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OBRAS
DE
JÚLIO DINIS
VOLUME II
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OBRAS
DE
\
JÚLIO DINIS
VOLUME II
SERÕES DA PROVÍNCIA —POESIAS —INÉDITOS
E ESPARSOS —TEATRO
LELO & IRMÃO-EDITORES
144, UA DAS CARMELITAS —PORTO
A propriedade literária e artística
está garantida em todos os países
que aderiram à convenção de Berna.
Em Portugal, pela Lei de 18 de
Março de 1911. No Brasil, pela Lei
n.º 2 577 de 17 de janeiro de 1912.
ARTES GRÁFICAS PORO
SERÕES DA PROVÍNCIA
ADVERTÊNCIA
RA propósito de Júlio Dinis, quando em 1869 permitiu à casa More
editar os Serões da Província, principiar a interessante colecção
dos seus pequenos romances com a Justiça de Sua Majestade,
estreia literária do talentoso romancista, escrita em 1858, ' se bem me
recordo, e condenada pelo preceito de Horácio ao longo repouso de
dez anos, do qual saiu para ser revista pelo autor.
A persistente doença de Júlio Diniso lhe permitiu concluir a
revisão do romance, e foi por essa causa que apareceu a primeira
edição dos Serões da Província em 1870, sem a Justiça de Sua Majestade,
que o destino condenou a um novo esquecimento.
Júlio Dinis faleceu prematuramente em 1871, legando a seu pai,
o Sr. José Joaquim Gomes Coelho, o manuscrito da Justiça de Sua Majes-
tade, que me foi entregue pelo venerando ancião para lhe dar publi-
cidade, se me parecesse digno dela!o se lembrando queo
podia ser censor do escrito de seu filho, quem, como eu, tem apenas
o merecimento de haver sempre sido, e ser ainda, um dos seus maio-
res admiradores.
Assim, pois, fica-me inteira a responsabilidade de publicar a
Justiça de Sua Majestade sem ter primeiro aquilatado o valor literário
da obra, incumbência que compete de direito aos leitores, a quem a
transmito, vista a incompetência do
Editor da terceira edição.
Porto, 9 de Julho de 1879.
Tinha Júlio Dinis 19 anos incompletos, pois nasceu no Porto em 14 de Novem-
bro de 1839.
2
A. R. da Cruz Coutinho.
JUSTIÇA DE SUA MAJESTADE
FERVET OPUS !
E
RA por uma manhã de Abril de 18S2.
O campo vestia-se de seus mais opulentos e matizados trajos.
O Minho estava fascinador.
Por toda a parte eram já espessuras frondosas e impenetráveis;
sombras discretas; vales misteriosos e encantadores, graças ao claro-
-escuro, com que a vegetação renascente os coloria; colinas ador-
nadas e festivas, como um trono de altar em capela rústica; enfloradís-
simos silvados, veigas a exuberarem de vida; e, por entre tudo isto,
casas de brancura ofuscante, e acima de tudo umu sem nuvens,
umu azul, daquele azul dos céus napolitanos, a meu ver,o culpados
na existência dos lazzaroni.
As torrentes estavam nas suas horas de bom humor;o bra-
miam, murmuravam apenas;o se precipitavam impetuosas do alto
dos outeiros, deixavam-se escorregar pelas anfractuosidades das que-
bradas.
Os ventos, como que arrependidos, pretendiam com afagos fazer
esquecer aos arbustos mais tenros as violências passadas.
A luz salutar da Primavera convertia-se, por mágica metamor-
fose, em perfumes que embalsamavam os ares, em flores que esmal-
tavam os prados, em harmonias vagas que as brisas transportavam de
selva em selva, que as aves escutavam atentas e os ecos repercutiam
sonoros.
Nestes dias assim sente-se palpitar de vida a natureza inteira.
Por toda a parte se realiza um genese. No solo é o grão que ger-
mina; nos troncos as novas folhas que brotam; nos ramos as flores
SERÕES DA PROVÍNCIA
que desabrocham; nas águas, nas florestas, nos vergéis, nos ares, uma
jovem e inquieta geração de aves e de insectos que surge, animando
tudo com seus magníficos concertos, com suas valsas incessantes e
rápidas, iluminadas por um sol vivificador.
É contagiosa esta alegria da natureza.
O coração recebe o influxo dela.
A vida tem então também a sua inflorescência. Nesta quadra as
ilusões, as esperanças, as mais puras e ideais concepções de fantasias
exaltadas pululam, como as boninas na relva; a alegria, os risos e os
prazeres reflectem-se nos semblantes, como a luz do arrebol nos
cimos dos outeiros; ama-se melhor, perdoa-se melhor, e a poesia e
os cânticos saemo espontâneos, como o trinado dos pássaros de
entre a folhagem dos pomares.
A fisionomia das cidades perde também então um pouco da sua
habitual gravidade. O vento que lhes vem dos arrabaldes inocula-lhes
este fermento de folgazão regozijo. A Primavera desinquieta-os, sedu-
-los, atrai-os, a esses soturnos cidadãos, e a população urbana trás
borda nas aldeias circunvizinhas.
Os mais sisudos burgueses, que, durante o Inverno, revestidos
da gravidade do seu paletó, e confiando oss à impermeabilidade
dos seus sapatos de guta-percha, passavam sérios e ponderosos, cor-
tejando-se com irrepreensível compostura, agora vestidos de linho,
de chapéu de palha de forma pastoril e leveza queo era de esperar
da sua idade e posição, seguem prazenteiros caminho do campo, con-
tando anedotas de índole pouco edificante, fazendo sentir o sabor do
sal,o absolutamente ático, que as tempera; recordando as mais
atrevidas coplas da Maria Cachucha, acompanhadas de exibições
coreográficas de fazerem estalar de riso a parte feminina do rancho
que capitaneiam.
É a época de esplendor dos «bons retiros» campestres. Mas em
1852, alguma coisa havia, além da costumada influência da Primavera,
a sobressaltar a laboriosa população do Norte do reino. A antiga pro-
víncia de Entre Douro e Minho mostrava o que quer que era extraor-
dinário no alvoroço e geral agitação, que por toda ela ia.
No Porto trabalhavam com azáfama as modistas, os alfaiates, os
sapateiros, as luveiras e os doceiros; enchiam-se a deitar por fora as
hospedarias; espanavam-se, como em dia de procissão, as varandas,
a cujos pacíficos aracnídeos se declarava guerra de extermínio; lava-
vam-se as vidraças, caiavam-se as fachadas, e, graças a esta limpeza
geral que se fazia nas casas, os passeios tornavam-se intransitáveis.
Ruas e largos eram calçados com uma actividade sem análoga nos
fastos do município. As sessões extraordinárias do excelentíssimo
corpo camarárioo permitiam um momento de repouso aos preocupa-
dos edis.
Uma população exótica das províncias, trajando de uma maneira
incrível, acotovelava-se nas praças, e, extasiada diante das exposições
SERÕES DA PROVÍNCIA
de ouro da Rua das Flores, dificultava a passagem ao cidadão portuense,
cuja proverbial celeridade era desta vez, por força maior, modificada.
A guarnição militar da cidade limpava e envernizava as correias e estu-
dava o exercício, e nos quartéis de Santo Ovídio, S. Bento, Carmo e
Torre da Marca ressoava de contínuo a música marcial das bandas
que se ensaiavam,
Na Rua das Flores e à entrada das Hortas erguiam-se arcos triun-
fais de madeira e lona e de uma arquitectura problemática; no Cais
da Ribeira construíra-se um pavilhão de duvidosa elegância; no centro
da Praça de D. Pedro terminava-se um obelisco, diversamente comen-
tado pelos cadeirinhas do passeio do poente, pelos políticos do do sul,
pelos vigias e. empregados municipais do do norte, e do lado do nas-
cente pelos grupos de elegantes, e literatos, que então estacionavam
nas imediações do Guichard, aquele café que há-de merecer uma
menção honrosa na história da literatura portuense, se alguém se
lembrar de a escrever um dia.
À entrada dos Aloques...—mal agourada procedência mon-
tava-se o primeiro gasómetro que viu a cidade invicta, destinado a
iluminar as uma árvore alegórica, em que se trabalhava a toda a
pressa no alto da Rua de S. João.
Este movimentoo ficava concentrado entre os limites das bar-
reiras, estendia-se para o sul a Vila Nova de Gaia, onde, no alto da
Bandeira, se construíra também um arco e por toda a estrada de Lisboa
até além de Grijó; para Q norte também a tranquila vida da província
havia sido alterada. Desde os fidalgos que lavavam os brasões das
suas armas e reformavam as librés desbotadas dos criados, até o aldeão,
que tirava do fundo da caixa meia dúzia de cruzados novos, cuja inte-
gridade e boa conservação eram dignas daquelas dinheirosas épocas
de D. João V que os mandara cunhar; todos, mais ou menos, partici-
pavam deste geral alvoroço.
É tempo de dizermos o motivo de tanta eo excepcional agita-
ção destes estranhos preparativos de festa, se é que o leitor oo tem
já descoberto. O motivo era efectivamente para todos estes resultados.
As províncias do norte, que muitos anos haviao tinham visto
um monarca, preparavam-se para receber e saudar a virtuosa filha
do valente Soldado, de cuja gloriosa história aqui se tinham escrito as
páginas mais brilhantes e simpáticas.
No espaço de vinte anos o Porto e o Norte do reino, assistira a
muitas revoluções, passara por muitos sacrifícios, defendera a todo
o transe o estandarte da liberdade, plantado por suas mãos nas memo-
ráveis areias do Mindelo; acontecimentos políticos, quase que sem
análogos na história das nações, observara-os o Minho, e nesse sentido
já de pouco se podia admirar, mas desafizera-se da vista da realeza;
era para toda esta boa gente quase um espectáculo novo.
Os mesmos soldados de D. Pedroo estavam habituados a ela.
Era o duque de Bragança, o coronel de caçadores 5, que militara a
SEROES DA PROVÍNCIA
seu lado, eo o rei ou o imperador, que antes de desembainhar a
espada e subir com os mais bravos às trincheiras do Porto, havia
deposto o ceptro e as duas coroas, e despido os arminhos e a púr-
pura real.
O geral do povo fazia dos emblemas da majestade uma ideia
fabulosa.
O manto de S. Luís, da igreja dos Franciscanos, era um acessório,
sem o qualo se podia conceber um rei, e de antemão-preparavam-se
para admirarem o esplendor e a preciosidade da coroa de ouro, que
devia cingir a fronte da soberana.
A multidão, como sempre e em toda a parte, atraída pelos espec-
táculos novos, aglomerava-se à borda das estradas por onde devia
passar a real comitiva. Pinhas de cabeças infantis rompiam por entre
a folhagem dos álamos do caminho; as cobertas de damasco e as colchas
de chita ramosa adornavam as janelas, onde se encaixilhavam curiosos
e pitorescos grupos de fisionomias dos mais diversos aspectos, rindo,
berrando, gesticulando, pasmando; as câmaras municipais estavam
a postos, tendo em punho os formidáveis e irresistíveis documentos
da sua eloquência; o presidente suava; o regedor decretava, e os cabos
de polícia passeavam a sua autoridade por entre as turbas que se afas-
tavam respeitosas.
De quando em quando, uma nuvem de poeira ao longe, um coro
desafinado de vivas infantis punha tudo isto em alvoroço, ferviam os
cotovelões, distribuíam-se com profusão as trilhadelas, assobiava-se,
gritava-se, berrava-se, imitavam-se as vozes de todos os animais pos-
síveis e impossíveis, esqueciam-se as conveniências; um espectador
pacífico sentia-se literalmente montado pelo vizinho, e vingava-se,
procedendo de igual sorte, com o que lhe ficava diante; a popu-
lação subia até aos telhados pendia, como cariátides, das telhas
e das cornijas; os camaristas sacudiam com os lenços o pó das suas
botas excepcionais e principiavam a tirar os chapéus, o presidente
começava a desenrolar, com a gravidade que o caso pedia, o monu-
mental discurso...
Tudo em vão!
Era a carruagem de um proprietário das imediações, o qual
seguia para o Porto, onde tinha um peitoril à sua espera e um lugar
no teatro para essa noite.
Estes rebates falsos sucediam-se a miúdo. Desde o princípio da
manhã a vereação estava esperando!
Afinal chegava o cortejo. Os foguetes estouravam com um estam-
pido digno do município; os vivas elevavam-se em um crescente amea-
çador ; uma nuvem de crianças precedia os batedores; tudo falava na sua
passagem, tudo arrastava consigo; o povo pendura va-se às portinholas
do carro em que vinha a família real, devorava com o olhar a rainha,
o rei e os príncipes, e ficava como que espantado de os ver rir e con-
versar como simples mortais.
SERÕES DA PROVlNCIA
As vezes, chegado o momento solene, o orador municipal engas-
gava-se à leitura da felicitação que andava estudando havia um mês.
O povo, a arraia-miúda, sempre desatenciosa, atropelando então todas
as noções de acatamento, envolvia os camaristas com irreverência
indesculpável e impedia assim que as suas municipais figuras se des-
tacassem de um modo conveniente.
O cortejo passava, e cada qual ficava fazendo comentários sobre
o trajo, o chapéu, o sorrir, os modos, os gestos ou as palavras de suas
majestades e altezas.
E isto se reproduzia, quase invariavelmente, em todos os pontos
da estrada até ao Porto, onde cenaso menos curiosas se passa-
ram então.
A agitação, que, segundo já dissemos, havia muitos dias alvoro-
çava a cidade, subira de ponto à medida que o telégrafo noticiava
a chegada dos reais viajantes ãs terras mais próximas deste heróico
baluarte das liberdades pátrias. Era assim que os poetas e os jor-
nalistas chamavam ao Porto nas odes e artigos que estavam elabo-
rando para a ocasião.
Na manhã da véspera tinham principiado a rodar, em direcção
aos Carvalhos, as carruagens e trens das principais personagens da
cidade a esperar suas majestades e altezas, que na noite desse dia ali
repousaram. Para lá estava ainda o governador civil, o general da
divisão, e vários titulares antigos e recentes, bem como uma turba
muito maior de aspirantes a titulares; viam-se passar a todo o momento
as deputações de vários corpos colectivos que corriam a felicitar os
augustos hóspedes. As casacas, as gravatas e luvas brancas, as fitas
dos hábitos e comendas, as fardas agaloadas, os chapéus armados
perpassavam, como brilhantes e rápidos meteoros, perante os olhos
curiosos dos peões que, depois de cortejarem os seus possuidores,
lhes ficavam redigindo uma biografia digna de Tácito pela severidade.
O dia estava sereno e límpido. Um noticiarista pôde escrever,
esfregando as mãos por ter de empregar um pensamento sempre
novo: Dir-se-ia que até o tempo, ostentando o seu brilho e galas,
quis manifestar alegrias, confundindo as suas homenagens com o
regozijo público.
A ansiedade geral tocava o seu auge. As onze horas da manhã
interrompiam-se todas as transacções comerciais. Fechavam-se as lojas,
como em dia santificado. Os pais de família conduziam já a fascinadora
prole para as sacadas do amigo, que tinha a infelicidade de morar em
uma das ruas do trajecto, e indirectamente arrastavam atrás de si, sem
o saber, uma coorte mais ou menos numerosa de fascinados.
Os corpos da guarnição marchavam ao som das músicas marciais,
estimulavam o entusiasmo da população. Precedia-os uma turba tumul-
tuosa de garotos, que se voltavam seduzidos pelo brilhantismo das
fardas de grande gala e pelas evoluções do tambor-mor. No Cais da
Ribeira, onde afluíam os curiosos de todos os lados para assistirem ao
SEROES DA PROVÍNCIA
desembarque e à cerimónia da entrega das chaves, a multidão era
compacta, a ponto de dificultar o trânsito das carruagens dos verea-
dores e as manobras dos batalhões do cortejo.
Era um oceano de cabeças, ruidoso, agitado, ameaçador! De onde
como de um pandemónio, partia a gargalhada, o grito, a aclamação,
o insulto, o apupo, a ameaça, os vivas e os morras que a curiosidade
revolvia, e fazia ondular em grandes e imponentes marés. O Doure
coalhado de navios, barcas, lanchas, escaleres e canoas embandei-
rados, e reflectindo nas suas águas, então serenas, a ponte pênsil, toda
adornada de flâmulas e galhardetes, oferecia um aspecto risonho e
festivo, que lheo é habitual.
Ao meio-dia as salvas de artilharia, o estourar das girândolas, e
o repique dos sinos, comunicando uma violenta comoção às turbas
impacientes, anunciavam que sua majestade chegara ao alto da
Bandeira.
Meia hora depois desembocando da estreita e tortuosa Rua Direita
na praia de Vila Nova, ao som dos vivas dos nossos vizinhos de além
Douro, correspondidos pelos dos Portuenses, o cortejo real encami-
nhava-se para o rio, que, por entre fileiras de embarcações de todo o
género, atravessou.
No momento do desembarque, a multidão teve um paroxismo
de curiosidade entusiástica, para resistir ao qual a guarnição militar
obrou prodígios, que os fastos da polícia portuense deveriam registar.
Esta crise durou todo o tempo empregado por o cortejo real em sair
dos escaleres e entrar no pavilhão, onde o presidente da Câmara pro-
nunciou a felicitação do estilo e ofereceu a suas majestades as chaves da
cidade, e só terminou quando de novo tudo ses em marcha, obser-
vando a pragmática que a etiqueta cortesã instituiu para casos tais.
Os sinos repicavam, os foguetes subiam aos ares, as janelas e
varandas vergavam sob o peso dos espectadores, as flores choviam
sobre o carro real, flutuavam as bandeiras, as flâmulas e os damascos
de diversas cores; o cheiro das espadanas e mais verdes, que jun-
cavam as ruas, completava as aparências de festa. A multidão conti-
tinuava-se compacta da Ribeira até à Lapa, onde devia ter lugar o
Te Deum, e da Lapa ao palácio dos Carrancas, da Torre da Marca,
ainda então propriedade de particulares.
Estava enfim D. Maria II dentro dos muros da cidade invicta.
SERÕES DA PROVÍNCIA
II
EM QUE TRAVAM CONHECIMENTO ALGUMAS PERSONAGENS
DESTA HISTÓRIA
N
ÓS, porém, deixaremos o Porto, justamente na ocasião em que
de todos os lados aflui gente para ele, atraída pelas ilumina-
ções, paradas, espectáculos líricos e dramáticos, bailes, ceias,
lunchs e almoços, com que, durante oito dias, se ocupou a população
desta invicta cidade, queo desmentiu seus brios de abastada e
amante da dinastia.
Os poetas contribuíram com o seu contingente de sonetos, odes,
hinos, cantatas e elogios para o esplendor dos festejos.
Nos diários da época mais circunstanciadas notícias do que quan-
tas eu lhes pudera aqui dar, encontrarão os que as desejarem.
O Porto conservou-se em folguedo permanente até aos princípios
de Maio. Na manhã do dia 5 partiu a corte em direcção às províncias
do norte, indo almoçar a Castedo, onde a Câmara de Bouças serviu à
família real, juntamente com o almoço, uma felicitação.
Precedendo o luzido cortejo, percorramos a extensão da estrada
que vai deste lugar a Vila Nova de Famalicão, onde teremos de nos
demorar.
Por toda a parte era movimento e vida!
Por baixo de um sem-número de arcos campestres e dos festões
de murta e de flores, que adornavam todas estas duas léguas de cami-
nho, moviam-se e agitavam-se consideráveis magotes de gente da
aldeia que, a todo o momento, os caminhos laterais vazavam na
estrada.
Os trajos pitorescos do Minho, as cores garridas dos lenços e
saias, a alvura das camisas de linho, o brilho dos cordões e das arreca-
das, as festas de viola e clarinete acompanhando vilancetes improvi-
sados de alguma cantadeira famosa, davam a toda esta multidão, que
se enfileirava de um e de outro lado da estrada, ou acampada em
grupos nas devesas e pinhais vizinhos, procedia a apetitosos repastos,
complemento de todos os regozijos populares no Minho, um ar de
satisfação indescritível.
De tempos a tempos viam-se passar caleças, cabriolés ou carro-
ções esse portuguesíssimo veículo, contra o qual o Sr. Ricardo Gui-
marães soltara já então o fatal grito de extermínio conduzindo famí-
lias que regressavam, repletas de festejos, à sua casa de província;
outras vezes eram correios de secretaria, carroças de bagagem, ofi-
ciais da corte encarregados de disposições para o alojamento do
SEROES DA PROVÍNCIA
séquito real, liteiras com eclesiásticos, militares a cavalo, destacamen-
tos de infantaria e em suma toda essa população que, em tais oca-
siões, se vê circular de terra em terra ou por obrigação e ofício ou
por curiosidade e prazer.
Foi então que se deu um facto notabilíssimo, que a posteridade
acoimará de fabuloso, comos hoje acoimamos, jáo digo as faça-
nhudas proezas do cavalo de Alexandre, mas até, com certa escola
histórica, as heróicas acções dos sete reis de Roma.
Um dia, o povo portuense viu partir, caminho do norte, uma
legião de cadeirinhas, que, a passo regrado, uniforme, imperturbável
e filosófico até, transpôs as barreiras da cidade invicta, para deman-
dar as da augusta Bracara.
Na fronte destes beneméritos da humanidade reluzia uma auréola
que revelava a importância da missão que iam cumprir assim! Nunca
o sublimes de estoicismo escutaram as chufas e apupadas dos garotos;
nuncao cônscios da sua importância social guardaram mais solene
silêncio, apenas, de quando em quando, interrompido por uma inter-
jeição galega, que o tropeço de um adepto novel desafiara. Com que
denodada coragem tomavam o caminho da peregrinação, transpor-
tando, com cadenciado movimento, o inseparável veículo!
E contudo o projecto que assim os reunia em bandos era para
fazer enfiar os mais ousados.
As façanhas de Hérculeso lhe eram superiores; a empresa
imposta por Carlos Magno a Hugon ou Huol, do poema de Wieland,
o era de mais difícil execução.
Estes destemidos heróis propunham-se a nada menos que a fazer
viajar no Gerês — e por 2$400 réis! toda a corte e a família real!
Que pena que circunstâncias, alheias ao ânimo dos novos e intré-
pidos argonautas, impedissem por fim a realização desse feito! A huma-
nidade enriqueceria a sua crónica de heroicidades e a águia das serras
abateria o orgulho, vendo a seu lado o cadeirinha, limpando o suor
que o nobilitava e pendurando o capote listrado nos mais altos picos
dos rochedos, como o guerreiro vitorioso pendurava na sala de armas
a cota, o elmo e o morrião dos combates.
Menos feliz que o Porto, Vila Nova de Famalicão sentia um pesa-
delo no meio dos seus regozijos. O diao estava seguro. Grossas
nuvens, assopradas do sul, empanavam, de espaço a espaço, a clari-
dade da manhã; aumentavam, corriam e cerravam-se, prestes a fundi-
rem-se em uma só massa, como para reprimir todas aquelas expan-
sões de entusiasmo festivo.
Junto a um arco de dimensões colossais, flanqueado de um a
outro lado por duas altas colunas, e que fora erigido logo à entrada
da vila, estacionava a câmara, dignitários e mais convidados para a
solenidade da recepção. Deste numeroso grupo a todo o instante se
erguia uma cabeça para fitar as nuvens, de cujo aspecto e movimento
se auferiam vários prognósticos meteorológicos.
Isto passa dizia um velho, cujo pescoço, armado de uma
inflexível gravata branca, mal lhe permitira o movimento necessário
para fitar o céu.
Hum !o sei respondeu-lhe um dos vereadores com ar
de abatimento, O vento está do sul.
Ainda quando tenhamos chuva, é lá mais tarde. Quando o
vento acalmar, pode ser opinava um terceiro.
O pior é ser hoje quarto crescente.
Pois se temos água para a noite, devem ser interessantes as
iluminações! observou um indivíduo, que, tendo sido encarregado
dessa parte dos festejos, via a sua glória futura ameaçada de se eva-
porar, ou, mais propriamente, de se fundir na inundação que receava.
Uma coisa assim! suspirava um, lembrando-se do chapéu
novo que estreara.
Vão-se demorando! respondia-lhe outro, a quem a incó-
moda constrição de umas botas de polimento tornava impaciente.
Faz-se-me tarde para o jantar retorquia-lhes um velho.
consultando o relógio e dando a entender em uma visagem expres-
siva que este adiamento era o máximo sacrifício que podia fazer à
realeza.
E com os ânimos assim dominados pela impaciência ou pelo
receio, uns bocejavam, outros assobiavam, outros passeavam, e todos
estendiam a vista pela estrada, a descobrir vestígios do queo arden-
temente esperavam.
De repente um som distante de morteiros e foguetes veio aumen-
tar-lhes a ansiedade.
Chegara enfim o momento?
Tudo ses a postos. Erguiam-se nos bicos des e estendiam
os pescoços.
De facto, passados alguns momentos mais, assomava no extremo
da estrada, onde convergiam todos aqueles raios visuais, um carro
de grandes dimensões e de formas aindao conhecidas ali, que,
puxado por mais de uma parelha e envolvido em um turbilhão de
poeira, se aproximava a toda a brida do lugar de onde o observavam
estes ansiosos espectadores.
Aí estão disse um dos camaristas, conjecturando queo
podia deixar de ser real umo estranho meio de locomoção.
E, a um sinal dado, o morrão aproximou-se dos foguetes apres-
tados, e uma salva de girândolas subiu aos ares, quando o referido
carro parava junto do arco triunfai.
Estava dado o alarme na povoação.
A câmara aproximou-se da portinhola.
Oh desapontamento! Em vez do que esperavam encontrar, ape-
nas depararam com meia dúzia de fisionomias que os olhavam sorrindo,
como se compreendessem e saboreassem o equívoco.
Caíram então em si.
SERÕES DA PROVÍNCIA
SERÕES DA PROVÍNCIA
Era uma das diligências da Companhia Viação Portuense, que
escolhera aquele dia solene para inauguração das suas viagens.
o inventamos. Os viajantes que receberam nesta jornada um
acolhimento de príncipes, eram pela maior parte desta cidade, e ainda
hojeo terão por certo esquecido a honraria que um engano lhes
proporcionou.
Quando o presidente, chegando ao carro, se preparava talvez
para recitar os primeiros períodos da sua alocução, deu de chapa
com um rosto rubicundo e jovial, que, surgindo a um dos postigos,
disse para os circunstantes:
Guarda dentro, guarda dentro, e à vontade. Safa!o se pode
viajar incógnito por esta terra.
Os espectadores fizeram uma careta expressiva, porque haviam
reconhecido a pessoa que assim lhes falava.
Então isso faz-se, José? disse-lhe em tom de amuo um dos
enganados.
É célebre! continuava este, e depois de descer do carro
e recebendo de um criado o saco de viagem. É célebre! Viemos
em triunfo! Nunca imaginei que me estavam reservadas estas glórias!
Com que preparavas-te para me recitar a tua felicitação,o é assim?
dizia para o orador municipal, que começava a achar graça ao suce-
dido. Escapamos de boa, meus senhores disse depois para os
seus companheiros de jornada escapamos de boa! A eloquência
do município! Que pesadelo! E os foguetes ? Com os diabos! Esgo-
taram a provisão? Depressa! depressa! Olá, João das Pipas, acende
outra vez o morrão, meu homem. Perdeste o teu tempo e a tua ciência.
Maso tem dúvida. Vocês, sem querer, saudaram um grande acon-
tecimento a inauguração da Companhia Viação Portuense, da qual
eu possuo vinte e três acções.o sabem o que saudaram com esses
foguetes? Saudaram o Minho, saudaram Braga, saudaram o progresso,
os melhoramentos desta nossa terra, o engrandecimento da província,
do comércio e da agricultura.o vos arrependais, meus amigos;o
choreis o dinheiro do município, que estourou agora nos ares.o
de bom agouro estes estouros.o palmas dadas a um grande come-
timento.o estivesse eu com fome, que vos dissera já aqui quanto
há a esperar desta caranguejola em que eu vim mais estes cavalheiros,
meus amigos, de quem me despeço hoje, porque já agora aproveito
a ocasião para ir a Barcelos na comitiva real. Pensais nisto, e dai
por bem empregada a pólvora que consumistes. Todavia ponde-vos
outra vez a postos, que suas majestadeso tardam, e preparai também
os guarda-chuvas, porque já sinto cair as primeiras pingas.
E, terminando este aranzel, que os circunstantes escutaram
com um sorriso nos lábios, o jovial accionista da Companhia Viação
Portuense dirigiu-se, a correr, para a estalagem vizinha.
O seu prognóstico era verdadeiro. A chuva principiava a cair;
e quando os coches reais entraram na vila era já tal a cópia de água,
SERÕES DA PROVÍNCIA
queo pararam para se ler a felicitação camarária, e seguiram ime-
diatamente para a casa do Ex.
m
° Sr. António Emílio Brandão, onde a
família real tinha de pernoitar.
Estava em maré de infelicidades a Câmara de Vila Nova de
Famalicão.
No entretanto o indivíduo que vimos sair da diligência, fazendo
alarde do desapontamento dos seus amigos de Vila Nova, subia apres-
sado os lanços da escada da hospedaria.
Era um velho baixo e magro, mas todo viveza e actividade, de
uma fisionomia aberta e expansiva, olhos penetrantes e lábios habi-
tualmente risonhos.
Trajava vestuário de jornada, e mostrava claramente em certas
particularidades do seu equipamento de viagem,o ser noviço
nestas empresas.
Trauteando um dos muitos hinos com que, durante os dias que
passara no Porto, tivera vagar de encher os ouvidos, avançava a dois
e dois os degraus, seguido do criado que lhe trazia as malas.
No primeiro patamar encontrou-se frente a frente com o dono
da hospedaria, que se descobriu ao avistá-lo.
Olá! Viva o patrão. Passasse muito bem. Quero um quarto
para esta noite.
O estalajadeiro fez uma visagem de embaraçado.
Então? Vamos, adiante. Mostre-me um quarto, que tenho
pressa.
Mas... Valha-me Deus, Sr. José Urbano... É que euo tenho
nenhum quarto que lhe.
José Urbano fez um gesto de espanto, e pôs-se a olhar fito para
o seu interlocutor.
Com os diabos! Sr. Manuel! Você esquece-se que está falando
com um dos mais assíduos fregueses da sua baiuca?
Não, senhor; mas é que euo podia adivinhar que V. S.* che-
gava hoje e pretendia ficar aqui. Aluguei todos os quartos que tinha.
Sr. Manuel! Olhe que eu sou José Urbano de Melo Ribeiro, e
nunca na minha vida dormi uma noite ao relento. Arranje-se como
puder; mas euo saio daqui.
Mas que quer V. S.' que eu faça! Eu se soubesse...
o tem desculpa nenhuma. Um homem conta sempre com
um amigo.
Mas nestas ocasiões...
Pois nestas ocasiões é que se agradecem os favores. Então!
Decida-se. Eu quero hoje ficar em Vila Nova. Parto amanhã para Bar-
celos.o desejo incomodar nenhum dos meus amigos que estão já
abarrotados de hóspedes. Veja se rnô quer deixar em uma situação
crítica. Tinha graça!o saio daqui ao poder que eu possa...
Valha-me Deus! disse o estalajadeiro, coçando a cabeça.
Deixemo-nos de lamentações. Se vocêo é homem de expe-
SEROES DA PROVÍNCIA
diente, eu vou por aí pedir a esses inquilinos que me cedam metade
do seu quarto. Alguns hão-de concordar. Com os diabos! Porqueo ?
Eu arrancho sofrivelmente a uma partida de stromboy ou voltarete ou
de damas e gamão, e aindao sou dos piores companheiros. Vamos.
Quando José Urbano acabou de pronunciar estas palavras,
abriu-se por detrás dele uma porta, junto da qual se travara esta alter-
cação, e um velho, de aparência marcial, vestido de um amplo capote ou
sobretudo de mescla agaloado de vermelho e com botões de metal,
e cabelo cortado à escovinha, se intrometeu na discussão, dizendo
para José Urbano:.
Aqui tem um que lhe aceita a companhia, se lha propuser e
estiver disposto a aturar um velho soldado, que por certo oo pou-
pará à narração de uma das suas campanhas.
José Urbano voltou-se. Achava-se na presença de um soberbo
tipo de velho oficial, que desde logo lhe agradou.
Era uma figura, cuja cor e carnação revelavam saúde e robustez;
bigode espesso e alvíssimo, umas certas rugas ao canto dos olhos,
características de bom humor; porte airoso, movimentos fáceis, cabeça
erecta; peito saliente.
Bom! disse José Urbano, intimamente satisfeito. Eu logo
vi queo estávamos em terra de bárbaros. Aceito, general, e agradeço.
Devagar, devagar, meu ilustre amigo.o posso com a
patente. General! Safa! Como vai depressa! Major, major, e graças
á febre promotora da Regeneração.
Major! disse José Urbano, instalando-se sem mais ceri-
mónia no quarto do seu inesperado companheiro. Como é isso ?
Apre! Que tem andado a passo, meu salvador. Major!
Que quer? Servi a Junta do Porto em 1846. Está explicado
o atraso.
Hum! Então é dos meus! Está na presença de um patuleia.
Fique desde já sabendo.
Folgo imenso.
E os dois apertaram novamente as mãos.
Tirou-me de apertos, major continuou José Urbano, revol-
vendo as malas. Entre parêntesis,o repare se eu, compensando
de alguma sorte a incúria dos governos, lhe chamar às vezes general.
Chame-me o que quiser.
Tirou-me de apertos, dizia eu. Imagine que esse desalmado
do estalajadeiro me queria deixar sem quarto. A mim, que todos os
meses lhe deixo aqui ficar alguns cruzados novos em troca de uns
maus bifes de cebolada que me dá a tragar. Ainda assim é do melhor
que se cozinha por. Olá, rapaz, traz-me cerveja inglesa exclamou
para um criado que atravessava o corredor. Bebe cerveja, major?
Para lhe falar verdade, meu caro amigo, nunca fui afeiçoado
a essa bebida de ingleses e flamengos. Lembra-me o tempo da emi-
gração.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Ah! emigrou também? Olá, rapaz, vinho do Porto.
É para mim que o pede? Por quem é? Eu jáo bebo antes
de comer. Foi tempo.
Está como eu. Rapaz, bifes de cebolada.
Com os diabos, senhor.., como lhe hei-de chamar?
José Urbano, um seu criado.
Meu caro Sr. José Urbano, veja que para jantar ainda
é cedo.
Chame-lhe lunch, chame-lhe o que quiser. O essencial é que
eu coma. Em todo o caso... Rapaz, queijo londrino. Dá licença que me
ponha à vontade, general?
Sem cerimónia. Está no seu quarto.
José Urbanoo esperou nova autorização; vestiu um robe de
chambre de chita,s um boné, calçou uns sapatos de tapete, que
tirou da mala, e principiou a fazer os preparativos para se barbear.
O major, acendendo um cigarro, observava-o com visíveis mostras
de satisfação.
Então, com que o general ou o major veio com algum dos
duques,o é verdade?
Rigorosamente falando, eu vim. Há muito que desejava
percorrer o Minho. Pedi licença em Lisboa, e aproveitei esta ocasião
para levar a efeito esta visita.
o conhece a província?
Ora! como as minhas mãos.
Visto isso,o tem roteiro marcado?
Senão o instituído por mim próprio. Quero abraçar alguns
camaradas velhos e tornar a ver certos lugares.
Segue para Barcelos amanhã,o é assim?
Não; vou primeiro a Braga.
Diabo!
—Que é?
Sintoo estar lá para o receber em minha casa.
Agradecido.
Talvez ainda nos encontremos. Demora-se ?
Veremos. Pode ser.
Então é provável. Apressarei os meus negócios.
É de Braga ?
Resido.
É negociante ?
Às vezes. Quando me faz conta. Quer dizer, quando vejo pro-
babilidades de bons resultados. No caso contrário vivo dos meus capi-
tais. Cultivo a minha horta, enxerto as minhas fruteiras, e uma vez ou
outra, por desfastio, trabalho em eleições. Assim vou vivendo.
E com estas conversas pouco e pouco se foi estabelecendo a
mais íntima familiaridade entre os dois; dentro de alguns minutos
mais estavam um defronte do outro, prestando a devida homenagem
SEROES DA PROVÍNCIA
ao talento culinário do vatel da estalagem, manifestado em um bife
de cebolada, que teve as honras de bis.
o os distraiu o estrondo dos morteiros, os hinos marciais e o
murmúrio da populaça, que a chegada dos reais viajantes ocasionara
nas ruas.
Acabada a refeição, José Urbano, que continuava ar de parte
toda a cerimónia, dirigia ao major uma pergunta que envolvia uma
intenção, evidente para o major.
o costuma dormir a sesta, coronel ?
Quase nunca, e hoje muito menos. Tenho de visitar o duque
de Saldanha.
Nesse casoo se constranja.,. Eu dormirei, porque,
para lhe falar francamente, ando muito falto de sono. Estes dias passados
no Porto arrasaram-me. Na quinta-feira estive em S. João; representou
a companhia dramática; recitaram os poetas. Na sexta fui ao baile da
assembleia. No sábado voltei ao teatro; cantou-se a Lucrécia Bórgia.
Na segunda fui ao baile da Feitoria... em uma palavra,o me tenho
em. Até logo,' general ou major, até logo. É verdade! Como se
chama ?
Clemente Samora.
Clemente! Tem graça. Esquisito nome de militar. Adeus,
adeus.
E os dois separaram-se; José Urbano para se entregar às delícias
de uma sesta que seo fez esperar; o major Samora para descer à
rua, onde vários grupos de oficiais, chegados ultimamente, estacio-
navam.
o havia muito que ali chegara o major, quando o chamou à
parte um alferes ainda moço e imberbe, de compleição delicada, ele-
gância irrepreensível e mãos aristocráticas, e ocupado a calçar uma
luva de pelica com o mesmo escrupuloso cuidado que empregaria na
plateia do teatro de S. Carlos.
A figura do recém-chegado, que, a julgar pelas aparências,
dir-se-ia mais própria para adornar os salões da capital ou os passeios
do Chiado, e para ostentar garbos nas paradas, do que a pernoitar
em bivouac, vencer marchas e contramarchas, e dirigir uma carga
de baioneta, contrastava com o ar marcial do major, que o seguia a
passos vagarosos, revelando o hábito de cavalgar e talvez um princí-
pio de reumatismo, que a vida de campanha lhe granjeara para a
velhice.
o é verdade que tenciona seguir para Braga amanhã,
major?
É, sim. Porque o pergunta? Posso ser-lhe útil?
Ofereço-lhe a minha companhia.
Como! Poiso segue o cortejo ?
Não; o duque da Terceira encarregou-me de uma mensagem
para o comandante do 8. Parto amanhã.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Estimo. Faremos uma bela jornada. E sua mãe?
Segue ainda para Barcelos; depois parte para a quinta do
Coural, cujos proprietários prometeu visitar. Esperam-na.
Vai negociar o seu casamento, Filipe; aposto. As filhas desse
capitalistao ricas e interessantes, dizem.
Que importa ? Minhae sabe que para eu principiar a odiá-las
bastava suspeitar que se tramava essa conspiração matrimonial. Mas
descanse. As raparigas julgo que até estão prometidas ao sei que
fidalgos do Minho.
Então amanhã conto consigo ?
Sem falta.
Eu moro na hospedaria. Acolá. E por sinal que tenho por
companheiro de quarto um originalão. É verdade, se puder, apareça-
nos esta noite. Jogaremos uma partida de voltarete.
Pode ser. Até a vista,
Até à vista.
Às nove horas da noite ia grande rumor no quarto do major
Samora.
Este, José Urbano e Filipe de Rialva que assim se chamava
o jovem alferes, com quem acabamos de tomar conhecimento joga-
vam uma partida de voltarete, a qual José Urbano acompanhava de
observações críticas e sonoras exclamações.
A exigências suas, flanqueava a mesa do jogo uma boa provisão
de bolacha, charutos e garrafas de Xerez e Porto, que concorriam em
grande parte para o carácter ruidoso da partida.
José Urbano estava infeliz ao jogo. Rialva recordava-lhe, sor-
rindo, o velho adágio que lhe prometia felicidade nos amores.
José Urbano torcia o nariz à alusão.
Não, meu caro amigo exclamava ele, bebendo um cálice
de Porto desse achaque estou eu livre. Curti o coração ao sol do
Rio de Janeiro e nas roças do sertão. Essas enxaquecas jáom
presa em mim.
Vamos, Sr. José Urbano continuava Rialva se quiser ser
ranço, talvez tenha que nos contar. Um episódio ameno no meio
desse viver árido que diz.
É certo disse o velho negociante, tomando subitamente um
ar de seriedade — é certo que nem tudo tem sido aridez na minha
vida. Mas os poucos episódios amenos, como diz, os meus únicos
amores... esses...o para mim demasiado sérios para os contar à
mesa do jogo e entre dois goles de Xerez. Agora... Bebamos em honra
da Carta Constitucional exclamou, ao ouvir romper por baixo das
janelas da hospedaria esse hino popular executado por uma filarmó-
rica da localidade.
Apoiado respondeu o major, erguendo o cálice.
Rialva fitou por algum tempo José Urbano.
O que seo conta a uma mesa de jogo disse passados
alguns momentos nesta contemplação poderá contar-se um dia,
dadas outras circunstâncias.
Decerto respondeu José Urbano.
Bem; nesse caso... Em honra da Carta!
E Rialva associou-se ao brinde.
Ill
CONFIDÊNCIAS RECÍPROCAS
N
A tarde do dia seguinte, a laboriosa vila de Famalicão,o alvo-
roçada e festeira na véspera, mostrava um ar,o dissimulado,
de abatimento e de tristeza. Com as primeiras alvoradas desva-
necera-se todo o fantástico efeito das iluminações da noite. O sonho
terminara, durava o desgosto do acordar.
As colunas luminosas, os arcos cintilantes, os esplêndidos obe-
liscos apresentavam-se agora em toda a sua prosaica realidade de
madeira pintada, lonas enodoadas, flores murchas, e verdura defu-
mada e sem viço. Os copos e as laranjas de azeite, que, sob o presti-
gio da luz, horas antes atraíam com força irresistível as vistas da mul-
tidão, jáo desafiavam senão o tédio.
Raiara a luz verdadeira, e os falsos astros, apagando-se, mos-
traram tudo o que eram. Quantas glórias, como eles, que no meio das
trevas ofuscam,o resistem aos primeiros clarões de um real alvorecer!
Os restos o destroços dessas máquinas de festa ali estavam
expostos às fantasias, aos caprichos e espírito aniquilador dos gaiatos,
que os apedrejavam agora; de todos os esplendores que desmaiam,
de todas as reputações que periclitam, as turbas costumam tirar destas
vinganças, pelo entusiasmo e delírio em que momentaneamente as
arrebataram.
O desalento parecia nem dar ânimo para remover essas últimas,
deterioradas e quase repelentes memórias dos regozijos findos. Com-
preendo aquele sentimento.
Euo sei de nada mais triste do que o terminar de todas
as festas.
Em criança arrasavam-se-me de água os olhos quando assistia
ao desfazer do presépio que, em honra do Menino Deus, se armava
em minha casa pelo Natal.
Cerrava-se-me o coração de melancolia, ao ver guardar outra
vez na arca — e por um ano! o Menino, Nossa Senhora, S. José, os
grupos dos pastores, a vaca, o jumento, os três reis, os anjos e todos
os mais acessórios do pitoresco santuário, diante do qual, nesses
SEROES DA PROVÍNCIA
SEROES DA PROVÍNCIA
quinze dias, se rezava a coroa em família e se cantavam as loas da oca-
sião ! Amargo dia de Reis, último desta abençoada quinzena, já teo
via assomar sem que se me enevoassem aquelas puras alegrias infan-
tis. Queo encontrásseis mais estorvos pelo caminho, venerandos
Magos! Que aquela milagrosa estrela, que vos trouxe a Belém, vos
o fizesse errar mais tempo antes de lá chegardes! Fatal 6 de Janeiro!
com o teu anoitecer, anoitecia-me o coração. Voltava a vida normal, vol-
tavam os bancos das aulas, a aritmética, a caligrafia, oh! a caligrafia
sobretudoo associada à férula do mestre-escola! e o que era pior
que o mais acabava aquela santa comunidade, em que durante
quinze dias vira a família; o lar doméstico jáo ofereceria o alegre
tumulto e desordem, em que velhos e crianças tomavam parte, esse
ruído e confusão queo fundo calava no coração de todos. A soleni-
dade que nos reunira sob o mesmo tecto, que nos fizera viver a mesma
vida, ia acabar. Nós, as crianças, chorávamos ãs claras na despedida;
mas suspeitávamos que as nossas lágrimas tinham companheiras enver-
gonhadas. Quantas vezes surpreendíamos segredos de comoção, que
nos redobrava o choro!
Suspeitava-o eu então, mas acredito-o agora que, apesar de na
idade em que a lei me autoriza ao me considerar criança, ainda
o sou superior a cenas daquelas.
Se ainda hoje experimento uma sensação desagradável ao entrar
em um teatro vazio, assistindo ao findar de uma romaria, ouvindo as
derradeiras notas de uma valsa na última noite do Carnaval! A transição
do movimento para o repouso é como uma imagem do passamento!
As vezes, nesses momentos solenes, há convulsões até como as
da agonia. Nem outra coisa é a vertigem da última valsa.
E tanto isto se dá comigo, que só o considerar no estado de desa-
nimação em que, depois da partida dos augustos viajantes, ficou a vila
do Minho, onde se passaram as cenas do capítulo anterior, me arras-
tou por divagações pouco alegres, que talvez fossem avivar ao leitor
memórias adormecidas, cujo delicioso pungir nem todos me per-
doarão.
Mas o facto era que, ou por abatimento moral ou por cansaço
físico, o povo de Famalicãoo andava na rua aquela tarde.
A porta da hospedaria, onde contraímos conhecimentos, que
teremos de cultivar, estacionavam apenas alguns raros ociosos que se
entretinham a contemplar, com olhos de entendedores, dois soberbos
cavalos da raça de Alter, que um soldado segurava pelas rédeas. Os
nobres animais, ansiosos por partir, mordiam com impaciência os
freios polidos, resfolgavam, sacudiam as clinas, escarvavam com as
ferraduras as pedras da calçada, e expeliam dos beiços inquietos
flocos de fumegante espuma.
Pelo selim e arreios que os ajaezavam conhecia-se pertencerem
a militares, e igual corolário se tirava da aparência bélica do pala-
freneiro, contra cuja astuciosa impassibilidade, e calculado laconismo,
SEROES DA PROVlNCIA
se tinham vindo quebrar as mais inquisitoriais interrogações dos curio-
sos do grupo.
O manhoso soldado, depois de ter feito ampla provisão nos cigar-
ros que, para o humanizar,um de mais expediente lhe oferecera, limi-
tara-se a responder por monossílabos, pouco de satisfazer, aos quesitos
sobre o preço, as manhas, a sustentação, o tratamento dos quadrúpe-
des, e em seguida sobre a jerárquica posição, merecimento e mais
partes que concorriam na pessoa dos seus proprietários.
Com ciência superior foi sustentado este jogo até que o tinir das
esporas de alguém que descia as escadass fim às interlocuções.
Os grupos dispersaram para dar praça aos viajantes; o soldado
preparou as rédeas e fez a continência que, na posição em que estava,
lhe era possível fazer.
Seguidos pelo estalajadeiro, que se desfazia em barretadas, asso-
maram ao patamar os dois oficiais.
o surpreenderei por certo o leitor, dizendo-lhe que eram os
nossos conhecidos, o major Clemente Samora e o alferes Filipe de
Rialva.
Depois de dirigirem ao estalajadeiro um gesto familiar e corte-
jarem os curiosos que se descobriam, os dois, tomando as rédeas da
o do soldado, montaram com agilidade e partiram a passo em direc-
ção ao norte. Os espectadores seguiram-nos por longo tempo com a
vista e ficaram fazendo comentários sobre o jogar das dianteiras dos
cavalos, seus merecimentos absolutos e relativos, e sobre as qualidades,
posição oficial e até a missão de que poderiam ir encarregados os
cavaleiros.
Estes caminharam por muito tempo silenciosos.
O major, deixando correr a vista por todos os pontos da paisagem
lateral à estrada, por as veigas, almargens, devesas, pinhais de um
ameno e delicioso panorama do Minho, dir-se-ia ressentir uma violenta
comoção interior, como se lhe fossem conhecidos aqueles sítios, e
lhe estivessem evocando memórias de outros tempos com toda a
inquieta turba de saudades, que, de ordinário, as acompanham.
Filipe de Rialva tomara também uma expressão de seriedade
melancólica, que lheo era habitual.
Só a preocupação própria é que podia fazer com que procurasse
devassar-lhe a causa.
Houve uma ocasião em que Clemente Samora chegou a suspirar.
Era isto neleo extraordinário,o pouco dado a estas melan-
colias era o velho militar, que Filipe de Rialva saiu enfim da sua
abstracção ao escutar este suspiro, e olhou admirado para o seu com-
panheiro de jornada.
Foi só então que reparou no ar de tristeza que as feições acen-
tuadas e expressivas lhe reflectiam naquele momento.
Que é isso, major ? Se meo enganei, ouvi-o agora suspirar
disse o alferes, dando um certo entono jovial à interpelação.
SEROES DA PROVÍNCIA
O major conservou-se algum tempo calado, depois respondeu,
afectando indiferença:
Que quer você, Rialva? O meu reumatismoo se esquece
de me dar de quando em quando notícias suas.
Ai, major! major! ao descrer muito da minha experiência
na matéria, aquele suspiroo era desafiado por uma dor articular.
E então que quer dizer com isso ? Vejo-o com ares de quem
me supõe apaixonado. Olhe bem para mim, Rialva. Acha-me com cara
de poeta erótico ou de galã de romance ? Na minha idade!
Um militar é sempre jovem, major. É aforismo de quartel.
O coraçãoo teve tempo de envelhecer no campo da batalha.
Mas contrai outros hábitos e afeições por, e perde essa
extrema inflamabilidade, que ameaça a de pessoas, como você, de
continuados incêndios. O meuo está sujeito àquelas enxaquecas
de que ontem nos falava o nosso amigo José Urbano. Se seo curtiu,
como o dele, nos calores dos sertões americanos, temperou-se no
fogo da metralha.
Mas aquele suspiro, major?
Que tem aquele suspiro ? Que significa isso ? Suspira-se sem
motivo também e quantas vezes?
Oh! mas é um terrível sintoma. Deve confessá-lo.
Olhe, Rialva disse o major depois de alguns minutos de
silêncio vou falar-lhe com toda a franqueza.o é com indiferença
e de ânimo tranquilo que tenho feito esta viagem do Minho. Sabe que
militei no Porto. Sabe que, sob o comando de D. Pedro, ganhei muitas
das minhas patentes e quase todas as minhas condecorações. A his-
tória das minhas cicatrizes está escrita por estes sítios. Os episódios
das campanhas gravam-se-nos na memória e deixam saudades sempre.
Sinto-as agora e vivas e profundas! Se as sinto! É verdade. Conheço
ainda tudo isto! Acodem-me à imaginação coisas que julguei esque-
cidas para sempre. Lances arriscados, situações difíceis, entusiasmos
de vitória, desesperos das derrotas, episódios cómicos no meio dos
horrores da guerra, banquetes, onde folgavam e riam, ao nosso lado,
muitos que momentos depois estavam inanimados na campa... mil
aventuras enfim, pecados velhos, que agorao recordando com
certo travor.
Pecados velhos também? disse o alferes, sorrindo.
Que duvida ? E oxalá que fossem todos leves!
Eo serão ?
Nem todos, Rialva, nem todos. E se tiver de ser franco con-
sigo, talvez que vá prender a um dos mais graves o suspiro de que há
pouco você me pediu a explicação.
Ah! Bem me parecia que vinha do coração.
Maso de um coração namorado e casquilho. Entendamo-nos.
Graças a Deus e à minha boa sorte, tenho sido preservado desse mau
achaque de velhice. Mas de um coração arrependido... pode ser... é.
o remorsos de um mal feito, desejos de o remediar, desejos irrea-
lizáveis agora, e que por isso me serão perpétuos tormentos.
Repare, major, que está dando ãs suas ideias uma direcção
demasiado sinistra. Nunca assim o conheci apreensivo e lúgubre.
Tenho por costumeo manifestar os meus sentimentos.
É pudor de coração que seo quadra com a empáfia militar. Mas, à
vista destes lugares,o cheios de recordações para mim, a comoção
foi mais forte do que eu, venceu-me, zombou da minha repressão, tras-
bordou. Já agora deixá-la.
Confie em mim, major; eu sei compreender esses sen-
timentos.
o sabe tal. Na sua idadeo se pensa nisto. Somos impru-
dentes ; mais tarde, demasiadamente tarde, é que sentimos o mal.
O alferes, longe de protestar contra o conceito formulado pelo
seu velho companheiro, calou-se e pareceu meditar.
Desde 1843 queo voltei a estes sítios continuou o major.
Deveres em parte, e em parte o natural descuido de ânimo dos
que vivem aquela vida de Lisboa, mo impediram. E, contudo, alguma
coisa me devia ter trazido aqui há mais tempo.
Vestígios de passadas afeições ?
Sim; mas vestígios tristes, vestígios de lágrimas talvez. Entre
muitas aventuras da mocidade, eu tive também o meu romance, Rialva.
Sossegue, queo gastarei estilo em lho narrar. Euo me entendo
com a vossa literatura de agora. Bem sabe que sou contemporâneo
dos sonetos, e por isso abstenho-me de fazer narrações a rapazes que
se alimentam de romanticismo puro. Em vez de arroubamentos, e
enleios que estão agora na moda, eu poderia falar-lhe nas clássicas
setas de Cupido e nas pouco ideais seduções das três filhas de Vénus.
Ora vamos, major. Quer-me parecer que, ainda que tarde,
também se sujeitou àquela vacina, de que fala Garrett, para se pre-
servar das bexigas, as quais na frase dele, matavam a fazer odes pin-
dáricas e sonetos os rapazes da sua época. Conte-me o seu romance.
É preciso que lho conte? Poiso o adivinhou?o o ia
escrever capítulo por capítulo, prescindindo da minha narração?
É o eterno romance de um rapaz estouvado que, no meio de suas afei-
ções efémeras, costumado a acreditar na inconstância dos corações,
o recua diante de nenhuma conquista; que se julga um profundo
conhecedor da humanidade, só por que lhe ignora o seu lado melhor.
A quem seduz a fama de um D. João ou Lovelace, e, como esses belos
modelos, que pretensiosamente procura imitar, fazendo de todas as
mulheres um leviano juízo, joga com as afeições de todas, sem se lem-
brar que um só coração que sacrifique nesse jogo é pagar muito cara
uma distracção de rapaz.
Bravo, major! Nunca me lembra de o ter ouvido faiar assim!
Pois aproveite a ocasião, que talvez seja a última. Euo gosto
de andar a fazer pelo mundo estas profissões públicas de sentimenta-
SERÕES DA PROVÍNCIA
SERÕES DA PROVÍNCIA
lismo. Mas a verdade é essa. Na época em que eu vivi por estes
sítios... Era eu então alferes como você, Rialva, e igualmente estouvado.
Agradecido pelo conceito, major.
Sabe que digo sempre o que sinto. Nessa época contava as
minhas aventuras pelos dias da semana, e esquecia-aso prontamente
como elas se sucediam. Já ao terminar a campanha e próximo a partir
para Lisboa, pela primeira vez me encontrei com um coração, que me
coube em sorte despedaçar. Soube-o tarde, mas soube-o para minha
condenação. Foi uma mulher que, mais que todas as que até então
conhecera, me produzira uma profunda impressão. Era uma rapariga
que vivia nas imediações de Barcelos só com uma criada, que fora sua
ama de leite, e nesse tempo exercia as funções de governanta da casa.
A fortalezao estava bem defendida; pode prever que meo foi
difícil a conquista, desde que consegui obter simpatias na praça. Entre-
guei-me de olhos fechados a todos os prazeres e a todas as conse-
quências daquele amor. Os primeiros pode concebê-los; estas, porém,
talvez lhe transtornassem as previsões que formasse.
Voltei para Lisboa desde que uma paz definitiva se consolidou;
e, confesso-lhe francamente, na vida da capital, onde aos vence-
dores esperavam outras vitórias fáceis, e delícias dignas de Cápua,
esqueci-me daquela mulher. Lembrei-me tarde. Quando escrevi para
Barcelos, pedindo cautelosas informações a respeito dela, responde-
ram-me que a infeliz tinha morrido logo depois da minha partida.
E o major ficou acreditando que ela morreu de amores!
Rialva,o se faça céptico disse Clemente Samora, tomando
um ar de seriedade.—Não há nada que fiqueo mal a um rapaz,
do que essa endurecida descrença, que está agora na moda. Com
sinceridade, vocêo acredita que possa haver um amor verdadeiro?
Acredito, mas julgo-o a avis rara, que só a poucos felizes se
mostra.
Ora adeus! Em todo o caso, se quiser que mais tarde o cora-
ção lheo dê destes momentos de amargura que me está dando hoje,
o se deixe aconselhar por essa descrença. Receie sempre do remorso.
Remorso! É dura a palavra.
É verdadeira. Quando em 1846 voltei ao Porto, tremia só em
lembrar-me que os incidentes da campanha, que ia empreender, me
poderiam levar àqueles sítios, e hoje vê queo souo senhor de
mim, que domine a comoção que eles me despertam.
Depois destas palavras, que o major efectivamente pronunciou
comovido, reinou por algum tempo o silêncio entre os dois.
Sabe o major que possui um notável poder de catequese ?
disse Rialva, passada esta pausa, procurando conservar às suas pala-
vras o tom jovial em que até ali as mantivera.
Porque diz isso?
Porque estou quase arrependido de uma pequena aventura,
que o ano passado tive nos arredores de Braga, quando, por ocasião
dos movimentos militares que se seguiram à Regeneração, me demo-
rei alguns meses naquela cidade.
Alguma imprudência sua.
Sossegue, major; euo sinto grandes apreensões a respeito
do caso, porque, como lhe disse,o creio que se morra de amores
cá por este mundo, e muito menos que seja eu o destinado para ins-
pirar uma dessas paixões excepcionais.
Mas enfim?
Vi uma rapariga em um convento de Braga...
E escalou-o, arrombou-o, incendiou-o?
Não, major. E verá, pela narração que lhe vou fazer, que nestas
coisas aindao deixei de ser noviço!
Oiçamos a narração.
Que interessantes olhos, meu amigo! Uns olhos que valiam
poemas; o rosto de uma cor de pérola fascinadora, e a voz com mis-
térios de melodia, que a arte aindao decifrou.o havia ser-lhe
indiferente, major, acredite. O major que fosse...
Bem, bem, adiante. Fale-me de si, Rialva, fale-me de si. De
mim sei eu de sobra o que devo pensar. Conheço-me há muito.
Perdi a cabeça por aquela mulher.o havia dia em que eu
o procurasse vê-la, e consegui fazer-me notado. Passando agora
pelos pormenores desta inocente afeição, basta que lhe diga que ela
me correspondia. Parece-me que o vi sorrir quando pronunciei a
palavra inocente! Mas juro-lhe que é o epíteto apropriado.
Longe de mim duvidá-lo. Continue.
Sob o pretexto de visitar a escrivã do convento, que era das
relações de minha família, fui admitido à grade, e ela,o sei sob que
pretexto, lá estava sempre também. Cada vez a admirava mais, porém
ardia de impaciência por lheo poder falar de viva voz. O acaso...
Mau disse o major com um meio sorriso. Agouro mal
da intervenção do acaso no romance. É sempre perigosa e inconve-
niente.
Oiça continuou Rialva, sorrindo também como seo fora
sem fundamento a observação do seu companheiro. — O acaso um
pouco e muito a boa vontade dela, fez com que esta rapariga viesse
passar alguns dias fora do convento e em casa de um comerciante de
Braga, de cuja filha ela era íntima amiga. Eu tinha relações com este
comerciante, e pude então, mais a vontade, conversar com ela.
Ora prossiga, prossiga.
Pouco mais tenho para lhe dizer. O meu amor foi tímido e res-
peitoso, como nem eu próprio suspeitava que fosse possível sê-lo.
Diante daquela mulher, diante daquela candura, desconhecia-me,
achava-me acanhado como qualquer rapaz de dezasseis anos. Creia,
major, queo sabia o que tinha feito da minha audácia habitual. Tinha
de partir para Lisboa. Minhae havia-me alcançado do ministro
uma transferência de corpo. Disse-o à pobre menina, que se banhou
SERÕES DA PROVÍNCIA
SEROES DA PROVÍNCIA
em lágrimas ao sabê-lo. O seu amor havia adquirido uma intensidade
que o denunciara. Em Braga falava-se muito nisso. Na noite da minha
partida consegui uma entrevista dentro do jardim da casa onde ela
ainda então se achava.
Aproxima-se a peripécia disse o major.—Adeus timidez...
Juro-lhe, major, que a respeitei, como se a protegesse um
ambiente de pureza e castidade. Davam onze horas na igreja de
S. Marcos, e pela primeira e única vez os nossos lábios se encontraram,
e logo depois eu saltava o muro do jardim, montava o cavalo e seguia
o caminho do Porto, de onde me transportei para Lisboa. E assim ter-
minou este inocente episódio da minha vida,
E ela?
Que lhe posso eu dizer dela? A impossibilidade de nos cor-
respondermos era manifesta. Dois dias depois devia ela voltar ao con-
vento, ondeo podia receber cartas minhas. Ainda lhe escrevi de
Porto, esperando receber a resposta em Lisboa. Esperei debalde, e...
E esqueceu-a,o é verdade? Nem mais pensou nessa rapa-
riga, que talvez a estas horas esteja chorando por si, ou por
sua causa.
Acredita, major ?o acha mais natural que esteja pensando
em outro?
Pode ser. Em todo o caso, basta que por uma efémera dis-
tracção arriscasse dessa maneira o destino do coração, que é o des-
tino inteiro de uma mulher, para queo possa ouo deva pelo menos,
encarar levianamente o sucedido e deixar de sentir uns indícios de
remorso.
Acreditasse eu que produzira um padecimento real...
Que faria ?
Nunca o perdoaria a mim próprio.
Cingia os cilícios e disciplinava as carnes,o é assim ?
Condenar-me-ia a uma completa abstenção de galanteios,
pelo menos.
E dessa maneira secaria as lágrimas que fizera derramar!
Qual era então o meu dever, major ? diga.
Quando estiver em Braga, se se demorar por, averigúe do
sucedido e depois falaremos. Escusamos de estar agora a traçar pla-
nos de imaginárias campanhas.
A estas palavras do major seguiu-se um silêncio prolongado,
durante o qual as ideias tomaram outra direcção a ponto de que ao
restabelecer-se, o diálogo versou sobre assuntos indiferentes que
o precisamos de referir, e assim se manteve até à chegada dos dois
cavaleiros a Braga, ainda com algumas horas de dia.
Desempenhando nesta cidade a missão oficial de que viera encar-
regado, Filipe de Rialva propunha-se no dia seguinte principiar as
averiguações a que o major e a sua própria curiosidade o convidavam,
quando um acontecimento imprevisto o veio impedir de as realizar.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Pela madrugada do dia seguinte chegara a Braga uma notícia
telegráfica, que lançara o espanto e consternação nos ânimos de todos
os seus habitantes.
Constava que ãs onze horas da noite antecedente o palácio onde
repousava em Barcelos a família real havia sido devorado por um
incêndio.
Os noveleiros políticos, sempre prontos a darem aos mais insig-
nificantes acontecimentos um colorido lúgubre, filiavam aquele facto
casual em uma trama premeditada e misteriosa. As notícias que se
davam em voz alta, comentavam-se depois ao ouvido. As insinuações
transluziam das frases estudadamente formuladas. Os ociosos agru-
pavam-se defronte das repartições públicas e das casas das autori-
dades, como se, das fachadas desses edifícios, esperassem elucida-
ções. Exagerava-se o sucedido. Houve tal que condenou ãs chamas
a vila de Barcelos inteira! Em outros grupos enumeravam-se as víti-
mas e especificavam-se com escrupulosa exactidão a natureza e carác-
ter dos ferimentos! Uns revelavam a descoberta de uma máquina infer-
nal ; outros noticiavam a prisão dos criminosos.
Os ódios partidários, então mais acesos que hoje, todos estes
boatos acolhiam, e de boa ou má fé concorriam para os divulgar,
ampliando-os.
A nova, ao chegar aos ouvidos dos nossos dois conhecidos, Cle-
mente Samora e Filipe, havia adquirido já as mais formidáveis dimen-
sões, e revestira-se das cores menos para tranquilizar.
Desesperando de saber a verdade no meio de tantas variantes,
e até encontrando incertezas nas informações oficiais, os dois, que
tinham em Barcelos por quem se inquietar e que nada os prendia
actualmente a Braga, resolveram informar-se por seus próprios olhos,
e com este intuito partiram essa mesma manhã em direcção à vila.
Algum tempo mais que se tivessem demorado, teriam serenado
as suas inquietações.
O pânico desvanecera-se afinal. Sabia-se enfim que o incêndio
o atingira nunca as proporções medonhas que se dissera. A inve-
rosimilhança dos romances inventados, com grande desespero dos
seus autores, ia já fazendo sorrir.
IV
FOGOS DE MOCIDADE
"QUATRO dias depois dos sucessos do capítulo anterior, percorria
a estrada de Barcelos, em direcção a Braga, uma jovial caval-
gada de oficiais do exército e de alguns estudantes do Porto,
que a promessa de um segundo perdão de acto trazia naquele tempo
muito jubilosos e como que em férias.
Filipe de Rialva e o major Samora haviam-se-lhe incorporado.
Do rancho era talvez este último o único melancólico. A sua estada em
Barcelos avivara-lhe as saudades que o perseguiam. Nenhumas infor-
mações pudera obter, nem sequer do lugar onde repousava a morta.
Nem um só vestígio dos seus passados amores tinha encontrado o pesa-
roso velho. Uma estrada em construção acabara de derrubar a pequena
casa, que a imaginação lhe estava agora ainda reproduzindo, e com
ela dir-se-ia haver destruído todas as memórias desse drama obscuro,
que terminara em túmulo.
Rialva, ao inverso do seu companheiro, no descuido dos vinte
e dois anos, entregara-se inteiro ao prazer da jornada.
Pouco avultavam já na memória do estouvado alferes as recor-
dações da sua aventura de Braga. Tivera tempo e ocasião de se dis-
trair. De Barcelos seguira a corte a Viana, e nessa marítima cidade
do Minho foram demasiados os prazeres em que tomara parte, para
que lhes resistisse qualquer ideia melancólica. Vinha-lhe o coração
desafogado ao voltar a Braga, onde se antecipava um dia à comitiva
real, que só no dia 12 devia sair de Barcelos.
O génio expansivo e bom humor de Filipe valeram-lhe uma certa
preponderância sobre o rancho, que parecia havê-lo tacitamente ele-
gido para seu chefe. Isto lisonjeava-o e obrigava-o a fazer todos os
esforços para justificar a escolha.
A cada passo, estridentes gargalhadas e hurras espantosos par-
tiam em coro do bando turbulentoso. Por vezes a algazarra subiu
a ponto que o major Samora, em poucas disposições para tomar parte
nela, sopeou o passo ao seu cavalo para se distanciar do tropel.
Meus senhores! disse um dos estudantes, a que no ano
anterior um perdão de acto, poderoso Deus ex-machina, arrebatara
milagrosamente dos nevoeiros da matemática, onde se vira perdido,
e que esperava que um outro o ajudasse a livrá-lo da botânica, mau
grado do Sr. Costa Paiva queo conseguira ensinar-lhe a classificar
nem a Digitalis purpúrea. Meus senhores, nem todo o tempo gas-
temos a rir. A divina arte do canto está em decadência entre nós. De
VOL. n2
SERÕES DA PROVÍNCIA
SERÕES DA PROVÍNCIA
todas as nações do mundo a portuguesa é a que menos canta! Vergonha!
Eu, digno e degenerado representante daquela antiga e característica
classe de estudantes que corria as estradas e estacionava nas praças de
capa traçada, espada ao lado e guitarra em punho, coro ao repeti-lo!
O estudante de Salamanca, cantando seguidillas debaixo da ventana da
senhorita de tez morena e olhos travessos, um pobre diabo sem dinheiro,
mas cantando, cantando a escalar janelas, no meio das rixas, cantando na
cara dos guardas civis e dançando, ao som da pandereta, o fandango
e o bolero eis o tipo ideal, que se perde, que degenera desde que
a filosofia o estragou. O estudante hoje é folhetinista, é político, é eru-
dito, é sisudo e, mais que tudo, é sensaborão! Dá-lhe mais canseira a
salvação da república, do que o penteado da sua amante! Que tre-
menda responsabilidade nos cabe, meus amigos! Nós, indignos depo-
sitários de um grande legado, que deixamos esbanjar! Reajamos quanto
nos seja possível, e reajamos cantando. A cantar sem feito revoluções.
Dêem-me o poder das canções, e eu revolverei o mundo. Cantemos!
É justo que abras tu o exemplo respondeu-lhe um dos com-
panheiros.
O convite foi repetido por toda a companhia.
O oradoro se fez muito rogado, e em uma toada popular, que
então andava na boca de todos, cantou as seguintes coplas, que nos
parece serem da sua lavra:
Ouvia gabar os beijos,
Dizer deles tanto bem,
Que me nasceram desejos
De provar alguns também.
Que esta frutao é rara,
Mas nem toda tem valor:
A melhor é muito cara,
E a barata é sem-sabor.
Colhi-os dos mais mimosos;
Provei três, mas, por meu mal,
Ao princípio saborosos,
Amargaram-me afinal.
Um colhi eu de uma bela,
Que era Rosa, sem ser flor.
Se tinha espinhos como ela,
Dela também tinha a cor.
Vi-a a dormir, e furtei-lha
Um beijo que a acordou.
Eu gostei, porém causei-lhe
Tal susto, que desmaiou.
Logo que a vi sem sentidos,
Fugi, sem outro lhe dar;
Que beijos, sem ser pedidos,
oo coisas pra brincar.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Outra vez, duma morena,
Olhos azuis, cor de céu,
Corpo esbelto,o pequena.
Um beijo me apeteceu.
Pedi-lho — e então por bons modos,
Pedi-lho do coração.
Zombou dos meus rogos todos
E respondeu-me: que não,
Zombei como ela zombava,
E um beijo, à força, lhe dei;
Mas... bem dado aindao 'stava
E c'um bofetão o paguei.
Custou-me caro o desejo,
Que mui caro ela o vendeu.
Pagar por tal preço um beijo !
Assimo os quero eu.
Este, mais do que o primeiro,
Me deixou traca impressão;
Quis provar inda um terceiro
Parao jurar em vão.
Maso quis fruta roubada
Que mal com ela me dei.
Uma dama delicada
Ofereceu-ma... Eu aceitei.
Ai, que boa fruta que era
Estava mesmo a cobiçar.
Passar a vida quisera
Tal fruta a saborear.
Mas, no meio da colheita...
Da fruta, o dono apar'ceu.
Zelosos olhos me deita:
Se zelava o que era seu !
Vendo o caso mal seguro,
Eu logo ali lhe jurei
Restituir e até com juro
A fruta que lhe tirei,
E, casoo discordasse,
o me parecia mal
Que a ele os juros pagasse
E à senhora... o capital.
Esta sensata proposta
Em fúrias o arrebatou,
E, por única resposta,
A lutar se preparou!
Oiço inda gabar os beijos,
Dizer deles muito bem:
Mas findaram-me os desejos,
Já sei o sabor que tem.
SEROES DA PROVÍNCIA
Uma estrepitosa algazarra rompeu do grupo, quando o acadé-
mico terminou a sua cantiga.
Visto isso disse um dos cavaleiros puseste-te em dieta dessa
fruta ? Tenho piedade da tua higiene meticulosa! Possuis um estômago
demasiado susceptível. Eu por mim, meus senhores, confesso-lhes
que, verde ou madura,o sei de outra fruta que me agrade tanto.
Alto! respondeu o que cantara. Nada de responsabi-
lidades absurdas. Euo subscrevo todas as legítimas consequências
da canção. E se julgam necessário neutralizar o efeito, eu estou pronto
a cantar-lhes uma outra. Possuo-as para todos os gostos.
Por esta vez dispensamos-te da retractação. Acreditamos-te.
Nada de lógica em assuntos destes. Que os cépticos cantem de crentes
e os crentes encham as estrofes do cepticismo. Ninguém lhes deve
pedir contas. Outro cantor!
Eu por mim, estou pronto a cantar disse um alferes de
caçadores maso a mulher nem o amor; inspira-me mais um
charuto, um cachimbo e até um cigarro, sendo o tabaco forte e a
mortalha boa.
Pois canta o cigarro. Admite-se o culto. Vai entoando a antí-
fona, enquantos acendemos os fachos do rito sagrado respon-
deu Filipe, distribuindo cigarros por todos os da cavalgada.
E dentro em pouco o bardo novamente indigitado, principiava
cantando:
No centro de círculos
E nuvens de fumo,
Um deus me presumo.
Um deus sobre o altar!
Nem doutros turíbulos
Me apraz tanto o incenso,
Como o deste imenso
Cachimbo exemplar I
Em divãs magníficos
De seda e veludo
Repousa sisudo
O ardente sultão,
Fumando, inebria-se
E esquece odaliscas,
E os beijos, faíscas
De amor, e o Alcorão.
Longe, oh! longa o ópio,
Que os sonhos deleita
Da mísera seita
Dos Teriachis.
Horror ao narcótico,
Que vem das papoulas,
E ao que arde em caçoulas
No harém dos Alis I
SEROES DA PROVÍNCIA
Que a África tórrida
De areias candentes
Consuma as sementes
Do arábio café.
Bebido nas chávenas
De índia e porcelana
A negra tisana
Veneno me é,
E a folha asiática,
Delícias da China,
Por nossa má sina
Trazida pra?
Sorvida em família,
Em morno hidro-infuso !
Anátema ao uso
Das folhas de chá !
Nem tu, ó alcoólico
Licor dos lagares,
Terás meus cantares,
Meus hinos terás.
Embora das ânforas
Vazado nas taças,
Aos outros tu faças
A boca loquaz.
Meu canto, é da América,
País do tabaco,
Melhor do que Baco,
Que o ópio melhor.
Que a Europa, Ásia e Africa
E a Terra hoje toda
Já fuma por moda
O heróico vapor.
Até na Lapónia,
Da gente pequena,
Se fuma, e no Sena,
No Tibre e no,
No Volga e Danúbio,
No Tejo e no Douro..
Que grande tesouro
Se deve a Nicot !
Nem venha da cantora
Contar maravilhas
O das cigarrilhas
Famoso inventor.
Raspail ó cismático,
E eu sou ortodoxo;
O seu paradoxo
o me há-de ele impor.
SERÕES DA PROVÍNCIA
E os áridos lábios
Mais fumo inda aspirem,
Que os néscios suspirem
Por beijos febris.
o quero outros ósculos,
o quero outra amante,
Qual mais doidejante
Que os fumos subtis ?
Tornadas Vesúvios,
As bocas fumegam,
De nuvens que cegam,
Vomitam legiões.
Fumar ! Oh, delícias I
Prazer de nababo!
E leve o Diabo
Do mundo as paixões!
É indescritível o entusiasmo que se manifestou em seguida às
últimas palavras da canção ou hino do tabaco. Foi tal a gritaria que os
ecos das montanhas vizinhas despertaram estremunhados, e, como
dizia Fernão Mendes Pinto, as carnes tremiam de medo.
Todas as bocas pediram bis, e de novo se guardou um silêncio
solene para escutar as estâncias deo popular produção, algumas
das quais muitos já repetiam em coro.
E tu, Filipe ? disse o cantor favorecido da aura de popula-
ridadeo cantas também ?
Depois do teu triunfo, julgo prudente prescindir dos meus
direitos. Desisto da palavra.
o admito.o é facultativo, é obrigatório o cantar.
Isso é crueldade. Queres imolar-me nas aras da tua musa
rodeadas de fumo de tabaco?
Isso é modéstia mal cabida. Ou temes ferir a delicadeza da
tua musa sentimental com as baforadas do meu cachimbo'
Apelo para a decisão do conclave disse o estudante que
cantara primeiro.
A votos! A votos ! bradaram algumas vozes.
No momento em que isto se passava havia a cavalgada chegado
a um ponto da estrada erma de habitações e perfeitamente deserta
de viajantes. Era um extenso lanço que seguia em linha recta por meio
de lezírias sem cultura, e tapadas de tojo e pinheirais ainda novos.
A vista alcançava de extremo a extremo deste lanço tanto mais facil-
mente, porque a atmosfera densa de vapores apresentava, sob uma
óptica favorável, os planos mais distantes.
Isto permitiu que os cavaleiros avistassem ao longe sentada, a fiar,
sobre as pedras de um dos muros que flanqueavam a estrada, uma
mulher, que na aparência mostrava já ser de avançada idade, a qual,
ao ver aproximarem-se os viajantes, se levantou açodada e colocou-se
no meio da estrada como se lhes desejara falar.
Aí tens quem te vai inspirar, Filipe. Uma princesa desconhe-
cida que desce a escutar as namoradas endeixas do trovador excla-
mou um dos que primeiro a avistara.
Vem à fala. Respeito, senhores; quem sabe se estaremos na
presença da rainha das fadas? Esta nossa peregrinação, digna de um
segundo Ariesto para a cantar, precisava de uns jardins de Armida,
eis aqui quem no-los vai abrir.
Restos do terremoto, eu vos saúdo disse um outro, tirando
o chapéu e vergando a cabeça.
Coitada! Alguma pobre mendiga disse Filipe, procurando
já nas algibeiras com que satisfizesse a que ele julgava indigente pela
atitude que a vira tomar aguardando-os...
Em todo o caso, vejamos o que ela nos quer. Portemo-nos
sérios para lhe inspirarmos confiança. Está-me a parecer que se pode
tirar partido disto.
E, seguindo este parecer, todos guardaram silêncio e marcharam
na maior compostura.
Estavam finalmente na presença da velha. Era de facto de aspecto
centenar; engelhada, curvada e trémula, mas ainda assim com certo
ar de resolução.
Logo que os viu chegar, dirigiu-lhes a palavra:
Ora, Nosso Senhor venha na sua companhia!
Amen! santinha, e que também esteja consigo.
Ele está em toda a parte onde o procurem. Boa é a sua assis-
tência, e a da Virgem Nossa Senhora, e a do milagroso Padre Santo
António, que nos livre de perigos e de trabalhos, de testemunhos falsos
e de ferros de el-rei e de maus vizinhos de ao pé da porta. Ora para
bem os fade a sua sorte. Ámen.
Então veio fiar para o descampado? É melhor,o os ares
mais livres disse Filipe, para desviar a atenção da velha do riso
mal disfarçado dos seus companheiros.
Nada,o senhor, eu lhe digo. O menino...
Desta vez os risos rebentaram.
. Olhem! Estão-se a rir por eu lhe chamar menino. E eles que
oo todos para mim, que para um cento só me faltam quatro anos!
Vejam os grandes homens.
o faça caso,o faça caso. Deixe-os. Diga o que ia
a dizer.
Ah! perguntava eu se os... vá, senhores, se os senhores
eram... criados de sua majestade? Sim, porque ser criados dos reis
o é baixeza nenhuma. Um morgado da minha terra, fidalgo dos
quatro costados e homem de teres e haveres, pois senhores, deu um
bom par de centos de mil-réis para ser moço do paço, e pelos modos
as suas obrigaçõeso as mesmas da gente, mas aquele ainda assim
quer que lhe paguem para as fazer, por isso é que eu pergunto.
o se enganou, minha tia disse Rialva, fazendo um sinal
SERÕES DA PROVÍNCIA
SEROES DA PROVÍNCIA
aos companheiros eu sou estribeiro-mor da casa real, aquele mon-
teiro-mor, este copeiro-mor, camareiro-mor o outro, esmoler-mor...
Vejam que graça! Pelo que estou ouvindo todos os empregos
moreso para os fidalgos, menos o de tambor-mor, que nesse tenho
eu um neto, que é um rapagão como uma casa.
De novo a seriedade dos ouvintes esteve para os abandonar.
Visto queo o que eu suspeitava, sabem dizer-me se a rainha
se demorará ainda muito?
Então queria vê-la ?
Vê-la?o era só vê-la, é que lhe queria também falar.
Falar-lhe?! Aqui?
Aqui mesmo, sim senhor, e porque não?
Então tem a pedir-lhe alguma coisa?
É verdade que tenho. Tenho a pedir-lhe justiça.
Justiça! disseram admiradas algumas vozes do grupo.
E contra quem?
Isso basta que ela o saiba.
Mas na estrada, boa mulher, a falar verdade,o é das melho-
res ocasiões disse o major Samora, que tendo-se agora reunido ao
rancho, de que se separara, acabava de ouvir as últimas palavras
do diálogo.
A velha voltou-lhe uns olhos desconfiados, e respondeu com
certa aspereza:
Para fazer justiça é sempre ocasião.
Bravo! disse o estudante da canção.
A velha, estimulada pelo sinal de aprovação, prosseguiu:
o é ocasião! tem graça. Nem que a genteo tenha mais
que fazer do que largar barcos e redes para ir ao palácio procurar
sua majestade. E então para quê? Para vir o senhor porteiro-mor, o
senhor escudeiro-mor, o senhor lacaio-mor, e nos mandarr fora
sem que a rainha o saiba. Temos outra como as justiças dos tribunais.
Andar uma criatura em uma barafunda de escrivães e procuradores
e letrados e testemunhas e jurados, e a gastar dinheiro, e tanto
mais ganha quem mais gaste, e tanto mais gasta quem mais tem.
Nada,o serve para mim. Aqui, no meio da estrada. Se meo
deixarem chegar à carruagem, ponho-me a gritar: Aqui del-rei! aqui
del-rei! e veremos então o que vai. Forte coisa! Olha agora a grande
dúvida!
É assim, é assim, minha tia diziam do lado alguns oficiais.
Vamos cá a saber, tardará muito a rainha ?
Rialva, trocando um olhar com os circunstantes, apressou-se a
responder, fazendo por dissimular um certo ar de malícia, que olhos
mais exercitados que os da velha poderiam reconhecer:
Duas horas o mais tardar. Conhece-a?
Nunca a vi, mas isso logo se tira, pouco mais ou menos. Sempre
há-de vir vestida de modo que...
SEROES DA PROVÍNCIA
Não,o disse Rialva. A rainha traja como qualquer
outra senhora; de mais a mais como vem incógnita, nem acompanha-
mento traz.o vê que nos mandou adiante?
Sim, sim. Mas então como há-de ser?
Olhe, daqui por duas ou três horas, pouco mais ou menos,
vendo chegar duas carruagens com criados de casaco azul, botões
de prata e colete vermelho, e dentro da primeira uma senhora de
meia-idade vestida de verde com xale e um chapéu branco...
É ela?
É ela. Acompanham-na talvez algumas mais novas,o damas
do Paço. Na segunda carruagemm os criados.
E o rei e os príncipes ?
Essesm mais tarde, a cavalo, e com os generais.o lhe
disse já que sua majestade quis vir incógnita?
Bem, bem.
E olhe. É provável que por isso mesmo ela se ponha a rir
se vossemecê lhe chamar rainha e o negue; mas teime e diga-lhe que
vai pedir justiça, que ela há-de escutá-la.
Isso fica ao meu cuidado. Então diz que daqui por duas horas?
Duas ou três.
Isto vai nas nove disse a velha, falando consigo e fitando
as nuvens com mais três, nove, dez, onze, doze. Meio-dia. Chega
o chega
:
uma hora; jantao jantao duas, às seis é noite.o tem
dúvida; uma vezoo vezes. E isto como assim há-de fazer-se. Ora
então, muito obrigada, eo com Nossa Senhora.
Adeus, minha tia disseram todos com a possível gravidade.
Deus permita que se saia bem da empresa.
Amen! ámen!
E o alegre bando, despedindo-se da velha, que voltou a tomar
a sua primeira posição, partiu a galope em direcção a Braga.
Quando a considerável distância do sítio, onde esta cena se pas-
sara, afrouxaram o passo às cavalgaduras para pedirem a Filipe expli-
cações sobre o que ultimamente dissera à velha.
Poiso compreenderam ? É uma surpresa que preparei a
minha mãe. Minhae devia partir de Barcelos duas ou três horas
depois de mim com as meninas do Coural, minhas primaso sei em
que grau, em casa de quem tenciona ficar esta noite para depois de
amanhã assistir em Braga à entrada da rainha. Portanto, dentro de duas
horas estará ela ouvindo uma reclamação em forma dirigida por esta
pobre velha, o queo pouco a há-de divertir e às priminhas.
Mas que necessidade tinha você de enganar esta mulher ? disse
o major com um certo ar de amigável censura.
Deixe, major disse um dos oficiais o episódio deve
ser interessante, e aquelas senhoras devem agradecer-no-lo.
Quem sabe o que esta pobre criatura teria a pedir à rainha ?
Se for esmola,o ficará sem ela, pedindo-a a minha mãe.
SEROES DA PROVÍNCIA
Sim; mas se for justiça ?
E julga que irá mal encaminhada, se minhae a guiar para
obtê-la?
Assim a julgue merecedora dela.
Pois então, deixe correr, major. Pena tenho deo poder
presenciar a cena,
V
A HEROÍNA DESTE ROMANCE NA CASA DE CAMPO DE JOSÉ URBANO
A
meia légua de Braga, Filipe de Rialva, o major Samora e seus
jovens companheiros tiveram a surpresa de um feliz encontro.
Ao dobrarem um ângulo de estrada, que em uns sítios
aqui e ali era povoada de pequenas casas e vendas, como denunciando
a vizinhança de uma grande povoação, acharam-se frente a frente com
uma personagem muito nossa conhecida, José Urbano.
À ruidosa exclamação com que José Urbano saudou a cavalgada,
rompeu desta um coro unânime de brados, que em uns desafiava o
conhecimento que tinham do jovial negociante, e em outros o estranho
costume de jornada de que ele vinha revestido.
José Urbano montava uma égua corpulenta, maso de raça
apurada. Um chapéu de palha de amplíssimas abas, preso por uma
fita por baixo da barba, um barrete preto subjacente que lhe defendia
as orelhas de um leste em perspectiva, que a sua ciência meteoroló-
gica prognosticava iminente; óculos verdes, baluarte contra a invasão
da poeira; guarda-sol minhoto, com honras de barraca, mas o único
que tem razão de ser; um capote de camelão, verdadeiro epigrama
ao sol da Primavera; galochas capazes de arrostar com o dilúvio ao
lado da arca; alforges repletos, uma cabaça a tiracolo, diante de si
uma trouxa e na garupa uma pequena mala; tal o conjunto de acessó-
rios que concorriam para o efeito prodigiosamente cómico do recém-
-chegado.
Aleluia! exclamou José Urbano, elevando para a testa os
enormes óculos verdes, que o incomodavam quase tanto como a poeira.
Aleluia! Encontro enfim Aníbal. Juraria que me andavam a fugir,
meus companheiros de Vila Nova. Receiam-se da desforra que me
devem ao voltarete. Inútil trabalho. Ela é inevitável como os fados. Per-
segui-los-ei até aos confins do mundo. Mas de facto! Apresso os meus
negócios em Barcelos para os encontrar em Braga. Chego. Qual!
Haviam-se evaporado. Acordaram uma manhã com a febre de passear,
e partiram para Barcelos! que eu acabava de deixar justamente em
companhia do correio que trouxe a Braga a notícia da terminação do
SERÕES DA PROVÍNCIA
incêndio. Com os diabos! disse eu comigo. Os meus amigos teriam
praça assente em alguma companhia de bombeiros? Voltam agora a
Braga, quando eu estava em caminho da minha casa de campo.
Eu iria jurar, meu caro José Urbano disse o major Samora
que partia para a Sibéria. O aspecto respeitável do seu equi-
pamento...
Permita-me que lhe diga, major, que essa observação desa-
credita um pouco a reputação de homem experiente e cauteloso que
merecia. Fie-se em calores de Maio! Bom, bom. Olhe-me para aque-
les riscos brancos do céu, aquilo é leste, o impertinente, o endemo-
ninhado leste. Eu nunca ouvi o sibilar dos pelouros, meu caro Cipião,
mas afianço-lhe que meo pode ser mais desagradável que o do vento
leste.o o há assim.
Nem o dos mosquitos? perguntou um estudante.
Nem esse. Os mosquitos matam-se, o leste... mata-nos. Bem
vejo que o capote lhes está causando sensação. O capote, meus ami-
gos, é o mais útil artigo de vestuário que desde a folha de figueira
tem inventado o engenho do homem. Conserva-me o calor no Inverno
e a frescura no Verão. Os óculos livram-me os olhos da poeira e con-
servam-me a vista. O guarda-sol, que os espanta pela enormidade,
abriga a minha pessoa e a bagagem dos ardores do sol e das torrentes
da chuva. A cabaça, meus amigos, contém o líquido que me sacia a
sede, ou me dá o calor para arrostar com o frio...
Basta, basta, amigo José Urbano interrompeu Samora.
Vejo agora que sou imprevidente. Desse modo tanto pode viajar pela
Cítia fria como pela Líbia ardente.
Esta observação do major foi festejada com uma estrondosa gar-
galhada, na qual tomou parte José Urbano.
Seja disse este, quando serenou a hilaridade mas o facto
é que os meus amigoso para Braga e eu para a minha casa de campo.
o importa. Amanhã cedo cá estou de volta, e fiquem certos que me
o tornam a fugir. Cobardes!o militares, e fogem de um paisano
desarmado!
E José Urbano, despedindo-se de Rialva e Samora, saudou a
cavalgada, que lhe correspondeu com estrepitosos hurras.
Daí a pouco entrava a cavalgada em Braga, e aquele grupo alegre
e ruidoso dispersava-se, levando todos gratas recordações da viagem
de Barcelos à capital do Minho.
Na manhã seguinte, véspera da entrada da rainha em Braga,
passeava o major Samora com alguns oficiais militares no campo de
Santana, quando um indivíduo bem trajado, de idade avançada, mas
de aspecto vigoroso, lhe foi ao encontro com os braços estendidos,
dizendo-lhe com o sorriso nos lábios:
O sr. major Samora jáo cedo por aqui?!
o cedo ? disse Samora pois o amigo José Urbanoo
sabe que os militares se levantam ao toque de alvorada?
SERÕES DA PROVÍNCIA
É verdade, é verdade; mas quando seo está em serviço
activo... Naturalmenteo quis que o inimigo o surpreendesse na cama!
Muito bem; como o prometido é devido, aqui estou em cumprimento
da minha palavra. Mas diga-me, major, onde está hospedado?
No quartel.
Tem necessidade de estar hoje em Braga?
Nenhuma. Os meus deveres estão cumpridos e só amanhã...
Nesse caso quer-me fazer um obséquio ?
Quantos quiser, meu caro senhor.
Há-de vir jantar comigo.
O pior é que o meu antigo camarada, o capitão Melo, já me
havia obrigado a prometer-lhe jantar com ele.
O capitão pode esperar,o é verdade ? disse José Urbano,
voltando-se para o capitão, entre quem e ele existia a maior familiaridade.
Pode até vir connosco também.
Isso é queo disse o capitão interpelado maso
quero também privar o Samora do agradável passeio que lhe propor-
ciona o amigo Urbano. Aconselho-te que vás, e amanhã será o meu dia.
Eo levas a mal ?
Essa é boa!
Às suas ordens, Sr. José Urbano. É longe?
Um quarto de légua afastado de Braga. É um caminho excelente.
Conta meia légua, Samora; o nosso amigo tomou os costumes
da aldeia; para eleo há longes.
Isso também é com o meu cavalo.
Então vamos! continuou José Urbano mas, major,o
julgue que pretendo com isto pagar-lhe os obséquios que me fez em
Famalicão. Não, senhor.
Basta de agradecimentos poro pouco;o falemos mais nisso.
E os dois dirigiram-se para o quartel, onde o major Samora resi-
dia; este montou a cavalo; José Urbano tomou na alquilaria próxima
uma possante égua que ali dera a guardar, e partiram em direcção
à morada do negociante bracarense, vivenda retirada da cidade na
proximidade da estrada do Porto, mas afastada dela mais de um
quarto de légua.
Então reside na quinta permanentemente?
Não, senhor. Eu vivo em Braga, porque a isso me obriga o meu
negócio. Mas tenho há tempos a minha família fora da cidade, longe
da qual, por gosto, eu viveria também.
É numerosa a sua família?
Uma sobrinha apenas. Pobre rapariga. Eu sei queo é esta
a vida a que naquela idade se dirigem seus suspiros,..
E os dois prosseguiram no seu caminho conversando acerca da
agricultura, do comércio, da indústria, de política, até avistarem a
casa onde José Urbano vinha descansar a miúdo das suas lidas
comerciais.
SEROES DA PROVÍNCIA
Era uma agradável vivenda, circundada por um viçoso quintal
todo orlado de limoeiros, e onde florejavam as mais formosas japoneiras
e magnólias de algumas léguas em redor. Penduravam-se pelos muros
festões virentes de jasmins e balsaminas, em volta dos quais zumbia
incessante um buliçoso enxame de abelhas, atraídas pelos aromas
suaves que se exalavam em torno. Na extensão destes muros abriam-se
sobre o caminho duas janelas de grades, através das quais se desco-
bria a abundante verdura daquele perfumado recinto, e de fora se
escutava já o murmúrio contínuo e monótono de uma cascata, que
derramava a frescura e a vida por toda aquela vegetação interior.
Respirava-se ali uma tranquilidade que deliciava o coração. O hori-
zonte, que rodeava esta pitoresca residência, era extremamente apra-
zível. Para qualquer lado que as vistas se dirigissem repousavam
sempre agradavelmente sobre um ameno fundo de folhagem e verdores,
onde se demoravam irresistivelmente, seduzidas pela alegria e festa
que se reflectia por toda a parte. No meio do repouso e silêncio que
reinava em torno dessa habitação campestre, como que se adivinhava
a vida latente da natureza que desperta no raiar da Primavera, e o
azulado e tenuíssimou de nuvens da manhã, que o solo dissipara
ainda de todo, era como a garça transparente que longe de disfarçar,
realça a formosura de certos rostos e o fulgor de certos olhos. Através
daquele sendal vaporoso pressentia-se sorrir a natureza, mais fasci-
nadora ainda nos seus trajos simples da manhã, que nas ostentosas
galas do meio-dia. As ervas dos silvados, ainda húmidas do orvalho,
dispersavam em cambiante íris os raios de luz, fulgindo como brilhan-
tes nas suas mudanças contínuas, ou imitando o fulgor do rubi, a ame-
nidade da safira, a limpidez da esmeralda e do topázio; só a Prima-
vera tem destes encantos.
Digam o que quiserem das outras estações, nenhuma éo agra-
dável como esta. A natureza é sempre admirável, é sempre artística,
é sempre poética, mas o carácter da sua poesia é variado. No Inverno
é sublime e lúgubre como o Manfredo, o Corsário, o Giaour e muitos
outros poemas; Byron admira-se, surpreende-nos, aterra-nos, faz-nos
estremecer e mistura certo terror secreto ao seu entusiasmo; e entre
o ritmo das rajadas, as estrofes do mar agitado o que caracteriza os
seus hinos. No Estio é imaginosa, apaixonada, esplêndida, lasciva, como
um frémito de Musset, como uma oriental, como um episódio de D. João.
No Outono transparece nos seus cânticos o que quer que seja de uti-
litário,o os frutos sazonados pendentes das árvores, e das searas
maduras, que chamam o pensamento para os sérios problemas da vida,
como este género de poesia filosófica que entre as galas do estilo desen-
volve um pensamento moral e humanitário. Mas na Primavera a poe-
sia da natureza é destas composições fugitivas, em que tudo é harmo-
nia e lirismo; abundam as flores, multiplicam-se as imagens, nos lagos
e ribeiros onde se reflecte o céu, nos ares onde os vapores se conden-
sam fantasmagòricamente em pequenas nuvens de formaso variadas
como as concepções de fantasia de poeta, combinam-se surpreenden-
temente a luz e o orvalho como as lágrimas e os sorrisos em uma balada
germânica.
O concerto das selvas compõe-se de gemidos e cantos, harmoni-
zados em misteriosa consonância. A natureza é então como a donzela
que só cura de atavios e enfeites, e se entrega descuidada à alegria
do viver; reflectem-se-lhe desanuviados os sorrisos nos lábios inquie-
tos, exalam-se-lhe do seio irreprimíveis os suspiros de envolta com
os cânticos, pulsa-lhe o coração ansioso como se fosse excesso de
vida. Mais tarde a maternidade tem também sua beleza, mas há alguma
coisa de melancólico nas alegrias de então; o futuro, que à donzela
fulgurava de esperanças, àe anuvia-se-lhe de cuidados; o coração
sobressalta-se-lhe de contínuo repartido por tantos afectos. A natureza
no Outono tem também o carácter grave da maternidade, mas na Pri-
mavera só há a despreocupação da virgem.
o sei se estes mesmos, se análogos pensamentos, suscitava
ao major Samora o belo espectáculo campestre que se gozava dali;
é certo que pareciao se saciar de correr com os olhos por aquele
horizonte vasto e pitoresco, eo participar da impaciência que mani-
festava José Urbano pela demora que havia em lhe abrirem o portão,
ao qual estava batendo havia cinco minutos.
Respondiam-lhe do interior os latidos formidáveis de dois cães,
maso se observava o menor vestígio de uma existência.
Onde estará metida esta gente ? exclamou José Urbano
com azedume notável.
O major nem deu fé da demora que assim exasperava o seu
anfitrião.
Finalmente ouviu-se o estalar da areia do jardim: o ruído de uns
passos ligeiros e uma voz feminina, cujo timbre agradável e sonoro
veio despertar o major da sua contemplação extática, fez-se ouvir de
uma das janelas do muro.
Ah! é o padrinho! estava bem longe de o esperar aqui a esta
hora disse aquela voz ao reconhecer José Urbano; e o major ele-
vando a cabeça na direcção de onde lhe tinham vindo aquelas palavras,
pôde perceber, ainda que de passagem, a forma elegante de uma rapa-
riga que se retirava com agilidade.
Abre, Micas, abre disse José Urbano, cujo mau humor se
desvaneceu ao ouvir aquela voz. Aindao sei o que fez a Roberta
a esta gente toda! E, voltando-se para o major, acrescentou:
É minha sobrinha. Uma boa rapariguinha; coitada. E suspirou.
Ouviu-se o correr de um ferrolho no portão do quintal, que girou
sobre os gonzos e se abriu aos recém-chegados, que se apearam
rapidamente, e recolheram os cavalos.
O major, com a amabilidade de um militar sensível aos encantos
da beleza, cumprimentou a gentil porteira, que meio enleada pelo
inesperado da visita, se ia sorrindo ao corresponder ao cumprimento.
SEROES DA PROVÍNCIA
Meu padrinho é só o responsável da má recepção que o
senhor tem. Se me tivesse prevenido quando partiu de madrugada....
Minha senhora disse o major em tom jovial V. Ex. há-de
permitir que, fazendo eu próprio a minha apresentação, lhe diga que
tem na sua presença um velho soldado, que dormiu muita vez no ter-
reno e no agradável leito das tarimas, comeu o caldo pouco apetitoso
do rancho, e saciou muita vez a sede na água dos rios. Quando bato
a uma porta a demandar quartel, só peço o pão, sal e água, de que
costumam rezar os boletos.
Nesse caso ganho ânimo, porque espero satisfarei ao pouco
exigente peregrino; mas está-me parecendo que o padrinhoo se
satisfaz como pouco.
Não, Micas, pelo menoso te perdoo aquele pudim de
batatas que sabes cozinharo bem; o mais fica por conta de Roberta.
De Roberta, sim! Quando a teremoss!
Como ?
Disse-me, depois do padrinho ter partido, que tinha que fazer
na cidade. Uma compra de linho ou estopa, ao que julgo. Ou é natural
que aproveite a ocasião para ver a rainha...
A rainha? hoje!
Poiso entra hoje em Braga?
Amanhã.
Disse-nos aqui a leiteira que entrou já ontem, e à Roberta
afirmaram-lhe que era hoje de tarde...
Deixa afirmar. Mas então quem ficou em casa?
Eu. Os criados foram para a lavoura.
! exclamou José Urbano com certo ar de censura e
desagrado.
Com estes respondeu, voltando-se para ele sorrindo, a gentil
rapariga, ao passo que afagava a cabeça de dois enormes cães acor-
rentados que, como se desejassem justificar a confiança que depositava
neles, a afagavam com humildade.
O majoro disse palavra.o se cansava de admirar a singe-
leza e graça da interlocutora.
Para justificar esta contemplação admirativa do major, preci-
samoss também de esboçarmos aqui o perfil desta nova personagem
da nossa história, minudência cuja falta nenhuma leitora me perdoaria
por certo.
E contudo a tarefa é de desanimar.
SEROES DA PROVINCIA
SEROES DA PROVÍNCIA
VI
A HEROÍNA DO ROMANCE A AÇORDA DO MAJOR
AO sei de maior dificuldade que a de descrever a heroina de
um romance.o pouca coisa basta para a desconceituarmos
aos olhos da leitora!... Eu, porém, sacrificarei à verdade algu-
mas simpatias que poderia angariar a maior, se a menosprezasse.
Descrevo-a tal qual ela era. Em primeiro lugar começarei por dizer
que o modo por que ela trajava, realçava-lhe tudo que eram dotes
naturais.
Maria Clementina, sobrinha de José Urbano, era de uma con-
figuração elegante, na qual se observavam as regulares proporções
que a arteo teria decerto a corrigir. De um porte desafectadamente
majestoso, inexplicavelmente combinado a uma expressão de bon-
dade insinuante e atractiva, havia no andar, nas feições, na maneira de
olhar, um ar de dignidade e de nobreza, que intimidava os mais ousa-
dos. Um singelo vestido de riscado escocês, adornado apenas por um
colarinho liso, e por uns punhos apertados por duas coralinas, deixava-
-lhe sobressair todo o correcto contorno daquelas gentis formas femi-
ninas, de uma flexibilidade admirável. No rostoo havia aquela com-
binação de rosas e neve, que para muita gente constitui o supremo
grau de beleza, e contudoo era trigueira, nem de uma alvura des-
maiada dos tipos alemães, queo frequentemente se combinam com
cabelos ruivos, antipática combinação; mas para lhes dar uma ideia
daquele colorido encontro-me gravemente embaraçado; a natureza
concedeu àquelas tintas uma singular influência sobre a fantasia do
coração, empregou-as apenas em alguns rostos de mulher, que exer-
cem então um poder verdadeiramente magnetizador. Um romancista
português, e outros franceses, comparou uma dessas cores à da pérola;
e tem um pouco disto efectivamente, mas excede-a em beleza. Quanto
a mim considero-as as mais perigosas. Imaginem um rosto assim, ani-
mado pelo cintilar de uns olhos negros, orlado por uma moldura de
cabelos também pretos, cujas ondulações naturais semelhavam ele-
gantes ornatos; concebam a mais bem modelada boca, cujos lábios,
convenientemente grossos, agitava incessante um mal perceptível
tremor, sinal evidente de uma exaltada sensibilidade; suponham
agora toda esta simpática cabeça, graciosamente coberta por um largo
chapéu de palha, que a assombrava de uma penumbra de efeitos
ópticos e fascinadores, e terão explicada a razão pela qual o major
o se fartava de fixar esta rapariga com os mais inequívocos sinais
de uma sincera admiração e decidida simpatia.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Caminharam todos os três por entre ruas orladas de arbustos
que se entrelaçavam, formando um toldo de folhagem, e cobertas de
areia que fazia sobressair a verdura matizada dos tabuleiros em que
estava repartido o jardim.
José Urbano fazia notar ao major o desenvolvimento de algumas
árvores fruteiras, à afilhada a raridade de certas flores. E assim che-
garam à entrada de casa, queo desdizia do aspecto festival de toda
a vivenda. José Urbano subiu mais apressado os quatro degraus de
pedra que davam entrada por a porta envidraçada, e abrindo-a de
par em par, disse, voltando-se para o major:
Tenho a honra de o receber em minha casa, senhor major.
E agora hão-de me dar licença, o senhor major e o padrinho
disse a elegante sobrinha do proprietário que me retire para
tratar do seu jantar.
A falar verdade, minha senhora, eu preferia oo do boleto, a
privar-me do prazer da sua companhia.
Mas o padrinho é mais exigente.o tem esses hábitos mili-
tares.
Mas ses esperássemos por a Roberta...?
o pode ser.
Porém, Micas, a falar verdade, tu só...
Meu caro Sr. José Urbano disse o major em tom meio jovial
estou tentado a fazer-lhe uma proposta...
Qual é, major?
Receio que mao admitam; mas desde já lhes declaro que
mau é que a chegue a formular, porque sou teimoso.
Vamos, major, diga. A Micas já está cheia de curiosidade.
Repare...
A falar verdade... Ainda quandoo seja senão para ver como
o sr. major é teimoso observou esta, sorrindo.
Proponho ques todos colaboremos no jantar.
Essa agora! disse José Urbano admirado.
Pois o sr. major também cozinha?
Oh! minha senhora. Um militar precisa de saber de tudo um
socado; pois deve afazer-se a contar consigo apenas. Tenho tido ocasião
de cozinhar para mim mesmo, de compor a minha própria roupa, e até
de me medicamentar.
Confesso-lhe, sr. major, que estava com minha vontade de
experimentar o seu talento culinário.
Pois com permissão aqui do seu padrinho, minha senhora,
>parece-me que chegou a ocasião.
Não, senhor, a minha permissãoo pode...
Meu caro José Urbano, você, que viajou também, deve saber
alguma coisa de cozinha. Eu pela minha parte prometo uma saborosa
açorda, na confecção da qual granjeei certa fama entre os meus anti-
gos camaradas, que também me diziam inimitável em manejar o
SERÕES DA PROVÍNCIA
espeto; e, se houver ocasião, folgarei de lhes demonstrar queo sou
indigno de crédito. E você que sabe fazer, ó José Urbano? diga,
ande, e vamos a isto.
Confesso que nunca tive disposição para a cozinha.
Nem se atreverá a fritar uns ovos com umas rodelas de salpicão ?
pois eu creio que o fumeiro deve estar bem provido, hem?
o é por falta de materiais...
É verdade que isto de fritar uns ovos ainda requer seu enge-
nho e tacto culinário; no grau devido é um prato delicioso, um pouco
acima é detestável. Mas eu vigiarei, vamos.
Ora, o sr. major está a gracejar.
Basta-me saber disse a sobrinha de José Urbano que
posso contar com o seu auxílio em caso de maior urgência.
Minha senhora, euo lhe disse que era teimoso? É fama
que tenho no exército, e já agorao a hei-de desmentir,
Mas...
Para outra vez...
o recuo, faço disto questão ministerial... O meu amor-pró-
prio exige que eu lhes faça apreciar as qualidades da minha açorda.
E o major, gracejando e rindo, de tal maneira insistiu, que os
três acabaram por passar todos para a cozinha às risadas e já sem o
menor constrangimento.
O major era destas pessoas, cujo bom humor se comunica, e que
e à vontade e nas mais joviais disposições as pessoas com quem se
acha. Logo às primeiras palavras que se tivesse com ele cessava todo
o constrangimento, e estabelecia-se uma familiaridade e sem-cerimó-
nia, como um amigo de longos anos.
O próprio José Urbano participava daquela alegria e arregaçava
as mangas do casaco, preparando-se para a tarefa culinária às ordens
do seu comensal.
Maria Clementina assistia rindo com vontade a toda aquela azá-
fama dos dois.
O major era admirável de actividade. Tomara posse do terreno,
eo se mostrava constrangido.
Minha senhora dizia ele, voltando-se para a afilhada de José
Urbano porá V. Ex.' à minha disposição um fornecimento de água,
pão, sal, azeite, vinagre, pimenta, alho, cravo, cebola, salsa, salpicão
e toucinho.
Misericórdia, major... Tenha misericórdia dos nossos estô-
magos... Os desgraçadoso resistem a essa metralha.
José Urbano, vocêo sabe o que diz.o há tónico mais
eficaz do que a açorda preparada assim! Verá, verá.
Pode satisfazer a minha requisição, minha senhora?
Prontamente.
Bem; agora, José Urbano, vá você empunhando essa sertã
para logo, e partindo os ovos já...
SEROES DA PROVÍNCIA
Confesso-lhe que é uma tarefa melindrosa. Partir ovos!
Que pusilânime ! Homem, é assim! E, com a maior presteza,
o major preleccionava praticamente o seu hospedeiro, que ria a ban-
deiras despregadas.
AV. Ex.
a
declaro-a emancipada da minha tutela e livre em
todos os seus movimentos.
Ainda bem disse José Urbano quando não, recearia
pelo destino do nosso jantar.
Homem,o faça injustiça à experiência da vida de campanha.
Prometo-lhe que se há-de lembrar com saudade da minha açorda.
Na cozinha ia uma desusada animação, Parecia que se preparava
um banquete esplêndido. O major, de per si, fazia mais ruído que
meia dúzia de cozinheiros. E com uma gravidade, que Maria Clemen-
tinao podia ver sem se perder de riso, mexia e remexia a açorda,
que exalava um cheiro apetitoso, e de quando em quando ia vigiar
o trabalho de José Urbano, que ele empregara a bater uns ovos, aos
quais associara uma quantidade de ingredientes. José Urbano executava
fielmente as ordens do major, e havia um quarto de hora que estava
batendo os ovos com um escrúpulo e regularidade admiráveis.
Ao meio-dia, graças aos esforços combinados dos três, o jantar
foi declarado completo, e José Urbano, que observava os costumes
patriarcais, folgou ao antever queo seria alterada a sua hora do
costume.
Enquanto o major dava a última demão à sua decantada açorda,
Maria Clementinas a mesa, a qual deu um ar festivo, graças as flores
com que a adornou; e José Urbano, descendo à garrafeira, foi procurar
o mais precioso vinho de que ela constava. No entretanto o major apa-
receu na sala de jantar, junto de Maria Clementina.
Pois já está posta a mesa! exclamou ele ao entrar na sala.
E eu que vinha para a ajudar!
Mil vezes agradecida; mas o coronel...
Assim me despacha, se os ministros lhe quiserem honrar
a palavra.
O sr. major, queria dizer, foi apenas justo para o serviço da
cozinha.
Há-de fazer-me a honra de provar a minha açorda,o é
verdade ?
Decerto. E parece-me poder já assegurar que há-de estar
deliciosa.
o me queira mal pela minha impertinência; mas é génio meu...
Querer-lhe mal! Se eu lhe assegurar que há muito tempo que
meo rio como hoje!... O sr. major conseguiu fazer-me esquecer
por algumas horas as mortificações da minha vida.
Pois também tem mortificações ? perguntou-lhe o major
com um carinho que a maior parte das pessoas que o conhecessem
lhe estranhariam, ouvindo-o.
SEROES DA PROVÍNCIA
E pergunta-mo ?
E duvido-o. Chama mortificações a quê ? Desgostos por o
padrinhoo viver aqui, saudades de alguma amiga mais íntima, zangas
pela rabugice da sua criada, a doença de algumas das suas pombas
mais bonitas... pretextos para mostrar mais uma maneira de serem
belos esses bonitos olhos que tem.
Maria Clementina sorriu a este galanteio do velho militar; mas
através deste sorriso descobriam-se uns longes de tristeza.
Se o major soubesse o motivo por que eu vivo triste, talvez,
longe de me estranhar a tristeza, se admiraria ainda de me ver sor-
rir... às vezes.
Ora adeus.o é difícil penetrar no seu segredo. Perdoe
dizer-lho. Afinal é o segredo dos... vinte anos...o é a sua
idade ?
É disse Maria Clementina, corando e desviando os olhos
dos do major. Mas aindao adivinhou tudo.
Nisto ouviram-se passos no corredor, e a conversa, com apra-
zimento de Maria Clementina, foi interrompida por José Urbano, que
voltava da sua excursão à garrafeira, exclamando ao entrar na sala:
Major! Eu cá sou nacional. Porto e Madeira.
Apoiado, sr. Urbano. Eu secundo o seu patriotismo.
E sentaram-se todos três à mesa. José Urbano, contente e jovial; o
major fazendo as despesas de conversação com anedotas que faziam
rir até às lágrimas o negociante, e assomar um sorriso aos lábios de
Maria Clementina, que, da curta conversa que tivera com o major,
conservava uns vislumbres de melancolia.
A açorda preparada pelo major teve um efeito monumental. José
Urbano declarou-a a mais deliciosa comida que em sua vida tinha
provado. Eo obstante ao princípioo poder eximir-se em fazer
uma careta, abrindo a boca para minorar o excesso dos condimentos,
depois de costumar o paladar, reclamava repetições com uma insis-
tência, que lisonjeava um pouco o orgulho do major.
Bravo, major! Já vejo que o cheiro da pólvora apura e aper-
feiçoa o paladar. É deliciosa!
Mais outra vez, Sr. José Urbano.
, mais outra.
Tenha cautela, meu padrinho, que lheo vá fazer mal. Éo
forte !
Deixe, minha senhora, isto dá tom ao estômago. E com um
cálice de Madeira por cima... V. Ex.' é queo lhe é afeiçoada.
Estava excelente, sr. major. Bem viu que comi.
Aqui para nós, a sensação que a açorda deixara em Maria Cle-
mentinao era das mais favoráveis ao talento culinário do major.
Reinou em todo o resto do jantar a mesma jovial animação com
que principiara a manhã. O major fez um brinde a Maria Clementina,
José Urbano outro ao major; este outro a José Urbano, ambos uma
SEROES DA PROVÍNCIA
a sua majestade; o comerciante outro ao exército, o militar outro ao
comércio; e estavam no seu undécimo brinde, quando se ouviu bater
à portaria duas grandes argoladas.
VII
A VISITA INESPERADA
O
som estridente das argoladas no portão da casa determinou,
por alguns momentos, completo silêncio na sala, e os três
convivas, olhando-se interrogativamente, como que se per-
lavam quem será ?
Já sei. É a Roberta disse Maria Clementina, respondendo
à interrogação tácita dos dois. Ninguém senão ela podia entrar
no quintal.
E levantando-se chegou â janela, cuja vidraça correu para ver
quem batia.
É você, Roberta ?
Sou eu, menina, sou eu respondeu uma voz de mulher, na
qual se notava um evidente cansaço. Ai que venho mais morta que
viva! Depressa, faz favor de atirar cá abaixo a chave da portaria, e abrir
a sala das visitas...
Pois quem vem?
Uma senhora de carroça, para visitar a menina,
José Urbano levantou-se sobressaltado.
Uma senhora!
Mas quem é? perguntou Maria Clementina, igualmente
admirada.
Depressa, menina, depressa, que está à espera.
Mas que senhora é ? insistiu Clementina.
Euo conheço respondeu Roberta, já impaciente mas
ande depressa, pelo amor de Deus.
Clementina voltou para dentro a procurar a chave da portaria.
Diz que é uma senhora que me procura.
Mas quem pode ser ? perguntou José Urbano, admirado.
Ignoro-o.
E deitando a correr com uma graciosa agilidade, foi buscar a
chave que Roberta lhe pedia.
José Urbano chegou à janela, e dirigindo-se a Roberta:
Ó Roberta, quem é que vem?
A criada, ouvindo a voz de seu amo, estremeceu e mostrou-se
profundamente embaraçada.
SEROES DA PROVÍNCIA
Pois o Sr. José Urbano... Boa te vai! Então o senhor... olhem
os meus pecados!... Pois na verdade... Em nome do Padre... Então
que quer isto dizer!... Temo-la travada!
E continuava resmungando como se a presença do amo a con-
trariasse.
Responde: quem é que vem lá ?
Aí tem a chave disse Maria Clementina, atirando-lha pela
janela e voltando para ordenar a sala das visitas.
A velhao esperara por mais nada; sem atender a seu amo,
fugiu com uma ligeireza de que ninguém julgaria capazes as suas pernas
estropeadas.
Roberta, ó Roberta! demónio de mulher.
O major, que neste tempo se aproximara da janela, fez um movi-
mento de surpresa ao observar a mulher que corria em direcção ao
portão.
Ah! é aquela a sua criada ?
É; uma velha já meia tonta e teimosa, mas, coitada, conhe-
ceu-me pequeno. Veja, major, a idade que ela terá.
O major calou-se. O motivo da sua surpresa fora o ter reconhe-
cido na criada de José Urbano a velha que ele e seu jovem companheiro
Rialva haviam encontrado no dia antecedente na estrada, e que lhes
perguntou pela chegada da rainha.
Mas quem poderá ser? perguntava a si próprio José Urbano.
Uma senhora que procura minha sobrinha!
Durante este tempo passeava Maria Clementina na sala de recep-
ção, igualmente preocupada em saber quem seria a pessoa que a pro-
curava.
Desde que Maria Clementina vivia no campo, raras tinham sido
as visitas que recebera; por isso a surpreenderam as palavras de
Roberta, e mais ainda a expressão da sua fisionomia, na qual se lia um
certo espanto inexplicável. Absorvida por estes pensamentos, a sobrinha
de José Urbano desceu ao jardim a receber a sua desconhecida visita.
o esperou muito tempo. Roberta assomou pouco depois à
entrada de uma das ruas que conduziam ali, e após ela uma senhora
de meia-idade magnificamente vestida e com certo ar de nobreza e
dignidade, que revelavam distinção.
Maria Clementina foi ao seu encontro.
Roberta, colocando-se por detrás da recém-chegada, a quem tri-
butava extremas atenções, fazia sinais telegráficos a Maria Clementina,
que estao podia entender, o que cada vez mais a embaraçava, pois
nada lhe recordava as feições da senhora que pretendia visitá-la.
o sei a quem nem ao que devo a honra desta inesperada
visita, mas em todo o caso é-me sumamente agradável receber uma
o lisonjeira distinção disse Clementina, aproximando-se da senhora,
cuja fisionomia denotava um ar de bondade simpática e atraente, que
dispôs o ânimo de Maria Clementina em seu favor.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Minha senhora disse a recém-chegada, fixando em Maria
Clementina um olhar penetrante ainda que lhe parece estranha a
linha visita, peço-lhe que me dispense de a explicar enquantoo
estivermos mais à vontade.
Essa é boa disse Clementina, sorrindo. Se V. Ex.* até
o quiser dar-me explicações algumas,o serei eu por certo que
me atreva a pedir-lhas. Quer ter a bondade de entrar?
Se o ordena? Mas para lhe falar verdade, se lheo fosse
incómodo, aquela rua de romãzeiras tem uma sombrao convi-
dativa...
Como V. Ex.* quiser.
E as duas desviaram-se na direcção da rua de romãzeiras.
Maria Clementina, cada vez mais admirada da estranheza da
visita; a senhora idosa envolvendo-a nos seus olhares vivos e pene-
trantes.
Roberta, ao afastar-se delas, pôde obter ensejo de dizer a sua
ama em tom enigmático:
Cautela! trate-a com muito respeito! Eu depois lhe direi...
Maria Clementina estava vendida, como vulgarmente se diz,
Estranhava os modos da criada pelo menos tanto quanto o inesperado
da visita.
Quer-me dar o seu braço ? disse a Clementina a senhora,
cuja visita tanto a preocupava.
Com todo o gosto.
E as duas mulheres penetraram, assim juntas e silenciosas, durante
algum tempo, pela copada rua do jardim. Chegaram à extremidade
oposta à rua, onde, junto de uma pequena fonte, havia um convidativo
banco de cortiça assombrado por um toldo de trepadeiras.
Quer-me fazer o favor de se sentar aqui comigo ?
Com o maior prazer.
A desconhecida, tomando então as mãos ds Maria Clementina,
disse-lhe com um tom meigo e afectuoso:
Sabe que me está inspirando muita simpatia ?
Oh! minha senhora...
Quero enfim dizer-lhe o que me trouxe aqui. Eu sou de
Lisboa.
Ah! deo longe! ? exclamou Maria Clementina, para dizer
alguma coisa.
É verdade. E havia muito que desejava conhecê-la.
A mim! ? em Lisboa...
Admira-se ?
o sei como V. Ex.
a
me pudesse conhecer em uma terra, onde
ninguém me conhece.
Ninguém?
Decerto. A minha única família resume-se em meu tio, que
vive comigo.
SEROES DA PROVÍNCIA
Mas algumas amigas...
Amigas ! Engana-se V. Ex.*; euo tenho amigas.
Diz-me isso com um ar de descrença, que é de estranhar em
uma meninao nova.
Há pessoas para quem a experiência é prematura.
Santo Deus! que desconsoladora dúvida! Ora vamos, quer-me
parecer que é menos justa nesse seu cepticismo.
o chame a isto cepticismo, minha senhora, graças a Deus,
eu tenho a amizade de meu padrinho.
Só?!
Tem razão; era injusta. E a de minha criada Roberta.
E a de mais ninguém ? Parece-me que ainda mais uma vez
terá de reconhecer a sua injustiça. Em Lisboa alguém existe que a
estima.
A mim ? perguntou Maria Clementina, corando enleada
sob os olhares da sua interlocutora.
E é dessa pessoa que eu lhe queria falar.
V. Ex.*?
Eu, sim. Quer ser franca comigo ?
Eu? Mas...
Oiça-me. Uma das minhas amigas tem um filho oficial no
exército.
Maria Clementina sobressaltou-se a estas palavras.
No ano passado continuou a senhora este rapaz, que é
meu afilhado, e por quem eu me interesso muito, passou algum tempo
em Braga em serviço. Quando voltou a Lisboa, por diligências da mãe,
ia preocupado e triste. Estranhavam-no todos que o tinham conhecido
o mais alegre, e direi mesmo, estouvado rapaz da capital. Ae dele,
sobressaltada no seu coração materno, escreveu para alguém do seu
conhecimento, residente aqui próximo, e a carta que obteve... Quer-me
fazer o favor de a ler ? continuou a senhora ídosa, oferecendo uma
carta a Maria Clementina. É neste ponto...
Mas para que hei-de eu...—dizia Clementina, tremendo e
estendendo quase involuntariamente as mãos para aquela carta; apesar
da sua turbação lançou-lhe os olhos, e pôde ler as seguintes linhas:
«Quanto ao que me perguntas a respeito de teu filho, colocas-me
em sérios embaraços; poiso sei se o meu pensamento lisonjeará
demasiado a tua vaidade maternal. Em todo o caso, eu com a fran-
queza que sempre me conheceste, dir-te-ei que, a meu ver, o teu filho
Filipe é digno de censura...»
As mãos de Maria Clementina tremiam cada vez mais ao ler estas
palavras; vencendo a sua comoção prosseguiu:
«Há tempos que a sua assiduidade junto de uma menina destes
lugares havia sido notada; no dia da sua partida uma imprudência
dele sacrificou a reputação daquela que inocentemente confiara
nele e ...»
Maria Clementina devolveu a carta que estava lendo.
Entendo, minha senhora exclamou ela com a voz alterada
com as faces tingidas de um vivo rubor. V. Ex.* sabe que sou eu
a pessoa assim caluniada,o é verdade?
E então com que fim me procurou? prosseguiu Maria Cle-
mentina com certo tom de amargura.
Para lhe assegurar que ae de Filipe de Rialva, ao receber
esta carta, comoveu-se, e que, por um secreto pressentimento, acre-
ditou na pureza da mulher que uma imprudência de seu filho assim
sacrificara; que ela me pediu que se pudesse encontrá-la, lhe assegu-
rasse isto mesmo, e que lhe transmitisse um beijo, que eu espero me
o recusará.
Oh! minha senhora! exclamou Clementina, verdadeira-
mente comovida.
E as duas mulheres por muito tempo confundiram seus beijos
e suas lágrimas.
Ora agora continuou afinal a senhora de Lisboa faça-se
justiça a todos. Filipe aindao éo culpado, como nesta carta se diz.
Ele, quer-me parecer, ainda seo esqueceu da menina.
Maria Clementina abanou a cabeça em ar de dúvida.
Oh!o faça esse movimento que seo quadra com esses
olhareso cheios de confiança, com uma expressão de lábios, que,
mesmo contra sua vontade, se conformam em um sorriso.o seja
desconfiada. Sobretudoo me fique odiando Filipe... não?
Desta vez o sorriso de Maria Clementina tinha outra significação.
Odiá-lo! dizia-lhe, baixinho, o coração. E julgam neces-
sário recomendar-me que oo odeie!
Ora, apesar do coração falaro baixo,o sei que admirável
acústica era a senhora lisbonense que o percebeu, e aproximando-se
de Maria Clementina disse-lhe com voz afectuosa:
Ainda o ama,o é verdade ? Diga-me que sim.
Maria Clementina corou e calou-se.
Bem, bem, este rubor é também uma resposta. Adeus. Per-
mite-me que volte a visitá-la?...
Quando V. Ex.* quiser.
Agora retiro-me.
E nem ao menos há-de descansar em nossa casa ?
Se me dispensa...
Meu padrinho há-de sentir.
—Quê! poiso está? Tinham-me dito.,.
Meu padrinho chegou, sem ser esperado, com um amigo que
jantou connosco. Eles lám ao nosso encontro.
A senhora de Lisboa seguiu com os olhos a direcção em que lhe
apontou Maria Clementina, eo pôde disfarçar um movimento de
espanto ao reconhecer o major.
SERÕES DA PROVÍNCIA
SERÕES DA PROVÍNCIA
O Sr. Clemente Samora aqui ?
O major pela sua parte parecia tê-la também reconhecido, eo
mostrava menor estupefacção.
Longe estava eu de esperar encontrar V. Ex.' neste lugar,
Sr.' D. Joana.
o menos alheia estava eu ao prazer do seu encontro, major.
José Urbano, depois de cumprimentar, segundo a etiqueta, a
dama desconhecida, voltou para sua afilhada e para o major olhares
interrogadores.
Para evitar-lhes o incómodo de uma apresentação, eu própria
me apresento disse ela, olhando para o major de uma maneira par-
ticular, como se lhe quisesse recomendar o silêncio.
V. S." é, segundo julgo, o tio desta menina,o é verdade?
disse D. Joana, sorrindo-se amavelmente para José Urbano.
Às ordens de V. Ex.* aqui e em toda a parte. José Urbano,
negociante em Braga.
Muito bem, Sr. José Urbano. Pois eu sou de Lisboa, e apro-
veitei a vinda da rainha para visitar o Minho, que há muito tinha desejos
de ver. Ao despedir-me de algumas minhas amigas em Lisboa recebi
de uma a incumbência agradável de procurar esta menina para lhe
assegurar da parte dela que, apesar da ausência, sempre a teve pre-
sente no coração. O acaso fez com que eu na estrada encontrasse a sua
criada, de cuja conversa vim a saber ser aqui a morada de quem eu
procurava, e resolvi por isso cumprir imediatamente a minha comis-
são. Agora retiro-me, mas já autorizada para voltar a visitá-la por minha
própria conta, se o Sr. José Urbano seo opõe...
Oh minha senhora! V. Ex.* honra-nos muito com a sua visita.
O major fica?
Vinha também despedir-me desta menina, e se V. Ex." quiser
aceitar a minha companhia...
Porém o major vai para Braga, e eu fico em casa do
visconde de P...
Pessoa de bem disse José Urbano ao ouvir este nome.
Mas o major pode acompanhar V. Ex.* até perto da quinta do visconde,
sem torcer muito caminho.
E José Urbano, profundamente conhecedor da topografia do
lugar, indicou ao major Samora o itinerário que devia seguir.
Então até breve... É verdade; quer-me fazer o obséquio de
aceitar um lugar na minha carruagem para vermos amanhã a entrada
da rainha? perguntou D. Joana, voltando-se para Maria Cle-
mentina.
Peço a V. Ex.* que me dispense de aceitaro lisonjeiro favor;
maso me agrada o tumulto.
Basta; eu também prefiro falar-lhe mais com sossego, Adeus.
E, aproximando-se de Maria Clementina, beijou-a afectuosamente,
dizendo-lhe ao mesmo tempo:
SEROES DA PROVÍNCIA
É verdade, peço-lhe queo dissuada a sua criada das ideias
que formar a meu respeito.
O major Samora ao ajudar D. Joana a subir para a carruagem,
estava pensativo, e olhava para Maria Clementina de um modo par-
ticular.
Entre, major. O André que lhe conduza o cavalo até ao sitio
onde teremos de nos separar.
E depois de fazer um último sinal de afectuosa despedida a Maria
Clementina, cortejar José Urbano, e ter enviado a Roberta, que se des-
fazia em mesuras, um gesto particular, deu ordem de partir, e em
pouco tempo a carruagem se afastava do lugar.
Parece uma excelente senhora disse José Urbano, fechando
a porta. Mas de quem te trouxe ela visitas, Micas?
Ah!... respondeu Maria Clementina, turbada da filha do
juiz de direito, que se retirou o ano passado.
Em todo o resto da tarde Maria Clementina mostrou-se
preocupada.
José Urbano passeava no quintal, examinando minuciosamente
o estado dos enxertos, o adiantamento dos renovos, e limpando os
alegretes com a solicitude de um horticultor de vocação.
Maria Clementina permaneceu imóvel encostada à varanda,
seguindo com os olhos o volutear das andorinhas no espaço, nessa
posição cheia de languidez e poesia de mulher de vinte anos que
cisma. O cismar nesta idade é uma das variadas manifestações do amor,
e a mais ideal, a mais pura, e mais sublime. Cisma-se antes que o cora-
ção tenha decifrado o enigma proposto, antes que o amor tenha rece-
bido uma solução real. É o estremecimento da alma, precursor de uma
vida nova. Após uma longa viagem, e depois de flutuar suspenso
entre ou e o abismo do mar, o nauta, encostado um dia à amurada
do navio, estendendo os olhos pela amplidão das águas, sublimes de
mais para lhe bastarem por muito tempo ao coração, e procurando
ao menos nas nuvens um simulacro de montanhas, lagos fantásticos,
campinas e florestas, sente que o vento, que lhe agita os cabelos e que
sibila pelas enxárcias, o perfuma de fragrâncias suaves; que lhe
recorda a terra por que suspira, e que lhe anuncia prazeres que ainda
o. Então aspira com sofreguidão estas brisas, que roubaram ãs
flores os seus perfumes, e deixa-se cair em uma contemplação extática,
maginando os bosques e os vergéis da terra de que se sente próximo.
Na vida há uma situação idêntica, em que também a atmosfera
nos vem perfumar de misteriosa fragrância, e em que ao aspirá-la
sonhamos venturas e esquecemos os dissabores de viagens empreen-
didas. É a aurora do amor; quadra de devaneios e fantasias, em que
a vida do coração principia e exerce sobres o seu mágico influxo.
Maria Clementina estava naquele momento em uma dessas situa-
ções. O que lhe estaria a fantasiar a imaginação? Imaginem-no as
leitoras.
SEROES DA PROVÍNCIA
Eo absorvida estava naquele seu íntimo cismar que nem dava
pela presença de sua criada Roberta, cujo entrar e sair, e ruído que
de propósito fazia, tinha o que quer que fosse de suspeito, e noutra
ocasião teria já evidentemente sido notado por ela.
Roberta acabou de se convencer queo conseguira tornar-se
notada; por isso, aproximando-se de Maria Clementina, dirigiu-lhe a
palavra.
Então diga-me, menina, que lhe pareceu a visita daquela
senhora?
Maria Clementina olhou para a criada com certo sobressalto,
como se aquelas palavras a desviassem, mau grado seu, de um agra-
dável meditar.
Que me havia de parecer, Roberta? Uma delicadeza daquela
senhora, que assim quis ter um incómodo por minha causa.
Sabe quem ela é ? perguntou Roberta com certo ar de
mistério.
Uma senhora de Lisboa.
Mas que senhora ?
Que senhora ? !o entendo a pergunta.
Sim; pergunto eu se sabe quem é aquela senhora?
Eu, não.
Roberta tornou-se cada vez mais misteriosa; foi à porta obser-
var se alguém a escutava; depois aproximou-se de Maria Clemen-
tina, e disse-lhe em voz baixa:
Quer que lhe diga quem ela é ?
Diga.
E promete segredo ?
Prometo respondeu Maria Clementina, sorrindo ao lem-
brar-se da recomendação de D. Joana.
Pois olhe; maso se assuste, nem diga nada ao padrinho.
Mas então quem é ?
É a rainha!
A rainha ? Ah! ah! ah! disse Maria Clementinao podendo
reter uma gargalhada.
Olhem! E a menina ri-se! É o que eu lhe digo.
Então era a rainha ?
Era, sim, senhora, era. E sabe quem a trouxe aqui?
Eu não.
Fui eu.
Ah! então você tem esse poder sobre a rainha?
Ora escute.
E Roberta, com toda a familiaridade, puxou uma cadeira para
junto de Maria Clementina e prosseguiu:
Aquela história do alferes...
Roberta! já lhe disse queo queria que me falasse mais nisto.
Eo tenho falado. Agora, o que euo podia era deixar de
SEROES DA PROVÍNCIA
pensar também. Que quer a menina? Eu vi-a nascer, assim como vi
nascer a mãezinha, e já queo pude dar àquela as venturas que lhe
desejei sempre, disse cá de mim para mim: Estao há-de ter uma
sorte infeliz, ao poder que eu possa.
Mas a que vem isso agora, Roberta ?
A que vem? Ora escute. Aquela doida da leiteira veio-nos
aqui dizer que a rainha chegava ontem. Quando ela me disse aquilo,
eu pus-me cá a malucar. A rainha é rainha. Ela é quem manda e governa,
os outrosm de lhe obedecer. Se eu lhe contasse tudo...
Se lhe contasse o quê, Roberta? exclamou Maria Clemen-
tina com certa inquietação.
Tudo. A história do tal alferes.
Roberta!
Ora valha-me Deus, menina. Com esses escrúpuloso se faz
nada de jeito. Se eu tivesse estado com a menina em Braga, eu me
acautelaria; assim ao menos vamos a remediar o mal. A rainha dizem
que é uma boa senhora. Se eu lhe fizer constar que, por causa de um
alferes, as más-línguas se atreveram a murmurar da mais virtuosa menina
que eu tenho conhecido, ela há-de tomar suas medidas e remediar tudo.
Você tem coisas, Roberta!
Diga-lhe que sim. Eu o queo tenhoo papas na língua.
Sabe a menina que para dizer a verdade, tanto a digo diante dos reis
como dos da minha igualha. Já uma vez fui jurar como testemunha de
dizer o que sabia, e até o juiz disse que eu era uma mulher desenga-
nada. Eu cá sou assim. Pedi-lhe ontem licença e fui-mer na estrada
à espera da rainha. Bem podia esperar até pela manhã. Passou este
senhor general, que cá jantou hoje; quando me lembro como a menina
cá se arranjou sem mim, ainda me benzo; o que valeu é que ele é um
homem como se quer, e o padrinho estava hoje de boa maré. Ainda
assim! Maso tem dúvida, ainda que tivesse de cair a, por bem
empregado dava eu o meu tempo... Mas como ia dizendo, passou este
senhor e um rapazote novo, e foram eles que me disseram que a
rainha só chegaria daí a duas ou três horas, e até me deram os sinais
certos para eu a conhecer. Esperei, esperei e por fim sempre apareceu:
conheci-a logo.
Ah! então conheceu-a ?
Conheci logo. Vi a carruagem e disse com os meus botões:
É aquela. Vinham dois criados a cavalo atrás e outra carruagem com
senhoras também.o trazia estadão, porque, como me disse o tal
rapaz, ela viaja... viaja... ora como disse ele?... Era assim uma coisa
como em cólicas, mas que vinha a dizer que viajava sem estrondo.
Cheguei-me à carruagem, apesar do sinal do boleeiro, e ela ao ver-me
fez logo sinal para parar. Atenciosa é ela com os pobres, Deus Nosso
lho pague.
Maria Clementina ouvia com curiosidade a narração desta aven-
tura da criada.
Qual de V. Ex." é a rainha ? — disse eu para as três senhoras
que iam dentro, apesar de logo ver que havia de ser a mais idosa. As
mais novas desataram a rir... como a menina ri também...o sei
porquê. Lembrou-me que seria por euo dar o tratamento que devia
e emendei a tempo: Qual de vossas majestades é a rainha? As outras
riam ainda... Eram uns galos dourados, coitadinhas, nem por estarem
diante de quem estavam!... Raparigas. Mas a senhora então, tocando-
-lhes com o cotovelo, disse muito séria, voltando-se para mim:
Sou eu; porquê ?
Ah! eu logo vi, ora primeiro que tudo seja sua majestade
muito bem-vinda a esta sua terra, onde tem muitos amigos. Meu amo
fala muito no paizinho de vossa majestade. Ora muito bem. Vossa majes-
tade há-de ter pressa; mas é que eu sempre lhe queria pedir...
A rainha julgou que era esmola, pois já ia a meter ao
ao bolso...
Em cortesia dissa eu, que a percebio é isso que eu
peço, é justiça.
Justiça! disse a rainha, tornando-se logo séria. Fale,
fale... quem lhe fez mal?
Eu lhe conto,o foi a mim verdadeiramente, mas... é o mesmo
que se fosse, se fui eu que a trouxe ao colo...
A quem ? perguntou a rainha.
A minha menina!
Roberta disse Maria Clementina, interrompendo-a você
o tem juízo! Ir assim, diante dessa gente toda, falar em coisas das
quais eu já lhe tinha proibido de dizer uma palavra mais!
Ora venha cá ensinar-me como as coisas se fazem! Cuida que
me pus mesmo agora a tagarelar para quem me quisesse ouvir. Era
o que faltava. Eu disse à... à rainha: Se vossa majestade quiser ter o
incómodo de se chegar aqui, eu conto-lhe tudo. Ela chegou à porta da
carruagem, e eu disse-lhe tudo ao ouvido.
Tudo o quê ?
Contei-lhe que, estando eu na quinta e c padrinho no Porto,
a menina fora para o convento. Que foi por ocasião do Saldanha andar
por cá e que deixara ficar em Braga um tal alferes, que inquietou a
menina; porquanto enfim, como eu disse à rainha, quando a gente é
nova o coração é o coração, o sangue ferve,..
Jesus, meu Deus! que mulher esta! exclamou Maria Cle-
mentina, corando.
Robertao atendeu à interrupção, e continuou:
Que depois a viu em casa do Sr. Domingos Pedral, e que na
noite em que o tal alferes tinha de partir para Lisboa, foi falar com a
menina ao jardim do Sr. Pedral, onde a menina estava. Asneira, como
eu disse à rainha, em que se eu lá estivesse, ao deixaria cair. E logo
então com tanta infelicidade, que ao saltar o muro foi visto por um
grupo de estudantes que dobrava uma esquina, e o mesmo foi verem-no
SEROES DA PROVÍNCIA
SERÕES DA PROVÍNCIA
eles que vê-lo toda a cidade, a qual já falava nestes amores há muito.
No dia seguinte a reputação da menina andava já por essas bocas
do mundo; as delambidas das freiras puseram-se a fazer biquinhos à
volta da menina para o convento. E eu e a quem contaram isto fomos
buscar a menina para a quinta, porque, graças a Deus, a sobrinha do
Sr. José Urbanoo precisa dos favores de ninguém. Disse-lhe que
o Sr. José Urbano chegara aqui a Braga espavorido, mas que depois
de falar com a menina ficara manso como um cordeiro, e nunca falara
mais nisto.
Sabe, Roberta, que se meu padrinho soubesse o que você fez
havia de ficar muito satisfeito!o viu como ele lhe ordenou que
nunca mais falasse em tal ?
Pois sim; com esses escrúpulos ficávamos sempre nesta vida.
A menina sem voltar à cidade, sem visitar ninguém, aqui metida.
Bem me importa a cidade. Que canseira lhe dá isso a você ?
Eu já lhe disse queo me distraio aqui ?
Ora deixemo-nos disso. Os passarinhos cantam muito bem, as
floreso muito bonitas; mas vindo o Inverno nem passarinhos nem
flores. Depois sempre quero ver como a menina se diverte. É como o
ano passado. Chorava, chorava...
O ano passado estava doida. Já sabe que me curei daquela
loucura.
Diga-o a quem quiser, menos a mim. Olhem para onde ela
vem com os seus esquecimentos!
Mas que lucrou você em contar a essa senhora a minha história?
À rainha...
A rainha, seja lá rainha. Para quê?
Pois quem lhe pode dar remédio, senão ela? Eu lá lhe disse:
Agora veja vossa majestade se isto deve ficar assim. Se os militares
que vossa majestade para cá nos mandam para manter a paz, ou
para meter a desordem nas famílias e fazer a infelicidade de meninas
bem educadas...
Como se chamava esse oficial ? perguntou a rainha, e eu
bem vi que ela já estava interessada por a história.
Olhe, eu só sei que ele era Filipe.
E disse-lho! valha-me Deus !
Disse, disse... Era o que faltava se eu me punha com biocos.
Filipe de Rialva?! perguntou a rainha assim com mostras
de o conhecer...
Tantoo posso dizer a vossa majestade; eu só sei que ele
é Filipe.
A rainhao perguntou mais nada dele.
Mora daqui longe essa menina ?
É ali logo.
Pode lá ir uma carruagem ?
Indo pela banda de cima, estou que pode.
SEROES DA PROVÍNCIA
Ela estará amanhã só ?
De todo. Porqueo esperava que o padrinho viesse de
Braga.
Vou ficar hoje em casa do visconde de P., sabe onde é?
Perfeitamente, majestade, é logo ali — e apontei para o sítio.
Amanhã, a esta mesma hora, esteja lá para me guiar no cami-
nho. Vá com Deus.
Eu desviei-me da carruagem, que desapareceu em um abrir e
fechar de olhos.
Quando cheguei a casa e vi o Sr. José Urbano, fiquei atarantada
de todo, porque me lembrei que jáo podia ir buscar a rainha. Passei
a noite muito triste, e nem dormi, mas rezei muito a Nossa Senhora.
Hoje de madrugada, vendo partir o padrinho para a cidade,
fiqueio contente, que por poucoo me deu o sono. Boa te vai. Olha
agora se eu adormecia nesta ocasião, estava bem servida! E levan-
tei-me logo, e quando foram horas pedi à menina que me deixasse ir
a Braga comprar linho, mas fui ter com a rainha, que já estava à minha
espera. Pelos modos parece que também madruga, porque aindao
era meio-dia! Depois ela... a rainha... fez-me entrar na carruagem.
Oh! Eu bemo queria, maso houve de quê. Hem ? Que lhe parece ?
desta poucas se gabarão!o é assim? Ora aqui tem como a rainha
aqui veio ter.
Mas julgue como eu ficaria quando vi o Sr. José Urbano à janela.
Credo ! Fiquei sem pinga de sangue, e por poucoo caí redondamente
no chão. Decerto me valeu o meu padre Santo António. Também olhe
que uma aquela assim como esta poucas vezes acontece à gente. O que
me admirou foi o padrinhoo a conhecer. Agora, quando a vir em
Braga, é que há-de ser bonito. O major, esse logo vi que a conheceu;
porém, ela fez-lhe sinal, que eu bem reparei. Mas como veio o major
cá ter...? E como se arranjaram com o jantar? É verdade, ó menina,
quem fez aquela sopa, que... santo nome de Deus! por pouco meo
punha a boca em carne viva! Onde aprendeu a menina a cozinhar
aquilo ?
Maria Clementina sorriu-se a esta referência à açorda do major.
Mas naquele momento achava-se possuída de veemente desejo de
estar, e por isso voltando-se para Roberta, disse-lhe:
É necessário ir cuidar do chá do padrinho, que eleo tarda
por.; depois conversaremos.
Roberta retirou-se murmurando:
A rainha nesta casa e eu na carruagem da rainha! Quando
me lembro!
Maria Clementina ficou outra vez. Outra vez se deixou arre-
batar pelos devaneios da sua fantasia. Ficar, é a suprema feli-
cidade em situações como a sua. Escuta-se melhor o que murmura o
coração agitado, percebem-se todas as íntimas vibrações dos miste-
riosos sentidos de onde procedem os afectos. Nas trevas, em que a
SEROES DA PROVÍNCIA
imaginação de Maria Clementina se confundia, via raiar enfim um raio
de luz.o era pois ainda desesperada a sua situação. Seria possível
desanuviar-se-lhe o céu, para o qual jáo olhava com esperança?
o seria ainda a resignação a única arma que lhe podia dar a paz do
coração que perdera?
Tudo isto lhe propunha o pensamento, e entre estas questões
vacilava aquele pobre coração, que julgava ter abafado todas as espe-
ranças, e agora as via surgir de súbito umas após outras, a povoa-
rem-lhe de novo a fantasia, mais inquieta que nunca, e a seduzirem-na
com o esplendor do seu brilho, com o vivo de suas cores.
Como é ilusória a placidez dos vinte anos! O fogo latente alimenta
uma iminente erupção. Ó transparente máscara de sisudez posta
nestes lindos rostos de mulher, como ocultas mal os risos inquietos
que se agitam por debaixo! pensai, cismai, sonhai, imaginações juve-
nis ; pulsai, amai, corações virginais; a vida na vossa quadra é isto.
o há gelo que apague o fogo que vos escalda; e, se o sufocais com
gelo, funde-se em lágrimas e a paixão rebenta mais forte.
Deixemos Maria Clementina entregue aos seus pensamentos de
amor, acompanhem-na as imaginações dos leitores, mais capazes de
as seguirem, e vamoss a outro ponto, onde o desfiamento desta
narração nos chama.
Ao separar-se do major, perto da quinta onde devia pernoitar
a senhora de Lisboa, a que este chamara D. Joana, disse-lhe
ela, estendendo-lhe a mão:
Então ficamos nisto, major?
Pela minha parte prometo cumprir quanto V. Ex." me ordene.
o diga ordene, por quem é. Eu peço só...
o é o mesmo que ordenar ?
Bem, major,o insistamos em galanteios. Combinamos então
o major em colher informações de família. Eu em sondar o coração
de Filipe.
Eu posso dar a V. Ex." informações neste ponto.
Como?!
Filipe falou-me nesta inclinação, e confessou conservar da
pequena uma ideia muito superior à de todos quantos amores tem
experimentado. Mas V. Ex.' está resolvida...
A evitar que Filipe cometa uma deslealdade. Que quer, major?
meteu-se-me na cabeça fazer de meu filho um perfeito cavalheiro...
VOL. II3
VIII
O ENCONTRO INESPERADO
Eo lhe será muito difícil o empenho na execução, minha
senhora. Mas adiante, V. Ex.* e Maria Clementina serão tudo, menos
o fruto de alguma antiga árvore genealógica.
Olhe, major, euo tenho o defeito de me esquecer que meu
pai era um negociante da capital; e se o pai de Filipeo julgou deson-
rar-se, aliando-se com a minha família, eu renegaria a minha proce-
dência, se adoptasse esses preconceitos. Ora agora, para o mundo,
que para desculpar uma acção boa precisa de a explicar por uma
ideia interesseira, ficarei absolvida dizendo-se que os capitais de José
Urbano sossegaram os escrúpulos aristocráticos, que, como sabe, eu
nunca tive.
Bem, minha senhora. Agora, que recebi as suas instruções,
retiro-me e até à vista.
Conto com a sua aliança ?
De vida e de morte.
E o major despediu-se de D. Joana Rialva com a galantaria de
um perfeito militar; e montando a cavalo partiu em direcção a Braga.
Momentos depois estava D. Joana no salão do visconde de P...,
onde a aventura da estrada ainda era comentada com alegria. D. Joana
contou a seu modo o que lhe sucedera na visita que acabava de fazer,
inventando uma história de uma família desgraçada, que a exoneração
de um emprego público reduziu à miséria, e agradeceu a Filipe o
haver-lhe fornecido a ocasião de reparar um mal.
E . Ex.' visitou essa família?'—perguntou Filipe se é que
aeo exige que a trate por majestade também.
Nova hilaridade das senhoras do salão.
Visitei, e voltarei a vê-la. Assim lho prometi. Já agora quero
tomar a sério o papel de rainha. Imaginei que devia levar a feli-
cidade àquela família que assim recorreu a mim. Parece que andou
aqui ao da Providência. E tu, Filipe, terás também o teu papel em
tudo isto. Preciso da tua coadjuvação para secundar os meus pro-
jectos.
De todo o coração, minha mãe, lha prometo.
Reclamo já a tua companhia para a visita que tenciono fazer-lhe.
—Da melhor vontade... prometo.
Es todas vamos também exclamaram algumas senhoras.
o vai nenhuma. Eu quero continuar a ser suposta rainha,
e o riso das meninaso mo permitiria.
Prometemos estar sérias.
o creio na promessa. Desta vez irei eu só com Filipe...
E, combinando nisto, passou-se a conversar noutros assuntos,
a discutir toilettes, a planear projectos de passeios, voltando-se de
quando em quando ao objecto que evidentemente mais preocupava
D. Joana.
O dia seguinte foi de grande alvoroço para Braga. Todos os nossos
conhecidos; à excepção de Maria Clementina e de Roberta, andavam
SERÕES DA PROVÍNCIA
SERÕES DA PROVÍNCIA
envolvidos naquele mare magnum de povo, e tomando parte no
tumulto e agitação, em que a chegada de sua majestade lançou a popu-
lação de Braga.
Deixemos, porém, passar este dia, pois queo nos compete
tomar parte naqueles regozijos, e juntemo-nos às personagens desta
história no dia seguinte a esse para seguirmos a série de acontecimentos
que formam o entrecho desta narração.
O carro, que já uma vez havia conduzido D. Joana à quinta de
José Urbano, corria agora com ela e Filipe de Rialva pela estrada de
Braga na mesma direcção. O major encarregou-se de conservar na
cidade o proprietário da quinta, porque a visita evidentementeo se
destinava a este.
Rialva fazia notar a suae as belezas do caminho e exaltava os
encantos da província do Minho com um entusiasmo de artista.
Deve V. Ex." concordar que é uma aprazível província esta.
Os camposo jardins, os monteso cômoros de verdura, parece
que se sente tudo cantar e sorrir.
E efectivamente esta gente do campo é essencialmente amante
da música. Aindao cessamos de ouvir cantar.
Naquele mesmo momento uma fresca e suave voz de aldeã can-
tava em um campo:
Aquele que tanto amei
Esqueceu meu pensamento,
Como o rio esquece as rosas
Que retratou um momento.
É uma acusação de infidelidade disse D. Joana fitando em
seu filho um olhar malicioso, que esteo percebeu.
Mas que bonita voz a da cantora! Parece-me que ainda em
S. Carloso se ouviuo sonoro timbre.
Mais adiante uma lavadeira cantava em um ribeiro, vizinho à
estrada:
O amor que me juraste
Bem cedo o vi acabar,
Foi fumo de labareda
Que já se desfez no ar.
Outro queixume. Parece-me que a cada passo se ergue uma
voz a acusar a inconstância do coração.
É porque só os corações infelizes é que cantam; a alegria e
a felicidadeo mudas.
Ao voltar um ângulo do caminho era outra rapariga que fiava à
Porta, cantando:
O teu amor era falso,
Teve pouca duração,
Mas deixou mágoas eternas
No meu pobre coração.
SERÕES DA PROVÍNCIA
É singular! disse D. Joana com certa intenção. Parece
de propósito; sempre a mesma poesia. Nem que nos perseguisse uma
voz como a da consciência a acusar-nos de alguma culpa de incons-
tância. Ora dos dois, quem com mais alguma probabilidade poderá
ser acusado disso,o serei eu decerto. Se fosses tu, Filipe?...
Quem sabe, minha mãe? respondeu Filipe com uma serie-
dade queo estava em harmonia com o tom jovial em que D. Joana
lhe fizera a observação.
Ah! quem sabe ? Ninguém senão tu e a Providência, que
talvez esteja falando pela boca desta pobre gente. Só me admira que
fale no Minho para emendar o mal feito em Lisboa.
E se fosse o mal feito no Minho ?
No Minho? mas... ah? sim, tu estiveste alguns meses aqui.
Então, Filipe, por acaso inspirar-te-iam estas belas paisagens alguns
capítulos de romance? Porque moo contaste? Sabes que tudo
quanto escreves e contas me excita sempre interesse; pois nem te
lembras que até os teus trabalhos académicos eu gostava de ler? Nem
aos de matemática perdoava;o os decifrava, mas entendia-os.o
sei se me admites este paradoxo.
Eu sei, minha mãe, avaliar o seu muito afecto, mas que quer?
O conceito elevado que V. Ex.' na sua indulgência materna faz de mim,
lisonjeia-me tanto, causa-me tal orgulho, que recuo ante a ideia das
confissões que lhe podem lançar a mais leve sombra na imagem que
a sua muita bondade formou de mim.
Deve ser bem grave a culpa cometida, que assim te está cau-
sando remorsos.
Aindao pude avaliar toda a extensão e gravidade dela.
Porquê?
Porqueo pude saber ainda as consequências que resultaram.
E se eu exigir que ma confies ?
Basta que lhe diga, que essas cantigas populares que nosm
acompanhado, podem considerar-se como V. Ex.* disse há pouco, a
voz da minha consciência ou dos meus remorsos.
Remorsos! Repara queo a consequência de um crime. Por
acaso...
Pelas convenções sociaiso me pode ninguém chamar cri-
minoso ; mas por um outro código, pelo código da consciência, eu sou
acusado.
De que crime ?
De ter feito nascer uma paixão, prevendo quase que ela teria
de morrer sufocada, prognosticando-lhe o seu nenhum futuro.
E que motivos tens para julgar nela mais sincera essa paixão
do que o era em ti ? Vaidoso! Imaginas que ninguém te poderia acei-
tar a corte sem morrer de amores por ti?
Por um lado tem razão no que diz; mas um pressentimento...
Bem. A coisao passa de um pressentimento? Pois nesse
SERÕES DA PROVÍNCIA
caso oponho-lhe um outro pressentimento meu. Já nem sequer pensa
em ti essa em quem pensas ainda tanto. É o mais natural. Tranquiliza
os teus escrúpulos; mas parece-me queo te seria demasiado lison-
jeiro o convencimento desta verdade. Ora diz-me: tu ainda a amarás?
Julgo que não, minha mãe. Eu sinto-meo volúvel!
Mas como tu dizes isso! que ar de remorso! Nunca te acusaste
com tanta contrição do teu rompimento com a Alberta dos Prazeres,
com quem estiveste quase esposado. Ó Filipe, dar-se-á que o teu cora-
ção entre deveras nisso?
Quero acreditar que não, minha mãe. Seria uma calamidade.
Porquê ?
V. Ex.ª permite-me que fale francamente?
Ordeno-te.
Pois bem. É porque se eu me sentisse deveras apaixonado,
podia estabelecer-se entre mim e V. Ex." um conflito, do qual, fosse o
resultado qual fosse, eu sairia sempre com feridas queo sarariam
nunca, ou acabaria por lheo obedecer; e se o amor fosse verdadeiro,
sofrendo por ele, eu venceria a paixão, e nunca me perdoaria a deso-
bediência.
E qual a razão porque julgavas inevitável um conflito ? Essa
mulher era indigna de ti ?
A sociedade em que V. Ex." vive é de umas exigências ridí-
culas, mas a que se acostumam a obedecer os que a frequentam. Con-
veniências sociais. A mulher a quem me refiro era filha de um nego-
ciante de Braga.
o te sabia desses preconceitos heráldicoso arreigados!
Em mim? Engana-se, minha mãe, se eu fosse só... Mas sabe
que lheo quero dar desgosto...
Se meo engano, achamo-nos em frente da casa da família
que vamos socorrer.
Efectivamente a carruagem parou diante do portão da quinta
de José Urbano, e o boleeiro, apeando-se, puxou o cordão da sineta,
cujo ruído se fez ouvir ao longe, despertando os latidos dos cães, fiéis
guardadores daqueles jardins.
Passados tempos o portão abriu-se, e Roberta apareceu, depois
de perguntar de dentro quem era, com voz um pouco resolvida; ao
dar com os olhos na carruagem deu um salto, como se a picasse uma
víbora.
Vossa...—ia exclamar a pobre velha atónita.
Psiu! disse D. Joana, pondo o dedo na boca e com um
sorriso benevolente.
Roberta calou-se, mas, ao ver saltar Rialva do carro, fez um novo
movimento de surpresa.
Agora é o outro. Pelo que vejo eram grandes fidalgos ambos.
Rialva, que conheceu logo em Roberta a velha da estrada, pro-
curou tornar-se ouvido dela, dizendo à mãe, ao ajudá-la a descer:
SEROES DA PROVÍNCIA
Se vossa majestade se quiser utilizar do meu braço...
D. Joana sorriu, e saltando junto de Roberta, perguntou-lhe em
voz baixa:
Onde está a menina ?
Deve andar pela quinta. Eu vou chamá-la,
De modo nenhum. Iremos ter com ela.
Como vossa majestade quiser; nesse caso eu vou adiante.
Também não. Se me quiser antes fazer o favor de me prepa-
rar um copo de água chalada...
Com todo o gosto. Mas se vossa majestade se engana no cami-
nho?...
Melhor, mais tempo gozaremos da quinta.
E tomando o braço de Filipe, D. Joana desceu as escadas que
conduziam à quinta.
Sabe, minha mãe, que para um empregado demitido é esta
uma magnífica vivenda? disse Rialva, admirando o bom aspecto
de quanto o rodeava.
Restos de um bem-estai passado respondeu D. Joana, entra-
nhando-se em uma rua orlada de roseiras todas enfloradas.
Que deliciosa habitação! exclamava Rialva a cada passo.
Sigamos na direcção de onde nos chega o sussurro do cair
da água.
Rialva atrasara-se de D. Joana alguns passos de distância, tendo-se
demorado a colher um botão de rosa que se pendurava em uma das
ruas...
Preparava-se a apressar o passo para alcançar sua mãe, quando
viu esta voltar pé ante, e com ao nos lábios como a recomen-
dar-lhe silêncio.
Filipe parou.
D. Joana chegou-se a ele e disse-lhe baixinho:
Devagar, muito devagar. Dorme alguém ali adiante. Quero
preparar-te um belo espectáculo. Devagar!
E os dois caminharamo de manso, que mal se escutava o esta-
lar da areia da rua e de uma ou outra folha seca que o vento destacava
das árvores.
É agora disse D. Joana, desviando-se para deixar patente
a seu filho a vista do largo junto a uma pequena cascata, no qual
penetraram.
Rialva olhou e estremeceu de surpresa.
Reconhecera Maria Clementina adormecida.
Ae e o filho permaneceram silenciosos ante aquele espectáculo.
Quem o poderia concebero belo.
Languidamente recostada no banco rústico que existia ao lado
da cascata, conservara Maria Clementina uma posição naturalmente
artística, na qual lhe sobressaíam todas as formas elegantes e correc-
tas daquele corpo flexível e delicado.
SERÕES DA PROVÍNCIA
0 braço direito, dobrado sob a cabeça e um pouco descoberto,
exagerava pela flexão as curvas graciosas e suaves do seu regular
contorno; o esquerdo, pendente ao longo do corpo, permitia observar
umao encantadora.o era destas pequeninas mãos, galantes
como as de uma criança, e que se abrangem em uma só das nossas;
reconhecendo a graça desses modelos, confesso que me produzem
mais sensação as mãos como as de Maria Clementina. Algum tanto
compridas e estreitas, cobertas por uma pele alvíssima e transparente,
sob a qual se desenhava uma complicada rede de veias azuladas,
tinham estas mãos assim o que quer que seja de distinção e encanto,
que atrai as vistas, que as fixa, que as fascina.
Eu, a respeito de belezas femininas,o sou partidário ardente
do galante, do mignon, como os Franceses dizem; prefiro-lhe o ar de
dignidade e grandeza que se lê em certos tipos, temperado pelo que
possui de brandura todo o rosto de mulher verdadeiramente bela.
A cabeça de Maria Clementina, um pouco inclinada para trás, desco-
bria em toda a sua vantajosa forma, o colo, cuja transição para a face
e para os seios se fazia por curvaso disfarçadas e brandas, que a
vista insensivelmente deslizava por elas e perdia-se a divagar naque-
les lábios, que a respiração entreabria, pousava amorosamente nas
suas graciosas comissuras, que se elevavam em um quase impercep-
tível sorriso, nas pálpebras, que pareciam denunciar o fulgor dos olhos
que mal encobriam; ou baixava ardente como insinuando-se por entre
o corpilho do' vestido, que subia até ao pescoço, avaro das belezas que
ocultava, e como fascinada por aquele movimento cadenciado de um
respirar tranquilo.
Filipe de Rialva permaneceu por muito tempo nesta contemplação
sob a influência de um fervoroso sentimento de quase veneração. Sua
e olhava-o sorrindo.
É ela disse afinal Filipe, olhando para suae e ainda como-
vido por sentimentos encontrados que o dominavam.
Eu sei! respondeu D. Joana, continuando a sorrir.
Sabe?!
Bems que te trouxe aqui.
Mas... como foi isto?
Pediam justiça, enviaste a queixosa para mim, Eu prometi
fazê-la. A isso venho.
A fazer justiça?
Sim.
E o ofendido é...
É ela e o culpado és tu.o to diziam há pouco os teus remor-
sos, Filipe? Ao partires para Lisboa deixaste comprometida a repu-
tação desta menina.
Pois acaso...
Viram-te descer o muro do jardim...
Oh! meu Deus...
SEROES DA PROVÍNCIA
Desde então a sociedade escrupulosa obrigou-a a procurar
esta solidão. Deves supor se lhe terão sorrido os dias passados aqui.
E no entretanto tu esquecia-la na capital.
Oh! minha mãe... juro-lhe...
o jures, Filipe; ora para que vais tu jurar? Confessa, é
melhor; e arrepende-te, que é mais nobre.
Eu sou um miserável, minha mãe.
Que nomeo feio! Agora cais-me em um outro extremo.
É preciso emendar o mal feito.
E como ?
De uma maneira possível.
Pois quer...
Então que é? Hesitas em fazer justiça, quandoo hesitaste
em cometer a culpa...
E consente...
Ordeno, se ainda podem ter para ti valor as minhas ordens.
Mas essaso para mim uma bênção do Céu, creia-me!
exclamou Filipe, apoderando-se dao de suae e beijando-lha
com efusão.
Um movimento de Maria Clementina deu a conhecer que ela
despertava, enfim, de seu sono tranquilo ao rumor do diálogo, que se
travara entre D. Joana e seu filho. Esta correu ao encontro de Maria
Clementina, ocultando por este movimento a presença de Filipe.
V. Ex." aqui! disse Maria Clementina sobressaltada ao abra-
çar D. Joana.
Estava a gostar de a ver dormir...
E depois de a beijar afectuosamente, D. Joana afastou-se, desco-
brindo assim a figura de Filipe, que se conservara imóvel a distância.
Maria Clementina, dando com os olhos nele, estremeceu, excla-
mando :
Oh! meu Deus.
É meu filho disse D. Joana, beijando-a na fronte com cari-
nhosa solicitude.
Maria Clementina vacilou, deixou-se cair no banco em que esti-
vera sentada, e pelas faces, que passavam de uma súbita palidez a um
intenso rubor, deslizaram as lágrimas que lhe inundavam os olhos...
Nisto assomava na extremidade de uma das ruas a velha Roberta
com o copo de água e chá, que D. Joana lhe pediu.
Esta correu a encontrá-la para lhe encobrir a turbação dos dois.
Agradecida pelo incómodo que teve. Agora faz-me um favor?
Ajuda-me a cortar um ramo de japoneiras ? E aproximando-se de
Roberta, acrescentou a meia voz: Deixemoss os dois; este é o
tal alferes...
É este! disse Roberta, olhando para Filipe com olhos espan-
tados e com certa indignação. E logo foi a ele que eu...
Está bom, deixemo-los, que tudo se há-de arranjar.
SEROES DA PROVÍNCIA
Deveras ?
Comprometo a minha palavra.
E a palavra real .. disse Roberta.
Tem razão...o volta atrás terminou, sorrindo, D. Joana
de Rialva.
E D. Joana, conduzida pela velha, foi efectivamente cortar um
ramo de camélias, com grande orgulho de Roberta, que toda se des-
vanecia em estar colhendo flores para sua majestade.
Filipe e Maria Clementina, ficaram. Esta, vendo afastar-se
D. Joana, levantou-se para segui-la; mas viu diante de si Filipe ainda
imóvel e atencioso, e as forças faltaram-lhe, deixando-se cair de novo.
Ainda poderei esperar de si a minha absolvição, Maria?
disse Filipe aproximando-se da donzela.
Pois eu já o acusei ? respondeu timidamente Maria Clementina.
Acusa-me a consciência.
De que o acusa então? de me ter mentido?...
Não, que lheo mentia, quando lhe disse que a amava...
Então ? De me ter esquecido ?
Também não. Podia eu esquecê-la?
o sei. Mas de que o acusa a consciência? diga.
Deo ter sido eu próprio que há mais tempo tivesse vindo
oferecer-lhe a reparação do mal que lhe fiz.
Do mal ? Pois sabe se me fez mal ?
Sei. Soube-o agora... de minha mãe.
Entendo. E vem ofecerecer-me uma reparação?
Era o meu dever, mesmo quando...
É uma generosidade. Mas oiça-me disse Maria Clementina,
levantando-se e caminhando para Filipe, com uma resolução que contras-
tava com a sua timidez de há pouco. Euo posso aceitar um sacrifício.
Um sacrifício...
Olhe, Filipe, um ano de solidão faz-nos pensar com madureza.
Há um ano receberia com alvoroços de alegria as palavras que me
disse. Hoje não. Sou culpada para com o mundo. Que me importa!
Sou inocente para com a minha consciência. Mas quando mesmo esta
me acusasse, acredite queo me moveria a aceitar de si isso que chama
o cumprimento de um dever. Deveres! Quem lhos impôs ? A socie-
dade? Euo lhe pedi que advogasse a minha causa. Eu? bem vê que
não. Tranquilize os escrúpulos da sua consciência; se é ela que o
impele a esse passo, desista de obedecer-lhe; eu absolvo-o de toda
a responsabilidade. Obrigada, Filipe, mas bem vê queo devo aceitar,
E se a voz da consciência se harmonizar neste caso com a do
coração ?
E quem mo há-de assegurar? disse Maria Clementina, vol-
tando à sua anterior confusão.
Incrédula? Exigir provas é renegar a persuasão do amor.
Sabe porque há um ano me acreditava e hoje duvida?
SERÕES DA PROVÍNCIA
Porque se passou um ano! E que ano, Filipe ! que experiência
colhida nestes doze meses passados as com o meu pensamento e
com o desprezo dos outros...
Do desprezo, pois acaso...
Oh!o julgue que lhe falei nisto como uma arguição.o
era o que mais me fazia sofrer esse desprezo; esquecia-me dele. Outra
causa movia as minhas lágrimas.
E era?
Maria Clementina calou-se embaraçada.
Filipe aproximou-se dela, e tomando-lhe ao insistiu:
O que a fazia chorar então, Maria?
Maria Clementina levantou os olhos húmidos de lágrimas e com
um sorriso angélico respondeu suspirando:
E pergunta-mo ? Chorava, chorava de saudade.
Pois lembrava-se de mim?...
Duvida, e quer que acredite no seu amor!
Se eu era indigno de tanto! E agora...
Agora ?
Porque mudou de pensar ?
Porque mudei ? Eu mudei 1 E julga que posso deixar de acre-
ditar ; julga que me restam forças para resistir a uma tentação! Devia
pedir-lhe misericórdia, mas... Nem sei... Olhe, que exige de mim?
que diga que o amo?... Pois sim, amo-o, amo-o. Que mais quer? É a
minha perdição talvez.
É a sua salvação, minha filha disse D. Joana, que se aproxi-
mou de Maria Clementina e a apertou nos braços.
Nisto ouviu-se tocar a sineta do portão.
IX
EXPLICAÇÕESO HÁ JUSTIÇA COMO A JUSTIÇA
DE SUA MAJESTADE
O
S sons vibrantes da sineta interromperam de chofre as carinhosas
efusões de D. Joana e Maria Clementina, que se olharam como
se perguntassem uma à outra quem será?
Em seguida novos e mais rápidos sons se fizeram ouvir, ecoando
pelo jardim, indicando que quem tangia a sineta queria ser ouvido e
tinha pressa de transpor o portão.
Quem será disse Maria Clementina queo apressado
se mostra?
Deve ser respondeu D. Joana seu padrinho e o major,
que ficou de estar aqui com ele por estas horas. Filipe conservar-se-á
por enquanto aqui fora; a menina quer-me acompanhar ao encontro
dos recém-chegados ?
Maria Clementina cedeu o braço a D. Joana, que, apoiando-se
nele, caminhou na direcção do portão.
Vamos trabalhar no seu futuro; quero dispor tudo antes de partir.
Pois quando parte ?
Depois de amanhã.
?o cedo.
Assim me é indispensável. Mas em breve a tornarei a ver em
Lisboa.o é verdade?
Em Lisboa?... —disse Maria Clementina, corando.
Sim, e bem junto de nós. Sempre desejei ter uma filha. Dou
graças por me deparar umao boa.
Oh! minha senhora exclamou Maria Clementina,o
podendo conter o seu reconhecimento e apoderando-se-lhe da mão,
que beijou comovida.
Vejo que me aceita por mãe... Obrigada.
E é a senhora que me diz obrigada? A mim, que pela primeira
vez conheço a ventura que há em ser filha!
Pobre menina. Mas vamos,o nos sensibilizemos, que esta-
mos próximos ao último ataque decisivo.
Esta observação foi sugerida a D. Joana pela vinda de José
Urbano, que na companhia do major se aproximava delas.
Que agradável surpresa! V. Ex." aqui ?
É verdade, Sr. José Urbano. Espero que me perdoará esta
invasão da sua propriedade.
Oxalá que ela se reproduzisse.
Mas veja queo me retiro sem paga! acrescentou, mos-
trando-lhe o ramo de camélias que colheu.
É na verdade só agora que principio a conhecer o preço dessas
flores...
A benevolência do proprietário anima-me a confessar-lhe que
as minhas intençõeso mais longe. Premedito um roubo de mais
valor.
V. Ex.'?
É verdade, e receioo lhe encontraro boas disposições
de mo perdoar como agora.
Deveras ! respondeu José Urbano, sorrindo.
Vou fazer-lhe a confissão dele, se me quiser ouvir.
Com a melhor vontade. Quer V. Ex.* entrar?
Aceito. Venha, major.
Pois também entro na confidência ?
o o dispenso.
Maria Clementina deixou-se ficar um pouco atrás, enleada e con-
fusa, porque previa do que se ia tratar.
SEROES DA PROVÍNCIA
SERÕES DA PROVÍNCIA
D. Joana aproximou-se dela e disse-lhe a meia voz:
Poupo-lhe o dissabor de assistir ao processo; dentro em pouco
lhe comunicarei a sentença.
Maria Clementina retirou-se.
José Urbano, D. Joana e o major entraram no salão.
José Urbano tinha um ar prazenteiro, o major puxava o bigode
com certo embaraço, D. Joana meditava um plano de campanha.
Sentaram-se todos.
Sr. José Urbano, euo sou partidária dos rodeios. Costumo
ir direita ao fim. O roubo que eu lhe premedito fazer é nada menos
que o de sua sobrinha.
De minha sobrinha! repetiu José Urbano, entre sério e
risonho, como se esperasse a explicação destas palavras.
É verdade. Queria pedir-lha para filha.
Como?!...
Imagine, Sr. José Urbano, que eu tenho um filho por quem
sou doida, perdidamente doida, e que concebi que era Maria Clemen-
tina a mulher que lhe podia dar a felicidade que eu ambiciono para ele.
José Urbano olhava estupefacto para D. Joana, como seo
tivesse compreendido.
Então diz V. Ex.* que...
Que lhe peço ao de sua afilhada para...
Mas um projectoo pouco meditado...
Talvez menos do que julga.
Menos do que julgo... disse José Urbano com manifesta
intenção. Seja assim; mas o que V. Ex.* me pedeo pode realizar-se.
Que diz, Sr. José Urbano ?!o posso acreditar que me negue
a satisfação de obter o que lhe peço, porque já considero sua sobrinha
como minha filha muito amada.
o duvido; mas Maria Clementina, que é um anjo,o pode
casar com o filho de V. Ex.", porque se opõem a isso... circunstâncias
e melindres que é necessário respeitar.
E José Urbano carregou de tal maneira o semblante, que parecia
indicar à sua interlocutora queo continuasse a falar-lhe naquele
assunto.
D. Joana, porém, pareceuo atentar nisso, e, mostrando-se
risonha continuou, dizendo:
Parece-me compreender, Sr. José Urbano, que tem receio
de meu filhoo ser digno de sua sobrinha, nem capaz de a
fazer feliz.
o é isso, minha senhora interrompeu José Urbano, com
vivacidade.o motivos particulares, que dizem respeito a uma
pessoa de minha família, que jáo vive e a quem muito amei.
Mas disse D. Joana seo há desonra para sua sobrinha
no enlace dela com meu filho, porque me recusa a sua mão? Dar-se-á
que a destine para outro mais digno que meu filho ?
SERÕES DA PROVÍNCIA
o destino, não. Enfim disse José Urbano, um pouco enfa-
dado acabemos com isto. Para V. Ex.* conhecer a razão da minha
negativa, era necessário contar-lhe a minha e a história de minha irmã,
queo vive há muito e a quem amei extremosamente. Essa história
cansará a paciência de V. Ex." e do sr. major, que desejo poupar...
Conte, conte disse D. Joana que nos dará com isso muito
prazer.o é assim, major?
Decerto respondeu este porque estou ansioso de a
ouvir.
O rosto de José Urbano empalideceu e mostrou-se anuviado de
tanta tristeza que causou profunda impressão em D. Joana e no major.
Seja como querem disse por fim José Urbano, depois de
ter estado algum tempo silencioso, e como que invocando as recorda-
ções do passado. É doloroso avivar feridas que desejo cicatrizadas,
maso tenho outro meio de acabar com isto. Oiçam:
«Quando minhae morreu, tinha eu vinte anos. Foi em 1818.
Até, vivera eu como rapaz.
«De pequeno senhor de minha vontade, euo sabia o que eram
sujeições e constrangimentos. Minhae era uma santa mulher,
que vivia absorvida entre as suas devoções e as suas economias. Os
pequenos haveres em bens rurais, que meu pai deixara ao morrer,
eram por elao bem administrados, que nunca a menor sombra de
privações nos veio amargurar a vida.
«Quando morreu, achei-me eu à testa da família. Minhae
tinha-me dito pouco antes: «Tenho-te deixado gozar da tua vida de
rapaz, porque bem sabia que dentro em pouco terias de renunciar a
ela. Vê se compreendes o teu dever. Deixo-te uma irmã de oito anos.»
«Aterrou-me ao princípio esta responsabilidade, e o novo encargo
fez-me pensar seriamente. Obedeci a minha mãe; desde o dia da sua
morte, abandonei a companhia dos meus companheiros de prazer, e
votei-me de coração ao trabalho. Sentia-me recompensado com a alegria
que experimentava quando podia dar um vestido novo a minha irmãzita.
«Cedo as minhas ambições principiaram a crescer. É sempre a
mesma história. Já meo contentava com os modestos mas conti-
nuados proventos que tirava do meu negócio de cereais. Queria
lucros mais visíveis.
«O Brasil principiou-me então a sorrir com as suas promessas
de riquezas, com que a tantos atrai.o descansei mais enquanto
o realizei o meu intento. Regulei com um negociante meu amigo uma
mesada a minha irmã, e deixei-a em companhia de Roberta, que foi
ama des ambos, e parti.
«Seria curiosa e rica de experiência a história da minha vida no
Rio de Janeiro, se o contá-la meo afastasse do fim que tenho em
vista. Basta que diga que trabalhei! Trabalhei deveras.o me fazia
hesitar qualquer trabalho, por penoso que fosse. Recusava apenas
as empresas menos honestas.
SEROES DA PROVÍNCIA
«Tive que sofrer e muito. Estive no Brasil por ocasião da guerra
da independência. Basta que diga isto. Mas a minha perseverança
valeu-me eo me deixou soçobrar. No fim de seis anos, aumentava
consideravelmente a mesada a minha irmã. No fim de oito, podia-me
dizer rico. Mais um ano no Brasil, e voltarei para Portugal, disse eu
comigo.
«Não havia dia em queo pensasse nisto com entusiasmo.
«Por meados de 1833, andava eu tratando da liquidação, quando,
ainda me lembro bem, recebi de Portugal uma carta tarjada de preto.
Abri-a a tremer. Era do negociante meu amigo, participando-me que
minha irmã que havia tempos se achava incomodada, morrera no
dia 23 de Julho de 1833, apesar de todos os socorros da medicina.
«Não posso dizer como fiquei quando li esta carta. Caí em tal
abatimento, que os médicos agouraram mal da minha vida. Aconse-
lharam-me ares pátrios. Mas eu jáo tinha coração para voltar aqui;
ao mesmo tempo, a minha vida no Rio de Janeiro era-me insuportável.
Terminei a liquidação do meu negócio, e fui viajar.
«Percorri a Europa; durante quatro anos, vivi vida errante e
aventureira. No fim deste tempo, conheci que estava cicatrizada a
chaga do meu coração, e principiaram a crescer em mim uns vee-
mentes desejos de voltar à minha terra. A mesma saudade me cha-
mava.o pude resistir-lhe. Entrei em Portugal em 1837. Quando avis-
tei a casa onde eu nascera e onde vivi com minha irmã, senti uma pro-
funda comoção interior. Vir encontrá-la vazia, sem aquela linda menina,
que eu deixara de dez anos a brincar, que viera à janela ver-m-e dobrar
a esquina quando eu parti, para ao tornar a ver! E, pensando isto,
eu parei defronte da casa a olhá-la e sem forças que me levassem mais
adiante. Quando de repente que ilusão aquela, meu Deus ! — a mesma
janela se abriu, e ela... a minha irmã,o pequena como eu a deixara,
se encostou ao peitoril, olhando-me exactamente como me olhava dantes.
«Euo pensei no impossível da visão. Acreditei nela. Corri,
corri como um louco, e bati à porta, gritando; Eu logo vi queo
podia ser.
«—Abre, Roberta, abre... minha irmã ainda está viva!...
«Roberta veio-me abrir a porta a tremer.o sei como ela me
reconheceu nem o que me disse. Eu estava alucinado.
«—Deixa-ma ver, deixa-ma ver. Para que me tinham dito que
ela morrera?
«Não posso dizer como corri e o que se passou; lembra-me que
dentro de pouco tempo eu abraçava e beijava uma bonita criança de
dez anos, julgando beijar minha irmã. E ela também me abraçava,
sorrindo e a chorar... a pobre pequena. Porém, a ilusão passou; a
razão voltou-me, e reconheci que havia nisto tudo um engano. Mas a
semelhança era tanta! Um ar de tristeza se apoderou de mim; e vol-
tando-me para Roberta, que chorava a um canto, perguntei-lhe:
«—Quem é esta menina, Roberta?
«—É sua sobrinha, filha de sua irmã.
«Dei um salto, como se aquelas palavras me atravessassem o
coração. Um relâmpago terrível me iluminou o espírito; ia a passar
das carícias talvez a alguma crueldade, quando aquele anjo, ouvindo
as palavras de Roberta, exclamou:
«Ai, pois é este o meu tio! e saltou-me ao pescoço, bei-
jando-me com meiguice. Desarmou-me; desatei a chorar, eo pude
deixar de a apertar ao coração.
«Passados poucos instantes, Maria retirou-se para ir buscar flores,
disse ela, e eu fiquei só com Roberta. Voltou-me o ar sinistro que aquela
criança me havia conjurado, e disse a Roberta que me contasse a his-
tória de minha irmã. A história era curta.
«—A infeliz foi enganada por um infame, que, abusando da sua
inocência, fora a causa do seu infortúnio e da sua morte.
« E era assim que vigiavas pela irmã que eu te confiei, Roberta?
«A pobre mulher respondia-me chorando.
«Mas a voz da minha consciência acusava-me mais do que a ela.
Eu é queo devia ter abandonado a irmã, para satisfazer ambições
desmedidas. Agora, cumpre-me chorá-la e proteger a filha melhor
do que a protegera a ela. Pobre criança! Quem podia deixar de que-
rer-lhe ? Ela reproduziu-me as venturas que eu julgava perdidas para
sempre. Nela cri renascer minha irmã. E por isso a amei. Amei-a logo
e cada vez mais! E veja como parece a sorte perseguir-me; durante
meses que tive de passar no Porto, por pouco ao ia sacrificando,
e lhe causei, sem querer, um mal irremediável! Está terminada a his-
tória de Maria Clementina.
«A sorte infeliz da minha irmã era muito notória, para que eu
pudesse viver feliz na minha terra. Vim por isso para Braga, deixando
Barcelos, onde nascera, com vivas saudades.»
Barcelos! exclamou o major, que havia momentoso podia
dissimular a sua agitação.
Sim respondeu José Urbano julgava ter já dito que tinha
sido em Barcelos que eu nasci. Agora, já vê V. Ex.* a razão por que eu
há pouco lhe dizia que a proposta que se dignou fazer era impossível.
Maria Clementina é filha ilegítima e euo conheço seu pai.
o conhece? perguntou D. Joana com interesse.
Nunca me puderam dar sinais dele. Em Roberta encontrei
sempre uma reserva, nesse ponto, que me fez julgar ser recomenda-
ção de minha irmã. Sei apenas que era um militar, um dos muitos que
por aqueles tempos (foi em 1832) cobriam o reino. Era vida de guerra
a de então... algum aventureiro, que nunca mais se lembrou da vileza
que cometera, nem talvez mesmo ao cair no campo atravessado por
uma bala inimiga.
Sua irmã chamava-se... ? perguntou o major com voz
alterada.
Maria Luísa respondeu josé Urbano.
SEROES DA PROVÍNCIA
O majoro se pôde vencer. Olhando para Maria Clementina,
que passeava então no terraço adjacente, exclamou, juntando as mãos:
Justo Deus ! pois eu tinha uma filha ?
Esta exclamação do major fez estremecer José Urbano, que empa-
lideceu. D. Joana ergueu-se também sobressaltada.
Sr. José Urbano disse o major, comovido — o militar, o
aventureiro, o miserável que acusou, sou eu;o ficou atravessado
por uma bala no campo de batalha, mas por muito tempo se conser-
vou em um leito de doença, e quando se ergueu foi seu primeiro pen-
samento a mulher que verdadeiramente amara; disseram-lhe que tinha
morrido, mas nunca ele soube que lhe ficara uma filha. Ai, se o sou-
besse ! Eu, que tantas vezes me atormentava na minha solidão vazia de
afecto... Se eu suspeitasse que existia na terra aquele anjo!—E o
major juntava as mãos, olhando para Clementina.
José Urbano conservava-se mudo e taciturno.
Quando mesmo Maria Clementinao tivesse achado um pai
disse D. Joanao julgue que eu desistiria do meu pedido,
Sr. José Urbano. Mas agora parece-me que cessam da sua parte todos
os escrúpulos.
José Urbano ergueu a cabeça e, fitando o major, disse:
Ainda bem, major Samora, que só nos reconhecemos na idade
em que se apagaram os fogos da juventude; ainda bem.
Então, é a ambos que peço ao de Maria Clementina para
meu filho... —disse D. Joana; seja esta união a que faça desvanecer
a nuvem que parece meter-se entre os senhores. Dêem as mãos como
amigos. Vamos.
O major ficou quieto, e José Urbano caminhou para ele com as
mãos estendidas.
Acredito, major, que foi leviano, maso foi vil. Minha irmã
mandar-me-ia perdoar.
Os dois apertaram as mãos.
Dentro em pouco tempo, eram tudo abraços na sala de José Urbano.
A um sinal de Joana, Maria Clementina entrara em casa, com o
coração alvoroçado e as faces tingidas de rubor.
Filipe, que entendeu também o sinal de sua mãe, seguiu a pequena
distância. Quando Maria Clementina entrou, D. Joana foi-lhe ao encon-
tro e, tomando-a pela mão, levou-a junto do major.
É de justiça que seja para o major o primeiro abraço disse
D. Joana.
O major tremia ao abrir os braços a Maria Clementina, e a custo
exclamou:
Minha filha!
Maria Clementina olhava com estranheza.
José Urbano disse-lhe, comovido, apontando para o major;
Podes abraçá-lo, Micas, é teu pai...
Filipe entrou neste momento.
SEROES DA PROVÍNCIA
SEROES DA PROVÍNCIA
Maria Clementina achava-se nos braços do major, desfeita em
lagrimas, mal compreendendo ainda o que se passava.
Samora, queo se fartava de a abraçar, disse, meio a rir meio
a chorar, para Filipe, que o olhava estupefacto:
É o complemento daquela minha história; eu tinha uma filha..
Era esta... este anjo.
Como vamos ser felizes todos!
José Urbano aproximou-se de Filipe, e disse-lhe:
E tem fé que a tornará feliz ?'
Quanto a puder fazer um amor verdadeiro.
Orao desanimem então.
Imaginem as efusões mútuas que se seguiram.
Ao entrar Roberta na sala, o major foi-lhe ao encontro,
exclamando:
Roberta! Lembra-se ainda do alferes Clemente Samora?
Santo nome de Deus! Que nome foi dizer! exclamou a velha,
olhando para seu amo com ar de mistério e susto.
Saiba que ele vive ainda, e que encontrou sua filha, a qual
abraço agora...
Quê?... pois então... É verdade que tem avultações. Mas...
santo nome!... Santo... então?
Então, este dia é um dia de ventura. Achei minha filha, e exac-
tamente na ocasião de encontrar também um filho no melhor rapaz
do exército.
Oh! major!
Os dois militares apertaram as mãos afectuosamente.
Ah! pois já está tudo arranjado? exclamou Roberta, exul-
tando de contente.
Tudo, graças ao seu expediente, Roberta. Pode ufanar-se de
ter feito a felicidade de seus amos.
Como ? perguntou José Urbano.
Ora como? disse Roberta indo a fonte limpa. Quem pode...
Psiu!... disse D. Joana, olhando-a com mistério.
Ah! pois eleo sabe ainda? murmurou Roberta, olhando
para seu amo com ar de mistério.o importa; euo posso deixar
de bradar: Viva sua majestade a rainha!
A saudação foi jovialmente acolhida.
Do mais que se seguiu, deixo-o a imaginação do leitor con-
cebê-lo.
D. Joana partiu no dia seguinte para Lisboa.
O major Samora, Filipe, José Urbano e Maria Clementina segui-
ram-na passados oito dias.
O casamento fez-se na capital, onde os noivos ficaram residindo
na companhia do major, que remoçava com o inesperado sucesso, e
recebendo visitas amiudadas de José Urbano, que reside ainda em Braga.
Roberta vive na firme persuasão que foi a rainha D. Maria II" quem inter-
SERÕES DA PROVÍNCIA
veio no casamento dessa menina, e toda ufana repete muitas vezes,
com grande prazer de José Urbano:
Aqui está quem deslindou este negócio todo.o fora eu,
que ainda hoje estaríamos como dantes; eu nem sei o que seria,o
há justiça como a justiça de sua majestade.
AS APREENSÕES DE UMAE
O me consta que tenha existidoeo extremosa, e talvez
o excessivamente indulgente, como o era a Sr." D. Margarida,
de Entre Arroios, na época em que, voltando eu de uma pequena
digressão pela província do Minho, tive a fortuna de ser recebido
como hóspede em casa desta senhora, a meio caminho do Porto a
Braga, um quarto de légua afastada da estrada principal.
Era uma época de crise para a fidalga, como por lá lhe chama-
vam todos os vizinhos, esta a que me refiro. Dias antes haviam as
cortes decidido e qual é a casa rica de província queo tem o seu
pequeno parlamento ? que o menino Tomás, o qual então contava
já quinze anos feitos, seguisse estudos em Coimbra.
Discutia-se, porém, ainda acaloradamente a escolha da faculdade.
O abade, egresso do convento de Santo Tirso, jovial como uma
anacreôntica, gordo como o primeiro prémio de uma exposição agrí-
cola na secção gado suíno votava pela de teologia; o doutor, homem
de emaranhados discursos, recheados de cujos e supraditos e rábula
por amor da arte, insistia na de jurisprudência; e o médico, origi-
nal de curtas falas, mas, em compensação, de bem compridas pernas,
que dizia parada a ciência desde os seus bons tempos de Universidade,
e parecia querer-nos dar a entender que escutara então dela a última
palavra, antevia um futuro brilhante para o jovem morgado na car-
reira clinica; mais generoso do que nenhum, apoiava este projecto
de lei com a promessa da sua livraria, curioso museu de antiquá-
rio, coberto de uma camada de pó semi-secular, e na qual a traça
imperturbável prosseguia lentamente todos os dias uma obra de des-
truição.
A faculdade de Matemática era a únicao representada; e os
s membros deste erudito congresso, em tudoo divergentes,
SERÕES DA PROVÍNCIA
viam-se só unânimes ao reconhecer que elao merecia, de facto,
entrar em linha de conta.
No nosso país, um matemático dizia o doutor, concorda-
vam o médico e o abade, e eu quase estive tentado a concordar tam-
mo tem uma posição segura e definida. Os nossos governos
encomendam as estradas aos enxurros, e as pontes fazem-se quando
os ventos derrubam os troncos das árvores através das correntes dos
ribeiros.
E o coro entoava um anátema às estradas, às pontes e ao Governo.
Isto era em 185...
A Sr.» D. Margarida, essa fazia dos matemáticos uma ideia horro-
rosa, pouco superior à que formava dos lobisomens, para que
tomasse a peito defender a ciência de Newton e de Laplace da exco-
munhão lançada contra ela por este sapientíssimo triunvirato.
E todos os dias se reproduziam de parte a parte os mesmos argu-
mentos ; todos os dias, como nos tribunais, a discussão percorria
sucessivamente seus diferentes graus: principiando pela argumenta-
ção pausada e razoável, passando à réplica tumultosa, em seguida,
confundindo-se em acaloradas vozearias, e terminando, enfim, pelas
mais aguçadas alusões e as mais descompostas diatribes. Os conten-
dores todos os dias se retiravam vermelhos, suando, resfolegando
como touros no circo; a Sr.ª D. Margarida adiava a sessão para a noite
imediata; e o menino Tomás, causa inocente de tantas iras, continuava
dormindo sossegadamente sob os tectos paternais, apesar dos quinze
anos feitos.
Recomendado à dona da casa por um seu amigo íntimo de Braga,
mereci a honra de ser imediatamente posto ao corrente da questão,
e, o que mais é, convidado para intervir nela. Quis recusar-me a esta
lisonjeira prova de consideração, mas debalde o tentei; e afinal reco-
nheci que bem necessária seria a minha intervenção, pois via os liti-
gantes cada vez mais longe de se encaminharem a um acordo.
Convocou-se, portanto, nova reunião para o dia seguinte ao da
minha chegada, que se efectuara no fim da tarde de um magnífico dia
de Julho, e depois de aturada conversa com a minha atenciosa hospe-
deira, na qual ela mes ao alcance de todas as suas tribulações
domésticas, tais como: a impertinência das criadas, o arejo das bata-
tas, o vinho que se lhe azedara, um muro que tinha desabado con-
segui, após várias tentativas infrutuosas, dar-lhe as boas noites. Reti-
rei-me para o quarto que me fora indicado, pensando comigo mesmo
comoo depressa me achava envolvido em um negócio de família,
deo pequena gravidade, e árbitro dos destinos de uma criança,
que nem sequer tinha ainda visto.
A janela do aposento, onde pernoitei, dava para um bem provido
pomar, glória da Sr.* D. Margarida, que se ufanava de possuir as mais
deliciosas laranjas e os mais saborosos pêssegos de toda a província;
e destes últimos bem gratas recordações efectivamente me ficaram!
SERÕES DA PROVÍNCIA
A noite estava belíssima. Era uma destas abafadas noites de Estio,
em que somos, quase irresistivelmente, levados para a contemplação
do espectáculo do céu, sem nuvens nem estrelas, e da terra inundada
por um luar magnífico de reflexos surpreendentes.
Apaguei a luz, e, encostado ao peitoril, esqueci-me durante
horas a olhar para o que via diante de mim, e a pensaro sei em
que , se é que pensar se chama àquilo.
Desta contemplação fui afinal despertado por o ruído de uma
janela, que se abria cautelosamente. Movida assim a minha curiosidade,
pus-me a observar o que se passava.
A posição era favorável a esta inocente espionagem. Uma rápida
descrição topográfica do lugar o mostrará claramente.
A casa de Entre Arroios, edificada nos princípios do século pas-
sado, conservava ainda, apesar das sucessivas mudanças que o espí-
rito de reforma de D. Margarida lhe havia introduzido, o aspecto pesado
e quase lúgubre das construções daquela época no nosso país.
A fachada principal ostentava, heràldicamente combinadas, as
armas da família, tidas pela gente do lugar como uma das principais
glórias da sua terra. Duas largas pilastras de granito corriam, livres
de oca e de argamassa, ao longo desta fachada, desde a sólida cornija
que sustentavam em floridos capitéis, até aos alicerces sobre que
se apoiavam os pedestais enegrecidos. Para a parte posterior pro-
longavam-se os corpos laterais do edifício em alas paralelas, abran-
gendo por esta forma um espaço quadrangular, onde um dos ascen-
dentes de D. Margarida plantara o pomar a que já me referi e que com
tanta dignidade sustentava nos mercados a boa fama da horticultura
minhota.
Subindo três degraus de pedra, já meio gastos pelo uso, e trans-
pondo uma porta envidraçada, entrava-se do pomar, por o corpo
central da casa, para a sala de jantar; no mesmo correr eram a cozinha
e despensas, e para outro lado o salão das recepções solenes, ordina-
riamente fechado.
No andar superior eram os quartos de D. Margarida, os quais
abriam para uma ampla varanda de bem torneados balaústres, onde
vegetavam em vasos de louça as flores predilectas da senhora; era
também aí a sala dos serões familiares, e finalmente o quarto de Tomás.
Este ficava situado em um dos ângulos do quadrilátero e imediato ao
corpo lateral do edifício que fora destinado para capela.
Durante as devastações que o País sofrera nas sucessivas guerras
civis dos últimos períodos da nossa história, a casa de Entre Arroios
o fora mais do que as outras respeitada, e os estragos que, no resto
da habitação, tinham já sido cuidadosamente reparados, conserva-
vam-se ainda visíveis no pequeno templo, onde havia muito seo
exercia por isso o ofício divino.
As janelas que deste templo deitavam para o pomar, uma das
ais ficava muito próxima e subjacente à do quarto de Tomás, mos-
travam ainda os grossos caixilhos de ferro despovoados de vidros,
e já em parte atacados pela acção corrosiva do tempo.
Finalmente, do lado esquerdo, em simetria com a capela, pro.
longava-se um pequeno pavilhão, originariamente destinado para
alojar os hóspedes, que, recebidos e gasalhados na casa de Entre
Arroios com proverbial cordialidade, ficavam, contudo, como urn
natural e delicado pudor de ménage, um tanto afastados do seio íntimo
da família,o a constrangendo assim a alterar os hábitos domésticos,
que, e na vida de província principalmente, nunca se sacrificam sem
dolorosa violência.
Foi neste pavilhão que me prepararam aposento, e de, oculto
pelas folhas de uma laranjeira ao alcance do meu braço e através dela,
podia eu pois descobrir toda aquela parte da casa que, por mais
vezes habitada,o era, como esta,o oprimida pela exuberância da
vegetação.
Foi, pois, desta situação vantajosa que me dispus a averiguar a
causa do ruído, proveniente, ao que parecia, do lado exactamente
oposto àquele que eu ocupava.
o havia dúvida. Uma das vidraças do andar superior abria-se
vagarosamente. Era a do quarto de Tomás.
Ora, segundo o que me tinham dito dele naquela noite, descul-
pando-lhe a ausência, Tomás achava-se algum tanto incomodado e
deitara-se mais cedo do que o costume. Seria pois aquele movimento
filho do delírio da febre?
Foi o meu primeiro pensamento, e tive tentações de excitar o
alarme; mas, ponderando melhor, resolvi-me a expectar.
Já então estava convencido, e depois tenho mil vezes confirmado
a observação, queo, de ordinário, gente mais importuna do que
as pessoas chamadas serviçais.
Passado assim algum tempo, vi uma forma escura desenhar-se
noo da janela, crescer, crescer e, com grande terror meu, erguer-se
sobre o parapeito, como tentando precipitar-se.
o sei como pude reprimir um grito de susto: a ideia de suicí-
dio fez-me arrepiar os cabelos.
Cedo, porém, e com uma presteza que deixava suspeitaro ser
a primeira vez que executava a manobra, o vulto, firmando-se nos lavo-
res salientes da ombreira e daí num cano de ferro que descia do
telhado ao pátio, junto ao ângulo da parede, transportou-se para o
jazente da janela do templo, que lhe ficava próxima, mas em plano
inferior ao do quarto.
Depois, segurando-se aos varões de ferro dos caixilhos vazios,
deixou-se resvalar até encontrar com oss uma fenda ou desi-
gualdade,o sei se natural, se artificialmente praticada na parede,
e, enfim, por uma evolução, que a sombra projectada pelas árvores
meo deixou perceber, cedo tocava a relva, com tanta felicidade e
prontidão, que, sem hesitar, abandonei a ideia primeiro sugerida, por
SERÕES DA PROVÍNCIA
me parecer tal ginástica muito aperfeiçoada para um sonâmbulo ou
febricitante.
Aquela sombra, ou antes aquele corpo, desde que se viu em terra,
parou como escutando se tivera sido pressentido; afastou-se alguns
passos e voltou de novo, passando em revista todas as janelas com
escrupulosa atenção; porém, esquecendo-se neste exame exactamente
da única, que o havia traído, a do meu quarto, o qual talvez julgava
desabitado. Satisfeito, ao que parecia, com estas observações, estra-
nhou-se no pomar e cedo se perdeu por entre as árvores.
A surtida nocturna deu-me que pensar. Sem dúvida, era este o
herói de quem todos se ocupavam em Entre Arroios, e talvez mais
herói do que me parecera, quando a senhora D. Margarida me dese-
nhou o seu retrato, com o defeito comum aos retratos feitos por todas
as mães, que, desconhecendo geralmente as vantagens do claro-escuro,
nos pintam seus filhos sem uma única sombra que lhes dê relevo
Aos quinze anos, uma excursãoo extravagante da casa materna
tem já de ordinário uma causa, queo exige grande penetração, nem
•andes esforços de inteligência para ser reconhecida.
o me demorei por tanto tempo a desenvolver este problema,
que resolvi pela fórmula geral. Mas o que me fez maior sensação foi
que, por esta façanha, Tomás mostrava-se menos criança do que o
queriam fazer aqueles que, sem o consultar, lhe andavam a discutir o
futuro, destinando-lhe, um a cadeira abacial, outro a banca de advo-
gado, outro a clássica mula de médico; e eu pensava comigo mesmo
que muito bem poderia acontecer, chegada a ocasião de levar a efeito
qualquer das resoluções em que assentavam, se tal hipótese era admis-
sível, que todos fossem embaraçados por um obstáculo muito natu-
ral eo previsto, o de vontade de Tomás, a qual, a julgar pelo que
vira,o me parecia dever ser demasiado maleável.
Jureio deixar escapar esta observação e aproveitá-la para me
conduzir no dia seguinte, visto a minha assistência ser reclamada pela
assembleia, e conservei-me de atalaia, aguardando o regresso do filho
pródigo, o qua! se efectuou pelas duas horas da noite, e com a mesma
agilidade e destreza que eu já admirara.
Contente com a minha involuntária descoberta, e mais adiantado
talvez do que ninguém na vida intima do protagonista desta história,
abandonei o meu posto e deitei-me a dormir um sono agradável.
Pela manhã, acordei em sobressalto, sonhando que era obrigado
a executar a manobra de ginástica que presenciara na véspera.
SEROES DA PROVÍNCIA
SEROES DA PROVÍNCIA
Q
UANDO abri a janela, ainda o Solo havia despontado no hori-
zonte. A manhã estavao amena eo belo panorama se ofe-
receu aos meus olhos, assim que os estendi ao longe pelos
campos, queo pude vencer os desejos de explorar aqueles pitorescos
lugares, apesar de ver ainda hermeticamente fechadas as janelas do
quarto da senhora de Entre Arroios.
Servindo-me, pois, de uma saída particular, que havia no pavi-
lhão, independente do resto da casa, desci ao pomar, e aproveitando-me
do momento em que o dragão deste novo jardim das Hespérides, um
respeitável indivíduo da espécie Lineana: canis familiaris, saboreava as
delícias do sono matutino, abri a porta da comprida gradaria, que for-
mava o quarto lado da área consagrada a Pomona, e achei-me na quinta.
Os bens pertencentes à casa de Entre Arroioso extensíssimos,
e naquela época uma exuberante vegetação dava aos camposo agra-
dável aspecto, tanta vida e frescura, que havia realmente prazer entra-
nhar-se a gente por aquelas extensas avenidas, e perder-se no meio
das copadas devesas, ainda quando se corresse o risco de faltar a um
almoço como costumava sair das cozinhas de Entre Arroios.
Depois de muito caminhar, pude atingir enfim os limites da quinta,
e, verdadeiramente fatigado, sentei-me em um pequeno muro tosco
e coberto de hera, que ficava sobranceiro a uma destas tortuosas e
estreitas ruas, que em mil direcções atravessam as nossas aldeias e
a cujo aspecto, monotonamente uniforme em todas elas, anda de ordi-
nário mais ou menos ligada alguma recordação de nossa vida passada.
Aí jogos, alegrias, perfumadas memórias de uma esquecida
infância, nos reverdecem na imaginação, volteiam em torno de nós,
como um enxame de borboletas brancas ao agitarmos a balseira, onde
pousavam embriagadas nos nectários das flores.
O nosso pensamento, à semelhança de um vaso metálico, ressoa
por muito tempo, quando, embora de leve, percutido; como ondas
sonoras, as nossas recordações, movidas por uma palavra, por um
som, por uma flor, por um perfume, sucedem-se, dilatam-se cada vez
mais vastas, cada vez mais suaves, até se desvanecerem em uma con-
fusa imagem do passado, de formas indefinidas e vagas, mas por isso
mesmo mais bela, mais inebriante ainda, em um quase sonho, deli-
cioso e grato como o murmúrio que termina o som, como o crepúsculo
em que desmaia o dia, como o Outono que sucede à estação dos flo-
rescentes verdores.
E assim eu me deixava então enlevar pela reminiscência das
passadas cenas, queo profundamente me fazia esquecer tristezas e
alegrias presentes.
SEROES DA PROVÍNCIA
s caminhamos sempre na vida entre duas visões: uma pre-
cede-nos esplêndida e brilhante, como a luminosa aparição que diri-
gia no deserto a marcha do povo hebreu; outra segue-nos, formosa e
pálida, como as virgens ideais dos cantos escoceses.o a esperança
e a saudade. Com os olhos naquela, quase chegamos a olvidar inteira-
mente a existência da última; mas que uma sombra extinga, obscureça,
sequer, a auréola que na primeira nos atrai e seduz, e a segunda sur-
girá, como surgem as estrelas, quando a chama do Sol desmaia no
extremo ocidente.
Destas ideias, destes sonhos, por onde me arrebatava a fantasia,
evocou-me o ruído de uns passos ligeiros e leves, que de momento
a momento se fazia mais distinto.
Nada de estranho poderia ter o facto, visto serem estas as horas
em que de todos os lados da aldeia partiam os operários para o traba-
lho ; contudo um inexplicável movimento de curiosidade me fez debru-
çar sobre o muro em que estivera sentado, aguardando a chegada da
pessoa que parecia avizinhar-se.
o esperei muito tempo para conhecer a causa do ruído que
me preocupava; cedo vi no princípio da estreita rua, que as árvores
dos campos fronteiros guarneciam de um toldo de verdura, assomar
uma gentil forma feminina com os trajes elegantes das lavradoras do
Minho, e sustentando na cabeça, no mais perfeito equilíbrio, uma
vasilha a trasbordar de leite mungido de pouco.
Era uma rapariga que parecia contar de treze para catorze anos.
Os cabelos desatados saiam-lhe em madeixas abundantes por debaixo
de um lenço escarlate, disposto em volta da cabeça com artístico e
indescritível desleixo; outro da mesma cor se lhe cruzava no seio, cujas
formas principiavam a desenhar-se em curvas graciosas; a cintura
o delicada e flexível, que, ao vê-la, involuntariamente se imaginava
a requebrar-se nas ondulações de uma valsa era sem constrangi-
mento apertada em um estreito colete de fustão azul-escuro; a saia,
de pano preto, descia-lhe até ao meio da perna; as mangas amplas e
compridas da camisa de linho, alvo como a neve, vinham apertar-se-
-lhe nos punhos, ocultando aos olhos o puro contorno dos braços, que,
o obstante, uma pequena e bem modeladao deixava adivinhar.
0 fogo nos olhos, rosas nas faces, a alvura do leite no colo descoberto,
onde realçava um fio de formosas coralinas, assim se adiantava esta
risonha visão, que me vi tentado a tomar pela deusa da madrugada.
Com grande espanto meu, ela olhava-me de longe sorrindo e
na aparência decidida a dirigir-me a palavra.o tendo, como é de
crer, motivos para me recear da aparição, conservei-me imóvel, absor-
vido agradavelmente a contemplá-la. Mas afirmando-se melhor em mim,
quando a distância de me poder falar, a gentil rapariga fitou-me uns
olhos espantados, baixou-os imediatamente, corou a ponto de riva-
lizar com a pequena rosa que trazia ao peito, e apressando o passo,
o ansiosa para fugir às minhas vistas, apenas murmurou ao passar
SERÕES DA PROVÍNCIA
e sem erguer os olhos, a singela saudação, usada pela gente dos
campos: muito bons dias. Apesar da voz quase sumida, com que
estas três palavras foram pronunciadas, afigurou-se-me de uma melo.
dia encantadora.
Respondi-lhe simplesmente ao cumprimento, abstendo-me, como
de um sacrilégio, de acrescentar uma única frase, que se semelhasse
a galanteio. Tal era a atmosfera de virginal castidade, que me parecia
envolver esta poética criatura.
Segui-a com a vista enquanto pude, até que a vi desaparecer em
uma das voltas do caminho, no mesmo momento em que aparecia o
sol, por detrás da colina fronteira, dando-me a entender que era
tempo de voltar a casa, parao ser logo no primeiro dia inexacto à
hora do almoço, queo cuidadosamente me comunicara na véspera a
senhora de Entre Arroios.
Abandonei, pois, este lugar, onde experimentarao vivas impres-
sões morais, para procurar aquela outra espécie de impressões, cuja
fisiologia melhor que ninguém estudou, porque melhor que ninguém
as experimentava, Brillat-Savarin, o médico-gastrónomo.
Na sala do almoço encontrei já a senhora de Entre Arroios,
ocupando o trono, que, como chefe de família, de direito lhe pertencia.
Era uma destas antigas cadeiras de couro lavrado, guarnecida de relu-
zentes tachas amarelas, a qual atento o seu peso, só quase por antífrase
se poderia chamar um dos móveis da casa; nossos avós as inventaram
para se sentarem, assim comos inventamos as modernas para fingir
que nos sentamos.
Numerosas gerações da nobre família de Entre Arroios haviam
conhecido e acatado esta cadeira histórica, que tivera já a honra,
disse-me a Sr.' D. Margarida com um movimento de justa vaidade, de
ser ocupada um dia inteiro por um arcebispo de Braga, durante uma
excursão pela diocese.
D. Margarida saudou-me com o mais amável dos seus sorrisos,
dirigiu-me duas graças benevolamente maliciosas sobre o meu passeio
em jejum, terminando por me colocar à sua direita, defronte de um
magnífico chocolate, que deveras me deleitou.
Com a curiosidade, que é de prever, pedi novas do bijou da
família. O Tomazinho, disse-me a Sr." D. Margarida, passara mal a noite
e exigira que ninguém lhe entrasse no quarto, por causa de uma
intensa dor de cabeça, que lhe costumava dar muitas vezes.
Ah! muitas vezes ?
A cada passo.
E há muito que sofre dessas... dores de cabeça?
Há coisa de alguns meses a esta parte é que ele se principiou
a queixar. Isto há-de ser do sol...
Também creio, minha senhora. O sol faz muito mal e em certas
idades sobretudo. E que diz a isso o doutor?
Eu sempre gostei de ver os médicos explicarem certas coisas.
SERÕES DA PROVÍNCIA
O médico respondeu-me D. Margarida diz que aquilo é
força de sangue, e até propôs uma sangria.
Ah! e seu filho, minha senhora?
o quis ouvir falar em semelhante coisa,
É que talvez então se achasse melhor.
Efectivamente passou algum tempo mais aliviado, mas depois
soltou-lhe.
E hoje?
Levantou-se pela manhã muito cedo e saiu. Diz que lhe fazem
muito bem estes passeios.
As dores de cabeça?
Sim; pois é toda a sua doença.
Decerto que devem fazer.
Quando acabava de receber estas informações, para mim bas-
tante significativas, a porta da sala abriu-se e o menino Tomás entrou
em cena.
«Falai no ruim, olhai para a porta» foram as palavras com
que a senhora de Entre Arroios saudou o recém-chegado, para quem
lançava uns olhos a trasbordarem de amor maternal.
Tomás beijou com afecto ao da mãe, e inclinou-se cortesmente
diante de mim, depois que a Sr.
a
D. Margarida me apresentou com
todas as formalidades.
Um primeiro olhar lançado sobre Tomás, me fez desde logo sim-
patizar com ele.
Era ainda imberbe, algum tanto pálido, com uns lânguidos olhos
castanhos, que se pressentiam talhados para contemplações poéticas;
os cabelos negros naturalmente anelados e compridos; a fronte espa-
çosa, a boca de uma expressão melancólica; tudo naquela fisionomia
revelava sentimentos nobres e generosos, elevados brios, talvez uma
excessiva sensibilidade, e um espírito fácil em impressionar-se; graves
defeitos para quem desejar viver em paz neste mundo.
O vestuário singelo, mas elegante, fazia sobressair-lhe a esta-
tura airosa e bastante desenvolvida para a idade que ele tinha. Conhe-
cia-se haver crescido e vigorado ao ar livre dos campos.
Enquanto eu prosseguia neste meu rápido exame, reparei por
acaso em uma rosa vermelha, que Tomás trazia descuidadamente na mão.
Era em tudo semelhante à que vira ao peito da pequena leiteira.
Seria mera coincidência? Que admirava?
Em uma terra e em uma estação, em que as rosas surgem espon-
tâneas debaixo dos pés, que significação podia ter o facto ?
Contudo, o que eu já sabia de Tomás levava-me a conceder mais
algum peso à pequena circunstância que observara.
Travei com ele uma conversa banal, sobre mil coisas em que
se costuma falar, quando seo quer dizer nada.
No fim do almoço a senhora de Entre Arroios improvisou entre
s um passeio, ao qual lamentavao poder acompanhar-nos, porque
SEROES DA PROVÍNCIA
lhoo permitia o governo da casa, de uma exigência mais que des.
pótica frase dela.
Vão,o passear. Mas olha, Tomás, cautela com o sol, eo
s para o lado dos lameiros: a humidade pode fazer-te mal. Olha
sabes ?o seria mau ires mais enroupado; a manhã está fresca, e o
que livra do frio, livra do calor.
E com estas e idênticas recomendações, das quais a muito custo
Tomás conseguiu livrar-se, sujeitando-se a umas, iludindo outras con-
forme pôde, saímos ambos para observar o plano de divertimento que
nos traçara a Sr.* D. Margarida.
Durante o passeio, Tomás mostrou-se agradável, e às vezes jovial.
Falámos em vários assuntos, e em todos pude reconhecer nele bas-
tante cultura intelectual, contra o que era de esperar, atendendo à vida
isolada que passava ali.
Quanto porém aos seus sentimentos, Tomás mostrava-se pouco
comunicativo, e se às vezes eu tentava mais a fundo sondar aquele
carácter, que me parecia, a muitos respeitos, digno de estudo, tor-
nava-se subitamente mais reservado ainda, como se pressentisse as
minhas atenções.
Afinal decidi-me a atacá-lo mais de perto.
Sabe, Sr. Tomás disse-lhe depois de uma hora de passeio
que admiro as suas compatrícias ?
Sim?!—foi a única resposta monossilábica que pude obter.
o desanimei contudo e prossegui:
Esta manhã, pelo menos, vi uma que me pareceu um verda-
deiro modelo de artista.
Deveras ? respondeu-me no tom de voz mais indiferente
que se pode conceber.
Deveras continuei eu e foi justamente daqui mesmo.
Havíamos de facto chegado ao sítio, de onde eu, como cortesão
em antecâmara de monarca, aguardara o despertar do Sol.
Ah! daqui ?
Pareceu-me descobrir mais algum interesse nesta interrogação
de Tomás.
Ao que pude julgar, era uma leiteira das imediações. Bonita
rapariga, palavra de honra!—dizendo isto, fitava os olhos nos dele,
que momentaneamente se abaixaram.
Havia de ser a Paulina disse com um ar de indiferença mal
representada; e mudando de conversa: O senhor é do Porto ?
Fiz-me desentendido.
Paulina? é um nome poético. É da terra essa rapariga?
Julgo que sim... É, mas...
Euo o deixei continuar.
o a acha galante?
Esta pergunta visivelmente o contrariou. Um movimento quase
imperceptível dos lábios, uma ruga que mal se lhe desenhou na fronte,
SEROES DA PROVÍNCIA
e o rubor demasiado que por momentos lhe invadiu as faces, mo denun-
ciaram.
Assim respondeu-me de um modo seco; e afastou-se alguns
passos, ostensivamente para cortar uma vara de um castanheiro vizi-
nho, mas na realidade com o fim de interromper a conversa, que lhe
desagradava.
Pela minha parte, já sabia o que desejava; e como demais ia per-
dendo terreno nas boas graças de Tomás, do queo tinha desejos,
aceitei a diversão, fui ajudá-lo no ingénuo passatempo, em que ele
fingia entreter-se, e assim nos divertimos durante alguns minutos.
Passado tempo, e a uma proposta sua, seguimos caminho para
casa. Tive ocasião de lhe dirigir de novo a palavra.
Que projectos forma relativos ao seu futuro?
Projectos?
Sim; a que carreira se destina?
Ah!o sei bem. Dantes falavam em me mandarem para
Coimbra. Talvez que essa ideia esquecesse.
O que talvez estimaria.
Fitou-me com desconfiança, respondendo:
Pode ser e depois continuou: Contudo era a vontade
de meu pai, e se minhae o exigir... Sabe que nunca lhe pude deso-
bedecer em coisa nenhuma?
Tinha na voz uma sensível comoção ao dizer isto; se o sentimento
filial, se outro, o dominava então,o o pude saber.
Pelo que ontem ouvi dizer a suae e a alguém mais da com-
panhia continuei julgo que esses projectos se discutem de novo
actualmente.
Deveras ? Porqueo mo terão dito ? e calou-se preocupado
por um sentimento que parecia mortificá-lo.
o há no Porto uma escola onde se estude também? per-
quntou-me em seguida.
Conforme. Para que estudos se inclina mais?
Encolheu os ombros em sinal de completa indiferença, e prosse-
mos no nosso caminho silenciosamente.
Chegámos enfim à porta da gradaria que fechava o pomar, onde
encontrámos com o médico, personagem esguia e descarnada,
que poderia servir de exemplar para estudos de osteologia seca. Uma
mumificação progressiva quase lhe permitia já livre passagem através
dos varões de ferro e inutilizava o uso da porta, que, apesar disso,
Tomás se apressou em abrir-lhe, mais por delicadeza que por neces-
sidade.
Bons dias, meu pequeno cliente disse ele, dirigindo-se a
Tomás e enviando-me ao mesmo tempo uma cerimoniática reve-
rência.
Um sorriso de inofensiva zombaria se deslizou nos lábios de
Tomás, ao contemplar o doutor,
SEROES DA PROVÍNCIA
Então já de volta da sua excursão clínica, doutor Madrugada ?
bem esforços faz por desmentir o vita brevis, que sempre traz na
boca.
É preceito higiénico, que observo religiosamente; deito-me
às oito horas, para às quatro me levantar. Isto auxilia a boa distribuição
dos humores e a cocção das matérias pecantes.
O aspecto do doutoro era muito lisonjeiro à teoria, ou tudo
naquele corpo era matéria pecante; pois de facto dir-se-ia ter passado
todo ele por uma cocção verdadeira.
E as suas dores de cabeça? acrescentou, voltando-se para
Tomás.
Vão-me sendo infiéis e ameaçam deixar-me, as ingratas.
Ruinzinho ! Isso já podia estar fora.—E voltando-se para mim:
Ora diga, uma cefaleia com um fundo pletórico, devida evidente-
mente à confluência dos humores para a cabeça, coisa própria da idade,
qual o tratamento racional que exige? Salta aos olhos dos leigos.
Apesar dissoo saltou aos meus, o que me granjeou uma
reputação duvidosa na mente do ilustre adversário das matérias pecan-
tes, de cuja algaravia euo pudera perceber palavra.
o há que ver respondeu ele por mim, e com certo aze-
dume — a sangria, a sangria e só a sangria.
Depois, dirigindo-se a Tomás:
E como está a mamã ?
Vai ver disse este, abrindo a porta da sala do jantar, onde
havíamos já chegado.
Depois de uma luta de delicadezas e recíproca troca de zumbaias
entre mim e o médico, consegui fazê-lo entrar adiante e penetrámos
na sala.
Justamente naquele momento acabava a senhora de Entre Arroios
de pregar aos criados o seu duodécimo recado, tarefa que sob o
nome de canseiras de casa, encetava pela manhã para terminar
à noite.
III
\
A
nossa chegada desanuviaram-se as feições contraídas da senhora
de Entre Arroios; desceu uma oitava ao tom da voz, e, adiando
para mais tarde a explosão de suas justas iras, justas deviam
de ser, saudou o médico com o epíteto mais amável que lhe ocorreu,
passando a informar-se, como alma caritativa que era afinal de contas,
dos clientes mais pobres do Hipócrates campesino, os quais ela tantas
vezes com cuidados, mais poderosos do que as drogas medicinais, lhe
auxiliava a curar.
Eu no entretanto dirigira-me com Tomás para a janela, onde,
SERÕES DA PROVÍNCIA
para dizer alguma coisa, me pus a exaltar a paisagem, realmente bela,
que se goz.-.va dali.
Tomás parecia escutar-me com prazer; fez coro comigo, e com
is ardor do que eu, exprimia o seu entusiasmo por as belezas do
campo
Pode acreditar disse-lhe no decurso da conversa que
ontem, ainda que extenuado pela fadiga da jornada, passei algumas
horas absorvido na contemplação de toda esta cena, fantasticamente
alumiada pela claridade de um magnífico luar de Julho?
Estas palavras, pronunciadas sem intenção, produziram em Tomás
um efeito, que, antes de as concluir, eu já notava e que meo foi difícil
explicar.
Vi-o estremecer, e olhando-me de um modo especial:
Ontem ? a que horas ? perguntou-me, com mal difarçada
curiosidade.
Mentiro me era fácil.
Depois da ceia,.. Das onze horas para a meia-noite.
E de onde ? de que janela ?
Dacolá! e apontei para o pavilhão.
Os olhos de Tomás seguiram essa direcção, daí voltaram-se na
do seu quarto, e, depois de curta reflexão mental, fitou-me um olhar
o fixo, que, sem saber bem porquê, desviei o meu. Traí-me.
Ele também me havia sondado.
Corou um pouco, e depois, como se abraçasse uma súbita reso-
lução, perguntou-me com vivacidade notável:
E que viu ?
Adivinhei logo o sentido da pergunta, mas fingi ignorá-lo, res-
pondendo:
Todos estes mil efeitos, que nos surpreendem e queo sei
descrever; contrastes admiráveis de sombra e luz...
Pois que mais ?
Eu achava-me em uma posição falsa, e queo poderia sustentar
por muito tempo, pois confessoo serem grandes os meus talentos
para dissimular.
Então, além disso,o viu mais nada? insistia Tomás nem
acolá? e apontava para a janela do quarto.
A interpelação era muito directa desta vez, para lhe resistir;
desde que o vi lançar assim as cartas na mesa, julguei melhor imitá-lo.
Alguma coisa, é verdade, mas... também viu? acrescentei
meia voz.
Se era eu mesmo.
Soube então quanto nos vale esta interjeição em casos apertados.
Ganha-se tempo com ela, sem arriscar um passo que possa compro-
meter-nos.
SERÕES DA PROVÍNCIA
É verdade; que quer ? continuou Tomás como se tivesse
pressa de me explicar o seu procedimento. Eu também amo a natureza.
Extasio-me ao respirar de noite o ar embalsamado dos bosques, sob
um tecto de verdura, através do qual se descobrem, cintilam e resplan-
decem as estrelas, parecendo reflectir-se na terra nesses milhares de
insectos que das asas luminosas despedem fogos,o fugitivos como os
pensamentos que a essa hora nos atravessam o espírito. Às vezes, acre-
dite, chego a imaginar que de todos os lados me surgem as formas
vagas e vaporosas que idealiza a poética imaginação do nosso povo
e que imprimem nas singelas narrações dos campos, nas canções
entoadas à hora das ceifas, ou junto do lar, um encanto indefinível.
Talvez me julgue criança se lhe disser que um dos meus maiores pra-
zeres nesta vida é, em uma noite como a de ontem, na espessura das
devesas, de onde escute o murmurar de um ribeiro vizinho e veja dese-
nhar-se no chão, em formas fantásticas e movediças, a folhagem que
os raios da Lua a custo podem atravessar, em uma noite assim, ouvir
contar uma dessas histórias de fadas, que em pequeno tanto me entre-
tinham e ainda hoje me deleitam, e mais já tenho perto de dezasseis
anos !
Mas contadas por quem, essas histórias ? perguntei, talvez
impertinentemente.
Tomás hesitou em responder, e murmurouo sei que palavras
ininteligíveis, terminando por estas:
Pouco importa. É uma questão secundária essa.
Perdão; maso penso eu assim acrescentei, decidido a
o me contentar com uma respostao evasiva. Compreendo que
possa encontrar nisso grande prazer, e até, para lhe falar verdade,
era esse um passatempo que meo desagradaria de todo, concordo;
mas exigiria que os narradores fossem de duas classes apenas: ou
uma destas velhas, que parece terem sido criadas só para narrarem
contos e que o tempo respeita já com o fim de transmitir suas memórias
ãs gerações que surgem; ou então, e melhor ainda, uns lábios femini-
nos, uma voz com o timbre dos quinze ou vinte anos, que muita vez
chegue a fazer-nos esquecer do conto para só nos lembrarmos da
contadora.
Os mesmos sinais de impaciência, que por mais de uma vez havia
oferecido a fisionomia de Tomás, de novo se lhe manifestaram, mais
profundamente que nunca e, como se meo tivesse compreendido,
continuou, dizendo:
Euo tenho contudo a liberdade de satisfazer estes desejos,
ao ser da maneira que viu ontem.
Um tanto arriscada.
Pode ser. Mas o receio exagerado que minhae tem ao ar
da noite — e acentuou estas palavras, sorrindo fez-me perder a
esperança de obter a sua permissão para satisfazer em mim este
capricho, seo é uma verdadeira necessidade; mas capricho ou
SEROES DA PROVÍNCIA
necessidade em todo o caso incompreensível para ela. Eis o motivo
por que me sirvo de um estrataqema, um tanto singular e talvez
ridículo.
Diga antes perigoso.
Ora! parece-lhe ?
Se o que me dizia Tomás era verdade,o era contudo ainda
a verdade inteira; pressentia-o. Dei, apesar disso, à minha fisiono-
mia um ar de convencimento, que me pareceu tranquilizá-lo.
Apressou-se em tomar a questão em tom jovial, rindo-se das suas
próprias façanhas acrobáticas e esforçando-se por se mostrar mais
criança do que era efectivamente, para tirar toda a importância à cena
da véspera.
Houve enfim uma pausa na nossa conversação, que permitiu nos
chegasse aos ouvidos o fim do diálogo travado entre D. Margarida e o
doutor, o qual até ali nos passara desapercebido.
Pobre homem! dizia a senhora de Entre Arroios, profun-
damente compungida e deu-lhe assim de repente ?
De um momento para o outro. Ainda esta manhã, quando a
filha partiu para a vila, estava ele de perfeita saúde.
Eo dá esperanças ?
Hum! aquele... Receio que em poucas horas entroixe e parta.
Pobre Paulina!
Estas palavras exerceram em Tomás, distraído até então, um
efeito mágico.
Ainda bemo haviam saído dos lábios de D. Margarida, já ele,
abandonando subitamente o lugar onde nos achávamos ambos, estava
no meio dos dois, sobremaneira inquieto, e podendo a custo pergun-
tar à mãe:
Que é? que aconteceu?
Se ainda fosse mistério para mim o segredo de Tomás, ser-me-ia
neste momento revelado, tal era a expressão da sua fisionomia. A minha
atenção achava-se naturalmente atraída para a cena.
Olha,o sabes, Tomás? respondeu D. Margarida, suspi-
rando — o pai da Paulina, a leiteirita dos Casais, conheces ?
Tomáso pôde reprimir um movimento de impaciência, que o
denunciava.
Sim, sim, e depois ?
Diz agora o doutor que, quando vinha, o encontrou expirando,
com um mal que lhe deu de repente.
É possível ?!
Infelizmente.
E... a filha?
Julgo que ainda o ignora, pois tinha já partido para a vila, como
costuma todas as manhãs.
Tomás olhou para, o doutor, que, lendo uma folha do Porto, aba-
nou silenciosamente a cabeça, em sinal de confirmação.
VOL. II4
SERÕES DA PROVÍNCIA
É preciso lá ir foram as primeiras palavras de Tomás, depois
de um instante de reflexão.
Por única resposta a Sr.* D. Margarida dirigiu-se para o gabinete.
Tomás deteve-a.
Aeo espera hoje ninguém para jantar ?
Sim, mas...
Irá logo então ; agora deixe-me ir. E, sem esperar outra res-
posta, encaminhou-se rapidamente para a porta e saiu da sala.
Ao passar por baixo da janela, onde eu ainda me conservava pre-
senciando toda esta cena, o nome de Paulina, saindo-lhe dos lábios, che-
gou-me distintamente aos ouvidos.
IV
A
senhora de Entre Arroios viu-o sair sem tentar impedi-lo, e, aba-
nando lentamente a cabeça, murmurou comovida:
Pobre filho! Tem o coração de um anjo!
O médico, sem despregar os olhos da folha, fez ouvir um ininte-
ligível monossílabo com pretensões a partícula afirmativa.
D. Margarida conhecia o doutor, e por via de regrao o pro-
curava em momentos de expansão e de sentimentalismo; por isso pre-
feriu dirigir-se a mim, e recostando-se ao parapeito da janela, de onde
eu observava ainda Tomás, que já se perdia por entre os desvios das
avenidas, continuou:
o faz ideia, Sr. D... como aquela alma sensível se aflige,
quando algum infortúnio sucede que eleo possa remediar.
Seu filho tem nobres sentimentos, minha senhora; pude-o ava-
liar agora e suspeitava-o, desde que trocámos as primeiras palavras
esta manhã.
Meu pobre Tomás! e lembrar-me que, talvez bem cedo, tenha
de me separar dele!
Uma ausência momentânea é compensada de sobra pela ale-
gria da volta.
Da volta! mas quando entres e essa volta estão ainda anos,
e quando se tem uma saúdeo delicada como a de Tomás!
Oh! minha senhora, issoo temores de mãe. A constituição
do Tomazinho é até vigorosa, e senão o doutor que o diga.
Pois sim! e aquela melancolia ?
Eu achei-o jovial.
Ai, enganou-se. Está assim um momento e ele aí principia a
entristecer, a entristecer, a entristecer, que me corta o coração só em
olhar para ele.
Que quer, minha senhora?o coisas dos quinze anos. As
recordações de V. Ex."o lhe dizem nada a este respeito?
SERÕES DA PROVÍNCIA
Sei ao que se quer referir; maso vejo fundamentos... Vive-
mos aqui isolados...
Por isso mesmo, minha senhora. Há coisas que o coração nos
ensina, ainda quando longe dos objectos que lhas possam fazer lembrar.
Quanto mais...
E quer saber ? acrescentou em tom de mistério a senhora
de Entre Arroios, inclinando-se ao meu ouvido vou confiar-lhe um
segredo, que a ninguém ainda disse e que espero a ninguém há-de
dizer também.
Pode crê-lo, minha senhora.
Tomás é poeta! continuou ela, baixando ainda mais a voz
e quase com uma expressão de terror.
Ah!o vejo nisso grande mal; e até, para lhe falar verdade,
minha senhora, eu já o suspeitava.
Sim? e pensa...
Penso, minha senhora, que os poetaso almas privilegiadas,
que Deus criou para entoar seus louvores, quer os cantos se lhe elevem
nos templos como o incenso dos turíbulos, quer se derramem, como o
perfume das flores, por toda a natureza.
Mas aqui todos me dizem que os poetaso uns loucos, extra-
vagantes, e que o seu fim nunca é bom!
Vossa excelência gosta de flores ?
Muito!
E que lhe dizem delas essas pessoas ?
Nem sequer falam em semelhante coisa, que eu saiba.
Pois os poetas, minha senhora,o as flores da humanidade.
A senhora de Entre Arroios pareceu reflectir nestas palavras, e
respirou enfim como se se visse livre de um pesadelo.
O senhor também é poeta ?
Foi a pergunta que em seguida me fez.
o tenho essa fortuna, minha senhora.
Mas entende de versos ?
Leio-os com prazer.
Ora então espere.
E saiu da sala.
A Sr.ª D. Margarida apresentara-se-me agora sob um aspecto
novo, em queo pude deixar de admirá-la.
Até ali vira nela encarnado o tipo,o direi ridículo, mas vulgar
e prosaico da dona da casa, que eleva à altura de questões diplomáticas
as pequeninas misérias de uma vida doméstica, deslizada das sete
horas da manhã às dez da noite, sem nenhum acidente sério, que
viesse alterar-lhe a monótona serenidade. Agora, porém, via-a trans-
formada, purificada pelo amor de mãe, que lhe fazia vibrar o coração
em harmonia com os mais delicados sentimentos, e dotava-lhe a inteli-
gência de uma penetração superior à esfera acanhada de suas habi-
tuais ocupações.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Como o sopro ae vida que no seio da crisálida, a faz, em um
momento dado, voar borboleta, o amor materno operava nesta cria-
tura, que me parecera vulgar, uma metamorfose que às vezes a tor-
nava em um ser verdadeiramente superior.
A senhora de Entre Arroios voltou à sala, trazendo nao um
pequeno papel dobrado, que ao passar pelo doutor, o qual naquele
momento principiava a leitura de um segundo periódico, teve o cuidado
de ocultar com uma espécie de temor quase infantil.
Chegando junto de mim passou-mo para as mãos, dizendo:
Tomás esqueceu isso um dia de manhã sobre a mesa do quarto.
Encontrei-o, quando o arrumava, li-o eo entendi bem. Como ele
depois nunca pareceu dar pela falta, resolvi guardá-lo. Isto foi há perto
de três meses, justamente pelo tempo, e é isto que me dá canseira, em
que ele principiou a ter aquelas dores de cabeça, que o perseguem
tanto. Pois pode acreditar que de então para cáo passa uma noite
sem que eu me ponha a ler este papel, e o caso é que em alguns pontos
já pude entendê-lo melhor.
Eu desdobrei o papel e li as seguintes estâncias, escritas com
uma letra rápida e como por umao convulsa, mas sem uma única
emenda: adivinhava-se, ao vê-la, que fora escrita com rapidez em um
instante de inspiração:
Flor dos campos, flor singela,
Pra quem guardas tuas cores ?
Deus criou-te entre verdores
Só pra os campos enfeitar?
Desconhecem-te a beleza
Outras flores que ta invejam,
E as brisas, se te balejam,
o o sabem revelar.
Ora repare disse, interrompendo-me, a senhora de Entre
Arroios porque me parece que esta flor, de que aqui se fala,o
é bem uma flor.
Sorri-me à observação, e continuei:
Ha tanto que corro os prados
Por sobre viçosas relvas !
Tantas flores pelas selvas,
Tantas no monte encontrei!
, Há tanto ! e porque só hoje
Alva cecém da campina,
Quis a minha ingrata sina
Que te encontrasse?o sei.
,o lhe parece estranho? ponderou de novo a senhora
de Entre Arroios mas leia, leia.
SERÕES DA PROVÍNCIA
o sei. O peito agitado,
Seus segredoso revela,
Se o ver-te foi minha estrela,
Se é sorte pensar em ti...
Pensarei, sim; tua imagem
Há-de seguir-me incessante,
Em ti, flor vicejante,
Pensarei, já que te vi.
Novo gesto de D. Margarida; eu continuei:
À noite nos arvoredos,
Onde formas vaporosas
Vagueiam misteriosas,
Irei procurar-te, a sós,
De manhã quando no outeiro
Surja a chama matutina
Já o teu nome...
Havia aqui um espaço deixado em branco e completava a estância:
Repetirá minha voz.
Tenho-me matado para ver se adivinho o nome da flor que aí
falta, maso vejo.
Eu, que como o leitor deve supor,o encontrei grande dificul-
dade em completar o verso, disse sorrindo-me para a senhora de
Entre Arroios:
Preciso seria que primeiro assentássemos se, como vossa
excelência disse há pouco, esta flor é bem uma flor e preparava-me
para continuar a leitura, quando se abriu a porta de par em par, e deu
passagem à figura rubicunda e esférica do abade, que saudou a assem-
bleia com o seu habitual:
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ámen respondeu a Sr.
a
D. Margarida, enquanto que, aper-
tando-me o braço com vivacidade, tacitamente me instava a esconder
o fatal papel, revelador do delito poético de Tomás.
Este sentimento de delicado pudor, que inspirava àquelae
o ocultar dos olhos de seus prosaicos convivas os devaneios literários
de uma imaginação de quinze anos, devaneios, cujo sentido, quase
enigmático, ela própria mais adivinhara do que compreendera, tinha
o que quer que era de tocante, que me comoveu.
Apressei-me pois a esconder o papel, como se partilhasse também
dos mesmos terrores, e respondi ao abade que me havia dirigidoo
sei que pergunta, que por insignificante me esqueceu.
O médico havia neste momento acabado de ser em dia com
os acontecimentos europeus.
Depois de esvoaçar por todas as nações do mundo civilizado,
aquele pensamento repousava agora, talvez, a ponderar nos destinos
do Grão-Sultão e da Porta.
SEROES DA PROVÍNCIA
* O abade odiava os jornais políticos, como odiava todas as coisas
cujo usoo se remontasse ao antigo sistema governamental, de que
era, e se confessava, aferrado partidário.
Entre ele e o médico, que militara no cerco do Porto, e fora ferido
em um ataque às linhas, ao saltar um muro para observar o espectáculo
mais de longe, ferida que provavelmente hoje lhe valerá uma pensão
vitalícia, havia constantemente hostilidade súpita, que se traía nas mais
pequenas coisas e que a menor faísca fazia rebentar em terríveis explo-
sões, as quais só o ânimo pacificador de D. Margarida, conseguia
apaziguar.
Quid curas, doctor? disse o abade, aproximando-se do anta-
gonista com afabilidade felina.
O doutor com os olhos no chão, as pernas cruzadas e os beiços
fazendo tromba, parecia calcular mentalmente a área do pavimento da
sala; às palavras do abade levantou a cabeça.
Oh! reverendíssimo! pensava agora em uma importante
medida, que actualmente se discute nas câmaras: é relativa aos mor-
gados.
Uma tosse seca e significativa foi a resposta do reverendo egresso.
As câmaras! continuou, acentuando a palavra com ênfase
era de uma vez um dragão de cem cabeças...o sabe o que diz
a fábula?
Sei só o que diz a história respondeu o doutor, já um tanto
desabrido.
Que muitas vezes é fabulosa redarguiu o abade, saboreando
com delícia uma pitada.
D. Margarida, pressentindo a tempestade iminente, acudiu a
interrompê-los.
Sabe, sr. frei Domingos, que temos hoje uns ovos de recheio,
que espero há-de apreciar?
Ovos de recheio! Deveras ? Oh! minha rica senhora D. Mar-
garida; semper hortos, nomenque tuum, laudes que manebunt, com
mais razão do que a honra, o nome e os louvores de Dido, que afinal
de contas...o se lembrou de apresentar a Eneias ovos de recheio.
Ah! ah! ah! acrescentou, rindo-se ainda mais pela promessa dos
ovos, do que pela graça que dissera.
E hoje, meus senhores continuou D. Margarida havemos
de acabar de decidir a respeito do Tomazinho. Aqui está o Sr. D..., que
nos ajudará com o seu conselho.
O médico, que naquele momento limpava os óculos, colocou-os
de novo sobre o nariz, e olhando para mim directamente, como ainda
até ali oo havia feito, perguntou-me:
O senhor é formado ? Tem algum curso ?
Não, senhor respondi imediatamente.
Pareceu-me que no seu conceito desci cinquenta por cento, depois
da resposta... Voltou-me as costas sem cerimónia, e, com a familiaridade
I
SEROES DA PROVÍNCIA
que lhe dava uma convivência de longos anos, tirou do bufete um par
de ameixas secas e foi saboreá-las para a janela.
0 abade encarregou-se de continuar a inquirição principiada.
Mas vossa senhoria disse-me ele com voz melífica tem
seguido alguns estudos?
Possuo leves rudimentos de alguns.
Cultiva a literatura ?
Aprecio-a imperfeitamente.
Quemo os seus autores favoritos ?
Encontro sempre grande dificuldade em responder a uma
interpelação desse género.o sei. Admiro tanto Balzac, como Walter
Scott, como Alfredo de Vigny; extasio-me com uma das mais arrojadas
estrofes de Byron, de Vítor Hugo ou Musset, tanto como me extasio
com um dos sentimentais poemas de Lamartine.
Respondi com a maior ingenuidade e vi a estupefacção dese-
nhar-se no rosto do abade a cada um dos nomes que ia pronunciando,
para ele mais indecifráveis que os do festim de Baltasar. Quando
cheguei ao último carregou o sobrolho e preparou-se para falar.
Escutei.
Que disse? Lamartine?o é um jacobino? Parece-me que
tenho ideia de...
o pude responder com receio de perder a gravidade.
Vendo o meu silêncio, continuou:
Sim,o tem que ver, é o próprio; um dos vermelhos, um
pedreiro-livre, dos tais senhores da égalité! e acentuou sarcàsti-
camente a sílaba final. Com que então... admira isso?
Aqui abriu a caixa de rapé, fungou uma abundante pitada,
assoou-se, e, depois de soltar um suspiro ab imo pectore, voltou-me
as costas, murmurandoo sei que verso de Virgílio ou de Horácio,
que provavelmenteo me lisonjearia muito se fosse ouvido.
Neste momento a Sr.ª D. Margarida anunciou a chegada do ter-
ceiro conviva. Era o Dr. Teófilo, personagem exótica, cujos olhos par-
dacentos, como que envergonhados de se veremo feios, fugiam um
'do outro, confinando-se no ângulo mais extremo de umas escalavra-
das órbitas.
O Dr. Teófilo, acalentando de há muito as mais fagueiras espe-
ranças, na mão em segunda mão da senhora de Entre Arroios troca-
dilho de sua lavra, muito festejado pelo autor cada dia intentava
novas finezas, sem nunca atinar com aquela que esperava lhe havia
de valer a entrega da praça e da guarnição.
Desta vez trazia pendente dao esquerda uma trouxa, que
prometia grande surpresa para o dessert, ocasião escolhida sempre
por ele para as suas ofertas amorosamente ambiciosas.
Já era retardatário ao que vejo exclamou o doutor, ao
encarar com os outros dois frequentadores dos jantares de Entre
Arroios.
SEROES DA PROVÍNCIA
A justiça é sempre a última a chegar resmungou o médico,
explorando de novo, e com igual sucesso, o bufete, que exercia sobre
ele uma manifesta atracção.
O Dr. Teófilo, imperturbável por índole e por cálculo profissio-
nal, respondeu amavelmente:
Onde a ciência e a religião existem,o se faz esperar a justiça.
O doutor era uma espécie de mediador plástico, perdoem-me
os filósofos se rebaixo o termo, entre os dois elementos heterogéneos
do abade e do médico.
A Sr." D. Margarida, à imitação dos fabricantes de instrumentos
de física, que entremeiam o ouro entre a prata e a platina, na constru
ção de certas lâminas, para podê-las sujeitar à acção do calor, ser-
via-se do doutor para que a soldadura do abade e do médicoo rom-
pessem também no calor da discussão.
Era a vez do advogado se dirigir a mim.
E como vai o hóspede ?
Encantado com a hospedagem.
Belíssimo! disse o doutor, pronunciando esta palavra por-
tuguesa, como se tivesse necessidade de ser italiana.
D. Margarida, no ânimo de quem eu havia conquistado terreno,
depois da nossa rápida conversação, encetou a meu respeito uma
apologia, que a modéstia me obriga a calar, e que teve um efeito
exactamente contrário ao que talvez a boa senhora esperava. De facto
o doutor, ao notar o fogo com que D. Margarida fazia o meu panegírico,
mostrou-se inquieto: olhou para mim de um modo particular, depois
para ela, depois de novo para mim, e, como sem consciência do que
fazia, aproximou-se da mesa e bebeu até à última gota um copo de
água que encontrou à mão. Caso realmente extraordinário na sua vida,
porquanto o doutor nunca pudera concordar com Píndaro, a respeito
das excelências da água.
Percebi que o ciúme aguilhoava o coração do erudito intérprete
do Digesto.
Que popularidade! Em poucos minutos conseguira tornar-me
antipático aos três comensais de D. Margarida!
Mas o meio-dia chegara enfim, hora consagrada desde tempos
imemoriais em Entre Arroios à solenidade gastronómica, a que se dá
o nome de jantar.
No campo o meio-dia adivinha-se independente de relógios. Um
silêncio mais profundo, umo sei que particular na luz do Sol, uma
cor uniforme que parece tingir a paisagem, no-lo anunciam. Depois
temos a voz do estômago, esta poderosa voz mais real que a do sangue,
a qual os romancistas contudo admitem como facto incontroverso.
O estômago quer aos seus hábitos, como víscera burguesa que é; uma
vez afeito a comer ao meio-dia, exaspera-se quando lhe tardam, e
agitando-se no abdómen dá a conhecer à economia as suas necessidades
imperiosas.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Foi a razão pela qual o abade, escutando o apetite, este irmão
mais novo da fome, jovial como criança, mas cujo humor se azeda com
a idade, se aproximou da janela, contemplou os ares e voltando-se,
soltou estas palavras, que vieram dar a razão dos bocejos continuados
do médico, de suas frequentes visitas ao bufete, e dos suspiros melo-
diosamente melancólicos do doutor:
Isto deve ser meio-dia.
Há-de ser disse D. Margarida vou mandar tirar o jantar;
Tomás provavelmente janta mais tarde.
Estas palavras foram acolhidas com geral satisfação.
E o jantar veio para a mesa; rompeu a agradável orquestra de
garfos e facas, para muito boa gente mais harmoniosa que as melhores
partituras de Bellini ou Donizetti; e todos empreendemos, como alia-
dos, uma batalha, cujos destinoso podiam ser duvidosos.
O médico e o abade esqueceram por um pouco a recíproca anti-
patia; contudo esta afabilidade diminuía na razão directa do apetite.
A sopa, eram quase amigos, ao cozido, tolerantes apenas; mas quando
chegou o prato de meio, já os primeiros assomos de hostilidade come-
çavam a transparecer. Um frango guisado foi o pomo da discórdia.
Eis o caso:
A entrada triunfal da ave de Marte fora saudada com verdadeiro
entusiasmo, e, depois de a admirar em globo, cada um em detalhe a
admirava no prato.
Excelente molho! disse o abade, embebendo nele enormes
fatias deo trigo, galicismo gastronómico que, seja dito de passagem,
causa delícias a muitos severos puritanos.
Eu sou partidário dos molhos exclamou o doutor, seguindo
o exemplo dado pelo vizinho.
O médico para contradizer, disse-os anti-higiénicos; maso
ficava atrás dos antagonistas na gloriosa cruzada contra este inimigo
dos estômagos humanos.
A história dos molhos acrescentou o abade, limpando ao
guardanapo os beiços besuntados anda a par da civilização. Os
heróis de Homero desconheciam o verdadeiro molho; Virgílio fala-nos
de carne assada no espeto, veribusque trementia figunt; scilicet vís-
cera, mas nunca em molhos; Anacreonte...
O abade podia muito bem empreender uma obra em que
provasse...
Os molhos ? É a obra que estou empreendendo. Eh! eh! eh!
Não; porém que a florescência dos estados prendia nos aper-
feiçoamentos dos molhos terminou o médico, sorrindo.
O doutor, que previu tempestade, tomou a palavra:
Mas de facto, há aqui uma fusão de substâncias, que formam
um todo delicioso.
É o gosto do cravo, da pimenta, do açafrão, da salsa, do alho;
é tudo isto eo ó nada disto parafraseou o abade.
SERÕES DA PROVÍNCIA
É um verdadeiro sistema constitucional disse o médico,
que tomava posse do seu temperamento ; e acrescentou : O absolu-
tismo, a predominância de um elemento único é sempre mau em
molhos, como em política.
O abade tremeu.
O doutor concedeu uma risada de aprovação à burlesca com-
paração do médico.
Isto acabou de transtornar o egresso:
Bem me parecia, doutor, ques outros avaliais as coisas em
política pelas leis de gastronomia! Bom é tudo aquilo que satisfaz o
estômago.
Sem causar indigestão respondeu o médico, com impertur-
bável sangue-frio.
A cólera do abade subia ao seu auge. Estava fulo.
O vosso sistema de molhos em política, doutor, tem só o incon-
veniente de encher o Governo de nódoas.
O abade, superior à sua época, manejava já então o calembur,
em que muito pouco se falava ainda por.
Como ninguém se rira do gracejo, acompanhou-o ele de uma
gargalhada fradesca, de grau superior à homérica.
D. Margarida, inquieta pela ausência prolongada de Tomás,o
dava fé da tempestade, que se aglomerava sombria, nem pensava em
intervenção.
Ensaiou-a o doutor, e enchendo os copos:
Vá exclamou — à saúde da fusão dos partidos e dos...
O abadeo o deixou concluir.
Também o doutor!
Isto fez-me lembrar o tu quoque de César.
O doutor sentou-se desanimado.
Frei Domingos perdera de todo a cabeça; os olhos injectados
caíram sobre mim;o lhe escapei, inocente vítima que era!
Falta o senhor, o que me disse que preferia aos poetas anti-
gos as poesias de... Robespierre ouo sei que outro herói.
D. Margarida compreendeu enfim a necessidade de intervir eo
lhe foi difícil.
Abade, eis os ovos de recheio.
Foi água que caiu na fervura.
Tudo serenou, e cedo os ovos foram, no rigor da palavra, absor-
vidos.
O resto do jantar correu sem outra novidade, ao ser a saudação
geral, que vitoriou a surpresa do doutor, a qual, desta vez, consistiu
em uma dúzia das decantadas frigideiras de Braga, a mais apetitosa
concepção dos pasteleiros da augusta cidade Cesária.
SERÕES DA PROVÍNCIA
V
A
CABADO o jantar e dita a oração de graças, a senhora de Entre
Arroios, depois de nos dar as boas tardes do estilo, chamou a
atenção dos circunstantes, pedindo que se passasse a discutir
o futuro de Tomazinho.
O médico, depois de fazer uma última provisão de ameixas secas,
que ele sustentava serem estomacais, deu o assentimento; imitou-o,
em ambas as coisas, o abade, apesar da mútua animadversão, e con-
tentando-se o doutor de se prover de palitos, passámos todos para o
salão contíguo, que era o lugar de honra da casa e escolhido pela
Sr.' D. Margarida de propósito para aumentar a solenidade do acto.
A senhora de Entre Arroios tomou a cadeira da presidência;
todos se sentaram, só eu que, preocupado pela súbita doença do pai
de Paulina, tinha pouca vontade de entrar na discussão, me conservei
um pouco de lado, sem que ninguém se lembrasse de me chamar,
nem a senhora de Entre Arroios, a qual provavelmente me quis faci-
litar o ensejo de terminar a leitura da poesia de Tomás.
O aposento em que nos achávamos era uma vasta sala rectangu-
lar, forrada por um papel de cor escura que, absorvendo os raios lumi-
nosos, lhe dava um aspecto sombrio e triste, apesar das duas amplas
janelas de peitoril, que abriam sobre o pomar; por cima do fogão de
lousa, artisticamente cinzelado, pendia um espelho de moldura dou-
rada, mas já em parte enegrecida pelo tempo; toda a mobília era pesada
e antiga; o tapete, que forrava o pavimento, revelava longos anos de
serviço nas cores meio desbotadas, e no fio da urdidura já em algumas
partes descoberto. Em uma das paredes laterais, fronteira à porta por
onde entráramos, notava-se, em caixilho cuidadosamente conservado,
um retrato a óleo de grandeza natural e de correcto desenho.
Representava um velho de nobre fisionomia, vestido com a farda
da marinha portuguesa, e em cujo peito se divisava, distintivo de leal-
dade e valor, uma pequena fita azul em fivela de prata.
Era o retrato do pai de Tomás, velho militar, que havia comba-
tido sob o comando de Napier, e voltara à terra, onde nascera, coberto
de anos e de cicatrizes honrosas, para procurar no seio da família uma
morte sossegada.
A pintura era de um discípulo de Vieira Portuense, amigo íntimo
do velho marinheiro e seu hóspede durante uma viagem que fizera
pelo Minho.o quisera o artista perder a ocasião de reproduzir com
o pincel um desses tipos de soldado do mar, que de dia para dia mais
se vao perdendo na nossa terra, outrora berço e escola de navegadores.
D. Margarida tinha para com este retrato uma veneração quase
supersticiosa. Amara extremosamente o marido; porém, como de ordi-
SEROES DA PROVÍNCIA
nário acontece entre caracteres de força desigual, este amor fora nela
misturado com um sentimento de respeito, que ainda conservava pela
memória dele.
Aquele olhar grave e severo,o perfeitamente reproduzido na
tela, parecia ainda exercer sobre a senhora de Entre Arroios a mesma
influência, que exercera em vida.
Se por acaso e involuntariamente fazia chorar o pequeno Tomás,
jáo ousava erguer os olhos na presença deste retrato, como se
temesse encontrar-lhe mais severidade na expressão; mas se, pelo
contrário, alguma coisa acontecia, que fizesse sorrir o filho se as
carícias lhe estancavam as lágrimas, olhava-o, esperando quase vê-lo
sorrir também. De pequeno costumara Tomás a vir todas as manhãs
saudar a imagem do pai; e dir-se-ia estranhar que este lheo retri-
buísse a saudação em bênçãos.
Neste momento ae carinhosa parecia invocar a memória
daquele, que lhe forao caro, para que velasse pelo interesse do
filho; na presença deste retrato, sob os olhares melancólicos daquela
nobre figura, que se dissera contemplá-la ainda com amor, a pobre
senhora achava-se mais forte; era este o templo onde a sacerdotisa
recebia a inspiração que lhe iluminava o espírito; fora deste recinto a
senhora de Entre Arroios sentia-se apeada do pedestal, e despojada
deo sei que auréola que a circundava ali.
Desde que nos viu todos dispostos a escutá-la, disse-nos que enfim
se achava decidida, ainda que com o coração despedaçado, a cumprir
a vontade do marido, o qual sempre revelara desejos de que Tomás
seguisse os estudos; que julgava ser a idade, a que chegara o filho,
aquela em que convinha pensar na realização deste projecto, e que
por isso pedia aos seus amigos, os quais folgava ver ali reunidos, que
assentassem por uma vez qual das carreiras conviria a Tomazinho e
quando se deveria marcar o dia da partida. E, ao dizer isto, a voz tré-
mula e lacrimosa da pobree revelava uma profunda comoção.
Houve silêncio na sala.
Então ? continuou ela, conseguindo dominar o sentimento
que decidem ? O que deve estudar o Tomazinho ?
A medicina.
A jurisprudência.
A teologia.
Bradaram a um tempo o médico, o advogado e o abade.
Jesus, Maria! mas concordem em uma coisa. Eleo há-de
estudar tudo isso. A sua opinião, dada por essa forma, de nada me vale.
Decidam-se por uma.
Pela jurisprudência.
Pela medicina.
Pela teologia.
Repetia o coro.
Valha-me Deus ! dizia a senhora de Entre Arroios, toda aflita,
O advogado continuou:
A jurisprudência. Sr.ª D. Margarida, é o sustentáculo da
sociedade!
A medicina, minha senhora replicou o médico é a âncora
da humanidade!
A teologia é o esteio da religião ! disse por sua vez o abade,
em tom de oráculo.
E disso tudo que é que se tira ? exclamou ae desesperada.
O que se tira? balbuciou o abade.
Pois que se há-de tirar? redarguiu o médico.
E ambos pareciam repetir silenciosamente a si mesmos a per-
gunta, sem atinarem com a resposta desejada.
Tira-se, minha senhora respondeu enfim o advogado, que
era homem para estes apertos que a jurisprudência é a mais nobre
das profissões, a ciência mais útil, o mais valioso conhecimento. O juris-
consulto é um benemérito da Pátria e da humanidade, cuja o devera
glorificar e render-lhe preito; quem mais útil do que ele,, quando
instituindo leis que devam regular os povos,, quando...
Eu estava resolvido a conservar-me mudo espectador deste con-
ciliábulo, que tinha muito de soberanamente ridículo; porém, a pers-
pectiva das legiões de já quandos, que antevira no discurso do orador,
e um olhar expressivo da senhora de Entre Arroios, fez-me mudar de
resolução, e decidi-me a intervir.
Dá-me licença?
O doutor parou, visivelmente contrariado.
O humor dos outros membros do conselhoo me foi, ao que
pude julgar, mais favorável; para eles era um intruso e atrevido.
o sabemos se... foram as palavras que acolheram a minha
intervenção, ao passo que, olhando para D. Margarida, os três pare-
ciam emprazá-la tacitamente a conter a minha ousadia. A senhora de
Entre Arroios mostrou, porém, desta vez uma firmeza, nela pouco
vulgar, e que espantou os eloquentes oradores além de toda a medida.
O Sr. D... disse ela — é um homem de bem e digno de toda
a minha confiança. Julgo que a opinião dele merece ser escutada, visto
que há tanto tempo os senhores discutem esta matéria sem que ainda
fosse possível aproximá-los de um acordo, que desejo, e a que, de
qualquer maneira que seja, hoje é preciso chegar. Fale, Sr. D..., a qual
das opiniões se inclina?
A nenhuma, minha senhora.
Sensação na assembleia; euo cedi a palavra.
E peço a V. Ex.ª continuei que de maneira nenhuma
suponha que intervenho com o intuito de me pronunciar a respeito de
uma carreira que possa convir a Tomazinho. Conhecendo-lhe as incli-
nações, pela natural penetração de mãe, melhor do ques o poderá
V. Ex.* decidir. Mas nem eu penso que se trate aqui de uma criança
incapaz de julgar por si das próprias conveniências e aptidões. O filho
SERÕES DA PROVÍNCIA
SEROES DA PROVÍNCIA
de V. Ex.* tem quase dezasseis anos, e é demais uma inteligência adulta;
parece-me por isso extravagante que se esteja agora aqui talhando
um futuro, talvez já concebido bem diferente pela principal pessoa
interessada. Eu voto que, em vez de nos consultar, consulte V. Ex.»
directamente Tomazinho.
Estas palavras levantaram uma celeuma tal na assembleia, que
meo foi possível ouvir a resposta de D. Margarida.
Que extravagância!
Que singular opinião!
Pois um menor...
. O senhor éo criança como ele.
Onde se ouviu semelhante coisa?
Quae te dementia cepit!
Esta era do abade.
o doutrinas perigosas.
Subversivas.
Anti-sociais.
Republicanas.
Outra do reverendo.
Mostra ignorância do código.
Uma criança senhora sua!
E a vozearia era já tal, que fazia estremecer a sala.
Emo tentava defender-me, emo D, Margarida se esforçada
a pedir-me silêncio; a irritação fazia bramir os três argumentadores,
ligados excepcionalmente contra o inimigo comum, que, por graça
especial, haviam encarnado na minha pessoa.
Durava e prometia perpetuar-se esta algazarra infernal, quando
a porta do salão se abriu violentamente, e Tomás apareceu no limiar.
fazendo de súbito, e como por encanto, cessar todo o ruído.
A cena era de um efeito teatral.
Tomás, mais que nunca excessivamente pálido, com os lábios
trémulos, e os olhos como pisados de chorar, parou por algum tempo
à entrada da sala e correu com a vista os circunstantes, que todos per-
maneceram mudos debaixo do olhar daquele que, momentos antes,
tratavam de criança. Naquela fisionomia enérgica haviam pela primeira
vez reconhecido o homem.
A expressão do pai acentuava-se profundamente nas feições do
filho. A senhora de Entre Arroios, vendo-o, juntou as mãos e elevou os
olhos para o retrato do marido. Dir-se-ia que acreditava em uma aparição.
Tomás entrou para a sala.
Sei do que se trata disse com voz alterada agradeço o
incómodo quem tomado por minha causa, meus senhores; porém,
dispenso tal intervenção.
E voltando-se para a mãe:
Minha mãe, o meu destino está nas suas mãos. Ae sabe
que tudo quanto de si me vier eu o receberei, como costumo receber
as suas bênçãos, de joelhos e com gratidão. E ajoelhando diante
dela beijou-lhe afectuosamente a mão.
As lágrimas saltavam pelas faces da pobre senhora.
Tomás ergueu-se e, enxugando os olhos também, continuou:
Maso falemos por ora nisto. De uma coisa mais grave lhe
vinha falar, mãe.
Eu quis deixar o quarto e consegui que os outros fingissem imi-
tar-me.
Não, não, fiquem exclamou Tomás, detendo-nos com um
gesto o que eu tenho a dizer a minhaeo me envergonha;
antes estimo tê-los por testemunhas.
Jesus, meu filho! que tens tu, que me assustas?
o é nada disse Tomás cada vez mais dominado por uma
comoção desconhecida; e depois continuou: É que o seu doente,
doutor, acaba de me expirar nos braços. Paulina está órfã.
Passado um momento de silenciosa hesitação, acrescentou com
voz lenta e firme:
E Paulina é desde hoje minha desposada.
ÃO sei de coisa alguma que pudesse determinar nesta ocasião
um espanto igual ao que produziram as palavras de Tomás.
A mais viva surpresa se desenhava no rosto dos circuns-
tantes. Eu mesmo, que tinha motivos para menos do que os outros me
maravilhar,o pude reprimir um gesto de admiração, ao ouvir
aquelas poucas palavras pronunciadas com vozo segura, que bem
denunciava a resolução inabalável que as ditara.
A senhora de Entre Arroios olhava para o filho, como se ainda
lhe parecesse um sonho o que tinha ouvido, e desejasse assegurar-se
da realidade.
É uma dívida sagrada, minhae continuou Tomás con-
trai-a junto do leito de um moribundo e sobre a cabeça de uma órfã;
contraí-a, invocando o nome daquele, que parece dacolá olhar-me e
compreender-me.—E apontava para o retrato do pai; depois conti-
nuou mais baixo: Contraí-a inspirado pelo amor.
Estas últimas palavras explicaram melhor a D. Margarida o acon-
tecido ; mas a revelação assustava-a, sem talvez bem saber porquê.
A pobre senhora escondeu a cabeça entre as mãos, murmurando
com voz sumida:
Jesus, meu Deus! E assim se conservou alguns minutos.
Tomáso despregava os olhos da mãe, como se das primeiras
palavras, que ela pronunciasse, lhe dependesse a vida.
SERÕES DA PROVÍNCIA
SERÕES DA PROVÍNCIA
O resto das personagens desta cena, entre as quais me incluo
também,o se sentia à vontade.
Tudo se devia decidir entre ae e o filho. Há nas famílias acon-
tecimentos, em que toda a intervenção de um estranho é inconveniente.
Nenhum des ousava falar, e conservávamos a imobilidade
de um quadro vivo.
No fim de alguns minutos, D. Margarida ergueu a cabeça. Impres-
sionou-me o ar de nobreza e de resolução que se lhe lia no rosto. Era
uma nova metamorfose desta mulher singular.
É promessa sagrada, meu filho disse ela há-de cumprir-se.
E fitou os olhos no retrato do marido, como se daí lhe viera a
inspiração.
Ó minha mãe! exclamou Tomás, ajoelhando diante dela.
D. Margarida susteve-o com a mão.
,o sejamos todos crianças, Tomás. Escuta, queo consinto
sem condições.
o preciso sabê-las para me sujeitar a elas.
O Sr. D...—continuou D. Margarida, olhando para mim
disse-me ter de partir amanhã já para o Porto; hás-de acompanhá-lo;
e daí tu próprio escolherás a carreira que mais te agradar seguir.
Amanhã?!
É preciso. A vontade de teu pai éo sagrada como a tua pro-
messa, filho. É tempo de a cumprir; e há mais que o deveria ter feito.
Seja... mas...
Tomás hesitou ao continuar; a mãe, porém, adivinhou o resto;
atraiu-o a si, estreitou-o nos braços, e, beijando-lhe a fronte com o
maior carinho, disse-lhe a meia voz:
Descansa; ela será minha filha.
Estas palavras fizeram rebentar as lágrimas a Tomás.
Oh! obrigado; o coração dizia-me que ae meo havia de
querer mal por isso.
Querer-te mal, filho! E, depois, afastando-o:o é ver-
dade, Sr. D..., que nos fará o obséquio de acompanhar Tomás?
Tudo em que a puder servir, minha senhora.
E de novo recaímos em silêncio.
Os convidados apressaram-se em abandonar esta casa, onde res-
piravam uma atmosfera de constrangimento.
À noite todos na aldeia sabiam do ocorrido, e cada qual comentava
a seu modo a criancice de Tomás, como eles diziam, e a leviandade
da mãe. Outros viam na resolução de D. Margarida, em mandar viajar
o filho, um meio de desfazer as dificuldades; porque era impossível
que essa paixão despropositada, pensavam eles, resistisse a uma ausên-
cia de anos.
De mimo sei que disseram; mas é de crer, atendendo a que
os propaladores dos boatos eram os três meus afeiçoados, queo
fosse muito cristãmente tratado.
Ficando sós, a mãe, o filho e eu,o rompemos o silêncio, que
se manteve durante horas; todos talvez pensando no ocorrido, e todos
à porfia evitando a menor alusão que pudesse recordá-lo.
Tomás despediu-se ãs nove horas da mãe, que o beijou com o
afecto costumado. Dispunha-me também a deixar a sala, quando um
sinal da senhora de Entre Arroios me obrigou a ficar.
Tudo revelava nela uma serenidade de espírito que me fazia
cismar. Depois de assegurar-se de que ninguém escutava, D. Marga-
rida sentou-se junto de mim e perguntou-me:
—'Então que lhe parece tudo isto?
Para lhe falar verdade, minha senhora, conquanto receie que
este acontecimento seja talvez funesto ao futuro de seu filho,o posso
deixar de admirar-lhe a nobreza de carácter.
Está como eu. Pode crê-lo ? Isto que a outrae traria a deses-
peração talvez, quase que me dá júbilo. Contudo reconheço que é um
passo grave, e preciso impedir que tenha graves consequências.
Eu julgo ter compreendido os projectos de V. Ex.*.
Talvezo disse ela, quase sorrindo.
Uma ausência demorada amortece certos sentimentos, e faz
esquecer promessas que em um momento de exaltação...
o o espero, e se por acaso meu filho se esquecesse, cumpri-
ria a mim lembrar-lho; e eu lho lembraria, acredite. Se foi loucura,
tanto pior, que tem de ser escravo dela.
Mas Paulina mesma, talvez...
Esquecer Tomás!
Havia tanta candura neste brado de vaidade maternal, queo
tive coração para continuar a exprimir-lhe as minhas dúvidas.
Não, não; o meu desígnio é outro—continuou ela—mas por
enquanto é secreto. O que lhe peço é que use de toda a sua influência
com Tomás para o decidir a partir para o estrangeiro. Que vá estudar
à França, à Inglaterra, à Alemanha, onde quiser e o que quiser, mas
que saia do reino e se demore por fora. Quatro, cinco a seis anos.
É essencial.
o posso compreender com que vistas...
É o meu segredo disse ela, sorrindo.—Promete?
Tudo quanto desejar, minha senhora. Reconheço em V. Ex.'
uma superioridade...
Nada de lisonjas, seo quer perder a minha confiança.
V. Ex." deve ter notado que é a primeira vez que lhe falo
assim; é porque há pouco ainda principiei a compreendê-la e a
admirá-la.
Bem; façamos aliança. Mas, antes, quero perguntar-lhe uma
coisa: que me diga o que lhe parece mais para recear nesta resolução
de Tomás?
Receio que aquela paixão seja nele uma das muitas ilusões
de uma idadeo tenra como a sua; e que cedo...
SEROES DA PROVÍNCIA
SEROES DA PROVÍNCIA
A senhora de Entre Arroios interrompeu-me com um gesto de
impaciência e negação.
Cedo não; tarde, tarde, que é o pior! Olhe, ai vai o que eu
penso: Tomás ama sinceramente Paulina, acredito-o. Esta paixão,
longe dela, aumentará talvez. As cenas que a santificaram, em uma
alma como a dele, deixam vestígios, que o tempoo desfaz. Meu
filho, verá, há-de voltar-nos tanto ou mais amante do que partiu. Mas
depois? Paulina pode satisfazer-lhe ao coração, e enquanto o coração
reinar, Tomás será feliz. Porém, quando chegar a vez da inteligência?
e olhe que há-de chegar também; como poderá a pobre rapariga
bastar àquela cabeça que eu já suspeitava, e agora vejo claramente
ser toda de fogo? Creia-me, Sr. D..., a infelicidade destas ligações
desiguais está toda aqui.
Estou inteiramente de acordo, minha senhora, e admiro tanta
penetração.
E dizia a verdade. Esta mulher, como as aparições de certos contos
de fadas, de momento para momento assumia a meus olhos maiores
proporções. Ela que na véspera me parecera vulgar no meio de quase
ridículas tribulações da vida doméstica, que já momentos antes admirara
quando, incitada pelo amor maternal, se esforçava em penetrar o
sentido das expressões vagas e figuradas de uma poesia amorosa;
agora surpreendia-me pela profundeza de vistas, com que antevia no
futuro os sentimentos do filho; a mãe, cujos dotes vinham todos do
coração, previra que a inteligênciao se satisfaz só com sentimentos,
e, na desigualdade de educação de Tomás e Paulina, encontrava a
causa da infelicidade de ambos.
E que tentava ela para evitar o mal? É o queo pude saber
então, baldados os esforços que fiz para o adivinhar.
Depois de mais algumas palavras, trocadas entre ambos, a senhora
de Entre Arroios levantou-se, e, estendendo-me ao afectuosamente,
disse com um sorriso:
Vá dormir, Sr. D..., que eu vou pensar no futuro de meu filho.
o me foi muito fácil conciliar o sono. O ânimo, sobressaltado
pelas cenas que tinha presenciado, mal me permitia o repouso.
No dia seguinte levantei-me cedo. Desci à sala, onde já encontrei
D. Margarida fazendo preparativos para a partida de Tomás.
Exigências, a queo podia faltar, me obrigavam de facto a partir
naquela manhã para o Porto, bem mais depressa do que contava e,
direi, até, do que desejava.
A senhora de Entre Arroios mostrava-se preocupada, maso
aflita. A despeito das leves rugas, que lhe sulcavam a fronte, entre-
via-se-lhe um fundo de serenidade na fisionomia, que me fez julgar que
a noite fora fiel desta vez à sua fama de boa conselheira. Ao ver-me,
D. Margarida exclamou;
Que pressa de nos deixar, Sr. D...,o seis horas e já
erguido 1
E porqueo há-de antes dizer V. Ex." que foi para gozar por
lis tempo da sua companhia que assim madruguei?
Porque éo lisonjeiro que me custa a acreditar. Passou bem
Optimamente. V. Ex." é que, se meo engano, dormiu pouco.
o dormi nada.
E aproveitou ao menos a vigília?
Espero que sim.
Tomás juntou-se connosco. As faces abatidas, os olhos vermelhos, as
feições decompostas, denunciavam que ele tambémo havia dormido.
A vista dos preparativos da partidao pôde reprimir um suspiro.
Depois de cumprimentar a mãe, dirigiu-se à janela para ocultar as
lágrimas, que lhe vieram aos olhos.
D. Margarida saiu igualmente comovida.
Eu reuni-me a ele.
Deve-lhe ser custosa esta separação ?
Abanou a cabeça afirmativamente. A comoção impedia-lhe o falar.
o alguns anos de provação continuei para depois apre-
ciar melhor a ventura.
Alguns anos! Como diz isso! E que hei-de eu fazer durante
esse tempo?
O estudo o distrairá.
O estudo! Pois julga que assim como estou poderei entregar-me
a algum estudo sério ?
E porqueo ?
Se soubesse... Parto com o desespero no coração.
o diga desespero, poiso tem a esperança no futuro?
A senhora D. Margarida terminara enfim os preparativos de jor-
nada, sem que a menor omissão se pudesse notar à sua previdência
maternal. E quanta resignação lheo fora precisa!
Passámos à sala do almoço, e cada vez a tristeza a tornar-se
maior! Fazia lembrar um destes dias de Inverno, em que a escuridade
cresce, cresce cada vez mais até rebentar a chuva.
Ae e o filho surpreendiam-se por vezes, olhando um para o
outro, com os olhos arrasados de lágrimas.
Enfim o momento chegou.
Tive eu de anunciá-lo; de outro modo quando chegaria ?
Vamos ? vi-me forçado a dizer.
Um olhar, dolorosamente expressivo, trocado entre os dois,
seguiu-se a esta palavra.
Adeus, meu filho! disse a senhora de Entre Arroios, des-
falecendo-lhe a voz.
O resto imaginai-o como a experiência vo-lo terá mostrado, se
o sois privilegiados do destino.
Um abraço prolongado, em quee e filho se cobriram de lágri-
mas e beijos, anunciou aquela primeira separação.
SEROES DA PROVÍNCIA
SEROES DA PROVÍNCIA
Então, então, Tomás, mostra-te homem dizia a senhora de
Entre Arroios, sufocada em pranto isto é uma criancice. Dentro em
poucos anos voltarás e... hás-de ser feliz, prometo-te.
Adeus, mãe, adeus. Pense em mim e lembre-se de... de Paulina,
E qual é ae que seo lembra de seus filhos ?
Tomás desprendeu-se-lhe afinal dos braços e dirigiu-se comigo,
queo partia também sem saudades, para a próxima estação das dili-
gências do Porto.
Da casa de Entre Arroios avistava-se, em uma grande extensão,
o caminho que seguíamos ambos, e assim, a cada passo, parávamos na
carreira, para que Tomás lançasse mais uma vez um olhar de despe-
dida àquelas janelas, com as quais tantas recordações deixava, e de
onde ae lhe enviava o último adeus.
Perdemo-las enfim de vista, e por largo tempo caminhámos silen-
ciosamente ao lado um do outro.
O caminho que seguíamos, estreito e orlado de silvas, condu-
ziu-nos a um pequeno largo, coberto de relva, no centro do qual se
elevava um cruzeiro de pedra. Frondosos carvalhos assombravam este
lugar solitário e imprimiam-lhe um aspecto verdadeiramente pitoresco.
Quando nos aproximávamos, pareceu-me divisar no pedestal da cruz
um vulto, que a meia obscuridade, que se conservava ali, meo deixou
reconhecer logo. Tomás, com os olhos abaixados,o atentara nele.
Mais perto percebi esta forma mover-se, atraída, ao que parecia, pelo
ruído dos nossos passos; ao ver-nos, ergueu-se subitamente e reco-
nheci-a.
Era Paulina.
Se na véspera já admirara a figura graciosa da pequena leiteira,
tingida com o rubor da modéstia, mais me surpreendeu desta vez a
sua fisionomia, verdadeiramente bela, desmaiada pela palidez do
sofrimento. Os cabelos soltos, as mãos juntas, nas faces vestígios de
lágrimas recentes, assim naquele lugar e aoss da cruz, recordava
uma dessas virgens, cuja fé e martírios valeram tantas páginas de ver-
dadeira poesia aos anais da religião cristã.
Tomás, como se escutasse uma voz interior, elevou nesse
momento a cabeça e contemplou com amor a aparição.
Paulina, rápida como o relâmpago, correu para ele e cingiu-o
com os braços, cuja alvura, pouco vulgar no campo, mais realçava
ainda sobre o escuro dos vestidos de luto.
A minha presençao reprimiu este acesso de violenta paixão.
Sei tudo! disse ela, sufocada pelo choro. Sei tudo, Tomás!
Olha, até aqui amei-te com um amor de criança, mas agora acres-
centou, desviando-lhe da fronte os cabelos com movimentos quase
febris agora, hei-de amar-te como uma mulher, adorar-te... como
escrava.
E, unindo os seus lábios aos dele, confirmou esta singela confis-
o por um ardente beijo.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Paulina! disse Tomás quase em delírio.
Mas para que partes ? continuou Paulina em tom de voz
sada de meiga exprobração.
Era vontade de meu pai.
E eu, Tomás, que farei eu só aqui? disse a pobre rapariga,
afastando brandamente de si a fronte do amante e olhando-o com
^pressão de saudade inquieta.
Então, Paulina, queres tirar-me o ânimo de...
Estas palavras operaram súbita transformação em Paulina. Estre-
meceu como se acordasse de um sonho importuno, ergueu a cabeça,
enxugou os olhos com as mãos, e afastando para trás as negras tranças,
disse com um sorriso forçado e a voz abafada e trémula:
Não, parte, parte! E, como receando comover-se de novo,
desprendeu-se por gracioso movimento dos braços de Tomás, e desa-
pareceu.
Paulina! exclamou Tomás, como tentando segui-la.
Deixe-a partir! disse-lhe euo tornará menos amarga
a despedida, prolongando-a.
Oh! meu amigo murmurou Tomás, apertando-me a mão.
Era a primeira vez que me concedera este título, que nunca depois
me negou.
Dentro de alguns minutos partíamos silenciosos para o Porto,
sentados um ao lado do outro em um dos bancos da diligência da
manhã.
VII
T
OMÁS demorou-se pouco tempo no Porto. Indiferente a tudo,
desde a sua partida de Entre Arroios, facilmente se resolveu
a embarcar para Paris, quando, cumprindo a recomendação
de D. Margarida, o animei a seguir ali um curso qualquer, demorando-se
com esse fim os anos que lhe fossem necessários. Dentro de um mês,
acompanhei-o a bordo de um navio que partia para o Havre de Grace.
Tomás parecia deixar em Portugal as esperanças de felicidade.
Ao despedir-se de mim, o seu desalento era completo.
Escrevi a senhora de Entre Arroios a dar-lhe parte do aconte-
cido, e relatando-lhe até à menor particularidade a partida do filho.
Recebi em resposta uma carta, na qual ela, depois de me agra-
decer exageradamente este pouco que eu havia feito por Tomás, me
dizia que, achando a casa de Entre Arroios insuportável, depois da
partida do filho, resolvera fazer uma excursão durante a ausência dele,
para iludir saudades.o sabia ainda para onde iria, e que tempo se
demoraria na viagem, e por isso me avisava queo lhe escrevesse,
antes de primeiro receber carta sua.
Esta carta nunca chegou. Negócios particulares me impediram
de voltar a Entre Arroios, e minhas próprias canseiras, reunidas j
acção do tempo, foram combatendo em mim cada vez mais a memória
das cenas, que, no curto espaço de três dias, eu presenciara, e que
me haviam feito participar dos sentimentos de uma família, pouco antes
para mim desconhecida.
De Tomás nada mais pude saber, do que de sua mãe.
Depois de uma carta, ainda repassada de saudades, em que me
noticiava sua chegada a Paris e a resolução que tomara de seguir o
curso na faculdade de medicina, enchendo o resto a falar-me de Pau-
lina,o soube mais notícias dele.
Alguns portugueses chegados de Paris, a quem interroguei,o
o tinham visto, ou davam-me a seu respeito informações inexactas.
Assim se passaram seis anos.
Um dia, chegando a casa, recebi uma carta que me viera pelo
paquete; trazia o carimbo de Saint-Nazaire.
Abri-a, ignorando quem me escrevia,o remota, confesso-o, me
andava já a ideia do pequeno Tomás, em quem me habituara quase
ao pensar.
Contudo, a carta era dele, e concebida assim:
«Meu caro D...
«Com razão me deve supor uma criatura bem desagradecida.
«Nem eu sei como justificar-me do conceito. Contudoo me
chame volúvel,o pense que os fulgores de Paris puderam ofuscar
na minha memória as cenas da pátria, e principalmente as últimas, que
em um momento decidiram do futuro da minha vida inteira.o julgue,
seo quer ser injusto também. Ainda a saudade me fala delas, e a
esperança me faz palpitar o coração, mostrando-me próxima a época
de ver realizados aqueles meus antigos sonhos sonhos que nunca
me abandonaram, felizmente.o lhe tenho escrito,o me per-
gunte porquê, que mal lho poderei dizer.o me absolverá sem peni-
tência? A esperança faz parte da bagagem do pecador; euo
desanimo.
«Estou em Saint-Nazaire.o me foi possível partir como dese-
java neste paquete, o que espero fazer para o seguinte.
«Conto, pois, abraçá-lo dentro em pouco, convidando-o desde já
a acompanhar-me a Entre Arroios, para assistir à inauguração da minha
felicidade.
«Paulina espera-me. Minhae tem-me escrito e informado,s
por mês, do viver de toda a minha gente em Entre Arroios. Os dias
continuam a correr-lhe ali naquela santa placidez em que eu fui criado
e onde só vejo a minha felicidade, se nissoo consiste a felicidade
de todos,
Adeus; breve conversaremos.
SERÕES DA PROVÍNCIA
SERÕES DA PROVÍNCIA
«P. S. Que cabeça a minha! Ia-me esquecendo participar-lhe
que me formei em Medicina. Satisfiz a vontade de meu pai. Pude rela-
cionar-me com algumas das principais capacidades literárias e cien-
tificas de Paris, e acho-me um pouco pior de uma impertinente doença
que daí trouxe — a poesia. Adeus, adeus; hei-de falar-lhe com mais
vagar de minhas viagens pela França, e de outras ainda mais do meu
gosto, por um mundo menos real.
«Seu afeiçoado, Tomás de A velar.»
Esta carta trouxe-me novamente à recordação todas as cenas
passadas em Entre Arroios.
Seis anos tinham decorrido, os seis anos que D. Margarida mar-
cara à ausência de Tomás. O que se passara durante este tempo e o
que se ia passar agora?
Tomás via eu, com verdadeiro prazer, que seo esquecera em
Paris da sua desposada de Entre Arroios.
Mas o que sobretudo me maravilhou foi o ter D. Margarida
escrito ao filho por todos os paquetes, descrevendo-lhe a vida de Entre
Arroios, a qual correra, segundo me dizia Tomás, com a placidez cos-
tumada.
Logoo havia ela, como me tinha dito, abandonado a aldeia.
Porqueo me escreveria então?
Por mais que cismasse,o me foi possível encontrar explicação
satisfatória, eo pensei mais nisso.
Passado um mês, entrava Tomás no meu quarto e apertava-me
nos braços com verdadeira alegria.
Algumas alterações sofrera nele a fisionomia durante os anos
que vivêramos separados. O rosto perdera a expressão infantil que
tinha ainda em Entre Arroios, quando pela primeira vez o conheci:
era agora uma face mais varonil, maso nobre e inteligente como
dantes.
Então, mon cher docteur—disse-lhe eu ei-lo de volta? e
sem que toda a sua ciência, ao que parece, tenha conseguido curá-lo
de uma doença de coração, com que partiu.
Venho pior, muito pior respondeu-me sorrindo.
Deveras ? Pois confesso que receei nos aparecesse curado.
Receio bem pouco lisonjeiro para o meu carácter.
Istoo é questão de carácter.o mistérios do coração, que
eu desculpo e respeito quase.
Seja o que quiser. Agora vamos a saber: está disposto a acom-
panhar-me a Entre Arroios ?
Da melhor vontade,
Partimos amanhã ?
Hoje que queira.
Seja hoje.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Passámos o dia juntos. Contou-me a sua vida em Paris, vida exem-
plar para um rapaz daquela idade; seus felizes sucessos na Escola de
Medicina, onde fora reputado entre os melhores, e suas pequenas
fortunas literárias, como afrancesadamente ele dizia.
Tomás voltava com uma instrução sólida, uma superioridade de
vistas, um gosto apurado, que me fizeram lembrar dos receios da
senhora de Entre Arroios.
Como poderia de facto esta inteligência satisfazer-se com o espi-
rito inculto de uma rapariga aldeã, depois de saciados os primeiros
ardores da paixão?
O plano de D. Margarida piorara a situação, ao que me parecia,
exagerando a desigualdade.
Dei a entender isto mesmo a Tomás, ele sorriu.
Sossegue respondeu-me vi lá por fora muitas mulheres,
a quem d espírito havia estragado, alienando-as aos gozos de família,
para me inquietar poro pouco.
Conquanto reconhecesse algum fundo de verdade nestas pala-
vras, as minhas apreensõeso se desvaneceram totalmente.
Estivemos à noite no teatro, onde pude admirar ainda melhor a
extensão e variedade dos conhecimentos artísticos de Tomás.
Saindo do teatro, introduzimo-nos em um cupé, e por aquele
mesmo caminho que, seis anos antes, seguíramos em direcção
oposta e com bem diversos sentimentos, dirigimo-nos para Entre
Arroios.
Ao romper da manhã avistávamos os telhados das primeiras
casas da aldeia.
O tecto elevado de Entre Arroios, com a sua alta clarabóia,o
tardou também a despontar no horizonte.
O olhar de Tomás brilhava neste momento, o sangue afluía-lhe
ãs faces, palpitava-lhe o coração com violência.
Conheço-vos ! conheço-vos ! dizia ele árvores da minha
infância! Conheço-te, berço dos meus primeiros anos e que espero
serás o descanso dos últimos. Nenhum monumento, nenhum espectáculo
grandioso das capitais que percorri me fez esquecer de vós, teste-
munhas da minha ventura e dos meus primeiros sonhos de amor. Oh!
meu amigo ! continuou, apertando-me ao sou verdadeira-
mente feliz. Parece-me que deixei aqui a minha vida, e que a adquiro
de novo ao respirar estes ares conhecidos, estes perfumes férteis em
memórias de outros tempos.
E emudeceu, caindo em lânguida contemplação.
Estas cenas também me recordavam o passado; e o passado
mostra-se-nos sempre através de umu de saudades.
A aldeia, como todas as aldeias, sofrera poucas mudanças no
espaço de seis anos.
As mesmas árvores, as mesmas sebes, os mesmos ribeiros e
pontes, tudo fazia reviver em Tomás a memória dos primeiros anos.
SEROES DA PROVÍNCIA
Apeámo-nos para melhor gozar destas cenas, que tanto nos impres-
onavam.
Ao chegarmos ao lugar, onde Paulina ultimamente nos aparecera,
Tomás parou a contemplar o humilde cruzeiro com um fervor quase
religioso.
Lembra-se ? disse-me, sorrindo.
Como se fosse agora!
Tem razão. Ao chegar aqui parece-me impossível que tenham
já passado seis anos da minha vida! É como se acordara de um sonho
de momentos.
Continuámos no nosso caminho até ao portão da quinta de
Entre Arroios; ao levantar o braço para tocar a sineta, as forças
abandonaram-no e deixou-o pender, como exausto por esforço pro-
longado.
A comoção dominara-o completamente.
Toquei eu. Respondeu-nos a voz conhecida dos mesmos cães.
Seguiram-se-lhe os passos trôpegos de um velho criado, o mais
antigo na casa de Tomás, e companheiro do pai nas tormentas
do mar e na refrega dos combates. Hoje, imitando Cincinato, dei-
xara a espada pela enxada, que o bom homem pensava, como o
poeta, ser:
Morgado eo pena dos filhos de Adão.
Ao encarar-nos, o velho hortelão fez um gesto de surpresa e
levou ao ao chapéu para nos cumprimentar; mas, afirmando-se
melhor em Tomás, reconheceu-o, e arrojando a incrível distância o
chapéu que já empunhava, gritou abrindo os braços:
Ai o Sr. Tomazinho!
E, esquecendo toda a etiqueta, levantou-o ao ar, como lhe fazia
em criança. Tomás correspondeu com efusão ao cumprimento.
Minha senhora! minha senhora! bradou o velho aqui
está o senhor...
Ao de Tomás interrompeu-lhe as palavras. Ele meditara uma
surpresa.
Mas que mais era preciso para avisar o coração de mãe?
A porta da casa abriu-se, e, com uma agilidade superior à sua
idade, D. Margarida percorria em um momento a avenida, que a
separava de nós, e caía nos braços do filho.
Eu, que naturalmente nem fora ainda notado, vi então avançar
o menos alvoroçada, porém mais tímida, a poética aparição do cru-
zeiro, Paulina. Vestida ainda à camponesa, porém com um gosto e ele-
gância pouco vulgares, parecia-me uma dessas pastoras ideais que
sonhava a poesia do século de Luís XIV, sonho tantas vezes contado
em idílios, sonetos e madrigais.
o direi que Paulina fosse mais bela do que quando a deixara-
SEROES DA PROVÍNCIA
mos, mas o que havia era umo sei que particular naquela fisionomia,
que me impressionava, sem poder dar a razão disto.
O sangue dos vinte anos, que animava agora em mulher a criança
de então, explicava muito, maso me explicava tudo.
Em vez de saltar, como outrora, ao colo de Tomás com uma con-
fiança toda infantil, parara interdita, trémula, contemplando-o com ar
apaixonado, invejando talvez aqueles beijos que D. Margarida lhe
roubava, maso ousando disputar-lhos. Esta, porém, depois de dar
expansão ao próprio júbilo, abriu o coração a sentimentos menos egoís-
tas es em prática o que eu considero como a décima quinta obra de
misericórdia: reunir os que se amam. Assim, depois de um último
beijo, a boae tomou pelao Paulina e impeliu-a para os braços de
Tomás, dizendo simplesmente:
Ei-la.
Tomás pareceu fascinado pela beleza da sua desposada. Talvez
que experimentasse ao vê-la a mesma impressão que eu já sentira.
o foi com a antiga confiança, antes com um sentimento de respeito
que a cingiu ao seio e a beijou na fronte, beijo, que apesar de tudo,
o deixou de a fazer corar excessivamente.
O resto desta cena adivinha-se, que eu souo incapaz de des-
crever as alegrias da volta, como as tristezas da partida.
VIII
S
ATISFEITOS os primeiros transportes do amor materno, D. Mar-
garida concedeu-me atenção, e mostrou-se para comigoo afec-
tuosa como dantes.
Desculpou-se como pôde, de meo haver escrito, eo tocou
em os seus projectos de viagens, evitando habilmente falar-me nisso,
quando eu para aí tentava dirigir as minhas investigações.
Tomás veio encontrar algumas mudanças nos hábitos da casa.
Faltava ali o abade, que havia um ano tinha morrido de ataque
apopléctico, consecutivo a uma indigestão de lagosta. Pobre homem!
vivera para o estômago e o ingrato sacrificou-o! Era destino! Ele per-
tencera a um mosteiro de beneditinos, célebres por um invento gas-
tronómico.
Melhor que ninguém aprendera ali a preparar a decantada fari-
nha de S. Bento, substancial gulodice, com que os bons monges de
Santo Tirso aplacavam, segundo diz a lenda, as iras estomacais de um
monarca português, e segundo o bom senso afirma, as iras,o menos
temerosas, das suas próprias vísceras monásticas.
Seja-lhe mais leve a terra, do que lhe foi o último banquete.
Notava-se também a falta do doutor Teófilo, que, desesperando
r SEROES DA PROVÍNCIA
de levar a efeito o consórcio com D. Margarida, dirigia actualmente
as suas amáveis atenções a uma rica brasileira das proximidades,
nutrindo o amor com mandioca e banana.
O médico era dos três o único presente, e seo receasse abusar
da força da concepção do leitor, pedir-lhe-ia que o imaginasse mais
magro ainda, do que quando pela primeira vez lho apresentei. Empre-
gava ele os maiores esforços parao falar diante de Tomás em assun-
tos de medicina. Renovava de algum modo a fábula do estatuário e
... on le vit fremir le premier
Et redouter son propre ouvrage
que obra sua dizia ele ser a formatura de Tomás.
A aldeiao ficou pouco surpreendida, quando, passados dias,
se anunciou o próximo casamento de Tomás com Paulina...
Julgava-se já isso coisa esquecida. A nova estalou pois no meio
do círculo como uma bomba, e conjuntamente em frase vulgar, estalou
uma castanha na boca a muitos pais e mães de família, produtores e
expositores de jeunes filles à marier, nesta pequena exposição de Entre
Arroios.
O médico, visivelmente contrariado, informou-se logo se Tomás
tencionava persistir na aldeia, depois de tomar novo estado. Tomás
respondeu que sim, porém, como para o acalmar, acrescentou que
o estava disposto a exercer a clínica, ao ser gratuitamente aos
pobres.
O nosso Esculápioo morria de amores por esta parte da clien-
tela, e por isso louvou excessivamente a caridade do novo doutor, e
esquecendo até o habitual laconismo, citou, no ardor do entusiasmo,
Hipócrates recusando os presentes de Artaxerxes, facto da vida do
médico de Cós, que o bom do homem, lá para com seus botões, jul-
gava redonda parvoíce.
A família de Entre Arroios passou a viver uma vida toda interior
e a gozar de uma serenidade que me deliciava.
Paulina mostrava-se terna, sensível e ingénua como dantes. Tomás
parecia idolatrá-la. Ao serão, enquanto ela trabalhava em costura e a
Sr.» D. Margarida, cuja vista cansada já lheo permitia essas folias,
dobava meadas com os movimentos regulados de um autómato. Tomás,
sentado defronte delas, descrevia, até aos mínimos pormenores, a sua
vida em Paris. Ae escutava-o encantada. Por vezes as duas mulhe-
res suspendiam o trabalho, para seguirem a narração nos pontos mais
interessantes; por vezes D. Margarida trocava com Paulina, a quem
votava uma afeição verdadeiramente maternal, um olhar e um sorriso,
cuja significação euo podia decifrar.
Conservei-me nesta casa até ao casamento de Tomás, que se efec-
tuou passados quinze dias.
Foi um facto notável na aldeia.
SERÕES DA PROVÍNCIA
o se falou em outra coisa por muito tempo senão no jovem
doutor, e na fidalga, conduzindo pelao ao altar a Paulina, vestida
ainda com os costumes do lugar, apenas mais artisticamente dispostos
que os das outras raparigas em quem esta particularidade, compensada
pelas maneiras modestas da noiva, longe de lhe atrair invejas, antes
parecia despertar simpatias.
A senhora de Entre Arroios andava nesse dia visivelmente
satisfeita.
E os seus receios, minha senhora? disse-lhe eu, em um
momento que estivemos sós.
Cuida que os perdi? respondeu-me sorrindo.
Pois acaso?...
Receio como dantes.
Então...
Acabe.
Mas compreendo a alegria de V. Ex." neste momento, porque...
Pareçe-lhe umae desnaturada;o é isso ?
o digo tanto, mas...
Com o tempo falaremos.
E riu-se.
Na tarde desse mesmo dia, que era um domingo, percebendo
que havia alegria suficiente naquela casa, para que a minha ausência
pudesse ser muito sentida, despedi-me dos noivos e da senhora de
Entre Arroios, e montei a cavalo para o Porto.
Ao sair de uma encruzilhada ouvi atrás de mim passos de caval-
gadura. Voltei-me; era a tradicional mula do médico, com seu descar-
nado senhor, cujas pernas retesadas e divergentes, lhe davam apa-
rência de um ipsilo voltado.
Então já de partida, meu caro ? exclamou de longe ao avis-
tar-me.
Esperei-o e caminhámos a par pela estrada.
É verdade. Deixei a felicidade a substituir-me. Espero que se
o queixarão da troca.
Então sempre casou o Tomazito? Euo pude assistir; tive
um recado com pressa. E então que me diz de toda esta história?
Digo que o Tomás fez a sua felicidade.
Orao me venha com isso. A raparigao tem nada de seu,
e aquele rapaz podia aspirar a um bom casamento.
Bom em que sentido ?
Essa é boa! Olhe que isto de casar é uma coisa séria.
o duvido e nem julgo que o Tomás o fizesse a rir. O doutor
sabeo bem como eu os pormenores deste casamento...
Romances! O que me admira é a D. Margarida! Nunca esperei
dela...
Ora, meu caro senhor, issoo é assim. Ae e o filho tiveram
muito tempo para pensar nisto.o foi um passo inconsiderado.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Mas se eu lhe digo que D. Margaridao tem a cabeça em
seu lugar !
Ah!o sabia!
Pois é facto.o me dirá o senhor o que ela fez durante cinco
anos?
O que ela fez ?
. Sim; debalde penso nisso. Quebro a cabeça eo acho nada I
Sorri-me da ingenuidade da confissão.
Entãoo acha nada ?
E quebra a cabeça?
É verdade.
É mau sinalo pude deixar de observar a meia voz.
Mas o senhoro me diz o que fez D. Margarida? tei-
mava ele.
Mas o que havia ela de fazer ? O que dantes fazia.
E aquela viagem !
Que viagem?
Uma viagem de cinco anos.
Ah! pois D. Margarida...
Ums depois do pequeno partir, saiu também da terra com
Paulinita, e lá andaram cinco anos... sabe Deus por onde.
É singular! mas ela disse-nos que...
Se eu lhe afianço que elao tem o juízo em seu lugar!
Nisto chegámos ao ponto onde nos devíamos separar. O dou-
despediu-se de mim, firmemente convencido de que a família de
Entre Arroioso era forte em senso comum, e que aliás abun-
dava nele.
Conquanto euo adoptasse absolutamente esta opinião, nem
em uma nem na outra parte,o podia deixar de reflectir no carácter
excêntrico da senhora de Entre Arroios e na causa deste segredo,
que ela parecia querer manter a respeito da sua viagem; segredo
que só a sua muita táctica e o isolamento em que vivia a família lhe
poderia assegurar por muito tempo.
Cheguei ao Porto com as melhores disposições, e em breve deixei
de pensar no carácter e mistérios da senhora de Entre Arroios, os
quais me satisfiz em explicar por um dos muitos caprichos de mulher;
explicação, que à semelhança de muitas teorias em ciência, deixava
o facto na mesma obscuridade.
Tomás, todo absorvido pela sua felicidade,o me escreveu por
muito tempo. Nem tive durante um longo período, notícias de Entre
Arroios.
Um dia apareceu-me finalmente uma carta de Tomás, na qual
ele se dizia extremamente venturoso; só lamentavao me ver a seu
lado e pediu-me que o visitasse breve.
o me foi possível aceder então ao convite,
SEROES DA PROVÍNCIA
Pouco tempo depois recebi segunda carta. Os mesmos protestos
de felicidade e lastimava queo houvesse nas imediações ninguém
com quem se conviver. Havia aí um parágrafo que me deu que cismar;
era assim:
«...e agora o Inverno aproxima-se. Já mo andam a anunciar estas
pesadas nuvens de mau agouro, que obscurecem a cada passo a lim-
pidez do céu. Confesso-lhe que me assusta um pouco esta perspectiva.
Com o Invernom as noites compridas.o me dirá no que as hei-de
passar aqui?»
Noites compridas? disse eu comigo ao ler, e lembraram-me
as apreensões da senhora de Entre Arroios.
A estas seguiram-se outras cartas, nas quais Tomás me falava
largamente de assuntos de literatura, de artes e de ciências. Eram
verdadeiras expansões de um homem de talento, que de ordinário se
vê obrigado a sufocá-las.
Na última deixava-me entrever vagamente a ideia de uma pró-
xima viagem ao Porto.
Estes sintomas principiavam a inquietar-me, quando passados dois
meses recebi uma pequena carta de D. Margarida, que continha estas
palavras apenas:
«Meu caro Sr. D...
«Olhe que os meus receios principiam a realizar-se. Convido-o
a que venha examinar o meu doente e talvez a presenciar a cura.
«Sua dedicada, Margarida de Avelar.»
Esta carta, quase enigmática, excitou a minha curiosidade e foi
com o mais vivo interesse que nessa mesma tarde tomei bilhete nas
diligências e parti para Entre Arroios.
A primeira pessoa que encontrei foi Tomás passeando em uma
alameda vizinha com um livro na mão.
Ao ver-me deu quase um grito de surpresa e abraçou-me com
efusão. A minha presença parecia satisfazer nele uma necessidade.
Apresentou-me logo à mãe, que, ao cumprimentar-me, sorriu e
me fez sinal deo falar a Tomás na carta que eu recebera dela.
Paulina também me acolheu com agrado, e, contra o que eu
receava, pareceu-me Intimamente satisfeita.
Era bela como sempre. Tomás mostrava-se em extremo afectuoso
para com ela. As vezes contemplava-a em uma tácita adoração e quase
em êxtase; mas um suspiro vinha quase sempre terminar esta con-
templação silenciosa.
Seria Prometeu ambicionando o fogo dou para animar a estátua ?
A senhora de Entre Arroios, nestes momentos, olhava-me com
um sorriso, como de vaidade satisfeita.
SEROES DA PROVÍNCIA
Ela via naquele suspiro realizada a sua profecia; mas eu avaliava
muito bem a boa índole desta excelente senhora e a grandeza do seu
amor maternal, para acreditar que isto lhe causasse o menor prazer,
se elao tivesse algum meio, meio que emo tentei descobrir, para
evitar-lhe as consequências.
Tomás saiu comigo, a instâncias dae e de Paulina, que ambas
mostravam bastante empenho em que empreendêssemos este passeio.
Só com Tomás, que se despediu de sua mulher com um beijo
afectuoso, tentei sondar a profundidade da doença, como lhe chamava
a senhora de Entre Arroios.
Vejo que se realizaram todos os seus votos; pode enfim
zer-se feliz.
Sim; extremamente feliz.
o tem nada que o penalize ?
Nada respondeu em tom mais baixo e suspirando.
Seja franco. Tem alguma coisa ?
Porque diz isso ?
Porque o acho preocupado. Triste quase.
Oh! É engano.
E quer que lhe diga o que o preocupa?
Mas...
Oiça e fale depois.
Pois diga.
Há-de permitir me a franqueza.
Exijo-a.
Um pouco rude.
o lhe admito outra.
o tem direito para tanto, porque também ao usa comigo.
Prometo-lha depois de ouvi-lo.
Seja, e aí vai o que eu penso: se vou cometer uma indiscri-
ção, perdoe-ma. O senhor casou por paixão e paixão violenta, que se
o desvaneceu em seis anos de ausência. Sua mulher é bela, como
poucas, extremosa e afável; possui um coração formado para simpa-
tizar com o seu; saberá consolá-lo nas penas, exultar com as suas ale-
grias, receber e compreender as efusões do sentimento, mas...
Mas ? interrogou Tomás, com olhar de inquietação.
Mas uma alma como a sua, Tomás, é mais exigente.
Não,o é.
Oiça. Há momentos em que isso lhe basta, em que essa reci-
procidade, essa harmonia de sentimentos lhe parece a suprema ven-
tura; bem sei. Mas há outros em que a inteligência aspira a encon-
trar-se com uma inteligência que o aprecie; ambiciona voar, engran-
decer-se, elevar-se eo quereria achar-se só no espaço, desejaria
outra para marcharem unidas, e essa outrao pode ser a de Paulina.
Podia, se...
Se se dessem circunstâncias, que seo realizaram.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Há um fundo de verdade nisso que diz respondeu Tomás
mas creia ainda assim que sou menos merecedor de exprobração,
do que lhe parece talvez. Sim, é certo; lamento às vezes que Paulina
o tivesse recebido uma educação superior,o por ambicionar
quem possa satisfazer-me a vaidade de ser compreendido, apreciado,
como diz; de estranhos pouco me importaria isso, mas por desejar
ser em tudo compreendido por ela, tornar mais íntima esta identificação
das nossas existências.o lhe parece menos egoísta este sentimento
assim ?
Por certo.
E depois, sabe o que me consola ? É que esta necessidade de
efusões é fictícia; as únicas verdadeiras e irresistíveiso as do cora-
ção. Eu creio que ele sobrevive à inteligência. Alguns médicos cha-
maram-lhe o ultimum moriens; assim o considero também, referindo-lhe
a vida dos afectos. Com a idade, as exigências do coração duram
ainda, enquanto as da fantasia amortecem e acabam por se extinguir.
Isto em mim é uma crise que há-de passar; Paulina é a única mulher
que podia realizar neste mundo a minha felicidade.
Acredito, mas issoo tira que a desejasse animada pela luz
da educação.
Torras ficou um pouco pensativo.
Prometi ser franco disse suspirando hei-de sê-lo. É uma
verdade.
Bem dizia sua mãe. A cabeça domina agora o coração.
Minha mãe!
Há seis anos que previra isto mesmo.
Ela? É verdade que certas palavras vagas, certos olhares me
davam a entender... e contudo eu próprio o duvidava ainda.
Ânimo! É preciso vencer esse sentimento.
Hei-de vencê-lo custe o que custar. Mas quando penso que
aquela voz se perdeu para a música, aquela inteligência para a poe-
sia!... que aquele gosto, naturalmente delicado, seo exerce em
lidas dignas dela!... quando me lembra de que aquele espírito, criado
para voar, seo eleva por falta de asas...
Agora recordo-lhe o que me disse quando chegou de França,
lembra-se ? — o espírito aliena às vezes a mulher da vida de família.
Oh! mas Paulina... e interrompendo-se subitamente.
Vamos para casa. É pecar contra Deus sero exigente, quando se é
o feliz.
Caminhámos longo tempo silenciosos e quase tristes.
Ao aproximarmo-nos do pomar, uma vaga harmonia chegou aos
nossos ouvidos; eram os sons de um piano.
D. Margarida introduzira esta inovação em Entre Arroios, depois.
que Tomás voltara de França, apesar de que só ele em casa tirava o
instrumento do silêncio, em que dias inteiros se conservava, encostado
à parede da sala principal, onde eu já uma vez me encontrei com o leitor.
SEROES DA PROVÍNCIA
Ao ouvir os primeiros sons do piano, Tomás mostrou-se impa-
ente.
Ao que me parece, minhae recebeu visitas durante a nossa
ausência. Que impertinência!
Mas à medida que nos aproximávamos, as notas do instrumento
tornavam-se mais distintas. A execução revelava umao conhecedora.
Tomás parou a escutá-las.
Meu Deus! exclamou surpreendido quem pode tocar
o divinamente?
De facto, quanto mais perto, mais sensível se tornava a mestria
com que as teclas, ordinariamente mudas, eram movidas então, pro-
duzindo verdadeiros milagres de execução.
Uma voz feminina cedo acompanhou as harmonias do instrumento;
cantava uma destas toadas melancólicas que nos comovem até ao fundo
da alma.
Tomás apertou-me violentamente o braço em que se apoiava.
Escute! e depois acrescentou a meia voz, e como para
si mesmo:
Paulina, se cantasse, devia cantar assim! Entremos.
Eu tive um sentimento de tristeza ao obedecer a este convite.
Esta mulher, quem quer que fosse, ia talvez exercer na imaginação
de Tomás uma influência funesta para Paulina. De facto, reparando
para ele, ao abrir a porta do salão, vi-o excessivamente agitado.
Entrámos.
A sala estava muito escura. Os últimos raios de um sol de Janeiro
a custo podiam atravessar as cortinas de fina garça, que guarneciam
as janelas.
Apenas me foi possível reconhecer D. Margarida, sentada ao
lado do piano e parecendoo dar pela nossa chegada, absorvida
como estava na contemplação da cantora.
Esta, voltada com as costas para nós, mostrava ser ainda jovem.
As tranças negras, artisticamente penteadas, realçavam sobre o ves-
tido branco, em que se viam realizados os mil caprichos da moda.
A música parecia enlevá-la. Mostrava-se dominada pelos sentimentos
que a canção exprimia. Cantando tristezas, a voz tinha modulações,
que revelavam lágrimas, e para o desespero era o grito partido do cora-
ção ; para saudades dir-se-iam as notas maviosas da ave do crepús-
culo para esperanças o trinado das que anunciam alegres a madrugada.
A voz desta mulher fascinava!
Parámos à porta, a ouvi-la; a cançãoo se interrompeu e a letra
tornou-se-nos inteligível. Fora semanas antes escrita por Tomás, em
um dos seus momentos de exaltação, e em breve esquecida depois,
como a tantas outras acontecia. Ao ouvir assim exprimir pensamentos
que concebera, e palavras que havia escrito, Tomás adiantou-se pouco
a pouco para a cantora. As pernas vacilavam-lhe, a palidez aumentava,
parecia sob a influência de uma fascinação poderosa.
VOL. II
SEROES DA PROVÍNCIA
Eu fiquei imóvel e inquieto por ele e por Paulina, cuja felicidade
futura antevia ameaçada.
Tomás chegou junto desta cantora desconhecida, justamente
quando ela acabava de entoar com uma comoção, mais profunda do
que até aí e que se lhe denunciava no ligeiro tremor de voz, os últimos
versos da canção, que diziam assim:
Mais vida! Meu Deus, mais vida!
Que a chama inda arde violenta,
E a alma, de viver sedenta,
Outros sonhos concebeu.
Ainda as derradeiras notas vibravam no espaço, já um grito de
surpresa, um grito inexprimível lhe interrompia as harmonias, e Tomás
recuava, exclamando:
Paulina!
A cantora, que efectivamenteo era outra senão Paulina, afastou
violentamente a cadeira em que estivera sentada e lançou-se nos braços
de Tomás.
A senhora de Entre Arroios chorava de comovida.
Paulina, sim, Paulina dizia a gentil menina, cobrindo o
marido de beijos. Paulina, que te compreende, que sempre te com-
preendeu, meu pobre poeta, meu quase mártir! Aspiravas dar expan-
o à tua inteligência e receavas fascinar-me; mas tuo sabes que
é à chama do teu espírito que eu me alento ? Querias elevar-te às regiões,
onde a fantasia te chamava, e receavas despenhar-me da altura; mas
ignoras que há muito eu te sigo, que estou contigo onde te julgavas
solitário? Pois sabe-o agora, quero dizer-to assim, com os meus lábios
unidos aos teus, quero gravar-to no peito, quero... ser digna de ti. Os
versos que de noite confiavas à brisa, os cantos que a paixão te inspi-
rava, recolhia-os eu no coração, repetia-os de manhã como a oração
matinal; a melodia que encantasse teus ouvidos, guardava-a na memó-
ria, para a reproduzir mais tarde, para a extrair em notas sonoras deste
piano, companheiro inseparável dos meus sonhos de felicidade, con-
fidente de minhas esperanças no futuro; as paisagens que te agrada-
vam, pedia ao crayon que as reproduzisse; os livros, que de prefe-
rência escolhias, lia-os e meditava-os na tua ausência, para me encon-
trar contigo também nas regiões do pensamento, para neles descobrir
o caminho do teu espírito, como há tanto conheço o do teu coração,
para um dia, entre beijos, te dizer como hoje, como agora te digo:
Tomás, os teus pensamentoso os meus, as tuas aspiraçõeso as
minhas! Em qualquer direcção que elas te apontem, eu te acompanha-
rei. Partamos!
E o entusiasmo animava as feições de Paulina, que parecia
inspirada.
Isto é um milagre do Céu! disse Tomás, dominado pela
comoção.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Não, não, Tomás. É um milagre de uma santa, é o milagre de
jya... de nossa mãe!
De minha mãe!
Não, meu filho disse banhada em lágrimas de alegria a
senhora de Entre Arroios, apontando para Paulina — é o milagre da
inteligência dela.
Minha mãe! Paulina! Oh! isto é de enlouquecer!
Eu aproximara-me da senhora de Entre Arroios com um movi-
mento de admiração. Compreendera enfim o mistério.
Os cinco anos de ausência de D. Margarida estavam explicados.
Tomás parecia duvidar ainda da realidade do que se passava
neste momento. Temia ainda um desengano depois da alucinação.
Tu és Paulina?!... —dizia ele contemplando sua mulher.
A dúvida era fundada.
Paulina, a gentil camponesa, oferecia agora sob novos trajes, cuja
elegância e gosto mostravam queo desprezara o estudo da toilette
enquanto cultivara os dotes naturais do espírito, novo aspecto à sua
beleza.
Vendo-a, todos a diriam criada de pequena em um desses mimo-
sos ninhos de rendas, onde vivem a infância as mais delicadas mulhe-
res, que surgem depois borboletas, fracas em vigor, mas fortes pela
fascinação que exercem.
Tomás caía de surpresa em surpresa. Paulina levou-o ao seu
pequeno gabinete de estudo, no lugar mais remoto da casa, elegante
santuário por ele ignorado até então. Aí tudo o extasiou. A história de
seus poéticos amores ali renascia inteira; já em versos, que perdera
ou deixara incompletos, já em mimosos desenhos, onde o lápis repro-
duzia os sítios mais queridos dos dois, todos aqueles onde se prendia
uma recordação e uma saudade; em flores, em retratos, em mil peque-
nos nadas, com que se escreve a história de uns amores e que de futuro
no-la recordam fielmente.
Enquanto Tomás e Paulina se esqueciam assim em amenas recor-
dações, eu ouvia da senhora de Entre Arroios uma mais exacta expli-
cação do milagre.
Logo depois da partida de Tomás, D. Margarida, obedecendo ao
pensamento que tivera desde que lhe fora manifesta a paixão do filho,
chamou Paulina para junto de si e fez-lhe compreender a necessidade
de se elevar pela educação até à altura de Tomás, para assegurar a
felicidade do seu porvir. A inteligência de Paulina, esclarecida pelo
amor, compreendeu e aceitou com efusão o oferecimento da senhora
de Entre Arroios.
Foram viver para Lisboa, sem o comunicarem a Tomás, que pela
astúcia de D. Margarida continuou a receber cartas, pouco verdadeiras,
datadas de Entre Arroios.
D. Margaridao se poupou a despesas para tornar Paulina per-
feita nas artes e nas línguas. A inteligência natural da pobre menina,
SERÕES DA PROVÍNCIA
o ardor com que se votava ao estudo excederam toda a expectativa e
surpreenderam os mestres. Em Lisboa corria-se com avidez para as
soirées, aliás raras, onde Paulina cantava.
A tarefa que D. Margarida principiara, tendo só em vista a feli.
cidade do filho, completou-a com todo o amor do artista que se revê
na sua obra.
Dentro de cinco anos Paulina era digna de Tomás.
A senhora de Entre Arroioso quis revelar a metamorfose da
pequena leiteira, que para todos se conservou mistério. Era um bem
desculpável amor-próprio, que desejava fazer sentir assim mais a neces-
sidade da sua obra.
E demais, quem sabe? dizia ela, e eu admirava ainda neste
ponto a sua penetração quem sabe se Tomás sentiria então a mesma
alegria, que sentiu agora? Ele amava Paulina tal como lhe aparecera
havia seis anos; se a visse outra, se a visse mudada, talvez interiormente
sentisse certo desgosto. Hoje era outra coisa. Viu como ele aceitou a
transformação? E depois, aqui paras continuava a boae com
um sorriso espirituoso de quando em quandooo de todos
estas metamorfoses entre casados. Avivam a luz, que se amortece.
Espero queo seja esta a última de Paulina, e a seguinte há-de ser
ainda mais poderosa. Verá.
Outro mistério, Sr.* D. Margarida? De que última quer falar?
o temos mistério nenhum, homem. A última é a que é de
esperar. A metamorfose da esposa em mãe.
Nisto entravam na sala a nova Paulina, como lhe chamava a senhora
de Entre Arroios, e Tomás, o qual se mostrou esta noite mais espiri-
tuoso que nunca.
Ele tinha razão. A inteligência de Paulina só precisava de asas
para voar ao lado da sua. Era um espectáculo interessante vê-los agora
librarem-se no espaço e pairarem nas mais elevadas regiões, e
D. Margarida, permita-se uma comparação que então me ocorreu,
como o inventor dos primeiros aeróstatos, vendo-os cá de baixo subir,
orgulhosa da sua obra.
Passei alguns dias ainda com esta família, regenerada quase, e,
ao partir, trazia mais saudades do que nunca.
Tomás é feliz ainda hoje. Agora escreve-me poucas vezes, eo
se lembra de queo compridas as noites de Inverno.
Paulina satisfaz-lhe às ambições de glória, como às ambições de
amor. Se às vezes aspira a um espaço mais vasto para escrever seu
nome, algumas páginas de seus escritos inéditos aparecem nas colu-
nas dos jornais da época eo geralmente admiradas. Mas cedo se
desengana que esta glória é menos real do que a primeira, e volta
contente à sua feliz obscuridade.
D. Margarida é venturosa; descansa hoje a inteligência de seis
anos de esforços. É nas crises que toda a grandeza do seu carácter
se revela; agora entretém-se já um pouco a apoquentar os criados e
SEROES DA PROVÍNCIA
encarrega-se de dar parte às leitoras do nascimento de um menino,
que ela sustenta ser a cara do pai.
Eu, pela minha parte, quando nos embates continuados da vida
me sinto desanimar, vou passar oito dias com a família de Entre
Arroios, e venho curado.
O ESPÓLIO DO SENHOR CIPRIANO
DESDE que uma crença consegue radicar-se verdadeiramente
na imaginação do povo, difícil é ao poder dos séculos ou à
evidência dos factos desarraigá-la. Parece que à medida que
um por um seo quebrando os laços que a prendiam à razão e
diminuindo a plausibilidade que dos espíritos sensatos a fazia ainda
aceitar, mais atractivos ela ostenta à fantasia popular, sempre afeiçoada
ao maravilhoso e impelida a correr atrás de uma destas sedutoras
ilusões, como as crianças a perseguirem as borboletas através das
campinas.
Quando o povo vê fugir, por inverosímil, do campo da discussão
um facto controvertido, é quanto mais se apressa a recebê-lo como
dogma, a adoptá-lo com a cegueira da; é então que o transmite aos
filhos, à maneira de um novo artigo do seu credo religioso, e olha para
o que se atreve a levantar ao iconoclasta contra esses vagos objec-
tos do seu culto ideal como para um ímpio, digno da fulminação celeste.
De historiadores e biógrafos se ri;o há provas nem documentos
que valham para lhe fazer ver as coisas diferentes de como as imagi-
nou ; mais vezes aqueles cedem até, sacrificando a exactidão à poesia,
e admitindo em seus escritos a colaboração da pena popular. Por isso
nas crónicas dos tempos passados é através das lendas que se pode
procurar a história. Adornada com as galas e louçainhas do maravilhoso,
é que o povo se apraz de acolher a tradição. Despida às mãos do his-
toriador austero, parece afectar-lheo escandalosamente a vista, como
a dos mais castos monges da Tebaida as formas nuas de tentadoras
aparições.
Igualmente, ao lado da biografia exacta de um indivíduo, ainda
dos mais obscuros, o povo refere de ordinário outra, menos documen-
tada talvez, porém sempre mais curiosa.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Com olhar perscrutador penetra o seio das famílias a descobrir
aí factos recônditos, pequenos incidentes da vida doméstica, onde,
mais facilmente do que nos da vida pública, se reflectem os caracteres
e as índoles.
o julgueis que lhe basta a enumeração das batalhas, dos feitos
brilhantes, dos serviços humanitários, dos actos civis do herói do dia;
quer vê-lo em família, depois de despir a farda, a toga ou os arminhos,
para envergar o modesto robe de chambre; aspira a devassar-lhe no
modo de viver intimo e a estudar-lhe os hábitos; obriga a persona-
gem da história a representar diante de si o papel de filho, de irmão, de
amante, de esposo e de pai no drama da vida, e é então que mais inte-
resse lhe excita, é então que aplaude; e quando lhe falecem as infor-
mações, inventa, recorre ao inesgotável tesouro da imaginação senão
a alguma coisa de mais seguro. E nisto é o povo verdadeiramente admi-
rável ! Há o que quer que é sobrenatural na maneira por que se lhe reve-
lam às vezes segredos, sabidos apenas por duas pessoas, interessadas
ambas em conservá-los ignorados ;o espera por provas, satisfaz-se já
com indícios ; pronuncia-se, quando os mais prudentes hesitam, e, deve-
mos confessá-lo, se em certos casos esta antecipação o leva ao erro,
muitas vezes também, ou quase sempre, por caminhos misteriosos, o
conduz a verdade.
Os boatos! Aí temos um desses problemas que desafiam toda a
ciência humana. De onde partiram estas, deixem-me assim chamar-lhes,
emanações subtis que aspiramos todos, os crédulos e os espíritos
fortes, os ignorantes e os ilustrados, como todos contraímos a epidemia,
cujo foco se desconhece?
Suscita-se ãs vezes sobre qualquer indivíduo uma opinião que
se diz pública, somente porque cada qual em particular seo atreve
a reconhecê-la por sua; os factos conhecidos da vida desse homem
parece desmentirem-na, todas as aparências lheo contrárias, é huma-
namente impossível encontrar algures os fundamentos dessa crença,
nascidao se sabe onde, propagadao se sabe como; e contudo
persiste. Porquê? Quem o pode dizer? É, a meu ver, um facto da
ordem de outros que observa o naturalista na história dos animais. É um
fenómeno de instinto
Na aproximação do Inverno, as aves viajoras reúnem-se em
bandos para desertarem das paragens que parecia oferecerem-lhes
ainda por algum tempo os últimos calores de uma estação favorável.
Que indício lhes revelou o perigo ? Quem lhes apontou o caminho de
mais amenas regiões ? O instinto, respondem os filósofos; e a mesma
lesposta obtereis, se o interrogardes sobre tantos outros maravilhosos
actos que nos surpreendem, nos costumes de certas famílias zoológicas.
Concedam, pois, também ao povo instintos, instintos que o fazem
adivinhar factos ocultos, como a ave pressente o Inverno, instintos sobre
os quais se elevam juízos, que a razão prudente repele ao princípio,
mas que tantas vezes o futuro vem confirmar mais tarde.
SEROES DA PROVÍNCIA
O povo tem uma fisiologia especial, que ainda está por escrever;
concurso de individualidadeso heterogéneas, dá uma resul-
tante, cuja noçãoo nos pode vir só do conhecimento isolado dos
componentes.
Quem o fosse estudar por uma análise minuciosa, quem, por um
quase processo anatómico o decompusesse em elementos, para um a
um os examinar com escrupuloso cuidado,o o teria compreendido;
o seria mais feliz do que se procurasse resolver o problema da vida
dissecando um cadáver, e aplicando o microscópio a cada fibra de
seus tecidos e órgãos. Onde os homens se reúnem em povo, uma
influência oculta se lhes associa: uma como inteligência comum, daí os
enigmas da multidão.
A solução destes enigmaso a procurem portanto nos indiví-
duos, que neleso reside; está na entidade colectiva; assim como o
modo de reagir do sal neutroo se encontra no ácido, nem na base,
seus elementos únicos; é o resultado da combinação.
Sirvam estas reflexões de prefácio ao caso modesto e obscuro
que vamos narrar e que as exemplifica.
Por uma das tais vozes interiores, que entretém o povo dos mais
recatados mistérios da vida de família, como se linguareiro duende
lhos andasse segredando ao ouvido, era que em uma pequena cidade da
província do Minho, havia muito se tornara opinião geral que Cipriano
Martins, octogenário que vivia miseravelmente na mais estreita e mal
esclarecida rua do menos limpo e povoado bairro daquela já de sio
muito apetecível terra,o obstante tais aparências pouco inculcadoras,
possuía fabulosas riquezas, e era devorado pela mais sórdida e inqua-
lificável sovinice.
Nada podia modificar a opinião pública a este respeito; era abso-
luta, geral, intransigente, incapaz de vacilar, estável no seu posto, que
defendia heroicamente contra o ataque combinado de todas as aparên-
cias ; sublime de pertinácia, admirável de resistência.
Nunca experimentara destas oscilações vulgares nas mais enrai-
zadas crenças; nunca passara por as alternativas de desfavor que até
as ideias mais generosas sofrem no correr das épocas, nunca; nem
quando os aguçados cotovelos do velho Cipriano rompiam escandalo-
samente através das mangas coçadas e beneméritas do seu casacão
de saragoça; nem quando aos olhos dos comentadores se patenteavam
as laceradas plantas... das botas colossais de que o nosso Harpagão
usava, ou as numerosas cicatrizes vestígios honrosos de longos
anos de assinalados serviços que lhe crivavam as calças, onde cada
fábrica de tecidos tinha um espécime de seus produtos combinados
todos em artístico mosaico.
Cada vez que o inofensivo tema dos longos e pouco misericor-
diosos comentários populares, entrava em uma loja a comprar os parcos
materiais de sua diária alimentação e estendia ao para receber os
trocos miúdos, aos quais, como outro qualquer, tinha direitos incon-
SERÕES DA PROVÍNCIA
testáveis e garantidos por lei, havia nos circunstantes certo resfolegar
de mofa que, ao voltar costas o velho, degenerava em bem significa-
tivas e nada equívocas exclamações.
Olhem o unhas de fome!
Sume-te, porco!
É capaz de se enforcar por um vintém !
Se lhe caísse um pataco ao Inferno, atirava-se lá para apanhá-lo,
o tinhoso.
Sovina!
A pobre irmã morre à míngua por causa da mesquinhez deste
tesoureiro do Diabo.
Come duas sardinhas barrentas, e cozinha só de três em três
dias parao fazer despesa em lenha! Podem crê-lo ?
Junta, junta, para outros to gastarem!
O peso do teu cofre é que te há-de afogar na caldeira de Pêro
Botelho!
E assim por diante iam as apóstrofes, cada qual mais lisonjeira para
a reputação do modesto velho, cujos nervos felizmente seo supraex-
citavam com tais estímulos.
Tinha uns invejáveis nervos o Sr. Cipriano! a única das suas qua-
lidades que lhe podiam invejar as leitoras.
o há vício menos popular do que o da avareza, pela razão de
serem poucos os que com ele lucram.
Assim Cipriano Martins era uma personagem antipática para os
seus compatriotas.
Mas quem lhe vira o dinheiro? quem lhe descobrira a riqueza?
Neste momento cada qual, interrogado à parte, encolhia os ombros,
prolongava os beiços, enrugava a fronte, e respondia:
Diz-se.
Santa palavra! salvatério das asserções arrojadas! como a cons-
ciência fica tranquila quando, após uma afirmação, cuja responsabili-
dadeo quer, a boca oficiosa te pronuncia! Descendente em linha
recta daquele traditur dos historiadores romanos, tu és, como teu
ilustre avô, o melhor e mais universal excipiente, em que se adminis-
tram ao público fortes doses de boatos, que ele engole de mais boamente
do que quantas pílulas tem arredondado de Hipócrates para cá os
dedos dos boticários ou apregoado os Holloways de todos os tempos.
Cipriano Martins tinha uma vez por ano as suas liberalidades,
circunstância que, longe de amenizar a rudeza dos juízos públicos a
seu respeito, antes a exacerbava; pois de facto nunca mais alto subiam
as murmurações como quando em sexta-feira santa saía das algibeiras
do sóbrio velho para as dos pobres da freguesia a quantia realmente
importante de... cem réis em moedas de cinco.
Então é que era ouvir o povo.
Arrancou hoje cem fibras do coração.
Tem para chorar cem dias, o velho.
SERÕES DA PROVÍNCIA
E para jejuar outros tantos.
Se isto assim continua, aparece-nos de alguma vez o homem
enforcado em sábado de Aleluia.
Melhor, escusa o povo de queimar outro Judas.
Quando se entra na via das concessões é necessárioo dar pas-
sos acanhados; sob pena de aumentar ainda mais a indisposição dos
ânimos.
Consideração esta de longo alcance político,o obstante as apa-
rências modestas que a revestem aqui.
Cipriano Martins caiu doente, eo chamou médico.
A câmara, que adoptava o pensamento público sobre o estado
financeiro do seu patrício, recusava inscrevê-lo no quadro dos pobres,
razão pela qual oo visitou o médico de partido.
A câmara andou assisada nisto e mostrou-se convencida da
seguinte verdade, saída da boca de um grande vulto político:
«Quando os governoso tomam espontaneamente a iniciativa
no movimento das massas,o arrastados por ela.»
Ora a câmara, que era o governo eo pouco respeitável,o
tinha grande vontade de ser arrastada; um dos vereadores, mais que
todos, em cuja caixa de rapé estava representado em gravura o fim
trágico de Mazeppa, sentia de si para si um estremeção de grande des-
conforto só de ouvir o termo. Por isso, a câmara adoptou a opinião das
massas,
Esta subiu ao auge da indignação, vendo Cipriano desprezar a
medicina.
Olhem o miserável a regatear às portas da morte o preço
da vida!
O homem tem razão respondeu o barbeiro, a quem por
consenso unânime fora decretado o diploma de espirituoso da terra
o homem tem razão, que bem conhece quão pouco ela lhe vale.
Este dito do ilustrado superintendente das mais respeitáveis bar-
bas da freguesia foi repetido em todos os círculos com geral aplauso;
e a reputação de aguçado satírico, de que há muito gozava o digno
colega de Figaro, aumentou, se de aumento era susceptível ainda.
Cipriano Martins morreu, e então é que a curiosidade pública se
s alerta, e, para entreter o tempo de espera, prestou ouvidos às his-
torietas da imaginação. Esta fez o seu dever, nada deixando a desejar.
Cipriano a cerrar os olhos, e o público mais do que nunca a tomá-lo
à sua conta. Discutiu-se-lhe a herança, avaliou-se-lhe a fortuna, apon-
taram-se os herdeiros, inventaram-se testamentos, fantasiaram-se cláu-
sulas absurdas, anteviram-se demandas, devassaram-se esconderijos,
arrombaram-se cofres, desenterraram-se riquezas monstruosas; isto
tudo durante vinte e quatro horas, no fim das quais nem riquezas, nem
esconderijos, nem cofres, nem herança, nem testamento, nem cláusulas
e, por conseguinte, nem herdeiros nem demandas vieram justificar a
geral expectativa.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Foi um desapontamento, que, a falar verdade, custou a digerir;
os melhores estômagos imparam com ele e mais de uma vez foi regur-
gitado.
E toda aquela boa gente se punha então a ruminá-lo de seu vagar,
sem que o fizesse mais digerível.
A irmã do morto, que de si para si nunca nutrira grandes espe-
ranças, porque nunca tivera fé nas riquezas do mano, apresentou-se
nesse mesmo dia, chorando, em casa do administrador a pedir-lhe que
providenciasse para se fazer o enterro do velho Cipriano, pois, nas
gavetas, só lhe encontrara uns cobres, queo bastavam para as des-
pesas exigidas pela solenidade.
O administrador viera céptico de Coimbra, doença que apanhara
nas margens do Mondego e que pelos modos se lhe tornara crónica
no concelho, que, como diziam os jornais da época,o dignamente
administrava. Por isso olhou para a pobre Maquelina pois era esse
o nome dela através dos vidros da luneta pendente, ao mesmo tempo
que o mais incrédulo sorriso, que o espelho lhe aconselhara, vinha
encrespar-lhe espirituosamente o lábio superior. Ao desbaste de
crenças, que este magistrado sofrera, tinha por felicidade sobrevivido
entre poucas a crença no espelho, um dos principais conselheiros a
quem devia a manutenção da dignidade administrativa.
Com que então só uns cobritos, diz vossemecê, hem?
O bacharel fizera a descoberta de que este hem lhe dava às
palavras certa melodia de bom gosto, e por isso o adoptara.
Eis tudo quanto possuo respondeu Maquelina, mostrando
em patacos um cruzado, quando muito V. S.ª bem vê continuou
meu irmão tinha o seu pequeno negócio de socos, há muito em deca-
dência; ele, coitado, estava velho eo queria oficiais... e agora com
a moléstia... por mais economias que a gente fizesse, sempre eram
despesas certas e nenhum dinheiro a apurar.
O administrador teve aqui um movimento de lábios, expressivo
de inveterada descrença; e como para mais depressa se livrar do con-
tacto de um ser humano, respondeu secamente:
Faça, se quiser, um requerimento à câmara, porque seu irmão
o figura no quadro dos pobres.
E maiso disse.
Maquelina à palavra requerimento empalideceu. Fazer um reque-
rimento é um negócio importante, um passo difícil na vida destes seres
inofensivos e alheios a processos judiciais, a cuja confraria pertencia
a boa mulher.
Mas que remédio!
Saiu dali e procurou o presidente da câmara.
Era este um gordo merceeiro, cuja cabeça se podia dizer um
vulcão de medidas tendentes todas ao melhoramento público e pro-
gresso social. Durante a sua feliz administração dos negócios munici-
pais, contava actos realmente surpreendentes de tino governativo.
SEROES DA PROVÍNCIA
Seja-me lícito citar aqui alguns factos da vida pública desteo apro-
veitado estadista.
Os moradores de uma rua estreita, onde os beirais dos telhados
fronteiros quase se encontravam a ponto de interceptarem a passagem
da luz solar, queixavam-se da mania, desenvolvida em alguns vizinhos,
de cultivarem frondosos arbustos nas sacadas das habitações, com
grande incómodo e prejuízo dos queixosos, para os quais anoitecia
mais depressa, graças à sombra impenetrável que projectavam os
folhudos ramos na já de si pouco esclarecida rua. O sábio edil legislou
à vista disso:
«Ficam proibidas as árvores em todos os lugares onde a vege-
tação seja impossível.»
Eu penso que se Montesquieu tivesse notícia desta lei havia de
apreciá-la, pela admirável concordância com as da imutável natureza.
De outra vez os contribuintes pacíficos que habitavam próximo
aos arrabaldes, lamentaram-se, em termos legais, pelas incómodas
harmonias, com que todas as manhãs os despertavam os carreteiros
com a infernal chiadeira de impertinentes carros. Pensava aquela boa
gente que a sinfonia de ouverture da criaçãoo perdia nada se lhe
suprimissem da orquestra o pouco harmonioso instrumento. Aten-
dendo à justa reclamação dos povos, o judicioso funcionário promul-
gou que: «Todos os carros que chiassem contra as posturas munici-
pais, pagassem dois mil-réis de multa, sendo metade para o denun-
ciante, dado o caso de serem ouvidos».
Já se vê que chiar contra as posturas era coisa séria; a câmara
tinha susceptibilidades e ofendida chegava a multar... os carros.
Quando esta medida se discutiu em plena vereação, um dos cama-
ristas levantou-se e deu mostras de querer falar.
Peço a palavra, sr. presidente.
Tem a palavra o ilustre colega.
Eu desejava que se fosse mais severo contra os perturbadores
do sono público e se desse maior alcance a esta medida policial, mul-
tando todo o carro que chiar, quer seja ouvido, quer não.
O conselho, atendendo porém a queo convinha ser dema-
siado ríspido com os povos e que os carroso sendo ouvidos, pouco
podiam incomodar, adoptou a cláusula do autor do projecto, rejeitando
a emenda.
E foi muito bem considerado.
Outra ocasião ainda, ouvindo o nosso homem discutirem dois
bacharéis, classe de sábios que sempre respeitou, sobre a conveniên-
cia das Rodas, e vendo-os acordes na necessidade de importantes e
radicais reformas nestes estabelecimentos, veio para casa pensativo,
e o cérebro, fecundado por aquela ideia, lidou toda a noite em ges-
tação mental, tendo no fim o seu bom sucesso, porquanto pela
manhã c magistrado municipal apresentou à aprovação dos colegas
a seguinte medida regulamentar:
SERÕES DA PROVÍNCIA
«Toda ae que expuser seu filho sem um bilhete do município,
fica tacitamente encarregada da educação deste.»
A entender-se gramaticalmente a coisa, rude tarefa cabia à pobre
da mãe, superior ao esforço humano.
Esta medida de um incomensurável alcance económico, por um
triz ia passando.
Mas emperrou no advérbio tacitamente, que de facto era a maior
palavra do período e que o legislador empregara para o arredondar;
ele tinha lá suas ideias a respeito de estilo,o obstante viver antes
das últimas reformas dos liceus, na qual pelos modos este assunto foi
regulado de uma vez para sempre. Se a lacónica definição de Buffon é
verdadeira, se o estilo é o homem, ninguém de facto como o nosso
vereador podia fazer períodos mais rotundos. Mas o corpo camarário
viu na fraseo sei que sentido maquiavélico, e mostrou escrúpulos.
Emo o digno chefe deo respeitável corporação, com aquela abne-
gação quase estóica que o caracterizava, se prontificou a substituir
esse advérbio por outro qualquer, sem escolha, tais como: restrita-
mente, completamente, impreterivelmente, categoricamente, etc, etc;
ele só queria salvar a beleza da forma;o houve de que, o conselho,
entrando uma vez no caminho da desconfiança,o tinha por costume
recuar.
Esteve ainda assim, vaio vai, a resolver-se pela adopção do
categoricamente, agradado da eufonia da palavra; mas enfim nem esse
admitiu, e a medida foi rejeitada.
Era pois diante deste vasto talento governativo que Maquelina
fora enviada a implorar um diploma de pobre.
Louvado seja Deus! até isto se implora!
Mas observou o judicioso presidente ao ouvi-la pobre é
todo aquele queo tem dinheiro.
Maquelina concordou. Pudera não.
A definição satisfazia a todos os preceitos mencionados no
Genuense; curta, clara, etc, etc; e mais o nosso vereadoro estu-
dara lógica.
O homem continuou:
E segundo é voz e fama vocêsm mundos e fundos.
Aqui principiava Maquelina a discordar, por infelicidade sua.
Em única resposta mostrou os cobres que trazia.
Eis a minha riqueza.
Pois sim, pois sim... mas... olhe, dissoo quero eu saber.
É pobre ? Peça ao pároco e ao regedor um atestado, e depois,.. depois...
isso é com a junta de paróquia.
Mas...
Adeus, minha amiga, temos conversado.
E o oráculo emudeceu.
Maquelina ao sair levava uma cara, que seria a sua justificação,
se o vereador acreditasse na ciência dos fisionomistas; mas parece-me
SEROES DA PROVÍNCIA
poder atestar o contrário. O bom homem chamaria tolo a Laváter, se o
tivesse conhecido.
Dali passou Maquelina a casa do pároco.
Eram horas da sesta e o reverendo dormia; único ponto de con-
tacto que tinha com Homero.
E que sonol
Bem pudera de seus paroquiais flancos elevar-se toda a bem pro-
vida árvore de Jessé, que está representada na nave direita da igreja
dos Franciscanos no Porto, que ele rivalizaria em impassibilidade com
aquele venerável patriarca, que a sustenta.
Quando o foram acordar, o pastor daqueles povos resmungou,
moveu-se, voltou-se para o outro lado e... continuou a dormir. À segunda
tentativa, tornou a resmungar, tornou a mover-se, a voltar-se para o
outro lado e... tornou a dormir; à terceira, sentou-se na cama, esfre-
gou os olhos, abriu a boca estrepitosamente eo deu acordo de
si; pôs-se a olhar depois para o travesseiro com visíveis tentações
de se precipitar de novo nele; obstou-o a criada, que voltou a cha-
má-lo â vida real. Então seguiu-se o descer do leito, o evacuar dos
pulmões obstruídos por um catarro crónico, o fungar de uma farta
pitada, e enfim apareceu o homem em toda a magnitude da sua...
gordura.
Dizem que o erguer do leito é a ocasião em que os monarcas são
mais acessíveis a pedidos; o nosso abade, conquanto também cabeça
coroada,o se parecia neste particular com suas majestades; pelo
contrário, se havia para ele horas de mau humor eram as que se seguiam
ao momento em que a inexorável força das circunstâncias o obrigava a
emergir de entre os lençóis, oceano, onde voluntariamente aquele sol
e mergulhava.
Oh! oh! bradou o indolente levita ao ver Maquelina então
foi-se o homem?
Assim o quis Nosso Senhor.
E vamos a saber, quanto se herdou ?
Maquelina exibiu os quatrocentos réis, que era todo o espólio
em metal.
Histórias da Maria Carocha resmungou o abade zangado.
É isto que digo a V. S.*: meu irmão...
o me venha contar tonilhos. Diga lá o que quer?
Maquelina expôs o fim da visita.
O padre arregalou os olhos.
Ui! Essa é de barbas! Eu hei-de atestar que você é pobre!
Maquelina fez um sinal afirmativo.
Ora, santinha, ora. E para isso fez-me acordar de um sono
que... que...
Mas, sr. abade, é a verdade que V. S.* atesta, e senão diga-me
onde me encontra a riqueza?
Seu irmão há-de ter deixado somas fabulosas I
SERÕES DA PROVÍNCIA
Pois venha V. Rev.
ma
ver e dirá depois. Jesus, meu Deus,
procurem, procurem, oxalá que achassem, meu divino Pai dou
Enfim, mulher,o me meta em trabalhos; vá ter-se com o
regedor, e eu, o mais que posso fazer, é confirmar lá na junta o que
ele certificar.
Maquelina passou à regedoria.
O regedor era taberneiro, e naquele momento o seu duplo esta-
belecimento estava atulhado de fregueses.
As largas mãos deste vigilador da ordem pública distribuíam
simultaneamente vinho e justiça aos circunstantes, e mais amplas medi-
das de justiça que de vinho a acreditarmos os consumidores.
A entrada de Maquelina causou sensação.
O regedor, em pleno gozo do seu funcionalismo, dignou-se interro-
gar a irmã do falecido, e os olhos da importante autoridade, pondo nela:
Então que a traz por aqui, Sr.* Maquelina? disse com voz
benigna.o é bonito andar assim já pela rua, quando tem seu irmão
morto em casa. Que há-de dizer o público ?!
o sei de nada mais delicado, do que é este ser misterioso e
respeitável por excelência, a que se dá o nome de público.
É singular como todos tomam a peito manter-lhe a veneração
devida e se doem às mais levas infracções que esta sofre. Grita-se
contra um facto escandaloso, pateia-se no teatro uma produção imoral,
fulmina-se um procedimento menos honesto, em respeito ao público,
já se sabe.o me ofendi eu, nem vós, nem eles; interrogai-os um por
um, nenhum se dará por ofendido, mas todos vos responderão com a
fórmula: «e o público!» Porém valha-nos Deus, o público é exactamente
constituído por mim, por ti, pors todos que assim respondeis; como
é, pois, que de elementoso pouco susceptíveis resulta um produto
o melindroso?
Cada qual no gabinete lê uma obra de duvidosa moralidade,
ri-se, diverte-se com a leitura, e ninguém quererá admitir que ele lhe
possa ter causado o menor prejuízo. Aí temos portanto uma obra ino-
fensiva ; poiso é tal; antes a vemos proclamar um verdadeiro veneno
servido pela imprensa ao público, um miasma que se ergue dos prelos,
um fermento de dissolução de costumes, e outros nomes igualmente
feios. Ao vermos nestes factos a confirmação daquelas ideias, que
nas primeiras páginas expendi,o sei que outra solução razoável
daremos ao problema.
É certo, porém, que o público, citado pelo regedor, achava-se
exactamente nestas circunstancias. Todos os presentes abanavam a
cabeça em sinal de aprovação; nenhum pela sua parte se mostrava
escandalizado com o extemporâneo aparecimento de Maquelina, mas
o complexo pelos modos sofria muito com isso.
A referida observação da autoridade humedeceram-se os olhos
de Maquelina.
E que lhe hei-de eu fazer, Sr. Bento Maria ? Quem é pobre...
SEROES DA PROVÍNCIA
Houve sussurro na assembleia; o adjectivo parecia beliscar o
auditório.
Pobre! É sempre o mesmo estribilho disseram algumas vozes.
O regedor serenou o tumulto, dirigindo-se a Maquelina.
Bem, deixemos agora isso. O que a traz por aqui?
Maquelina explicou-se.
A indignação dos circunstantes rebentou.
Sempre é desaforo!
Também é preciso ter descaramento.
É digna do irmão, já vejo.
A alma do sovina meteu-se-lhe no corpo.
Quem esconjura esta mulher ?
O regedor principiou a franzir a testa.
Ora vejam a pobrezinha.
Nosso Senhor a favoreça, irmã.
Ora já viram!
O regedor levantou-se.
Quem enterra o mano ?
Forte perda, se fica de fora!
Aquele nem os bichos o querem.
Leva rumor! Ai, que eu...—rugiu por entre dentes o rege-
dor, e todos imediatamente... silent, arrectisque auribus adstant.
Pudera; o ai, que eu... do Sr. Bento Mariao ficou a dever
nada ao célebre quos ego... de Neptuno. O regedor sabia, como Vir-
gílio, o valor de eloquentes reticências.
Em auxílio da ordem veio de mais a observação de um circuns-
tante, dotado de sentimentos mais humanitários.
A mulher tem razão, coitadinha, se o miserável deixou tudo
escondido.
As massaso fáceis de impressionar. O alvitre modificou as
opiniões.
- É assim, é assim.
Pobre criatura!
Que vale tê-lo, se seo sabe aonde ?
Por este tê-lo entendia-se dinheiro; é de facto o substantivo que
mais elipses suporta;o presente o trazem na ideia, queo necessita
estar nas orações antecedentes, para ser subentendido.
Sim, sim, ela tem razão, é pobre, é...
O regedor enfarinhado nas praxes constitucionais,o era homem
que fosse de encontro à opinião dos fregueses e, portanto, depois de
concentrar por algum tempo o espírito, operação que nem por isso
lhe aumentou demasiado a energia, passou o seguinte atestado, modelo
de diplomacia e de exactidão ortográfica:
«Eu Bento maria do portal, regidor de esta freguesia atesto im
como maquilina rosa martins, solteira, de esta Cidade,o tem, aberes
SEROES DA PROVÍNCIA
para lazer, as despesas do intero do seu irmon cepreano cujo consta
ter dinheiro. Mas o quecerto é que por morte seo incontrou i se é
berdadeiro o dito do bulgo o debe ter, nalgum iscondrijo, que ainda
seo inchergou. E por ser berdade o que Açupra, atesto e mo dise-
rem pessoas diganas para mim de todo o Creto, pacei esta que juro.
«Dada em esta Cidade a 12 de Janeiro de...
«Bento maria do portal.»
Bento Maria era decididamente o funcionário público de mais
expediente e de mais arrojadas medidas que existia então na cidade,
Depois de mais algumas dificuldades e tropeços sempre se con-
seguiu enterrar, à ordem da junta de paróquia, o velho Cipriano, o
qual de outra maneira bem teria de ficar fora do seio da terra, poro
haver deixado dinheiro.
Todos estes acontecimentos, longe de desvanecerem os boatos
das ocultas e sonhadas riquezas de Cipriano, os aumentaram, e deram
lugar a duas versões diferentes.
Uns, mas eram a minoria, lançavam em rosto à pobre Maquelina
o mesmo que haviam imputado ao irmão; outros, porém, viam nela
uma vítima, ainda além da campa, da sórdida avareza do incorrigível
octogenário.
Só Maquelina é que rejeitava urna e outra crença. Sabia-se ino-
cente eo se acreditava vítima. E lutando com a idade avançada,
tirava forças da fraqueza e ia provendo conforme podia ao seu sustento
quotidiano.
o pôde, porém, resistir inteiramente às insinuações dos que
falavam em tesouros enterrados, e as portas da casa abriram-se de
par em par a uma junta de inquérito, presidida pelo regedor, a qual,
pelos mais escusos recantos, e a grande profundidade no quintal
procurou o decantado tesouro, sem no fim colher frutos de tantos
esforços.
E as coisas conservaram-se por muito tempo neste pouco agra-
dável statu quo.
Um dia, porém, pioraram longe de se desanuviarem, as circuns-
tâncias de Maquelina.
Um sobrinho seu, filho de uma irmã que morrera jovem, voltou
do Brasil e, contra o que era de esperar, vinha como partira, isto é,
com a riqueza de Job na desgraça.
A história deste rapaz é uma história longa e curiosa, que desta
vezo contarei ao leitor.
Uma manhã, pois, quando Maquelina estava meditando emo
sei que medida de economia doméstica, importantíssima para a melhor
direcção de suas mesquinhas finanças, entrou-lhe pela porta dentro
um rapaz magro, espigado, de fisionomia denunciadora de sofrimentos,
o qual lhe estendia as mãos, dizendo:
Bons dias, madrinha, entãoo me conhece?
Santa Maria! Querem ver que... És tu, Agostinho?
Eu, eu mesmo.
A boa Maquelina saltou-lhe ao pescoço e devorou-o de beijos.
O rapaz viu-se em talas e com ameaças de asfixia.
Depois veio um pensamento à tia Maquelina, pensamento um
pouco interesseiro é verdade, mas desculpem-na, eo ma principiem
já por isso a olhar com maus olhos; todos como ela o teriam, e, o que
pior é, a poucos viria apenas em segundo lugar e só muito após dos
espontâneos impulsos de uma afeição desinteressada: «o rapaz vinha
Brasil... e o Brasil sempre é o Brasil» foi a ideia que lhe voou pelo
Então disse ela, movida por essa ideia vens... rico!
Agostinho voltou os bolsos do avesso por única resposta.
Maquelina juntou as mãos eo deu palavra.
E para quê? Queriam ainda de parte a parte mímica mais
expressiva!
. Vim parao morrer de fome.
Aqui benzeu-se a boa da tia.
Embarquei como moço de navio poro ter dinheiro para a
passagem.
Neste ponto persignou-se.
E agora venho pedir-lhe continuou o sobrinho que me
receba em casa até... até... arranjar modo de vida.
Maquelina, quando, junto da pia baptismal do pequeno Agos-
tínho, se declarara madrinha, à face da Igreja, do filho querido de sua
irmã, tinha já concebido uma alta ideia da missão que desde aquele
momento ia adoptar por sua e para com o recém-nascido, que sustentava
nos braços; nem foram para ela simples palavras de formalidade as
que em tom de prédica ouvira ao pároco, sobre os seus deveres futu-
ros. «Na falta dos pais, dissera ele, aos padrinhos compete a vigilância
e a educação das crianças, que sob a sua protecção entrarem no grémio
da Igreja católica». Ora os pais de Agostinho lá se tinham já partido
para melhor morada, e Maquelina, que, eminentemente escrupulosa
em negócios de consciência, se julgava por ela obrigada a cumprir
até ãs últimas extremidades os seus deveres de cristã, tinha de mais
a mais um coração farto para afeições e sentimento.
Fechou, pois, os olhos aos sacrifícios futuros e aceitou a compa-
nhia do afilhado.
Ele me ajudará também dizia consigo mesmo a boa mulher,
como se quisesse colorir com um pensamento egoísta o impulso que lhe
viera directamente do coração.
s temos destas coisas.
Mas o certo é que, apesar da melhor vontade, em pouco podia
Agostinho auxiliar a madrinha.
Auxiliar de que maneira?
SERÕES DA PROVÍNCIA
Empregoo o pôde ele obter. Naquela cidade, como em muitas
outras terras do reino,o se vêem com bons olhos os infelizes que
voltam do Brasil pobres. Lá parece uma prova de pouco espírito e da
nenhuma aptidão a essa boa gente um semelhante sucesso. O Brasil é,
para ela, como o campo de batalha. Ou volta-se de lá vitorioso, ou
morre-se combatendo. Fugir é de covardes.
E ora aím os leitores a razão por que dois meses depois da che-
gada de Agostinho, era ainda Maquelina quem só provia às despesas
da casa, as quais, como era de supor, tinham aumentado; desenvol-
vendo a pobre velha esforços sublimes para um duplo resultado: obter
meios de subsistência e ocultar ao sobrinho os imensos sacrifícios, a
que para isso se sujeitava.
Mas Agostinho suspeitava-os e afligia-se.
Um dia falou à madrinha nas vozes que corriam ainda sobre as
riquezas do defunto. Maquelina sorriu tristemente, respondendo:
Pois procura-as.
Agostinho deitou-se à obra com calma, revolveu de novo o quintal
a mais de um metro de profundidade, despregou as tábuas do soalho,
sondou as paredes, trepou aos mais altos escaninhos da casa... tudo
foi inútil.
Disse adeus ainda a essa ilusão. O que lhe valeu foi estar já cos-
tumado a despedir-se delas. A primeira vez custa mais.
No entretanto os esforços e vigílias de Maquelina arruinaram-lhe
a saúde. Lutou braço a braço com a doença como lutara com a fome.
Lutas heróicas que passam ignoradas, enquanto tantas outras, muito
menos merecedoras das honras da epopeia,o extremamente cele-
bradas em oitava rima.
Afinal caiu vencida no leito, e então é que o futuro se lhe mos-
trou carregado.
A pobre mulhero se iludia nem sobre a gravidade da sua molés-
tia, nem sobre as consequências da sua morte.
Que seria de Agostinho? Agostinho, a quem ela amava já como
se amam os entes fracos que vieram procurar a nossa protecção, com
esse amor bem mais intenso mesmo do que o votado aos seres que
nos protegem.
Porque o primeiro lisonjeia o nosso orgulho, e o segundo, esse,
revela a nossa inferioridade.
Coisas humanas.
O futuro de Agostinho era a ideia negra de Maquelina; como ela
ficaria contente por morrer seo fora isso! Mas agora custava-lhe;
esta lembrança aumentava-lhe a doença. Que diria ela à irmã, quando
nou lhe pedisse novas do filho? Que o deixara na miséria? E era
isso de boa madrinha?
E estes pensamentos e apreensões definhavam-na a olhos vistos.
Agostinho aterrou-se, e reconheceu então tudo quanto tinha
havido de heróica,abnegação no procedimento da tia.
SEROES DA PROVÍNCIA
SERÕES DA PROVÍNCIA
O seu coração de homem teve um movimento pelo qual pro-
curou libertar-se da espécie de colapso em que infortúnios continuados
o haviam lançado. Agostinho curvara a cabeça sob a corrente de des-
graças que sem interrupção haviam sucedido na sua vida; agora tentava
elevá-la em um último esforço.
É preciso tentar fortuna dizia ele consigo amanhã de
nhã sairei a pedir trabalho, a tudo me quero sujeitar, a tudo.
E adormeceu com este pensamento, sonhando daí a pouco
em uma mina de ouro, onde ao fim de muita fadiga, só conseguiu extrair
enormes pedras de carvão.
O leitor pode imaginar toda a agradável voluptuosidade de seme-
mte sonho.
Por a manhã ergueu-se disposto a realizar o projecto da véspera;
mas foi encontrar a tia em um estadoo assustador, queo teve
imo para abandoná-la.
o tem de ser! disse consigo Agostinho, a quem a desgraça
ase tornara fatalista.
Maquelina mostrava-se de facto em risco iminente.
O facultativo de partido veio vê-la; pois Maquelina havia enfim
conseguido entrar no quadro dos pobres.
Tomou-lhe um pulso, depois o outro; deu-lhe três pancadas do
lado direito do tórax, igual número do esquerdo; pousou-lhe o ouvido
sobre as descarnadas costelas, e, como se escutasse lá dentro os passos
da morte, ergueu-se e fez um gesto de descontentamento visível.
Receitou um chá de alteia e saiu.
Agostinho esperava-o à porta.
Então ?
O médico puxou pelo relógio, ao qual principiou a dar corda,
dizendo com a indiferença profissional:
Como àquela máquina seo dá corda como a esta, pára dentro
em poucas horas.
Agostinho sentiu subirem-lhe as lágrimas aos olhos.
O médico voltou-se ainda de novo para dizer:
Eu escuso de cá voltar, agora o padre.
Estas palavras, ditas em tom mais alto e da maneira mais natural
possível, como as sabem dizer alguns adeptos da ciência hipocrática,
que se jactam de fortes, chegaram aos ouvidos de Maquelina, que
juntou as mãos, e, erguendo os olhos ao Céu, disse com voz débil:
Aqui está a serva do Senhor, cumpra-se em mim a sua san-
tíssima vontade.
Quando Agostinho entrou no quarto, encontrou-a resignada.
Nessa mesma tarde confessou-se e sacramentou-se aquela pobre
de Cristo.
Na cidade dizia-se:
Coitada! o irmão matou-a. Morre de fome e fadiga e com
dinheiro em casa.
SEROES DA PROVÍNCIA
Era forte cisma a do povo.
Mas há dessas teimas.
Ao pé da noite pediu Maquelina um chá para mitigar a sede
Naquele diao se acendera ainda o lume em casa. Agostinho esque-
cera-se de comer, e se se lembrasseo sei bem o que teria sucedido,
Melhor foi que seo lembrasse.
Agostinho correu à cozinha, reuniu a custo alguns cavacos já meio
queimados para acender o lume, e voltou à sala.
Maquelina dava-lhe instruções da cama.
Ainda achaste lenha ?
Achei, sim, madrinha.
Bem; ora agora... Essa lamparina está acesa ainda?
Está, madrinha, está, poiso.
Não, filho, já ao vejo.
Havia neste já uma significação que comoveu Agostinho.
Ela continuava:
Encontraste carqueja ?...
Não, madrinha... mas...
Valha-me Deus disse ela, lutando já com dificuldades para
se fazer ouvir. —Olha, sabes, aí... na gaveta do toucador... está uma
papelada de que... às vezes me sirvo para economizar. Acende alguma
na... lamparina e... Ai! terminou ela com um suspiro, que o longo
esforço que tinha feito para falar lhe tornara necessário; e depois em
voz mais baixa acrescentou:
Louvado seja o Senhor, a que estado eu cheguei!
Agostinho abriu a gaveta.
Aí continuou Maquelina com voz sumida e trémula.
Achaste? bem... ora agora...
Agostinho inflamou à chama escassa da lamparina um dos papéis
que tirara do velho toucador da tia.
Isso disse esta satisfeita por se ver compreendida.
Ãs sombras indistintas que reinavam no aposento sucedeu a cla-
ridade da lavareda, mas foi de pouca duração. Aindao teria ardido
metade do papel, já Agostinho, soltando um grito inexprimível, o ati-
rava ao chão, abafava-o com os pés, precipitando ao mesmo tempo
pela vivacidade do movimento a lamparina, que se fez em pedaços.
A escuridade tornou-se completa.
Que foi, santo nome de Jesus! que foi, Agostinho? dizia
assustada Maquelina, erguendo-se a meio corpo.
Que papéis eram estes, minha madrinha?
Eu sei, filho; mas que foi ? valha-me o Senhor,
Uma luz! uma luz! bradou Agostinho fora de si; e saiu repen-
tinamente da casa, atravessou a rua, enfiou pela primeira porta que
encontrou aberta, galgou um lanço de escadas, penetrou em um quarto
onde trabalhavam pacificamente algumas mulheres, apoderou-se da
luz que viu no meio da mesa, em volta da qual elas se formavam em
SERÕES DA PROVÍNCIA
círculo, e sem dar uma única palavra, saiu arrebatado, deixando em
completa estupefacção as circunstantes, que só passados minutos vol-
taram a si, para correrem atrás do mancebo, que parecia possesso.
Agostinho entrou de novo no quarto da tia moribunda, aproxi-
mou-se do lugar onde deixara os restos do papel meio consumido,
apanhou-o, examinou-o com escrupulosa atenção, depois correu à gaveta
do toucador, sujeitou a igual exame os outros papéis semelhantes que
ai estavam a monte.
Por amor de Deus, madrinha... mas... de onde vieram estes
papéis ? — exclamou ele, ao passo que um por um os passava em
revista.
Maquelina, apoiada no braço convulso e com os olhos espantados,
olhava para o sobrinho estupefacta.
Eram do mano, o Senhor o tenha em glória; guardava-os
naquela arca; ele sempre me disse que de nada valiam, e agora que
eu me via precisada ia-os queimando, para...
Mas, valha-nos a Virgem! era uma riqueza inteira que quei-
mava assim!
Que dizes tu, filho?
Os combustíveis da tia Maquelina eram nem mais nem menos
que boas e excelentes notas de banco, às quais o velho Cipriano redu-
zira os seus haveres, porque o amedrontava o tinir do dinheiro metá-
ico, como chamariz de ladrões: enquanto que por outro lado nunca se
pudera resignar a separar-se do seu querido capital, em cuja contempla-
ção saboreava aquela doce voluptuosidade, só dos avarentos conhecida.
Quando se procedeu a investigações em casa de Maquelina para
descobrir o tesouro oculto, esqueceram-se, como quase sempre acon-
tece", de examinar os lugares, por onde deviam ter principiado;
enquanto profundavam a terra e escavavam as paredes, ninguém se
lembrou de abrir a pequena gaveta, que nem chave tinha sequer, e
onde Maquelina alojara toda a riqueza. Mas quem o podia supor!
O instinto do povoo o enganara desta vez.
Cipriano era de facto rico. Vivera uma vida de privações, prati-
cou um negócio de alta usura debaixo das maiores cautelas e mistério
impenetrável; aí está explicada a sua riqueza.
É receita infalível para chegar ao mesmo resultado; as pessoas,
a quemo nausearem os ingredientes, adoptem-na, porqueo falha.
Desconfiando de todos, da própria irmã desconfiava, e dava-lhe
por isso a entender que de nenhuma importância eram os papéis que
ela ãs vezes por acaso chegara a descobrir.
Maquelina era ignorante, e nem imaginava sequer que se pudesse
ter uma riqueza em papéis. Na sua inteligência, como na das crianças, a
ideia de riqueza andava associada à de muito dinheiro em ouro e prata:
gavetas, cómodas, caixas e burras cheias dele ; e por isso ia queimando
agora lentamente aquele tesouro que o irmão acumulara; e isto com
o fim de poupar carqueja !
SERÕES DA PROVÍNCIA
Cleópatra, brindando os amantes com soluções de pérolas pre-
ciosas,o conseguiu ser mais magnifica.
Era um passatempo de milionário o de Maquelina.
Se Deus lhe prolongasse a vida, até onde iria aquela monstruosa
combustão? Que soma enorme seria aniquilada!
E ainda assim quantoo consumiria!
Nunca se pôde calcular.
Há o quer que é de sublime neste quadro. Uma mulher velha,
caquética, esfomeada, agonizante, tendo ao alcance do braço uma
riqueza, como ela nem sequer concebera nos seus mais ambiciosos
sonhos, e queimando-a!
A notícia inesperada, que recebia agora, imprimiu àquela exis-
tência o derradeiro abalo. A alma, já quase desapegada do corpo,
abandonou-o de todo e partiu.
À meia-noite morreu a santa criatura, contente, porque deixara
rico o sobrinho e afilhado, único parente que possuía na terra.
Ainda assim, quando se divulgou a notícia, o que, graças à comuni-
cabilidade das mulheres a quem Agostinho usurpara a luz, e que foram
as primeiras a sabê-la, seo fez esperar muito, houve quem se pen-
teasse como herdeiro.
Faria rir se expusesse aqui os fundamentos das pretensões desta
gente, e euo quero fazer rir o leitor a quem peço antes uma lágrima
para a memória de Maquelina.
o seguiremos agora a história de Agostinho, que se modela por
a de todos os homens ricos.
Apenas direi que por suas especulações comerciais conseguiu
multiplicar o capitalo inesperadamente herdado, e hoje é milionário.
Vejam o instinto do povo!
OS NOVELOS DA TIA FILOMELA
tia Filomela era uma pobre mulher, que eu conheci em outro tempo,
muito enrugada, muito magrinha, com a coluna vertebral como
a do homem das cortesias do método Castilho; queixo e nariz
prolongando-se-lhe em promontórios agudos e a fazerem lembrar os
crescentes sob os minaretes das mesquitas ; olhos abertos para o mundo,
somente quanto bastava para lhe descobrir as vaidades, e a cabeça
incessantemente animada por um movimento convulsivo, que junto ao
sorriso contínuo e quase irónico que se lhe estampara nos lábios, dava
à fisionomia de ordinário meditativa da velha,o sei que vislumbre
de filosofia céptica, que impressionava quantos a viam.
Os hábitos da tia Filomela atingiam o sublime da parcimônia.
Uma sociedade inglesa de temperançao hesitaria em lhe con-
ferir diploma de sócia honorária, se deles tivesse notícia.
A voz estava em flagrante antagonismo com o nome melodioso,
que predilecções, provavelmente maternas, lhe tinham dado na pia
baptismal.
De facto, a tia Filomela — a culpao era sua faria corar de
vergonha o rouxinol, seu harmonioso homónimo, se isto de coraro
fosse esquisito atributo da espécie humana.
Euo posso comparar o timbre daquela voz a ruído algum conhe-
cido na natureza; em mim produzia o mesmo desconsolado efeito que
me causa aos nervos o roçar de metal agudo sobre uma mesa de
mármore polido.
Ouvindo falar algum tempo a tia Filomela, ficava-me a doer o
peito, e o pulso subia a um algarismo em que principiava a revelar
aspirações a febre.
Se me obrigassem a viver com ela muito tempo, estou que mor-
reria ético,
SEROES DA PROVÍNCIA
Um dia falei nisto a um médico e ele explicou-me o fenômeno
por uma palavra inexplicável.
Chamou-lhe uma idiossincrasia.
Eu dei-me por satisfeito. A coisao era para manos.
Quando eu, com a minha idiossincrasia, conheci a tia Filomela,
gozava a mulher de uma reputação, que, a falar verdade,o se podia
dizer das mais lisonjeiras.
A gente da vizinhança as vizinhanças na aldeia compreendem-se
em um círculo de três léguas de raio teimava as juntos que ela
mantinha sinistras relações com os espíritos ruins, que aos sábados
o faltava às soirées do Diabo, e enfim que era a pobre velha nem
mais nem menos do que uma ladina e famigerada feiticeira.
Punge-me ter de arquivar aqui, forçado como sou pela veraci.
dade de cronista, que a origem principal de semelhantes boatos a fui
encontrar na parte bela e amável do sexo, do qual a tia Filomela era um .
espécime avariado.
A beleza e a juventude fazem disto. As que as possuem, orgu-
lhosas de seus dotes sedutores, invejam-se e odeiam-se mútua e cor-
dialmente ; ao mesmo tempo que desprezam e caluniam as desfavore-
cidas nesse ponto pela nem sempre muito imparcial natureza.
Consolação suavemente consoladora para as leitoras feias, que
o incorrem pelo menos em um destes pecados.
Foi efectivamente a uma conversa de raparigas que eu devi a
revelação da íntima correspondência entre a tia Filomela e os espíritos
das trevas.
Disse-mo Luisita, tomando certo ar de misteriosa seriedade, tal
como a natureza do assunto o reclamava.
Luisita era uma galante rapariga dos arredores.
O diminutivo com que a designo aqui, e que era o adoptado por
todos, vale mais do que qualquer minuciosa descrição.
Nós, os peninsulares,o empregamos indiferentemente as varie-
dades de diminutivos, que possui em abundância a nossa língua.
Entre uma mulher a quem chamamos Luisita, e outra que nos
valeu a mais doce denominação de Luisinha, vai uma diferença con-
siderável; diferença de tipo, diferença de hábitos, diferença de
carácter.
Uma será meiga, ingénua e sensível, quase sempre loura e
alva, corando à menor palavra que lhe dirigirdes, baixando os olhos
confusa, se a fitardes um momento, pronta a chorar de saudade, e tendo
o sei que de triste até nas intensas alegrias; na outra, pelo contrário,
encontrareis certa petulância e travessura, que arrostarão com vossos
olhares mais impertinentes, um rosto provocador, risos prontos e fran-
camente joviais, movimentos vivos, respostas fáceis e naturalmente
epigramáticas; uma zombaria a cada galanteio; a cada fineza, uma refle-
xão, que nos desconcerta, e revelando sempre, até por entre lágrimas,
um fundo inesgotável de contagiosa alegria.
SEROES DA PROVÍNCIA
Tal era Luisita. Tal a conheci eu naquele tempo. Tinha ela então
dezoito anos; era baixa, trigueira, de olhos negros e engraçados;
ninguém passava por ela na estrada que involuntariamente seo vol-
tasse depois para a seguir com a vista. Adivinhava-o e lisonjeava-se
com isso. Subitamente voltava-se também para surpreender em fla-
grante os numerosos contempladores, e poucas vezes podia reprimir
uma risada, se conseguia perceber que os mortificara com a des-
coberta.
O rosto dela era o mais gracioso conjunto de imperfeições, que
pode perturbar a cabeça dos menos predispostos para influências
de tal ordem.
A natureza folga, de quando em quando, de pregar destas pirraças
aos profundos conhecedores da arte, que imaginaram ter descoberto
as verdadeiras leis do belo, em suas variadas manifestações. Apre-
senta-lhes uma dessas figuras de mulher queo resistem à análise,
incorrectas e repreensíveis segundo as regras da arte e, a despeito
de todas as teorias e sistemas, mau grado todos os princípios fundamen-
tais de estética ou de plástica, inspira-lhes com elas as mais endiabradas
paixões que podem transformar o juízo destes absolutos legisladores
da coisa menos legislável do mundo.
Impressionados a seu pesar como os severos apreciadores de
música, de mal consigo mesmo quando, em contradições com os sis-
temas a priori, se deixam entusiasmar pelos inspirados defeitos de
Verdi, os tais artistas filósofoso então de uma inconsequência que
me delicia.
É para ver como estes frios analistas, sempre prontos a pretender
encontrar em certas combinações de curvas, certo contraste de cores,
certa proporção de diâmetros, a razão de ser da beleza, e a causa única
das sensações que ela inspira, param confundidos diante de uma dessas
sedutoras irregularidades, que, despedaçando os moldes acanhados
onde julgavam conter o poder criador do belo, lhes revela a cópia de
recursos de que, em suas felizes infracções desses imaginários códi-
gos, a natureza dispõe ainda a ocultas da pretensiosa arte.
Diante deo misteriosas sínteses, que de uma maneira desco-
nhecida assim profundamente nos afectam, é que a análise, destruindo
tudo, à força de tudo querer decompor, se mostra pequena e
incompleta.
Mas estava eu falando da Luisita que mal suspeita, por certo, ter
servido de tema a considerações desta ordem.
Simpática rapariga aquela! Misto de ruindade e de candura, de
timidez e de astúcia; carácter caprichoso e às vezes impertinente sobre
um fundo de inexcedível bondade, agradava-me por isso mesmo.
A bondade excessiva, sempre coerente consigo, as abnegações com-
pletas, aproximam-se demasiado da perfeição angélica;o muito isen-
tas de cor terrena, para nos inspirar outro sentimento queo seja o da
veneração. Interessam-nos mais estes caracteres, que parece tocarem
156 SERÕES DA PROVÍNCIA
por um lado nou sem de todo se desprenderem da Terra, por onde
justamente se acham em mais íntima relação connosco.
Lado frágil e vulnerável, que maiores simpatias nos desperta,
A avezinha que todoss mais amamos é a que ferida na asa,o eleva
voos a grande altura do solo.
Ao menos eu por mim declaro-me mais sujeito a ser impressio-
nado por estes caracteres mistos de mulher e de anjo, e ãs vezes até
com seus ressaibos de demónio.
Fazem-me lembrar porque oo direi ? as felizes combi-
nações que a cada passo realizam os confeiteiros, associando corno
correctivo a adstringência de um ácido à excessiva e às vezes enjoa-
tiva doçura das massas de pastelaria.
Perdoem-me o comezinho da comparação e deixem-me con-
tinuar.
Dizia eu que fora de Luisita que obtivera as primeiras informações
sobre a vida escandalosa da tia Filomela.
E por sinal que ia ficando de mal comigo ao divisar-me nos lábios,
ao passo que falava, um sorriso de incredulidade.
O senhor ri-se ? disse-me ela com um gesto de contrarie-
dade e uma ruga de mau humor a sulcar-lhe a fronte, o que dava à
fisionomia a mais adorável expressão de cólera feminina que se pode
imaginar é dos tais queo acredita em feiticeiros ?
Se acredito! Tanto que ando enfeitiçado.
Anda? continuou ela, tomando já um aspecto todo risonho
por aquela extrema mobilidade de feições que possuía, a par de igual
mobilidade de carácter vire o casaco do avesso ; dizem que é remé-
dio pronto.
Do avesso trago eu o coração, a julgar pela desordem que
sinto cá dentro.
Sim? Então quem lho voltou?
Olhe queo foi a tia Filomela, isso lhe juro eu. Há feiticeiras
na terra, maso de outra casta.
Vamos então a saber. Conte-nos isso. Quemo essas feiticei-
ras ? disse a minha gentil interlocutora a provocar o cumprimento
que pressentia.
Saboreei um prazer de deuses em lheo dar esse gosto e res-
pondi-lhe:
As feiticeiraso estas árvores, estas flores, estas campinas e
montes, estas tardes e madrugadas, queo enfeitiçado me trazem
queo há tirar-me daqui.
Ela compreendeu, porém, a táctica e respondeu-me com uma gar-
galhada provocadora,
SEROES DA PROVÍNCIA
II
E
STA cena passava-se na tarde de um domingo e no largo onde
se reunia para dançar, rir, cantar e falar de amores, a parte
jovem da população; e para rezar, dormir e falar do passado e
das vidas alheias, a outra porção mais favorecida de anos e menos de
descuidosa alegria.
Deste lugar, situado na encruzilhada dos quatro principais caminhos
que atravessavam a aldeia, estendia-se a vista, do lado ocidental, em
uma série extensa de várzeas e de campinas divididas em quarteirões,
regulares como os tabuleiros de um jardim, por longas fileiras de
choupos, que as vides, enleando-se-lhes nos ramos, guarneciam com
pendentes e viçosos festões.
A diferente qualidade ou vigor de plantações e o diverso grau
de cultura desses numerosos campos, em que se repartia a planície,
davam a cada um deles uma aparência particular, quebrando agra-
davelmente a ordinária monotonia dos terrenos pouco acidentados.
A natureza empregara na tela os mil cambiantes da cor verde,
própria às paisagens campestres, e, por um segredo de colorido que
a arte mal pôde ainda imitar, soubera introduzir, na pintura em mosaico
dessas vicejantes alcatifas, no meio de uma uniformidade aparente, a
mais aprazível variedade.
Aqui e além elevados castanheiros, frondosos carvalhos ou oli-
veiras verde-pálidas formavam pequenos bosques em volta de uma
ou de outra habitação isolada, como para ocultar o mistério de alguma
existência obscura que se deslizasse ali e concentrar no seio da família
o grato calor dos lares domésticos que alimenta e vigora os mais afec-
tuosos sentimentos do coração humano.
Cada uma dessas habitações solitárias, assim envolvidas na sombra
dos olivais, dos soutos ou das devesas, assim recatadas e discretas,
como aquelas pessoas naturalmente pouco expansivas que se calam
com suas alegrias e experimentam no gozá-las em silêncio a mais casta
voluptuosidade, me parecia encerrar um poema inteiro de íntimas
felicidades. A cada uma delas associava a minha imaginação, obede-
cendo ao sei que irresistível necessidade de fantasia, uma vida de
tranquilos e inefáveis prazeres, cuja só concepção me deleitava.
E como para que às comoções agradáveis que toda esta cena
despertava,o faltasse certa melancolia, que se insinua em nossos
mais delicados sentimentos, lá estava a suscitar-ma, junto da igreja
paroquial, o cemitério da aldeia, sem a magnificência dos mausoléus,
mas com a poesia da tristeza; sem longas ruas assombradas por cedros
e ciprestes, mas abundante em rosais sempre floridos, que, balouçados
pelo vento, cobriam de pétalas desfolhadas as campas mais humildes
SERÕES DA PROVÍNCIA
e obscuras, onde nem sempre a amizade depusera sequer a devida
homenagem de uma flor.
Mais longe, principiava o terreno, em suave declive, a elevar-se
como nos degraus sucessivos de um extenso anfiteatro e sempreo
rico de vegetação,o revestido de árvores e de relva, que dava ao
país naquele ponto a pitoresca aparência de um vasto cabaz a tras-
bordar de verdura e de flores.
Nesta graciosa corrente de pequenas colinas, que circundavam
a planície, divisavam-se as povoações vizinhas, como pequenos pontos
brancos dispersos ou amontoados, por entre os arvoredos da encosta.
De cada uma delas começava já então a erguer-se o fumo dos
lares em colunas densas e tortuosas, que cedo se misturavam, difun-
diam, rasgavam em mil pequenas nuvens irregulares, dissolvendo-se
por fim em uma atmosfera de vapores, que pouco a pouco, como em
transparente sendal, envolvia toda a paisagem.
Mais distante, ainda no extremo do horizonte, desenhavam-se
em grandes sombras, vagamente contornadas sobre o claro do céu,
iluminado àquela hora pelos últimos raios do Sol no ocaso, cordilheiras
de remotas serras que, tingidas por a uniforme cor azulada das paisa-
gens longínquas, mais pareciam pesados cúmulos de nuvens surgindo
ameaçadoras do ocidente.
Quase sempre as coroavam altas neves, onde o sol, reflectindo-se,
produzia surpreendentes efeitos de óptica, simulando fantásticos palá-
cios de pórfiro e pedrarias. Daí se precipitavam as torrentes, que pouco
a pouco, descendo nos vales e enleando-os nas malhas de uma rede
complicada de arroios cristalinos, trocavam a primitiva impetuosidade,
ao despenharem-se, como cataratas, em fragosas ribanceiras, por um
sereno deslizar entre silvados e relvas, que apenas denunciava um
confuso murmúrio.
Se, depois de ter assim contemplado este panorama risonho e
aprazível, voltássemos os olhos para o lado do oriente, reconhecería-
mos um desses contrastes, a que éo afeiçoada a natureza nos países
onde mais inesgotável se mostra em seus recursos de artista; uma
dessas rápidas mutações de cena, que deleitam, variando, de momento
para momento, as impressões que produzem.
De facto, a perspectiva era deste lado mais limitada, ainda que
absolutamenteo menos bela.
Logo a pequena distância principiava o terreno a assumir uma
rápida inclinação, perdendo ao mesmo tempo a amenidade e vigor
da vegetação dos vales para revestir a severa e melancólica beleza
das paisagens alpestres.
Na base desta colina,o diversa das que do lado oposto parecia
sorrirem-lhe envolvidas em seus vistosos mantos de folhagem, vinham
expirar as últimas oliveiras, já pálidas e débeis, como se o vento das
montanhas lhes consumira o vigor. À cor viçosa da relva sucedia pouco
a pouco o verde sombrio das giestas e do tojo; suas tristes flores ama-
I
SERÕES DA PROVÍNCIA
relas aos variegados matizes com que se adornam os campos; às
sombras densas e impenetráveis das devesas, as sombras enganadoras
dos pinhais; o gemer melancólico das rolas, o grito louco dos gaios,
aos alegres gorjeios que ressoam nos vales, e o cheiro activo das
resinas, aos brandos aromas das flores do prado.
Ao topo deste monte, em toda a extensão do qual nenhum ves-
tígio de cultura e animação interrompia, por espaços sequer, o aspecto
selvagem e de completo isolamento que nele imediatamente nos
impressionava, condizia, descrevendo longas sinuosidades, um cami
nho íngreme e quase intransitável, comprimido entre elevadas paredes
deste terreno argiloso de cor ensanguentada, de onde raro brota uma
planta, ou nasce sempre estiolada e débil, desfolhando-se ao menor
sopro de aragem que por momentos a agite.
Iminente a esse caminho, no qual em pleno dia penetravam apenas
os raios de um pálido crepúsculo, e a mais de meia encosta do monte,
existia a casa da tia Filomela, queo desdizia, na sua aparência de
miséria e tristeza, da paisagem que lhe servia como de fundo de quadro.
Fora esta casa solitária no meio de um pinheiral sombrio, que,
contrastando fortemente com a amenidade da perspectiva fronteira,
onde tudo era vida e cultura, me atraíra a atenção e dera lugar ao
diálogo, no qual a personalidade da pobre mulher começava a ser
discutida,o demasiado lisonjeiramente para ela.
A conversa travada entre mim e Luisita pouco a pouco se genera-
lizou ; eo popular era o assunto, que todos tomaram parte nela, inter-
rompendo as danças, dando tréguas às violas, e sacrificando-lhe até
os trocadilhos amorosos, com que mutuamente se mimoseavam os
namorados.
A minha incredulidade aumentou o ardor e vivacidade das insis-
tências ; longe por isso de aproveitar à pobre Filomela, antes a ia pre-
judicando.
É ver, é ver dizia uma morena, apertando debaixo da barba
o lenço escarlate, que com o movimento da dança se lhe havia desatado
logo que veio para aqui aquela bruxa, foi um morrer de crianças
como nunca se viu.
E os carneiros do ti'Zé da Nora, que em menos de quinze dias
lhe morreram todos, mirrados como um torresmo? acrescentava
outra, levando aos dentes, alvos como o marfim, uma laranja que prin-
cipiava a descascar.
E os pregos que lançou pela boca fora a tia do João dos Moinhos ?
Ora nem que ela lançasse pregos! isto pode lá ser! disse,
simulando cepticismo, um rubicundo mocetão de vinte anos, que ali-
mentava para estas coisas no fundo da alma a mais fervorosa crença.
o ? pois pergunta-o ao sr. doutor, que saiu de casa dela a
benzer-se e a dizer queo era aquilo doença de médicos.
É verdade, é verdade. E foi lá o sr. abade fazer-lhe os exor-
cismos.
SEROES DA PROVÍNCIA
Qual? o novo?
Não, o antigo, que Deus haja. O novo sim, olha, olha o outro|
Esse bem se ha nestas coisas.
Assim Deus me perdoe, como ele me parece bruxo.
Estás doida, rapariga!
Eu digo isto. Poiso vêem como fala de mano a mano com ela?
Se fosse bruxo,o faria as esmolas que faz redarguiu Lui-
sita, obedecendo aos seus bons instintos.
Nanja eu que lhas quisesse.
Que dizes tu, mulher, que dizes? Ora o Senhor teo castigue,
Ámen. Mas então para que conversa ele com a tia Filomela,
sabendo de que casta ela é? Como lá diz o outro: «Quemo quer
ser lobo...».
Ele sabe lá se ela é bruxa!
Poiso lho dizem todos, eo repara que nunca ouve missa,
e nem sequer vai à igreja?
Eu vi Luisita quase disposta a tomar a defesa da tia Filomela.
A contradição irritava-a e instigava-a a reagir com toda a força de sua
natural impaciência.
Uma das circunstantes, porém, trouxe novo artigo de acusação
contra a velha Filomela, e conseguiu reunir de novo as opiniões, que
a questão do reitor havia dividido.
Sabem vocês, a minha capa nova? fui-a encontrar toda às tesou-
radas depois de uma terça-feira em que passei pela tia Filomela lá em
baixo nas presas.
Credo! e tornaste a trazê-la, rapariga?
Deus me livre I
Eo coseste o bruxedo?
Ainda não. Como é que isso se faz ?
É preciso ferver toda a roupa em uma panela que aindao
tenha servido, e barrá-la muito bem com lodo e...
o acrescentou uma outra antes lançam-se na água sete
pedras de sal, com ao esquerda.
Isso é depois...
Não, senhora, é antes.
Vem-me ensinar a mim, que o vi fazer à Joana do Viúvo, quando
lhe embruxaram o sobrinho.
Sim, mas também a Joanao diz as palavras que dizia a Rosa
do Emídio, e sem elaso se faz nada, ah!
Seo diz essas, diz outras.
E que palavras são?—perguntou a proprietária da capa enfeitiçada.
As da Joanao assim:
Tarrenego esp'rito imundo,
Vai-te pra os fogos eternos,
Lá no fundo, bem no fundo,
Das profundas dos infernos.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Agua quente da panela
Ferva esta roupa bem cedo,
Fervida seja com ela
A bruxa com seu bruxedo.
Como é o resto?... A bruxa com seu bruxedo... a bruxa com
seu bruxedo repetia a rapariga, vasculhando em vao a memória
para achar o resto da cantilena imprecatória da Joana do Viúvo vedes,
o me lembra, mas é assim uma coisa.
Mas há-de ser dito com um ramo de alecrim bento na mão,
fazendo três cruzes no ar a cada verso.
Isso já se sabe.
Outra aventurou do lado o seguinte alvitre:
Diz que também o que é muito bom contra as feiticeiras, diz
que é a hortelã verde do monte.
Ora isso é para matar saudades. Quando o nosso Zé foi para
o Brasil, minhae coseu-lhe hortelã no forro do colete, porque o pobre
rapaz, coitadinho, ia esmorecido de todo.
Eu cá do que sempre uso é de figas de azeviche opinou
outra, exibindo, como prova do seu dito, um dos objectos mencionados.
Sim, queo chuparam as bruxas o pequeno da Tomásia, e
mais tinha no pescoço uma figa que lhe dera a madrinha.
O pequeno da Tomásia morreu de uma febre.
Boa febre! Poiso se viu a olhos vistos ! Podiam-se-lhe contar
as marcas que lhe deixaram as feiticeiras. Tinha o corpinho todo sara-
pintado de nódoas roxas, que era mesmo uma pena vê-lo.
Eu desde que uma tarde, era já ao lusco-fusco, vi rondar a tia
Filomela, coms de, em volta da casa de Tomásia, logo me deu
uma pancada no coração.
E eu que tantas vezes lhe disse: Tomásia, tu tem cautela
com o teu filho!o sei o que me dizia o que tinha de suceder.
A rapariga também era desmazelada observava outra, man-
tendo a conversa no tom de maledicência em que já ia afinada. Deixava
andar sozinha aquela criança, ainda a engatinhar, em termos de lhe
acontecer alguma desgraça. Quantas vezes a fui eu tirar da ribanceira
e quase a rolar por ela abaixo?
Não, eu sempre digo que há mães também!
Depois então é que é o gritar: Ai o rico filho da minha alma!
como ela gritava, que era até uma vergonha.
Ora, uma vergonha sim! isso é bom de dizer, mas coitado de
quem os tem!
E como o outro que diz: aquilo sempre é sangue do nosso
sangue.
Mas então que olhem por eles;o é só quando morrem
que...
A gente, enquanto elesm saúde, nem bem sabe o amor que
lhes tem; depois é que tudoo aflições.
VOL II6
SERÕES DA PROVÍNCIA
Isso lá é assim, é.
Malditas bruxas diziam algumas vozes, como se fora um
estribilho de canção.
Nessa mesma noite em que morreu o pequeno, foi que elas
apareceram ao Luís do Canha.
Ai, então apareceram-lhe as bruxas alguma noite?
Poiso o sabias, mulher?
Eu não!
Admira! Tanto se falou nisso.
Mas então como foi? Euo sei de nada.
Foi uma noite em que o Luís do Canha veio mais tarde da cidade,
eo encontrou companhia. Era num sábado. Ao passar nos Telheiros,
pareceu-lhe ouvir o barulho de lavadeiras a bater a roupa nas presas.
O rapazinho, admirado de que se lavasse àquelas horas, parou um pouco
e pôs-se a olhar para baixo.
E que viu ? perguntaram-lhe em coro umas poucas de
vozes com uma inflexão em que se revelava o mais vivo interesse.
Muitas sombras assim como fumo a correr de um lado para o
outro, à roda, à roda, como folhas secas em dia de ventania. E logo
umas risadas e umas vozes que chamavam por ele: Luís! Luís! onde
vaiso tarde? espera, espera, ouve um recado. O pobre rapaz
sentiu que se lhe arrepiavam os cabelos da cabeça e deitou a correr
com toda a pressa que pôde.
«E aquelas risadas a persegui-lo. Ele a correr, e as vozes a cha-
má-lo ; depois apareceram-lhe umas sombras negras, altas como gigan-
tes, que fugiam a esconder-se por entre as árvores, fazendo um barulho
como o do vento nos pinheirais, e umas luzinhas a aparecer e a desa-
parecer, a aparecer e a desaparecer. Quando passou nos moinhos,
viu à beira do riacho assim como um corpo morto, embrulhado em um
pano branco, e a gritar: Ai quem me acode ! ai quem me acode!
E assim o seguiram e perseguiram, até que o rapazinho chegando ao pé
da igreja, disse: Valha-me Nossa Senhora do Amparo! valha-me
Nossa Senhora do Amparo, minha madrinha! Tudo então desapareceu.
Credo! disse uma das ouvintes, benzendo-se se fosse isso
comigo... eu sei lá?... já tinha morrido de susto.
Pouco faltou ao Luís, que andava parecia enterrado em vida.
Bom dinheiro gastou o pai para lhe tirar o mau olhado.
Foram todos a pé ao Senhor de Matosinhos, com um vela do
tamanho do rapaz, e só então é que ele ficou bom.
Santo nome de Jesus! nunca vi terrao azada a bruxas como
esta nossa!
E o homem da Teresa dos palheiros? aquilo é feitiço ouo
é feitiço?
Que feitiço? que feitiço? exclamou uma gorda rapariga, que
tinha motivos pessoais parao simpatizar com a tal Teresa dos palhei-
ros que queriam vocês que ele fizesse com uma mulher daquelas?
SEROES DA PROVÍNCIA
Então que tem a mulher, criatura?! Tu também!...
Isso; perguntem-no a mim, que há-de ser preciso. Ora já
viram!
Mas diz lá o que tem ?
O pobre do homem a trabalhar como um mouro, e ela a gastar-
lhe tudo em roupinhas e gibões.
Isso é feitiço que nos espera a todos disse o principal toca-
dor de viola da aldeia, apertando uma cravelha do instrumento, e expe-
rimentando nas cordas, irritantemente melodiosas, o grau de afinação.
Estas palavras consideradas ofensivas pela parte feminina do
auditório, suscitaram uma discussão em que foram postos em paralelo
os defeitos e qualidades dos dois sexos, de ambos os lados, com apai-
xonada parcialidade.
III
0
vento que soprava do lado do monte trouxe-nos neste momento
aos ouvidos bem distinta, apesar da distância, a voz da tia Filo-
mela, com aquele timbre particular e penetrante, que já lhe
conhecemos.
Chamava pelo seu gato preto, magro quadrúpede, que a junta
de inspecção do exército, de que fala a Gaticânea, excluiria, por incapaz
do serviço militar.
Este gato era um gravíssimo indício da criminalidade da tia Filo-
mela. Sempre que eu o via, regozjava-me interiormente por se terem
apagado havia muito as fogueiras do Santo Ofício. Se elas ainda exis-
tissem,o sei eu se a tia Filomela com semelhante fama e com seme-
lhante gato, haveria escapado ao processo de torrefacção com que
naqueles infelizes tempos se apurava a.
Então, visto isso perguntei a Luisita aquele gato é o
Diabo?
Cruzes ! exclamou ela, como correctivo ao feio nome que
euo hesitara em proferir, e depois acrescentou: — eo o diga a
mangar, é ver como esse mafarrico anda em guerra aberta com os
outros gatos e dá cresta de quantos pilha.
Ah! pelo que vejo, o Diabo ocupa-se agora em baixos meste-
res. Voltou-se contra os gatos! Que decadência!
Está a brincar ?
Não, falo sério. Ora diga, a menina acredita deveras que o
Diabo lhe dê para embirrar com os gatos ? Quem a persuadiu de seme-
lhante coisa?
o sei. Vejo queo crê no que lhe digo, Pois faz mal.
Mas vamos, a tia Filomela, então...
Para quê seo quer acreditar ?
SERÕES DA PROVÍNCIA
Quem lhe disse queo quero ? Eu só desejava que mostrasse
a razão por que ela é bruxa.
A rapariga fez um gesto de impaciência.
Bem sei que me vai dizer que ela é feia e velha... Ora aí está
o que euo posso admitir...
Estas palavras granjearam-me uma estrondosa gargalhada.
Então acha-a bonita e nova ? E diz queo está enfeitiçado!
Ah! ah! ah!...
Valha-me Deus!o é isso. O que euo admito é que as
bruxas sejam feias. As que me enfeitiçamo outras.
Ai, isso é cantiga ? E tomando um ar còmicamente sisudo,
continuou: Ora mas fique sabendo que a tia filomela em certas
noites, berra de maneira que se ouve no povoado.
Histórias! Afinal há-de ser o pavão da quinta das Cerdeiras.
Luisita encolheu os ombros expressivamente e prosseguiu sem
mais resposta:
Acende-se às vezes em casa dela, lá por altas horas, um lume
vermelho...
Que faria se fosse azul! Aí está a justificação da boa mulher,
vê ? O lume do Inferno é azulado;o sabe que é de enxofre ?
Luisita olhou para mim, meia a rir-se meia despeitada.
Como assim! Para que me hei-de estar a cansar ? Sabe que
mais ? Espere pelo sábado, ponha-se à espreita, e verá bonitas coisas.
Lembrou bem; hei-de observar uma noite a tia Filomela.
Nem a mangar diga isso.
Digo-o muito sério.
Credo ! Deus o livre!
E depois hei-de contar-lhe o que me sucedeu.
Não, se tal fizesse, nada me contaria depois.
E porqueo ?
Porque estaria morto.
Santo nome de Deus! que sorteo negra! sempre tem coisas!
Eo se fia!
Aposto até que a tia Filomela me há-de dar de cear.
o diga isso, que até é pecado.
Que mandamento ofendo eu?
Vamos, agora falo sério. Os senhores da cidadem tolices e
pode muito bem dar-lhe na cabeça essa extravagância. Olhe queo
é uma história o que lhe digo; a tia Filomela sai muita vez de noite
e anda pelos montes feita em uma luzinha, e des as vem
visitá-la um homem de má catadura. Há quem o tenha visto; entra e
sai logo.
E então quem é esse homem ?
O demo ou coisa que lhe pertence; vem dar-lhe parte da
grande assembleia de bruxas.
Ah! reúnem-se mensalmente ? É para discussão dos estatutos ?
SEROES DA PROVÍNCIA
O bom humor da minha interlocutora havia-se esgotado; fez um
movimento deo dissimulada impaciência, encresparam-se-lhe os
lábios em um sorriso de generosa comiseração, e depois de me fitar
por alguns instantes, voltou-me as costas, deixando-me entregue à
minha ímpia incredulidade.
Foi bem feito!
Mas O caso é que haviam conseguido excitar-me o interesse pela
tia Filomela, em quem até ali mal atentara sequer.
Eu tinha então vinte anos, e nesta idadeo há imaginação
o de gelo queo medite o seu romance. Todoss pagamos esse
tributo à violência de nossos sentimentos, à facilidade de nossas impres-
sões e tendências que então sentimos para uma vida mais ideal, menos
comprimida nos moldes estreitos da realidade.
Nem sequer esses romances se transportam aos livros, nem sequer
desenvolvem em capítulos, ou revestem uma forma literária qualquer;
muitoso os que abortam, os queo recebem a encarnação da escrita;
tanto pior para a literatura, que fica assim privada talvez de seus mais
perfeitos primores de arte.
Quer-me parecer que a literatura realizada até hoje, seria apenas
um fraco reflexo desta que, assim concebida um momento, se destrói
em gérmen eo passa dos primeiros lineamentos embrionários.
Porque nem sempre a improdução é prova de absoluta esterilidade.
O que há de mais misterioso, de mais admirável e eternamente
incompreensível para inteligências humanas — a concepção é uma
faculdade menos privativamente concedida do que se julga talvez;
mas condições secundárias podem em muitas vezes aniquilar-lhes
os produtos logo à nascença, como um defeito de organização sacri-
fica ao primeiro desenvolvimento o gérmen de um futuro ser. Muitos
que pressentem as delícias e voluptuosidades da concepção,o podem
vencer as fadigas penosas do trabalho que executa e que reveste esses
filhos da fantasia criadora, da forma que os torna visíveis.
Em meu espírito laborava então esta necessidade de criar um
mundo imaginário, onde vivesse mais à vontade do que no mundo
real. Tal é quase sempre a origem de tantos romances escritos — e de
mais ainda fantasiados apenas que nos ocupam as vigílias da juven-
tude e às vezes reflectem o colorido mágico em nossos mais delicio-
sos sonhos.
Debaixo dessa poderosa influência é que eu via então as coisas,
os homens e a natureza; eram essas ideias que me tinham acompanhado
ao campo e me faziam perceber na sombra dos bosques, nas cambian-
tes das flores, nos indefinidos murmúrios das brisas embalsamadas
da folhagem viçosa, mistérios de luz, de harmonias e de perfumes
SERÕES DA PROVÍNCIA
o sentidos por outros; invisível atmosfera de poesia e de ideal em
que tudo parecia envolver-se a meus olhos, que me fazia conceber
um drama, depois de ouvir a narração de um suicídio; imaginar uma
alegria, um poema talvez, ao saber da morte de uma rapariga de quinze
anos; que me mostrava um Chatterton, em cada escritor pálido ; uma
Diana Vernon, em cada amazona a cavalo; um Antony, em cada
enjeitado ; uma Graziela, em cada filha de pescador; uma indiana,
em cada crioula; em cada criada de servir, uma Genoveva; e até um
segundo Quasímodo, em um pobre sineiro que conheci na Sé do Porto.
Feliz tempo aquele!
Via uma rapariga a chorar, um velho sentado, aor do Sol, debaixo
de uma árvore, um grupo de crianças brincando à borda de um regato,
umae amamentando o seu primeiro filhinho, um artista de blouse a
ler nas horas de' desranso à porta da oficina, uma costureira seran-
dando à luz do candeeiro eram outros tantos romances que imagi-
nava ; sempre romances, romances em tudo, romances por toda a parte.
A dificuldade estava na escolha. Felizmente que nunca me meti a ave-
riguar como filósofo por que chorava a rapariga, em que pensava o
velho, o que diziam as crianças, o que ia no coração da mãe, que livro
lia o artista, e os hábitos e vida íntima da costureira; talvez que se me
desse a esse trabalho, me reservasse a realidade bem desagradáveis
desilusões; por isso o encarregava todo à fantasia.
Imaginem, pois, o efeito que as palavras de Luisita e das compa-
nheiras deviam ter produzido no meu espírito, assim predisposto para
concepções desta ordem.
Passeios nocturnos, gritos desentoados, visitas misteriosas, luzes
avermelhadas, um casebre solitário, uma velha decrépita, um gato
negro... que preciosidades!
«Ó pobre tia Filomela, que tiveste a desventura de, mal o ima-
ginando talvez, te revestires de aparências românticas, és minha presa!
já teo livras das garras do romancista, ávido de assuntos, sequioso
de situações, guloso de tipos! Tens a imprudência de seres um tipo,
e julgas que hás-de ficar assim ignorada e esquecida nas quatro pare-
des dessa miserável habitação; cá estou eu para te ir procurar, como
o naturalista, arrancando da concha bivalve o inofensivo molusco e
sujeitando-o à sua classificação. Vou eu também classificar-te. Quero
saber a espécie e família da fauna romântica a que pertences. E se
fosses uma espécie nova!»
Isto pensava eu comigo mesmo, seguindo caminho de casa ao
passo que tomava vulto no meu espírito o projecto de uma visita à
protagonista dos- contos fabulosos, que havia muito corriam na aldeia
de boca em boca, assumindo cada vez maiores e mais imponentes
proporções.
Outro qualquer a quem esta mesma ideia tivesse preocupado,
procuraria realizá-la da maneira mais simples, visitando de dia, e sob
o primeiro pretexto admissível, a mulher que dera azo a tantas dis-
SERÕES DA PROVÍNCIA
cussões e boatos; mas a fantasia, sob cujo domínio eu me regulava
então, exigia mais. Exigia que a visita se efectuasse de noite, através
de incómodos e perigos, à luz das estrelas, quando piassem todas
as aves tristes, e se passassem tenebrosos mistérios.
Meus hábitos de comodidades reagiam, é verdade, contra estas
instigações da fantasia; masoo valorosamente queo ficassem
vencidos afinal.
Eram, pois, onze horas da noite, quando, envolvido misteriosa-
mente em uma ampla capa, como os conspiradores no teatro, dei
princípio a esta minha excursão romântico-artística, esforçando-me por
o ser observado, parao excitar curiosidades, sempre fáceis na
aldeia e sempre desagradáveis para quem é objecto delas.
Ora a noite prestou-se voluntariamente à colaboração do romance:
pois se houve noite escura, ventosa, abundante de nuvens que pare-
ciam montanhas, de clarões sinistros, que semelhavam incêndios, de
ruídos estranhos que lembravam um pandemónio, foi aquela.
Pouco conhecedor ainda do terreno, tive de mais a mais a român-
tica felicidade de me extraviar, e, depois de um quarto de hora de
jornada, adquiri a consoladora certeza de que andava errando cada
vez mais longe do lugar a que me dirigia.
No entretanto, o vento redobrava de violência; acumulou imensas
nuvens sobre a minha cabeça e como se umas contra as outras as
espremesse, à maneira de esponjas embebidas, vazou-as sobre mim
bom uma quase destruidora impetuosidade.
Debaixo de uma chuva daquelas, metamorfoseiam-se os países;
os mais amenos revestem um aspecto medonho, tétrico; vales que,
vistos à luz do Sol, fariam imaginar idílios e inspirariam poesias pastoris
aos estros mais rebeldes, assumem nestes instantes as cores sombrias e
carregadas, que empregavam outrora os poetas épicos para pintar
a entrada das regiões infernais, onde, como complemento de educação,
iam uma vez na vida os heróis de suas epopeias, como hojeo a Paris
os filhos-famílias de classes abastadas.
Naquela noite, para mim de humildes recordações, tudo parecia
mudado; revolviam-se torrentes impetuosas, onde momentos havia
se deslizavam regatos; despenhavam-se cataratas, de onde pouco antes
caia apenas, sacudida pelo vento, a folhagem seca; profundavam-se
lagos onde verdejavam lameiros; e as águas subindo galgavam as
pontes campestres, tornando-as em restingas, os outeiros em ilhas, e
os passeadores nocturnos, como eu, em náufragos ou em Robinsons
Crusoés em completa incomunicabilidade com o resto dos viventes.
Imaginem, pois, minhas aventurosas manobras, para me guiar sem
bússola através daqueles arquipélagos insidiosos, no meio daquelas
sombras ameaçadoras e claridades pérfidas. Ainda hojeo sei por que
milagre do instinto consegui encontrar-me depois de muito molhado e
enlameado, no fim da minha jornada e à porta da tia Filomela.
Obra da inteligência é que por certoo foi; a cabeça tinha abdi-
SEROES DA PROVÍNCIA
cado e concedido plenos poderes às pernas, que seo mostraram
indignas de confiança.
Estas abdicaçõeso ãs vezes mais profícuas do que geralmente
se julga.
Eu pelo menos lucrei naquela noite consideravelmente com elas.
Achara-me enfim no antro da sibila; a Circe ia apresentar-se a
meus olhos, rodeada dos indispensáveis utensílios da sua arte; em
companhia dos animais, colaboradores natos de magias e esconjuros,
envolvida em uma atmosfera de fumo exalado das fornalhas, onde se
destilam em retortas e alambiques filtros subtis que envenenam a alma,
espécie de venenos de que os toxicologistas nada puderam ainda
saber, e queo figuram em nenhum dos seus catálogos. A minha
imaginação fazia-me esperar, senão absolutamente, pelo menos alguma
coisa de anilogo. O tipo de Norma, que Walter Scott imortalizou,
embora apequenada por a influência despoetizadora deste século
material, supunha eu ir encontrá-lo dentro da miserável casa, à qual
depois de muitos trabalhos e perigos conseguira aportar.
V
A
casa da tia Filomela já que ela tinha a vaidosa pretensão de
assim a denominar era de umas dimensões que permitiriam
a qualquer homem de menos que mediana estatura e nenhumas
disposições ginásticas, trepar da rua ao telhado sem mais auxílio que
o dos braços e das mãos. A porta obrigava a curvarem-se os visitantes
menos corpulentos que lhe transpusessem o limiar e a prestarem assim,
em uma reverência forçada, homenagem à hospitalidade, boa ou,
da inquilina. Há portas que valem um tratado de educação.
"janelaso tinha. Era luxo de arquitectura esse, queo merecera
a aprovação do construtor. Por o mesmo processo de simplificação
suprimira ele a chaminé, confiando às inumaráveis fendas do telhado
e das paredes o cuidado de dar ao fumo a conveniente saída. No seu
entender, isto de chaminés era uma espécie de excrescência arqui-
tectónica, que desviava a arte da pureza primitiva.
Outras muitas reformas introduzira na construção do edifício o
artista, sempre em harmonia com as suas ideias simplificadoras, tendo
só em vista o estritamente necessário e cortando pela raiz no supérfluo.
Era no século dezanove, um fiel reprodutor da arquitectura das
primitivas idades.
A chuva e o mau tempo haviam-me sugerido um excelente pre-
texto para reclamar a hospitalidade da tia Filomela.
Em uma noite assim, nem uma bruxa poderia recusar-se a recolher
qualquer viandante, surpreendido, como eu, pelas iras atmosféricas.
SEROES DA PROVÍNCIA
Bati por isso à porta, e conheci, vendo-a ceder, queo estava
fechada.
Contudoo recebi resposta.
À segunda tentativao obtive mais satisfatórios resultados.
Decidi-me a entreabri-la cautelosamente até que por uma estreita
fresta pudesse observar o interior do aposento.
A primeira tentativa foi baldada, pela quase completa obscuridade
que havia dentro. Afazendo, porém, a vista ao ténue clarão, que ainda
se espalhava no lar, pude enfim conseguir algum resultado.
A pequena área que compreendia o recinto e a simplicidade na
mobília, facilitaram-me o exame, e cedo adquiri a certeza de que estava
desabitado ao ser que a inquilina, usando dos poderes sobre-
naturais que lhe atribuíam, se tivesse metamorfoseado em alguma
coisa invisível.
Como a chuva no entretanto redobrava, julguei conveniente apro-
veitar-me daquela porta aberta e entrar nos obscuros domínios da
sibila.
A sala assumia a múltipla função de quarto de dormir, casa de
jantar, de trabalho, cozinha e estufa.
Aí se encontravam as insígnias deste complicado mester.
Via-se ao fundo, sobre carunchosos bancos de pinho, a miserável
e esfarrapada enxerga, recoberta apenas de uma manta, cuja primitiva
cor poderia ser objecto de longas discussões académicas; sobre o
lar, e rodeado de brasas amortecidas, um púcaro de barro negro, como
o que se fabrica nos arredores do Porto, substituía, com algum desa-
pontamento da minha parte, todas as imaginadas retortas, cadinhos e
alambiques; fronteira à cama uma avantajada caixa de pinho assumia
as importantes atribuições de mesa de jantar, segundo o fazia crer a
boroa de milho negro meia partida, a toalha dobrada, a bilha de água
e o serviço de louça, pela maior parte inválido, que a guarneciam.
Duas cadeiras mancas, de aspecto tristonho e, como um veterano
mutilado, ricas talvez só de recordações passadas, uma roca ainda
rodeada de estopa grosseira, um sarilho desguarnecido e, junto à porta,
velhos e ferrugentos utensílios de folha-de-flandres, onde vegetavam
cidreiras, arrudas, salva, erva-de-nossa-senhora e outros símplices de
medicina caseira, completavam quase todo o inventário.
Junto do borralho dois pequenos pontos luminosos de fulgor
fosfórico e sinistro me atraíram a atenção, Eram os olhos do gato negro
que, fitando-me, parecia espiar-me os movimentos com suspeitosa
curiosidade.
No meio desta humilíssima e despretensiosa mobília, uma só
coisa me impressionou.
Sobre o prateleiro tosca tábua de pinho firmada em dois longos
pregos introduzidos na parede e elevada por a tia Filomela à categoria
de despensa e aparador divisava-se, ao lado de alguns objectos
indispensáveis ao seu limitado trato culinário, uma fileira de pequenos
SERÕES DA PROVÍNCIA
embrulhos, de dimensões quase uniformes, e cujo papel acetinado
contrastava tanto com o aspecto da miséria daquele recinto como um
diamante que se pregasse nos andrajos de um mendigo.
Do exame desses volumes, uns já amarelados, outros conser-
vando ainda toda a alvura e nitidez do papel de boa fabricação, coli-
gia-se haverem sido ali dispostos em épocas sucessivas.
A minha curiosidade pôs-se a fermentar à vista deles.
Valor, pelo menos estimativo, devia o conteúdo, qualquer que
fosse, ter para a possuidora, queo cuidadosamente o resguardava
com aparente solicitude, da qual nenhum objecto mais se lhe mostrava
merecedor; mas por outro lado, aquela desassombrada negligência
com que os deixava expostos ãs vistas, desafiando a curiosidade, que
é tantas vezes prelúdio ao desejo da possessão, esta casa abandonada
de noite, esta porta nem sequer cerrada, contrariavam as minhas con-
jecturas ; ao ser que a tia Filomela confiasse demasiado na sua pouca
popularidade e na repulsão que inspirava para temer visitas impor-
tunas, sobretudo àquelas horas da noite.
O que seria e de onde viera aquilo ? perguntava eu a mim pró-
prio, sem de mim próprio receber resposta.
Evidentementeo fora da caixa da tia Filomela que tinham saído
as belas folhas de papel velin que envolviam os misteriosos conteúdos.
Tive tentações de me aproximar, para os sujeitar a exame mais
minucioso; porém confessarei aqui uma puerilidade minha os olhos
do gato fizeram-me recuar.o sei que a sangue-frio se possa cometer
uma acção repreensível, quando um gato nos olha assim. Afinal de con-
tas, é uma testumunha. Que importa queo revele o segredo; mas
sabe-o, e sempre que vos vir, rosnará lá consigo rosnar é o termo
próprio — o que quer que seja pouco lisonjeiro ao vosso carácter.
o deve ser um martírio horrível vermo-nos de tal forma com-
preendidos por um gato e quase na sua dependência?
A mim pelo menos aqueles dois olhos imóveis e observadores
incutiram-me respeito,o tive forças para arrostar com eles.
Mas onde estaria a estas horas a tia Filomela?
Luisita havia-me falado de uns célebres passeios nocturnos, em
que ela se transformava em luminária; e em uma noite daquelas, a
falar verdade, a coisa tinha pouco de natural e explicável pelas razões
ordinárias que determinam os nossos actos.o se poderia dizer que
a tia Filomelao tivesse dado motivos justificatórios da reputação
que havia granjeado.
Enquanto eu fazia estas considerações e completava o meu exame
sobre o interior da habitação, onde já principiava a penetrar em grossas
gotas a chuva, que lhe desabara no telhado, chegou-me aos ouvidos um
ruído particular que vinha de fora.
Antes que eu tivesse tempo de meditar o plano de qualquer apre-
sentação conveniente, a porta abriu-se... mas em vez da tia Filomela,
que eu esperava, entrou, juntamente com uma rajada de vento, que
avivou a chama no lar, um homem todo embuçado em um comprido
gabão de saragoça, com longas botas de montar e chapéu de abas
largas derrubado sobre a fronte. O aspecto, celeridade de movimentos
e repentina aparição deste homem tinha de facto alguma coisa extraor-
dinária, que logo me fez reconhecer nele a personagem suspeita,
cujas visitaso gravemente desacreditavam no conceito público a tia
Filomela. Em todo ele se revelava certo ar de mistério e um quase
receio de ser surpreendido, que imediatamente me impressionou.
Como por instinto recuei, e envolvendo-me nas sombras do mais
escuro canto da sala, observei sem ser observado.
O homem, sempre rápido e cauteloso, aproximou-se do prate-
leiro, onde a longa fileira dos tais embrulhos se achava disposta, e
parou alguns instantes, como que a enumerá-los.
A ideia que neste momento me passou pelo espírito, foi pouco
lisonjeira para a misteriosa personagem, que de um modoo inespe-
rado se havia introduzido na mesma casa, onde, tambémo pouco
estranhamente, eu me encontrava àquelas horas.
Imaginei-o um ladrão e agourava mal do destino dos tais objec-
tos assim deixados em absoluta indefensão pela possuidora.
Mas, no momento em que já estava meditando a maneira de inter-
vir para me opor a esta repugnante infracção das leis de propriedade,
o homem, depois de sacudir lentamente a cabeça e encolher os ombros
sinal inequívoco de profundas reflexões mentais tirou do bolso
um volume em tudo igual aos já existentes, e, pousando-o ao lado
deles, saiu da sala com a mesma presteza com que o tinha visto entrar.
Isso acabou de me surpreender. Eu jáo estava muito longe
de crer piamente nas revelações de Luisita e abjurar, na presença
desta cena misteriosa, a minha antiga incredulidade.
Os espíritos fortes sofrem em casos assim abalos formidáveis.
Eu achava-me em tais disposições de ânimo, que já imaginava encon-
trar o que quer que era sobrenatural nos sons que naquele momento
produziam: o vento pelas fendas inumeráveis da casa, a água a ferver
sobre o lar, o respirar ruidoso do gato, e o cair cadenciado da chuva,
filtrada através do telhado.
VI
M
OMENTOS depois, novamente escutei o ruído de passos, mas
desta vez vagarosos e trôpegos, e as minhas vistas, seguindo a
direcção da porta, encontraram, destacando-se no fundo escuro
do limiar, a figura pálida e macilenta da tia Filomela.
Trazia nao direita um pequeno lampião, que era provavel-
mente ao que se reduzia ao comentada luzinha do monte. Achava-me
na presença da bruxa do pinhal!
SEROES DA PROVÍNCIA
SERÕES DA PROVÍNCIA
A divindade descera enfim ao templo.
A posição que eu continuava ocupando, envolvendo-me em uma
quase completa escuridão, evitou que a tia Filomela me descobrisse
logo ao entrar.
Isto é um dilúvio! dizia ela consigo, fechando a porta.
E agora a lenha assim molhada vai-me sufocar com o fumo.
E, aproximando-se do lar, deixou cair do avental, que trazia sobra-
çado, um montão de lenha miúda, que provavelmente andara toda a
noite apanhando no pinhal.
O gato, vendo a sua senhora próxima de si, soltou um grunhido
surdo, e, curvando desmesuradamente o dorso, principiou a espre-
guiçar-se com voluptuosa languidez.
Olá, Fusco! disse a tia Filomela, batendo-lhe amigavelmente
na cabeça. Então estás com frio, meu velho ? Deixa que te vou acen-
der uma fogueira, que nem para um magusto.
E, enquanto escolhia a mais seca lenha da regaçada que pudera
obter nas suas explorações, a velha, com a tal voz de que eu já falei,
pôs-se a cantar cantar aquilo ! uma cantiga usada nos arredores
e cuja letra extravagante e até burlesca, conhecida talvez de muitos
dos meus leitores, dizia assim:
Donde vens, ó velha ?
Venho do eirado.
Que trazes na cesta ?
Bacalhau salgado.
Ai, oh I ai, que eu morro
Que eu estou pra morrer,
Nos teus braços, linda,
Bem pudera ser,
Bem pudera ser,
Ó meu bem.
E este em prolongava-se em uma nota indefinida, nasal, monótona,
rouca, desafinada e melancólica, que nem eu posso descrever o efeito
que me produzia.
A ária, a cantora, o lugar, as meias trevas que ali reinavam, o adian-
tado da noite, e a tempestade lá fora em um crescendo furioso, tudo
concorria para me impressionar desagradavelmente.
E, no entretanto, estava dando tratos à imaginação para descobrir
a maneira mais conveniente de fazer, junto da tia Filomela, a minha
apresentação em forma.
A cantora continuava sempre na mesma toada o estribilho.
Depois levantou-se para avivar com os dedos a luz do lampião,
que suspendera em um prego da parede. Quando de novo ia a entre-
gar-se ao trabalho interrompido, deu de repente com os olhos em mim
e involuntariamente recuou por um movimento de surpresa.
Fui por isso constrangido a apresentar-me.
Tia Filomela disse adiantando-me a noite surpreendeu-me
SEROES DA PROVÍNCIA
no pinheiral, e com a noite a trovoada; passei por aqui, vi a porta
aberta, umas brasas no lar, eo pude resistir-lhes. Peço desculpa...
Enquanto eu falava, a tia Filomela medira-me com os olhos de
alto a baixo e imediatamente se lhe desvaneceu no rosto a primeira
expressão de espanto, que se manifestara ao ver-me.
Foi já com a voz cheia de segurança e de completa impassibili-
dade que me respondeu:
Fez bem; era uma imprudência meter-se assim ao caminho.
aquilo nas azenhas está um mar. E para quemo conhece os sítios,
tanto pior. O que eu sinto é tero má casa para o receber.
Em seguida foi a um canto procurar a menos manca das duas
únicas cadeiras que possuía, estendendo-lhe em cima uma velha, mas
lavada toalha de linho, e oferecendo-ma, acrescentou:
Faça o favor de se sentar e perdoe.
Obrigada, tia Filomela,o se incomode por minha causa. Conti-
nue no seu trabalho. Estava a escolher a lenha, peço-lhe que continue.
Então se me dá licença... É que, vê o senhor? —prosseguiu
ela, deitando-se de novo ao serviço esta lenha assim húmida levanta
um fumo, que sufoca a gente. É preciso primeiro chegá-la ao ar do
lume para a secar.o tem dúvida, que por hoje pouca me é precisa
. Sabe o senhor? Cá a gente prepara depressa os seus cozinhados,
o temos vagar para temperos. Uma fervura faz um caldo, um cinzeiro
coze um ovo, um tijolo quente assa uma sardinha ou uma febra de baca-
lhau. Eh! eh! eh! É ques tambémo tínhamos tempo para mais.
o se vive para cozinhar, cozinha-se para viver.o é assim? Lá
os senhores foram criados em outra educação,o admira. A desgraça
está quando se nasce pobre e se tem gostos e vaidade de rico.
É a perda da criatura.
E, fazendo esta reflexão, a velha, que aliáso mostrava primar
em laconismo, calou-se por algum tempo, parecendo absorvida por
um pensamento doloroso.
Mas, tia Filomela, o seu sistema de fazer provisão de lenha é
que meo parece dos melhores disse-lhe eu passado tempo.
o lhe era preferível para isso a luz do Sol à desse lampião, que
nada alumia?
A tia Filomela meneou a cabeça ao ouvir-me.
O senhor diz bem. Maso sabe que de dia estão todos esses
caminhos por aí cheios de rapaziada, queo me deixa em sossego.
Crianças, coitadas! Mas quando se tem sessenta e quatro anos como
eu, a paciência vai fugindo e nem sempre se ouvem com a humildade,
que Deus manda, as injúrias, mesmo que venham da boca das crian-
ças. Melhor é fazer poro ouvi-las. De noite deixam-me ao menos
em paz. Se todosm medo de mim! Vê o senhor? Por coisa nenhuma
do mundo, pessoa destes arredores quereria entrar, como o senhor
entrou, na casa da tia Filomela, e então a que horas! Logo que vi aqui
gente conheci que era de fora da terra.
E de onde provém esse medo ?
Ora! poiso sabe que me chamam a bruxa do pinhal ? Eh! eh!
Havia neste riso um fundo de tristeza, que me compungiu.
Contudo, tia Filomela, faz mal em deixar assim desamparada
esta casa; da mesma maneira que eu entrei, outros o podem fazer...
Que entrem;o serei eu que lhes feche a minha porta. Nunca
a fechei em tempos mais felizes, quando me podia recear dos maus;
hoje seria uma loucura.
Mas olhe, tia Filomela; vou dizer-lhe uma coisa.
Diga.
Quando eu me aproximava, pareceu-me ver sair daqui alguém
que, pela figura, mostrava ser um homem corpulento e de aspecto sus-
peitoso disse eu,o querendo revelar ainda de todo a cena que
presenciara.
Ao ouvir estas palavras, a tia Filomela desviou os olhos na direc-
ção do prateleiro e fixou-os por algum tempo na fileira dos pequenos
embrulhos que me haviam já por vezes atraído a atenção.
Ah! mais outro! disse ela a meia voz, ao passo que se lhe
desenhava nos lábios um sorriso amargo e quase sarcástico conti-
nuam ! eles se cansarão. E voltando-se para mim: Viu sair há
muito esse homem?
Haverá alguns minutos.
Só eu oo hei-de ver um dia? queria dizer-lhe...—E de
repente, como fugindo à corrente de pensamentos que a arrebatava,
continuou em tom muito diverso: Sempre está um tempo! Louvado
seja Deus! Parece que arrebentou alguma nuvem. O senhor há-de vir
muito molhado. E, acto contínuo, apalpando-me a roupa, acrescentou
com uma exclamação de surpresa pouco melodiosa; Santo nome de
Jesus! vem num lago! chegue-se aqui mais para junto do lume!
Deixe, tia Filomela, deixe; istoo me faz mal nenhum.
Que diz ? Há lá coisa como a roupa molhada no corpo ? — É um
reumatismo certo. A água é inimiga dos ossos acrescentou ela em
tom aforístico. Eu observei-lhe:
Pois olhe, tia Filomela, hoje usam os médicos lá por a cidade,
mandar tomar aos doentes banhos de chuva, até para moléstias dos
ossos, se meo engano.
A tia Filomela encolheu os ombros.
Isso... os médicos de hoje! Olhe, senhor continuou ela,
avivando por meu respeito a labareda no lar eu bem sei que sou
uma ignorante; mas toda a minha vida vi tratar as bexigas com agasalho
e chás para fazer suar; porque, vê o senhor? com o suor saem cá para
fora todos os maus humores e o veneno que anda na massa do sangue.
Pois, senhores,o mandou o médico da minha terra, o Senhor lhe perdoe,
abrir as janelas e arejar o quarto de um pobrezinho que estava com
bexigas! Em termos delas se assanharem, que foi afinal o que acon-
teceu. Por isso dizem... Eu, olhe, vê aquelas panelas? Aí está a minha
SERÕES DA PROVÍNCIA
SERÕES DA PROVÍNCIA
medicina. A gente há-de morrer quando tiver os seus dias contados,
e os médicoso servem senão para fazer uma pessoa gastar dinheiro.
Este cepticismo médico da tia Filomela era talvez o único ponto
pelo qual ela se podia dizer uma pessoa da sua época. Ainda assim, com
uma diferença importante, é que nela esta descrença sobreviveria ao
menos, creio eu, aos prelúdios da mais insignificante indisposição.
Mas, tia Filomela disse-lhe eu aproximando-me do fogo
Deus manda-nos olhar pela nossa saúde, e então...
É fazer poro estar doente, é fazer poro estar doente,
porque depois o remédio é entregarmo-nos nas mãos do Senhor. Sai
para acolá, Fusco acrescentou ela, desviando o gato, que se lhe viera
roçar voluptuosamente pelo vestido; e daí a pouco:
Quer o senhor um chá de cidreira ?
Agradecido, tia Filomela.
Olhe que ainda tem que ir para longe.
Pois sabe onde eu moro ?
O senhor é o hóspede que chegou há dias à quinta do senhor
beneficiado;o é ?
Exactamente.
Logo me pareceu.o sei como se meteu ao caminho com
uma noite destas.
Fui à caça e...
A velha pôs-se a olhar em roda significativamente, e fez-me com-
preender que havia dito uma tolice. Andar à caça com uma simples
vara de castanho, um longo capote e àquelas horas, era de facto uma
esquisitice inexplicável. Emendei o melhor que pude o desacerto,
acrescentando:
Enviei a arma para casa por o criado, e persuadindo-me que
conhecia melhor os caminhos, perdi-me.
A caça é um mau divertimento disse a tia Filomela, dispondo
o braseiro para a operação culinária. Jám sucedido muitas desgra-
ças por causa dela. Um tio meu, que Deus tenha em glória, aliás muito
bom cristão e temente a Deus, ia fazendo uma morte por via da caça.
Muitas vezes lho ouvi eu contar, quando era pequena. Andava caçando
ele e um primo, que depois foi para o Brasil, e lá casou e por sinal
queo encontrou a felicidade que esperava; era já quase noite, e
tinham-se separado um do outro, quando meu tio, ao atravessar uns
campos, julgou ouvir o rumorejar de folhas em uns silvados vizinhos, e
suspeitando ser caça escondida, preparou a espingarda e aproximou-se;
mais perto, pareceu-lhe ver por entre as folhas bulir uma coisa escura,
e ainda que pelo adiantado da horao pudesse bem afirmar-se,o
teve dúvida que seria alguma ave, e, fazendo a pontaria, preparava-se
já para disparar, quando viu sair detrás do silvado, onde se escondera
para lhe meter um susto, o primo que lhe gritou: Ai, João, que me
matas ! —Meu tio deixou cair logo a arma e ficou como morto. Pois desde
então nunca mais o viram caçar. E muitas vezes dizia, ainda me lembro
SERÕES DA PROVÍNCIA
bem, que nem com armas vazias era prudente brincar; porque o demo
é capaz até de carregar uma tranca.
Passado algum tempo de meditativo silêncio, a velha acrescentou:
E depois, que mal nos fazem os passarinhos do Senhor?
E, dizendo isto, estendia na pedra quente do lar duas sardinhas, que
deviam constituir a parte principal da refeição da noite,
A tia Filomela tem razão; mas também, que mal nos faziam
as pobres sardinhas, que seo agora tostar nesse brasido e que já
exalam daí um cheiro, que me faz crescer água na boca?
Apetecem-lhe ?
Convidam.
Estão às suas ordens.
Agradeço, mas a tia Filomela tem-nas para a ceia e euo
quero...
Graças a Deus, que ainda ali estão mais. E, sem esperar nova
observação da minha parte, estendeu ao lado das duas já meio assadas,
outras curvas e azuladas, que pareciam, segundo a frase das vareiras,
ainda a saltar vivas.
E dentro de alguns minutos achava-me eu ao lado da tia Filomela,
participando da sua mais que sóbria refeição.
o há nada para aumentar a intimidade entre duas pessoas como
um repasto em comum.
O estômago é um grande conciliador; tem um poder persuasivo tal,
que poucos corações lhe resistem, quando ele prega a concórdia o
que sempre fez, estando satisfeito. Cedendo, pois, à familiaridade que
pouco a pouco entres se estabelecera, perguntei à tia Filomela por-
menores do seu modo de viver actual.
A minha vida conta-se como um padre-nosso rezado. Fio,
apanho lenha e farrapos, e com isso vou vivendo.o é preciso muito
para uma mulher da minha idade se sustentar, e por isso...
E está há muito nesta terra ?
Há cinco anos.
Até aí onde residia ?
Em vez de me responder, pôs-se a olhar para mim daquela
maneira particular às pessoas abstractas, que nos dá a conhecer, sem
ilusão possível, a nenhuma atenção que prestaram à pergunta.
Veio de longe para aqui ? insisti eu.
De muito longe.
Admira como nessa idade ainda se resolveu a mudar de terra.
De ordinário há raízes a prenderem-nos aos lugares onde nascemos
e onde passámos os nossos primeiros anos, e é sempre doloroso cortar
pelas raízes.
É, é, mas...
Há reticências queo mais definitivas do que um ponto final.
Tudo está em lhes dar certa modulação, como aquela que eu ouvi neste
momento à tia Filomela.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Percebi que por esse lado se me fechara a porta a indicações
ulteriores, e tomei outra direcção.
Então é esta a sua morada ?
Como. Aqui durmo, aqui janto, aqui trabalho e aqui hei-de
morrer.
Quem sabe ?
Sim, quem sabe ? diz bem o senhor. Mal pensaria eu há seis
anos queo longes terras me haviam de guardar os ossos.
A melancolia da observação conseguira até disfarçar aos meus
ouvidos o timbre desagradável daquela voz.
Pus-me a olhar para esta mulher por algum tempo em silêncio.
Suspeitava que eia devia ter sofrido no passado, mas havia naqueles
lábios uma espécie de enérgica constrição, que me tirava a esperança
de poder extrair de lá o menor segredo, se segredo houvesse.
Levantei-me e principiei a passear no quarto. Ela conservou-se
sentada, de braços cruzados, balanceando o corpo com vagaroso
movimento e como sem consciência da minha presença ali. Parei, com
intenção, diante do prateleiro, que tanto me excitava ainda a curio-
sidade.
Esta táctica da minha parteo me valeu, porém, mais satisfatórios
sucessos.
Tia Filomela! exclamei enfim ex-abrupto, impaciente já com
tanta indiferença;
Senhor!
Este papel vem de longe ?
Que papel ?
O destes pequenos volumes.
Ah!
Pareceu-me alguma coisa embaraçada com a pergunta, e respon-
deu, suspirando:
Nem eu sei...
o por certo objectos da cidade; encomendas, não!
Talvez...
Olhei para ela, fingindo uma surpresa que estas hesitações e res-
postas ambíguas me tivessem causado; ela acrescentou:
Da cidade vêm, mas...o encomendados.
Na maneira por que pronunciou aquele encomendados adi-
vinhava-se um pensamento oculto queo pude, porém, determinar.
Aí tens, Fusco disse ela em seguida, dando ao gato os restos
da nossa modesta refeição.—Vá, hoje podes regalar-te
Depois, chegando à porta, continuou:
Felizmente que lá vai já o mau tempo. O vento virou ao norte.
Maneira muito delicada de dar a entender que iam sendo horas
de terminar a minha visita.
Aceitei a advertência.
Tia Filomela disse-lhe eu é tempo de me retirar; mas
SERÕES DA PROVÍNCIA
o posso consentir que a minha visita lhe fique sendo pesada. As suas
possesoo grandes, consinta-me por isso que eu remunere..,
A tia Filomela fez um gesto com a cabeça respondendo:
Eu sou de uma família pobre, mas na qual se ensinava às crian-
ças ao vender a hospitalidade.—E depois sorrindo acrescentou:--
o costumes de soberba que trouxe para a desgraça. Muito boas
noites, meu senhor, e Deus o guie.
Mas, tia Filomela...
Adeus, adeus. E olhe se vai cair, tenha cautela.
o havia que lutar da minha parte; correspondi-lhe ãs boas
noites e pus-me a caminho de casa.
VII
B
ONITO ! dizia eu comigo mesmo enquanto ia vencendo o melhor
que podia as sucessivas dificuldades que parecia de momento
para momento surgirem-me debaixo dos pés. Passo uma hora
na presença desta mulher enigmática, suspeito-lhe um segredo, vejo
que há na existência dela um mistério, e retiro-me sem ter penetrado
este carácter, sem haver decifrado este enigma. Quando hei-de eu ser
observador ?
A balda dos rapazes naquele tempo eram estas aspirações a pro-
fundos conhecedores do coração humano. Deus perdoe a Balzac, que
foi o autor involuntário dessa mania, que afinal de contaso passava
de impertinente. Todo o adolescente imberbe se considerava talhado
a molde para analista do coração, e colocava-se diante de qualquer
pessoa com o sobrecenho contraído, o olhar fixo e o ar gravemente
sisudo, que caracteriza o observador pur sang.
Dessa época data o uso imoderado das lunetas,o reclamadas
por defeitos visuais, mas como emblema de espírito analítico e inves-
tigador.
Um suposto estudo de caracteres era o que mais tempo absorvia
aos rapazes nas universidades e nas academias. Pospunham-se, com
grande desespero dos professores, os Laplaces, os Savignys, os Says,
os Richerands e os Hufelands, ao Balzac, George Sand e a todos os
romancistas da escola filosófica.
Eu andava um pouco imbuído do mal da época; para que hei-de
negá-lo?o obstante nunca ter sido dos mais crentes nesses tais
olhares, com privilégio de estiletes, que voso direitos ao coração,
para desalojar debaixo da mais imperceptível prega onde se aninhara,
o vosso sentimento predominante, a mola oculta do vosso carácter,
adoptara contudo também as minhas teorias a tal respeito;o boas
como outras que ouvia expender nas mesas de mármore e no seio da
SERÕES DA PROVÍNCIA
atmosfera asfixiante dos nossos botequins. Por vezes até cheguei a
querer realizá-las na prática.
Ai, porém, é que me esperavam grandes desilusões, que foram
pouco a pouco abalando o aparatoso edifício da minha ciência do cora-
ção humano.
De cada vez que ensaiava o poder perscrutador do meu olhar
nas menos dissimuladas criaturas do Senhor, chegava a resultados
realmente pouco de animar, verdadeiros disparates, que devera regis-
tar aqui para instrução e experiência dos leitores. Porque sabido é que
os disparates também encerram instrução.
Uma das minhas derrotas mais completas acabava de experi-
mentá-la na presença da tia Filomela; e o mau humor, que resultara dal,
seguira-me até casa, onde cheguei depois da meia-noite.
Deitei-me descontente comigo e incapaz de tudo que fosse ador-
mecer. Quando, porém, me dispunha a realizar esta única aptidão racio-
nal que sentia naquele momento, uma visita mo impediu.
Junto do meu quarto dormia o filho morgado da hospitaleira famí-
lia que me acolhera em casa; este rapaz, meu antigo condiscípulo e
em quem a tal bossa da análise do coração humano possuía também
um desenvolvimente extraordinário, era de mais a mais sujeito a insó-
nias ; e, por isso, percebendo-me no quarto, vestiu à pressa o robe de
chambre e veio visitar-me.
Então ainda agora ?! disse-me ao entrar e com maneira de
admirado. Que diabo fizeste tu até estas horas, em uma terra selvagem
como é o meu pátrio ninho? Aposto que os olhos de alguma patrícia...
Adivinhaste. A causa da minha demora foi uma patrícia tua
de adopção pelo menos.
Ainda Luisita ?
Não; e desde já te previno que teos ao trabalho de que-
reres adivinhar, porque nada consegues.
Porque nada consigo! Mas se eu me sinto habilitado para te
fazer inventário completo de todas as mulheres em circunstâncias de
se apanhar por causa delas um reumatismo para o resto da vida ?
Ainda assim.
É singular!
Olha,o quero abusar da minha posição. A mulher por quem
me sujeitei aos rigores desta endiabrada noite, foi a tia Filomela.
Quem é a tia Filomela?
A bruxa do pinhal.
Estás a caçoar ?
Venho de casa dela, onde ceei.
E que diabo foste lá fazer ?
Estudá-la.
Ah! e então ? disse o meu amigo com um tom de voz que
mostrava achar de sobra justificada a minha excentricidade por um
motivo daqueles.
SERÕES DA PROVÍNCIA
O resultado da empresa fez-me lembrar de quando dantes,
nos nossos tempos de estudante, me sentava à banca com firmes tenções
de mer ao facto da lição do dia seguinte e, afinal, sem bem saber
como, ia-me deitar, deixando a pobre intacta, como a procurara.
Pois olha, eu já estudei essa mulher e tenho o meu juízo for.
mado a respeito dela.
Ora, pois, vamos lá a ver isso. Mal sabes como eu estimo
sabê-lo. Principia.
O meu amigo acendeu um charuto, recostou-se na cadeira, ele.
vou oss à altura do fogão, e expôs-me assim o resultado do seu
estudo:
O coração do homem...
Perdão disse eu interrompendo-o poupa-me a dissertação
sobre o coração do homem em geral, e limita-te ao da tia Filomela
em particular, que já é bastante.
Seja. A tia Filomela continuou ele ficou definida para mim
depois de alguns momentos de observação. Regra geral; quando à
aparências da miséria vires associadas as precauções da riqueza, a
desconfiança que acompanha a possessão, a reserva do egoísmo,
acredita que uma única solução pode ter o problema do carácter do
individuo em quem se observa esta, deixa-me assim chamar-lhe, anti-
nomia de manifestações.
Chama-lhe o que quiseres e continua disse eu bocejando.
O sentimento que nele predomina continuou o meu amigo
deve ser de natureza a bastar a si mesmo para a sua satisfação total,
a tirar de si os meios de a realizar.o aspira a irradiar-se; pelo con-
trário, tende à concentração;o é o farol que transmite em roda de
si a luz a distâncias longínquas, é o revérbero que reflecte os raios
do foco para o foco de onde partiram. O orgulho deleita-se em observar
com o olhar de águia tudo quanto lhe fica inferior; a glória folga de
ver o reflexo do seu esplendor nos semblantes extasiados; o amor
é um som que reclama um eco... mas há um sentimento que dispensa
o concurso, que busca a solidão, que intencionalmente semeia em volta
de si as aversões é a avareza...
Eu nesta passagem adormeci eo sei por isso até que ponto
o meu amigo levou à evidência aquela suposta qualidade da tia
Filomela.
Sinto-o poro poder registar aqui uma bem elaborada disser-
tação metafísica, que só podia pecar em exactidão e mais nada.
SERÕES DA PROVÍNCIA
VIII
O foi, porém, impunemente que arrostei na véspera com a
intempérie de uma noite ultra-romántica.
Na manhã do dia seguinte acordei rouco, a ponto de jul-
gar prudenteo sair de casa.
Ao meio-dia, encontrei-me com Luisita, por aquele tempo empre-
gada emo sei que serviço campestre na quinta onde eu residia.
Bons dias, Luisita disse-lhe eu vê o resultado da feiti-
ceira? Estou rouco. O bruxedo atacou-me a garganta.
Que quer dizer?
Que visitei ontem à noite a tia Filomela...
Ora!
Palavra de honra, e até me deu de cear com a melhor vontade
deste mundo.
É impossível que se atrevesse...
Posso jurar-lhe.
E que viu? perguntou a rapariga, fitando-me aterrada.
Ora o que vi? A casa de uma pobre mulher que vive a mais
santa vida deste mundo, ela e o seu gato, animal de hábitos caseiros,
muito amigo do borralho e que para Diabo me parecia bem mori-
gerado.
Entãoo viu o cabo da vassoura ?
A falar verdade, tantoo reparei; mas também, se isso é
prova de feitiçaria, aposto que nem a Luisita se salva!
Ela riu-se.
Olhe: quer então que lhe diga o único objecto menos natural
que descobri em casa da tia Filomela?
Foram as cartas ?
Não. Elao costuma dar partidas.
Foram...
Foram uns embrulhos de papel fino e do mais fino, postos em
carreira sobre um pobre prateleiro de pinho. Eram, pode dizer-se, a
única riqueza da casa.
Ah! poiso sabe o que isso é ? I
Eu não.
o os novelos I
Os novelos ?
A expressão da fisionomia com que a Luisita acompanhou aquela
palavra foi tal que,o obstante euo lhe compreender bem a ver-
dadeira significação,o pude deixar de pela minha parte manifestar
quase igual estupefacção.
Mas que novelos ?
SERÕES DA PROVÍNCIA
Que novelos ? Os dela. Poiso sabe que as bruxasm todas
uns novelos?
Ah!o sabia. E para que querem elas isso?
É que todo o seu poder está ali, e quando morrem...
Ah! então as bruxas também morrem ?
Morrem, sim, que dúvida.
E então que fazem elas quando morrem ?
Deixam os novelos às pessoas que mais estimam.
E é boa ou má a herança?
Deus nos livre dela.
E porquê ? morre-se também ?
Nada,o senhor.
Então ?
Fica-se sendo feiticeiro e...
E acha isso mau ?
Está a brincar ?
Eu por minha parteo se me dava, e Deus queira que a tia
Filomela se lembre de mim no testamento.
Que diz, que diz?o repara que está dizendo um pecado?
É ver como a tia Filomela lhes quer, aos tais novelos, queo
resguardados os traz.
Se neles está todo o seu condão,
Mas, por outro lado, sai de noite e deixa-os assim tanto à vista,
que tentam os mais escrupulosos. Eu confesso que seo fosse o
Quem se atreveria a tocar-lhes ? Não, que só a vista deles faz
tremer.
Euo tremi.
Ora! se os senhoreso hereges!
Esta reflexão tapou-me a boca.
Luisita deixou-me para ir contar às amigas que a tia Filomela
tinha uns novelos, que eu os vira e que só de os ver ficara sem fala, a
ponto de ainda me achar rouco; e à semelhança das vizinhas de que
fala o Lafontaine, as ouvintes divulgaram a história de maneira que,
pouco tempo depois, me voltou aos ouvidos debaixo da seguinte versão
eo transfigurada, que me custou a reconhecê-la.
A tia Filomela tinha uns novelos isso era ponto incontestado.
Uma noite, passeando eu pelos campos, fora atraído para casa dela
por um cantar de sereias e por uma corça da alvura da neve; a corça
andava, andava, e eu, cego com tanta beleza, ia-a seguindo por montes
e vales, por abismos e ribanceiras, como se tudo fora planície, até que
à entrada da casa o canto das sereias transformou-se de repente em
uma surriada infernal e em um frenético bater de palmas, que atordoava;
a corça metamorfoseou-se ao mesmo tempo em um gato preto que me
saltou ao gasnete, e logo um bando de feiticeiras principiou a dançar
em volta de mim uma valsa diabólica. Eu caí logo a dormir, já se sabe,
e elas então a envolverem-me com o fio dos tais novelos e com uma
pressa que metia medo. Era porque antes da meia-noite devia a tarefa
ficar pronta e eu todo envolvido no fio e a servir de núcleo àquela
espécie de monelho. Então seria a morte certa, e elas poderiam à von-
tade e sugar-me o sangue, do qual pelos modos tinham grande apetência.
Mas, por felicidade minha, no momento em que davam uma volta
ao fio alguém dizia até ser a penúltima soou a meia-noite, e o
canto terminou. O fio partiu com um estampido que parecia de uma
bomba, houve o fumo e o cheiro de enxofre do estilo, o gato preto
fugiu por a trapeira, as feiticeiras desapareceram feitas em morcegos,
tia Filomela caiu redonda no chão e eu achei-me em um pântano,
metido em água até ao pescoço e sem fala!
Um pobre homem que passava tirou-me do atoleiro, mas quase
em perigo de vida. O que ninguém dizia era quem tinha sido esse
pobre homem que passava; razão pela qualo pude manifestar-lhe
o meu eterno reconhecimento, como fora do meu dever. Alguns acres-
:entavam ainda à laia de moralidade, que o motivo destas minhas des-
renturas fora a incredulidade que professara na véspera a respeito
de bruxas e feitiços. À pessoa de cuja boca recebi esta edição, correcta
e aumentada, da minha aventura nocturna, tentei debalde fazer com-
preender toda a escandalosa falsidade dela. Quando negava, respon-
diam-me sorrindo, que a memóriao conserva estas coisas, sem que
por isso elas deixem .de ter existido. Contra tal modo de argumentar,
o valiam objecções
Cumpria, pois, resignar-me com o papel que me tinham distri-
buído naquela espécie de mágica de grande aparato e revestir-me
das romanescas aparências de Roberto de Normandia, de endemoni-
nhada memória.
o era feio e tornava-me o herói da terra; porém custou-me
haver assim involuntariamente concorrido para aumentar a má reputação
de que havia muito gozava a tia Filomela, a qual desde então ficou
sendo universalmente odiada em todas aquelas freguesias circunvi-
nhas.
Passaram-se quase duas semanas de continuado Inverno, durante
! quais raras vezes saí, e essas apenas para casa do boticário, onde
me divertia a ouvir da boca dele como novidades, coisas que tinham
já envelhecido antes de eu partir da cidade, bem como profundas
considerações suas sobre o destino das nações europeias. Este boti-
irio era um decidido amante da ordem, e professava por os perturba-
dores do equilíbrio político um ódio francamente cordial. Eram dignas
e se ouvir as expressões virulentas e as frases acerbas de que se
servia então.
Em matéria de revoluções pensava que as piores eram as que
procediam de baixo para cima. À de França chamava-lhe um escândalo
e sangue e de horrores; em relação ao poder temporal do Papa dizia:
que o melhor era não bulir no que está quieto; lá os seus homens eram
SEROES DA PROVÍNCIA
Palmerston, Palmela e o general Concha, este—por acabar com a,
patuleia palavras suas. Falava vagamente na dificultosa questão do
Oriente, a qual, segundo ele, se poderia resolver por um plano, que
nunca pude conseguir que me revelasse; a respeito da Polónia, muitas
vezes lhe ouvi eu dizer: assim o quiseram, assim o tenham, frase sibi-
lina, que igualmente nunca desenvolveu.
Meses depois dos sucessos que vou narrando, indo visitá-lo, encon-
trei-o muito entusiasmado com o engrandecimento das raças latinas
ao qual, à semelhança de grandes capacidades políticas, filia ainda hoje
todos os acontecimentos e que, segundo ele, é o pensamento reser-
vado de Napoleão. Palmerston, que para este seu entusiasta ainda
vive, promete sério apoio, sem o qual nada se faria, impondo, como
condição, a anexação da Dinamarca à Inglaterra.
Esta última novidade, cujo interesse político os leitores devem
apreciar, na qual o homem depositava a mais fervorosa crença, vie-
ra-lhe, disse-me, de origem fidedigna.
o sei se me será fiel a memória para poder reproduzir aqui
na Integra o substancioso diálogo, travado dessa vez entre mim e este
sábio diplomata.
Verá! verá! dizia-me o homem, aviando dez-réis de farinha
de linhaça a um freguês. O ponto está que eles queiram. As raças
latinas hão-de tomar o lugar que lhes compete.
o duvido.
É certo. Napoleão III disse que havia de deixar assinalado o
seu império por essa grande obra.
Mas como entende o senhor o engrandecimento das raças
latinas ?
É que tudo isto há-de vir a formar três grandes impérios: a
França com a Bélgica e a Holanda; a Itália governada toda pelo Papa;
e Portugal, ao qual se há-de dar a Espanha e restituir o Brasil.
Bonita combinação! E para quando será isso ?
o sei; mas fala-se em que Napoleão disse ao seu ministro:
Meu duque...
Que duque era esse ?
Um dos ministros...
Adiante.
O meu interlocutor pelos modos fazia duques natos a todos os
ministros.
Meu duque, o ano que vem há-de presenciar grandes aconte-
cimentos. Real Senhor!—respondeu o ministro saiba vossa majes-
tade, que aqui estamoss para cumprir as suas ordens. E então o
imperador, batendo-lhe no ombro, disse-lhe: Conto convosco!
É importante essa notícia, mas que pensa disso Palmerston?
Palmerston escreveu uma nota ao embaixador em Paris, na
qual lhe dizia: «Milorde. A Inglaterrao corta as asas às legítimas
aspirações dos povos, enquanto elaso espezinham os seus direitos
SEROES DA PROVÍNCIA
SEROES DA PROVÍNCIA
nação livre. Sede prudente e deixai marchar o progresso. Deus
vos guarde.»
E o embaixador em vista disso...
Em vista disso, limitou-se a reclamar a anexação da Dinamarca,
por causa do equilíbrio.
E consegue-o ?
Decerto que sim. Eleso querem descontentar o velho lorde.
De uma vez, no conselho de ministros em Paris, houve quem dissesse,
falando de Palmerston: « Ora deixem lá o bom homem; daquela idade
só mete medo a crianças». E sabe o senhor o que disse o imperador?
Eu não.
As velhas raposas, meus senhores,o as mais ardilosas e
atrevidas.
E comunicando-me esta profunda sentença de Napoleão III, que
o sei por que via privativa lhe chegara ao conhecimento, o meu
interlocutor, piscando os olhos, assumia um ar de completa aquiescên-
cia, que devia lisonjear Palmerston, se o tivesse observado.
Nisto interrompeu o discurso de política transcendente, para pesar
rneia onça de raspa de veado, e onça e meia de óleo de rícino, e depois
continua:
Muito se há-de ver em pouco tempo! O latim há-de deixar de
ser língua morta.
Ah! pois ainda viremos a falar latim!
Decerto. Isso depois é questão de anos. Em França já se estão
organizando os estudos dos liceus nesse sentido.
o será então mau irmos desde já recordando o há muito
abandonado Novo método!
Abandonado ?o por mim, que nunca dei deo ao estudo
dos clássicos latinos.
Era esta outra corda sensível do pobre homem: supunha-se um
profundo latinista,o obstante as continuadas silabadas com que
deixava a escorrer sangue a língua de Cícero e de Virgílio. Desculpe-
-se-me a ambiguidade da expressão.
Depois passou a convencer-me dos erros de palmatória que tinha
cometido o general Mac Clelan nas campanhas da América; falando
de Garibaldi, chamou-lhe um troca-tintas, e a respeito do México,
disse-me, meneando a cabeça com ar ponderoso: Eles hão-de pagar
o que fizeram aos Cristãos. Como se, da latitude do México por
diante principiava a reinar grande cerração has ideias do nosso diplo-
mático.
Foi na instrutiva conversação deste ilustre pensador que passei
algumas horas dos quinze dias chuvosos e escuros que sucederam ao
da minha visita à bruxa do pinhal.
SEROES DA PROVÍNCIA
IX
U
MA tarde, em que o aspecto dou se mostrava já mais favorá
vel, e uma extensa zona de púrpura, prenúncio certo de favo.
ráveis reformas meteorológicas, tingia todo o ocidente, onde o
sol acabava de mergulhar-se, dei maior latitude ao meu passeio, esten-
dendo-o até ao ponto principal da reunião das raparigas. Fui-as encon-
trar juntas em grupo, voltadas para o lado do monte e aparentemente
empenhadas em uma discussão, que prometia ser interressante.
Aproximei-me.
Nada, nada dizia uma, como em conclusão dos argumentos
que extensamente acabara de expender aquilo foi decerto coisa
que lhe sucedeu.
Esperem, esperem exclamava outra, fazendo o gesto de
quem procura alguma coisa na reminiscência a última vez que eu
a vi foi... foi... ora deixem ver... foi ha seis dias, lá em baixo nas aze-
nhas. Bem me lembra. Ia muito amarela e mal se podia arrastar. Pare-
ceu-me até que gemia.
E que lhe disseste? perguntou Luisita, interessada com as
palavras da companheira.
Eu?! Se mais pudesse, mais corria. Arrenego tais encontros!
Olhem os meus pecados.
E há muito que euo vejo a luzinha pelo monte.
Nem eu.
Nem eu.
Disseram umas após outras, várias vozes.
Há-de haver oito dias que a mim me disse a ti'Rosa do Aidro
que a mulher tinha decerto a espinhela caída acrescentou, com ar
de quem comunica uma importante novidade, a mais trigueira das
preopinantes.
Al temos outra! Bem sabe a ti'Rosa também o queo espi-
nhelas caídas! disse com mau humor a primeira que falara.
Não,o sabe; que elao tem o primo endireita em Fiães, sim,
E anda a outra sempre a encher os ouvidos à gente com o seu
primo en-di-reita. Nem que nunca se visse um endireita senão
aquele!
Olhem! olhem! Põe-te agora a dizer mal dele também!
Grande endireita, que deixou ficar mouco o nosso António,
depois de ganhar com ele um par de moedas.
Sim? pois olha que nem os médicos da cidadem que lhe
dizer.
Credo! credo! Santo nome de Jesus! Nem que fosse algum
doutor de capelo!
SERÕES DA PROVÍNCIA
Enquanto as duas continuavam discutindo a ciência ortopédica
do primo da ti'Rosa do Aidro, prosseguia o resto das circunstantes
no assunto primitivo.
O que eu posso dizer é que há muitoo vejo sair fumo da
casa dela.
A mulher morreu decerto ou está para isso.
E se se fosse ver? Também para a deixar assim... disse Lui-
sita, como a aventurar uma opinião, queo tinha firmes tenções de
sustentar.
Vá lá quem quiser, nanja eu respondeu imediatamente uma
mocetona de constituição atlética.
Ir lá?! Fazer o quê? Então vocês julgam que se vai assim sem
mais nem menos a uma casa daquelas?
Perguntem ali ao senhor dizia outra, designando-me com
esto.
Estas palavras fizeram-me dar mais atenção à conversa.
Quem lá entrasse, tinha logo o gato preto a saltar-lhe ao pescoço.
A referência a esta evolução ginástica do gato preto acabou de
me demonstrar que se tratava da tia Filomela.
Então que há de novo? perguntei, aproximando-rne.—De
quem falavam?
É que pelos modos respondeu-me uma das do grupo
andam agora os demónios no pinhal.
Fazendo o quê ?
Para levarem a alma da bruxa.
De qual bruxa?
Da tia Filomela.
Aí voltam as cismas! Mas que sucedeu à tia Filomela ?
Há muito queo sai de casa e que se lheo vê fumegar o
telhado. Aquilo ou está morta ou para breve.
E então ninguém tem ido ou mandado ver ?
Quem ?
o que o que lá foro volta.
Ora, sempre é levar muito longe a superstição! Visto isso,
há-de deixar-se morrer assim uma pobre velha ao desamparo?
Deixe; aquelasm por si outros poderes.o precisam
de socorro da gente.
Pelo que vejo,o há aqui ninguém que queira ir ao pinhal
saber da tia Filomela?
Ninguém respondeu.
-—Pois bem, nesse caso vou eu.
Olhe o que faz! disseram algumas vozes, em tom de adver-
tência.
Aindao escarmentou ? murmuravam outras.
Luisita chegou-se a mim, e apertando-me o braço:
É de mais! Isso é desafiar o Senhor.
Ora adeus, Luisita.
o
vê...
Vamos, quando for velha há-de gostar que lhe chamem bruxa
e que a deixem morrer de fome e ao desamparo ?
Mas...
Pois olhe, Luisita, se tem muito receio, reze por mim. Eu gosto
de ser recomendado aos santos por uma bocao bonita.
Luisitao deu palavra, mas conheci-lhe no gesto que ficava
agourando grandes desgraças da minha excursão ao pinhal.
A
COMPANHADO dos responsos e comentários das circunstantes, |
pus-me pois a caminho da casa da tia Filomela, cuja sorte me
estava profundamente inquietando.
A noite aproximava-se, e uma neblina densa, levantando-se dos '
vales, ia a pouco e pouco circunscrevendo em volta de mim o hori-
zonte e estreitando-me em um círculo cada vez mais cerrado de espes-
sos nevoeiros.
O grupo das raparigas, que me seguiam com a vista, quando eu
principiava a subir a colina, cedo se me encobriu debaixo desteu
de vapores impenetrável; circunstância que devia modificar profun-
damente todas aquelas curiosidades femininas, ansiosas por gozar
de longe do espectáculo, que com grande risco do corpo e da alma
eu lhes proporcionara.
Depois de ter andado alguns minutos, e quando subia já por
um pedregoso e alcantilado caminho de cabras, desenvolvendo todos
os meus recursos ginásticos parao rolar como uma avalancha até
ao fundo da ribanceira vizinha, pareceu-me perceber o ruído dos
passos de alguém que, a pequena distância, me precedia.
Apressei-me para poder alcançar quem quer que fosse e concluir
em companhia o resto da minha excursão. Em breve me foi dado
consegui-lo.
A pessoa que assim caminhava adiante de mim, era o pároco da
freguesia, jovem sacerdote que eu mal conhecia ainda, mas cujas manei-
ras afáveis e delicadas, e seriedade superior aos seus anos, me haviam
feito já simpatizar com ele. Vendo-me, parou a esperar-me.
Por estes sítios! Agradam-lhe também os passeios dos montes!
o foi para passear que vim até aqui, mas para socorrer uma
pobre mulher, que a cega superstição desta gente ia talvez deixar
morrer ao desamparo. E quem sabe se ainda chegarei a tempo ?
O reitor olhou para mim, perguntando-me:
Refere-se a tia Filomela ?
SEROES DA PROVÍNCIA
SERÕES DA PROVÍNCIA
Exactamente, a ela mesma.
Então ofereço-lhe companhia, eu também me dirijo para.
Também ?!
É verdade, todas as sextas-feiras essa pobre mulher me pro-
curava. Faltou-me esta semana, esperei-a ontem debalde e por isso
nus-me a caminho hoje, por igualmente recear alguma desgraça.
Maso é uma bárbara crença a deste povo ?
Então que quer ? A ignorância é sempre supersticiosa.
Mas... e perdoe-me dizer-lhe isto, senhor reitor:o poderiam
algumas palavras da sua parte desvanecer essas abusões?
O reitor sorriu melancolicamente.
E cuida que aso tenho dito ? Há apenas dois anos que vim
para esta abadia. O meu predecessor era, pelo que pude saber dele,
um santo homem, esmoler e honrado, mas de uma superstição gros-
seira, eivado de erros e de preconceitos que a falta de instrução e
nenhuma cultura de espírito haviam feito pulular. Era ele o primeiro
a acreditar em todas as tradições de duendes e de almas penadas e
a usar de esconjuros, amuletos e ervas contra feitiços. Na residência
deparou-se-me uma abundante colecção desses objectos, com que o
bom do homem julgava prudente munir-se contra os ataques dos maus
espíritos e das feiticeiras. Faça ideia de como devia andar a imagina-
ção desta gente, quando um pároco, que residia aqui havia perto de
dezoito anos, lhe dava tais exemplos. Nos primeiros dias em que assumi
as funções paroquiais, percorrendo os papéis do meu antecessor,
encontrei entre outros documentoso pouco curiosos, nos quais ele
registava várias observações críticas a respeito dos seus paroquianos,
um que mais que todos me interessou. O conteúdo era, pondo agora
de parte a ortografia muito sua, pouco mais ou menos o seguinte:
« Em Agosto de 50 veio residir para esta minha paróquia, escre-
vera ele, uma velha mulher que diz chamar-se Filomela nome pouco
de gente cristã e baptizada. Vinha miseravelmente vestida e foi viver
para uma pequena casa do Pinhal. Aindao procurou sacramentos e
é de poucas falas. Logo que ela aqui chegou principiaram a morrer
crianças de um modo nunca visto. Ficavam roxas e chupadinhas, que
fazia. Depois deu a mortandade nos carneiros, que calam nos
campos como tordos. Bem se vê que a mulher é suspeita. Pelos modos,
ouve-se por altas horas em casa dela gritos agudos, e de noite corre
fadário nos montes feita em uma luzinha. De quando em quando, vem
visitá-la um homem de má catadura. Tudo faz crer ser ela bruxa refi-
nada. Há tempo, falando-lhe, ouvi-lhe palavras sacrílegas. É ovelha que
jáo espero salvar.»
Assim terminava o original apontamento do pobre cura, o qual,
como é de crer, me excitou mais interesse ainda, do que simples
curiosidade. Indaguei de várias pessoas relativamente a Filomela, e
pude então reconhecer como se haviam já arreigado nestas imagina-
ções incultas as ideias supersticiosas do pároco. As informações, que
SEROES DA PROVÍNCIA
me foi possível colher, representavam-me de facto Filomela como um
ente sobrenatural em relação íntima com os espíritos maléficos e
dotada de poderes extraordinários para evocar as almas dos mortos
em pecado e outros absurdos semelhantes.
Quis desvanecer esses preconceitos, combati-os como pude;
consegui apenas ser daí por diante olhado com suspeita pelo povo,
que via na minha incredulidade uma espécie de heresia. Decidi-me a
procurar ao falada tia Filomela. O que fui encontrar, procurando-a,
deve supô-lo o senhor, que, pelo que vejo, mostra conhecê-la também.
Uma desgraçada e nada mais. Filomela veio de longe para aqui,
O motivo desta emigração foi uma desgraça de família, que ela me
revelou sob o sigilo da confissão. Quando chegou a esta terra,
trazia a pobre mulher no coração o desespero, e nos lábios a blasfémia
que o delírio lhe arrancava.
Seo tivesse encontrado um pároco sem preconceitos, que
compreendesse as causas daquele estado doloroso, que tentasse sanar
as feridas, ainda gotejantes de sangue, daquele coração aflito, a cura
seria fácil. Mas o desprezo de que se viu rodeada exacerbou-lhe os
padecimentos e, cada vez mais entregue ao infortúnio, ia perdendo
até os sentimentos religiosos, que por tanto tempo haviam sido seu
único e eficaz auxílio. Uma epidemia de garrotilho, que fez mil
vítimas nas crianças, eo sei que moléstia que por aqueles tempos
grassou no gado, chegando a sacrificar rebanhos inteiros, vieram con-
correr para arreigar estas superstições, queo amarga tornaram a
sorte, já mal-aventurada, da pobre Filomela. Quando pela primeira vez
lhe falei, senti-me desanimar; confesso a verdade,o desesperada
a vi, que julguei ter chegado tarde: pareceu-me que seriam baldados
todos os esforços para chamar de novo à comunhão das ideias cristãs
aquela pobre alma abatida pelo infortúnio. Enganei-me todavia; con-
segui-o em pouco tempo, e hoje é uma das mais religiosas criaturas
da minha freguesia.
O queo evita continuar a ser olhada como bruxa e cruel-
mente odiada.
O reitor notou, sorrindo.:
E o melhor da história é que nem todos me poupam também;
aqui onde me, tenho adquirido a minha reputaçãozinha de feiticeiro
ou coisa parecida.
À verdade desta observação servia de testemunho a conversa
que eu ouvira dias antes ãs raparigas do lugar a respeito do reitor.
Tínhamos enfim chegado à porta da humilde habitação da ima-
ginária bruxa, quando perguntei ao meu companheiro o que ele con-
jecturava dos pequenos embrulhos de papel, a que Luisita chamara
os novelos da tia Filomela.
Ouvindo esta pergunta, o jovem reitor olhou para mim triste-
mente, e com uma voz reveladora da verdadeira comoção, respon-
deu-me:
SEROES DA PROVÍNCIA
Isso resume quase toda a história desta mulher. É um ente sin-
[ar eo digno de respeito e estima, como de compaixão.
Foi o único esclarecimento que obtive.
Entrámos enfim no quarto da tia Filomela.
XI
ERA já noite fechada; a última claridade do dia desmaiara a pouco
e pouco no ocidente, apenas agora tingido de uma uniforme cor
de violeta. Do lado oriental principiava a surgir a Lua por detrás
dos pinheiros, que se desenhavam em negro sobre o fundo de nuvens
em que o astro difundira um colorido inimitável. A única porta da
habitação da tia Filomela ficava voltada para este lado, e os raios do
luar, penetrando por ela, davam a todo o recinto um aspecto inde-
finível de tristeza e de pavor.
Parámos no limiar, escutando se algum ruído nos advertia da
presença da solitária velha, cuja vidao desfavoravelmente comen-
tada estava sendo em toda a aldeia e seus arredores.
Reinava o mais completo silêncio.
Saiu talvez disse eu, enquanto que outra coisa bem diversa
e pressagiava o coração.
Saiu ou... quem sabe? respondeu-me o reitor, expressando
esta hesitação o mesmo triste pressentimento que eu tivera.
Demos alguns passos dentro da sala. — O mesmo silêncio.
Tia Filomela! exclamei então, erguendo a voz.
Ninguém me respondeu.
Guiados pelo luar, chegámos ao fundo do quarto, onde sabíamos
estar situado o leito da pobre mulher.
Então pudemos distinguir uma forma alvacenta, como de corpo
animado, que involuntariamente nos fez recuar de terror.
Vencemos, porém, este primeiro movimento de repulsão e apro-
mámo-nos.
Era ela! a tia Filomela, regelada, hirta, com os braços pendidos
ora do leito, os olhos abertos, a vista fixa, imóveis e contraídos os
lábios e as faces mais emaciadas e pálidas que nunca!
Que desgraça! exclamou o moço reitor, juntando as mãos.
Pobre mulher, morta, morta assim I
Palpando-lhe o peito, julguei sentir ainda bater-lhe frouxo e com-
passado o coração.
Morta, aindao disse ao reitor, comunicando-lhe a minha
descoberta parece-me perceberem-se-lhe ainda uns restos de vida
prestes talvez a abandoná-la de todo.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Como para confirmar a verdade das minhas palavras, a mísera
fez um movimento, e com uma voz sumida perguntou:
Quem é que está aqui ?
É o senhor reitor respondi-lhe, curvando-me sobre o leito
Ah! pois veio ?! disse a pobre mulher, em cujo rosto per.
cebi desenhar-se uma expressão de suprema felicidade. Ainda
bem, ainda bem! Onde está ele?
. Estou aqui disse o reitor com a voz presa pela comoção
que experimentava.
Filomela 'agarrou-se-lhe à mão.
Como foi bom em vir!o me deixe, enquantoo estiver
morta, não? Tenho tido medo de me ver. Como é triste ver-se a
gente morrer, só... sem amigos, sem ninguém que chore, sem
ninguém que console! Nunca pensei que chegaria a isto, meu Deus!
Sossegue. Aqui nos tem. Maso há-de morrer ainda.
Morro, morro, eu sinto que morro, e ainda bem que assim é,
Viver como tenho vivido há anos é pior, muito pior. Eles cuidavam que
a feiticeira... como sempre me chamavam, coitados!o sofria por se
ver assim aborrecida e desprezada; ai, se sofria! se soubessem a
minha vida toda!...—E depois, interrompendo-se, apertou com vio-
lência ao do reitor, bradando como sufocada: Senhor reitor, ai,
senhor reitor, a sua bênção depressa, eu sinto que vou morrer. Sinto,
sinto!
E erguia-se com a contracção enérgica da última agonia.
O reitor, após uma fervorosa oração, elevou os olhos aou e
abençoou a moribunda, que na aparência se diria já cadáver.
De repente, ainda meia erguida e sustentada pors ambos, e
com o olhar vago, as mãos juntas e os lábios desmaiados e trémulos,
ela principiou murmurando uma prece, cujas palavraso pude per-
ceber. O reitor observava-lhe os movimentos com um gesto de com-
paixão e em voz baixa rezava também as orações da agonia.
A meia claridade que reinava no aposento, reflectindo-se naquele
triste grupo, aumentava-lhe o aspecto lúgubre e melancólico, e infun-
dia no ânimoo sei que íntimo e religioso pavor.
Passados alguns instantes, em que eu só podia ouvir o respirar
ansiado da agonizante e o murmurar das orações do reitor, aquela
elevou a voz e interrompendo-se a cada passo, extenuada pelo esforço,
principiou dizendo como em delírio:
Era o meu dever;o era, senhor reitor? Olhe, ele aí está
todo. E apontava para os objectos do prateleiro. —Não lhes toquei...
Se vier... diga-lhe... que eu cumpri o meu juramento... mas que lhe
perdoei... Já agora...
Calou-se por algum tempo; depois, com a voz cada vez mais
sumida, acrescentou com aquela carinhosa meiguice, só das crianças
e dos doentes conhecida:
Deitam-me para baixo ? deitam ?
SERÕES DA PROVÍNCIA
Ajudámo-la a deitar.
Assim continuou eia obrigada. Ai, sinto-meo fraca...
parece-me que vou dormir. Se me apagassem aquela tocha?o sei
para que a acenderam.
Coloquei-me diante da porta, para encobrir aos seus olhos a cla-
ridade da Lua, que parecia incomodá-la.
Ora agora,o façam ruído, porque tenho sono e bem conheço
que vou dormir... bem conheço...
Fechou os olhos por algum tempo, abrindo-os logo depois
angustiada.
Ai,o estou bem! Por quem são, virem-me, virem-me para
o outro lado.
Voltámo-la como ela desejava.
Ah!—disse depois, suspirando profundamente.—Agora sim...
estou bem!
Estava morta.
O reitor caiu de joelhos junto daquele pobre leito, abandonado
de todos.
Deste recinto, que os boatos da aldeia faziam habitado por espí-
ritos malignos, acabava de subir aou a alma de uma santa criatura.
A impressão que me causou toda esta cena, manteve-me imóvel
e silencioso, fitos os olhos naquela mulher que se finara, e no sacer-
dote que murmurava ao lado dela, e quase soluçando, as orações mor-
tuárias.
Pouco a pouco um tumulto de vozes e passos apressados, que
havia já alguns instantes me chegava confusamente aos ouvidos, veio
distrair-me a atenção. Por as frestas da porta, que o vento tinha cer-
rado, percebia-se um clarão avermelhado, que, projectando-se na
parede fronteira e no leito onde jazia o cadáver, dava ainda, se era
possível, à cena mais sinistra aparência.
O sussurro ia-se de momento para momento fazendo mais dis-
tinto. Era evidente que procuravam a casa da tia Filomela.
Receoso de que as ideias supersticiosas do povo e a aversão que
lhe inspirava a suposta bruxa o conduzissem a algum acto de violência,
ao qual a minha demora, decerto interpretada para mal, servisse de
pretexto, corri para a porta com o fim de evitar, se fosse possível ainda,
a profanação de um cadáver.
Nesse mesmo instante, porém, reconheci a voz de Luisita, excla-
mando :
É.
E imediatamente a porta abriu-se com violência, penetrando
logo no interior o clarão de muitos archotes acesos, sustentados por
criados de libré, cuja figura e trajoo eram conhecidos na aldeia.
Ainda euo voltara a mim da surpresa que o inesperado da
cena me produzira, quando vi sair de entre a multidão, que parecia
afastar-se com respeito para lhe dar passagem, uma mulher elegante,
VOL. n
7
SEROES DA PROVÍNCIA
distintamente vestida e que pelas formas e vivacidade de movimentos
supus ser ainda jovem. Encobria-lhe as feições um compridou de
cor escura, masoo discretamente, que lheo denunciasse a
beleza, ainda que deixando muito a adivinhar.
Entrou na sala com passos rápidos e agitada; e, encontrando-se
de frente comigo, disse-me, juntando as mãos e com um gesto em que
se reconhecia umao simulada ansiedade:
Ainda vive ?
Está morta respondeu o reitor, em pé junto à cabeceira
do leito; e, na inflexão de voz, com que pronunciou estas palavras,
julguei reconhecero sei que tom de severidade, que me impres-
sionou.
Esta notícia pareceu fulminar a desconhecida.
Levou as mãos ao seio e soltou um gemido,o profundamente
expressivo de dolorosa angústia, que me fez subir as lágrimas aos
olhos.
Depois, como cedendo a atracção irresistível, correu ao leito,
apoderou-se de uma das mãos regeladas da morta, e pousando-lhe
os lábios, caiu de joelhos, bradando entre soluços que lhe sufocavam
a voz:
Minha mãe! oh! minha pobre mãe!
O meu espanto era completo. Olhei para o reitor. Vi-o imóvel e
mudo, presenciando com gesto austero e impassível esta cena como-
vente.
Quem era pois esta mulher, a chorar assim junto do cadáver da
infeliz queo esquecida vivera, mais aborrecida do que estimada, e
tanto ao desamparo vira aproximar-se-lhe a hora da agonia final ?
Minhae continuava a pobre senhora ainda de joelhos
agora que eu vinha receber as suas bênçãos, agora que eu me jul-
gava feliz, que esperava enxugar-lhe as lágrimas e obter o seu perdão...
para que me castiga assim, morrendo sem me perdoar?
Perdoou-lhe ! disse o reitor com voz firme e austera.
A recém-chegada ergueu os olhos para ele, mas como se com-
preendesse a severidade daquele olhar, que parecia desafiar o seu,
baixou-os imediatamente, perguntando lacrimosa e trémula:
Viu-a morrer ?
Assisti-lhe até ao último suspiro.
E ela falou-lhe de mim ?
Havia-me contado a sua história.
Disse-lhe...
Tudo.
E perdoou-me ?
De todo o coração.
Mas ignorava que eu havia enfim conseguido merecer-lho,
esse perdão que tantas vezes lhe implorei.
Mais grato será a Deus.
SEROES DA PROVÍNCIA
Ô minha mãe! pobre mãe! Se eu te escutasse ao menos as últi-
mas palavras. Quero vê-la. Como aqui está escuro! Uma luz, uma luz.
Um dos criados aproximou-se com o archote. A jovem senhora
desviou então ou que a encobria até ali, patenteando o rosto, verda-
deiramente deslumbrante de beleza, e que naquele momento as lágri-
mas mais faziam realçar.
Fitando os olhos no aspecto macilento e decomposto da mãe,
soltou um grito dilacerante, e cobrindo o rosto com as mãos, desatou
em soluços, que comoviam o coração de quantos os escutavam.
Jesus, meu Deus! O que fizeram seis anos de infortúnio! Oh
desgraçada de mim! Pobre mãe! continuou ela, cobrindo de beijos
aquelas faces já frias. Comoo sofreste, para assim envelhecer
em seis anos! Seis anos? Aqui,, neste monte, nesta casa,o mal
abrigada,o mal vestida! Mas... Jesus, meu Deus... acaso... e pôs-se
a olhar em volta de si com a vista perturbada.
O reitor, que pareceu compreender aquela interrogação muda,
segurou-lhe no braço, e encaminhando-a para junto do prateleiro,
onde se divisavam os misteriosos volumes de que tenho falado, disse-
-lhe, apontando para eles:
Olhe. Sua infelize morreu pobre e desamparada.
A aflita senhora, olhando para os objectos que lhe designava o
reitor, fez-se pálida e pareceu prestes a desfalecer.
Meu Deus! ai, meu Deus!—bradou, torcendo as mãos — a
minha culpa foi pois tamanha que merecesse este castigo?
O reitor mostrou-se comovido, ouvindo este grito deo fingido
desespero, e pela primeira vez se desarmou da fria insensibilidade,
que eu até então estranhara nele.
Perdoou-lhe, senhora. Sossegue. E se o que ela havia tanto
desejava, para lhe estender os braços de mãe, se realizou enfim, confie
que do Céu, onde está, o saberá, como o poderia saber na Terra, que
para sempre deixou.
A filha da tia Filomela, depois de mais uma vez abraçar o cadáver
da mãe, chamou os criados, que entraram no aposento. Junto com eles
vinha Luisita, cuja curiosidade pudera enfim abafar os supersticiosos
terrores.
Procurem pousada na aldeia disse-lhes a senhora, domi-
nando ainda a custo a comoção e mandem-me alguma mulher que
queira ficar hoje comigo aqui.
Espanto entre a criadagem.
A senhora continuou:
Aqui, junto do corpo de minha querida mãe.
E, dizendo isto, corriam-lhe as lágrimas pelo rosto abaixo.
Fico eu, senhora disse Luisita, adiantando-se e chorando
também.
D. Margarida—que tal era, como depois soube, o nome da senhora
viu estas lágrimas, e recompensou-lhas com um beijo afectuoso!
SERÕES DA PROVÍNCIA
O bom coração de Luisita ganhara neste momento uma grands
vitória sobre a sua má cabeça.
Os criados voltaram à aldeia, comentando cada qual a seu modo
o sucedido.
Eu vim para casa. O reitor ia retirar-se comigo, quando D, Mar-
garida lhe disse com voz triste:
Quer ouvir o resto da minha história, senhor reitor? Preciso
da sua absolvição e dos seus conselhos.
O reitor anuiu
Eram seis horas da manhã do dia seguinte, quando me vieram
acordar, dizendo-me que era procurado.
Por quem ?
Por o senhor reitor.
Apressei-me a descer à sala, onde efectivamente o reitor me
estava esperando.
A que devo a felicidade desta visita?
Reclamo os seus serviços.
Estou a sua disposição.
Trata-se de umas exéquias solenes à tia Filomela; coisa, a
falar a verdade,o rara na aldeia, que me vejo embaraçado para lhe
dar expediente.o tenho conhecimentos na cidade e portanto...
Deixe isso a meu cuidado. Escrevo a um amigo meu, muito
visto nestas coisas, e que espero se sairá bem do negócio.
Então acompanha-me à residência para alguns esclarecimentos
e mais almoçará comigo?
As ordens.
Vesti-me e segui o reitor.
A residênciao ficava distante; demos aviamento ao necessário.
De lá mesmo escrevi uma carta a um amigo do Porto, encomendando-
-lhe os aprestos para as exéquias, e após subi para o quarto do reitor,
quarto modestamente mobilado, sem trastes de luxo, mas com uma
simplicidade que revelava bom gosto.
Em uma só coisa desdizia este quarto dos hábitos singelos de
vida do jovem sacerdote: era na livraria, bastante fornecida e selecta,
e que, pela desordem em que a vi, conjectureio gozar de prolon-
gados remansos.
Junto à cabeceira do leito e ao lado do velador encontrei, ainda
aberto, o Génio do Cristianismo, outros livros, porém, menos ortodoxos,
cobriam a mesa, as cadeiras e até o pavimento. Fácil me foi descobrir
a um lado o Jocelyn, mencionado pela cúria no Index librorum prohibi-
torum; junto dele, o Eurico, de igual imoralidade; mais além, os Lusía-
daso obstante a sua escandalosa amálgama de religiões; sobre
o Paradise lost, o pagão do Homero; ao lado dos Mártires, a Eneida;
de envolta com a Crónica de S. Domingos e a Vida do Arcebispo, a
História dos Girondinos; a Guerra dos trinta anos, em contacto íntimo
com os Anais da propagação da fé; o Memorial de Santa Helena, ao
SEROES DA PROVÍNCIA
pé da Imitação de Jesus Cristo; e o Teatro de Vítor Hugo, de Schiller
e de Garrett,o muito longe dos Sermões de Vieira, das obras de
Fénelon e Nova Floresta de Bernardes.
O reitor vendo-me a examinar a biblioteca corou e disse-me
com certo enleio:
Ainda meo pude desfazer dos antigos hábitos. Leituras dos
meus primeiros anos e dos tempos de rapaz, pouco próprias talvez
hoje . À batina só fica bem o Breviário.
o se justifique para comigo, porqueo lhe admito a culpa.
O Breviário de per si nem sempre é bom conselheiro, Haja a vista ao
seu predecessor, que pelos modoso tinha cometido esse pecado,
que parece estar a pesar-lhe na consciência.
O reitor sorriu.
Sentámo-nos à mesa para almoçar, e no entretanto disse-me o
reitor com expressão de sentida melancolia:
Vai saber a história da Filomela. Quer ouvi-la?
Fiz-lhe sinal de que o desejava.
! É muito curta. Esta desgraçada mulher vivia a oito léguas
daqui com uma filha única, que lhe ficara da idade de seis anos, quando
o marido, morto em uma dessas lutas civis que assolaram o reino, a
deixou na mais triste e indefesa viuvez. Os sacrifícios que fez a pobre
e para evitar a miséria, que temia menos por si do que por a tenra
criança de quem era o único amparo, foram imensos e só talvez bem
compreendidos por quem, comos outros párocos, vive em contacto
com esta infortunada gente, para a qual cada dia, cada instante de vida
é uma vitória ganha sobre a adversidade. Trabalhava de noite e de
dia; à luz do Sol, como à luz da lâmpada; nas longas e frias noites de
Inverno, como nas formosas noites de Estio; sempre curvada à mesa
do trabalho, sempre vergada sob o peso deo dolorosa cruz! Assim
passaram muitos anos daquela existência de amor e de abnegação,
assim se exauriram as forças e o vigor daquelae extremosa; e o
resto de vida que lheo absorvia o trabalho, consumia-lho a materni-
dade, difundia-se nos mil desvelos e carícias, com que rodeava o berço
da inocente; com os adornos de afectos, já que lhe escasseavam os
da riqueza que para ela só invejara. A filha crescia, sorrindo no meio
da miséria e desconhecendo-a; ignorância feliz dos primeiros anos,
comparável à da flor, que desabrocha à borda do abismo. Vivia dos
sacrifícios e abnegação da mãe, e deo pequena vivera deles, que
desaprendera a apreciá-los por essa involuntária ingratidão dos filhos,
que mais parece uma lei a que obedecem os afectos humanos. Crescia
em idade e em formosura a ponto de ser o enlevo dos habitantes do
lugar. Aos dezoito anos, fascinava; falava-se dela léguas ao redor. Foi
a desgraça da mãe, que então se revia ainda em tanta beleza, à seme-
lhança dessas crianças imprudentes que se debruçam na corrente fas-
cinadas pela limpidez que lhes reflecte o céu.
«O filho de uma rica família das proximidades viu a inexperiente
SEROES DA PROVÍNCIA
rapariga, apaixonou-se por ela, confessou-lhe o seu amor, soube fazer-se
correspondido, e um dia... Margarida desaparecia de casa. Espalhou-se
a nova na aldeia; ae esteve quase louca, muito tempo correu corno
perdida por todos os lugares, encontravam-na de noite e de dia; às
vezes adormecida de cansaço nos marcos das estradas; até que depois
a perderam de vista na aldeia e disseram-na morta.
« Foi então que veio para aqui com o desespero no coração, aluei-
nada a ponto de blasfemar; por isso o velho reitor, como já lhe disse,
a julgou possessa. A crença espalhou-se, a coincidência de certos
sucessos parecia justificá-la; e esta desgraçada mãe, só digna de com-
paixão, viu-se repelida, odiada e desprezada de todos!
«No entretanto a filha, que cedera à sedução, inquieta pela sorte
da mãe, procurava-a. Soube do seu desaparecimento da aldeia, enviou
emissários para averiguarem o lugar da sua nova residência, se é que
ela ainda existia. Foi feliz em tais pesquisas. Vieram da parte da filha
procurar Filomela, trazendo-lhe cartas dela; a pobre mãe, cujo cora-
ção todo se alvoroçava só de vê-las, rejeitou-as sem sequer as ler,
dizendo: que nunca essa malfadada voltasse para junto de si enquanto
o tivesse purificado pelas bênçãos da Igreja o erro da sua juventude,
Esta obstinada recusa, fundada em um arreigado sentimento de
honra e decoro, dilacerava o coração das duas!
«O amante de Margarida era de nobres e generosos sentimentos;
mas, sujeito à vontade de uma família cheia dos preconceitos de nobreza
e das distinções jerárquicas, nem ao menos ousava falar-lhe em uma
união, que ele também cordialmente desejava.
«Margarida quis acudir à miséria da mãe, enviando-lhe algumas
somas de dinheiro. Filomela rejeitou-lhas, dizendo que antes quereria
morrer de fome, do que viver de vergonha. A filha propôs-lhe abando-
nar o amante, voltar para junto dela e trabalhar para lhe sustentar a
velhice; repeliu igualmente a oferta, com a mesma pertinaz firmeza
com que tinha rejeitado as outras.
«Isto há-de parecer-lhe talvez um mal-entendido rigor, mas verá
que se baseava no afecto profundo que alimentava no coração.
«Margarida recorreu então a um piedoso expediente. Sabendo
que Filomela saía a miúdo e que nunca se dava ao trabalho de fechar
a porta da pobre casa, mandava todos os meses um criado de con-
fiança a espiar o momento em que ela estivesse fora, para lhe reme-
ter os socorros pecuniários. Era quase sempre de noite que isto se
efectuava, pois Filomela para evitar os insultos com que a perseguiam,
raras vezes saía de dia. Este homem entrava-lhe então em casa, pou-
sava o dinheiro de Margarida sobre um prateleiro que havia na sala;
eram os embrulhos, de que me falava ontem.
Os novelos da tia Filomela, como me dizia Luisita. Adiante,
Filomela suspeitava a procedência da remessa e por isso nem
lhe tocou. Quatro anos sucessivos,s por mês, se renovou a oferta;
enfileiravam-se os pequenos rolos de dinheiro, que o mensageiro reli-
SEROES DA PROVÍNCIA
giosamente depunha no lugar costumado, e Filomela nem ao menos
sabia a quanto montava já a soma assim acumulada. O criado, que estra-
--ara esta abstenção da velha, comunicou tudo ao amo. Este, porém,
parao afligir Margarida, recomendou-lhe segredo e ordenou-lhe
que continuasse de igual forma a cumprir a sua missão. As somas suce-
diam-se e Filomela, que tantas vezes lutava com a necessidade, deixa-
rs no mesmo sítio em que as encontrara.
«Quando a conheci, contou-me tudo. Os instintos religiosos, renas-
cendo nela, aumentavam-lhe mais ainda os escrúpulos e firmavam-na
em suas resoluções. Se alguma vez eu lhe falava em perdoar à filha, a
nobre mulher respondia-me, soluçando:
«—Isso me diz há muito o coração, senhor reitor, mas se eu o
fizesse, a infeliz vinha-se-me lançar nos braços, e esse homem, que a
ama ainda, esquecê-la-ia em breve e com ela as promessas que lhe
jurou. Eleo é mau. E se para que eu perdoe, souber necessária a
reparação, tarde ou cedo lha dará.
«Euo confiava muito nisso, mas como teria alma de tirá-la desta
crença?
«Os socorros que recusara à filha recebia-os com humildade das
minhas mãos. Sabia da repugnância que lhe tinham na aldeia, e nunca
por isso de dia ali desceu mais. Quis obrigá-la a ir à missa,o o pude
conseguir. Havia no carácter desta mulher um misto de firmeza e timi-
dez notável! Essa gente, coitadinha dizia ela muitas vezeso
assistiria com fervor à missa se me vissem a seu lado. E contudo
afligia-se por ser privada de assistir ao santo sacrifício.
«Lanceio de um expediente. Há aí por detrás do monte uma
pequena capela abandonada há muito. Um dia na semana lá ia eu cele-
brar missa só para a pobre mulher. O meu ajudante, que era o sacris-
tão, é talvez o único homem na aldeia queo participa já da opinião
do público a respeito da tia Filomela. Coitada!o pôde ver na Terra
realizado o seu mais ardente desejo! Quando expirava, corria a filha
a seus braços a dar-lhe alvoroçada a notícia de que as orações de tantos
anos haviam sido ouvidas. Fora enfim recebida como esposa pelo homem
que motivara estas desgraças. Por morte do pai e atingindo a maioridade,
eleo quis retardar muito tempo a realização do desejo de ambos.
«O fim já oo ignora. A filha inconsolável quer satisfazer para
com ae a dívida contraída, por meio de umas exéquias solenes na
igreja paroquial. O dinheiro acumulado e intacto das sucessivas mesa-
das que enviou a Filomela e que monta à quantia de novecentos mil-
-réis vai ser distribuído pelos pobres da freguesia, sendo eu o encarre-
gado da distribuição.
«Aí tem a história da tia Filomela, de cujo sigilo fui remido por
a filha, que divulgando-a pretende justificar a memória da mãe,o
caluniada em vida.—E, erguendo-se da mesa do almoço, o reitor
acrescentou:
Era uma santa!
SERÕES DA PROVÍNCIA
XII
E
STA história divulgou-se: maso fui eu que a contei a Luisita
cuja crença nos feitiços da tia Filomela ficara muito abalada
depois da triste cena a que assistira, foi, como já disse, a unica
que ousou passar a noite com a filha da defunta. Como é de crer,o
era para dormir que aí se achavam as duas. Conversaram, e D. Marga.
rida, simpatizando com a sua jovem companheira, contou-lhe toda a his-
tória. No dia seguinte, Luisita, um pouco com o desejo de desvanecer
ass opiniões da aldeia a respeito da tia Filomela, pôs-se à obra, e
dentro em pouco era o facto de todos sabido.
Fez-se justiça, ainda que tardia, a Filomela, e já corriam todos
para a casinha do pinhal, como para uma ermida de Senhora aparecida
Duas velhas beatas disputaram, quase a murro, a posse do gato, que
no resto da vida se tornou o mais benquisto da aldeia. A fantasia popu-
lar,o fecunda em inventar lendas milagrosas, como traças de Satanás
e de seus adeptos, refere agora virtudes da tia Filomela, que deixavam
a perder de vista as antigas façanhas de feiticeira que lhe atribuíam.
Também me ri muito com o meu amigo da sua espantosa ciência
do coração humano.
Aquela monumental dissertação era de uma solidez de alicerces
formidável, só tinha o pequeno defeito de ser completamente inexacta.
Oito dias depois faziam-se esplêndidas exéquias à tia Filomela;
assistiu toda a gente do lugar. Foi coisa ali nunca vista.
Após fez o reitor a distribuição das esmolas, colhendo as bênçãos
dos pobres, que choravam de alegria.
À porta da igreja encontrei Luisita a limpar os olhos comovida
pelo acto edificante que presenciara.
Então, Luisita disse-lhe eu aproximando-me — e os novelos
da tia Filomela?
A engraçada rapariga levantou para mim os olhos mal enxutos,
sorriu melancolicamente eo deu resposta.
Abençoados novelos acrescentei eu que deram para tecer
tantas camisas aos pobres !
UMA FLOR DE ENTRE O GELO
I
NO tempo em que principiei a ir ao teatro, estavam muito em moda
os dramas em cinco actos com o complemento de uma farsa.
As plateias, os camarotes, as galerias e até a fleumática
orquestra, depois de carpirem, com sensibilidade,o fingida, as
infaustas e tenebrosas aventuras do herói ou da heroína do primeiro
dos espectáculos exibidos, acalmavam o sobressalto nervoso, que de
o continuados sustos lhes ficara, rindo a bandeiras despregadas, à
custa do velho iludido, tipo predilecto da veia cómica de então.
O amor extemporâneo de um velho, os seus ciúmes insofridos,
os seus acessos de cólera quase epilépticos e a intriga combinada
contra ele entre a ingénua, vítima principal dessa paixão incómoda; o
amante preferido e o criado astuto que dirigia o enredo, tentado pela
bolsa recheada do galã e pelao nívea da lacaia, propícia aos amo-
res da ama: tal era de facto o eterno e inesgotável tema glosado,
com mais ou menos variantes, pelos Plautos e Terêncios da época.
A moda vierao sei se da Itália se da Espanha, mas generali-
zava-se rápida e extraordinariamente.
Beaumarchais foi um dos que a seguiram em França e com extrema
felicidade; outros modelaram por os dele esses tipos genéricos, sem
os quais quase seo concebia comédia, e por mais desgraciosos que
lhes saíssem os arremedos, tinham a certeza de os verem bem acolhidos.
O nosso António Xaviero se pode dizer dos mais infelizes na
tentativa; o seu Manuel Mendes, de popularíssima memória, bem mere-
ceu os aplausos que o públicoo generoso lhe prodigalizou.
Por muito tempo as plateias saboreavam estes acepipes teatrais,
sem que da repetição se enfastiassem.
Eram jáo suas conhecidas as personagens, que custou deveras
a desabituá-las delas; como que seo entendiam com outras.
SEROES DA PROVÍNCIA
Queriam-se com o seu Pantaleão ou Lançarote, tutor decrépito
desastradamente apaixonado por uma pupila, que só tinha a malícia
indispensável para o enganar a cada momento; reviam-se na figura
elegante dos Leandros e Florindos, cujos conceituosos requebros
pieguices amorosas escutavam com ouvidos complacentes; as jovia
lidades e astúcias do criado, os seus diálogos equívocos com a lacaia
as suas arlequinadas e tramóias a bem da causa comum, tudo saudavam
com a mais decidida e clamorosa simpatia,
A acção seguia entre aplausos contínuos o curso regular.
Cada esforço que o velho fazia para o bom êxito dos seus pro-
jectos amorosos, pervertia-lho a fatalidade em desserviço deles, e na
cena final, quase sempre a das escrituras, quando se preparava para
dar a batalha decisiva que devia coroar-lhe a constância,o desmen-.
tida entre desenganos e reveses, todos, até o próprio tabelião, se cons-.
piravam contra ele, e o malfadado via, no meio de risadas gerais
passar a pupila para os braços do amante, que, nesse momento solene
deixava cair o nariz de papelão, valioso auxiliar da última façanha
Entrava-se em explicações, patenteava-se à vítima a trama minu.
ciosa da intriga, e ele acabava por perdoar e, o que mais é, tomava
a sua conta o moralizar o facto.
Redobravam os aplausos; o casamento final justificava os meios,
nem sempre demasiado lícitos, empregados para o fazer vingar; os
espectadores retiravam-se satisfeitos, e tendo por essa forma afugen.
tado as disposições para pesadelos e sonhos angustiosos, que o drama
lhes produzira, ceavam bem e dormiam melhor.
Ora sucedia já então um caso extraordinário comigo: era que,
ao contrário da maioria, senão da unanimidade dos espectadores,o
exceptuando até os incursos no mesmo ridículo que se pretendia corri-
gir assim, dava-me para ter pena do velho em vez de me rir das suas
tribulações.
A plateia conseguia suavizar as impressões penosas do drama
com as jocosas peripécias de uma paixão... macróbia; a mim ficava-me
uma melancolia interior, mais duradoura e sentida, do que a proveniente
da catástrofe do quinto acto.
o obstante os acessórios caricatos, de que autores e actores
sobrecarregavam esses tipos, para os quais deo inexorável severi-
dade era a Tália da época, eu achava-lheso sei que de interessante
e, direi até, poético, que ofuscava tudo o mais, eo me deixava rir,
Rir, porquê?o era antes para magoar e comover o drama psico-
lógico que, através de episódios risíveis, se desenvolvia ali? A história
de uma paixão sem futuro, funesta ao coração que a alimenta,o é
mais digna de lágrimas que de escárnio?
Debaixo das vestes de polichinelo, que o público iludido saudava
de gargalhadas e apupos, euo via mais do que um desgraçado,
através da máscara truanesca do comediante parecia-me a cada passo
divisar um olhar de tristeza que me vinha direito ao coração.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Que querem ? Mau é que se façam dessas abstracções; o efeito
é depois inevitável.
Experimentai por vós;o vos lembreis da casaca esguia, do
calção engelhado, do sapato de monstruosa fivela, do impertinente
rabicho da cabeleira, da colossal caixa do tabaco, todas as noites tira-
dos do guarda-roupa do teatro para adornarem esses tipos, e auxi-
liarem a efeito cómico da produção muita vez mais devido a tais
acessórios do que ao sal que a temperavao atenteis nas rugas,
profusa e burlescamente distribuídas pelao exercitada do caracteri-
zador; ou melhor ainda, concebei, se podeis, aquela alma indepen-
dente de todos os desfavoráveis acidentes corpóreos, e ao vê-la lutando
com uma dessas paixões violentas, devoradoras, queo a sua máxima
manifestação de vigor e de vida; e humilhada, ridicularizada, escar-
necida, porque o corpo que a subjuga, envelheceu primeiro do que
ela; porque regelou o sangue enquanto o espírito se inflamava em
impetuosas lavaredas; porque se enrugou a fronte, quando o coração
se expandia com maior força de afectos; dizei depois, em consciência,
se tendes ânimo para vos rirdes desse espectáculo!
E a prova de que o ridículo está todo nos acessórios, de que é
mais para comover e impressionar dolorosamente do que para ale-
grar o fenómeno moral que em tese absoluta condenavam às risadas
da plateia, é que, pouco tempo depois, via-se no teatro um amor de
velho, com todas as exaltações, com todas as esperanças, com todos
os receios e desesperos de um amor de rapaz e, apesar das barbas
brancas do amante ancião, ninguém se sentiu disposto a sorrir.
Para salvar do ridículo a Rui Gomes da Silva do drama de Vítor
Hugo, bastaram as vestes negras e severas do fidalgo espanhol da
corte de Carlos V, as armaduras de cavaleiro pendentes da sala de
armas, a galeria de retratos de uma longa série de heróis seus ante-
passados ; o amoro conseguiu apequenar esse vulto, que a velhice,
o orgulho e a firmeza de carácter faziam terrivelmente grande. E con-
tudoo passava de um velho apaixonado o altivo rival de Hernâni.
Na sua presença, porém, os espectadores estremeciam em vez
de sorrir; fácil lhes seria prever que essa mesma paixão, olhada ainda
por outro aspecto, os poderia fazer chorar.
Porque não? Pois comove-nos o desespero impotente do cego,
rodeado das magnificências da natureza, que pressente sem as poder
gozar, e para compreender as quais tinha alma superiormente formada;
a alucinação do veterano, à voz do clarim arrebatado em ardor marcial,
e que se ergue impetuoso para correr ao chamamento da pátria, esque-
cendo por instantes que o braço mutilado jáo pode suster a espada,
que tantas vezes gloriosamente brandiu; o desalento do poeta, cujos
sublimados anelos o alheiam da vida real, que em seu positivismo o
sacrifica, que morre como Chatterton, consumido pelo fogo do próprio
génio, impossível de existir em uma sociedade aindao organizada
para o conter em si; interessam-nos todas estas lutas, todos estes anta-
SERÕES DA PROVÍNCIA
gonismos, todos estes conflitos, em que se desvanecem ilusões; assis-
timos atentos a todo o embate solene de afectos encontrados, simpatiza
mos com todas as aspirações reprimidas e instintos naturais subjugados
por alheias resistências, e só havemos de ser inflexíveis e só havemos
de rir ao vermos aquele outro triste e doloroso combater da alma
com o corpo; só noso há-de comover a mágoa, o desespero dessa
jovem cativa, olhando através das grades de uma velha prisão ou
azul, os prados verdes e as flores perfumadas que a enamoram? Insul
tá-la-emos quando, como o rouxinol aprisionado, se despedaçar em
delírio de encontro aos ferros que a retêm?
É uma grave injustiça. O espectáculo é mais dramático do que
geralmente om querido fazer.
Há nos variados episódios da mitologia pagã situações como-
ventes, que estas me fazem recordar. A cada passo, ali, o amante, no
auge de uma paixão violenta, perseguindo como louco pelos desvios e
recessos das florestas, a ninfa fugitiva, no momento em que julga pos-
suí-la, em que estende os braços para lhe enlaçar a cintura e aproxima
os lábios ardentes para oscular-lhe as faces afogueadas de cansaço e de
pejo, sente um estranho torpor adormentar-lhe os membros, um frio
glacial circular-lhe nas veias, e, súbito o coração, ainda em alvoroços de
amor, é comprimido pela rigidez do lenho que o invade; os braços,
que agita aflito, alongam-se-lhe em ramos; os cabelos, que o terror
levanta, transformam-se-lhe em folhagem e vigorosas raízes, pren-
dendo-o ao solo, tornam permanente a imobilidade que o susto prin-
cipiou. Mas os instintos de amor que o perdem,o se apagam após
a transformação; a nova árvore, conservando latente o fogo que lhe
deu a origem, experimenta um doloroso estremecimento todas as
vezes que a ninfa outrora esquiva —vem agora recostar-se lânguida
à sua sombra, e, cheia de uma confiança mais para desesperar do que
todos os passados terrores e apreensões, se entrega aí descuidada
a gratos sonhos de amor.
Pobre alma namorada! a forma que reveste, é agora a sua eterna
condenação, nem de esperanças se pode nutrir,, a triste ! escravizada
pela matéria, concentra o seu padecer, pois nem manifestá-lo lhe é dado.
O que devem sentir esses malfadados heróis do variadíssimo
poema mitológico, os mesmos desesperos, os mesmos desalentos, as
mesmas angústias, sentem na realidade aqueles, em que a caducidade
do corpo precedeu a do espírito, que, rico de aspirações juvenis, é
vítima delas, porque até o revelá-las lhes é defeso.
E se o vaso já gasto estala então sob a pressão do forte impulso
a que pretende resistir, nem ao menos comiseração há-de inspirar, o
que sucumbe assim? Dolorosos infortúnios estes!
As poucas cenas que se seguem, esboçam ligeiramente a história
de um desses malfadados, de que o mundo se ri por hábito, como de
outras tantas coisas sérias, que deviam merecer-lhe a compaixão e o
respeito até.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Se a conseguir narrar, sem que um sorriso, obedecendo a esse
habito apareça nos lábios do leitor, terei realizado o meu principal
intento.
O sei o nome da localidade onde o facto se passou.
Lembra-me só que era no Outono, nessa quadra de melan-
colia, em que desmaia o azul nos céus, em que o verde das selvas
empalidece e os ventos arrebatam em turbilhões rápidos, ao longo
das avenidas, onde já rareiam as sombras, a folhagem seca, que crepita
sob oss do caminhante.
Corriam impetuosas nas levadas as águas que fertilizam os vales,
A hora do crepúsculo fazia mais que nunca cismar. Com as primeiras
nuvens do sul, numerosos bandos de andorinhas intimidadas atravessa-
vam os ares, procurando climas, onde lhes sorrisse ainda a Primavera.
O sítio era ameno, próprio para se gozar dali esse belo espec-
táculo da natureza. Uma colina elevando-se graciosa do meio de uma
amplíssima e vicejante bacia. No vale, que a cerca, tudo em mosaicos
de verdura; prados extensos, veigas, devesas, choupais a banharem-se
na água, arroios serpeando por entre a relva, espraiando-se além em
pequenos lagos, despenhando-se ruidosos dos açudes, ora a escon-
derem-se por detrás de umbrosos cômoros, ora patentes na planície,
a retratarem as rosas, as últimas borboletas errantes, as nuvens e o
rosto alegre das lavadeiras.
Pela encosta entrelaçavam os ramos vigorosos carvalhos secula-
res, cujo tronco rugoso e carcomido revestiam as heras e os musgos;
de espaço a espaço, cortava o caminho um desses gigantes derrubados,
nutrindo dos restos já sem vida a vegetação nascente que lhe rompia do
seio; os algares da corrente, ocultos por um denso tecido de fetos,
de giestas e de tojos, denunciavam-se apenas pelo ruído da água,
descendo no leito pedregoso; ouvia-se o rastejar do réptil, fugindo
ao rumor das passadas, mas difícil seria igualmente percebê-lo entre
as folhas soltas e crestadas que alastravam o chão.
Em cima, na planura onde conduziam os tortuosos caminhos que
ladeavam a colina, erguia-se de entre a espessura dos álamos sussur-
rantes, uma pequena capela, que sustentando a cruz sobranceira às
franças das mais elevadas árvores, parecia estender a todas as várzeas
e povoados que dominava dali, a influência salutar e benéfica desse
símbolo da redenção.
Quando, ao declinar da tarde, soavam do alto da torre lateral
os toques da ave-maria, em todas as aldeias abrigadas junto à base da
colina, nas mais pobres choupanas como nas mais fartas herdades do
vale, nenhuma cabeça ficava por descobrir, nenhuns lábios deixavam
SERÕES DA PROVÍNCIA
de murmurar reverentes a saudação angélica; e se os ventos levavam
o som harmonioso e plangente do pequeno sino até às longínquas
cordilheiras de serras que, como indistintas massas azuladas limitavam
circularmente aquele horizonte vastíssimo, os serranos, dispersos com
os rebanhos pelos pascigos, ou encerrados nas choças colmadas das
montanhas, volviam saudosos as vistas para o ponto branco de onde lhes
chegavam aos ouvidos aqueles sons quase a esvaecerem-se, e recor-
davam-se suspirando da devota romaria que todos os anos os levava ali,
junto do altar da milagrosa Senhora da Saúde, sob cuja invocação fora
levantada a capela.
As romarias! as romarias! gratas recordações, únicas talvez,
daquela pobre gente da serra! As horas rápidas de gozo, que um só
desses dias de festa lhe, compensam-lhe de sobra as continuadas
fadigas da vidao trabalhada e penosa. Em torno à pequena ermida,
onde cada ano afluem deo longe essas piedosas peregrinações de
devotos, parece esvoaçar de contínuo uma turba de espíritos alados
que nos segredam histórias de tantos amores, nascidos ali e ali santifi-
cados, junto ao altar onde as dádivas votivas dos menos esperan-
çados se amontoam, a velar pelo seu destino e propiciar-lhes o Céu.
De quantas incertezas, de quantas esperanças, de quantas ale-
grias e apreensõeso soiss sabedoras, despidas paredes desses
templos singelos, onde faltam os ornamentos da arte e as sumptuosi-
dades do culto, mas que as crenças populares engrandecem e as lendas
tradicionais, que de velhos a crianças se transmitem, perfumam de
poesia! Que de orações fervorosas, rude mas eloquente linguagem
daquelas almas de crenças robustas,m sussurrado no estreito recinto
desses muros! que olhares de místico enlevo erguidos até à imagem
do altar, à qual o grosseiro da escultura parece aumentar ainda o
prestígio!
Eo vos hão-de fitar saudosas as vistas dos romeiros, rústicas
ermidas, depositárias dos mais ardentes votos da sua alma? Árvores,
que as rodeais, poderiam desconhecer-vos no horizonte ou confun-
dir-vos com outras os olhos do pastor errante ou do lavrador curvado,
quando o coração lhes diz que sois vós,s que de longe lhes acenais,
com as ramas agitadas, como para os alentar no trabalho com a espe-
rança de um outro dia de gozo?
A fantasia voa-lhes como as aves a ocultar-se na espessura desses
bosques, onde com elas volteia namorada pelas mais solitárias moutas
e pelas arborizadas margens dos ribeiros.
Destes lugares celebrados assim pela devoção e simpatia popular,
poucoso ricos de tradições piedosas, como a colina, em cujo cimo
estava, como dissemos, erigida a capela de Nossa Senhora da Saúde.
Cada família dos arredores tinha a sua lenda de milagres a refe-
rir-lhe. Uma romagem à Senhora no dia consagrado passava por a
suprema medicina.o havia mal que aquela intercessãoo reme-
diasse, ou fosse doença verdadeira ou, o que é pior, desses males de
SEROES DA PROVÍNCIA
coração, que aindao mais pertinazes, que ainda fazem mais padecer.
Diziam-no as inumeráveis histórias que aos serões as velhas contavam
às crianças para lhes robustecer a, e algumas das quaiso singu-
lares e miraculosas eram, que até do púlpito as repetiam os pregadores.
A fama estendera-se e tanto, que de ano para ano aumentava a
afluência dos ansiosos de benefício; muitos dos quais, convencendo-se
de queo menos capaz do milagre devia ser aquela atmosfera salu-
tarmente vivificada por uma abundante vegetação, por ali se deixavam
ficar, associando assim a higiene com as devoções.
Por isso, o viandante, que agora seguia as pitorescas veredas,
pelas quais o monte era em diversos sentidos irregularmente cortado,
via, em toda a entensão da encosta, a aparecerem-lhe e desaparece-
rem-lhe sucessivamente por entre a verdura, casas de risonha apa-
rência, dispersas ou reunidas em graciosos grupos, com as paredes
alvíssimas, as portas verdes e os telhados vermelhos e cercadas de
bonitos jardins,o recendentes de perfumes na Primavera, que aro-
matizavam em redor todos os caminhos.
A maior parte destas casas era habitada por uma população flu-
tuante de valetudinários ou convalescentes, que procuravam vigorar
forças, respirando a pleno seio o ar purificado e livre das montanhas
e dos bosques.
Pela manhã, quando as névoas principiavam a dissipar-se e, por
entre a folhagem das árvores, o sol penetrava mais fomentador de vida
e ia evaporar o orvalho que ainda rociava as ervas dos caminhos,
viam-se subir a colina, a passos vagarosos e com frequentes pausas,
esses pálidos doentes, que pareciam renascer só ao receberem aquelas
auras embalsamadas pelos perfumes das flores, e suavizadas pelos
primeiros calores da manhã.
Era o velho quebrantado e trémulo, parando a meio caminho da
ladeira que subia, a fitar o céu, como se de antemão procurasse deci-
frar o problema que em breve teria de resolver; o mancebo, inquieto
e pensativo, de aspirações ardentes e subidas e emo alto grau, que
no empenho de as realizar lhe faleceram as forças e no forte da luta
sentia-se sucumbir; a virgem, meiga e melancólica, como uma das
mais ideais criações ossiânicas, errante por entre as árvores seculares
ou pendida à borda das correntes, escondendo uma lágrima ou simu-
lando um sorriso, manifestações diversas na aparência e ambas denun-
ciadoras tantas vezes de uma grande tristeza interior; a mãe, jovem
e doente, em torno à qual brincava um bando de crianças alegres e
cheias de vida, ignorando, as inocentes, que todo o seu destino, que
as suas alegrias ou as suas dores no futuro dependiam agora daquelas
árvores, onde se balanceavam risonhas, daquelas virações, que lhes
açoutavam os cabelos soltos e anelados.
Assim, pois, o lutar da vida e da morte era o que por toda a parte
se via. Contrastes de esperança e de desalento, antíteses de sorrisos
e de lágrimas.formavam a feição mais característica do quadro.
SEROES DA PROVÍNCIA
O cair das folhas, o desenflorar da relva, os gemidos das aves, e
as sombras errantes que as nuvens projectavam pelos campos, tudo
parecia harmonizar-se tristemente com o cismar interrogativo do velho,
com o suspirar do mancebo, com as lágrimas da donzela e com o abraço
convulso da mãe, cingindo ao seio, em um frenético movimento, as
cabeças louras das crianças que lhe sorriam.
Era a vida a declinar: a consciência de um fim próximo a reprimir
aspirações a um longo futuro de mais prazeres e gozos.
Vacilantes entre um passado risonho e um porvir tenebroso e
incerto, entre a saudade do que foi e o medo do que há-de ser, esses
pobres desconfortados sorriam ainda, animavam-se, davam uns aos
outros esperanças queo sentiam em si.
Às vezes desaparecia de entre eles um rosto conhecido, e fecha-
va-se uma casa.
Resolvera-se para esse o problema, terminava a incerteza. Ou o
arrebatara a morte aos seus mistérios ou o restituirá a saúde às suas
alegrias. E, conforme uma ou outra dessas soluções, assim o desalento
ou a esperança se divisavam por dias no rosto dos companheiros que
ficavam.
Letras gravadas nos troncos das árvores atestavam as recorda-
ções saudosas dos que tinham passado ali. Os sovereiros e as faias
eram os confidentes silenciosos de muita paixão secreta, de muita
ilusão desvanecida, de muito coração despedaçado. Quantas lágrimas
eles teriam sentido correr, ao receberem aquelas enigmáticas memó-
rias de um ser ausente que chorava também, ou, amarga ideia e quase
sempre mais verdadeira, que se esquecia e por isso mesmo mais amado
era ainda! Mistérios do coração !
Estas letras, destinadas a durar talvez mais do que ao que as
gravava, documentavam muita história triste, dramas ignorados, cujo
último acto se representara nesses sítios, que assim conservavam dele
os derradeiros vestígios.
Nas paredes caiadas da capela do monte o lápis reproduzira
memórias iguais às que se viam gravadas nos troncos, e outras menos
concisas, que mais facilmente traíam o pensamento que as ditara.
Inscrições inumeráveis, irregulares, amontoadas, por vezes ile-
gíveis, cobriam-nas até à altura a que podia atingir o braço.
Frases cortadas, exprimindo muito, mas deixando ainda mais a
adivinhar; confrontações de nomes, que denunciavam uma história
inteira; dúvidas formuladas, indício de violentos e terríveis estados
da alma; apóstrofes ímpias, ditadas pelo desespero; cânticos reve-
rentes, inspirados pela resignação e pela fé... de tudo se via ali.
A elegia junto à ode; a saudade e logo após a esperança; o cepticismo
que fazia estremecer a crença consoladora, expressos por todas as
formas, concebidos dos modos mais variados, narravam eloquente-
mente a história do coração humano nos mais solenes momentos da
sua vida tumultuosa e apaixonada.
SEROES DA PROVÍNCIA
Era mais do que curiosa a leitura daquele álbum singular; era
instrutiva e altamente filosófica.
Se se pudessem reunir todos esses fragmentos dispersos, comple-
tar as frases interrompidas, preencher as lacunas, adivinhar o nexo mis-
terioso de certas ideias, aparentemente sem relação lógica que as fizesse
dependentes, ter-se-ia instituído um profundo estudo psicológico e a
mais perfeita análise dos afectos que dominam a existência do homem.
Por mais de um motivo se tornava, pois, curioso o lugar, onde as
exigências da narração me obrigaram a transportar imaginariamente
o leitor.
III
R
OMPERA alegre a madrugada de um dos mais belos dias do
Outono.
O orvalho gotejava ainda das folhas das árvores sacudidas
pela brisa matinal, e as gotas límpidas e oscilantes pareciam metamorfo-
Bear-se em rubis, safiras e esmeraldas ao refractar os raios da luz solar.
Era encantador o aspecto da colina naquela manhã; semelhava
a donzela que, brincando, desenfiou o seu colar de brilhantes e os
soltou em desordem pelos cabelos, pelo seio e pelo regaço, de onde,
ao menor movimento, lhe rolam até caírem no chão.
Os primeiros calores do dia erguiam já dos vales o sendal de
névoas que os envolvera, e, dissipando-as na atmosfera, temperavam
de tintas mais suaves o azul-escuro do céu.
Sobrepostas às serranias que limitavam o horizonte, divisavam-se
grandes massas de nuvens, cujos reflexos à luz oriental lhes dava a
aparência dos altos gelos que coroam as cristas das montanhas.
Iludidas por estes simulacros de Primavera, as próprias plantas
pareciam renascer. A seiva afluía-lhes de novo aos ramos despidos,
e desenvolvendo-lhes os gomos, revestia-as de folhas, desabrochando-
-lhes os botões enfeitava-as de flores, e os insectos, surgindo uma vez
ainda do letargo insipiente, adejavam em torno à corola humedecida
que lhes patenteava os nectários.
Sorria a natureza ainda, mas havia o que quer que era meigo e
melancólico naquele sorrir. Eram como as alegrias plácidas do enfermo,
vítima de uma doença fatal, a quem a mais efémera remissão fez conce-
ber os prazeres da convalescença, mas sem que o possa iludir.
Ameaças permanentes no meio desta tranquilidade geral, eram,
no horizonte, as nuvens, como aguardando só por um sinal para inva-
direm o espaço, e um rumor longínquo e monótono que de quando
em quando os ventos traziam aos ouvidos, como o grito de fera apri-
sionada a voz profética do mar pregoando tormentas durante a
bonança que momentaneamente reinava.
SERÕES DA PROVÍNCIA
A vida do campo manifestava-se toda nas eiras e nos celeiros
onde se entesouravam as riquezas do lavrador.
Risos, cantares, vozearias confusas, com que por toda a parte na
planície se acompanhavam os diferentes trabalhos das colheitas, che-
gavam, como mal distinto burburinho, ao alto da colina, onde em com-
pensação reinava o silêncio solene e imponente, silêncioo absoluto,
porque falam os bosques e as torrentes, porque falam as aves e os
insectos; mas em que seo ouve a voz humana o silêncio da
solidão.
De facto a colina podia dizer-se deserta.
Era cedo ainda para o passeio matinal da pequena colónia d
enfermos que a habitava.
O doutor Jacob Granada recomendava-lhes que evitassem os
nevoeiros da manhã, e poucos ousariam infringir as ordenações do
velho médico, que no tocante à execução dos seus preceitos dava
provas de uma intolerância despótica.
Jacob Granada era um destes homens singulares, que desde
primeira entrevista nos deixam uma impressão profunda e indelével
e cujo trato continuado, ao se lhe opor convenientemente uma von
tade inflexível e uma grande força de carácter, tende a dar-lhes um
predomínio tal sobre os ânimos, que difícil é mais tarde subtrair-se qual
quer, que por algum tempo se lhe sujeitou ao poderosa influência
Se o poder magnético tal como o concebem os mais crédulos e
ardentes apologistas da fantástica arte de Mesmer, fosse uma realidade
eo uma simples criação de visionários, decerto possuiria Jacob
Granada essa faculdade superior no grau mais elevado.
A inegável influência moral de caracteres como estes sobre os
menos rijamente temperados explica, e até de alguma sorte justifica,
a origem dessa singular doutrina, que a aura popular, favorável a
todas as ideias novas e extravagantes,o extraordinariamente pro-
pagou.
Em Jacob Granada auxiliava ainda a influência dessas qualidades
morais, um conjunto de caracteres fisiognomónicos, queo podia
deixar de ferir a imaginação menos sujeita a impressões desta ordem.
. . Os lineamentos predominantes da raça israelita, da qual a família
dele originariamente procedia, desenhavam-se-lhe acentuados nas
feições angulosas e expressivas, imprímindo-lhes um cunho de nacio-
nalidade, cuja interpretaçãoo podia enganar.
Sobre a fronte, estreita mas elevada, alvejavam-lhe em raras e
desordenadas madeixas, as mais formosass que ainda adornaram
uma cabeça de ancião. Os lábios, delgados e deprimidos nos ângulos
por contracção habitual, denunciavam longos hábitos de reflexão e de
reserva, que efectivamente lhe estavam na índole. No nariz havia com-
pleta e absoluta conformidade com o do tipo judaico, e os olhos peque-
nos, mas de uma vivacidade de fogo, exprimiam a inteligência e subti-
leza de espírito, que um conhecimento ulterioro desmentia nele..
SEROES DA PROVÍNCIA
Era excessivamente magro e um tanto curvado pelas fadigas do
estudo e pelo peso de sessenta anos de vida trabalhada por incessantes
esforços físicos e intelectuais;o obstante, nunca deixara de obser-
var os mesmos hábitos laboriosos, que eram já para ele imperiosa
necessidade.
Ao romper do dia o jornaleiro encontrava-o nos caminhos com o
vestido negro e singelo, no qual conseguia combinar certa severi-
dade com umo estudado desalinho, e correspondendo sempre às
saudações por uma frase invariável, ou um simples e distraído movi-
mento de cabeça.
Os cuidados de que Jacob Granada rodeava os seus doentes,
ainda que salutares, pesavam como um jugo, impertinente até para os
de ânimo mais dócil e submisso. Quem se confiasse à ciência do velho
facultativo tinha de depositar previamente nas mãos dele toda a liber-
dade de acção e de pensamento durante o tempo por que se prolon-
gasse a moléstia.
Exigia que o doente pensasse pela cabeça do médico, queo
formasse uma só resolução sem expressamente lhe ser autorizada
pelas prescrições regulamentares que para cada qual instituía.
A completa resignação da vontade própria na sua, a inteira absten-
ção de tudo quanto fossem perguntas ou objecções sobre o tratamento
seguido, a cega observância dos preceitos, aparentemente mais insig-
nificantes, que tivessem sido aconselhados por ele, eram as condições
fora das quais seo encarregava de tratamento algum; e à menor
infracção, declinava de si a incumbência, para nunca mais a assumir.
Este despotismo médico valia ao doutor Jacob uma clientela nume-
rosíssima e inspirava uma confiança ilimitada na sua medicina.
Escutavam-no e obedeciam-lhe como a um oráculo, e os mais
ousados temiam de contrariá-lo ou de lhe fazer sequer uma dessas
observações, ãs vezeso absurdas, que todo o doente se julga auto-
rizado a dirigir ao seu assistente.
As formas ásperas e sarcásticas com que Jacob Granada respon-
dia às mais tímidas interpelações, nas quais via sempre uma tentativa
de revolta, tiravam a vontade de as reproduzir.
Ora, para os homens quem de viver com as multidões, este
procedimento é sempre fecundo em resultados.
Apresentar-nos perante elas como dominadores, como espíritos for-
teso dispostos à menor concessão, é de alguma sorte revelar-lhes a
consciência da nossa superioridade e desarmá-las para a resistência;
pelo contrário, encará-las tímidos, aceitar-lhes observações, respeitar-
-Ihes repugnâncias, afagar-lhes tendências e simpatias, é fazer confissão
de fraqueza, estender a cabeça ao jugo dos caprichos delas, o suficiente
para nos desprestigiar e quebrar-nos as forças para o momento da acção.
Ou por índole ou por cálculo, havia Jacob Granada evitado o des-
prestígio e exercia sobre a sociedade, que o rodeava, um império
absoluto.
SEROES DA PROVÍNCIA
Era por isso que os doentes daquela pequena colónia médica
confiada à sua direcção,o tinham ainda ousado aventurar os primei
ros passos sobre a relva húmida dos caminhos,o obstante o aspecto
convidativo da manhã, e contentavam-se, limpando o vapor conden
sado pelo frio nos vidros das janelas, em olhar através deles, com os
rostos descorados, para aquelas árvores que de fora os seduziam
Desta escrupulosa observância de um dos seus preceitos higié
nicos se podia convencer por os próprios olhos o inflexível doutor
que, ao contrário dos doentes e em oposição com as prescrições que
instituía, havia muito passeava nas ruas irregulares e relvosas da ala
meda que circundava a capela.
o obstante a satisfação que desta fiel obediência parecia dever
resultar-lhe,o eram desanuviadas naquele momento as feições do
velho médico.
Uma profunda preocupação de espirito revelava-se-lhe nas rugas
mais acentuadas que lhe sulcavam longitudinalmente a fronte, na maior
contracção dos lábios e na rapidez e irregularidade do andar, inter-
rompido por pausas súbitas e movimentos impacientes.
Às vezes soltavam-se-lhe do peito, que se elevava em agitação
febril, suspiros mal reprimidos; e os punhos cerravam-se-lhe em con-
tracções nervosas; outras, um profundo desalento abatia-lhe a fronte,
e os braços descaíam-lhe como desfalecidos ao lado do tronco.
De quando em quando parava, parecendo absorvido na contem-
plação de um objecto qualquer, como se nele descobrisse alguma
coisa de misterioso e estranho que o confundia; abaixava-se rapida-
mente para apanhar uma flor cortada e esquecida no chão, e logo
depois arrojava-a de si com enfado visível; corria com ansiedade para
a árvore, em cujo tronco divisava uma inicial aberta de véspera, e cedo
afastava-se dela, como se a observação o contrariasse. Qualquer
pequeno ruído o fazia voltar em sobressalto; parava perturbado, depois,
sacudindo a cabeça por um movimento cheio de frenesi, recaía mais
profundamente ainda na turbação anterior. Palavras sem nexo, imper-
ceptíveis, incapazes de lhe trair o pensamento, saíam-lhe dos lábios e
faziam-no estremecer, como se outro as pronunciasse.
Ora, para quem conhecesse ou julgasse conhecer o doutor Jacob,
era muito para estranhar o seu estado extraordinariamente febril
naquela manhã.
À impassibilidade profissional, que a opinião comum se apraz
atribuir a todos os médicos, reunia de facto Jacob Granada um tempe-
ramento naturalmente apático, um sangue-frio nunca desmentido nos
lances mais patéticos e comoventes.
Gozava até entre os colegas de uma reputação de alma empe-
dernida, que ele seo dava ao trabalho de desvanecer.
Viam-no sorrir no momento em que, sob os golpes vagarosos
e intrépidos do seu escalpelo, os operados se estorciam em convul-
sões desesperadas; observavam-lhe as feições inalteráveis quando,
SEROES DA PROVÍNCIA
à cabeceira do amigo agonizante, percebia no sucessivo decair do
pulso e na decomposição do rosto, o termo iminente de uma vida que
se lhe supunha cara. Tinha sempre a mesma dureza de maneiras, a
mesma franqueza, às vezes cruel, para com todos, qualquer que fosse a
idade, o sexo e condição.o sabia de carícias para as crianças, de
delicadezas para as mulheres, de afabilidades para os pobres, de con-
templações para com os tímidos, de respeitos para a velhice. Todos eram
doentes para ele, e ele para todos médico e nada mais; mas o médico
que diagnostica, que receita, que opera, eo afaga,o lisonjeia,
o consola os doentes; que, sabendo-se necessário,o ambiciona
tornar-se desejado; queo recua no emprego de um meio salutar
pela lembrança do padecimento que suscita; que vela pela saúde dos
seus enfermos, mas zomba da sensibilidade deles.
Costumara-se a fazer o bem, como o cumprimento de um dever
de que a razão o convencera, mas supunham-no incapaz de experi-
mentar aquela suave satisfação que de tal prática resulta às almas mais
delicadas.
Vivia,o conhecia um único parente, evitava relações íntimas,
afugentava-as pela maneira glacial com que recebia as tentativas dos
poucos que as procuravam.
Tinha sempre um sorriso de zombaria para os padecimentos
morais, em cuja existênciao acreditava.
Para ele tudo eram lesões, tudo órgãos alterados, tudo perturba-
ções materiais. À medicina psicológica dos médicos espiritualistas devia
os seus melhores epigramas.o havia doença de poeta ou de amante
platónico, para a qualo formulasse.
Era um desapiedado adversário desse vaporoso fantasma, que
persegue actualmente as mais delicadas organizações femininas o
nervoso; ou o recebia com um sorriso de céptico, ou instituía contra
ele uma ordem de meios curativos capaz de aterrar inimigos, muito
mais reais e palpáveis.
Inteiramente indiferente ao conceito público,o observava as
modas em coisa nenhuma,o se justificava de arguições, nem recebia
conselhos.
Finalmente, tinha a reputação de grande médico, mas de homem
insociável e de verdadeira alma de mármore.
Era pois excepcional aquela profunda inquietação.
Fundira-se o gelo daquele ânimo impassível?
Houvera enfim um estímulo que despertara essa sensibilidade,
entorpecida até então?
Assim parecia.
Quem o visse agora pela primeira vez,hesitaria em receber como
verdadeiro o conceito que geralmente se fazia do seu carácter e que
acabamos de esboçar aqui.
o é dos temperamentos frios e impassíveis essa excitação
febril, esse movimento sem causa, sem norma, sem pensamento regu-
SEROES DA PROVÍNCIA
lador que o agitava; antes se revelava em tudo isso uma poderosa sensi-
bilidade, ou nova nele ou pelo menos ignorada.
Por muito tempo durou ainda o estado de inquietação e sobres-
salto, queo excepcionalmente revelava naquela manhã o fleumá-
tico doutor Jacob.
Corriam os momentos consagrados por ele de ordinário às tare-
fas clínicas, e, como se uma força irresistível o retivesse ali, prosseguia
naquela marcha rápida e desordenada, só interrompida de quando
em quando por gestos e movimentos mais desordenados ainda.
Mudando, porém, quase sem consciência do que fazia, a direcção
ao passeio, e encaminhando-se para um dos lados da capela que até
então lhe ficara oculto, estremeceu e instintivamente recuou alguns
passos, como se uma súbita e terrível aparição lhe surgira dali.
Depois, com os olhos fitos, os lábios entreabertos e o corpo incli-
nado, permaneceu em suspensão quase extática, e que formava notá-
vel contraste com a turbação anterior.
Quem assim lhe absorverao profundamente a atenção era uma
mulher jovem, de estatura esbeltamente elevada e de formas airosas,
realçada por as amplas dobras de um vestuário elegante, a qual
naquele momento parecia atentamente ocupada em acrescentar na
parede da capela, mais uma inscrição, às tantas que existiam.
A descoberta impressionaria Jacob Granada por ver nela uma
flagrante infracção de preceitos médicos, cometida por uma das mais
rebeldes doentes da colónia?
Com dificuldade se convenceria que fosse essa a causa deo
extraordinária surpresa quem nesse momento lhe estudasse a fisiono-
mia com alguma atenção.
De facto era notável a mudança.
O ar de sombria severidade, que lhe era habitual, desvaneceu-se
como por encanto, e um sorriso, fenómeno raro naquele semblante
carregado, suavizando-lhe a dureza típica dos contornos, pela primeira
vez o mostrou capaz de uma expressão de afabilidade e de brandura
que ninguém conhecia nele.
No olhar havia chamas que contradiziam a frieza de que fazia
ostentação, nos lábios uns visos de bondade a protestarem contra a
velha reputação de rispidez que adquirira
Era uma metamorfose completa,
A mulher que, sem o saber, se tornara o objecto deste silencioso
exame e a causa talvez de uma profunda revolução naquele espírito
que se julgava morto para as impressões violentas, continuava, no
entretanto, escrevendo com uma rapidez que parecia querer acom-
panhar a dos pensamentos que lhe acudiam.
Afirmar-lhe a beleza, mas desistir da tenção de a caracterizar,
é o mais que pode fazer quemo possuir o segredo de certas fisio-
nomias que nos impressionam, que nos entusiasmam, poro sei que
fatal influxo que parece irradiar-se delas. Está o mistério na palidez
SERÕES DA PROVÍNCIA
diáfana do rosto? no quebrar voluptuoso de uma vista cheia de lan-
guidez? no ondeado elegante de tranças negras e macias? na inexpri-
mível melodia de certas inflexões de voz? em um arfar de seio pro-
metedor de delícias ? Quem o pode dizer ? A influência sente-se;o
se explica.
O belo que a arte, em qualquer das suas manifestações, consegue
realizar, ainda se estuda, ainda de alguma maneira responde ãs inter-
rogações analíticas do artista filósofo.
O pintor consegue pelo estudo entrever o mistério que faz grandes
as obras dos mestres; o musico, o segredo de harmonia das mais subli-
mes composições da sua arte.
Mas o belo na natureza é mais independente dessas leis que a
meditação sobre os grandes modelos pode descobrir e que há muito
a arte formulou. Vemos aí a cada passo dissonâncias que agradam e
arrebatam; combinações de cores, em que a vista, mau grado as leis
do colorido artístico, se repousa deliciada; fisionomias que seduzem,
a despeito dos reverenciados moldes gregos, que a arte admira como
a suprema manifestação da beleza humana e que a natureza infinitas
vezes com felicidade despreza.
Descrever fielmente uma dessas belezas misteriosas, analisá-la
feição por feição, é tentativa infrutífera.
Do todo é que procede o encanto, uma vista única o concebe, um
estudo minucioso desconhece-o.
Pintam-se as flores, mas os perfumes subtraem-se ao pincel; ora
a beleza feminina tem como as flores o aroma que inebria; a mais exacta
descriçãoo o pode reproduzir.
E a beleza de Valentina mais que todas,o dependente como era
da vida que a animava, seria pàlidamente concebida pela cópia mais fiel.
O que nela mais fascinava era de facto a quase cintilação daquele
olhar eloquente, as caprichosas contracções dos lábios, os movimentos
graciosos da cabeça, que ora inclinava lânguida, ora erguia com viva-
cidade nervosa, o rubor intenso e a profunda palidez que alternada-
mente à menor causa lhe invadiam as faces, todos estes efeitos de um
carácter por natureza móvel, de uma sensibilidade extrema, que a
primeira observação revela, mas que páginas inteiraso bastariam
para descrever.
Dir-se-ia a personificação de um capricho, mas de um desses
caprichos que, se com exigências nos revoltam, com atractivos nos
desarmam. Na volubilidade das feições, no arrojo do penteado, nas
graças do vestir negligente, na leviandade com que tratava as coisas
sérias e a sisudez que lhe mereciam outras insignificantes e pueris,
denunciava-se a todo o momento aquela índole essencialmente feminina.
Confiando-se aos cuidados médicos do doutor Jacob, era pois
de prever que, por impulsos desse génio indomável, se revoltasse
contra a vontade despótica que ele pretendia exercer sobre todos
os seus doentes.
SERÕES DA PROVÍNCIA
Efectivamente ninguém lhe tinha ainda mostrado uma tal insubor-
dinação, mas também ninguém encontrara ainda da parte do médico
israelitao absoluta tolerância.
Só Valentina se atrevia a discutir com ele o valor de algumas
prescrições, só ela abusava dos epigramas sobre médicos e medicina,
que Jacob Granada de ninguém escutava impassível, como fervoroso
crente que era na realidade da sua ciência.
O fanatismo médico que anatematizava Rabelais, Molière, Bocage
e a turba menos famosa dos que todos os dias insulsamente lhes paro-
diam e parafraseiam os epigramas, despojava-se da sua severidade
para acolher com um sorriso as alusões satíricas de Valentina, que
fazia do seu cepticismo gala.
Esta condescendência excepcional no doutor fora já detidamente
comentada nos círculos onde se discutiam os sucessos mais notáveis
daquele monótono mas salutífero viver da aldeia.
Os espíritos mais malignos aventuravam insinuações, tanto mais
jovialmente recebidas, quanto menor era a plausibilidade delas.
Riam-se do engraçado da suposição, como de um disparate irrea-
lizável ; mas a fama de inflexibilidade e dureza de Jacob Granada nem
de leve se sentia abalada pelo roçar destes gracejos que lhe voejavam
em torno.
Abriu-se uma excepção a respeito de Valentina. A natureza
humana havia de revelar a sua fraqueza originária alguma vez.
Todas as invulnerabilidadeso como as de Aquiles; há sempre
um calcanhar que as atraiçoa.
Mas uma simples condescendência, um assomo de delicadeza
para com uma mulher jovem e elegante,o contradiz uma reputação
que mil provas solidamente firmaram.
As imunidades, de que Valentina gozava, acabaram por ser
olhadas com o indiferentismo com que recebemos todos os factos
consumados. Ninguém contudo se sentia com forças para repetir a
experiência.
Um dos motivos da revolta mais frequentes em Valentina eram
as ideias um pouco materialistas do seu facultativo.
Com grande espanto e quase terror dos que a escutavam, a cada
passo se arvorava em defesa dos padecimentos morais, em cuja exis-
tência Jacob Granada pareciao acreditar.
. Desafio-o, meu caro doutor disse-lhe ela uma vez, arman-
do-se de um dos seus sorrisos mais provocadores desafio-o a que
me aponte com o dedo a lesão física que me trouxe aqui ou me
diga ao ouvido a droga medicinal que me deve curar. Rio-me interior-
mente sempre que o vejo tomar-me o pulso, inspeccionar-me a língua,
auscultar-me o palpitar do coração e sentar-se para formular. Eu sei
mais da minha doença do que lhe podem ensinar todos esses livros
de grande formato, que folheia até altas horas.
Creia-me, doutor, se quiser ser médico eminente, estude menos
SEROES DA PROVÍNCIA
a anatomia do coração ou espirifualize-a. Olhe que nem todos os pade-
cimentos deleo aneurismas ou lesões semelhantes.
Estas palavras, que em outra boca teriam provocado uma explo-
o no génio irascível e intolerante do clínico, foram desta vez acolhi-
das com um sorriso singular, como até ali ninguém tinha ainda obser-
vado nos lábios do doutor, e seguido de um silêncio reflexivo muito
parecido a completa abstracção.
Desde o momento em que pela primeira vez colheu este anima-
dor resultado, Valentina declarou-se emancipada da salutar mas pesada
tutela do velho médico.
É assim que a vimos infringindo com todo o sangue-frio uma das
prescrições do doutor, e ainda desta vez a tolerância excepcional do
ríspido facultativo para com elao fora desmentida.
o era com mudas estupefacções e arroubamentos quase
extáticos que Jacob Granada costumava receber os delitos desta
natureza.
O facto, com outro qualquer, obrigá-lo-ia a romper em um acesso
de indignação, que mais se lhe coadunava com a índole do que aquele
transportado enlevo em que ficara absorvido.
Um movimento inesperado de Valentina fê-lo enfim instintiva-
mente recuar; ao ser isso, alheio a tudo o mais que o rodeava, o
que o poderia chamar a si?
IV
ROCUROU então o abrigo das árvores, para dali, sem ser reco-
nhecido, poder continuar a observá-la.
Valentina, ignorando-se espionada, entregava-se em plena
liberdade ao trabalho de composição literária, no qual parecia empe-
nhar todas as suas faculdades.
Ora escrevia com velocidade, como se a ideia, logo ao despontar,
se modelasse imediatamente na forma desejada; outras vezes inter-
rompia-se e inclinava a cabeça, como se lutando interiormente com
uma dificuldade imprevista; mas a impaciência natural daquele espí-
ritoo lhe permitia longa hesitação; afastava-se então da capela com
gesto de enfado, para voltar de novo, forçando a vontade, que por
instinto se revoltava contra toda a espécie de sujeição.
Jacob Granadao perdia um só desses movimentos: seguia-os
com avidez.
Uma poderosa fascinação parecia ter-se apoderado dele.
Dir-se-ia arrebatado em êxtase de fervoroso culto.
o seriam, pois, infundadas as inocentes alusões, que a tole-
rância sem exemplo do velho doutor para com Valentina havia sus-
citado ?
SERÕES DA PROVÍNCIA
Rebentariam enfim os afectos daquele terreno árido ? Agora que
as neves da velhice lhe branquejavam na fronte, é que se derreteria
o gelo que tanto tempo lhe pesara no coração?
Talvez ele próprio se interrogasse sobre a estranha comoção
que o dominava, nova para os seus sessenta anos de vida isolada, e
hesitasse em determinar-lhe a causa.
Recuava talvez naquele momento diante da explicação que a
consciência lhe murmurava, e queria iludir-se sobre a fatal influência
a que cedia.
Grandes deviam ser os combates interiores que se travavam
naquela alma forte de toda a vida acumulada durante uma juventude
vazia de afectos.
O rosto recebia o reflexo dessa luta, assumindo alternadamente
as mais diversas expressões; ora iluminavam-no os raios da esperança,
outras vezes assombrava-o uma nuvem de desalento.
Preparava-se talvez mais uma vítima para o longo martirológio
moral, menos que o outro celebrado em panegíricos, menos recom-
pensado pela compaixão mundana; porque quando a vista do sangue,
o flagelar das carnes e o estalar dos ossoso fala aos sentidos da
multidão,o há sentimentos para compreender provações, lágrimas
para chorar infortúnios, ãs vezeso menos dolorosos.
Os mártires obscuros das paixões morrem contendo em si mesmo
os instrumentos da sua tortura. É o próprio coração que cingem do
cilício angustiante, é interior a lavareda que os consome; lá dentro se
lhes prepara a cicuta que os há-de abrasar. Por isso só almas delicada-
mente perspicazes lhes assistem ao suplício, só delas, e bem poucas
são, podem esperar os lamentos e as simpatias; das outras, em vez
de lágrimas, recebem muitas vezes os risos; em vez de alentos,
motejos.
A multidão piedosa chora à vista das chagas sangrentas do
Cristo; maso compreende as intensas amarguras morais daquele
espírito divino, que via a negação das suas sublimes ideias de paz e
de amor no suplício a que sucumbia; aflige-a a coroa da irrisão pelo
pungir dos espinhos que a formavam; maso suspeita que outra
angústia, mais acerba ainda, despertava no Mártir em quem a
cingiram.
Almas martirizadas, padecei sofrendo, sucumbi sem um queixume;
rir-se-iam des se vos lamentásseis.
Vossos infortúniosoo compreendidos; mais vale ocultá-los,
como se tivésseis de envergonhar-vos deles.
Jacob Granada devia saber que tal seria o futuro daquela paixão
e era paixão o que sentia em si? se um dia aquelas revelações,
tímidas ainda, do coração comovido chegassem a pronunciar o segredo
que ele mesmo tremia de suspeitar.
O amor valer-lhe-ia uma condenação.
Ceder-lhe era perder-se; resistir seria possível?
SERÕES DA PROVÍNCIA
Jacob Granada lutava, lutava como um desesperado, porque
tinha consciência do perigo. Mas a atracção era poderosa, a fascinação
enleava-o, arrebatava-o.
A força, com que resistia, devia tornar mais impetuosa a queda,
se afinal chegasse a fraquear.
Absorvido por estes pensamentos, agitando no espírito a tre-
menda questão que o preocupava, permaneceu imóvel a contemplar
Valentina, até que a viu caminhar, afastar-se, sumir-se por entre as
árvores da alameda. Então, como se acordando sobressaltado de um
profundo letargo, olhou em roda de si e correu, com uma ansiedade
de alucinado, para o lugar onde observara essa encantadora visão.
Foi sob o domínio de um estranho desassossego que pôde ler as
seguintes quadras que aí encontrou escritas:
Fugi, andorinhas; em mais longes plagas
Buscai outras praias, florestas e o céu,
Que é triste o bramido que soltam as vagas
E um vento pressago nos bosques gemeu.
Fugi, namoradas das flores e estrelas,
Olhai: estes campos sem flores estão,
E cedo os espaços, à voz das procelas,
Sinistros, cerrados, sem luz ficarão.
Fugi, apresaai-vos, alados viajantes,
Em bandos ligeiros os mares cruzai.
Por outros países, por selvas distantes,
Mais flores e aromas, mais luz procurai.
Deixai estes montes, de neve c'roados,
As selvas despidas, e as folhas sem cor,
As grossas torrentes e os troncos quebrados
E os vales cobertos de denso vapor.
E quando, mais tarde, na verde campina,
As rosas voltarem com viço a florir,
E as serras, despidas da intensa neblina,
Virentes, formosas, se virem surgir;
E quando deslizem na praia arenosa
Mais lentas, mais brandas, as vagas do mar
E das laranjeiras de copa frondosa
Caírem as flores do chão do pomar;
E quando fugirem, informes, pesadas,
As nuvens sombrias que se erguem do sul.
Correndo dispersas e em flocos rasgadas
Nos plainos imensos de um límpido azul:
Voltai; nova quadra de amores vos chama;
Dos climas distantes pra estes parti;
Então tudo é vida, já tudo se inflama,
Há luz, há perfumes, faltaiss aqui!
SERÕES DA PROVÍNCIA
Voltai, >que de novo serão florescentes
As selvas, os prados, o monte, os vergéis;
Quietas as brisas, as águas dormentes
Nos lagos tranquilos de novo vereis.
Só eu, que vos sigo com vistas saudosa
Ao vosso desterro, dos mares além.
Já quando no prado brotarem as rosas,
Talvezo reviva co'as rosas também,
Ai, não,o revivo, que o vento do Outono
Gemendo angustiado nas brenhas do vai,
Convida-me ao leito do plácido sono,
E as nénias entoa do meu funeral.
Eu morro ! Na chama do Sol que declina,
Bem sinto o presságio dum próximo fim.
Se um dia voltardes à voasa colina,
ó doces amigas! lembrai-vos de mim;
Daquela que, triste, vagando no olmedo,
O adeus da partida vos veio dizer.
Quem sabe das campas o oculto segredo?
Talvez vossos cantos eu possa entender.
Talvez que, ao ouvir-vos a queixa sentida
Quebrando das noites a triste mudez,
À sombra dos cedros da escura avenida
Acorde, a escutar-vos ainda uma vez.
O doutor Jacob acabou de ler estas quadras, aparentemente dita-
das por uma intensa melancolia e por o desalento quebrantador
daquele espírito juvenil, e como se quisesse obedecer a um pensamento
fugitivo antes que a reflexão lho fizesse abandonar, escreveu imedia-
tamente por baixo do último verso desta poesia, queo pudera ler com
indiferença, as seguintes linhas:
«Voltarão as andorinhas e as flores, e os sorrisos e as esperanças
voltarão com elas. O desalento aos vinte anos! o desalento quando se
é jovem e bela! Efémera ficção.
«Enquanto se pode alimentar uma esperança, enquantoo é
irrisório todo o fantasiar futuros, a desventura é uma nuvem passa-
geira, e através dela radia sempre a aurora de uma existência melhor.
Lamentar infortúnios imaginários e ter os olhos fechados para os infor-
túnios irremediáveis que com uma palavra se fez nascer! Não. É pre-
ciso ao menos que o saiba. Mitigue-lhe o mal que a ilude o saber que
há males maiores. Escute. Há um homem que a ama, que lhe votou o
mais verdadeiro culto que ainda sentiu no coração. E este sentimento,
de que se ufana por ser o mais puro, o mais sagrado de quantos tem
alimentado; esta paixão, que devia ser a sua glória, causa o seu maior
tormento. Desde que a confessasse, em vez de o respeitarem por a
ter concebidoo elevada,o nobre,o ideal, condena-lo-iam ao des-
prezo e ao escárnio. Gloriando-se interiormente dela, o desgraçado
SEROES DA PROVÍNCIA
o ousaria proclamá-la. A fatalidade persegue-o. Sufocar essa paixão
que o devora e sucumbir sem a esperança de que um dia o poderão
lamentar!
«A morrer por ela e o mundo a rir-lhe na sepultura, se suspei-
tasse a causa que o arrastou ali!
« Eleo olha com saudade para as andorinhas que partem, para
as flores que murcham, para o Sol que declina;o as desejara tornar a
ver nem que o viessem evocar da campa, quando gozasse já do único
sono tranquilo que lhe restava agora dormir.
«Este sim que é o verdadeiro infortúnio! Peça à imaginação que
lhe faça conceber essa tortura e, se tem um coração generoso, chore
por ela; maso procure conhecê-la, seria obrigada a rir e, rindo, a
cometer uma impiedade.»
Acabando de escrever estas palavras, Jacob Granada abando-
nou aqueles sítios com a precipitação de um criminoso que se afasta
do lugar do delito.
IAS depois escrevia Valentina a uma das suas amigas a seguinte
carta:
«Minha querida:
Deves supor-me morta. Um silêncio de meses depois de partir
ara a aldeia autoriza um necrológio. Pois enganas-te; vivo, vivo como
nunca vivi, como nunca supus que se vivia no mundo. Eu bem suspei-
tava que havia de existir algures uma outra vida melhor para mim do
que a que passávamos ai; o contrário disto era dotar o autor da criação
e um poder imaginativo inferior ao dos nossos romancistas, cujos
planos na vida me agradavam mais; confesso-o. De facto existia. Tive
a felicidade de encontra-la. Estou salva!
«Os ares livres, o cheiro balsâmico dos pinheiros, a pureza das
águas, a sadia simplicidade da cozinha campestre, os hábitos regu-
lares, vigílias moderadas, sonos convenientes, dirás tu, quase disposta
a fazer as pazes com a higiene, essa impertinente que nos amargurava
a existência, clamando contra os nossos mais queridos passatempos e
formulando absurdas regras de bem viver.
«Não te iludas porém. Olha que nada disso me salvou.
«Sentia-tne definhar no meio dessa feliz combinação de circuns-
tâncias salutiferas eo obstante o uso moderado que fazia das drogas
medicinais.
«Se eu bem sabia que a minha doençao estava no pulmão,o
estava nos nervos,o estava no sangue, como eles dizem I
SEROES DA PROVÍNCIA
«O doutor Jacob, esse talmude encarnado, que me fitou logo a
primeira vez um olhar que pareciao dever encontrar obstáculo até
ao mais íntimo da alma, como se enganava também!
«Queria reconstituir-me o sangue, dizia ele; esta agitação febril
que me atormentava acalmaria depois; mas dizia-me istoo distraído
que pareciao acreditar muito na opinião que formulava.
«Sabes que mais? A respeito dos médicos, como de outras muitas
coisas, os romancistas e dramaturgos tornaram-me o gosto muito difí-
cil de contentar.
«Onde está esse ideal do médico que sabe curar com uma
palavra, com um gesto, sem ser por o intermédio de um récipe, de
umas pílulas ou de um xarope ? o médico que aprendeu a calcular o
valor de uma comoção de espírito, que faz uso conveniente das quali-
dades morais dos seus doentes ? Em parte nenhuma. E eu que tinha a
simplicidade de acreditar na verosimilhança dos lances curativos,
deixa-me assim chamar-lhes, que observava nos teatros! Foi uma
outra ilusão que perdi. Paciência.
«Jacob Granadao forma excepção à regra.
«É um homem abominável no seu positivismo este doutor! Para
ele tudoo congestões, hipertrofias, inflamações, que sei eu?...
«Seria capaz de sangrar um poeta no ardor de composição lite-
rária, a título de uma congestão cerebral.
«Ora eu é queo podia aceitar para mim semelhante ideia_de
lesão. Repugnava-me.
«Porque me interroga só o pulso? dizia-lhe; porque meo inter-
roga o pensamento, a imaginação?o sabe que tenho vinte anos?
o sabe que penso, que sonho, que concebo e que a diferença entre
as minhas concepções e a realidade me pode fazer padecer?o vê
que é toda afectiva a minha doença? Quer curar-me com ópio, com
ferro, com tónicos e calmantes? Olhe o que faz.o se lhe importe
com o meu sangue, importe-se com o meu espírito, com as minhas fan-
tasias, com as minhas crenças. Complete a sua ciência. Os seus livros
de medicinao lhe falam de uma doença que consiste apenas em
aneloso realizados ? Dê a isso um nome grego e terá feito uma des-
coberta.
«O velho médico ouvia-me calado. Ouo me entendia, ou cis-
mava ainda na lesão orgânica de que à força me queria fazer presente,
e nem atenção me dera.
«Mas eu dizia-lhe a verdade; e a prova... Ouve:
«Lembras-te daquelas heroinas dos contos de fadas, que tanto nos
entretinham em crianças? Eram umas princesas muito bonitas, muito
ricas, muito sábias, mas vítimas de uma doença desconhecida. Vinham
os médicos de todas as partes do mundo, visitavam-nas os sábios mais
afamados, os cofres de el-rei, seu pai, traziam dos mais longínquos
países as drogas medicinais que a ciência aconselhara; e ninguém
lhes atinava com a moléstia, e nada lhes realizava a cura. A menina
SEROES DA PROVÍNCIA
definhava-se a olhos vistos, já nem sabia sorrir, era uma cerração de
tristeza aquela, que nenhum raio de Sol atravessava.
«Um dia, porém... Recordas-te do que acontecia? Era o ponto cul-
minante do interesse. Chegava um pastor, um Adónis em beleza, des-
culpa-me a referência mitológica, de rosto imberbe, de cabelos louros,
de sorrir angélico, e com um pomo silvestre, um ramo de flores do
campo ou com os sons rudes da sua frauta pastoril, fazia o milagre.
Trazia o sorriso aos lábios da menina, o colorido às faces desmaiadas, a
vida ao coração desfalecido... ai, o coração sobretudo. Já ela erguia a
cabeça, que até ali pendera em morbidez, jáo procurava a solidão,
jáo aborrecia o mundo, os enfeites, as riquezas. Mas fora o pomo,
o ramo de flores, os sons da frauta que produziram o fenómeno? Qual!
Fora o mesmo portador, o pastor desconhecido que um oculto pressen-
timento trouxera ali. Amava, está explicada a cura. Restava inclinar-se
do alto do seu trono para estender ao agradecida ao simpático sal-
vador, ajudá-lo a subir os degraus, e sentá-lo a seu lado, trémulo de
sobressalto e de amor, e... era de uma vez um príncipe.
«Eis a minha história também, feitas as devidas alterações no que
diz respeito à beleza, à sabedoria e jerarquia da heroína. Pelo menos,
seo é ainda a minha história, parte dela se realizou.
«Imagina que parti daí perdida. Parecia-me que tudo estava a
findar para mim. Era um mal interior que me ralava, que me inquie-
tava, que me impedia repousar. Impacientavam-me as distracções,
sufocava-me a atmosfera das salas de baile e dos teatros, aborrecia-me
a sociedade, sorria-me a ideia da solidão de um claustro. Tenho a
alma morta, dizia eu comigo, como lhe há-de sobreviver o resto? Olha
que acreditava sinceramente que me tinha morrido a alma.
«Suscitei apreensões nas minhas amigas. Lembra-me que me impu-
seste a medicina com desusada severidade. A medicina! Eu bem sabia
o que ela viria fazer, mas obedeci. Ares! ares! exclamou ela
julgo que para se ver livre de mim, como de quem suspeitava poucas
probabilidades de vitória. Ares! ares! repetiste tu e o coro das
pessoas que se interessavam por mim. Foi-me forçoso condescender.
«Dias depois rendia preito e homenagem à pouco tratável ciência
do doutor Jacob Granada, actual superintendente da minha saúde.
«Respirei a plenos pulmões o ar que me aconselhavam; rompi
com os meus hábitos de indolência para saudar as madrugadas, real-
mente bonitas, que se gozam aqui; soltei os cabelos às brisas saluta-
res, embalsamadas pelos aromas dos campos, mas a vida da natureza,
cujo contágio procurava,o se me comunicou. Era o mesmo desfale-
cimento, a mesma impaciência, a mesma inexplicável mobilidade.
«Forçava-me a sorrir, a gracejar, divertia-me a educar convenien-
temente o carácter inflexível do meu facultativo; mas cá dentro tinha
o mal que me pungia.
«Uma manhã... atende agora, que chegou o momento solene;
uma manhã impressionaram-meo dolorosamente os sinais de deca-
SEROES DA PROVÍNCIA
dência, que,o obstante a amenidão do dia, eu por toda a parte reco,
nhecia no campo que, precisando de dar expansão àquela melancolia
para que meo matasse, fiz versos.
«Para outra vez tos enviarei; deixei-os escritos na parede de
uma capela, único sistema de publicidade que está em voga por aqui
Despedia-me das andorinhas que eu via partir, e despedia-me para
sempre, porque um pressentimento me dizia que o Outono me
seria fatal,
«Quem me observava, quando eu escrevia?o sei. Mas, dias
depois, voltando ao sítio, onde me acometeu este acesso literário de
desesperação, vi que alguém mo havia comentado. Li. Suspeitas o
que era?
«Uma declaração de amor. Sou amada, ouves? compreendes?
Amada e por um homem queo conheço. Há na sua existência um
mistério; seu amor, que ele diz nobre, puro, com o qual se engrandece,
de que se orgulha,o o pode revelar, porque o mundo o condenaria
à irrisão. Tanto maior é a pureza dele, tanto maior seria o escárnio
que atrairia sobre si se o revelasse. Aí tens um enigma; sabes deci-
frá-lo? Tenho pensado muito nisto e, olha, julgo que adivinhei'
«É a história da princesa.
«É algum pobre rapaz, entusiasta como um poeta, tímido como
uma criança, mas de origem obscura e a quem aterra o meu apelido
aristocrático.
«Julga-meo alta,o elevada em meus pergaminhos, que me
riria do seu amor como de uma irreverência censurável.
«Concebes uma loucura assim? Os soberboso eles que, nobi-
litados pela inteligência, nem por causa do amor a sujeitam ao que
julgam uma humilhação!
« O meu interessante incógnito! Se soubesse com que vontade eu
rasparia os meus pergaminhos nobiliários para escrever neles aquela
declaração de amor!
«Alma de sensitiva, cujos delicados instintosm vigorado na soli-
o destas devesas; imaginação exaltada pelo contemplar das estrelas,
que parece cintilarem aqui mais animadas, dotadas deo sei que inte-
ligência para nos compreender; ele, a ingénua criança, treme do
mundo queo conhece, receia manchar a alvura das suas penas de
cisne na lama em que patinham esses gansos que lha invejam!
«Como se o amoro fosse a corrente límpida que lhe havia de
restituir a nitidez! Incrédulo! Ama-me e desconfia de mim! Ele que
me salva... porque estou salva, disse-to, e por ele, por ele! ele,
que me salva, julga que me envergonharia do seu amor! Oferece-me
um culto reverente, sincero, apaixonado, ideal, e teme que eu desvie
a cabeça do incenso que me inebria! O mundo! o mundo! pois repa-
ra-se lá no mundo quando se ama? Se as harmonias do coração nos
arrebatam, pode lá ouvir-se o sussurrar da multidão!
«Vais julgar-me louca, se te disser que o amo.
Uma mulher jovem... ocupada em acrescentar na parede da capela, mais uma
inscrição...
«É verdade;o o conheço,o suspeito sequer quem seja; mas
«Deve ser belo; porque a alma pura tem reflexos de que depende
o que há na beleza de mais ideal.
«Triste de quem oso percebe, fere-os uma cegueira que os
pode encaminhar ao precipício; deve ser belo, assegura-mo a candura
aqueles sentimentos, o ideal daquele amor.
«Sei que o amo, adivinho que o hei-de amar. Por isso estou salva;
por isso te disse que vivia como nunca, como nem sabia que se vivesse.
«Estava cansada de galanteios, precisava de amor.
«As flores artificiais das salas de baile iludem-nos por momentos,
mas a ausência de perfume atraiçoa-as e logo se patenteia a arte que
as teceu; mas as flores, como a violeta, emo se ocultam na relva
das campinas, denuncia-as o aroma que exalam, eo essas as que
nos seduzem.
«Sabe-loo bem como eu, tu a quemo iludem as adulações
«Estes elegantes de casaca, de cabelos frisados, de luva branca,
que se meneiam, que se torcem, que vergam e adejam, como impor-
tunos mosquitos, em volta das nossas cadeiras, sibilando-nos insulsas
galantarias; que nos falam no tempo ao ouvido, para se darem aparên-
cias de intimidade, que nos fazem o favor de uma risada da moda a
cada sensaboria que pronunciamos; esses leões terríveis que, carre-
gando o sobrolho, imaginam ter fascinado uma mulher...; ninguém lhes
pode querer mal, coitados, mas também quem os poderá tomar a
sério ?
«Aí está explicada a minha isenção até ao dia em que recebi esta
prova de um misterioso amor.
«Compreendes como se pode amar por inspiração,o é ver-
dade ?o te rirás desse sentimento que a leitura daquelas linhas me
inspirou, pois não?
«Então digo-te mais, digo-te que o animei. Ontem mesmo, em
seguida às suas palavras escrevi estas, que formulam um convite, o
qual espero meo será rejeitado. Submeto-as à tua censura.
« Quem possui sentimentos que em sua consciência o nobilitam,
o pode envergonhar-se deles. Se eu fiz nascer o mal, tenho direito
a conhecê-lo. Eo possui a liberdade de recusar-se à confissão
inteira, quemo hesitou ao exprimir as primeiras queixas. Preciso
um nome.o sei de distâncias que prevaleçam quando a correspon-
dência de afectos trabalha por anulá-la; rio-me dos preconceitos que
o mundo respeita; e quando um sentimento é verdadeiramente nobre,
tenho faculdades para lhe apreciar a nobreza e sensibilidade bastante
para lheo poder ser indiferente.»
«Fiz mal escrevendo isto? Pode ser, maso me arrependo. Quero
alentar essa alma tímida que me votou um culto desinteressado, mos-
trar-me a seus olhos tal qual sou e... —porque teo direi tudo, a
SEROES DA PROVÍNCIA
SERÕES DA PROVÍNCIA
ti, que és a minha melhor confidente? quero amá-lo. Se o meu amor
lhe pode dar ventura, hei-de torná-lo venturoso.
«Espero que em breve te comunicarei o resultado da minha entre-
vista. Julgo-a inevitável.
«Diz-me se tens os mesmos pressentimentos da tua
«Valentim.»
VI
A
noite estava tépida e tranquila, como se fora uma noite de Estio,
Os raios de luar esplêndido, internando-se pela espessura das
árvores, desenhavam no chão das alamedas ornatos irregula-
res, que apenas um ligeiro tremor agitava.
Os últimos clarões do crepúsculo apavonavam ainda o ocidente,
onde acabara de esconder-se a estrela da tarde.
Muitos dos doentes do doutor Jacob, aproveitando-se da excep-
cional temperatura daquela noite de Outono, passeavam a conversar
por entre as árvores, ou contemplavam silenciosos os variados efeitos
da luz nos acidentes do terreno.
Valentina, afastando-se de toda a companhia, fora sentar-se nos
degraus da capela, junto da qual a vimos pela primeira vez. Na fisio-
nomia, na atitude, na distracção com que parecia fitar o disco luminoso
da Lua, por entre as folhas dos álamos, denunciava-se-lhe uma pro-
funda inquietação. A mesma influência, sob cujo domínio escrevera a
carta que no capítulo antecedente reproduzimos, ainda seo tinha
desvanecido.
Ao oculta que lhe havia dirigido aquela veemente confissão
de um amor sem esperança era-lhe desconhecida.
Ao primeiro conviteo respondera o misterioso escritor.
O carácter de Valentinao lhe permitia, porém, desistir facil-
mente de uma resolução formada. Recuar depois dos primeiros passos
era um sacrifício, para que seo sentia de ânimo.
Depois, a fantasia criara-lhe um romance, um desses devaneios
de vinte anos, em que todo o nosso imaginar se concentra; paraíso de
luz e de flores, fora do qual tudo se nos mostra árido e obscuro. Jáo
podia aceitar a realidade, depois de alguns momentos passados em
livre devanear.
Insistiu e a novo emprazamento obteve uma resposta formulada
apenas por estas palavras:
«Veja que me pede um sacrifício imenso.o sabe o que promete.
Assim, ainda posso iludir-me; depois... a confirmação das minhas sus-
peitas ser-me-ia fatal.»
Esta respostao era de natureza a modificar a tenção da capri-
chosa convalescente, antes lhe exacerbou a impaciência natural, sob
cuja inspiração escreveu as seguintes palavras no mesmo lugar onde
toda esta singular correspondência havia sido arquivada:
«Um culto sem! Como posso acreditá-lo ? Duvidar dos meus
sentimentos e querer queo duvide da sinceridade dos seus! Hoje
saberei o que devo julgar. Aqui hei-de estar uma vez mais ainda a
ultima, se esperar em vão. Procurarei esquecer-me depois.»
Quando de tarde Valentina voltou a este lugar, uma só palavra
resumia a resposta que esperava:
«Virei.»
E era por isso que, à medida que iam correndo os momentos e
aproximando-se a entrevista que ela havia exigido, uma vaga preo-
cupação se lhe apoderava do espírito, como se só agora ponderasse
na importância do passo, que com tanta leviandade havia dado.
Encontrar-se as com um homem desconhecido, que procurava
ocultar-se e temia o mundo, como se estigma indelével estivesse cha-
mando sobre ele o desprezo ou quem sabe se o castigo, fora uma grande
imprudência!
E tal vulto tomavam às vezes estas apreensões no ânimo de Valen-
tina, que, ferida de terror, erguia-se como para fugir destes lugares,
de onde julgava ver já levantarem-se espectros assustadores. Em breve,
porém, lhe sorriam de novo as impressões que afagara. Nada devia
recear.
Acaso a tinha perseguido esse homem, quem quer que ele fosse?
o a havia antes evitado?o fora ela que o constrangera a vir?
Que podia suspeitar daquela timidez de criança ? daquele pobre
coração que esmorecia à lembrança de que podiam escarnecer-lhe o
culto de que se ufanava? Esta ideia tranquilizava-a, e então voltava a
fantasia a pintar-lhe com as mais risonhas cores o futuro da sua paixão
nascente.
Já a faziam sorrir os primeiros terrores, já se lhe despojava de
sombras pavorosas a alameda, e de novo esperava com ansiedade o
momento da entrevista.
Nestas continuadas alternativas que gera a incerteza, entre a con-
fiança e o susto, entre sorrisos e terrores, correram para Valentina
alguns minutos mais, até soarem nove horas na torre da capela.
Aproximava-se o momento. Mais uma vez o coração lhe bateu
em sobressalto, reproduziram-se-lhe os receios e as apreensões; mas
pouco tempo durou esta íntima impressão. Era a última incerteza.
O estalar das folhas secas sob oss de alguém que caminhava,
fê-la voltar a cabeça.
Uma figura elevada, que se destacava em escuro sobre o fundo
iluminado pelo luar, estava diante dela e como que hesitando em apro-
ximar-se mais.
Valentina guardou algum tempo silêncio. A face do recém-che-
gado, oposta como ficava aos raios da luz,o pôde ser por ela reco-
nhecida.
SERÕES DA PROVÍNCIA
SERÕES DA PROVÍNCIA
Aquela aparição repentina e silenciosa, como a de um espectro
sinistro, suscitou em Valentina uma espécie de pavor supersticioso,
que lheo permitiu interrogá-la.
Eis-me aqui disse por fim aquele vulto, com uma voz que,
apesar de sumida, Valentina julgou conhecer. E, sem lhe dar tempo
de recorrer à memória, voltou, por um momento súbito, o rosto aos
raios da Lua, que iluminaram as feições bem características de Jacob
Granada.
Valentina levantou-se surpreendida sem saber ainda o que pen-
sasse do que estava vendo.
O doutor Jacob aqui!
O recém-chegado guardou silêncio.
Ah! já sei disse Valentina, como se lhe ocorrera afinal um
pensamento que a satisfazia.—Já sei. Vem lembrar-me que os nevoei-
ros da noite me podem ser prejudiciais. Ora, doutor, esses cuidados
são-lhe mais necessários a si, do que as outras, organizações jovens,
onde, se o malo nasceu cá dentro, há vida de sobra para neutralizar
todos os elementos conjurados. Repare,o me tem sentido renascer as
forças ? iluminar-se-me o olhar ? renovar-se-me o sangue ?o vê que
estou curada? De hoje em diante declaro-me livre da sua tutela. Entre-
go-lhe as suas credenciais. Deixe-me em paz gozar das belezas de uma
noite assim. Isto é também uma necessidade. O doutoro compreende
como isto pode ser uma necessidade? Nem eu lho sei explicar. Creia
ou recorde-se, se teve um passado que lhe dê dessas recordações.
,, deixe-me, doutor. Tome para si os conselhos higiénicos que
dá aos outros. Então ? E fica! eo responde!... Que veio fazer aqui ?
Poiso exigiu que viesse ? redarguiu ele com uma voz,
cujo ligeiro tremor revelava a imensa ansiedade que lhe angustiava
o coração.
Valentina fitou-o por algum tempo com um olhar de estupefacção.
Deus meu! Pois era...—E uma gargalhada estridente, ner-
vosa, prolongada, terminou a frase que principiara a formular.
A palidez de que naquele instante se cobriram as faces do velho
médico, foio intensa, ao ouvi-la rir assim, que nem a meia obscuri-
dade do lugar a pôde encobrir. Era a palidez de um cadáver.
Com uma voz sufocada, dilacerante, como só am os desespe-
rados, apenas soluçou, deixando pender os braços com desalento:
Estou condenado!
Mas enfim que significa esta cena ? perguntou Valentina
com certo desabrimento, porque, ela também, sentia desvanecer-se-
-lhe uma ilusão.
Jacob Granada ergueu a cabeça com um gesto impetuoso e fitando
Valentina com o olhar chamejante e desvairado, disse-lhe com uma viva-
cidade que semelhava ao delírio:
Significa que a amo! Estremece ? surpreende-a esta palavra
na minha boca? Bem conheço o sentido desse olhar que levantou para
SEROES DA PROVÍNCIA
meus cabelos brancos,o sei comoo se riu outra vez! Embora.
Há-de ouvir-me, já que exigiu que viesse. Ah! compreende enfim por-
que eu devia sufocar este amor, compreende porque devia ocultar
este segredo, até de si? Era para que uma gargalhadao me viesse
despedaçar o coração, como essa acaba de o fazer. Está tudo terminando
para mim! Um pressentimento me dizia que isto havia de acontecer.
Iludi-me; vim. Oh meu Deus, como me pude eu iludir! Saberá tudo
agora, Valentina; ria-se depois, mas conheça inteiro o infortúnio de
que se ri. Sim, é verdade, sou velho; há muitos anos, há muitos, que
me alvejam ass na cabeça e a fronte se me inclma desfalecida; mas
se me sinto jovem na alma! se neste corpo cansado e gasto, há um espí-
rito de maior alento do que o dessa mocidade que a seduz! A des-
crença, o egoísmo, o interesse, a ausência de nobres aspirações, de
sentimentos generosos, de concepções elevadas, eis o viver das almas
decrépitas, e eu, Valentina, desde que a vi, perdi o sentido dessas
paixões mesquinhas, ídolos a que sacrificam os homens de sua época,
cujo amor aceitaria sem uma gargalhada. Responda, diga se pelos
instintoso sou mais jovem do que eles. Nenhum a poderia amar como
eu a amo, saiba; nenhum faria desse amor uma religião como eu;
nenhum se perderia por ele, como eu decerto me perco. Bem vê que
meo é possível a salvação!
E os soluços interromperam-lhe a voz ao dizer isto.
Por alguns momentos conservou a cabeça escondida nas mãos;
ao levantá-la, corriam-lhe as lágrimas pelas faces descoradas.
Valentinao rompeu este silêncio de movimentos.
Jacob Granada continuou em tom mais abatido:
Perseguiu-me a fatalidade toda a minha vida!o conheci
carinhos dee na infância;o conheci extremos de amantes na
juventude. Na idade das aspirações,o as tive; quando devia viver
para o sentimento, era a razão que dominava em mim; os anos do amor
consagrei-os sem uma saudade ao estudo; enquanto os meus compa-
nheiros corriam com alegre irreflexão para os prazeres, eu procurava
trabalho com corajosa tenacidade. Veja, conceba os risos desta juven-
tude. Acabaram por me abandonar todas as afeições, essas poucas
afeições superficiais que me restavam. Respeitaram-me,o me esti-
maram. Como era um homem útil, tinha quem me lisonjeasse, quem
me obedecesse, mas ninguém, repare, Valentina, para o desconforto
desta existência, ninguém que me desse afectos! A solidão que sé fez
em volta de mim exacerbou o que havia no meu carácter de sombrio;
estava quase a odiar os homens... Um dia, porém, senti que acordava
no meu coração um sentimento adormecido, e acordava com toda a
exaltação, com todas as tendências da mocidade. Conheci o amor com
a pureza, com o ideal que pode verter na concepção um coração
ainda virgem; recebi-o como um culto, como o augusto mistério de
uma religião que pela primeira vez se me revelava. A minha alma
passou por uma completa transformação; novos instintos, novas facul-
dades parecia nascerem para ela. Mas... as rugas que me sulcavam
a fronte impunham-me a obrigação de sufocar a explosão iminente das
paixões que se insurgiam tumultuosas. Que importava a pureza delas?
apontar-me-iam para os meus cabelos brancos e mandar-me-iarti
que os respeitasse. Calei-me; foi então que verti em silêncio as mais
amargas lágrimas da minha vida.
Pela segunda vez a comoção dominava Jacob Granada a ponto
de lhe interromper a corrente de palavras que uma veemente paixão
lhe estava ditando; depois continuoui
A velhice descrente, invejosa, avara, egoísta, cínica, pode
ainda encontrar indulgência; desculpam-na e respeitam-na muitas
vezes; mas a velhice amorosa, fascinada por uma dessas visões encan-
tadoras, votada a um desses cultos ferventes que nobilitam as almas,
essao tem misericórdia a esperar; condenam-na ao escárnio, à irri-
são, e tanto mais puras e elevadaso as aspirações desse amor, tanto
mais amarga, desapiedada é a perseguição que lhe declaram; é então
que a assalteiam de chascos e de apupos. Sabia-o! e por isso me ocul-
tava, por isso lutei para que ninguém descobrisse em mim o que me
ia no coração. Porque eu amava-a loucamente, Valentina, e amo-a!..,
Oh! deixe-me ainda dizer-lho. Nada mais lhe peço. É já agora a única
consolação a que aspiro. Oiça-me e ria depois, se a comiseração lhe
o gelar nos lábios o sorriso. É a última vez que lhe fa'o. Amo-a per-
didamente. Os afectos que os outros repartem com a mãe, com os
irmãos, com os filhos, entesourei-os eu, anos e anos, para lhos tributar
agora! Despreze-os, mas conheça primeiro de que grandeza são. Este
amor tem o respeito do amor filial, a dedicação do amor fraterno; havia
de rodeá-la das carícias que os filhos recebem dae que os estremece,
e, ao mesmo tempo, ele adivinharia os extremos, a exaltação de uma
paixão de amante. Sacrificar-lhe-ia tudo, a minha vida, a minha vontade,
os respeitos do mundo, Porque me despreza? Oh!o repare nestes
cabelos brancos; far-lhos-ei esquecer à força de dedicação e de afec-
tos.o me disse que viesse? poiso me assegurou que possuía
faculdades superiores ãs do vulgo ? Que direito tinha para fazer nascer
ilusões, como as que eu, louco, cheguei a alimentar, seo confiava
que podia corresponder a esse amor verdadeiro, que animou assim?
Se havia de acolher-me com a gargalhada motejadora e cruel, para
que me arrastou aqui? Diga, fale.o vê que enlouqueço? uma pala-
vra ao menos que me tire dos ouvidos o som daquela gargalhada.
Valentina! comove-a a partida das andorinhas, o definhamento da
flor, eo tem coração para sentir este tormento?? choro, choro,
e parece que se me exaure a vida nestas lágrimas.o aliviam, abra-
sam-me! Ó Valentina! Valentina! tenha piedade desta razão que se
perde!
E, pronunciando entre soluços estas palavras, que lhe saíam dos
lábios como uma impetuosa torrente, caiu de joelhos aoss de Valen-
tina, que o olhava com gesto de comiseração.
Creia que aprecio a nobreza dos seus sentimentos disse-lhe
ela em tom grave e triste. Tenho orgulho em os haver inspirado,
mas penaliza-me ao mesmo tempo. Que quer? É uma fatalidade, disse-o
ainda há pouco. A alma, que eu ambicionaria encontrar, era decerto
uma alma assim, mas... acrescentou com uma expressão de sem-
blante, ondeo pôde totalmente dissimular um reflexo de sorriso
cheguei... tarde, bem. E fitou os olhos na cabeça encanecida do
apaixonado velho.
O sentido destas palavraso podia ficar um enigma para Jacob
Granada.
Tarde! repetiu ele, levantando-se e com uma entonação de
amargura que contristava ao ouvir. Tarde ! E mal soube disfarçar
um sorriso ao pronunciar essa palavra cruel! Seo sente compai-
xão, para que a simula? Acabe de consumar a obra.o basta repudiar
este amor; tenha coragem, é preciso escarnecê-lo., aí anda essa
turba de ociosos, procure-a. Conte-lhe a minha loucura, fale-lhe na
minha ridícula credulidade, diga-lhe que um velho ousou falar-lhe de
amor, queo hesitou em rojar-lhe aoss a dignidade da sua velhice.
pois vacila ? O velho que ama! o velho que ama! É a eterna fábula da
juventude, que nem coração tem para amar. Patenteei-lhe a minha
alma; agora que a conhece, ria-se dela.o será a única a rir; mas
é a única a martirizá-la, creia, Que me importa a mim que os outros a
acompanhem? Os outros! a multidão! o mundo! Nem já entendo estas
palavras. O mundo para mim está aqui dentro; e atormenta-me, rala-me,
mata-me. Já vê que se enganou, mentiu-me. Os meus sentimentoso
nobres, disse-o ainda agora,o é verdade? mas recorda-se do que
escreveu? Se tem faculdades para lhe apreciar a nobreza, falta-lhe o
que é mais, a sensibilidade para lheo ser indiferente. Adeus! e
repare queo é um simples adeus o que lhe digo assim. Adeus!...
E jáo choro! Pior! Tinha precisão de chorar. Sinto em mim um fogo
que me abrasa. Adeus! procure um coração para o qualo che-
gasse... tarde; mas juro-lhe, Valentina, que outro como este que des-
preza. .. Adeus ! adeus !
E apoderando-se subitamente das mãos de Valentina, beijou-as
com um tal ardor que a fez estremer, e fugiu desorientado do lugar
onde esta cena se passara.
Aquela noite foi para Valentina uma noite de agitação e insónia;
parecia-lhe a cada momento escutar as palavras apaixonadas desse
desgraçado que vira a seuss e cuja figura, pálida e abatida, se lhe
representava na imaginação e quase lhe fazia sentir remorsos.
-
SERÕES DA PROVÍNCIA
CONCLUSÃO
N
O dia seguinte havia grande alvoroço em todas as habitações
da colina. Um facto extraordinário, misterioso, comentado mais
ou menos extravagantemente, reunia os grupos, animava as
conversas, e quebrava a costumada monotonia daquele plácido viver.
O sucedidoo era para menores efeitos, o doutor Jacob Granada
havia desaparecido.
Formavam-se conjecturas, procuravam-se vestígios, recordavam-se
circunstâncias insignificantes, aventavam-se explicações, mas a obscu-
ridade do facto era completa.
Só Valentina, ainda queo pudesse julgar do destino do doutor
Jacob, imaginava a causa provável do sucesso, e pela exaltação de
espírito que ultimamente conhecera no velho médico, sentia a esse
respeitoo infundadas apreensões.
Alguns dias reinou a incerteza. A confusão era completa. Altera-
ram-se os hábitos mais regulares.o se falava,o se pensava em
outra coisa. Os próprios doentes esqueciam os seus padecimentos,
o que a muitos bastou para os curar.
Era uma anarquia inocente. Finalmente, uma manhã, o correio
de Lisboas fim a todas as conjecturas. Os periódicos e as cartas par-
ticulares anunciavam que o doutor Jacob havia sido encontrado nas
ruas da capital, mas em tal estado de espírito, que fora recolhido ao
hospício de alienados.
Foi geral a consternação ao receber-se a notícia. Muitas lágrimas
sinceras se verteram naquele momento, porque o doutor Jacob era
verdadeiramente estimado.
Nesse mesmo dia Valentina abandonou a aldeia que, depois do
sucedido, se lhe tornara insuportável pelas amargas recordações que
lhe trazia.
Aos leitores que desejarem saber particularidades sobre a loucura
do doutor Jacob ofereço o seguinte extracto de uma carta do faculta-
tivo que o observou:
«A mania predominante do enfermo é a descoberta da pedra
filosofal. A elaboração de um elixir de longa vida preocupa-lhe
o espírito e conserva-o em um contínuo e fatigador trabalho
mental.
«Ouvimo-lo falar em Paracelso, em Cagliostro, em Basílio Valentin
e Arnaud de Villeneuve eo sei quantos mais nomes de ilustres alqui-
mistas.
«Com a primeira pessoa que se lhe aproxime, pratica sobre os
arcanos daquela seita afamada, exaltando-lhe a ideia, e expondo-lhe
as teorias com um fogo e uma vivacidade, que no meio das aberrações
SEROES DA PROVÍNCIA
de um espírito perturbado, revelam ainda verdadeiros clarões de uma
grande inteligência.
«Há dias encontrei-o repetindo estas palavras, que depois me
disse serem da Tábua Smaragdina de Hermes:
«—Apartarás com cuidado e engenho a terra do fogo, o subtil
do denso; o fogo sobe da Terra aos céus, desce outra vez sobre a Terra
e tira a sua força tanto do superior como do inferior. Assim possuirás
a glória do mundo inteiro, fugirão de ti as trevas. É a virtude fonte de
toda a virtude...
«Interrompe a cada passo estes solilóquios para exclamar que
fará ele enfim o grande achado, a grande obra, que há-de ser jovem
então, que remoçará. E esta ideia lança-o em um acesso de hilaridade
característica. Exaspera-se quando lhe negam o que exige para as
suas fantásticas elaborações.
«É aos velhos que com especialidade se dirige.
«Promete-lhes juventude, alegria, consideração e amores.
«A extravagância dessas promessas e o ardor das suas palavras
então, moveriam o riso se a almao se sentisse comovida perante
as desordens daquela inteligência, onde parece descobrirem-se os
vestígios de uma poderosa e malograda paixão.
« O absoluto exclama ele nesses momentos vos restituirá
as seduções da juventude, desgraçados velhos! Nunca mais, nunca
mais vos repetirão, como a mim, aquelas palavras: Vim tarde !
« Estas duas palavraso as que efectivamente mais vezes o ouvem
pronunciar, acrescentando:
«o haverá mais tarde nem cedo, perante o eterno, o absoluto.
«Então animam-se-lhe as feições de um sorriso singular.
«Esta exaltação incomoda a quem a. Eu, habituado como estou
a estes espectáculos, confesso que oo posso olhar sem estremecer,
e conservo disso por muito tempo uma impressão penosa. As vezes
encontram-no com o rosto oculto entre as mãos e chorando como uma
criança; sai desses acessos para perguntar se as andorinhas já volta-
ram. É singular a comoção que experimenta à vista destas peque-
nas aves.
« Deste estado recai no de um desesperoo violento, que é neces-
sário vigiá-lo muito de perto para que seo cause mal. Em tudo isto
reconheço os efeitos de alguma paixão íntima, de que este desgra-
çado foi vítima. A sorte dele parece-me desesperada, e, no definha-
mento em que vai, é de presumir que, a recuperar a razão, seja só
Dará reconhecer o instante final.»
E Valentina?
Conservou per algum tempo a memória do doutor Jacob; mas
enfim tinha vinte anos, imaginação e futuro.
Em tais circunstâncias as impressõesoo efémeras!
Na última carta em que falava dele à sua amiga, terminava assim
o período respectivo:
SEROES DA PROVÍNCIA
«Finalmente, era uma bela alma.o há dúvida.
«Para o ter amado, bastar-me-ia... ter sido contemporânea de
minha avó.»
A observação parece um tanto cruel; mas qual das leitoras jovens
seria mais benigna?
Depois que soube os incidentes desta pequena história, cada vez
mais se confirmou a minha convicção de que é antes para comover do
que para rir o espectáculo de um velho apaixonado. E o que eu julgo
ques todos devemos pedir a Deus é que noso dê longa vida ao
coração, se isto de paixões tem alguma coisa com ele, para queo
seja o último a morrer.
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