E AS CONDIÇÕES ECOLÓGICAS
a queda momentânea das temperaturas para os índices de 15 ºC
16' C, fenômeno distinguido pela população e por ela denominado
«friagem».
Como consequência do que foi exposto, nota-se queo existe
uma uniformidade climática na Amazônia; a isotermia que caracteriza
o clima amazônico é substituída por uma grande variação dos regimes
pluviométricos, que apresentam índices extremamente variáveis. Basta
verificar o comportamento dos desvios das precipitacões anuais na Ama-
zônia, que ultrapassam a mais de 30% entre anos consecutivos, para
constatar que as situações anormais predominam sobre as consideradas
normais.
Daí, apesar das generalizações errôneas queo divulgadas sobre
o clima da região, ser possível reconhecer na Amazônia os seguintes
subtipos climáticos do grande grupo climático «A» do Sistema Inter-
nacional de Koppen:
1) Clima Ami predominante na Amazônia, quente e úmido, com três a qua-
tro meses secos.
2) Clima Awi encontrado no território situado no extremo norte da Amazô-
nia especialmente em Roraima, como também nos trechos meridionais da região
junto ao Brasil Central. É o clima típico tropical, com a clássica alternância entre
estações chuvosas (dezembro a março) e estações secas (junho a setembro).
3) Clima Afi conhecido na foz do Amazonas, litoral do Amapá e parte
noroeste do Estado do Amazonas, no qualo existe estação seca (todos os
meses do ano com mais de 60 mm de chuvas).
Este é o retrato atual dos conhecimentos climáticos da região; deve
haver, forçosamente, outros tipos derivados de uma acentuada ação de
altitude, nas áreas planálticas situadas ao norte da região junto às fron-
teiras das Guianas e Venezuela.
Em um quadro climático predominantemente quente e úmido o
desenvolvimento vegetal alcançou um tal nivel que a grande cobertura
florestal encontrada na região constitui um dos elementos fundamentais
para a caracterização e delimitação do espaço amazônico.
A Floresta Amazônica é uma formação latifoliada, de enorme
variedade e exuberante demonstração de vida vegetal. «Ever Green
Forest», segundo autores anglo-saxônicos, «forêt pluvial tropicale» se-
gundo os autores franceses, «Hyloeia» segundo Humboldt, a floresta
amazônica é um exemplo excelente de formação vegetal desenvolvendo-
se em perfeito estado de equilíbrio.
Ela é bem caracterizada pela grande variedade de espécies, e o que
determina seu caráter heterogéneo é um dos maiores, senão o maior dos
problemas a serem enfrentados para a sua exploração pelo homem.
Seus maiores indivíduos chegam a ter 40 a 45 m de altura; mas,o
raros, permanecendo a mata, graças à luta pela luz, com o tipo de
cobertura muito irregular, despontando e sobrepondo-se aos demais,
um ao outro indivíduo de altura exagerada.
ANTONIO DA ROCHA PENTEADO
Muitas das suas espécies possuem condições de explotação, pois
o madeiras-de-lei; a grande maioria, entretanto,o o é. Daí resulta
que a explotação da florestao pode ficar ligada a métodos tradicio-
nais; ela deve estar voltada para o aproveitamento de pasta ou celulose
e laminados, no que a floresta pode oferecer abundante matéria-prima.
Mas o que se distingue no estudo da floresta amazônica é que
ela, na verdade, comporta ou engloba três subtipos de matas, condicio-
nadas a um dos fatores ambientais em que se desenvolve: a morfologia
regional. O reconhecimento desse fato é fundamental para a compreen-
o do problema da existência de matas de várzea, igapó e terra-firme.
A mata de várzea é uma formação hidro-higrófila que se desenvolve
sobre os terrenos anualmente atingidos pelas enchentes do Amazonas e
de seus tributários. Por estar à margem de cursos d'água recebe luz do
sol com muito maior quantidade do que a mata fechada de terra-firme.
Sua orla é emaranhada, pela grande quantidade de arbustos, trepadei-
ras e cipós, dando a falsa ideia de ser impenetrável; ela é o domínio das
palmeiras (de largo uso pelo homem amazônico), mata onde se encontra
grande número de espécies vegetais produtoras do látex, entre elas a
«hevea brasiliensis» a seringueira. Significa este fato que se fosse
desenvolvida a ideia da construção dos lagos amazônicos (Projeto do
Hudson Institute) estaria praticamente extinta a produção de borracha
nos municípios do baixo e médio Amazonas, particularmente da região
situada entre Óbidos e Manaus.
A mata de igapó difere da anterior por estar situada em terrenos
periodicamente inundados. No baixo-Amazonas, particularmente na foz
do rio Xingu para jusante, essas inundaçõeso diárias, como re-
percussão da enchente da maré sobre o escoamento das águas fluviais.
Na mata de igapóo há sub-bosque, ao contrário do que ocorre na
mata da várzea: as árvores pousam diretamente sobre o solo lodoso
dos igapós. Habitat, também, das seringueiras e de um elevado número
de espécies vegetais queo alcançam grande altura e nem possuem
tronco muito robusto.
Já a mata de terra-firme possui outra feição; em primeiro lugar, ela
o é uma formação própria da planície de inundação como oo as
outras duas. Ao contrário, o seu habitat preferido é o planalto sedi-
mentar amazônico, área jamais atingida pelas enchentes e constituída
por vastas plataformas de arenito, separadas em secções pelos vales dos
afluentes do Amazonas.
A mata de terra-firme domina a paisagem florestal da Amazônia,
correspondendo a mais de 90% das formações florestais nela existen-
tes. Escura e sombria no seu interior é também área de imensa mono-
tonia, onde o horizonte é circunscrito a poucas dezenas de metros do
observador.
O HOMEM E AS CONDIÇÕES ECOLÓGICAS
Vive sobre solos extremamente frágeis, num equilíbrio vegetal
muito instável, alimentando-se de matéria orgânica proveniente da
decomposição de suas próprias folhas, galhos ou troncos caídos. Quan-
do se caminha sobre o solo da mata, anda-se sobre um solo fofo,
onde existe uma espessura variada de uma camada de matéria orgânica
vegetal em decomposição, oferecendo uma falsa noção de terra fértil.
Retirada a floresta, a renovação da matéria orgânica deixa de ser
feita e a degenerescência do solo torna-se rápida.
A floresta de terra-firme, pode-se afirmar, vive em equilíbrio sobre
si mesma. Nela há grandes exemplares arbóreos, como a castanheira
(Bertolletia Excelsa) que chegam a ter mais de 40 m de altura. Con-
vém, entretanto,o exagerar as qualidades da mata de terra-firme,
onde nem sempre os indivíduos de grande porte predominam, como
ocorre, por exemplo, na região de Manaus, onde Takeuchi, com um
recenseamento botânico, encontrou numa amostra de floresta com
1.600 m
2
de área, 390 árvores com até 10 cm de diâmetro, medidos a
1 m de altura do solo, 123 com mais de 10 cm, 112 palmeiras, 146
ervas diversas, 19 epífetas e 2 saprófitas (
4
).
Nem toda a mata de terra-firme é constituída por espécies de
grande valor comercial; há madeiras-de-lei na floresta, mas dada a hete-
rogeneidade da composição da mata, os exemplares semelhantes em
espécie se encontram muito distanciados uns dos outros, o que dificulta,
sobremaneira, a sua explotação.
Mas há regiões da Amazônia onde a cobertura florestal cede lugar
aos campos, que no conjunto aparecem como verdadeiras manchas
intrometidas na imensa área florestal.
Os campos da Amazônia pertencem a duas categorias: campos
limpos e campos cerrados, consequências de condições naturais, espe-
cialmente edáficas e climáticas, maso deixando de ter relações, inclu-
sive com o uso do fogo pelo homem que alastrou a área ocupada pelos
campos e que tornou, por isso mesmo muito difícil o estudo do limite
savana-floresta na Amazônia Brasileira.
A maior área de campos limpos da Amazônia está em Marajó. Na
grande ilha, cerca da metade de sua extensão é ocupada por campos
limpos, onde predomina uma vegetação rasteira, notadamente gramí-
neas; esses campos naturais de Marajó, secos, inundados ou atolentos
(mondongos),o tradicionalmente usados para a criação extensiva de
gado bovino e bubalino.
À margem esquerda do rio Amazonas existe uma série de pequenas
manchas de campo cerrrado com um acentuado aspecto de xeromorfis-
mo.o os campos do Erepecuru e do Trombetas, entre outros e os
(4) TAKEUCHI, Masayuki A mata pluvial tropical p. 5.
ANTÔNIO DA ROCHA PENTEADO
do rio Negro (estes até chamados de Catingas do rio Negro). Alguns
desses campos estão bem estudados (
5
) e sabe-se, com certeza, que
os do rio Negroo constituídos por
«uma vegetação baixa, raquítica e muito densa, geralmente de folhagem escle-
rosada, persistente, sobre solo arenoso, branco, superúmido, muito pobre» (6).
Outra área campestre importante pela extensão que ocupa é a
que se situa no território de Roraima os campos do rio Branco, cam-
pos mistos que se estendem por quase toda a porção centro-norte daque-
le território brasileiro e que pela posição geográfica que possuem,o
de inegável interesse a qualquer programa de colonização.
2.2 ESTRUTURA GEOLÓGICA E RELEVO
A Amazônia Brasileira possui uma estrutura geológica original,
em virtude de ser constituída por quatro grandes unidades: a) a orla lito-
rânea; b) o escudo das Guianas; c) o escudo Sul-Amazônico; d) a bacia
de sedimentação Amazônica.
A or/a litorânea é eminentemente uma área formada por terrenos
recentes, quaternário (praias e mangues) e cenozóicas (terciário das
Barreiras), dando origem a uma linha de costa baixa e lodosa, onde
muitoso os baixios e grande é a penetração das marés por ocasião
dos fluxos, enquanto que nos refluxos uma vasta plataforma de arenito
ferruginoso (laterita) é visível em muitos trechos da baía de Marajó e
do litoral do Amapá.
O escudo das Guianas situado ao norte da Amazônia é formado
por rochas précambrianas, sobretudo gnaisse e granitos muito arrasados
pela erosão, dando origem a um vasto planalto O Planalto das Guia-
nas cuja superfície ligeiramente ondulada se situa entre 250 300 m
de altitude em média, salvo onde verdadeiros «inselbergs» se destacam
na monótona topografia do planalto (Pedra do Cucuí, por exemplo) ou
onde, junto às fronteiras do Brasil com os países lindeiros do norte da
América do Sul, se encontram uma série de serras: Parima, Pacaraima,
Tumucumaque, etc. Aí as altitudes chegam a ultrapassar a cota dos
1.000 m de altitude e chegam até a mais de 2.800 no Roraima e a mais
de 3.000 m no Pico da Neblina.
Ao sul da Amazônia encontra-se o escudo Sul-Amazônico, de mes-
ma idade e constituição do anterior, também muito desgastado pela
longa ação erosiva que vem sofrendo desde a sua formação (pré-cam-
briana). Originando o vasto planalto que é denominado Sul-Amazô-
(5) RODRIGUES, William A. Aspectos fitossociológicos das catingas do Rio
Negro.
(6) Idem, ibidem, p. 1.
O HOMEM E AS CONDIÇÕES ECOLÓGICAS
nico, onde predominam vastas superfícies aplainadas (
7
), que vê nos
níveis dos topos de suas plataformas uma continuação ou prolongamento
daqueles encontrados nas terras firmes da bacia de sedimentação Ama-
zônica (
8
).
Fica assim caracterizado o relevo da área ocupada pelo escudo
Sul-Amazônico, que se prolonga para leste e sul através de terrenos
sedimentares (arenitos) queo se confundir com os da bacia de sedi-
mentação do Maranhão, Piauí e com terras areníticas do centro de Goiás
e Mato Grosso.
Entre os dois escudos citados encontra-se a extensa bacia de sedi~
mentacão Amazônica, constituída por argilas cenozóicas (sobretudo),
matrizes de grande maioria dos solos que nela existem, por depósitos
quarternários (pleistocênicos e holocênicos) já em muito menos quanti-
dade e por duas faixas de terrenos páleo-mesozóicos no baixo-Amazo-
nas (arenitos e algum basalto), esta região apresenta dois aspectos
morfológicos distintos: o dominante é representado pelo vasto Planalto
Sedimentar Amazônico que ocupa, seguramente 1.500.000 km
2
dos
1.600.000 km
2
que possui a área total da bacia de sedimentação, for-
mando o que se chama de terra-firme área enxuta e inteiramente
livre das inundações, onde as colinas de forma sub-tabular tem seus
tipos entre 200 250 m de altitude, onde predominam os derrames
basálticos (serra de Itauajuri em Alenquer, Pará, por exemplo, com
350 m de altitude) e as elevaçõeso como consequência dessa ocorrên-
cia mais proeminentes. (
9
)
Dentro da Bacia Amazônica, acompanhando o eixo do Amazonas
e de alguns de seus mais notáveis afluentes encontra-se hoje, embutida
no planalto sedimentar Amazônico, uma área ocupada pelo leito-maior
do Amazonas e de seus tributários: essa área é a Planície Amazônica,
cuja extensão é de 100.000 km
2
daquele total de 1.600.000 que possui
toda a Bacia de Sedimentação Amazônica, ou seja, 1/16 do total da
mesma.
, nesta Planície Amazônica, é que se encontram as várzeas inun-
dáveis do Amazonas e do Pará e os igapós alagadiços da região, que
acompanham os amplos vales fluviais contrastando, assim, com a pai-
sagem dos terrenos enxutos de terra-firme circunjacentes. Importante
é destacar, embora sua área seja reduzida, a presença dos tesos, peque-
nos terraços pleistocênicos que dominam com seus cinco a quinze metros
de altitude os terrenos das várzeas e igapós que ocupam os níveis mais
baixos da planície de inundação, ou seja da Planície Amazônica.
(7) AB'SABER, Aziz Superfícies aplainadas e terraços na Amazônia; «Geo-
morfologia», nº 4.
(8) PENTEADO, Antônio Rocha Condições geo-econômicas da Amazônia
Brasileira, p. 36.
(9) Idem, ibidem.
ANTÔNIO DA ROCHA PENTEADO
O arranjo dessas áreas estruturais e morfológicas é de extraordi-
nária importância para a compreensão da natureza amazônica; às con-
dições climáticas tropicais da região, capazes de criar um ambiente
propício ao desenvolvimento da floresta tropical em diversos graus, jun-
tam-se as características morfo-estruturais e morfo-climáticas conforme
demonstrou Ab'Saber (
10
), imprimindo à Amazônia aspectos de mar-
cante originalidade geográfica.
o é possível esquecer estes fatos; a rede hidrográfica subordi-
nada inteiramente a tais condições criou certas vantagens à ocupação
humana da região, mas também pelos mesmos motivos gerou uma série
de problemas que o homemo teve condições para resolver até bem
pouco tempo atrás, em virtude de desconhecer técnicas adequadas à
solução da problemática regional; particularmente, o aproveitamento dos
cursos de água reflete bem a situação a que acabamos de nos refe-
rir (11)
2.3 HIDROGRAFIA E SOLOS
A vasta rede hidrográfica do Amazonas representa para a região
um forte «handicap» à sua ocupação; foi, no passado, elemento básico
para a penetração portuguesa no norte do Brasil, que dela se valeu, e,
até certo ponto mesmo, a ela se submeteu.
Do ponto de vista ecológico, a imensa rede apresenta condições
importantes: a natureza amazônica dificilmente poderia ser compreendi-
da sem a presença do rio-mar e de seus tributários. Subordinando-se
às condições climáticas e às estruturais e morfológicas ela se apresenta,
em linhas gerais, da seguinte forma:) um rio principal — o Amazo-
nas acompanhando em seu trajeto oeste-leste, o grande eixo da Bacia
de Sedimentação Amazônica;) os afluentes de sua margem norte,
guardando um certo paralelismo entre si, segundo a direção noroeste-
sudeste e denuncando com tal padrão de drenagem sua subordinação a
um sistema de fraturas existente no dorso do escudo das Guianas e que
se reflete na Bacia de Sedimentação; 3') os grandes tributários da mar-
gem sul do Amazonas, seguindo a direção aproximada de sudoeste-nor-
deste e guardando um notável paralelismo também, acusam neste padrão
a presença de estrutura geológica do escudo Sul-Amazônico afetada por
antiquíssimas fraturas; 4") no exame dos cursos d'água é evidente que
porções de seus trajetos obedecem sempre as duas citadas direções;)
a presença de uma série de corredeiras e cachoeiras, tanto nos afluentes
da margem norte como nos da margem sul do Amazonas, corredeiras
e cachoeiras estas que se acham colocadas exatamente nos limites se-
(10) AB'SAEER, Aziz O domínio morfo-climático Amazônico; «Geomoforlo-
gia», n° 1.
(11) PENTEADO, Antônio Rocha, ob. cit., p. 37.
O HOMEM E AS CONDIÇÕES ECOLÓGICAS
tentrionais e meridionais da Bacia de Sedimentação Amazônica, onde ela
entra em contacto com o escudo das Guianas e Sul-Amazônico, forman-
do-se assim, graças a este arranjo da estrutura geológica da região
duas «fall-zones», que a larga distância do Amazonas acompanham,
grosseiramente, o traçado do grande rio, de oeste para leste (
12
); fato
que no passado fixou os pontos terminais de navegação fluvial e conse-
quentemente limitou a penetração humana, mas que no presente adquire
excepcional importância para a colonização, graças a energia hidrelé-
trica que poderá fornecer aos futuros núcleos de população;) um
imenso caudal — o Amazonas, verdadeiro coletor de águas prove-
nientes de dois hemisférios com máximas pluviométricas situadas nos
respectivos verões que se alternam, o que faz com que ele tenha, apesar
de seu insignificante «gradient» inferior a 20 mm por quilómetro, des-
carga superior a 200.000 m
3
por segundo (213.377,5 em ÓBIDOS),
ou seja, o equivalente a 1/5 do débito de todos os rios do mundo,
cinco vezes mais do que o do Congo, ou doze vezes mais que a des-
carga do rio Mississipi (
13
);) rios com águas diferentes em com-
posição, coloração e densidade, uns brancos (barrentos), outros negros
(águas claras) e outros, ainda, verdes (plancton); 8') rios grandes ou
pequenos (igarapés), que correm independentemente, ou que possuem
uma profusão de braços (paranás-mirins), em que se desenvolvem anos-
tomosadamente nas planícies de inundação, por isso mesmo ocupadas
largas partes do ano por lagos em forma de meia-lua, que nada mais
o do que braços meândricos abandonados pelo caudal principal, como
se nota nos vales dos maiores afluentes (Madeira, Juruá, Purus, Javari,
etc.) e no próprio Amazonas;) rios onde a correnteza é forte, apesar
de fraca declividade, em função do volume de água, e por isso mesmo
capazes de solapar as barrancas dos diques marginais e levar consigo
vastos tratos de terreno «as terras caídas»; 10') rios pobres em
matéria fertilizante, com águas ácidas, incapazes de criar várzeas fér-
teis, ao ser quando transportam, após a estação chuvosa, o húmus
vegetal fornecido pelas enxurradas, que do alto dos firmes procuram os
vales fluviais mais próximos (
14
).
A estrutura geológica e o relevo, as condições climáticas, a vege-
tação e a hidrografia, concorrem para a caracterização do solo amazô-
nico. Sobre tal assunto já tivemos ocasião de escrever que os solos
da Amazônia foram erradamente classificados, todos eles, como solos
lateríticos; entretanto, na região predominam latossolos amarelos, latosso-
los concrecionários, regossolos e glei pouco úmido.
(12) PENTEADO, Antônio Rocha, obra citada, p. 36.
(13) D.N.P.M. «As mais recentes medições do rio Amazonas», p. 12.
(14) PENTEADO, Antônio Rocha «Panorama do Mundo Tropical», pági-
nas 77 e 78.
ANTONIO DA ROCHA PENTEADO
Estes solos podem ser aproveitados para a agricultura, feitas as
necessárias correções, pois possuem um PH baixo, entre 4 e 5; somente
nas chamadas «terras pretas do índio» (onde há fragmentos de cerâ-
mica indígena) é que o PH atinge 6 (
15
), ou então nas manchas de
terra-roxa, já identificadas na Amazônia por Falesi e Rodrigues; onde
o PH atinge 7. Estas áreas de terras roxas ocupam 10.600 km
2
da
grande região e se distribuem como seguem (
16
):
Localidades Km² Hectares
Alenquer e Monte Alegre 650 65.000
Fordlândia 300 30.000
Almeirim (rio Jari) 400 40.000
Altamira 850 85.000
Sul do Pará 7.500 750.000
Rondônia 400 40.000
Roraima 300 30.000
Araguaina (Goiás) 200 20.000
TOTAIS 10.600 1.060.000
Os latossoloso os solos mais encontrados na Amazônia Brasileira,
especialmente na área ocupada pela Bacia de Sedimentação Amazônica;
o solos que se desenvolvem em zonas planas,m perfil profundo,
drenagem fácil e textura pesada, o que lhes imprime uma outra caracte-
rística específica, a de possuir uma reserva de umidade bastante grande
durante a estação seca. Sua deficiência maior reside na sua acidez e
sua fertilidade natural é medíocre, pois é fraco em elemento nutriente.
Entre os latossolos, o chamado latossolo concrecionário, em virtude
do processo de laterização que sofreu, apresenta as piores condições à
vida agrícola: extremamente ácidos, com índices de saturação baixo e
alto teor de argila, apresentam sérias dificuldades para o seu aprovei-
tamento agrícola.
Os solos glei húmico e pouco húmico possuem o horizonte super-
ficial escuro devido a matéria orgânica estar bem misturada à mineral;
o também solos ácidos, que se diferenciam em função de ter maior ou
menor quantidade de matéria orgânica em seus horizontes superficiais.
(15) PENTEADO, Antônio Rocha «Condições geo-econômicas da Amazónia
Brasileira», p. 37.
(16) FALESI, ítalo e RODRIGUES, Tarcísio E. «As terras roxas na Amazônia
Brasileira», p. 3.
O HOMEM E AS CONDIÇÕES ECOLÓGICAS
Entre eles se encontram os solos de aluvião ou aluviais, ligados nas suas
origens ao ciclo das enchentes; sua riqueza quimica é muito limitada e
o também solos geralmente ácidos.
Os regossolos aparecem em áreas restritas da Amazônia;o solos
muito arenosos, de coloração branca, muito ácidos, úmidos e extrema-
mente pobres. Ocorrem, por exemplo, em áreas onde aparecem as já
citadas anteriormente catingas do rio Negro, eoo utilizados pela
população local que os identifica como zonas imprestáveis para a agri-
cultura. Fato análogo ocorre, por exemplo, junto a Santarém, nas pro-
ximidades da qual o solo arenoso criou condições para o aparecimento
de uma vegetação muito mais pobre que a floresta tropical, identificada
pelos habitantes da região como catinga de carrasco. (
17
)
Uma boa apreciação das condições gerais dos solos da Amazônia
pode ser lida na obra entitulada Brasil, a terra e o Homem, vol. I (
18
);
o grande problema regionalo reside, exatamente, na má qualidade
do solo, mas na necessidade de serem encontradas soluções para o pro-
blema de sua melhor utilização pelo homem, pois os solos podem merecer
correções que os tornarão aproveitáveis para práticas agrícolas.
Mas este assunto é deixado aqui para ser retomado no capítulo
seguinte, quando trataremos da necessidade de correção do solo, quando
então levantaremos as classes de solo amazônico e suas relações com o
seu aproveitamento pelo homem.
3. A DEFESA DA ECOLOGIA DA AMAZÔNIA BRASILEIRA
Depois de termos examinado quais as condições ecológicas com que
se apresenta a Amazônia e ressaltado os primeiros aspectos de sua mar-
cante tropicalidade, cabe-nos nesta parte analisar os três pontos capitais
em que devem ser encontrados os esforços brasileiros para que seja as-
segurada uma completa defesa da ecologia regional: o solo, a floresta
e a água, já que a fauna amazônica muito depende deles e o próprio
homem, até certo ponto, também. Este, então, por ser causa e efeito
da dilapidação dos recursos da natureza, quando age sem ter a cons-
ciência do perigo a que se está expondo, ou, ao contrário, quando impede,
racionalmente, que se crie o deserto por onde passe.
A ideiao é nova; já estudamos exaustivamente o problema foca-
lizando a área mais populosa do Pará a chamada Região Bragantina,
que contém mais de 60% da população de todo o Estado e ocupa,o
somente, 0,9% de sua área mostrando como foi realizado o processo
colonizador e como foi usada e é utilizada a terra naquela região. Cons-
(17) GOUROU, Pièrre «Observações geográficas na Amazônia», p. 361.
(18) QUEIROZ NETO, J. P. «Os Solos», pp. 476 a 480.
ANTONIO DA ROCHA PENTEADO
titui-se tal área, numa lição digna de ser conhecida, estudada e profun-
damente meditada por todos aqueles que querem colonizar e, portanto,
desenvolver, com uma ocupação racional do solo, a Amazônia Brasileira
eo transformá-la, apenas, em mais um deserto construído pelao
do homem. (
19
)
3.1 A CONSERVAÇÃO DO SOLO
Já vimos as características essenciais dos solos da Amazônia; en-
tendemos que o solo é um capítulo precioso que necessita ser protegido
para evitar um rápido desgaste e sua perda total por erosão.
A este primeiro aspecto junte-se um segundo: a Amazônia como
área tropical está sujeita a um regime pluviométrico característico o
regime pluvial tropical definido pela alternância sucessiva de períodos
secos e chuvosos.
O problema da conservação dos solos na Amazônia se coloca, então,
na seguinte situação: como utilizar o solo, quer para práticas agrícolas,
quer para a pecuária sem que haja, pela erosão, grande perda de sua
fertilidade? Além disso, esta situação torna-se mais grave, porque sa-
bemos que os solos da Amazônia de um modo geralo solos que apre-
sentam medíocre ou baixa fertilidade natural. Quaiso as verdadeiras
condições em que se acham os solos da Amazônia, no que diz respeito
às suas vocações agrícolas?
A resposta a estas indagações podem ser obtidas pela verificação
da classificação do uso da terra, que para a região poderíamos esque-
matizar da seguinte maneira:
Classe I Sem graves problemas de conservação, áreas planas, bem drenadas,
fertilidade natural elevada, terras básicas, sem problemas de erosão (pelo menos
aparentemente), indicadas para qualquer tipo de cultivo tropical. Aí seriam colo-
cadas as áreas de terra-roxa da Amazônia.
Classe II Áreas com declividade pequena (de 2% a 5%), aproveitáveis com
medidas simples de conservação do solo (culturas em curvas de nível), terras bem
drenadas, fáceis de trabalhar. Corresponderiam às áreas extensas do domínio dos
latossolos amarelos.
Classe III Áreas com problemas complexos de conservação (declividade de
5% a 10%), terras planas e mal drenadas, muitos blocos de pedra dificultando a
mecanização. Seriam os latossolos vermelhos e as laterias hidromórfiças.
Classe IV Áreas com seríssimos problemas de conservação (declividade de
10% a 15%), pouco produtivas, pouca profundidade, muitos seixos e calhaus,o
podendo ser anualmente arada. Seriam as áreas ocupadas pelos latossolos vermelhos
concrecionários.
(19) PENTEADO, Antonio Rocha «Problemas de Colonização e uso da terra
na Região Bragantina do Estado do Pará», pp. 459 a 477.
O HOMEM E AS CONDIÇÕES ECOLÓGICAS
Classe V Áreas inadequáveis a culturas, próprias mais às pastagens e florestas,
apesar de terem boa fertilidade, erosão pequena, sujeitas a inundações periódicas.
Seriam os solos hidromórficos das várzeas, que exigem vasta drenagem.
Classe VI Áreas reservadas ãs florestas ou aos pastos (com restrições);
possuem baixa fertilidade e quando esta melhora surgem problemas de declividade
(20% a 40%) . Seriam os litossolos da região.
Classe VII Áreas reservadaso somente para florestas, em virtude da de-
clividade ser acentuada (superior a 40%) . Sua utilização para pastagem é con-
denável. Seriam as áreas de regossolo, onde se aconselharia o reflorestamento como
atividade básica a ser desenvolvida.
Classe VIII Áreas que devem servir para abrigo de animais silvestres ou ati-
vidades recreativas, tais como alagadiços, brejos, zonas de declive acentuado. Seriam
as áreas ocupadas por igapós, manguezais, afloramentos rochosos das áreas planál-
ticas, etc.
De uma maneira geral é possível afirmar que as quatro primeiras
classes permitem um aproveitamento razoável do solo; a primeira, então,
sem maiores problemas. Assim teremos em ordem de importância para
utilização: terra-roxa, latossolos amarelos, latossolos vermelhos e latosso-
los vermelhos concrecionários. À medida que caminhamos de terra-
roxa ao latossolo vermelho concrecionário aumenta a complexidade do
uso da terra e, consequentemente, da sua conservação.
Em um recente trabalho, Pandolfo (
20
) afirmao acreditar que
a terra e clima sejam fatores limitantes de um maior desenvolvimento
agrícola na Amazônia; em pesquisa anteriormente realizada na Região
Bragantina, também já havíamos exposto tal ideia (
21
), pois o homem
é o grande responsável, senão o único, pela rápida decadência da pro-
dutividade dos solos que trabalha com o emprego de técnicas pouco ou
nada racionais.
Em uma região tropical como a Amazônia, nunca é demais insistir
na necessidade de se conhecer muito bem as condições climáticas e pe-
dológicas, para que sejam aplicados métodos de cultivo apropriados ao
meio ambiente. Especialmente, somos da opinião que é na perfeita
adequação do calendário agricola às condições pluviométricas da área,
que reside uma das chaves mais importantes do sucesso de fixação do
homem ao solo e, consequentemente, da colonização.
Neste particular, um exemplo digno de ser lembrado pelas seme-
lhanças que guarda com a Amazônia é o ocorrido na Costa do Marfim,
onde o estudo das relações entre chuva e erosão e sua íntima correlação
(20) PANDOLFO, Clara «Uma visão global dos recursos naturais disponíveis
da região», p. 19.
(21) PENTEADO, Antonio Rocha, ob. cit., p. 412.
ANTÔNIO DA ROCHA PENTEADO
com o calendário agrícola encerra ensinamentos de grande sabedoria,
conforme se nota pelos dados seguintes: (
22
)
ADIOPODOUME EROSÃO KGIHA
Pelos dados de Adiopodoumé é bastante claro que: 1') a erosão
provocada pelas chuvas depende da altura pluviométrica, da declividade
do terreno e da cobertura existente ouo sobre o solo; 2
9
) o papel da
cobertura é muito maior que o exercido pela declividade do terreno;
3') na parcela cultivada a erosão varia em função do ciclo das plantas:
o período de plantio é seguramente a época de maior erosão e o momento
em que as plantas (no caso milho) atingem maior altura, a erosão diminui.
(22) DABIN, B. e LENEUF, N.
Basse Cote d''Ivoire», 6 e 7.
«Étude de 1'Erosion et du Ruisselement en
O HOMEM E AS CONDIÇÕES ECOLÓGICAS
Assim sendo, por extensão, se pode dizer que na Amazônia, onde
predominam superfícies planas, onde a declividade é pouco acentuada,
a erosão provocada pela pluviaçãoo é maior, graças à cobertura flo-
restal da região; em Angola, verificamos localmente que a carga de se-
dimentos transportada pelo rio Cuanza aumentou com a devastação da
mata e a expansão da lavoura de milho.
Na Amazônia, na região situada entre Manaus e Itacoatiara pre-
dominam solos de grande grupo dos latossolos amarelos de textura muito
pesada nos pontos em que o planalto sedimentar chega a mais de 40 m
de altitude; de 40 até 15 m se observam os de textura pesada e abaixo
de 15 m até cerca de 6 m os de textura média. Todos possuem boas
características físicas (boa porosidade, boa drenagem, friabilidade e pro-
fundidade), mas do ponto de vista químicoo medíocres, graças à origem
ligada às argilas cenozóicas da região. Podem ser aproveitadas e o
são, desde que sejam feitas as devidas correções e adubações.
Ainda, nessa área, as várzeas, com o solo glei pouco húmico chegam
a ter um PH igual a 6, mas seu uso é limitado pelas enchentes anuais
que se verificam na região; a técnica poderia resolver o problema através
da drenagem. Os trechos arenosos, ocupados pelos regossoloso
devem ser utilizados para a agricultura ou pecuária: deverão permanecer
com a cobertura florestal que possuem, pois retêm pouca água e poucos
elementos nutrientes,o se prestando de modo algum a práticas agrí-
colas. (
23
)
No Amapá, estudo realizado entre os quilómetros 150 a 171 da
E.F. do Amapá nos mostram fatos semelhantes; dos sete grupos de
solos encontrados, cincoo latossolos, dos quais os de textura média
o os mais indicados à agricultura, com as devidas correções. Os solos
denominados latossolos concrecionários já se apresentam como de difícil
ocupação agrícola, devido a presença de blocos de laterita. Os demais
grupos de solos ocupam áreas mais restritas; dentre eles, destaca-se o
latossolo vermelho-amarelo que tem a melhor fertilidade de todos quanto
o encontrados na área, mas que devido ao relevo acidentado e à
lateritao pode ser usado largamente para o cultivo. (
24
)
Mas a conservação dos latossolos é praticada na Amazônia em várias
regiões; na própria Bragantina ela é feita por colonos japoneses e na-
cionais, nos municípios onde a produção de pimenta-do-reino se instalou:
Ananindeua, Santa Isabel do Pará e Castanhal. Combate-se a erosão
colocando-se cobertura morta de bagaço de cana-de-açucar entre as fi-
leiras de pimenteiras, adubando-se as covas onde as mesmas estão plan-
tadas, etc. (
25
)
(23) I.P.E.A.N. Os solos da área Manaus-Itacoatira, pp. 110 e 111.
(24) FALESI, Ítalo Cláudio «Levantamento de reconhecimento detalhado dos
solos da Estrada de Ferro do Amapá», tomo 150-171, pp. 51-52.
(25) PENTEADO, Antonio Rocha O uso da terra Região Bragantina». pp.
50 a 58.
ANTÔNIO DA ROCHA PENTEADO
Na Ilha de Marajó, estudo realizado por Falesi e Santos nas Fa-
zendas Espírito Santo permitiram a elaboração de 19 perfis de solo
que noso uma ideia da necessidade da conservação do solo da grande
ilha, ainda pouco conhecido dos especialistas. (
26
)
Mas ainda há um outro exemplo que merece maior destaque: o dos
solos de colônia agrícola de Tomé-Açu. Esta colônia, originante do
terceiro município do Pará (depois de Belém e Santarém) em renda,
possui solos exatamente iguais aos encontrados em todo o planalto sedi-
mentar amazônico. Lá estão os latossolos amarelos (de várias textu-
ras) e os latossolos concrecionários, tal como ocorrem na região de Ma-
naus-Itacoatiara. Os 14 perfis levantados por Falesi, Santos e Vieira
revelaram aquelas características já conhecidas; apesar dos problemas
de ocupação das terras numa área estranha, os colonos souberam con-
tornar a situação: conservação do solo, adubação das covas (com sul-
fato de amónia e ureia), tal como se faz na Região Bragantina, uma
verdadeira «cultura em vaso» comprovando que a técnica humana é
capaz de sobrepujar as deficiências apresentadas pelo meio ambiente. (
27
)
Estes exemplos, aos quais se poderiam juntar muitos outros, cons-
tituem, a nosso ver, prova insofismável de que uma região como a Ama-
zônia, onde predominam latosso;os dos mais diversos tipos, queo os
solos do planalto sedimentar amazônico, inteiramente livre das enchentes,
a colonização e a fixação do homem ao solo é perfeitamente possível.
Os fracassos ocorridos devem ser ligados, em suas causas, muito
mais às deficiências do homem do que à fatalidade do meio; será, assim,
através da conservação do solo que se conseguirá ocupar a Amazônia,
integrando-a ao Brasil. E como evitar que haja a destruição do solo
da região será objeto da conclusão deste trabalho.
Reta acrescentar que de sua área total só conhecemos, através
de mapeamento, 7% dos solos da região, ou seja, aproximadamente
300.000 a 350.000 km
2
da sua extensão; com o prosseguimento das pes-
quisas, novas descobertas poderão alterar profundamente o que se co-
nhece como certo até agora.
3.2 A CONSERVAÇÃO DA FLORESTA
Já vimos as características essenciais da floresta amazônica; convém
agora abordar com clareza o que a mata significa para a região e o que
se deve fazer para evitar o seu desaparecimento precoce.
(26) SANTOS, Walmir H. e FALESI, Ítalo Cláudio «Contribuição ao estudo
dos so!os da Ilha de Marajó Fazenda Espirito Santo», p. 159.
(27)
FALESI,
ítalo,
SANTOS,
Walmir Hugo e
VIEIRA,
Lúcio Salgado «Os
solos da colônia agricola de Tomé-Açú», pp. 83 a 86.
O HOMEM E AS CONDIÇÕES ECOLÓGICAS
Muitas das espécies vegetais encontradas na floresta amazônica
possuem valor comercial; todavia, o número de espécies exploradaso
atinge sequer 10% do total daquelas, em parte devido ao desconheci-
mento do que se possuia, até poucos anos atrás, das verdadeiras carac-
terísticas da «Hyloeia».
Depois do trabalho verdadeiramente notável de Le Cointe (
28
), em
queo relacionadas as principais espécies e seus característicos mais
importantes, pouco se fez de concreto ao estudo das matas da região
até o desenvolvimento da moderna série de boletins do Museu Paraense
«Emílio Goeldi» que surgiu acompanhado, mais recentemente, por uma
série de relatórios da F.A.O. e da Sudam e por uma, ou outra pes-
quisa isolada. (
29
)
A floresta ocupa uma área de cerca de 260 milhões de hectares,
considerando que a demanda de madeira-de-lei pelo mercado mundial
prevê um consumo de 500 milhões de m
3
por ano,o seria de todo
inútil perguntar qual a participação da Amazônia nesse mercado. Talvez
porque se estima o volume da madeira existente na Amazônia em 70
milhões de m
3
, alguns técnicos nacionais andam afirmando que a mata
desaparecerá em 35 anos, com o queo concordamos, pois é perfeita-
mente possível desenvolver esforços em prol da defesa da mata ama-
zônica .
A floresta é um fator importante de equilíbrio ecológico;o é por-
tanto possível deixar romper-se o equilíbrio ecológico regional somente
por haver interesse na derrubada indiscriminada das matas.
Há pelo menos três motivos que levam o homem, na Amazônia,
a derrubar a mata. O primeiro é o fato de praticar uma agricultura
itinerante, à base da queimada, tal feita em sua irracionalidade e pior
executada pelo caboclo, que mal tendo um machado e uma caixa de
fósforos, derruba e queima uma grande extensão de floresta, através
de incêndios por vezes até debelados por uma chuvarada providencial
e depois vai cultivar sobre as cinzas, uma superfície de terreno que
muitas vezes nem chega a ter um hectare de extensão; mas queimou-se
número muito maior de hectares.
Como o processo se repete anualmente, vai-se alastrando a área
queimada e a mata nos mostra, quando vista de avião ou através de
fotografias aéreas, as cicatrizes deixadas pelo homem na sua faina
destruidora.
O segundo motivo é o que leva o homem pela floresta adentro à
procura de material vegetal para extrair sob a forma de lenha ou a
transformar, como carvão vegetal. Lenha e carvão, na Amazônia
(28) LE COINTE, Paul L'Amazônia Brésilienne, 2 volumes.
(29) PANDOLFO, Clara «A Amazônia: seu grande potencial de recursos na-
turais e oportunidades de industrialização».
ANTÔNIO DA ROCHA PENTEADO
aindao dois combustíveis generalizados; com isso recua a floresta,
substituída por capoeiras cada vez mais raquíticas, graças àquela
ruptura do equilíbrio ecológico regional.
O terceiro motivo é a exploração madeireira propriamente dita.
Procura-se a madeira-de-lci, a madeira para laminados, para a fabricação
de dormentes, para se obter a celulose, para cujo sucesso concorre a
ampla rede fluvial o fator transporte e a presença de algumas faixas
florestais bastante homogéneas, ao contrário do que sempre se afirmou
sobre a floresta amazônica.
Mesmo que isso nunca ocorresse, o transporte de tronco das árvores
abatidas até o rio mais próximo hoje pode ser feito por helicópteros
de grande potência. A reformulação do conceito de antieconômico
em indústria madeireira é um fato inevitável.
O problema básico é fundamental e reside em impedir ou dificultar
ao máximo a destruição da grande reserva florestal amazônica, um
dos pulmões que a Terra possui. Para tanto, só existem os seguintes
caminhos a seguir, trilhados se possível, ao mesmo tempo: controle da
agricultura, reflorestamento e apoio aos estudos e pesquisas sobre sil-
vicultura .
No primeiro dos caminhos apontados a conservação poderia ser
feita mediante a ordenação do sistema agrícola tradicional, ou seja, a
roça, que nada mais é do que um sistema de rotação de terras e quase
nunca de cultura ou então misto, isto é, de terras e de culturas.
Já é clássica na Amazônia a violenta queda da produtividade da
terra no segundo e terceiro anos de ocupação da mesma porção de solo;
é o caso da cana-de-açucar que de 170 ton/ha no primeiro corte, cai
para menos de 75 ton/ha na ressoca. Para a floresta, a recuperação
é impossível; ela jamais se refará onde o homem impiedosamente
queimou o solo e a mata, pois em cada hectare de mata virgem que é
queimada se perdem: 39 ton. de folhas, 55 ton. de ramagens, 346
ton. de galhos, 210 ton. de troncos médios e 266 ton. de grandes
troncos, perfazendo um total de 916 ton. de matéria orgânica inteira-
mente inutilizadas (
30
) .
A repetição do processo, derrubada, queimada, semeadura e co-
lheita será necessária pela queda da produção esperada; como há muita
terra, pouca gente e muita mata virgem,o há maiores problemas
para encontrar um outro lugar para dar início ao novo ciclo.
Uma das saídas para esta situação seria o estabelecimento do
sistema dos corredores, estudado com sucesso e muito bem aplicado no
ex-Congo Belga (
31
) . De acordo com este sistema,o demarcados
(30) BEIRNAERT, A. La technique culturale sous I'Equateur, p. 12.
'(31) PENTEADO, Antonio Rocha «A agricultura e o problema da fixação
do homem ao solo no Congo Belga».
O HOMEM E AS CONDIÇÕES ECOLÓGICAS
na floresta virgem 18 corredores, cada qual com 100 m de largura e
1.500 m, aproximadamente, de extensão. Cada ano se cultiva em um
corredor, prolongando-se a sua ocupação com agricultura por mais dois
anos; em seguida, abre-se no segundo ano de cultivo um novo corredor,
tomando-se a precaução de deixar entre o corredor aberto no primeiro
ano e aquele que o foi no segundo ano, um corredor tomado pela floresta
virgem. Comoo 18 corredores, cada um deles é ocupado durante
três anos e descansa 15 anos; a reconstituição da cobertura original
é feita com o auxílio de fatores ambientais (ventos predominantes) e
ecológicos (pássaros) . Tal sistema pode, a nosso ver, ser tentado
com êxito nas áreas onde se encontram os latossolos amarelos da bacia
de sedimentação amazônica; por intermédio dele, os trabalhos agrícolas
o mais ordenados, continua-se a praticar a rotação de terras, mas
facilita-se a recomposição do vegetal natural, o que nas condições eco-
lógicas da Amazônia se processa com uma certa rapidez, desde que se
determine a proibição do uso das queimadas que tanto mal produzem
ao solo, às plantas e ao próprio homem.
O segundo caminho a seguir é o reflorestamento, que deve ser
praticado ao mesmo tempo que o anteriormente tratado. Reflorestar
é impedir ou pelo menos retardar a ação da erosão das águas da chuva;
é permitir que a reserva natural que é a água, seja utilizada por maior
espaço de tempo pela população da região, é procurar manter, enfim,
aquele estado de equilíbrio ecológico existente antes da penetração
humana numa área qualquer.
O reflorestamento é uma ciência que requer conhecimentos espe-
cíficos; através dele se evitaria o desaparecimento das florestas do norte
do Paraná, por exemplo, onde só algumas relíquias das primitivas
mataso morrendo sufocadas pelo crescimento vertiginoso de algumas
aglomerações urbanas, como acontece, por exemplo, na própria cidade
de Londrina.
O reflorestamento teria impedido também, que próximo a Belém,
quando da instalação das sedes campestres de algumas associações
desportivas da cidade, um dos primeiros objetivos perseguidos fosse plan-
tar árvores para se obter sombra; por mais incrível que pareça, isto
aconteceu na maior região florestal do mundo (
32
).
O terceiro caminho, paralelo aos dois outros e ao segundo, a nosso
ver, ao mesmo tempo é o do incentivo aos estudos e pesquisas florestais,
por técnicos nacionais ou em equipes formadas por nacionais e estran-
geiros. Já existe uma série de boas contribuições sobre a flora e a
fauna amazônica;o podemos deixar de citar os estudos de TA-
(32) PENTEADO, Antonio Rocha Belém do Pará Estudo da Geografia
Urbana, p. 363.
ANTÔNIO DA ROCHA PENTEADO
KEUCHI (33), de RODRIGUES (34), (35), (36), (37), de LIMA (38), de
PITT (39) e de outros autores de inventários florestais.
O que se fez na Amazônia neste sentido ainda é muito pouco;
estações de silvicultura existem como a Curuá-Una. Faltam melhores
centros de formação de pessoal habilitado no tratamento das florestas,
técnicas de nível médio e de nível superior, sem os quais qualquer
programa da envergadura compatível com a região,o poderá ser
levado a bom termo.
Os terrenos menos favoráveis a práticas agrícolas deveriam ter
sua cobertura vegetal conservada e declaradas reservas naturais pro-
tegidas, mantendo-se assim em vastas áreas o equilíbrio ecológico origi-
nal em que se acham; permitir o desenvolvimento da indústria da lenha
e do carvão vegetal, indiscriminadamente como está acontecendo, o
abate de árvores e a comercialização gananciosa da floresta por ma-
deireiros pouco escrupulosos, que derrubam vastas extensões de matas
para aproveitar os poucos exemplares de valor econômico, é uma atitude
queo pode continuar a ser desenvolvida impunemente na região e
que deverá ser impedida pelos responsáveis por esse setor da vida na-
cional .
3.3 O DOMÍNIO DOS CURSOS D'AGUA
A água na Amazônia possui um interesse particular, pois se acha
ligada à própria história da ocupação humana do grande norte brasi-
leiro, desde o momento em que o europeu ou seus descendentes brancos
ou mestiços começaram a percorrê-lo e a explorá-lo.
Quase todo o povoamento da Amazônia se fez calcado na rede
hidrográfica; desenvolveu-se, por isso, uma verdadeira «hidrofilia»,
ligando o homem aos rios, transformados estes nas grandes vias de
circulação regional interior. Assim, quase todas as cidades grandes
(33) TAKEUCHI, Masavuki «A estrutura da vegetação da Amazônia».
(34) RODRIGUES, William A. «Contribuição ao estudo da flora amazo-
nense» .
(35) Idem «Aspectos fitosscciológicos das catingas do rio Negro».
(36) Idem «Estudo de 2,6 ha de mata de terra firme da serra do Navio Ap».
(37) Idem «Estudo preliminar da mata de várzea alta de uma ilha do
baixo rio Negro de solo argiloso e úmido».
(38) LIMA, Rubens Rodrigues «Os efeitos das queimadas sobre a vegetação
dos solos arenosos da região da estrada de Ferro de Bragança».
(39) PITT, John Relatório ao governo do Brasil sobre aplicação de métodos
sãviculturais a algumas florestas da Amazônia.
O HOMEM E AS CONDIÇÕES ECOLÓGICAS
ou pequenas da Amazôniao fluviais ou subfluviais; raríssimaso
as exceções, fundadas ãs margens de rodovias ou ferrovias hoje extintas,
como as da Região Bragantina do Estado do Pará.
Tal fato fez com que o homem na Amazônia possua uma menta-
lidade toda especial: à coletora, resultante da presença, fascínio e riqueza
da floresta tropical, junta-se a navegadora. Todo caboclo é um re-
mador, pescador e, quase sempre, nadador; passa grande parte de sua
vida intimamente ligado aos rios, como escreveu
MAIA
(
40
):
«Habitantes do Interior do Amazonas, independendo da idade, sexo
e posição, passam horas e dias, meses e anos, nos bancos das canoas.
Montarias, igarités.. batelões, ubás, cascos velhos de igapós, nos rios e lagos,
nos paranás e bamburrais. Seringueiros, pescadores, roceiros, negociantes,
médicos, dentistas, padres e freiras. Viajando, pescando, passeando, trans-
portando produtos, enfermos, festeiros, esfaqueados, defuntos e casamentos».
Todavia,o é possível aceitar que a maior bacia fluvial do mundo
só possa ter servido a este fim; que teria ocorrido na região para
explicar tal fato, concebível aos primeiros séculos de sua exploração
quando navegada, em parte, por Pedro Teixeira e pelo bandeirante
Raposo Tavares?
A verdade sobre esse assunto é que ainda hoje pouco conhecemos,
cientificamente, das águas amazônicas; faltam-nos dados, os mais sim-
ples, sobre o regime dos maiores rios, inclusive do próprio Amazonas.
o existe uma larga distribuição de réguas nilométricas que permitam
conhecer, com exatidão, o ritmo das enchentes e vazantes do rio-mar;
este fato, de importância capital, revela o descaso com que é tratado
um dos mais importantes problemas regionais: o das cheias do Amazo-
nas, que anualmente volta às páginas e às manchetes dos jornais bra-
sileiros .
Os dados sobre cheias e vazantesoo incipientes que as marcas
dos níveis das enchentes do rio Negro, junto ao «rodway» do porto
de Manaus,o anualmente levadas em conta pelos «entendidos» nas
suas considerações mais ou menos proféticas: este ano «vai subir mais»,
ou, «não chegará ao nível de 53», etc.o é possível, evidentemente,
que à base de tais considerações se possam fazer grandes planos re-
gionais .
O problema que se coloca imediatamente é o seguinte: como a maior
parte da população da Amazônia habita trechos da planície de inunda-
ção do Amazonas e de seus tributários, que fazer para salvar esses
habitantes dos males ocasionados pelas enchentes? Que valor, por
outro lado,m essas terras de várzea, baixas e alagadiças,o pro-
curadas pelo homem?
(40) MAIA, Álvaro Banco de Canoa, p. 9.
ANTÔNIO DA ROCHA PENTEADO
Os estudos sobre os regimes dos rios da Amazônia ouo já
bastante antigos (") ou muito superficiais (
42
); os informes destas
obras citadas e de outros autores clássicos como LE COINTE (
43
), me-
recem uma total revisão e atualização, pois a cada viagem de estudos
realizada por diferentes missões hidrológicas,o obtidos resultados
originais e por vezes surpreendentes sobre o comportamento dos cursos
d'água amazônicos (
44
) .
A quantidade de água medida na descarga do Amazonas em Óbidos
(212.377,5 m
3
por segundo), significa que o débito do rio é de ....
6.688,554 km
3
/ano! O enorme potencial em massa d'água é portanto
considerável e o seu domínio ou aproveitamento pelo homem deve ser,
ao mesmo tempo, dificílimo e oneroso.
Vale a pena lembrar neste momento, que o projeto do Hudson
Institute é impraticável, inclusive, tecnicamente (
45
); a construção de
pequenas eclusas e canais paralelos aos trechos encachoeirados dos
afluentes do Amazonas seria uma excelente solução para o problema
do escoamento de produtos minerais encontrados no dorso e no subsolo
dos planaltos da Amazônia. Pela água a mais barata via de trans-
porte, mais uma vez seria feita a saída dos minerais dos distritos
ferríferos de Jatapu (AM) e Carajás (PA) . O próprio estudo da
implantação de portos fluviais bem equipados na Amazônia em desen-
volvimento pelo D.P.V.N. indica, acertadamente, uma boa solução.
O importante, a nosso ver, é manter a navegação aberta todo o ano,
o que significa queo é mais possível encarar os rios, aparelhos da
natureza, como simples vias naturais de circulação, boas, medíocres ou
s em função de ter ouo cachoeiras ou corredeiras em seus res-
pectivos percursos, ou de ter maior ou menor quantidade de água,
favorecendo ou dificultando a navegação de embarcações com até menos
de um metro de calado até pontos situados muito à montante, em fun-
ção,o somente, das condições pluviométricas da região.
Convémo esquecer jamais que a presença de corredeiras e de
cachoeiras na Amazônia, está ligada à sua estrutura geológica, especial-
mente no que se refere à existência de duas «falis zones», dispostas
paralelamente, uma ao norte e outra ao sul da Bacia de Sedimentação
Amazônica (vide capítulo 2.2 desta monografia); estes obstáculos
naturais que impediram a penetração humana no passado e que hoje
constituem pontos terminais de linhas regulares de navegação interior
na Amazônia, possuem uma importância capital no desenvolvimento e
(41) PARDÉ, Maurice «Les variations sazounières de 1'Amazones», in
Annales de Geographie, vol. 257.
(42) Idem «Quelques aperçus relatifs à Hydrologie Brésilienne».
(43) LE COINTE, Paul, ob. cit.
(44) MINISTÉRIO DAS MINAS F ENERGIA DIVISÃO DE ÁGUAS DO DEPARTA-
MENTO DA PRODUÇÃO MINERAL As mais recentes medições do rio Amazonas.
(45) Jornal da Tarde «Crítica ao lago do futuro», 18/9/1970, p. 13.
segurança da região, pois poderão facilitar a fixação de poios de desen-
O HOMEM E AS CONDIÇÕES ECOLÓGICAS
volvimento que seráo básicos para a constituição de uma infra-estrutura
sócio-econômica que a Amazônia aindao conhece.
Existe, ainda, um outro aspecto a ser considerado: o da utilização
dos terrenos baixos da Amazônia, especialmente, os trechos ocupados
pelas várzeas da região, anualmente atingidos pelas águas do Amazonas
e de seus maiores afluentes. Serão as águas das enchentes capazes
de renovar os solos das várzeas, graças à deposição de sedimentos por
elas transportados?
Já sabemos que as águas dos rios da Amazôniam um PH entre
4,5 e 5,5 e que elas são, geralmente, muito pobres em sais orgânicos;
sua composição varia de acordo com a estrutura geológica e as caracte-
rísticas mineralógicas das regiões atravessadas pelos rios (
46
) . Em
consequência disso, podemos afirmar com certeza que rios que percor-
rem áreas onde predominam solos profundamente mineralizados e ácidos,
oo capazes de construir várzeas ricas. Assim, se os rios trans-
portam e depositam, por ocasião das vazantes, uma grande carga de
sedimentos,o é necessário se pensar que tais sedimentos sejam ricos
em matéria orgânica ou com estrutura físico-química capazes de dar
origem a solos de grande fertilidade; o que os rios carreiam, levados
até eles pelas enxurradas provocadas pela queda das chuvas,o sedi-
mentos que contêm muita sílica e alumínio e alguma matéria orgânica
(húmus) no início da estação chuvosa.
Assim sendo, a fertilidade das várzeas da Amazônia é um mito
a mais a ser combatido para o próprio benefício do desenvolvimento
e segurança da região; há culturas de várzea na Amazônia (arroz e
juta, por exemplo), mas nem toda a riqueza agricola da região só pode
ser encontrada na várzea. Há que se ocupar as firmes, que constituem
a imensa extensão dos planaltos existentes na Amazônia e onde o
homem tem conhecido várias e sérias derrotas na luta pela ocupação
do solo, mas também expressivas vitórias (malva, pimenta e fumo, por
exemplo) que poderão ser de grande utilidade para o futuro da re-
gião (
41
).
O Programa de Integração Nacional, com a abertura das rodo-
vias Transamazônica, Cuiabá-Santarém e Perimetral-Norte, deverá,
forçosamente, rasgar novos horizontes à ocupação da área planáltica
amazônica ocupada por terras enxutas, tanto na região do Planalto
Sedimentar Amazônico como nas dos planaltos que a limitam. A
ocupação das áreas marginais às citadas rodovias deverá ser cuidadosa-
mente planejada, executada, e, sobretudo, acompanhada por especia-
listas em colonização e uso da terra cm áreas tropicais, para que sejam
preservadas as condições da ecologia regional.
(46) Sion, Harald «Valores do PH de águas amazônicas», p. 2.
(47) PENTEADO, Antonio Rocha «O uso da terra na Região Bragantina
Pará».
Geopolítica do Brasil
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
A
geopolítica aplicada ao Brasil em termos de aceitação do pensa-
mento de Hanshofer, Ratzel, Otto Maull, Kjellen e Mackinder
começou com a série de artigos, publicados em «O Jornal», do
Rio de Janeiro, escritos pelo professor Everardo Backeuser, artigos
posteriormente reunidos em volume sob a denominação genérica de
A Estrutura Politica do Brasil; Notas Prévias, e primeiro passo certo
para uma obra de maior envergadura, que planejou, mas de que apenas
pôde divulgar um volume, justamente o primeiro da série, intitulado
Problemas do Brasil; Estrutura geopolítica; O espaço, Rio, 1933 .
É certo que já muito antes podemos descobrir nos intérpretes da
problemática brasileira, como Euclides da Cunha, Silvio Romero, Pandiá
Calógeras, Alberto Torres, Tavares Bastos, uma primeira compreensão
do Brasil em termos que estariam na linha da geopolítica, queo
conheciam e nem fora ainda fixada pelos que a lançaram na Alemanha,
na França, nos Estados Unidos e na Inglaterra. Backeuser, mais tarde,
em 1952, através da Biblioteca do Exército, lançaria livro básico. A
Geopolítica Geral e do Brasil, em que estudava a teoria geral da geopo-
lítica e a das fronteiras, aplicando-a ao exame dos aspectos brasileiros
mais palpitantes no momento. Backeuser regia, então, a cátedra da
Geopolítica, criada no ensino superior no Brasil, na Faculdade de
Direito da Universidade Católica do Rio de Janeiro. Cabe-lhe, portanto,
a posição de pioneiro, pioneiro queo tateava no assunto nem se
mostrava hesitante na demarragem, antes credenciando-se como analista
seguro que penetrava a matéria em profundidade e com objetividade.
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
Golbery do Couto e Silva, Lysias Rodrigues, Mário Travassos,
Delgado de Carvalho, Otávio Tosta, Adelardo Fialho, Carlos Meira
Matos, Jayme Ribeiro da Graça, entre outros que se capacitaram da
importância da geopolítica para o exame dos destinos nacionais, em
livros, conferências e artigos, em especial em «A Defesa Nacional»,
iniciaram a interpretação do Brasil à luz dos princípios e concepções
geopolíticas.
Na América espanhola é na Argentina e na Bolívia onde mais
intensamente procede-se ao estudo do novo aspecto da ciência geográ-
fica, para aplicação aos problemas daquelas duas nações. Alfredo
Podestá, Justo Briano, Jorge Atencio, Fernando Frade Menino, Jayme
Mendoza, Felippe Viscarra, Ostria Gutierrez, Rómulo Menezeso
os grandes nomes naquelas duas nações. Explica-se a volumosa litera-
tura, que ali se escreve e difunde. A bacia do Prata e a fronteira com
o Bras 1o os fatos centrais a valer como resposta. É que, principal-
mente depois do livro de Mário Travassos, sobre A Projeção continental
do Brasil e também como consequência do episódio histórico de nossa
formação territorial, intensificou-se a suspeita de que aspirávamos à
supremacia continental e constituiríamos, assim, perigo à segurança e ao
processo de desenvolvimento tranquilo, normal, dos povos sulamericanos,
em particular os de cor platina. No que diz respeito à nossa presença
e à nossa ação civilizadora na bacia amazônica, a literatura é menos
intensa, o queo significa que as mesmas restriçõeso sejam feitas e
lembradas como alimento para a exaltação nacionalista e agora mais
exacerbada com nossa projeção econômica.
Perguntar-se-á e o Paraguai? Citaremos alguns livros Luis
Gonzalez, Paraguay, prisionero geopolítico, Justo Prieto, Paraguag,
província gigante de las índias, obras em que os aspectos geopolíticos
daquele paíso propostos para conclusões pessimistas ou de exaltada
reação nacionalista.
A geopolítica do continente foi considerada como um todo, para
análise cheia do maior interesse e objetividade por Carlos Badia
Malagrida em El [actor geográfico en la política sudamericana e por
Francisco da Paula Cidade em Notas de Geografia Militar SuUAmeri-
cana. Badia Malagrida indicou com muita sensatez os quadros negativos
da realidade, antes dificuldades, com que os países do continente nos
defrontamos, significação da Amazônia para a segurança e a destinação
do Brasil, de todo esse inventário e análise resultando a conclusão
positiva acerca de nossa participação na conjuntura mundial.
Mas, afinal, como devemos entender a geopolítica? A definição
do Instituto de Munique parece-nos a mais ajustada aos objetivos que
nos devem preocupar ao utilizá-la e compreendê-la. A geopolítica é a
ciência das relações da terra com os processos políticos. Baseia-se nos
amplos fundamentos da geografia, especialmente da geografia política,
que é a ciência da organização política do espaço e ao mesmo tempo
GEOPOLÍTICA DO BRASIL
de sua estrutura. Ademais, a geopolítica proporciona as armas, para
a ação global e diretrizes da vida política em seu conjunto. A expressão
terrao deve ser limitada ao espaço físico onde o homem se realiza
no quotidiano, mas, globalmente, na extensão que essa terra possui e
incorpora o mar territorial, complemento e quase essência à segurança
das nações que dele se beneficiam. A geopolítica, portanto, é ciência
que vale aos povos e países para suas grandes decisões e para a poten-
cialidade que todos aspiram, mas nem sempre é possível conquistar.
Uma geopolítica do Brasil deve partir, assim, da caracterização
do espaço como fez Backeuser, no que ele representa como terra útil,
como território de expressão, maior ou menor em extensão, como campo
específico para a elaboração de uma sociedade, de uma economia, de
uma cultura e, como consequência, como parte fundamental ao cresci-
mento e ao desenvolvimento que levam à potencialidade.
Assim caracterizada a geopolítica, como a podemos empregar no
Brasil, com aqueles objetivos maiores que a definem? Já se pretendeu
explicar porqueo somos ainda uma grande potência, porque somos
potência frustrada, porque já caminhamos para situar-nos entre as
cinco maiores potências no fim do século, porque somos dois ou três
Brasis, porque somos país chave do «terceiro mundo», porque somos
uma Europa nos trópicos, porque permanecemos no terceiro mundo,
porque já deixamos de pertencer a esse terceiro mundo, porqueo
possuímos condições climáticas e humanas para transformar o Brasil
somente espaço em Brasil-potência, porque já nos credenciamos para
assumir a hegemonia e a liderança das Américas de raiz ibérica, porque
realmente crescemos e nos multiplicamos,o apenas territorial e demo-
graficamente, mas como país que alcança maturidade e se inscreve entre
os Estados que se realizam com segurança, com ímpeto, sem diminuir-se
na exclusão ou na inferiorização dos outros.
A problemática brasileira, quando proposta pela geopolítica e dela
valendo-se os quem a responsabilidade de comandar a construção
deste país, deve partir do que lhe é essencial, isto é, da identificação
do espaço e sua utilização com sua ocupação, menos lenta e mais
extensa. Para tal impondo-se a política de melhor distribuição popula-
cional, da formação de recursos humanos, adoção de tecnologia moderna
para dinamização do processo econômico, o que levará, finalmente, ao
bem-estar coletivo, o bem-estar de sua crescente humanidade, e portanto
a segurança nacional, compreendida como ação criadora de riqueza, de
potencialidade e de equilíbrio.
Ora, os desequilíbrios regiona's, a preservação da natureza, o
sistema de comunicações, interligando as regiões e sub-regiões e a
ascensão, no campo educacional e cultural, compõem outra área de
preocupação da geopolítica no Brasil, e tem sua conclusão maior na
unidade e integração do país e sua participação nos destinos universais.
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
A geopolítica brasileirao participa do ufanismo. Tampouco do
negativismo. É realista. E ao estudar os fatores e realidades positivas
e negativas conduz à meditação e ao encontro das soluções do Estado,
com a participação, está claro, porqueo se pode nem deve excluir,
dos contingentes de sabedoria, experiência e colaboração que lhe traga
a iniciativao estatal.
Comecemos lembrando que «a extensão territorial do Brasil é de
8.513.844 km
2
. Somos a 4ª potência no mundo em extensão; as
outras são: União Soviética 22.430.000 km
2
; Canadá com
9.974.000 km
2
; China com 9.560.000 km
2
; Estados Unidos com
9.363.000 km
2
. A América do Sul, de origemo portuguesa, mede
8.700.000 km
2
; no particular das características geográficas, temos
os seguintes dados a considerar: possuímos a maior bacia hidrográfica
do mundo. O Amazonas representa-se assim: 6.275 km de extensão,
dos quais 3.165 no Brasil. A bacia dele mede 6.100.000 km
2
, dos
quais 3.900.000 no Brasil. Há 100.000 km de rios navegáveis, sendo,
por vapor, 44.000 km. A floresta brasileira ocupa 3.600.000 km
2
,
superada apenas pela da União Soviética com 9.000.000. Só na
Amazônia, ela se estende por 3.000.000 km
2
; O clima é quente e
úmido. Em nenhuma parte, no entanto, esse clima impede a vida
humana; A extensão da costa é de 7.408 km, e a de fronteira,
23.127 km; O Brasil, pela regionalização que o distingue, é também
um arquipélago geográfico, econômico e cultural; Há vantagens e
ainda desvantagens na extensão pelos perigos que pode apresentar com
os inúmeros vazios, que apresenta, os maiores do mundo contemporâneo
face à explosão demográfica. Há fatores positivos e negativos a consi-
derar. Sua população é de 100.000.000 habitantes. Os outros países
demograficamente expressivos são: China, com 800.000.000; Estados
Unidos com 210.000.000; índia com 574.000.000; Indonésia com
112.000.000 e União Soviética com 275.000.000.»
A sociedade, que resulta da mestiçagem que ocorreu desde os
primeiros dias da presença portuguesa e prosseguiu sem interrupção,
se é heterogénea quanto aos elementos étnico-culturais que a integram,
apresenta todavia a homogeneidade admirável de uma consciência
nacional muitas vezes explosiva, queo se perde na distância geográ
fica das regiões. A língua, a portuguesa, adoçada e enriquecida, é fator
de unificação, e em nenhum momento houve a sua perda de substância
para marcar-nos no contexto cultural que nos define.
Continente e arquipélago ao mesmo tempo, alcançamos essa condi-
ção particular no desenrolar dos tempos. De estreita faixa de terras ao
longo do Atlântico pelo diploma de Tordesilhas, entre o que seriam
Belém e Laguna, no extremo-norte e no extremo-sul, o Brasil cresceu
territorialmente por decisão e ímpeto de homens aqui nascidos e que
compuseram a «raça de gigantes», que Saint Hilaire viu na gente
paulistana, o bandeirante, mas é denominação que devemos estender
GEOPOLÍTICA DO BRASIL
aos sertanistas do Nordeste, que se impõem à nossa admiração pela
obra de expansão que também promoveram e está encerrada com a
ocupação do que é hoje o Estado do Acre. O procedimento, na elabo-
ração do espaço político, que a expansão determinou e portugueses e
espanhóis acabaram por legalizar em tratados de limites, o de 1750,
de Madri. e o de 1777, o de S. Ildefonso, com a dispersão e as próprias
peculiaridades locais das atividades econômicas criatório, agricultura
tropical, mineração, extrativismo vegetalo conduziram à ocupação
ininterrupta da terra, o que motivou os vazios e a regionalização, que
o é de nossos dias, mas dos 300 anos anteriores do passado colonial,
sem correção no período seguinte da época imperial e das primeiras
décadas do regime republicano.
O arquipélago tem permitido os desequilíbrios regionais, só agora
devidamente considerados, para uma política de integração que lhes
destrua os aspectos negativos e possibilite as complementações de toda
espécie, de uns aos outros e a obtenção das condições positivas do
progresso econômico e do bem-estar social acessível aos brasileiros das
várias regiões indistintamente. O arquipélago, dentro do continente,
seo tem autorizado a secessão, poderá ter permitido a formulação de
um pensamento contrário aos melhores ideais nacionais de solidariedade
e de unidade. As características distintas que podemos encontrar aqui
e ali em múltiplos aspectos do dia a dia,o constituem, porém, elementos
perturbadores significando antes a riqueza, na diversidade, da cultura
e da civilização brasileiras.
Falamos nos vazios e antes registramos o potencial humano de que
dispomos, mas aindao vem sendo suficiente para ocupação definitiva
e total. Vencidas as dúvidas sobre as possibilidades da vitória do
homem sobre a natureza tropical, umida ou seca,o haverá, portanto,
dificuldade de ordem natural para a empresa de ocupação. Nossa
população cresce continuadamente apesar das sugestões de muitos,
alarmados com esse crescimento e com a explosão demográfica mundial,
tendo em vista,o a existência de vazios, mas a de alimentos sufi-
cientes para satisfazer necessidades mínimas da humanidade. Faz-se
necessário registrar que os vazios brasileiros estão na Amazônia e no
Centro Oeste. Somam, os dois, cerca de 5 milhões e meio de quilómetros
quadrados, neles vivendo apenas 8 a 9 milhões de habitantes. Em um
país que possui 100 milhões, aqueles algarismos significam que apenas
um terço do Brasil está devidamente ocupado por 92 milhões de seus
habitantes, com a circunstância de que em 9 Estados do território do
Nordeste, há uma concentração de 29 milhões.o é grave o fato?
o exige política de redistribuição demográfica, de melhor distri-
buição populacional? Esse vazio, dadas as circunstâncias sérias da
explosão demográfica universal e a existência de poucas áreas ainda
livres para uso do homem,o compõe um capítulo importante da
nossa geopolítica? Esse vazio, é tempo de fixar,o está todo inventa-
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
riado.o sabemos o suficiente a respeito dele. Muito do que consta
das cartas geográficas é pura imaginativa de cartógrafos. Ainda há
pouco, através do projeto Radam, descobriu-se rio caudaloso na bacia
amazônica. A Comissão Brasileira de Limites, sob a chefia do coman-
dante Braz Dias de Aguiar, há cerca de trinta anos atrás também
descobriu afluente do Uraricoera, no Território de Roraima, território
que desde o século XVIII vinha sendo penetrado pelos sertanistas da
Amazônia, rio que, por sugestão minha, recebeu o nome de Lobo
d'Almada, o grande estadista colonial e primeiro explorador oficial da
região. O levantamento da realidade geográfica do país, em suas áreas
por ocupar, compõe outro aspecto da nossa geopolítica, a impor ação
imediata, o que aliás já está começando a ocorrer.
No tocante à preservação da natureza, o que ainda estamos consta-
tando é a depredação dessa mesma natureza como consequência da
incultura de camadas de nosso povo e do imediatismo econômico que
teima em ignorar os perigos que essa destruição impiedosa já está
trazendo, com resultados profundamente nocivos. A ação negativa do
homem, é certo,o constitui uma estranha particularidade do homem
brasileiro. Ela é, infelizmente, uma constante universal. Na busca do
espaço para nele viver e nele criar o pólo econômico, temos seguido a
linha errada. É o caso, para exemplificar, da África, onde o europeu,
que a conquistou e dominou por tanto tempo,o se diferencia do
africano, por qualquer demonstração de amor para com a natureza,
antes atuando sobre ela da maneira mais selvagem. E aqui mesmo, no
sul do Brasil, extensas áreas estão inteiramente desfiguradas e empobre-
cidas com o comportamento que vimos seguindo nesse particular. O
homem, como agente criador,o pode continuar na prática nociva.
Deve ser devidamente esclarecido para um comportamento que lhe
assegure a condição criadora.
O reflorestamento, a que já se procede, a carta de solos, cuja
elaboração já se iniciou, os parques nacionais que se montam, as
reservas biológicas que se criam, a caça e a pesca sob disciplinação,o
aspectos de uma ação estatal visando assegurar segurança ao país na
defesa e preservação de seus recursos naturais, vegetais e animais. E
os recursos minerais? Ninguém pode ignorar o que valem, o que repre-
sentam e continuam a representar no Brasil, e este Estado é uma
explicação positiva. Em fase de intrépido processo de desenvolvimento,
como o de hoje, o que o subsolo proporciona e as nossas jazidas indicam
como perspectiva é de significação que ninguém pode ignorar. O que
sobre sua exploração pode ser uma cogitação menos unânime é de como
devemos proceder para utilizá-lo de acordo com os nossos interesses
extrair de logo o que ele apresenta ou fazer a exploração com menos
dinâmica e mais de acordo com nossas necessidades imediatas? Outro
aspecto a considerar está na participação do capital estrangeiro, contra
o qual se levantaram os grupos nacionalistas mais atuantes e exaltados.
GEOPOLÍTICA DO BRASIL
Arthur Bernardes foi o mais eloquente. Combatia com coragem, com
objetividade. Penso como ele. A participação, quando for o caso de a
aceitarmos, deve ocorrer sob todas as reservas e no quantitativo menos
expressivo. A lição de sucesso da Petrobrás é lição permanente, admi-
rável .
Na aplicação da geopolítica ao Brasil, o problema das comunicações
também deve ser devidamente considerado. E temos de voltar ao tema
arquipélago e continente. Até bem pouco, cabia ao litoral, a vasta
costa atlântica, o papel unificador. E o relacionamento entre as regiões
distantes, como o acesso ao interior, fazia-se por meios precários. O
avião foi pioneiro, para encurtar as distâncias e realizar o relacionamento
antes dificil. A ferroviao lograra o mesmo resultado, com a afirmativa
o se desejando contestar o papel que representou e ainda representa.
A rodovia, porém, é que está pondo fim ao dilema, assegurando, em
termos mais firmes, a unificação total do país e com ele a perda de
substância daqueles desequilíbrios regionais. A grande política rodo-
viária, adotada a partir de Washington Luís,o lhe esqueçamos a
participação, mas incentivada na atualidade constitui expressiva demons-
tração da existência de um estado de espírito, no país, que compreendeu
a necessidade e a urgência em executá-la como um instrumento de
conquista mansa do território e de integração do espaço e da humani-
dade nacional ao nosso complexo de civilização material. Se é certo
que a formação desse espaço físico, como empreendimento essencial-
mente brasileiro, já teve os seus grandes dias, e sua extensão, ao nos
defrontarmos com nossos vizinhos, já está devidamente configurada,
conquanto haja alguns trechos de fronteira por demarcar em definitivo,
sua utilização, insista-se sempre no assunto, vai exigir cautelas e provi-
dênciaso líricas ou apenas constantes de textos de lei.
O problema da fronteira, é certo, como assunto da geopolítica,
perdeu, para nós, a importância de que se revestiu no passado. O
desenvolvimento brasileiro nos vários aspectos por que o podemos
constatar, seja o econômico, o educacional, o cultural, o científico, o
tecnológico, é que constitui hoje a preocupação maior.o se pode
afirmar, porém, sem que haja a disciplinação dos valores humanos, em
crescimento vegetativo normal mas quantitativamente muito expressivo
e, com essa disciplinação aquela utilização do espaço. Terra e genteo
fundamentais. Dispomos deles. No tocante a gente, impõe-se conduzi-la,
assegurando-lhe,o a limitação quantitativa, num país que ainda
precisa ocupar mais de metade de seu território, mas aquelas condições
mínimas de vida que autorizem sua participação consciente e produtiva
no crescimento e no desenvolvimento nacionais. Ê preciso, portanto,
tirá-la do primarismo de sua condição existencial atual, para levá-la a
compreender queo é apenas algarismo, mais efetivamente, energia,
dinâmica, força criadora e ativadora da nova dimensão que o Brasil
apresenta. Essa nova dimensão, que jáo é mais territorial, está a
ARTHUR CÉZAR FERREIRA REIS
estimular e ressuscitar velhas diferenças que nos cercariam desde os
idos coloniais, quando os conflitos da península, a separar portugueses
e espanhóis, transferiu-se para a América do Sul e aqui enriqueceu-se
com a série de fatos que nos explicam na extensão continental e, aos
olhos dos que nos contestam, parece expressão ou desejo de hegemonia,
de domínio, de apetite imperial.
Há hoje uma literatura que nos visa para atribuir-nos aqueles
propósitos que jamais nos falaram ao coração. A história das distâncias
ou diferenças precisa ser escrita e para ela há abundantíssimo material.
E quando for escrita, constatar-se-á, em definitivo, a falta de funda-
mento das acusações e o crédito que nos terá de ser aberto, face a
atitudes e comportamentos que nos enobrecem pelo que deles resulta
em benefício da comunidade continental.
Disse que há hoje literatura abundante anti-Brasil. É certo. Essa
literatura principiou no século XIX, logo após a independência quando
deixamos de comparecer à Conferência do Panamá, sonhada por Simão
Bolívar. Deixamos de comparecer porque ali seríamos agredidos com
a condenação do regime monárquico, que era o que adotavamos, e com a
alegação de que ele representava resíduo europeu, presença imperial da
Europa. Na atualidade, ora somos um povo subimperialista, ora impe-
rialista. Já se disse queo poderíamos assumir a liderança continental
porque nosso povo é inferior e o climao permite que aqui elaboremos
os padrões de civilização, essenciais àquela liderança.
Os livros brasileiros, A Projeção Continental do Brasil, de Mário
Travassos, Geopolítica do Brasil, de Golbery do Couto e Silva, Geopo~
lítica do Brasil, de Lysias Rodrigues,o indicados como básicos na
formulação de uma concepção geopolítica brasileira visando absorver e
dominar os povos vizinhos. O chamado nacionalismo brasileiro vem
sendo indicado como face perigosa daquele objetivo. O esforço brasi-
leiro para deixar o Terceiro Mundo,o que ele nos mereça desprezo,
mas porque caminhamos com a velocidade que nos categoriza na área
dos países em ritmo crescente de desenvolvimento, também serve para
a caricatura negativa. O livro de Jorge Maia sobre o Brasil no Terceiro
Mundo, e o de Nestor dos Santos Lima, acerca da Terceira América,
como as três conferências recentes de Correia da Costa, Embaixador
do Brasil em Londres, versando o Brasil no contexto do desenvolvi-
mento mundial, podem valer como respostas claras, insofismáveis.
Sucede que aqueles dois livroso circularam no exterior, escritos que
o em português, quando em espanhol estão lançados os que nos
agridem como Geopolítica de Liberacion, de Norberto Ceresoli; Historia
de la desagregación platina, de René Orsi; La Cuenca dei Plata, de
Andrés Millé; El processo dei imperialismo dei Brasil, de Raul Botelho
Gonsalez. Se até nos Estados Unidos suspeitam de nossos objetivos,
como se pode verificar, entre outros, dos ensaios muito interessantes,
é certo, mas muito provocadores, de Lewis Tambs, que em um deles,
GEOPOLÍTICA DO BRASIL
sobre a nossa expansão territorial, vai ao exagero de afirmativas de
que só o futuro poderá responder à dúvida de hoje o Brasil chegará
ao Pacífico Evidentemente que chegará, mas por meios pacíficos
a Transamazônica que, ao atingir a fronteira peruana irá encontrar-se
com a «rodovia da selva» que o Presidente peruano Belaunde Terry
construiu para ligar o litoral de seu país à Amazônia peruana. Meios
pacíficos sonhados por Mauá quando projetou a ferrovia que, partindo
de Paranaguá, alcançaria Cuiabá e dali iria a La Paz, seguindo até
o Pacífico pela ferrovia que aquele país construía.
A participação do Brasil nos destinos do mundoo se realiza
apenas com os nossos votos e as nossas teses nas assembleias inter-
nacionais. Realiza-se pelo esforço que estamos promovendo para
completar a integração nacional, mantendo a unidade do arquipélago e
projetando-nos entre as potências pela significação do caráter de conti-
nente que possuímos, pelo peso da expressão populacional, pelo
desenvolvimento econômico, pela contribuição cultural, de que Brasília
é uma das indicações mais positivas, e sobre cuja importância acaba o
Conselho Federal de Cultura, em convênio com o Instituto Nacional
do Livro, de apresentar o inventário pioneiro, constante do livro A
Inventiva Brasileira, de Clóvis Costa Rodrigues. Essa a nossa aspi-
ração e a nossa participação nos destinos do mundo. Ora, é justamente
nesse conjunto de aspectos e de fatos que podemos encontrar as páginas
de uma geopolítica, elaborada por nós, para distinguir-nos eo para
levar-nos à política de opressão dos outros povos do continente. Nossa
geopolíticao nos conduz a nenhum «destino manifesto». Visa à paz,
à harmonia continental e ao bem-estar de toda a família americana.
Patrimônio Histórico e Artístico
Alexandre Von Humboldt e o Conde
de Clarac
UMA INTERPRETAÇÃO ARTÍSTICA FRANCESA DA NOSSA FLORESTA
TROPICAL PELO SÁBIO NATURALISTA ALEMÃO
«A/o segundo tomo de «Kosmos» Humboldt mostra que a pin-
tura de paisagens do trópico não era produto da fantasia dos
artistas, mas que nascera no Brasil, em seu ambiente natural».
HELMUT ANDRA «Alexander von Humboldt e as suas rela-
ções com o Brasih {Humboldt, n
ç
10, 1964).
DONATO MELLO JÚNIOR.
A
LEXANDRE von Humboldt (1769-1859), em sua memorável viagem
científica à América Espanhola, movido pela natural curiosidade
de sábio e pesquisador, quis estudar de perto as florestas da
Amazônia, grande parte da imensa região que ele chamara de Hiléia,
pensando, para isso, descer o Rio Amazonas.
É conhecido o fato histórico de haver a Metrópole lusa se oposto
ao programa do ilustre naturalista do «Kosmos», que se viu obrigado
a retornar das cabeceiras do Rio Negro.
o pedira licença e por motivos políticos desconfiara da oposição
reinol, de cujas medidas só mais tarde teria conhecimento.
Humboldt viera aos domínios espanhóis da América com autoriza-
ção de Carlos IV, Rei da Espanha, coincidindo a época com a situação
política tensa deste país com Portugal.
DONATO MELLO JÚNIOR
O próprio Humboldt nos dá um detalhe desse fato numa carta que
dirigiu mais tarde ao Conde da Barca, Antônio de Araújo de Azevedo,
ministro de D. João VI. Realmente, escreveu ele, a l
9
de março de 1816:
Lorsque dans mon Expedition à VOrénoque jê parviens par
le Cassiquiare, au Rio Negro prés de San . .. de los Mara-
vitanos, la guerre entre le Portugal et 1'Espagne ma empeché
de penetrer phts loin».
Esta carta, existente no Arquivo da cidade de Braga, foi divulgada
por Antônio Pedro de Sousa Leite num artigo sobre: «O Conde da
Barca e o seu papel em alguns aspectos das relações de Portugal com
a Inglaterra e a Alemanha», na revista portuguesa Armas e Troféus,
1942. Foi a mesma, posteriormente, transcrita por Carlos H. Oberacker
Júnior, na revista Humboldt, nº 49, 1969, no seu artigo «Uma carta
de von Humboldt ao Conde da Barca». O local aludido na carta éo
José dos Marabitenos, fortificação portuguesa no extremo-norte, perto
da povoação espanhola deo Carlos.
De fato, o governo português, sabendo da viagem de Humboldt,
conforme nos esclarece Helmut Andrã (Humboldt, nº 10, 1964 «Ale-
xander von Humboldt e as suas relações com o Brasil»), e alertado por
uma nota do jornal Gazeta de Lisboa, de 13 de maio de 1800, de que
o Barão von Humboldt enviara da América dados geográficos, resolvera
tomar medidas contra um estrangeiro possivelmente a serviço da Espa-
nha, medidas que Humboldto soube na ocasião.
Foi assim que o Ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho escreveu
de Lisboa a D. Francisco de Sousa Coutinho, Governador e Capitão-
General da Capitania do Grão-Pará, em 2 de junho de 1800, ordenando,
em nome de Sua Majestade, que ...
«V. 5ª faça examinar com a maior exação e escrúpulo, se
com efeito o dito Barão de Humboldt ou outro qualquer estran-
geiro tem viajado ou atualmente viaja pelos territórios dessa
capitania, pois que seria sumamente prejudicial aos interesses
políticos da coroa de Portugal, se se verificarem semelhantes
fatos ... (1)
A expressão «um tal Humboldt», que fora escrita logo no início do
citado documento, acima parcialmente transcrito, tornou-se citação
famosa e hoje nos exprime bem o receio que Portugal tinha de estran-
geiroso autorizados a viajar em seus domínios, evidentemente por
( 1) O expediente encontra-se transcrito por João Francisco Lisboa nas suas
«Obras» (2" edição, Lisboa, 1901). Igualmente divulgou-o Clóvis Sena, na
sua crónica «Prenda-se um tal de Humboldt», publicada no Jornal do Brasil,
Suplemento do Livro, em data de 21 de junho de 1969. Ordens idênticas
foram também transmitidas ao Maranhão e Ceará. Só muito mais tarde
Humboldt soube das providências tomadas, conforme se refere Helmut Andra.
Precisamente em 1848, quarenta e oito anos depois!
ALEXANDRE VON HUMBOLDT E O CONDE DE CLARAC
medida de segurança em sua política de portas fechadas (
2
). Houve
exceções como, por exemplo, para La Condamine (1744) e na época
do caso, um pouco depois, para Frederico Guilherme Sieber (1801),
Thomas Lindley e John Mawe.
Portugalo tinha maior interesse em fazer conhecidas pelas outras
nações as potencialidades e riquezas da sua colônia americana, princi-
palmente depois das descobertas do ouro e dos diamantes, aliás precau-
ção de qualquer país colonialista, na época.
Perdeu, infelizmente, a Amazônia, a oportunidade de ser estudada
«in loco» pelo notável cientista que veio a ser, vítima dos receios reinóis
em relação à sua Colônia, pois temia ainda ela que tais viajantes vies-
sem ... «tentar com novas ideias de falsos e capciosos princípios os
ânimos dos povos, seus fieis vassalos...». As ideias liberais da Revo-
lução Francesa apavoravam Portugal eo poderiam difundir-se pelo
Brasil, principalmente depois da experiência concreta da Inconfidência
Mineira.
Mais tarde, o Príncipe Regente D. João, reinando no Brasil, após
abrir liberalmente nossos portos em 1808, deixa a Colônia, depois elevada
a Reino-Unido, patente à curiosidade da Ciência.
Inic'a-se logo um fluxo crescente de viajantes e missões científicas
ávidas de conhecer as riquezas, as belezas naturais e o exotismo do
Brasil. É capítulo importante a história das viagens e expedições cien-
tíficas em nossas plagas, encorajadas, ajudadas ou patrocinadas pelo
l
9
e 2
9
Reinados, principalmente sob D. Pedro II, mecenas de quantas
aqui chegaram (
3
), amigo que foi de cientistas, artistas e intelectuais.
( 2) O acesso à Colônia dependia de autorização prévia. Por medida de segurança
Portugalo tinha nenhum interesse em ver sabidas as potencialidades do
Brasil,o divulgando os resultados dos estudos e viagens aqui realizadas.
A «Viagem Filosófica» de Alexandre Rodrigues Ferreira (1783-1792) é um
repositório de informes científicos dos fins do século XVIII, de grande valor
e Portugal nunca os divulgou, como fez igualmente com os desenhos de
Antônio José Landi, relativos à História Natural da Amazônia, assim como
outros, cujas publicações, ainda incompletas,o recentes.
( 3) Dentre os inúmeros viajantes e expedições que enriqueceram a ciência com
suas pesquisas, livros, álbuns e variada documentação colecionada em museus,
citamos alguns: Barão von Escrrwege (1810); Feldner (1810); Prín-
cipe Maximiliano de Wied (1815-1917); Jacques Arpgo e Freycinet
(1817-1820); Auguste de Saint Hilaire (1816-1822); Cari Friedrich von
Martins (com Thomas Ender, J. Mikan, Johann Natterer, Emanuel Pohl,
Johann Buchberger e Giuseppe Raddi, 1817-1820); Barão von Langsdorff
(com Luís Riedel, Maurício Rugendas, Hércules Florence e Adriano Taunay,
1827-1828); Jean Jules Linden (1835-1836); Jorge Gardner (1836); Francis
Castelnan e Weddel (1843-1847); Cari Euler, Burmeister, Lund e tantos
outros, sem podermos deixar de anotar os membros da expedição científica
de Nassau: Piso, Marcgrave e Wagener.
Cândido Mello Leitão nos dá um excelente apanhado do assunto em seu
trabalho «História das expedições científicas no Brasil» in Anais do Terceiro
Congresso de História Nacional, décimo volume, 1944,, publicado pelo I.H.G.B.
DONATO MELLO JÚNIOR
Von Humboldt, embora tenha sido politicamente impedido de pes-
quisar nossa História Natural e nossa Geografia, muito serviu ao Brasil,
estudando-o, incentivando a vinda de viajantes e pesquisadores, ou reco-
mendando-os, inclusive elaborando pareceres sobre nossos problemas,
graças à sua autoridade e prestígio no mundo científico. Lebreton, chefe
da Missão Artística Francesa de 1816, foi um dos seus recomendados. (
4
)
Helmut Andrã resumiu na sua preciosa pesquisa «Alexander
von Humboldt e as suas relações com o Brasil» (Humboldt, nº 10,
1964), parte da contribuição e da dívida do Brasil para com ... «o mais
eminente naturalista do seu tempo» ..., no registro da Grande Enciclo-
pédia Francesa. De fato, o Brasil aindao avaliou devidamente o
quanto devemos ao amigo de Goethe, que dele dizia «não tem rival na
formação e conhecimento das ciências existentes. Tem, além disso, uma
variabilidade de gênio que nunca vi igualada», conforme citação de Luis
de Pina, no seu trabalho «A universalidade de Alexandre de Hum-
boldt na História da Cultura» (Humboldt, nº 1, 1961). Aliás, o próprio
escritor Luis de Pina o classifica nesse artigo: «Um verdadeiro Homem
do Renascimento no século XIX, um Humanista florentino redivivo, um
Alberto Magno da Escolástica restaurada, omniciente como Vinci ou
Aristóteles».
Contrastando, a revista Humboldt, que o tem como patrono, vem
contribuindo para saldar essa dívida de reconhecimento, graças a mag-
níficos trabalhos e sérios estudos distribuídos em vários de seus números.
Lembramos, exemplificando: Luis de Pina (nº 1, 1961); Max Rychner
(nº 4, 1962, e nº 19, 1969); Egon Schaden (nº 4, 1962); Helmut Andrã
(nº 10, 1964); Carlos Oberacker Jor (nº 18, 1968, nº 19, 1969, e a' 24,
1971); Rudolf Borch (nº 19, 1969); Marianne O. de Bopp (n« 19, 1969)
e José Silvestre Ribeiro (n? 20, 1969).
Igualmente vem contribuindo para nosso reconhecimento o Instituto
Cultural Brasil-AIemanha, que comemorou seu bicentenário em outubro
de 1969, com as conferências de Herbert Wilhelmy, da Universidade de
Tubingen, e de Willy Keller, e com uma exposição sobre a vida e a
obra do famoso humanista alemão. Ao trabalho de informação e divul-
gação de Humboldt, já mencionado num estudo nosso adiante referido,
trazemos na presente nota um juízo do grande sábio relativamente ao
Brasil.
Afonso de Taunay também é autor de ampla bibliografia sobre esse assunto, e
mais recentemente Carlos Oberacker Jor, historiou o tema em seu estudo «Via-
jantes e artistas estrangeiros no reino e primeiro império do Brasil até 1840», in
Humboldt n° 18, 1968.
( 4) O Barão do Rio Branco cita frequentemente Humboldt em suas obras.
Joaquim Lebreton igualmente se refere a ele ao propor o ensino artístico no
Brasil, segundo citação de Mário Barata no seu artigo. «Um manuscrito
inédito de Lebreton» (Revista do PH AN, tfi 14, 1959).
ALEXANDRE VON HUMBOLDT E O CONDE DE CLARAC
O Conde de Clarac
Em 1816, a França envia ao Brasil um embaixador plenipotenciário
para tratar da restituição de Caiena, mandada invadir pelo Príncipe
Regente, em represália à invasão napoleônica de Junot. Foi ele o Duque
de Luxemburgo, embaixador de Luís XVIII, aqui aportado em 30 de
maio de 1816, na fragata Hermione, e recebido com todas as honras
por D. João, a 9 de junho seguinte no Paço deo Cristóvão.
Trazia ele, em sua comitiva de cinco membros, um adido, intelectual
e amante das viagens e das artes: Charles Othon Frédéric Jean Baptiste,
Conde de Clarac (1777-1847), aqui chegado na faixa dos quarenta
anos.
Durante alguns anos pesquisamos este personagem, autor de dese-
nhos aqui realizados, aliás pouco conhecidos e pouco divulgados, inclu-
sive por serem em número bem pequeno, sendo praticamente ignorado
em nossa história artística, por isso mesmo. E, registre-se, também hoje
quase esquecido em sua pátria, a França, onde foi um ilustre conserva-
dor do Louvre, na época da Restauração, e autor de importante biblio-
grafia no setor da arqueologia clássica, apenas biografado por Salomon
Reinach, no início deste século, e elogiado por Chennevières (1887).
Após as primeiras pesquisas, quase infrutíferas em várias e possí-
veis fontes, dirigimos correspondência, consultando sobre seus desenhos
no Brasil em 1816, a Afonso de Escragnolle Taunay (
5
), ao Museu
Imperial de Petrópolis (
6
), a Gustavo Barroso (
7
), a Guilherme
Auler (
8
), a J. F. de Almeida Prado (
9
), a Morales de los Rios
Filho (
10
). Dos que responderam, o desconhecimento foi a tónica.
( 5) Cartas de 25 de setembro de 1954, 10 de outubro e cartão datado de 12 de
outubro do mesmo ano. Diz-nos ele: «.Nada sei do Conde de Clarac...-»
«Nada absolutamente eu lhe posso adiantar sobre a existência de desenhos
do Conde aqui ou {ora do Brasil. Nunca lhe citei o nome...»
Em outra missiva, esvreve-nos: «Sobre o C. de Clarac nada posso adiantar-lhe
O Sr. A. Prado ao que saiba possui a Floresta Virgem e nunca vi a tal
vista do Rio Bonito». Mais adiante acrescenta: «Nunca li uma única linha
de Clarac...»
( 6) O Diretor do Museu Imperial, Paulo Maurity, pelo ofício nº 425, de 10 de
setembro de 1954, respondeu: ... «a respeito do Conde de Clarac, devo
informar-lhe que, nada mais, além das próprias fontes citadas por V.S., foi
possível encontrar».
( 7) Gustavo Barroso, em carta de 24 de janeiro de 1955, informou-nos: «Infeliz-
mente não posso responder às consultas que me fez». Mais adiante, acrescenta:
«Creio até que sobre os três casos a que o sr. alude, pelo que escreve, tem
mais informações do que aqueles de que eu poderia dispor. São casos interes-
santes, sem dúvida, merecendo ser aclarados. que o Sr. está neles
enfronhado da maneira que demonstra, não lhe deverá ser penoso, antes será
agradável, completar os dados que lhe faltam».
( 8) Guilherme Auler respondeu: «.A respeito do Conde de Clarac nada sei.»
(Carta de 27 de agosto de 1956).
(9) Sem resposta.
(10) Sem resposta.
DONATO MELLO JÚNIOR
Para a França, então, voltamos a nossa indagação, através de cor-
respondência dirigida à Embaixada aqui no Rio de Janeiro (
11
), à revista
«Connaissance des Arts» (
12
) e para Charles Picard.
Recebemos respostas dos do s últimos apelos e «Connaissance des
Arts» encaminhou nossa indagação, por uma pista fornecida, a René
Heron de Villeforse, historiador da cidade de Paris, parente de Clarac,
o qual imediatamente nos escreveu. Viemos a saber por Heron de Ville-
forse ser ele possuidor de meia dúzia de sépias, feitas aqui em 1816, por
Clarac, relativas à baía do R o de Janeiro e arredores, e que ele conser-
vava em sua residência no Castelo de Sceaux, em Paris (
13
) .
De Charles Picard, arqueólogo famoso, do Instituto de Arte e
Arqueologia da Universidade de Paris, recebemos expressiva carta, na
qual o ilustre estudioso do classicismo greco-romano demonstrou atenção
interessada à nossa pesquisa (
14
), emborao conhecesse os desenhos
brasileiros do Conde.
Para gáudio nosso e do Rio de Janeiro três dessas sépias estão
atualmente na Fundação Raymundo Ottoni de Castro Maya, no seu
museu no Alto da Boa Vista. Castro Maya adquiriu-as em Paris junta-
mente com uma gravura sob desenho de Clarac, mais dois documentos
pessoais e uma biografia (
15
) .
Havíamos antes solicitado ao arquiteto ítalo Campofiorito, quando
foi gozar uma bolsa em Paris, que fosse portador da cópia da carta-rela-
tório que endereçáramos ao Ad do Cultural da França, quando da nossa
consulta à Embaixada, em 1956. Informou-nos Campofiorito, após seu
regresso, que Heron de Villeforse mandara dados por intermédio de
Castro Maya. Foi quando o procuramos e nos permitiu ele copiar os
documentos vindos e fotografar as duas sépias originais, isso em 1961.
o curiosos testemunhos da iconografia car.oca, inéditos na ocasião,
(11) Sem resposta a nossa missiva datada de 15 de abril de 1956, relatando a
pesquisa.
(12) Remetemos uma consulta para a seção «Faisons Connaissance.»
(13) Resposta de 11 de agosto de 1956. Escreveu, a certa altura, após se desculpar
pela demora: . . . <<.mon enquête s'est heuríé à toutes sortes de difficultés
venues du Musée du Louvre (qui lui-même pense a s'occuper du Comte de
Clarac, et a tarde a me renseignec jusqu' au 1 juin (!) . De plus, les
renseignements sont maigres; ce qui ne diminue mon remords...» Mais adiante
registra: «Au Cabinet des Estampes, ilg a absolument rien de Clarac.
Entin, aux Archives du Louvre il ríg a pas non plus de dessins de Clarac.»
(14) Carta de Villefosse em 25 de junho de 1956.
(15) Uma representa os Arcos da Carioca, vistos do lado de Santa Teresa, e a
outra a lagoa Rodrigo de Freitas, olhada de local próximo à atual rua
Humaitá, raro testemunho de uma antiga capela colonial carioca, a de N. S. da
Cabeça, vista no segundo plano, com seu alpendre, que aparece mais uma
vez numa pintura de Antoine Taunay.
ALEXANDRE VON HUMBOLDT E O CONDE DE CLARAC
atualmente patrimônio da Fundação Castro Maya e constam do Catá-
logo da mesma, publicado em 1965, juntamente com a gravura segundo
desenho de Clarac.
Acham-se assim referenciadas à p. 15:
a) «Arcos do Rio de Janeiro, 1816
Desenho a bico de pena. 30 x 40 cm.
Visitou o Brasil de maio a setembro de 1816.»
b) «Vista da Lagoa Rodrigo de Freitas com a Capela N.S. da
Cabeça. Desenho 30 x 40 cm. Reproduzido no Álbum do
IV Centenário do Rio de Janeiro.»
c) «Floresta Brasileira. Litografia 54 x 74 cm. Entre os dese-
nhos, produziu um que foi litografado: A Floresta Virgem do
Brasil, que Humboldt elogiou como a melhor representação da
nossa natureza. Em 1818 foi nomeado conservador das anti-
guidades do Museu do Louvre.»
Devemos observar que a Floresta Virgem é, originalmente, uma
gravura em metal, um buril eo uma litografia. Mais tarde, houve
outras reproduções.
Em 1962, publicamos no Boletim do Museu Nacional de Belas
Artes, nº 1, dados e a evolução de nossas pesquisas, ainda hoje o único
trabalho dedicado ao Conde de Clarac em suas relações com o Bra-
sil (
10
).
Clarac esteve pouco tempo no Brasil. De 30 de maio a 16 de setem-
bro de 1816, pouco podendo ter desenhado. Seu regresso, pelo brigue
«Le Hussard», via Guiana Francesa, a seu pedido, acha-se documentado
pelo Duque de Luxemburgo em correspondência para o Duque de Riche-
lieu, a 20 de setembro de 1816, às vésperas também da sua volta. Acha-se
a mesma arquivada no Ministério das Relações Exteriores da França
e a conhecemos, por cópia, há dois anos, no Itamarati, remetida pela
nossa Embaixada em Paris (
17
) .
Na França, o Conde de Clarac deixou importante obra de documen-
tação iconográfica e estudos do classicismo greco-romano, funcionário
que era do alto escalão do Museu do Louvre desde 1818, onde foi con-
servador das antiguidades gregas, romanas, idade média e escultura
francesa, substitu.ndo o célebre Visconti. O Louvre possui seu busto
por A. Arnaud e dedicou-lhe o nome de uma de suas salas. Igualmente
(16) Boletim do Museu Nacional de Belas Artes, n° 1 março de 1962. Nosso
trabalho saiu sob o título: «Desenhos brasileiros do Conde de Clarac»,
ilustrado com as reproduções da gravura «Forét Vierge au Bresil» e as duas
sépias de Castro Maya: Arcos da Carioca e Lagoa Rodrigues de Freitas.
Mais tarde, Castro Maya divulgou uma de suas sépias na sua importante
obra: «A Mui Leal e Heróica Cidade do Rio de Janeiro».
(17) Documentação relacionada por Cicero Dias e remetida em microfilme para
o Itamarati.
DONATO MELLO JÚNIOR
David D Angers fez um medalhão, que hoje também está no Louvre,
conforme consta do catálogo seu de moldagens, datado de 1946, sob
nº 4.094.
Entre suas obras destacam-se: «Têtes antiques» (1809); «Sur les
fouilles de Pompei» (1818); «Musée de sculpture antique et moderne»
(1826-1853), em doze volumes, sendo seis de gravuras, em 1.136 pran-
chas; «Manuel de 1'Histoire de l'Art chez les anciens» (1830-1847);
«Sur la statue antique de Vénus Victrix découverte dans 1'ile de Milo»;
24 descrições de estátuas na obra de Henry Laurent «Musée Royal», etc.
Pretendia Clarac publicar um álbum dos seus desenhos brasileiros,
o o conseguindo infelizmente, com o que acabaram dispersos após
a sua morte. Heron de Villeforse confirmou-nos possuir «une demi-
douzaine de grandes sépias consacrées à la baie de Rio e aux environs
qu'ornaient dans mon enfance la salle à manger de mes parents». Char-
les Picard, por seu turno, nos escreveu comunicandoo possuir o Lou-
vre nenhum desenho brasileiro, após uma consulta especial (
1S
).
O Louvre, em sua Calcografia, possui 1.526 pranchas em 697
cobres da importante obra «Musée de sculpture de Clarac» (de n
ps
12.204
a 13.729, do «Catalogue de la Chalcographie du Louvre», 1954).
Benjamin Mary, primeiro diplomata belga no Brasil, também dese-
nhou o Rio de Janeiro e seus arredores, e, como Clarac, pretendeu editar
um álbum com esses seus trabalhos. Amboso conseguiram.
HUMBOLDT E A «FORÊT VIERGE AU BRÉSIL» DE CLARAC
Clarac, entre seus desenhos do Brasil, levou um que representava
uma floresta virgem às margens do Rio Bonito, no atual Estado do Rio
de Janeiro. De passagem, podemos informar que o viajante Auguste de
Saint Hilaire, veio para o Brasil, após permissão, com o Duque de Luxem-
burgo, conhecendo, pois, Clarac. O botânico Saint Hilaire e o minera-
logista Lambert, aliás, viajaram para o Brasil recomendados ao Conde
da Barca por Humboldt, conforme se vê da carta datada de 1' de março
de 1816. O Conde talvez tenha acompanhado Saint Hilaire na sua pri-
meira viagem pelo interior fluminense, já que se refere ao local Rio
Bonito, próximo da habitação de Ubá, lugar onde possivelmente se inspi-
rou Clarac para fazer seu desenho da floresta virgem e cujo paradeiro
atual desconhecemos, mas que foi exposto no «Salon» de Paris em 1819.
A gravura a buril, feita por Claude Fortier (1775-1835) foi exibida no
«Salon» de Paris de 1822 e o ocupou trinta meses de trabalho (
19
) .
A chapa original pertence à Calcografia do Louvre e está relacio-
nada sob o nº 902 do seu catálogo já referido anteriormente, e da qual
(18) Carta referida sob o nº 14.
(19) Conforme Salomão Reinach. Infelizmenteo conseguimos localizar no Rio
os catálogos dos «Salons» de 1819 e 1822, quando o desenho e a gravura,
respectivamente, foram expostos.
ALEXANDRE VON HUMBOLDT E O CONDE DE CLARAC
encomendamos uma cópia. Constou essa gravura em metal da Expo-
sição de História do Brasil, ocorrida no Rio de Janeiro em 1881, cata-
logada sob on
9
16.810 e com a seguinte referência:
«Forêt vierge du Brésil (Mato Virgem do Brasil) Gv. por
Fortier [Cláudio], s.d. (1822) (BN). nº 1849 de Mullet:
«Cat. Amer. III nº 10 de L. B. Belo desenho, mui bem gra-
vado (Vide: «Eyries & Malte Brun, «Nouvelles Annales
des Voyages» à p. 234 e seguintes do tomo XX (1823). O
exemplar exposto é uma prova muito vigorosa» (
20
).
No início das nossas pesquisas,o conseguimos consultá-la.o
estava catalogada, nem fora possível localizá-la nas nossas primeiras
buscas, tendo sido reencontrada, há pouco, pela chefe da Seção de Ico-
nografia, Lígia Fernandes da Cunha, que nos deu a notícia. Soubemos,
por intermédio de Afonso de Taunay, ser possuidor de uma gravura o
colecionador J.F. de Almeida Prado, em sua famosa brasiliana (
21
).
Soubéramos da existência do desenho e do buril «Forêt vierge au
Brésil» ao lermos o prefácio da obra de Salomon Reinach, «Repertoire
de la statuaire grecque et romaine», conhecida como «Clarac de Po-
ches> (
22
) . Referindo-se aos desenhos, diz Reinach:
«.Dans le nombre se trouvait la vue d'une forêt vierge des bords
du Rio Bonito, dessin à 1'effet dune três belle venue, qui fut
grave avec beaucoup d'habileté par Fortier.-»
Em nota, acrescenta Reinach:
«Le dessin à la plume, entièrement de la main de Clarac, est
chez Mme Heron de Villeforse»...
A seguir, o autor nos esclarece:
«La planche de cette magnifique estampe, qui couta trente móis
de travail à son auteur, est la chalcographie du Louvre; elle a
été reproduite em 1824 dans les Annales européennes, et le
dessin original a exposé au Salon de 1822. Humboldt a cité
cette gravure comme la reproduction la plus parfaite quil con-
nut de la vegetation luxuriante et grandiose des forêts du Now
veau-Monde».
Helmut Andrã (Humboldt nº 10, 1964), já citado aqui, chama a
atenção para o interesse que o grande naturalista tinha pelas artes, prin-
(20) Catálogo da Exposição de História do Brasil, Classe XV Vistas e Paisagens
(p. 1.403), organizado pela Biblioteca Nacional em 1881.
(21) Informação de A. E. Taunay, em carta.
(22) Paris, 1906, 2» edição. Publicação popular da iconografia divulgada por
Clarac.
DONATO MELLO JÚNIOR
cipalmente para a pintura, em particular para as paisagens, citando, o
mesmo, Gertrud Richert, que disse a respeito de Humboldt:
«Daí a razão por que Humboldt patenteava sua viva predile-
ção precisamente pela pintura paisagística, tendo consequente-
mente, diligenciado, repetidas vezes, que a pintores jovens fosse
aplainada a via que conduzia ao domínio da vasta natureza
da Ibero-América, ainda completamente desconhecida, na expec-
tativa de ser conquistada. E o autor continua escrevendo:
N segundo tomo de «Kosmos» Humboldt mostra que a pin-
tura de paisagens do trópico não era produto da fantasia dos
artistas, mas que nascera no Brasil em seu ambiente natural».
Mais adiante, Helmut registra: «Humboldt menciona, nesta
correlação, também o pintor Eckout, acrescentando, que, poste-
riormente, esses exemplos quase que não encontraram imitado-
res, mas que, em compensação, estes surgiram «nos nossos dias,
em estilo mais amplo e com maior mestria na reprodução do
mundo tropical americano, a saber: Maurício Rugendas, o
Conde Clarac, Ferdinand Bellermann e Eduard Hildebrandt».
Finalmente, o autor de «Alexander von Humboldt e as suas rela-
ções com o Brasil» nos nforma,o citando a sua fonte:
«O Conde de Clarac (1777-1847), que, em Paris, pertencia
ao círculo dos que gravitavam em torno de Humboldt, veio para o Brasil
em companhia do embaixador francês Duque de Luxemburgo».
Salomon Reinach reproduz, no prefácio aludido, duas cartas
dirigidas a Clarac e nas quais a gravura é mencionada. Numa delas,
de 17 de março de 1824, lemos:
«Deja vous recueillez le fruit, jê ne dirai pas de vos veilles.
mais des heures du jour que vous avez pu mettre à profit poar
dessiner les belles scènes que vous offrait la virginité des forêts
du Brésil. Vous ne doutez pas de iinterêt avec lequel j' ai
lu tous les articles de journaux qui parlaient de la gravure du
comte savant. Vous avez obtenu tout ce qui peut flatter
I'amour-propre d'auteur, les éloges des connaisseurs et d'tin
Humboldt».
Aliás, foram os textos de Salomon Reinach que nos despertaram a
curiosidade de pesquisar Clarac, face às suas referências sobre desenhos
brasileiros, desconhecidos mesmo pelos estudiosos da iconografia do
Brasil e, sobretudo, pela raridade da sua produção.
A opinião de Humboldt, mencionada por Reinach, ainda que de
passagem, aguçou-nos o desejo de conhecê-la exatamente na fonte
original, isto é, na obra do grande amante da natureza, o queo nos
foi fácil por sua imensidade. Tivemos a primeira pista num texto
ALEXANDRE VON HUMBOLDT E O CONDE DE CLARAC
biográfico de Clarac, publicado no «Annuaire historique des souverains
et des personnages distingues dans les diverses nations» (1844). De
fato, nele se alude à opinião de Humboldt como tendo sido publicada
nos «Tableaux de la nature».
O pensamento de Humboldt encontramo-loo na edição princeps,
mas numa tradução de J. B. B. Eyries (Paris, 1828, tomo segundo,
página 147) num adendo ao capítulo «Idcés sur la physionomie des
vegetaux», sob o titulo «Eclaircissements et addition».
O texto original é o seguinte:
«Un voyageur [rançais, M. le comte de Clarac qui alla au
Brésil en 1816, a su rendre avec une exactitude étonnante la
sauvage abondance de la nature des tropiques. Son beau
dessin d'une Forêt vierge du Brésil, est un admirable tableau
qui me rappelle les plus douces impressions de mon voyage
à 1'Orénoque; rien nest comparable au sentiment de vetitè
avec le quel M. de Clarac a su tracer sur le papier ces
formes majestueuses et si 'varies de la zone torride.
Daniels, dans les Vues de Vinde, a quelquefois eu ce senti'
ment; mais il reste sur la lisière des forêts, tandis que M. de
Clarac y fait pénétrer le spectateur, qui s'y arrete avec
plaisir. Cette composition magnifique, dont la gravure a
parfaitement reussi, montre à tous les yeux ce que me suis
efforce de decrire.»
Como acabamos de ver, a opinião de Humboldt só aparece em
edições posteriores, uma vez que a publicação inicial data de 1808,
uma das primeiras obras americanas do enciclopédico mestre germânico.
Em obra sobre a correspondência de Humboldt, que os conhecedores
classificam de copiosa,o encontramos troca de cartas entre o mesmo
e Clarac.
A «Floresta Virgem» de Claraco é uma vista ou um flagrante
do interior florestal. É, antes, uma impressão ou uma síntese de elemen-
tos praticamente desconhecidos pelo mundo europeu; é uma composição,
uma interpretação da natureza selvagem que tanto impressionava os
viajantes, como, por exemplo, Saint Hilaire, que assim se exprimia em
carta ao Conde de Lescarene:
«Jê ne saurais vous rendre Vimpression que j'ai éprouvé la
première fois que j'ai herborisé dans un des bois montagneux
qui entourent la ville: chaque plante itoit nouvelle pour moi; la
richesse des couleurs et iélegance des formes attiroient mes
regards de tous côtés; en les reposant sur un obget, jê craignais
DONATO MELLO JÚNIOR
de perdre le ptaisir d'en contempler mille autres, et faurois
presque accusé la nature de tcop de prodigalité (
23
)
A opinião de Humboldt apoiou-se mais num sentimento pictórico
do que numa pura análise de naturalista, grande como poucos o foram.
Viu nela mais uma composição expressiva, mais artística do que
documentária, já que sentiu nela a floresta americana cuja imagem
colhera em suas viagens e que procurara descrever. Sentira ele que o
intérprete conjugara num cenário partes da floresta majestosa em
magnífica composição. Outros, como veremos mais adiante,o senti-
ram assim. Lembremos, de passagem, as interpretações posteriores da
floresta fluminense aos olhos do aquarelista Benjamin Mary e à pena
de Louis Van Houtte, cujas impressões da floresta brasileirao
contradizem Clarac.
CLARAC EM OUTROS JUÍZOS
No diário de Manuel de Araújo Porto-Alegre, existente no
IPHAN, e já publicado (
24
), Clarac, de passagem, é criticado no
capítulo: «Breves reflexões que submeto à consideração do Senhor
Miiller.» Lemos:
«.Estas ideias inda que muito razoáveis na aparência têm o
inconveniente de demorar o estudo da nossa natureza, o de
habituar os alunos a tocarem os objetos da nossa variadíssima
botânica da mesma maneira que acentuam os artistas europeus
os da sua, o que nos pode conduzir aos resultados que se
observam nos painéis do Conde de Clarac, e mesmo naqueles
que aqui foram feitos por Nicolau Taunay, que era um paisa'
gista de primeira ordem; mas que não pôde apanhar devida-
mente o caráter da nossa vegetação, da conformação dos
terrenos, porque em todos os seus admiráveis painéis ressum-
bra sempre aquele aspecto peculiar a Itália.»
«As florestas virgens que aqui vimos do Sr. Buvelot eram
incompletas e tinham aqueles mesmos defeitos que o Senhor
Conde de Castelnau encontrou na do Conde de Clarac. O
toque da folhagem das árvores, das parasitas, das bromélias,
das gramíneas ou taquaras, e das plantas aquáticas, não era
exato, nem a colocação destas plantas localizada conveniente'
mente; defeitos na forma geral e característica, despro-
(23) Prado, J. F. de Almeida Tomas Ender Pintor austríaco na Corte de
D. João VI no Rio de Janeiro.o Paulo, 1955, p. 30.
(24) «Manuel de Araújo Porto Alegre», por Alfredo Galvão in Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, nº 14, 1959, p. 51-52. Rio de Janeiro.
ALEXANDRE VON HUMBOLDT E O CONDE DE CLARAC
porção entre sua grandeza, e infidelidade no tipo geral que
específica as regiões subtropicais,-» Este juizo traz a data de
26 de novembro de 1855.
Parece-nos que Manuel de Araújo Porto-Alegre, segundo conhe-
cemos de sua parca obra pictórica,o aplicou na mesma o que doutri-
nava, o que é aliás muito comum. Sua pinturao se afastava do que
se praticava na Europa, meta de quantos aspiravam aperfeiçoar-se,
inclusive ele.
O próprio ensino acadêmico conduzia ao modelo europeu: a França
e a Itália simbolizavam a máxima aspiração no mundo artístico, com
suas paisagens compostas e iluminadas no «atelier». O Impressionismo
e o ar livreo haviam aparecido para a revolução pictural derrubando
os Cânones dos clássicos e dos românticos.
Ainda noutra obra encontramos um juízo negativo sobre Clarac.
De fato, Paul Marcoy, em 1869, (
25
) critica acidamente a interpretação
do conde francês, num contraste com a opinião humboldtiana. Escreveu
ele nada mais do que o transcrito a seguir:
«A/bus voulons parler de 1'odieuse forêt vierge de M. de
Clarac, vulgarisé par la gravure, et que, depuis quarante
ans, chacun a pu voir grimacer aux vitres des marchands
d'estampes.
Quoi de plus mensonger que cet interieur des bois, fait de
pièces et de morceaux ajustes sans égard pour leur couleur
disparate! Dans cette composition a tiroirs. ou tout se trouve,
ou rien ne manque, si ce nest cette seule chose quon appelle
la vérité, la fougère arborescente déploie son éventail à Vorchis,
les aroides voilent la base des palmiers et les arobanchées
pendent tout exprès aux branches des arbres pour faire une
opposition pittoresqué aux nymphaeacées des bas fonds. Puis.
comme si cet étrange pêle-mêle netait pas suffisant, de com-
plaisantes échappées ouvertes dans la forêt permettent à un
torrent, venu on ne sait d'oú, d'y rouler ses eaux écumantes,
et au soleil d'éclairer certains plans et d'en laisser d'autres
dans 1'ombre le tout pour la plus grande gloire de ce que les
peintres nomment I"effet.»
(25) Marcoy, Paul Voyagc a travers l'Amerique du Sud de l'Océan Pacifique
à l'Océan Atlantique. Ilustre de 626 vues, types et paysages par Riou et
accompagné de 20 cartes graves sur les dessins de 1'auteur. Paris, 1869,
2 vol., il.
Em trabalho nosso analisamos os três desenhos de Belém do Pará de Marcoy,
gravados por Riou («Antônio José Landi Arquiteto de Belém As
fachadas do bicentenário Palácio dos Governadores do Grão-Pará»).
DONATO MELLO JÚNIOR
«Loin de nous la pensée de faire de Voeuvre d'autrui une
cible à notre critique. Mais, en litterature comme en peinture,
il est de ces énormités qui out le don d'emouvoir notre bile et
de produire sur notre esprit le même effet quune loque rouge
sur un taureau.
La forêt vierge de M. de Clarac est de ce nombre. Si nous
étions gouvernement ce que Dieu ne permette pas, il y a
longtemps que ce pretendu spécimen de la nature tropicale
aurait été brúlé en place publique par Monsieur de Paris, et
ses éditeurs condamnés a pauer au fisc une grosse amende.
De cette pseudo-forêt brésilienne qui viole impudemment les
his de la geographie botanique intervertit /'área des plantes
et leur habitat et brouille à plaisir la theórie des lignes isother-
mes, si nous passons à la veritable forêt, celle ou nous sommes,
par exemple, et que nous y introduisons le lecteur, iimpression
quil en recevra será une stupéfaction suivie de désenchante-
ment; la lumiére et lespace sur lesqucts il comptait lui feront
défaut. Un crépuscule verdâtre lui montrerá tous les objets
éclairés d'une teinte uniforme.
Au lieu des profondeurs ombreuses quil s'attendait à voir,
et des larges sentiers quil parcourait en idée, un inextricable
fouillis de feuilles et de branchages. férocement armes de
dards, d'epines et de griffes, arrêtera sa marche à chaque
pas. Alourdi par les exhalaisons du sol et le súintement
perpetuei de tout ce qui végète, Vair dense, humide, chaud,
énervant, sature d'odeurs fétides et de parfums violents, reagira
sur sa fibre et sur son cerveau.»
E o autor continua a descrever a sua floresta amazônica para
contrastar com a de Clarac. Mais adiante registra:
«De cet ensemble vegetal, touffu, herissé inextricable, /our-
millant, presque chimerique, a force d'être etrange, et dont
nous nous contentons dindiquer les traits principaux, de cet
ensemble à la forêt de M. de Clarac, tracée, taillée, échenilée,
éclairée à giorno, fait à souhait pour le plaisir des yeux, le
lecteur qui nous accompagne ne manquera pas de trouver que
la distance est grande, 'lopposition tranchée, le contraste
heurté.»
Parece-nos exagerado o juízo de Paul Marcoy. Claraco foi um
documentarista na sua «Forêt Vierge», antes uma interpretação de
caráter artístico do que científico. Talvez quisesse ele resumir num
único trabalho uma soma de dados colhidos. O próprio Marcoy possi-
velmente em sua obra citada,o tenha feito a mesma crítica às gra-
ALEXANDRE VON HUMBOLDT E O CONDE DE CLARAC
vuras de Riou, sob seus desenhos, numa copiosa produção de 626
estampas lá reproduzidas. Sua «Voyage» tem um caráter descritivo e
documentário e, pelo menos, três gravuras do seu livro, relativas a Belém
do Pará, documentando o Palácio do Governo, a igreja das Mercês
e a Catedral,o absolutamente inverídicas. «Mutatis mutandis»,
pode-se aplicar a elas a própria crítica de Marcoy a Clarac. Os referi-
dos monumentos ainda existem e poucom com as representações de
Riou sob desenhos do viajante; e Marcoyo as queimou. . . poro
serem verídicas. A ele se aplica o ditado: Faça o que eu digo,o
faça o que faço.
Von Humboldt, cientista com sensibilidade pela Arte, cremos,
soube compreender a composição de Clarac,o a vendo exclusiva-
mente sob o prisma botânico. Infelizmente,o conhecemos todos os
desenhos de Clarac, hoje dispersos, mas três de suas sépias: duas
da Lagoa Rodrigues de Freitas e uma dos Arcos da Carioca, mostram
como Clarac sabia documentar, ele que foi depois especialista na
representação correta da estatuária greco-romana em centenas de
pranchas (opus referida).
Devemos lembrar ainda que o julgamento é feito sobre a gravura
de Fortier eo sobre o desenho original, igualmente como ajuizámos
sobre suas estampas mal interpretadas por Riou.
Aliás, Almeida Prado (opus cit, p. 378) escreve que: «Os traba-
lhos de Rugendas, Choris, Conde de Clarac e muitos mais, foram
profundamente modificados na impressão. Humboldto conheceu o
juízo de Marcoy, publicado dez anos após a sua morte. Tambémo
sabemos se ele conheceu a opinião do sábio naturalista e a de Castelnau.
Infelizmente,o localizamos o juízo de Castelnau, citado muito
vagamente por Porto Alegre e sem referência.
Transcrevemos, «ipsis verbis», os juízos antagónicos de Humboldt
e de Marcoy, para o julgamento do público, em confronto com as três
reproduções da obra de Clarac, quando da sua rápida passagem pelo
Brasil, quase episódica aliás, pois sua carreira de militar,, conservador,
estudioso e autor ele a fez com brilho, principalmente na França, sua
pátria, que lhe reconheceu, na época, seus méritos com algumas
honrarias: Oficial da Legião de Honra, Cavaleiro deo Luís, de
Malta, de Sant'Ana da Rússia, membro do Instituto de França na
Academia de Belas Artes e conservador da primeira divisão do Museu
Real, hoje Museu do Louvre.
Clarac ainda aparece citado algures por Humboldt em sua imensa
obra?o sabemos. O tempo e as pesquisas responderão.
DONATO MELLO JÚNIOR
ADENDO
Na recente exposição «Memória da Independência» (1808-1825), comemorativa
do Sesquicentenário da Independência, Clarac esteve presente. No Catálogo, bem
elaborado, no capitulo «IV Paisagens», os ns. 239, 240, 241 e 242o de trabalhos
de Charles Othon Frédéric Jean Baptiste, Conde de Clarac. O de nº 239 é uma
vista do aqueduto da Carioca, os de ns. 240 e 242o vistas da Lagoa Rodrigo
de Freitas. Sob o nº 241 referencia-se «La forêt vierge du Bresil», gravura da
Biblioteca Nacional.
Observe-se que o desenho é de 1816 e exposto em 1819 no «Salon» de Paris,
mas a gravura é de Claude Fortier e exposta no «Salon» de Paris de 1822. As
outras sépiaso da Fundação Raymundo de Castro Maya.
*
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